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lingÜÍstica iii

IARA BEMQUERER COSTA

lingÜÍstica iii
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-0778-3

lingÜÍstica iii
2.ª edição
2009

IARA BEMQUERER COSTA

lingÜística III
Iara Bemquerer Costa

Doutora em Ciências (Lingüística) pela Universidade Estadual de Campinas (Uni-


camp). Mestre em Lingüística pela Unicamp. Graduada em Letras-Português pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Sumário
Análise da fala e da conversação ........................................ 15
A conversação como objeto de estudo............................................................................. 15
Propriedades definidoras da conversação ....................................................................... 16
Algumas modalidades de conversação ............................................................................ 19
Transcrição da fala..................................................................................................................... 22
Conclusão..................................................................................................................................... 27

Conceitos fundamentais
para a Análise da Conversação ............................................ 35
A especificidade da conversação......................................................................................... 35
Os turnos de fala ........................................................................................................................ 36
Tópico conversacional ............................................................................................................. 40
Pares adjacentes ........................................................................................................................ 43
A hesitação .................................................................................................................................. 47
Conclusão..................................................................................................................................... 48

Estratégias de organização do diálogo ............................ 57


A paráfrase ................................................................................................................................... 57
A correção .................................................................................................................................... 60
A repetição................................................................................................................................... 62
Os marcadores conversacionais ........................................................................................... 63
Conclusão..................................................................................................................................... 68
A aquisição da linguagem...................................................... 75
Teorias de aquisição da linguagem..................................................................................... 76
A aquisição da fonologia......................................................................................................... 83
Observações sobre a aquisição da escrita......................................................................... 86
Conclusão...................................................................................................................................... 87

Análise retórica da argumentação...................................... 95


A Retórica Clássica e sua revitalização na Nova Retórica............................................. 95
Conceitos fundamentais da Nova Retórica.....................................................................100
O ethos: imagem do autor projetada no discurso........................................................107
Conclusão....................................................................................................................................108

A teoria da argumentação na língua................................117


A contribuição de Oswald Ducrot para o estudo da argumentação.....................117
A pressuposição........................................................................................................................120
O subentendido........................................................................................................................122
Os operadores argumentativos..........................................................................................123
Conclusão....................................................................................................................................127

Teoria da informação.............................................................133
Informação X redundância...................................................................................................133
Contribuições da teoria da informação para o estudo das línguas.......................136
A informatividade como fator de textualidade.............................................................138
Fontes de expectativa para a avaliação da informatividade....................................142
Conclusão....................................................................................................................................143

Teoria dos atos de fala...........................................................151


O conceito de atos de fala:
origem, contribuições para a Lingüística e limites.......................................................152
As enunciações performativas............................................................................................155
Tipos de atos de fala................................................................................................................156
Conclusão....................................................................................................................................159

As máximas conversacionais...............................................169
As relações entre a lógica e a conversação segundo J.P. Grice................................169
Princípios organizadores da conversação.......................................................................171
Implicatura conversacional...................................................................................................178
Conclusão....................................................................................................................................179

Conceitos básicos da Análise do Discurso.....................187


Surgimento e consolidação da Análise do Discurso...................................................188
Formação ideológica e formação discursiva..................................................................191
O conceito de discurso...........................................................................................................192
Discurso e interdiscurso.........................................................................................................194
Conclusão....................................................................................................................................196

O sujeito na Análise do Discurso.......................................203


Condições de produção e jogo de imagens...................................................................203
O conceito de sujeito na Análise do Discurso................................................................208
Sentido e efeito de sentido...................................................................................................210
Conclusão....................................................................................................................................211

Exemplos de Análises do Discurso....................................221


Exemplo 1: A linguagem politicamente correta e a Análise do Discurso............221
Exemplo 2: O mito de informatividade, imparcialidade
e objetividade em funcionamento nos comentários telejornalísticos.................226
Conclusão....................................................................................................................................229
Gabarito......................................................................................237

Referências.................................................................................247
Apresentação

A Lingüística – ciência que tem como objeto o estudo da linguagem – foi criada
e se consolidou a partir da obra genial de Ferdinand de Saussure, especialmente do
seu Curso de Lingüística Geral, publicado em 1916. Alguns pressupostos assumidos
por ele foram fundamentais para a delimitação do objeto de estudo da Lingüística
e do método adotado para a análise das questões incluídas no campo de estudo
circunscrito para a nova ciência. Para o estruturalismo, que caracteriza a Lingüística
da primeira metade do século XX, a língua é concebida como um sistema de signos,
e analisada a partir das relações de semelhança e diferença entre os elementos nos
diversos níveis desse sistema: na fonologia, na morfologia, na sintaxe.

A definição do objeto e do método de análise formulados pelo estruturalismo


alavancou os estudos da linguagem e permitiu avanços consideráveis na análise
tanto das línguas já estudadas há séculos – as européias, por exemplo – como de
numerosas línguas americanas e africanas, que não contavam com descrições pré-
vias nem dispunham de sistemas de escrita. No entanto, a definição do objeto pela
Lingüística estrutural deixa fora do campo de estudo uma série de questões rele-
vantes sobre a organização e funcionamento das línguas naturais. O estruturalismo
parte da oposição entre língua (sistema de signos) e fala (uso da língua) e define a
primeira como seu objeto de estudo. Conseqüentemente, ficam de fora todas as
questões que envolvem a relação do falante com a linguagem, a ligação entre os
fatos sociais e o uso da língua, as unidades lingüísticas maiores que a sentença.

Este livro focaliza uma série de formulações teóricas e metodológicas poste-


riores ao estruturalismo e que têm em comum a revisão dos limites do estudo da
linguagem estabelecidos por uma concepção formalista. Algumas dessas refor-
mulações são motivadas pela observação de propriedades das línguas naturais
que uma abordagem formalista não capta. Exemplos dessas reformulações são:
os estudos da argumentação na língua, que mostram que as expressões lingüísti-
cas têm intrinsecamente uma carga argumentativa; a teoria dos atos de fala, que
coloca em evidência a existência de ações que são realizadas pela produção de
enunciados lingüísticos.

Outras reformulações são motivadas pela incorporação de questões relevantes


antes excluídas dos estudos lingüísticos, como o funcionamento da fala. A Análise
da Conversação procura desenvolver uma metodologia adequada para a identifi-
cação dos princípios que regem a interação entre os falantes quando fazem o uso
mais trivial de sua língua: conversam no dia-a-dia sobre qualquer tema.

Há também ampliações significativas dos estudos da linguagem motivadas


pelo diálogo entre a Lingüística e outras áreas do conhecimento que também
tratam de questões que têm reflexos no uso da linguagem. O diálogo com a Psi-
cologia e as teorias de aquisição da linguagem formuladas por psicólogos como
Jean Piaget foi fundamental para o desenvolvimento da Psicolingüística. A revita-
lização da Retórica – a partir da releitura da Retórica Clássica – produziu uma série
de estudos da argumentação. As contribuições da Sociologia, a partir dos estudos
da ideologia, e da Psicanálise, que fornece elementos para uma compreensão do
sujeito, alavancam o surgimento de uma área dos estudos lingüísticos muito pro-
dutiva atualmente, a Análise do Discurso. A teoria da informação contribuiu para
a compreensão do funcionamento dos textos.

Nas 12 unidades deste volume, são apresentados os conceitos mais relevan-


tes de cada uma dessas áreas, com o uso de exemplos que possam facilitar o seu
entendimento e indicações de fontes às quais o estudante pode recorrer para o
aprofundamento do estudo nas áreas que lhe despertarem maior interesse.
Análise da fala e da conversação

Raramente paramos para pensar na forma mais comum e trivial de uso


da linguagem: a conversa informal, face a face com o interlocutor. É por
meio da conversação que aprendemos a falar, que interagimos com os fa-
miliares e os amigos em todas as fases da vida, que temos acesso aos demais
usos da linguagem. Apesar da importância e onipresença da conversação,
a Lingüística, ciência que tem como objeto o estudo da linguagem, de-
morou meio século para focalizar sua atenção sobre essa modalidade.

A conversação como objeto de estudo


Ao propor os princípios nucleares da Lingüística em seu livro funda-
dor, o Curso de Lingüística Ge­ral, publicado inicialmente em 1916, Saussure
(1975) dá prioridade ao estudo da língua, enquanto sistema de signos
organizados que possibilitam os diferentes usos lingüísticos dos falantes.
Considera esses usos – a fala – como manifestações individuais e mo-
mentâneas dos falantes. A fala seria um ter­reno dominado pelas caracterís-
ticas individuais, liberdade, variação, ausência de princípios reguladores.
Enquanto o modelo estruturalista foi predominante nos estudos lingüísti-
cos, o interesse pela fala ficou limitado à busca de dados para o estudo da
língua enquanto sistema, em especial para o estudo da fonologia.

A Análise da Conversação só se desenvolveu a partir da década de


1960, época em que ganha­ram corpo várias áreas da Lingüística voltadas
aos usos da linguagem: a Sociolingüística, a Psicolingüística, a Análise do
Discurso. Essa nova área da lingüística procura identificar os conhecimen-
tos que são compartilhados pelos falantes e que possibilitam a realização
de interações bem-sucedidas entre eles. Um de seus pressupostos é que a
conversação é regida por princípios de organização que apresentam regu-
laridades que podem ser descritas e estudadas. A Análise da Conversação
Lingüística III

busca caracterizar as normas lingüísticas e socioculturais que subjazem às situa-


ções concretas de interação. Em outras palavras, busca explicar como as pessoas
se entendem nas suas conversas do dia-a-dia; como sabem que estão se enten-
dendo e agindo de forma cooperativa, segundo as normas de convivência social
aceitas tacitamente pelo grupo; como resolvem conflitos e disputas surgidas du-
rante as interações.

Propriedades definidoras da conversação


Para encontrar respostas para as questões apontadas anteriormente, é
necessário, em primeiro lugar, identificar as características básicas da conversa-
ção. É o que Marcuschi (1986, p. 15) procura fazer quando reconhece que a con-
versação apresenta cinco características essenciais:

 interação entre pelo menos dois falantes;

 ocorrência de pelo menos uma troca de falantes;

 presença de uma seqüência de ações coordenadas;

 execução em uma identidade temporal;

 envolvimento em uma “interação centrada”.

Algumas observações sobre essas cinco características constitutivas da con-


versação são importantes. Para haver interação entre dois ou mais falantes, não
é necessário que eles se encontrem frente a frente, pois o desenvolvimento de
tecnologias de comunicação permite o diálogo entre pessoas distanciadas espa-
cialmente. O recurso que possibilitou isso foi, inicialmente, o telefone, aparelho
criado para possibilitar o diálogo entre dois interlocutores sem a necessidade de
que estes estivessem em espaços próximos. O uso do telefone resultou no desen-
volvimento de um conjunto de regras sociais definidas culturalmente para esse
tipo de conversação: fórmulas de início e encerramento da interação, maneiras
de cada falante se identificar para o interlocutor, convenções sobre a duração de
uma ligação, sobre quem deve tomar a iniciativa de encerrar a conversa.

A expansão do uso de programas de computador como o ICQ e o MSN Mes-


senger veio permitir a interação entre duas ou mais pessoas com uso da mo-
dalidade escrita da linguagem, em tempo real. Tal como em outras situações de
conversação, as intervenções dos participantes se dão no que Marcuschi (1986,
p. 15) chama de “identidade temporal”, ou seja, sucedem-se umas às outras em
16
Análise da fala e da conversação

um período de tempo delimitado. O desenvolvimento tecnológico criou a pos-


sibilidade de a conversação ocorrer na modalidade escrita, fato impensável há
poucos anos.

Também, nesse caso, a prática dos chats – ou bate-papos via internet – está
produzindo um conjunto de normas de escrita compartilhadas pelos usuários.
São normas que diferem da ortografia oficial da língua, repletas de abreviações
e outros recursos, que buscam obter maior velocidade na produção escrita e
incorporar novas formas de expressão.

A exigência de que haja pelo menos uma troca de falantes mostra que nem
todos os usos da linguagem oral podem ser considerados conversação. Um
sermão ou uma conferência não são episódios conversacionais, ainda que se di-
rijam a um grupo de interlocutores presentes; já uma compra no balcão da loja,
uma consulta médica, uma entrevista radiofônica são exemplos de conversação.
Essas situações apresentam as cinco características da conversação apontadas
anteriormente.

É importante destacar também a relevância do envolvimento em uma inte-


ração centrada, em torno de tópicos, temas comuns, que sejam mantidos, ainda
que possam ocorrer muitas digressões. Se observarmos um grupo de amigos em
uma roda em que ocorram várias conversas simultâneas, sem um tópico comum,
não é possível analisar essa situação como um caso de conversação. A conversa-
ção requer uma interação cooperativa, em que as intervenções dos falantes se
caracterizam pela manutenção dos assuntos em pauta.

As relações entre os participantes de uma conversação podem ser simétricas


ou assimétricas. Nos diálogos assimétricos, um dos participantes tem o direito
de controlar os vários momentos da interação: definir tópicos, iniciar e terminar
a conversação, controlar o tempo do outro. É o que se observa, por exemplo, em
um debate televisivo entre candidatos a cargos políticos. As regras são previa-
mente estabelecidas e o jornalista escolhido como moderador do debate tem a
prerrogativa de decidir quem fala em cada momento, fazer perguntas ou per-
mitir que outros se dirijam a um interlocutor determinado, controlar o tempo
usado por cada um.

Já nos diálogos simétricos, todos os participantes têm, em princípio, o mesmo


direito à palavra. Isso não quer dizer que é colocado em prática esse direito.
Sempre há os que disputam a vez de falar de forma mais efetiva, muitas vezes
impedindo que os mais tímidos façam uso do seu direito igualitário à participa-
ção na conversa.

17
Lingüística III

A organização global da conversação foi caracterizada por Adam (2001), que


analisou o esquema prototípico de organização das diversas formas de realiza-
ção dos diálogos. Segundo ele (apud BONINI, 2005), as seqüências dialogais,
que são o componente principal da conversação em todas suas varian­tes (ent-
revista, telefonema, debate etc.), são organizadas em três partes principais: uma
seqüência fática de abertura, um conjunto de seqüências transacionais e uma
seqüência fática de encerramento. As seqüências fáticas são fórmulas usadas
de uma forma ritual, conforme convenções aceitas por cada grupo, para esta-
belecer o contato entre os falantes e indicar a intenção de iniciar ou concluir
uma conversação. Veja o esquema da conversação elaborado por Adam:

Esquema básico do diálogo segundo Jean-Michel Adam

Seqüência dialogal

(BONINI, 2005, p. 225)


Seqüência fática de Seqüências transacionais Seqüência fática
abertura de encerramento

A1 B1 A2 etc.

As fórmulas usadas nas seqüências fáticas de abertura e encerramento variam


conforme o grau de intimidade entre os interlocutores ou a semelhança de faixa
etária ou posição social. Variam também conforme o grau de formalidade da
situação em que ocorre a conversa. Todas as línguas dispõem de seqüências fáti-
cas formais e informais.

Seqüências fáticas de abertura e fechamento:

Interação formal: Interação informal:

A1 – Bom dia! A1 – Oi!

B1 – Bom dia! B1 – Oi!

[...] [...]

An – Até logo! An – Tchau!

Bn – Até logo! Bn – Tchau!


18
Análise da fala e da conversação

Algumas modalidades de conversação


Entre as diversas formas da conversação na sociedade, a de maior interesse
para o estudo é a conversação informal, por ser a modalidade de uso da lingua-
gem mais utilizada pelos falantes (organizamos a maior parte de nossas ativi-
dades do dia-a-dia conversando) e por ser o gênero discursivo que deu origem a
vários outros. Na conversação, os participantes se alternam nos papéis de falante
e ouvinte e cada mudança de interlocutor corresponde a um turno. A alternância
entre os interlocutores – a mudança de turno – não acontece de forma caótica
ou aleatória, mas obedece a regras socialmente estabelecidas. Marcuschi (1986,
p. 19) define nos seguintes termos a organização da conversação:
A regra geral básica da conversação é: fala um de cada vez. Pois, na medida em que nem todos
falam ao mesmo tempo (em geral um espera o outro concluir) e um só não fala o tempo todo
(os falantes se alternam), é sugestivo imaginar a distribuição dos turnos entre os falantes como
um fator disciplinador da atividade conversacional. Com isso, a tomada de turno pode ser
vista como um mecanismo-chave para a organização estrutural da conversação, para a qual
podemos imaginar o seguinte roteiro:

A: fala e pára;
B: toma a palavra, fala e pára;
A: retoma a palavra, fala e pára;
B: volta a falar e pára;
[...]

Qualquer brasileiro que observe grupos de pessoas conversando pode perce-


ber facilmente que esse princípio de organização da fala é freqüentemente des-
respeitado. Isso não quer dizer que não existam regras. Muitas vezes as pessoas
percebem que as convenções de uso da palavra estão sendo desobedecidas e
fazem intervenções para “colocar ordem” na conversação, com expressões como:
“espera aí”, “deixa eu falar”, “por favor”, “um de cada vez”, “deixem X completar o
raciocínio dele”.

Em outras formas de conversação, as regras são estabelecidas e respeitadas


com mais facilidade. Por exemplo, na conversação telefônica há princípios de
organização em geral respeitados pelos participantes. Quem faz a ligação tem
a obrigação de se identificar e de verificar se está falando com o interlocutor
desejado. Quem faz a chamada tem prioridade para indicar o tema da conver-
sação (“liguei para...”) e também para assinalar que tem a intenção de encerrar
a ligação. As seqüências fáticas de abertura e fechamento são bastante conven-
cionais, especialmente em ligações comerciais ou profissionais.

Em situações de entrevista transmitida tanto pelo rádio como pela TV, a con-
versação é organizada de forma muito mais rígida. O entrevistador estabelece

19
Lingüística III

uma conversa com um especialista em algum tema e organiza a interação com


forma predominante de perguntas e respostas. Nesse tipo de interação há uma
relação assimétrica, em que o entrevistador define os temas, a seqüência em que
serão abordados, faz intervenções quando o entrevistado fala demais e define o
momento de conclusão da entrevista. Essa forma de organização da entrevista
está relacionada ao caráter público de sua realização: entrevistador e entrevis-
tado não conversam simplesmente um com o outro, mas falam também para o
público que ouve rádio ou assiste televisão.

Uma forma de conversação que tem atraído a atenção de vários pesquisa-


dores nos últimos anos é o chat, ou conversação via internet, que se desen-
volveu a partir da criação de tecnologias para a comunicação on-line, como os
programas ICQ e MSN Messenger. A primeira questão que se coloca é se é pos-
sível considerar “conversação” uma forma de interação que utiliza um registro
escrito e não-oral. A própria designação escolhida pelos usuários dessa forma de
interação já dá uma pista para incluí-la entre as modalidades de conversação: a
palavra chat surgiu da abreviação do vocábulo inglês chatter, que significa “jogar
conversa fora”. A denominação chat concorre com bate-papo.

Além disso, se observarmos os chats a partir dos cinco critérios usados para
caracterizar a conversação (apresentados no segundo item desta aula), podem-
os perceber que essa forma de comunicação incorpora todas as características
definidoras de uma conversação: apresenta a interação entre pelo menos dois
falantes, com pelo menos uma troca de papéis; os participantes interagem em
uma seqüência de ações coordenadas, em que cada um leva em conta a inter-
venção do outro para direcionar suas intervenções subseqüentes; há uma inte-
ração centrada, ou seja, a manutenção de temas comuns ao longo da interação;
a conexão pela web permite também que a interação se dê em tempo real.

Uma questão interessante em relação a essa forma de conversação é que os


próprios usuários – em geral jovens – criaram convenções de escrita particulares.
São convenções que:

 aumentam a velocidade da escrita mediante a abreviação das palavras de


uso mais freqüente, por exemplo: pq (porque), bjs (beijos), mt (muito);

 inserem várias expressões convencionalizadas para representar sons da


fala que não correspondem a palavras do vocabulário da língua, por ex-
emplo: pff, hehehe;

20
Análise da fala e da conversação

 incorporam recursos gráficos diferentes da escrita usual, como os ícones


de emoção – ou emoticons1 – usados para expressar emoções como, por
exemplo:

:-) (alegre) ;-) (piscando o olho)


:-o (assustado) :-( (triste).

Além dessas convenções, em geral os chats se dão em uma variedade infor-


mal da língua portuguesa, com expressões e construções sintáticas característi-
cas da oralidade. Na conversação pela internet os próprios usuários criaram um
sistema de registro escrito com modificações da escrita convencional. É o que se
pode perceber neste trecho de conversação entre dois adolescentes:

A eu vo B Na verdade eu não sei c vou mesmo...


pq a ..certeza c vão ou não e como eu
B hum
não conheço mt gente lá do posi
B Onde q eh isso?
A Ta
A Nem sei
A To saindo
A Não lembro
A Vo no supermercado com meu pai
B Pff
A Dpois t explico onde que eh
B Hehehehe
A Bjs :*
B Perdidos nós?
B *: Até daqui a poucoopoo
B Hehehe

O estudo dos chats a partir dos mesmos critérios usados para estudar outras
formas de conversação permite colocar em evidência suas semelhanças e difer-
enças com outras formas de conversação. Observe, por exemplo, que os interloc-
utores não esperam a resposta do outro para fazer novas intervenções. Observe
também que preferem usar frases curtas, com muitas informações implícitas.
Mesmo assim os interlocutores se entendem, não há nenhum indício de mal-
entendidos nesse trecho.

1
A palavra emoticons vem do inglês emotion+icons. São combinações de caracteres do teclado do computador usados pelos participantes dos
chats para fazerem o registro das emoções durante a interação.

21
Lingüística III

Transcrição da fala
O primeiro desafio da Análise da Conversação é definir uma forma de fazer
um registro escrito que permita destacar as informações da oralidade considera-
das essenciais para seu estudo. Quando nos comunicamos oralmente, fazemos
uso de um conjunto de recursos além das palavras: a expressão facial, os gestos,
o tom de voz, a velocidade, a ênfase. Além disso, a conversação está repleta de
hesitações, repetições, retificações, pausas, interrupções dos interlocutores, su-
perposições de fala. Assim, ao registrar a conversação, deparamo-nos com vários
recursos expressivos que não têm correspondentes no sistema gráfico desen-
volvido para a comunicação escrita.

Alguns desses recursos só podem ser observados a partir de uma documen-


tação em vídeo, mas a maioria deles pode ser documentada a partir de grava-
ções em áudio, com o uso de convenções estabelecidas pelos estudiosos da
conversação. Há vários sistemas de transcrição criados para registro escrito da
conversação, cada um ligado a um projeto de pesquisa específico. Em princípio,
não há um sistema de transcrição melhor que outro. O importante é o pesquisa-
dor definir previamente quais são os seus interesses, o que pretende observar na
conversação, para escolher uma transcrição que atenda às suas necessidades.

Conforme o tópico escolhido para estudo, é necessário partir de um registro


em vídeo e definir as formas de transcrição das informações relevantes para o
estudo. Suponhamos que o pesquisador parta da seguinte hipótese: em uma
conversação de que participem três ou mais pessoas, se aquele está com a pala-
vra dirigir seu olhar a um participante, este terá prioridade para tomar a palavra
na seqüência. Para verificar se essa hipótese se sustenta, o estudioso teria de
documentar as conversações em vídeo e registrar na transcrição a direção do
olhar de quem está com a palavra a cada momento.

Uma forma de transcrição largamente adotada nos estudos sobre a con-


versação no Brasil foi desenvolvida pelo projeto Norma Urbana Regional Culta
(Nurc). Trata-se de um projeto desenvolvido na década de 1970, em cinco capi-
tais brasileiras – Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife – e
que resultou em vários estudos sobre a conversação, entre os quais destacam-se
os oito volumes da Gramática do Português Falado, publicados pela Editora da
Unicamp. Como essa é a transcrição mais usada nos estudos sobre o português
brasileiro, vamos apresentar as principais convenções adotadas no âmbito desse
projeto, conforme Pretti (1995).

22
Análise da fala e da conversação

Convenções gerais
O sistema de transcrição da conversação utiliza-se da ortografia da língua es-
crita padrão, mas procura reproduzir as frases tal como foram efetivamente pro-
duzidas, com as hesitações, repetições, superposições de fala etc. As pronúncias
não-padrão – como “muié” (mulher), “falô” (falou), “peraí” (espera aí) – não pre-
cisam ser registradas, a menos que o pesquisador esteja investigando variações
fonológicas como essas. Se esse não for o foco do estudo, basta fazer o registro
na ortografia corrente.

Os falantes são indicados com letras escolhidas aleatoriamente ou por


qualquer convenção adotada no estudo.

Em geral, as transcrições se utilizam de linhas curtas, para permitir melhor


visualização do texto.

Não se usam maiúsculas no início de frases ou de turnos, apenas nos nomes


próprios e nas siglas.

Veja um exemplo2:

L1 você vê, né? o mundo quer que nós conservemos a...


Amazônia para controlar a poluição mundial... que que
você acha disso aí?

L2 não entendi bem a pergunta...

L1 o mundo aí o:: ... última exposição que houve


agora aí ... – nosso Ministro do Interior foi
representando – eles não querem que devastem áreas
amazônicas... devido às:: vastas florestas tudo por causa
da poluição... você acha que seria justo nós conservarmos
aquilo o::u...

L2 precisa manter o oxigênio do mundo né? ((risos))

L1 e nós é que deveríamos conservar? ... que que você acha?


o pessoal todo mundo cortou progrediu...

No exemplo acima, os dois interlocutores foram indicados como L1 e L2. A


transcrição da fala coloca em evidência que as pessoas conseguem se entender
ao conversarem, mesmo que a interação se dê com várias frases incompletas,
hesitações, correções. A maioria dos eventos de conversação apresenta essas car-
acterísticas, que são o resultado da simultaneidade entre o planejamento da fala
2
Os exemplos usados para ilustrar as normas de transcrição foram retirados de entrevistas do projeto Nurc – São Paulo e de entrevistas do projeto
Varsul (Variação Lingüística Urbana na Região Sul do Brasil), realizadas em Curitiba (PR).

23
Lingüística III

e sua realização. Observe como a segunda intervenção de L1 está repleta de hesi-


tações, retificações, frases incompletas. Mesmo assim, L2 entende perfeitamente
o que L1 falou e faz um comentário pertinente para a continuidade da conversa.

A transcrição da fala é feita com o uso de várias convenções pelas quais é


possível representar características importantes da conversação que estão pre-
sentes na maioria dos eventos observados. Apresentamos a seguir os principais
sinais adotados no sistema de transcrição do projeto Nurc.

Principais sinais usados na transcrição


As normas de transcrição adotadas pelo projeto Nurc, como as normas de
outros projetos, têm como ponto de partida a ortografia oficial da língua por-
tuguesa, acrescida de um conjunto de sinais disponíveis no teclado dos com-
putadores. São normas simples, facilmente aplicadas por quem faz a transcrição
e para quem consulta um texto transcrito e pode, muitas vezes, se valer da sua
experiência como leitor de textos grafados na escrita convencional.

Superposição, simultaneidade de vozes


Quando os dois interlocutores falam ao mesmo tempo, usa-se o sinal ligan-
do as linhas no ponto em que se inicia a fala simultânea.

A.
na casa da sua irmã...
B.  sexta-feira?
A. fizeram lá...
 cozinharam lá?
B.

Pausas longas ou breves


Todas as pausas são assinaladas com reticências, qualquer que seja sua
duração:

P. e ela contou como é que foi... bem aquele jeitinho dela de conversar... ((risos de P.))

24
Análise da fala e da conversação

Comentários do transcritor
Ao fazer a transcrição de eventos de conversação, o pesquisador pode fazer
comentários diversos, com o objetivo de descrever comportamentos dos falan-
tes ou acontecimentos diversos que possam ­interferir no fluxo da conversação:
os latidos de um cachorro, o choro de uma criança, a queda de objetos, o toque
da campainha ou telefone, o desligamento do gravador, tosse, espirro, riso. Esses
comentários são colocados entre parênteses duplos.

o... que a gente mais... mais gostava era de uma professora


F. gostava de ver ela de... hum... ela ia de saia... AH... fazia tudo pra mexer ((risos)) com
essa professora...

Hipótese sobre o que se ouviu


Muitas vezes, ao transcrever a gravação da fala, há trechos em que o pes-
quisador não consegue discriminar claramente aquilo que algum dos partici-
pantes falou em determinado ponto. Quando há apenas uma hipótese sobre
o que se ouviu, mas não a certeza, os trechos duvidosos são registrados entre
parênteses:

I. e tinha outros perigos que a gente (imaginava) à noite, né?

Prolongamento de vogal ou consoante


Quando alguma vogal ou consoante (como o /s/ ou /r/) for pronunciada com
uma duração bem maior que o normal, essa pronúncia é assinalada com duas ou
mais seqüências de dois pontos, dependendo da duração em cada caso.

T. ai... me de::u uma crise de cho:::ro daí...

Entonação enfática
Os trechos pronunciados de forma enfática são transcritos com o uso de
maiúsculas.

S. ontem passou até no Fantástico... ontem...

25
Lingüística III

Citações literais ou leitura de textos durante a gravação


Se durante uma conversação, algum dos participantes fizer uma citação
direta, seja reproduzindo a fala de alguém, seja lendo algum texto, esta citação
é destacada entre aspas.

é... diz que ela dizia... “meu Deus do céu... leve tu::do que você quer...mas só não faça
A. mal pro Laurinho”... o jeito dela né?

Interrogação
As interrogações são reconhecidas pela entonação com que a frase é pronun-
ciada. Para indicá-las na transcrição, é usado o mesmo sinal adotado na escrita.

E. ela é irmã do seu Ivo?

F. é irmã do Ivo... é...

Palavra ou trecho incompreensível


Ao realizar uma transcrição, é comum haver trechos incompreensíveis, por
terem sido produzidos com voz muito baixa, pela rapidez de sua realização, pela
superposição da fala com algum ruído do ambiente. Quando o pesquisador não
consegue nem formular hipóteses sobre o que ouviu, a indicação de que há um
trecho incompreensível é feita mediante o uso de parênteses não preenchidos:
( ). Veja um exemplo.

É... por aqui não tem favela né? nunca vi pelo menos...
V.
( ) onde eu conheço aqui ( )...

As convenções usadas para a transcrição da fala são um instrumento para o


estudioso fixar no papel características da fala que são relevantes para o estudo,
mas não são, em geral, observadas pelos falantes. Estes ficam apenas com uma
impressão geral, vaga, sobre a forma como ocorreram as conversas de que par-
ticiparam. Em geral, o falante consegue parafrasear os temas tratados em um
evento conversacional, consegue relatar aos outros quais foram os assuntos co-
mentados, qual a posição de cada participante sobre esse assunto, quem partici-
pou mais ativamente etc. A transcrição revela detalhes que passariam desperce-
bidos caso não fossem registrados de forma sistemática.

26
Análise da fala e da conversação

Conclusão
O estudo da conversação pode revelar muito sobre as normas sociocul-
turais de interação entre os indivíduos na sociedade. Essas normas apresentam
variações segundo o grau de formalidade da ­situação de interação, o nível de
conhecimento recíproco entre os participantes e as relações hierárquicas entre
eles. Estudar a conversação é ampliar o conhecimento sobre a sociedade, pois
é através da conversação que os laços sociais são estabelecidos, consolidados e
modificados.

Texto complementar

A conversa na sociedade
(MATTOS,1998, p. 15-21)

Para que existe a conversa quotidiana na sociedade? Que objetivos ela tem?

Para iniciarmos nosso estudo, partimos da hipótese de que a conversa na


sociedade, a conversa quotidiana, existe para manter em funcionamento as
relações interpessoais, isto é, ela não se dá “em vão”, mas para estabelecer,
conservar e transformar relações entre amigos, parentes, fregueses, conheci-
dos, desconhecidos. Não sendo a conversa quotidiana sustentada por uma
instituição formal, ela manifestará marcas do relacionamento, que, por sua
vez, traz em si um pouco das instituições sociais em que os interlocutores
se representam como povo, estudante, pai, filho, padre, pastor, comerciante
etc. A conversa, a fim de manter as relações entre os interlocutores, exibirá
índices de poder, didatismo, demagogia, superstição, misticismo, camara-
dagem etc.

É na realidade social que se centra a conversa quotidiana, e, dessa


forma, uma larga dimensão do social que vai se constituindo às margens
das instituições sociais se instala como base de uma situação que não
se enquadra inteiramente em nenhuma instituição social formalizada, ou
seja, é fundamentada numa situação marginalizada que se dá a conversa
quotidiana.

27
Lingüística III

A conversa na sociedade transita entre as diferentes formas institucionais


de discurso: o discurso jurídico, o escolar, o religioso, o político etc. Por não
pertencer exclusivamente a nenhuma das instituições sociais que a susten-
tam, a conversa no quotidiano da sociedade pode ocorrer sem que haja um
objetivo imediato e prático “normatizado”.

Algumas das questões que nos colocamos: como é que a conversa reco-
lhe seus dados e suas estruturas do social? Como é que a conversa acolhe,
sem que isso seja inadequado, discursos mais confidenciais ocorrendo em
situações de contato passageiro e discursos mais utilitários em situações de
contato mais duradouro entre pessoas?

Função social
Se a conversa quotidiana não se revela como imediatamente utilitária,
onde ela encontra suas “regras” de funcionamento? Se não é o fim que a
define, como ela se estrutura?

Talvez a conversa quotidiana seja lúdica3 na medida em que, nela, não há


interesse em direcionar o objeto do discurso para fins imediatos (e nisso se
opõe à polissemia contida do discurso autoritário); talvez igualmente seja
lúdica na medida em que, nela, não importa, no limite, a relação com a referên-
cia (e nisso se opõe à disputa pela referência própria do discurso polêmico).

Sabemos que todo discurso mantém uma relação constitutiva com a


sua exterioridade, já que, na materialidade do discurso, há a explicitação do
modo de existência – existência histórico-social – da linguagem. Ora, no dis-
curso quotidiano, é a situação (situação imaginária, quer a pensemos em sua
determinação social, histórica ou interacional) o elemento das condições de
produção que, perante os demais (referente, interlocutores), constitui a mais
significativa relação do discurso com o social.

Poder-se-ia concluir levianamente que, no caso do discurso quotidiano, have-


ria referência imediata e necessária à situação de fala em que ele se dá. Devemos
observar, entretanto, que, nessa forma de discurso, a situação atua de um modo
especial: não pelo espaço físico em que se dá (casa, meio de transporte, comér-
cio, trânsito, aglomeração urbana) mas pelo que nela se realiza socialmente, seja
no espaço de uma casa, com amigos, seja num ônibus, com desconhecidos.

3
Estamos aqui usando a tipologia proposta por Eni Orlandi (A Linguagem e seu Funcionamento, p. 9, 22 e 142) que toma como base a relação dos
interlocutores entre si e com o objeto do discurso.

28
Análise da fala e da conversação

É importante observar aqui que o social de que tratamos na Análise do


Discurso é o social discursivo e não o físico, tampouco o sociológico; não
estamos aqui nos referindo ao social enquanto característica de uma comu-
nidade ou de um estrato da sociedade. A nossa referência é aquele limite do
discurso enquanto forma lingüística e prática social.

[...]

A função social constitui-se na situação e com ela é que se constitui o sen-


tido. Ela faz parte da situação; não é algo anterior, a delimitar de fora o tipo
de conversa; não é, portanto, apriorística.

Se a função social é aquilo que se espera que a conversa quotidiana


cumpra, então nós a encontraremos ao se criar um liame entre pessoas des-
conhecidas, ao se manter a amizade, ao se fazer com que o tempo passe, ao
se exibir um confronto entre pessoas etc.

Mas como é que se produz no interior da situação a função social? Se ela


não é exterior nem anterior à situação, onde é que ela se formula? Situações
semelhantes resultariam sempre em funções sociais semelhantes?

Vejamos uma situação hipotética de conversa que poderá guiar um pouco


nossa reflexão ­sobre a elaboração da função social: o caso em que, numa situa-
ção de espera, uma conversa de ­entretenimento entre dois sujeitos inicialmen-
te desconhecidos entre si passasse a ser uma con­versa mais envolvente, mais
íntima. Poder-se-ia dizer que teria havido um desvio inadequado no rumo da
conversa, mas seria possível também ver nesse caso – e é essa interpretação
que nos ­interessa aqui – o índice de que a situação é que teria se transformado
no decorrer da conversa, transformando, ao mesmo tempo, sua função social:
ao conversar, os interlocutores criaram uma ligação entre si e, a partir daí, a
conversa terá servido para manter e reforçar essa ligação recém-criada.

Queremos mostrar com isso que a situação não determina “de fora”, mas
faz parte da conversa, e tem uma dinâmica tal a ponto de se modificar no
interior da própria conversa; nesse processo dinâmico, ela traz modificações
à função social ou melhor, ela inaugurará nova função social à conversa. Há,
assim, uma ligação necessária entre situação e função social: com a institui-
ção de uma situação imaginária, é instituída necessariamente uma função
social da qual dará conta um determinado tipo de conversa.

29
Lingüística III

Estudos lingüísticos
1. Para esta atividade, é necessário um gravador.

O grupo deve gravar uma conversa entre duas ou três pessoas. A gravação pode
ser feita em qualquer lugar: no pólo de estudo, em uma loja, em casa etc.

Feita a gravação, o grupo deverá fazer a transcrição de um trecho da conver-


sação, correspondente a uma página. A transcrição deve ser feita com o uso
das normas do projeto Nurc apresentadas na aula.

2. Observe o seguinte trecho de uma conversação na internet entre dois ado-


lescentes. Preste atenção às semelhanças e diferenças entre a conversação
à distância, com uso do MSN Messenger, e a conversação oral, face a face.
Se os dois colegas estivessem conversando frente a frente, você acha que a
seqüência entre os turnos na conversação seria semelhante ao que ocorreu
no chat?

A. (:: tu já fez a pasta de redação? B. era recuperaçao da prova

A. (:: já fez o indice? ;x: B. prova sobre o poema

A. (:: ei, tem que fazer uma técnica B. lembra?


artística nos textos né? :BB
B. é recuperaçao da prova
B. agora to no ultino
B. tirei 3.5 na prova
B. o texto do chefe e do empre-
A. (:: á, e nao fiz a recuperação
gado
nao :D
B. e ainda tem a charge

B. o que falta pra ti faze é o do


maiakowski do exercicio de
recuperaçao?

30
Análise da fala e da conversação

3. Reflita, a seguir, sobre cada uma das situações descritas a partir do conjunto
de propriedades definidoras da conversação. Indique em que casos há uma
conversação.

a) Na abertura do congresso, o professor X fez uma conferência sobre as


representações da mulher na literatura brasileira. Ele falou durante uma
hora para uma platéia de aproximadamente 300 pessoas. No final do
evento os organizadores recolheram as questões que os participantes
fizeram por escrito e escolheram duas para o conferencista responder.

b) S. e R. moram juntos, mas trabalham e estudam em horários diferentes


e quase não conversam durante a semana. Para resolver os problemas
práticos de administração da casa, compras, pagamento de contas, co-
municam-se com bilhetes colocados sempre na porta da geladeira.

31
Lingüística III

c) L. ganhou de presente uma roupa que não serviu e deixou passar o prazo
previsto pela loja para efetuar a troca. Quando foi à loja, teve de explicar
primeiramente o caso ao vendedor, que a encaminhou para o gerente, que
a mandou de volta ao vendedor. Este, finalmente, fez a troca do produto.

32
Análise da fala e da conversação

33
Conceitos fundamentais para a Análise
da Conversação

A primeira questão que surge quando anunciamos a apresentação de


conceitos fundamentais para a Análise da Conversação é se haveria real-
mente a necessidade de conceitos específicos para o estudo dessa moda-
lidade de uso da língua. A conversação não poderia ser estudada com o
uso dos mesmos conceitos teóricos e metodologias de análise desenvolvi-
dos pela Lingüística Textual para a análise de textos orais ou escritos?

Para justificar a necessidade de formulações teóricas e metodológicas


específicas para o estudo da conversação, é interessante chamar a aten-
ção para algumas propriedades do texto conversacional que o distinguem
de outros tipos de texto.

A especificidade da conversação
A propriedade mais evidente da conversação é que os interlocutores
alternam-se nos papéis de falante e ouvinte. Assim, o estudo do texto con-
versacional deve necessariamente contemplar o estudo das formas de al-
ternância dos papéis no diálogo e da atuação conjunta dos interlocutores
para a construção de um texto coerente. Deve levar em conta também que
a conversação, ao contrário de outros textos, é produzida sem um planeja-
mento prévio. Mesmo que um dos interlocutores defina antecipadamente
o que pretende falar, há sempre a necessidade de rever seu planejamento
a cada intervenção dos demais participantes, para que suas intervenções
constituam uma seqüência adequada às falas anteriores.

O texto falado deixa transparecer o processo de sua construção, como


explica Koch (2006, p. 45):
[...] ao contrário do que acontece com o texto escrito, em cuja elaboração o produtor
tem maior tempo de planejamento, podendo fazer rascunhos, proceder a revisões e
correções, modificar o plano previamente traçado, no texto falado planejamento e
verbalização ocorrem simultaneamente, porque ele emerge no próprio momento da
interação: ele é o seu próprio rascunho.
Lingüística III

Koch (2006, p. 46) usa também a metáfora do quadro e do filme para compa-
rar a recepção do texto oral ou escrito:
Para o leitor, o texto se apresenta de forma sinóptica: ele existe, estampado numa página –
por trás dele vê-se um quadro. Já no caso do ouvinte, o texto o atinge de forma dinâmica,
coreográfica: ele acontece, viajando através do ar – por trás dele é como se existisse não um
quadro, mas um filme.

As várias peculiaridades da conversação justificam a adoção de conceitos


específicos que ajudam a compreender tanto os princípios que organizam a al-
ternância de papéis entre os interlocutores quanto as formas de planejamento/
construção textual na conversação. Estas distinguem-se das formas de planifica-
ção e produção de outros textos:

 pela simultaneidade entre planejar e executar – na conversação, os par-


ticipantes não têm tempo para elaborar esquemas prévios.

 pelo caráter coletivo da construção textual – ao contrário da maioria dos


gêneros textuais, em que o texto é produzido por um autor único, a con-
versação resulta das contribuições de pelo menos dois autores.

 pelo fato de a conversação ser resultado de um planejamento coletivo –


cada pessoa, ao tomar a palavra, tem de levar em conta as contribuições
anteriores dos demais participantes da conversa.

Para dar conta do estudo dessas especificidades, a Análise da Conversação


formulou um conjunto de conceitos que permitem a análise de eventos con-
versacionais. Neste capítulo, vamos apresentar quatro conceitos que são instru-
mentos importantes para esse estudo: os turnos de fala, o tópico conversacional,
os pares adjacentes e a hesitação.

Os turnos de fala
Uma das formas de compreender como a conversação é organizada é ob-
servar como se dá a alternância entre os participantes. Para isso, a Análise da
Conversação incorporou e adaptou o conceito de turno, usado em diversas situ-
ações: num jogo de xadrez, nos plantões de profissionais da saúde, em corridas
de revezamento, enfim, qualquer situação em que o indivíduo disponha de um
tempo, cuja duração pode ser ou não predeterminada para a realização de de-
terminada tarefa.

36
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

Na conversação, entende-se por turno qualquer intervenção dos interlocu-


tores, independente de sua extensão. Segundo Galembeck (1995, p. 60):
O conceito de turno [...] valoriza todas as intervenções dos interlocutores, tanto aquelas que
possuem valor referencial ou informativo (ou seja, que desenvolvem o assunto tratado num
fragmento de diálogo), como aquelas intervenções breves, sinais de que um dos interlocutores
está “seguindo” ou “acompanhando” as palavras do seu parceiro conversacional.

Os turnos resultam da aplicação de um princípio válido em todas as cultu-


ras: fala um de cada vez. O turno de fala é, portanto, aquilo que cada falante diz
enquanto está com a palavra, havendo mesmo a possibilidade de que a pessoa
fique em silêncio em alguns turnos. Estamos acostumados a assistir reportagens
na TV em que os repórteres “bombardeiam” as pessoas com perguntas inconve-
nientes e não recebem resposta alguma. Dirigir uma pergunta ao interlocutor é
uma forma de indicar que ele deve assumir o turno de fala em seguida. Em casos
específicos, a pessoa que deveria fazer uso do turno conversacional prefere ficar
em silêncio.

A alternância de papéis entre os participantes não se dá de maneira caótica.


Em qualquer cultura há normas que organizam o diálogo. A mudança de turno
(passagem de um participante a outro) ocorre basicamente de duas formas, que
são relevantes especialmente em conversas de que participam mais de duas
pessoas. O falante pode escolher quem deve assumir a palavra em seguida e
encerrar seu turno por meio de alguma indicação de que tem a expectativa de
que o outro assuma o papel de falante (uma pergunta dirigida especificamente
a um dos participantes; a menção do nome do interlocutor escolhido) ou pode
concluir sua participação e esperar que alguém tome a palavra. Nesse caso, se
houver mais de dois participantes na conversação, há um processo de auto-es-
colha, ou seja, fala quem quiser tomar a palavra no momento. Se a conversação
se der entre duas pessoas apenas, quando um interrompe a sua participação,
o outro está automaticamente convidado a assumir o turno. A forma mais evi-
dente de indicação do responsável pelo turno seguinte é fazer uma pergunta.
Segundo as regras de interação, a pergunta cria a obrigação de uma resposta.

Vejamos um exemplo de identificação dos turnos em um trecho de


conversação1:

então o desen/ o desenvolvimento é bom porque ele dá chance de em-


L1 prego para mais gente...
Turno 1

1
Dados do projeto Nurc de São Paulo. As entrevistas do projeto foram realizadas na década de 1970.

37
Lingüística III

mas você está pegando uma coisin::nha assim, sabe? um cara que esteja
desempregado também eu posso... usar o mesmo exemplo num num
sentido contrário... o cara que está desempregado porque não con-
L2 segue se empregar né? na verdade não quer ou um outro que:: assim...
Turno 2
muito bem empregado executivo-chefe de empresa e tal mas cheio das
neuroses dele eu não sei qual está melhor...

então você tem que abstrair desse aspecto porque você pode ter am-
L1 bos os ca::sos... você tem que pegar na média esquecendo esse aspecto Turno 3
particular...

Nesse trecho de conversa entre L1 e L2 observa-se uma participação equili-


brada entre os falantes. Os dois se alternam e cada um espera que o outro con-
clua sua intervenção para assumir a palavra e apresentar sua contribuição para
o tema da conversa – a relação entre desenvolvimento e nível de emprego. No
turno 1, o primeiro participante apresenta sua opinião sobre o tópico tratado e
afirma que o desenvolvimento abre possibilidade de emprego para mais gente;
no turno 2, o segundo participante contrapõe-se ao primeiro, apontando casos
particulares que enfraquecem a argumentação apresentada no primeiro turno;
no terceiro turno, o primeiro participante contesta a observação do seu inter-
locutor, e insiste para que ele observe a média, não os casos particulares. Os
três turnos trazem contribuições para o conteúdo informacional que está sendo
desenvolvido. Além disso, não há superposições entre as falas dos dois inter-
locutores: as trocas de turno se dão em momentos em que cada um conclui seu
raciocínio e faz uma pausa.

Casos de conversação como esse, em que os participantes contribuem efe-


tivamente para o desenvolvimento do tema, são chamados de conversação
simétrica. Os turnos conversacionais podem também indicar uma interação
assimétrica. Nas conversações assimétricas, um dos participantes apresenta
as contribuições efetivas para o assunto tratado, os demais simplesmente dão
sinais de que estão acompanhando a conversa, mediante o uso de intervenções
curtas de assentimento, de estímulo para o falante continuar sua exposição.
Galembeck (1995, p. 60) apresenta o seguinte esquema para caracterizar as con-
figurações básicas dos turnos nos eventos conversacionais:

Simetria – ambos os interlocutores contribuem para o desenvolvimento do


tópico conversacional.

Assimetria – um dos interlocutores desenvolve o tópico; o outro “vigia” ou


“segue” o seu parceiro.

38
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

Galembeck reconhece dois tipos de turnos: turnos nucleares e turnos inseri-


dos. Nos nucleares observa-se uma contribuição informacional clara do falante.
Já nos turnos inseridos, a participação do falante não traz contribuição informa-
cional para o tópico da conversação, mas apenas indica que o participante está
acompanhando o raciocínio do seu interlocutor. É o que acontece em geral com
o uso de expressões curtas como: tá, certo, sei, é, hum hum, ahn ahn ou com a
repetição de palavras usadas pelo interlocutor

Mas há também casos em que um participante, mesmo diante de sinais


claros de que tem o direito (e o dever) de falar, mantém-se em silêncio e, quando
muito, faz algum gesto indicando que não vai fazer uso do turno que lhe é pro-
posto pelo interlocutor. Nesses casos, a análise das motivações para o silêncio é
também muito interessante. Veja, por exemplo, o trecho de uma entrevista real-
izada em Salvador entre uma professora universitária (L1) e um menino morador
de rua (L2)2:

L1 É bom uma pessoa ter família? Turno 1

L2 É. Turno 2

É? Por que que uma família é bom pra pessoa? Diga aí o que é que você
L1 acha assim por que que ter família é bom pra pessoa?
Turno 3

L2 É... Turno 4

L1 Que é que você acha? Turno 5

L2 [silêncio] Turno 6

Não tem importância da forma como você fale, o que você achar você
L1 diz.
Turno 7

L2 [silêncio] Turno 8

Você acha que um garoto como você, uma menina da tua idade, mais
L1 velho, mais novo, pra essas pessoas, pra gente, é importante ter famí- Turno 9
lia?

L2 [gesto] Turno 10

L1 É. Por quê? O que que a família faz pra gente? Turno 11

L2 [silêncio] Turno 12

2
Dados de Machado (2003, p. 66-7). A transcrição adotada nesse estudo – e mantida na citação – é diferente da utilizada nos estudos do Nurc.

39
Lingüística III

L1 Você não sabe? Não tá querendo falar? Turno 13

L2 [silêncio] Turno 14

O que é uma família? É pai, mãe, né isso – você não tem pai que seu pai
L1 morreu, sua mãe tá viva – irmãos, como é que os irmãos, a mãe podem Turno 15
ajudar a gente?

L2 [pausa] Trabaiando [voz fraca] Turno 16

L1 Trabalhando? E aí? Turno 17

L2 [silêncio] Turno 18

L1 Quem trabalhando? A gente ou eles? Turno 19

L2 Eles e a gente. Turno 20

Esse trecho de conversação mostra uma interação assimétrica entre os par-


ticipantes. L1 é adulta, com escolaridade alta, professora universitária. L2 é cri-
ança, morador de rua atendido por um programa assistencial, o Projeto Axé.
Na interação entre essas duas pessoas observa-se que todos os turnos de fala
de L1 são encerrados por perguntas, que são uma forma de passar o turno ao
interlocutor, de indicar explicitamente que ele tem a obrigação de dar uma res-
posta. No entanto, L2 recusa-se a fazer uso dos turnos que lhe são concedidos,
certamente porque não quer falar sobre o tema proposto – a importância da
família para a criança. É um menino que tem uma experiência de convívio fa-
miliar muito diferente do modelo divulgado pela sociedade, tanto que trocou a
casa da família pela rua.

Tópico conversacional
Imagine uma situação trivial: um grupo de amigos seus está conversando,
você se aproxima e quer participar do bate-papo do grupo. Para conseguir se
integrar rapidamente, sua estratégia é perguntar: “Sobre o que vocês estão
conversando?” A resposta a essa questão será o tópico conversacional, ou seja,
o assunto sobre o qual o grupo fala naquele momento. Mesmo que você não
dirija ao grupo uma pergunta direta, que leve algum dos participantes a explici-
tar o tópico, basta escutar a conversa durante alguns minutos para identificar o
tópico, pois a percepção do tema da conversação é uma condição para que cada
um possa se engajar na conversação e fazer intervenções adequadas.

40
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

Favero (1995, p. 39) afirma que o conceito de tópico conversacional (ou dis-
cursivo) é nuclear para compreensão de como os participantes de um evento
interativo organizam, gerenciam suas intervenções no diálogo:
O tópico é, assim, uma atividade construída cooperativamente, isto é, há uma correspondência
– pelo menos parcial – de objetivos entre os interlocutores.

A noção de tópico é de fundamental importância para o entendimento da organização


conversacional e é consenso entre os estudiosos que os usuários da língua têm noção
de quando estão discorrendo sobre o mesmo tópico, de quando mudam, cortam, criam
digressões, retomam etc.

Identificar o tópico de uma conversação é uma tarefa simples, basta re-


conhecer e sintetizar o assun­to sobre o qual os participantes falam. Observe o
seguinte trecho de uma conversa:

L2 a sua família é grande?

L1 nós somos:: seis filhos

L2 e a do marido?

L1 e a do marido... eram doze agora são nove

L2 ahn ahn

quer dizer somos de famílias GRANdes e::... então ach/ acho que::... dado esse fator
L1 nos acostumamos a:: muita gente

L2 ahn ahn

L1 e::

L2 e daí o entusiasmo para NOve filhos

L1 exatamente nove ou dez

L2 ()

é e:: mas... depois diante da dificuldade de conseguir quem me ajudasse... nó::s para-
L1 mos no sexto filho

L2 ahn ahn

L1 não é?... e estamos muito contentes e...

Nesse trecho de conversa, o tópico conversacional é o tamanho da família. O


desenvolvimento desse tópico se faz principalmente nos turnos ocupados por
41
Lingüística III

L1: é ela quem dá informações sobre a composição de sua família, da família do


marido, sobre o projeto do casal de ter nove ou dez filhos, sobre as razões que a le-
varam a ter menos filhos do que o planejado. As intervenções de L2 também estão
centradas no mesmo tópico: ela incentiva L1 a continuar falando sobre o tema e,
com suas perguntas e comentários, direciona a interlocutora para a apresentação
de novas informações, fazendo progredir a conversa em torno do tópico.

O tópico é fundamental na organização da seqüência de turnos da conversa-


ção. Jubran (2006, p. 89-90) destaca:
[...] importa salientar inicialmente que a quase simultaneidade entre a elaboração e a
manifestação verbal, característica das interações face a face, particularmente da conversação,
não afasta o teor de organização do texto falado, então processado. Desenvolvida com base
em troca de turnos entre pelo menos duas pessoas, a conversação implica uma construção
colaborativa, pela qual um turno não é simples sucessor temporal do outro, mas é produzido,
de algu­ma forma, por referência ao anterior. Há, portanto, uma projeção de possibilidades que
um elemento no turno antecedente desencadeia no turno seguinte.

A organização seqüencial dos tópicos ao longo de um evento conversacional


pode assumir configurações diversas, relacionadas a dois fenômenos básicos: a
continuidade e a descontinuidade. Observa-se a continuidade quando os tópicos
na conversação se organizam em uma seqüência linear: cada tópico é iniciado,
desenvolvido e concluído antes da introdução do tópico seguinte.

Imagine uma conversa entre amigos em que tenham sido tratados os


seguintes tópicos:

A: o aniversário de W;

B: o início do namoro entre V e Y;

C: a ida de W ao shopping para fazer a troca de dois presentes;

D: o show musical anunciado para o fim de semana seguinte.

Haverá relação de continuidade entre esses quatro tópicos se os interlocu-


tores encerrarem o tratamento de cada um antes de darem início ao seguinte.
Ou seja, se um tópico como A (o aniversário de W) não voltar a ser abordado
a partir do momento em que os interlocutores passarem a conversar sobre o
tópico B (o início do namoro entre V e Y). Cada tópico é concluído antes da in-
trodução do tópico seguinte. Podemos representar a relação de continuidade
entre os quatro tópicos pelo seguinte esquema, em que a abertura dos parênte-
ses indica o início de um tópico, o fechamento dos parênteses seu encerramento
e a seta a seqüência linear entre os temas.

42
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

(A) → (B) → (C) → (D)

Mas pode haver entre esses tópicos uma relação de descontinuidade. Pode
acontecer, por exemplo, que um tópico seja anunciado na conversação, mas inter-
rompido por alguma razão. Esse tópico pode retornar depois ou não. Pode ocor-
rer também que um tópico seja interrompido pelo surgimento de outro e depois
os interlocutores o retomem para continuar falando sobre ele até esgotá-lo.

Os mesmos quatro tópicos apresentados acima poderiam surgir na conver-


sação em uma relação de descontinuidade. Imagine o seguinte: o grupo inicia a
conversa falando sobre o aniversário de W, mas interrompe o tratamento desse
tema para falar sobre o início do namoro entre V e Y. O tema A (o aniversário)
volta à conversa, mas é interrompido novamente pela inserção da narrativa
sobre a ida de W ao shopping para fazer a troca dos presentes. A conversa sobre
o aniversário retorna e, depois de encerrado o tratamento desse tema, o grupo
passa a falar sobre o show musical do fim de semana. Teríamos aí o seguinte
esquema, em que foram introduzidas as reticências para indicar a interrupção
de um tópico:

(A... → (B) → ...A... →(C) → ...A) → (D)

A descontinuidade entre o tratamento dos tópicos pode assumir várias


formas. Uma forma comum de realização da descontinuidade é a inserção de
uma digressão, ou seja, a introdução no meio do tratamento de um tópico de
uma conversa não relacionada com o tópico em andamento. Terminada a di-
gressão, o tema da conversa é retomado. O esquema da digressão seria:

(A... → (B) → ...A)

Pares adjacentes
Ficou suficientemente claro, a partir do exposto até aqui, que a conversação
é construída de forma colaborativa. Essa característica do texto conversacional
tem várias conseqüências na sua organização. Uma delas é a presença de se-
qüências de turnos altamente padronizadas quanto à sua estruturação. Todas
as línguas apresentam pares de turnos, que aparecem juntos (um segue imedi-
atamente o outro) e que são fundamentais na organização local da conversação.
A produção do primeiro elemento do par por um dos falantes desencadeia a
produção do segundo elemento por outro falante, como uma regra social de
conversação praticamente obrigatória. Schegloff (1972, p. 346-348) denominou

43
Lingüística III

essas seqüências de turnos de pares adjacentes, expressão incorporada aos estu-


dos da conversação.

Veja alguns exemplos de pares adjacentes:

 a produção de um cumprimento por um dos falantes conduz a um cumpri-


mento do interlocutor;

 o uso de uma expressão de despedida desencadeia outra expressão de


despedida;

 se um dos falantes fizer uma pergunta, o turno seguinte deve conter uma
resposta;

 se um interlocutor der uma ordem, o interlocutor deve em seguida apre-


sentar uma indicação de execução;

 se fizer um pedido, a seqüência deve indicar o atendimento do que foi so-


licitado ou uma desculpa pelo não-atendimento;

 se fizer um convite, deve vir em seguida a aceitação ou a recusa;

 um xingamento tem como resposta uma defesa (ou outro xingamento);

 uma acusação leva a uma defesa ou a uma justificativa;

 um pedido de desculpas é normalmente seguido do perdão.

Os turnos que constituem pares adjacentes têm algumas características que


justificam o seu estudo como um fenômeno especial na organização da con-
versação. Trata-se de seqüências de dois turnos produzidos por falantes difer-
entes. As duas partes dos pares adjacentes têm uma ordenação predeterminada
(o perdão não pode vir antes do pedido de desculpas, nem a defesa antes da
acusação, por exemplo). A primeira parte do par adjacente seleciona o próximo
falante e determina sua ação.

Entre os pares adjacentes mais estudados e mais relevantes para a construção


conversacional estão o cumprimento–cumprimento, despedida–despedida e a
pergunta–resposta.

44
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

Seqüências fáticas de abertura e fechamento:


pares adjacentes de cumprimento e despedida
Se pensarmos sobre as formas de que o português dispõe para os falantes
iniciarem e encerrarem uma conversa, veremos que há uma diversidade bem
grande: bom dia, boa tarde, boa noite, oi, olá, alô, tchau, até logo. O falante que dá
início à interação escolhe, entre as possibilidades que a língua lhe oferece, uma
forma de assinalar sua disposição para o diálogo. Mas sua liberdade de escolha
é muito restrita. A seleção da forma do cumprimento tem uma função fática na
conversação, ou seja, serve para assinalar que os interlocutores estão em con-
tato e marcar o início ou o fim do diálogo. A escolha dessas formas é regida por
regras sociais.

Um dos critérios para a escolha é a formalidade da situação: iniciar uma ent-


revista na televisão cumprimentando o entrevistado com um “oi” é inadequado,
considerado uma falta de polidez. Mas em situações informais (num bar, numa
festa, numa academia de ginástica, num salão de beleza) essa forma de cumpri-
mento é aceita e esperada.

Outro critério é a simetria ou assimetria da relação entre os interlocutores.


Na interação entre pessoas da mesma faixa etária ou do mesmo grupo social, os
cumprimentos e despedidas mais informais são esperados.

Quando o falante escolhe a forma de cumprimentar seu interlocutor, ele de-


termina, de certa forma, o turno seguinte:

A oi, tudo bem?

B tudo bem!

R bom dia!

V bom dia!

F alô!

J alô!

45
Lingüística III

H até logo!

Y até logo!

Os pares adjacentes de cumprimento–cumprimento ou despedida–despedi-


da tendem a ser selecionados de forma espelhada. Quando o falante dá início à
conversação, ele seleciona uma maneira de cumprimento a partir de sua avalia-
ção do grau de formalidade daquela situação e de sua relação de simetria ou as-
simetria com o interlocutor. A seleção feita determina a forma a ser usada pelos
demais participantes da conversação. O segundo turno de um par adjacente de
cumprimento ou despedida é determinado pelo turno anterior, ao qual faz eco.

O par pergunta/resposta
As seqüências de perguntas e respostas estão entre as formas mais comuns
de fazer progredir uma conversação. A pergunta seleciona o responsável pelo
turno seguinte, marca o final de um turno e define o tema e a forma do turno
seguinte. A pergunta pode ser:

Direta ou indireta
Reconhecemos como perguntas tanto as formulações feitas sob forma inter-
rogativa quanto aquelas que usam uma forma indireta:

Perguntas diretas: “Você encontrou o Carlos ontem?”, “O professor já chegou?”,


“Ainda está chovendo?”

Perguntas indiretas: “Não sei se você sabe o nome do livro que o professor
recomendou.”, “Quem sabe você me diz onde guardou a chave.”

Aberta ou fechada
As perguntas abertas em geral solicitam alguma informação, levam o inter-
locutor a falar sobre um tema específico. É comum conterem expressões como:
Quem? Qual? Como? Por quê? Onde? Quando?

D quanto tempo demora... essa refeição?

46
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

ah essa refeição demora... normalmente leva meia hora mais ou menos... porque eles
L comem bastante coisa realmente... quer dizer que então:: é demorado... depois ainda
tem que escovar dente pra sair...

Já as perguntas fechadas podem ser respondidas com “sim” ou “não”. Em por-


tuguês, é mais comum que a resposta afirmativa seja formulada com a repetição
do verbo ou de outra expressão importante contida na pergunta. Em várias
outras línguas, a resposta típica é um sim.

A Você já leu o livro?

B Já.

R Sua irmã gostou do vestido?

P Gostou muito.

A hesitação
Ao observarmos um evento conversacional, podemos perceber a presença
de várias hesitações, que se distribuem de maneira diferenciada entre os partici-
pantes. Há aqueles que falam pausadamente, com várias hesitações na formula-
ção, e há também os que revelam um grande controle sobre seu ritmo de fala e
apresentam poucas hesitações. A questão que surge inicialmente é: a presença
de hesitações na conversação seria um indício de um problema cognitivo ou
interativo do falante?

A Análise da Conversação dedica-se ao estudo dessa questão e conclui,


conforme mostra Marcuschi (2006, p. 48), que “a hesitação é intrínseca à com-
petência comunicativa em contextos interativos de natureza oral e não uma
disfunção do falante.” A hesitação tem um papel importante no processamen-
to da conversação: como o planejamento das intervenções do falante se dá de
forma simultânea a sua produção, as tomadas de decisão do falante resultam,
muitas vezes, em hesitações na fala. São decisões relativas, por exemplo, à es-
colha das palavras mais adequadas para fazer uma afirmação naquele momen-
to; ou sobre a seqüência em que as afirmações serão organizadas; ou a escolha
do modo mais adequado de comunicar algo aos interlocutores que participam
da conversação.

47
Lingüística III

Pode-se dizer que a hesitação tem um papel importante no processamento


textual. Ela funciona como um indicador de que o falante está organizando seu
texto ao mesmo tempo em que o produz, é uma pista para o processo de plane-
jamento que possibilita a organização do tópico conversacional.

A hesitação se manifesta no texto através das pausas, dos alongamentos


vocálicos, de expressões típicas de hesitação (é..., ah..., ahn...), de repetição de
palavras. Veja um exemplo de formulação textual repleta de hesitações:

tinha o vidro pra... pra... pra... pra... iluminação do... do... do... do recinto... não é? mui-
tas vezes vidros coloridos... que dava um ar assim de... de... de cafonice altamente
A simpática... né? lá... o sol batia ali... tinha um vidro colorido... não é? ((riso)) e essa casa
era assim... no fundo da casa tinha um... um galinheiro...

As hesitações não interferem na organização do texto, apenas em sua apre-


sentação, na maneira como cada falante apresenta-se no evento comunicativo.
São elementos que podem ser apagados do texto, pois não interferem na sua
estruturação, apenas na sua apresentação. O texto anterior teria o mesmo efeito
se as hesitações não fossem consideradas, se ao fazer a transcrição, as marcas da
hesitação do falante não fossem registradas, como se pode ver abaixo:

Tinha o vidro pra iluminação do recinto, muitas vezes vidros coloridos, que dava um
A ar assim de cafonice altamente simpático. O sol batia ali, tinha um vidro colorido e
essa casa era assim. No fundo da casa tinha um galinheiro.

Conclusão
Procuramos mostrar neste capítulo como o uso de alguns conceitos desen-
volvidos especialmen­te para a Análise da Conversação permite que se perceba
como se dá a construção do texto conversacional. A análise dos turnos e dos
tópicos coloca em evidência o caráter de construção colaborativa típico da con-
versação. Os pares adjacentes revelam a importância das normas sociais que
regem a participação dos falantes na conversação. A hesitação nos dá indícios
importantes sobre o processamento da conversação, sobre a simultaneidade
entre o planejamento e a produção da fala.

48
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

Texto complementar

O par dialógico pergunta–resposta


(FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 2006, p. 133-136)
Preliminares

Partindo-se do pressuposto de que a linguagem não é só uma atividade


verbal, mas também social, este capítulo3 privilegia o estudo da língua falada
numa perspectiva interacional, em que se evidencia a maneira pela qual os
falantes utilizam sua competência tanto lingüística quanto comunicativa,
em situações concretas de interação.

A necessidade de se proceder a uma descrição do par dialógico pergunta


e resposta (P–R) no português falado deve-se ao fato de serem elementos
cruciais na interação humana. Na verdade, é difícil imaginar uma conversa-
ção sem elas (STESNTRÖM, 1984, p. 295).

A partir do exame desse par dialógico, básico para a instauração da co-


erência textual, é estabelecida uma tipologia de P–R, quanto à sua função na
organização tópica do texto falado, quanto à sua natureza e à estrutura de Ps
e Rs. Torna-se necessário ressaltar que, no estabelecimento dessa tipologia,
as funções textual-interativas do par P-R serão privilegiadas em relação à sua
forma. É ainda abordada a questão da adequação da R à P, levando-se em
conta não só a perspectiva do falante, mas também a do ouvinte.
Par dialógico

Schegloff e Sacks (1973, p. 295) denominam par adjacente essa unidade


dialógica mínima de P-R. Para alguns, trata-se da unidade fundamental de
organização conversacional.

Segundo Levinson (1983), os enunciados pares devem ser:

 adjacentes;

 produzidos por falantes diferentes;

3
Trecho inicial do capítulo “O par dialógico pergunta–resposta” (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 2006).

49
Lingüística III

 ordenados, isto é, uma primeira parte é seguida de uma segunda


parte;

 formados de duas partes; cada primeira parte tem uma segunda es-
pecífica;

 governados por uma regra conversacional: tendo produzido a primei-


ra parte do par, o falante corrente pára de falar e o próximo falante
deve produzir, naquele instante, a segunda parte do mesmo par.

Essas propriedades configuram a estrutura básica do par dialógico P–R: P


R (S), em que P é a primeira parte proferida por um dos falantes, R é a segunda
parte produzida pelo interlocutor, contígua à primeira, e (S) é um segmento
opcional que pode seguir a R como uma reação a esta última:

(1)4

L1 – mas qual é o tempo que tem que se falar sobre esse ass... assunto? (P)

Doc. – uma hora e vinte minutos (R)

L1 – NÃ:::O ((risos)) (S)

L2 – NÃ:::O ((risos)) (S)

No exemplo (1), (S) é uma reação dos interlocutores L1 e L2 à R dada pelo Doc.
Já no (2), (S) é uma manifestação de polidez de L1, diante do ato de R de L2.

(2)

L1 – você sabe que horas são? (P)

L2 – dez (R)

L1 – obrigado (S)

Os pares dialógicos são – no aspecto semântico-pragmático – tomados


como indícios de existência de compreensão, na medida em que a segunda
parte do par só pode ser produzida se a primeira foi, de alguma forma, com-
preendida (DITMAN, 1979, p. 10).

4
A exemplificação, nesse item 1, serve-se ora de exemplos criados, ora de exemplos retirados do corpus do Nurc estabelecido como mínimo para
o Projeto da Gramática do Português Falado, ora de exemplos indicados por Marcuschi (1986, 1991). São criados os exemplos que não apresentam
identificação da fonte.

50
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

Identificação de Ps e Rs
Para que um enunciado possa ser identificado como uma P, o fator de-
terminante é a sua atualização num contexto particular em que as marcas
lexicais, a entonação e a forma sintática, em geral, apresentam-se como car-
acterísticas funcionais.

As marcas lexicais e as características de entonação podem-se colocar


como desambigüizadoras. A entonação ascendente, quase sempre aponta-
da como um critério que determina a função de um certo enunciado como
P, é considerada uma marca possível de reconhecimento de uma P, já que
se podem encontrar Ps com entonação ascendente/descendente ou com
entonação descendente. Evidências de Ps que não apresentam entonação
ascendente, visto tratar-se de um ato indireto de fala, podem ser observados
no exemplo a seguir:

(3)

– agora eu só queria saber pra que é que elas querem essa conversa besta to-
L1 dinha

L2 – sei lá

Há casos em que um enunciado pode funcionar como R, apesar de apre-


sentar traços que normalmente identificariam uma P, como seu contorno en-
tonacional ascendente e sua forma sintática (pronome interrogativo-sujeito),
que não evidenciam com clareza as marcas que identificam uma R:

(4)

Doc. – você gosta de literatura de cordel? (P)

L1 – e quem não gosta... quem não gosta? (R)

L2 – é todo mundo gosta (S)

L1 – quem não gosta? (R)

L2 – é uma beleza (S)

51
Lingüística III

Segundo Stubbs (1987), as Ps podem fazer restrições sintáticas às Rs,


mas essas restrições não são absolutas, sendo fundamentais as de caráter
proposicional. Ao serem formuladas, as Ps acionam um frame do que se supõe
comum ou normal a uma P. Observa ainda que, embora as restrições princi-
pais sejam de caráter semântico, intervêm fatores de ordem pragmática.

No exemplo (5), há uma P fechada, feita pelo Documentador. A P fecha-


da deveria restringir sintática e semanticamente sua R correspondente, que
seria sim ou não, ou alguma formulação equivalente a sim ou não. Mas as
Rs, tanto de L1 quanto a de L2 são de outro tipo, que preenche as condições
de uma P aberta (sobre algo). Cabe lembrar que o fator que permite esse
tipo de ocorrência é de ordem pragmática, já que não é comum que se de-
senvolva uma conversação apenas com respostas afirmativas ou negativas
simplesmente.

(5)

Doc. – agora uma viagem... assim de um grande navio fi... fizeram alguma vez?

L2 – eu fiz...

– eu fiz uma pequena... certa vez entre Recife e Salvador... no antigo Vera Cruz...
L1 que era aquele navio da... português... mas como viagem assim... mesmo que... re-
almente uma beleza o Vera Cruz

L2 – bom... eu fiz... eu fiz...

L1 – extraordinário

– eu fiz num navio de mais categoria do que Esse... fui daqui a São Paulo... Santos...
L2 no D. Pedro II ((risos)) que era irmão gêmeo do Almirante Jaceguay... uma beleza
de navio...

Estudos lingüísticos
1. Reflita sobre a interação estabelecida em cada uma das situações descritas
a seguir. Em cada caso, indique se os turnos tendem a ser simétricos ou as-
simétricos.

a) O repórter R. V. faz uma entrevista na televisão com um candidato que


acabou de ser eleito para o cargo de prefeito do município.
52
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

b) P. e A. trabalham na mesma empresa. Diante do computador, A. explica a


P. como fazer o controle de estoque.

53
Lingüística III

c) Em uma reunião geral com os empregados, o gerente de um supermer-


cado apresenta e discute propostas de mudanças na estrutura da em-
presa.

2. As perguntas são elementos importantes na organização da conversação.


Qual é o papel da pergunta na organização:

 dos turnos?

 dos tópicos conversacionais?

54
Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação

3. Imagine uma conversa entre um grupo de amigos que falem dos seguintes
tópicos:

A: Férias e planos de viagens.

B: Roubo ocorrido na casa de praia de M.

C: Tratamento médico previsto por D. para o período de férias.

Mostre como esses tópicos podem ser organizados em relação de continui-


dade ou descontinuidade.

55
Estratégias de organização do diálogo

Ao organizar suas intervenções na conversação os falantes dispõem


de uma série de recursos que são, em grande parte, diferentes dos utiliza-
dos na escrita. A fala apresenta um volume considerável de repetições,
ao contrário da escrita, em que a repetição é evitada. Os diálogos estão
também repletos de retificações do que foi dito, seja porque o falante
percebe que poderia ter se expressado de forma mais adequada, seja
porque o interlocutor deu alguma indicação ou de não ter compreendido
o que foi dito ou de ter feito uma interpretação diferente da pretendida.
Nos primeiros itens deste capítulo vamos tratar de alguns procedimentos
relacionados à formulação e à reformulação dos tópicos na conversação:
a paráfrase, a correção e a repetição.

A língua dispõe também de um conjunto de expressões que não acres-


centam informações novas quando são inseridas na conversação, mas que
são elementos importantes na organização dos diálogos: os marcadores
conversacionais, também chamados de marcadores discursivos. São ex-
pressões que expressam as atitudes dos falantes diante dos tópicos trata-
dos ou que contribuem para a organização do texto oral.

Na escrita, contamos com elementos visuais auxiliares para marcar a


divisão de tópicos: os parágrafos, que dividem os blocos de tratamento
de cada tópico, e os sinais de pontuação que marcam a separação entre
as frases. Na oralidade, são os marcadores conversacionais que dão conta
desse papel de delimitação.

A paráfrase
A paráfrase é um procedimento de reformulação textual que toma
uma afirmação apresentada anteriormente e a reelabora em outras pa-
lavras. Há uma equivalência semântica entre o que é dito antes e depois.
A paráfrase é constituída por duas partes, dois segmentos textuais que
podem ser ligados por expressões que indicam essa equivalência: ou seja,
quer dizer, isto é.
Lingüística III

Hilgert (1995, p. 107) chama a atenção para o fato de que a participação do


falante na conversação é uma atividade de formulação em que ele dá forma a
um conteúdo, a uma intenção comunicativa. Ora, uma das características essen-
ciais da conversação é que o texto que o falante produz em suas intervenções
no diálogo não é antecipadamente planejado, ele tem apenas uma vaga idéia
do que vai dizer ao iniciar cada turno. Construir o texto é também planejá-lo: na
conversação, o planejamento e a produção ocorrem de forma simultânea.

Essa preocupação em gerenciar ao mesmo tempo “o que dizer” (planejamen-


to) e “o dizer” (produção) leva o falante a recorrer muitas vezes a recursos de re-
formulação. Os principais são a paráfrase, em que o falante mantém o sentido do
que disse anteriormente, mas recorre a novas formas de dizer a mesma coisa e a
correção, em que o falante reformula o conteúdo de suas afirmações anteriores.

Essas atividades de reformulação estão presentes também no texto escrito,


mas se tornam imperceptíveis porque são apagadas na versão final. Quando es-
crevemos, fazemos várias alterações nas versões preliminares do texto. No tra-
balho de reescrita, realizado entre a produção dos primeiros rascunhos de um
texto e a versão final, fazemos várias alterações, seja para melhorar a maneira de
expressar alguma coisa, seja para retificar alguma afirmação que consideramos
errada. Como a conversação é, ao mesmo tempo, o rascunho e o texto final, ela
conserva os sinais da reformulação.

Hilgert (1995, p. 111) define a paráfrase nos seguintes termos:


Paráfrase é, portanto, um enunciado que reformula um enunciado anterior, mantendo com
este uma relação de equivalência semântica. Em termos mais simples, a paráfrase retoma,
com outras palavras, o sentido de um enunciado anterior. Ela, portanto, supõe sempre um
enunciado de origem com o qual está em relação parafrástica.

O segundo enunciado (segunda frase) de uma paráfrase distingue-se neces-


sariamente do primeiro enunciado por apresentar diferenças sintáticas e lexicais
(de vocabulário). Os dois enunciados que estão em relação de paráfrase em uma
conversação podem se apresentar lado a lado, em posição adjacente, mas podem
também estar distanciados. Veja exemplos de diálogos com paráfrases dos dois
tipos1:

(1)

mas pega um clínico geral... por incrível que pareça


L1 é o que mais... estuda... certo?
é o que tem a MAIOR especialização...

1
Os exemplos apresentados aqui foram retirados de entrevistas do projeto Nurc de São Paulo, realizadas na década de 1970.

58
Estratégias de organização do diálogo

Nesse trecho, o falante faz uma afirmação sobre o clínico geral inicialmente
em uma linguagem bem simples – “é o que mais estuda” – depois resolve dizer
a mesma coisa de uma forma mais técnica, e faz uma paráfrase do seu enun-
ciado anterior: “É o que tem a maior especialização”. Os dois enunciados que
constituem a paráfrase encontram-se lado a lado, constituindo uma paráfrase
adjacente.

A posição dos dois enunciados é diferente no exemplo a seguir:

A situação do médico... também é uma situação difícil em termos de mercado de trabalho


também é uma situação difícil... Hoje já está existindo também... muita quantidade...
está existindo uma certa facilidade inclusive parece que existe... leis aí... eh::... leis em
L1 termos de fiscalizar essas escolas de Medicina porque uma escola de Medicina tem
que ter... naturalmente um::... um hospital... tem que estar ligada a um hospital para
poder atender::... atender as::... exigências do curso do curso de Medicina

L2 do curso

O médico hoje em dia ele está... se sujeitando mui::to... a empre::gos tal...a situação do
L1 médico eu acho que está... bastante difícil

Os trechos da fala de L1 destacados com itálico são as duas partes de uma


paráfrase. Há uma afir­mação que é simplesmente repetida nos dois trechos
destacados: a situação do médico está difícil. Mas há também uma afirmação
que é reformulada, apresentada de outra maneira, que mantém o que foi dito
anteriormente. Nas linhas iniciais, L1 explicita sua afirmação de que a situação
dos médicos está difícil situando essa dificuldade em relação ao mercado de
trabalho: “Também é uma situação difícil... em termos de mercado de trabalho
também”. Após inserir outro tópico em sua fala – as exigências para funciona-
mento dos cursos de Medicina – retoma as afirmações anteriores sobre a dificul-
dade dos médicos em relação ao mercado de trabalho e faz uma reformulação,
que equivale ao que foi dito antes, e dá informações mais específicas sobre o
que foi mencionado antes apenas como mercado de trabalho: “O médico hoje
em dia ele está se sujeitando mui::to... a empregos tal...”.

Além dos casos em que o próprio falante reformula suas afirmações anteriores
mediante o uso de paráfrases, é comum encontrarmos também na conversação
situações em que um participante apresenta uma paráfrase de enunciados do
seu interlocutor. É o que se observa no exemplo abaixo:

então tem eh:: o paulistano é mais fechado mesmo eu acho que:: uma das influências
L1 seria a natureza e o nosso próprio clima entende?

59
Lingüística III

é o clima tem realmente uma influência diREta no comportamento da pessoa inclu-


L2 sive nas atitudes

certo... e que que você acha dessa polui/poluição que tanto falam... que vão controlar
L1 vão fazer isso vão criar a área metropolitana o que que você acha?

Este trecho de conversação mostra a elaboração coletiva de uma paráfrase: o


primeiro enunciado foi produzido por L1 e o enunciado semanticamente equiv-
alente foi apresentado logo a seguir por L2.

A correção
A correção, que é também uma estratégia de reformulação textual, compartil-
ha várias características com a paráfrase. Segundo Barros (1995, p. 137), “os atos
de reformulação textual são aqueles que têm por objetivo levar o interlocutor a
reconhecer a intenção do locutor, ou seja, procuram garantir a intercompreensão
na conversação ou em qualquer outro tipo de texto.”

As correções são uma forma específica de reformulação, em que o falante pro-


cura corrigir “erros” que tenha eventualmente cometido em suas intervenções
na conversação. A palavra “erros” foi colocada aqui entre aspas para destacar que
não estamos assumindo o conceito corrente nas gramáticas tradicionais. Não se
trata de ocorrências em desacordo com as normas do português padrão, mas de
escolhas que o falante já fez, de expressões que ele já produziu e que o próprio
falante ou seu interlocutor julgaram inadequadas. É como se o falante dissesse:
“O que eu queria dizer não era x, mas y.” As correções podem envolver escol-
has de palavras ou expressões, construções sintáticas, formas de organização do
texto ou entonação.

Nem sempre é fácil diferenciar uma correção de uma paráfrase. Ambas são
compostas por dois enunciados, numa relação tal que o segundo enunciado
deve ser considerado um substituto do primeiro. A diferença está na relação
semântica estabelecida entre as duas partes da reformulação. Enquanto na pará-
frase há a reiteração do que foi dito, na correção há uma retificação. Na paráfrase,
a relação entre os dois elementos seria de igualdade (x, isto é, y; x, ou seja, y);
quando a correção envolve dois enunciados, a relação entre eles é de diferença,
de retificação (não x, mas y). A correção envolve também, com freqüência, ex-
pressões menores do que a paráfrase; são comuns as retificações que abrangem
apenas uma palavra.

60
Estratégias de organização do diálogo

Tal como ocorre na paráfrase, a correção pode ser uma iniciativa do próprio
falante ou do interlocutor. Vejamos um exemplo de correção feita a partir de
uma iniciativa do próprio falante2:

... então como eu ia explicando... no início do século vinte ou melhor no século deze-
A nove... só existiam... a Europa e a... Ásia... bom... formadas... por culturas diferentes...
atravessando situações históricas de feudalismo diferentes...

Nesse trecho de uma aula, o professor apresenta uma informação aos alunos
(no início do século XX), mas percebe imediatamente que essa informação é in-
correta e faz a correção (ou melhor no século dezenove).

Às vezes é o ouvinte que percebe que uma informação está equivocada e


toma a iniciativa de assumir o turno e propor a correção. É o que se observa no
exemplo abaixo3:

L1 ...a irmã dela eu conheço que é jornalista né? é uma moça jornalista...

L2 poetisa

L1 poetisa...

Nesse trecho de conversa, L1 caracteriza alguém como jornalista, mas seu


interlocutor considera essa informação incorreta. L2 assume a palavra e propõe
imediatamente uma correção, destaca que a tal moça não é jornalista, mas “po-
etisa”. A correção proposta é aceita por L1, que repete a expressão escolhida por
L2, incorporando a retificação à sua própria fala.

Destacamos acima que as correções na conversação estão relacionadas es-


sencialmente a uma busca de intercompreensão, mas às vezes os falantes fazem
correções do que já foi dito devido ao cuidado com a própria fala; retificam o que
foi dito porque percebem que usaram uma forma “errada” do ponto de vista da
norma culta. É o que se observa no seguinte exemplo4:

... ao secretário evidentemente... levar: ao presidente... todas aquelas questões que diz
L1 que dizem respeito... aos associados

2
Dado do Projeto Nurc – Rio de Janeiro. Entrevista realizada na década de 1970.
3
Dado do Projeto Nurc – São Paulo. Entrevista realizada na década de 1970.
4
Dado do Projeto Nurc – São Paulo. Entrevista realizada na década de 1970.

61
Lingüística III

A repetição
O volume de repetições na oralidade é uma das características que diferen-
ciam essa modalidade de uso da língua da modalidade escrita. Uma das prin-
cipais operações na elaboração e revisão de textos escritos está relacionada a
evitar e eliminar repetições. Mas, ao contrário do que ocorre nos textos escritos,
na oralidade a repetição não é um problema, é uma característica do texto oral,
decorrente do processo de formulação desse tipo de texto, é uma conseqüência
da simultaneidade entre o planejamento e a produção do texto oral.

Boa parte das repetições observadas na conversação tem a ver com o proces-
so de planejamento textual. Enquanto o falante decide o que vai dizer em segui-
da, ele repete frases, expressões, palavras, como uma estratégia (inconsciente, é
claro) de garantir a continuidade do seu turno conversacional, de não passar a
palavra ao interlocutor enquanto dá forma ao que vai dizer em seguida.

Mas a repetição tem outras funções, não é uma simples estratégia para o fal-
ante ganhar tempo para organizar sua fala. Se alguém responde a um pedido
com uma frase como:

– Não, não, não, de jeito nenhum!

O uso da repetição não está relacionado ao planejamento, mas é uma forma de


reiteração, de ênfase.

Observe o uso das repetições do exemplo abaixo5, em que o falante recorre a


várias repetições (destacadas com itálico):

Eu acho que o meu conceito de morar bem é diferente um pouco da maioria das pesso-
as que eu conheço... a maioria das pessoas pensa que morar bem é morar num apar-
tamento de luxo... é morar no centro da cidade... perto de tudo... nos locais onde
L2 tem mais facilidade até de comunicação ou de solidão como vocês quiserem... meu
conceito de morar bem é diferente... eu acho que morar bem é morar fora da cidade... é
morar onde você respire... onde você acorde de manhã como eu acordo...

É fácil perceber que o falante neste trecho não usa as repetições simples-
mente como uma estratégia para ganhar tempo enquanto decide o que vai falar
em seguida. Ele constrói toda sua argumentação a partir da oposição entre dois
conceitos de “morar bem”: o seu e o da “maioria das pessoas”. Para evidenciar a
diferença entre as duas concepções, L2 recorre à repetição sistemática de ex-
5
Dado do Nurc – Recife. Entrevista realizada na década de 1970.

62
Estratégias de organização do diálogo

pressões e construções sintáticas, que lhe permitem destacar as diferenças entre


os dois pontos de vista.

Além da variedade de funções, Marcuschi (2006, p. 223-224) mostra que as


repetições na conversação podem assumir formas variadas:

 podem ser feitas pelo próprio falante, mas também podem partir do in-
terlocutor;

 podem ser adjacentes, com a repetição apresentada imediatamente após


o primeiro uso da expressão, mas podem também apresentar um distan-
ciamento entre o primeiro e o segundo elemento;

 pode haver identidade de forma entre o primeiro elemento e sua repetição,


mas também pode haver diferença de forma entre os dois elementos;
quanto maior o trecho repetido, maior será, evidentemente, a possibili-
dade de diferenças entre as duas realizações;

 os elementos repetidos podem ser de diferentes categorias gramaticais:

 repetições fonológicas (aliteração, alongamento, entonação etc.);

 repetições de morfemas (prefixos, sufixos etc.);

 repetições de itens lexicais (geralmente substantivos ou verbos);

 repetições de expressões;

 repetições de estrutura de orações.

As múltiplas formas e funções associadas à repetição nos eventos conversacio-


nais são reveladoras da diferença entre o estatuto da repetição na oralidade e na
escrita. Se no texto escrito a repetição é um problema a ser evitado, na conversa-
ção está entre os recursos de formulação textual mais importantes e produtivos.

É interessante fazer uma ressalva sobre o uso da repetição na escrita. Os


mesmos recursos conde­nados na maioria dos textos escritos são incorporados à
linguagem poética como recursos expressivos.

Os marcadores conversacionais
A conversação apresenta uma série de elementos que não contribuem para o
conteúdo informacional propriamente, mas que têm um papel importante tanto

63
Lingüística III

na articulação das informações quanto na organização das intervenções dos in-


terlocutores. Esses elementos são chamados de marcadores conversacionais, ou
marcadores discursivos. Alguns deles não são lexicalizados e não têm, portanto,
nenhum significado: eh, ah, ah ah, ahn ahn, hum hum. Outros são itens lexicais,
que têm seu significado esvaziado quando usados como marcadores conversa-
cionais: sabe?, certo?, tá?, viu? né? Quando usamos “sabe?” como um marcador
conversacional não estamos perguntando se o interlocutor sabe alguma coisa,
estamos fazendo uma delimitação na organização do fluxo de fala e, ao mesmo
tempo, dando um sinal para testar a atenção do ouvinte.

Os marcadores conversacionais mostram que a conversação tem elementos


organizadores diferentes da escrita. Os sistemas de escrita desenvolveram re-
cursos gráficos para a delimitação das unidades, como os sinais de pontuação,
a divisão em parágrafos, o destaque do tópico como título do texto. Desenvolv-
eram também formas de expressar a ênfase, os destaques, a opinião do autor. Há
itens lexicais que têm a função de modalizadores, que revelam o ponto de vista
do autor sobre aquilo que ele afirma: infelizmente, de certo modo, certamente etc.
É possível enfatizar trechos da escrita com o uso de recursos gráficos como o
tamanho das letras, o uso de maiúsculas, negrito, itálico, sublinhado.

Na oralidade, os marcadores conversacionais fazem o papel de delimitar as


unidades comunicativas. Funcionam também como sinais de que os interlocu-
tores estão atentos, de que cada um entende o que o outro fala, e do julgamento
que faz sobre o que fala ou ouve.

As gramáticas tradicionais, voltadas para a descrição da língua escrita, clas-


sificam os marcadores conversacionais na classe das “palavras denotativas” e de-
dicam pouquíssimo espaço ao seu estudo.

Marcuschi (1986, p. 66-68) apresenta um quadro geral, em que destaca as prin-


cipais funções dos marcadores conversacionais e faz também uma lista dos princi-
pais itens do português falado para cada uma das classes. Esse autor considera ini-
cialmente uma grande divisão entre os marcadores produzidos pelo falante (nos
turnos nucleares) e os que são produzidos pelos ouvintes (nos turnos inseridos).

A principal função dos marcadores conversacionais produzidos pelos fal-


antes é de demarcação. Assim, Marcuschi trabalha com dois tipos de unidades
relevantes na organização da conversação e procura identificar o conjunto de
marcadores conversacionais usados normalmente para assinalar o início e o
fim dessas unidades. A primeira unidade apontada é o turno de fala, ou seja, o
período total de intervenção de cada um dos participantes. A segunda unidade
relevante para o uso dos marcadores conversacionais é a unidade comunicativa,
que seria o correspondente à frase na escrita.
64
Estratégias de organização do diálogo

Já os marcadores conversacionais produzidos pelo ouvinte estão nos turnos


inseridos, ou seja, naqueles turnos que não apresentam unidades informativas rel-
evantes e que servem para indicar que o ouvinte está atento, que segue as afirma-
ções do falante. Esses marcadores conversacionais orientam o falante, pois indicam
a reação do interlocutor ao que ele está ouvindo. Marcuschi agrupa os marcado-
res em três conjuntos, que correspondem a três atitudes do ouvinte: os marcadores
convergentes sinalizam que ele concorda; os marcadores indagativos, que duvida, ou
que não compreendeu alguma coisa, e os divergentes, que ele discorda do falante.

Veja a seguir o quadro proposto por Marcuschi, que não tem a preocupação
de exaustividade, ou seja, que não pretende ser uma lista completa dos marca-
dores, mas que dá indicações interessantes para o estudo desses elementos de
organização textual.

Quadro 1

(Marcuschi, 1986, p. 68)


Quadro dos sinais conversacionais verbais
Sinais do falante Sinais do ouvinte
(orientam o ouvinte) (orientam o falante)

Pré-posicionados Pós-posicionados

No início No início No final No


Conver- Indagati- Divergen-
de turno de uni- de turno final de
gentes vos tes
dade unidade
comuni- comuni-
cativa cativa
“olha” “então” “né” “né” “sim” “será?” “não”
“veja” “aí” “certo?” “não “ahã” “não diga” “duvido”
“bom” “daí” “viu?” sabe?” “mhm” “mesmo?” “discordo”
“mas eu” “portanto” “enten- “certo?” “claro” “é?” “essa não”
“eu acho” “agora deu?” “entende?” “pois não” “ué?” “nada
“não, não” veja” “sacô?” “de “de fato” “como?” disso”
“porque” “é isso aí” acordo?” “nunca”
“epa” “claro, “como
“e” “que “tá?” claro” assim? “peraí”
“peraí”
“mas” acha?” “não é?” “isso” “o quê?” “calma”
“certo,
mas” “assim” “e então?” etc. “ah sim” etc. etc.
“sim, sei, “por ex- “diga lá” “ótimo”
mas” emplo” “é ou não “taí”
“quanto a “digamos é?”
etc.
isso” assim” etc.
“nada “quer
disso” dizer”
“você “eu acho”
esquece” “como vê”
“como etc.
assim?”
etc.
65
Lingüística III

O trecho de conversação abaixo6 mostra o uso de diversos marcadores con-


versacionais, que foram destacados em itálico.

agora... eu estou achando o do... os estudantes muito mais desinibidos... muito mais
abertos... estão na... naquela deles... então... eu não acho mais esse problema dele
se comunicar com o doente difícil... eu acho que todo estudante se comunica muito
L1 bem com o doente...viu... porque o do... o doente também não está vendo mais o
médico... nem o estudante de Medicina... como o médico... como aquela pessoa que
ele... às vezes... fica até apavorado... amedrontado... não é?

L2 hum hum

então... o estudante já entra na... na escola de calça Lee... com o seu blusão... seu
L1 cabelo grande... levando... arrastando o chinelo né?... a sandália... então...o doente já
olha aquele estudante como se ele fosse uma pessoa mais ou menos...

L2 Normal né? ((rindo))

Se observarmos o papel das expressões destacadas nesses quatro turnos con-


versacionais, veremos que elas não são fundamentais para o significado, tanto
que poderiam ser eliminadas sem prejudicar o entendimento. Os marcadores
conversacionais destacados na fala de L1 têm o papel de delimitadores das un-
idades comunicativas e dos turnos de fala. Alguns deles marcam sistematica-
mente o início de uma unidade (agora, então), outros marcam seu encerramento
(viu, né?, não é?). O marcador hum hum destacado no primeiro turno de L2 (que é
um turno inserido) indica sua concordância com as afirmações de L1. No último
turno de L2, o né? marca o final do turno.

Mostramos até aqui a classificação dos marcadores conversacionais proposta


por Marcuschi (1986). Outros trabalhos apresentam classificações diferentes,
mas igualmente interessantes. É o que vamos apresentar a seguir, tomando
como ponto de partida os estudos de Risso (2006) e Urbano (2006). Esses tra-
balhos propõem a classificação dos marcadores conversacionais (eles preferem
a denominação marcadores discursivos) em dois grandes grupos: marcadores
discursivos basicamente seqüenciadores e marcadores discursivos basicamente
interacionais.

Marcadores basicamente seqüenciadores


Os marcadores seqüenciadores são palavras ou locuções que fazem a liga-
ção entre as partes do texto falado. São elementos articuladores, responsáveis
6
Dado do Projeto Nurc – Salvador. Entrevistas realizadas na década de 1970.

66
Estratégias de organização do diálogo

pela coesão na conversação. Risso (2006, p. 427) sintetiza a atuação desses


marcadores:
Entre os exemplos mais freqüentes de unidades articuladoras estão formas como: agora,
então, depois, aí, mas, bem, bom, enfim, finalmente, quer dizer, por exemplo, assim, primeiro
ponto... segundo... terceiro..., etc. e tal... Às vezes, essas formas aparecem duplicando-se em
ocorrências conjuntas como: agora então, então aí, aí depois, mas então, mas aí, etc. e tal, então
por exemplo... Outras vezes, aparecem acumulando-se com marcadores lexicais que explicitam
mais claramente os movimentos de encaminhamento, fecho e retomada de tópicos discursivos,
bem como a avaliação de particularidades da informação contidas em seu interior: agora... o
que eu acho é o seguinte:; bem, voltando ao assunto; então, para terminar; então, resumindo; mas,
como eu dizia há pouco, entre outras ocorrências.

O ponto de partida para a classificação proposta por Risso (2006) é diferente


do utilizado por Marcuschi (1986). Essa autora toma como critério principal para o
agrupamento dos marcadores as duas principais funções desempenhadas por essas
expressões: a articulação textual e a sinalização da interação falante/ouvinte. Como
a função de articulação textual e de orientação da interação entre os interlocutores
são exercidas muitas vezes cumulativamente, para classificar o marcador em um ou
outro conjunto, é necessário observar a predominância de uma das funções.

Marcadores basicamente interacionais


Urbano (2006, p. 499) dedica-se ao estudo do segundo conjunto dos articu-
ladores, aqueles que são predominantemente orientadores da interação. O que
é um elemento orientador da interação? Na classificação de Marcuschi (1986, p.
68) comentada acima, os marcadores conversacionais classificados como “sinais
do ouvinte” desempenham esse papel de orientar a interação, uma vez que reve-
lam se o ouvinte concorda com o que ouve, se discorda ou se tem dúvidas/ques-
tiona. Urbano tem uma visão mais abrangente da função interacional:
Esclarecemos que o conceito de interação tem uma abrangência considerável, não se referindo
apenas ao processo de relação interpessoal bem caracterizado (envolvimento do falante com
o ouvinte ou vice-versa), mas também ao processo de manifestação pessoal, quando, por
exemplo, o falante verbaliza avaliações subjetivas a propósito das significações proposicionais,
envolvendo-se, pois, com o conteúdo, ou compromete, retoricamente, seu interlocutor.
(URBANO, 2006, p. 499)

Urbano (2006, p. 496) apresenta uma lista dos principais grupos de mar-
cadores conversacionais que desempenham a função interacional no portu-
guês falado:

Ah, ahn, hem, uhn Certo, claro, exato

É, é claro, é verdade Entende? Entendeu? Sabe? Tá? Viu?

67
Lingüística III

Mas Não é verdade? Não é? Né?

Olha/olhe, vamos ver, veja, vem cá Pois é, sei, sim

Com as indicações feitas por esses autores, temos um bom instrumento para
a análise do papel dos marcadores conversacionais usados nos diálogos que
ocorrem nas mais diferentes situações.

Conclusão
Procuramos neste texto trabalhar com algumas estratégias usadas na conver-
sação, com o objetivo de fornecer mais alguns elementos para a compreensão
dos diálogos. Com o estudo da repetição procuramos evidenciar um dos proces-
sos mais importantes de formulação do texto oral, uma estratégia usada pelo
falante inconscientemente para manter a posse da palavra enquanto planeja a
continuidade de sua produção. A correção e a paráfrase mostram processos de
reformulação do que já foi dito, seja pela retificação de algo que já foi dito e que
não corresponde ao pretendido, seja pela reformulação de trechos da fala para
expressar de forma mais adequada o que o falante pretendia dizer.

O estudo dos marcadores conversacionais colocou em evidência os proces-


sos de segmentação das unidades comunicativas na fala, os recursos de articula-
ção textual e as formas de assinalar as relações com o interlocutor.

Texto complementar

Observações finais
(MARCUSCHI, 1986, p. 85-87)

Na maior parte deste livro procedi à análise da conversação como se


fosse possível definir-lhe propriedades estruturais ou organizacionais rig-
orosamente claras. Ocorre, porém, que a cada momento surgem contra-
exemplos, e nem tudo é como a teoria gostaria que fosse. Não se trata de
um azar histórico dos modelos nem de uma aleatoriedade do fenômeno
analisado.

68
Estratégias de organização do diálogo

Mais do que tudo, o que se deve perceber é que os sistemas organiza-


cionais não foram propostos como normas para padrões de funcionamento
e sim como procedimentos analíticos. E, como toda a abordagem catego-
rial de fenômenos dinâmicos está fadada ao risco do insucesso explicativo
e descritivo, deve-se encarar os resultados como formas de perceber orga-
nizações e processos e não como propostas normativas para os fenômenos
analisados.

Com esta perspectiva em mente (LEVINSON, 1983, p. 364-366) e toman-


do, por exemplo, a noção de relevância condicional dos pares adjacentes, po-
demos observar que ela não é estringente7 em todos os casos. Mas, a cada
vez que A dirige uma pergunta a B e este demora um pouco para responder
ou não responde, A infere algo de acordo com a atividade em curso. Se a re-
sposta estiver fora do que era esperado pode ocorrer a volta da pergunta ou
um comentário sobre a qualidade da resposta. Nesse sentido, aquela noção
não prevê uma necessidade, mas organiza uma fatia da interação.

Dizer que no caso do elogio a preferência é por recusá-lo não significa


que não possa ser aceito. Mas a aceitação não passa despercebida e pode
gerar nos participantes inferências e reações diversas a respeito daquele
que aceitou. Portanto: a montagem das diferentes estratégias, processos e
organizações não tem em vista mostrar que as coisas devem dar-se assim,
mas servir de chave para compreender o que está ocorrendo quando não é
assim. A rigor, tem-se aí um procedimento metodológico próximo ao que H.
P. Grice seguiu ao montar seu quadro das máximas conversacionais a partir
do princípio cooperativo. Embora formuladas no imperativo, as máximas
não impõem obrigações; apenas servem de guia para interpretar as razões
que levaram à sua inobservância.

Assim, postular que a tomada de turno é uma operação crucial do pro-


cesso organizacional da conversação é mais do que estabelecer um sistema
descritivo. É sobretudo providenciar um caminho para a interpretação das
funções das pausas, dos silêncios, das hesitações, sobreposições etc.

Consideremos o debate político em que jornalistas fazem perguntas com-


plicadas ou capciosas a candidatos a cargos eletivos. Caso um candidato não
inicie logo e incisivamente sua resposta, mas faça uma pausa e hesite no início,
dará margem a uma rede de inferências, que vão desde “nessa ele tá por fora”

7
Essa expressão pouco usual empregada por Marcuschi significa: aquilo que comprime demasiadamente, que restringe, fecha muito.

69
Lingüística III

até “é um despreparado”, não obstante ter-se recuperado e oferecido uma boa


resposta. Tais fatos revelam que o comportamento esperado sobrepõe-se por
vezes ao manifestado. Como hipótese, não custa aventar que é normal ter-se
como fonte para inferências alguma instância ideal reguladora, o que permite
às ciências humanas montarem modelos mesmo para fenômenos dinâmicos.

Uma indagação importante, feita por Levinson (1983, p. 368), é a de se os


aspectos aqui descritos da organização conversacional são universais. Caso
sejam, então várias são as conseqüências: para o estudo da aquisição da lin-
guagem, para a explicação de universais lingüísticos através de padrões de
uso da linguagem, para programas pedagógicos formulados em novas bases
etc. Na atual ausência de estudos comparativos entre as diversas línguas e
culturas, ainda não se dispõe de uma resposta a essa questão. É de se supor
que alguns padrões, como os pares adjacentes, a organização localmente
comandada e o sistema de correções, sejam relativamente universais. Isso
pode constituir um bom campo de pesquisa para estudos de pragmática
comparativa e sociolingüística interpretativa. Áreas de um futuro promissor
porquanto afetam interesses de várias disciplinas.

Estudos lingüísticos
1. Esta é uma atividade a ser realizada em grupo. Observem ou gravem duas
ou mais pessoas conversando em qualquer lugar. Anotem quais foram os
marcadores conversacionais que o grupo identificou na conversação.

70
Estratégias de organização do diálogo

2. Leia abaixo um trecho de uma entrevista de um jornalista a um senador di-


vulgada em um pro­grama de rádio. A fala destacada é de responsabilidade
do senador, identificado como L2.

(Almeida; Gerab, 2006,


p. 223)
Eu o:: o tribunal eleitoral o tri... a justiça eleitoral n:ão está aparelhada... não está
equipada para fazer um exame dessas contas e para e sobretudo para acompanhar
os gastos durante a campanha para:: julgar pelos sinais exteriores oh Heródoto... é
só comparar o que realmente eh se se verifica que foi gasto pelos sinais exteriores...
uso de aviões e comícios e propagandas eh outdoors etc etc com o que foi declarado
L2 se... o::... a:: aparente revela um gasto muito maior que foi declarado a:: justiça eleito-
ral poderia im::pugnar como faz a Receita Federal... como pode fazer com os sinais
exteriores de riqueza mas a justiça eleitoral... seja por falta de recursos... por falta de
recursos técnicos e humanos... seja porque em muitos casos é conivente mesmo... né
não faz isso... e as contas... de modo geral... são faz de conta

a) Identifique um caso de paráfrase nesse trecho de fala.

71
Lingüística III

b) Identifique um caso de correção nesse trecho de fala.

c) Identifique um caso de repetição nesse trecho de fala.

72
Estratégias de organização do diálogo

73
A aquisição da linguagem

Aqueles que convivem com crianças até os cinco anos de idade têm
a oportunidade de observar seu rápido desenvolvimento em relação
a uma série de habilidades. As pessoas perguntam com freqüên­cia aos
pais: “Ele(a) já começou a engatinhar?”, “Já aprendeu a caminhar?”, “Ele(a)
já está falando? O que ele(a) já sabe falar?” Essas perguntas mostram que
faz parte do senso comum a percepção de que aquisições como o andar
bípede e a linguagem são adquiridos naturalmente em certa fase do de-
senvolvimento infantil.

Se pararmos para refletir sobre o que representam aprender a andar


e aprender a falar observamos de imediato uma diferença fundamental.
Todas as crianças, independentemente das características culturais do
meio em que vivem, aprendem a caminhar mais ou menos da mesma
maneira, em uma fase específica do seu desenvolvimento: engatinham,
aprendem a ficar de pé, dão alguns passos com ajuda do adulto e final-
mente adquirem autonomia para andar.

Já a aquisição da linguagem apresenta muitas semelhanças entre as


culturas, mas também muitas diferenças, uma das quais é fundamental: a
criança aprende a falar a língua usada pelo grupo social com o qual con-
vive. Dependendo do contexto cultural em que é criada, vai começar a
falar utilizando o vocabulário, a fonologia e a gramática do português, do
japonês, do kaingang, do russo etc. Qualquer adulto que passe pela ex-
periência de aprender uma língua estrangeira sabe que essa não é uma
tarefa fácil. O que parece extremamente complicado para um adulto é,
no entanto, uma tarefa realizada com sucesso pela criança em uma fase
bastante precoce do desenvolvimento, sem que ela ou os adultos com
quem convive tenham consciência de como esse aprendizado acontece.

Se o aprendizado da língua materna é visto pelos adultos como um


processo que ocorre de forma natural, para os lingüistas e psicólogos
trata-se de um processo complexo e pouco conhecido, que é objeto de
diferentes hipóteses explicativas.
Lingüística III

Neste capítulo, vamos apresentar algumas hipóteses sobre a aquisição da lin-


guagem, explicações formuladas por diferentes correntes da psicolingüística, ou
seja, da área dos estudos lingüísticos desenvolvida a partir da intersecção entre
questões teóricas formuladas por estudiosos da linguagem e das ações humanas.

Após apresentarmos essas formulações, vamos tomar um aspecto particular


da aquisição da língua portuguesa – sua fonologia – e mostrar os resultados dos
estudos psicolingüísticos em relação ao seu desenvolvimento.

Finalmente, vamos fazer alguns comentários sobre uma área que recente-
mente tem sido estudado intensivamente por vários lingüistas no Brasil: a
aquisição da escrita.

Teorias de aquisição da linguagem


A questão da aquisição da linguagem é uma preocupação muito antiga, que
foi objeto de reflexão nos trabalhos de vários filósofos. Não queremos aqui re-
tomar discussões anteriores à consolidação da Lingüística enquanto ciência.
Assim, vamos iniciar a discussão das teorias sobre a aquisição da linguagem com
os trabalhos de Noam Chomsky publicados no final dos anos 1950. Após apre-
sentar as principais formulações do inatismo assumido por Chomsky, comen-
taremos duas abordagens que se contrapõem a ela. Uma teoria alternativa ao
inatismo é o cognitivismo construtivista, desenvolvido a partir dos trabalhos dos
psicólogos Jean Piaget e L. Vygotsky. Outra é o interacionismo sociodiscursivo,
desenvolvido no final do século XX a partir de uma releitura dos trabalhos de
Vygotsky e da incorporação de uma concepção de linguagem fundada nos tra-
balhos de M. Bakhtin. Os autores mais representativos dessa vertente são Jean-
Paul Bronckart e Bernard Schneuwly.

O inatismo
No início de sua carreira como lingüista, Noam Chomsky apresenta uma pro-
posta de análise da aquisição da linguagem que rompe radicalmente com o pen-
samento vigente na época. O quadro intelectual em que sua proposta aparece é
descrito por Scarpa (2001, p. 206) nos seguintes termos:
O quadro científico era na época dominado pela corrente behaviorista ou ambientalista,
dominante exatamente nas teorias de aprendizagem. A aprendizagem da linguagem seria
fator de exposição ao meio e decorrente de mecanismos comportamentais como reforço,
estímulo e resposta. Aprender a língua não seria diferente, em essência, da aquisição de outras

76
A aquisição da linguagem

habilidades e comportamentos, como andar de bicicleta, dançar etc., já que se trata, ao longo
do tempo, do acúmulo de comportamentos verbais.

Chomsky se contrapõe radicalmente à concepção behaviorista de aquisição


da linguagem e propõe uma explicação inatista para a aquisição. Segundo ele,
a linguagem seria uma característica genética da espécie humana. Todos os
homens teriam um dispositivo inato, uma predisposição para a aquisição da lin-
guagem. Esse dispositivo seria desencadeado a partir do contato com a língua
falada pelo grupo com que a criança convive nos seus primeiros anos de vida.
Todas as línguas do mundo seriam manifestações dessa faculdade de lingua-
gem inata e universal; por isso as gramáticas de todas as línguas apresentariam
semelhanças significativas.

O argumento nuclear para a teoria inatista é que as crianças aprendem a


língua em um tempo curto (aproximadamente dos 18 aos 24 meses de idade) e
a partir do contato com dados fragmentados, já que a fala dos adultos está cheia
de frases truncadas ou incompletas. Mesmo diante da pobreza dos estímulos,
a criança conseguiria aprender rapidamente a linguagem a partir do mecanis-
mo de aquisição da linguagem, que lhe permitiria construir hipóteses sobre a
gramática da língua e projetá-las sobre os dados das línguas naturais.

O ponto de vista de Chomsky sobre o inatismo sofre algumas pequenas


alterações ao longo de sua produção acadêmica1, mas o essencial se mantém
em todas as versões do gerativismo. Uma das formulações mais interessantes
foi divulgada no modelo conhecido como “princípios e parâmetros”, proposto
a partir de 1981. Segundo esse modelo, os seres humanos nascem dotados de
uma Gramática Universal. Esta é composta, por um lado, de princípios universais
pertencentes à faculdade de linguagem e, por outro, de parâmetros que seriam
preenchidos, fixados pela experiência, pelo contato da criança com a língua dos
adultos com quem convive nos primeiros anos de vida. Um princípio, ou seja,
uma regra gramatical presente em todas as línguas seria que as sentenças são
formadas por um sujeito concatenado a um predicado. Já os parâmetros refe-
rem-se a características gramaticais que apresentam diferenças entre as línguas.
Um exemplo de parâmetro seria a diferença entre línguas que têm obrigatoria-
mente a posição de sujeito preenchida (inglês: It rains; francês: Il pleut) e as que
permitem o apagamento do sujeito (português: chove).

Scarpa sintetiza nos seguintes termos a teoria inatista de aquisição da


linguagem:

1
A coerência de Chomsky em relação à hipótese inatista de aquisição se mantém nos seus ensaios sobre a linguagem com uma longevidade notável.
Chomsky se mantém ativo como um dos nomes mais significativos dos estudos sobre a sintaxe das línguas naturais há mais de 50 anos.

77
Lingüística III

Em suma, no processo de aquisição da linguagem, a criança é exposta a um input (conjunto


de sentenças ouvidas no contexto), sendo o output um sistema de regras para a linguagem do
adulto, a gramática de uma determinada língua 12. Numa primeira versão da teoria, postulava-
se a existência de uma série de regras gramaticais, mais um procedimento de avaliação e
descoberta, presentes no Dispositivo de Aquisição da Linguagem (LAD); ao confrontá-las com
o input, a criança escolhe as regras que supostamente fariam parte de sua língua (CHOMSKY,
1957; 1965). Num segundo momento, postula-se que a criança nasce pré-programada com
princípios (universais) e um conjunto de parâmetros que deverão ser fixados ou marcados de
acordo com os dados da língua à qual a criança está exposta. A criança não escolhe mais as
regras, nesta versão de princípios e parâmetros, mas valores paramétricos. (SCARPA, 2001, p.
208-209)

Desde sua primeira formulação a teoria inatista de aquisição da linguagem


conquistou a adesão de numerosos lingüistas, que se empenharam em buscar
evidências em várias línguas de que a explicação chomskyana para a aquisição
das línguas naturais era a mais adequada. Mas foi também alvo de críticas sev-
eras, sobretudo por parte dos estudiosos que procuravam uma integração entre
os estudos sobre o desenvolvimento da criança considerado sob vários aspectos
e a aquisição da linguagem.

O cognitivismo construtivista
Os estudos do psicólogo Jean Piaget levantam hipóteses sobre a aquisição da
linguagem que se opõem claramente às explicações formuladas pelos inatistas.
No construtivismo piagetiano, a aquisição da linguagem é uma conseqüência
do desenvolvimento do raciocínio na criança. Segundo Piaget, até aproxima-
damente os 18 meses, o desenvolvimento cognitivo da criança é caracterizado
como período sensório-motor. Esse primeiro período seria marcado pelo ego-
centrismo e pelo fato de a criança não ter consciência da diferenciação entre ela
própria e o mundo que a cerca.

É a superação do período sensório-motor que permite o desenvolvimento


do pensamento simbólico e, portanto, cria as condições para a incorporação dos
sistemas simbólicos como o desenho, por exemplo. A linguagem é o sistema
simbólico mais importante desenvolvido pelos seres humanos.

A superação do período sensório-motor é marcado:

 pela consciência da diferenciação entre “eu” e “o outro”;

 pela capacidade de coordenar ações para constituir uma conexão entre


meios e fins;
2
A expressão “língua 1” é usada correntemente na Lingüística para designar a língua que a criança adquire naturalmente nos primeiros anos de
vida, a língua do seu grupo familiar. Essa expressão é equivalente a “língua materna”.

78
A aquisição da linguagem

 pelo reconhecimento da propriedade de permanência do objeto, ou seja,


pelo entendimento de que um objeto permanece o mesmo, ainda que
não esteja presente no espaço perceptual da criança.

A superação do período sensório-motor cria condições para a simbolização,


que está presente tanto nas brincadeiras de faz-de-conta quanto no uso da lin-
guagem. A criança opera com a simbolização: quando alinha toquinhos de ma-
deira como se fossem os vagões de um trem; quando diz “au-au” apontando para
um gato ou um cavalo; quando bate um carrinho contra o outro simulando um
acidente; quando faz alguns rabiscos no papel e diz que ali estão o pai e a mãe.

Scarpa (2001, p. 211) apresenta a seguinte caracterização do processo de


aquisição da linguagem na perspectiva do cognitivismo construtivista de Piaget:
Quando essas conquistas cognitivas se unem, na superação da inteligência sensória e motora, a
caminho da inteligência pré-operatória de fases posteriores, surge a possibilidade de a criança
adotar os símbolos públicos da comunidade mais ampla em lugar de seus significantes pessoais:
em outras palavras, a linguagem se torna possível (já que a linguagem é entendida, por Piaget,
como um sistema simbólico de representações), assim como outros aspectos da função simbólica
geral, como é o desenhar.

Piaget não reconhece a existência de uma capacidade inata específica para


a linguagem. Para ele, a aquisição da linguagem é resultado da interação entre
o ambiente e o organismo através de dois processos fundamentais: as assimi-
lações e as acomodações. A aquisição da linguagem faz parte de um conjunto
mais amplo de aquisição dos símbolos pela criança.

O interacionismo
A abordagem interacionista da aquisição da linguagem tem como pressupos-
tos o questionamento tanto do inatismo quanto do construtivismo. Considera que
essas duas hipóteses sobre a aquisição da linguagem dão pouca importância à
interação dos adultos com a criança durante o processo de apropriação da lingua-
gem. O inatismo coloca em primeiro plano uma capacidade de linguagem inata e
universal; o construtivismo considera que a aquisição da linguagem é um dos as-
pectos do desenvolvimento do pensamento simbólico, da superação do período
sensório-motor do desenvolvimento infantil.

O interacionismo social se caracteriza por atribuir um papel mais importante


à interação dos adultos com a criança no processo de apropriação da língua ma-
terna. Vamos destacar aqui duas vertentes do interacionismo. A primeira tem
como ponto de partida os trabalhos do psicólogo soviético L. Vygotsky, divulga-

79
Lingüística III

dos no Ocidente a partir dos anos 1960 e retomados recentemente por autores
como Bronckart e Schneuwly. A segunda vertente resulta de estudos empíricos
de observação sistemática da interação entre crianças e adultos ao longo do
período de aquisição da linguagem.

Vejamos algumas proposições relevantes em cada uma dessas duas


vertentes.

O interacionismo sociodiscursivo
Os trabalhos de Vygotsky apresentam pontos em comum com o constru-
tivismo piagetiano. A diferença mais significativa entre ambos é que Vygotsky
assume que o desenvolvimento da linguagem e do pensamento tem uma origem
social, e que esse desenvolvimento estaria fundamentado nas trocas comunica-
tivas entre a criança e o adulto. Para Piaget, o desenvolvimento da linguagem e
do pensamento decorre do amadurecimento da criança e de sua relação com o
mundo que a cerca.

Segundo Vygotsky, a fala e o pensamento devem ser estudados de forma in-


terligada, pois a atividade simbólica é viabilizada pela fala e tem uma função
organizadora em relação ao pensamento.

A análise que ele faz do desenvolvimento do pensamento e da linguagem es-


tabelece uma analogia entre o desenvolvimento de cada indivíduo e a evolução
da espécie humana. Na evolução da espécie, o ser humano seria dotado inicial-
mente de capacidades comportamentais particulares: criar instrumentos media-
dores de sua relação com o meio; organizar uma cooperação no trabalho (o que
dá origem às formações sociais); desenvolver formas verbais de comunicação (o
que permite o surgimento das línguas particulares). No desenvolvimento da cri-
ança, observa-se a apropriação dessas propriedades instrumentais e discursivas
do meio, que ela já conhece como um meio sócio-histórico. A criança não vai
criar instrumentos, mas se apropriar dos instrumentos já criados pela sociedade,
ou seja, aprender a utilizá-los: sacudir um chocalho para fazer barulho, puxar a
toalha para conseguir alcançar um brinquedo colocado em cima da mesa, usar
uma colher para levar o alimento à boca. De forma análoga, vai se apropriar da
língua utilizada pelo grupo familiar.

Essa apropriação cria a condição para o surgimento de capacidades auto-


reflexivas (conscientes) e tem como conseqüência a reestruturação do funcio-
namento psicológico. Segundo Vygotsky, a linguagem interiorizada torna-se o

80
A aquisição da linguagem

organizador fundamental do funcionamento psicológico da criança. A aquisição


da linguagem provoca uma revolução decisiva: o que era desenvolvimento nat-
ural torna-se desenvolvimento sócio-histórico. O pensamento se instaura como
produto da interiorização das estruturas da língua no ambiente social, pois a
apropriação pela criança das unidades de significação da língua provoca a dis-
cretização e desdobramento do funcionamento psíquico que caracteriza o pen-
samento consciente.

As intervenções deliberadas dos adultos tornam possível a apropriação da


linguagem e a estruturam. Vygostsky adota o conceito de zona de desenvolvi-
mento proximal para explicar a relação entre a interação e a aprendizagem: este
conceito caracteriza o conjunto de ações que a criança não é capaz ainda de
fazer sozinha, mas que consegue realizar com o auxílio de um adulto.

Há atualmente um grupo representativo de pesquisadores em aquisição


da linguagem (e nas suas aplicações pedagógicas) que toma como ponto de
partida a teoria de aquisição e desenvolvimento do pensamento e da lingua-
gem formulada por Vygostsky. Os pesquisadores, conhecidos como Grupo de
Genebra, usam a expressão interacionismo sociodiscursivo para caracterizar sua
abordagem. O grupo conta com pesquisadores como Bronckart, Schneuwly e
Dolz, com vários trabalhos publicados no Brasil. A influência do trabalho desses
autores pode ser observada nas orientações oficiais para o ensino de línguas no
país – veja-se, por exemplo, a formulação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
– e também para a produção e avaliação de materiais didáticos.

O interacionismo social
A abordagem que Scarpa (2001) chama de interacionismo social se funda-
menta em estudos empíricos realizados por lingüistas em vários pontos do
mundo, tendo como preocupação comum o questionamento da hipótese in-
atista de aquisição da linguagem. Essa abordagem dedica-se ao estudo dos
fatores sociais, comunicativos e culturais no processo de aquisição. Segundo
Scarpa (2001, p. 214-215):
Assim, a interação social e a troca comunicativa entre a criança e seus interlocutores são vistas
como pré-requisito ­básico no desenvolvimento lingüístico. Segundo essa abordagem, rituais
comunicativos pré-verbais preparam e precedem a construção da linguagem pela criança. As
características da fala do adulto (ou das crianças mais velhas) são ­estudadas e consideradas
fundamentais para o desenvolvimento da linguagem da criança. Alguns estudos demonstram
como esquemas de ação e atenção partilhadas pela criança e pelo adulto interlocutor-básico
precedem categorias lingüísticas.

81
Lingüística III

Os estudos interacionistas mostram que a afirmação de Chomsky de que a


criança aprende a linguagem a partir de dados esparsos e fragmentários é ques-
tionada por observações como as que indicamos abaixo a partir da sistematiza-
ção feita por Scarpa (2001, p. 215) a partir de diversos estudos empíricos sobre a
aquisição da linguagem.

Ao interagir com crianças pequenas, os adultos e as crianças mais velhas


adotam uma série de modificações na própria fala. Essas adaptações visam fa-
cilitar a comunicação com a criança em fase de aquisição:

 a entonação da fala é exagerada;

 a velocidade é reduzida;

 são usadas palavras criadas especialmente para a interação com os bebês.


Essas palavras apresentam geralmente a reduplicação de sílabas: dodói,
au-au, papá, nenê, babá, papai, mamãe;

 as frases são curtas e com estrutura sintática simples;

 são usadas expansões sintáticas, ou “traduções” a partir de palavras ou


gestos usados pela criança;

 as expressões temporais e espaciais utilizadas são voltadas para o mo-


mento da enunciação, e não para o passado ou o futuro;

 o vocabulário é selecionado, com preferência para expressões que de-


signem objetos, ações, qualidades mais familiares e freqüentes na rotina
da criança;

 as palavras e frases produzidas pela criança são repetidas ou parafrase-


adas pelo adulto.

A observação sistemática da interação dos adultos com as crianças durante o


processo de aquisição da linguagem mostra que o bebê está cercado de signifi-
cações e de interpretações. Os adultos procuram atribuir significado aos gestos,
olhares, choro, riso, a qualquer produção de sons da criança. A criança é tratada
pelo adulto como um interlocutor muito antes de conseguir produzir palavras e
frases inteligíveis.

Essas observações mostram que a aquisição da linguagem não pode ser vista
de forma simplista como prevê a hipótese inatista. A criança aprende a falar a
partir de uma intensa interlocução com os adultos e não simplesmente pela

82
A aquisição da linguagem

atuação de um dispositivo mental inato. Isso não significa que o processo de


aquisição seja individualizado, que não haja regularidades entre as crianças. A
gramática de qualquer língua apresenta a combinação de propriedades mais
simples e outras mais complexas. Conseqüentemente, haverá uma regularidade
na aquisição dessas propriedades, das mais simples para as mais complexas.
É o que procuraremos mostrar com um estudo sobre a aquisição do sistema
fonológico do português.

A aquisição da fonologia
Para observar como se dá a aquisição do sistema fonológico do português,
a pesquisadora Elizabeth Reis Teixeira, da Universidade Federal da Bahia, fez um
acompanhamento longitudinal de um grupo de 13 crianças com desenvolvi-
mento normal da linguagem. Como resultado de seu estudo, ela elaborou uma
apresentação dos sons e combinações de sons que a criança tem mais dificul-
dade em aprender. O acompanhamento do grupo de crianças permitiu também
que ela conseguisse identificar a idade e que cada dificuldade é normalmente
superada. Para apresentar os resultados, Teixeira (1988) dividiu o período de
aquisição do sistema fonológico da língua em seis estágios:

 Estágio I – de um ano e seis meses a dois anos;

 Estágio II – de dois anos a dois anos e seis meses;

 Estágio III – de dois anos e seis meses a três anos;

 Estágio IV – de três anos a três anos e seis meses;

 Estágio V – de três anos e seis meses a quatro anos;

 Estágio VI – de quatro a cinco anos.

Quando a criança encontra dificuldade na realização de sons ou seqüências de


sons da língua que está aprendendo, ela substitui os segmentos que apresentam
dificuldade por outros. Aos poucos essas substituições deixam de ser usadas e o
sistema fonológico da criança se aproxima do modelo dos adultos. Teixeira mostra
que a aquisição do sistema fonológico do português se aproxima do adulto
quando a criança chega aos 5 anos de idade, confirmando as observações feitas
por Chomsky de que a aquisição da língua materna se completa nessa idade.

83
Lingüística III

Os dados levantados por Teixeira mostram também que alguns sons do


português são pronunciados pelas crianças desde suas primeiras produções, e
aparecem no lugar de outros cuja realização apresenta um grau de dificuldade
maior. É o caso das consoantes oclusivas, em especial as anteriores (bilabiais e
alveolares) e das vogais que ocupam os extremos do triângulo de oposições do
sistema vocálico: / /, / / e / /.

Reproduzimos a seguir o quadro completo de processos que mostram a pro-


gressão das crianças na aquisição do sistema vocálico. Antes vamos comentar
alguns desses processos.

Um processo que mostra a dificuldade de distinção entre as vogais médias


(processo 1 no quadro) pode ser observado quando a criança pronuncia [ ]
para relógio. Segundo o estudo de Teixeira (1988, p. 55), até os dois anos de idade
as crianças já fazem as distinções entre as vogais médias do sistema fonológico
do português: [ ].

Outro processo observado ao longo da aquisição do sistema fonológico é a


reduplicação (processo 3). Ao pronunciar as palavras, a criança usa sílabas idênti-
cas, como se observa na pronúncia [ ], para geléia, ou [ ] para chapéu.

A dificuldade na pronúncia das consoantes líquidas / / e / / (processo 13) per-


dura, segundo Teixeira (1988, p. 57), até os três anos e seis meses. Observa-se
tanto a troca entre o [ ] e o [ ] quanto o uso de uma semivogal [ ] nos contextos
em que uma líquida deveria ser empregada. Uma palavra como quero pode ter
diversas realizações: [ ], [ ], [ ].

Os encontros consonantais só são adquiridos no fim do processo, aproxima-


damente aos 5 anos de idade, como indicado no quadro abaixo (processo 17).
Até o final da aquisição do sistema fonológico, são encontradas na fala infantil
realizações como [ ] para três, [ ], para flor, [ ], para praia.

O conjunto completo dos processos documentados na aquisição do sistema


fonológico do português pode ser observado no quadro a seguir.

Processos fonológicos encontrados no desenvolvimento normal


(Teixeira, 1988, p. 61)

Estágio Estágio Estágio Estágio Estágio Estágio


Processos I II III IV V VI
1;6-2;0 2;0-2;6 2;6-3;0 3;0-3;6 3;6-4;0 4;0-5;0
Confusão das vogais médias

Supernasalização

84
A aquisição da linguagem

Estágio Estágio Estágio Estágio Estágio Estágio


Processos I II III IV V VI
1;6-2;0 2;0-2;6 2;6-3;0 3;0-3;6 3;6-4;0 4;0-5;0
Reduplicação

Assimilação

Oclusivização

Glotalização

Palatalização (fonética)

Redução do /r/

Confusão das laterais

Anteriorização

Ensurdecimento

Confusão das fricativas

Confusão das líquidas

Elisão das sílabas fracas

Redução da semivogal

Redução da consoante final

Redução dos encontros con-


sonantais

Observações: A linha contínua indica a idade em que um dado processo parece


ser descartado pela maior parte das crianças. A linha pontilhada
indica a idade mínima até a qual a ocorrência de cada processo
foi constatada. Os números abaixo de cada estágio indicam os
limites mínimo e máximo da idade correspondentes ao estágio:
uma seqüência como 1;6 deve ser lida como um ano e seis meses.
(Teixeira, 1988, p. 61)

Estudos sobre a aquisição do português mostram como se dá o desenvolvi-


mento da morfologia, com as flexões nominais e verbais, da sintaxe, com o domínio
progressivo das estruturas sentenciais e das relações de coordenação e subordi-
nação. Mostram também como a criança adquire alguns gêneros textuais, como
as narrativas de histórias ou de experiências pessoais. Não vamos sintetizar aqui
nenhum desses estudos, pois julgamos que a síntese que fizemos da aquisição do
sistema fonológico dá uma idéia do tipo de estudo realizado na área.

85
Lingüística III

Observações sobre a aquisição da escrita


Até o momento, fixamos nossa atenção na aquisição da oralidade, no apren-
dizado da língua materna pela criança, processo que se dá naturalmente, sem
que os adultos tenham consciência de como suas ações na interação com a cri-
ança interferem nesse processo. Em geral, os pais só manifestam uma preocupa-
ção com o aprendizado da fala quando há alguma anormalidade: por exemplo,
se a criança não fala no período esperado ou se não adquire alguns sons da
língua até os cinco anos. Na imensa maioria dos casos, a aquisição da linguagem
é algo natural como andar, comer, aprender a controlar as funções fisiológicas e
dispensar o uso de fraldas. A preocupação da Lingüística em compreender como
as crianças adquirem a linguagem difere da preocupação dos adultos que con-
vivem com as crianças e que observam essa aquisição sem se preocupar com os
processos mentais subjacentes ao processo.

No caso da aquisição da escrita, as posturas dos pais, professores e lingüistas


é bem diferente. A aquisição da escrita tem diferenças fundamentais em relação
à aquisição da linguagem oral. Não se observa, a não ser em casos muito raros,
a criança adquirir a escrita sem que haja uma atuação deliberada do adulto
para ensiná-la. Não existe sociedade alguma que não tenha desenvolvido uma
língua, é natural da espécie humana criar sistemas simbólicos que fazem uso
das combinações de sons produzidos pelo aparelho fonador. Esses sistemas, ou
essas línguas naturais, são fundamentais para a interação do grupo e para a or-
ganização de suas atividades sociais. Por outro lado, há sociedades que passam
séculos sem a criação de sistemas de escrita. Mesmo quando esses sistemas ex-
istem, o acesso a eles é muitas vezes controlado por grupos que detêm o poder.
Na Europa medieval, por exemplo, o conhecimento da escrita era privilégio da
Igreja e de alguns grupos privilegiados. No Brasil, a universalização do acesso à
escrita só foi proposto como uma meta na segunda metade do século XX.

O ensino da escrita se dá em um momento posterior ao domínio completo da


gramática (após os seis anos de idade) e é objeto de uma preocupação especí-
fica por parte de pais e professores, para que a criança seja bem-sucedida nessa
tarefa. É objeto também de políticas públicas que têm em vista a qualificação
dos jovens para um mercado de trabalho em que a escrita tem um papel tão
relevante quanto a oralidade.

A aquisição da escrita foi durante muito tempo objeto de estudos centrados


nos métodos de alfabetização e em seus resultados. Ou seja, até muito recente-

86
A aquisição da linguagem

mente, a aquisição da escrita era objeto de estudo dos educadores. Só a partir da


década de 1980, a Lingüística passou a tomar a aquisição da escrita como objeto
de estudo. Isso provoca uma mudança significativa na perspectiva a partir da
qual os estudos são realizados.

A Lingüística não dá prioridade à eficiência dos métodos de ensino. Seu ob-


jetivo é compreender como a criança se apropria das diversas facetas do sistema
gráfico da língua. Para os lingüistas, os “erros” cometidos pelas crianças nos di-
versos momentos do processo de aprendizagem do sistema de escrita da língua
fornecem informações importantes sobre o processo de apropriação da represen-
tação escrita.

O conhecimento acumulado pela Lingüística nas diversas áreas (fonologia,


sintaxe, semântica, estudo do texto) é mobilizado para ajudar na compreensão
dos caminhos particulares seguidos por cada criança ao adquirir a escrita.

Para dar uma idéia de como a Lingüística relaciona a aquisição da oralidade


com a escrita, incluímos neste capítulo um texto complementar que discute o
reflexo de análises fonológicas da criança nos seus registros escritos nas fases
iniciais da alfabetização.

Conclusão
Neste capítulo procuramos de forma muito resumida mostrar como a
aquisição da linguagem é estudada no interior dos estudos lingüísticos. Demos
ênfase, inicialmente, às teorias concorrentes desenvolvidas para fornecer expli-
cações sobre a aquisição das línguas naturais.

A seguir mostramos como o registro sistemático da aquisição de aspectos


particulares da aquisição da linguagem apresenta resultados reveladores. O
acompanhamento longitudinal do processo de aquisição da linguagem fornece
elementos para testar as teorias de aquisição. Fornece também os elementos
para a compreensão de como as crianças se apropriam da linguagem oral.

O mesmo rigor aplicado ao acompanhamento da aquisição da escrita abre


caminho para uma compreensão também de como a criança se apropria do
sistema gráfico da língua.

87
Lingüística III

Texto complementar

A relevância dos critérios prosódicos


e semânticos na elaboração de hipóteses
sobre segmentação na escrita inicial
(ABAURRE, 1991, p. 203-206)

ocoelhoviumatrelacadetiachouatrelamuitonitaelevouparasuacasa
(O coelho viu uma estrela cadente, achou a estrela muito bonita e levou para sua casa.)

Milena, 6 anos, escola pública

Introdução
O fato de a escrita alfabética do português fazer uso de critérios mor-
fológicos na definição do lugar dos espaços entre seqüências de letras cria o
que poderia ser considerado, à primeira vista, um problema trivial: a necessi-
dade de saber o que é uma palavra, para que as palavras da língua possam
ser reconhecidas e separadas por espaços em branco.

Condicionados por um uso prolongado da escrita, os adultos já interpretam


previamente a ca­deia fonética da fala como sendo constituída por palavras
separadas, ordenadas em uma se­qüência linear. Para os adultos alfabetizados,
sobretudo para aqueles que mais freqüentemente se envolvem em atividades
de leitura e/ou escrita, torna-se até mesmo difícil perceber a natureza contínua
dos enunciados, do ponto de vista de sua articulação. Isso porque os critérios
de interrupção da cadeia fônica são, como se sabe, bem diversos dos critérios
de segmentação da escrita, e para a compreensão dos princípios que regulam
o uso das pausas, por exemplo, é necessário levar em conta a interação entre
critérios de natureza prosódica, sintática e semântica. Os adultos letrados
parecem operar com representações dos enunciados que já incorporam todas
as junturas morfológicas, o que talvez explique porque se tornam, de certa
maneira, “surdos” para as características mais contínuas dos enunciados orais.

Com relação às crianças, pode-se dizer que, no início da aquisição da


linguagem, elas começam a operar sobre um input que, como se viu, é

88
A aquisição da linguagem

contínuo, do ponto de vista fônico. Ao manipular esse contínuo, no en-


tanto, elas estarão, a partir de um certo ponto, continuamente focalizando
porções que por alguma influência contextual se tornam circunstancial-
mente salientes. Esse “dar-se conta” momentaneamente de determinadas
“porções” do input que podem receber uma interpretação contextual sig-
nifica, em última análise, focalizar, recortar, segmentar. Assim, procedi-
mentos de segmentação dos enunciados devem ser postulados como
estando na base de substituições iniciais produtivas, em uma teoria de
aquisição da linguagem preocupada em dar conta da ocorrência de novos
enunciados na fala das crianças. Nesse sentido, é possível dizer que elas
começam muito cedo a elaborar, embora inconscientemente, algum con-
ceito de palavra da língua, e que o fazem operando espontaneamente
sobre o contínuo lingüístico da fala. Entretanto, reconhecer que as cri-
anças já operam com “porções” de enunciados que podem corresponder,
em muitos casos, às palavras convencionais da linguagem adulta, não
implica supor que elas já compartilham dos critérios morfossintáticos e
semânticos utilizados pelos adultos na identificação das palavras. Além
do mais, já que elas obviamente ainda não estão influenciadas pela escri-
ta quando começam a entrar em contato com ela, é razoável supor que,
em estágios iniciais da aquisição da escrita, as crianças ainda percebam a
fala como um contínuo. O grau em que transpõem tal percepção para a
escrita varia de criança para criança, dependendo de fatores como idade,
condição socioeconômica, e até mesmo organização interna de textos
particulares que possam estar elaborando.

Sem ignorar, é claro, a enorme influência que a própria disposição gráfica


da escrita (para a qual se voltam as atenções das crianças nesse momento)
acaba por ter nas próprias hipóteses que elaboram sobre a colocação dos
espaços em branco entre as seqüências de letras, não se pode deixar de per-
guntar se por trás de muitas seqüências hipossegmentadas (DA SILVA, 1991)
da escrita infantil não estariam os indícios de uma percepção de momentos
contínuos, não-segmentados, da cadeia da fala. Tal hipótese revela-se in-
teressante para uma investigação mais sistemática por parte dos lingüistas,
não só porque uma melhor análise desses dados da escrita inicial pode con-
tribuir para a compreensão das relações estabelecidas pelos falantes entre
oralidade e escrita, mas também pela relevância dos dados em questão para
a validação das unidades prosódicas propostas nos modelos fonológicos
não-lineares como constitutivas de uma hierarquia que reconhece vários

89
Lingüística III

domínios prosódicos como significativos em termos das representações


fonológicas subjacentes.

Os textos espontâneos como espaço de observação


dos critérios iniciais de segmentação
Os chamados textos espontâneos, produzidos pelas crianças em fase ini-
cial de aquisição da escrita em situações em que é delas a responsabilidade
da decisão sobre o que vão escrever (sem determinação prévia do professor,
como nas atividades escolares mais controladas), costuma oferecer dados
interessantes para a análise dos critérios de segmentação com os quais essas
crianças parecem estar operando, muitas vezes de forma singular, em mo-
mentos particulares de elaboração da sua escrita (ABAURRE, 1988a, 1988b). É
importante enfatizar desde já que, às vezes, em um mesmo texto, critérios de
segmentação aparentemente conflitantes são freqüentemente usados por
uma mesma criança, o que parece indicar que as crianças podem explorar
critérios conflitantes de forma mais ou menos simultânea, na tentativa de
atribuírem sentido ao sistema convencional da linguagem escrita. Não é de
estranhar, portanto, que possam ser encontradas soluções diferentes para o
mesmo problema de segmentação em um mesmo texto (da mesma forma
como tão freqüentemente encontramos soluções escritas diferentes para
uma mesma palavra no mesmo texto, em termos das letras que a compõem),
já que a elaboração de um texto escrito delimita, para a criança, um espaço
particular de solução de problemas, em que ela será chamada a (re)construir
a linguagem através de sua transposição para a forma de representação es-
crita. Enquanto estiver trabalhando em tal construção a criança naturalmente
elaborará hipóteses conflitantes, porque estará testando diferentes critérios
possíveis para resolver os mesmos problemas. É precisamente nesse sentido
que se pode tomar a escrita espontânea como o espaço natural, e de certa
forma privilegiado, para a busca de indícios de operações epilingüísticas que
se manifestam durante o processo de aquisição da escrita. O texto seguinte é
ilustrativo do que vimos considerando até o momento:
o jaboti coreu no mato é viu mação.
o macaco falo Oe como vai amigo
tudo bei aé falo o jaboti tudu
o macaco fala vamo pacia aé fala o
jaboti vamu a é foi a é viu um

90
A aquisição da linguagem

abocate nu pedi abacate a é sobiu


nupedi a bacate comeu

(Luciana, escola pública)

(O jaboti correu no mato e viu um macaco.


O macaco falou:
– Oi, como vai, amigo, tudo bem?
Aí falou o jaboti:
– Tudo.
O macaco fala:
– Vamos passear?
Aí fala o jaboti.
– Vamos.
Aí foi. Aí viu um abacate no pé de abacate. Aí subiu no pé de abacate e comeu.)

Luciana escreve macaco primeiro como mação, depois como macaco.


Tudo é escrito primeiro como tudo, na forma ortograficamente correta, e
então mudado para tudu, por influência, provavelmente, da pronúncia de
tal palavra, que é [ ] na variante do português falado por Luciana (ser-
gipana). Em termos de segmentação, ela vacila entre aé e a é (para aí), entre
nu pedi e nupedi (para no pé de [ ]), e entre abocate, abacate e a bacate
(para abacate).

O caso de Luciana representa o caso típico. Como a relevância do estudo


de hipóteses aparentemente conflitantes na solução de problemas de es-
crita para a identificação de procedimentos epilingüísticos não pode ser
negada, conclui-se aqui pelo interesse, para a pesquisa, dos dados naturalís-
ticos representativos de enorme variabilidade característica da escrita infan-
til. É nesse sentido que tomamos os textos espontâneos como unidades de
análise privilegiadas, que permitem ao pesquisador observar alguns indícios
preciosos dos processos que subjazem à aquisição da representação escrita
da linguagem. [...]

Estudos lingüísticos
1. No vocabulário que os pais utilizam na interação com crianças pequenas, po-
demos observar palavras como: vovô, vovó, mamãe, papai, bibi, caca, au-au,
papa, naná.

Quais são as características fonológicas dessas palavras? O uso dessas ex-


pressões ajuda ou preju­dica o desenvolvimento da criança no processo de
aquisição do português como língua materna?
91
Lingüística III

2. As teorias de aquisição da linguagem avaliam de forma diferente o papel do


adulto e de sua interação com a criança durante o período de aprendizagem
da língua materna. Como as teorias abaixo interpretam o papel do adulto na
sua interação com a criança no período entre um ano e meio e cinco anos de
idade?

a) O inatismo:

92
A aquisição da linguagem

b) O interacionismo:

3. Os estudos lingüísticos mostram que há diferenças significativas entre apren-


der a falar a língua materna e aprender a ler/escrever esta mesma língua.
Que diferenças são essas?

93
Análise retórica da argumentação

Este capítulo tem como tema uma das abordagens da argumentação


no texto: a análise retórica. Inicialmente, vamos apresentar algumas infor-
mações sobre a história da retórica para destacar sua origem, suas preocu-
pações originais, seu declínio e revitalização. A seguir, daremos ênfase aos
conceitos nucleares da retórica e ao seu uso como um instrumento para a
análise de textos.

A Retórica Clássica teve origem na Grécia, no século VI a.C. Considera-


da um dos pilares da educação clássica, estava presente principalmente
nos tribunais e nas atividades políticas. Foi posterior­men­te incorporada
ao discurso religioso na Idade Média. Seu declínio ocorreu com o human-
ismo do século XVI. Após esse período, a visão predominante da retórica
torna-se negativa, pois ela passa a ser considerada a arte de criar discur-
sos vazios e enganadores.

Após séculos de esquecimento, a retórica teve uma revitalização na


metade do século XX, sobretudo a partir dos trabalhos de Chaïn Perel-
man. Esse ressurgimento, chamado de Nova Retórica, produziu um deslo-
camento nos objetivos dessa área: a principal contribuição da retórica at-
ualmente é de fornecer instrumentos para a análise dos diversos discursos
argumentativos com que nos deparamos. A retórica auxilia na análise dos
discursos publicitários, políticos, religiosos, enfim, de todos os discursos
que buscam a adesão a uma causa, uma idéia, um produto.

Vamos enfatizar aqui a contribuição da Nova Retórica para a interpre-


tação de textos. Para isso, a apresentação dos conceitos retóricos será feita
através da análise de um texto de opinião publicado na revista Veja.

A Retórica Clássica e sua revitalização na


Nova Retórica
O surgimento da retórica se deu na Sicília grega entre os anos 480
a.C. e 399 a.C., depois que os tiranos, ou seja, os dominadores, foram ex-
Lingüística III

pulsos e que se constituiu um novo estado, organizado a partir de princípios


democráticos. Com o fim do regime autoritário, os cidadãos reclamavam seus
bens, dos quais haviam sido despojados pelos antigos mandatários. As recla-
mações eram feitas na presença de um juiz e diante de um público ouvinte.
As técnicas desenvolvidas para a organização argumentativa desses discursos
deram origem à retórica.

Atenas, centro da cultura na época, incorporou a técnica retórica dos habi-


tantes sicilianos aos seus processos jurídicos. Assim, a retórica nasceu em vir-
tude de uma necessidade prática e foi difundida primeiramente como retórica
judiciária. Os gregos sicilianos não tinham advogados, por isso os litigantes
tinham que redigir suas queixas e lê-las perante os tribunos. Como ficou evi-
dente que as causas dos discursos melhor redigidos eram mais bem-sucedidas,
surgiu uma classe de logógrafos profissionais que ouviam e redigiam as queix-
as dos cidadãos. Ao mesmo tempo, surgiram retores, logógrafos ou não, que
ensinavam técnicas que se baseavam nas maneiras de comprovar o verossímil.
Foram os antigos retores que inventaram a disposição do discurso em quatro
partes: invenção (heurésis – escolha dos argumentos), disposição (taxis – ordem
em que os argumentos aparecem no discurso), elocução (lexis – estilo em que
um discurso é apresentado – fase em que o discurso é escrito e que inclui as figu-
ras de estilo), ação (hypocrisis – proferição do discurso, com ênfase nos gestos
usados na apresentação diante do público).

Na história da Retórica Clássica, é importante destacar a contribuição de Gór-


gias, que impressionou o mundo helênico com a beleza de sua retórica. Antes
dos discursos de Górgias só a poesia era entendida como literatura. Com ele a
prosa retórica assume estatuto literário. A arte da retórica exige que seu cultor
vença os certames não só pela convicção racional que cria em seu auditório
através de um discurso que faça sentido, mas também pela persuasão que im-
plica num engajamento emocional da parte do seu público ouvinte. Ou seja, o
uso frutífero da retórica deve conquistar os corações da mesma forma que as
mentes do auditório.

Aristóteles, que viveu entre 384 a.C. a 322 a.C., escreveu um grande número
de obras sobre vários assuntos, inclusive um texto que hoje se conhece pelo
nome de Retórica. A marca registrada e inovadora de Aristóteles foi imprimir ao
estudo da retórica duas características próprias do gênio grego: a observação e
o espírito de sistema.

96
Análise retórica da argumentação

A retórica é, para Aristóteles, uma ferramenta que pode ser útil no mundo
jurídico, na prosa literária, na filosofia e no ensino, mas que, em si mesma, é in-
diferente: pode servir tanto ao bem quanto ao mal. Segundo ele, a retórica é
algo bom, como a força, a saúde ou a riqueza, mas que pode ser usada para
o proveito ou a ruína dos seres humanos. Considera o ensino da retórica im-
portante, por proporcionar ao cidadão que se sinta lesado ou agredido, ou que
deseje expor suas idéias sobre qualquer assunto, um método que lhe permite
argumentar em defesa de seu ponto de vista na presença de qualquer público.
Segundo pensamento aristotélico, a retórica é um instrumento imprescindível
para a formação do homem universal.

A retórica teve grande prestígio e importância na cultura clássica, tanto


entre os gregos quanto entre os romanos. Mesmo depois da queda do Império
Romano do Ocidente, ela continuou a ser cultivada dentro da Igreja, como um
método importante para a produção de textos para captar e manter a adesão
dos fiéis aos princípios religiosos. A tradição de elaboração dos sermões, por ex-
emplo, sempre se beneficiou da contribuição da retórica.

É só com o humanismo do século XVI que, de fato, começa o declínio da retóri-


ca. A partir dos séculos XVII e XVIII, a retórica foi, ao que parece, excluída das ciên-
cias naturais, da matemática e da filosofia. O treinamento em retórica continuou
ainda servindo, até o século XIX, aos debates jurídicos, à política e à pregação.

Em meados do século XX, observa-se o ressurgimento dos estudos retóri-


cos, sobretudo a partir dos trabalhos de Chaïm Perelman. A revitalização desse
estudo é marcada por algumas diferenças em relação à Retórica Clássica. Seu
objetivo principal não é mais produzir discursos, mas interpretá-los. Os estu-
dos retóricos passaram a se ocupar de formas modernas de discurso persuasivo
tais como a linguagem da propaganda e as produções não-verbais. É com base
nesta versão renovada da retórica que vamos mostrar como ela pode servir de
instrumento para uma leitura não-ingênua de textos de opinião. Para isso, pro-
curaremos destacar os conceitos que constituem os pilares da Nova Retórica e,
ao mesmo tempo, usá-los como auxiliares na leitura.

Para expor de forma clara e aplicada os conceitos usados pela Nova Retórica
para a análise de textos, vamos começar com a apresentação de um exemplo.
Trata-se de um artigo de opinião publicado na revista Veja. Leia inicialmente o
artigo, pois ele servirá de referência para a discussão dos conceitos de tese, au-
ditório, acordo, para a identificação de algumas técnicas argumentativas e de
alguns tipos de argumentos.

97
Lingüística III

O ano da saúde e os desmancha-prazeres


Ou damos tudo a uns poucos ou oferecemos a todos apenas
os cuidados médicos necessários simples
(CASTRO, 1997, p. 134)

A Constituição de 1988 não deixa por menos: os serviços de saúde serão


oferecidos de forma universal, integral e gratuita. Aos pobres cabe agradecer
tamanha generosidade.

Mas os economistas somos espíritos de porco por profissão, temos a


mania de desmanchar prazeres. Com a ajuda de André Medici – mais sabido
do que eu em saúde –, desembainhamos as calculadoras para exercer nossa
triste sina.

Quando era elixir paregórico da cintura para baixo, aspirina para cima e
extrema-unção quando não dava certo, a promessa da universalidade, gra-
tuidade e integralidade do serviço de saúde era viável, pois era barato. Mas
a tecnologia complicou tudo em um país onde o estado gasta 90 reais por
habitante. Um dia em um bom centro de terapia intensiva custa 1.500 reais
(ou seja, a cota anual de 16 brasileiros). Uma ponte de safena custa 30.000
reais (equivalente ao gasto médio de 300 pessoas), quase o mesmo que um
ano de internamento psiquiátrico de boa qualidade.

Antes de remexer nas continhas, notemos que nenhum país da Europa


ou da América do Norte ousou ser tão generoso quanto nossa Constituição.
Nos Estados Unidos, o tratamento nem é universal nem gratuito e todos os
planos têm exclusões. Na Europa e no Canadá é universal, nem sempre gra-
tuito e altamente limitado o elenco de serviços oferecidos a todos. Em Cuba
é gratuito, mas os tratamentos caros são só para os turistas (pagantes).

Quanto custaria implementar a Constituição? Tomemos um plano gener-


oso como o proporcionado pelo Banco do Brasil aos seus funcionários (1.310
dólares por ano). Se oferecido a todos os brasileiros, faria o custo da saúde
subir a 37% da renda nacional. O custo médio da Golden Cross universal-
izado para o país comeria 42%. Isso é quatro vezes mais do que gastam os
países mais perdulários em saúde.

A promessa de oferecer tudo não é apenas uma lantejoula a mais es-


voaçando no mundo da fantasia, mas um monumental fator de injustiça.

98
Análise retórica da argumentação

Como pela regra constitucional todos têm direito a tudo, capturam a parte
do leão os mais sabidos, os mais poderosos e os mais próximos dos cen-
tros de decisão, bem como os grandes hospitais oferecendo tratamentos
sofisticados. Tratamentos que a Europa não tem recursos para oferecer, o
nosso sistema não pode negar pela Constituição. As cortes de Justiça dão
ganho de causa a quem pedir 120.000 reais para fazer um tratamento quase
inútil nos Estados Unidos. Sobra pouco para os outros. Como se fixam pri-
oridades? É de quem chegar primeiro, ficando os pobres, a saúde pública e
a prevenção de mãos abanando.

Mas bem sabemos que é no atendimento básico onde se alteram as es-


tatísticas de saúde. Por isso temos estatísticas de mortalidade infantil de
país miserável (45 por 1.000), mas gastamos como país de renda média (220
dólares). No Chile, que gasta 183 dólares por habitante, a mortalidade infan-
til é de 12 por 1 000.

Daí que a verdadeira reforma de saúde tem de começar com um exercício


simples, mas desagradável: para cada real gasto, quais as intervenções que
salvam mais vidas? Quanto temos para gastar? (ou quanto poderemos ter
fazendo uma forcinha?) Ordenemos, pois, o custo global de cada interven-
ção por ordem decrescente de ganhos sobre a saúde, até que se acabem os
recursos. Essas contas já foram feitas e sabemos onde são maiores os impac-
tos: prevenção, atendimento materno-infantil, moléstias infectocontagiosas,
endemias, atendimento ambulatorial, nutrição, água e esgoto. Se nossos
recursos fossem canalizados para esses gastos, a saúde do brasileiro mel-
horaria dramaticamente. Só que sobrariam menos recursos públicos para as
intervenções mais caras.

Nossas calculadoras trazem um recado desagradável: ou damos tudo a


uns poucos ou oferecemos a todos apenas os cuidados médicos necessários
simples. Mas há uma boa notícia – são esses cuidados que têm maior im-
pacto sobre a saúde de um povo.

Como leitores da revista em que este artigo de opinião foi publicado, certa-
mente fazemos uma leitura sem a preocupação de analisá-lo a partir dos con-
ceitos fornecidos pela retórica. Um leitor comum vai identificar o ponto de vista
do autor, reconhecer os argumentos usados para sustentar esse ponto de vista e
vai assumir uma posição diante do que leu: concordar, discordar, elogiar, criticar
etc. Vejamos como a retórica pode mudar a qualidade dessa leitura.

99
Lingüística III

Conceitos fundamentais da Nova Retórica


Para o estudo das diversas manifestações argumentativas, Perelman e Ol-
brechts-Tyteca (1996) destacam algumas questões anteriores à formulação de
uma teoria da argumentação. Segundo eles, é necessário levar em conta que
a adesão do interlocutor a uma tese pode ter intensidade variável. Diante dos
argumentos apresentados por alguém, podemos concordar totalmente e partir
para a defesa do mesmo ponto de vista, mas podemos também concordar par-
cialmente com a opinião que essa pessoa nos apresenta. Daí a necessidade de
distinguir de um lado os raciocínios e procedimentos discursivos relativos à ar-
gumentação, de outro os que se referem à demonstração e à dedução. Esses
últimos procuram chegar a evidências absolutas, através da apresentação das
provas que devem demonstrar determinadas proposições de forma definitiva,
de modo que qualquer pessoa razoavelmente inteligente tenha de aceitar a
demonstração. Na argumentação é possível observar graus variáveis de aceita-
ção de uma tese.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) ressaltam a importância de uma teoria


da argumentação como um instrumento para a produção e leitura de textos.
Para esses autores, “o objeto dessa teoria é o estudo das técnicas discursivas que
permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresen-
tam ao assentimento” (grifos no original – p. 4). Essa definição permite deduzir
que um dos conceitos centrais na teoria da argumentação é o conceito de “tese”.
Portanto, uma questão preliminar ao estudo das técnicas argumentativas empr-
egadas em qualquer discurso é a identificação da tese. Isso é importante tanto
para a produção de textos quanto na sua interpretação.

Não é qualquer tema que se presta à formulação de teses e ao uso da argu-


mentação. Uma afirmação como “a terra é redonda” já foi objeto de polêmica no
passado, mas hoje é uma verdade reconhecida, sobre a qual não há necessidade
de se tomar posição. Se alguém fizesse uma pergunta como “você acha que a
terra é redonda?” seria ridicularizado ou tomado como louco.

Os temas que se prestam à elaboração de discursos argumentativos devem


ser polêmicos, sobre os quais circulam opiniões antagônicas. Toda tese se opõe a
outras teses concorrentes sobre o mesmo tema. Só faz sentido disputar a adesão
de alguém quando essa pessoa pode assumir uma posição diferente. É simples
elaborar uma lista de temas polêmicos que levam à polarização de opiniões no
Brasil atualmente:

100
Análise retórica da argumentação

 redução da maioridade penal;

 implantação da pena de morte;

 legalização do aborto;

 adoção da eutanásia;

 etc.

Cada vez que esses temas são discutidos, há grupos que assumem uma
posição favorável e outros que se declaram contrários.

Se um professor de matemática demonstra aos alunos que 3 x 5 = 15, todos


os que entenderem a demonstração ficarão integralmente convencidos da cor-
reção desse cálculo. Mas se o mesmo professor disser que é favorável à proibição
do comércio de armas de fogo no Brasil e apresentar um conjunto de razões
para fundamentar seu ponto de vista, ele certamente não conseguirá convencer
todos os alunos. Alguns vão concordar, outros discordar e alguns vão concordar
parcialmente, e considerar a tese aceitável sob certas condições. Essa diversidade
de posições que as teses polêmicas suscitam pode ser observada, por exemplo,
na seção Tendências/Debates do jornal Folha de S. Paulo. O jornal propõe temas
polêmicos a especialistas em várias áreas e divide os artigos em três grupos: sim
(concorda com a tese), não (discorda), em termos (concorda parcialmente, sob
certas condições).

O que é uma tese? É a posição, o ponto de vista do autor diante de um tema


polêmico. O ponto de partida para a interpretação de qualquer texto de opinião é
a identificação da tese defendida pelo autor, assim como o ponto de partida para
a produção de um texto de opinião é ter clareza sobre a tese a ser defendida.

Voltemos ao texto “O Ano da Saúde e os Desmancha-prazeres”. A organiza-


ção argumentativa desse texto tem como núcleo a tese do autor, seu ponto
de vista sobre os serviços públicos de saúde no Brasil. Essa tese aparece na
frase destacada antes do texto: “Ou damos tudo a uns poucos ou oferecemos
a todos apenas os cuidados médicos necessários simples”. O ponto de vista
de Castro corresponde evidentemente à segunda parte dessa frase. A tese
de que os serviços públicos de saúde no Brasil devem se restringir aos pro-
cedimentos mais simples é destacada antes do texto e apresentada nos dois
parágrafos finais.

101
Lingüística III

O auditório
A seleção e organização dos argumentos em um texto levam em conta, em
primeiro lugar, os interlocutores, ou, como destacam Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1996), o “auditório”, definido como “o conjunto daqueles que o orador pretende
influenciar com sua argumentação” (p. 22). Esses autores destacam também que o
importante, na argumentação, não é saber o que o próprio orador considera ver-
dadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ele se dirige (p. 26).

O autor/falante seleciona seus procedimentos argumentativos a partir de


uma representação, uma imagem do seu interlocutor, que pode ser (ou não)
construída a partir do conhecimento real do grupo particular de indivíduos que
constituem seus leitores/ouvintes reais.

Assim, um segundo passo na interpretação do texto de Castro reproduzido


acima envolve a resposta à questão: a quem o autor se dirige nesse texto? Quem
ele quer convencer com seus argumentos? Qual é seu auditório?

Uma primeira pista para a identificação do auditório é o veículo em que o texto


foi divulgado: a revista Veja. É uma revista que dá ênfase à informação e à forma-
ção de opinião destinada a uma faixa ampla de leitores, em especial a uma classe
média distribuída por todo o território nacional. Quando se estabelece a relação
entre o leitor da revista e a tese proposta pelo autor observa-se um descompasso:
a tese de Castro está relacionada à definição de uma política de saúde pública para
o Brasil. Poucas pessoas no país poderiam combinar a adesão a essa tese com uma
ação efetiva: quem tem o poder de decisão nessas questões são os membros do
Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde estaduais e municipais.

Por que então publicar o artigo em uma revista de grande circulação em


vez de encaminhar as propostas a quem tem poder de decisão, a um auditório
qualificado para executar as ações decorrentes da adesão à tese? Uma resposta
possível é que Castro pretende formar a opinião dos leitores da revista, que não
têm poder de decisão sobre política de saúde, mas seriam afetados diretamente
caso a política proposta fosse implementada. Ou seja, o autor não quer que seu
auditório implemente as propostas apresentadas, mas que as aceite, caso sejam
implantadas. O autor não pretende levar seus leitores a agir, mas a aceitar sem
reclamações a perda de direitos garantidos constitucionalmente.

As razões alegadas têm a ver com um conjunto de valores supostamente


compartilhados pelos leitores da revista. O conceito de “acordo” refere-se a
esses valores.

102
Análise retórica da argumentação

O acordo
Em toda construção argumentativa, o autor pressupõe que seus interlocu-
tores concordam com um conjunto de afirmações implícitas (premissas), que
são admitidas como um “acordo” prévio, sobre o qual toda a argumentação é
construída. Fazem parte desse acordo: fatos, verdades, hierarquias, valores. Na
maioria das vezes esses elementos, que sustentam a argumentação, não são
apresentados explicitamente, mas apenas pressupostos.

Observando o texto “O Ano da Saúde e os Desmancha-Prazeres” é fácil perce-


ber que o autor apela principalmente para a valorização da justiça ao formular
seus argumentos. Segundo ele, sua proposta para a saúde pública no Brasil é a
mais “justa”. Ou seja, ele pressupõe que seus leitores compartilhem desta valori-
zação: a melhor decisão em relação a uma política de saúde é a mais justa, isto é,
a que permite um tratamento igualitário à população.

Outro valor presumido no acordo entre o autor e seus leitores é a valorização


da vida. A vida está em jogo em todos os exemplos citados, tanto no caso em que
alguém pede na justiça “120.000 reais para fazer um tratamento quase inútil nos
Estados Unidos” quanto nos casos mais simples, que envolvem nutrição, trata-
mento de doenças infectocontagiosas etc. Aí entra em cena um outro acordo,
relacionado à quantidade: a melhor política de saúde é a que salva mais vidas.

O autor apresenta ainda no texto todo um conjunto de dados, sejam dados


estatísticos, sejam valores referentes a gastos com saúde. Ele não tem a preocu-
pação de apontar a fonte onde tais informações foram colhidas, mas supõe que
os leitores da revista concordam com a veracidade desses dados.

O conceito de acordo é interessante para a leitura de textos persuasivos, pois


leva o leitor a identificar os fatos e valores que o autor supõe serem aceitos pelos
interlocutores. Há alguns valores que têm um enorme poder persuasivo e que
são usados por partidários de posições distintas para a defesa de teses muito
diferentes. Valores como a justiça, a liberdade, a democracia, a preservação do
meio ambiente, o direito à vida têm os mais diversos usos. Basta lembrar a cam-
panha contra o desarmamento, por ocasião do plebiscito realizado em outubro
de 2005, que associou a manutenção do direito de posse de armas de fogo à
liberdade individual.

103
Lingüística III

Os tipos de argumentos
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) classificam os argumentos usados nos
textos em duas grandes classes: argumentos quase-lógicos e argumentos base-
ados na estrutura do real. Os argumentos quase-lógicos procuram se aproxi-
mar de raciocínios formais, lógicos ou matemáticos. Não se pode dizer que haja
simplesmente uma transposição dos raciocínios formais para a argumentação,
trata-se apenas de semelhança, de uma forma de apresentação que dá aos ar-
gumentos a aparência de uma demonstração. Estão nesse grupo os argumentos
que apelam para relações lógico-matemáticas como a divisão do todo em partes,
a comparação, a transitividade, a probabilidade, os cálculos matemáticos.

Observe o uso da argumentação quase-lógica no seguinte fragmento de


texto. O apelo a cálculos matemáticos dá uma aparência de demonstração in-
contestável à argumentação usada pelo autor para levar os leitores a aceitar sua
tese de que “o brasileiro trabalha pouco”.

Muito pouco, para tantos


Enquanto no Brasil se discute a causa da inflação galopante procurando-
se academicamente estabelecer se ela é de demanda, de oferta ou – hipó-
tese menos verossímil – de origem psicológica, esquece-se algo que está
naturalmente na raiz desse processo devorador de nações. Referimo-nos à
produtividade da economia brasileira, extremamente baixa, diríamos até es-
candalosamente baixa para um país em via de desenvolvimento e que de-
veria dedicar-se com maior determinação a produzir riqueza.

Para demonstrar que no Brasil se produz muitíssimo menos do que se


poderia produzir, basta recorrer a alguns números extremamente simples,
numa conta elementar seguindo um raciocínio lógico. Vejamos: o ano tem
365 dias; desses, 52 são domingos e outros 52, sábados (saliente-se que uma
boa parte dos brasileiros não trabalha aos sábados, e quando o faz, geral-
mente trabalha apenas meio dia). Contando os feriados e os dias engolidos
nos fins de semana, prensados entre um feriado e um sábado, temos aí, por
baixo, cerca de 12 dias, nos quais a média do brasileiro que trabalha não
comparece ao serviço; a isso acrescenta-se uma média de dez dias nos quais
qualquer cidadão, mesmo de boa saúde (o que não é o caso para mais da
metade da população do país), falta ao serviço por motivo de doença. Temos
portanto um total de 126 dias nos quais normalmente não se trabalha e,

104
Análise retórica da argumentação

portanto, nada se produz. Somemos agora esses 126 dias aos trinta dias de
férias que são concedidas, pela legislação, aos trabalhadores. São 156 dias.
Basta agora subtrair esses 156 dias dos 356 dias do ano e teremos 209 dias.
O brasileiro trabalha, portanto, de um total de 365 dias apenas 209 dias em
média, o que quer dizer que, de um ano todo, menos de dois terços dos dias
são dedicados à produção, o que corresponde a um dia de folga para pouco
mais de um dia de trabalho.

[...]

(Folha de S. Paulo apud em Geraldi, 1997, p. 100)

É interessante destacar que a argumentação deste texto, mesmo se asse-


melhando ao raciocínio matemático, apresenta várias falhas e pode ser facil-
mente questionada. Há um problema na correlação estabelecida inicialmente
entre inflação e baixa produtividade; outro na correlação entre produtivida­de
e dias de trabalho. Outros problemas podem ser detectados nos próprios cál-
culos apresentados para provar que os brasileiros trabalham menos do que
deveriam: o turno parcial dos sábados não é computado (o que reduziria em
26 dias o cálculo dos dias não trabalhados), os sábados e domingos correspon-
dentes ao período de férias são descontados duplamente (isso reduziria o cál-
culo em 8 dias), o cálculo de faltas por doença também pode estar superdimen-
sionado. Mas um exemplo simples como esse mostra que o questionamento
de argumentos que se assemelham a raciocínios lógicos exige muitas vezes um
raciocínio semelhante.

Já os argumentos baseados na estrutura do real levam em conta questões


práticas: exemplos, ilustrações, fatos reais e especulações sobre suas causas e
conseqüências, relação entre a história ou a posição social de uma pessoa e seus
atos, apelo à autoridade etc. A diferença entre os dois tipos fundamentais de
argumentos é explicitada nos seguintes termos:
Enquanto os argumentos quase-lógicos têm pretensão a certa validade em virtude de seu
aspecto racional, derivado da relação mais ou menos estreita existente entre eles e certas
fórmulas lógicas ou matemáticas, os argumentos fundamentados na estrutura do real valem-
se dela para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura
promover. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 297)

A maioria dos textos que encontramos na mídia faz uso dos argumentos
baseados na estrutura do real.

105
Lingüística III

Voltemos ao texto “O Ano da Saúde e os Desmancha-Prazeres” para ob-


servar como Castro elabora a argumentação para levar os leitores a aceitar
sua tese sobre os serviços de saúde no Brasil. No primeiro parágrafo do texto,
ele apresenta o ponto de partida para a tese à qual vai se opor: a afirma-
ção de que os serviços de saúde no Brasil devem ser oferecidos de forma
universal, integral e gratuita está na constituição em vigor. A argumentação
desenvolvida nos seis primeiros parágrafos do texto enfatiza a inviabilidade
da proposta constitucional. Para isso, o autor constrói sua argumentação da
seguinte forma:

 usa um argumento de autoridade: apresenta-se como economista e afir-


ma que os cálculos que vai apresentar no artigo foram elaborados junta-
mente com um especialista em saúde;

 usa a ironia ao caracterizar um serviço de saúde barato: “Elixir paregórico


da cintura para baixo, aspirina para cima e extrema-unção quando não
dava certo.”;

 apresenta dados quantitativos correspondentes aos gastos do estado


por habitante e faz a comparação entre esses dados e o custo de alguns
tratamentos;

 faz a comparação entre o previsto na Constituição brasileira e os serviços


de saúde oferecidos gratuitamente à população em vários países cuja
população dispõe de serviços melhores do que o Brasil (países europeus,
Estados Unidos, Canadá e Cuba);

 faz uma projeção do custo da universalização dos serviços de saúde, a


partir de cálculos matemáticos;

 afirma que o que é legal no Brasil (previsto na Constituição) não é justo;

 inicia a defesa de sua tese: através de comparação entre o gasto com a


saúde e os índices de mortalidade, mostra a necessidade de se esta-
belecerem prioridades.

 os dois parágrafos finais são dedicados à retomada da tese e ao apelo aos


leitores para uma ação.

Esse levantamento mostra que Castro faz uso tanto de argumentos quase-
lógicos quanto de argumentos baseados na estrutura do real. Apela para infor-
mações reais ao se apresentar com economista, ao escolher países como Estados

106
Análise retórica da argumentação

Unidos, Canadá, Cuba e Chile para fazer comparações com a situação brasileira,
ao afirmar que quem se beneficia atualmente dos gastos com a saúde são os
mais sabidos, mais poderosos e os grandes hospitais. Mas apela principalmente
para o raciocínio lógico-matemático.

É fácil observar que ele dá ênfase ao uso de cálculos e dados estatísticos


na argumentação, ou seja, procura apresentar-se diante dos leitores não como
alguém que tem uma opinião e que a defende com base na sua percepção da
realidade, mas como uma autoridade em economia que faz uma demonstração
difícil de ser contestada. A dificuldade que os leitores têm na contestação dos
argumentos usados por Castro nesse artigo fica evidente no texto que escol-
hemos para as atividades correspondentes a esta unidade: “Da Arte Brasileira
de Ler o que não Está Escrito”. Trata-se de um artigo escrito pelo mesmo autor
a partir das cartas que a revista recebeu sobre a publicação do artigo que aca-
bamos de comentar.

Nesta seção não tivemos a preocupação de explorar de forma sistemática


os tipos de argumentos estudados pela Nova Retórica, o que nos levaria a am-
pliar demais esta unidade com a inclusão de vários detalhes adicionais. Prefe-
rimos enfatizar apenas as duas grandes classes de argumentos apresentados
por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996). Esse grau de detalhamento é suficiente
para uma indicação de como uma abordagem retórica da argumentação pode
ser um instrumento importante na leitura de textos diversos. Escolhemos textos
de opinião, mas poderíamos escolher diversos outros materiais, especialmente
textos publicitários, que fazem um uso bem particular dos argumentos.

O ethos: imagem do autor projetada no discurso


Os elementos destacados nas seções anteriores – auditório, acordo e tipos
de argumentos – colocam em evidência o ouvinte/leitor ou a organização do
texto. Mas a retórica aponta também a importância da imagem do autor/orador.
Não é difícil nos lembrarmos de situações em que ouvimos/lemos um discurso
em que alguém defende um ponto de vista e apresenta seus argumentos, mas
só obtém como resposta nosso descrédito: “Não acredito em nada do que esse
indivíduo diz”. Essa imagem do autor pode ter sido construída a partir de in-
formações prévias ou pode estar apoiada na forma como ele se apresenta no
momento em que produz seu discurso. A Retórica Clássica usa o termo ethos
para se referir à imagem do orador projetada no discurso. O conceito de ethos é

107
Lingüística III

complementado pelo de pathos, que corresponde à imagem que o orador tem


do seu auditório, e que o orienta na seleção dos argumentos. Tão importante
quanto esses dois conceitos é o logos, que seria o raciocínio, ou seja, o elemento
propriamente dialético e argumentativo da retórica (REBOUL, 2000, p. 36). Se-
gundo Aristóteles, o ethos seria o caráter, a moral que o orador assume ou o que
ele parece ser para inspirar confiança no auditório.

O ethos está ligado à pessoa do orador e é construído tanto a partir de


suas escolhas discursivas quanto de informações externas. Entre as escolhas
discursivas estão o estilo, o gênero discursivo, as afirmações que indicam a
vinculação a uma ou outra posição ideológica. Entre as informações exteri-
ores ao discurso estão: o conhecimento prévio sobre o orador e a instituição
a partir da qual ele fala, seu modo de se apresentar, de se vestir, seu tom de
voz e gestos.

Todos esses elementos contribuem para a construção de uma imagem do


orador: honesto, desonesto, simpático, confiável, arrogante, prudente, justo, al-
truísta, oportunista etc. O sucesso de um discurso argumentativo está vinculado,
entre outras coisas, também ao ethos do autor.

Conclusão
Na rápida apresentação que fizemos de alguns conceitos nucleares da Nova
Retórica, procuramos deixar claro que a visão corrente de que a retórica é a arte
do discurso vazio e enganador merece ser revista. Somos alvo de discursos per-
suasivos com uma intensidade nunca vista anteriormente: discursos políticos,
religiosos e especialmente publicitários. Em vez de usar a expressão do senso
comum para desqualificar esses discursos, dizendo que “é tudo retórica”, po-
demos tomar a técnica de análise dos discursos persuasivos desenvolvida pela
retórica para avaliar a forma de construção desses discursos, posicionar-nos
diante deles de forma consciente e dispor de instrumentos para refutar a argu-
mentação inconsistente.

Tal como na Grécia Antiga, ainda hoje a retórica pode ser um instrumento
fundamental para a formação das pessoas e para o exercício da cidadania.

108
Análise retórica da argumentação

Texto complementar

Um esboço de análise
da argumentação na oralidade
(COSTA1; GODOY2, 1997, p. 97-110)

Em entrevistas orais gravadas, os entrevistados são freqüentemente leva-


dos a expor seu ponto de vista sobre questões que lhe são propostas pelo
entrevistador. Ao fazê-lo, elaboram textos argumentativos, em que expõem
sua opinião sobre o tema proposto e reúnem um conjunto de argumentos
como evidências para a sustentação das teses defendidas. Um conjunto de
técnicas argumentativas são utilizadas de forma recorrente nesses textos. A
observação sistemática das mesmas foi o ponto de partida para este estudo.
[...]

Um exemplo
No texto abaixo, é possível observar algumas questões interessantes
em relação à representação do interlocutor (o auditório, na concepção de
Perelman e Olbrechts-Tyteca) e ao acordo pressuposto entre os interlocu-
tores. Trata-se de parte de uma entrevista feita com uma informante de Pato
Branco (PR), que trabalha em programas de recuperação de meninos de rua,
como membro do Conselho Tutelar da Infância e da Adolescência. No texto,
ela faz uma comparação entre as dificuldades encontradas ao atuar junto
aos meninos e às meninas, e expõe sua tese de que o trabalho com meninas
é mais difícil.

Falante: Agora, é bem mais fácil você trabalhar com meninos do que
com meninas.

Entrevistador: Por quê?

Falante: As meninas começam a se prostituir muito cedo. Então pra elas


a vida na rua é uma festa.
1
Universidade Federal do Paraná.
2
Mestrado em Letras da Universidade Federal do Paraná.

109
Lingüística III

Entrevistador: Com que idade?

Falante: Ah, doze, uns treze. Nós temos menina ali com catorze anos que
já tem filho. E elas pegam carona, conhe... Tem meninas aí que conhe-
cem o Brasil inteiro, chegam e contam. E você vai, arruma um emprego
pra ela, arruma matrícula no colégio, tudo. “Mas quem te pediu isso? Eu
estou vivendo a vida que eu quero.” Então, uma das propostas minhas
de permanecer no Conselho ainda é pra ver se a gente consegue com
alguma igreja, alguma coisa, fazer um trabalho com as meninas. Não
querer impor uma coisa de cima pra baixo − né? − mas sim começar a
conquistá-las e a reuni-las, ir discutindo problemas delas até ir... ver o
quê que elas querem, que de repente elas estão só no oba-oba, né? e
amanhã elas...

Entrevistador: Esquece que o tempo passa, né?

Falante: Sim, e esquece o risco que está correndo. E amanhã, depois,


o quê que será delas? Então a gente está tentando fazer alguma coisa
por elas também. E o menino, não sei se é porque sempre eu trabalhei
mais com menino, eu acho que ele é até menos agressivo do que a
menina. Que a menina, se precisar brigar, ela briga mesmo. E tem os
mesmos vícios dos meninos: cheira cola, fuma maconha, bebe e se
prostitui. E os meninos, nem todos eles se prostituem. Então, sei lá,
e...a gente brinca que é... O pe ssoal do Conselho chateia: “Olha as tuas
rolinhas aqui.” Diz que as meninas são as minhas rolinhas, (riso) que
elas só procuram a Loris, só querem falar comigo, né? Achei... Comigo
elas jogam limpo, elas contam tudo que acontece. De repente esses
tempos veio até... veio uma que estava na prostituição. E ela com a
maior cara de pau me falando, diz: “Olha, a gente tem comida, tem
roupa, única coisa que a gente faz é de noite beber e dançar. E se
quiser transar, vai transar. Tem até piscina lá. Eu vou pedir pro juiz me
dar uma ordem pra mim ficar lá, porque eu vou ficar fazendo o quê
aqui em casa, hein? Pra mim viver aí eu tenho que trabalhar de bóia-
fria, arrancar feijão o dia inteiro, morrer de dor nas costas. E ganha uma
miséria. E lá eu ganho o dobro numa noite.” Então me arrependo até.
Como é que você vai pôr na cabeça dela que hoje ela está ganhando

110
Análise retórica da argumentação

bem, mas e amanhã, como é que vai ser? É uma coisa bem difícil, bem
complexa. (PRPBR12)3

Observando nesse texto a escolha e ordenação das técnicas argumentati-


vas, temos o seguinte:

a entrevistada começa pela explicitação de sua tese: “Agora, é bem mais fácil
você trabalhar com meninos do que com meninas.” A seguir, apresenta uma
proposição que resume a argumentação a ser desenvolvida a seguir: “As me-
ninas começam a se prostituir muito cedo. Então para elas a vida na rua é
uma festa.”

As técnicas argumentativas utilizadas na sustentação dessas afirmações são:

a) Comparação:

 “As meninas começam a se prostituir muito cedo...” [...] “...e os me-


ninos, nem todos eles se prostituem.”

 “E o menino [...] eu acho que ele é até menos agressivo do que a


menina.”

 “Que a menina, se precisar brigar, ela briga mesmo. E tem os mes-


mos vícios dos meninos: cheira cola, fuma maconha, bebe...”

b) Exemplo real:

 “Nós temos menina ali com catorze anos que já tem filho”.

c) Ilustração real:

 “O pessoal do Conselho chateia: ‘Olha as tuas rolinhas aqui’...etc.”

 “De repente esses tempos veio até... veio uma que estava na pros-
tituição... etc.”

A escolha desses recursos argumentativos vem acompanhada de marcas


que remetem ao grau de convicção da informante sobre seus enunciados,
especialmente a utilização de expressões como “eu acho”, “não sei”, “sei lá”,
que modalizam a apresentação dos argumentos, revelando um certo grau

3
As referências às entrevistas são feitas conforme a codificação adotada no Banco de Dados Lingüísticos VARSUL, conforme apresentado em
KNIES, Clarice Bohn; COSTA, Iara Bemquerer. Banco de Dados Lingüísticos VARSUL: Manual do Usuário. UFRGS/UFSC/UFPR/PUC-RS, 1996. A seqüência
PRPBR12 significa: Paraná, Pato Branco, entrevista 12.

111
Lingüística III

de insegurança da entrevistada em relação ao que ela mesma enuncia. Esses


elementos funcionam como atenuadores das proposições:

 “... eu acho que ele é até menos agressivo do que as meninas.”

 “...E o menino, não sei se é porque eu sempre trabalhei com menino...”

 “Então, sei lá...”

Se forem consideradas as técnicas argumentativas selecionadas, elas são


bem escolhidas para os propósitos da falante. Tanto o exemplo real quanto
a comparação e a ilustração real escolhidas têm a particularidade de tornar
presentes na consciência do interlocutor fatos e depoimentos que têm um
poder de persuasão bastante forte. Como explicar, então, as hesitações e ate-
nuações presentes no discurso?

Aqui é importante analisar a organização da fala de Lori a partir dos con-


ceitos de auditório e acordo formulados por Perelman e Olbrechts-Tyteca. O
interlocutor imediato da falante é seu entrevistador; este representa o audi-
tório, com quem ela estabelece facilmente um acordo em torno de um con-
junto de valores:

a) Os meninos de rua convivem com várias coisas ruins: bebida, drogas e


prostituição;

b) A reabilitação dessas crianças se dá mediante seu acesso à educação e


ao trabalho;

c) A possibilidade de acesso das crianças à escola e ao trabalho deve le-


vá-las a compartilhar dos valores positivos que lhe são apresentados.

O entendimento das hesitações da informante e da própria formulação


de sua tese de que o trabalho com meninos é mais fácil do que com meni-
nas tem a ver com o auditório e o acordo e não com as técnicas utilizadas
na construção da argumentação. Enquanto na sua interação com o entrevis-
tador ela consegue selecionar e ordenar os argumentos a partir do acordo
em torno de um conjunto de valores, na interação com outro auditório, o
das meninas de rua, o acordo não é possível. Para a falante, o auditório que
ela gostaria realmente de influenciar com sua argumentação não aceita o
acordo em torno dos valores relacionados à educação e ao trabalho, e se
contrapõe ao acordo implícito no seu discurso mediante a explicitação de
um conjunto alternativo de valores. Daí a consciência que ela revela de que

112
Análise retórica da argumentação

para ter alguma influência sobre esse auditório, seria necessário estabelecer
algum acordo inicial: “... começar a conquistá-las e a reuni-las, ir discutindo os
problemas delas até ir... ver o quê que elas querem...”

Estudos lingüísticos
O texto a seguir foi publicado pela Veja seis meses depois da publicação do
artigo de opinião “O Ano da Saúde e os Desmancha-prazeres”. Os dois textos
são do mesmo autor e foram publicados na mesma seção da revista. Neste
segundo texto, Cláudio de Moura e Castro faz uma discussão a propósito das
cartas que a revista recebeu depois da publicação do primeiro.

Da arte brasileira de ler o que não está escrito


A imaginação criativa de alguns leitores não se detém sobre a lógica do texto.
É a vitória da semiótica sobre a semântica
(CASTRO, 1997, p. 142)

Terminando os poucos anos de escola oferecidos em seu vilarejo nas


montanhas do Líbano, o jovem Wadi Haddad foi mandado para Beirute para
continuar sua educação. Ao vê-lo ausente de casa por um par de anos, a
vizinha aproximou-se cautelosa de sua mãe, jurou sua amizade à família e
perguntou se havia algum problema com o rapaz. Se todos os seus colegui-
nhas aprenderam a ler, por que ele continuava na escola? Anos depois, Wadi
organizou a famosa Conferência de Jontiem, “Educação para Todos”, mas isso
é outro assunto. Para a vizinha libanesa, há os que sabem ler e há os que não
sabem. Não lhe ocorre que há níveis diferentes de compreensão. Mas infeliz-
mente temos todos o vício de subestimar as dificuldades na arte de ler, ou,
melhor dito, na arte de entender o que foi lido. Saiu da escola, sabe ler.

O ensaio de hoje é sobre cartas que recebi dos leitores da Veja, algumas
generosas, outras iradas. Não tento rebater críticas, pois minhas farpas atin-
gem também cartas elogiosas. Falo da arte da leitura. É preocupante ver a
liberdade com que alguns leitores interpretam os textos. Muitos se rebelam
com o que eu não disse (jamais defendi o sistema de saúde americano).
Outros comentam opiniões que não expressei e nem tenho (não sou contra
a universidade pública ou a pesquisa). Há os que adivinham as entrelinhas,

113
Lingüística III

ignorando as linhas. Indignam-se com o que acham que eu quis dizer, e não
com o que eu disse. Alguns decretam que o autor é um horrendo neoliberal
e decidem que ele pensa assim ou assado sobre o assunto, mesmo que o
texto diga o contrário.

Não generalizo sobre as epístolas recebidas algumas de lógica modelar.


Tampouco é errado ou condenável passar a ilações sobre o autor ou sobre as
conseqüências do que está dizendo. Mas nada disso pode passar por cima
do que está escrito e da sua lógica. Meus ensaios têm colimado assuntos
candentes e controvertidos. Sem uma correta participação da opinião pú-
blica educada, dificilmente nos encaminharemos para uma solução. Mas a
discussão só avança se a lógica não for afogada pela indignação.

Vale a pena ilustrar esse tipo de leitura com os comentários a um ensaio


sobre nosso sistema de saúde (abril de 1997). A essência do ensaio era a in-
viabilidade econômica e fiscal do sistema preconizado pela Constituição.
Lantejoulas e meandros à parte, o ensaio afirmava que a operação de um
sistema de saúde gratuito, integral e universal consumiria uma fração do PIB
que, de tão alta (até 40%), seria de implantação inverossímil.

Ninguém é obrigado a aceitar essa afirmativa. Mas a lógica impõe quais


são as possibilidades de discordar. Para destruir os argumentos, ou se mostra
que é viável gastar 40% do PIB com saúde ou é necessário demonstrar que as
contas que fiz com André Medici estão erradas. Números equivocados, erros
de conta, hipóteses falsas, há muitas fontes possíveis de erro. Mas a lógica
do ensaio faz com que só se possa rebatê-lo nos seus próprios termos, isto
é, nas contas.

Curiosamente, grande parte das cartas recebidas passou por cima desse
imperativo lógico. Fui xingado de malvado e desalmado por uns. Outros fu-
zilaram o que inferem ser minha ideologia. Os que gostaram crucificaram as
autoridades por negar aos necessitados acesso à saúde (igualmente equivo-
cados, pois o ensaio critica as regras e não as inevitáveis conseqüências de
sua aplicação).

Meus comentaristas escrevem corretamente, não pecam contra a ortogra-


fia, as crases comparecem assiduamente e a sintaxe não é imolada. Contudo,
alguns não sabem ler. Sua imaginação criativa não se detém sobre a aborreci-
da lógica do texto. É a vitória da semiótica sobre a semântica.

114
Análise retórica da argumentação

1. Identifique a tese defendida por Castro nesse texto.

2. A que auditório Castro se dirige nesse texto?

3. Identifique dois argumentos usados por Castro para a sustentação de sua tese.

115
A teoria da argumentação na língua

O estudo da argumentação no interior dos estudos da linguagem


segue duas grandes linhas, que podem, evidentemente, se subdividir em
tendências menores. A primeira é a abordagem retórica, que se apresenta
como a recuperação de várias noções da arte retórica, desenvolvidas na
Antigüidade. A Retórica Clássica tinha como objetivo instrumentalizar os
cidadãos para a defesa de seus interesses, de suas posições político-reli-
giosas, de seus direitos. Os discursos produzidos a partir das orientações
da retórica eram proferidos em espaços públicos, diante de uma audiên-
cia. Depois de períodos de valorização e ostracismo, essa abordagem res-
surgiu na metade do século XX, dando ênfase à interpretação dos vários
discursos argumentativos em circulação na modernidade.

A segunda tendência importante dos estudos da argumentação surge


no interior da Lingüística, a partir dos trabalhos de Oswald Ducrot, que
vem modificando e reelaborando sua teoria desde a dé­cada de 1970. Os
estudos desenvolvidos nessa vertente partem do pressuposto de que a ar-
gumentação está inscrita no funcionamento das línguas naturais, de que
não é algo externo à linguagem.

Nesta unidade, vamos apresentar alguns dos conceitos fundamentais


para essa abordagem da argumentação.

A contribuição de Oswald Ducrot


para o estudo da argumentação
O lingüista francês Oswald Ducrot tem uma ampla obra sobre a argu-
mentação nas línguas naturais. Sua teoria passou por várias reformula-
ções, na busca da formulação mais adequada para um princípio que ele
considera fundamental: a argumentação está inscrita no funcionamento
das línguas naturais.

A primeira formulação de sua teoria teve como ponto de partida a


observação de que todas as línguas dispõem de palavras que têm um
Lingüística III

valor argumentativo intrínseco. Ducrot defendia, neste primeiro momento, que


o valor argumentativo das palavras é responsável pela direção argumentativa
do discurso.

Suponha a seguinte situação: na saída de uma festa, um grupo de amigos


discute se Carlos, que dirigiu o carro na ida para o local do evento, deve assumir
de novo a direção na volta. A discussão parte de um consenso sobre a relação
entre beber e dirigir: quem tiver bebido muito não deve dirigir. Se Carlos tiver
consumido uma pequena quantidade de bebida, as duas frases abaixo podem
indicar esse fato:

(1) Carlos bebeu pouco.

(2) Carlos bebeu um pouco.

A escolha entre “pouco” ou “um pouco” tem conseqüências diferentes. A frase


(1) encaminha para a conclusão de que Carlos pode dirigir; já a frase (2) conduz
à conclusão de que ele não deve dirigir. Segundo Ducrot, essa diferença esta-
ria relacionada aos valores argumentativos diferentes das expressões “pouco” e
“um pouco”.

Para ele, as línguas dispõem de várias palavras que têm sentidos semelhantes
e podem ser usadas em contextos semelhantes, mas que têm valores argumen-
tativos diversos.

Outro exemplo são os adjetivos “econômico” e “avarento”. Essas palavras têm


sentidos semelhantes: ambas são adequadas para qualificar um indivíduo que
controla seus gastos. Mas enquanto o uso da palavra “econômico” está associado
a uma avaliação positiva, conduz a conclusões positivas sobre o indivíduo, o uso
de “avarento” conduz a uma conclusão negativa. Aceitamos perfeitamente que
um pai diga à filha: “Você deve se casar com Antônio, ele é um rapaz econômico”.
Mas acharíamos estranho se esse mesmo pai desse o seguinte conselho: “Você
deve se casar com Antônio, ele é um rapaz avarento”.

Esta primeira proposta formulada por Ducrot passou posteriormente por


várias revisões causadas pela dificuldade encontrada na descrição das expres-
sões argumentativas e também pela observação de contra-exemplos à hipótese
nuclear da proposta: de que o valor argumentativo esteja inscrito nas expressões
da língua. Os contra-exemplos mais significativos são os casos de frases em que
a mesma expressão argumentativa, usada para representar a mesma situação,
permite conclusões opostas.

118
A teoria da argumentação na língua

Os exemplos (3) e (4) contêm a mesma frase e referem-se ao mesmo fato:


a proximidade do fim de um jogo de futebol. Mas as frases podem conduzir a
conclusões opostas:

(3) Está quase no fim do segundo tempo. O jogo está mesmo perdido.

(4) Está quase no fim do segundo tempo. Ainda é possível reverter o


resultado.

A proposta de Ducrot de que as conclusões de uma afirmação seriam pre-


vistas pelas expressões lingüísticas foi reformulada a partir de casos como essas
duas frases. As conclusões apresentadas em (3) e (4) não dependem do uso de
“quase”, mas de um conjunto de informações contextuais. A afirmação “Está
quase no fim do segundo tempo” leva à conclusão “O jogo está mesmo perdido”
se for dita por um torcedor do time que está perdendo de três a zero. Mas pode
também levar à conclusão de que “ainda é possível reverter o resultado” se os
dois times estiverem empatados.

Exemplos como esse levam Ducrot a reformular sua teoria. O valor argu-
mentativo deixa de ser considerado uma propriedade da expressão lingüística
e passa a ser entendido como o ponto de vista de um enunciador. As diferentes
conclusões mostradas nas frases (3) e (4) são possíveis porque partem de enun-
ciadores que assumem pontos de vista diferentes. O torcedor do time que perde
por 3 x 0 argumenta a partir da seguinte correlação: quanto mais se aproxima o
fim do segundo tempo, menor a chance do time que perde reverter o resultado.
Já o torcedor do time que está empatado raciocina: a possibilidade de reverter o
resultado persiste até o final do jogo.

Pontos de vista diferentes permitem conclusões diferentes a partir da mesma


afirmação.

Nos trabalhos mais recentes, Ducrot analisa a argumentação na língua a partir


dos encadeamentos estabelecidos entre as proposições. Os elementos funda-
mentais para a análise da direção argumentativa são as expressões usadas para
esse encadeamento (mas, portanto, entretanto etc.) e a conclusão que o falante
assume. Observe as duas frases abaixo:

(5) Faz muito calor, portanto vamos para a praia.

(6) Faz muito calor, portanto vamos ficar em casa.

119
Lingüística III

As duas frases mostram conclusões diferentes relacionadas a um mesmo fato.


Só é possível perceber a direção da argumentação a partir da conclusão e da ex-
pressão usada para fazer o encadeamento.

Os três momentos da teoria da argumentação da língua que apresentamos


de forma muito resumida mostram algumas das questões que têm sido objeto
de reflexão para Ducrot, na busca de explicar como a argumentação está rela-
cionada com as expressões lingüísticas. Para esta rápida apresentação, tomamos
como ponto de partida o trabalho de Campos (2005).

A pressuposição
A noção de pressuposição é fundamental em toda a obra de Ducrot. Ele dis-
cutiu o estatuto da pressuposição de sua relação com as expressões lingüísticas
em vários momentos de sua obra.

O que é a pressuposição? Qualquer língua contém um conjunto de expres-


sões usadas para fazer simultaneamente afirmações explícitas e pressupostas.
Vejamos um exemplo.

(7) Pedro parou de fumar.

Essa frase contém duas afirmações, ou seja, pode ser desdobrada em um posto
e um pressuposto:

 Posto (aquilo que é afirmado explicitamente): Pedro parou de fumar.

 Pressuposto: Pedro fumava.

A frase (7) pode ser transformada em uma interrogação ou pode ser apresenta-
da de forma negativa. Em ambos os casos, a pressuposição permanece a mesma:

(8) Pedro parou de fumar?


Pressuposto: Pedro fumava.

(9) Pedro não parou de fumar.


Pressuposto: Pedro fumava.

Para Ducrot (1977, p. 77), a pressuposição corresponde a um ato de lingua-


gem particular. Segundo ele: “Pressupor não é dizer o que o ouvinte sabe ou o
que se pensa que ele sabe ou deveria saber, mas situar o diálogo na hipótese de
que ele já soubesse.”

120
A teoria da argumentação na língua

Essa condição pode ser observada nos vários tipos de construção que contêm
uma pressuposição. A aceitação do pressuposto é uma condição para a continui-
dade do diálogo. Se o interlocutor rejeitar o que lhe é apresentado como pressu-
posto, ele estará rejeitando o diálogo, polemizando com o falante. Suponha que
em vez de responder “sim” ou “não” à pergunta (8), alguém questione o pressu-
posto, dizendo: “Pelo que eu sei, Pedro nunca fumou”. A negação do pressuposto
cria uma situação constrangedora entre os falantes, pois equivale a criar uma
polêmica com o falante, a questionar o que ele supõe ser aceito como informa-
ção pacífica para a continuidade da interlocução, a considerá-lo mentiroso ou
mal informado.

Ducrot reconhece a existência de vários tipos de pressuposições, mas está


interessado particularmente nas pressuposições lingüísticas, aquelas que estão
ligadas à existência, na frase, de determinados morfemas.

O autor aponta três tipos de pressuposições lingüísticas: existenciais, verbais


e ligadas à construção da frase.

Pressuposições existenciais
O uso de expressões nominais precedidas por artigo definido está relaciona-
do à pressuposição de existência do indivíduo descrito:

(10) O técnico da seleção brasileira fez uma afirmação polêmica.

(11) O professor de Literatura Brasileira está doente.

As expressões “o técnico da seleção brasileira” e “o professor de Literatura


Brasileira” contêm artigos definidos. Essa característica formal faz com que os
enunciados (10) e (11) tenham como pressupostos a existência dos indivíduos
designados por essas expressões, de que o falante não está se referindo a seres
imaginários, mas a indivíduos reais.

Pressuposições verbais
Há um conjunto de verbos que são usados na construção de frases que
contêm pressupostos. Eis alguns deles: continuar, manter, deixar de, saber, igno-
rar, perceber, lamentar.

121
Lingüística III

Observe o uso de alguns desses verbos em frases que contêm uma


pressuposição:

(12) O preso continua dizendo que é inocente.


Pressuposto: O preso já disse antes que é inocente.

(13) Maria não sabe que seu irmão sofreu um acidente.


Pressuposto: O irmão de Maria sofreu um acidente.

Pressuposições ligadas à construção da frase


Às vezes, a forma como a frase é construída é responsável pela pressuposição.
É o que ocorre em frases que usam a expressão foi...que..., que contêm conjun-
ções subordinativas como antes que e depois que, ou que são introduzidas por
expressões adverbiais como mesmo, ainda, já, pelo menos.

É o que se observa nas frases (14) e (15):

(14) Foi Carlos que pegou o livro na biblioteca.


Pressuposição: Existe uma pessoa que pegou o livro na biblioteca.

(15) Depois que Maria se separou do marido, ela já teve vários namora-
dos.
Pressuposição: Maria se separou do marido.

O subentendido
Ducrot aponta a necessidade de se estabelecer uma diferença entre a pressu-
posição e o subentendido. Enquanto a pressuposição está vinculada às expres-
sões lingüísticas utilizadas e à forma de construção do enunciado, o subenten-
dido está relacionado às condições de uso dos enunciados, está ligado a uma
interpretação sobre as razões que levam alguém a fazer uma afirmação.

Suponha que alguém está conversando com um grupo de amigos em casa e


fala repentinamente:

(16) Já são dez horas.

Os interlocutores vão certamente refletir sobre as razões que levaram o dono


da casa a fazer essa afirmação. Provavelmente vão achar que o falante pretende
dizer que já é muito tarde e que é hora de irem embora. Essa conclusão (é tarde,

122
A teoria da argumentação na língua

é hora de ir embora) seria um subentendido à frase. O uso de subentendidos


deixa a responsabilidade de conclusão para o interlocutor. Tanto que o dono da
casa pode dizer que não pretendia sugerir que as visitas fossem embora, que
apenas se lembrou de que estava na hora de tomar um remédio, ou que perce-
beu que seu filho já deveria ter voltado para casa.

Koch (1987, p. 69) destaca as diferenças entre a pressuposição e o


subentendido:
A pressuposição é parte integrante do sentido dos enunciados; o subentendido, por sua vez,
diz respeito à maneira como este sentido deve ser decifrado pelo destinatário. Entendendo-
se o sentido como a maneira pela qual o enunciador apresenta o seu ato de enunciação, a
imagem que deseja impor ao destinatário pela sua tomada de palavra, a pressuposição deve
ser considerada um elemento do sentido. Dizer que pressuponho X é dizer que pretendo
obrigar, pela minha fala, o destinatário a admitir X, sem por isso lhe dar o direito de prosseguir
o diálogo a propósito de X. O subentendido, ao contrário, concerne ao modo como este
sentido é manifestado, ao processo no termo do qual o destinatário deve descobrir a imagem
da minha fala que eu pretendo lhe dar. O ponto comum entre ambos – o que na teoria antiga
era explicado como se tratasse de dois modos do implícito – diz respeito à possibilidade dada,
em ambos os casos, ao autor, de se retratar. No caso da pressuposição, esta retratação pode
ocorrer porque a informação pressuposta é colocada à margem do discurso, de modo que
o locutor não pode ser atacado a seu propósito, já que o discurso ulterior, o diálogo “ideal”
oferecido pelo enunciado portador do pressuposto, não pode recair sobre ele. No caso do
subentendido, em que o locutor apresenta sua fala como um enigma que cabe ao destinatário
resolver, o sentido, sempre considerado como um “retrato” da enunciação, é, então, um retrato
cuja responsabilidade o locutor deixa ao destinatário. (grifos no original)

Em síntese, o subentendido não é marcado por expressões lingüísticas, mas


está relacionado a uma interpretação de qual seria a intenção do falante ao fazer
uma afirmação. É uma estratégia discursiva que permite ao falante dar a entender
alguma coisa, mas sem assumir a responsabilidade de dizê-lo. É muito comum o
uso de subentendidos para dar ordens e fazer pedidos indiretamente:

(17) Você não está com frio?


Subentendido: Vá vestir um casaco.

(18) João parou de fumar.


Subentendido: Você também deveria parar.

(19) Estou com sede.


Subentendido: Vamos tomar alguma coisa?

Os operadores argumentativos
Os estudos de Ducrot destacam insistentemente a existência de valores ar-
gumentativos relacionados aos itens lexicais. Ele assume que todas as línguas

123
Lingüística III

dispõem de um conjunto de expressões que indicam que uma proposição é um


argumento para determinada conclusão. Essas expressões, que têm um funcio-
namento bem peculiar, são chamadas de operadores argumentativos. Há diver-
sos estudos sobre o funcionamento desses operadores no português. Vamos
aqui apresentar sinteticamente as características de quatro grupos de operado-
res. É uma exposição muito resumida, que focaliza apenas as propriedades mais
relevantes de um conjunto dos operadores, sem a preocupação da exaustivida-
de ou do aprofundamento na análise.

Operadores que assinalam a oposição


entre elementos explícitos ou implícitos
Há um conjunto de expressões no português usadas na construção de ar-
gumentos centrados na oposição. Essas expressões colocam duas proposições
em oposição e apontam qual delas corresponde ao ponto de vista do autor. Os
encadeamentos subseqüentes devem ser compatíveis com a proposição corres-
pondente à posição do enunciador. Os principais operadores desse grupo são:
mas, porém, contudo, embora, entretanto, no entanto.

Nesse conjunto, o mas é o mais estudado, o mais usado, aquele que seria o
protótipo do operador argumentativo de oposição. Mas coloca em contraponto
duas proposições, uma que pode ser atribuída a grupos de pessoas que assu-
mem posições diferentes do falante e outra que representa o ponto de vista do
autor. O ponto de vista do autor está contido na proposição introduzida pelo
mas e sempre ocupa a segunda posição no enunciado. Observe o uso desse ope-
rador nas frases abaixo:

(20) X é um político empreendedor, mas já foi alvo de muitas denúncias


de corrupção.

(21) X já foi alvo de muitas denúncias de corrupção, mas é um político


empreendedor.

Na frase (20), a afirmação introduzida pelo mas é desfavorável ao político e


leva a conclusões como: não vote em X, não confie em X, não dê apoio a X. Já em
(21), as proposições foram invertidas e as conclusões possíveis são opostas às
permitidas pela frase (20): vote em X, confie em X, dê apoio a X.

124
A teoria da argumentação na língua

O operador embora tem um funcionamento análogo a mas, apenas com inver-


são da formulação: a proposição introduzida por embora pode ser colocada na pri-
meira ou segunda posição e apresenta o ponto de vista rejeitado pelo enunciador.

(22) Embora X seja um político empreendedor, ele já foi alvo de muitas de-
núncias de corrupção. Conclusão: não vote em X.

(23) Embora X já tenha sido alvo de muitas denúncias de corrupção, ele


é um político empreendedor.
Conclusão: vote em X.

Os outros operadores que fazem a contraposição entre proposições – porém,


contudo, entretanto, no entanto – têm um funcionamento semelhante ao mas.

Operadores que indicam a hierarquia


dos elementos em uma escala
Há um conjunto de operadores argumentativos que estabelecem a hierarquia
dos elementos em uma escala. Conforme aponta Koch (1987, p. 106), esses ope-
radores dividem-se em dois grupos. Há os que indicam o argumento mais forte
para uma conclusão, como mesmo, até, até mesmo, inclusive; outros apontam o
argumento mais fraco para a conclusão, como ao menos, pelo menos, no mínimo.
Esses deixam implícito que existem argumentos mais fortes. Tomemos o mesmo
exemplo apresentado por Koch:

(24) Pedro é um político ambicioso, ele quer ser até presidente.

(25) Pedro é um político ambicioso, ele quer ser pelo menos prefeito.

Nas frases (24) e (25) as proposições que contêm os operadores até e pelo
menos apresentam argumentos para a conclusão Pedro é um político ambicio-
so. Na frase (24), foi apresentado o argumento mais forte: o máximo da ambi-
ção de um político no Brasil seria tornar-se Presidente da República. Na frase
(25) foi escolhido o argumento mais fraco, com a indicação de que poderia
haver outros mais fortes: pelo menos prefeito, mas com a pretensão de outros
cargos mais altos na escala: deputado estadual, deputado federal, senador,
presidente.

125
Lingüística III

Operadores orientados para a afirmação plena ou


para a negação plena
Quando a argumentação está orientada para a afirmação plena (tudo, todos)
ou da negação plena (nada, nenhum), há alguns operadores usados para a apre-
sentação dos argumentos. Os argumentos usados para mostrar a aproximação da
afirmação plena podem ser introduzidos por operadores como muito, muitíssimo,
bastante, quase. A aproximação da negação plena, por sua vez, pode ser introdu-
zida pelos operadores: pouco, bem pouco, pouquíssimo, quase nada, apenas.

As frases abaixo exemplificam o uso de argumentos orientados para a afirma-


ção plena (26) e para a negação plena (27):

(26) Muitos alunos compareceram à conferência: quase 90%.

(27) Poucos alunos foram reprovados: apenas 4%.

A frase (26) mostra uma argumentação encaminhada em direção à totalidade


plena. Para mostrar o sucesso da conferência, o comparecimento da quase tota-
lidade dos alunos é enfatizada por dois operadores: muitos e quase. A frase (27),
por sua vez, encaminha a argumentação no sentido de mostrar baixo índice de
reprovação e, portanto, o sucesso da disciplina cursada pelo grupo de alunos. A
argumentação está orientada para a negação plena e é apresentada por meio
dos operadores argumentativos poucos e apenas.

Operadores usados para a introdução de um argu-


mento decisivo
Há algumas expressões que são usadas para introduzir um argumento deci-
sivo, que apresentam um argumento como se fosse o golpe final na argumenta-
ção, como se não fosse necessário dizer mais nada. É o caso dos operadores aliás
e além do mais. É o que se observa no exemplo (28):

(28) Nosso time vai ser campeão novamente. Aliás, isso não é novidade
nenhuma, depois da seqüência de vitórias das últimas semanas.

Nesse exemplo, o operador aliás introduz o argumento da seqüência de vitó-


rias do time como se este fosse desnecessário, como se não houvesse necessida-
de de justificar a afirmativa de que o time vai ser campeão novamente.

126
A teoria da argumentação na língua

Conclusão
Mostramos neste capítulo uma das vertentes do uso da argumentação. Os
trabalhos de Oswald Ducrot mostram que há uma série de características do
funcionamento das línguas naturais que permitem aos falantes fazer afirmações
indiretamente. O uso de frases que contenham pressuposições permite que afir-
mações não ditas explicitamente tenham de ser aceitas como verdades pelos in-
terlocutores como condição para a continuidade do diálogo. O uso de frases com
intenções subentendidas permite ao falante se esquivar da responsabilidade de
fazer explicitamente afirmações que lhe possam provocar algum desgaste.

Mostramos ainda que as línguas dispõem de um conjunto de expressões, que


Ducrot caracterizou como operadores argumentativos, que são usados para in-
dicar a direção da argumentação.

Todos os fatos apresentados confirmam a afirmação central do trabalho de


Ducrot: a argumentação está inscrita no funcionamento das línguas naturais.

Texto complementar

Algumas reflexões sobre o ensino da leitura


(KOCH, 1987, p. 160-162)

O ensino de leitura assume, nas aulas de língua materna, particular rele-


vância. Conforme postula Paulo Freire, o aluno necessita ser preparado para
tornar-se o sujeito do ato de ler.

Para tanto, é preciso que ele se torne apto a apreender a significação pro-
funda dos textos com que se defronta, capacitando-se a reconstruí-los e a
reinventá-los.

Ao professor cabe a tarefa de despertar no educando uma atitude crítica


diante da realidade em que se encontra inserido, preparando-o para “ler o
mundo”: a princípio, o seu mundo, mas, daí em diante, e paulatinamente,
todos os mundos possíveis.

127
Lingüística III

Assim, nas aulas de leitura, é importante conscientizar o aprendiz da exis-


tência, em cada texto, de diversos níveis de significação. Isto é, cumpre mos-
trar-lhe que, além da significação explícita, existe toda uma gama de signi-
ficações implícitas, muito mais sutis, diretamente ligadas à intencionalidade
do emissor. É nesse nível que se revelam os tipos de atos que deseja realizar
através do texto, os efeitos que pretende produzir no leitor, sua atitude pe-
rante os estados de coisas a que o texto remete, seu maior ou menor grau
de engajamento com relação aos enunciados que produz, a maneira, enfim,
como representa a si mesmo, ao outro e ao mundo por meio da linguagem.

Desse modo, a atividade de interpretação do texto deve sempre fundar-se


na suposição de que o emissor tem determinadas intenções e de que uma de-
codificação adequada exige justamente a captação dessas intenções por parte
de quem lê: é preciso compreender-se o querer dizer como um querer fazer.

Como se sabe, cada texto abre a perspectiva de uma multiplicidade de


interpretações ou leituras: se, conforme se disse, as intenções do emissor
podem ser as mais variadas, não teria sentido a pretensão de se lhe atribuir
apenas uma interpretação, única e verdadeira. A intelecção de um texto con-
siste na apreensão de suas significações possíveis, as quais se representam
nele, em grande parte, por meio de marcas lingüísticas. Tais marcas funcio-
nam como pistas dadas ao leitor para permitir-lhe uma decodificação ade-
quada: a estrutura da significação, em língua natural, pode ser definida como
o conjunto de relações que se instituem na atividade da linguagem entre in-
divíduos que a utilizam, atividade essa que se inscreve sistematicamente no
interior da própria língua.

Portanto, para que possa chegar a uma intelecção mais aprofundada


do texto, o educando precisa ser preparado para reconhecer essas marcas.
Entre elas, podem-se citar, a título de exemplo: os tempos e modos verbais; o
posto, o pressuposto e o subentendido; as modalidades (lógicas, avaliativas,
deônticas); a topicalização e, na linguagem falada, a entonação (representa-
da, em parte, pela pontuação na escrita); os diversos tipos de referência ana-
fórica, destacando-se aquela que se faz por meio de expressões referenciais
definidas; os itens lexicais que funcionam como operadores argumentativos
(ou operadores de discurso); a maneira como o emissor inter-relaciona, no

128
A teoria da argumentação na língua

texto, diversos campos lexicais, de maneira a produzir novas significações;


certas redundâncias intencionais; recursos gráficos e estilísticos de valor
argumentativo.

O aluno deve ser alertado para o fato de que a maioria dessas marcas está
inserida na própria gramática das várias línguas, isto é, de que a argumen-
tatividade – possibilidade de, através de certos sinais, levar o interlocutor a
determinados tipos de conclusão, com exclusão de outras, é algo inerente à
própria língua, e não algo acrescentado a posteriori, em determinadas situa-
ções específicas de comunicação.

É preciso, pois, mostrar ao educando que as pistas que lhe são oferecidas
no texto tornam possível não só reconstruir o evento da sua enunciação, no
sentido de permitir-lhe apreender a intencionalidade subjacente ao texto,
como também recriá-lo a partir de sua vivência, de seu conhecimento e de
sua visão de mundo.

Importante é o aprendiz notar que cada nova leitura de um texto lhe per-
mitirá desvelar novas significações, não detectadas nas leituras anteriores.
Esse fato poderá, inclusive, servir-lhe de motivação, despertando-lhe maior
gosto pela leitura ao perceber que, pela reconstrução que ele próprio faz do
texto, acaba por recriá-lo, tornando-se, por assim dizer, o seu co-autor.

Ainda mais: no momento em que o educando se tornar capaz de desco-


brir tudo aquilo que se encontra, de algum modo, implicitado no texto, em
seus diversos níveis de significação, ser-lhe-á mais fácil fugir da manipulação,
ou seja, reconhecer as manobras discursivas realizadas pelo emissor, com o
intuito de conduzi-lo a uma determinada interpretação ou obter dele deter-
minados tipos de comportamento.

O conjunto de todas essas habilidades – além de outras que não foram


aqui mencionadas – constitui a competência de leitura, parte da competência
textual do ser humano, que envolve tanto a competência lingüística stricto
sensu, quanto a competência comunicativa. Desenvolvendo a sua compe-
tência de leitura, o aluno – não só nas aulas de leitura, como também fora
delas – deixará de ser um elemento passivo e passará a participar, como su-
jeito ativo, do ato de ler. (grifos no original)

129
Lingüística III

Estudos lingüísticos
1. Identifique o posto e o pressuposto em cada uma das frases abaixo:

a) Onde você escondeu a arma do crime?

b) Meu carro continua com problema no motor.

c) Lamento não aceitar seu convite.

d) O gerente do banco percebeu que havia desvio de dinheiro na agência.

e) Não sei se Antônio parou de se endividar.

2. A revista Veja apresentou uma reportagem sobre a descoberta da reserva de


petróleo da área de Tupi com o seguinte texto:

“O governo anuncia que a Petrobras achou muito petróleo à profundidade


de quase um Everest abaixo da superfície.” (Veja, 14 nov. 2007, p. 80)

130
A teoria da argumentação na língua

Observe o uso do operador argumentativo quase nessa notícia. Qual é a dire-


ção argumentativa criada pelo repórter mediante o uso desse operador?

3. Suponha que os diretores de uma transportadora que faz entregas na área


urbana estejam discutindo a contratação de uma candidata ao cargo de
motorista.

Diretor A: Ela tem um bom conhecimento da cidade e dirige muito bem,


mas é mulher.

Diretor B: Tudo bem, é mulher, mas é excelente motorista e conhece bem


a cidade.

Qual dos diretores defende a contratação da funcionária? Que marcas lingü-


ísticas revelam a posição dos dois diretores?

131
Teoria da informação

O objetivo deste capítulo é apresentar algumas contribuições da teoria


da informação para os estudos lingüísticos. Para tanto, começaremos com
uma apresentação de dois conceitos fundamentais – informação e redun-
dância – que são incorporados e adaptados às várias áreas do conheci-
mento que se utilizam dos conceitos oriundos da teoria da informação:
engenharia, informática, comunicação, entre outras.

Em seguida, apontaremos alguns usos que a Lingüística faz desses


conceitos para o estudo das línguas naturais. Finalmente, daremos ênfase
à contribuição mais significativa dos conceitos de informação e redundân-
cia para a Lingüística, que foi a incorporação da informatividade como um
dos critérios nucleares para a construção/interpretação de textos. Mos-
traremos como Beaugrande e Dressler (1983) propõem a aplicação dos
conceitos de informação e redundância para o estudo do texto e como Val
(1991) usa a informatividade como um critério fundamental para a avalia-
ção da produção escrita de estudantes.

Informação X redundância
O ponto de partida para a formulação dos conceitos de informação e
redundância é a identificação dos elementos presentes em qualquer situ-
ação comunicativa. A teoria da comunicação representa esses elementos
em um esquema clássico, representado no diagrama abaixo:

Elementos do processo de comunicação

(Código)

Emissor Canal Recebedor

Mensagem
Lingüística III

Esse esquema mostra que a comunicação supõe necessariamente pelos


menos dois indivíduos, um que produz uma mensagem (o emissor), outro a
quem a mensagem é endereçada (o recebedor). É claro que a posição de emissor
e especialmente a de recebedor podem ser ocupadas por grupos de indivíduos.
Um programa de televisão, por exemplo, é normalmente produzido por uma
equipe, ou seja, por um emissor coletivo e, dependendo da audiência do canal
em que tal programa é veiculado, pode ter milhões de recebedores.

Para que a mensagem seja recebida por aqueles a quem se destina, uma pri-
meira condição é que ela seja codificada, quer dizer, que seja representada em
um sistema simbólico conhecido tanto pelo emissor quanto pelo recebedor. As
línguas naturais são, evidentemente, os sistemas simbólicos mais usados para a
comunicação, são “o código” por excelência. Além das línguas naturais, estamos
familiarizados também com vários outros códigos:

 sinais de trânsito;

 imagens usadas, por exemplo, na publicidade, com combinação de dese-


nhos, fotos e cores;

 linguagem gestual como se vê na Linguagem brasileira de sinais (Libras) –


usada na comunicação com surdos-mudos;

 gestos que têm o significado compartilhado pelos membros da socieda-


de: polegar erguido (positivo) ou voltado para baixo (negativo); mão aber-
ta (espere), entre outros;

 linguagem matemática;

 sons musicais.

Para exemplificar o funcionamento do processo de comunicação, imagine a


seguinte situação: suponha que você esteja andando pela rua e perceba que
alguém que caminha a seu lado deixou cair um celular e continuou andando
sem se dar conta da perda. Numa situação como esta, você, naturalmente, vai
chamar a atenção da pessoa que perdeu o aparelho e vai se comunicar com ela,
estabelecer um contato a fim de informá-la sobre a perda do aparelho.

As condições para que você seja bem-sucedido nessa tentativa de comunica-


ção estão representadas no esquema do processo da comunicação. Você está na
posição de emissor e a pessoa que deixou cair o celular é o recebedor. O contato
entre ambos é feito pela comunicação face a face, já que vocês se encontram
suficientemente próximos para que as ondas sonoras produzidas quando você
134
Teoria da informação

dirige a palavra ao seu interlocutor sejam ouvidas por ele, sem a necessidade de
nenhum recurso tecnológico. O canal é essa comunicação direta, frente a frente.
Para enviar a mensagem ao recebedor, você precisa codificá-la, representá-la em
um sistema lingüístico ou em algum outro sistema simbólico.

Suponha que você diga: “Olhe aqui, amigo, você deixou seu celular cair!”.
Uma condição para que a comunicação se efetive (que a mensagem codificada
lingüisticamente por você seja decodificada por seu interlocutor) é que vocês
conheçam a mesma língua (o mesmo código). Caso ele não fale português, você
terá de lançar mão de alguma forma alternativa de codificação de sua mensa-
gem: usar mímicas, por exemplo. Você pode mostrar-lhe o celular, apontar para
o local onde o aparelho caiu, fazer gestos representando essa queda.

A informação é uma propriedade da mensagem. No exemplo citado, você


emite uma mensagem que contém uma informação considerada relevante para
o recebedor: você comunica-se com ele para informá-lo de que ele deixou cair
o celular. Sua mensagem, no caso, transmite ao recebedor uma informação que
ele não conhecia previamente.

A avaliação da informação nas mensagens é extremamente relevante em


várias áreas. Basta pensarmos que todo o desenvolvimento da tecnologia digital
e da informática se dá a partir da descoberta do volume de informações que
podem ser transmitidas ou armazenadas em um sistema binário. O interesse da
engenharia e da informática pela informação está focado em seu tratamento
quantitativo. Para essas áreas, é importante fazer a distinção entre as informa-
ções que são enviadas/armazenadas uma única vez e as que são redundantes,
que são enviadas/armazenadas mais de uma vez ou que podem ser deduzidas
de outras.

A redundância não é necessariamente um defeito na mensagem. Como não


existe forma de transmissão/armazenamento que seja totalmente segura, é in-
teressante que dados importantes sejam registrados mais de uma vez. Se con-
siderarmos a comunicação do ponto de vista do receptor, temos de levar em
conta que qualquer pessoa tem momentos de oscilação entre prestar bastante
atenção ao que ouve ou lê e se distrair, ler ou ouvir de forma desatenta. Assim,
a redundância na informação é interessante, pois ajuda na fixação daquilo que
é relevante.

A publicidade explora até o limite a redundância, a repetição, de maneira que


o público-alvo grave suas mensagens na memória. Telenovelas e outros progra-
mas televisivos também usam o recurso de apresentar a mesma informação re-

135
Lingüística III

petidas vezes, para atingir um público que supostamente está com a atenção
dividida entre a telinha e outros apelos do ambiente doméstico.

Contribuições da teoria da informação


para o estudo das línguas
As noções de informação e redundância são incorporadas por várias áreas da
Lingüística. Uma das aplicações desses conceitos pode ser vista na semântica,
quando se procura caracterizar as propriedades do significado dos itens lexicais.
Observe o seguinte exemplo:

(1) Cledir é pai de Camila.

A definição do significado da palavra “pai” vai enfatizar aquilo que é funda-


mental: “Homem que deu origem a outro ser humano”. Na frase acima, afirma-
se diretamente que a relação entre Cledir e Camila é de paternidade. Mas há
também uma série de outras informações que podem ser inferidas a partir da
afirmação de que Cledir é pai:

(1’) Cledir é um indivíduo do sexo masculino.

(1”) Cledir é um adulto.

Essas são informações redundantes. A semântica procura identificar as infor-


mações fundamentais associadas ao significado das palavras e apontar também
informações redundantes, que podem ser deduzidas das fundamentais.

Os estudos de estilística chamam a atenção para os usos de expressões que


contêm redundâncias desnecessárias, taxando-as de pleonasmos viciosos. Veja
alguns exemplos:

 subir para cima;

 entrar para dentro;

 Brigadeiro da Aeronáutica;

 amanhecer o dia;

 continuar a permanecer;

 conviver junto;

136
Teoria da informação

 em duas metades iguais;

 empréstimo temporário;

 escolha opcional;

 fato real.

No estudo dos sistemas fonológicos das línguas, observa-se também a pre-


ocupação em distinguir as características articulatórias que têm um caráter dis-
tintivo no sistema de uma língua (contêm informação nova) e aquelas que são
redundantes, que podem ser inferidas a partir das informações distintivas.

Tomemos como exemplo o sistema vocálico do português, que contém um


conjunto de vogais anteriores (/ /, / /, / /), uma vogal central (/ /) e um conjunto
de vogais posteriores (/ /, / /, / /), cinco das quais podem ter também uma re-
alização nasal: (/ /, / /, / /. / /, / /). Ao analisar as propriedades articula-
tórias desse conjunto de vogais, observa-se que algumas são produzidas com o
arredondamento dos lábios, outras sem esse arredondamento. Todas as vogais
posteriores do português são realizadas com o arredondamento dos lábios. De
forma complementar, todas as que não são posteriores (anteriores e central) são
pronunciadas sem o arredondamento dos lábios.

Ao fazer a análise dos traços distintivos usados para caracterizar o conjunto


de vogais do português, os traços que indicam a posição da língua [+ posterior]
X [– posterior] são relevantes e fornecem uma informação fundamental para
fazer a distinção entre todos os fonemas vocálicos da língua. Mas o traço que
corresponde à posição arredondada ou retraída dos lábios é uma informação
redundante. Todas as vogais posteriores são também arredondadas e as não
posteriores são também não-arredondadas. Assim, na análise do sistema vocá-
lico do português, o traço que representa a posição da língua é distintivo (apre-
senta um alto grau de informatividade) enquanto o que representa a posição
dos lábios é redundante e pode ser deduzido a partir da característica da vogal
quanto à posterioridade:

[– posterior] → [– arredondado]
Vogais do português
[+ posterior] → [+ arredondado]

Uma das aplicações mais produtivas dos conceitos de informação e redun-

137
Lingüística III

dância nos estudos lingüísticos foi a introdução do conceito de informatividade


como um dos fatores nucleares para a avaliação de textos. O ponto de partida
para esse uso dos conceitos de informação e redundância é o trabalho de Beau-
grande e Dressler (1983). Esse livro serviu de base para o conhecido estudo de
Val (1991) sobre um conjunto de redações produzidas no vestibular da UFMG
por candidatos ao curso de Letras.

A informatividade como fator de textualidade


Beaugrande e Dressler (1983) conceituam texto como uma ocorrência comu-
nicativa, que pode ser avaliada segundo sete critérios de textualidade. Os dois
primeiros critérios estão centrados no texto: coesão e coerência; os outros cinco
estão centrados nos usuários: informatividade, situacionalidade, intertextualida-
de, intencionalidade e aceitabilidade (FAVERO, 1985, p. 15). Vamos nos concen-
trar aqui na discussão da informatividade. Aqueles que tiverem interesse em ter
mais informações sobre o conjunto de fatores de textualidade podem consultar
o livro Redação e Textualidade (Val, 1991), que faz uma boa apresentação dos
sete critérios de textualidade e de seu uso para a avaliação de textos.

A informatividade de um texto diz respeito ao fato de os elementos contidos


em um texto serem esperados ou inesperados, conhecidos ou desconhecidos
por parte dos receptores. Trata-se de uma questão de grau: em geral os textos
não são avaliados como “informativo X não informativo”, mas como apresentan-
do um grau maior ou menor de informatividade. Para exemplificar esse conceito,
Favero (1985, p. 15-16) toma como ponto de partida o verbete “água” em uma
enciclopédia, que é iniciado com a seguinte afirmação:

(2) A água é a substância mais comum na Terra.

Essa afirmação tem um grau de informatividade baixíssimo, ou seja, o que se


afirma aí não apresenta novidade alguma para a maioria dos leitores.

Mas a continuidade do mesmo verbete apresenta um volume considerável


de informações novas e inesperadas, ou seja, apresenta um grau de informativi-
dade bem mais alto do que a frase inicial:

(3) A água não é apenas a substância mais comum na Terra, mas


também uma das mais singulares. Nenhuma outra substância pode
fazer tudo o que a água é capaz de realizar. A água compõe-se de pe-
quenas partículas chamadas moléculas. Uma gota de água contém

138
Teoria da informação

muitos milhões de moléculas. Cada molécula, por sua vez, consiste


de partículas menores ainda, chamadas átomos. As moléculas de
água são compostas de átomos de hidrogênio e de oxigênio.
Até a mais pura das águas contém outras substâncias além dos sim-
ples hidrogênio e oxigênio. Por exemplo, a água contém porções
ínfimas de deutério, um átomo de hidrogênio que pesa mais do que
o átomo ordinário do hidrogênio.

Se observarmos o verbete da enciclopédia juntando seu início transcrito em


(2) e o restante, apresentado em (3), veremos que para o leitor típico de uma en-
ciclopédia, que não é especialista em química, o texto apresenta um equilíbrio
entre informações conhecidas e informações novas. Ou seja, apresenta um nível
médio de informatividade, que é o nível ideal para que o leitor não tenha dificul-
dades na interpretação do texto.

Beaugrande e Dressler (1983) propõem três ordens de informatividade, que


apresentamos esquematicamente a seguir.

(Favero, 1985, p. 14-16; Val, 1991, p. 14. Adaptado.)


Ordens de informatividade

Características Problemas de interpretação

Os textos que se restringem à primeira ordem


de informatividade são pouco interessantes.
Primeira ordem → no plano conceitual, pre- Para se tornarem aceitáveis, é necessário
sença de informações altamente previsíveis; atribuir um sentido novo ao lugar comum, de
no plano formal, predominância do lugar co- forma que possam se tornar mais informati-
mum. vos, ser alçados à segunda ordem de informa-
tividade.
↓↓↓

Para os falantes, o texto ideal se coloca em


Segunda ordem → no plano conceitual, pre- um nível médio de informatividade: as infor-
sença de informações pouco previsíveis; no mações conhecidas permitem que o leitor o
plano formal, uso de construções que apre- enquadre em seus conhecimentos prévios;
sentem alguma originalidade. as informações novas garantem o interesse, o
envolvimento do leitor.

↑↑↑
Textos totalmente inusitados tendem a ser
Terceira ordem → no plano conceitual, pre- rejeitados pelo leitor, que não consegue
sença de informações inteiramente inusita- processá-los. Para serem interpretados, são
das; no plano formal, construções totalmente necessárias explicações que acrescentem
originais. informações conhecidas e permitam que o
texto passe à segunda ordem de informativi-
dade.

139
Lingüística III

Há textos que se enquadram na primeira ordem de informatividade, o que


se justifica pela intencionalidade e situacionalidade. É o caso, por exemplo, dos
sinais de trânsito e dos avisos variados que orientam nosso comportamento em
locais públicos:

 Pare;

 Pare fora da pista;

 Curva acentuada à direita;

 É proibido fumar;

 Saída;

 Acesso restrito;

 Proibido banho e pesca.

São avisos apresentados de forma padronizada, que têm o objetivo de trans-


mitir informações relevantes, como a topografia da estrada, que pode apresen-
tar riscos ao motorista, ou as normas de comportamento esperadas no local.

Mas há também situações em que o leitor espera textos com um grau médio
de informatividade e se vê frustrado diante de produções que apresentam
apenas amontoados de lugares comuns. Isso pode ser observado na seguinte
redação de um vestibulando da UFMG:

Violência social
(VAL, 1991, p. 92)

A sociedade atual está muito marginalizada. Há tanta violência no mundo,


tantas guerras, desavenças, tudo por ambição, egoísmo.

A marginalização é total. Todos se agridem, se matam na luta pela sobre-


vivência, a procura de um mundo melhor, de uma vida mais calma, só que
estão fazendo o contrário, causando mais guerras e mais desunião.

A fome e a miséria são umas das causas da nossa marginalização, fazendo


com que os homens se matam pela sobrevivência. É o “pão nosso de cada
dia”. Os analfabetos, os deficientes físicos ou mentais e principalmente o
“menor abandonado”, todos eles e mais outros estão por aí à procura de uma

140
Teoria da informação

mão, de um coração aberto e só encontram portas fechadas não permitindo


que eles vivam.

Na época em que vivemos, todos nós precisamos é de paz, amor e não o


que está acontecendo. O homem está se tornando cada vez mais escravo do
seu egoísmo, do seu ódio e de sua ambição, está acabando com o amor, não
deixando-o florescer em seu coração.

Só o amor constrói. Vamos! Plante uma flor e faça germinar em seu cora-
ção, criando verdadeiras, fortes e férteis raízes.

Em seu estudo sobre as redações produzidas por candidatos ao curso de


Letras da UFMG, Costa Val chama a atenção para a baixa informatividade desse
texto, para sua construção centrada na repetição de uma série de chavões:
O texto é exemplo da abordagem lírica e pueril do tema, muito freqüente entre as redações
analisadas. Introduz o assunto apontando a generalização da violência no mundo, desenvolve-o
contrapondo o ideal (um mundo melhor, uma vida mais calma) à realidade social (a fome, a miséria,
o menor abandonado) e conclui afirmando que só o amor constrói e que, portanto, a maneira de o
homem encontrar paz, amor e acabar com seu egoísmo, seu ódio, sua ambição é plantar uma flor e
fazê-la germinar em seu coração. Corresponde a uma análise simplista da realidade, fruto da não-
penetração nos problemas e da generalização apressada. (VAL, 1991, p. 93)

Um texto como o que foi apresentado e comentado acima não apresenta afir-
mação alguma que consiga atrair o leitor, apresentar-lhe alguma dificuldade de in-
terpretação. Textos com grau muito baixo de informatividade tendem a ser rejeita-
dos por serem desinteressantes, por não trazerem novidade alguma para o leitor.

No oposto da escala estão os textos cuja interpretação exige do leitor um


esforço para conseguir integrar as informações nele contidas em esquemas de
interpretação da realidade que façam parte do seu conhecimento prévio. Tome-
mos um exemplo da literatura. William Faulkner inicia o romance O Som e a Fúria
com o seguinte parágrafo:
Do outro lado da cerca, pelos espaços entre as flores curvas, eles estavam tacando. Eles foram
para o lugar onde estava a bandeira e eu fui seguindo junto à cerca. Luster estava procurando
na grama perto da árvore florida. Eles tiraram a bandeira e aí tacaram outra vez. Então puseram
a bandeira de novo e foram até a mesa, e ele tacou e o outro tacou. Então eles andaram, e eu fui
seguindo junto à cerca. Luster veio da árvore florida e nós seguimos junto à cerca e eles pararam
e nós paramos e eu fiquei olhando através da cerca enquanto Luster procurava na grama.

Quem inicia a leitura do romance tem dificuldade em enquadrar a narrativa


desse parágrafo em um conjunto de conhecimentos prévios. Só depois de ler
um número significativo de páginas, conseguirá reunir as informações necessá-
rias para passar o texto da terceira para a segunda ordem de informatividade. Só
141
Lingüística III

conseguirá fazer isso quando reunir pistas suficientes para perceber que o autor
representa aí o relato de um jogo de golfe do ponto de vista de uma persona-
gem com retardo mental. Para interpretar esse trecho, é necessário que o leitor
consiga elaborar um quadro a partir do qual as informações do parágrafo se in-
tegrem em um todo coerente, ou seja, é necessário que o texto seja rebaixado
para a segunda ordem de informatividade.

Fontes de expectativa para a avaliação da infor-


matividade
Segundo Beaugrande e Dressler (1983), os interlocutores avaliam a informa-
tividade de qualquer texto a partir de um conjunto de fatores, ou de fontes de
expectativas que direcionam o processo de interpretação. Eles apontam cinco
fontes de expectativas, conforme ressalta Favero (1985, p. 18-19).

1.ª fonte de expectativas – o mundo real e seus fatos


O mundo real é a primeira fonte para as crenças subjacentes à comunicação
textual. Podemos produzir e interpretar muitos textos não-factuais, mas o ponto
de orientação para a interpretação é usualmente o mundo real; para passar a
uma interpretação não-factual, o leitor precisa encontrar sinais explícitos no
texto.

Ao interpretar qualquer texto, alguns pressupostos são assumidos para qual-


quer mundo textual. Veja alguns exemplos: as causas têm efeitos; alguma coisa
não pode ser falsa e verdadeira ao mesmo tempo e sob as mesmas circunstân-
cias; tampouco pode ser simultaneamente existente e inexistente; os objetos
têm massa e volume.

2.ª fonte de expectativas – organização da


linguagem no texto – as convenções formais
Ao encontrar no texto seqüências de letras que correspondem a seqüên-
cias de sons impronunciáveis na língua, os falantes reconhecem abreviaturas
de formas mais longas. É o que se observa com o uso de formas como Sr., Sra.,
Ltda.
142
Teoria da informação

3.ª fonte de expectativas – técnicas de arranjos de


seqüências, de acordo com a informatividade
Na organização das frases, os elementos altamente informativos tendem a
aparecer no fim das frases, enquanto os elementos de baixa informatividade
tendem a aparecer no começo ou serem substituídos por pronomes ou ainda
omitidos por elipse. Essas técnicas refletem o equilíbrio entre manter um ponto
de orientação bem claro no texto e garantir um nível razoavelmente alto de
informatividade.

4.ª fonte de expectativas – tipos de texto


Os tipos de texto controlam as opções a serem utilizadas. A seleção lexical, as
estruturas sintáticas, a organização dos parágrafos são diferentes conforme se
trate de um texto poético ou de um texto jornalístico, por exemplo.

5.ª fonte de expectativas – o contexto imediato


O contexto em que um texto é produzido e interpretado pode modificar
sensivelmente as expectativas delineadas pelas quatro fontes indicadas ante-
riormente. Pode-se tomar como exemplo a interpretação dos textos de compo-
sitores de MPB como Chico Buarque de Holanda produzidos durante o regime
militar. As informações contextuais são relevantes para a interpretação de várias
canções compostas nesse período.

Conclusão
Mostramos neste capítulo como os conceitos de informação e redundância,
fundamentados na Teoria da Informação, tornaram-se instrumentos para algu-
mas áreas dos estudos lingüísticos. Observa-se um primeiro uso desses conceitos
na formulação do conceito de traços tanto na fonologia quanto na semântica.

Procuramos dar ênfase ao uso mais produtivo desses conceitos, ou seja, na


incorporação do conceito de informatividade pela Lingüística Textual como um
dos fatores fundamentais para a produção/interpretação de textos, ao lado da
coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade e intertex-

143
Lingüística III

tualidade. O uso do conceito de informatividade pela Lingüística Textual é um


instrumento importante para explicar por que determinados textos são rejeita-
dos por sua obviedade, outros são aceitos sem restrições e alguns só são interpre-
tados a partir de um esforço excepcional por parte do leitor.

Texto complementar

Redação e textualidade
(VAL, 1991, p. 30-33)

Critérios para a análise da informatividade


A informatividade é entendida pelos estudiosos como a capacidade do
texto de acrescentar ao conhecimento do recebedor informações novas e
inesperadas. Neste trabalho, esse termo é entendido como a capacidade
que tem um texto de efetivamente informar seu recebedor. Não é tomado
apenas como um sinônimo de originalidade, mas ganha outra acepção.

Por um lado, no que tange à necessidade de imprevisibilidade, o conceito


foi ampliado e passou a abranger o aspecto mais geral do fator intertextua-
lidade, na medida em que se tomou como informação conhecida e previsí-
vel a voz do senso comum, da ideologia dominante, presente nas redações
estudadas. Por outro lado, o termo passou a recobrir a exigência do que se
chamou suficiência de dados, na medida em que se considerou que, para ser
informativo, o texto, além de se mostrar relativamente imprevisível, precisa
apresentar todos os elementos necessários à sua compreensão, explícitos ou
inferíveis das informações explícitas.

Para avaliar a imprevisibilidade, Beaugrande e Dressler (1983, p. 140-141)


propõem uma escala de três ordens, aplicável (e efetivamente aplicada) pelo
falante comum. Na primeira ordem os autores enquadram as ocorrências de
elevada previsibilidade e, conseqüentemente, baixa informatividade, como
os clichês e estereótipos, as frases feitas, as afirmações sobre o óbvio. Os
textos que não ultrapassam esse patamar, ainda que dotados de coerência
e coesão, resultam pragmaticamente ineficientes, porque desprovidos de
interesse. Na segunda ordem ficam as ocorrências em que o original e o pre-

144
Teoria da informação

visível se equilibram, angariando boa aceitabilidade, porquanto apresentam


novidade sem provocar estranheza. São de terceira ordem as ocorrências que,
aparentemente pelo menos, não figuram no leque de alternativas possíveis
e que, por isso mesmo, desorientam, ainda que temporariamente, o recebe-
dor. Postulam os autores que, na comunicação efetiva, o processamento dos
textos se faz através do alçamento para a segunda ordem das ocorrências
de baixa informatividade e do rebaixamento, também para essa ordem me-
diana, daquelas que provocam estranheza, de modo a atribuir sentido tanto
a umas quanto a outras. Assim, no todo textual, o óbvio ganhará razão de
ser e o inusitado se explicará, passando a ter, um e outro, rendimento eficaz
dentro do texto. O discurso em que esse processamento, em uma ou outra
direção, não for possível, tenderá a ser rejeitado: no primeiro caso, porque se
mostrará pouco informativo e desinteressante; no segundo caso, porque se
mostrará difícil de ser entendido, impenetrável.

De outra parte, avaliar a suficiência de dados é examinar se o texto fornece


ao recebedor os elementos indispensáveis a uma interpretação que corres-
ponda às intenções do produtor, sem se mostrar, por isso, redundante ou
rebarbativo. Os dados cuja explicitação é necessária são aqueles que não
podem ser tomados como de domínio prévio do recebedor nem podem ser
deduzidos a partir dos conhecimentos que o texto ativa.

Assim, avaliar a informatividade significa, para mim, medir o sucesso do


texto em levar conhecimento ao recebedor, configurando-se como ato de
comunicação efetivo. Esse sucesso depende, em parte, da capacidade do
discurso de acrescentar alguma coisa à experiência do recebedor, no plano
conceitual ou no plano da expressão (imprevisibilidade). De outra parte, re-
sulta no equilíbrio entre o que o texto oferece e o que confia à participação
de quem o interpreta (suficiência de dados).

Um texto informativo pode não ser de processamento imediato e deman-


dar algum esforço de interpretação. Em contrapartida, é um texto que se
mostra apto a engajar o recebedor, a conquistar a adesão dele, viabilizando,
assim, o estabelecimento de uma relação comunicativa verdadeira.

Um texto com baixo poder informativo, que não fornece os elementos


indispensáveis a uma interpretação livre de ambigüidades, ou que se limita a
repetir coisas que nada somam à experiência do recebedor, tem como efeito
desorientá-lo ou irritá-lo, ou simplesmente não alcançar sua atenção. Tende

145
Lingüística III

a ser rejeitado. Mesmo que não chegue a ser tomado como não-texto, é ava-
liado como produção de má qualidade, com a qual não vale a pena perder
tempo. Em suma, mesmo para textos coerentes e coesos, um baixo poder
informativo tem como correlata uma baixa eficiência pragmática.

Estudos lingüísticos
1. Leia o seguinte trecho de uma redação escolar reproduzido no livro Proble-
mas de Redação (PÉCORA, 1983, p. 82):

[...] quanta coisa linda ao nosso redor; quer mais do que a pureza e in-
ocência do sorriso de uma criança? Quer mais do que a simplicidade de uma
flor? Acho que todos os nossos problemas ficam muito pequenos em meio a
tanta paz, a tanta simplicidade, em meio a tanta força.

Use o conceito de “informatividade” e as fontes de expectativa formulados


por Beaugrande e Dressler (1983) para avaliar esse trecho. Qual é o grau de in-
formatividade do texto? As expectativas do leitor são ou não atendidas pelas
informações selecionadas pelo autor da redação escolar?

146
Teoria da informação

2. Leia o seguinte trecho de um livro destinado a alunos de Engenharia Elétri-


ca.

O processo de transferência é caracterizado pela tendência ao equilíbrio,


que é uma condição em que não ocorre nenhuma variação. Uma força motriz,
o movimento no sentido do equilíbrio e o transporte de alguma quantidade
são fatos comuns a todos os processos de transferência. A massa do material
através da qual as variações ocorrem afeta a velocidade do transporte, e a
geometria do material afeta a direção do processo.

Considere o que acontece quando uma gota de corante é colocada na


água. O processo de transferência de massa faz com que o corante se difun-
da através da água, atingindo um estado de equilíbrio facilmente detectado
visualmente. Podemos detectar uma variação semelhante através do olfato
quando uma pequena quantidade de perfume é borrifada no quarto. A con-
centração torna-se mais fraca nas vizinhanças da fonte à medida que o per-
fume se difunde através do quarto. [...] Podemos ainda sentir a variação pelo
paladar, quando um cubo de açúcar se dissolve e difunde na boca. Portanto,
os processos de transferência fazem parte da experiência diária. (SISSON,
Leighton E.; PITTS, Donald R. Fenômenos de Transporte. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1988, p. 2)

a) Avalie o grau de informatividade do primeiro parágrafo do texto para um


leitor da área humanística, estudante de um curso de Letras, por exem-
plo. Em que ordem de informatividade esse parágrafo pode ser enqua-
drado?

147
Lingüística III

b) Compare os níveis de informatividade dos dois parágrafos. Há diferenças?

148
Teoria da informação


149
Teoria dos atos de fala

Neste capítulo vamos apresentar o conceito de atos de fala, que está


relacionado ao estatuto dos enunciados utilizados cotidianamente nas in-
terações entre os falantes. Procuraremos expor de forma simplificada os
fundamentos da análise dos atos de fala, conforme formulados por dois
filósofos britânicos: J. L. Austin e John Searle. Segundo esses pensadores,
os enunciados produzidos pelos falantes podem ser divididos em dois
grupos. Há, por um lado, aqueles que são utilizados como forma de rep-
resentação de alguma coisa do mundo, seja esse mundo real ou fictício,
pouco importa se o que se afirma sobre esse mundo seja falso ou verda-
deiro. Mas há, por outro lado, enunciados que não têm esse caráter de
representação e que não são nem falsos nem verdadeiros. Trata-se de
enunciados que se caracterizam por serem formas de realização de ações.
Austin e Searle mostram que há determinados tipos de ações que são re-
alizadas pela fala: cumprimentar, despedir-se, prometer, pedir, mandar,
advertir, desculpar-se, entre muitas outras.

Pretendemos, inicialmente, apresentar o conceito de atos de fala, most-


rando sua contribuição para a compreensão sobre o funcionamento das
línguas. Procuraremos também mostrar as dificuldades que limitam o uso
desse conceito como instrumento de análise da linguagem em uso.

A seguir, procuraremos aprofundar um pouco a apresentação do con-


ceito de atos de fala. Iniciaremos focalizando a análise que Austin faz de
um conjunto de verbos usados tipicamente para realizar atos de fala: os
verbos performativos1. Prosseguiremos discutindo o desdobramento dos
atos de fala proposto por Searle. Para ele, não basta considerar a inten-
ção que o falante tem de realizar determinadas ações pela linguagem.
É necessário distinguir a simples produção de um enunciado (ato locu-
cionário ou locucional), a intenção com o que o falante produz esse enun-
ciado (ato ilocucionário ou ilocucional) e as conseqüências que a produção
do enunciado acarreta (ato perlocucionário ou perlocucional).
1
Trask (2004, p. 227) apresenta a seguinte definição de enunciados e verbos performativos: “PERFORMATIVO (performative) – um enun-
ciado que é por si só um ato de fazer algo; um enunciado comum, como Estou indo para o cinema, não pode ser facilmente considerado
como um ato de fazer algo; proferir esse anunciado não constitui uma ida ao cinema. Mas alguns outros enunciados são diferentes. Dizer
Prometo comprar para você um ursinho de pelúcia, por si só, constitui um ato de prometer comprar um ursinho de pelúcia, e nada mais
é exigido para completar (não confundir com cumprir) a promessa. Um enunciado desse tipo é chamado um enunciado performativo
(explícito), e um verbo que se presta a esse uso, no caso prometer, é um verbo performativo.
Lingüística III

O conceito de atos de fala:


origem, contribuições para a Lingüística e limites
O conceito de atos de fala foi formulado inicialmente pelo filósofo britânico J.
L. Austin, em um conjunto de conferências publicadas em 1962 com o sugestivo
título How to Do Things with Words (Como Fazer Coisas com Palavras)2. Nesse tra-
balho, Austin chama a atenção para os limites de uma abordagem que considere
que as frases produzidas em uma língua qualquer sejam formas de representa-
ção da realidade e que possam ser avaliadas simplesmente como verdadeiras
ou falsas. Ele mostra que um grande número de frases produzidas usualmente
pelos falantes não fazem representações do mundo, mas são formas pelas quais
os falantes realizam determinadas ações.

A formulação de Austin foi posteriormente retomada por outro filósofo


britânico, John R. Searle, no livro Speech Acts: an essay in the philosophy of langua-
ge (Atos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem)3, obra na qual aprofundou o
tratamento dos atos de fala, sobretudo pela discussão das conseqüências que a
produção de determinados tipos de sentença desencadeia.

Antes desses estudos, os enunciados eram tomados como afirmações sobre


um determinado estado de coisas. Por exemplo, uma afirmação como (1) é uma
forma de representação de um determinado mundo (seja real ou não) e será
considerada verdadeira se corresponder ao que acontece nesse mundo:

(1) O gato subiu no telhado.

Uma frase como essa contém tipicamente a representação de elementos do


mundo. Há seres (gato, telhado) e um desses seres (o gato) executa uma deter-
minada ação (subir) que afeta o outro ser (o telhado). O falante que enuncia essa
frase representa lingüisticamente um evento (o gato subiu no telhado) e sua
frase será verdadeira se o gato tiver efetivamente subido no telhado no mundo
representado, caso contrário, será falsa.

Mas nas interações correntes entre os falantes, há vários tipos de proposições


que não se restringem a uma representação de situações do mundo. Para iniciar
a discussão, observe os seguintes enunciados:

(2) Pedro continua solteiro.


2
Estamos utilizando a edição francesa do livro – Quand Dire c’est Faire – publicada em 1970. Há também uma edição brasileira: AUSTIN, John Lang-
shaw. Quando Dizer é Fazer. Palavras e ações. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
3
Estamos usando a edição portuguesa deste livro – Os Actos de Fala – publicada em 1984.

152
Teoria dos atos de fala

(3) Pedro continua solteiro?

(4) Pedro, continue solteiro!

(5) Tomara que Pedro continue solteiro.

Considerando que um falante use esses enunciados em contextos apropria-


dos, podemos observar que há diferenças entre o tipo de ação que ele realiza
em cada caso. Na frase (2), há uma asserção, uma afirmação sobre determinado
estado de coisas, análoga ao exemplo (1) comentado acima. Já ao enunciar a
frase (3), o falante não faz uma afirmação (verdadeira ou falsa) sobre a realidade,
mas formula uma pergunta. Ao enunciar a frase (4), ele faz um pedido, dá uma
ordem, faz uma sugestão. Na frase (5) manifesta uma vontade.

Esses exemplos simples mostram que, ao falar, os indivíduos executam atos


diversos, esses atos são chamados de atos ilocucionários por Austin e Searle. Os
exemplos anteriores (1) a (5) seriam representativos de alguns desses atos: afir-
mar, perguntar, pedir, manifestar um desejo.

Além dos que foram exemplificados, poderíamos identificar vários outros.


Searle (1984, p. 35) aponta os seguintes: afirmar, descrever, advertir, observar,
comentar, solicitar, ordenar, pedir, criticar, pedir desculpas, censurar, aprovar, cum-
primentar, prometer, contrapor-se, exigir, alegar. Além desses, basta pensar um
pouco para aumentar bastante a lista.

Sintetizando, podemos adotar a seguinte conceituação de atos de fala:


Ato de fala (speech act) – uma tentativa de fazer alguma coisa simplesmente falando. Há uma
quantidade de coisas que podemos fazer, ou tentar fazer, apenas falando. Podemos fazer
uma promessa ou uma pergunta, ordenar ou exigir que alguém faça alguma coisa, fazer uma
ameaça, dar nome a um navio, declarar duas pessoas marido e mulher, e assim por diante.
Cada uma dessas coisas é um ato de fala específico. (TRASK, 2004, p. 42)

É interessante observar que a definição de Trask não caracteriza os atos de fala


como “fazer algu­ma coisa simplesmente falando”, mas como “uma tentativa de
fazer alguma coisa simplesmente falando”. O que ele procura destacar com essa
definição é que não basta alguém fazer um pedido, dar uma ordem, dizer que
alguém está nomeado ou demitido. Para tanto são necessárias várias condições
relacionadas às circunstâncias em que a frase é produzida e aos interlocutores.

Tomemos a conhecida frase usada nas cerimônias de casamento: “Eu vos de-
claro marido e mulher.” Esse enunciado tem o poder de transformar o estatuto

153
Lingüística III

da relação entre duas pessoas, alterando substancialmente os direitos e deveres


entre os noivos e do novo casal perante a sociedade. No entanto, para que a
frase produza tais resultados, é necessário que ela seja pronunciada por alguém
investido da autoridade para tal – um padre – no interior de uma cerimônia reli-
giosa altamente convencional. É necessário também que seja precedida da con-
cordância explícita dos noivos em aceitar as condições do estatuto de casados
que passarão a assumir daí em diante.

As condições específicas que tornam válido um ato de fala são chamadas


de condições de felici­dade. Trask (2004, p. 42) define nos seguintes termos as
condições de felicidade:
Na maior parte dos casos, não faz sentido perguntar se um enunciado que constitui um ato
de fala é verdadeiro ou falso. Enunciados como Arrume seu quarto; Você me emprestaria uma
caneta; Prometo comprar um ursinho de pelúcia para você; e eu vos nomeio cavaleiro, dom Eurico
não têm valor de verdade, mas podem ser mais ou menos adequados às circunstâncias ou,
como também se diz, podem ser mais ou menos felizes. Um enunciado como Arrume seu
quarto! é um enunciado infeliz se a pessoa não tiver autoridade sobre a outra, e um enunciado
como Eu vos declaro marido e mulher não surte efeito a menos que tenham sido preenchidas
uma série de condições. Assim como se diz que os enunciados podem ser mais ou menos
felizes, as condições exigidas para que um ato de fala tenha sucesso são freqüentemente
chamadas condições de felicidade.

O conceito de atos de fala é muito interessante e esclarece o funcionamento


de aspectos relevantes do uso da linguagem. No entanto, a incorporação desse
conceito para os estudos lingüísticos traz uma série de dificuldades. Uma é a
complexidade inerente à interpretação do conjunto de condições necessárias
para a realização de qualquer ato de fala. Além da complexidade da interpre-
tação das condições de felicidade, estas apresentam diferenças consideráveis
entre uma cultura e outra.

Outra dificuldade encontrada no uso dos atos de fala é a ausência de uma


correspondência regular entre as formas lingüísticas e os atos de fala que real-
izam. Observe o enunciado (6):

(6) Você tem horas?

Embora esse enunciado tenha a forma de uma pergunta, o falante está fa-
zendo um pedido, tanto que se a resposta for simplesmente “Tenho”, esta será
considerada uma resposta inadequada e não cooperativa.

Suponha que o gerente de uma empresa faça a seguinte pergunta a um


funcionário:

(7) Você poderia trazer o relatório de custos do último mês?

154
Teoria dos atos de fala

É evidente que o ato de fala realizado não é uma pergunta. Considerando


a relação hierárquica entre o gerente e o funcionário e o contexto de trabalho
em que a pergunta foi feita, ela é interpretada como uma ordem. Se a mesma
pergunta fosse feita por um colega de trabalho, ela seria interpretada como um
pedido.

Essas dificuldades de interpretação e a necessidade de uma análise cuidado-


sa das circunstâncias em que cada enunciado é produzido tornam pouco produ-
tivo o uso da teoria dos atos de fala para as análises lingüísticas.

As enunciações performativas
Conforme Austin (1970, p. 40) aponta, é possível reconhecer em qualquer
língua casos em que a enunciação de certas frases corresponde à realização de
ações. Veja alguns exemplos:

(8) Eu batizo este barco com o nome de Rainha Elizabeth.

(9) Se o Flamengo ganhar o jogo no domingo, prometo que vou pagar


meia dúzia de cervejas.

(10) Deixo para meu irmão a coleção de discos dos Beatles.

(11) Por este instrumento de procuração, nomeio José da Silva meu rep-
resentante junto à Receita Federal.

Os verbos utilizados nesses exemplos têm a propriedade de realizarem ações,


por isso foram chamados por Austin de performativos. Como se faz uma promes-
sa? Dizendo “eu prometo”. Como se faz uma nomeação? Dizendo “eu nomeio”.

Mas não é qualquer uso do verbo prometer que constitui o ato ilocucionário de
fazer uma promessa. Para tanto, é necessário que a forma seja usada na primeira
pessoa, no tempo presente e na voz ativa (AUSTIN, 1970, p. 26). Caso contrário, o
enunciado que contêm esse verbo passará a ser um enunciado comum, que faz
a representação de um evento ocorrido no mundo. Compare as frases (8) a (11)
com as correspondentes (8’) a (11’):

(8’) Pedro batizou o barco com o nome de Rainha Elizabeth.

(9’) Antônio prometeu pagar meia dúzia de cervejas se o Flamengo gan-


har o jogo no domingo.

155
Lingüística III

(10’) Cláudia deixou para seu irmão a coleção de discos dos Beatles.

(11’) Fernando da Silva nomeou José da Silva seu representante junto à


Receita Federal.

Esses exemplos confirmam o que afirmamos anteriormente: a análise dos


atos de fala deve levar em conta tanto as formas lingüísticas empregadas quanto
um conjunto de condições adicionais; ou seja, a realização dos atos de fala leva
em conta, por um lado, a escolha de determinadas formas lingüís­ticas e, por
outro, as condições pragmáticas do seu uso. É o atendimento das condições de
felicidade que faz com que o falante seja ou não bem-sucedido ao realizar ações
com a linguagem.

Tipos de atos de fala


Em seu estudo sobre os atos de fala, Austin mostra também que é possível
distinguir três níveis em qualquer ato de fala:
Ele inicia pela distinção de três aspectos do ato que consiste em fazer qualquer coisa pela
fala: há o ato locucionário (a produção de sons que pertencem a um vocabulário e a uma
gramática, e aos quais são ligados um “sentido” e uma “referência”, ou seja, uma “significação”,
no sentido clássico do termo); o ato ilocucionário (produzido ao dizer qualquer coisa, e que
consiste da manifestação de como as palavras devem ser compreendidas naquele momento
– as mesmas palavras podem ser compreendidas como um conselho, uma ordem etc.); e o ato
perlocucionário (produzido pelo fato de dizer qualquer coisa, ou seja, o ato dá lugar a efeitos –
ou conseqüências para os outros ou para a própria pessoa). (AUSTIN, 1970, p. 28)

Essas distinções são incorporadas e reelaboradas no estudo de Searle, como


veremos a seguir.

Atos locucionários
O reconhecimento de que o falante produz um ato locucionário é o primeiro
estágio da análise dos atos de fala. Trata-se do reconhecimento de que ele se
utiliza de uma seqüência de palavras que constituem frases bem-estruturadas
na língua utilizada.

Com o reconhecimento desse primeiro nível para a análise dos atos de fala,
Austin (1970) e Searle (1981) colocam em evidência que a primeira condição
para que um enunciado possa ser reconhecido como um ato de fala é o fato de
ser produzido segundo as convenções de uma língua natural em todos os seus
níveis: fonologia, sintaxe, semântica. Antes de se atribuir ao enunciado produzi-

156
Teoria dos atos de fala

do por um falante uma intenção e de analisar suas conseqüências, é necessário


reconhecer que ele é constituído por frases compreensíveis na língua usada
pelos interlocutores.

Atos ilocucionários
Como comentamos acima, os atos ilocucionários correspondem às ações que
os falantes pretendem realizar quando produzem os enunciados. Os atos ilocu-
cionários correspondem à realização de ações como pedir, cumprimentar, prome-
ter, exigir, desculpar-se, censurar etc. Veja alguns exemplos:

(12) Por favor, traga-me um cinzeiro. (pedido)

(13) Não entre agora, aguarde o chamado da atendente. (ordem)

(14) Boa tarde! (cumprimento)

(15) Se você tirar boas notas vai ganhar uma bicicleta no Natal. (promessa)

(16) Cuidado, o rio é muito fundo. (advertência)

(17) É proibido fumar aqui, você poderia ir para a área de fumantes? (or-
dem)

Para que um ato ilocucionário seja bem-sucedido é necessário que atenda


às condições de felicidade. Searle procura sistematizar as condições para que
alguns atos ilocucionários de ocorrência freqüente sejam bem-sucedidos. Vamos
sintetizar a seguir alguns exemplos de condições de felicidade associadas a esses
atos, a partir dos esquemas apresentados em Searle (1984, p. 88-90):

 Ato de pedir – o ato de pedir corresponde a uma ação a ser realizada no


futuro pelo ouvinte. Uma primeira condição é a sinceridade do pedido: o
falante quer que o ouvinte realize a ação solicitada. Outra condição é que
o falante acredite que o ouvinte esteja em condição de realizar a ação so-
licitada e que este realmente possa fazê-lo. O pedido é uma tentativa que
o falante faz de conseguir que o ouvinte realize a ação solicitada.

 Ato de perguntar – há dois tipos de perguntas, as reais e as de exame. Nas


perguntas reais, o falante quer saber (descobrir) a resposta; nas perguntas
de exame, o falante quer saber se o ouvinte sabe. Uma primeira condição
para que o ato de perguntar seja bem-sucedido (no caso da pergunta real)
é que o falante seja sincero, que queira realmente obter a informação.

157
Lingüística III

Outra condição é que o falante não saiba a resposta. A pergunta é uma


tentativa de obter a informação.

 Ato de aconselhar – o ato de aconselhar corresponde a um ato futuro do


ouvinte. Uma condição para que o conselho seja bem-sucedido é que o
falante tenha alguma razão para acreditar que o ato beneficiará o ouvinte.
Outra condição é que o falante assume que o ato sobre o qual se dá o
aconselhamento é de grande interesse para o ouvinte. Ao contrário do
que se poderia supor, aconselhar não é uma espécie de pedido. Aconsel-
har alguém não é tentar conseguir que ele faça algo de forma análoga ao
pedido. Aconselhar é dizer a alguém o que é melhor para ele.

 Ato de agradecer – o ato de agradecer remete a um ato passado realizado


pelo ouvinte. Esse ato beneficia o falante e este sabe disso. Uma condição
para que o agradecimento seja bem-sucedido é a sinceridade do falante,
que este seja efetivamente grato ao ouvinte pelo ato. O agradecimento é
uma expressão de gratidão ou apreciação.

 Ato de avisar – o ato de avisar remete a um evento ou estado futuro. Uma


condição para que o aviso seja bem-sucedido é que o ouvinte acredite que
o evento ocorrerá e que não é do seu interesse. Outra condição é a sinceri-
dade do falante, que acredita que o evento sobre o qual recai o aviso não
é do interesse do ouvinte. Avisar é como aconselhar e não como pedir.
Não é necessariamente uma tentativa de fazer com que alguém proceda
de modo a evitar o evento ou estado, mas que esteja preparado para as
conseqüências que virão.

Esses são alguns dos atos ilocucionários que Searle analisa. É interessante
observar que em todas as análises um dos componentes fundamentais das
condições de felicidade é a sinceridade do falante. Toda a análise dos atos ilocu-
cionários tem a sinceridade como um dos seus pilares. Para que esse modelo de
análise fosse adotado por outras comunidades de fala diferentes dos britânicos,
seria necessário um estudo preliminar para avaliar quais seriam as normas de
interação vigentes para cada grupo. As diferenças culturais podem levar à for-
mulação de condições bem diferentes associadas aos atos ilocucionários.

Atos perlocucionários
Finalmente, um terceiro nível proposto por Searle (1984, p. 37) para a análise
dos atos de fala é o perlocucionário:

158
Teoria dos atos de fala

Se considerarmos a noção de ato ilocucionário é preciso também considerar as conseqüências


ou efeitos que estes têm sobre as ações, pensamentos ou crenças dos ouvintes. Por exemplo,
ao sustentar um argumento, podemos persuadir ou convencer alguém; se o aviso de
qualquer coisa, posso assustá-lo ou alarmá-lo, pedindo alguma coisa, posso levá-lo a fazê-la;
informando-o posso convencê-lo (esclarecê-lo, edificá-lo, inspirá-lo, fazê-lo tomar consciência).
As expressões em itálico designam atos perlocucionários.

O conceito de ato perlocucionário formulado por Austin e Searle não recebe


na obra desses autores o mesmo destaque que o ato ilocucionário. A análise
desse último tipo de ato de fala implica em um estudo mais aprofundado sobre
as formas de interpretação dos atos de fala produzidos pelos falantes.

Para fazer esse estudo, seria necessário em primeiro lugar fazer um levanta-
mento dos atos ilocucionários e das possíveis conseqüências desses atos para os
ouvintes, ou seja, seria necessário elaborar uma tabela de correspondência entre
os dois conjuntos de atos de fala:

Ato ilocucionário Atos perlocucionários correspondentes

Avisar Assustar, alarmar...

Esclarecer, edificar, inspirar, fazer tomar con-


Informar
sciência...

Prometer Criar expectativas...

Etc... Etc...

Nem Austin nem Searle se dedicam ao aprofundamento do conceito de atos


perlocucionários. É significativa a conclusão que Trask (2004, p. 42) apresenta
sobre a incorporação desse conceito aos estudos de pragmática mais recentes:
Austin distinguiu inicialmente três aspectos de um ato de fala: o ato locucionário (ou ato de
dizer alguma coisa), o ato ilocucionário (aquilo que você está tentando fazer, com sua fala)
e o ato perlocucionário (o efeito daquilo que você diz). Hoje, porém, o termo ato de fala é
freqüentemente usado para denotar especificamente um ato ilocucionário e o efeito de um
ato de fala é sua força ilocucionária.

A conclusão de Trask mostra como os estudos recentes de pragmática incor-


poram o essencial da teoria dos atos de fala, sem dar a mesma importância a
algumas distinções menos relevantes formuladas pelos filósofos britânicos.

Conclusão
Os estudos sobre os atos de fala que sintetizamos neste capítulo têm como
um de seus pressupostos nucleares a concepção dos interlocutores como indi-

159
Lingüística III

víduos sinceros e cooperativos. Essa representação pode ser resultado de uma


visão idealista da sociedade elaborada pelos filósofos britânicos na década de
1960. Ou pode ser resultado da observação dos valores do grupo social com que
esses intelectuais conviveram na época em que propuseram suas análises.

Essa mesma concepção dos falantes está presente também na proposta


de máximas conver­sasionais formuladas por outro filósofo britânico, H. P.
Grice, contemporâneo de Austin e Searle. Tra­balhos posteriores que analisam
questões relacionadas às interações sociais fazem uso das descobertas sobre
as ações verbais presentes nos estudos desses filósofos, mas incorporam outros
conceitos, como o de ideologia, por exemplo, que resultam em uma visão
menos ingênua dos falantes e das ações realizadas ao falar.

Texto complementar

Teoria dos atos de fala


(FIORIN, 2002, p. 141-186)

A Pragmática, tal como a conhecemos hoje tem início quando Austin


começa a desenvolver sua teoria dos atos de fala. Até então, a Lingüística
pensava que as afirmações serviam para descrever um estado de coisas e,
portanto, eram verdadeiras ou falsas. Uma afirmação como O céu é azul de-
screve o estado do firmamento e, portanto, o falante pode verificar se ela é
verdadeira ou falsa, no momento em que é usada. Austin vai mostrar que a
Lingüística se deixava levar por uma ilusão descritiva, pois é preciso distinguir
dois tipos de afirmações: as que são descrições de estados de coisa, a que ele
vai chamar constativas e as que não são descrições de estados de coisa. São
essas que lhe interessam. Toma, então, certos enunciados na forma afirma-
tiva, na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa,
com as seguintes características: a) não descrevem nada e, por conseguinte,
não são nem verdadeiros nem falsos; b) correspondem, quando são realiza-
dos, à execução de uma ação. A essas afirmações vai chamar performativas.
Quando se observa uma frase como Ordeno que você saia daqui, verifica-se
que o ato de ordenar se realiza, ao se enunciar a afirmação. Por outro lado,
uma ordem não é verdadeira nem falsa, ela pura e simplesmente realiza-se.

160
Teoria dos atos de fala

São muitos os exemplos de performativos:

 Declaro aberta a sessão;

 Aceito (resposta à pergunta Aceita essa mulher como sua legítima esposa?,
na cerimônia de casamento);

 Prometo que a situação não vai ficar assim;

 Lamento que isso tenha ocorrido;

 Eu te perdôo.

É preciso observar mais uma coisa sobre os performativos: para que a


ação correspondente a um performativo seja de fato realizada, é preciso
não somente que ele seja enunciado, mas tam­bém que as circunstâncias
de enunciação sejam adequadas. Um performativo pronunciado em circun-
stâncias inadequadas não é falso, mas nulo, ele fracassou. Assim, por exem-
plo, se o irmão da noiva e não o noivo diz aceito, na cerimônia de casamento,
o performativo é nulo, porque quem realizou o performativo não é aquele
que, nessa circunstância de enunciação, deve realizá-lo. Por isso, Austin vai
estudar as condições de felicidade (sucesso)4 e fracasso dos performativos,
ou seja, as circunstâncias de enunciação que fazem com que um performa-
tivo seja efetivamente realizado.

As principais condições de sucesso de um performativo são:

 a enunciação de certas palavras em determinadas circunstâncias tem,


por convenção, um determinado efeito. Portanto, as pessoas e as cir-
cunstâncias devem ser aquelas convenientes para a realização do enun-
ciado em questão. Por exemplo, se um faxineiro, e não o presidente
da Câmara, diz Declaro aberta a sessão, o performativo não se realiza,
porque o faxineiro não é a pessoa que pode executar a ação de abrir a
sessão; por outro lado, se o presidente declara aberta a sessão sozinho
no seu gabinete, o performativo não se realiza, porque não está sendo
executado nas circunstâncias apropriadas para sua realização;

 a enunciação deve ser executada corretamente pelos participantes. O


uso da fórmula incorreta torna nulo o performativo. Assim, no batismo,
é preciso usar a fórmula correta, para que o performativo se realize. Se o
padre diz Eu te perdôo em lugar de Eu te batizo, o batismo não ocorre;

4
A expressão “condições de felicidade” do performativo não é uma boa denominação em português. Seria melhor dizer “condições de sucesso”. No
entanto, a partir da tradução do texto de Austin, essa expressão começou a ser usada e é encontrada em muitos textos de Pragmática.

161
Lingüística III

 a enunciação deve ser realizada integralmente pelos participantes.


Assim, quando um performativo exige outro para ser realizado, é
necessário que os dois sejam realizados para que haja sucesso. Por ex-
emplo, quando alguém diz Aposto dez reais como vai chover, para que
o ato de apostar tenha sucesso, é preciso que o outro aceite a aposta,
enunciando a aceitação.

Há duas outras condições para o sucesso dos performativos, que são de


natureza diferente, são as que fazem do performativo um ato puramente
verbal, vazio. Quando sua enunciação exige que o falante tenha certos sen-
timentos ou intenções, é preciso que ele tenha de fato esses sentimentos ou
intenções. Quando alguém diz Quero exprimir-lhe meus pêsames, sem que
sinta nenhuma simpatia pelo pesar do interlocutor, ou Prometo que virei, sem
ter nenhuma intenção de vir, o performativo realiza-se, mas não terá sucesso,
ou seja, realizar-se-á verbalmente, mas não efetivamente. A promessa será
feita, mas o que se prometeu não será realizado; os pêsames serão dados,
mas efetivamente o falante não sente nenhum pesar. Por outro lado, na se-
qüência dos acontecimentos, o falante que executou um performativo deve
adotar o comportamento implicado pelo ato de enunciação. Assim, quando
o falante que diz Prometo que virei não vier, a promessa não será efetivada.
Ela permanece um puro ato verbal.

Na verdade, do estrito ponto de vista da realização dos performativos


na enunciação, as três primeiras condições são mais importantes, porque
sua ausência implica que nem sequer se reconheça que o performativo se
realizou no ato de enunciação.

Como já foi dito, Austin põe em xeque a ilusão descritiva, quando mostra
que há afirmações que descrevem estados de coisas e que podem ser verda-
deiras ou falsas – as constativas – e afirmações que não descrevem nada, mas
pelas quais se executam atos, que podem ser felizes ou infelizes, ter sucesso
ou fracassar – as performativas. Os constativos são verdadeiros se existe o
estado de coisas que eles descrevem, e falsos em caso contrário. Os perfor-
mativos têm sucesso quando certas condições são cumpridas, e fracassam
quando não o são. Em Eu jogo futebol, o fato de jogar independe de minha
enunciação; em Eu me desculpo pelo que ocorreu, o fato de desculpar-se de-
pende de minha enunciação.

Até agora, estamos trabalhando com performativos indicados por verbos


na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa na forma

162
Teoria dos atos de fala

afirmativa. Assim, Desejo que você venha jantar comigo é um performativo


porque a ação de desejar se realiza, no ato de enunciar. Nas outras pessoas, nos
outros tempos, nos outros modos, não haveria performativos, mas constativos.
Com efeito, quando se diz Ele ordena que ele saia ou Eu ordenei que ele saísse, o
que temos são constativos que descrevem a realização de um performativo por
uma terceira pessoa ou por mim mesmo num tempo passado. No entanto, a
questão não é tão simples assim. Há performativos que se realizam de maneira
diferente dos que vimos mostrando até agora. Observem-se os exemplos:

 Proibido fumar;

 Os senhores estão autorizados a falar em meu nome;

 Os alunos foram advertidos de que os que não fizerem matrícula na


data determinada perderão sua vaga.

Nesses casos, realizam-se os performativos da proibição, da autorização e


da advertência, sem que sejam utilizadas as formas proíbo, autorizo e advirto.
Poder-se-ia então pensar que o modo, o tempo e a pessoa não bastam para
saber se um performativo existe, mas que certas palavras, como proibido,
autorizado, advertido, seriam necessárias para que eles se realizassem. En-
tretanto, pode haver performativos sem que apareçam no enunciado pala-
vras relacionadas ao ato a ser executado e, ao mesmo tempo, podem estar
presentes no enunciado palavras correspondentes ao performativo, sem
que ele se realize. Assim, em Curva perigosa, existe um performativo de ad-
vertência, mas em Você tinha mandado o aluno ficar quieto não há performa-
tividade, apesar da presença do termo mandado.

Austin abandona a idéia de que possa existir um teste puramente lingüís-


tico para determinar a existência do performativo e volta à própria definição
do performativo, ou seja, ele é a realização, ao enunciar, de um ato pelo fal-
ante. Quando se observam enunciados como Saia e Ordeno que você saia. Eu
virei amanhã quer dizer Prometo que virei amanhã. É proibido fumar significa
Eu proíbo fumar, pois existe alguém que é responsável pela proibição. Assim,
um enunciado será performativo quando puder transformar-se em outro
enunciado que tenha um verbo performativo na primeira pessoa do singular
do presente do indicativo da voz ativa. Os enunciados que não contêm um
verbo performativo na pessoa, no tempo, no modo e na voz indicados serão
chamados performativos implícitos; os que têm o verbo na forma mencio-
nada serão denominados performativos explícitos. [...]

163
Lingüística III

Estudos lingüísticos
Leia o trecho a seguir, que é parte de uma crônica em que João Ubaldo Ribeiro
relembra episódios relacionados ao exame vestibular “do seu tempo”, quando
os candidatos eram submetidos a uma prova oral diante de uma platéia.

O verbo “for”
(RIBEIRO, 2000, p. 20)

[...]

Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima,


e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos
diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo,
muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas.

A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas 10 linhas


em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o
que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e
assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a
responder nada.

Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra
“for” tanto podia ser do verbo “ser” quanto do verbo “ir”. Pronto, pensei. Se ele
distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja
o que Deus quiser.

− Esse “for” aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que


resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me en-
carou sorridente.

− Verbo for.

− Verbo o quê?

− Verbo for.

− Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

164
Teoria dos atos de fala

− Eu fonho, tu fões, ele fõe − recitou ele, impávido. − Nós fomos, vós
fondes, eles fõem.

[...]

A partir dos elementos fornecidos pelo autor nessa crônica, identifique:

1. Qual é o ato ilocucionário realizado pelo professor quando se dirige ao can-


didato com a frase: Esse “for” aí, que verbo é esse?

2. Quais são as condições de felicidade para a realização desse ato ilocu-


cionário?

165
Lingüística III

3. Qual é o ato ilocucionário realizado pelo professor quando se dirige ao can-


didato com a frase: Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

4. Quais são as condições de felicidade para a realização desse ato ilocu-


cionário?

5. Qual é o ato perlocucionário realizado a partir da frase do professor: Conju-


gue aí o presente do indicativo desse verbo.

166
Teoria dos atos de fala

167
As máximas conversacionais

As máximas conversacionais constituem uma tentativa de identificar


os princípios que regulam as intervenções de cada um dos participantes
nos eventos de conversação. Trata-se de um conjunto de normas que pro-
curam mostrar que as participações dos falantes na interação verbal não
são anárquicas, que eles seguem uma série de convenções quando inte-
ragem com os outros. Essas normas são válidas tanto para a conversação
oral quanto para outras formas de produção verbal, como cartas, notícias,
relatórios etc.

As máximas conversacionais foram formuladas pelo filósofo britânico


H.P. Grice em um texto clássico, que até hoje é fundamental para os estu-
dos de pragmática, o artigo “Logic and Conversation” (Lógica e Conver-
sação), publicado originalmente em 1967. Nosso ponto de partida para a
apresentação das máximas nesta unidade será este artigo fundador, que
foi publicado em português em 1982.

As relações entre a lógica e a conversação


segundo J.P. Grice
No artigo “Lógica e Conversação”, Grice (1982) destaca inicialmente
a postura corrente entre cientistas de valorizar a linguagem criada pela
lógica como um instrumento mais interessante do que as línguas naturais
para a formulação do raciocínio científico. A linguagem lógica se utiliza de
símbolos formais, que apresentam certa semelhança com expressões das
línguas naturais. Veja alguns exemplos:

Correspondentes
Símbolos lógicos no português
( língua natural)
Negação ¬ não
Conjunção ∧ e
Disjunção ∨ ou
Implicação → se... então...
Lingüística III

Apesar das semelhanças entre os conectivos lógicos e as expressões equiva-


lentes nas línguas naturais, há diferenças significativas quando se observa seu
uso. Tomemos como exemplo a disjunção lógica (∨), correspondente à conjun-
ção alternativa “ou” no português. Se afirmarmos que duas proposições A e B
estão em relação de disjunção (A ∨ B), a proposição resultante será verdadei-
ra em três casos: se somente A for verdadeira; se somente B for verdadeira; se
tanto A quanto B forem verdadeiras.

Já a interpretação de proposições ligadas pela conjunção alternativa “ou”


no português, em geral são interpretadas como uma relação de exclusão. Se
usarmos esse conectivo do português para ligar duas proposições (A ou B),
a tendência é considerar que apenas uma das proposições é verdadeira (A é
verdadeira ou B é verdadeira). Observe a frase abaixo:

(1) Pedro viajou para a Bahia ou para Pernambuco.

Esta afirmação é considerada adequada caso Pedro tenha viajado para


um dos dois estados, mas os falantes vão considerá-la estranha se ele tiver
viajado para os dois lugares. Se a relação entre essas duas proposições fosse
formulada como uma relação lógica (Pedro viajou para a Bahia ∨ Pedro viajou
para Pernambuco), os valores associados à disjunção estabelecem claramente
as condições de verdade para que a proposição composta seja verdadeira. Se
considerarmos o uso do conectivo lógico, a proposição será verdadeira se a
primeira afirmação for verdadeira (Pedro viajou para a Bahia), se a segunda for
verdadeira (Pedro viajou para Pernanbuco) ou se ambas forem verdadeiras.

O funcionamento dos conectivos nas línguas naturais tem uma imprecisão


que os símbolos formais não têm. Diante da visão dos lógicos de que as línguas
naturais são imprecisas e que não haveria princípios reguladores daquilo que
as pessoas dizem quando conversam, Grice (1982, p. 86) mostra a importância
de observar as condições que regulam a conversação. Ele procura mostrar que
os falantes seguem determinadas normas ao participar da conversação, qual-
quer que seja o assunto tratado.

A linguagem formal da lógica possibilita a elaboração de um conjunto de


fórmulas gerais, que podem ser aplicadas às mais diversas áreas e permitem
que se façam inferências válidas a partir da relação entre proposições. Grice
procura mostrar que a conversação tem também princípios que regulam a for-
mulação de conclusões a partir das intervenções dos participantes. Algumas

170
As máximas conversacionais

implicaturas são convencionais, associadas a estereótipos, como se pode ob-


servar numa frase como “João é brasileiro, portanto gosta de futebol”; outras
estão diretamente associadas a características da conversação. Estas últimas
são estudadas a partir das máximas conversacionais.

Princípios organizadores da conversação


Para a formulação dos princípios que regem a conversação, Grice (1982, p. 86)
parte de uma caracterização geral da conversação:
Nossos diálogos, normalmente, não consistem em uma sucessão de observações desconectadas,
e não seria racional se assim fossem. Fundamentalmente, eles são, até um certo ponto,
esforços cooperativos, e cada participante reconhece neles, em alguma medida, um propósito
comum ou um conjunto de propósitos, ou, no mínimo, uma direção mutuamente aceita. Esse
propósito ou direção pode ser fixado desde o início (por exemplo, pela proposição inicial de
uma questão para discussão) ou pode evoluir durante o diálogo; pode ser claramente definido
ou ser bastante indefinido ao ponto de deixar aos participantes considerável liberdade (como
numa conversação casual). Mas a cada estágio, alguns movimentos conversacionais possíveis
seriam excluídos como inadequados. (grifo no original)

Para Grice, as participações dos falantes no diálogo são organizadas a partir


de um princípio geral, que se esperaria que todos os participantes observassem:
o princípio da cooperação. Esse princípio geral é explicitado a partir de quatro
regras (máximas conversacionais), que apresentam em detalhes o que se enten-
de por participação cooperativa na conversação e permitem também o estabe-
lecimento das inferências, que não têm o mesmo estatuto das inferências lógi-
cas e que são chamadas de implicaturas. Estas estão relacionadas à forma como
os participantes se engajam em um evento conversacional.

O princípio de cooperação pressupõe não apenas que cada participante de


um evento conversacional é colaborativo no mais alto grau. Pressupõe também
que os participantes interpretam as intervenções dos demais como se todos
fossem altamente colaborativos. Ou seja, diante de qualquer afirmação dos par-
ticipantes, os interlocutores deduzem que aquela é a contribuição mais forte
que o falante pode oferecer no contexto dado.

A formulação do princípio de cooperação e das máximas conversacionais é


feita no imperativo, mas o autor não pretende ser normativo. Seu objetivo é des-
crever os princípios que orientam a participação na conversação. O princípio mais
geral, ao qual os demais se subordinam, é formulado nos seguintes termos:

171
Lingüística III

Princípio de cooperação
(GRICE, 1982, p. 86)

 Faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no mo-


mento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio
conversacional em que você está engajado.

Em síntese, Grice mostra que a conversação é organizada por uma atitude


cooperativa de todos os participantes: cada um dá as informações mais fortes de
que disponha naquele momento e supõe que os demais façam o mesmo.

O princípio de cooperação pode ser explicitado a partir de um detalhamento


relacionado a quatro categorias: quantidade, qualidade, relação e modo. Essas
quatro categorias permitem a formulação de máximas conversacionais, cujos re-
sultados estão vinculados ao princípio de cooperação.

Máxima da quantidade
A primeira máxima que Grice propõe ao especificar as formas de realização
do princípio da cooperação é a máxima da quantidade, que está relacionada ao
volume de informações fornecidas pelo falante em cada turno. Em cada situação,
há uma quantidade de informação esperada. A máxima da quantidade coloca
em evidência a inadequação aos propósitos da conversação que se observa
quando alguém dá mais informações do que o esperado em cada situação.

Compare os seguintes diálogos fictícios, que podem ocorrer durante o preen-


chimento de uma ficha cadastral em um posto de saúde:

Diálogo 1:

– Qual é seu nome?

– Maria das Graças Dias da Silva.

– Idade?

– 35 anos.

– Profissão?

– Cabelereira.

172
As máximas conversacionais

– Local de nascimento?

– Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul.

Diálogo 2:

– Qual é seu nome?

– É Maria das Graças. Minha mãe é muito devota de Nossa Senhora das
Graças e por isso escolheu esse nome. Até hoje ela sempre apela para a Santa
cada vez que tem um problema.

– Maria das Graças e o que mais?

– É Maria das Graças Dias da Silva. Dias da família da minha mãe e da Silva
do meu pai. Da grande família do presidente Lula, não é?

– Sua idade?

– Fiz 35 no mês passado. Que dureza! Daqui a pouco chego aos 40.

– Profissão?

– Trabalho num salão bem grande, que fica bem aqui perto. Faço tintura,
corte, escova...

– Cabelereira, então. E qual é o local de nascimento?

– Olha, nasci numa cidade que fica no noroeste do Rio Grande do Sul, lá
onde ficam as ruínas de São Miguel, já ouviu falar?

– Não...

– É Santo Ângelo o nome do lugar.

A quantidade de informações em cada situação é definida pelos propósitos da


interação. Nos dois diálogos acima é preciso considerar a adequação do volume
de informações ao esperado na situação de interação específica. O objetivo da
atendente do Posto de Saúde é o preenchimento da ficha cadastral da pacien-
te. Por isso ela solicita pontualmente as informações relevantes. No diálogo 1,
a paciente fornece as informações solicitadas, na medida adequada ao exigido
naquela situação. Já no diálogo 2, ela acrescenta várias informações não solicita-

173
Lingüística III

das, que só perturbam o trabalho da atendente. O diálogo 1 atende à máxima da


quantidade, enquanto o diálogo 2 apresenta uma violação dessa máxima.

Grice formula a máxima da quantidade nos seguintes termos:

Máxima da quantidade
(GRICE, 1982, p. 86-87)

 Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requeri-
do (para o propósito corrente da conversação).

 Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido.

Segundo essa máxima, a quantidade de informações que se espera em cada


situação de diálogo é definida pelos propósitos da conversação. Cabe aos inter-
locutores avaliar o grau de detalhamento adequado em cada situação. Grice en-
fatiza nessa máxima que o excesso de informações é uma inadequação. É claro
que o mesmo volume de informações, considerado uma violação da máxima
da quantidade em uma dada situação pode ser perfeitamente adequado em
outra. Se o diálogo 2 não envolvesse o preenchimento de uma ficha cadastral
pela atendente do posto de saúde, mas fosse uma conversa informal entre duas
pacientes na sala de espera do mesmo posto, a quantidade de informações seria
perfeitamente adequada. A diferença está no propósito da conversação.

Máxima da qualidade
A segunda máxima formulada por Grice estabelece uma relação entre a quali-
dade e a veracidade das informações. Para satisfazer essa máxima, o falante só deve
apresentar informações que ele acredita serem verdadeiras e para as quais possa
apresentar evidências adequadas. Grice divide a formulação dessa máxima em duas
partes, uma supermáxima de caráter geral e duas máximas que a especificam:

Máxima da qualidade
(GRICE, 1982, p. 87)

Supermáxima:

 Trate de fazer uma contribuição que seja verdadeira.

174
As máximas conversacionais

Máximas específicas:

 Não diga o que você acredita ser falso;

 Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência ade-
quada.

Segundo o autor, para uma participação cooperativa no diálogo deve-se


sempre dizer a verdade. Na prática, essa máxima apresenta problemas em várias
situações. Vamos enumerar algumas:

 há vários casos em que as convenções sociais admitem a mentira. Supo-


nha, por exemplo, que alguém ganhou um presente que achou horrível.
Se a pessoa que deu o presente perguntar diretamente se ela gostou, a
resposta socialmente adequada será uma mentira. Diante de situações
como a observação de que alguém está com um penteado feio, ou está
muito gordo, ou com uma roupa que não ficou bem, a sinceridade não é
bem-vista;

 há também situações em que a atividade da pessoa exige sigilo, em que


dizer a verdade poderia comprometer o resultado de algum trabalho,
como uma investigação policial, a realização de uma pesquisa cujos resul-
tados poderiam beneficiar ou prejudicar empresas e pessoas, a tomada de
decisões sobre medidas econômicas que se divulgadas antes do momen-
to adequado poderiam ter conseqüências desastrosas;

 há situações socialmente constrangedoras, em que a verdade causaria mais


problemas do que a omissão, como o caso de alguém que descobre que um
amigo está sendo traído pela esposa.

Não queremos fazer aqui uma defesa da mentira, mas apontar que a máxima
da qualidade, tal como formulada por Grice, não é aplicável de maneira irrestrita
em qualquer contexto interativo.

É claro que há também muitos casos em que a pessoa mente de forma deli-
berada, para preservar interesses pessoais: um criminoso pode mentir a respei-
to das circunstâncias em que cometeu o crime, caso ele e seu advogado consi-
derarem que a mentira o favorece; um atleta flagrado em um exame antidoping
vai certamente negar o que faça uso de substâncias proibidas para aumentar
seu desempenho. Mas nesses casos é fácil perceber que o princípio de coope-
ração foi violado.

175
Lingüística III

Máxima da relação
A máxima da relação diz respeito à contribuição da participação de cada falan-
te para o tema da conversação, ao grau de relevância de cada intervenção para o
tema em foco. Grice formula a máxima da relação em termos bem simples:

Máxima da relação

(GRICE, 1982, p. 87)

 Seja relevante.

Essa máxima coloca em foco a expectativa de que as intervenções de todos


os falantes coloquem em foco o tópico da conversação no momento.

Observe o seguinte diálogo hipotético entre dois amigos que acabam de se


encontrar na segunda-feira:

– O que você achou do seu time ontem?

– Nem fale nada, fiquei com vontade de jogar a camisa no lixo.

Nesse diálogo, a resposta que o segundo interlocutor dá à questão proposta


pelo primeiro mostra que ele mantém o tópico proposto, revela que tem conhe-
cimento do desempenho do seu time e acrescenta um comentário que revela
sua decepção. Sua resposta é cooperativa e sua intervenção relevante.

Mas imagine que o diálogo tenha uma forma diferente:

– O que você achou do seu time ontem?

– É, parece que vai chover.

Nesse caso, o segundo falante faz um comentário sem relevância alguma


para o tema proposto pelo amigo. Tudo indica que essa atitude foi intencional.
Como o desempenho do time foi muito ruim, o comentário sobre o tempo é
uma estratégia para não falar do tópico que não lhe interessa no momento. A
violação da máxima da relevância neste caso vai permitir que o interlocutor tire
determinadas conclusões, ou seja, permite uma implicatura.

176
As máximas conversacionais

Máxima do modo
Essa última máxima difere das demais porque não trata do que é dito, mas
de como os falantes organizam aquilo que dizem. A qualidade mais importante
da forma de apresentar qualquer contribuição conversacional é a clareza. Assim,
Grice propõe a clareza como uma supermáxima e especifica os princípios que
contribuem para a clareza em um conjunto de formulações complementares, que
poderia ainda ser ampliado.

Máxima do modo
(GRICE, 1982, p. 87-88)

Supermáxima:

 Seja claro.

Máximas específicas:

 Evite obscuridade de expressão;

 Evite ambigüidades;

 Seja breve (evite prolixidade desnecessária);

 Seja ordenado;

 Etc.

Vamos dar um exemplo real de violação da máxima do modo. O texto abaixo


é parte de um panfleto distribuído em duas capitais brasileiras. O panfleto faz a
divulgação de publicações de uma organização, não é endereçado aos iniciados,
uma vez que foi distribuído às pessoas que passavam pelo centro das cidades.
Mas o texto é redigido de forma tão obscura que impede qualquer ação coope-
rativa por parte dos leitores.

A causa da desregulagem de tudo, a causa do desequilíbrio de tudo, é por


ter terminado a fase do pensamento. Porque sabem perfeitamente que não há
efeito sem causa. A causa desse grande desequilíbrio mundial é o término do
pensamento.

E para que encontrem o equilíbrio de tudo, têm de conhecer a natureza e


a fase natural da natureza, que é a fase racional, a fase do raciocínio.

177
Lingüística III

O pensamento parou de funcionar, porque terminou a sua fase; pararam


as mentes, parou a regulagem e ficaram desregulados e depois de desregu-
lados, a violência.

A causa da violência é a paralisação do pensamento, por a fase do pensa-


mento ter terminado.

Enquanto o pensamento estava em vigor, dentro de sua fase, todos mais ou


menos regulados. Depois que a fase terminou, todos completamente desre-
gulados, porque na matéria tudo é assim: tudo que tem princípio, tem fim.

[...]

A cultura do raciocínio é a cultura racional.

De forma que a causa de todos os males universalmente, é o término da


fase do pensamento.

Terminou a fase do pensamento. O pensamento paralisou. E o pensamento


paralisado é a causa do desequilíbrio, é a causa de existir a violência que vem
assombrando todos e apavorando todos nos últimos tempos, cada vez mais.

Tudo por quê? Por ter terminado a fase do pensamento em 1935, pas-
sando o mundo por horas horríveis e terríveis, por momentos difíceis, por
desconhecer a fase de recuperação, a fase racional.

E assim, está aí como recuperar o equilíbrio perdido: o desenvolvimento


do raciocínio.

Tudo chegando a seu tempo e a sua hora necessária. [...]

A organização do texto desse panfleto viola a máxima do modo, pois contém


um pequeno conjunto de afirmações desconectadas e repetidas várias vezes,
sem que o texto apresente uma progressão na exposição da proposta do autor.
As pessoas que recebem um texto como este tendem a rejeitá-lo, a jogá-lo fora
por considerar que “não diz coisa com coisa.”

Implicatura conversacional
Como já apontamos, a implicatura conversacional corresponde a uma conclu-
são que os participantes de um evento conversacional extraem a partir das infor-

178
As máximas conversacionais

mações de que dispõem e mediante a aplicação do princípio de cooperação (e de


sua especificação nas máximas conversacionais). Observe o seguinte diálogo:

Maria: – Em que cidade o irmão da Tereza mora?

Carlos: – Fica no norte do Mato Grosso, perto de Tangará da Serra.

Apesar de Carlos não dizer explicitamente que não sabe o nome da cidade,
Maria pode concluir isso, aplicando o princípio de cooperação às informações
dadas. Supondo que Carlos esteja sendo cooperativo, ela pode concluir que a
resposta para a sua questão contém as melhores informações que ele tem para
oferecer. Se o máximo que ele pode dizer é o nome e alguma localidade próxi-
ma, é lícito deduzir que ele não sabe mais do que isso.

Imagine uma situação: Vera trabalhou como secretária em uma empresa


durante um ano. Depois de permanecer desempregada durante alguns meses,
procurou emprego em outra firma. Antes de contratá-la, o gerente solicitou ao
antigo patrão informações sobre o desempenho da secretária e recebeu a seguin-
te resposta: “Ela tem uma voz agradável e comete poucos erros de ortografia.” O
gerente analisa essa informação a partir do princípio de cooperação e da máxima
da relação. Com certeza o antigo patrão tem muito mais informações sobre Vera,
já que trabalhou com ela durante um ano. Por que ele não quis passar essas in-
formações? Por que não seguiu o princípio de cooperação? As informações for-
necidas são pouco relevantes para uma tomada de decisão sobre a admissão da
secretária no novo emprego.

Diante dessas circunstâncias, o gerente conclui, infere, faz uma implicatura


conversacional: não vale a pena contratar a moça; se o antigo patrão só deu infor-
mações irrelevantes sobre ela é porque as informações relevantes não são boas,
ou seja, porque ela não possui os requisitos necessários para assumir o cargo.

As implicaturas conversacionais são, portanto, as conclusões que os falantes


extraem a partir das informações que os interlocutores apresentam, recorrendo
ao princípio de cooperação para justificar as inferências feitas.

Conclusão
Vimos nesta unidade uma forma particular de estudar a conversação: a aná-
lise feita por Grice há quatro décadas mostra que as interações verbais têm uma

179
Lingüística III

organização diferente da linguagem lógica, mas que são também regidas por
princípios claros e gerais. O princípio de cooperação e as máximas conversacio-
nais são, até hoje, um instrumento interessante para explicar como as pessoas
raciocinam, para extrair conclusões relevantes a partir das informações forneci-
das pelos interlocutores.

Texto complementar

Texto 1
(TRASK, 2004, p. 238-239)

Princípio de cooperação (cooperative principle) – princípio fundamental,


que governa as trocas conversacionais. Na década de 1960, o filósofo britâni-
co Paul Grice estudou o modo como as pessoas se comportam na conversa-
ção. Sua principal conclusão foi que as trocas conversacionais são governa-
das por um princípio que a tudo se superpõe, que ele chamou de princípio
de cooperação. Essencialmente, esse princípio estabelece que as pessoas,
durante uma conversação, cooperam normalmente umas com as outras, e,
o que é crucial, assumem que os outros estão cooperando. Ou seja, quando
você diz alguma coisa e uma outra pessoa dá uma resposta, você assume
que essa resposta procura ser cooperativa no mais alto grau possível, e você
a interpreta de acordo com essa expectativa.

É esse princípio que responde pela existência de implicaturas conversa-


cionais, poderosas inferências que não são logicamente válidas, mas são deri-
vadas da assunção de que a outra pessoa está cooperando em grau máximo.

Grice foi além, decompondo seu princípio num número de componen-


tes mais específicos, as máximas conversacionais, que estabelecem coisas
como Faça sua contribuição tão informativa quanto é exigido ou Não diga
coisas para as quais você não dispõe de uma evidência adequada.

Uma dessas máximas reza: Faça com que sua contribuição seja relevante.
Na década de 1980, a lingüista britânica Deirdre Wilson e o filósofo francês
Dan Sperber defenderam que, recorrendo apenas a essa máxima, seria possí-
vel dar conta de quase tudo aquilo que interessa. Sua Teoria da Relevância
afirma que os enunciados são interpretados de modo tal que eles se com-

180
As máximas conversacionais

binam com o contexto de modo a produzir a maior quantidade de infor-


mações com a menor quantidade de esforço de processamento. A Teoria da
Relevância tem sido influente, mas é controversa.

Texto 2
(TRASK, 2004, p. 142-144)

Implicatura conversacional (conversational implicature) – um certo tipo


de inferência. Suponha-se que Alice pergunta a Guilherme Suzana virá à
festa de Miguel no próximo sábado?, e que Guilherme responda Davi quer ir
a um concerto. À primeira vista, essa é uma resposta inadequada para uma
pergunta simples: Guilherme não mencionou de maneira nenhuma Suzana;
em vez disso, introduziu na história Davi e um concerto, sobre os quais nin-
guém tinha perguntado nada. Ainda assim, trata-se de uma resposta perfei-
tamente natural para a pergunta, com a condição de que saiba que Davi é o
namorado de Suzana, Alice pode raciocinar como segue: Guilherme não sabe
se Suzana virá à festa; se soubesse, simplesmente ele teria me dito, mas Davi é o
namorado de Suzana, e Guilherme está me dizendo que Davi quer ir a um con-
certo; sem dúvida, Davi vai querer que Suzana vá com ele, e o concerto deve ser
no sábado, ou Guilherme não teria mencionado e, portanto, eu posso concluir
que Suzana provavelmente irá ao concerto com Davi, e não virá à festa.

A conclusão de Alice de que Suzana provavelmente não virá à festa é um


exemplo de implicatura conversacional (IC). Essa conclusão não foi afirma-
da por Guilherme e não decorre logicamente daquilo que Guilherme disse,
mas ainda assim é razoável, e Alice certamente vai tirar essa conclusão. Como
é isso possível?

O primeiro ponto-chave aqui é o contexto do enunciado de Guilherme.


Alice sabe que Davi e Suzana formam um par, e sabe que as pessoas gostam
que seus parceiros as acompanhem a eventos sociais, ou pelo menos que
Davi gosta disso; esse conhecimento é crucial: sem ele, Alice teria tido poucas
chances de tirar algum sentido da resposta de Guilherme. Costuma ser assim
nas IC: só chegam a elas os ouvintes que têm um conhecimento adequado
do contexto.

Um segundo ponto é que Alice assume que Guilherme está sendo co-
operativo. Se Guilherme soubesse ao certo se Suzana viria ou não viria à
festa, Alice teria esperado que ele o dissesse; ou então ele não teria sido co-

181
Lingüística III

operativo. Além disso, Alice tem todo o direito de assumir que o concerto
em questão tem de ser no sábado; se o concerto tivesse sido na sexta, o
comportamento de Guilherme não só teria sido anti-cooperativo – isto é,
irrelevante –, mas teria sido francamente enganador. Portanto, Alice assume
que Guilherme está cooperando e tira sua conclusão a partir disso.

Uma propriedade notória das ICs é que elas são canceláveis – podem ser
negadas explicitamente sem produzir anomalias. Suponha-se que a resposta
de Guilherme fosse Bom, o Davi quer ir a um concerto, mas a Suzana decidiu
ainda assim vir à festa de Miguel. Aqui, Guilherme está negando expressa-
mente a IC Suzana provavelmente não virá à festa, mas o resultado ainda é
bom. Isso demonstra que as ICs não são logicamente válidas. São, isso sim,
inferências poderosas, e as ICs que não são negadas são assumidas como
verdadeiras pelo ouvinte.

Ora, não se pode certamente afirmar que a resposta de Guilherme signifi-


ca de fato Suzana provavelmente não virá à festa. Suponha-se que Alice faça a
Guilherme uma pergunta bem diferente: Eu gostaria de ir a um dos concertos
ao ar livre, no parque, na próxima semana. Há alguém mais que queira ir? E que
Guilherme responde Davi quer ir a um concerto. Desta vez, é muito pouco pro-
vável que Alice conclua que Suzana provavelmente não virá à festa, porque
essa inferência não faria sentido nesse contexto tão diferente.

As ICs têm, portanto, uma natureza muito diferente da dos dois outros prin-
cipais tipos de inferência, o acarretamento e a pressuposição; entre outras
coisas, nenhum destes pode ser negado sem produzir uma anomalia.

Assim, as ICs pertencem incontestavelmente ao domínio da pragmática,


que estuda como os significados são extraídos do contexto. A existência de
ICs foi descoberta pelo filósofo britânico Paul Crice nos anos 1960, e o princí-
pio de cooperação de Grice constitui a principal tentativa de explicar como
os falantes obtêm sucesso ao comunicar esse tipo de significado.

Estudos lingüísticos
1. Observe o seguinte diálogo:

182
As máximas conversacionais

– Bom dia, tudo bem?

– Seria muito bom se estivesse tudo bem. Saí atrasado de casa e ainda
fiquei preso uma hora no trânsito. Por azar o carro estava com pouca gaso-
lina e demorei a chegar ao posto. Tive ainda de ficar na fila para abastecer....

Um dos participantes dessa conversa violou uma máxima conversacional.


Indique qual é essa máxima e como ela é violada.

2. O diálogo abaixo se dá entre um casal.

Mulher: – O telefone!

Marido: – Estou no banho!

Que implicaturas se pode extrair das falas desse casal a partir das máximas
conversacionais?

183
Lingüística III

3. Observe mais um diálogo:

– Felipe esteve aqui com a namorada nova.

– Ela é bonita?

– É uma moça simpática e bem educada.

Esse diálogo atende ou viola as máximas da qualidade e da relação?

184
As máximas conversacionais

185
Conceitos básicos da Análise do Discurso

Antes de iniciarmos a abordagem das questões que serão discutidas


neste capítulo, é necessário um esclarecimento. A expressão Análise do
Discurso é usada de forma ambígua no interior dos estudos da lingua-
gem. Essa denominação foi incorporada por duas vertentes do estudo de
questões discursivas: uma que podemos designar de anglo-americana,
outra comumente chamada de francesa. Assim, antes de fazer qualquer
discussão sobre os conceitos básicos da Análise do Discurso, é necessário
esclarecer que abordagem dos estudos discursivos foi escolhida, já que há
diferenças significativas entre elas.

A Análise do Discurso anglo-americana (Discourse Analysis) tem como


foco a textualidade e trata sobretudo de questões relacionadas à coesão
textual e à coerência. Essa abordagem corresponde à área de conheci-
mento que no Brasil é designada normalmente como Lingüística Textu-
al ou Teoria do Texto, e tem como objeto os processos de construção do
texto. É uma área que dialoga principalmente com a Pragmática e com os
estudos sobre a cognição.

A Análise do Discurso francesa (Analyse du discours) aborda outras


questões, a partir de outra metodologia e com influências de áreas do co-
nhecimento também diversas. É uma teoria do sentido, que analisa dis-
cursos efetivamente produzidos a partir da relação desses discursos com a
ideologia e com o lugar social a partir dos quais são enunciados. A Análise
do Discurso francesa surgiu a partir da reunião de conceitos originários da
Lingüística, do Marxismo e da Psicanálise e, à medida que se firmou como
área de conhecimento, formulou um corpo teórico próprio, mais adequa-
do ao conjunto de questões delimitadas para estudo.

Nos capítulos que tratam da Análise do Discurso, nossa opção foi discu-
tir apenas da abordagem de origem francesa. Essa decisão não decorre de
uma avaliação das duas vertentes, pois ambas fazem análises interessan-
tes e pertinentes. Nossa decisão foi motivada pela preferência no Brasil de
se reservar a expressão Análise do Discurso para a abordagem francesa e
pelo volume de estudos produzidos no país nos últimos anos a partir dos
pressupostos adotados por ela.
Lingüística III

Surgimento e consolidação da Análise do Discurso


Segundo Mussalim (2001, p. 101), a Análise do Discurso designa uma discipli-
na surgida na França na década de 1960. A criação dessa nova área de estudos
está associada a dois intelectuais que tinham formações diferentes e comparti-
lhavam o interesse pela política e as convicções marxistas sobre a luta de clas-
ses, a história e o movimento social. O primeiro é o lingüista e lexicólogo Jean
Dubois; o segundo, o filósofo Michel Pêcheux, preocupado com questões de
epistemologia, Marxismo e Psicanálise.

Na época, a Lingüística, dominada pelo modelo estruturalista, estava em


franca expansão e gozava do prestígio de ser a ciência piloto entre as ciências
humanas. As formulações feitas por Saussure permitiram que a Lingüística se de-
senvolvesse como uma ciência autônoma em relação aos estudos da linguagem
do século XIX, como os estudos filológicos e estilísticos.

O estruturalismo saussureano assume que todos os níveis da língua podem


ser descritos a partir da relação que os elementos estabelecem entre si no interior
de um sistema. Cada elemento adquire seu valor a partir da oposição com outros
elementos no mesmo nível. Essa forma de descrição é fácil de ser percebida na
fonologia: no português, /k/ se distingue de /g/, como mostra o par de palavras
“calo” e “galo”. O que interessa para o estruturalismo é a identificação do traço
articulatório que opõe esses elementos entre si, não o conjunto de proprieda-
des articulatórias de cada elemento. No caso, a oposição se dá pelos diferentes
valores do traço de sonoridade: /k/ é [– sonoro] e /g/ [+ sonoro]. Os estudos de
morfologia, sintaxe e semântica adotavam o mesmo princípio de reconhecer o
valor de cada elemento a partir da sua oposição com outros.

Pêcheux procura combinar a concepção de língua desenvolvida pelo estru-


turalismo com a concepção de ideologia marxista e de sujeito, formulada pela
psicanálise.

Mussalim mostra que o Marxismo recorre à metáfora de um edifício para


representar a organização da sociedade capitalista: a base econômica seria
a infra-estrutura e as instâncias político-jurídicas a superestrutura. Segundo
essa concepção, a base econômica determina o funcionamento das instâncias
político-jurídicas e é, ao mesmo tempo, perpetuada por elas. A ideologia é um
conceito-chave para a análise marxista das relações entre a base econômica e as
instâncias político-jurídicas.

188
Conceitos básicos da Análise do Discurso

Mussalim faz o seguinte comentário sobre as afirmações do filósofo marxista


Althusser no livro Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado:
Como modo de apreensão do funcionamento da ideologia, o conceito de aparelhos ideológicos
de Althusser é bastante esclarecedor. Retomando a teoria marxista de Estado, o autor afirma
que o que tradicionalmente se chama de Estado é um aparelho repressivo do Estado (ARE), que
funciona “pela violência” e cuja ação é complementada por instituições – a escola, a religião,
por exemplo –, que funcionam “pela ideologia” e são denominadas aparelhos ideológicos de
Estado (AIE). Pela maneira como se estruturam e agem esses aparelhos ideológicos – por meio
de suas práticas e de seus discursos – é que se pode depreender como funciona a ideologia
(trata-se sempre, para Althusser, do funcionamento da ideologia dominante, pois, mesmo
que as ideologias apresentadas pelos AIE sejam contraditórias, tal contradição se inscreve no
domínio da ideologia dominante). (MUSSALIM, 2001, p. 104)

Para Althusser, a ideologia deveria ser estudada a partir de sua materialização,


que se realiza na linguagem, ou melhor, nas práticas discursivas dos aparelhos
ideológicos do Estado. A lingüística estrutural, com sua opção pelo estudo da
linguagem como um sistema autônomo, não seria suficiente para o estudo das
práticas discursivas em sua relação com a ideologia. Surge daí a proposta de uma
teoria do discurso, que incorporasse componentes lingüísticos e ideológicos.

Pêcheux propõe então um projeto de análise do discurso, que representa


uma ruptura com a lingüística formal na concepção de sentido que assume. Para
o estruturalismo saussureano, todos os níveis de análise da língua são internos
ao sistema, inclusive, é claro, os significados. Pêcheux argumenta que a significa-
ção não é da ordem da língua (do sistema), mas da fala (do uso). A significação
das palavras sofre variações conforme a posição política, a vinculação ideológi-
ca, a instituição a partir de onde o sujeito produz os enunciados. Os sujeitos e os
sentidos não são individuais, mas históricos e marcados ideologicamente.

Mussalim (2001, p. 107) destaca ainda o terceiro elemento nuclear para a cons-
tituição inicial da análise do discurso: a Psicanálise lacaniana. O desenvolvimento
da Psicanálise e os trabalhos de Freud levaram a uma revisão do conceito tradi-
cional de sujeito, que via os indivíduos (falantes) como homogêneos e racionais.
Freud mostra que o sujeito é fragmentado entre o consciente e o inconsciente.
Lacan faz a releitura de Freud e recorre à lingüística estrutural para caracterizar
o inconsciente: segundo ele, o inconsciente se estrutura como uma linguagem,
um discurso latente que interfere no discurso efetivamente produzido.

Como a análise do discurso reúne as contribuições da lingüística estrutural, do


Marxismo e da Psicanálise lacaniana em um modelo unificado? Mussalim (2001, p.
110) faz a seguinte síntese dessa junção:

189
Lingüística III

Calcada no materialismo histórico, a AD concebe o discurso como uma manifestação, uma


materialização da ideologia decorrente do modo de organização dos modos de produção
social. Sendo assim, o sujeito do discurso não poderia ser considerado como aquele que decide
sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que
ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe
permite determinadas inserções e não outras. Em outras palavras, o sujeito não é livre para
dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso (e aqui reconhecemos a
propriedade do conceito lacaniano de sujeito para a AD), a ocupar seu lugar em determinada
formação social e enunciar o que lhe é possível a partir do lugar que ocupa.

Estabelecidos os princípios norteadores da nova teoria, a Análise do Discurso


passa a ser colocada em prática e a produzir resultados. Atualmente se pode
reconhecer uma primeira fase dessa área de conhecimento, na qual se observa
uma nítida preferência pela análise de discursos políticos, enunciados em condi-
ções de produção estáveis e homogêneas: o discurso de um membro do Partido
Comunista em uma convenção do partido, por exemplo, espaço em que tanto o
enunciador quanto seus interlocutores compartilham os mesmos princípios ide-
ológicos. A produção de cada discurso era concebida nesta fase como resultado
da ação de uma “máquina discursiva”. Cada lugar na formação social desenvolve-
ria seus discursos de forma autônoma, fechada sobre si mesma.

A revisão da concepção adotada nessa primeira fase da AD está relaciona-


da à incorporação do conceito de formação discursiva, formulado por Foucault
no livro Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2007, p. 35-44). Foucault questiona a
autonomia das formações discursivas e mostra que cada formação discursiva
se define em relação às outras com as quais concorre. Para ele, uma formação
discursiva não é formada de elementos ligados entre si por um princípio de uni-
dade, mas aparece como uma dispersão. A AD incorpora a proposta de Foucault
e passa a analisar, na segunda fase, as relações entre os discursos de formações
discursivas diferentes.

A terceira fase da AD rompe com a idéia de autonomia das formações discur-


sivas, mediante a adoção do conceito de interdiscurso. O interdiscurso é defini-
do nos seguintes termos por Charaudeau e Maingueneau (2006, p. 286):
Todo discurso é atravessado pela interdiscursividade, tem a propriedade de estar em relação
multiforme com outros discursos, de entrar no interdiscurso. Este último está para o discurso
assim com o intertexto está para o texto.

Em um sentido restritivo, o “interdiscurso” é também um espaço discursivo, um conjunto de


discursos (de um mesmo campo discursivo ou de campos distintos) que mantêm relações de
delimitação recíproca uns com os outros. (grifo no original)

Nessa concepção, os discursos concorrentes se formam de maneira regulada,


no interior do interdiscurso. Não são, portanto, formações independentes que

190
Conceitos básicos da Análise do Discurso

são depois colocadas em contato. Nessa última fase, a AD não toma como objeto
de estudo os discursos considerados de forma autônoma, mas o interdiscurso
onde eles estão intrinsecamente relacionados.

Formação ideológica e formação discursiva


O conceito de formação ideológica é incorporado na primeira fase da Análise
do Discurso e depois perde importância. Tem como ponto de partida o trabalho
de Althusser, mais especificamente a concepção de discurso como uma das ins-
tâncias em que a materialidade ideológica se concretiza.

A ideologia funciona na reprodução das relações de produção, pela interpela-


ção ou assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico. Cada indivíduo seria
levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada
formação social, mesmo que ele tenha a impressão de ser senhor de sua própria
vontade.

Para Althusser (apud BRANDÃO, 1998, p. 38) as classes sociais reproduzidas


pela ação da ideologia mantêm relações que são reproduzidas e garantidas ma-
terialmente pelos aparelhos ideológicos do Estado (Igreja, escola, legislação,
meios de comunicação social etc.). Brandão chama a atenção também para a
forma como Haroche et al. (1971, p. 102) caracterizam a relação entre as forma-
ções ideológicas:
[...] cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e de
representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas se relacionam mais ou
menos diretamente a posições de classe em conflito umas em relação às outras.

A formação ideológica tem como um de seus componentes as formações


discursivas, ou seja, os discursos são governados por formações ideológicas.
Passamos assim à conceituação de formações discursivas: “São as formações dis-
cursivas que, em uma formação ideológica específica e levando em conta uma
relação de classe, determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição
dada em uma conjuntura dada” (BRANDÃO, 1998, p. 38).

A noção de formação discursiva foi elaborada por Pêcheux a partir das propo-
sições de Foucault e tem dois tipos de funcionamento:

 A paráfrase – a formação discursiva é um sistema de paráfrases, ou seja,


de constante retomada e reformulação dos enunciados, como forma de
preservar sua identidade.

191
Lingüística III

 O pré-construído – a Análise do Discurso chama de pré-construído as


construções anteriores e exteriores, que se diferenciam do que é constru-
ído pelo enunciado.
O pré-construído pode ser entendido como a marca, no enunciado, de um discurso anterior;
portanto, ele se opõe àquilo que é construído no momento da enunciação. Um sentimento de
evidência se associa ao pré-construído, porque ele foi “já dito” e porque esquecemos quem foi
seu enunciador. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2006, p. 401)

Podemos ilustrar os conceitos de formação ideológica e formação discursi-


va a partir da seguinte piada:

Perguntaram a um fulano se ele era racista. Ele disse que não, só não gosta-
va muito de alemão. Mas logo de alemão? Por quê? E ele respondeu: É que eles
poderiam ter acabado com os judeus e fizeram um serviço de preto. (POSSENTI,
1998, p. 38)

As piadas, em princípio, não têm autor, mas sempre é possível reconhecer


nelas a manifestação de uma posição ideológica. Nessa piada, o efeito de humor
resulta da contradição entre a afirmação do personagem de que não é racista e
das afirmações racistas que ele faz a seguir. Pode-se reconhecer nela a retomada
(paráfrase) de enunciados que aparecem em vários discursos que reafirmam a
superioridade dos brancos e discriminam grupos como os judeus e os negros.
Ou seja, podemos reconhecer sua inserção em uma formação discursiva racista.
A expressão “fazer um serviço de preto” é incorporada à piada como um discurso
pronto, apenas retomado e repetido, como um pré-construído, portanto.

O conceito de discurso
Charaudeau e Maingueneau (2006, p. 171-172) mostram que o conceito de
discurso tem múltiplos usos dentro da Lingüística. Os autores apresentam esses
usos a partir de algumas afirmações que destacam propriedades dos discursos.
Algumas delas colocam em evidência características que são importantes para
a Análise do Discurso.

O discurso é contextualizado
Os autores procuram destacar com essa afirmação que não se pode atribuir
sentido a um enunciado fora de contexto. O contexto não funciona como uma

192
Conceitos básicos da Análise do Discurso

moldura, um cenário para o texto; não existe discurso que não seja contextuali-
zado. Além disso, o discurso participa da definição do contexto e pode modificá-
lo ao longo do processo de enunciação.

O discurso é assumido
Todo discurso é produzido por um enunciador e se dirige a interlocutores es-
pecíficos. O locutor é a fonte das referências pessoais, espaciais e temporais (eu/
aqui/agora) e também de atitudes tanto em relação ao tema do discurso quanto
a seus interlocutores. Ou seja, todo discurso apresenta marcas de subjetividade.
O locutor pode, por exemplo, mostrar graus diferenciados de adesão ao que
afirma: “É provável que eu viaje no domingo.” Pode também atribuir a outras pes-
soas a responsabilidade sobre o que afirma: “Segundo o presidente do banco,
o dólar vai se desvalorizar.” Pode fazer uma avaliação sobre o que enuncia: “Fe-
lizmente, o dólar vai se desvalorizar.” Pode ainda revelar seus pressupostos em
rela­ção ao interlocutor: “Como você sabe, o dólar está desvalorizado.”

O discurso é regido por normas


O discurso é um comportamento social e, como qualquer outro comporta-
mento social, ele está submetido a normas gerais. Mas além das normas gerais
que controlam todos os comportamentos sociais, o discurso está também sub-
metido a normas específicas, particulares, que controlam cada ato de linguagem.
Por exemplo, o ato de perguntar só é discursivamente adequado se: quem faz
a pergunta ignora a resposta; se a resposta tem algum interesse; se ele acredita
que o destinatário pode fornecer essa resposta etc. Essas são algumas normas
específicas para o ato de perguntar.

O discurso é assumido em um interdiscurso


O discurso só adquire sentido no interior do universo dos outros discursos.
Cada enunciado é interpretado na sua ligação com outros discursos com os
quais estabelece relações diversas: citações, comentários, paródias. Essa relação
do discurso com outros está relacionada, inicialmente, com a inserção de um
discurso em um gênero, já que cada gênero marca de forma diferente as rela-
ções entre os discursos. Observe, por exemplo, as diferentes formas que a cita-
ção assume no ensaio acadêmico e no texto publicitário: no ensaio acadêmico

193
Lingüística III

as referências têm de apresentar as fontes, que por sua vez têm de ser confiáveis
(autor, obra, data, páginas etc.); no texto publicitário as citações são difusas e
em geral sem identificação da fonte (“os outros detergentes...”, “vendemos mais
barato que a concorrência”, “temos o melhor preço”).

Discurso e interdiscurso
Para formular o conceito de interdiscurso, Maingueneau (1989, p. 116-117)
toma como ponto de partida um conjunto de distinções:

 Universo discursivo – é formado pelo conjunto de formações discursivas


de todos os tipos que coexistem, que interagem em uma dada conjuntura.
Trata-se de um conjunto finito e muito amplo, que não pode ser apreendi-
do na totalidade. Na prática, é impossível dar conta do estudo do universo
discursivo. Esse conceito tem apenas a função de definir o horizonte para
a construção dos campos discursivos.

 Campo discursivo – um campo discursivo reúne um conjunto de forma-


ções discursivas que estão em concorrência em uma determinada região
do universo discursivo. Alguns exemplos de campos discursivos: religioso,
político, científico, esportivo, filosófico. Um campo discursivo é constituído
por formações discursivas. Estas coexistem na mesma época e na mesma
conjuntura e têm a mesma formação social, mas preenchem essa formação
de maneira diferente. Conseqüentemente, podem estar em relação polêmi-
ca, de aliança ou de neutralidade. Por exemplo, pode-se observar no campo
discursivo político a relação polêmica entre as formações discursivas de di-
reita e de esquerda ou entre partidos aliados e partidos de oposição.

 Espaço discursivo – para realizar as análises, o pesquisador necessita fa-


zer recortes discursivos no interior de um campo discursivo, levando em
conta seus propósitos específicos. O espaço discursivo delimita um sub-
conjunto do campo discursivo, ligando pelo menos duas formações dis-
cursivas que sejam fundamentais para a compreensão dos discursos que
o pesquisador pretende estudar.

Maingueneau propõe que a unidade de análise não seja o discurso, mas as


relações de cada discurso com os que competem com ele dentro de um mesmo
campo discursivo (BRANDÃO, 1998, p. 72). Para exemplificar essa relação, obser-
ve a seguinte piada, que coloca em oposição afirmações dos campos discursivos
da religião e da política:

194
Conceitos básicos da Análise do Discurso

Deus convoca Bill Clinton, Boris Ieltsin e Fernando Henrique Cardoso


para anunciar-lhes que o mundo vai acabar. Clinton, em uma mensagem em
cadeia nacional, anuncia a seu povo:

– Tenho que dar-lhes uma notícia boa e outra ruim. A boa é que Deus
existe, tal como supúnhamos. A ruim é que o mundo vai acabar.

Ieltsin diz a seu povo:

– Tenho que dar-lhes duas más notícias: ao contrário do que muitos de


nós pensávamos, Deus existe. E, além disso, o mundo vai acabar.

Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, diz aos brasileiros;

– Tenho que dar-lhes duas boas notícias: Deus existe... e todos os problemas
do Brasil vão se resolver em poucos dias. (POSSENTI, 1998, p. 113)

Essa piada já ficou velha, pois circulou em 1997, quando Bill Clinton, Boris
Ieltsin e Fernando Henrique Cardoso eram, respectivamente, presidentes dos
Estados Unidos, Rússia e Brasil. O mote da piada, como mostra Possenti (1998,
p. 112), é explorar uma representação dos políticos como se nunca contassem
a verdade, como se distorcessem as informações de forma a preservar seus
interesses.

Mas o que nos interessa agora em relação a esse discurso é mostrar como ele
é construído a partir dos sentidos que as afirmações “Deus existe” e “o mundo
vai acabar” assumem nos campos discursivos da religião e da política a partir de
formações discursivas diferentes.

A mesma afirmação “Deus existe” é qualificada por Clinton e Cardoso como


uma boa notícia e por Ieltsin como uma má notícia. Isso coloca em evidência a
oposição entre diferentes formações discursivas no campo da religião: de um
lado países que têm religiões cristãs como predominantes (Estados Unidos e
Brasil); de outro um país em que predomina o materialismo histórico. O sentido
atribuído a uma mesma afirmação é construído pela relação de oposição entre
cristianismo e materialismo histórico.

A segunda afirmação usada na construção da piada – “o mundo vai acabar”


– coloca em jogo semelhanças e diferenças no campo da política. Nesse caso, o
agrupamento dos países é alterado. De um lado, estão os países ricos, as grandes
potências, para as quais o fim do mundo é uma notícia péssima. De outro lado,

195
Lingüística III

o Brasil, país com problemas sociais e econômicos graves, para o qual o fim do
mundo também é uma notícia ruim. Mas entra em jogo a imagem do político
brasileiro, que apresenta a previsão do fim do mundo como se fosse uma boa
notícia. Não se pode dizer que o presidente estivesse mentindo, porque se o
mundo acabasse, todos os problemas do país terminariam também, mas o que
ele diz está longe da verdade. A piada explora a atitude de dissimulação dos po-
líticos brasileiros, que mascaram os fatos conforme seus interesses.

Conclusão
Procuramos apresentar neste capítulo alguns conceitos que têm um papel
importante na construção do corpo teórico da Análise do Discurso francesa. Foi
uma apresentação ainda bastante preliminar, mas que pode ajudar os interessa-
dos na área a se situar em relação à imensa produção de trabalhos nessa linha
que se observa entre os lingüistas atualmente.

Nesta primeira apresentação, procuramos exemplificar alguns conceitos com


o uso de piadas, por serem textos curtos, bem definidos ideologicamente e por
fazerem uma apresentação estereotipada das questões que escolhemos para
apresentar. Mas os conceitos de que lançamos mão para o comentário sobre as
piadas são instrumentos interessantes para o estudo de discursos “sérios”, como
se pode ver no texto complementar e nos capítulos seguintes.

Texto complementar

Interincompreensão ou má fé?
(POSSENTI, 2000, p. 84-60)

Dominique Maingueneau, um analista de discurso, tentando compreen-


der as relações polêmicas entre dois discursos do mesmo campo, conclui que
são reguladas por um processo que chama de interincompreensão regrada.
Isso significa que o leitor que ocupa uma das posições nunca compreende o
que se diz a partir da outra posição, mas apenas o que ele diria se ocupasse
a posição do outro, tendo a ideologia que tem.

196
Conceitos básicos da Análise do Discurso

Bons exemplos desse processo estão em um artigo de Alberto Dines,


“Em outras palavras” publicado no Correio Popular (Campinas, SP), em
03/06/2000. A questão de fundo é o episódio Covas VS professores diante da
Secretaria de Educação. Vou ater-me apenas a duas passagens para ilustrar
o procedimento.

Dines cita a avaliação de Genoíno, segundo a qual “um governante não


poderia agir como um manifestante, não pode bater boca e tem de evitar
conflitos”. E acrescenta que Genoíno também discordou dos que agrediram
Covas. Dines traduziu a citação assim: “Em outras palavras, o representan-
te petista acha que Covas provocou a ira dos grevistas acampados pacifica-
mente em frente à Secretaria da Educação”. Em primeiro lugar, observe-se
que Dines não repetiu o nome do deputado; identificou-o como “represen-
tante petista”, o que não deixa de ser verdade, por um lado, mas também
não deixa de ser marcado, por outro (a imprensa só caracteriza personagens
quando são negros e petistas). Em seguida, reduz três afirmações de Geno-
íno a uma só. Genoíno disse que Covas: a) não poderia agir como um mani-
festante; b) não pode bater boca; c) tem de evitar conflitos. Dines reduziu
tudo à seguinte simplificação grosseira: Covas provocou os manifestantes.
E nada comentou sobre Genoíno ter condenado as agressões. Foi esquecer
logo essa passagem?

Dines também comenta as declarações do Deputado Callegari, que


achou que “Covas perdeu a sensibilidade política e o bom senso. Ele faria
melhor se designasse alguém hábil para negociar”. Veja-se a tradução de
Dines: “Em outras palavras: um bom político deve esconder-se no fundo dos
gabinetes ao invés de sair à rua para conversar com os grevistas”. Há clara-
mente vários problemas: a) pode não ser óbvio que Callegari espere um
certo comportamento apenas de um “bom político”, ele o espera até mesmo
de Covas; b) Caleggari não diz que um bom político deve esconder-se no
fundo dos gabinetes. De onde surgem os gabinetes? Por que “no fundo”?
São expressões da conta exclusiva de Dines; não estão na declaração que
ele mesmo reproduz; c) finalmente, Callegari não diz que Covas não deveria
ir “conversar” com os grevistas. Diz que Covas não tem habilidade, o que
equivale a dizer que não foi isso que foi fazer na Secretaria (nem Dines ou-
saria dizer que Covas foi negociar). Além do mais, Callegari diz “negociar”,
não “conversar”.

197
Lingüística III

Alguém mais grosseiro poderia dizer que Dines não sabe ler. Mas o que
fez se explica pela tese de Maingueneau. Ele deve pensar que é um jorna-
lista objetivo. Comanda um programa de TV cujo bordão é: “assistindo ao
Observatório da Imprensa, você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. O
exemplo aqui analisado mostra que, de duas, uma: ou se trata de má fé, ou
então os que acham que a ideologia cega as pessoas e distorce a realidade
têm total razão. Em qualquer dos casos, foi-se a suposta objetividade.

Estudos lingüísticos
1. Leia a piada abaixo:

(POSSENTI, 1998, p. 113)

Fernando Henrique Cardoso (então presidente da República) pensa


que é o momento de decidir onde será enterrado quando morrer. Tele-
fona ao primeiro ministro de Israel. Após as saudações protocolares, Fer-
nando Henrique lhe diz:

– Mudando de assunto, quanto me cobrarias se escolhesse Jerusalém


como minha última morada?

– Que te parece 500.000 dólares?

– Impossível! Tem de ser menos dinheiro, senão o povo me mata.

– Por menos dinheiro, nada feito. Pode esquecer de ser enterrado em


Jerusalém.

– Mas, Primeiro Ministro, pense bem. Não acha que é muito dinheiro
por três dias?

Que campos discursivos são mobilizados na construção dessa piada? Que


tipo de relação entre esses campos discursivos é explorada na construção
humorística da piada?

198
Conceitos básicos da Análise do Discurso

2. Veja o seguinte texto de opinião, publicado no jornal Folha de S. Paulo:

O valor da vida, cá e lá
(ROSSI, 2006)

É, em tese, muito mais difícil combater e prevenir atentados de redes ter-


roristas, tipo Al Qaeda, do que os atos que o PCC pratica em São Paulo. Pri-
meiro, porque a ação do PCC, ao menos até onde se sabe, está limitada ao
Estado de São Paulo. A Al Qaeda (ou as diferentes franquias inspiradas por
ela) atua no mundo todo. Segundo, porque os líderes do PCC, segundo as
informações que a própria polícia deixa vazar, estão perfeitamente identifi-
cados e, ainda por cima, presos, na sua grande maioria. Da Al Qaeda, sabe-se
que existe um certo Osama Bin Laden, que, a rigor, ninguém vê. Dos demais,
surge aqui e ali um ou outro nome, mas nem mesmo os mais potentes servi-
ços de inteligência sabem com precisão onde se encontram. Pior (para a se-
gurança): os autores dos atentados mais espetaculares atribuídos à Al Qaeda
ou às suas franquias morreram no ato (caso dos terroristas do World Trade
Center ou dos ataques ao metrô de Londres). Portanto, não há como interro-
gá-los (ou torturá-los, que é o que se faz também, não vamos ser ingênuos)
para extrair informações. No caso do PCC, ao contrário, só há mortos em mo-
vimentos posteriores, supostamente confrontos com a polícia, muitos dos
quais fuzilados antes de serem interrogados (ou torturados). Antes, portan-
to, de dar alguma informação. Não obstante, a polícia britânica diz ter evita-
do uma série de atentados em aviões (“assassinatos em massa”, segundo ela)
e prendido 24 pessoas como suspeitas de planejar os ataques. Em São Paulo,
não se evitou nadica de nada. Os conformistas dirão que, afinal de contas,
o Reino Unido é riquíssimo e pode ter uma polícia eficiente. Os céticos ou
realistas (a seu critério, leitor) dirão que a vida e a segurança da bugrada cá
de baixo vale bem menos que a vida do pessoal lá de cima.

199
Lingüística III

Identifique em que campo discursivo se insere o artigo de Clóvis Rossi e qual


a posição assumida pelo autor.

3. Observe o seguinte texto humorístico:

(POSSENTI, 1998, p. 91)

A professora pede uma redação sobre “A família pobre”. A garotinha,


filha de banqueiro, escreve: “Naquela casa, todo mundo era pobre. O pai
era pobre, a mãe era pobre, a filhinha era pobre, o mordomo era pobre,
o jardineiro era pobre, o motorista era pobre, a cozinheira era pobre, a
babá era pobre...”

Identifique a formação discursiva a partir da qual é produzido o enunciado


da garotinha na piada. Que crítica à posição em que se coloca a personagem
a piada evidencia?

200
Conceitos básicos da Análise do Discurso

201
O sujeito na Análise do Discurso

Nesta unidade, abordaremos os conceitos formulados pela Análise do


Discurso como parte do referencial teórico que orienta o olhar do analista
para os dados. Nas três seções deste capítulo colocaremos em foco concei-
tos que se articulam em torno da concepção de sujeito do discurso (autor,
enunciador), daquele a quem se atribui a responsabilidade pelo que é dito.

Primeiramente, vamos discutir como o sujeito é visto a partir do con-


texto em que o discurso é produzido. Mostraremos como, para a Análi-
se do Discurso (AD), o indivíduo que produz concretamente os discursos
é menos importante do que o lugar social de onde ele fala, a instituição
onde se insere, o papel que assume (professor, político, pai etc.). Vamos
destacar também como a AD explica a ligação entre o lugar social a partir
do qual o discurso é enunciado e a produção do discurso. A seguir, faremos
uma discussão a propósito das reformulações na concepção de sujeito nas
três fases da AD. Finalmente, colocaremos em foco a questão do sentido
do discurso, tomado na teoria como efeito de sentido, que envolve tanto
o sujeito enunciador quando seus interlocutores.

Condições de produção e jogo de imagens


A noção de condições de produção é incorporada à AD a partir de uma
reformulação do conceito de contexto, usada de maneira muito vaga para
designar o conjunto de elementos circunstanciais que podem de alguma
forma influenciar a produção do discurso. Michel Pêcheux, ao propor as
bases para a constituição do corpo teórico da AD, toma como ponto de
partida a expressão marxista “condições econômicas de produção” para
formular o conceito de “condições de produção”.

Seu ponto de partida é um esquema inspirado na representação dos


fatores constitutivos de qualquer processo de interação pela linguagem
elaborado pela teoria da informação. Mais precisamente, Pêcheux recorre
à formulação feita por Roman Jakobson1 para esse esquema:

1
O autor refere-se a: JAKOBSON, Roman. Essais de Linguistique Générale. Paris: Minuit, 1963.
Lingüística III

O destinador envia uma mensagem ao destinatário. Para ser operante, a mensagem requer
antes um contexto ao qual ela remete (é isto que chamamos também, em uma terminologia
um pouco ambígua, o “referente”), contexto apreensível pelo destinatário e que é verbal ou
suscetível de ser verbalizado; em seguida a mensagem requer um código, comum, ou ao
menos em parte, ao destinador e ao destinatário (ou, em outros termos, ao codificador e ao
decodificador da mensagem). A mensagem requer, enfim, um contato, um canal físico ou uma
conexão psicológica entre o destinador e o destinatário, contato que permite estabelecer e
manter a comunicação. (Jakobson apud Pêcheux, 1993, p. 81)

Na reformulação proposta por Pêcheux, o esquema para a produção do dis-


curso tem o seguinte formato:

(PÊCHEUX, 1993, p. 81-82)

(£)
D
A B
R

Os elementos desse esquema representam:

 A: o “destinador” (sujeito, autor, enunciador);

 B: o “destinatário” (interlocutor);

 R: o “referente” (tema do discurso);

 (£): o código lingüístico comum a A e B;

 : o “contato” estabelecido entre A e B;

 D: a seqüência verbal emitida por A em direção a B.

Pêcheux considera fundamental a substituição no seu esquema da “mensa-


gem” (apresentada na proposta original da teoria da informação) por “discurso”. O
conceito de mensagem traz implícita a idéia da transmissão de uma informação,
que é codificada pelo “destinador”, ou seja, representada por meio do código
lingüístico e decodificada pelo “destinatário”. Já o conceito de discurso implica
que não se trata necessariamente de uma transmissão de informações, mas de
um “efeito de sentidos” entre os participantes do processo interativo.

Pêcheux toma como ponto de partida o esquema acima para formular um


esquema de jogo de imagens que desdobra as situações objetivas dos interlocu-
tores em representações imaginárias dos lugares que cada um atribui ao outro.
Para ele, as relações entre os lugares não constituem comportamentos individu-

204
O sujeito na Análise do Discurso

ais, não se referem ao contexto imediato nem às representações psicológicas.


Lugares são entendidos como as posições sociais e institucionais a partir das
quais os discursos são produzidos e que fornecem as bases para sua interpreta-
ção. Nas palavras de Pêcheux:
[...] A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares
dos quais a sociologia pode descrever o feixe de traços objetivos característicos: assim, por
exemplo, no interior da esfera da produção econômica, os lugares do “patrão” (diretor, chefe da
empresa etc.), do funcionário de repartição, do contramestre, do operário, são marcados por
propriedades diferenciais determináveis. (Pêcheux, 1993, p. 82)

(Pêcheux, 1993, p. 83)


Jogo de imagens segundo Pêcheux

Questão implícita cuja


Expressão que des-
“resposta” subentende a
igna as formações Significação da expressão
formação imaginária cor-
imaginárias
respondente
Imagem do lugar de A para o “Quem sou eu para lhe falar
IA (A)
sujeito colocado em A assim?”
A
Imagem do lugar de B para o “Quem é ele para que eu lhe fale
IA (B)
sujeito colocado em A assim?”

Imagem do lugar de B para o “Quem sou eu para que ele me


IB (B)
sujeito colocado em B fale assim?”
B
Imagem do lugar de A para o “Quem é ele para que me fale
IB (A)
sujeito colocado em B assim?”

A IA (R) “Ponto de vista” de A sobre R “De que lhe falo assim?”

B IB (R) “Ponto de vista” de B sobre R “De que ele me fala assim?”

Esse esquema coloca em evidência que a produção e interpretação dos dis-


cursos são influenciadas por representações dos lugares dos interlocutores e
dos pontos de vista sobre os temas que esses lugares permitem que os partici-
pantes da interação assumam. Assim, o jogo de imagens procura explicitar dois
conjuntos de representações:

 as representações que o sujeito A tem de si próprio, ou melhor, do lugar a


partir do qual enuncia (imagem do lugar de A para o sujeito colocado em
A); do interlocutor (imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A) e
do tema do discurso (ponto de vista de A sobre R);

 as representações que o interlocutor B tem de si próprio, ou melhor, do


lugar a partir do qual interpreta o discurso (imagem do lugar de B para
o sujeito colocado em B); do sujeito enunciador que lhe dirige a palavra

205
Lingüística III

(imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B) e do tema do discur-


so (ponto de vista de B sobre R).

Para uma reflexão sobre o conceito de jogo de imagens na análise das con-
dições de produção do discurso, vamos fazer a leitura da carta através da qual o
então presidente da República Jânio Quadros renunciou ao seu cargo em 25 de
agosto de 1961.

Carta-renúncia de Jânio Quadros


(DISCINI, 2005, p. 230-231)

Fui vencido pela reação e, assim, deixo o governo. Nestes seis meses
cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavel-
mente, sem prevenções nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços
para conduzir esta nação pelo caminho da sua verdadeira libertação política
e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social,
a que tem direito o seu generoso povo. Desejei um Brasil para os brasileiros,
afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam
os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, in-
clusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se
contra mim e me intrigam ou infamam, até com desculpa da colaboração.

Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranqüilidade, ora que-


bradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio, mesmo, que
não manteria a própria paz pública. Encerro, assim, com o pensamento vol-
tado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande
família do Brasil, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim não
falta a coragem da renúncia.

Saio com agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos compa-


nheiros que comigo lutaram e me sustentaram, dentro e fora do governo,
de forma especial às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os
instantes, proclamo nesta oportunidade. O apelo é no sentido da ordem, do
congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios para
todos e de todos para cada um. Somente assim seremos dignos deste país e
do mundo. Somente assim seremos dignos da nossa herança e da nossa pre-
destinação cristã. Retorno, agora, ao meu trabalho de advogado e professor.
Trabalhemos, todos. Há muitas formas de servir a Pátria.
Jânio Quadros
Brasília, 25 de agosto de 1961.
206
O sujeito na Análise do Discurso

Não pretendemos aqui fazer uma análise do contexto histórico em que a car-
ta-renúncia de Jânio Quadros foi produzida. Queremos apenas apontar alguns
elementos que mostram a construção do conjunto de imagens nessa carta. Ob-
servemos, inicialmente, as indicações no discurso da imagem que Jânio tem do
lugar a partir do qual enuncia. Ao escrever o discurso através do qual deixa de
ocupar o lugar de presidente da República, ele usa uma série de expressões que
revelam a imagem que tem do papel social esperado para o ocupante desse
lugar: “cumpri o meu dever”, “meus esforços para conduzir esta nação pelo cami-
nho de sua verdadeira libertação”, “exercício de minha autoridade”, “esta página
da minha vida e da vida nacional”.

Essas expressões mostram que aquilo que o presidente diz é limitado pelo
que ele pode dizer a partir do lugar de onde fala e do momento histórico em que
produz seu discurso: mostra ter consciência de que sua carta teria como efeito
produzir uma mudança na vida nacional (talvez não tenha percebido o alcance
dessa mudança) e mostra a imagem do presidente da República como alguém
que tem a responsabilidade sobre a direção que o país vai tomar e necessita de
autoridade para assumir esse papel.

No final da carta, Jânio Quadros aponta que passará a falar de outros lugares,
como advogado e professor, e revela, mais uma vez, a imagem que associa a
esses outros lugares: de quem trabalha para “servir a pátria”.

A imagem dos interlocutores a quem se dirige – o povo brasileiro – também


se manifesta discursivamente na escolha de um conjunto de expressões: “o seu
generoso povo”, “para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para
a grande família do Brasil”, “nossa predestinação cristã”. Além de destacar es-
tudantes, operários e o povo em geral, Jânio se dirige em particular às Forças
Armadas que “lutaram” com ele, o “sustentaram” e tiveram uma “conduta exem-
plar”. Todas as expressões escolhidas mostram a construção de uma imagem de
identificação do sujeito com os interlocutores, em oposição a um inimigo indi-
cado como “a reação”, como os que praticam “a corrupção, a mentira, a covardia”,
os que “subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou
indivíduos, inclusive do exterior”. Jânio Quadros renuncia à posição de comando
do povo brasileiro, mas reitera sua identificação com os interesses desse povo.

Ele procura resolver essa contradição mediante a imagem que constrói


do tema do seu discurso: “a mim não falta a coragem da renúncia”. Com esse
enunciado, ele procura romper com a representação corrente que associa re-
núncia a covardia. Faz isso pela escolha de uma expressão contrária para ca-
racterizar seu ato.
207
Lingüística III

O conceito de sujeito na Análise do Discurso


A noção de sujeito é fundamental para a AD. Essa noção permite situar a posi-
ção do autor/falante/enunciador em relação à sua atividade discursiva. Para for-
mular essa noção, a AD leva em conta as relações que o sujeito mantém com a
situação em que se encontra, os procedimentos de construção do discurso, as
opiniões e crenças que ele possui e que supõe serem compartilhadas pelos inter-
locutores. Para a exposição do conceito de sujeito, torna-se necessário fazer uma
breve retomada das fases pelas quais passou a AD até o momento, já que cada
fase apresenta algumas peculiaridades no conceito de sujeito.

A primeira fase dá preferência à análise de discursos políticos que tenham


condições de produção estáveis e homogêneas: um exemplo típico seria a fala
de um político na convenção do seu partido. Supõe-se que boa parte das opi-
niões e crenças subjacentes a esse discurso sejam compartilhadas tanto pelo
sujeito que o enuncia quanto por seus interlocutores. Nessa primeira fase da AD,
cada discurso é concebido como resultado da ação de uma “máquina discursiva”.
Em cada lugar na formação social haveria a circulação de um conjunto de dis-
cursos, desenvolvidos de forma autônoma, sem a interferência dos discursos em
circulação em outras formações sociais.

Como a AD nesse momento assume que os processos discursivos são gerados


por uma “máquina discursiva”, o sujeito não poderia ser concebido como a fonte
do seu próprio discurso, como alguém que tem autonomia e liberdade para de-
cidir o que quer dizer. Considera-se que o sujeito é assujeitado, controlado pela
“máquina discursiva”, que delimita o discurso que ele pode proferir. Ou seja, quem
de fato fala não é o indivíduo, mas uma instituição, uma teoria, uma ideologia.

A incorporação do conceito de formação discursiva, formulado por Foucault


no livro Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2007, p. 35-44) levou a uma revisão
da concepção de discurso, e deu origem à segunda fase da AD. Para Foucault,
as formações discursivas não são autônomas, mas se definem pela relação que
mantêm com as formações concorrentes. Para ele, as formações discursivas não
se apresentam de forma coesa e unitária, mas como uma dispersão. A incorpora-
ção dessa formulação de Foucault redirecionou os trabalhos da AD, que passam
a privilegiar os estudos que evidenciam as relações entre os discursos vincula-
dos a diferentes formações discursivas.

Quais são as conseqüências dessa mudança de direcionamento para a con-


cepção de sujeito? Da mesma maneira que o discurso não é concebido como

208
O sujeito na Análise do Discurso

algo que se manifesta de forma dispersa, o sujeito também tem essa mesma ca-
racterística. Ou seja, um mesmo indivíduo que fala como deputado na conven-
ção do seu partido, pode falar também em outros contextos como advogado,
como pai, como católico, como torcedor de um time de futebol. O sujeito passa
a ser entendido como alguém que desempenha diferentes papéis, conforme as
posições que ocupa no espaço do interdiscurso, ou seja, no espaço dos discursos
que estão em relação numa conjuntura determinada.

Mussalim (2001, p. 133-134) faz o seguinte esclarecimento sobre a concepção


de sujeito na segunda fase da AD:
[...] nesta segunda fase, o sujeito, apesar da possibilidade de desempenhar diferentes papéis,
não é totalmente livre; ele sofre as coerções da formação discursiva do interior da qual enuncia,
já que esta é regulada por uma formação ideológica. Em outras palavras, o sujeito do discurso
ocupa um lugar de onde enuncia, e é esse lugar, entendido como a representação de traços
de determinado lugar social (o lugar do professor, do político, do publicitário, por exemplo),
que determina o que ele pode ou não dizer a partir dali. Ou seja, este sujeito, ocupando o lugar
que ocupa no interior de uma formação social, é dominado por uma determinada formação
ideológica que preestabelece as possibilidades de sentido de seu discurso.

Com relação, portanto, às concepções de sujeito da AD-1 e da AD-22, pode-se dizer que, apesar
de diferentes, elas são influenciadas por uma teoria da ideologia que coloca o sujeito no
quadro de uma formação ideológica e discursiva (BRANDÃO, 1994). Nesse sentido é que para
a AD não existe o sujeito individual, mas apenas o sujeito ideológico: a ideologia se manifesta
(é falada) através dele.

A terceira fase da AD rompe com a idéia de autonomia das formações dis-


cursivas e coloca no centro da análise o interdiscurso. Abandona a concepção
dos discursos como formações independentes que seriam depois colocadas em
contato e adota outra, segundo a qual os discursos concorrentes se formam de
maneira regulada, no interior do interdiscurso. Não toma mais como objeto de
análise os discursos destacados como se fossem autônomos, mas o interdiscurso
onde eles estão intrinsecamente relacionados.

Nessa última fase, a AD avança na realização de uma proposta que estava


presente na proposta fundadora da área, o texto Análise Automática do Discurso,
publicado por Michel Pêcheux em 19693. Ao propor as bases da AD, Pêcheux
aponta a psicanálise como uma das fontes fundamentais para a elaboração do
conceito de sujeito. No entanto, as duas primeiras fases da AD só destacam o
papel da ideologia e operam com uma concepção de sujeito que leva em conta
essencialmente sua posição em uma formação ideológica e discursiva.

A terceira fase da AD incorpora as descobertas da psicanálise e passa a consi-


derar que o sujeito é essencialmente heterogêneo, dividido entre o consciente e
2
A autora usa as siglas AD-1 e AD-2 para designar, respectivamente, a primeira e segunda fase da Análise do Discurso.
3
Texto publicado no Brasil em Gadet e Hak (1993).

209
Lingüística III

o inconsciente. Parte do pressuposto de que o sujeito se movimenta entre esses


dois pólos, sem poder se apresentar em momento algum como um sujeito que
tem total consciência do que diz. Assume que a identidade do sujeito não é gover-
nada inteiramente pelo consciente, mas se divide entre o “eu” e o “outro”, ou seja,
entre o conhecido e o desconhecido, o inconsciente. Nessa perspectiva, o sujeito
é descentrado e se define pela relação entre o consciente e o inconsciente.

Resumindo, as noções de sujeito adotadas pela AD em qualquer das suas


fases não o consideram como a origem do seu dizer. Veja o comentário de Mus-
salim sobre essa questão:
Apresentadas as concepções de sujeito em três diferentes fases da AD, é possível
perceber que, apesar de distintas, elas possuem uma característica em comum: o
sujeito não é senhor de sua vontade; ou temos um sujeito que sofre as coerções de
uma formação ideológica e discursiva, ou temos um sujeito submetido à sua própria
natureza inconsciente. (MUSSALIM, 2001, p. 134)

Sentido e efeito de sentido


A forma como a AD entende o sentido dos discursos deriva da opção por estu-
dar os discursos a partir da formação discursiva, da formação ideológica e do in-
terdiscurso. O sentido do discurso decorre das formações discursivas e ideológicas
que possibilitam sua ocorrência e especialmente das relações que essa formação
discursiva mantém com outras no mesmo espaço discursivo. O sentido é construí-
do historicamente, a partir da concorrência entre as formações ideológicas.

Aquilo que um sujeito pode dizer é limitado pela formação discursiva a partir
da qual enuncia. Mussalim explicita essa afirmação:
O que é e o que não é possível de ser enunciado por um sujeito já está demarcado pela própria
formação discursiva na qual está inserido. Os sentidos possíveis de um discurso, portanto, são
sentidos demarcados, preestabelecidos pela própria identidade de cada uma das formações
discursivas colocadas em relação no espaço discursivo. (MUSSALIM, 2001, p. 131-132)

Como ilustração, leia as seguintes afirmações a propósito da adoção de cotas


para negros e/ou alunos de escolas públicas nas universidades federais:

(a) A sociedade brasileira tem uma dívida histórica com os descendentes de


escravos. Adotar o sistema de cotas significa pagar uma pequena parcela
dessa dívida.

(b) A universidade não é para todos, é para os mais qualificados. Não se admite
a adoção de mecanismos que permitam o ingresso de qualquer um e pro-
voquem a queda da qualidade de ensino.
210
O sujeito na Análise do Discurso

A AD mostra que quem enuncia (a) coloca-se em um lugar (uma formação


discursiva) que se opõe ao lugar de quem enuncia (b). Conseqüentemente, não
vai caracterizar simplesmente os sentidos dos discursos (a) e (b), parafraseá-los
mostrando o que significam. A AD procura destacar o efeito de sentido que
esses discursos produzem. O efeito de sentido vai além da representação de um
determinado estado de coisas no mundo. O discurso é revelador de uma posi-
ção ideológica e seu efeito de sentido está relacionado às disputas em torno de
formas de interpretar a realidade.

Conclusão
Neste capítulo apresentamos mais um conjunto de formulações construídas
pela Análise do Discurso francesa. Com isso, esperamos ter fornecido instrumen-
tos não só para a compreensão de estudos discursivos feitos por especialistas, mas
também para uma leitura crítica dos discursos com que convivemos diariamente.

Esperamos, especialmente, ter contribuído para a compreensão da hetero-


geneidade constitutiva dos sujeitos, que incorporam elementos de formações
discursivas diferentes através de variadas formas de citações, desde as mais ex-
plícitas até as mais sutis.

Mostramos também como a AD assume que o sujeito não tem liberdade de


dizer o que quiser, mas que o lugar de onde fala, o papel social que assume
limita aquilo que cada um pode dizer em um momento histórico dado.

Texto complementar

A negação da velhice:
uma discursividade ancorada na memória
(SILVA SOBRINHO, 2005, p. 241-246)

Introdução
A negação da velhice nos pôs diante da possibilidade de refletir sobre o
funcionamento desse processo discursivo e sua necessária ancoragem na

211
Lingüística III

memória. Comumente remetemos a negação aos estudos dos advérbios,


aqui somos convidados a compreendê-la de uma outra perspectiva, pois ela
se manifesta enquanto prática discursiva. Dizendo de outro modo, não se
restringe ao lingüístico nem ao lógico, mas os transcende por sua intricada
constituição história. Por esse motivo, a noção de negação e de memória será
deslocada para ser abordada a partir dos pressupostos da Análise do Discurso
(doravante AD) e, nisso, articularemos o funcionamento da negação à retoma-
da de já-ditos que estão na memória. Quanto à memória, essa por sua vez se
apresenta como “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento
a ler, vem restabelecer os ‘implícitos [...] de que a leitura necessita: a condição
do legível em relação ao próprio legível” (PÊCHEUX, 1999, p. 52).

Assim, os discursos aqui analisados, que rejeitam sentidos que norteiam


as representações do velho e da velhice na sociedade capitalista, expressam
uma forma de subjetividade em que o sujeito se posiciona em certa forma-
ção discursiva (FD)4 para interpretar o mundo do qual é parte e, ao fazer isso,
se defronta com sentidos já inscritos e sedimentados como a-históricos.
Nessa trama histórico-discursiva, o sujeito se (contra)identifica, significando
o modo de existência de si mesmo e dos outros sujeitos.

[...]

Velhice, esquecimento/lembrança/recusa: um funcio-


namento da memória
É na articulação esquecimento/lembrança/recusa que nos propomos en-
tender porque consideramos que a discursividade (especificamente o pro-
cesso de negação) está ancorada na memória. Ao dizer, resgatamos formu-
lações, confirmamos ou negamos os sentidos. Segundo Orlandi (1999, p. 31)
a memória discursiva é este “saber discursivo que torna possível todo dizer
e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do
dizível, sustentando cada tomada da palavra”. Assim, uma simples prática no
mundo exige uma relação com a memória, pois é a partir dela que reconhe-
cemos e compreendemos o mundo, nos identificando entre o mesmo e o
diferente nos processos históricos. A memória não é o passado que não mais
poderá retornar porque foi superado. Também não é algo inexorável. É, ao
contrário, movente, “atual”, na medida em que é convocada para sustentar
o dizer e, nesse processo, ela se presentifica e se transforma, nas práticas de
determinada conjuntura histórica.

4
Entendemos por FD o espaço heterogêneo de reformulação-paráfrase, que determina o dizer com suas permissões e proibições em acordo com
a formação ideológica que está a representar em uma conjuntura sócio-histórica. Pêcheux (1997); Courtine (1982).

212
O sujeito na Análise do Discurso

Todo discurso tem relação com a memória que acaba constituindo a sua
base de sustentação devido à existência de sentidos que estão sedimenta-
dos e que circulam nas práticas sociais como “evidências” confirmadas como
naturais, simulando a sua ahistoricidade. Entre os vários dizeres sobre a ve-
lhice encontramos, circulando no meio social, processos discursivos clara-
mente marcados pela negação em que se destacam os sujeitos históricos
posicionados discursivamente para recusar tal denominação quando fazem
referência a si próprios. Para desenvolver essa reflexão tomamos algumas
falas de idosos que participam do grupo de terceira idade do Sesc/Alagoas
(os recortes fazem parte do corpus da pesquisa que desenvolvemos no dou-
torado em Lingüística – UFAL). Na verdade, foi a materialidade discursiva que
nos instigou a pensar a relação entre negação e memória, uma vez que en-
contramos inúmeras seqüências que claramente se mostravam negadoras
da velhice. Vejamos:
(1). A velhice... eu não sei, essa palavra pra mim pelo menos eu acho que não existe pra
mim. Porque eu não me sinto velha, eu me sinto uma pessoa assim... por dentro jovem...
agora... por fora... você sabe... que a idade né! a idade da gente demonstra. Mas mesmo
assim eu não me sinto velha, eu me sinto jovem, jovem mesmo. Gosto de brincar, gosto de
viajar, gosto de tudo. (A.P.C. 67 anos, grupo de terceira idade do Sesc-AL)

Podemos observar que os idosos dessa instituição negam a sua velhice


com o intuito de ressignificá-la, e, por isso, se dizem jovens (não-velhos).
Antes de avançarmos com a análise, algumas considerações de Courtine
(1982, 1999) nos serão válidas. Esse teórico chama atenção para o domínio
da memória (interdiscurso) como o conjunto de discursos preexistentes
(já-ditos) que afetam o enunciado presente (intradiscurso). Ainda, segundo
Courtine, a memória se estrutura pelo esquecimento e funciona pela contra-
dição. Em nosso trabalho, nos chama atenção a relação estreita entre a nega-
ção e retomada dos interdiscursos, pois nesse processo há uma tentativa do
sujeito de constituir sentidos como se estivesse livre das determinações só-
cio-históricas. Quando, na verdade, a posição do sujeito no discurso reporta
a sua identificação/interpelação ideológica que lhe permite negar a velhice.
A nosso ver, precisamente, há condições de produção que vão determinar o
pensar sobre a realidade, pois o dizer é sempre histórico.

Notamos que o idoso, se por um lado, nega-se ser velho, a velhice não
existe pra mim, por outro, não nega os sentidos dominantes de velhice, ao
contrário, os sustenta, pois se diz jovem porque gosta de coisas que são tidas
como sendo especificamente de jovens. O efeito ideológico imaginário ali
atua, gostar de brincar, viajar, tudo, não se enquadra no que se espera de
uma pessoa velha e isso é reproduzido no discurso do idoso. Por conseqü-
ência ela se diz não-velha. O efeito do interdiscurso enquanto pré-constru-

213
Lingüística III

ído pressiona de maneira decisiva, pois todos “sabem” o que é e como é ser
jovem e o que caracteriza o velho em nossa sociedade. O discurso expressa
as contradições subjacentes ao jogo de imagens, pois esse idoso não se en-
quadra em tal perfil, não se ajusta à imagem sedimentada de velhice.

É interessante observar também que em tal seqüência o dizer sobre a


velhice não escapa das contradições geradas nas relações históricas. Isso
é notado quando vemos surgir um modalizador pelo menos eu acho, e,
também quando diz por dentro jovem...agora...por fora/ a idade da gente de-
monstra. Nesses momentos, o sujeito nega palavras em uma tentativa de re-
jeitar os sentidos pejorativos que atravessam seu discurso. Na posição em
ocupa, seu discurso é atravessado por contradições da formação discursiva
em processos de aliança, subordinação, de relações de forças que estão atu-
ando historicamente.

[...]

Sendo assim, a formação social capitalista está regendo a produção desses


sentidos, impondo padrões aos jovens e aos velhos. O que está subjacente a
esses processos de negação são as relações de trabalho baseadas na explo-
ração dos homens em atividades produtoras de mercadorias que suga suas
forças físicas e mentais. Tais relações, segundo Marx (2001) transformam tudo
em mercadorias, inclusive o próprio homem. Quando o trabalhador chega a
uma determinada idade é afastado (aposentado) porque é tido como não-
lucrativo para o capital. Pelo exposto, podemos dizer que o jogo de antôni-
mo (velho/jovem) e a negação (não sou velho), não se resumem apenas a um
processo de conflitos de gerações, pois refletem as exigências da sociedade
capitalista de louvar a jovialidade, não só das mercadorias (coisas), mas dos
próprios homens, pois isso assinala um modo de reprodução das relações
sociais capitalistas.

Praticamente, o idoso ao negar a velhice, não está negando os sentidos


pejorativos, ao contrário, os reconhece e por isso os recusa. Contudo, esse
mesmo sujeito tomando tal posição discursiva, que como sabemos é inter-
pelado pela ideologia e afetado pelo inconsciente, comete falhas, lapsos, por
dentro jovem...agora...por fora.../ a idade da gente demonstra, deixando trans-
parecer o complexo conflitante das relações históricas, pois eles se dizem
não-velhos, mas ao mesmo tempo são impedidos de dizer que são jovens.
Tal processo expõe os conflitos enfrentados pelos idosos para garantir uma
identidade que escape aos sentidos dominantes. Vejamos em outro recorte
discursivo como isso se dá:

214
O sujeito na Análise do Discurso

(2). Me chamou de velho me maltrata, eu não sou velho! Eu só tenho 73, mas se um dia eu
envelhecer eu vou vê co­mo velho vive. Que até agora eu sou jovem. Eu sou adolescente...
da meia idade. (N. 73 anos, grupo da terceira idade do Sesc-AL)

Nessa seqüência, percebemos que ser velho é ser maltratado me chamou


de velho me maltrata. Assim, o idoso nega para não ser marginalizado ou ex-
cluído, e procura ressignificar seu estatuto, buscando um lugar nas catego-
rias de idade que retratem o ciclo da vida. Nessa busca, vislumbra um lugar
onde possa se identificar, para fugir do enquadramento de ser “velho”, então
diz: eu sou adolescente... da meia idade. Com este último trecho, percebe-se
o aprisionamento do idoso ao sentido dominante de velhice. Assim, os sen-
tidos o prendem novamente na condição de ser humano de “meia idade”,
remetendo-o ao “maltrato” e à exclusão social.

Tais sentidos, porém, mesmo sendo um já-dito, não é um passado, uma


vez que as condições de produção do dizer que aqui nos referimos – a for-
mação social capitalista e suas desigualdades sociais –, não estão ultrapas-
sadas e, assim, as relações histórico-sociais se expressam no discurso, e vice-
versa, presentificando e atualizando tais sentidos, especialmente porque
eles ainda são constitutivos dessas relações. Os idosos do Sesc procuram
esquecer/apagar certos sentidos para não serem “maltratados”, já que ser
chamados de velhos remete-os à imagem de fracos e passíveis de serem
jogados fora como uma mercadoria gasta e sem utilidade. A negação fun-
ciona como processos defensivos. Ao tentar reprimir policiando a lingua-
gem – ao colocar a palavra velhice como algo que caiu no esquecimento
a palavra velho não existe pra mim –, o idoso acaba, porém, relembrado-a.
Ao censurar, eles evocam os sentidos negativos. Isto acontece porque a
memória discursiva é também histórica (no sentido de ser constitutiva das
práticas sócio-históricas).

[...]

Estudos lingüísticos
O texto a seguir e as informações que descrevem as condições em que foi
produzido foram usados no vestibular 2008 da Universidade Federal do
Paraná.

215
Lingüística III

O episódio relatado a seguir ocorreu em Tubarão (SC)

A adolescente J. S. S. foi impedida de entrar em um baile de gala realizado


no Clube S. J., sob a alegação de que não estava devidamente trajada. Após
uma discussão entre sua mãe e a portaria do clube, a moça pôde ingressar e
participar do evento. Dias depois, J. S. S. e sua mãe entraram com uma ação na
justiça contra o clube, solicitando reparação de danos morais.

Leia a seguir, trechos da sentença do Juiz de Direito L. R. A., emitida em 11


jul. 2002.

[...] No Brasil, morre por subnutrição uma criança a cada dois minutos,
mais ou menos. A população de nosso planeta já ultrapassou seis bilhões de
pessoas e um terço deste contingente passa fome, diariamente. A miséria se
alastra, os problemas sociais são gigantescos e causam a criminalidade e a
violência generalizada. Vivemos em um mundo de exclusão, no qual a bru-
talidade supera com larga margem os valores humanos. O Poder Judiciário é
incapaz de proporcionar um mínimo de Justiça Social e de paz à sociedade.

E agora tenho de julgar um conflito surgido em decorrência de um ves-


tido. Que valor humano importante é este, capaz de gerar uma demanda
jurídica? [...]

Um primeiro problema que surge é saber enquadrar o conceito de traje


de gala a rigor, vestido longo, aos casos concretos, ou seja, aos vestidos utili-
zados pelas participantes do evento. Nesta demanda, a pessoa responsável
pelo ingresso no baile entendeu, em nome do requerido [o clube], que o
vestido da autora não se enquadrava no conceito. Já a autora e sua mãe
entendem que sim.

Como determinar quem tem razão? Nomear um estilista ou um colunista


social para, cientificamente, verificar se o vestido portado pela autora era ou
não de gala a rigor? Ridículo seria isto.

Sob meu ponto de vista, quem consente com a futilidade a ela está sub-
metida. Ora, no momento em que uma pessoa aceita participar destes tipos
de bailes, aliás, nos quais as indumentárias, muitas vezes, se confundem com
fantasias carnavalescas, não pode, após, insurgir-se contra as regras sociais
deles emanadas. Se frívolo é o ambiente, frívolos são todos os seus atos. Na

216
O sujeito na Análise do Discurso

presente lide, nada ficou provado em relação ao requerido, salvo o fato de


que a autora foi impedida, inicialmente, de entrar no baile, sendo, posterior-
mente, frente às atitudes de sua mãe, autorizada a entrar. Não há prova nos
autos de grosserias, ou melhor, já que se fala de alta sociedade, falta de urba-
nidade, impolidez ou indelicadeza por parte dos funcionários do requerido.
Apenas entenderam que o traje da autora não se enquadrava no conceito de
gala a rigor e, por conseguinte, segundo as regras do baile, sua entrada não
foi permitida. Isto, sob meu julgamento, não gera danos morais, pois não se
trata de ato ilícito. Para quem tem preocupações sociais, pode até ser um
absurdo o ocorrido, mas absurdo também não seria participar de um evento
previamente organizado com regras tão estultas? [...]

Para finalizar, após analisar as fotografias juntadas aos autos [...] não posso
deixar de registrar uma certa indignação de ver uma jovem tão bonita ser
submetida, pela sociedade como um todo, incluindo-se sua família e o pró-
prio requerido, a fatos tão frívolos, de uma vulgaridade social sem tamanho.
Esta adolescente poderia estar sendo encaminhada nos caminhos da cultura,
da literatura, das artes, da boa música. Poderia estar sendo incentivada a lutar
por espaços de lazer, de saber e de conhecimento. Mas não. Ao que parece,
seus valores estão sendo construídos pela inutilidade de conceitos e práticas
de exclusão. Cada cidadão e cidadã é livre para escolher seu próprio cami-
nho. Mas quem trilha as veredas das galas de rigor e das altas sociedades,
data venia, que aceite seus tempos e contratempos, e deixe o Poder Judiciário
cuidar dos conflitos realmente importantes para a comunidade em geral. [...]

1. A partir do conceito de jogo de imagens formulado por Pêcheux, identifique


no texto anterior:

a) Qual é a imagem do lugar de A pelo sujeito colocado em A?

217
Lingüística III

b) Qual é a imagem do lugar de B pelo sujeito colocado em A?

c) Qual é o ponto de vista de A sobre R?

218
O sujeito na Análise do Discurso

2. A sentença do juiz L.R.A. exemplifica uma das teses da terceira fase da Análi-
se do Discurso: seu discurso é construído a partir da disputa entre duas for-
mas diversas de interpretar o mesmo fato, ou seja, da disputa entre duas
formações discursivas diferentes. Mostre como essa relação interdiscursiva
se manifesta na sentença do juiz.

219
Exemplos de Análises do Discurso

O objetivo desta unidade é mostrar o uso do referencial teórico desen-


volvido pela Análise do Discurso (AD) de linha francesa para o estudo de
alguns discursos, e apresentar exemplos de estudos que fazem a relação
entre teoria e prática nessa área.

O primeiro estudo escolhido foi elaborado por Sírio Possenti e publi-


cado no livro Os Limites do Discurso (2002). Trata-se de um ensaio sobre a
linguagem politicamente correta.

O segundo estudo tem como autora Érica Karine Ramos Queiroz e dis-
cute “O Mito de Informatividade, Imparcialidade e Objetividade em Fun-
cionamento nos Comentários Telejornalísticos”. Trata-se de um artigo pu-
blicado na revista Estudos Lingüísticos (XXXIV, 2005).

A escolha desses dois estudos levou em conta em primeiro lugar a atu-


alidade dos temas estudados e a familiaridade que os alunos do Curso de
Letras têm com os mesmos temas; o segundo critério para a escolha foi a
abordagem teórica adotada pelos dois autores. Ambos utilizam o referen-
cial da AD francesa para fundamentar suas análises.

Exemplo 1: A linguagem politicamente correta


e a Análise do Discurso
Possenti (2002, p. 37-59) inicia seu estudo lembrando que a expressão
“politicamente correto” (ou incorreto) é usada principalmente para se re-
ferir a expressões lingüísticas, mas é usada também em outros campos.
Aponta o exemplo de um jornal que qualifica de politicamente correto o
comportamento de jovens que são fiéis, trocam anéis e fazem sexo res-
ponsável. Ou de um canal de TV que proíbe algumas mímicas usadas em
programas para surdos-mudos por considerá-las politicamente incorretas:
puxar os cantos dos olhos para representar um chinês, por exemplo.
Lingüística III

No campo da linguagem, o movimento em defesa de um comportamento


politicamente correto teve origem nos Estados Unidos da América e foi difun-
dido às vezes de forma bem organizada, às vezes de forma enfraquecida, em
diversos países. O foco principal do movimento é o combate ao racismo, ao ma-
chismo, à pretensa superioridade do homem branco ocidental e de sua cultu-
ra. Mas defende também o uso de um vocabulário não marcado para designar
qualquer grupo discriminado (velhos, baixinhos, deficientes, portadores de do-
enças como a Aids).

Possenti (2002, p. 39) afirma:


As formas lingüísticas estão entre os elementos de combate que mais se destacam, na medida
que o movimento acredita (com muita justiça, em princípio) que reproduzem uma ideologia
que segrega em termos de classe, sexo, raça e outras características físicas e sociais que são
objeto de discriminação, o que equivale a afirmar que há formas lingüísticas que veiculam
sentidos que evidentemente discriminam (preto, gata, bicha), ao lado de outros que talvez
discriminem, mas menos claramente (mulato, denegrir, judiar, anchorman, history etc.)

Algumas das palavras citadas por Possenti como não claramente discrimina-
tórias fazem referência à mula (mulato), ao negro (denegrir), ao judeu (judiar) de
forma pejorativa; outras podem ser interpretadas como formas de destacar a
superioridade masculina: anchorman, history.

O movimento em defesa da linguagem politicamente correta apresenta fatos


interessantes para a AD, por colocar em evidência que a significação depende
dos discursos em que as palavras e enunciados são utilizados. O uso de certas
palavras é determinante para que um discurso seja considerado racista, machis-
ta etc. A análise de certos itens lexicais mostra sua relação com as formações
discursivas em que adquiriram historicamente o sentido que têm atualmente:
negro X afro-brasileiro; homossexual X bicha; moça X gata.

A luta do movimento para implementar o emprego de certas palavras e


evitar o emprego de outras coloca em evidência a concepção de discurso como
uma prática social e histórica. Possenti comenta alguns exemplos reveladores do
efeito que pode ter o uso de expressões lingüísticas politicamente (in)corretas.
O primeiro deles refere-se à reação da imprensa a uma declaração de Fernando
Henrique Cardoso quando era candidato à Presidência da República. Na oca-
sião, o candidato se definiu como “mulato”, para mostrar que não se apresentava
como um representante da elite. O uso dessa palavra provocou uma série de
reações na imprensa, em especial de militantes de movimentos de defesa dos
negros, que consideraram a fala de Fernando Henrique politicamente incorreta.
Um militante afirmou: “Só se ele é filho de mula. Mulatinho é cruzamento com
mula, não com negro.” Os jornais publicaram cartas de leitores com a afirmação

222
Exemplos de Análises do Discurso

de que o candidato deveria saber que a palavra “mulato” tem origem pejorativa
e que certos movimentos negros lutam contra sua utilização.

Os movimentos em favor de comportamentos politicamente corretos com-


batem o uso de palavras marcadas negativamente e propõe sua substituição por
outras, que seriam “neutras” ou “objetivas”. A hipótese subjacente à atuação dos
movimentos é de que a conotação negativa é uma característica das palavras. A
utilização de expressões politicamente corretas eliminaria a discriminação.

Possenti mostra que o sentido que essas expressões adquiriram historica-


mente é um efeito dos discursos a que pertencem:
A tese da AD seria, ao contrário, a de que a palavra produz os efeitos de sentido que produz
em decorrência do discurso a que pertence tipicamente (um discurso racista, por exemplo).
Tal discurso só ocorre se a sociedade for de alguma forma racista. Vale dizer, se houver suporte
(a AD diria “se houver condições de produção”) sociológico e histórico na formação social
para que haja uma ideologia racista que se materialize em um discurso que contenha marcas
características dessa ideologia. Esta contraposição em relação ao peso das palavras – peso que
seria seu, segundo uma hipótese, ou que derivaria dos discursos nos quais são enunciadas,
segundo outra – mostra claramente a relevância do problema em questão e a diferença entre
as hipóteses que tentam explicar o que ocorre no domínio do sentido. (Possenti, 2002, p.
45)

O autor escolhe um caso para estudo que mostra com clareza a existência
de grupos organizados em torno do sentido das palavras, e que lutam para que
alguns sentidos sejam vitoriosos e outros eliminados. Segundo ele, são “exem-
plos vivos de que a significação só pode ser explicada através de uma história,
concebida como luta de classes, luta que se dá tanto em torno de bens materiais
quanto em torno de bens simbólicos”.

Para contextualizar os dados usados em sua argumentação, Possenti historia


que em 1.o de maio de 1992, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma notícia sobre
a edição da nova versão do seu Manual de Redação. Essa notícia destacava que o
jornal estava atento à linguagem politicamente incorreta e apresentava alguns
exemplos de orientações dadas aos jornalistas. Um exemplo definia a norma
sobre o uso de expressões para indicar a cor das pessoas mencionadas nas no-
tícias e reportagens: evitar expressões como “preto, crioulo, escurinho, alemão,
moreno, de cor”; utilizar “negro”; não usar “afro-brasileiro, cidadão de tipo ne-
gróide”. Essas orientações mostram que o jornal procura evitar expressões que
tenham um efeito claramente discriminatório, mas quer evitar também o uso de
palavras que revelassem um cuidado excessivo, que poderiam denunciar, pelo
excesso, atitudes racistas. Escolhas muito cuidadosas poderiam ser tomadas
como sintomas de um preconceito disfarçado.

223
Lingüística III

A mesma notícia exemplificava a orientação aos jornalistas quanto à escolha


de formas usadas para indicar a orientação sexual de pessoas citadas nas ma-
térias do jornal: evitar “bicha, veado, fresco, boneca, traveco, sapatão, ela calça
42”; utilizar “homossexual, travesti, lésbica”; não empregar “gay (significa feliz),
alfenado, safista”. Estas últimas orientações tiveram como resposta uma carta,
que foi publicada pelo jornal:
Gostaria de apontar uma sutil incorreção no “Novo Manual de Redação” da Folha. Ao referir aos
termos sinônimos de ho­mossexualidade, sugere evitar os chulos “bicha, veado, boneca, traveco,
sapatão”, substituindo-os por “homossexual, travesti e lésbica”, desaconselhando o uso dos termos
“gay (que significa feliz), alfenado e safista”. Primeiro uma correção: o étimo gay provém da língua
catalã-provençal, redundando no português gai, tanto quanto no inglês significando alegre (e não
“feliz”), e desde o século 13, segundo pesquisas do Sr. John Boswell, da Universidade da Califórnia,
é utilizado exatamente no mesmo sentido contemporâneo, como sinônimo de homossexual.
Segundo reparo: o termo homossexual foi usado pela primeira vez em 1869, cunhado pelo
escritor uranista Benkert, sendo imediatamente apropriado pelo saber médico como designativo
“científico” em substituição ao antigo “sodomita”. Há mais de duas décadas, no mundo inteiro, os
homófilos adotaram o termo gay para se autoidentificar, preferindo-o ao ascético “homossexual”,
que consideram uma imposição da medicina. Se a Folha privilegia o termo negro, em lugar de
crioulo, preto etc. – adotando exatamente o designativo preferido dos afrodescendentes brasileiros
–, que respeite igualmente a preferência das lésbicas, travestis e homossexuais de nosso país, que
há mais de uma década se autoidentificam como gays. (Luiz Mott, presidente do grupo Gay da
Bahia – Salvador, BA) (POSSENTI, 2002, p. 47)

Possenti destaca que essa carta relaciona claramente algumas palavras aos
discursos a que pertencem: “homossexual” pertenceria a um discurso médico
e um discurso ascético, portanto seu uso seria politicamente correto. A carta
mostra também uma diferença na avaliação dos efeitos de sentido decorrentes
do uso da palavra “gay”: enquanto a Folha de S. Paulo julga esse uso preconcei-
tuoso, os homossexuais consideram que esta é a palavra mais adequada para
identificá-los. Luiz Mott lança mão de informações etmológicas para justificar
sua posição.

Outro fato interessante destacado na carta é o uso de determinados termos


como se fossem de uma neutralidade “acima de qualquer suspeita”. É o que se
observa com o uso da palavra “afrodescendentes” para designar os negros e de
“homófilos” para designar homossexuais. Essas palavras fariam com que os dis-
cursos em que são empregadas se tornassem politicamente neutros. É como se
houvesse palavras que apenas refletissem a realidade, sem estar associadas a
nenhum grupo social, sem estar ligadas a nenhuma posição ideológica.

Possenti discute ainda um último exemplo. Trata-se de uma carta publicada


pela revista IstoÉ 1.208, de 25/11/1992, seguida da resposta da revista:
“Sr. Diretor:
Sou assíduo leitor desta revista, sempre a tive como grande veículo de comunicação sério e de
grande responsabilidade. Porém, na edição 1.206, assunto religião, onde vocês comentam a grande

224
Exemplos de Análises do Discurso

importância de Galileu Galilei na história, há um trecho onde lê-se “um dos períodos mais negro
(sic!) da história”. Devido a essa frase, venho expor meu repúdio e questionamento. No momento
em que isso é referido, não há afirmação de que negro é sinônimo de desgraça histórica? (Robson
Carlos Almeida, Salvador- BA)
ISTOÉ explica: No sentido em que a palavra negro foi usada, ela é tão ofensiva quanto dizer que
houve um golpe branco em um determinado país, por exemplo.”

Este exemplo mostra que a palavra “negro”, no enunciado em que foi usada,
tem efeitos de sentido diferentes para a revista e para o autor da carta. Mas a
questão não é simples. A revista usa a expressão “revolução branca” para desig-
nar uma revolução sem derramamento de sangue, o que pode ser considerado
positivo. A questão é: que expressão se opõe a “revolução branca”? Se for a “pe-
ríodo negro”, a resposta da revista confirmaria a interpretação do autor da carta,
ou seja, haveria a possibilidade de se associar esse uso a uma postura racista.
Possenti conclui:
Mas a questão ficaria certamente diferente se mostrasse que a ocorrência de “negro” na
expressão “período negro da história”, é retomada de um domínio no qual se encontra
também, por exemplo, a expressão “nuvens negras no horizonte”, na medida em que esta
expressão refere-se a determinadas condições meteorológicas ou atmosféricas. Mesmo que
esta expressão seja aplicada, por exemplo, ao clima político ou econômico de determinado
país, imaginar que veicule racismo provavelmente é exagero. Como a cor escura das nuvens
costuma efetivamente ser prenúncio de tempestades, a conotação racista negativa não se
produz, já que tal discurso se funda em discursos sobre fatores climáticos, e não em discursos
sobre raças e etnias. A associação possível (e histórica) é de negrume com noite, e de noite com
obscurantismo intelectual. Esta associação também leva a concluir que “período negro” pode
não conotar discurso racista. Na reportagem da revista que a carta critica, a palavra “negro”
foi interpretada como se veiculasse sentido pejorativo relativamente à raça negra. (POSSENTI,
2002, p. 49)

Possenti enfatiza que o sentido de um enunciado tem de levar em conta a


formação discursiva à qual ele pertence. Segundo esta perspectiva, a interpreta-
ção do leitor da revista IstoÉ não se sustenta.

Finalmente, o autor sintetiza os equívocos do movimento por um comporta-


mento politicamente correto em relação à linguagem:

 o primeiro equívoco é considerar que a troca de palavras marcadas por


outras não marcadas ideologicamente pode resultar na diminuição do
preconceito. É o preconceito que produz os efeitos de sentido associados
às palavras e não as expressões em si. A hipótese da existência de palavras
“puras”, sem conotação ideológica é uma ingenuidade;

 os argumentos de ordem etimológica usados não se sustentam. É o que se


pode observar na relação feita entre a primeira sílaba de “history” e a for-
ma pronominal masculina “his”. Ou a alegação de que a palavra “mulato” é
ofensiva pelo fato de ter originado de “mula”;

225
Lingüística III

 nos casos em que a língua não dispõe de um sinônimo menos marcado


para expressões consideradas politicamente incorretas, o movimento pro-
põe eufemismos que chegam a ser cômicos. Por exemplo, a substituição
de “adúltero” por “indivíduo casado com atividade sexual paralela”, ou de
“prostituta” por “prestadora de serviços sexuais.”

Para encerrar sua análise, Possenti lembra que o humor vive em grande parte
dos preconceitos. Se o movimento em defesa do comportamento politicamente
correto fosse vitorioso, o humor poderia desaparecer. Mas o que se observa atu-
almente é que o movimento tem sido alvo dos humoristas. Possenti reproduz ao
final exemplos de diálogos usados por Luis Fernando Verissimo em um conjunto
de tirinhas para fazer humor brincando com a linguagem politicamente correta:

(POSSENTI, 2002, p. 52)

– Sabe aquela do indivíduo com opção sexual alternativa e do afro-brasil-


eiro avantajado?

– Ah! A da bicha e do negrão.

Exemplo 2: O mito de informatividade,


imparcialidade e objetividade em funcionamento
nos comentários telejornalísticos
O estudo realizado por Queiroz (2005) adota o referencial da Análise do
Discurso para discutir o funcionamento dos comentários telejornalísticos en-
tendidos como mecanismos de poder e controle. A autora procura mostrar o
caráter autoritário dos comentários telejornalísticos, que impõem “uma inter-
pretação que se apresenta como a interpretação”, ou seja, que limitam as pos-
sibilidades de significação da notícia.

Para mostrar o funcionamento dos comentários telejornalísticos, a autora


selecionou um conjunto de acontecimentos inter-relacionados: a ocupação
das praças de pedágio do Paraná pelo Movimento dos Sem Terra (MST) e as
reivindicações por reforma agrária que foram noticiados entre os dias 24 e
28/06/2003. Esses eventos foram amplamente noticiados (e comentados)
pelos canais de televisão. Queiroz fez o estudo dos comentários veiculados em
cinco telejornais brasileiros: Jornal da Record (Rede Record), Jornal Nacional

226
Exemplos de Análises do Discurso

(Rede Globo), Jornal da TV (Rede Cultura), Jornal da Band (Rede Band) e Jornal
do SBT (Rede SBT). O critério inicial para a escolha das notícias foi a semelhan-
ça temática, ou seja, o mesmo conjunto de acontecimentos. A autora justifica
nos seguintes termos a seleção de cinco telejornais:
Cabe assinalarmos que uma notícia nunca é a mesma visto que se constrói, se significa
diferentemente de um jornal para outro em função da determinação ideológica, da posição
de onde é noticiada, das diferentes interpretações possíveis para um mesmo fato produzindo
deslocamentos, sentidos outros. (QUEIROZ, 2005, p. 976)

Os telejornais, ao apresentarem as notícias, fazem também a relação dos


fatos noticiados com outros. Essas relações são fundamentais para a Análise do
Discurso.

Vejamos inicialmente um comentário veiculado no Jornal da Record:


Comentário do apresentador Boris Casoy: Isso foi insuportável, é uma inversão da ordem e da
lei do Paraná. Enquanto o Incra e o Ministério da Reforma Agrária não se entendem, o Ministro e o
Presidente do Incra têm posições diferentes em relação à Reforma Agrária. O MST, você viu, avisou
que vai continuar as invasões. Com o governo federal paralisado no setor, sem tomar decisões,
discutindo ad-infinito, como se diz em latim, essa questão da tensão no campo vai aumentando.
A situação está se tornando um verdadeiro barril de pólvora. De repente, devido a essa omissão,
vamos ter uma imensa, gigantesca desgraça parlamentar. (Jornal da Record, 24/06/2003)
(QUEIROZ, 2005, p. 976)

Várias expressões foram destacadas nesse comentário. Inicialmente, a expres-


são “você viu” é usada para criar um efeito de credibilidade, de informatividade
e para estabelecer uma relação de cumplicidade com o telespectador. O trecho
que tem as expressões destacadas controla a produção de sentidos, a interpre-
tação da notícia pelo telespectador. Esse trecho produz o efeito de sentido de
que não há interesse do governo em fazer uma reforma agrária. O comentário
de Boris Casoy direciona o telespectador a acreditar na iminência de uma guerra,
causada pela divisão do governo petista. O apresentador reforça uma avaliação
negativa do governo a partir da desmoralização dos movimentos sociais e da
omissão dos dirigentes petistas.

Queiroz destaca também o seguinte comentário veiculado na Rede Cultura:


Comentário do apresentador Heródoto Barreto: Bom, hoje pela manhã, Márcia, eu conversei
com o diretor da associação das estradas do Paraná e ele estava me dizendo que para
desapropriar o governo do estado teria que pagar a importância de três bilhões de reais para
retomar as estradas e eu disse: mas o pedágio não está muito caro? Ele disse: não! Está mais
barato do que os do estado de São Paulo. (Jornal da TV, 25/06/2003) (QUEIROZ, 2005, p. 977)

O comentário de Heródoto Barreto cria um efeito de imparcialidade através


do jogo entre o discurso direto e o indireto. Essa forma de construção discursiva
dissimula a opinião do telejornal. Mas o comentarista revela sua posição princi-

227
Lingüística III

palmente a partir de duas escolhas lexicais para se referir ao mesmo fato: “de-
sapropriar” e “retomar”. “Desapropriar” tem o efeito de sentido de legalidade. O
comentarista escolhe esta expressão ao citar a fala do diretor da associação das
estradas do Paraná. Já o verbo “retomar” produz o efeito de ilegalidade, de trans-
gressão e é usado ao citar a fala do governador do estado.

Queiroz conclui:
Assim, se considerarmos que o sentido é construído historicamente e que a escolha lexical não
é aleatória, torna-se pertinente notarmos que a inscrição-identificação desse sujeito discursivo
está na fronteira móbil das formações discursivas. Melhor dizendo, compreendemos que
mais de uma formação discursiva está funcionando na construção discursiva desta notícia,
sendo dominante a formação discursiva contrária ao movimento do MST e à reforma agrária.
(QUEIROZ, 2005, p. 977)

O último exemplo analisado por Queiroz é a sequência de comentários inclu-


ídos no telejornal da Rede Band.
Comentário do apresentador Roberto Cabrini: Mas sabe o que acontece, Mitre? Não dá para todo
mundo ganhar nesse jogo, não dá para resolver a questão da reforma agrária com todo mundo
ganhando. Algumas pessoas terão de perder em nome do bem comum. Eu acho que é a mesma
questão das Reformas também, né? Os magistrados, por exemplo, dizem que as reformas não são
deles porque não afeta o dinheiro deles. É que nem aquela piada que o sujeito diz assim: olha, eu
sou a favor de uma sociedade igualitária. Você é a favor de uma sociedade igualitária? Sou. Então,
se você tivesse dois aviões daria em prol da sociedade? Daria, perfeitamente. Se você tivesse dois
iates? Daria, perfeitamente. Se você tivesse duas fazendas? Daria a segunda, perfeitamente. E se
você tivesse dois carros? Dois carros não, carro eu tenho dois. Quer dizer, não dá para as pessoas
quererem ganhar o tempo todo.

Comentarista Fernando Mitre: É, mas no caso da reforma agrária é um movimento legítimo, que
historicamente já devia ter sido resolvido, não tenho dúvida nenhuma sobre isso. Agora, há um
desafio, é preciso que se resolva esse problema dentro da lei, e aí começa de fato o conflito
básico entre o que o governo deve ser e o que o MST é.

Comentário do apresentador Roberto Cabrini: Até porque se não for cumprida a lei, não é
nenhum país. (Jornal da Band, 24/06/2003) (QUEIROZ, 2005, p. 978)

Esta seqüência de comentários mostra uma apresentação teatralizada da no-


tícia: o ator que encena o papel de apresentador âncora polemiza e o ator que
encena o papel de comentarista tem seu discurso legitimado por ser apresentado
como alguém que detém o conhecimento. A teatralização cria uma aparência de
liberdade de opinião, que na verdade não vai além da aparência, pois tanto o apre-
sentador quanto o comentarista só dizem o que lhes é permitido dizer no espaço
institucional do canal de TV.

O apresentador do telejornal conta uma piada que indica claramente de que


lado está. A piada funciona como uma crítica ao MST, que quer ganhar sempre,
que não quer ceder.

228
Exemplos de Análises do Discurso

O comentário de Fernando Mitre vai na mesma direção: ao fazer referência ao


“que o MST é” produz um efeito de pré-construído, leva o telespectador a inter-
pretar que a reforma agrária não está sendo resolvida dentro da lei, que o MST
não procura resolver o problema agrário de forma legal. A crítica de Mitre se es-
tende ao governo. Quando se refere ao “que o governo deve ser”, cria o efeito de
sentido de que o governo petista não desempenha o papel que deveria. Queiroz
(2005, p. 978) conclui que o diálogo entre o apresentador e o comentarista não
passa de uma encenação para produzir o mito de imparcialidade, informativida-
de e objetividade para a apresentação da notícia.

Os demais telejornais incluídos no estudo – Jornal Nacional e Jornal do SBT


– dedicaram pouco espaço às notícias sobre a invasão das praças de pedágio e
manifestações a favor da reforma agrária conduzidos pelo MST. Além disso, esses
dois telejornais não reservaram espaço para comentários sobre essas notícias.

Os exemplos estudados confirmaram que os comentários têm a função de


controlar as relações de poder e de sentido dos fatos noticiados. Considerando
que 90% da população brasileira tem acesso às notícias por intermédio da tele-
visão, é possível avaliar o poder das redes de TV, que assumem a posição autori-
tária de impor sentidos, de determinar o que os telespectadores devem pensar
sobre os fatos noticiados.

Conclusão
Os dois estudos que apresentamos de forma resumida aqui dão uma pequena
amostra do tipo de reflexão que a Análise do Discurso permite fazer sobre os dis-
cursos que refletem as disputas entre grupos na sociedade. O estudo de Possenti
apresenta fatos que mostram disputas declaradas entre grupos historicamente
discriminados e grupos que – também historicamente – se consideram superio-
res e ocupam posições hierarquicamente superiores, seja por qual critério for.

Já a análise de Queiroz mostra disputas entre grupos sociais que se manifes-


tam de maneira velada. Os telejornais se apresentam como objetivos e impar-
ciais na divulgação dos fatos de interesse público, mas de forma dissimulada,
por um lado reforçam o mito da informatividade, imparcialidade e objetividade,
por outro assumem uma posição autoritária de definir que análise dos fatos os
telespectadores devem fazer. Os comentaristas dos telejornais tomam partido
diante dos fatos e se utilizam de estratégias discursivas para transformar os te-

229
Lingüística III

lespectadores em aliados. Além de fornecer as informações, procuram sutilmen-


te impor interpretações prontas, como se fossem as únicas, ou as melhores.

Texto complementar

A influência das revistas femininas na formação


da identidade da mulher
(DORNELLES,1997)

Introdução
Desde algumas décadas atrás, as mulheres têm demonstrado um inte-
resse em buscar o reconhecimento da posição ativa que assumem dentro
da sociedade. A busca pelo papel de sujeito é evidenciada por uma gama
de estudos que procuram mostrar e questionar a maneira como a imagem
da mulher é construída em meios de cultura de massa. As revistas femininas,
por exemplo, constituem uma instância discursiva que exerce forte influên-
cia na vida da mulher. Ao mesmo tempo que essas revistas retratam o papel
que a mulher desempenha na sociedade, elas ajudam a moldar esse papel,
transmitindo ideologias e contribuindo para a manutenção de certas rela-
ções hegemônicas.

Seguindo os parâmetros da Análise Crítica do Discurso, analisarei um


artigo da revista Nova, mostrando de que maneira essas ideologias se ma-
nifestam lingüisticamente no texto. Tomarei como base o modelo tridimen-
sional de análise do discurso proposto por Fairclough (1989; 1992) e levarei
em consideração os estudos de Ballaster et al. (1991), explorando as relações
existentes entre língua, ideologia, poder e revistas femininas.

Análise crítica de um artigo da revista Nova


O artigo analisado, As 10 Armas Secretas de uma Sedutora, foi publicado
na revista Nova em 1995. A revista Nova é a representante da Cosmopolitan
no Brasil, onde vem sendo publicada desde 1973. Cosmopolitan/Nova foi
a primeira revista feminina a situar a mulher na esfera pública. A imagem
construída para essa revista é a de uma revista que é moderna e transgres-

230
Exemplos de Análises do Discurso

sora. O que se vê nas páginas da revista, entretanto, é uma tendência a re-


forçar uma visão conservadora da sexualidade e das relações de gênero
(MCCRACKEN, 1993).

Assim como a maioria dos artigos publicados na revista Nova, o artigo


escolhido para análise explora relações de gênero. Em “As 10 Armas Secretas
de uma Sedutora”, a leitora da revista recebe regras de como se comportar
para ser uma sedutora; para “ter mais pretendentes do que dias na semana”.
Esse propósito parece ser bastante transgressor, no entanto, o que se obser-
va no desenvolvimento do texto é que o objetivo alcançado pela sedutora
que evoca as 10 armas foi conquistar um pretendente único, o marido. Os
próximos segmentos foram retirados do corpus e mostram como o casamen-
to constitui o passo final na busca por se tornar sedutora.
Casar era o que eu mais desejava, mas minha alma gêmea e eu ainda não tínhamos nos
encontrado. (grifos meus, aqui e nos exemplos abaixo)

Mas eu acredito que viver juntos muitas vezes limita as suas possibilidades de casar e de
conhecer o homem certo. Além de compartilhar os prazeres da cama, ele vai usufruir de
todas as pequenas vantagens da vida doméstica sem nenhuma motivação para assumir
um compromisso definitivo.

Os dois exemplos acima apresentam a idéia de que existe uma alma


gêmea, um companheiro ideal, o homem certo que a mulher procura para rea-
lizar um objetivo que toda a mulher supostamente teria: casar. O casamento
é tido como um acontecimento natural na vida da mulher; como se fizesse
parte de seu ciclo de vida. Alvo da crítica feminista, o casamento ainda hoje
em geral apresenta uma estrutura que pressupõe uma relação de hierarquia
entre marido e esposa. Thompson afirma que “tornar-se um ‘marido’ é obter
o direito partriarcal em relação à ‘esposa’” (In: PATEMAN, 1993, p. 237). Se as
mulheres experienciam o casamento da maneira como ele é tradicionalmen-
te estruturado na nossa sociedade, elas acabam participando de uma relação
que a princípio já as coloca em uma posição de subordinada. Ver o casamen-
to e as posições criadas por ele como naturais contribui para a manutenção
da instituição casamento e de todas as relações que essa instituição implica
(relações de poder, por exemplo). O próximo segmento reforça a visão tradi-
cional do que significa ser uma esposa perfeita:
Todas essas regras de comportamento me fazem lembrar da maneira pela qual eu
encontrei e me casei com Mário [...] Definitivamente, eu não sou a esposa perfeita. Pelo
menos, ainda não. Há uma série de coisas que me recuso a fazer, como passar roupas e
lavar pratos.

231
Lingüística III

Nesse último exemplo, vemos que a revista não propõe um tipo de relação
nova entre homens e mulheres, em que, por exemplo, o casal busque uma
relação de parceria, não-hierárquica. Ser esposa é lavar pratos... Thompson (In:
PATEMAN, 1993) sugere que a mudança do casamento só existirá se houver,
além de mudanças econômicas e políticas, uma mudança do significado do
que é ser homem e mulher. Os exemplos seguintes mostram qual é a concep-
ção da revista quanto ao que é ser feminino e masculino.
Quando ainda era solteira, os amigos diziam que minha forma de me aproximar e de me
relacionar com o sexo oposto era semelhante à de um homem. Talvez eles se referissem ao
fato de que eu sabia sempre o que queria (diversão e sexo), não gastando minhas emoções
a cada encontro romântico e não entrando em parafuso se o companheiro ideal não se
materializasse. Também tinha meu jeito de controlar os homens: ser gentil, mas firme.

No início do artigo em análise, a narradora do texto sugere que as leito-


ras sejam sedutoras e, para tanto, que ajam como os homens: “Aja com os
homens como eles sempre agiram com nós, mulheres. Ame-os e deixe-os...
loucos de saudade”; a feminilidade é relacionada à transgressão. No exemplo
anterior, a narradora do texto, que é quem formula e aplica as 10 armas se-
cretas (e com sucesso, porque ela acaba se casando), mostra que agir como
os homens é vantajoso. A narradora desconstrói o estereótipo da mulher de-
sesperada em busca do príncipe encantado:
Durante anos fui o estereótipo da garota desesperada em busca da paixão.[...] Certa vez,
encontrei um homem e, antes mesmo de descobrir seu nome, decidi que seria meu
príncipe encantado. Agarrei-me a esse amor de corpo e alma, mas a insensibilidade de
meu namorado me fazia sentir miserável.

No entanto, ao mesmo tempo ela confere força a esse estereótipo quando


diz que a lógica é uma característica do homem:
“Preciso conhecer muitos deles”, raciocinava (empregando uma lógica tipicamente
masculina).

O uso do léxico tipicamente sugere que ser lógico é característico do


homem. Implicitamente, existe a idéia de que a mulher é o ser que não é
lógico, que é emotivo. Nos três últimos exemplos, algumas das palavras re-
lacionadas ao feminino são: emoções, romântico, companheiro ideal, gentil,
desesperada, paixão, príncipe encantado, amor. As palavras relacionadas ao
masculino são: diversão, sexo, firme, insensibilidade, lógica. O que se viu nos
três últimos exemplos é que os estereótipos tradicionais referentes à mulher
e ao homem são reafirmados. Esses estereótipos são construídos socialmen-
te, por meio da linguagem; não é por acaso que aparecem nas revistas femi-

232
Exemplos de Análises do Discurso

ninas (é a revista sendo moldada e moldando a sociedade). E também não é


por acaso que as pessoas levam adiante crenças com relação ao que significa
ser homem e mulher. Esses pensamentos vêm sendo construídos desde a
Antigüidade com Platão e Aristóteles, passando por filósofos e pensado-
res mais contemporâneos, como Rousseau, Kant, Schopenhauer, Nietzsche
(ALAMBERT, 1986; ALVES; PITANGUY, 1985). As conseqüências da aceitação e
da naturalização (Fairclough 1989) desses tipos refletem no fortalecimen-
to de uma sociedade dominada pela masculinidade; uma sociedade em que
homem (branco) exerce o monopólio social, político e econômico.

No decorrer da leitura do artigo, percebe-se que a autora do texto se


dirige a um tipo de mulher em particular. No caso desse texto, confirma-se
a hipótese de Ballaster et al. (1991) de que haveria uma leitora ideal à qual
o texto é dirigido. Essa leitora seria uma mulher heterossexual, branca e de
classe média. Veja o próximo exemplo:
... Isadora é uma loirinha mignon, dinâmica e sempre em forma, é verdade. Administra
habilmente seu tempo e seu próprio negócio. Vende pontas de estoque de roupas
femininas, mas não é rica e, de manhã, nem sempre levanta de bom humor. Aos 34 anos,
Isadora, como todas nós, se esforça para progredir no trabalho e melhorar a aparência.

Aqui a leitora do texto é identificada com Isadora. O pronome nós inclui a


leitora nesse esforço para ter sucesso profissional e cuidar da beleza. A leito-
ra ideal é supostamente alguém que, como Isadora, trabalha fora e cuida da
aparência física. No próximo segmento do texto, o uso do léxico namorado
confirma que a leitora é supostamente heterossexual:
Diga não a 50% dos convites, deixando bem claro que você prefere ficar em casa e
sozinha. Mais cedo do que você pensa, seu namorado vai desejar passar a noite na sua
cama. Quando isso ocorrer, faça com que ele se sinta bem-vindo. Selecione seus CDs
favoritos, ponha a cerveja para gelar no freezer, arrume um espaço livre no armário para
que ele possa guardar seus ternos e sair de manhã pronto para trabalhar.

[...]

Estudos lingüísticos
1. Procure algum exemplo de situação em que se observe o cuidado com o uso
da linguagem politicamente correta. Você pode observar jornais, revistas ou
relatar algum acontecimento.

233
Lingüística III

O exemplo observado confirma ou não a tese de Possenti, segundo a qual o


uso da linguagem politicamente correta não tem efeito algum sobre a redu-
ção do preconceito?

2. Procure um exemplo de discurso que seja claramente machista, racista ou fe-


minista. Em uma atividade desenvolvida em grupo: destaque as expressões
lingüísticas que funcionam como indícios da formação ideológica em que o
discurso se inscreve.

234
Exemplos de Análises do Discurso

3. Assista a um telejornal e sintetize a fala do comentarista sobre uma questão


polêmica noticiada no dia. Observe se o comentário apresenta evidências de
uma tomada de posição por parte do jornalista (e do canal de TV, naturalmen-
te). Explicite qual é essa posição e como ela foi apresentada no telejornal.

Uma alternativa a essa atividade é escolher um jornal e fazer a relação en-


tre algum texto de opinião (o editorial, por exemplo) e uma notícia apre-
sentados na mesma edição. Destacar no texto de opinião as expressões que
mostram a posição do jornal (ou do jornalista, no caso de artigos assinados)
frente ao fato noticiado.

235
Gabarito

Análise da fala e da conversação


1. Para avaliar a realização dessa atividade pelos alunos, o professor
deve:

 ouvir o trecho de gravação correspondente ao transcrito pelo gru-


po;

 verificar se o grupo usou adequadamente os sinais indicadores de


superposição, pausas, comentários etc.

2. Os alunos devem observar que a alternância entre as intervenções


dos interlocutores no chat é um pouco diferente do que se observa
na conversação face a face. Na conversação oral, a tendência seria de
uma seqüência de intervenções A – B – A – B etc. Como no chat há um
distanciamento maior entre a intervenção de um e de outro, observa-
se que o mesmo participante tem várias intervenções seguidas: A – A
– A – B – B – B – B etc. Se os dois colegas estivessem conversando face
a face, certamente cada um esperaria a resposta do outro às perguntas
antes de inserir outros comentários ou novas questões.

3. Em (a) não há um caso de conversação porque faltou a alternância


entre os interlocutores. O conferencista fez um monólogo e, quando
respondeu questões do público, aqueles que formularam as questões
não tiveram direito à palavra.

Em (b) também não há conversação, porque a comunicação entre S. e


R. não se dá em uma identidade temporal. Não há um limite estreito
de tempo entre a intervenção de cada um dos participantes. Além dis-
so, a troca de bilhetes é uma forma de comunicação escrita. Ainda que
seja uma escrita informal, não se criou social e historicamente uma
“conversação” por bilhetes.

Em (c) foram descritos três eventos de conversação: a interação de L.


com o vendedor, depois com o gerente e novamente com o vendedor.
A apresentação feita permite inferir que em todos os casos houve al-
Lingüística III

ternância de turnos de fala entre os participantes com objetivos bem defini-


dos e sobre tópicos específicos.

Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação


1.

a) Os turnos devem apresentar assimetria. Os participantes apresentam


diferença na posição social. Além disso, a situação define os papéis do
jornalista e do político: cabe ao jornalista fazer perguntas supostamente
de interesse público e compete ao candidato respondê-las.

b) Os turnos devem apresentar simetria. Os interlocutores têm posição so-


cial semelhante e a situação dá condições para que participem da con-
versação em condições de igualdade.

c) Os turnos devem apresentar assimetria. O gerente está em posição hie-


rarquicamente superior aos demais funcionários e, pelo tema da reunião,
cabe a ele definir os tópicos e fazer uso preferencial da palavra.

2. Uma pergunta assinala normalmente o encerramento de um turno conver-


sacional e, ao mesmo tempo, indica quem deve assumir o turno seguinte.
Ao mesmo tempo, a pergunta determina o tópico do turno seguinte, seja
indicando a continuidade do que já foi falado antes, seja introduzindo um
tópico novo.

3. Há várias possibilidades de resposta. Os alunos podem se valer do esquema


usado no texto da aula para mostrar a organização dos tópicos.

O fundamental na relação de continuidade é que cada tema seja encerrado


antes de dar início ao outro. Exemplos:

(B) → (A) →(C)

(A) → (C) → (B)

Na relação de descontinuidade, um tópico é interrompido pela inserção de


outro, podendo ser, ou não, retomado. Exemplos:

(A... → (B) → (C) → ...A)

(A... → (B... → (C) → ...B)

238
Gabarito

Além desses exemplos, há várias formas de trabalhar com a descontinuidade


dos mesmos tópicos.

Estratégias de organização do diálogo


1. O resultado das anotações de cada grupo pode ser diferente, dependendo
da conversação observada. Os marcadores conversacionais mais comuns, e
que serão certamente encontrados são: e daí (e suas variações “daí”, “daí
então”, “aí”), então, né?, tá?

2.

a) O texto apresenta um caso claro de paráfrase: a relação entre os enuncia-


dos “que realmente eh se se verifica que foi gasto pelos sinais exteriores”
e “uso de aviões e comícios e propagandas eh outdoors etc etc”. A se-
gunda expressão faz uma paráfrase da primeira, apresentando a mesma
idéia com outras palavras. Há também uma paráfrase na relação entre as
expressões “n:ão está aparelhada...” e “não está equipada”. É possível con-
siderar paráfrase também a relação entre “por falta de recursos...” e “por
falta de recursos técnicos e humanos”, mas este não é um caso claro, uma
vez que pode ser interpretado como uma repetição.

b) O trecho apresenta um caso de correção logo no início: o falante percebe


a inadequação da expressão “o tribunal eleitoral” e faz imediatamente a
substituição por “ a justiça eleitoral”.

c) O trecho citado apresenta vários casos de repetição: “pelos sinais exterio-


res”, “etc etc”, “que foi declarado”, “sinais exteriores”, “por falta de recursos”,
“a justiça eleitoral”.

A aquisição da linguagem
1. Essas palavras criadas especialmente para a interação com crianças pequenas
mostram que os adultos procuram facilitar a tarefa dos aprendizes mediante
o uso de seqüências silábicas mais fáceis. O uso de palavras com reduplica-
ção silábica facilita a interação adulto-criança nas fases iniciais de aquisição
da linguagem. A criança terá mais facilidade em produzir essas palavras do
que palavras equivalentes como “cachorro” (au-au), “sujeira” (caca), “comida”
(papa). Há um esforço do adulto para facilitar a interação, o que ajuda no
desenvolvimento da criança.
239
Lingüística III

2.

a) Para o inatismo, o papel do adulto restringe-se a fornecer os dados da


língua que a criança vai adquirir, já que o processo de aquisição é visto
como resultado de um dispositivo mental inato. Esse dispositivo fornece
as características gerais da gramática a ser adquirida pela criança e defi-
ne as hipóteses que ela faz a partir dos dados fragmentários fornecidos
pela fala dos adultos.

b) Já para o interacionismo, a forma como o adulto interage com a crian-


ça no período de aquisição da linguagem é fundamental no processo
de aprendizagem da língua. Essa teoria assume que os adultos tratam
a criança como um interlocutor desde as primeiras emissões de sons,
ainda que esses não correspondam a palavras da língua. A aquisição da
linguagem seria o resultado de uma interação constante adulto/criança.

3. A aquisição da língua materna se dá de forma semelhante nos diversos gru-


pos sociais. É um processo natural e social: está relacionado ao desenvolvi-
mento da criança e a práticas dos grupos sociais. Já a escrita e seu aprendiza-
do são práticas essencialmente culturais. Nem todas as sociedades dispõem
de sistemas de escrita e o acesso à escrita depende de decisões políticas. Há
sociedades em que a escrita é privilégio de um grupo e outras que procuram
democratizá-la.

Análise retórica da argumentação


1. O autor explicita sua tese tanto na síntese apresentada antes do texto quan-
to no último parágrafo. A tese poderia ser sintetizada como “alguns leitores
dos seus textos publicados na revista Veja não sabem ler”. Saber ler para ele
significa compreender a lógica do texto, ou seja, a organização dos seus ar-
gumentos e saber que para questionar a tese do autor seria necessário fazer
um trabalho de contra-argumentação, de demonstração de que os argu-
mentos são equivocados.

2. Para identificar o auditório temos que procurar marcas no texto que indi-
quem quem o autor pretende influenciar com sua argumentação. No texto
ele dirige explicitamente aos leitores da revista Veja. A pretensão de Castro
é formar a opinião dos leitores. Para conseguir seu propósito, é necessário
que a leitura seja adequada, ou seja, que os leitores tenham um bom nível de

240
Gabarito

compreensão do texto, que inclui o reconhecimento e a adequada avaliação


de seus argumentos (a lógica do texto, sua semântica, isto é, seu significado).

3. O autor constrói sua argumentação principalmente a partir das ilustrações e


exemplos. Alguns dos argumentos que podem ser destacados do texto são:

 a narrativa sobre Wadi Haddad apresentada no primeiro parágrafo;

 os vários exemplos de trechos de cartas citados no segundo parágrafo;

 o apelo à lógica para limitar as formas possíveis de discordar de sua argu-


mentação apresentada no quinto parágrafo (este é um argumento quase-
lógico);

 os exemplos de trechos de cartas citados no sexto parágrafo.

A teoria da argumentação na língua


1.

a) Posto: Quero saber onde.

Pressuposto: Você escondeu a arma do crime em algum lugar.

b) Posto: Meu carro tem problemas no motor.

Pressuposto: Meu carro já tinha problemas no motor antes.

c) Posto: Lamento dar esta informação.

Pressuposto: Não aceito seu convite.

d) Posto: O gerente do banco percebeu o desvio de dinheiro.

Pressuposto: Havia desvio de dinheiro na agência.

e) Posto: Não sei se Antônio tem dívidas.

Pressuposto: Antônio tinha o hábito de se endividar.

2. O leitor sabe que o Everest é o pico mais alto do mundo. A revista Veja, além
de comparar a localização da reserva de petróleo com o Everest, usa um ope-
rador argumentativo orientado para a afirmação plena, ou seja, para a total
equivalência entre a profundidade da reserva e a altura do pico mais alto do

241
Lingüística III

mundo. Com isso, orienta a argumentação para a dificuldade de acesso à


reserva de petróleo.

3. Nos enunciados dos diretores A e B, a segunda proposição é introduzida


pelo operador argumentativo mas. A proposição introduzida pelo mas sem-
pre revela a posição do falante e dá a orientação argumentativa para sua fala.
No diálogo, o Diretor A é contrário à contratação da candidata, pois dá mais
ênfase ao fato de ser mulher, o que considera um argumento desfavorável a
sua contratação. Já o Diretor B é favorável à contratação, pois coloca como
argumento decisivo a qualificação da candidata como motorista.

Teoria da informação
1. Este trecho de redação escolar assemelha-se ao analisado por Val (1991):
“Violência social”. O estudante não apresenta nenhuma informação nova, o
que contraria a expectativa do leitor/professor. O texto é construído a partir
de um conjunto de chavões, de lugares-comuns que o tornam repetitivo e
desinteressante. Quem lê esse texto tem a impressão de estar relendo algo
repetido milhares de vezes.

2.

a) O primeiro parágrafo do texto é de difícil leitura para alguém que não


atua na área de Engenharia Elétrica. É um texto que tende a ser rejeitado
pelo leitor, que não consegue atribuir-lhe um significado. Ou seja, está na
terceira ordem de informatividade, segundo a análise de Beaugrande e
Dressler (1983).

b) O segundo parágrafo trabalha com exemplos do cotidiano. Com isso


acrescenta explicações e informações que podem permitir que o texto
passe à segunda ordem de informatividade. Assim, a leitura dos dois pa-
rágrafos em conjunto aumenta a possibilidade de interpretação do texto
tanto para leitores da área a que se destina quanto para leitores de outras
áreas do conhecimento.

Teoria dos atos de fala


1. O professor realiza o ato ilocucionário de perguntar. Não se trata de uma
pergunta real, mas de uma pergunta de exame, conforme a classificação de

242
Gabarito

Searle.

2. As condições de felicidade estão relacionadas às circunstâncias em que a


pergunta é feita: trata-se de uma situação de prova oral de vestibular; quem
faz a pergunta é o professor/examinador; a pergunta é dirigida a um candi-
dato que presta o exame; o tema da pergunta é algo previsto no programa
da prova.

3. O professor dá uma ordem.

4. As condições de felicidade estão relacionadas às circunstâncias em que a


pergunta é feita: trata-se de uma situação de prova oral de vestibular; quem
dá a ordem é o professor/examinador, que está em uma posição hierárquica
na qual a ordem é aceitável; a ordem é dirigida a um candidato que presta o
exame; o tema da ordem é algo previsto no programa da prova.

5. O ato perlocucionário está relacionado às conseqüências da ordem dada


pelo professor/examinador para o candidato. No caso, o candidato não sabe,
ou não quer ser sincero e dizer que não sabe a resposta. Em vez disso, “chuta”
uma resposta diante da ordem dada, com o objetivo de enganar, de fingir
que sabe fazer o que o examinador lhe solicita.

As máximas conversacionais
1. O segundo interlocutor violou a máxima da quantidade. O primeiro partici-
pante usou a expressão “Tudo Bem?” como uma expressão fática, um cum-
primento simplesmente. A resposta adequada seria uma expressão fática de
cumprimento, não um relato.

2. A fala da mulher apresenta um volume de informações menor do que o


necessário para se fazer entender, ou seja, viola a máxima da quantidade.
Porém, o marido, atendendo ao princípio de cooperação, vai procurar inter-
pretar a intenção da esposa. Se ela não atendeu ao telefone ou é porque está
impedida de fazê-lo por alguma razão, ou porque sabe que o telefonema é
para o marido. Assim, a primeira implicatura corresponde à interpretação da
fala da mulher como um pedido: “Atenda ao telefone.” A resposta do marido
também não apresenta informações suficientes (viola a máxima da quanti-
dade), mas a mulher também vai fazer a interpretação a partir de uma im-
plicatura. Vai deduzir que ele está apresentando uma justificativa para não
atender à ligação.

243
Lingüística III

3. O diálogo atende à máxima da qualidade. Como o falante não quer responder


à pergunta afirmando algo que não considera verdade (ela é bonita), prefere
apresentar uma resposta que não corresponde ao que foi perguntado, mas
que é uma afirmação que ele considera verdadeira. Mas a resposta dada não
é relevante, ou seja, não corresponde ao que foi indagado. Assim, cabe ao in-
terlocutor concluir, por implicatura, que a namorada de Felipe não é bonita.

Conceitos básicos da Análise do Discurso


1. A piada mobiliza os campos discursivos da política e da religião para obter o
efeito humorístico. O campo da política aparece inicialmente na seleção dos
personagens, os governantes de dois países. A política é o campo principal da
piada, que coloca em foco a vaidade do presidente do Brasil e, como um pano
de fundo, a exploração comercial do primeiro ministro de Israel. Quem não usar
as informações do campo da religião não conseguirá entender a piada. A iden-
tificação de Fernando Henrique com Jesus Cristo é feita pela referência a Jeru-
salém e pela pergunta final: “Não acha que é muito dinheiro por três dias?”

2. O artigo se insere no campo discursivo da política, mais especificamente, da


política de segurança. O autor assume uma posição de crítica à política de se-
gurança no Brasil, a partir da comparação entre os ataques terroristas coman-
dados pela Al Qaeda nos Estados Unidos e Inglaterra e pelo PCC no Brasil.

3. A piada põe em cena uma personagem que representa a formação ideológi-


ca e discursiva correspondente à elite econômica. A forma como a redação
da menina é apresentada coloca em evidência o distanciamento, o desco-
nhecimento, a insensibilidade dos que ocupam as posições sociais mais altas
em relação às camadas mais pobres da população.

O sujeito na Análise do Discurso


1.

a) O autor da sentença, o Juiz L. R. A., fala a partir da posição que ocupa dentro
do Poder Judi­ciário: a posição de juiz no seu papel institucional de julgar
uma ação. Na sentença, ele discute exatamente qual é a atribuição de al-
guém no papel de juiz: julgar futilidades, como o uso de um vestido em um
baile ou os conflitos realmente importantes para a comunidade em geral.

244
Gabarito

b) A imagem que A (o juiz) tem de B (a adolescente e sua mãe que encami-


nharam a ação de reparação por danos morais) é de uma pessoa comum
que se caracteriza pela futilidade dos valores que assume.

c) O ponto de vista de A (juiz) sobre R (o tema da ação, ou seja, o pedido de


reparação por danos morais) é de que esse tema não tem a importância
que B lhe atribui. Para A, decidir se um vestido é ou não de gala não é
atribuição para alguém que está no lugar onde ele se encontra (um juiz,
no exercício de sua profissão).

2. A posição do juiz é de considerar que o fato ocorrido no baile não é rele-


vante a ponto de jus­tificar uma demanda judicial. Para ele, um baile de gala
é uma futilidade e todas as normas de organização desse evento não têm
importância alguma. Por outro lado, tem que dialogar com as reivindicações
apresentadas no processo, que revelam uma valorização totalmente diferen-
te dos mesmos fatos.

Exemplos de Análises do Discurso


1. É necessário observar se os exemplos selecionados pelos alunos correspon-
dem efetivamente ao uso da linguagem politicamente correta, ou seja, se
revela um cuidado na escolha do léxico, para evitar expressões que sejam
discriminatórias. Certamente, os alunos vão afirmar que o uso da linguagem
politicamente correta não reduz o preconceito, já que isso está no texto de
Possenti e a autoridade do autor pesa bastante em discussões desse tipo.
Mas pode haver divergências, especialmente se na turma houver militantes
de grupos discriminados (negros, homossexuais, feministas).

2. Observar inicialmente se o grupo selecionou adequadamente um discurso


que corresponda às características solicitadas. Orientar as discussões sobre a
identificação das expressões lingüísticas marcadas ideologicamente.

3. Observar se a síntese do comentário foi feita de maneira clara, de modo que


se possa, através dela, compreender o que o jornalista disse. A seguir, veri-
ficar se o aluno conseguiu identificar adequadamente a posição assumida
pelo jornalista e a forma como isso se dá. Se o aluno optar pelo trabalho com
o texto escrito, verificar inicialmente se a escolha do material está adequada.
A seguir, avaliar se ele identificou corretamente a posição assumida pelo jor-
nal (ou pelo jornalista) diante da notícia.

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Anotações
lingÜÍstica iii

IARA BEMQUERER COSTA

lingÜÍstica iii
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-0778-3

lingÜÍstica iii

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