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1988

ILUMINAÇÕES PROFANAS
(POETAS, PROFETAS E DROGADOS)
por José Miguel Wisnik

Resumo

O olhar visionário sempre foi um deslocamento do tempo, desde os


xamãs tribais que juntavam profecia, canto, dança e alucinógenos em
suas visões de partes do tempo inacessíveis aos mortais. Esse olhar
pode ainda ser próximo, como o de Clarice Lispector ao escrever “O
ovo e a galinha”, texto que é um verdadeiro tratado poético do olhar,
visão de um ovo arquetípico no ovo doméstico à maneira de uma
“iluminação profana” benjaminiana. Mas a relação com a droga, com
o fármaco que era veneno e remédio, mudou em relação ao passado.
Se seu uso continua sendo tabu, sua aura se perdeu. A droga virou a
mercadoria por excelência do consumo de massa depois que passou
da experiência neo-romântica hippie com a maconha e o LSD para a
aceleração egoica e destrutiva da cocaína e do crack. Num mundo
pós-utópico e pós-moderno, ela é somente um hábito, confessa o
escritor William Burroughs. Seja como for, os poetas sempre
reconheceram a ambiguidade simbólica e os perigos dessa experiência
que implica uma perda dos dêiticos, isto é, daquilo que nos situa no
mundo da linguagem (Baudelaire já falava da ressaca e da fraqueza
que sucedem à beatitude, à inteligência cósmica e à acuidade
provocadas pelo haxixe). Ir ao avesso da visão e voltar, reconhecer o
mito para poder ultrapassá-lo: sobre o fundo dessacralizado e
ambivalente da modernidade, é como aparição fugaz ou como
disfarce (“A galinha é o disfarce do ovo”, diz Clarice) que o olhar
visionário acontece, irrupção do imprevisto, do entrevisto, do
interdito no tempo.
O visionarismo é um assunto que peca por ser muito antigo ou então
excessivamente atual. É que o olhar visionário é já uma visão
deslocada do tempo, uma visão que desloca o tempo. Enquanto
experiência concreta (mesmo que não como tema filosófico) a visão
impõe: toda distância ou nenhuma.

Por isso mesmo esse é um tema difícil. Tenta-se falar daquilo que
quase não pode ser falado. Quase: se esse movimento de
representação do irrepresentável não estivesse também na matriz da
poesia. Se o discurso profético não fosse movido pelo esforço
enigmático de cifrar e decifrar. Se os relatos de alguns drogados, que
fizeram da droga um uso de tipo poético, não tentassem dar conta
de uma evidência que se apresenta nitidamente e que não se deixa
fixar.

No sentido forte, a visão é uma evidência do invisível, do indizível e


do indivisível. Essa experiência é vivida por alguns visionários, e por
muitas culturas, como uma experiência do sagrado; por outros, e
muito pela nossa cultura, como uma experiência da ordem do
profano (ou de uma ambivalente iluminação profana, como a
chamou Walter Benjamin). De todo modo, a tentativa de apresentar
pela linguagem aquilo que se experimenta como radicalmente
ausente dela convoca o símbolo a exercer-se na sua mais alta
potência, ali onde ele está no limite de desintegrar-se (essa
desintegração constitui em larga medida a literatura moderna).
[1]
Por outro lado, se me arrisco a abordar o tema é porque, de algum
modo, ele faz parte de uma experiência comum. Qualquer pessoa
que vacila de sono por um instante conhece a sensação de um
vertiginoso e incontável tempo no espaço de um segundo. No limiar
entre a vigília e o sono experimenta-se a sensação de estar fora do
tempo. A pessoa que sonha é literalmente um visionário. O
visionarismo escapa e entra pelas aberturas mais cotidianas.

Para falar disso sem carregar na excessiva e inútil tentativa de


explicação, solicita-se do leitor que contribua com essa parcela de
entendimento. Numa introdução ao livro Mensagem, quando fala das
condições necessárias ao “entendimento dos símbolos”, Fernando
Pessoa enumera antes de mais nada a simpatia e a intuição. Pode-se
dizer que a simpatia corresponde a essa margem de contribuição que
o leitor oferece ao indizível do tema. A intuição, a essa disposição
para a percepção do inconsciente como outra coisa, que nos habita
como um conhecimento prévio (ou como um pré-consciente).
Depois, então sim, as outras condições: a inteligência (e todos os
torneios da análise crítica), a compreensão (e a necessária visão do
contexto histórico), mas sem dispensar a graça (também chamada “a
conversação do santo anjo da guarda”, ou, se quisermos, o
[2]
entendimento da criação segundo a ótica do criador).
Os visionários ocupam desde épocas remotas essa área que está
entre a poesia e a profecia, campos que não poucas vezes se
confundiram. Na Grécia arcaica (sempre recorremos ao nosso
tesouro de paradigmas) poeta e adivinho têm em comum o dom da
vidência, mesmo que sejam emblematicamente cegos. O que eles
vêem são as partes do tempo inacessíveis aos mortais: o que foi, o
que ainda não é. Inspirado pelas Musas, filhas de Mnemosyne, a
Memória, o poeta volta-se para o passado primordial; inspirado por
Apoio, e auxiliado por certas ervas propiciatórias, o profeta volta-se
para o que está por vir. Mas, nos dois casos, o passado e o futuro são
partes integrantes da circularidade do cosmo, do eterno presente, do
qual só se afastam aparentemente, para decifrá-lo naquilo que ele
[3]
oculta.

O olhar visionário é pois uma experiência que resulta do


apagamento da visão habitual (o excesso que acompanha a falta de
visão comum), e que fala por enigmas. Além de ver o indizível, ou
de cifrar o invisível, o visionário se depara com um indivisível: a
visão excede o foco e os limites do ego (se se pode dizer assim), e o
sujeito se vê tomado, possuído e intensivamente superado pela
própria força da visão. O peso da história entra em suspensão mas
em incontrolável agitação; o Começo e o Fim, que de hábito ficam
entre parênteses, esquecidos na vida normal, querem incorporar-se
ao presente. O tempo é tumulto, tempestade, agitação das potências,
habitado em regime de urgência por nada menos do que a vida, a
morte e o renascimento cósmicos. A visão da história social é vazada
e varrida pela visão de ciclos maiores que ela.
Mais antigo ainda do que essa aliança que une o poeta e o profeta, o
xamã das sociedades tribais e nômades é o modelo mais remoto da
fusão entre o mito, a profecia, a poesia, o canto, a dança e os
alucinógenos. Através da “performance integral” da narrativa
cantada e dançada, “o mito se torna rito e a cerimônia uma
suspensão do tempo, evasão do espaço e libertação dos frágeis
limites do corpo mortal e carente”. Esse “orquestrador” e ritmador
das energias coletivas, sexualmente ambíguo, marcado por signos de
exceção, “obedece tabus e prescrições alimentares, jejua, ingere e
inala substâncias tóxicas que o predispõem a sonhos, delírios e
[4]
estados de êxtase”. Nele encontramos, arqueologicamente, a
junção primitiva dessas experiências que as culturas aproximam e
separam: o mito poético (associado à música), a visão profética e a
alucinação pelas drogas.
Temos motivos para supor que as aproximações modernas entre
poetas, videntes e drogados, que despontam isolada ou
coletivamente desde o século XIX, estão ligadas a uma experiência
matricial da visão comum a esses campos, a uma visão diferenciada
do tempo, que pode ser analisada nos relatos sobre as viagens
alucinógenas feitas por poetas, nas operações de linguagem que as
drogas provocam, e na vertente profética que acompanha a poesia. A
propósito, na época de Platão reconhecia-se (como se lê no Pedro) a
poesia, a adivinhação, a possessão dionisíaca, e mais a paixão
amorosa, como os quatro campos de manifestação da mania, a
loucura divina enquanto estado de entusiasmo, no seu sentido
etimológico: estar tomado por um deus. No caso de Dionísio, que se
acrescenta aqui a Eros, Apoio e as Musas, trata-se de um deus
eminentemente vegetal, como indicam o seu nome Bákkhos
(designativo do ramo em geral, em especial do carvalho e do abeto,
que o devoto enfeita para fazer o tirso) e seu epíteto dendrites, o
arbóreo (de dendron, árvore, mais tes, sufixo de agente, princípio
ativo masculino), o que sugere uma ampliação dos seus domínios
embriagantes, comumente associados à uva e ao vinho, para as
[5]
propriedades do vegetal em geral.
Mas a relação entre o ambíguo papel social do visionário e a sua
vinculação com as drogas tem um outro aspecto subjacente.
Acontece que enquanto canalizador (e formulador) da angústia e da
violência social, que o visionário assinala e sublima, ele se identifica
com a figura do bode expiatório, ao mesmo tempo vítima sacrificial e
veículo de purificação. Agente catártico mitificado e marginalizado,
o visionário é sintoma e remédio da doença social. Isso o faz
ambivalentemente “adorado e excluído […] Seu trabalho, político
porque religioso, é integrador, canalizador da angústia, da violência
e do imaginário […] Mas, também, porque ameaça de morte,
transgressor, anunciador, profeta de novas formas de relação com o
[6]
conhecimento e de novos poderes. Para nomear essa função de
vítima sacrificial e veículo terapêutico, de que se investe o bode
expiatório, os gregos tinham a palavra pharmakós, substantivo
masculino cujo correspondente neutro, phãrmakon, designa
justamente a droga, no seu sentido mais geral e “farmacêutico”,
enquanto substância carregada da ambivalência entre o valor
negativo do veneno e o valor positivo do remédio. Na sua origem as
chamadas “drogas” são fármacos, e durante muito tempo as leis
oscilam sobre o seu caráter terapêutico ou destrutivo (veja-se a
propósito a história do uso médico do ópio e seus derivados, bem
[7]
como da cocaína). Curiosamente, a própria palavra droga, em
português, reedita essa ambivalência entre o lado positivo e o
negativo subjacentes ao fármaco. Assim também a indústria
farmacêutica, se bem pensada, pode ser vista como produtora de
venenos. A viagem drogada, quando bad trip, por sua vez, é bode.

O visionário, poeta ou profeta, tem para a sociedade o mesmo valor


ambivalente do fármaco, buscado como remédio e marginalizado
como doença. Quando experimenta drogas, está experimentando e
potenciando a sua própria condição.
Do visionário mais antigo podemos passar diretamente a um
visionário muito próximo. Não é preciso que ele se abisme
necessariamente nas profundidades míticas do tempo primordial,
nem que projete imagens proféticas convulsionadas. Ele pode
aparecer como fenda na superfície do olho voltado para o aqui e o
agora, e se exercer na pura. instantaneidade. Ele pode se alucinar só
de lucidez, e não tomar como droga senão a oscilante relação
sujeito-linguagem.

O texto de Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”, do livro À legião


estrangeira é um verdadeiro tratado poético sobre o olhar.

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode


estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal
vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios.

No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. —


Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais:
ovo visto, ovo perdido. — Ver o ovo é a promessa de um dia chegar
a ver o ovo. — Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento,
não há; há o ovo. — Olhar é o necessário instrumento que, depois
[8]
de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. […]

O primeiro momento supõe a coincidência feliz entre o olhar e a


coisa: eu me reconheço naquilo que eu reconheço. A ressonância
cognitiva que a visão produz, sem necessidade de prova nem
demonstração, afirma sem sombras tanto a realidade do objeto
quanto a do sujeito.
Imediatamente no entanto a coincidência se abre numa falha
geológica, numa fenda que “engolfa as imagens”, e o olho cai em
[9]
falso entre as margens do real, entre o que olha e o que é olhado.
O ovo não se mostra mais tão apreensível como parecia, e o lapso
vertiginoso que se instaura, incidindo na instantaneidade, é uma
modificação do tempo. “Ver um ovo nunca se mantém no presente:
mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. —
No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo.”
Olhado, o ovo “envelhece” instantaneamente, e recua para um
remoto e primeiro ovo ancestral (pura efígie), traço de um inscrição
originária que nunca foi, desde o primeiro momento, senão
distância, separação, diferença. “Só vê o ovo quem já o tiver visto. —
Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido.” Toda visão é
recortada pelo gabarito de uma primeira visão que nunca se deu
como plenitude mas já como afastamento. O ovo visto reflete um
primeiro ovo que nunca houve. Desse lapso originário vive a
percepção, e é sobre ele que o texto transpõe sutilmente a velha
questão do ovo e da galinha: o que se viu primeiro? o ovo que se vê ou
o ovo que foi visto e criou o :padrão com que se vê o ovo? A charada
irônica e inde’cidível versa então sobre o dilema filosófico entre o
caráter emissivo ou receptivo do olhar, questão que dividiu durante
Iongo tempo a filosofia, aqui posta em suspenso pelo jogo poético.
É porque perdido para sempre num passado onde nada se deposita
que o ovo é também futuro: “ver o ovo é a promessa de um dia
chegar a ver o ovo”. A fenda na visão alimenta a possibilidade, ou o
desejo, de que se mostre aquilo que se esconde no visível, de que se
veja a pura presença. Assim como contém a sua vertiginosa e
inacessível gênese, o instante projeta também a sua escatologia, o
seu apocalipse. Mas nem gênese nem apocalipse repousam em lugar
nenhum. Passado e futuro, que se dividem ilimitadamente no
instante, sinalizam o desencontro entre o olhar e a coisa, que não
preenche o presente. O “olhar curto e indivisível”, mesmo que
busque reter o ser em sua duração, recairá sempre na operação
divisória do tempo, do eterno instante como forma vazia e
[10]
superficial, “sempre já passado e eternamente ainda por vir. Se
indivisível (para captar a inteireza do objeto ovo) curto demais para
experimentar a sua duração. Se longo (para acompanhar a duração)
dividido em instantes separadores.
O vértice dessa descoincidência no texto de Clarice, e sua superação,
é o esvaziamento do olhar e do pensamento, para que se toque a
coisa. Como no zen, o conhecimento é uma operação de
descodificação da visão e da linguagem, um silenciamento radical
mas instantâneo, que mostra o invisível não como sobrenatural mas
como desvela-mento do real (embora a palavra real também tivesse
que ser apagada e zerada para que sobreviesse um contato com um
algo real, não-prescrito, não-codificado, não-trilhado de antemão).
“Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo.
Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto.” O indizível que
emana desse silêncio torna-se matriz irrepetível, geradora de um
texto que glosa ilimitadamente a margem entre o vazio e a palavra, a
atenção e o intervalo, a consciência e o inconsciente, para dizer
pouco. (Sem adotar a brevidade oriental, o conto de Clarice prolifera
como um fluxo de koans.)

“O ovo e a galinha” nos remete imediata e muito fortemente para


esse deslocamento do olhar e do tempo que é o núcleo comum da
visão profética e drogada quando polarizadas pela visão poética. No
próprio movimento em que se multiplica em instantes descontínuos
permanecendo o mesmo (como também o ovo, em sua proliferação),
sempre outro e sempre igual, o tempo abre em ritmos desiguais e
simultâneos, o agora, primórdio, o porvir. Essa percepção constitui-
se no próprio modelo do visionarismo como modo de ler a realidade,
e de vazar o código habitual que regula o tempo linear, cronológico ,
homogêneo.
Esse “tratado” de Clarice Lispector sobre a visão não se limita a
comentar as vicissitudes do olho e do pensamento diante da coisa,
mas cifra na própria escolha do objeto uma espécie de circularidade
enigmática do olhar. Porque o ovo é uma espécie de objeto
arquétipo, matriz e produto final, côncavo e convexo, a um só tempo
um modelo de introversão (puro conteúdo oculto) e de extroversão
(aparência sem sombra). Segundo as teogonias órficas, Chronos, o
Tempo, “monstro polimorfo, gera o ovo cósmico que, ao se abrir em
dois, dá origem ao céu e à terra e faz aparecer Phanes, o primeiro-
nascido dos deuses, divindade hermafrodita na qual se anula a
[11]
oposição do macho e do fêmeo”. Assim também, num contexto nu
de mitologia, o ovo é símbolo privilegiado da intersecção
indissolúvel entre objeto e sujeito, capaz de suspender a oposição
entre a aparição de dentro e a de fora, entre o espelho e o
espelhado, o conteúdo e o continente, caráter passivo e ativo do
olhar.
Mesmo assim, prototípico, alegórico, marca sublinhada e apagada de
um real que hesita entre a consciência e o inconsciente, o eu e o
Outro, o ovo não deixa de ser, no conto de Clarice Lispector, o ovo
doméstico, cotidiano. O fato de que a visão vertical, metafísica, não
se separe em momento nenhum do concreto, e que a dimensão a que
ela remete seja sempre a da experiência, mais do que a da “teoria” ou
da “fantasmagoria”, aproxima o texto de Glance daquilo que Walter
Benjamin chamou de revelação ou iluminação profana. Falando do
Surrealismo, e identificando nele um tipo de olhar que sonda o
impenetrável no cotidiano, e o cotidiano no impenetrável, Benjamin
localizou pedra-de-toque do visionarismo moderno. Postulou além
do mais a ideia de que a transformação revolucionária da realidade
estaria a depender de uma profunda interpenetração do espaço físico
e imagístico (isto é, do desencadeamento das tensões acumuladas
entre a organização material da sociedade e a ordem do imaginário
coletivo, de cuja reverberação poderiam saltar descargas
revolucionárias). Tal interpenetração potencialmente explosiva entre
a natureza transformada pela técnica e o imaginário social seria
dada a conhecer, ou a entrever antecipatoriamente, pelo viés da
[12]
iluminação profana.
Em suma, o profetismo benjaminiano apontou para o profundo
enraizamento da dimensão política no imaginário, margem de um
tempo que salta dos trilhos da história, sem abismar-se no eterno
retorno do arquétipo. Aliás, impedir que isso aconteça é o grande
desafio do seu visionarismo profano e revolucionário. A realidade se
transforma na medida em que se põe em contato com uma outra
experiência do tempo, que tem seu modelo na experiência solitária da
iluminação profana, mas que poderia transformar-se
revolucionariamente numa experiência histórica coletiva. Embora os
tempos não ofereçam uma visão animadora dessa conversão das
energias do êxtase em transformação social, ou então por isso
mesmo, o pensamento complexo de Walter Benjamin, como
pensamento dos cruzamentos, permanece como uma referência
incontornável, de uma atualidade cristalina e esfingética. (“— O ovo
vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época.
— Ovo por enquanto será sempre revolucionário.”)
A propósito da dimensão profética e poética, “materialista” e
“antropológica”,, da iluminação profana, Benjamin faz alguns
comentários no mínimo intrigantes sobre a droga. (Ele tinha o
projeto de escrever um livro sobre o haxixe, do qual nos chegaram
[13]
anotações e relatos de experiências pessoais.) Temos de novo aí,
agora em chave eminentemente filosófica, a convergência de poesia,
profecia e droga. Como Baudelaire, ou como Henri Michaux, para
quem o alucinógeno é fortemente associado a uma aventura
especulativa, mais do que ao prazer que também traz, Benjamin se
aproxima e se distancia da droga, vendo nela uma espécie de
auxiliar técnico. Em especial, faz questão de não confundi-la com a
própria revelação profana, para a qual ela pode se constituir num
“estágio preparatório”.. Ao lado disso, reconhece muito
Curiosamente o caráter de droga em coisas que se pensa estarem
entre os seus antípodas: a reflexão “que é um narcótico eminente”,
“sem falar daquela [droga] mais terrível […] — que ingerimos na
[14]
solidão, nós próprios [o grifo é meu] . A estratégia de não-
endeusamento do ópio ou do haxixe; que acompanha a defesa do
caráter profano da experiência visionária, resulta numa definição
“ampla” e irônica de drogas como todo agente, interno ou externo,
de transformações psicofísicas, nas quais se incluem tanto o
pensamento filosófico, o próprio ego e aflanêne, quanto os
narcóticos, os estimulantes e os alucinógenos. (“O leitor, o pensador,
o indivíduo que espera ou passeia são tipos tão elucidados quanto o
[15]
comedor de ópio, o sonhador ou o extático. E são mais profanes”) .
Octavio Paz diz também coisas interessantes no mesmo sentido, ao
interpretar a obra do poeta/pintor Henri Michaux. “A pintura de
Michaux nos emociona por sua veracidade: ela é um testemunho que
acusa a irrealidade de todos os realismos. Isso que eu chamei, na
falta de melhor palavra, de sua exatidão, é uma virtude que
transparece em todos os grandes visionários. Mais que um atributo
estético, é uma condição moral, é preciso valentia, firmeza e pureza
[16]
para ver de frente os monstros que são os nossos.” Segundo ele,
Michaux busca um acercamento à materialidade tanto pelas vias do
seu longo contato com os alucinógenos, que converte em obra
poética, ensaística e plástica, quanto pelo seu contato íntimo com as
próprias matérias pictóricas, que ganham um valor de sondagem
comparável ao das drogas. Enquanto o combate da pintura se trava
na superfície tensionada, o outro combate leva o campo da
materialidade para os confins do sujeito, no mítico lugar em que o
corpo e a mente se encontram (mítico mesmo no sentido freudiano,
de que as pulsões, enquanto ponto de contato inapreensível entre o
psíquico e o somático, “são nossos mitos”). Essa cena ou campo de
presentificação das pulsões problematiza o sujeito e a arte que se
tangenciam no lugar de um olhar “figural” (olhar que desvê a
[17]
representação através das marcas do inconsciente). (“Seus
quadros são menos janelas que nos dariam a ver uma outra
realidade que buracos e aberturas perfuradas pelos poderes da outra
borda.”)
E finalmente, diz Octavio Paz, há outra droga, interna, que age em
nós: o humor, enquanto líquido orgânico produtor de disposições
psíquicas. A medicina medieval e renascentista atribuía a melancolia
à influência combinada de Saturno e da bile negra. “As afinidades
entre o temperamento melancólico, o humor negro e a predisposição
às artes e às letras não cessaram de intrigar os antigos […] O calor
da bile é próximo da sede da inteligência, razão pela qual o furor e o
entusiasmo tomam conta desta, como ocorre às Sibilas e às Bacantes,
e todos os que são inspirados pelos deuses.” A melancolia seria
assim, no Ocidente, a “doença dos contemplativos e dos espirituais”,
vale dizer, dos visionários — intuitivos e introvertidos —, e a bile
negra a sua droga saturnina. Uma longa corrente de melancólicos
passaria através de Heráclito (citado como tal por Aristó-teles nos
Tópicos), Ficino, Durer, Donne, Juana Ines de la Cruz, os românticos
e os simbolistas, antes de desembocar no próprio Michaux, que Paz
[18]
identifica ao príncipe noturno (nome de um de seu quadros).

Pode-se fazer contraponto desse elenco de melancólicos citado por


Paz com aquilo que se disse da melancolia de Ulisses, instalada
também no sentimento do tempo: “Sempre ainda por vir, sempre já
perdido, o lugar onde cantam as sereias significa a impossibilidade
[19]
de realizar a ânsia por um fim, por uma destin.ação última”.
Expatriado no tempo, nem o repouso final nem o retorno a uma
Ítaca originária (que não se deixa mais reconhecer como a mesma)
são possíveis a Ulisses. Sua relação com o canto das sereias, o
abismo de infinito que ele contém e o recalque que se impõe sobre
ele, seria paralela nesse sentido à relação do visionário com a visão.
Por outro lado, o tema nos reconduz por outra trilha a Walter
Benjamin, que viu na alegoria barroca, regida pelo príncipe
enlutado, e emitindo sinais lancinantes para o futuro moderno, o
[20]
domínio por excelência da melancolia sob o signo de Saturno.
Proponho-me a falar sobre o uso poético das drogas: cruzamento
entre a droga e poesia convergindo para a profecia. Nesse sentido,
quando estiver falando de relatos de poetas sobre alucinógenos
estarei falando de alguma maneira dessa outra droga: o humor
melancólico, a bile negra. Acontece também que isso tudo tem uma
história complexa, cheia de vieses que é preciso percorrer, mesmo
que sumariamente. As aceleradas alterações do uso clandestino das
drogas no mundo da repetição em série, e suas implicações,
transformam completamente o seu sentido. Hoje por exemplo as
drogas não significam mais o que significavam há dez anos atrás,
muito menos há vinte, e quanto mais há mil. É preciso mapear
minimamente esse terreno mal conhecido e minado por toda sorte
de estereótipos.

Entre muitos aspectos relevantes, as drogas sintomatizam um ponto


de encaixe e desencaixe entre as formas de produção social e as
demandas do imaginário. Se o ego dos indivíduos, além de
trabalhosamente sustentado pelos sujeitos, é fabricado socialmente,
as drogas, enquanto agentes de desinvestimento ou de
hiperinvestimento do ego são sintomas de pontos múltiplos de
descolamento do social como tecido homogêneo.

É possível começar assinalando a polaridade extrema, visível hoje,


entre dois modos de uso que dividem a história da droga, e entre os
quais oscila certamente o espanto de quem os olhar.
Por um lado, há traços fortes de uma cultura imemorial e artesanal
da droga que se espalha entre o Oriente Médio, a Índia, a África e a
América. Os sinais de uso cultural das drogas na Europa parecem ter
sido, mais do que em qualquer outro lugar, recalcados. O que
caracteriza essa cultura (dos opiáceos, do cânhamo, da coca, dos
cogumelos, raízes, flores e cipós alucinógenos) é o seu uso ritual,
terapêutico, divinatório, enteógeno (capaz de fazer participar da
divindade), uso cercado de uma série de prescrições, precauções,
tabus. Assim, no belíssimo relato de vida da índia mexicana Maria
Sabina, “la sabia de los hongos”, conta-se que os cogumelos são
ingeridos somente durante as “veladas” noturnas, sob a orientação
cerimonial da vidente, com suas preces cantadas e danças, com fins
curativos, dentro de uma fase de abstinência sexual, aos pares (um
cogumelo representando o masculino e outro o feminino), sem olhá-
lo demais e sem pronunciar o seu nome sagrado (Maria Sabina gosta
[21]
de chamá-los “santinhos” ou “meninos santos”). Assim também,
na intrigante série de Carlos Castarieda o feiticeiro Don Juan o
introduz aos poderes da erva sob á condição de que o aprendiz se
retire para um lugar isolado, plante e cultive o vegetal, dançando e
proferindo em torno dele uma série de ritos até que a droga seja
colhida por ele mesmo e só então experimentada (um trabalho
interior antecipa e acompanha o desenvolvimento externo da
planta). Não por acaso Artaud, escrevendo sobre o México,
constatava: “o peiote, eu o sabia, não foi feito para os Bancos […].
Um Branco, para esses homens Vermelhos, é aquele que os espíritos
[22]
abandonaram”.

No polo oposto ao do vegetal cultuado temos a droga serializada


(produto de transformação laboratorial que implica uma indústria
clandestina com aspectos multinacionais e paraestatais). A droga
produzida em escala repetitiva, tomada clandestina ou
semiclandestinamente, assume seu lugar entre os demais produtos
de consumo generalizado. Trata-se de uma mercadoria com certas
propriedades singulares. Hiper-investida de desejo ou necessidade,
ela concentra em si, com máxima força, todo o ambíguo potencial de
expectativa e decepção que as demais mercadorias podem conter,
prometendo, cumprindo ou frustrando. Mas girando num mercado
paralelo, circuito de droga pesada, duplicação espectral do mercado
branco, ela torna-se a mercadoria por excelência, a “mercadoria
final”, realizada em seu máximo de perversão. Como diz William
Burroughs, o traficante não vende mais a mercadoria para o
consumidor, mas o consumidor para a mercadoria (ele a suplica); a
transação progride não através da promoção e melhoria do produto
[23]
mas pela piora e pelo rebaixamento do cliente. Burroughs, o mais
radical representante da geração Beat não diz isso por moralismo,
mas para levar o culto da droga, no extremo oposto do seu uso ritual
e como transporte para outras “esferas”, a um estado de
intranscendência radical. Assinalando a forma extrema do encaixe
deslocado entre o fármaco e a reprodução social, dentro de uma
ordem que não conheceria outro sentido senão o da repetição,
Burroughs assegura ter tomado todas as drogas possíveis, por todas
as vias possíveis, e ter constatado que elas não guardam nenhuma
revelação última que não seja o hábito. Esse é o horizonte profético,
pós-utópico e pós-moderno, negativo, que opõe nitidamente
Burroughs a Ginsberg, seu companheiro de geração, inspirado no
modelo do vate xamânico e utopista. O lugar estrutural de
Burroughs é o do provador-de-venenos, sintoma via detrito, forma
pura do pharmakós phármakon exercendo a sua função purgativa
extrema através de uma farmacopeia que não revelaria em última
instância nem infernos nem paraísos, mas um purgatório infinito e
tautológico.
Ambivalente na sua origem, cruzada entre as articulações da cultura
e o continuum indizível da natureza (não-dito, interdito, maldito), a
droga é tabu. No mundo sacrificial pré-moderno, tabu implica
cuidado, zelo, reconhecimento dos perigos e poderes, mediadores,
herméticos, do fármaco. No mundo serial, onde se rompe o
reconhecimento dessa ambivalência, o tabu que cerca a droga não
representa cuidado, zelo, e conhecimento, mas clichê,
desconhecimento, cisão do símbolo original em duas versões: veneno
(na classificação oficial, que se faz acompanhar de um
anticonhecimento médico-policial) ou panaceia (numa prática difusa
onde ela aparece como o grande remédio). Agora mesmo, mais uma
das dificuldades desse tema é driblar a irresistível redução dualista
de um certo leitor aferrado ao tabu que não concebe o assunto senão
tratado pelos modos morais da apologia ou da condenação. Ora,
uma droga é uma droga é uma droga é uma droga. O meu problema,
no caso, é a visão e o entendimento do caráter irredutivelmente
ambivamente do símbolo, bem como do caráter problemático da
cultura.
Uma pequena digressão musical. O uso ritual das drogas
corresponde ao domínio pré-moderno da música modal, praticada
em contextos solenizadores ou sacrificiais. O uso repetitivo
corresponde ao domínio moderno ou pós-moderno da música pós-
tonal, já na sua versão minimalista (em contexto “culto”) ou
repetitiva da massa do rock pós-punk (para os quais Burroughs
corresponderia a uma espécie de John Cage). Entre essas duas
formas vemos, em música, todo o arco da música tonal praticada no
contexto de representação concertística, mas vivendo ao longo da
sua história a brilhante curva da sua desintegração. Podemos pensar
o retorno das drogas na cena europeia como acompanhando essa
crise da representação e do sujeito, que é da tonalidade, bem como
da verossimilhança clássica e realista.
Depois de uma longa história de ocultamento, já que há vestígios,
mas só vestígios, do culto das drogas no Ocidente (um especialista
americano sugere que os elfos e gnomos seriam metáforas residuais
[24]
de um antigo culto de cogumelo) o ópio retorna paulatinamente à
cena da Europa como medicamento, e depois como experiência,
curtição ou refúgio (junto com o haxixe). Do fim do século XVIII ao
século seguinte, espalhando-se depois entre simbolistas e
modernistas, muitos poetas escreveram sobre (ou sob) efeitos de
drogas. Há uma linhagem de textos desse gênero, ligada à tradição
romântico-radical-moderna, passando pelo “Kubla Khan” de
Coleridge, as Confissões de um comedor de ópio, de Thomas de
Quincey (dois dos mais importantes românticos ingleses), os
Paraísos artificiais de Baudelaire, o Opium de Cocteau, o “Opiário”
de Alvaro de Campos/Fernando Pessoa. O interesse dos poetas
coincide, segundo Octavio Paz, com o declínio das musas como
[25]
doadoras da visão poética. Um movimentado e movediço clube
dos escritores em êxtase (havia um Clube dos Haxixins em Paris
fundado na altura de 1844, frequentado por Baudelaire, Balzac,
Nerval, Gautier) estaria às voltas, além de outras coisas, com os
próprios fundamentos da criação num tempo em que as potências
divinas (deuses, demônios, musas) teriam deixado de falar.

A interpretação de Paz é interessante, porque a entrada das drogas


no cenário da poesia sinalizaria, no próprio Baudelaire, uma espécie
de compensação — profana — pela perda daquele vestígio de
sagrado na obra de arte, a sua aura, bem como daquilo que
Benjamim chama memória involuntária, isto é, a disposição
associativa espontânea e intensamente investida de afeto, que é
básica para a experiência lírica, e cada vez mais problemática no
mundo moderno (memória involuntária pode figurar aqui como o
[26]
nome profano das Musas).
Certamente, o haxixe dificulta extremamente a memória voluntária,
mas deixa todas as sensações invadidas por feixes conotativos sem
margens, prorrompidos em fluxos involuntários. Baudelaire descreve
[27]
as (quatro) fases do efeito, segundo sua experiência. Num
primeiro momento, emerge uma “maravilhosa inteligência do
cômico”, provocando o riso em efeito-cascata (um demônio
histriônico parece tirar tudo do seu lugar habitual, embora tudo
permaneça impecavelmente lá). O relato de Baudelaire é ele mesmo
deliciosamente engraçado. Entre outras histórias que conta, há a de
uma simpática doméstica que toma a droga sem saber, e que diz
sentir-se “toute drôle, toute je ne sais comment”. Num segundo
momento, a disponibilidade para os múltiplos sentidos do inabitual
tende para o lúdico-poético, a extrema acuidade para o jogo de
palavras, o senso das correspondências e sinestesias, a alteração da
sensação do tempo (eternidades brilham num minuto e “de tempos
em tempos a personalidade desaparece confundida com os objetos
exteriores”). A terceira fase é a da beatitude, o êxtase (“posso ter
jantado mal”, diz o drogado, “mas sou um deus”). Dá-se uma
suspensão daquelas contradições que alimentam a dúvida filosófica,
e os dilemas entram em eufórica suspensão: “Todos os problemas
filosóficos resolvidos. Todas as árduas questões contra as quais
esgrimam os teólogos, e que fazem o desespero da humanidade
pensante, são límpidas e claras. Toda contradição tornou-se
unidade”. A quarta fase é a aterrissagem forçada, a cobrança do
excesso: tudo que foi dado é de certa forma tirado sob forma de
ressaca e fraqueza. Os deuses do haxixe cobram o que dão, e punem
a “ímpia prodigalidade com que fizeste um tão grande dispêndio de
fluido nervoso; depois de ter jogado a personalidade aos quatro
ventos do céu, é preciso reagrupá-la e concentrá-la”.
Baudelaire se inclui (como Michaux e Benjamin) entre aqueles que
desenvolvem uma relação ambivalente com os alucinógenos
(tecendo em paralelo o elogio irrestrito dos poderes embriagantes e
solidarizantes do vinho). Os paraísos artificiais oferecem (como o
fará também a arte na modernidade, de certa forma), miseráveis
milagres (a expressão é de Henri Michaux, que diz — depois de tê-
las experimentado todas mais que detalhada e longamente, bem
entendido: “As drogas nos entediam com seu paraíso. Que elas nos
[28]
dêem pelo menos um pouco de saber”.
É possível imaginar perfeitamente o quanto o sentido lúdico,
sinestésico, musical, das viagens visuais, e linguísticas provocadas
pelo haxixe e pelo ópio, seu efeito figural (isto é, intensamente
associativo, a-lógico, a-temporal e não-referencial) combinam com
esteticismo simbolista, e a autonomia conferida a partir de então ao
poético. E isso não se reduz simplesmente à fórmula verlaineana (“de
la musique ‘avant toute‘ chose”), no sentido de uma ênfase no
caráter ambíguo, associativo e sonoro das palavras. O que entra em
jogo é a reversão do ego a partir de um lugar que envolve o sujeito,
os sentidos e o tempo. Nas suas cartas de 1871, onde declara a
aventura poética como vidência (“ trabalho para tornar-me vidente…
Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os
sentidos”), Rimbaud introduz a sua conhecida fórmula “je est un
[29]
autre” (Eu é um outro). A desregulagem do habitat egóico (suas
trilhas usuais, seus hábitos perceptivos) dá a ver fluxos do real
inacessíveis ao olhar comum. Essa reversão do ego cria sobre mundo
dos objetos um efeito de reverberação em abismo. O “desregramento
dos sentidos” passa a ser tomado como uma técnica poética. (Mais
tarde, Rimbaud verá nela os mesmos limites já comentados aqui a
propósito de Burroughs e Michaux: as trilhas do desconhecido
trazem de volta o hábito, à medida que seus sulcos se aprofundam e
que a repetição recodifica. O oculto tem uma enorme capacidade de
se ocultar.) Na mesma trilha da abertura simbolista, a linguagem
surrealista concebe o campo da poesia como sondagem de uma
ordem oculta, inconsciente, procurando os vasos comunicantes entre
realidade visível e invisível.
As anotações de Walter Benjamin recolhidas em Haxixe, datadas em
torno de 1930, os ensaios poético-pictóricos de Henri Michaux, e o
testemunho das visões de Aldous Huxley (ambos dos anos 50) assim
como o belo texto de Paulo Mendes Campos sobre o ácido lisérgico,
[30]
de 62, estão numa espécie de intermezzo reflexivo entre o
surrealismo e a explosão contracultural no mundo de massas, da
geração Beat ao rock. É um período em que os antigos e milenares
narcóticos e alucinógenos vegetais, objetos da manipulação
laboratorial avançada dão lugar cada vez mais a drogas sintéticas
como a mescalina e a psilocibina (derivados do peiote e dos
cogumelos, como a heroína já o era do ópio e a cocaína da coca) e,
num nível mais complexo de construção, o ácido lisérgico (LSD).
Transformada em assunto fechado da indústria química, a droga
estava agora às portas da disseminação serializada no mundo das
massas. Enquanto a ciência experimentava os poderes e as
possibilidades do seu objeto, os poetas experimentavam através da
droga as possibilidades e as impossibilidades do próprio sujeito,
acercando-se ao núcleo em que o ego e a linguagem se deslocam
frente a um transreal em aberto, conjectural, universo em obras.
Seria interessante comparar a experimentação do sujeito, levada a
efeito pelos poetas através da mescalina e do LSD (às vezes, sob o
olhar vigilante do cientista), com aquela experimentação sobre a
natureza que se realizava à mesma época na física, e que levou, na
esteira da observação cada vez mais vertiginosa das partículas
subatômicas, à teorização da mecânica quântica. Ambas as
sondagens, sobre o sujeito e o objeto, levam a observações
desconcertantes, paradoxais, surpreendentes, sobre um real que não
se apresenta senão sob a perspectiva de múltiplos verossímeis sem
repouso. No limiar indecidível entre partícula e onda, os confins
observáveis da matéria são construções inseparáveis do instrumento
de observação, o “olho” que os observa, assim como o sujeito é um
feixe de inverossímeis em permanente construção e desconstrução. O
real, no seu polo objetivo e subjetivo, revela-se, igualmente, obra
aberta: duplo horizonte sem fundo, no vértice da arte e da ciência,
em que se desenha para o Ocidente o reencontro entre as
concepções de sujeito e de objeto (repensáveis, num mesmo
movimento, como puro movimento, energia que interpreta energia).
[31]

Contrapondo-se à proibição generalizada das drogas, das mais


artesanais às mais tecnológicas, segue-se a investida comportamental
e contracultural da geração Beat, que apostou na possibilidade de
uma generalização utópica da viagem alucinógena. Embalada pela
liberação da aventura existencial promovida na grande onda dos
anos 60 (e que também teve o efeito de abrir ao mercado de massa
todos os espaços de imaginário) a poesia Beat surge em paralelo com
o disparo do rock, cuja expansão implicará a difusão maciça de uma
estética e de uma existência permeadas pelas drogas.
As drogas alucinógenas cultuadas na década de 60, como a
mescalina e o ácido lisérgico, que acompanham o neo-romantismo
hippie, estão ligadas à utopia contracultural da implantação de uma
vida comunitária à margem do tempo da concorrência. Essas drogas
desmobilizam o aparato do ego, o tempo organizado pela
sucessividade causal, e são incompatíveis com a regularidade do
desempenho produtivista. Dos anos 70 aos 80, a cocaína toma o
lugar privilegiado que os alucinógenos tiveram na primeira onda das
drogas no mundo das massas, e isso é fartamente significativo. O
todo-poderoso pó é pós-utópico, não contesta o tempo de
concorrência, ao contrário, é um acelerador egoico, não só
compatível como inerente ao mundo da repetição acelerada. (Se os
alucinógenos remetem ao Id, a cocaína hiperboliza ou hiper-realiza o
ego.) As proporções do tráfico e a guerra da droga fazem do
comércio paralelo de cocaína uma poderosa rede paraestatal
(militar, econômica, política), réplica perfeita que duplica o poder
instituído desde dentro, como uma falha geológica. Um porta-voz do
governo americano identificava na droga o inimigo público número
um hoje: o inimigo preferencial do Estado, o seu outro, deixa de ser
o invasor, o alienígena, o oposto (o comunismo) e passa a ser
reconhecido como o mesmo, a sombra, o duplo, o de dentro, frente
ao qual não se consegue estabelecer distância (mesmo que a Bolívia
possa ser projetada como o Vietnam dessa guerra). Um inovação
recente, o crack (cocaína barata) acelera a repetitividade desse
circuito. Enquanto isso, o uso da maconha no mundo de massas
ganha uma estabilidade parecida com a da calça jeans (na sua
capacidade de exceder divisões ideológicas, de classe, de gosto
existencial mais ou menos refinado).
Vamos aos poetas. Henri Michaux diz que, sob os alucinógenos (no
caso, ele está falando da mescalina), os objetos não ficam iguais a si
[32]
mesmos, mas mudam incessantemente a olhos vistos. O nosso
apoio habitual nos limites dados pela realidade dos objetos cede,
porque estes não se opõem mais a uma espécie de “mobilidade
transformadora” que toma conta de tudo. Com isso, vacila tanto a
estabilidade do mundo objetivo quanto a do sujeito. A “perda” dos
limites, dados e garantidos pela identidade das coisas, pode levar
tanto a uma espantosa sensação de plenitude quanto a uma
arrasadora falta (Artaud aproxima os que tomam drogas daqueles
“que têm em si uma falta, genital e predestinada”, ou aqueles, poetas
“de seu eu”, que sentem, mais ou antes que os outros homens,
[33]
“aquilo que falta desde sempre à vida”). O sentimento “de
pertencer ao ilimitado”, no “outro lado das coisas”, alterna (ou
funde) o’homem divinizado ao feto levado pelo turbilhão da
correnteza. Extrema felicidade e angústia acompanham essa
investida do “processo primário” na consciência, fazendo-se
figuralmente visível.

Antropologia Comportamento Linguagem Percepção Tempo

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