Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Resumo: Abstract:
Entre os estudiosos da lírica galego-portuguesa Traditionally galician-portuguese cantigas de
é comum afirmar que a cantiga de escárnio e escárnio e maldizer had been described as an in-
maldizer não passa de uma invectiva de caráter dividual mocking which has no widespread po-
pessoal desprovida de consequências morais ou litical or moral concerns. The aim of the present
políticas abrangentes. Pretendemos demonstrar article is to show that galician-portuguese satire
em que medida a sátira galego-portuguesa tam- may also be read as a means of maintenance of
bém pode ser lida como instrumento de manu- a given social hierarchy, for these satirical songs
tenção de uma dada hierarquia social, uma vez often confirm the line of demarcation between
que as cantigas satíricas lidam frequentemente courtliness and vilany.
com a demarcação da fronteira entre as noções
de cortesia e vilania.
Palavras-chave: Keyword:
Lírica galego-portuguesa - Cantigas de escárnio Galician-portuguese lyric - Cantigas de escárnio
e maldizer - Cortesia. e maldizer - Courtliness.
8 www.fatea.br/angulo
“Vós que soedes en Corte morar...”: assim inicia D. gem e disforme, a ponto de se questionar se de fato
Pedro de Barcelos uma de suas cantigas, dirigindo-se se tratava de um ser humano: “[Yvain] persignou-se
à audiência1. A lírica trovadoresca é, com efeito, um mais de cem vezes, espantado ao ver como a natureza
assunto da corte: o grupo constituído pelos autores pôde fazer naquele homem obra tão feia e horrível”3.
das cantigas e o público que as admira é formado Ao se referir ao vilão, entretanto, os trovadores
quase exclusivamente por membros dos diferentes galego-portugueses não tinham em mente a arraia-
estratos da nobreza. Reis e príncipes não apenas em- -miúda pobre e esfaimada; o alvo principal de mofa
pregavam jograis para alegrar as reuniões do paço, era aquela classe de vilãos mais afortunados que pro-
como algumas vezes eles mesmos tomaram parte no curava imitar os hábitos da nobreza cortesã. A exis-
animado grupo de compositores que se aglutinava a tência de uma “cavalaria vilã”, cujos membros eram
seu redor: Alfonso X e seu neto D. Dinis estão entre os recrutados dentre os homens livres mais abastados de
compositores mais prolíficos dos cancioneiros. comunidades rurais, é característica dos reinos ibéri-
Desse meio de convivência aristocrática, a corte, cos entre os séculos XI e XIII. Ainda que nem sempre
surgiram certos valores morais estreitamente ligados tenham tido sucesso em suas pretensões de ingressar
à mentalidade feudo-vassálica (tais como lealdade, na nobreza, muitos desses cavaleiros recebiam impor-
fidelidade, honra, refinamento dos costumes), sinte- tantes privilégios e participavam do séquito do rei ou
tizados pela noção de cortesia e propagandeados por de outras personalidades da alta nobreza; com o tem-
rica produção literária2. Irradiados a partir de cortes po, eles passaram a constituir um segmento interme-
senhoriais francesas, os novos ideais culturais e lite- diário, situado entre a nobreza e a vilania. É sobretu-
rários também tiveram repercussão na Península Ibé- do esta classe de pessoas que interessa aos trovadores
rica, ainda que assumindo aí características próprias. escarnecer, quando se trata de afirmar as diferenças
Na lírica galego-portuguesa, diferentemente do que sociais. Por isso, D. Lopo Liáns insiste, num ciclo for-
ocorre na obra dos trovadores occitânicos, o termo mado por nada menos que doze cantigas, em expor
cortesia é quase desconhecido; em seu lugar, os au- ao ridículo um grupo de cavaleiros zevrões (“rudes,
tores ibéricos recorreram preferencialmente à noção selvagens”, segundo PELLEGRINI, 1969) provenien-
de mesura, o que traduz bem o caráter mais contido e tes de Lemos, chamando a um deles de “infançon vi-
doloroso das cantigas de amor em comparação com a lan, / affamado come can” (B 1349). Alfonso X, por sua
canção provençal, conforme notou Giuseppe Tavani vez, pinta um retrato detalhado de outro cavaleiro vi-
(1990, p. 122-3). lão, ou coteife, como eram chamados naquele tempo:
Do restrito universo da corte, por outro lado, barbudo, com gibão de segunda categoria e usando
eram banidos todos aqueles que, por nascimento ou calças que, embora fossem de melhor qualidade, já vi-
educação, fossem incapazes de se adequar aos no- nham gastas demais.
vos padrões de conduta. José Mattoso observa que a
coesão da nobreza em Portugal durante o século XII Vi un coteife de mui gran granhon,
se concretizava não apenas por meio das frequentes con seu porponto, mais non d’algodon
e con sas calças velhas de branqueta (B 479).
alianças matrimoniais: ela se construía “também atra-
vés de um vínculo puramente mental, mas não menos
A impropriedade do traje (neste caso, uma saia
importante, que consiste no sentimento de pertencer a
curta demais) também é o motivo da mofa de Martim
uma mesma classe social”. Esta identidade era expres-
Soares a certo João Fernandes (B 1370); Afonso Eanes
sa pela afirmação de um estilo de vida próprio, que se
do Coton, por sua vez, ri-se da miséria de um infanção
manifestava através da “superioridade em termos de
que retalhava sua única vaca ainda viva para ofere-
comportamento, [da] maneira de utilizar os tempos
cer carne aos convidados (B 1580); Fernão Soares de
livres, de vestir ou de pensar; em matéria de gostos,
Quinhones descreve o estado lastimável da montaria
de escala de valores, e até de crenças” (MATTOSO,
de outro infanção, ridicularizando-o (B 1556); a lista é
1991, vol. 1, p. 227-8). Os ideais culturais da nobreza
enorme. Em suma, como se vê, alguns dos alvos prin-
eram, pois, baseados num forte contraste social, e o
cipais da sátira nos cancioneiros galego-portugueses
cortesão procurava, acima de tudo, elevar-se sobre a
são os cavaleiros vilãos (coteifes) e os infanções empo-
rusticidade camponesa e a ignorância dos burgueses
brecidos4.
emergentes. Os vilãos, alcunha depreciativa aplicada
Estrutura-se, assim, nas cantigas de escárnio e
a todos os que não poderiam ser admitidos no seleto
maldizer, o que poderíamos chamar de “campo sêmi-
grupo da corte, eram frequentemente vistos com des-
co da vilania”5. Se na cantiga de amor é comum o em-
denhosa altivez e desconfiança. Por isso, na literatura
prego de termos emprestados da lírica occitânica, tais
de corte dos séculos XII e XIII o vilão é apresentado
como sen, prez e mesura, entre outros, as séries lexicais
muitas vezes como uma pessoa desprezível e “mal
referentes à vilania são compostas por vocabulário
talhada”, ser grosseiro e insensível. Em seu Yvain ou
genuinamente galego-português, embora muitas das
Le Chevalier au Lion, por exemplo, Chrétien de Troyes
palavras utilizadas já tenham caído em desuso. Há,
descreve um guardador de gado como criatura selva-
10 www.fatea.br/angulo
Ben quisto sodes dos alfaiates, à altura das sutilezas inerentes ao serviço amoroso
dos peliteiros e dos reedores; devido às bõas damas. Por isso, o Rei Sábio troça de al-
do vosso bando son os trompeiros guns nobres da província que, chegados à corte caste-
e os jograres dos atambores, lhana, acreditavam poder impressionar as damas que
por que lhis cabe nas trombas vosso son;
aí viviam com seus trajes fora de moda e seus modos
pera atambores ar dizen que non
grosseiros:
achan no mund’ outros sõos melhores8.
12 www.fatea.br/angulo
guês, Fernão Garcia Esgaravunha, propôs uma irônica e o coteife que for trobador,
sequência da enumeração das virtudes e prendas do- trobe, mais cham’ a coteifa “senhor”;
mésticas da ama (B 1511): ela saberia tecer e fiar, como e andaran os preitos con dereito.
as damas nobres, mas além disso fazia queijadas, cas-
E o vilão que trobar souber,
traria galos fremosamente e, de acordo com seu marido,
que trob’ e chame “senhor” sa molher,
faria também bons chouriços. Embora o tom seja de
e averá cada un o seu dereito.
louvor, as atividades a ela atribuídas são trabalhos que
na Idade Média eram considerados sujos, pois se rela- O próprio autor da cantiga inicial, responsável
cionavam com o que Jacques Le Goff chama de tabus por toda a celeuma, encerrou a discussão reafirmando
do sangue e da impureza (1980, p. 87); não é por acaso o ponto de vista mais tradicional, isto é, que coteifes e
que Esgaravunha diz, como falso elogio, que “nunca vilãos deveriam cortejar apenas mulheres de sua mes-
vistes molher de sa guysa / que mays limpha vida sa- ma condição. No terreno da poesia ainda seria permi-
bha fazer”. Além disso, as habilidades domésticas da tido imaginar que a pobre coteifa fosse semelhante a
ama são trabalhos manuais, que estavam entre os mais uma dama da corte; concede-se até mesmo a possibi-
desprezados na cultura medieval, como novamente lidade de chamá-la de senhor. O importante, porém, é
Fernão Garcia faz questão de sublinhar: “Non achare- não confundir o clichê literário com a realidade. Que
des en toda Castela (...) melhor morcela / do que a ama cada um trobe no seu talho, assevera João Soares Coe-
con sa mão faz”13. Às primeiras provocações, Coelho lho, “e andarán os preitos con dereito” – pois somente
responde em outra cantiga de amor, na qual enaltece ao nobre é concedido o direito de galantear mulheres
ainda mais a ama, repetindo toda a tópica do panegíri- de extração social diferente da sua. E assim a teoria
co da mulher amada: ela tem um “parecer melhor / de exposta por André Capelão é mais uma vez confirma-
quantas outras eno mundo son”, é mansa, fala e ri com da. O debate das amas e tecedeiras demonstra, por
mais razon que qualquer outra mulher e “en todo ben é fim, que os trovadores galego-portugueses tinham
mui sabedor”; em troca de seu ben o poeta renunciaria plena consciência da função reguladora que o amor
até a ser filho de rei ou emperador (A 171; B 322). cortês desempenhava na corte, traçando a linha de ex-
No entanto, o debate não se encerrou por aqui. clusão social14.
Airas Peres Vuitoron voltou ao tema, afirmando não Introduzindo o universo da vilania nos cancio-
ser um trovador que se interessasse por cantares de neiros galego-portugueses, as cantigas de escárnio
amor endereçados a este tipo de mulheres (B 1481). e maldizer representaram, em suma, um poderoso
Quando João Soares é interpelado por jograis e se- instrumento de reforço ideológico dos interesses da
gréis de condição inferior, contudo, sua defesa muda aristocracia cortesã. Ao troçar dos marginalizados da
de tom: o trovador deixa de insistir nos elogios à ama corte, os trovadores deram mostras de quão ciosos fo-
e passa a afirmar sua superioridade social, que lhe ram de sua condição superior; através da sátira, eles
permitiria cantar tanto às melhores fidalgas, quanto a afirmavam que o refinamento dos costumes, o bom
uma simples criada — diferentemente dos seus opo- gosto literário e a sensibilidade para amar cortesmen-
sitores, insinua. Numa tenção com Juião Bolseiro (que te seriam atributos exclusivos da nobreza. Qualquer
se dizia surpreso por Coelho, um homem viajado e infração ao código de conduta usado na corte – espe-
que deveria conhecer “donas mui fremosas”, ter deci- cialmente as cometidas por coteifes e infanções, admi-
dido servir justamente uma ama) ele encerra o debate tidos com reservas à convivência aristocrática – pode-
humilhando o adversário (B 1181): ria ser impiedosamente ridicularizada em público. O
gracejo, a maledicência e mesmo o eventual anseio de
– Juião, tu deves entender
desforra contra um desafeto fortalecem os laços de so-
que o mal vilan non pode saber
de fazenda de bõa dona nada. lidariedade entre os do mesmo grupo. Sempre pron-
tos a punir as manifestações de vilania com o riso,
Diante da insistência de João Garcia de Guilhade os trovadores galego-portugueses confirmavam sua
— que, dirigindo-se a seu jogral Lourenço, declara ter identidade de classe através do contraste com aqueles
sempre trovado “por bõas donas e sempr’ estranhei / tidos por inferiores e reafirmavam, dessa forma, a su-
os que trobavan por amas mamadas” (B 1501) —, João perioridade do ideal próprio de seu grupo: a cortesia.
Soares responde que a ninguém deveria ser permitido
cobiçar algo que não estivesse a seu alcance. Que um vi-
lão, diz a Guilhade, cante apenas a vilãs e não se intro-
meta em assuntos que não lhe dizem respeito (V 1024):
5. Cf. TAVANI, 1990, em esp. p. 189. Quanto ao significado 12. Sobre o este tema, veja-se também DUBY, 1989.
dos termos a seguir, valemo-nos sobretudo do Vocabulário
apenso à edição das Cantigas d´Escarnho e de Mal Dizer, de 13. Le Goff diz que a revalorização do trabalho ocorrida a
Lapa (1995, p. 289-392). partir do século XI não atingiu as atividades manuais: “se
o trabalho em si já não é a linha de divisão entre categorias
6. Sobre o homossexualismo na lírica galego-portuguesa, cf. desprezadas, é o trabalho manual que constituía a nova li-
SODRÉ, 2007. nha entre a estima e o desprezo” (1980, p. 99). Sobre a margi-
nalização de certas atividades e grupos sociais na sociedade
7. Veja-se, entretanto, a cantiga “Ben me cuidei eu, Maria Gar- medieval, cf. também ZAREMSKA, 2002.
cia”, de Afonso Eanes do Coton (B 1588). A serem corretas
as observações de Lapa a esta cantiga (1995, p. 49), devemos 14. Yara Frateschi Vieira conclui sua análise do “escândalo
considerar que o alvo desta composição seria uma rica pro- das amas e tecedeiras” ressaltando o “baixo teor de con-
prietária de terras – o que não quer dizer que ela pertencesse testação” das cantigas que compõem este ciclo: “O que é
obrigatoriamente à nobreza de corte. José Mattoso observa de condição social superior pode, por isso mesmo, romper
que o principal traço que distintivo entre os diferentes gru- a relação entre a convenção e a realidade e, por desfastio,
pos da nobreza em Portugal nesta época é o “que distingue a elevar a pobre ‘cochõa’ (mulher de baixa condição social) à
nobreza de corte da da província. A diferença não significa, altura da fidalga (...). Em nenhum momento, porém, nem no
porém, que aquela seja necessariamente superior a esta em próprio impulso iniciador da celeuma, o ‘escândalo’ assume
termos sociais” (1991, vol 1, p. 137). Sobre a cantiga, cf. FER- o caráter de uma proposta revolucionária de modificação do
NANDES, 1996. modelo ou, pior ainda, da realidade” (1983, p. 25-6).
14 www.fatea.br/angulo
R E F E R ÊN C I A S