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ANÁLISE DO DISCURSO:

SITUAÇÕES
DE ARGUMENTAÇÃO
IDA LUCIA MACHADO, GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA & WANDER EMEDIATO
ANÁLISE DO DISCURSO:

SITUAÇÕES
DE ARGUMENTAÇÃO
IDA LUCIA MACHADO, GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA & WANDER EMEDIATO
Ficha técnica

Título:
Análise do Discurso: situações de argumentação

Organização:
Ida Lucia Machado
Glaucia Muniz Proença Lara
Wander Emediato

Capa:
Frederico Pompeu

Coordenação editorial:
Mafalda Lalanda

Design gráfico:
Grácio Editor

1ª edição: agosto de 2018 (ebook)

ISBN: 978-989-99960-0-7

© Grácio Editor
Travessa da Vila União, 16, 7.º drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
e-mail: editor@ruigracio.com
sítio: www.ruigracio.com

Reservados todos os direitos


SUMÁRIO

Prefácio ..........................................................................................................7
Jacyntho Lins Brandão

Mediatização e dimensão argumentativa


em narrativas de vida em um jornal eletrônico ......................................11
Cláudio Humberto Lessa

O messianismo como um problema de argumentação:


um estudo da obra profético-messiânica de Padre Vieira ......................37
Clebson Luiz de Brito & Glaucia Muniz Proença Lara

Argumentation, (pseudo-) discours rapportés et figure


de prétérition. Le cas du debat de l’entre-deux-tours de mai 2017 ........59
Françoise Sullet-Nylander

A culpa é da mulher! Uma reflexão sobre a violência verbal


como recurso à culpabilização na internet ..............................................83
Helcira Lima

A mise en scène argumentativa de um discurso de Victor Hugo:


estudo de caso............................................................................................101
Ida Lucia Machado

O racismo velado no processo discursivo-argumentativo.....................119


Kelly Cristina de Oliveira & Moisés Olímpio-Ferreira
A religião ajuda ou atrapalha? Uma análise argumentativa
do debate entre fábio de melo e leandro karnal,
no livro Crer ou não crer.........................................................................141
Mônica Santos de Souza Melo

As emoções no discurso sob a perspectiva semiolinguística .................161


Renata Aiala de Mello

Uma abordagem discursiva da construção midiática da gafe .............181


Roberto Leiser Baronas & Julia Lourenço Costa

Análise do discurso, argumentação e ensino .........................................199


Rui Alexandre Grácio

Argumentation, postures énonciatives et interdiscursivité


dans la médiation journalistique d’un événement ................................219
Wander Emediato

Sobre os autores dos capítulos da coletânea ......................................................255

6
pReFÁCIO

Consta que Alberto Deodato (1896-1978), um sergipano radicado


em Belo Horizonte, onde foi advogado, jornalista, professor e escritor,
atuando certa vez na defesa de uma acusação de homicídio, nos anos
1950, tinha como tarefa não negar que o crime tivesse ocorrido, mas
atenuar sua gravidade, contra a tese da acusação de que se tratava de la-
trocínio, para configurar que tudo acontecera no contexto de uma briga
entre rapazes, a qual, passando dos limites, levara a desfecho tão trágico.
Era a época em que fumar não equivalia quase a um crime e, fazendo
um intervalo após a intervenção da acusação, juiz e advogados puxaram
seus cigarros. Em sinal de respeito — era também a época —, o magis-
trado fechou uma pequena cortina sobre o crucifixo — também era
época disso — que havia na sala do júri. Retomada a sessão, Alberto
Deodato inicia sua fala declarando que a tese de latrocínio, defendida
antes pela acusação, era tão absurda, que até Jesus Cristo tinha puxado
sua cortina para não presenciar tal despropósito!
Não interessa que o juiz, surpreso, se apressasse em abrir a cortina
de imediato, nem que a tese forte da defesa fosse que o rapaz morto, se-
gundo registro policial, estivesse com a carteira intocada no bolso. Não
vou me meter em analisar o impacto que esse engenhoso recurso discur-
sivo teve na apreciação dos jurados, no mínimo predispondo-os a uma
escuta atenta ou provocando uma espécie de catarse pela introdução de
uma tirada cômica numa situação não só séria quanto tensa. Muito
menos sobre qual efeito diferenciado ela pode ter tido sobre o público,
sobretudo entre os que, de antemão — como familiares e amigos — es-
tavam contra ou a favor do réu. Não interessa ainda o resultado do jul-
gamento, que deve estar conservado nos autos. O que desejo ressaltar é
como, na memória dos presentes, o que ficou foi a lembrança da enge-
nhosa perfórmance do advogado, uma espécie de irrupção, no seio do
discurso jurídico, de um elemento epidítico relativo ao próprio orador.
Isso mostra quanto, na linha do que já asseverava Górgias, o discurso
(lógos) é “um grande dinasta, que, com o mais diminuto corpo e o mais

7
JACyNTHO LINS BRANDãO

imperceptível, dá cumprimento às obras mais divinas”, pois tem a capa-


cidade de “fazer cessar o medo, eliminar a tristeza, provocar alegria e
fazer crescer a piedade” — de tal modo que Helena foi arrastada para
Troia seduzida por sua força. Essa potência, que se vale de todos os ele-
mentos da argumentação — etimemas, exemplos e tudo mais elencado
pela retórica —, mas também dos recursos performáticos ligado à situa-
ção de proferição — o kairós —, tem uma dimensão aparentemente con-
traditória: admirado em grandes desempenhos, possível de ser analisado,
codificado e, a partir daí, ensinado e aprendido, efetiva-se correntemente
na boca de todos e de cada um, nas complexas redes das relações dos ho-
mens uns com os outros. O que há de diferente agora com relação à antiga
retórica, apanágio de alguns eruditos, é o interesse e a capacidade que o
instrumental da análise do discurso fornece tanto para abordar as gran-
des perfórmances, quanto as pequenas e vulgares.
Este livro constitui uma excelente mostra disso. Capitaneado por Ida
Lúcia Machado, Gláucia Muniz Proença Lara e Wander Emediato de
Souza, ele apresenta ao leitor uma variedade de temas, numa pluralidade
de corpora e abordagens, tomados do passado, do presente — e até de um
futuro do passado, no caso do curioso experimento do Padre Antônio
Vieira. Por outro lado, ele confirma a capacidade de agregação, de inter-
locução e diálogo que é uma marca do Núcleo de Análise do Discurso da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, cujas ati-
vidades, desenvolvidas ininterruptamente há quase três décadas, criaram,
difundiram e consolidaram uma área de estudos evidentemente nuclear.
As situações argumentativas escolhidas pelos autores não poderiam
ser mais instigantes. Dos embates da eleição francesa entre Marine Le
Pen e François Macron ao bate-boca das redes sociais, de Victor Hugo
(como político!) a Christine Lagarde (do FMI!!!), passando pelo midiá-
tico (e crente) padre Fábio de Melo e o não menos midiático (e ateu) fi-
lósofo Leandro Karnal, não falta até, entre os atores, um presidente da
república e sua gafe (também midiática): “eu tenho absoluta convicção,
até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela, o quanto a mu-
lher faz pela casa”. Completam os capítulos abordagem do racismo em-
butido em peças de marketing por (incautos?) publicitários, histórias de
vida de gente comum (todas extraordinárias), bem como estudos de viés
teórico e pedagógico.

8
PREFÁCIO

Essa passada rápida pelo conteúdo do livro que o leitor tem em


mãos pretende não mais que sugerir um pouco do gosto duplo a ser-lhe
proporcionado: de um lado, é claro, a forma segura e perspicaz com que
os discursos em situação são abordados, com base nas teorias e métodos
mais qualificados e atualizados; mas, por outro, também a fruição dos
próprios discursos. Como não deixar de apreciar a viveza do debate pre-
sidencial na França, quando, de um lado, uma candidata afirma sobre o
oponente “vous avez dit l’Euro va mourir dans les 10 ans. En gros c’est
ça...”, recebendo como réplica “En gros (...) en gros, parce que vous dites
toujours en gros quand vous citez.” Ou deixar de se enternecer pela his-
tória de vida de quem, recuperando o menino que fora em terceira pes-
soa, relata: “Morava em um lar magro, ossudo, mantido pelo esforço de
Maria, que limpava mato e lavava pratos para criar os filhos. Quando
ela trabalhou em uma casa na qual a comida e os brinquedos eram abun-
dantes, José quis entrar. Mas ficou lá fora, sozinho, separado por um
muro que ia até o céu.” É que o discurso só pode tanto, na linha de Gór-
gias, porque não se dirige apenas à inteligência, como algo etéreo, mas
implica as emoções e o corpo todo, o qual, falando e ouvindo, enfim o
corporifica como o que há de mais humano no homem.
Nos anos 1980, ainda no fim da ditadura militar (quando o presi-
dente era o General Figueiredo), os professores universitários fizeram
suas primeiras greves — depois dos “anos de chumbo”. Eu era um jovem
professor de grego. Eram greves difíceis, tensas (como toda greve) e de-
moradas (como são as paralisações docentes). Numa assembleia de au-
ditório lotado, em que, como era natural, se discutiam os rumos do
movimento de modo acalorado, um colega tomou a palavra e, com ex-
trema habilidade — com virtuose mesmo — defendeu que era a hora
de pormos fim a tudo, por isso, por aquilo e aquiloutro. No final de sua
fala, bati palmas, como fazia uma parte (é verdade que não muito nu-
merosa) dos ouvintes, sendo interpelado com surpresa por minha colega
(Íria Renault), que estava a meu lado: “mas você é a favor de terminar-
mos a greve agora?” Então me coube explicar: “de jeito nenhum, mas é
que ele fala tão bem que eu, como um bom grego, posso não concordar
mas também não posso deixar de aplaudir”.
Como no caso de Alberto Deodato, eu diria que de novo se tratava
da irrupção do epidítico, agora não mais no contexto do lógos jurídico,

9
JACyNTHO LINS BRANDãO

mas do político. E talvez essas irrupções nos deem a pista do que dá


coesão a este livro. Todos que escrevem alimentam a mesma admiração
pelo discurso, que é o que nos torna humanos e, como tudo que é pró-
prio do homem, pode provocar dissenso, chegando às raias da violência
— e violência implica abdicar justamente de qualquer traço de huma-
nidade —, mas também é o único meio para buscar não consenso —
que provavelmente seria também abdicar de um dos traços mais insti-
gantes da experiência humana —, mas formas possíveis de diálogo. É
dessa admiração ponderada de quem aqui escreve que se espera seja
contaminado também o leitor.
Sartre afirmou certa vez: eu sou o que o outro me vê. Poderíamos
acrescentar: eu sou o que outro me ouve. Mais exatamente ainda: eu sou
o que o outro me diz. Isso não implica andar ao léu da opinião alheia,
mas ter consciência de que a condição humana se constitui como uma
relação de alteridades: o outro com o outro. Isso é que permite a cons-
trução da liberdade, em que, não é preciso insistir, pontifica o lógos. Passo
seguinte: cada ato (inclusive de fala) é livre, reafirmação da nossa liber-
dade. E cada ato se dá apenas em situação — nas diferentes situações,
públicas ou privadas, que são da esfera da multiplicidade e e particulari-
dade.
Contudo, cada ato — e não há ato legítimo que prescinda de ato de
fala —, na particularidade da situação em que se realiza e se diz, implica
(ensinam ainda os existencialistas) toda a humanidade. Daí a responsa-
bilidade. Daí a importância do trabalho diuturno de análise e indagação
sobre a natureza, a força, os usos e abusos do discurso.

Jacyntho Lins Brandão

10
MeDIATIZAÇÃO e DIMeNSÃO ARGUMeNTATIVA eM
NARRATIVAS De VIDA eM UM JORNAL eLeTRÔNICO

Cláudio Humberto Lessa

Introdução
Neste artigo, analiso a dimensão argumentativa em narrativas de
vida publicadas no jornaldocomércio online, de Pernambuco, acessado
a partir do site do UOL1. As narrativas são reunidas sob o título A His-
tória de mim, site idealizado por um projeto da jornalista Fabiana Mo-
raes2. Vejamos uma reprodução da página inicial:

Analiso uma das onze histórias de vida publicadas neste site em


setembro de 2016, a fim de mostrar como a dimensão argumentativa
manifesta-se no processo de desdobramento do sujeito em narrativas
de vida no qual: um eu-aqui-agora (sujeito da enunciação) projeta um
1
http://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/ahistoriademim/editorial, último acesso em: 22/05/2018.
2
Fabiana Moraes é jornalista, escritora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da
Universidade Federal de Pernambuco. É autora dos seguintes livros, segundo o site www.me-
dium.com/@fabi2moraes: O Nascimento de Joicy; Nabuco em Pretos e Brancos e Os Sertões.

11
CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

eu-lá-antigamente (MIRAUX, 2009), um outro de si mesmo (BAKH-


TIN, 1997), a quem delega a função de focalizador (sujeito de ponto
de vista (PDV) (RABATEL, 2013). Reflito, também, sobre os possíveis
efeitos persuasivos que essa narrativa pode produzir, a partir do exame
de posts de internautas que comentam e avaliam as histórias publicadas.
É possível observar que, a partir da construção de PDVs, o eu-aqui-
agora busca reconstituir sua história de vida a partir das percepções
atribuídas a um eu-menino, materializadas por recursos linguístico- -
discursivos e retóricos, sinalizadores de julgamentos e avaliações, de-
terminados pelos imaginários e pelos valores que constituem o sujeito
no presente, como se pode inferir a partir do seguinte excerto (meus
os grifos):
O menino que fez a mãe flutuar
Morava em um lar magro, ossudo, mantido pelo esforço de Maria,
que limpava mato e lavava pratos para criar os filhos. Quando ela
trabalhou em uma casa na qual a comida e os brinquedos eram
abundantes, José quis entrar. Mas ficou lá fora, sozinho, sepa-
rado por um muro que ia até o céu

A carteira de estudante traz o rosto entristecido do garoto, que,


às escondidas, levava o leite da merenda para alimentar o irmão
mais novo — Foto Igo Bione/JC Imagem

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

A partir do trecho reproduzido acima, pode-se observar como o su-


jeito empírico3, para construir sua narrativa de vida, estatui um Locutor,
em terceira pessoa4, que realiza julgamentos e avaliações indexados:
nas designações/qualificações que o eu-aqui-agora utiliza para re-
ferenciar a si, aos outros, aos objetos e aos lugares onde viveu,
como nos sintagmas “lar magro, ossudo”; “rosto entristecido do
garoto”
nos verbos modais (querer, poder, etc), de percepção, de dizer, em
conectivos adversativos, entre outros, como por exemplo em “José
quis entrar. Mas ficou lá fora”.

Para essa análise, na sequência do artigo, reflito sobre a narrativa de


vida considerando: i) sua emergência como um fenômeno de civilização,
segundo Arfuch (2010; 2013) e sua relação com o processo de mediati-
zação por que passa a sociedade contemporânea, cf. Braga (2006) e Si-
bilia (2004); ii) sua introdução na Análise do Discurso, cf. Machado
(2016); iii) sua natureza construcionista, cf. Bruner (2004); iv) sua ca-
pacidade de permitir ao sujeito produzir uma totalização da experiência
cf. Bakhtin (1997) e Bourdieu (2006); e v) sua dimensão argumentativa
e os elementos que a sinalizam segundo Doury (1995), Amossy (2005)
e Rabatel (2005).

1. A narrativa de vida como fenômeno de civilização e o processo


de mediatização da sociedade
Conforme Bourdieu (2006), as autobiografias entram como uma es-
pécie de contrabando nas ciências sociais: primeiramente, com os tra-
balhos dos etnólogos, depois com os sociólogos. Diversos estudiosos
sobre o tema: Czarnianska (2006), Dosse (2009) e Arfuch (2010), para
3
Utilizo, aqui, as categorias de Ducrot (1984 ), desenvolvidas no seu clássico estudo sobre a po-
lifonia, para me referir ao desdobramento da instância de enunciação: sujeito empírico, ser
do mundo, representado pela letra grega lâmbda λ , o Locutor (L), instância que se responsa-
biliza pela enunciação e e (enunciador), referindo-se às outras vozes, aos outros pontos de
vista encenados por L.
4
Lembremos que Lejeune (1975), ao refletir sobre a complexidade do problema da identidade
em textos autobiográficos, já mostrava a possibilidade de uma autobiografia ser escrita em ter-
ceira pessoa.

13
CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

citar somente alguns, sinalizam um resgate dos gêneros biográficos, na


contemporaneidade, a partir dos anos 1980 e a sua valorização nas Ciên-
cias Humanas, após um período de predomínio do paradigma científico
calcado no positivismo. Arfuch (2010) observa que o núcleo clássico de
gêneros (auto) biografia, memórias, cartas e diários assumiu outras for-
mas de manifestação midiática, tais como blogs, entrevistas, talk e reality
shows; ainda, segundo a autora, o biográfico pode irromper em várias
situações de comunicação, o que caracteriza a existência de um “espaço
biográfico”, um fenômeno de civilização, sinalizador de uma redefinição
da subjetividade constituída pelo resgate do sujeito, tanto célebre, quanto
anônimo. O projeto A História de mim, idealizado pela jornalista Fa-
biana Moraes, parece constituir um exemplo dessa vontade de se valo-
rizar o testemunho anônimo e de dar visibilidade ao privado na esfera
pública, e assim garantir “vez e voz” aos cidadãos comuns.
Segundo Arfuch (2010), é possível, então, observar, em diversos gê-
neros textuais e suportes midiáticos, tanto impressos, quanto digitais, a
expressão de novas formas de subjetividade que visam projetar identi-
dades. Essa mesma autora, em uma outra obra na qual reflete sobre as
relações entre memória e autobiografia, mostra como o espaço biográ-
fico contemporâneo permite a manifestação de “(...) rostos, vozes, cor-
pos que (...) sustentam autorias, reafirmam posições de agência ou de
autoridade, testemunham um ter vivido ou ter visto, desnudam suas
emoções, (...) políticas de identidade.”5 (ARFUCH, 2013, p. 20).
De acordo com a supracitada autora, os gêneros canônicos surgiram
ancorados em uma historicidade marcada pela invenção do sujeito mo-
derno, no século XVIII, tendo como marco a obra Confissões, de Rousseau
e sinalizando “o espaço da interioridade e da afetividade que deve ser dito
para existir a consequente expressão pública das emoções e o peso restri-
tivo da sociedade sobre elas (...)”6; porém, esses gêneros nunca perderam
sua vigência, foram se afirmando e transformando ao longo dos séculos,
adotando outros formatos e suportes. Com o desenvolvimento vertiginoso
5
Minha tradução do original em espanhol: “Rostros, voces, cuerpos (...) sostienen autorías,
reafirman posiciones de agencia o de autoridad, testimonian el haber vivido o haber visto,
desnudan sus emociones, rubrican políticas de identidad.”
6
Minha tradução do original em espanhol: “el spacio de la interioridad y de la afectividad que
debe ser dicho para existir, la (consecuente) expressión pública de las emociones y el peso res-
trictivo de la sociedad sobre ellas - .”

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

das novas tecnologias, sua importância se fez ‘global’, conforme Arfuch


(2013, p. 21); ultrapassaram as fronteiras físicas, tradições linguísticas
ou âmbitos culturais variados. Trata-se de uma expansão que não tem
somente a ver com conteúdos vivenciais clássicos, mas se trata, antes,
de uma expansão estética, estilística, expressa em formas múltiplas e
inovadoras.
A expressão de si a partir do uso das novas tecnologias digitais, além
de constituir um traço da subjetividade contemporânea, conforme Arfuch
(2010; 2013) defende, parece constituir um fenômeno que integra o pro-
cesso de mediatização generalizado por que passa a sociedade contem-
porânea, cf. Braga (2006). Segundo este estudioso, a mediatização está
em marcha acelerada para se tornar o processo interacional de referência
na sociedade. Ele não está concluído, mas se encontra em estágio avan-
çado de implantação. Trata-se de um processo tendencial que determina
um ajustamento dos demais processos sociais interacionais, tanto insti-
tucionais, quanto cotidianos, à lógica medial. Assim, é possível se falar
em mediatização das instâncias políticas, de entretenimento, de aprendi-
zagem, entre outras. Contudo, Braga afirma que os sistemas de referência
não substituem os outros, mas os absorvem, redirecionam-nos. Como
exemplo, o autor lembra que a cultura escrita passou a constituir o pro-
cesso interacional de referência a partir do contexto de expansão da bur-
guesia, passando a funcionar como o organizador principal da sociedade,
porém os espaços interativos orais ainda permaneceram.
Quando um processo interacional torna-se o processo de referência
em uma sociedade, ele passa a direcionar a construção da realidade so-
cial a partir de lógicas que não se referem somente às formas de organi-
zar/transmitir mensagens, mas, sobretudo, a formas, a padrões de ver,
de articular sujeitos, de relacionar universos e de fazer coisas. O processo
de mediatização por que passa nossa sociedade derivou de uma evolução
de desenvolvimentos técnicos que serviram a objetivos de sociedades
anteriores, como observa Braga: “até certo ponto, as lógicas de interação
mediatizadas se elaboraram como derivação e redirecionamento das ló-
gicas da cultura escrita.” (BRAGA, 2006, p. 17). Assim, explica o autor,
com a instauração da burguesia e a criação de tecnologias que visavam
atingir fins interacionais do mundo da cultura escrita já se observava
uma tendência a interações cada vez mais diferidas e difusas por meio

15
CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

de tecnologias, com aumento da rapidez nas comunicações, da capaci-


dade de registro, desterritorialização, descontextualização, recontextua-
lização, re-edição, fluidez entre a dimensão individual e social, entre
outros processos.
Com as novas tecnologias digitais, os processos supracitados poten-
cializam-se. Amplia-se a capacidade de mostrar e de se mostrar, por
meio da representação das imagens e da construção da imagem de si,
dos sons, das cores, das formas. O ciberespaço permite aos sujeitos agen-
ciarem um mundo plurissemiótico e plástico, cujas formas lhes permi-
tem, segundo Sibilia (2004), uma auto-estilização e uma ficcionalização
de si, um registro do privado a baixo custo que se manifesta na variedade
de suportes e gêneros digitais, tais como blogs, fotoblogs, Facebook, entre
outros. De acordo com essa autora, o corpo torna-se, assim, uma super-
fície na qual se pode exercer uma arte, transformar-se a si em um per-
sonagem a fim de atrair o olhar de outrem, como se o corpo vivesse em
uma tela.
Sibilia (2004) identifica um desejo do sujeito contemporâneo de ver
sua vida como um filme, passando a adaptar os principais eventos de
sua vida às exigências da câmera (do vídeo ou da máquina
fotográfica/do celular), construindo a si mais como um personagem do
que como um narrador, a partir de padrões estéticos e narrativos cine-
matográficos. A autora afirma que estamos vivendo um período no qual
se pode obervar não tanto a construção da ficção que se apoia no “real”,
mas a própria ficcionalização do “real”, o que resulta em uma espetacu-
larização da intimidade, com estilização de personagens e experiências
tanto de celebridades, quanto de sujeitos anônimos:
[...] numa época arrasada pelas incertezas e fascinada pelos simu-
lacros, na qual noções como as de realidade e verdade foram seria-
mente abaladas, não é mais a ficção que precisa recorrer ao real para
se contagiar do seu peso e ganhar veracidade. [...] Enquanto cresce
uma certa “fome de real” que incita a consumir vidas alheias (e
reais) cada vez mais vorazmente os gêneros de ficção tradicionais
perdem o fôlego ou se hibridizam com os de não-ficção. É nesse
contexto que as vendas de biografias aumentam em todo o planeta,
excedendo os limites de um fenômeno meramente mercadológico
para evidenciar uma peculiar tendência contemporânea: o forte e
renovado interesse pelas vidas reais (SIBILIA, 2004, p. 7).

16
MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

O projeto A História de mim, da jornalista Fabiana Moraes, parece


sinalizar esses processos de estilização e de ficcionalização de si, poten-
cializados pelas novas tecnologias digitais, na medida em que permite
aos internautas, leitores do Jornal do Comércio on line, construírem e
partilharem suas narrativas de vida no ciberespaço a partir do agencia-
mento tanto da linguagem verbal quanto da não verbal, como pode ser
observado nas fotos que acompanham os textos enviados. O sujeito que
se propõe a participar desse projeto, ao contar sua história, realiza um
ato estético que, conforme Bakhtin (1997), precisa de realizar escolhas
quanto às experiências que ele considera foram as mais significativas em
sua trajetória de vida, quanto ao foco narrativo, quanto à gestão dos ele-
mentos espaço-temporais, quanto aos recursos linguístico-retóricos e
imagéticos que usará para compor seu projeto de palavra7; necessita,
enfim, de construir um enredo a fim de organizar suas experiências,
construir uma possível versão de sua história de vida. Ato pelo qual e
no qual o eu se desdobra, como mostra Miraux (2009): um eu-aqui-
agora cria um eu-lá-antigamente, um personagem de si mesmo. Reflita-
mos, então, na sequência sobre esse processo.

2. Narrativas de vida, projeto ético, estético e a ilusão de unici-


dade do eu
O termo narrativa de vida foi introduzido na Análise do Discurso, a
partir da tradução que a pesquisadora Ida Lúcia Machado8 fez do termo
em francês récit de vie, cunhado pelo sociólogo, Daniel Bertaux. Ante-
riormente, Machado (2011), ancorada em Salmon, já chamara atenção
sobre a importância que o storytelling adquiriu na enunciação e na per-
suasão política: “a arte de contar ou de ‘saber vender suas ideias ou ima-
gem’para um auditório” (MACHADO, 2011, p. 166). Neste estudo e em
outros, a pesquisadora nos mostra como políticos franceses e brasileiros
7
Conceito de Charaudeau (1983).
8
A Professora Ida Lucia Machado foi minha orientadora nos processos de mestrado, doutorado
e foi minha supervisora durante meu período de estágio pós-doutoral na Universidade Federal
de Minas Gerais. Ao longo de mais de uma década de convívio acadêmico, pude aprender
muito com ela e até hoje, mantemos um diálogo muito profícuo em torno do tema narrativas
de vida.

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CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

passaram a contar histórias pessoais em suas alocuções públicas, ado-


tando uma postura de uma verdadeira vedette cinematográfica, compor-
tamento fomentado pela imprensa people que exibe as vidas de políticos
e de celebridades na Internet, respondendo ao interesse do grande pú-
blico pelas histórias de vidas privadas, fenômeno que parece ilustrar,
igualmente, as reflexões de Sibilia (2004) sobre os processos de estetização
e de ficcionalização de si, como vimos na seção anterior.
Machado (2016) explica que, ao dialogar com Bertaux9, percebeu
que era possível unir uma visão sociológica sobre a narrativa e as teori-
zações sobre esse fenômeno, no âmbito da Análise do Discurso, feitas
pelo linguista Patrick Charaudeau, uma vez que tanto este quanto aquele
mostram que, para se contar uma história, é preciso que se estabeleçam
os personagens, que sejam feitas as descrições das relações que eles tra-
vam entre si e que sejam levados em conta os julgamentos e avaliações
de quem narra. A supracitada autora salienta que o método de Bertaux
permite ao pesquisador relacionar as histórias de vida aos contextos
sócio-históricos nos quais estão inseridos, assim sendo, explica Machado
(2016), em todas as suas análises, ela busca “estudar relatos de práticas
de vida em situações sociais. Ou seja: a história do homem nos interessa
assim como a história de suas relações com o mundo e com a sociedade
que o envolvem” (MACHADO, 2016, p. 88) (grifos da autora). Ao longo
de seu livro, Machado (2016) nos apresenta os diversos motivos que
podem levar os sujeitos a contarem suas narrativas de vida.
Assim como Machado (2016), também adoto um ponto de vista
construcionista acerca da atividade narrativa, postulado pelo psicólogo
Jérôme Bruner (2004). Os autores Bruner; Brockmeier; Harré (2003)
contestam um conceito de narrativa entendida como representação.
Estes últimos questionam o que chamam de “falácia representacional”,
9
Lembremos que Bertaux (1997) desenvolve um método de pesquisa de natureza etnossocio-
lógica. Em sua obra clássica, Récit de vie, o autor expõe suas primeiras pesquisas com padeiros
artesanais de Paris, momento em que relata as principais dificuldades que enfrentou para con-
seguir colaboradores dispostos a relatarem aspectos de suas trajetórias profissionais. Bertaux
também nos apresenta diversas formas possíveis de se organizar e analisar um corpus a partir
de histórias de vida, formas de transcrição. O sociólogo considera a narrativa de vida uma to-
talização subjetiva da experiência de vida, formada a partir de um conjunto de materiais men-
tais (termo do autor), feita de lembranças, mas também de pontos de vista, de reflexões e de
avaliações retrospectivas.

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

a ideia de que existiria somente uma única e verdadeira realidade hu-


mana à qual todas as narrativas se reportariam. Eles argumentam que a
vida pode ser contada a partir de várias histórias distintas. Bruner (2004)
considera que as narrativas constroem a realidade, sendo determinadas
pela cultura, pelas tradições, pelos contextos em que emergem, pelos
sujeitos e suas intencionalidades, sendo ainda, regidas por convenções
apreendidas desde a mais tenra infância.
Nessa visão construcionista do conceito, a principal função da
mente é a construção do mundo. Os sujeitos organizam suas experiên-
cias e suas memórias de acontecimentos por meio de narrativas. Elas
constituem possíveis versões da realidade, resultam de interpretações e
reinterpretações contínuas de nossas experiências. Assim sendo, para
Bruner (2004), não há algo psicologicamente definido como “a vida em
si”, mas ela resulta de uma atividade seletiva, de um trabalho da memó-
ria; por isso, para o autor, recontar uma vida é sempre um trabalho in-
terpretativo. São as narrativas que construímos diariamente que nos
permitem atribuir sentidos aos nossos tempos vividos, às nossas ações.
No âmbito dos estudos da linguagem, Bakhtin (1997) e Bourdieu
(2006), no campo da Sociologia, também, colaboram para que possamos
entender a narrativa a partir de uma visão construcionista e contribuem
para que questionemos a “falácia representacional”, como postulam
Brockmeier; Harré (2003). Tanto Bakhtin (1997), quanto Bourdieu
(2006) nos mostram que as narrativas de vida parecem expressar um
desejo de conferir uma coesão, uma ordem às diversas experiências de
vida, ordenando-as e fixando-as pela trama narrativa, o que constitui
um ato estético por excelência, segundo Bakhtin (1997). Ato que permite
ao eu-aqui-agora atribuir sentido à sua trajetória de vida, (re) significar
acontecimentos, avaliar a si mesmo e os outros, o que constitui a dimen-
são ética da escrita de si, de acordo com o filósofo russo. A jornalista
Fabiana Moraes, no editorial do site parece sinalizar essa dupla dimensão
das narrativas de vida:
O tom pessoal e confessional deste projeto está em sua gênese:
foi a partir do encontro de antigas (e não tão antigas) fotos da
minha família que ele nasceu. Meu pai, José Manoel, fotógrafo,
guarda uma centena delas, várias impressas fortemente na minha
memória. Ao revê-las, senti enorme necessidade de escrever a

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

controlar os sentidos. Esse eu busca imprimir, via de regra, uma ordem


cronológica aos fatos, estabelece relações de causa/consequência, rela-
ções inteligíveis, enfim, entre os fatos de sua existência. Como diz Bour-
dieu (2006), o eu torna-se um ideólogo da própria vida e seleciona,
assim, em função de um projeto retórico, de acordo com suas intenções
e com o público ao qual se endereça, os acontecimentos significativos,
tentando dar-lhes coesão e coerência. O sociólogo fala de uma ilusão
retórica a qual o sujeito se conforma quando escreve o relato de si.
O supracitado autor afirma que a escrita autobiográfica integra uma
das instituições de totalização e de unificação do eu, assim como o nome
próprio: “o relato de vida tende a aproximar-se do modelo oficial da
apresentação oficial de si, carteira de identidade, ficha de estado civil,
curriculum vitae, biografia oficial (...)” (BOURDIEU, 2006, p. 188). O
seu objeto de discurso, diz o autor, constitui uma oficialização de uma
representação privada de uma vida. E essa consciência de falar de si para
outrem, de representar uma vida para outrem, como mostra também,
Bakhtin (1997), orienta o esforço do sujeito na apresentação/produção
de si. É esta produção de si, que se constitui a partir de um projeto re-
tórico, que nos permite, justamente, observar a dimensão argumentativa
dos relatos de vida.

3. A dimensão argumentativa das narrativas de vida


Doury (1995), Amossy (2005) e Rabatel (2005), cada um à sua ma-
neira, refletem sobre a dimensão argumentativa em textos narrativos.
Amossy (2005) propõe estender o império retórico a diversos discursos,
mesmo àqueles que parecem elidir todo traço da presença de teses ad-
versárias. O que autoriza tal ampliação? A premissa de que todo discurso
age sobre o interlocutor, incita-o a pensar de uma certa maneira, con-
vida-o a partilhar de um ponto de vista. A autora cita Adam, para quem
todo discurso faz partilhar opiniões, representações sobre dado tema.
Amossy (2005) distingue entre os discursos, aqueles que apresen-
tam uma visada persuasiva explícita, da qual o auditório seria cons-
ciente, daqueles que não visam diretamente à adesão de uma tese, tais
como os literários; estes não buscam persuadir, mas possuem uma

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

controlar os sentidos. Esse eu busca imprimir, via de regra, uma ordem


cronológica aos fatos, estabelece relações de causa/consequência, rela-
ções inteligíveis, enfim, entre os fatos de sua existência. Como diz Bour-
dieu (2006), o eu torna-se um ideólogo da própria vida e seleciona,
assim, em função de um projeto retórico, de acordo com suas intenções
e com o público ao qual se endereça, os acontecimentos significativos,
tentando dar-lhes coesão e coerência. O sociólogo fala de uma ilusão
retórica a qual o sujeito se conforma quando escreve o relato de si.
O supracitado autor afirma que a escrita autobiográfica integra uma
das instituições de totalização e de unificação do eu, assim como o nome
próprio: “o relato de vida tende a aproximar-se do modelo oficial da
apresentação oficial de si, carteira de identidade, ficha de estado civil,
curriculum vitae, biografia oficial (...)” (BOURDIEU, 2006, p. 188). O
seu objeto de discurso, diz o autor, constitui uma oficialização de uma
representação privada de uma vida. E essa consciência de falar de si para
outrem, de representar uma vida para outrem, como mostra também,
Bakhtin (1997), orienta o esforço do sujeito na apresentação/produção
de si. É esta produção de si, que se constitui a partir de um projeto re-
tórico, que nos permite, justamente, observar a dimensão argumentativa
dos relatos de vida.

3. A dimensão argumentativa das narrativas de vida


Doury (1995), Amossy (2005) e Rabatel (2005), cada um à sua ma-
neira, refletem sobre a dimensão argumentativa em textos narrativos.
Amossy (2005) propõe estender o império retórico a diversos discursos,
mesmo àqueles que parecem elidir todo traço da presença de teses ad-
versárias. O que autoriza tal ampliação? A premissa de que todo discurso
age sobre o interlocutor, incita-o a pensar de uma certa maneira, con-
vida-o a partilhar de um ponto de vista. A autora cita Adam, para quem
todo discurso faz partilhar opiniões, representações sobre dado tema.
Amossy (2005) distingue entre os discursos, aqueles que apresen-
tam uma visada persuasiva explícita, da qual o auditório seria cons-
ciente, daqueles que não visam diretamente à adesão de uma tese, tais
como os literários; estes não buscam persuadir, mas possuem uma

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CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

orientação argumentativa, pois dão a ver o mundo de certa maneira.


Assim, a presença explícita de uma polêmica não é condição sine qua
non para o processo persuasivo, explica a autora: o desacordo pode si-
tuar-se no nível do interdiscurso, na forma como o autor de um texto
literário ou testemunhal (caso analisado por Amossy), opõe valores,
opiniões circulantes em uma coletividade, explica a autora:
Nessa definição dialógica da argumentação, o sujeito aparece
como atravessado pelo interdiscurso, investido pela palavra do
outro (...) A intenção consciente é sempre subentendida pela doxa
à qual adere o locutor. É preciso então não se esquecer de que sua
fala contém significações que frequentemente ultrapassam sua
consciência e sua programação.” (AMOSSy, 2005, p. 175).10

Mas de que forma manifestam-se, no fio do discurso, sinais dessa


dimensão argumentativa? Amossy (2005) e também os demais autores
supracitados, de forma geral, nos mostram que esse tipo de argumenta-
ção indireta pode expressar-se na maneira pela qual o narrador referen-
cia os objetos de discurso e gere os pontos de vista de outros
enunciadores introduzidos no discurso. A inscrição da subjetividade,
como pontua Rabatel (2005), manifesta-se nos valores que um objeto
tem para o sujeito. Assim, a subjetividade e o ponto de vista não devem
ser buscados somente nos índices do aparelho formal da enunciação11,
nem tampouco somente nas modalidades e na modalização12, uma vez
10
Minha tradução do trecho: “Dans cette définition dialogique de l´argumentation, le sujet ap-
paraît donc comme traversé par l´interdicours, investi par le mot de l´autre (...) L´intention
consciente est toujours sous-tendue para la doxa à laquelle adhère le locuteur.”
11
A noção de aparelho formal de enunciação foi cunhada por Émile Benveniste. Ele define a
enunciação como o ato de colocar a língua em funcionamento por um ato individual. A sub-
jetividade é considerada como uma capacidade do locutor de se propor como sujeito: “É ego
que diz ego. Encontramos aí o fundamento da ´subjetividade´ que se determina pelo ´status´
linguístico da ´pessoa´” (BENVENISTE, 1995, p. 286). A interação com o outro é constitutiva
da enunciação: “A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu
não emprego ´eu´ a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu.”
(BENVENISTE, 1995, p. 286). Pela língua o sujeito refere-se/representa-se linguisticamente
a si, ao outro e o mundo. Cada instância de enunciação constitui um centro de referência in-
terno (ego, hic et nunc). Os caracteres formais da enunciação abrangem: 1) os índices de pessoa
(os pronomes pessoais), 2) de ostenção (os demonstrativos) – que enviam a indivíduos lin-
guísticos, não a conceitos, como os termos nominais; 3) as formas temporais (o presente é
inerente à enunciação, renova-se a cada instância de discurso). 4) Outras formas da enuncia-
ção: as modalidades de interrogação, intimação, a asserção – por indicar uma certeza, cons-
tituem uma manifestação básica da presença do locutor; os modos verbais, formas adverbiais.

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

que toda escolha que governa a referenciação de objetos de discurso já


indica um ponto de vista do Locutor/enunciador.
Segundo Rabatel (2005), os enunciados podem acumular valores des-
critivos, expressar um valor interpretativo e exprimir julgamentos do Lo-
cutor/enunciador sobre os objetos de discurso referenciados. O Locutor
insere em seu texto pontos de vista de outros enunciadores, cujos enun-
ciados podem ser considerados atos de fala indiretos. Esses atos possuem,
portanto, uma dimensão argumentativa. O supracitado autor considera
de capital importância observar, então, como o Locutor gerencia os PDVs
introduzidos no seu discurso, se mantém relações de adesão ou não, se
assume tais pontos de vista ou se os rechaça, deles distanciando-se.
Doury (1995), ao estudar o romance de aprendizagem, defende que
todo romance apresenta uma virtude persuasiva, na medida em que o
escritor pretende partilhar sua visão de mundo com o leitor. Para essa
pesquisadora, os romancistas encenam não “a” verdade, mas “uma ver-
dade” que desejam impor ao leitor. As palavras, no romance, portam
mensagens, exercem função conativa, diz a supracitada autora. Nesse
sentido, as personagens existem não simplesmente para se mostrar, mas
para demonstrar a verdade geral de sua experiência, participam da ela-
boração de um sentido, de uma lição, explica a pesquisadora. Além disso,
os romancistas, assevera Doury (1995), baseiam suas histórias em temas
tradicionais, buscam tratar de grandes opções no domínio da moral (o
bem e o mal), o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, enfim, dilemas
vividos pelas personagens jovens dos romances de aprendizagem. Assim,
a argumentação pode manifestar-se tanto nas intervenções diretas do
narrador que interpela o leitor, quanto nas escolhas dos termos, no modo
de apresentação do discurso relatado, no próprio discurso dos persona-
gens em estilo direto. Segundo, ainda, a supracitada autora, nos romances
de aprendizagem, é possível, então, observar a presença da tríade retórica,
agradar (delectare), emocionar (emovere) e instruir (docere).
12
Segundo Maingueneau (2004) a modalização “designa atitude do sujeito falante em relação
ao seu próprio enunciado, atitude que deixa marcas de diversos tipos (morfemas, prosódias,
mímicas...) Muitas dessas formas são unidades discretas, ao passo que a modalização é um
processo contínuo.” ( MAINGUENEAU, 2004, p. 336). Já a modalidade é definida como “fa-
cetas de um processo mais geral de modalização, de atribuição de modalidades ao enunciado,
pela qual o enunciador, em sua própria fala, exprime uma atitude em relação ao destinatário
e ao conteúdo de seu enunciado.” (MAINGUENEAU, 2004, p. 334).

23
CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

Na narrativa de vida escolhida para a análise, como disse, na Intro-


dução, o eu-aqui-agora busca reconstruir, inicialmente, os acontecimen-
tos de sua trajetória de vida a partir de PDVs atribuídos a um
eu-lá-antigamente, a um eu-menino. Esses PDVs manifestam-se tanto
na escolha dos verbos de sentimento, de percepção, verbos modais,
quanto na referenciação de objetos do discurso. Vejamos, então, na se-
quência, como ocorre esse processo de desdobramento do eu.

4. Análise da dimensão argumentativa de narrativas de vida no


jornal eletrônico: jornaldocomércio
Na narrativa de vida de José Pires de Souza Filho, observa-se que o
autor institui um Locutor em terceira pessoa, que se manifesta durante
toda a progressão narrativa, como se observa nos trechos iniciais, antes
da fotografia:
O menino que fez a mãe flutuar

Morava em um lar magro, ossudo, mantido pelo esforço de Maria,


que limpava mato e lavava pratos para criar os filhos. Quando ela
trabalhou em uma casa na qual a comida e os brinquedos eram
abundantes, José quis entrar. Mas ficou lá fora, sozinho, sepa-
rado por um muro que ia até o céu

Somente no segundo e no último parágrafo, o autor opera um des-


lizamento enunciativo, identificando-se como um “nós”: “O dinheiro não
dava para muita coisa, como percebemos em nosso passeio imaginário
pela casa magra, tão ossuda”, e “É bom ver a mãe da gente flutuar”
Lejeune (1975) define a autobiografia como “narrativa introspec-
tiva em prosa que uma pessoa real faz da própria existência, quando
essa pessoa acentua sua vida individual, em particular a história de sua
personalidade.” Para se classificar uma obra como autobiográfica, o
autor apresenta, dentre outros, os critérios: i) deve haver identidade do
autor — cujo nome envia a uma pessoa real — e a do narrador; ii) é
preciso que haja coincidência entre a identidade do narrador e a do
personagem principal.

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

Contudo, Lejeune problematiza a definição ao refletir sobre situações


nas quais pode ser difícil identificar identidade entre narrador e perso-
nagem principal. Pode haver, mostra o autor, identidade entre o narrador
e o personagem principal, mesmo em uma narrativa em terceira pessoa
em uma autobiografia. Além disso, há romances autobiográficos, assim
é difícil propor uma definição textual do gênero. Então, para definir a
autobiografia, o autor propõe a noção de pacto autobiográfico13.
Como observamos, no texto de José Pires e nos demais, o pacto au-
tobiográfico é estabelecido a partir da página inicial do site, com o título
“A História de mim”, seguido das diversas fotos dispostas em mosaico
dos participantes do projeto. E, ao clicar em cada foto, o internauta se
depara com mais marcas que reforçam o pacto de leitura; no caso, todos
os textos iniciam-se com a foto que motivou a narrativa, escolhida pelo
participante. No caso de José Pires, ele escolhe, para iniciar seu relato, a
foto de sua antiga carteirinha da escola e o finaliza com uma foto dele e
da mãe na varanda de sua casa. Os extratos semióticos: verbal e icônico
remetem a um pacto de referencialidade, também, pensado por Lejeune
(1975), que subjaz as narrativas de vida: são textos, a princípio, produ-
zidos e lidos como textos referenciais, que visam trazer informações
sobre uma realidade, submetendo-se a uma prova de verificação.
No início da página, o autor, ou então, a organizadora do site, apre-
senta um trecho da narrativa em itálico, o que parece constituir uma
estratégia de captação da atenção do leitor, chamando atenção para o
tema principal da narrativa: a abnegação da mãe e as condições de ad-
versidade econômica enfrentadas pela família; além disso, sinaliza a
oposição entre a pobreza em que se vivia e a riqueza, encontrada nas
casas dos patrões onde a mãe trabalhara. Essa oposição constitui a es-
pinha dorsal da narrativa, o que nos permite afirmar que boa parte da
13
De forma resumida, segundo Lejeune (1975), o que definiria o estatuto autobiográfico de uma
obra seria um pacto de leitura que o autor propõe ao leitor, a partir de indicação de uma série
de evidências que permitiriam ao leitor constatar tal estatuto: por exemplo, os elementos para-
textuais ou peri-textuais, a coincidência entre o nome do autor na capa e o nome da persona-
gem principal que narra sua vida em primeira pessoa. O autor defende que a prova de
identidade do sujeito seria o nome próprio, pelo qual o autor responde juridicamente, não seria
a marca pronominal “eu”; é, pois, o nome próprio que articula pessoa e discurso. Lejeune des-
creve várias maneiras se estabelecer a identidade de nome entre autor/narrador/personagem:
1) implicitamente: a) emprego de títulos; b) a seção inicial do texto; 2) de maneira patente: no
nível do nome que o narrador-personagem dá a si próprio, que coincide com o nome da capa.

25
CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

dimensão argumentativa desse discurso deriva dessa oposição. Trata-


se de temática passível de despertar emoções. Como vimos, para Dury
(1995), a escolha de determinados temas tradicionais concorre para a
produção da dimensão argumentativa em textos literários.
Na legenda da foto, o processo de referenciação (categorização e re-
categorização de referentes) inicia-se, sinalizando, para o leitor, as ava-
liações do eu-aqui-agora sobre o eu-menino: “a carteira de estudante traz
o rosto entristecido do garoto” A narrativa inicia-se com referências
aos três irmãos. O Locutor descreve os tipos de brincadeiras dos meni-
nos, o quintal da casa, os tipos de brinquedos que eles usavam. Os verbos
de pensamento sinalizam os PDVs reconstruídos, pela ótica do eu-me-
nino: “eram três irmãos: um maior e que se julgava grande demais para
brincar com José, outro menor que José julgava pequeno demais para
brincar com ele. Aí o menino do meio ficava ao redor da casa, criando
um mundo sozinho.”
As designações/qualificações de lugares e objetos ressaltam o con-
traste social, a pobreza em que vivia a família:
José morava em Carpina, Zona da Mata Norte pernambucana.
Era segunda metade dos anos 1960 e ele convivia intimamente
com a pobreza. A casa na Rua Nunes Machado, atrás de onde
hoje está a Igreja Matriz, era decorada assim: uma cadeira de ba-
lanço para o pai, um sofá que a mãe tinha achado no lixo e co-
locado pés de tijolos, camas com colchões recheados de capim,
um armário quase vazio, um pote de barro para guardar a água.
Televisão e geladeira, naquele mundo modesto, eram ficção cien-
tífica. O pai, ex-contínuo da Prefeitura do Recife, havia se apo-
sentado. O dinheiro não dava para muita coisa (...) Aí Maria
Josefa pegava a enxada e ia para rua tentar arrumar algum traba-
lho, limpar alguma roça, alguma granja. Quando não conseguia,
tirava qualquer capim, conseguia dinheiro pouco e voltava pro
lar. (Grifos meus)

Na progressão da narrativa, a projeção da mãe como mulher forte,


trabalhadora, abnegada e obstinada em conseguir sustentar a família se
mantém. No terceiro parágrafo, inicia-se o contraste com a outra classe
social. Novas designações/qualificações sinalizam as avaliações do eu-
aqui-agora a serviço da construção de um ponto de vista que sinaliza

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

um projeto retórico de denunciar as diferenças socioeconômicas que o


locutor e sua família tiveram de superar ao longo da vida:
Uma época, a mãe, analfabeta, tinha seus 30 anos, arrumou em-
prego de doméstica na casa de uma família de classe média alta.
A casa ficava a três quilômetros de onde morava. Lá viviam quatro
pessoas, eram duas empregadas, uma delas Maria Josefa. Ela fazia
o percurso a pé, ida e volta. Saía muito cedo, porque a família
queria o café da manhã posto à mesa quando acordava. Saía
muito tarde, porque a família queria o jantar posto à mesa antes
de ir dormir. Só depois de lavar os pratos da última refeição diária
é que ela era liberada. (Grifos meus).

Como se observa, o locutor atribui PDVs à família abastada: o uso


do verbo querer repetido duas vezes, parece reforçar os lugares socioe-
conômicos, assimétricos, ocupados pela mãe e pelos membros da famí-
lia, bem como as exigências de uma classe em relação a outra. O
eu-menino ressentia a falta da mãe, pois ela passava longas horas do dia
no trabalho. José decidiu, então, caminhar três quilômetros para ficar
esperando a mãe sair da “residência da família muito rica”, afirma. Neste
ponto, o Locutor faz referência ao muro alto, que, mais adiante, é meta-
forizado na construção: “o muro era alto e chegava até o céu”, no trecho
seguinte:
Fez da visita, que era uma busca, um hábito. Dependendo da sau-
dade, chegava muitas horas antes de Maria Josefa ser dispensada.
Naquelas longas esperas, podia ouvir as duas crianças da família
brincando, uma tinha seis anos, a outra, uns quatro. Riam, em-
purravam carrinho, corriam, gritavam. Faziam aquilo o que José,
sentado lá fora, também gostaria muito de fazer. Mas o muro era
alto e chegava até o céu. Conseguiu transpô-lo uma vez, somente
uma, mas nada aconteceu como imaginava: com dor de dente,
precisava ir ao médico. A mãe o acordou de madrugada e com
ele seguiu até a casa dos patrões. Antes de cuidar do menino, pre-
cisava fazer o café, colocar o pão, os ovos, o queijo, o suco, as fru-
tas, tudo aquilo que ela não tinha em casa, na mesa. Enquanto
isso, José ficou esperando, no quarto de empregada. Novamente,
podia ouvir os ruídos, os pratos, os talheres, a vida sem tanta dor
que ele apenas podia imaginar. (Grifos meus)

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CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

Neste trecho, pode-se observar a construção de PDVs associados


ao eu-menino, que sinalizam os desejos, as faltas e todo o sofrimento do
eu-lá-antigamente: ... podia ouvir; .... faziam aquilo o que José ... gostaria
muito de fazer. O Locutor parece ressaltar o contraste social a partir das
oposições entre os lugares ocupados pelos sujeitos, reconstruídos na
narrativa, por meio do uso de expressões adverbiais de lugar: até a casa
dos patrões; no quarto da empregada; lugares permitidos e lugares nega-
dos ao eu-lá-antigamente.
Esse lugar negado, na progressão da narrativa, é recategorizado
como aquela casa encantada, para onde tinha ido o irmão menor, que
havia sido convidado para brincar com os filhos dos patrões. José, na
esperança de também poder entrar naquele universo dos sonhos, correu
desesperado para lá, porém decepciona-se mais uma vez. Para recons-
truir esse sentimento de decepção, acompanhada de tristeza, o Locutor
atribui PDVs ao eu-menino a partir do agenciamento do uso de alguns
verbos: o jogo entre o uso do pretérito imperfeito e do futuro do preté-
rito como em “acreditava que [...] poderia entrar [...]”; o jogo com o
pretérito perfeito e o imperfeito como em “só ouvia [...]”; “tentou olhar”;
“não era possível enxergar”; “não havia outra saída a não ser sentar (...)
esperar”; “ficou ali e se contentou”
José se esqueceu dos abacates e correu para o trabalho da mãe.
Os três quilômetros foram curtos para a ansiedade: acreditava
que, como o irmão, também poderia entrar e empurrar carri-
nho, correr, gritar, jogar bola e se esconder. Mas quando chegou
lá, os portões fechados, o muro tão alto que chegava até o céu, só
ouvia as risadas e correrias. Não podia entrar. Não teve coragem
de chamar. Tentou olhar pela fechadura do portão, mas não era
possível enxergar nada. Não havia outra saída a não ser sentar
no meio-fio e esperar, como fazia todos os dias. José ficou ali e
se contentou em escutar o irmão e os filhos da patroa brincarem
a tarde toda, até se calarem. (Grifos meus)

No antepenúltimo parágrafo, o locutor utiliza escolhas lexicais si-


nalizadoras dos contrastes sociais denunciados na narrativa: refere-se
àquele lar abastado ao qual não podia ter acesso e o qual a mãe deixara
de trabalhar para assumir um novo trabalho, desta vez, em uma granja,
lugar “onde também assegurava com seu trabalho duro o privilégio de

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

poucos.”, afirma o Locutor. Em contraste, retrata-se como a situação da


família pobre de José mudara pouco, apesar de tanto esforço: “Na casa
ossuda da empregada, o armário continuava vazio. Ela não se esquecia
disso, e, como toda mãe que não dá conta de ver a fome espreitando suas
crias, separava as vísceras das galinhas para alimentar as crianças.” Neste
ponto, o tom dramático da narrativa parece alcançar seu clímax, o autor
continua descrevendo meticulosamente como a mãe preparava as vís-
ceras das galinhas para alimentar os filhos.
Nos dois últimos parágrafos, a narrativa relata e descreve a supera-
ção de José e da família. O eu-aqui-agora contrasta sua situação atual
àquela vivida pelo eu-lá-antigamente:
José cresceu. Entrou na Marinha. Conheceu a África, foi para os
Estados Unidos. Um dia, voltou para casa e parecia muito distante
do menino que catava lixo para ir ao cinema, o menino que fazia
fazendas com abacates e palitos, o menino que aguardava a mãe
sair do trabalho durante horas enquanto ouvia as risadas das
crianças que ela cuidava. Juntou dinheiro. Pegou Maria Josefa pela
mão e a levou até uma loja de móveis. Voltaram para casa com
geladeira, sofá, cama, colchão, estante, fogão, beliche para os ir-
mãos que estavam bem e continuavam lá. Anos depois, fez con-
curso e virou oficial da Polícia Militar. Comprou uma chácara ali
mesmo.

O Locutor finaliza a narrativa refletindo sobre o sentido da vida,


sobre o sentido das adversidades e sofrimentos vividos:
Só contou sobre sua dor e as longas esperas em frente à casa de
portão alto e muros que iam até o céu um dia desses, depois que
mandou sua história para o jornal. “Mãe, aquilo me trouxe um
sofrimento tão grande.” Maria Josefa sorriu. “E era, meu filho?”
Ficou surpresa, nunca tinha reparado. Tudo isso ficou pra trás,
mas volta e meia ele é o menino que corria pela escola com o copo
azul cheio de leite para alimentar o irmão. Esse menino, hoje pai
de cinco filhos, fica no terraço do lar que ele construiu lá em Car-
pina, tem árvore, rede, terraço. A mãe sempre vai visitá-lo. De
longe, ele olha para ela nadando na piscina de água morna e ge-
nerosa, lembra-se de tudo o que aconteceu e sente-se feliz, como
se estivessem voltando para casa, abraçados, após um dia de tra-
balho. É bom ver a mãe da gente flutuar.

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CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

O texto é finalizado com a reprodução de uma foto de mãe e filho


na varanda da nova casa:

Como vimos, Doury (1995) busca mostrar como a dimensão argu-


mentativa em textos literários, especificamente, romances de aprendi-
zagem, manifesta-se nos três objetivos que constituem a empresa
persuasiva: delectare (agradar); emovere (emocionar) e instruire (ins-
truir); o agradar pode resultar de uma virtuosidade estilística, diz a su-
pracitada autora, efetuada a partir das descrições, dos retratos e das
passagens narrativas ou diálogos encenados pelo autor. A emoção deriva
da escolha de temas tradicionais, além da manifestação de um determi-
nado tom: cômico, patético, burlesco, irônico ou trágico. A instrução
refere-se à dimensão pedagógica inscrita no romance de aprendizagem,
que permite ao leitor fazer uma experiência de mundo. Assim, a histó-
ria pode servir como lição, pois fruto de uma reflexão e de um trabalho
do romancista a partir de sua própria experiência do real, defende a
pesquisadora.
Acredito que, de maneira semelhante ao romance de aprendizagem,
as narrativas de vida também recriam, de uma certa maneira, a expe-
riência de um ser no mundo, considerado como real, devido ao pacto
de referencialidade subjacente a esse gênero. Esse tipo de narrativa busca
transmitir verdades humanas que, como salienta Doury (1995), têm o

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

poder de tocar o público moderno. Nos posts enviados à página dedicada


ao relato de José Pires, podemos observar, parece-me, de que forma a
narrativa, o drama recriado pelo Locutor em sua narrativa tocou, emo-
cionou os internautas.
Na maioria dos posts, observa-se que são projetadas imagens14 alta-
mente positivas do filho e da mãe. A relação de amor entre ambos tam-
bém é muito bem avaliada. Isso parece confirmar o potencial emocional
dessa temática. Ao filho, atribui-se a imagem constituída pelos seguintes
ethé: sensível, dignificante, conquistador de amigos; pessoa determinada;
honesto; zelador, cuidador da mãe; generoso; vitorioso; comprometido.
Os posts também parecem sinalizar um sentimento de identificação
dos internautas com as personagens, com os dramas vividos por elas e
os valores cultivados:
+8

Mario Ferreira· 1 semana atrás


É muito emocionante a história de pessoas determinadas que so-
nham em dias melhores. É muito lindo o reconhecimento de
todos aqueles que vencem e não se esquecem das suas origens, da
eterna gratidão, daqueles que agradecem de todas as maneiras sa-
lutares. Me emocionei bastante com sua história de vida, humilde,
mas apesar das dificuldades es um vencedor com Deus no cora-
ção! Parabéns ela sua pessoa que venceu honestamente, sempre
pelos caminhos de Deus! Que sua mãezinha continue sorrindo
pelo conforto e pela felicidade em saber que valeu a pena, pois
ver os filhos bem é um grande presente! Um forte abraço nobre
amigo.
14
Considero, aqui, as três provas retóricas aristotélicas: o ethos, o logos e o pathos. Segundo
Amossy (2004), “O ethos faz parte, com o ‘logos’ e o ‘pathos’, da trilogia aristotélica dos meios
de prova (Retórica I: 1355a). Adquire em Aristóteles um duplo sentido: por um lado, designa
as virtudes morais que garantem credibilidade ao orador, tais quais a prudência, a virtude e a
benevolência (Retórica II: 1378a); por outro lado, comporta uma dimensão social, na medida
em que o orador convence ao se exprimir de modo apropriado a seu caráter e a seu tipo social
(Eggs, 1999: 32).” (AMOSSy, 2004, p. 220). Essa autora, ao apresentar um panorama de como
a noção foi trabalhada em Análise do Discurso, lembra que, para Ducrot, a noção de ethos
como imagem de si associa-se ao Locutor. Segundo a autora, Ducrot (1984) salientou a cen-
tralidade da enunciação da construção de uma imagem de si. O pathos refere-se aos meios
utilizados pelo orador passíveis de despertar as emoções do auditório e o logos, ao discurso
em si, ou ainda, aos raciocínios lógicos usados na empresa persuasiva.

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CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

A dimensão do delectare parece estar sinalizada em depoimentos de


internautas que destacam o trabalho com a linguagem, com o apuro das
descrições e o tom poético atribuído à narrativa:
+7

Janaina Pereira· 1 semana atrás


Que história linda! Não desmerecendo as outras, mas talvez esta
tenha sido amais comovente e bem escrita até agora. Eu pratica-
mente vi as cenas. Um grande afago fraternal em seus corações.
Podia faltar tudo, mas tinha uma mãe... Que sensibilidade!

+7

Adriana Amorim· 1 semana atrás


Quanta dificuldade descrita com tanta poesia! A pobreza não é
sentença de fracasso de ninguém, mas tem o "poder" de fortalecer
as pessoas para a vida, para o mundo, desenvolvendo a capaci-
dade e a clareza de perceber quais são as coisas absolutamente su-
pérfluas da vida e aquilo que é essencial, sem as quais não se pode
viver. Parabéns por compartilhar sua história que é de conquista
e de amor pela família. Parabéns!

+4

carlos batista· 6 dias atrás


Essa foi uma das mais incríveis histórias de uma vida sofrida mas
vencedora, que tive o prazer de ler! Parabéns, tenha muitos anos
de vida com saúde, muita dignidade e cuide muito bem do maior
presente que Deus pode nos dar: Uma mãe

Como é possível observar, em todos os três posts, ressalta-se o fato


de a história de José ter sido a “mais comovente e bem escrita”, “com tanta
poesia” e que proporcionou um “prazer de ler!”. Esses e os demais posts
parecem comprovar, então, a dimensão argumentativa implicitada na
narrativa de José Pires e seu potencial para provocar, não somente um
efeito patêmico, mas efeito de identificação, empatia, reconhecimento e

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

admiração com a imagem do Locutor encenado. Essas avaliações, tam-


bém, parecem sinalizar o fenômeno de estetização e ficcionalização de
si, tal como postula Sibilia (2004), fenômenos potencializados pelas
Novas Tecnologias de Comunicação digitais.

Considerações finais
Segundo Czarnianska (2006), a narrativa pode exercer várias fun-
ções: de entretenimento, de ensino e de aprendizagem. Neste artigo, bus-
quei mostrar como elas podem implicitar uma dimensão argumentativa,
cf. Amossy (2005) a partir do desdobramento do sujeito enunciador no
qual um eu-aqui-agora projeta um eu-lá-antigamente, termos de Miraux
(2009), um outro de si mesmo, processo de auto-objetificação pelo qual
e no qual o sujeito busca organizar experiências e ações vividas, atri-
buir-lhes sentidos, projetando, ao mesmo tempo, imagens de si, de ou-
trem e do mundo. Processo narrativo que, como Bruner (2004) nos
ensina, constitui-se de gestos interpretativos contínuos, inerentes à con-
dição e à cognição humana. E, nesses gestos interpretativos, o eu-aqui-
agora realiza um ato, ao mesmo tempo, ético e estético, cf. Bakhtin
(1997): constrói uma trama, um enredo para discursivizar suas expe-
riências, a partir da referenciação de objetos de discurso, do agencia-
mento de marcas temporais, espaciais, realizando avaliações axiológicas
a partir dos referenciais éticos que constituem o sujeito no presente, que
projeta a si mesmo como um personagem, efetua, como pontua Arfuch
(2010), um deslizamento da pessoa à personagem.
Como mostra Sibilia (2004), nesse processo de narrar-se, na contem-
poraneidade, observa-se um incremento das formas de auto-estetização
e de ficcionalização de si, pontencializadas pelas novas tecnologias digi-
tais, a partir das quais, os sujeitos buscam singularizar-se, valendo-se de
recursos plurissemióticos e plásticos, típicos do mundo virtual. O site re-
sultante do projeto da jornalista Fabiana Moraes, A História de Mim, pa-
rece sinalizar esses processos de que nos fala Sibilia. O cidadão
pernambucano, José Pires de Souza Filho, ao narrar sua trajetória de vida
em terceira pessoa ilustra, de forma interessante, esse processo de desli-
zamento da pessoa à personagem, buscou usar uma linguagem poética,

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CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

com recursos à metaforização, a descrições passíveis de produzir efeitos


patêmicos, na medida em que detalham os contrastes sociais, os esforços
da mãe para sustentar a família, mobilizando valores cultivados na so-
ciedade brasileira: o amor à família, a abnegação, o valor do trabalho, a
superação de uma família pobre, nordestina, sem recursos, entre outros.
Assim sendo, a forma de narrar, os recursos estéticos usados, bem como
os temas abordados, os valores mobilizados na narrativa parecem ter con-
vencido e mesmo, persuadido muitos dos internautas, como podemos
observar na breve análise dos posts.
Como vimos, a jornalista, idealizadora do projeto, não esperava que
a publicação de uma das fotos da família, acompanhada de uma narra-
tiva de vida associada àquela foto, iria despertar o desejo dos leitores on
line de fazerem o mesmo. Assim foi criado o projeto, para atender às de-
mandas desses sujeitos que haviam se comovido com o relato de Moraes.
O site está em operação até hoje. Parece-me que ele constitui um exem-
plo marcante do processo de mediatização por que passa a sociedade
contemporânea como postula Braga (2006). As diversas esferas de ati-
vidade social, tanto institucionais, quanto cotidianas, têm se adaptado
à lógica medial que tem constituído, cada vez mais, o processo intera-
cional de referência em nossa sociedade, permitindo que os sujeitos
criem comunidades e laços simbólicos, a partir de novas formas de in-
teragir, de produzir/receber/manipular conteúdo/informação e de existir
na esfera pública. Assim, o ato de narrar-se, de narrar a própria vida,
também, tem sido, cada vez mais, determinado por esse processo que
potencializa as capacidades de mostrar e de se mostrar, embaralhando
as fronteiras entre o público e o privado, permitindo, como defende Si-
bilia (2004), que os corpos se tornem superfícies a partir das quais se
pode exercer uma arte, com a criação de inúmeras estilizações, de ver-
sões, de ficcionalizações de si, fato que sinaliza, igualmente, como de-
fende Arfuch (2010), a existência e a coexistência de corpos e narrativas
que sustentam autorias, posicionamentos político-ideológicos, gestos de
afirmação, de vozes singulares ou coletivas.

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MEDIATIZAÇãO E DIMENSãO ARGUMENTATIVA EM NARRATIVAS DE VIDA EM UM JORNAL ELETRÔNICO

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35
CLÁUDIO HUMBERTO LESSA

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O MeSSIANISMO COMO UM pRObLeMA De
ARGUMeNTAÇÃO: UM eSTUDO DA ObRA
pROFéTICO-MeSSIâNICA De pADRe VIeIRA1

Clebson Luiz de Brito


Glaucia Muniz Proença Lara

Introdução
Falar em messianismo, como explica Cazelles (1984, p. 1312), é falar
da figura do messias, que significa originalmente “ungido do senhor”,
em referência ao rito de unção por óleo de oliva que, na época primitiva,
dava legitimidade a um novo rei como aquele destinado pela divindade
a levar proteção a seu povo. Em momentos de instabilidade social, a as-
censão de um novo rei era aguardada e vista como uma forma de reaver
a prosperidade, a paz, a harmonia social, envolvendo, pois, uma espera
messiânica que se voltava para uma correção no curso da história.
Desse sentido primeiro de messianismo, porém, deriva um sentido
mais amplo e mais disseminado que pode ser entendido como uma
crença mítico-religiosa. Ela se expressa, sobretudo, quando um dado
grupo espera um messias que seja operador não (mais) de uma correção
no curso da história, mas de sua interrupção em favor do que seria o re-
torno a um mítico passado de plenitude perdida, a um mítico paraíso
perdido ou a uma Idade de Ouro de um passado longínquo. Trata-se,
assim, em última análise, de uma forma de compreender a realidade e a
história, buscando integrar um presente negativo a um projeto trans-
cendente que resgata, no futuro, uma condição que se crê perdida no
passado.
Quando essa crença se manifesta em produções discursivas, pode-
mos falar de um quadro retórico específico, que é o que procuraremos
examinar e explicitar neste trabalho. Para subsidiar a reflexão proposta,
analisaremos o texto História do futuro, de Padre Vieira, obra que atualiza
1
Este trabalho deriva de uma reflexão sobre o discurso messiânico que, transformada em tese
de doutorado, foi defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos/UFMG (ver BRITO, 2015). Contou, para tanto, com bolsa da FAPEMIG e do
PDSE/CAPES.

37
CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

o quadro retórico do messianismo, a partir de elementos do imaginário


messiânico português.
O messianismo português, como explicam Emery e Pereira (2015,
p. 19), está relacionado ao caráter mítico de que se revestiu a própria
fundação de Portugal como nação. Com efeito, a autoproclamação de
Afonso Henriques como rei de Portugal, após sua vitória numa expedi-
ção do outro lado do Tejo, em 1139, no âmbito da Reconquista, con-
verte-se posteriormente, no imaginário português, numa manifestação
da intervenção divina na fundação do reino. Esse mito fundador, por
sua vez, torna-se fundamento da crença num lugar reservado por Deus
a Portugal para assegurar não só sua independência política, mas tam-
bém seu papel de liderança num projeto divino para a humanidade.
Para isso, o messianismo português valeu-se enormemente da ins-
piração do poeta popular Gonçalo Anes Bandarra, que, no século XVI,
anunciava nas suas trovas a unificação política e religiosa do mundo por
um rei português: o rei encoberto, posteriormente associado, sobretudo,
à figura de D. Sebastião, em virtude de seu desaparecimento na Batalha
de Alcácer-Quibir (HARAN, 1995, p. 61-63 tomo I). O Sebastianismo e
a espera messiânica do rei destinado a levar a nação portuguesa a cum-
prir um destino grandioso completam, assim, os elementos que dão con-
torno ao messianismo português.
A História do futuro, de Padre Vieira, participa dessa tradição, atua-
lizando no âmbito dos acontecimentos do século XVII a “profecia” con-
tida nas trovas produzidas por Bandarra no século anterior. Mais do que
isso, o texto de Vieira, como o próprio título sugere, faz dessa crença
uma tese defendida no fio do seu discurso, expressando, como observou
Calafate (2015, p. 11), a filiação do jesuíta à tradição da escolástica de
matriz tomista que promovia a aproximação da fé cristã às exigências
do pensamento racional.

1. Argumentação, discurso e o quadro retórico do messianismo


Ao nos propormos a discutir o messianismo em seu sentido mais
amplo, levamos em consideração igualmente o sentido mais amplo de
argumentação, entendida como os recursos linguísticos e discursivos

38
O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

por meio dos quais o enunciador busca levar o enunciatário a crer no


discurso que lhe é apresentado. Esse sentido guarda relação, por exemplo,
com o que Amossy (2006, p. 32-33) chama de dimensão argumentativa,
algo que, para além da argumentação ostensiva dos gêneros propria-
mente argumentativos, tem a ver com a busca de influenciar o outro
quanto à maneira de ver e de sentir as coisas. Do mesmo modo, ele nos
remete ainda às ideias de Grize (2004, p. 35), para quem toda produção
discursiva é argumentação, uma vez que põe em jogo uma esquemati-
zação orientada para intervir sobre a opinião, a atitude ou o comporta-
mento do outro.
Assim, examinar a argumentação nessa perspectiva significa consi-
derar tudo o que o enunciador mobiliza textualmente para fazer crer,
ou todo procedimento que visa a influenciar o outro, fazendo prevalecer
uma dada visão, um determinado ponto de vista. O outro lado dessa
moeda, não é difícil perceber, consiste em pressupor um discurso que
necessariamente leva em consideração o enunciatário (ou uma repre-
sentação deste), suas disposições afetivas, seus saberes, seus valores, suas
crenças.
Essa perspectiva da argumentação, por isso, não se afasta de pro-
blemáticas ligadas à Retórica. Pelo contrário, ela desemboca na relação
éthos, páthos e logos, provas retóricas relacionadas respectivamente ao
orador (enunciador), ao auditório (enunciatário) e ao discurso. Como
explica Meyer (2010, p.113), o bom orador é aquele que elimina sua dis-
tância em relação ao outro, buscando tanto tangenciar os valores do au-
ditório, quanto criar identificação com este. Em outros termos a
argumentação convincente, para o autor, é aquela que atende a uma exi-
gência que pode ser expressa formalmente como: E + P + L = 0, justa-
mente uma articulação entre éthos (E), páthos (P) e logos (L) que leva
ao acordo, entendido como distância zero (0) entre os sujeitos.
Partindo dessas ideias, procuraremos compreender as produções
discursivas ligadas ao messianismo a partir das relações entre enuncia-
dor e enunciatário no/pelo discurso ou, em termos retóricos, a partir
da interação entre éthos, páthos e logos. Inicialmente, considerando o
quadro do messianismo, postulamos que tais produções podem ser en-
tendidas como a expressão de um discurso de poder voltado a um des-
tinatário tido como em condição de vulnerabilidade e cujos valores

39
CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

devem prevalecer no futuro, tal como se dava num passado mítico vi-
sado. Por isso mesmo, o discurso-enunciado é o lugar da realização de
um ato preditivo do enunciador, que promete (diz antes) ao destinatário
(enunciatário) uma iminente ordem de plenitude, entendida como a
hegemonia dos valores do nós em relação a valores outros.
Postulando isso, podemos delinear o que seria o quadro retórico es-
pecífico para as produções ligadas ao messianismo. Do ponto de vista
das imagens dos partícipes da enunciação, esse quadro retórico implica,
além da vulnerabilidade atribuída ao destinatário da previsão, um éthos
de conhecimento para o enunciador, que deve se marcar, de algum
modo, pela excepcionalidade. Trata-se de uma imagem capaz de legiti-
mar o discurso preditivo do enunciador, que se coloca, então, como fia-
dor (MAINGUENEAU, 2005, p. 64 e 72) de um discurso que antevê o
que virá, o que parece ainda lhe conferir um certo dever fazer saber.
É preciso supor ainda que o discurso preditivo que caracteriza a ex-
pressão do quadro do messianismo apresente uma coerência interna.
Por isso, em termos de logos, postulamos uma lógica preditiva que pode
ser formalmente representada pelo encadeamento implicativo: se A,
então B, sendo B o previsto (fato futuro) e A aquilo que, em sentido
amplo, sustenta o previsto. Um discurso assim construído se baseia em
crenças partilhadas sobre o que seria uma eleição transcendente, isto é,
uma crença na existência de um grupo de eleitos (grupo a que os coe-
nunciadores se sentem ou devem se sentir pertencentes) e sobre inter-
venções do sagrado na história. No quadro retórico que se desenha, isso
pode ser entendido como uma doxa mítico-religiosa que une os parcei-
ros da comunicação no discurso messiânico.
É possível ainda acrescentar ao quadro retórico descrito o que Main-
gueneau (2008, p. 89) compreende como dêixis enunciativa. Com essa
noção, o autor designa um aqui/agora não de surgimento efetivo do
enunciado; trata-se, antes, de coordenadas espaço-temporais que o dis-
curso faz emergir como forma de validar a sua própria enunciação. No
caso em análise, a enunciação é legitimada pela emergência de um
aqui/agora de véspera de plenitude, sendo o tempo, preponderante nesse
caso, um tenso ainda não que precede a plenitude anunciada (o já)
(BRITO, 2015, p. 225).

40
O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

Todas essas ideias, que buscaremos aplicar na análise a seguir,


podem ser apresentadas resumidamente da seguinte forma:

esquema 1
Quadro retórico de produções discursivas ligadas à crença messiânica

Doxa mítico-religiosa
Crença em intervenção divina na história/crença na eleição

Enunciador Discurso-enunciado Enunciatário


Promessa (anúncio)
de plenitude
Éthos de conhecimento: Vulnerabilidade
saber transcendente

Sustentação implicativa
do anúncio:
Se A, então b
Modalização deôntica: Aqui/Agora
[B é o previsto / A aquilo que o sus-
Dever fazer saber de véspera
tenta]
de Plenitude

Plenitude como hegemonia do


grupo eleito e dos seus valores

DISCURSO DE PODER

Fonte: Elaboração dos autores

2. O quadro retórico do messianismo na História do futuro


A História do futuro, de Padre Vieira, atualiza os elementos do quadro
retórico apresentado na seção anterior. Em primeiro lugar, convém enfa-
tizar o ato preditivo que se realiza no texto, examinando em seguida tanto
as imagens que podem ser atribuídas aos coenunciadores, quanto a lógica
que se constrói no fio do discurso para sustentar a previsão realizada.
É, sobretudo, no livro Anteprimeiro da História do futuro, parte que
apresenta e contextualiza o trabalho como um todo, que se percebem
várias referências ao caráter prospectivo, preditivo do texto, como se
pode ver nos trechos a seguir:

41
CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais con-


forme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capa-
cidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que
oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista
história [...].

Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite [de saber o futuro]
e para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste
mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História,
por isso chamada do Futuro. (VIEIRA, s. d.: 02 e 04, vol. I).

[A História do Futuro] Mede os tempos vindouros antes de virem,


conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos
heróicos e famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.
(VIEIRA, s. d.: 04, vol. I)2

O conteúdo do texto é apresentado aqui como um ato de revelação


sobre o futuro (“correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos
deste mistério [o futuro]”) e, paralelamente, como um relato de um his-
toriador, com a diferença de que os fatos narrados são futuros, justifica-
tiva, aliás, que sustenta o título da obra. O fazer preditivo do enunciador
apresenta, assim, uma certa dualidade, que envolve o gerenciamento de
uma tensão entre duas formas de messianismo e dois destinatários con-
siderados. Procuraremos explicitar isso à medida que formos analisando
os elementos do quadro retórico que a História atualiza.
Examinando melhor o ato preditivo do enunciador, observamos que
ele diz respeito ao advento do Quinto Império, um reino universal do
Cristo que traria a paz global. Vejam-se, a propósito disso, os seguintes
fragmentos:
[...] chamamos Império Quinto ao novo e futuro [império] que
mostrará o discurso desta nossa História (VIEIRA, s.d.: 3,vol. II).

[...]

Este é o sujeito da nossa História [o mundo inteiro], e este o im-


pério que prometemos do Mundo. [...] Todos os reinos se unirão
em um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema ca-
2
Em todas as citações da obra de Vieira, mantemos a grafia original da edição consultada.

42
O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

beça, todas as coroas se rematarão em uma só diadema, e esta


será a peanha da cruz de Cristo.
[...] a paz lhe tirará o receio, a união lhe desfará a inveja, e Deus
(que é fortuna sem inconstância) lhe conservará a grandeza
(VIEIRA, s.d.: 11, vol. I)
[...]
há-de ter [o Quinto Império] outro estado mais perfeito, com-
pleto e consumado (VIEIRA, s.d.: 64, vol. II)

Nesses fragmentos, as formas verbais (obedecerão, rematarão, será,


tirará, há de ter etc.) indicam um discurso prospectivo que prevê a che-
gada de um império que traria consigo uma condição de plenitude. Essa
condição significaria o fim das guerras e conflitos na Europa pela uni-
dade política e religiosa em torno do reino do Cristo, unidade essa que
se completaria ainda, como se explica em outro trecho, com a conversão
de Judeus e a eliminação da religião dos Muçulmanos, que, com os tur-
cos, avançava na época sobre a Europa cristã (VIEIRA, s.d.: 65, 66 e 68,
vol. II.).
Além dessa redenção humana sob a ótica católica/cristã, o Quinto Im-
pério representaria a redenção política de Portugal, que retomaria a con-
dição proeminente já observada no tempo das Grandes Navegações. Essa
característica, que vai dando contorno a um duplo messianismo, como
sugerimos anteriormente, pode ser observada em trechos como estes:
Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Por-
tugal o princípio e fim destas maravilhas; e os instrumentos pro-
digiosos delas os Portugueses.
[...]
Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros)
[tempos das descobertas] nenhuma cousa se lia no Mundo senão
as navegações e conquistas de Portugueses. Esta história era o si-
lêncio de todas as histórias. Os inimigos liam nela suas ruínas, os
êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é a História,
Portugueses, que vos presento, e por isso na língua vossa. Se há-
de restituir o Mundo à sua primitiva inteireza e natural formo-
sura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor nem

43
CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

sentimento dos membros, que estão fora de seu lugar. Alguns ge-
midos se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes
fazem harmonia. Se são dos inimigos, para os inimigos será a dor,
para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o gosto
e para vós então a glória, e, entretanto, as esperanças (VIEIRA,
s.d.: 8-9, vol. I)

A previsão do enunciador, como se vê, apresenta-se como uma


dupla promessa (dizer antes) de redenção. Para o mundo (a humani-
dade), o anunciado Império do Cristo na Terra significaria a restituição
da sua condição primitiva (“[..] há-de restituir o Mundo à sua primitiva
inteireza e natural formosura, [..]”), o que, no discurso religioso cristão,
deve ser entendido como uma volta à condição edênica, paradisíaca. Já
para Portugal, o advento do Quinto Império significaria reaver a proe-
minência dos “ditosos tempos” das descobertas, quando o país liderava
a expansão ultramarina da Europa.
No bojo de uma aparente plenitude global, encerra-se, portanto, um
projeto de sociedade que prevê a proeminência de um dado grupo reli-
gioso, ou seja, o domínio absoluto do cristianismo sobre os demais gru-
pos religiosos, que deveriam ser eliminados (no caso do Islã) ou
assimilados (no caso das demais religiões, em especial os judeus). Para-
lelamente, manifesta-se um claro projeto de poder e de hegemonia polí-
tica de Portugal sobre as demais nações pela liderança do Império do
Cristo na Terra. Em ambos os casos, a ordem futura implica uma forma
de regresso a um passado mítico ou idealizado, passado cuja plenitude
se busca reaver, o que se dá aqui tanto pela referência à condição humana
edênica primitiva, quanto pelo passado de proeminência de Portugal.
A dualidade do texto de Vieira pode ser entendida, assim, como a
proposta de um messianismo duplo: voltado ora para o destino final dos
homens sob uma ótica cristã, ora para o destino político de Portugal sob
a ótica do imaginário messiânico português. Essa dualidade se manifesta
também na imagem do enunciador, pelo seu desdobramento em dois
éthé principais: de um lado, o éthos de racionalidade; do outro, o éthos
de profeta, formas como o éthos de conhecimento se apresenta para sus-
tentar o discurso preditivo. No primeiro caso, a autoridade e a credibili-
dade decorrem de uma forma de construir, no fio do discurso, uma
sustentação racional da previsão realizada, enquanto, no segundo, derivam

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O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

de uma experiência mística, que faz do profeta alguém que sabe porque
viu ou vê3.
Essa dualidade se expressa, em particular, nas relações — diríamos
mesmo, tensões — que o nível da enunciação mantém com o nível do
enunciado. Na realidade, podemos dizer que, enquanto no nível do
enunciado, busca-se, predominantemente, construir o éthos de raciona-
lidade capaz de sustentar a previsão, afastando-se, dessa forma, do éthos
de profeta, este pode ser recuperado no nível da enunciação.
Nessa perspectiva, para além da referência que o texto faz ao seu
próprio projeto discursivo como revelação, o que remeteria ao discurso
profético, há um “tom” que permeia várias passagens, permitindo ao
enunciatário (re)construir o éthos de profeta. Essas passagens apresen-
tam uma carga emocional, um estilo assertivo e, ao mesmo tempo, dra-
mático num relato voltado para o futuro, à maneira de alguém que
experimenta uma visão:
Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé, para triunfo
da Igreja, para glória de Cristo, para felicidade e paz universal do
Mundo, altos conselhos, animosas resoluções, religiosas empre-
sas, heróicas façanhas, maravilhosas vitórias, portentosas con-
quistas, estranhas e espantosas mudanças de estados, de tempos,
de gentes, de costumes, de governos, de leis; mas leis novas, go-
vernos novos, costumes novos, gentes novas, tempos novos, es-
tados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas
novas, conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e não
só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhança
com elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que nunca
viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará
assombrado do que nunca imaginou (VIEIRA, s.d.: 4-5, vol. I)

Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir,


quanto perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos
e cidades, antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja res-
taurado o Universo! (VIEIRA, s.d.: 17, vol. I)
3
Sobre isso, Corrarello (2012, p. 121) explica, com base em Charpentier, que o profeta é aquele
que, por ter sido integrado ao plano divino, vê tudo com seus próprios olhos, podendo por
isso interpretar os fatos, anunciar os acontecimentos, denunciar injustiças e desvios e, parale-
lamente, doutrinar os indivíduos.

45
CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

Soma-se a isso o fato de que a previsão apresentada se reveste de


um dever em relação à instância divina e em relação ao próprio ato pre-
ditivo. Invocando em diferentes trechos um elemento da doxa cristã
sobre a providência divina e dirigindo-se a enunciatários expressamente
cristãos, o texto fala em instrumento divino e numa liberação de um
saber sobre o futuro. O saber do enunciador é apresentado, assim, como
parte dessa providência divina, o que transforma esse saber num dever
fazer saber, um dever revelar o futuro ao enunciatário, como se vê em:
Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que
tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins
que sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares
e nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas
que estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa
História e se acham juntos nela. Esta é não só a principal razão, nas
a única e total, por que nos sujeitamos ao trabalho de tão molesto
gênero de escritura, esperando que será grato e aceito a Deus, a
quem só pretende nos servir (VIEIRA, s.d., vol. I, p. 12)

Sobre isso convém lembrar algumas considerações de Maingueneau


(2008, p. 68-69) a propósito do éthos discursivo, que, para o autor, com-
preende um éthos dito e um éthos mostrado. Enquanto este se liga à
enunciação, podendo ser assimilado ao “tom” que o enunciador confere
ao seu discurso graças a recursos diversos, o éthos dito corresponde a
uma instância ligada ao enunciado, ocorrendo quando o enunciador, de
algum modo, evoca sua própria enunciação4.
No trecho citado, é, portanto, a enunciação e o éthos mostrado que
estão em jogo, levando-nos a (re)construir a imagem de profeta. No
nível do enunciado e do chamado éthos dito, porém, essa imagem cede
espaço para um éthos de racionalidade, como se pode constatar no ex-
certo a seguir:
[...] Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por an-
tonomásia Videntes, porque com o lume da profecia entravam
nos lugares escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles
4
Como lembra o autor, essa evocação pode ser feita diretamente (“é um amigo que lhes fala”)
ou, indiretamente, por meio de metáforas ou alusões a outras cenas de fala (MAINGUENEAU,
2008, p. 68-69).

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O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

claramente aquelas cousas para que todos os outros homens são


cegos, e ninguém as pode ver senão alumiado da mesma luz.
Eu conheço e confesso que a não tenho [...]. (VIEIRA, s.d.: 51,
vol. I).

No nível do enunciado, portanto, o enunciador procura se afastar


da imagem de profeta, negando o dom da profecia e a experiência mís-
tica em proveito de outra “iluminação”, desta vez no âmbito da racional
exegese religiosa: “Por este modo entraremos também nós pelo escuro
e intricado labirinto dos futuros. As profecias e os Doutores nos servirão
de tochas; o entendimento e o discurso de fio” (VIEIRA, s.d.: 54, vol. I).
A autoridade reclamada diretamente pelo enunciador para realizar o ato
preditivo passa, nesse caso, por um saber ligado à racionalidade (o en-
tendimento e o discurso) no manuseio de informações já dadas (as pro-
fecias e os Doutores, isto é, os autores consagrados da Igreja).
Por isso, é abundante na obra a referência a termos da ciência (ciên-
cia dos futuros, ciências divinas, teologia, princípios, conclusões científicas,
história) e ao modo de sustentação baseado no logos. Nela, afirma-se
textualmente “observar religiosa e pontualmente todas as leis da histó-
ria”, respeitando-se “a ordem e sucessão das cousas”, as quais são “acom-
panhadas das suas circunstâncias” (VIEIRA, s.d.: 5, vol. I). Nessa linha,
a tese do Quinto Império é, no dispositio do enunciador, dividida em
questões que seriam abordadas em sete partes ou livros (não
conclusos(as))5, nas(os) quais, de acordo com o próprio texto, “há-de
examinar, resolver e provar a nova História que escrevemos” (VIEIRA,
s.d.: 9, vol. I). A defesa da tese do Quinto Império, por isso, reveste-se
de raciocínios que buscam construir uma interpretação apoiada na
razão.
Esse é, por exemplo, o caso da argumentação que busca sustentar
um dos fundamentos da interpretação de Vieira: a ideia segundo a qual
o iminente Reino do Cristo teria lugar não no céu, mas na Terra, sem o
5
A obra, iniciada em 1649 e concebida para ser composta de cinco ou sete livros, conta apenas
com três: o Anteprimeiro – uma apresentação da obra e uma discussão sobre a legitimidade
do trabalho aí desenvolvido; o Primeiro – as bases bíblicas para a ideia de um iminente Quinto
Império, numa referência a quatro impérios anteriores que se sucederam: o dos Assírios, o
dos Persas, o dos Gregos e o dos Romanos; e o Segundo – uma apresentação de características
do novo império (cf. ŁUKASZyK, 2014, p. 4).

47
CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

que a defesa da liderança do reino terreno de Portugal não faria sentido.


O debate dessa questão envolve a interpretação de uma profecia de Da-
niel sobre uma estátua composta de cinco elementos diferentes, o que,
na interpretação do padre jesuíta, representaria quatro sucessivos im-
périos humanos que seriam substituídos, na Terra, pelo do Cristo, re-
presentado pela pedra que derruba os anteriores. Feita essa referência,
a argumentação prossegue da seguinte forma:
Porque, se é certo (como é de fé) que aqueles quatro metais sig-
nificavam quatro impérios sucessivos, e impérios verdadeira-
mente temporais, bem se segue que a pedra que os derrubou e
desfez, figura do Reino e Império de Cristo, não só significa Im-
pério espiritual, senão também temporal, porque só impérios
temporais se derrubam, arruínam e desfazem uns aos outros, o
que não faz nem pode fazer o Império espiritual.

Para um império derrubar e desfazer a outro, é necessário que


tenha oposição e contrariedade com ele acerca das mesmas cou-
sas, e esta oposição e contrariedade só se acha nos impérios tem-
porais entre si, e não entre o império espiritual e temporal [...]
(VIEIRA, s.d.: 29, vol. II).

No trecho citado, como se vê, a tese de que o Império do Cristo seria


terreno é sustentada, de modo argumentativo, pelo uso do princípio de
identidade, que implica, grosso modo, que A é A e, logo, não pode ser
não-A, ao mesmo tempo. Sendo o Quinto Império o reino do Cristo, pre-
missa de que se vale o enunciador, ele teria de ser necessariamente terreno,
porque os reinos terrenos podem se submeter concretamente apenas a
um reino terreno, do mesmo modo que apenas reinos terrenos podem se
derrubar mutuamente, como se argumenta no fragmento citado.
Esse discurso da racionalidade, de que se quer porta-voz o enun-
ciador, manifesta-se inclusive pela ideia de que mesmo aos inimigos de
Portugal não caberia senão curvar-se à verdade demonstrada racional-
mente no texto. É isso que argumentam os capítulos VII e VIII do livro
Anteprimeiro, direcionados à Espanha, capítulos nos quais se fala de
“promessas e decretos divinos”, cuja verdade poderia ser constatada
(“provada a verdade”) pelos “vizinhos e confinantes” de Portugal, usando

48
O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

apenas de racionalidade: “se quiserem abrir os olhos/tenham os olhos


limpos e de toda paixão e afeto” (VIEIRA, s.d.: 29-30, vol. I).
Desemboca-se aqui em outro elemento do quadro retórico do mes-
sianismo: a construção de uma coerência interna em que a compreensão
do presente (se A...) sustenta a previsão (...então B). A racionalidade da
previsão do futuro, atividade própria da figura do profeta, é fruto de uma
“interpretação sólida e verdadeira”, em que se vê “combinação”, “conso-
nância”, “harmonia” entre os dados das profecias (figuras do discurso) e
os fatos da realidade (figuras do mundo). É o que podemos verificar em:
De toda esta combinação das histórias com a profecia, e da con-
sonância e harmonia dos tempos, lugares, nações, princípios, fins
e todos os sucessos desses Impérios tão ajustados com as proprie-
dades das figuras que as representavam, se faz certo e evidente
argumento de que esta interpretação é a sólida e verdadeira, e que
isto foi o que Deus e o Anjo quiseram significar ao Profeta
(VIEIRA, s.d.: 15, vol. II)

Essa interpretação, que cria uma coerência interna na previsão mes-


siânica, baseia-se numa homologação entre as figuras das profecias e as
figuras do mundo no contexto histórico em questão, criando uma di-
nâmica que visa a fazer crer na iminência do advento do Quinto Impé-
rio. O fragmento a seguir mostra essa dinâmica e indica como perto do
fim uma sucessão observada no presente:
[...] chamamos Império Quinto ao novo e futuro [império] que
mostrará o discurso desta nossa História; o qual se há-de seguir
ao Império Romano na mesma forma de sucessão em que o Ro-
mano se seguiu ao Grego, o Grego ao Persa e o Persa ao Assírio.
[...] porque dos quatro impérios já passaram totalmente os três,
que são o dos Assírios, o dos Persas e o dos Gregos, e o quarto,
que é o Romano, também está na última declinação (VIEIRA,
s.d.: 3 e 13, vol. II)

O Império Romano é, pois, tido como o último até o advento do


Império do Cristo, sendo que aquele “está na última declinação”, de
acordo com o texto. A visão-interpretação do enunciador reveste-se,
assim, de uma coerência interna, segundo a qual se cumpre no agora
uma série de exigências (se A... ) de uma dinâmica que leva à realidade

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CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

prometida no futuro: o iminente advento do império cristão na Terra


(...então B).
A dinâmica criada não apenas dá coerência interna à previsão do
enunciador, mas também atualiza a dêixis enunciativa própria do mes-
sianismo: o de véspera da redenção/plenitude, situando-se na transição
entre a ordem de coisas atual (a dos impérios humanos) e a do Império
do Cristo na Terra. Há vários trechos em que a dêixis é construída e ex-
plorada de modo argumentativo, como no fragmento que segue, no qual
se opõem duas formas de futuro no interior de um recurso de ilustração
típico da retórica didática de Vieira.
São Paulo, aquele filósofo do terceiro Céu, desafiando todas as
criaturas, e entre elas os tempos, dividiu os futuros em dois futu-
ros: Neque instantia, neque futura. Um futuro que está longe e
outro futuro que está perto; um futuro que há-de vir e outro fu-
turo que já vem; um futuro que muito tempo há-de ser futuro —
Neque futura — e outro futuro que brevemente há-de ser pre-
sente: Neque instantia.
Este segundo futuro é o da minha História, e estas as breves e de-
leitosas esperanças que a Portugal ofereço. Esperanças que hão- -
de ver os que vivem, ainda que não vivam muitos anos, mas
viverão muitos anos os que as virem. (VIEIRA, s.d.: 07-08, vol. I)

Veja-se que um dos futuros está longe, há de vir e demora em ser


futuro, enquanto o outro, o da plenitude prometida, está perto, já vem
e brevemente será presente. Por isso mesmo, o aqui/agora que o discurso
faz emergir é, no nível do enunciado, um tempo e um espaço de acú-
mulo de um saber que permite o ato preditivo. No próximo fragmento,
por exemplo, isso é indicado na analogia entre o saber da Igreja e o curso
de um rio:
[...] o rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se
aparta de seu princípio, tanto mais se engrossa, porque vai rece-
bendo novas correntes e novas águas, com que se faz mais largo,
mais profundo, mais caudaloso.
Tal é a sabedoria da Igreja, entrando sempre nela as puríssimas
correntes da doutrina de tantos Doutores católicos e sapientíssi-
mos, que cada dia a aumentam com novos e tão excelentes escritos

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O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

em uma e outra teologia, de que o nosso século tem sido mais fe-
cundo e abundante que todos até hoje. (VIEIRA, s.d., vol. I, p. 76).

A interpretação que faz prever o futuro de plenitude é, por isso,


atribuída à própria temporalidade. É ela que cria cada vez mais uma pro-
ximidade com a realidade futura, que pode, portanto, ser observada ra-
cionalmente no horizonte pelo enunciador. Esse desvelamento gradual
que envolve o conhecimento das intenções da instância divina é ainda
explicado graças a outra analogia, agora com a arte cômica, que sus-
pende o entendimento, encobrindo o fim da história até determinado
ponto, quando, então, se dá um desenlace surpreendentemente praze-
roso (VIEIRA, s.d.: 61, vol. I).
O ato preditivo do enunciador, desse modo, decorre dramatica-
mente do próprio desenrolar dos acontecimentos e da vizinhança com
o futuro prometido, parecendo expressar-se ora como revelação, ora
como interpretação racional. Essa dualidade, por sua vez, revela-se,
como foi dito, em duas formas de éthos de conhecimento, que podem
ser mais bem compreendidas a partir do exame da imagem do enuncia-
tário que, a nosso ver, é igualmente dupla. Com efeito, no duplo mes-
sianismo construído pelo texto de Vieira, o éthos de racionalidade
volta-se preferencialmente ao cristão de modo geral, enquanto o éthos
de profeta parece direcionado ao português-cristão.
De modo geral, o ato preditivo pressupõe do enunciatário um
não saber (uma incerteza) em relação ao futuro. Esse não saber chega a
ser expresso, por exemplo, em trechos como: “A novidade da nossa His-
tória há-de ser mais dos leitores que dela” (VIEIRA, s.d., vol. I, p. 70).
Como ao final tudo está previsto nas profecias, é o não saber do enun-
ciatário que torna a História nova, há pouco ainda desconhecida, razão
por que o discurso preditivo, nesse sentido, apresenta-se como revelação,
conforme já observamos.
Além disso, o ato preditivo do enunciador é apresentado como
forma de atender a um estado afetivo ligado à ignorância: a curiosidade.
Essa “paixão” humana, que remete ao páthos, recebe intensificação, por
exemplo, em lexemas como ânsia, apetite, anelar (ao negado) em relação
a querer saber o futuro. Vejamos:
Declara-se a primeira parte do título desta História, e quão pró-
pria é da curiosidade humana a sua matéria.

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CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais con-


forme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capa-
cidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que
oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista
história (VIEIRA, s.d.: 01, vol. I)
[...] inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao
negado [as ciências do futuro, restritas à divindade] [...]
Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje, na curio-
sidade humana, o apetite de conhecer o futuro! (VIEIRA, s.d.: 02
e 03, vol. I)

Ao mesmo tempo, o discurso visa a um páthos ligado à insegurança,


à vulnerabilidade, um dos traços do quadro retórico do messianismo,
como já foi dito. Essa vulnerabilidade se revela em trechos como:
[...] Considere agora o Mundo o estado em que o mesmo Impe-
rador se achou no ano passado e em que se acha no presente, com
os poderosos exércitos do Turco metidos dentro na Áustria, e
quase, batendo às portas de Praga, corte do Império, os campos
talados, as cidades destruídas, os homens barbaramente mortos
a sangue-frio, as mulheres e meninos cativos e transmigrados
para a Turquia, os templos e pessoas dedicadas ao templo em abo-
mináveis sacrilégios profanados, e, depois de profanados, abra-
sados e feitos em cinzas; e neste mesmo tempo em que o ferro de
Espanha se havia de unir todo ao ferro do Império, vemo-lo todo
infelizmente convertido contra Portugal [...] (Vieira, s.d., p. 8-9
vol. II).

Nesse sentido, saímos de uma imagem a princípio muito abrangente,


aquela que a disposição afetiva não particular, mas geral fazia ver pela
referência à forte curiosidade humana em relação ao futuro, e chegamos
a um enunciatário cristão aparentemente indiferenciado, capaz de julgar
racionalmente como verdadeiro o discurso preditivo recebido. A atuali-
zação do estado de insegurança próprio do enunciatário do discurso pre-
ditivo do messianismo ocorre, como se pode verificar, no contexto de
conflitos na Europa do século XVII, sobretudo pelo avanço do Império
Turco, conflitos esses dramaticamente evocados no excerto em análise.
Esse enunciatário cristão, de modo geral, é sugerido em passagens
que apelam para a universalidade da previsão realizada e do páthos de

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O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

curiosidade, ao mesmo tempo em que apontam para as bases das cren-


ças cristãs. Esse é o caso dos fragmentos a seguir, nos quais se enfatiza
o alcance universal das previsões — e, por isso, o texto se dirige a leitores
gerais (leitores, gentes, reis, reinos) —, mas também se faz referência à
Providência Divina, própria do discurso cristão/católico.
Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tem-
pestade!), em lugar da benevolência que se costuma pedir aos lei-
tores, só lhes quero pedir justiça (VIEIRA, s.d.: 5, vol. I).
Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir,
quanto perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos
e cidades, antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja res-
taurado o Universo! (VIEIRA, s.d.: 17, vol. I)
Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que
tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins
que sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares
e nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas
que estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa
História e se acham juntos nela (VIEIRA, s.d.: 8, vol. I)

Isso, para nós, participa da dualidade do messianismo do texto de


Vieira. O enunciador da História do futuro, embora apresente um projeto
com pretensões universais, revela um éthos nacionalista, construindo o
seu discurso sobre valores e crenças que apontam para um enunciatário
cristão, mas também (e principalmente) o português-cristão. Não por
acaso, quando da apresentação da obra, os leitores a que o texto se dirige
são hierarquizados com Portugal à frente: “isso é que oferece a Portugal,
à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história” (VIEIRA, s. d.,
vol. 1, p. 02). O próprio ato preditivo recebe, em vários momentos, o
nome de novo descobrimento, algo relativo ao universo de valores e ao
imaginário português, sendo retomado com evidente entusiasmo em
diferentes trechos do discurso, o que recupera a crença numa messiani-
dade do povo português e numa eleição de Portugal como instrumento
divino na Terra.
Esses valores são explicitados, em especial, numa longa interlocução
com a Espanha/espanhóis, nos capítulos VII e VIII do livro Antepri-
meiro. O texto explora, por exemplo, mais de uma vez o chamado “Mi-

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CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

lagre de Ourique”, referência ao já citado mito fundador de que se re-


vestiu a fundação de Portugal. A constante referência a esse mito fun-
dador expressa a crença na eleição divina de Portugal, algo que é
“lembrado” à Espanha em trechos como: “[...] Bem sabe Castela (digo)
que Portugal com singularidade única entre todos os reinos do Mundo
foi reino dado, feito e levantado por Deus” (VIEIRA, s.d., vol. I, p. 45).
Outras referências à Espanha explicitam ainda a forte rivalidade
entre essa nação e Portugal, configurando o éthos nacionalista do enun-
ciador. Esse é o caso da interpretação de uma profecia de Zacarias, in-
terpretação essa que, com o propósito de defender a iminência do
advento do Quinto Império, revela uma compreensão enviesada pelo
nacionalismo português. No trecho em questão, numa polêmica explí-
cita, contesta-se a posição de um bispo espanhol que defendia como
sendo uma referência aos espanhóis a figura de fortíssimos cavalos que
desbravam o mundo, referência que, de acordo com o texto, caberia a
Portugal (VIEIRA, s.d.:15-17, vol. II).
Assim, o enunciador apresenta, de um lado, o ato preditivo como
verdade num discurso de racionalidade cristã, discurso que certamente
buscava legitimar-se junto à Igreja e persuadir um aparente enunciatário
cristão racional, então oprimido por guerras e, em especial, pela ascen-
são do Império Turco (e com ele o Islã). De outro, ele conforma o seu
discurso a valores do imaginário messiânico português, valores que ex-
pressam um éthos nacionalista e que apontam, paralelamente, para um
enunciatário português-cristão, oprimido em especial pelas investidas
do Império Espanhol e pelo ostracismo político de Portugal na Europa
de então.
Nesse sentido, além de dar voz, como já foi apontado, a um messia-
nismo cristão, expressando o desejo de hegemonia frente a outros gru-
pos religiosos, em especial aos mulçumanos, o texto dá voz a um
messianismo mais especificamente português-cristão. Nele revela-se a
crença de Portugal numa eleição divina, crença que dá azo a um desejo
português de hegemonia, algo que pode ser observado pelo tom de en-
tusiasmo em trechos que se dirigem aos portugueses/Portugal, como os
que seguem:

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O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

[...] tudo o que leio de ti são grandezas, tudo que descubro me-
lhoras, tudo o que alcanço felicidades. Isto é o que deves esperar,
e isto o que te espera; por isso em nome segundo e mais declarado
chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é o
comento breve de toda a História do Futuro.
[...] a melhor parte dos venturosos futuros que se esperam, e a
mais gloriosa deles, será não só própria da Nação portuguesa,
senão única e singularmente sua. Portugal será o assunto, Portu-
gal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas
maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses
(VIEIRA, s.d.: 06 e 08, vol. I)

A História do futuro, de Vieira, atualiza, portanto, elementos do que


chamamos de “quadro retórico do messianismo”, isto é, um conjunto de
recursos ligados ao fazer crer que participam da configuração que iden-
tifica dados discursos com o quadro do messianismo. No texto do padre
jesuíta, a crença messiânica é convertida em discurso no contexto da
Europa do século XVII, marcada tanto pela expansão do império Turco-
Otomano, quanto pela pressão da Espanha sobre Portugal.
O enunciatário ligado à vulnerabilidade é, por isso, como se viu,
duplo: 1) um cristão/católico indiferenciado (desde que racional) opri-
mido pelos conflitos na Europa e temeroso em relação à expansão do
Império Turco e do Islã; 2) o português-cristão/católico oprimido pelos
mesmos conflitos, pela pressão espanhola sobre o reino e pela perda de
uma proeminência do passado. A estes o enunciador dirige um discurso
preditivo que anuncia uma iminente plenitude, trazida por um virtual
advento do Império do Cristo sobre a Terra, império cuja liderança ca-
beria a Portugal.
Em suma, esse discurso assentado sobre a crença numa eleição di-
vina, é sustentado, do ponto de vista do logos, por uma coerência interna
(se A, então B), ou seja, pela apreensão de uma dinâmica que, observada
no presente (se A ...), faz prever o futuro (..., então B). Essa dinâmica é
construída por uma interpretação que homologa figuras contidas nos
textos proféticos e figuras do mundo no contexto em questão. O dis-
curso também busca legitimar-se fazendo emergir um aqui/agora de
véspera de redenção, de plenitude, que é a dêixis enunciativa própria do
discurso messiânico.

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CLEBSON LUIZ DE BRITO & GLAUCIA MUNIZ PROENÇA LARA

Quanto à imagem do enunciador de História do futuro, nossa análise


mostra sua inscrição no éthos que caracteriza o quadro do messianismo:
um éthos de conhecimento que responde a um páthos de vulnerabilidade
e de incerteza. Além disso, uma vez que há um duplo enunciatário, esse
éthos também se desdobra em dois éthé: um éthos de racionalidade, que
parece voltar-se preferencialmente ao cristão de modo geral, e um éthos
de profeta, que parece mais direcionado ao português-cristão.

Considerações finais
O exame do quadro retórico ligado ao messianismo implica, como
procuramos demonstrar, a produção de um discurso prospectivo sus-
tentado, para além de uma coerência interna, por um éthos de conheci-
mento ligado a uma fonte legitimadora transcendente e por uma dêixis
enunciativa de véspera de plenitude, num claro apelo ao páthos. O enun-
ciador do discurso messiânico, por isso, é aquele que faz uma espécie
de exegese de uma trama histórica da qual o fim desejado torna-se sa-
bido e iminente, mas necessária e constitutivamente por vir, já que a
enunciação do discurso messiânico é aquela que ocorre no sempre rea-
tualizado aqui/agora de véspera de plenitude, no tenso ainda não que
precede à plenitude anunciada (o já).
As particularidades das produções discursivas identificadas com o
messianismo parecem demarcar para elas, assim, um lugar específico
no interior do domínio religioso. Trata-se, porém, de um lugar marginal,
na medida em que essas produções, não raramente, são rejeitadas nesse
domínio. O caso de Vieira parece confirmar isso: ele foi condenado pelo
Santo Ofício por defender a iminência do reino do Cristo, previsão que,
segundo os acusadores, não cabia ao padre jesuíta (EMERy & PEREIRA,
2015, p. 17). O discurso messiânico é, assim, aquele que anuncia não
necessariamente um o quê, que parece ser, em geral, algo da que une os
parceiros da comunicação, mas um quando.
No ato preditivo do discurso messiânico, por isso, anuncia-se mais
precisamente a chegada iminente da instância redentora e da conse-
quente plenitude. A lógica preditiva desse tipo de discurso, ao que tudo
indica, fundamenta-se numa relação em que o presente compreendido

56
O MESSIANISMO COMO UM PROBLEMA DE ARGUMENTAÇãO:
UM ESTUDO DA OBRA PROFÉTICO-MESSIâNICA DE PADRE VIEIRA

leva a um futuro desvendado. O enunciador surge, assim, como aquele


capaz de, estando voltado para o futuro, dar sentido a um presente ne-
gativo. Com efeito, ele se apresenta, ao mesmo tempo, como intérprete
de uma realidade presente caótica e como anunciador da plenitude, le-
vando o enunciatário da incerteza à certeza, da insegurança à confiança
no futuro, com base numa lógica segundo a qual o religioso deve corrigir
o político e o social, com base em valores primitivos, valores míticos.
O discurso messiânico pode, então, do ponto de vista da sua orga-
nização argumentativa, ser entendido como um discurso de poder que
prevê uma hegemonia instalada no futuro, hegemonia essa que reabili-
taria um enunciatário tido como em situação de vulnerabilidade no pre-
sente. De fato, o anúncio de plenitude se confunde com projetos de
poder que, acalentados em situações tidas como desfavoráveis, são co-
locados no futuro e atribuídos a uma instância transcendente/sagrada.

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58
ARGUMeNTATION, (pSeUDO-) DISCOURS RAppORTéS
eT FIGURe De pRéTéRITION.
Le CAS DU DébAT De L’eNTRe-DeUX-TOURS De
MAI 2017

Françoise Sullet-Nylander

1. Introduction
Le débat de l’entre-deux-tours des présidentielles françaises du 3 mai
2017 entre Emmanuel Macron et Marine Le Pen a été décrit par de nom-
breux observateurs, français et étrangers, comme le « plus violent de la
Vème République », comme un débat qui « a rarement atteint la hauteur
et la qualité rhétorique qui caractérise d’habitude en France la parole
politique » (Libération du 4 mai 2017)1. Le chercheur Damon Mayaffre2,
quant à lui, considère que la candidate du Front National a appliqué tout
au long du débat une « rhétorique ad hominem ». Dans une étude anté-
rieure (Sullet-Nylander & Roitman, 2011), nous avions comparé les em-
plois du discours rapporté (DR) du débat de 1995 (Chirac/Jospin) avec
celui de 2007 (Sarkozy/Royal). On a ainsi pu constater de nettes diver-
gences avec, d’un côté, un DR neutre et argumentatif (débat de 1995) et,
de l’autre, un DR de disqualification et de réfutation (débat de 2007).
Dans cette étude, on analysera en premier lieu les cas de reprise du
discours de l’opposant pendant le débat, que l’on pourrait qualifier de
«  canoniques  », pour ensuite se pencher sur ce que Rosier (2008)
nomme les « pseudo-discours rapportés » (PDR) et qui peuvent véhi-
culer, en fonction du contexte, la « déconsidération du discours d’au-
trui » (ROSIER, 2008, p. 27). En effet, compte tenu du caractère belliqueux
1
http://www.liberation.fr/politiques/2017/05/04/le-debat-le-pen-macron-vu-par-la-presse-
etrangere-le-plus-violent-de-la-ve-republique_1567224
2
Ce chercheur s’exprime ainsi au lendemain du débat dans le journal Nice Matin : « La première
erreur de la candidate a été d'appliquer une rhétorique "ad hominem". « Elle a enchaîné les at-
taques personnelles à l'encontre d'Emmanuel Macron au lieu de présenter son programme.
Elle a commencé cette stratégie dès les trois premières secondes et n'a pas lâché cette ligne jus-
qu'à la conclusion ». Voir le lien : http://www.nicematin.com/politique/desarconnant-ce-ni-
cois-specialiste-du-discours-politique-livre-son-analyse-du-debat-macron-le-pen-134340

59
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

de cette dernière édition du débat de l’entre-deux-tours, on fera l’hypo-


thèse que les reprises du discours de l’autre relèveront plutôt du PDR
dans le but de disqualifier l’adversaire, au regard de ce que pourraient
être la légitimité et la crédibilité des propos de l’opposant (CHARAUDEAU,
2015). Il peut s’agir, entre autres, de « formules résumantes » (ex. en
gros)3 ou de négations du type je ne dis pas que (ROSIER, 2008, 26-27).
Ce dernier marqueur de PDR se rapproche de la figure de prétérition
dont les fonctions rhétoriques principales seraient d’attirer l'attention
sur l’acte de langage que le locuteur affirme ne pas vouloir réaliser
(SNOECK HENKEMANS, 2009) ; une façon de mettre en valeur tout en dis-
simulant un sujet conflictuel ou polémique. Nous consacrerons ainsi un
troisième pan de l’analyse du débat à cette figure et à ses fonctions ar-
gumentatives.
Enfin, les résultats de cette étude du DR en contexte polémique seront
mis en regard de l’étude de 2011 nommée ci-dessus, ainsi que celles d’au-
tres chercheur.e.s portant sur les précédents débats de l’entre-deux-tours.

2. Argumentation, discours rapportés et figure de prétérition


2.1. Discours rapportés et pseudo-rapportés : effets et enjeux
Dans le cadre d’un travail sur l’argumentation en discours, l’étude des
formes et des enjeux du discours rapporté dans le genre du débat poli-
tique est particulièrement pertinente. Nous adoptons ici la conception
de l’argumentation proposée par Amossy (2008) et « entendue comme
la tentative de modifier, d’infléchir, ou tout simplement de renforcer, par
les moyens du langage, la vision des choses que se fait l’allocutaire ».
Selon cette même auteure, il y a argumentation « quand une prise de
position, un point de vue, une façon de percevoir le monde s’exprime sur
le fond de positions et de visions antagonistes ou tout simplement diver-
gentes, en tentant de prévaloir ou de se faire admettre. » (AMOSSy 2000, p
26). L’un des objectifs des participants au débat de l’entre-deux-tours est à
l’évidence de gagner la bataille argumentative sur l’autre dans le but ultime
3
Cette expression est utilisée à plusieurs reprises par Marine Le Pen et raillée par Emmanuel
Macron (« Non mais en gros, parce que vous dites toujours en gros quand vous citez »). On y
reviendra dans l’analyse.

60
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

de convaincre les téléspectateurs et de gagner l’élection. Il s’agit ainsi,


comme le souligne Sandré (2012 : 72), de mener la meilleure argumenta-
tion, et, notamment, de faire l’utilisation la plus stratégique possible des
discours rapportés. Ajoutons enfin, avec Kerbrat-Orecchioni (2017, p. 228)
que « si les candidats débattent entre eux, c’est non pas pour se convaincre
mutuellement mais pour convaincre le public des téléspectateurs »4.
À l’instar de Charaudeau (2008), on considérera que l’une des stra-
tégies discursives les plus prégnantes dans le cadre d’un tel débat poli-
tique, et particulièrement de celui-ci, est celle de disqualification de
l’adversaire5. Charaudeau considère en effet que, dans le contexte d’une
campagne électorale, chaque instance politique a un « adversaire en po-
sition de rivalité, non point en face à face comme dans un match de ten-
nis ou de boxe6, mais en concurrence face à un même public […]. Les
stratégies de parole sont alors orientées vers la disqualification de l’ad-
versaire. » (CHARAUDEAU 2008, 21-22). Dans le vif des échanges d’une
interaction telle que celle du face à face de l’entre-deux-tours, les candi-
dats en confrontation sont amenés, entre autre, à reprendre le discours
de l’autre et à construire leur argumentation à partir de celui-ci. Comme
mentionné plus haut, on fait l’hypothèse que les reprises du discours de
l’interlocuteur ou de l’interlocutrice seront ici, dans la plupart des cas,
de visée « divergente » où il s’agit de « reprendre le discours de l’autre
dans une perspective critique, afin d’en montrer les failles et les contra-
dictions » (SANDRÉ 2012 : 78).
On aura également affaire à des formes proches de celles du
« pseudo-discours rapportés » (ROSIER 2008), comme cela fut le cas,
selon notre étude sur le débat de 2007, entre Ségolène Royal et Nicolas
Sarkozy (SULLET-NyLANDER & ROITMAN 2011). En effet, pour reprendre
la formule de Steuckardt (1998, p. 24), il s’agit ici d’une vaste entreprise
4
Kerbrat-Orecchioni (2017, p. 228) considère ainsi que la question argumentative à l’œuvre
dans un tel débat correspond à la définition de Grize (2004, p. 35), à savoir qu’un discours ar-
gumentatif est « organisé en vue d’intervenir sur l’opinion, l’attitude et le comportement de
quelqu’un ».
5
Charaudeau (2008, 21-22) définit quatre orientations des « stratégies de parole » caractéristi-
ques d’une campagne électorale : le positionnement au regard des valeurs, la construction
d’une image de soi (= ethos), les modes d’interpellation de l'électorat et la disqualification de
l’adversaire.
6
Note de Charaudeau : «  Sauf en situation de débat télévisé final ».

61
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

de « mise au pas du discours d’autrui ». En relation avec l’emploi de la


négation (« Je ne dis pas que »), ce type de discours rapporté constitue
un outil argumentatif particulièrement efficace. L’un des buts de cette
analyse sera ainsi de décrire les modalités énonciatives et les effets prag-
matiques de ces reprises ; on examinera les pratiques du discours rap-
porté en rapport avec les enjeux argumentatifs de disqualification.

2.2. Figure de prétérition : faits et effets


Selon Fontanier (1977, 143), la prétérition consiste à « feindre de ne
pas vouloir dire ce que néanmoins on dit très clairement ». Snoeck Hen-
kemans (2009)7, quant à elle, considère que la figure de prétérition
consiste à annoncer explicitement que l’on va faire abstraction d’une
chose tout en la mentionnant, ce qu’elle énonce ainsi : « l’énonciateur fait
comprendre son intention de ne pas livrer une certaine information, et,
ce faisant, la transmet quand même. C’est pourquoi cette figure est par-
fois appelée « fausse réticence ». On le voit à travers les deux définitions
ci-dessus, il y a, dans ce cas de figure, une sorte de contradiction entre
le dire et le dit et on peut supposer, à l’instar de Fontanille (2008, p. 26),
que le dire négatif est faiblement assumé et que le dit est fortement as-
sumé. Selon cet auteur, on a affaire au même fonctionnement que celui
de l’antiphrase. Donnons quelques exemples de cette figure que nous
rattachons au pseudo-discours rapporté8:
a. Je ne vous raconterai pas comment ma mère préparait le café pour
mon père tous les matins. (www.stanfordspokenword.com/poems)

b. Je n’ai aucune raison d’accuser le CERT de faire ceci de façon


systématique, mais il est certain que l’utilisation qu’il a faite de
l’article de Stanford soulève certaines questions.

c. Je ne vous ferai pas l’affront de vous rappeler que vous n’êtes pas
invité à cette soirée. (http://bdl.oqlf.gouv.qc.ca)
7
Voir la version électronique de Snoeck Henkemans (2009) :
http://journals.openedition.org/aad/217 sous « Effets potentiels de la prétérition »
8
Les exemples a et b sont empruntés à Snoeck-Henkemans (2009).

62
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

Dans l’étude de notre corpus, nous nous intéressons au type de pré-


térition, où, comme en a. et b., le verbe d’énonciation (« raconter » et
« accuser ») est formellement lié à une négation. Il existe pourtant d’au-
tres types de prétéritions, comme les deux exemples suivants, empruntés
à Fontanier (1977) et issus de la langue classique :
d. Décrirai-je ses bas en trente endroits percés ; ses souliers grima-
çants vingt fois rapetassés ; […] Peindrai-je son jupon bigarré
de latin … (Boileau, Satires, cité dans Fontanier 1977 : 144)
e. Et sans crainte à tes yeux on pourrait t’exalter. Mais, sans t’aller
chercher des vertus dans les nues, Il faudrait peindre en toi des
vérités connues : Décrire ton esprit ami de la raison ; Ton ardeur
pour ton roi puisée en ta maison ; A servir ses desseins ta vigi-
lance heureuse ; Ta probité sincère, utile, officieuse. (Boileau,
Satires, cité dans Fontanier 1977 : 145)

Dans l’exemple d, la prétérition est introduite par la forme interro-


gative des deux verbes (« décrirai-je » et « peindrai-je) qui permet ainsi
au narrateur-poète de prendre ses précautions avant de procéder à une
description détaillée de son personnage. En e, la même précaution dis-
cursive, par laquelle le personnage feint de vouloir épargner son inter-
locuteur d’éloges trop explicites, est mise en place à travers l’usage du
conditionnel (de précaution). Ces deux exemples, bien que très ancrés
dans la langue classique et d’un genre littéraire contraint, montrent que
la contradiction entre le dire et dit peut être déclenchée par des procédés
autres que la négation du dire.
Bonhomme (2009), tentant de comprendre dans quelles conditions
les figures de rhétorique sont argumentatives, considère que certains
facteurs externes confèrent aux figures de rhétorique un « potentiel d’ar-
gumentativité » :
D’une part, divers genres discursifs sont de nature à favoriser le
fonctionnement argumentatif des figures. C’est le cas des genres
agoniques, tel le libelle, et des genres liés à la parole publique,
comme le discours politique9. Mais les figures sont aussi aptes à en-
dosser un rôle argumentatif dans des types de textes apparem-
ment éloignés des débats et de l’action persuasive […] D’autre
9
Nos italiques.

63
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

part, le contexte discursif, qu’il soit socioculturel ou historique, peut


colorer argumentativement une figure. Comme l’a remarqué Meyer
(1993), les figures sont prédisposées à acquérir une fonction argu-
mentative dans les situations de divergence et de tension. De sur-
croît, le positionnement énonciatif du locuteur est à même d’influer
argumentativement sur ses énoncés figuraux. En particulier, les
actes de langage autocentrés (justification, défense…) ou hétéro-
centrés (critique, accusation…) confèrent souvent une portée ar-
gumentative à la création de métaphores. (BONHOMME, 2009)

Dans son étude, Bonhomme (2009) ne mentionne pas la figure de


prétérition en particulier, mais il nous semble que les caractéristiques
de celle-ci, mentionnées plus haut, la « prédispose » à l’emploi en
contexte argumentatif et polémique du débat politique.
Quelles pourraient donc être les fonctions et effets de cette figure
de rhétorique dans le genre qui nous intéresse ? Selon Snoeck Henke-
mans (2009)10, il s’agit d’attirer l’attention sur l’acte de langage que le lo-
cuteur affirme ne pas vouloir réaliser. En effet, le fait de nier que l’on va
réaliser tel ou tel acte de langage fait porter l’attention des interlocuteurs
et interlocutrices sur le fait qu’on aurait pu le faire :
Nier son adhésion à un certain acte de langage ou récuser le fait
qu’on va l’accomplir attire donc d’ores et déjà l’attention de l’audi-
toire sur l’information qu’on déclare ne pas fournir. Dans la suite,
cette information est néanmoins donnée, mais elle est généralement
présentée de façon à camoufler la contradiction entre ce que le lo-
cuteur déclare être en train de faire et ce qu’il fait en réalité. Ainsi
la prétérition, lorsqu’elle est combinée avec des techniques de pré-
sentation spécifiques, peut-elle être considérée comme une forme
à la fois de mise en valeur et de dissimulation. (HENKEMANS, 2009)

Snoeck Henkemans (2009) ajoute que l’énonciateur qui utilise une


prétérition ne se contente pas de taire quelque chose ou de réaliser un acte
de langage spécifique, il « nie explicitement adhérer à une certaine pro-
position ou annonce clairement qu’il ne va pas parler de quelque chose.
En niant son adhésion à une proposition, il rend celle-ci plus significative
aux yeux de son auditoire ». On le verra plus loin, ces observations nous
10
Voir la version électronique de Snoeck Henkemans (2009) :
http://journals.openedition.org/aad/217 sous « Effets potentiels de la prétérition »

64
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

semblent tout à fait pertinentes pour l’analyse de la prétérition dans un


débat comme celui qui nous intéresse, dans la mesure où les sujets polé-
miques et conflictuels y sont nombreux et font l’objet d’importants enjeux.

3. Débat Le pen–Macron : dire ou ne pas dire, c’est la question !


Dans la quasi-totalité des exemples que nous analyserons, le verbe
d’énonciation est le verbe « dire ». Les formes suivantes ont été relevées
dans le corpus :
1) environ 70 occurrences de la forme infinitive dire11 ;

2) 17 occurrences de « vous dites » ; 15 occurrences de « vous avez


dit » ; 4 occurrences de « ne dites pas » (impératif)12 ;

3) 13 occurrences de « je dis » ; 6 occurrences de « je vous dis » ;


6 occurrences de « j’ai dit »13 ;

4) 2 occurrences de « je ne vais pas vous dire » ; 1 occurrence de


« je ne dis pas » ; 1 occurrence de « je n’ai pas dit ça ».

3.1. Assertion vs réfutation : « Vous avez dit » vs « Je n’ai pas dit »
La plupart des reprises du discours de l’interlocuteur, avant ou pen-
dant le débat, du type « vous avez dit », sont l’affaire de Marine Le Pen et
apparaissent dans un contexte hautement polémique, où la candidate
tente, sur divers sujets, d’attribuer à Emmanuel Macron des propos qui
viennent appuyer sa propre vision de la politique à mener dans le cas où
elle serait élue. Cette stratégie oblige Emmanuel Macron à réfuter par des
formules du type « je n’ai pas dit » et à se justifier par des constructions
11
On a enlevé les occurrences de la forme « dire » appartenant à des expressions figées et/ou
impersonnelles comme « c’est-à-dire » ou comme « ça veut dire ». Nous avons également
relevé 19 occurrences de « demander » et 26 occurrences de « répondre ».
12
Ces quatre occurrences impératives de « ne dites pas » reviennent à Emmanuel Macron qui
demande à trois reprises à Marine Le Pen de ne pas dire de « bêtises » et une fois de ne pas
dire de « mensonges ». (voir section 3.2)
13
Dont quatre occurrences qui reviennent à Macron lorsqu’il corrige ce qu’a dit son interlocu-
trice sur ses propos à lui. Ex. « Madame Le Pen, je sais ce que j’ai dit, je n’ai pas dit ça. »

65
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

pseudo-clivées, comme « ce que j’ai dit, c’est que », selon le modèle des
échanges suivants14 :
(1) MLP : D’accord moi j’ai une question quand même Monsieur
Macron. Vous avez dit la France a une part de responsabilité
dans le terreau du djihadisme. Vous pouvez expliquer votre
pensée.
EM. Non, je vais d'abord démanteler les bêtises que vous avez
dites tout à l'heure.
(2) MLP : Et vous avez dit dans une émission j’accepte le soutien
de l’UOIF.
EM : Je suis désolé de vous le dire, mais Madame Le Pen, pas
plus que ça n’est chez moi qu’il y a des cadres qui font des trans-
actions avec Daech, ce que Mediapart a encore révélé au-
jourd’hui. Monsieur Veillard qui a fait une transaction entre
Lafarge et Daech. Mais c'est vous. Ce sont vos responsabilités. 
MLP : Vous avez dit : la France a une part de responsabilité
dans le terreau du jihadisme. Qu’est-ce que ça veut dire ?
(3) MLP : Vous avez l’air mal à l’aise.
EM : Je ne suis pas mal à l’aise du tout. Ce que je dis, c’est que.
Pourquoi des jeunes Français se radicalisent. C’est la question
qu’on doit collectivement se poser. Vous avez raison de la
poser.
MLP : Vous avez dit, c’est à cause de la France.
EM : Madame Le Pen, je sais ce que j’ai dit, je n’ai pas dit ça.
Ne mentez pas, une fois encore. J’ai dit, on doit s’interroger
quand des jeunes Français ou des jeunes Françaises qui sont
nés en France, qui ont grandi en France, qui ont été élevés
dans notre pays, suivent des fanatiques et détruisent nos pro-
pres enfants.
(4) MLP : C’est si vrai que quand on vous a demandé comment
vous alliez faire face à Madame Merkel, vous avez dit, je ne
serai pas face à elle, je serai avec elle.
EM : Mais bien sûr que je veux une France qui se bat avec l’Al-
lemagne, Madame Le Pen.
MLP : Non, je vais vous dire ce qui va se passer, Monsieur Ma-
cron. De toute façon, la France sera dirigée par une femme, ce
14
Dans les exemples, les noms des candidats seront abrégés en MLP et EM.

66
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

sera ou moi ou Madame Merkel. Elle est là la réalité… […]


EM : Mais arrêtez, ce sont des formules qui sont ridicules.

Dans les séquences (1)-(4), Marine Le Pen attribue des propos à Em-
manuel Macron que celui-ci nie dans un premier temps, pour les refor-
muler et les expliciter par la suite. Il s’agit, dans la plupart des cas, de
propos qu’Emmanuel Macron auraient tenus avant le débat. La candi-
date saisit ici l’occasion de le mettre devant le « dit accompli » et, dans
de nombreux cas, de propos compromettant l’image du président res-
pectable que veut dégager Emmanuel Macron. Elle oblige ainsi son ad-
versaire à utiliser une bonne partie de son temps de parole à se défendre
et à se justifier d’avoir déclaré telle ou telle chose en public. Cette straté-
gie permet également à Marine Le Pen de ne pas développer son propre
programme, ce qu’Emmanuel Macron souligne, en particulier, en fin de
débat : « Madame Le Pen a utilisé sa conclusion toute entière pour dire
des mensonges sur mon projet sans jamais dire ce qu’elle voulait pour le
pays. »
En (1) d’abord, sur le thème de la sécurité et du terrorisme15, la can-
didate somme son interlocuteur de s’expliquer sur des propos qu’il aurait
tenus : « Vous avez dit la France a une part de responsabilité dans le ter-
reau du djihadisme. » Elle cherche ainsi à décrédibiliser Emmanuel Ma-
cron devant les Français en ce qui concerne la lutte contre le terrorisme,
en l’accusant en même temps de faire porter la faute sur les Français. Il
en va de même dans l’exemple (2) touchant au même thème. Emmanuel
Macron répond, plus loin dans le débat, alors que Marine Le Pen a réitéré
la même requête :
(5) EM : On doit s’interroger et j’ai dit : nous avons notre part de
responsabilité. C’est pas la première cause. La cause première,
ce sont les djihadistes, les terroristes. C’est pour ça d’ailleurs
que je veux mener une guerre intraitable hors de nos fron-
tières [MLP : c’est quoi la part de responsabilité de la France ?]
contre l’Irak et la Syrie [MLP : c’est quoi la part de responsa-
bilité de la France ?]

15
Après environ 1 heure ½ de débat.

67
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

À travers ces reprises insistantes et sur ce thème d’actualité sensible,


Marine Le Pen tente de minimiser les capacités d’Emmanuel Macron de
prendre en main les graves problèmes auxquels la France doit faire face.
Elle le formule ainsi plus loin dans le débat, de manière directe et expli-
cite : « Bon, eh bien, je dis qu’il y a une très forte inquiétude à vous voir
élu à la tête de l’État » (voir aussi ex. (7) ci-dessous). Notons également
qu’elle utilise les syntagmes « la part de responsabilité de la France » et
« à cause de la France », tandis qu’Emmanuel Macron utilise (ex. 5) le
pronom « nous », cherchant ainsi à mettre en avant une responsabilité
collective face à la radicalisation de la société française : « Nous avons
notre part de responsabilité »16. Dans l’exemple (3), Macron réfute le pro-
pos de Marine Le Pen, l’accusant même de mentir : « Madame Le Pen,
je sais ce que j’ai dit, je n’ai pas dit ça. Ne mentez pas, une fois encore ».
L’exemple (4) relève d’une autre thématique traitée vers la fin du
débat, celle de l’Union Européenne et de l’éventuelle « sortie de l’Euro »
si Marine Le Pen devait être élue. Cette tentative de la part de Marine
Le Pen de mettre son interlocuteur en difficulté face à ses propos (« vous
avez dit, je ne serai pas face à elle, je serai avec elle. ») est aussitôt contre-
carrée par Emmanuel Macron qui appuie et renchérit dans le sens que
Marine Le Pen aurait voulu disqualifiant (« Mais bien sûr que je veux
une France qui se bat avec l’Allemagne, Madame Le Pen »).
Ces reprises des paroles de l’autre se font dans un contexte haute-
ment polémique : l’un des débatteurs est sommé d’expliquer, de justifier
des propos qu’il estime ne pas avoir tenus. Cette stratégie est tout à fait
comparable à celle observée dans le débat de 2007 entre Ségolène Royal
et Nicolas Sarkozy, où les deux candidats attaquent les valeurs et capa-
cités de l’autre candidat en cherchant à décrédibiliser ses paroles, surtout
aux yeux des Français.es. Il faut cependant noter que le débat de 2007
offrait de nombreux cas de reprises concessives du type : « Ce que dit
Mme Royal est intéressant. C'est une différence essentielle entre son pro-
jet et le mien. ». Ce type de reprise précédant le rejet des propos et pro-
positions de l’autre est quasiment absent du débat de 201717.
16
Nos italiques.
17
On note une seule reprise de ce type de la part de Marine Le Pen, en fin de débat : « Vous
savez je crois que c’est très intéressant ce que vous avez dit Monsieur Macron parce que en fait
on voit toute la différence qu'il y a entre la vision qui est la vôtre et celle qui est la mienne.
Vous avez parlé de la France en disant la France sera respectée si elle est une grande puissance
économique, ça y est on revient aux graphiques, au budget… »

68
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

3.2. Injonctions : « Arrêtez de dire … » / « Ne dites pas … »


Dans les exemples précédents, les candidats s’en tiennent d’un côté
à la reprise, à la répétition de (pseudo) dits antérieurs de l’adversaire,
suivie d’une question (« Qu’est-ce que ça veut dire ? »), et de l’autre à sa
réfutation par une négation de phrase, puis à l’explication-reformulation
de ceux-ci. Dans les exemples suivants, la disqualification des dires de
l’autre se fait de manière plus frontale, en rejetant comme non sérieux
ou faux, ses propos. Les exemples (6)-(10) ci-dessous illustrent ce com-
portement discursif, relativement inédit dans le genre à l’étude :
(6) EM : Mais arrêtez de dire de grandes bêtises [MLP : pardon,
vous les avez vendus aux Italiens…] Non, Mme Le Pen, je n’ai
rien vendu pour ce qui est des chantiers de l’Atlantique. Ils ont
failli périr il y a deux ans. Ils ont pu négocier un accord d’en-
treprise que les syndicats ont courageusement signé. y a eu
du chômage partiel, aucun licenciement. Ils sont repartis et
ont un carnet de commandes de dix ans. [MLP : Et ils ont été
vendus aux Italiens]
(7) EM : Arrêtez de dire des bêtises. Là vous faites, comme tou-
jours. [MLP : Je ne dis pas de bêtises…] Non non, mais Mon-
sieur Ramadan ne m’a jamais soutenu. Je ne le connais pas.
MLP : Ceux qui nous écoutent…
EM : Vous dites de grosses bêtises. Vous dites de gros men-
songes, Madame Le Pen.
MLP : Non non, absolument pas. Vous irez voir. Nous avons
capté l’écran, puisque vous lui avez peut-être demandé direc-
tement de retirer son tweet, mais en l’occurrence, ce soutien a
été fait. Rien, aucune parole de votre part pour condamner
cela. Bon, eh bien, je dis qu’il y a une très forte inquiétude à
vous voir élu à la tête de l’État.
(8) MLP : Moi je veux que la France… Est-ce que vous pourriez
arrêter de me couper la parole ?
EM : Non mais je vous coupe la parole parce que vous dites
des bêtises.
MLP : Mais calmez-vous. Allez, c’est pas grave. Vous aurez le
temps tout à l’heure de répondre
EM : Madame Le Pen je suis très calme. Il y a deux choses
d’abord
MLP : Laissez-moi terminer. Soyez courtois. Soyez courtois.

69
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

(9) EM : Madame Le Pen, SFR était la propriété d’un groupe privé
qui s’appelle Vivendi. Nous sommes dans un état où la pro-
priété privée est respectée. C’est le groupe Vivendi qui l’a
vendu, ne dites pas de bêtises. Vous en dites beaucoup. Ce n’est
qu’une des bêtises que vous avez proférées depuis tout à
l’heure, mais surtout, ça ne fait pas avancer le pays.
(10) EM : Je ne suis pas du tout énervé Madame Le Pen
MLP : Laissez-moi parler. Regardez, j'ai du retard sur vous.
EM : Mais vous allez le rattraper. Mais parlez de votre projet.
Ne dites pas de bêtises sur le mien. J'ai un projet, mais sim-
plement je ne réagis pas aux événements comme vous.

Dans chacune de ces séquences en (6)-(10), aussi bien sur les thèmes
de l’économie et du chômage (ex. 6 et 9), ceux de la sécurité et du terro-
risme (ex. 7 et 10), que sur la politique étrangère et l’Union Européenne
(ex. 8), Emmanuel Macron rejette en bloc les propos tenus par Marine
Le Pen, les qualifiant soit de « bêtises », soit de « mensonges ». Ce type
de disqualification porte sur l’énonciation de l’interlocuteur, comme
dans l’exemple (4) discuté plus haut (« Mais arrêtez, ce sont des formules
qui sont ridicules »).
Dans notre étude de 2011, comparant le débat de 1995 entre
Jacques Chirac et Lionel Jospin avec celui de 2007, entre Nicolas Sar-
kozy et Ségolène Royal, on avait pu constater que dans le premier débat,
le discours de l'autre était repris à des fins argumentatives neutres plus
qu’à des fins disqualificatives : il s’agissait là de mettre en valeur son
propre discours en le « tissant » avec celui de l’autre. Les commentaires
concernant les dits et dires de l'autre étaient peu polémiques et les for-
mules concessives, du type « c'est vrai », relativement nombreuses. Dans
le débat de 2007, en revanche, les stratégies de disqualification de l’autre
y étaient plus marquées et plus fréquentes avec des encadrements du
discours rapporté dévalorisants, ainsi que des disqualifications du
dire,  comme dans «  Ne jouez pas sur les mots ni sur la misère des
gens. » de la part de Ségolène Royal, ou des énoncés concessifs iro-
niques, de la part de Nicolas Sarkozy en particulier, introduisant une
argumentation sur leurs visions politiques différentes et menant au rejet
des propos de l’autre: « Elle nous dit que personne ne travaille plus de
35 heures, ainsi, cela obligera les autres à embaucher. Nulle part ailleurs

70
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

dans le monde, on ne fait cela. Il n’y a pas un seul pays, madame, socia-
liste ou pas, qui a retenu la logique du partage du temps de travail, qui
est une erreur monumentale. » Les débats de 2007 et 2017 ont certes
des caractéristiques discursives et énonciatives communes, en particu-
lier les nombreux cas de disqualification du dit mises en scène à travers
des reformulations et des introducteurs du DR négatifs, mais la dimen-
sion « concessive » et ironique est plus marquante en 2007, sans doute
liée aux préférences individuelles de Nicolas Sarkozy pour ce mode dis-
cursif. Les exemples (6) à (10) ci-dessus indiquent cependant que les
disqualifications portent, de manière plus systématique et plus fré-
quente dans le débat de 2017, sur les dires mêmes de l’adversaire, et se
font sur le mode de l’injonction.

3.3. pseudo-discours rapportés (pDR)


Avant d’entamer cette partie de l’analyse, citons d’abord Marnette
(2002, p. 8), au sujet de l’adjectif « rapporté » dans « discours rapporté »:
L'action de rapporter un discours n'est pas nécessairement subor-
donnée à celle de raconter un récit. Il ne s'agit plus ici des fonc-
tions narratives du discours rapporté (par exemple la fonction
mimétique qui donne vie ou vraisemblance au récit raconté) mais
de fonctions argumentatives18 […] Notons que dans une structure
argumentative, les discours rapportés ne sont pas nécessairement
au passé comme c'est le plus souvent le cas dans un récit mais
qu'ils peuvent également dépendre d'un verbum dicendi ou sen-
tiendi […] Ceci montre une fois de plus que 'rapporté ' ne signifie
pas 'antérieur'. (MARNETTE, 2002, p. 8)

Il s'agira ici de nommer des discours que l’allocutaire pourrait tenir


dans le débat et de s’en servir à des fins argumentatives. Comme le sou-
ligne Marnette (2002, p. 7), les propos peuvent être résumés ou présu-
més. Elle souligne également le fait que «  'rapporter', c'est toujours
changer de contexte et utiliser le discours de l'autre de manière diffé-
rente, à la limite opposée de ce qu'il a pu ou pourrait dire et penser. Il
s'agit toujours d'une construction et jamais d'une réduplication. » (MAR-
18
Nos italiques.

71
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

NETTE 2002, p. 7-8). La frontière est donc ténue entre ce que nous avons
qualifié plus haut de DR « canoniques » (section 3.1) et ce que nous
abordons à présent sous le terme « pseudo-discours rapportés » (ROSIER
2008). En effet, dans le genre interactif et polémique, chaque énoncé at-
tribué à l’allocutaire est proféré à des fins argumentatives et peut ainsi
ne pas relever d’un discours antérieur, mais plutôt d’un discours mani-
pulé, voire inventé.
Nous soutenons, à l’instar de Charaudeau et Maingueneau (2002),
que les modes de représentation des discours autres sont « une des di-
mensions du positionnement ou du genre de discours » et la « manière
dont une parole est attribuée à une autre source énonciative est solidaire
des caractéristiques de l’ensemble du discours citant » (CHARAUDEAU ET
MAINGUENEAU, 2002, p. 194-195). Or, on a affaire ici un sous-genre de
discours politique bien défini : il s’agit d’oral en interaction produit en
contexte médiatique et relevant d’un registre confrontationnel (KERBRAT-
ORECCHIONI 2017, p. 9). Compte tenu de ces trois caractéristiques (et
particulièrement de celles de la dernière édition), il paraît fort probable
que les protagonistes feront usage de formules résumantes, voire « pré-
sumantes » des discours adverses.
Après environ deux heures de débat, alors que le thème vient de pas-
ser à la question européenne, les journalistes demandent aux deux can-
didats - à Marine Le Pen d’abord - de donner leur définition de l’Europe
à venir (« On va parler d’Europe… Nous donner votre définition de l’Eu-
rope de demain, vous présidente, Marine Le Pen.  »). La candidate
construit alors son argumentaire en mettant en avant sa vision d’une Eu-
rope comme une « alliance des nations européennes libres et souve-
raines », par opposition à une union européenne, celle d’Emmanuel
Macron selon elle, ouverte à toutes les concurrences extérieures. Elle an-
nonce alors sa volonté de consulter les Français par référendum, qu’elle
envisageait d’organiser en septembre 2017. L’échange entre les deux can-
didats se déroule ainsi :
(12) MLP : C’est un délai indicatif. Mais, il faut. Moi, je ne veux
pas créer le chaos, je ne veux pas précipiter. Si c’est dix mois,
ben ce sera dix mois. L’important c’est encore une fois d’ob-
tenir cette négociation. Pardon et juste, j’en termine. J’en ai
pour quelques secondes. Monsieur Macron, vous avez donné

72
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

une interview il y a quelques temps à Reuter le, je crois, 2


mars. Où vous avez dit l’Euro va mourir dans les 10 ans. En
gros c’est ça…
EM : En gros,
MLP : Ben je sais pas, oui.
EM : Non mais en gros, parce que vous dites toujours en gros
quand vous citez. C’est jamais précis. Allez-y poursuivez, Ma-
dame Le Pen !
MLP : Vous dites, si on ne fait pas une Europe fédérale totale-
ment, avec un gouvernement de la Zone européenne, c’est-à-
dire avec la perte de notre souveraineté totale, avec l’intégralité
des clefs de la France, là pour le coup données dans tous les do-
maines de l’Union Européenne…
EM : Oui, c’est bien en gros…

Dans le genre à l’étude, celui d’« interactions fondamentalement


conflictuelles » (KERBRAT-ORRECHIONI 2017, p. 212), une grande partie
des énoncés introduits par un verbum dicendi peuvent, selon nous, être
interprétés comme des PDR. Ici, l’interprétation en PDR est appuyée par
le cotexte, et en particulier par les propos tenus par Emmanuel Macron
(« Non mais en gros, parce que vous dites toujours en gros quand vous
citez »), eux-mêmes constituant une reprise de ceux de Marine Le Pen :
« Où vous avez dit l’Euro va mourir dans les 10 ans. En gros c’est ça ». La
candidate ici, comme dans beaucoup de cas, consacre peu de temps à
ses réponses aux questions des journalistes et enchaîne rapidement sur
des propos qu’elle prête à Macron. Il s’agit là d’une stratégie argumenta-
tive récurrente et qui peut lui avoir été fatale19. En (12), on peut supposer
cependant qu’il y a bien eu un discours antérieur de la part de Macron :
en effet, celui-ci ne contredit pas le fait d’avoir donné une interview à
Reuter ; il s’oppose plutôt à l’approximation avec laquelle Marine Le Pen
cite ses propos. Au début du débat, lors de la discussion sur les questions
d’économie et de chômage, Marine Le Pen use également ici de formules
19
Citons de nouveau le chercheur Mayaffre dans Nice Matin du 4 mai 2017 qui considère qu’une
erreur de Marine Le Pen dans le débat a été d'adopter un « discours tribunicien ». Il s’exprime
ainsi : « Elle a avancé le discours de l'opposition, pas celui d'un gouvernant, alors que sa stra-
tégie depuis le début de la campagne a été de sortir le FN de cette dimension protestataire ».
Voir le lien : http://www.nicematin.com/politique/desarconnant-ce-nicois-specialiste-du-dis-
cours-politique-livre-son-analyse-du-debat-macron-le-pen-134340

73
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

approximatives afin de mettre en scène les échanges entre Emmanuel


Macron et les ouvriers de Whirlpool :
(13) MLP : Et vous vous êtes allés les voir en leur disant : ben écou-
tez, la mondialisation, c’est comme ça, vous allez perdre votre
boulot. On vous mettra quelques formations…EM : Non, je
leur ai dit, je vais me battre pour la reprise du site industriel
parce que ça c’est un vrai combat. Je vais me battre pour que
vous ayez des supra légales.
MLP : Vous vous rendez compte que vous n’êtes pas crédible
sur ce sujet, M. Macron ?
EM : Je vais vous dire, je suis infiniment plus crédible que
vous, parce que je ne me nourris pas cyniquement … de ce
que vivent nos concitoyens.

Dans l’exemple suivant, issu des échanges lors du thème « Impôts et


pouvoir d’achat », il ne s’agit plus de propos proférés antérieurement par
Emmanuel Macron et résumés par Marine Le Pen, mais d’un discours
entièrement imaginé par cette dernière :
(14) MLP : « Mais comme vous êtes socialiste, vous allez nous
dire : ce n’est pas grave, ça coûte rien, c’est l’État qui paye. »
EM : « Non, je vous dis justement pas ça. Je rétablis la vérité
Mme Le Pen. Tout le monde gagne du pouvoir d’achat avec
cette mesure, sauf les plus aisés des retraités. »

La candidate insiste, à plusieurs reprises, sur l’appartenance d’Em-


manuel Macron au groupe des socialistes, se basant sur le fait que celui-
ci a participé au gouvernement de Hollande (« quatre ans vous avez été
le conseiller économique de M. Hollande, puis deux ans ministre »). Elle
lui assigne ainsi un positionnement de gauche en le qualifiant d’« héritier
de François Hollande » et de « Hollande Junior »20. Ces observations
sont appuyées par les propos de Kerbrat Orecchioni (2017, p. 229) qui
considère que les stratégies des débatteurs dépendent en grande partie
de leur statut soit de « sortant », soit de « challengeur ». Or, dans cette
dernière édition du débat de l’entre-deux-tours, aucun des candidats n’est
20
Emmanuel Macron répond ainsi à Marine Le Pen : « - MLP : Vous êtes l’héritier de Fran-
çois Hollande qui vous soutient deux fois par jour. Ainsi que de l’intégralité de vos
amis ministres avec lesquels vous avez gouverné… EM : … tous les républicains de
ce pays, Madame Le Pen. »

74
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

sortant. Faute d’avoir en face d’elle un « vrai » candidat sortant, Marine


Le Pen tentera pourtant de faire endosser ce rôle à Emmanuel Macron
en s’adressant à lui comme le représentant de la classe politique sor-
tante21. Selon Kerbrat-Orecchioni (2017, p. 229), le « challengeur », en
tant que représentant du camp de l’opposition, aura « pour tâches d’at-
taquer le bilan de l’adversaire » ; cette stratégie argumentative passe, chez
Marine Le Pen, entre autres, par l’emploi du PDR.
Parmi les procédés de PDR, consistant à fortement résumer,
condenser, anticiper, voire imaginer (ROSIER 2008, p. 26-27), les formules
résumantes du type « en gros » et les verbes introducteurs du PDR au
futur sont les plus représentatifs de cette édition du débat de l’entre-
deux-tours. On a également pu constater que chaque occurrence de PDR
est l’affaire de Marine le Pen. Voyons à présent, dans la section suivante,
le cas où le verbe introducteur « dire » est à la forme négative, un procédé
que nous associons, dans un certain contexte, à la figure classique de
prétérition.

3.4. prétérition et disqualification


Dans la section 2.2, nous avons donné, à titre illustratif, quelques
exemples de prétérition empruntés à des travaux antérieurs ; la plupart
des exemples retenus sont des énoncés où le verbe « dire » est employé
à la forme négative et à la première personne. L’énonciateur cherche ainsi
à mettre en avant un contenu « problématique », tout en prétendant le
taire (« je ne dis pas »). Ce procédé semble efficace dans le genre du débat
politique dans la mesure où, comme le signale Kerbrat-Orecchioni
(2017, p. 18), il s’agit autant de vaincre le co-débatteur que de convaincre
le téléspectateur. Cette auteure souligne également que l’ensemble du
discours dans un tel débat se ramène au « macro-acte assertif 'Je suis le
meilleur' […], ce qui implique à la fois une autopromotion et une dis-
qualification de l’adversaire, tous les procédés discursifs mobilisés de
21
Selon Mayaffre dans Nice Matin du 4 mai 2017, cette stratégie a plutôt desservi Marine Le
Pen : « En se comportant de la sorte, elle a pu paraître agressive mais surtout, elle a "présiden-
tialisé" Emmanuel Macron. Elle lui a donné du crédit en le qualifiant de "sortant", en faisant
référence à François Hollande ». Voir le lien : http://www.nicematin.com/politique/desarcon-
nant-ce-nicois-specialiste-du-discours-politique-livre-son-analyse-du-debat-macron-le-pen-
134340

75
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

part et d’autre étant mis au service de cette visée globale ». La figure de


prétérition participe pleinement à cet objectif. Nous nous concentrerons
sur une des occurrences au tout début du débat, qui nous semble em-
blématique pour ce débat.
Tandis que les deux candidats sont censés faire une introduction et
répondre à la première question des journalistes : « Une première ques-
tion, après des mois de campagne, à quatre jours du second tour et à 10
jours de votre investiture si vous êtes élu(e), quel est votre état d’esprit ? »,
Marine Le Pen prend la parole en premier22 et entame ainsi le débat et
son discours d’introduction :
(14) MLP : Ben écoutez, je suis extrêmement heureuse de la ma-
nière dont se déroule ce 2ème tour, parce que la réalité c’est
que le choix politique que les Français vont devoir faire
s’éclaire. M. Macron est le candidat de la mondialisation sau-
vage, de l’ubérisation, de la précarité, de la brutalité sociale,
de la guerre de tous contre tous, du saccage économique, no-
tamment de nos grands groupes, du dépeçage de la France
par les grands intérêts économiques, du communautarisme
et tout cela piloter par M. Hollande, hein, qui est à la ma-
nœuvre maintenant de la manière la plus claire qui soit […]
On a vu les choix que vous avez faits dans ce second tour ;
des choix qui sont des choix cyniques. D’utilisation d’argu-
ments de campagne qui sont honteux et qui révèlent peut-
être la froideur du banquier d’affaires que vous n’avez
probablement jamais cessé d’être. Donc, je pense que cette
période en réalité de clarifications a été profondément utile
aux Français pour faire un choix.

Comme elle le fera tout au long du débat, Marine Le Pen commence


son intervention directement par une attaque de son adversaire, ici dès
sa deuxième phrase. Elle livre ainsi en bloc, dans un « un comportement
d’attaquant » (KERBRAT-ORECCHIONI 2017, p. 207), tout ce qui caractérise,
selon elle, la politique d’Emmanuel Macron et qu’elle rejette : « la mon-
dialisation sauvage », « l’ubérisation », « la précarité », « la brutalité so-
ciale », « la guerre de tous contre tous », « le saccage économique » et le
22
Comme le veut la tradition, un.e candidat.e commence le débat et l’autre le clôt. Ici ce sera
donc Marine Le Pen qui commence et Emmanuel Macron qui parlera en dernier.

76
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

« dépeçage de la France ». Au cours de ces premières minutes de débat,


le ton est donné pour la suite  des échanges : ni «  adoucisseur  », ni
« pseudo-politesse » (KERBRAT-ORECCHIONI 2017, p. 207) de la part de
Marine Le Pen. L’introduction d’Emmanuel Macron, en (15), a lieu juste
après celle de Marine Le Pen :
(15) EM : Ben écoutez, vous avez démontré que vous n’êtes en tout
cas pas la candidate de l’esprit de finesse, de la volonté d’un
débat démocratique, équilibré, ouvert. Merci pour cette belle
démonstration que vous venez de faire Madame Le Pen ! Je
ne m’attendais pas à autre chose. Moi, je ne vais pas vous dire
que vous êtes la véritable héritière. Non seulement d’un nom,
d’un parti politique, du parti politique de l’extrême droite
française, de tout un système qui prospère sur la colère des
Français depuis tant et tant d’années… Je ne vais pas vous dire
que vous revendiquez même cet héritage, puisque vous l’avez
porté depuis que vous avez repris ce parti et que depuis 40
ans dans ce pays, nous avons des Le Pen qui sont candidats à
l’élection présidentielle, parce que ça ne m’intéresse pas. Alors
vous allez continuer votre logorrhée, puisque c’est ce que vous
faites à longueur de rassemblements et autres …»

Dans les éditions précédentes du débat de l’entre-deux-tours, les in-


troductions des deux candidats sont généralement données de manière
relativement indépendante, répondant l’un après l’autre à la question
d’ouverture des journalistes. Or, on remarque ici que la tirade introduc-
tive d’Emmanuel Macron, exemple (15), constitue une réplique directe
à l’attaque de Marine Le Pen en (14). En effet, la figure de prétérition
employée à deux reprises ici, permet à Emmanuel Macron, d’entrée de
jeu, d’attirer l’attention sur les travers de son adversaire, en adoptant une
rhétorique moins ouvertement polémique qu’elle son adversaire : « Je ne
vais pas vous dire que vous êtes la véritable héritière […] de l’extrême
droite française, de tout un système qui prospère sur la colère des Fran-
çais […] Je ne vais pas vous dire que vous revendiquez même cet héritage
… ». Emmanuel Macron cherche à attirer l’attention des téléspectateurs
sur ce qu’il prétend taire, se plaçant d’emblée dans une posture moins
« attaquante » que son interlocutrice, par la formule « je ne vais pas vous
dire ». L’hypothèse formulée par Fontanille (2008, p. 26) : « le dire négatif

77
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

est faiblement assumé et le dit est fortement assumé » se confirme ici.


Ainsi, Emmanuel Macron veut d’entrée souligner le passé et l’héritage
douteux de sa concurrente tout en feignant, vis-à-vis de l’auditoire, de
la ménager ou du moins d’en passer par un procédé moins direct que
celui qu’elle vient d’utiliser. Une (apparente) stratégie de « ménagement »
de son interlocutrice qui permet à l’énonciateur d’apparaître, vis-à-vis
des téléspectateurs, comme un débatteur « fair play ». Cette interpréta-
tion est appuyée par les premiers mots d’Emmanuel Macron : « Ben
écoutez, vous avez démontré que vous n’êtes en tout cas pas la candidate
de l’esprit de finesse, de la volonté d’un débat démocratique, équilibré,
ouvert. »
Un dernier exemple nous permettra d’illustrer un autre emploi de
la figure de prétérition. Dans la deuxième partie débat, alors que les
thèmes traités sont ceux de la sécurité et du terrorisme, les candidats
s’accusent l’un l’autre d’avoir (eu) des prises de position controversées.
En (16), Emmanuel Macron vient d’accuser Marine Le Pen d’insulter les
Françaises et les Français « à cause de leur religion » et de jeter le trouble
en France. Marine Le Pen nie fermement les propos accusateurs d’Em-
manuel Macron :
(16) MLP : Je n’ai jamais, absolument jamais de toute mon exis-
tence, insulté quiconque en raison ni de son origine ni de sa
religion, Monsieur Macron, mais tout ça est une vieille lita-
nie. Vous êtes jeune, jeune à l’extérieur mais vieux à l’inté-
rieur, parce que vos arguments ont le double de votre âge,
mais enfin ça c’est pas très grave, en l’occurrence moi, je pro-
tège tous les Français […]
EM : Non, vous n’avez pas… Le Vel d’Hiv, c’était il y a des an-
nées.

Dans un premier temps, le candidat retient un commentaire sur les


positions de son opposante concernant la Rafle du Vel d’Hiv : « Non,
vous n’avez pas… Le Vel d’Hiv, c’était il y a des années », puis revient
plus tard avec une critique directe sur cette prise de position :
(17) EM: Et vous avez insulté beaucoup de Françaises et Français
lorsque vous êtes revenue sur la rafle du Vel d’Hiv pour re-
venir justement sur les propos courageux qu’avait tenus
Jacques Chirac en 1995 et la responsabilité de l’État Français.

78
ARGUMENTATION, (PSEUDO-) DISCOURS RAPPORTÉS ET FIGURE DE PRÉTÉRITION.
LE CAS DU DÉBAT DE L’ENTRE-DEUX-TOURS DE MAI 2017

Parce que oui, ce sont bien des policiers français qui sont
alors allés chercher des Juifs. C’est la réalité et ça c’est un
crime contre l’humanité.
MLP : Monsieur Macron, on va pas avoir un débat juridique
honnêtement sur la rafle du Vel d’Hiv en l’occurrence.

Marine Le Pen annonce d’abord ne pas vouloir tenir un débat juri-


dique avec Emmanuel Macron sur la question de la responsabilité de
l’État Français : « Monsieur Macron, on va pas avoir un débat juridique
honnêtement sur la rafle du Vel d’Hiv en l’occurrence. » Or, quelques
échanges plus loin elle développe la « vision juridique » qu’ont certains
sur cette même responsabilité de l’État Français (« […] beaucoup de gens
ont eu une vision juridique qui est différente sur ce sujet et moi, je trouve
que tout ce qui vise à alléger la responsabilité du Régime de Vichy est à
mon sens, en l’occurrence, mal venu. »). Le fait d’annoncer qu’elle ne veut
pas tenir de débat juridique, alors qu’elle revient sur la question plus loin,
relève plutôt, selon nous, d’une stratégie d’« évitement », par laquelle la
candidate cherche à éluder une question dérangeante et à gagner du
temps avant de l’affronter.

4. Remarques finales
Après nous être intéressée à l’emploi des discours rapportés et
pseudo-discours rapportés, en tant qu’outils d’argumentation durant le
débat de l’entre-deux entre Emmanuel Macron et Marine Le Pen (2017),
nous sommes penchée sur la figure de prétérition. Les mêmes formes
dominantes de discours rapporté relevées dans les débats précédents, en
particulier ceux de 1995 et 2007, se retrouvent dans le débat Macron-Le
Pen. Cependant, la stratégie de disqualification de l'autre et de son dis-
cours s'y avère plus acerbe, en particulier de la part de Marine Le Pen
qui cherche systématiquement à confondre son adversaire en lui oppo-
sant ses propres paroles avant ou pendant le débat. Les dires de l’autre
sont également rejetés sans concession et qualifiés de « mensonges » ou
de « bêtises » à plusieurs reprises, en particulier de la part d’Emmanuel
Macron.

79
FRANÇOISE SULLET-NyLANDER

Davantage que dans les six autres débats, la « dévalorisation d’autrui


l’emporte sur la valorisation de soi » (KERBRAT-ORECCHIONI 2017, p. 213),
autant par les modes de discours rapportés que ceux des pseudo-discours
rapportés. La figure de prétérition fait également partie des stratégies ar-
gumentatives à l’œuvre : elle permet de mettre en avant les ressorts néga-
tifs de son adversaire tout en prétendant les passer sous silence et ainsi
de ménager son propre ethos de débatteur. Au-delà du caractère excep-
tionnellement polémique de cette dernière édition, nous avons voulu
montrer que les représentations du « dire » ou du « ne pas dire » partici-
pent pleinement aux stratégies argumentatives de disqualification de l’ad-
versaire face aux téléspectateurs et futurs électeurs.

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81
UMA ReFLeXÃO SObRe A VIOLêNCIA VeRbAL
COMO ReCURSO à CULpAbILIZAÇÃO NA
INTeRNeT

Helcira Lima

Mais comunicação significa em um primeiro


momento, acima de tudo, mais conflito.
Peter Sloterdijk

Introdução
Ao refletir a respeito da violência, Žižek (2014) menciona os cho-
ques entre culturas diferentes, os quais colaboraram para intensificar —
ou foram detonadores — de uma onda de ataques terroristas ao Oci-
dente nos últimos anos. O autor destaca em sua reflexão um evento
ocorrido na Dinamarca, em 2005, quando um jornal de pequena circu-
lação publicou uma caricatura de Maomé, suscitando uma polêmica pú-
blica e provocando uma enorme agitação no Oriente. Žižek ressalta que
a maior parte das pessoas que se sentiu ofendida e direcionou suas crí-
ticas ao jornal nem tinha visto as imagens. Elas se manifestaram se-
guindo uma onda de posicionamentos divergentes que acompanharam,
sem se aterem às imagens em si.
Por meio da leitura das notícias veiculadas sobre o evento, percebe-
mos que os ataques, inicialmente circunscritos ao ambiente virtual, to-
maram as ruas de diversas cidades espalhadas pelo mundo de modo a
colocar em cena emoções como repulsa, indignação, rancor e, sobre-
tudo, um ódio antes contido e, com isso, também o temor, o medo da
diferença. É importante pensar que essa onda de ódio, violência e medo
assola não somente os europeus e os muçulmanos, mas se trata de algo
que cada vez mais se espalha pelo mundo, sustentado pela mesma ques-
tão: a aversão e o medo da diferença. O medo gera uma resposta, em
geral, negativa. Ele pode nos conduzir à violência física, inclusive.
Mia Couto, em um texto proferido na Conferência do Estoril,
em 2011, afirma que, com todo o medo suscitado pela mídia e pelos

83
HELCIRA LIMA

governantes/governos, “O sentimento que se criou é o seguinte: a reali-


dade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível”.
As diferenças são, assim, ressaltadas e a comunhão, o viver junto, mesmo
a partir de posicionamentos diferentes, parece cada vez mais impossível.
Tudo que é diferente, passou a ser visto como errado, perigoso.
O texto de Mia Couto, escrito em 2001, e tomando a realidade afri-
cana como ponto de partida, parece ter sido escrito para retratar a rea-
lidade brasileira contemporânea. A divisão, a bipolarização que marca
as relações sociais se evidencia nas interações face a face nas ruas, em
bares e restaurantes, na academia, e chega, com força total, ao ambiente
virtual. Ou talvez tenha sido cultivada lá e tomado as ruas depois ...
O fato é que o ambiente virtual se tornou um ambiente profícuo
para observações sobre o modo com que os sujeitos lidam com a diver-
gência, como (não?) argumentam e, infelizmente, sobretudo, como ata-
cam o adversário. Como afirma Žižek (2014, p. 163):
Assim, talvez o fato de razão e raça terem a mesma raiz latina
(ratio) possa nos indicar algo: é a linguagem, e não o interesse
egoísta e primitivo, o primeiro e maior fator de divisão entre nós,
é devido à linguagem que nós e os nossos próximos podemos
viver “em mundos diferentes” mesmo quando moramos na
mesma rua. O que isto significa é que a violência verbal não é
uma distorção secundária, mas o último recurso de toda a vio-
lência especificamente humana.

A violência verbal e, no que nos interessa nos últimos tempos, a vio-


lência verbal no ambiente virtual, revela, portanto, que a “problematici-
dade”1, marcante das relações interpessoais, está em estado de alerta. A
linguagem, meio e lugar possibilitador da comunhão, do viver junto, é
também lugar privilegiado de conflitos e da violência. Segundo Meyer
(2007, p. 14-15), “o retórico estaria na consideração desse par [identi-
dade/diferença], uma vez que se trata do reconhecimento da diferença
1
Meyer (2008), define problematicidade como sendo aquilo que está em questão; o caráter pro-
blemático de colocar em questão, de forma possível ou evidente, coisas e respostas. Para o
autor, a ideia de problematologia está em Aristóteles, “Mais Aristote ne pouvait pas théoriser
le questionnement, car, depuis l'aube grecque, l'unité de la pensée ne se trouve pas dans la
question et sa réponse, mais dans l'affirmation, le jugement qui les englobe et qui, par un terme
unique (la proposition, le jugement), les indifférencie” (Meyer, 2008, p. 25).

84
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

e da aceitação do outro, para que se inicie a tratativa de negociação, isto


é, de diminuição das distâncias entre os sujeitos”. Tal reconhecimento e
aceitação da diferença parece não ter lugar em determinadas interações
virtuais, uma vez que o dissenso prevalece e, em algumas situações, o
objetivo é anular o outro. A linguagem conduz à comunhão, mas tam-
bém à polêmica e, com isso, à divisão e à polarização. Com todas as res-
salvas possíveis, acreditamos que o dissenso é saudável nas sociedades
democráticas, mas o problema é quando o dissenso, ao definir as inte-
rações, acaba suscitando uma onda de pura violência, por meio de in-
júrias e, com isso, de insultos e difamações. A argumentação acaba por
perder seus princípios e parece dar lugar a um “diálogo de surdos”, para
usar uma expressão de Marc Angenot (2008).
Segundo Meyer (2007, p. 26-27),
O insulto, por exemplo, é um procedimento retórico que tem por
função assinalar ao outro que o fosso que o separa do locutor é,
dali em diante, não-negociável. Isso explica sem dúvida por que
se utilizam nomes de animas com essa finalidade: eles acentuam
uma distância instransponível ou, de qualquer forma, que não
desejamos ser abolida. Mas a negociação habitual felizmente tem
outros objetivos.

Mesmo com um olhar, de certa forma, otimista em relação à retó-


rica, a posição do autor nos leva a pensar que a violência verbal seria
uma forma limítrofe de interagir com o outro, uma vez que ela anula a
possibilidade de negociação, a possibilidade de aproximação ou mesmo
de manutenção de uma certa distância. A violência verbal deseja silen-
ciar o outro, anular sua presença, sua voz. Evidentemente, mesmo em
situações comunicativas não marcadas pelo insulto, pode-se negar toda
e qualquer possibilidade de negociação. Isto ocorre com grupos nos
quais a oposição é fortemente marcada, como em grupos militantes li-
gados a partidos políticos, por exemplo.
Ao considerar, com Gnerre ( 1987, p. 7), “que as palavras não têm
realidade fora da produção linguística”, entendemos que um estudo de
interações virtuais (em redes sociais, blogs, sites, comentários de leito-
res, entre outros) pode nos dizer muito sobre como uma dada socie-
dade lida com o outro, com o diferente. Uma abordagem cuidadosa da

85
HELCIRA LIMA

materialidade linguístico-discursiva é determinante para tal reflexão,


porque ela pode apoiar a percepção sobre o modo e o que sustentaria,
em termos dóxicos, as posições dos sujeitos em interações marcadas
pela violência simbólica. As emoções (expressas e suscitadas), também
objetos de nosso interesse, poderiam indicar caminhos para essa leitura,
uma vez que, em interações polêmicas marcadas pela violência, seu
papel ficaria ainda mais evidenciado.
Conforme Amossy (2014), para o analista, as polêmicas revelam
muito sobre uma sociedade e uma época determinada. Como uma mo-
dalidade argumentativa, elas se caracterizam por um modo de gestão
conflitual que pressupõe uma dicotomização — uma forte oposição —;
a polarização ou divisão social — “nós” x “eles” —; a desqualificação do
adversário e, em alguns casos, o debate virulento que, assentado em
emoções, pode levar à violência verbal. Todavia, é preciso ressaltar que
nem toda polêmica conduz à violência verbal, assim como esta pode
fazer parte de interações não polêmicas. Violência e paixão não são, ne-
cessariamente, fundamentos da polêmica, embora marquem muitas in-
terações nesse sentido. Quando a violência verbal se faz presente, o tom
de agressividade vigora, há afrontas de todo gênero e, como consequên-
cia, ocorre, em muitos casos, a degradação da troca de modo a encerrar
a possibilidade de negociação ou agenciamento.2
Pretendemos, nessa esteira, refletir sobre a construção da culpa em
interações marcadas pela violência verbal, tendo como corpus comen-
tários do leitor redigidos no portal UOL sobre a notícia intitulada
“Morte de mulheres é ‘verdadeira derrota’para o Brasil, diz ONG Human
Rights Watch”. Nosso olhar será voltado para insulto como recurso à cul-
pabilização. São 26 comentários, sendo que apenas 2 deles foram res-
pondidos pelos sujeitos que escreveram ao portal de notícias. Apesar de
os sujeitos envolvidos na interação fazerem uso, em sua maioria, de
pseudônimos, a fim de proteger a face de todos eles, estes serão deno-
minados de locutor, seguido do número que indica a ordem dos comen-
tários (locutor 1, locutor 2 e, assim por diante). Além disso, os textos
serão retomados e transcritos em sua forma original.
2
Embora concordemos com a definição de retórica proposta por Meyer, refletindo sobre o
termo “négociation” (em português “negociação”) e a rede sígnica que este evoca, ele não nos
parece, no momento, o mais adequado. Talvez, o termo “agenciamento” seja mais apropriado.

86
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

Como salienta Mendonça (2016, p. 277),


[...] a natureza dos laços sociais, as formas de expressão, as rotas
seguidas pelos discursos, a arquitetura de sua organização, os re-
gimes de visibilidade e mesmo as fronteiras entre público e pri-
vado são singulares em práticas on-line. Isso não significa que a
internet cria um mundo inteiramente distinto. No entanto, há es-
pecificidades que devem ser levadas em consideração para que se
compreenda a deliberação on-line.

Em consonância com as palavras do autor, acreditamos que as inte-


rações virtuais possuem características próprias que devem ser consi-
deradas na leitura a ser realizada neste artigo. A internet possibilitou
que os sujeitos possam interagir no espaço público (virtual) com uma
liberdade não antes experimentada em interações face a face. Por meio
de uma máscara protetora de sua identidade, eles colocam em cena po-
sicionamentos e, com isso, valores antes guardados a sete chaves. Dessa
maneira, essa suposta falta de censura abre espaço para modos de agir
socialmente não antes tão escancarados. O caráter democrático da in-
ternet deve ser considerado também, uma vez que ela dá voz a diversas
categorias de silenciados socialmente. Assim, ela se torna um terreno
fértil para observação de diversos fenômenos como a polêmica, a vio-
lência verbal e os insultos, por exemplo.

Violência verbal: injúria e insulto

L’insulte n’est pas un mot de la langue,


mais un mot du discours.
Laurence Rosier (2006)

Como destaca Amossy (2014, p. 177), amparada em Garand, a po-


lêmica não é necessariamente marcada pela violência, mas sim pelo con-
flitual. Ela constitui um enfrentamento, uma forte oposição. Desse
modo, a autora afirma que a polêmica é uma modalidade argumentativa,
enquanto que a violência verbal seria um tipo de registro discursivo,
que, assim como o pathos, confere mais força à polêmica. Isto porque

87
HELCIRA LIMA

manifesta e intensifica a dicotomização, a polarização e o descrédito.


Amossy (2014, p. 177-180) elenca sete marcas da violência verbal: 1)
Uma forte pressão ou coerção é exercida para impedir o outro de se ex-
primir e de expor livremente o seu ponto de vista; 2) o ponto de vista
apresentado é totalmente desconsiderado ou ridicularizado; 3) o pole-
mista ataca a própria pessoa do oponente; 4) o ponto de vista, entidade
ou a pessoa que o incarna são comparados ao mal absoluto, entregando-
o à execração pública; 5) a violência está frequentemente ligada ao pathos;
6) o polemista faz uso de insultos contra seu adversário; 7) o polemista
incita a violência contra os outros3. Nesse caso, trata-se de, além do con-
fronto e de posições antitéticas, de um direcionamento ao ataque, como
no caso das trocas a serem destacadas nesse artigo.4
As pesquisas contemporâneas, como bem sinaliza Amossy (2014)5,
acreditam que a violência verbal não é restrita ao ambiente virtual, mas
ocorre em outras formas de interação. Além disso, o conflito não é visto
como sendo fruto exclusivo de uma interação na internet, mas como es-
tando relacionado a uma contexto maior: político, cultural, religioso.
“Nessa perspectiva, as discussões inflamadas fazem parte de rotinas in-
teracionais — sejam elas não convencionais ou irreverentes”. (Amossy,
2014, p. 183)6 Nesse mesmo sentido, Rosier (2006) afirma que o insulto
sempre estará presente nas interações cotidianas, porque a violência ver-
bal faz parte da linguagem e de seus usos. Ela se modifica tendo em vista
questões jurídicas e geográficas.
Ainda com Rosier (2006, p. 2), “dos dicionários aos grandes jornais
cotidianos, dos blogs aos vestiários esportivos, das conversações banais
3
Nossa tradução do original em francês: “(1) une forte pression ou une coercition est exercée
pour empêcher l’autre de s’exprimer et d’exposer librement son point de vue (...); (2) Le point
de vue présenté est totalement déconsidéré, ou ridicularisé (...); (3) Le polémiste ataque la per-
sonne même de l’Opposant (...); (4) Le point de vue, l’entité ou la personne qui l’incarnent sont
assimiles au Mal absolu, le livrant à l’exécration publique (...); (5) La violence est solvente liée
au pathos (...); (6) Le polémiste use d’insultes contre son adversaire (...); (7) Le polémiste incite
à la violence contre autri (...)”.
4
A posição da autora em relação à polêmica é muito criticada e muitos consideram problemá-
tico associá-la à argumentação. Isto porque esta conduziria à deteriorização ou ao fim do de-
bate e, portanto, seria nociva ao funcionamento da democracia.
5
A autora cita diversas pesquisas nesse sentido, as quais podem ser encontradas na bibliografia
relativa à sua obra Apologie de la polemique (2014).
6
Nossa tradução dom original em francês: “Dans cette perspective, les flammes font partie de
routines interactionneles – fussent-elles non conventionnelles et irrévérencieuses”.

88
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

às trocas mais formais, o insulto faz parte integrante de nossas práticas


sociais e de nossos rituais conversacionais”.7 Não se trata de algo novo,
mas sim de um tema estudado há bastante tempo, que, na atualidade,
ganha destaque talvez por se tornar mais evidente nas diversas formas
de interação. Como metáfora das relações sociais, o insulto pode nos
ajudar, por meio do apoio de um estudo sobre o papel das emoções, a
melhor compreender como os sujeitos interagem em sociedade e em
que valores se sustentam e por que.
De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss8, os itens lexicais
injúria e insulto são definidos do seguinte modo:

Injúria
Substantivo feminino.
1. Ato ou efeito de injuriar.
2. Injustiça, aquilo que é injusto; tudo o que é contrário ao direito.
3. Dito ou ato insultuoso, ofensivo.
4. Ato ou efeito de danificar; dano.
5. Traumatismo, ger. provocado por agente externo; lesão [...]
6. Jur. ilícito penal praticado por quem ofende a honra e dignidade de outrem.

Insulto
Substantivo masculino.
1. Palavra, atitude ou gesto que tem o poder de atingir a dignidade ou a honra
de alguém.
2. Falta de respeito, desprezo, por outro ou por suas crenças.
3. Ação ou resultado dela que deixa transparecer aversão ou menosprezo pelos
valores, pela capacidade, inteligência ou direito dos demais.
4. Med. ataque, acometimento súbito.

Como se pode observar das definições do dicionário consultado, o


insulto pode fazer parte da injúria que parece se tratar de uma forma
mais ampla de violência verbal. Rosier (2006), nessa direção, tomando
as considerações de Austin sobre os verbos performativos como apoio,
afirma que o insulto é uma forma tipicamente linguística de injúria, o
qual sempre se relaciona a uma agressão verbal, ao lado de outras formas
de injúrias e ultrajes. A autora ressalta que o insultante pode fazer uso
7
Nossa tradução do original em francês: “Des dictionnaires aux grands quotidiens, des blogues
aux vestiaires sportifs, des conversations banales aux échanges plus formalisés, l’insulte fait
partie intégrante de nos pratiques sociales et de nos rituels conversationnels.”
8
https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#1. Acesso em 20 de maio de 2018.

89
HELCIRA LIMA

do léxico da língua, mas também fazer uso de neologismos, como se ob-


serva nos seguintes fragmentos da interação estabelecida na seção Co-
mentários em destaque:
Locutor 2) Sou absolutamente a favor de aumentar as penas para
qualquer tipo de homicídio. Não entendo a diferença
de se matar um homem ou uma mulher. Se fosse para
haver agravante este deveria ser para crimes contra as
crianças. E também não entendo a lógica esquerdista
que se diz indignada com o tratamento dado aos pre-
sos, que vira e mexe quer repensar as penas para os
crimes, inclusive homicídios, não quer a punição de
menores infratores por que não acha que os crimino-
sos são reeducados no cárcere, mas sim estimulados
a praticar mais crimes ainda, porém, se o crime é con-
tra a mulher, acham que agravar a pena, apenas nestes
casos, é bom. É muita cafagestagem desse povo.
Locutor 3) (Resposta 1 ao Locutor 2): Estou de acordo. Vidas de
homens e mulheres têm valores idênticos. O combate
ao homicídio deve abraçar TODA a população, e não
apenas a metade. Infelizmente está na moda dividir os
brasileiros e criar discórdias entre homens e mulheres,
ricos e pobres, coxinhas e mortadelas, pretos e bran-
cos, pobres e ricos, “companheiros” e “outros”, quando
o o mais importante é a UNIãO.
Locutor 16) Feminicídio é invenção de quem pensa que homicí-
dio é matar “hômi”.

O locutor 2 faz uso da modalidade epistêmica para marcar, de modo


enfático (“sou absolutamente a favor”), sua opinião sobre a criminalização
e o aumento da pena para casos de feminicídio. Ele deixa implícita uma
relação de contradição na elipse do operador argumentativo “mas” que
introduz o enunciado seguinte, de teor refutativo. Neste enunciado, per-
cebemos que a suposta ignorância em relação à diferença entre a morte
de homens e mulheres traduz um desejo de silenciar a necessidade da
promulgação da lei e de medidas mais rígidas no combate à violência de
gênero no Brasil. Na continuidade, o locutor apoia sua argumentação em
um valor sacralizado na cultura brasileira referente às crianças para tor-

90
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

nar ainda mais absurdo o “privilégio” conferido às mulheres. Trata-se de


uma forma de reductio ad absurdum, uma vez que a questão é retomada
para ser reduzida e deslocada de seu sentido original a fim de ser ridicu-
larizada. A polêmica existente em torno do caráter punitivo da lei, ence-
nada no meio jurídico e social, é retomada no enunciado seguinte,
momento em que, ao fazer uso novamente de um argumento que distorce
o foco da questão em jogo, o locutor coloca em cena uma discussão sobre
a maioridade penal e também sobre os problemas relativos ao sistema
carcerário. Dessa maneira, por meio do argumento tu quoque, antecipa-
se, voltando para o outro a acusação que poderia vir a ser apresentada
contra ele. Se o locutor 3 poderia ser acusado de radical, defensor de uma
punibilidade excessiva, o outro (seu oponente) também poderá sê-lo,
caso defenda a lei em destaque. Visa-se, assim, à desconstrução da face
dos defensores da Lei do feminicídio, colocando em xeque os valores nos
quais estes se apoiam. Todos os recursos discursivos, como se pode notar
na seleção lexical para insultar: “lógica esquerdista” e “cafajestagem” —
convocam os holofotes para a esquerda, na pele do PT.
Na voz do locutor 3, os termos insultantes “coxinhas” e “mortadelas”
usados para designar direitistas e esquerdistas no Brasil, transforma-
ram-se em uma forma de provocar, de demonstrar a indignação de gru-
pos insatisfeitos com políticas alinhadas à ideologia de direita e de
esquerda. Tais gírias tomaram a cena não somente de passeatas, mani-
festações virtuais, mas também das outras formas de interação que che-
gam à violência verbal, no cotidiano do brasileiro — desde de brigas de
trânsito até disputas públicas como votações na Câmara dos Deputados
e no Senado. Assim como qualquer insulto, estes arranham a face do
opositor, visando a colocá-lo em posição de inferioridade. Trata-se de
um argumento ad hominem muito criticado pelas correntes mais nor-
mativistas da argumentação, mas bastante eficaz em um contexto de dis-
puta sustentada na violência verbal. No insulto, o locutor faz uma
clivagem de modo a marcar dois campos opostos — um ao qual se ali-
nha e outro no qual coloca seu opositor — e a colocar o outro em uma
posição de inferioridade. Como afirma Žižek (2014, p. 63),
(...) quando os trabalhadores protestam contra sua exploração,
não estão protestando contra uma simples realidade, mas contra

91
HELCIRA LIMA

uma experiência de sua situação real que ganha sentido através


da linguagem. A realidade em si própria, em sua estúpida exis-
tência, nunca é intolerável: é a linguagem (sua simbolização) que
a torna intolerável.

Desse modo, ao gritar “coxinha” ou “mortadela” o sujeito está gri-


tando contra algo maior que aquele interlocutor imediato em si. Ele grita
contra um sistema de valores que sustenta as posições em choque e o
uso violento da língua tanto sinaliza tal choque quanto colabora para
acirrar a bipolarização. O conflito não se deve, necessariamente, à inte-
ração virtual, mas se relaciona a um contexto social, político, religioso
e econômico. Nesse contexto, o que está em jogo, na verdade, seria a re-
pulsa, o ódio à figura emblemática do Partido dos Trabalhadores (PT),
ao ex-presidente Lula, e também à ex-presidente Dilma Rousseff. Com
isso, a Lei do feminicídio, tendo sido sancionada no governo de Dilma
Rousseff, uma mulher de esquerda que apoiou a luta em prol do fim da
violência de gênero, por meio de projetos de leis e leis sancionadas, re-
presentaria uma afronta tanto ao pensamento patriarcal quanto a um
pensamento de direita que enxerga toda e qualquer ação de esquerda
como sendo populista, eleitoreira e, portanto, abominável. É interessante
observar que, embora a bipolarização se evidencie na posição do locutor,
ele fala em união e acusa a lei de ser responsável por dividir homens e
mulheres.
Evidentemente, não podemos deixar de salientar que tal posição se
sustenta em uma doxa patriarcal, como afirmamos. Isto porque há uma
expectativa de que as mulheres colaborem para manter o status quo, de-
finidor da desigualdade na relação entre elas e os homens. O locutor se
vale, assim, de um argumento falacioso, uma vez que defende a união para
a manutenção da desigualdade. Como afirmam Teles e Melo (2002, p. 19),
A prática da violência doméstica e sexual emerge nas situações
em que uma ou ambas as partes envolvidas em um relaciona-
mento não ‘cumprem’ os papeis e funções de gênero imaginadas
como ‘naturais’ pelo parceiro. Não se comportam, portanto, de
acordo com as expectativas e investimentos do parceiro, ou qual-
quer outro ator envolvido na relação.

92
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

No que tange à violência doméstica, o feminicídio ocorre, assim,


justamente quando seu agente acredita não existir mais possibilidade de
controle sobre a mulher, quando esta parece não mais aceitar a diferença
naturalizada. A igualdade, nesse caso, tão almejada pelos movimentos
dirigidos à erradicação da violência de gênero, aparece aqui como re-
curso para amparar a não penalização dos crimes de feminicídio. Toda-
via, não se fala em igualdade de direitos verdadeiramente. O locutor
retoma, ainda, uma visão romântica do Brasil e do brasileiro como
sendo cordial, um povo unido em termos raciais, políticos, de gênero e
classe social (“Infelizmente está na moda dividir os brasileiros e criar
discórdias entre homens e mulheres, ricos e pobres, coxinhas e morta-
delas, pretos e brancos, pobres e ricos, ‘companheiros’e ‘outros’”), am-
parado na ideia de uma suposta harmonia social. A culpa da desunião
seria, assim, do PT e de todos os seus aliados e simpatizantes que plan-
taram, com as mudanças propostas, a discórdia, a desunião.
O outro fragmento em destaque, retoma um post redigido por um
conhecido e renomado jornalista brasileiro, em seu twitter, para se re-
ferir à Lei do feminicídio9. Trata-se, assim, de uma retomada própria ao
discurso relatado em estilo direto, que, nesse caso, funciona como ar-
gumento de autoridade. Por meio de uma voz legitimada socialmente,
o locutor 16 pode melhor insultar seu interlocutor que, nesse caso, é,
além da ONG e da autora da notícia, os petistas e simpatizantes que
apoiaram e apoiam a mudança na legislação penal. O enunciado coloca
em cena uma imagem dos “mortadelas” como sendo pouco ou nada in-
teligentes (e mesmo “burros”). Isto porque circula no Brasil um imagi-
nário de que, por não fazerem um uso da norma culta “comme il faut”,
tanto Lula quanto Dilma seriam incapazes de dirigir uma nação10. Desse
modo, implicitamente, a incapacidade da esquerda encarnada, especial-
mente, nessas duas figuras, é evidenciada. A esquerda é incapaz, assim
como a lei promulgada por ela, que, evidentemente, só pode ser atacada
já que visa, além da erradicação da violência, a acabar com a condição
9
Em outro artigo, publicado no volume 8, número 1, da revista Rétor, discorremos sobre a in-
teração estabelecida na rede social twitter desencadeada a partir da afirmação do jornalista.
10
Como linguistas, não podemos deixar de destacar que tal visão se sustenta em uma concepção
de linguagem como representação do pensamento, ancorada em uma base cartesiana, e já ultra-
passada pelos estudos contemporâneos, especialmente, por aqueles alinhados à virada linguística.

93
HELCIRA LIMA

de subalternidade das mulheres. O enunciado traz à cena também uma


memória discursiva sobre proferimentos feitos pela ex-presidente Dilma
Rousseff, os quais foram divulgados e criticados, por meio de comentá-
rios e memes que circularam amplamente na internet.

Culpabilização, insulto e silenciamento


O insulto, dessa maneira, funciona argumentativamente como
forma de culpabilização das mulheres, uma vez que as respostas ao texto
da jornalista reativam a polêmica pública desencadeada pela promulga-
ção da Lei do feminícido. O próprio título da notícia sinaliza isto, uma
vez que diz respeito a resultados de pesquisas apresentadas por uma
ONG acerca do aumento da violência de gênero no Brasil. Um dos pes-
quisadores citados no texto afirma que, embora as leis Maria da Penha
e do Feminicídio sejam importantes no combate à violência, elas ainda
“carecem de implementação ou de efetividade na aplicação”. Em seus
comentários, os locutores interagem diretamente com o texto e também
entre si e, com isso, temos níveis enunciativos distintos. Amparados por
pseudônimos, os avatares sentem-se mais livres para se manifestar
acerca de qualquer assunto, respondendo a polêmicas públicas, mas
também reacendendo-as. Nessa interação, no lugar de se aterem ao con-
teúdo da notícia em si, como já observamos em enunciados analisados,
os locutores reafirmam uma doxa vigente — de que, em casos de vio-
lência, a culpa é sempre da mulher, como se observa em:
locutor 6) Mais uma "reportagem" que tenta, de novo, convencer
a todos de que a vida da mulher é mais valiosa que a
do homem. NãO É. A lei maria da penha é uma im-
becilidade, por isso não produziu qualquer efeito prá-
tico. Nem poderia. A violência contra a mulher só cairá
quando o comportamento DA MULHER mudar. O
bem estar da mulher é problema dela, não do homem
ou do Estado. Esse sistema de privilégios às mulheres
só serve para dividir o povo.
locutor 8) Faz uma coisinha, abra um abrigo na sua casa, ou tire
do seu bolso quanto voce achar que essas ongs mere-
cem e banque voce. Ela quer que o governo tire é do

94
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

meu dinheiro para bancar suas politicas falidas. A mu-


lher pode trabalhar e pode doar e investir o quanto ela
quiser e onde quiser.
locutor 14) Vai implementar com que dinheiro? Parece que o país
quebrou. Por que nao despejam mais dinheiro aqui
como fizeram em outros paises? Parece que as coisas
estao meio complicadas por ai tb nao é mesmo? Mas
temos tantas mulheres que se juntaram a força de tra-
balho, deveriamos estar mais ricos com seus diplomas
em psicologia e estudos de generos como dessa se-
nhora. Pois é.

Como se nota, as mulheres são culpabilizadas tanto pela violência


sofrida por elas, quanto pela suposta desunião provocada pela promul-
gação da lei. Na fala do locutor 6, observa-se uma forma expressão de
emoção por meio do recurso à caixa alta em “NãO É “e “DA MULHER”.
O sujeito se mostra indignado diante de, em sua visão, uma lei injusta
que privilegia as mulheres. O refutativo comentário coloca em cena a
oposição de duas vozes antagônicas por meio de um conector “mas” im-
plícito na estrutura: “(...) tenta convencer a todos de que a vida da mu-
lher é mais valiosa do que a do homem (mas) NãO É (...)”. O enunciado
sinaliza, ainda, para a inferioridade das mulheres, para sua falta de valor.
Além dessa estrutura polifônica, o uso das aspas no termo “repor-
tagem” sinaliza a ironia, assim como a marca de pressuposição em “mais
uma vez” e “de novo”. Tais elementos, associados a uma seleção lexical
(“imbecilidade”, “dividir”, “privilégios”) que visa não somente à crítica
ao conteúdo do texto, mas também à desconstrução da Lei do feminicí-
dio, colaboram para o destaque ao pathos de indignação. É interessante
pensar nesse percurso que a indignação é uma emoção, assim como as
outras, sustentada em valores, em julgamentos morais. Portanto, assen-
tada na doxa. Ela não é impessoal, mas ao contrário, dirige-se a algo ou
alguém com o qual se estabelece uma relação de oposição. Ela envolve
a imputação da culpa e pode levar à violência verbal, como no momento
em que o sujeito faz uso do insulto “imbecilidade” ao se referir à Lei
Maria da Penha.
Em sua marcada oposição às políticas públicas direcionadas a erra-
dicar a violência de gênero no Brasil, o locutor resgata, assim, uma voz

95
HELCIRA LIMA

corrente em nossa sociedade sobre a bipolarização supostamente deto-


nada pelas ideias marxistas do PT. A modalidade do “saber” se evidencia
na insistência no verbo “ser” no presente do indicativo (“é uma imbeci-
lidade”; “não é”; “o bem estar da mulher é problema dela”). Além disso,
o uso do verbo “tentar” assim como a forma verbal no futuro do preté-
rito (“poderia”), que expressa algo que era para ocorrer no futuro, mas
depende de algum acontecimento passado, colabora com a desconstru-
ção da imagem da reportagem assim como da lei. Desse modo, o aspecto
durativo do verbo “poderia” sinaliza tal desconstrução, o que se con-
firma com a negação ao verbo “produzir” em “não produziu qualquer
efeito prático”.
Ao deixar entrever a fonte de seu saber, de suas crenças e de seus
valores morais, o falante se posiciona diante de seu enunciado. Para falar
com Fiorin (2008, p. 131), a aspectualização caracteriza tipos passionais.
Nesse caso em análise, é possível perceber, além de um ethos indignado,
uma paixão de duratividade como o ressentimento. A seleção lexical
operada (“a lei é uma imbecilidade”; “privilégios”); as marcas de pres-
suposição, como no verbo “mudar”, em “mais uma vez”, “de novo” e o
uso do operador argumentativo “só” sinalizam um ethos de ressentido.
O ressentimento é uma emoção que, assim como a vergonha, deriva do
incômodo do sujeito quanto a uma suposta inferioridade em relação a
um outro. O ressentimento é uma reação a um sofrimento o que pres-
supõe uma frustração. Nele há o desejo de possuir o que é do outro e,
em uma atitude de impotência diante da suposta impossibilidade de rea-
lização de seu desejo, o sujeito sente uma inveja maliciosa. Na verdade,
no caso em tela, o locutor deixa entrever em sua voz o desejo de manu-
tenção de um sistema de privilégios que sustenta a crítica a uma ideo-
logia de esquerda que tem como meta a igualdade social.
Nos dois outros fragmentos em destaque, os locutores 8 e 14, na re-
futação às informações apresentadas pelo texto, amparam-se em valores
liberais, bases do capitalismo moderno, o qual pressupõe, entre outros,
igualdade e meritocracia. Os sujeitos fazem uso das demandas feminis-
tas relativas à igualdade de direito entre homens e mulheres e as subverte
ao propor que, com mais trabalho, as mulheres podem mudar sua rea-
lidade. O uso do diminutivo “coisinha”, que pode ser até mesmo consi-
derado um termo que expressa uma emoção positiva em determinados

96
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

contextos, aparece aqui como um insulto, que reafirma a subalternidade


feminina ao lado da ironia relativa ao espírito acolhedor das mulheres
(“abra um abrigo na sua casa, ou tire do seu bolso quanto voce achar
que essas ongs merecem...”). Ademais, o enunciado é encerrado por um
violento “banque voce”.
Saffioti (2015, p. 121), a respeito da relação entre gênero e poder,
afirma o seguinte:
Empoderar-se equivale, num nível bem expressivo do combate,
a possuir alternativa(s), sempre na condição de categoria social.
O empoderamento individual acaba transformando as empode-
radas em mulheres-álibi, o que joga água no moinho do (neo)li-
beralismo: se a maioria das mulheres não conseguiu uma situação
proeminente, a responsabilidade é delas, porquanto são pouco
inteligentes, não lutaram suficientemente, não se dispuseram a
suportar os sacrifícios que a ascensão social impõe, num mundo
a elas hostil.

Como se vê, essa ideia perpassa a posição de ambos os locutores. A


partir de um argumento falacioso, eles imputam a culpa às mulheres por
sua condição e por sua maior suscetibilidade à violência, além de tenta-
rem, também, silenciar as estatísticas que atestam a necessidade das po-
líticas públicas e das exigências atendidas a partir da mobilização dos
movimentos feministas. O silenciamento é uma importante categoria a
ser considerada neste movimento de leitura, pois ele, nesse caso, para
falar com Orlandi (2010), além de ser constitutivo, é revelador de uma
interdição, de uma censura.
Na enunciação seguinte, o locutor 14, valendo-se de perguntas retó-
ricas, também faz uso da ironia para desconstruir a face não da lei ou do
texto, mas das mulheres novamente que seriam as culpadas por todas essas
mudanças pelas quais a sociedade brasileira vem passando. O operador
argumentativo “mas” refuta os enunciados anteriores e uma voz corrente
de que as mulheres não representam a força de trabalho necessária ao de-
senvolvimento econômico do país. Tal item lexical introduz o argumento
mais forte que se refere à crítica às diplomadas mulheres que estudam psi-
cologia e gênero social, mas nada fazem para modificar a realidade brasi-
leira. É possível verificar um certo ressentimento na atitude crítica do
locutor, que parece se sentir incomodado com “seus diplomas”.

97
HELCIRA LIMA

Ao discorrer sobre a definição de violência, Safiotti (2015, p. 18)


destaca que
As pessoas habituaram-se tanto com atos violentos que quando
alguém é assaltado e tem seu dinheiro e seus documentos furta-
dos, dá-se graças a Deus pelo fato de a cidadã ou o cidadão ter
saído ilesa(o) da ocorrência. Assim o entendimento popular da
violência apoia-se num conceito como o verdadeiro e único.
Trata-se da violência como ruptura de qualquer forma de inte-
gridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, inte-
gridade sexual, integridade moral. Observa-se que apenas a
psíquica e a moral situam-se fora do palpável.

A afirmação da autora ampara a leitura de que os comentários dos


leitores, em sua maioria, consistem em manifestações violentas contra
as mulheres, as quais, no plano simbólico, culpabilizam-nas não apenas
pela violência sofrida por elas, mas também pela suposta desunião entre
brasileiros e brasileiras, sem contar no ataque aos simpatizantes do PT
e aos dois ex-presidentes do Brasil. Essa forma de violência, que se evi-
dencia linguisticamente sob a forma de insultos, mas também de outros
recursos, visa justamente atingir a moral de seu alvo, de modo a rebaixá-
lo e a desacreditá-lo. O adversário é visto como a encarnação de todo
mal e, no caso do PT e dos estudos sobre gênero e psicologia, como por-
tadores de uma ideologia ameaçadora. Os insultos funcionam, desse
modo, como recurso para tirar a credibilidade do tema abordado, para
descredibilizar o discurso.

à guisa de conclusão
Na voz dos avatares, os conhecidos estereótipos mulher-vítima e
mulher-culpada são reativados de modo a marcar as duas posições em
choque: apoiadores das políticas públicas que visam à proteção e à er-
radicação da violência de gênero e os críticos a tais mudanças. A des-
construção da imagem dos idealizadores da lei está assentada no ataque
às mulheres, reveladora de uma posição sexista. No lugar de vítima da
violência, a mulher é apresentada como culpada. A lei, no lugar de con-
sistir em uma forma de combate à violência de gênero no Brasil, é apre-
sentada como um privilégio.

98
UMA REFLEXãO SOBRE A VIOLêNCIA VERBAL COMO RECURSO À CULPABILIZAÇãO NA INTERNET

Os posicionamentos, que primaram pela desqualificação do outro,


por meio, em especial, do argumento ad hominem, não visaram ao cerne
da questão, mas sim à imagem do outro; ao ataque à sua face. As emoções
expressas colaboraram para suscitar emoção no outro. Como reza o cate-
cismo retórico: “Mostre-se emocionado para emocionar mais!” Nesse
caso, a emoção suscitada seria a indignação, que ao lado da expressão do
ressentimento, indicariam caminhos para uma leitura sobre como a socie-
dade brasileira lida com esse tipo de polêmica e como os sujeitos se
movem a partir de valores machistas e preconceituosos, por meio da vio-
lência verbal. Pode-se afirmar, ainda, que, influenciados pela avalanche
de notícias, pelos conflitos presentes na sociedade brasileira, e, portanto,
amedrontados diante das mudanças sociais, os sujeitos reagiram por meio
da violência verbal. Em uma tentativa de manutenção de uma ordem so-
cial vigente, os sujeitos reagem violentamente por meio da linguagem.
Para concluir, é preciso atentar para estas interações e para as emo-
ções em jogo, pois, como afirma Mia Couto (2011), “há quem tenha
medo que o medo acabe”.

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99
HELCIRA LIMA

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TELES, M. A. DE A. & MELO, M. O que é violência contra a mulher. SP: Brasiliense,
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ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução: Miguel Serras Pereira. 1ª edição.
São Paulo: Boitempo, 2014.
A MISE EN SCÈNE ARGUMeNTATIVA De UM
DISCURSO De VICTOR HUGO: eSTUDO De CASO

Ida Lucia Machado

No interior de cada país está o seu destino


Saramago

Em primeiro lugar, cabe-nos esclarecer os pontos de vista teóricos


que adotamos em nossos escritos: enquanto analista do discurso, consi-
deramos que a disciplina em que nos inscrevemos não pode prescindir
das aquisições vindas da retórica-argumentativa, já que é pelo uso de cer-
tas palavras ou expressões ou pela própria organização de determinado
discurso que o locutor (no caso dos discursos orais) ou o escritor (no caso
dos discursos escritos) busca captar a adesão do público a quem se dirige:
seus ouvintes ou leitores.
Nesse domínio, a teoria Semiolinguística concebida por Charaudeau
(1983) tem sido um bom suporte para nossas investigações. Tal teoria car-
rega consigo conceitos linguageiros que exprimem/explicam as
interação/trocas/negociações entre os seres comunicantes. Mas, por vezes,
a ela acrescentamos dados vindos de outros pesquisadores tais como
Bakhtin (1970), Grácio (2016) ou Ducrot (1984), já que eles nos ajudam
a ampliar a visão que lançamos sobre determinados discursos.
Ao agir assim, não acreditamos estar indo contra o que preconiza
Charaudeau. Sua teoria é interativa e interdiscursiva e, nesse sentido
presta-se bem ao diálogo com outros conceitos, vindos de outros hori-
zontes. Aliás, é essa abertura do instrumental teórico charaudiano que nos
encanta, pois sufoca-nos tudo o que é dogmático e cristalizado.
Para escrever este artigo, cujo objetivo é mostrar a união que se pro-
cessa entre análise do discurso e argumentação, realizaremos um estudo
de caso envolvendo o discurso político. Para fugir um pouco dos discursos
contemporâneos nacionais, objetos de tantas pesquisas, fomos buscar um
discurso proferido por Victor Hugo, no século XIX, na França. Ressalta-
mos que Victor Hugo, sujeito-comunicante (ou ser empírico) era capaz

101
IDA LUCIA MACHADO

de assumir diferentes papéis na sociedade conturbada de sua época. O


escritor, dramaturgo e poeta francês dedicou-se tanto à escrita de peças
de teatro, poemas, ensaios e romances sociais (Notre-Dame de Paris, Les
Misérables, entre outros), como também foi um político bastante
atuante. Seguindo a análise do discurso semiolinguística, podemos dizer
que Hugo foi um indivíduo que assumiu diferentes papéis na vida social
e que, ao assumi-los, colocou em ação diferentes sujeitos de linguagem.
Hugo opôs-se ao golpe de Estado de Luís Napoleão (1851), que, ao
passar, em um curto período, de presidente eleito da França a seu Impe-
rador1 deu fim à Assembleia Nacional, ao sufrágio universal. Para coroar
essa “carreira”, adotou o nome Bonaparte (de seu tio). Hugo não lhe pou-
pou críticas e ataques em seus escritos e discursos: com isso foi condenado
ao exílio, mesmo sendo um artista e cidadão tão influente em seu país.
O discurso de Victor Hugo que aqui trazemos — e que foi por nós
traduzido — foi pronunciado antes desses acontecimentos, ou seja, antes
do golpe de Luís Napoleão., mais precisamente no dia 26 de maio de
1848. Hugo havia se candidatado a deputado nas eleições legislativas
complementares do mês de Junho, na França, e foi eleito com um hon-
roso sétimo lugar.
Para propor uma análise discursiva amparada na retórica-argumen-
tativa, o presente texto centrar-se-á nas estratégias de captação mobili-
zadas por Hugo no supracitado discurso. Em um primeiro segmento, nós
o mostraremos na íntegra, para que o leitor dele tome conhecimento glo-
bal. Em seguida, iremos analisá-lo dividindo-o em duas partes; para cada
uma delas, consagraremos um segmento. Neles, além de fazermos uma
abordagem descritiva das palavras de Hugo, daremos destaque às figuras
de retórica que se mostram mais proeminentes, bem como às estratégias
argumentativas adotadas pelo autor. Isso feito, apresentaremos nossas
conclusões a respeito do estilo de Hugo, ressaltando, em sua escrita, a di-
reção estratégica que ele deu aos seus ditos.
1
Ao escrever sobre tal acontecimento, Karl Marx ([1852]/2016) o classifica como “paródia do
império”. Marx retoma Hegel ao afirmar que a história se repete, “uma vez como tragédia, e
outra como farsa” (op. cit.). Lembremos que Napoleão Bonaparte, que havia sido um revolu-
cionário e havia lutado por um governo democrático na França, no 18 de Brumário, ao assumir
o poder de seu país, coroa-se como…imperador. Seu sobrinho, cinquenta anos depois, tomado
por um furor “golpista” – ainda que os tempos fossem outros – parodia de certo modo a ação
do tio.

102
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

1. Com a palavra: Victor Hugo


Transcrevemos, nesta seção, o discurso que agora nos interessa.
Como tantos outros, ele é detentor de uma argumentatividade que foi
elaborada pela orientação que o autor do discurso quis dar-lhe, segundo
Grácio (2016, p. 31). Nesse sentido, Hugo construiu enunciados orien-
tados para a finalidade de convencer e emocionar seu auditório. O dis-
curso é, assim, entremeado por diversos mecanismos que geram uma
influência discursiva, visando a preparar seu ouvinte a bem receber as
ideias que o orador tentará transmitir.
Segundo Grácio (op. cit.), essa argumentatividade não deve ser con-
fundida com a argumentação propriamente dita. Para que esta exista, é
preciso que haja uma oposição entre discursos ou seja, “é requerida a
presença de um discurso e de um contradiscurso numa situação de in-
teração entre, pelo menos, dois argumentadores” (GRÁCIO, 2016, p.31).
Ora, o discurso escrito por Victor Hugo faz apelo às emoções do
leitor e, para tanto, habilmente combina várias figuras e estratégias re-
tóricas. Tentaremos demonstrar tal fato nas próximas seções, logo após
a descrição que faremos dos ditos de Hugo, dividindo-os em duas partes.
Iremos examiná-los como um documento social e político, pertencente
a uma determinada época e civilização. Ao mesmo tempo, comentare-
mos sua argumentação propriamente dita.
Eis o discurso proferido por Hugo:
Caros concidadãos,
Estou aqui para responder ao apelo de sessenta mil eleitores que me
honraram, dando-me seus votos nas eleições do Sena. Aqui me
apresento e submeto-me à sua livre escolha.
Pediram-me para expressar o que penso, na situação política em
que nos encontramos agora. Eis o que penso:
Duas repúblicas são possíveis.
Uma derrubará a bandeira tricolor e a colocará embaixo da ban-
deira vermelha, ganhará muito dinheiro vendendo a coluna2, jogará
2
Provavelmente Hugo esteja aí se referindo à coluna da Bastilha, que representava a liberdade
do povo francês. Foi construída em Paris (entre 1835 e 1840) para comemorar a revolução de
1830, chamada de Trois Glorieuses.

103
IDA LUCIA MACHADO

por terra a estátua de Napoleão e levantará uma estátua para Marat,


destruirá o Instituto, a Escola Politécnica e a Legião de Honra, acres-
centará à augusta divisa Liberdade, Igualdade, Fraternidade uma
continuação sinistra: ...ou a Morte; provocará falências, arruinará
as riquezas mas sem enriquecer os pobres, abolirá o crédito, que é a
fortuna de todos, e o trabalho que é o pão de cada um, abolirá a pro-
priedade e a família, passeará pelas ruas com cabeças cortadas e es-
petadas em pedaços de pau, encherá as prisões pela suspeita e as
esvaziará pelo massacre, colocará a Europa em fogo e a civilização
em cinzas, fará da França a pátria das trevas, sufocará a liberdade,
reprimirá as artes, decapitará o pensamento, negará Deus: recolo-
cará em funcionamento as duas máquinas infernais que estão sem-
pre juntas, a prancha onde se deitam os que vão ser decapitados e a
lâmina da guilhotina; em uma só palavra, fará friamente o que os
homens de 93 fizeram com ardor e, depois do horror grandioso que
nossos pais viram, nos mostrará o monstruoso no pequeno.
A outra [república] será a santa comunhão de todos os franceses
desde agora, e de todos os povos um dia, no princípio democrático;
fundará uma liberdade sem usurpações e sem violências, uma
igualdade que admitirá o crescimento natural de cada um, uma
fraternidade, não a dos monges em um convento, mas a dos homens
livres; dará a todos a educação (o ensino) como o sol dá a luz, gra-
tuitamente; introduzirá a clemência na lei penal e a conciliação na
lei civil; multiplicará as estradas de ferro, reflorestará uma parte do
território, recuperará uma outra, multiplicará o valor da terra; par-
tirá do princípio de que todo homem começa pelo trabalho e acaba
pela propriedade, assegurará então essa propriedade como a repre-
sentação do trabalho bem feito, e o trabalho como elemento da pro-
priedade futura; [...] construirá o poder sobre a base da liberdade
[...]; subordinará a força à inteligência; dissolverá o motim e a
guerra, essas duas formas de barbárie; fará da ordem a lei dos ci-
dadãos, e da paz a lei das nações; viverá e resplandecerá; fará a
França crescer, [...], será, em uma palavra, o majestoso abraço do
gênero humano sob o olhar de Deus contente.
Dessas duas repúblicas, esta se chama civilização; aquela, terror.
Estou pronto a devotar minha vida para estabelecer uma e impedir
a outra.
(Victor Hugo, Actes et Paroles I, Avant l’exil, “Réunions électorales”, 1848/1849,
tradução nossa).

104
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

Hugo concebeu um discurso que, se observado pelo viés dos Modos


de Organização Discursivos (Charaudeau,1992, 2008), descreve atos
bárbaros tais como os cometidos durante a fase dita do Terror (1793-
1794)3, após a deflagração da Revolução Francesa4, e lembra suas con-
sequências, por meio de uma espécie de apelo exaltado dirigido à
memória coletiva do público.
No entanto, tal discurso deve também ser visto como um sinônimo
da vida cultural da época de Hugo, na qual os estudos da retórica clássica
faziam parte dos saberes ministrados a todos aqueles que tinham estudos.
Nas linhas por nós transcritas, o autor empírico mostra seu talento como
orador, mas também a astúcia de alguém que sabia escolher as palavras
e bem ordená-las, apoiando-se em todas as estratégias retóricas possíveis.
Observamos que nas seis primeiras linhas de seu discurso, ele já se
atribui uma credibilidade e uma legitimidade de palavra, ao lembrar que
só veio falar, naquele momento, “para responder ao apelo de sessenta
mil eleitores”.
Adotando um olhar discursivo, diremos que o direito à palavra que
foi dado a Hugo, após sua vitória, pode assim ser explicado:
[...] para que tal direito aconteça, é preciso que tanto os locutores
quanto os interlocutores [...] estejam em medida de se reconhe-
cerem como os reais parceiros de um ato de linguagem por eles
trocado (princípio da alteridade), que os propósitos que troquem
repousem sobre um saber comum (princípio da pertinência), que
seja reconhecido, que cada um deles [atores da troca comunica-
tiva] busque agir sobre o outro (princípio de influência) ao pro-
curar um equilíbrio entre as partes, de modo que a troca
comunicativa possa prosseguir (princípio de regulação). Todo ato
de comunicação deve levar em conta esses quatro princípios [...]
para que possa ser considerado válido. (CHARAUDEAU, 1995,
p. 20-21, tradução nossa.)
3
Esse período sucede a tomada da Bastilha em 1789 — um dos primeiros movimentos ligados
à Revolução Francesa e que marca o fim do Antigo Regime. Pode-se dizer que começa com a
captura e morte dos reis Luís XVI e Maria Antonieta. Sua principal figura foi, sem dúvida, Ro-
bespierre, que assumiu o governo da França. Milhares de franceses foram guilhotinados: bas-
tava que alguma acusação fosse feita contra eles — as evidências de eventuais crimes não eram
necessárias — para que fossem mortos.
4
O final da Revolução francesa chega com o golpe de Estado dado por Napoleão Bonaparte,
que se coroa imperador da França no 18 Brumário (9 de setembro) de 1799.

105
IDA LUCIA MACHADO

Hugo reconhece o público para quem dirige a palavra como seus in-
terlocutores. Logo, propõe uma troca interativa entre eles. No entanto,
como a forma de seu discurso é monologal (e não dialogal), deve-se notar
que a interação aí ocorre porque o orador se coloca como parceiro de
seus ouvintes. Tanto ele como os que o elegeram ambicionam uma repú-
blica digna. O discurso tem como tema a república e seus valores, no caso,
os maus e bons valores: é uma fala pertinente para aquele momento de
satisfação pela vitória do futuro deputado em face de seus eleitores. O
discurso de Hugo é um documento formado por enunciados que visam
estabelecer uma comunicação com seu público e, mais que isso, confirmar
a influência da ideologia do orador sobre seus ouvintes. É um discurso
cuidadoso, que passa em revista o que poderia acontecer em um mau go-
verno e o que poderá acontecer no governo do qual Hugo fará agora
parte. Assim, os princípios de regulação e influência estão ali inseridos.
Expliquemos a legitimidade e a credibilidade da palavra política hu-
goliana, sempre segundo Charaudeau (op.cit., p. 22): a primeira [legiti-
midade] “é externa ao sujeito falante, ela vem do estatuto mais ou menos
institucional previsto pelo contrato. É este que lhe dá o poder de dizer”.
Ora, Hugo foi eleito pelo sufrágio universal para o cargo de deputado
da república francesa: ele possui pois a legitimidade dessa instituição
que lhe dá agora, mais que nunca, o direito de representá-la pela fala.
Já a credibilidade está sujeita a avaliações. Para garantir seu bom
funcionamento, ela apela para estratégias discursivas que comprovem
que aquele que fala ou escreve domina um certo saber dizer, que vai
levar seu público a acreditar em si. Em suma, é o que Hugo buscou ao
compor o discurso que agora nos interessa: nele partilhou seus conhe-
cimentos — forneceu informações — e, ao mesmo tempo, procurou
confirmar que as crenças por ele professadas tinham seus adeptos: aque-
les que o elegeram e que ali foram escutá-lo com admiração, queremos
crer.
Hugo elabora a argumentação presente nesse discurso por meio de
um hábil jogo de contrastes, ao declarar que duas repúblicas são possí-
veis e que o povo é livre para escolher qual é a melhor. Afinal, como ele
mesmo diz, ele se submete à “livre escolha” desse povo.
O princípio de influência que citamos há pouco revela-se, em todo
o seu esplendor, na descrição que é feita do primeiro tipo de república:

106
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

vemos aí uma sucessão de fracassos e horrores que só podem levar à


desgraça coletiva. Já o segundo tipo de governo parece-nos a concreti-
zação de um belo ideal e mesmo do fruto de um sonho: uma utopia. De
todo modo, Hugo oferece-nos, em primeiro lugar, a descrição de uma
forma de governo que execra para melhor compará-la com aquela que
ele idealiza.
Vejamos no segmento seguinte como é descrito o primeiro tipo de
república.

2. O inferno na Terra
O ato de argumentar pode ser visto — e denominado — de modo
diferenciado, conforme seja feito oralmente ou por escrito (Grácio, 2016,
p. 36). Para o primeiro caso, utilizaremos o termo argumentação; para
o segundo, discurso argumentado.
Mas que termo usar no caso do discurso político de Hugo aqui apre-
sentado? Mesmo que tenha sido feito, pela primeira vez, para ser enun-
ciado oralmente, ele traz em si características de um discurso escrito,
coerente e bem organizado. Para agravar mais a situação, tal discurso
foi depois recolhido, juntamente com outros, e publicado em livro. Es-
tamos, pois, diante de um discurso oral ou escrito? Deveríamos consi-
derar que o discurso em tela pertence a um gênero escrito, mesmo se
tivesse sido escrito para ser falado diante de um público, na época de
sua redação? Busquemos algumas luzes em Bakhtin:
Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial
existente entre o gênero do discurso primário (simples) e o gênero
do discurso secundário (complexo). Os gêneros secundários do
discurso — o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso
ideológico, etc. — aparecem em circunstâncias de uma comunica-
ção cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, princi-
palmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o
processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e
transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies
que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal
espontânea. (BAKHTIN, 1984, p. 267, tradução e grifos nossos.)

107
IDA LUCIA MACHADO

Na citação acima, vemos que Bakhtin considera, de forma geral, os


discursos falados, oriundos das trocas comunicacionais entre indivíduos,
como pertencentes a um gênero primário. Já outros — e, entre eles, o dis-
curso ideológico, como é o caso desse discurso de Victor Hugo — são
enquadrados em um gênero mais complexo. Mas Bakhtin não afirma que
um gênero secundário seria exclusivamente escrito; ele sugere: princi-
palmente escrito. Nesse caso, poderíamos considerar que um discurso
feito para ser oral — como esse de Victor Hugo — não pertence, porém,
a um gênero simples, espontâneo: ele foi, sem dúvida, trabalhado inte-
riormente pelo escritor/homem político, antes se transformar em dis-
curso oral. Tomando as palavras de Bakhtin, concluiremos que, no
discurso em tela, houve a imbricação entre um gênero simples e um gê-
nero complexo. Isso se justifica, sobretudo se o discurso em questão foi
redigido para ser lido. No entanto, eis algo que não podemos afirmar com
certeza, pois tudo se passou há muito tempo.
Enfim, vejamos como, no discurso, é retratado o primeiro tipo de
governo. Como ele é descrito por meio de um longo parágrafo, iremos
recortá-lo e enquadrar cada parte para melhor direcionar o olhar que
lançaremos sobre certas argumentações e figuras de retórica, assim
como também para mostrar como as palavras de Hugo desvelam esse
indivíduo e refletem suas crenças e temores:
1. Uma [república] derrubará a bandeira tricolor e a colocará em-
baixo da bandeira vermelha...

Aí temos exposto um grande temor do sujeito-empírico Victor


Hugo: que o comunismo predominasse e ocupasse o governo francês.
Tal temor é testemunhado pelo emprego da metonímia: a bandeira tri-
color mencionada refere-se à bandeira azul, branca e vermelha da Re-
pública Francesa; já a bandeira vermelha aponta para o perigo do
comunismo. Apesar de muitas de suas ideias nos parecerem hoje vindas
de “partidos da esquerda”, Hugo não endossava tais partidos, pois era
um republicano ardoroso.
2. [essa república] ganhará muito dinheiro vendendo a coluna, jo-
gará por terra a estátua de Napoleão e levantará uma estátua
para Marat...

108
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

Note-se aí outras particularidades do cidadão Hugo. Ele respeitava


Napoleão Bonaparte, cujo governo seguiu leis que apontavam para a li-
berdade do povo. Hugo era também contra o derramamento inútil de
sangue; logo, não poderia apoiar a fase do Terror da Revolução Francesa
e alguns de seus membros ferozes e críticos, como Marat.
3. [essa república] destruirá o Instituto, a Escola Politécnica e a Le-
gião de honra, acrescentará a augusta divisa Liberdade, Igual-
dade, Fraternidade, uma continuação sinistra: ou a Morte...

Hugo prossegue o desfile de atos que poderiam acontecer se políti-


cos exaltados e vermelhos amparassem o governo. Ele prevê, se tal for o
caso, um grande retrocesso republicano, ao apontar para o fim de insti-
tuições acadêmicas democráticas. Novamente emprega uma figura de
retórica. A divisa da liberdade francesa “Liberdade, Igualdade e Frater-
nidade” será acrescida de um elemento terrível: “ou morte”. Em suas fu-
nestas previsões, ele parece assumir a figura de uma pítia grega a prever
a desgraça de um povo, no caso, vítima de suas escolhas políticas.
4. [essa república] provocará falências, arruinará as riquezas, mas
sem enriquecer os pobres, abolirá o crédito, que é a fortuna de
todos, e o trabalho que é o pão de cada um, abolirá a propriedade
e a família, passeará pelas ruas com cabeças cortadas e espetadas
em pedaços de pau, encherá as prisões pela suspeita e as esvaziará
pelo massacre, colocará a Europa em fogo e a civilização em cin-
zas, fará da França a pátria das trevas, sufocará a liberdade, re-
primirá as artes, decapitará o pensamento, negará Deus...

O orador Hugo continua seu crescendo de previsões funestas. Co-


loca em seus enunciados os verbos no futuro, o que indica uma grande
convicção de sua parte: ele acredita (ou quer fazer crer ao seu público
que acredita) que tudo o que prevê poderá realmente acontecer, se esse
mesmo povo não tomar cuidado em suas escolhas. Note-se que alguns
verbos utilizados já são dotados de grande força axiológica, tais como
provocar, arruinar, abolir, reprimir, decapitar e negar.

109
IDA LUCIA MACHADO

Note-se ainda em (4) o enunciado no qual o orador afirma que o povo


“passeará pelas ruas com cabeças cortadas e espetadas em pedaços de pau”,
evocando uma memória coletiva: a das horas sombrias do povo francês.
Mas Hugo sabe que é pouco restringir-se à França: daí ele salta para
a Europa, que já vê em meio ao fogo. O golpe final desse fragmento aparece
na repressão que prevê em relação à liberdade do homem, que se verá em
uma sociedade sem artes ou artistas e sem seus pensamentos criadores.
Finalmente, mesmo não sendo um católico ardoroso, Hugo acredita
em Deus5 e apela para esse argumento de autoridade: um governo de es-
querda não seria favorável às crenças religiosas. Um povo sem Deus seria
pois, a seu ver, um povo perdido.
5.[essa república] recolocará em funcionamento as duas máquinas
infernais que estão sempre juntas, a prancha onde se deitam os
que vão ser decapitados e a lâmina da guilhotina; em uma só pa-
lavra, fará friamente o que os homens de 93 fizeram com ardor,
e, depois do horror grandioso que nossos pais viram, nos mostrará
o monstruoso no pequeno.

Se, nos outros itens, a memória coletiva de uma grande desgraça e


chacina — o período do Terror — é sugerida, aqui ela se apresenta em
toda a sua glória. Note-se a presença de duas expressões que fazem com-
binar palavras contrárias (oximoros) que, acreditamos, tinham um
grande impacto discursivo e sobre as quais voltaremos a falar mais
adiante.
O que mais podemos dizer diante dessa sumária descrição que apre-
sentamos? Que, para destruir qualquer pretensão na qual o povo visasse
a um outro partido que ao republicano, Hugo usou e abusou da argu-
mentação pelo medo.
Os exemplos que Hugo utilizou, nesse sentido, segundo Braud
(2007, p. 266), poderiam ser vistos como verdadeiros casos de “mani-
pulação política, que, com frequência, criam ilusões a respeito do ver-
dadeiro lugar dessa emoção vergonhosa na vida pública.” Esse mesmo
teórico também alerta para o fato de que tal uso é “uma verdadeira ala-
vanca de mobilização política, largamente usada” (op.cit., trad. nossa).
5
Hugo era fascinado pelas ideias de Alain Kardec e pela doutrina espírita.

110
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

Apoiando-nos em Charaudeau (2008, p. 82), veremos que os atos


de linguagem que compõem a descrição do primeiro tipo de governo
contêm estratégias de desqualificação que foram utilizadas por meio
de diferentes procedimentos. Assim, o orador não hesita em fazer um
hábil jogo de palavras que atravessam o tempo e o espaço, ao atribuir à
“bandeira vermelha” e ao governo revolucionário, barbáries semelhan-
tes às que ocorreram na fase do Terror da Revolução. Assim agindo, ele
reaviva, mas também embaralha, a memória de seus ouvintes e coloca
tudo isso como algo possível no mundo em que vivem.
Seguindo seu estilo grandiloquente, que realizava com frequência
combinações de elementos insólitos, Hugo não economiza os oximoros,
figuras de linguagem da retórica clássica. Neles são associados em uma
única expressão palavras cujos sentidos não combinam entre si. No caso
do discurso em pauta, notamos nas últimas linhas do parágrafo que des-
creve o governo que deve ser temido pelos homens: “horror grandioso”
e “monstruoso no pequeno”. Outra figura de retórica que Hugo preza
muito é a repetição: assim, ele não poupa uma série de enunciados com
os verbos no futuro para indicar calamidades, enunciados esses que se
sucedem em um crescendo de calamidades que acaba com a guilhotina
a cortar furiosamente a cabeça de uns e outros.
Vejamos agora o parágrafo que retrata uma outra forma de governo:
a verdadeira república, ou seja, aquela que está de acordo com a ideolo-
gia do indivíduo político Victor Hugo.

3. Um paraíso na terra
Se, no parágrafo anterior, foram habilmente destacados pelo orador
os horrores de uma má escolha republicana, o segundo o contradiz do
começo ao fim.
De acordo com Grácio (2016, p. 32-33) “a argumentação está ligada
à confrontação de posições que mutuamente se avaliam e onde se veri-
fica a crítica do discurso de um pelo discurso de outro”. Seriam, então,
necessários dois sujeitos de linguagem a discutir e aqui, em uma visão
rápida, só temos um.

111
IDA LUCIA MACHADO

Porém, na verdade, o fato é que o locutor Hugo desdobra-se em


dois. No primeiro parágrafo, ele discursa de modo tão exaltado que dá
a impressão de ter sido incorporado por um enunciador não-X, não po-
sitivo. Já no segundo parágrafo, ele parece retomar seu fôlego e deixar
que outro enunciador — vamos chamá-lo de X — muito positivo, as-
suma a sua voz.
Estamos, pois, seguindo a teoria polifônica proposta por Ducrot
(1984), que, inspirado em Bakhtin, menciona que um mesmo enunciado
pode conter duas vozes discordantes: uma sustentada pelo locutor, res-
ponsável pelo enunciado, outra pelo enunciador que entra nesse enun-
ciado para se exprimir, mesmo que suas palavras não sejam abonadas
pelo locutor. De modo mais amplo, no discurso hugoliano em pauta,
enxergaremos um locutor que sustenta uma determinada opinião, mas,
deixa que nela se imiscua um enunciador com o qual não concorda, já
que ele sustenta opiniões diferentes da sua.
Em outros termos: para construir o primeiro parágrafo desse dis-
curso político, o locutor fez apelo a diversas vozes, contendo opiniões
contrárias às que ele defende, como indivíduo que segue uma determi-
nada ideologia. Após deixar a voz “dissonante” de não-X falar, no se-
gundo parágrafo, o locutor conclama a voz de X para se exprimir. Assim,
estamos aqui diante de duas vozes contrárias e, portanto, em um am-
biente polifônico.
Vejamos o que é dito no segundo parágrafo, de forma mais detalhada:
6. A outra [república] será a santa comunhão de todos os franceses
desde agora, e de todos os povos um dia, no princípio democrá-
tico...

Logo no início, Hugo (ou o locutor X) mostra que a república que


endossa não negará a Deus, como a outra: palavras que levam a um ri-
tual religioso surgem, pois essa república será o palco de uma “santa co-
munhão”. E serão os franceses que darão esse exemplo que, por sua
grandeza, será imitado por todos os povos.
Observamos em (6), ainda que isso apareça de forma amena, um
desejo (bem francês, aliás) de impor a superioridade da França sobre o
mundo. Podemos ver esse desejo sob a forma de uma ascendência ou
do exercício de uma forte influência:

112
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

A ascendência é uma forma de influência que não se funda unica-


mente em critérios políticos. [...] Ela é mais forte que isso. O ascen-
dente situa-se em um terreno fortemente psicológico. Ele supõe
que exista, naquele que se submete à sua influência, o reconheci-
mento secreto de uma forma de superioridade e de uma dimensão
de admiração afetiva.(BRAUD, 2007, p.35, tradução nossa).

O orgulho de ser francês e de levar as luzes desse país aos povos menos
civilizados parece ser algo por demais encravado no espírito dos políticos
franceses, em geral, mas podemos também notar isso seja de forma ex-
plícita, seja em filigrana, em diversas produções artísticas desse povo.
Vejamos, a seguir, mais virtudes dessa segunda forma de república:
7. [essa república] fundará uma liberdade sem usurpações e sem
violências, uma igualdade que não admitirá o crescimento na-
tural de cada uma, uma fraternidade, não a dos monges em um
convento, mas a dos homens livres...

Em (7), observamos que há outras descrições que tentam ilustrar o


que seria uma república justa e ponderada. Lembremos que o locutor
já “escutou” ou deixou que a voz de não-X se exprimisse: agora, toma
seu turno de palavra, assumindo a voz de X.
Insistimos em dizer que, mesmo se tal discurso tenha uma aparência
monologal, nele duas vozes se digladiam, se afrontam.
Afirmamos há pouco que Hugo não renega Deus e uma religião; no
entanto, enquanto indivíduo, deixa aí, bem clara, sua marca de intole-
rância em relação ao clero. Como um cidadão consciente e inteligente,
sabe que a fraternidade dos monges em um convento não passa de uma
farsa: a fraternidade só pode existir entre homens livres do jugo de uma
instituição poderosa e dogmática, ou seja, a Igreja.
8. [essa república] dará a todos a educação (o ensino) como o sol
dá a luz, gratuitamente; introduzirá a clemência na lei penal e a
conciliação na lei civil; multiplicará as estradas de ferro, reflo-
restará uma parte do território, recuperará uma outra, multipli-
cará o valor da terra...

Nesse momento, temos, mais uma vez, uma figura de repetição de


enunciados com verbos no futuro. Se lembrarmos a primeira vez em
que foi utilizada (no primeiro parágrafo), veremos que tal figura aponta

113
IDA LUCIA MACHADO

agora para um contradiscurso. Os maus agouros de Hugo transformam-


se, pois, aqui, em previsões dotadas de um otimismo tão radiante que
chega até à utopia.
Uma comparação retórica aparece em (8): a educação deverá ser
equivalente à luz que o sol nos dá: gratuita. Implicitamente, vemos aí
um apelo à confirmação de uma escola laica e aberta a todos, pobres e
ricos6. O indivíduo Hugo acreditava realmente no progresso e em suas
benfeitorias para a humanidade, daí é natural que um locutor X de-
mande um maior número de redes de transporte no país. Grande de-
fensor dos injustiçados, ele sonha com uma lei penal clemente.
Observamos ainda que a palavra “terra” é uma metonímia que envia
a um “todo maior”, qual seja: a valorização do esforço humano no duro
trabalho agrícola.
9. [essa república] partirá do princípio de que todo homem começa
pelo trabalho e acaba pela propriedade, assegurará então essa
propriedade como a representação do trabalho bem feito, e o tra-
balho como elemento da propriedade futura...

Destacamos em (9) que Hugo, como bom burguês, valoriza a pro-


priedade. Seu enunciador não-X se coloca então contra o enunciador X
(assumido pelo locutor), já que o primeiro poderia levar à abolição
desta. Nesse ponto, o discurso coloca-se contra alguns princípios comu-
nistas, já retratados em cores alarmantes no primeiro parágrafo.
10. [essa república] construirá o poder sobre a base da liberdade
[...]; subordinará a força à inteligência; dissolverá o motim e a
guerra, essas duas formas de barbárie; fará da ordem a lei dos
cidadãos e da paz a lei das nações, viverá e resplandecerá; fará
a França crescer, [...] será em uma palavra, o majestoso abraço
do gênero humano sob o olhar de Deus contente.

O locutor de (10) — assumindo a voz de X — elogia, então, a re-


pública que trará consigo a liberdade, mas sem necessidade de guerras.
Vemos aqui um dos grandes desejos do intelectual Hugo, uma quase
6
Tal tipo de escola já havia sido preconizado por Condorcet, desde a Revolução
Francesa.

114
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

utopia do governo perfeito: aquele em que a inteligência dominará a


força bruta.
Essa argumentação, com a apresentação/descrição das ações que
acompanharão a república ideal, adota um tom grandioso, eloquente,
apaixonado. O locutor X, comandado por Hugo, chega ao ponto de adi-
vinhar os pensamentos de Deus. Esses enunciados, de certo modo, en-
globam o povo em uma visão coletiva e ideológica: “Como [se fosse] um
personagem augusto, temível em suas cóleras justas, mas bom e devotado
até o sacrifício. O amor que o povo inspira, assemelha-se muito a um
substituto do amor divino.” (BRAUD, 2007, p. 259, tradução nossa.).
Devemos lembrar, porém, que Braud nos alerta sobre esse modo
global de amor de todo um povo, enquadrando-o no discurso político:
“No caso dos dirigentes políticos, pode-se realmente separar o amor do
povo e o amor do poder que este concede àquele?” (BRAUD, op.cit.,
p.259 tradução nossa).
Eis uma questão cuja resposta é difícil. Se Luís Napoleão III não tivesse
dado o golpe de Estado e exilado Hugo, quem nos garante que este não
poderia ter-se tornado, com sua enorme inteligência, astúcia e talento, um
futuro presidente dessa república utópica, com a qual ele tanto sonhava?

Algumas palavras para concluir


Para que haja argumentação, repetimos, é preciso que duas opiniões
sejam apresentadas e que discutam entre si. Vimos, no discurso de Hugo,
uma mise en scène dessa discussão, encabeçada pela divisão de vozes
(enunciadores) que o locutor operou, ao apresentar as duas possibilida-
des de república e ao fazer vislumbrar a seus possíveis seguidores as con-
sequências da adesão a uma ou a outra forma de governo.
Na verdade, nossa primeira leitura do discurso em pauta mostrou-
nos, mais que um discurso argumentado, um texto sustentado por uma
argumentatividade. Porém, pela magia exercida graças ao talento de seu
escritor, o texto conseguiu opor duas opiniões contrárias e debater suas
consequências. Evidentemente, trata-se de um trabalho bem orientado
para a adesão do público à república exposta no segundo parágrafo, já
que a primeira voz (a do enunciador não-X, com a qual o locutor não

115
IDA LUCIA MACHADO

se identifica) limitou-se a fazer previsões terríveis da volta de uma época


sombria do passado francês.
Seja como for, as duas opiniões foram cuidadosamente agenciadas
para fazer sobressair os benefícios e virtudes da segunda: resultados co-
letivos tanto espirituais quanto materiais, com os quais Hugo, enquanto
indivíduo político, vai concordar. Isso aparece de modo claro no pará-
grafo que fecha seu discurso e que confronta, para dar um resultado, as
duas posições argumentativas:
11. Dessas duas repúblicas, esta se chama civilização; aquela, terror.
Estou pronto a devotar minha vida para estabelecer uma e im-
pedir a outra.

Eis a conclusão do discurso de Hugo. Fica aí implícita a influência


que ele quis passar a seu público ou àqueles que comungavam com sua
ideologia política: “se vocês votaram em mim é porque acreditam na re-
pública que defendo”. Logo, “vocês também devem devotar suas vidas
para que ela cresça”.
Ressaltamos que nos pareceu curioso notar que Hugo evitou, nessa
conclusão, o verbo dar na expressão “devotar minha vida”. O fato é que
dar uma vida significa para o indivíduo lutar até a morte, derramar seu
sangue. Em suma: guerrear. Isso iria contra o que o locutor X prega no
parágrafo no qual defende uma república de paz e consenso entre os ho-
mens. Já o verbo devotar (associado a vida) seria um sinônimo de con-
sagrar, dedicar, ou seja, um indicador de ações mais pacíficas, mais
harmoniosas, contendo também uma conotação temporal mais ampla
(mais demorada e trabalhada) que a do verbo dar, que carrega consigo
uma ação rápida. Enfim, o que Hugo demanda é que seus seguidores
“trabalhem” para a consolidação dessa bela forma de república da qual
poderia ter sido um deputado...
Infelizmente os intelectuais que professam uma ideologia ou uma
utopia acabam quase sempre sendo esmagados, quando se tornam
membros da complicada e ardilosa engrenagem governamental. Assim,
eles voltam mais ou menos descrentes da vida e da política, para sua so-
lidão de intelectuais estudiosos.

116
A MISE EN SCÈNE ARGUMENTATIVA DE UM DISCURSO DE VICTOR HUGO: ESTUDO DE CASO

Referências
BAKHTINE, Mikhaïl. esthétique de la création verbale. Paris: Gallimard, 1984.
BRAUD, Philippe. petit traité des émotions, sentiments et passions politiques. Paris:
Armand Colin, 2007.
CHARAUDEAU, Patrick. Ce que communiquer veut dire. Sciences Humaines, Paris,
n. 51, p. 20-24, juin 1995.
CHARAUDEAU, Patrick. petit traité de politique à l’usage du citoyen. Paris: Vuibert,
2006.
GRÁCIO, Rui Alexandre. Argumentação e interação. Coimbra: Grácio Editor, 2016.
HUGO, Victor. Œuvres complètes. politique: Paris. Mes fils. Actes et Paroles (I, II, III,
IV). Paris: Robert Laffont- Bouquins, 1985.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís bonaparte. Trad. Karina Jannini. São Paulo:
Edipro, 2016.

117
O RACISMO VeLADO NO pROCeSSO DISCURSIVO-
-ARGUMeNTATIVO

Kelly Cristina de Oliveira


Moisés Olímpio-Ferreira

Introdução
Historicamente, o Brasil é reconhecido como país de diversidade
cultural, étnica e social. Entretanto, apesar de a escravidão ter sido abo-
lida em 19881, o ideal de branqueamento, raça pura, trabalho, beleza e
inteligência versus mestiçagem, raça impura, vadiagem, feiura e falta de
inteligência, sempre permeou as diversas esferas sociais, por meio de di-
versas práticas discriminatórias. Ao lado dessas práticas, circulava o mito
de que o Brasil não era racista, fazendo prevalecer a ideia de democracia
racial. Segundo Nascimento (1978, p. 93), essa expressão é “a metáfora
perfeita para designar o racismo brasileiro: não tão óbvio [...], mas efi-
cazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo, assim como
difuso no tecido social, psicológico, econômico e cultural da sociedade
do país”.
O fato de haver miscigenação entre brancos e não brancos foi argu-
mento suficiente para difundir o ideário de um país único, formado pela
mistura de povos que conviviam em “paz e harmonia”. De acordo com
Schwarcz (1999, p. 309), “[...] a oportunidade do mito se mantém para
além de sua desconstrução racional, o que faz com que, mesmo reco-
nhecendo a existência do preconceito, no Brasil, a ideia de harmonia ra-
cial se imponha aos dados e à própria consciência da discriminação”.
Esse mito começou a ser questionado no fim do século XX. Silva e
Rosemberg (2008, p. 79) afirmam que, desde a segunda metade do sé-
culo XIX, ativistas e pesquisadores brancos e não brancos contestaram
a existência de um país “harmonioso” e se dedicaram a pesquisas sobre
as desigualdades raciais no acesso aos bens materiais e simbólicos, pro-
pondo políticas para combatê-las. Os autores ressaltam, ainda, que o
1
Antes disso, porém, destacam-se a lei Eusébio de Queirós, de 1850, a Lei do Ventre Livre, de
1871, e a Lei dos Sexagenários, de 1885, além de várias rebeliões que já haviam diminuído e
onerado essa prática.

119
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

termo racismo só passou a ser temática no território brasileiro em 1970,


período em que o Movimento Negro se consolidou como organização.
O fortalecimento dos movimentos sociais na década de 1970 e a
reorganização do Movimento Negro2 em 1978 fizeram com que a socie-
dade redimensionasse o problema do racismo, principalmente com a
criação da Constituição de 1988, que torna inconstitucional a prática do
preconceito:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II —
garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e
a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
(BRASIL, 1988)

Anos mais tarde, em 1995, diversas manifestações — como a “Mar-


cha Zumbi dos Palmares, Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”,
do Movimento Negro brasileiro — proporcionaram discussões profícuas
sobre a promoção da igualdade para todos. Segundo Silva Júnior (2003),
o movimento, com a adesão de mais de trinta mil pessoas em Brasília,
entregou um documento denominado Marcha ao Presidente da Repú-
blica, em que se lia: “Não basta, repetimos, a mera abstenção da prática
discriminatória: impõem-se medidas eficazes de promoção da igualdade
de oportunidade e respeito à diferença [...], adoção de políticas de pro-
moção da igualdade.” (p. 15).
Apesar disso, o mito racial fez com que o racismo, presente em di-
versas instâncias políticas, sociais, econômicas, religiosas e educacionais,
permanecesse velado, isto é, mais sutil e silencioso. Assim, mais difícil
de ser localizado, manifesta-se quando se valorizam as qualidades dos
brancos e suas “características [...] são tidas como normas de humani-
dade” (SILVA; ROSEMBERG, 2008, p. 82).
2
De acordo com Gomes (2011, p. 135-136), “o movimento negro contemporâneo, enquanto
movimento social, pode ser compreendido como um novo sujeito coletivo e político que, jun-
tamente com os outros movimentos sociais, emergiu na década de 70 no cenário brasileiro.
[...] Ao emergir no cenário nacional e político destacando a especificidade da luta política con-
tra o racismo, o movimento negro buscou na história a chave para compreender a realidade
do povo negro brasileiro”.

120
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

As mídias impressas, e mais recentemente as digitais, colaboram


para a (re)produção dessa condição, quando representam os negros de
maneira negativa ou associados a estereótipos carregados de preconceito
e discriminação. Não raramente, eles são silenciados e privados do papel
de protagonistas de suas próprias histórias, em novelas, filmes, livros
etc. Van Dijk (2008, p. 14) expõe bem o fato de que o estudo sobre o ra-
cismo na América Latina nunca foi parte predominante das pesquisas
acadêmicas e de que “até hoje os estudos críticos sobre o racismo ainda
têm de enfrentar a relutância acadêmica em reconhecê-los como um
empreendimento relevante, e não considerá-los como ‘mera política’...”.
Justifica-se, por essa razão, a contribuição deste trabalho para a
agenda emancipatória da Análise de Discurso Crítica, que busca alcan-
çar o engajamento da sociedade (sujeitos agentes) na luta contra o ra-
cismo velado, perpetuado por meio de diversos gêneros discursivos,
entre eles, as peças publicitárias. Isso só é possível porque o sujeito é en-
tendido como agente, ou seja, não está definitiva e cabalmente assujei-
tado às ideologias, ainda que profundamente afetado pelas estruturas
sociais; ativadas as suas potencialidades, em liberdade relativa, o sujeito
é capaz de agir no mundo e sobre seus pares.
Considerando o papel que a mídia exerce na constituição e/ou con-
solidação ideológica da sociedade, faz-se necessário trazer uma discus-
são sobre como ela afeta os leitores e como estes podem resistir aos seus
efeitos de sentido. Van Dijk (2008, p. 19) nos lembra de que “não há um
efeito automático sobre as opiniões dos leitores — principalmente por-
que [...] muitos podem resistir às interpretações sugeridas pelo discurso
racista — mas, sob condições especiais, essa influência pode ser pene-
trante”. Por meio de modelos mentais, repletos de ideologias e atitudes
compartilhadas socialmente, os sujeitos estão envolvidos direta ou in-
diretamente “na reprodução do racismo e na formação de ideologias ra-
cistas subjacentes, em particular” (Ibid., p. 20).
Nesse contexto, a doxa tem relevante papel na consolidação desses
modelos que são materializados nos contextos social e linguageiro.
Constituída pelo conjunto de opiniões, crenças e valores comuns, ela ra-
tifica-se pelo hábito e impõe seu modo de ver o mundo, de ver-se e de
ser nele, segundo as representações validadas pela coletividade. Barthes,
em sua perspectiva desmistificadora, chama a atenção para o aspecto

121
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

ideológico da opinião corrente, quando afirma: “A Doxa [...] é a Opinião


pública, o Espírito majoritário, o Consenso pequeno-burguês, a Voz do
Natural, a Violência do Preconceito” (BARTHES, 1975, p. 51, tradução
nossa), pois é o lugar de mediação (cultural/ discursiva) pelo qual os
discursos de poder — encráticos (pautados na doxa) e acráticos (con-
trários à doxa, paradoxais), com suas gradações — “falam”3. Fundamen-
tados no senso comum, no imaginário coletivo insistentemente
reiterado, os discursos “no poder”4 maquilam suas posições inflexíveis,
a fim de legitimar-se, alcançar o poder e/ou perpetuar-se nele.
Insensível, como a Lei e a Ciência, a doxa não compreende o poder
de felicidade de uma perversão aos valores eleitos como verdades in-
questionáveis (Ibid., p. 68), já que ela não admite o paradoxo, o seu con-
trário, mas preza o seu próprio poder de coerção. Para o autor, a doxa,
efetivamente presente nos discursos,
não é senão um “objeto ruim”: nenhuma definição pelo conteúdo,
nada senão pela forma, e essa forma ruim é, sem dúvida: a repe-
tição. [...]. A doxa é um objeto ruim porque é uma repetição
morta, que não vem do corpo de ninguém, exceto talvez, preci-
samente, do corpo dos Mortos (Ibid., p. 75, tradução nossa).

É nítido que Barthes advoga uma visão bem negativa da opinião do-
minante, associando-a sempre à noção de ideologia que, mistificando,
se fortalece até mesmo quando permite a contestação, já que, ajustados
aos limites do status quo vigente, os debates se predestinam à manuten-
ção da dominação alienante das consciências.
No ensaio de Étienne de La Boétie (2009) a respeito da servidão vo-
luntária, somos alertados para o fato de que o esquecimento da perda
do que nos é natural, como a liberdade (e, diremos, igualdade), pode ser
tão profundo que a servidão passa a ser vivida sem relutância. Ainda
3
Como afirma Barthes: “[...] diremos que é a doxa a mediação cultural (ou discursiva) através
da qual o poder (ou o não poder) fala: o discurso encrático é um discurso conforme com a
doxa [...]; e o discurso acrático enuncia-se sempre, em graus diversos, contra a doxa (seja ele
qual for, é um discurso para-doxal)", (1984, p. 97, grifos do autor).
4
Relevante é a explicação de Barthes do que seja discurso de poder: “[...] O discurso encrático –
posto que submetemos sua definição à mediação da doxa – não é apenas o discurso da classe no
poder; classes fora do poder ou que tentam conquistá-lo por vias reformistas ou promocionais
podem servir-se dele – ou pelo menos recebê-lo com consentimento" (BARTHES, 1984, p. 97).
A relação que Barthes faz, portanto, entre linguagem e poder se dá por mediação cultural.

122
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

que possa causar alguma reação opositora, ela passa a ser naturalizada,
de normal à norma (a Voz do Natural de que fala Barthes) sob a qual se
vive sem questionamentos. A força do hábito consolida o imobilismo
dóxico; o costume obriga o homem a julgar, a crer e a agir como se os
juízos, as crenças e as ações fossem verdades necessárias e imutáveis:
O hábito, que exerce em todas as coisas um poder irresistível
sobre nós, não tem em lugar nenhuma força tão grande quanto a
de nos ensinar a servir. E como dizem de Mitrídates, que foi se
acostumando aos poucos ao veneno, aprendemos a engolir sem
achar amargo o veneno da servidão. Não se pode negar que a na-
tureza nos dirige para onde quer, bem-nascidos ou malnascidos,
mas é preciso confessar que ela tem menos poder sobre nós que
o hábito (LA BOÉTIE, 2009, p. 45).

Nesse estado em que o hábito é mais forte do que a própria natureza


livre (no dizer de La Boétie), sem traços discriminatórios de cor, sexo,
classe, religião, sem convicções classificatórias naturalizadas, reivindicar
uma nova opinião (um paradoxo), um novo sentido adverso ao “no
poder” (conforme a doxa), é sempre temerariamente se contrapor a pa-
péis que estão determinados por instituições sociais, a esquemas coleti-
vos ensinados, reproduzidos e cristalizados nas mais diversas esferas
sociais — educação, política, ciência, religião —, formadores e estabili-
zadores da ordem admitida. Na esteira de Durkheim, apontando as for-
ças que incidem sobre o pensamento e o comportamento sociais,
Perelman assim descreve esse monismo sociológico:
As regras às quais a consciência solicita a conformação de cada
um, ditando-lhe o seu dever, seriam não os mandamentos divi-
nos, mas as injunções da consciência coletiva, expressão da so-
ciedade em que vive. Nessa concepção, é o Estado, a nação
política e juridicamente organizada, que inculcaria em todos os
seus membros, graças à tradição e à educação, o conjunto de va-
lores reconhecidos e de condutas obrigatórias, precisando a cada
membro da sociedade o que é proibido, ordenado e desejável (PE-
RELMAN, 1979, p. 6, tradução nossa).

De fato, sob essa perspectiva, “nada há mais intolerante do que a


verdade” (PERELMAN, 1947, p. 41, tradução nossa), fundamentada em
doxa estabelecida em concepções de violência, evidência e natureza (no

123
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

dizer de Barthes). Denuncia-se, assim, a operacionalização da manipu-


lação, da alienação, da obstrução à reflexão quanto ao que está natura-
lizado, falseada sob a aparência do senso comum:
[...] a verdadeira violência é a do que é dado como certo: o que é
evidente é violento, mesmo se essa evidência é suavemente repre-
sentada, liberalmente, democraticamente; o que é paradoxal, o que
não é evidente, o é menos, mesmo se imposto arbitrariamente: um
tirano que promulgasse leis estranhas seria, afinal de contas,
menos violento do que uma massa que se contentasse de enunciar
o que é dado como certo: o “natural” é, em suma, o último dos ul-
trajes. (BARTHES, 1975, p. 96, tradução nossa, grifos do autor).

Uma análise de perspectiva discursivo-argumentativa apontará,


portanto, em que medida o discurso apoiado na doxa pode ser uma es-
tratégia argumentativa que convoca a seu favor os benefícios advindos
do que já está coletivamente admitido. Considerada como o conjunto
de saberes socialmente compartilhados, a sua explicitação dá a conhecer
as representações coletivas que integram os discursos, absorvidos não
raramente de modo inconsciente. Tendo em vista que o indivíduo é mol-
dado na imersão dóxica automática e involuntariamente, a sua consti-
tuição em sujeito não só ocorre pelos sentidos sobre os quais ele não
tem domínio, mas também pelas condições enunciativas do espaço dó-
xico que lhe são coercitivas: “Se a argumentação implica uma intencio-
nalidade e uma programação, estas se revelam tributárias de um
conjunto dóxico que condiciona o locutor, do qual ele está, muito fre-
quentemente, longe de ter clara consciência” (AMOSSy, 2010, p. 119;
tradução nossa).
No corpus deste capítulo, interessa-nos mostrar os elementos ideo-
lógicos fundados em doxa dominante e dominadora e compreender
como os elementos discursivos fundados no saber comum constroem
o fazer persuasivo.

1. O racismo velado como processo discursivo


Segundo Van Dijk (2008, p. 15), as pessoas não nascem racistas, nem
tampouco lidamos com racismo apenas estrutural: ele é aprendido num

124
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

processo amplamente discursivo, ou seja, “baseado na conversação e no


contar de histórias diárias, nos livros, na literatura, no cinema, nos artigos
de jornal, nos programas de TV (...)”. Aprendemos a ser racistas por meio
de eventos comunicativos (textos), que também fundamentam opiniões
e atitudes; reproduzimos o status quo do consenso do discurso dominante.
Trata-se, na verdade, de um complexo sistema social de dominação,
constituído por um subsistema social e cognitivo. O primeiro encontra-
se nas diversas práticas sociais de discriminação no (micro-)nível local,
e o segundo, nas relações de abuso de poder exercidas por grupos, or-
ganizações e instituições dominantes em um (macro-)nível de análise
(VAN DIJK, 2008, p. 134).
Para Fairclough (2003), esse processo se dá por meio do discurso
em que crenças, valores, atitudes podem ser instaurados, mantidos ou
alterados. Por meio do discurso, representamos diferentes aspectos do
mundo — “os processos, as relações e estruturas materiais do mundo, o
mundo mental de pensamentos, sentimentos, crenças etc. e o mundo
social” (p. 124) —, de modo particular, ou mesmo de modo mais amplo,
em diferentes níveis de abstração, de compreensão.
Os discursos são investidos de ideologias, que servem para estabele-
cer, firmar ou transformar as relações de poder na sociedade. É por meio
delas que as realidades são construídas, moldadas por diversas ordens
(econômicas, políticas, sociais) e podem sofrer variações nas diversas for-
mas e significados de práticas discursivas, mesmo que nessas relações as
ordens do discurso5 permaneçam implícitas. É nesse sentido que certos
discursos são legitimados e não outros (FAIRCLOUGH, 2008, p. 116).
Os discursos são materializados nos textos e representam os mun-
dos projetados, imaginários e possíveis, vinculados a projetos que visem
à sua manipulação. Os textos são elementos do evento social e são ca-
pazes de influenciar nossas crenças, valores, atitudes, porque possuem
efeitos (biológicos e sociais) tanto imediatos quanto em longo prazo, por
meio das práticas sociais. A exposição prolongada a certas propagandas
5
“Uma ordem do discurso é uma rede de práticas sociais em seu aspecto de linguagem. Os ele-
mentos de ordens de discurso não são coisas como substantivos e sentenças (elementos de es-
truturas linguísticas), mas discursos, gêneros e estilos [...]. Esses elementos selecionam certas
possibilidades definidas pelas línguas e excluem outras – eles controlam a variabilidade linguística
de áreas específicas da vida social. Assim, as ordens de discurso podem ser vistas como a orga-
nização social e controle da variação linguística” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 24, tradução nossa).

125
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

ou anúncios contribui, por exemplo, para moldar as identidades de seus


consumidores (FAIRCLOUGH, 2003, p. 17).
Os discursos possuem, portanto, dimensões sociais, porque se ins-
tauram nas práticas sociais, isto é, no contexto da situação em que cir-
culam valores culturais, ideologias, e também uma dimensão material,
o próprio texto. Ambos (texto e prática social) são mediados pela prática
discursiva, ou seja, por sua produção, distribuição e consumo.
Esse modelo tríade (texto, prática social e prática discursiva) corres-
ponde a três estágios de análise: a Descrição (análise de textos), a Expli-
cação (análise sociocultural) e a Interpretação (análise do processo),
respectivamente. Ao fazer uma análise nessa perspectiva, não se deve pri-
vilegiar um ou outro estágio, pois eles ocorrem simultaneamente, com-
plementam-se: “ninguém nunca fala em aspectos de um texto sem se
referir a sua produção e/ou à interpretação textual” (FAIRCLOUGH,
2008, p. 73, tradução nossa). Mesmo que o analista decida fazer um tra-
balho descritivo, será necessário haver ainda a análise interpretativa, pois
o material em estudo é simbólico. Assim, ao optar pela análise descritiva
da dimensão material (texto), por exemplo, deve-se entender o seu pro-
cesso de produção, distribuição e consumo, ou seja, a dimensão prática
discursiva que a medeia. A esse respeito, ompson (1998, p. 19) destaca:
Os meios de comunicação têm dimensão simbólica irredutível:
eles se relacionam com a produção, o armazenamento e a circu-
lação de materiais que são significativos para os indivíduos que
os produzem e os recebem. [...] O desenvolvimento dos meios de
comunicação é, em sentido fundamental, uma reelaboração do
caráter simbólico da vida social, uma reorganização dos meios
pelos quais a informação e o conteúdo simbólico são produzidos
e intercambiados no mundo social...

Além disso, toda análise implica também considerar os aspectos so-


ciais ligados às formações ideológicas, poder e hegemonia, inseridos na
prática social. O poder, associado ao consentimento, possui estreita li-
gação com o conceito de hegemonia de Gramsci:
O “espontâneo” consentimento dado pela grande massa da po-
pulação para a direção geral imposta à vida social pelo grupo es-
sencialmente dominante (e.g., por meio de seus intelectuais que
atuam como agentes ou adjuntos) é “historicamente” causado

126
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

pelo prestígio (e consequente confiança) de que o grupo domi-


nante se serve, por causa da sua posição e função no mundo da
produção. (GRAMSCI, 1971, p. 12, tradução nossa).

Esse “consentimento espontâneo” colabora com a naturalização de


práticas e relações desiguais, com o controle intelectual (dominação cul-
tural) exercido, principalmente, por classes dominantes que se conside-
ram aptas não só a representar os seus próprios interesses homogêneos
e os valores admitidos pela sociedade, mas também para manipulá-los,
limitando conhecimentos, atitudes, saberes, enfim, a liberdade de ação
dessa sociedade. Por meio das mass media, por exemplo, afirma Van
Dijk (2008, p. 85), os grupos dominantes podem ter acesso e controle
parcial sobre o público em grande escala.
A prática social permite que o analista de discurso estude os gêneros
discursivos na medida em que portam os aspectos quanto às “maneiras
de agir e interagir [dos sujeitos] no decorrer de eventos sociais” (FAIR-
CLOUGH, 2003, p. 65, tradução nossa). Não utilizamos os gêneros ape-
nas para interagir nesses eventos, ou para expressar, reforçar6 certos
valores, crenças e identidades, para naturalizar relações desiguais de
poder, mas também para agir e modificar. Os gêneros discursivos são
enunciados concretos, reais, de natureza dialógica, como os estudos
bakhtinianos bem demonstraram. Eles medeiam todas as atividades co-
municativas; é por meio deles que nos comunicamos e, segundo Fair-
clough (2003, p. 26), agimos ideologicamente, pois os gêneros são
modos de ação.
Enquanto materializadores das ideologias, os gêneros possuem ca-
ráter de relativa estabilidade (e, portanto, de relativa instabilidade), que
refletem as próprias condições específicas, finalidades, desenvolvimentos
e complexidades estáveis e instáveis das esferas que os condicionam. Ora,
como há uma relativa liberdade que permite ao sujeito transcender as
ideologias, que, por sua vez, não possuem caráter estanque, permanente,
6
Na verdade, essa é uma questão que é possível depreender já nos próprios estudos aristotélicos,
ainda que sua perspectiva não lhe permita avanços na discussão. Os gêneros oratórios funda-
mentavam-se na doxa. Se pensarmos que os gêneros judiciário e deliberativo estavam apoiados
nas crenças e valores comuns, nas disposições legitimadas que determinavam ações, não é di-
fícil chegarmos à conclusão da importância do epidíctico, cujo objetivo era aumentar a inten-
sidade da comunhão, da adesão aos valores comuns entre auditório e orador.

127
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

já que podem ser recriadas/reestabelecidas nos modos de agir social e


possuem certa durabilidade e estabilidade, tanto quanto os gêneros dis-
cursivos pelos quais se materializam, então, como assevera Fairclough
(2003, p. 9), no momento em que os sujeitos transcendem as relações de
dominação, eles transcendem também a ideologia. É exatamente nesse
ponto, de relativa liberdade do sujeito e de instabilidade da ideologia, que
há a possibilidade de mudanças sociais, com transformações discursivas.
Se, por um lado, o conceito de raça é utilizado para legitimar o dis-
curso opressor e discriminatório de certos grupos que, acreditando ser
superiores, negam a outros o acesso aos recursos culturais, políticos,
materiais, ao trabalho, à habitação etc., por outro lado, esse conceito tem
se mostrado eficiente na construção de alternativas positivas aos grupos
afetados, com a criação de autoidentidade, resistência política, lutas por
mais autonomia política etc. (WODAK; REISIGL, 2001, p. 373), mate-
rializando novas práticas sociais e, alterando, a longo prazo, a ideologia
vigente em suas práticas discursivas.

2. Análise do corpus
Ao gênero publicitário subjaz o discurso estratégico de natureza per-
suasiva, ou seja, visa à adesão de seu público-alvo. Em razão de sua fi-
nalidade, constitui-se em forte apelo que quer não só alcançar o interesse
de alguns, mas esvaziar, o quanto possível, o lugar do público indiferente.
Para isso, como a adesão a uma ideia se dá com intensidades variáveis,
serve-se ele de crenças comumente admitidas (ainda que implícitas, não
formuladas, o que é mais comum), que lhe assegurem certo sucesso no
empreendimento discursivo. Fairclough (2008, p. 259) sustenta que a
publicidade possui um caráter identitário, porque se constrói a partir de
imagens reconhecidas, aceitas e desejadas pelo outro, o consumidor.
Essa identidade é construída num processo que envolve produto, pro-
dutor e consumidor, num estilo de vida simulado e também construído.
Quando a publicidade utiliza recursos visuais, evoca, no imaginário cole-
tivo (ensinado, reproduzido e cristalizado, que incide no pensamento e
no comportamento sociais), estilos e lugares de vida que podem ser ocu-
pados por potenciais consumidores, motivados por efeitos particulares

128
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

que a propaganda lhes causa. Pistas verbais e sinais não verbais levam a
sentidos que são expressos indiretamente ou sub-repticiamente sugeridos.
É o que se percebe no efeito de sentido causado pela peça publicitária do
metrô do Rio de Janeiro, desencadeador de grande manifestação nas redes
sociais, que provocou a sua retirada de circulação.
A peça foi instalada na estação Antero de Quental. No lado es-
querdo do leitor, há uma mulher e um homem não brancos, jovens, ves-
tidos casualmente. Do outro lado, um homem e mulher brancos, jovens
que também vestem roupas casuais. No meio das imagens há os seguin-
tes dizeres:

“LINHA 4 - CONECTANDO O RIO DE PONTA A PONTA”:

Fonte: Revista Veja Rio (2017)

Inaugurada para os Jogos Olímpicos no Brasil, em 2016, a linha 4


foi feita com o objetivo de conectar cerca de 100 mil habitantes. As pes-
soas escolhidas para ficar nas pontas representam os usuários, morado-
res, principalmente, do Rio de Janeiro. Aparentemente, encontram-se
no mesmo nível social e partilham da “democracia racial”, porque
ambos, não brancos e brancos, podem usufruir do transporte público
livremente. Entretanto, para entendermos o motivo da polêmica gerada,
devemos observar o contexto de produção e a configuração social da ci-
dade do Rio de Janeiro.
De acordo com Costa (2010), a maior concentração de moradores
que se declaram pretos ou pardos reside nos bairros mais pobres e com

129
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

maior número de favelas, localizados na zona Norte, enquanto os bairros


mais ricos, com maior número de declarados brancos, estão situados na
zona Sul. Logo, a associação do racismo à região dos moradores ficou
ainda mais evidenciada pelo efeito de sentido produzido: de um lado,
há os negros pobres e do outro, os ricos brancos.
O exemplo de repúdio pode ser constatado nos dizeres da internauta
alita Santos: “Deixa eu ver se adivinhei: o casal de negros representa
a Zona Norte, e o de brancos, a Zona Sul. Lamentável”. O comentário
foi replicado diversas vezes no Twitter, gerando diversas discussões. No
Facebook, há um post que se serve de metáfora para associar às estações
do metrô a senzala dos negros, de um lado, e a Casa Grande dos senho-
res brancos, de outro:

Fonte: Facebook (18/09/2017)

Após grande repercussão, o caso tornou-se pauta das principais no-


tícias e revistas on- line, fazendo com que a problemática fosse discutida
e, consequentemente, consumida, por um número maior de pessoas. A
revista Veja Rio (digital) tratou do ocorrido por meio da seguinte notícia:
“Metrô vai retirar anúncio acusado de ser racista”, cujo subtítulo era “Opo-
sição entre casais negro e branco despertou discussões nas redes sociais”.
Ao se atentar para o subtítulo, observa-se uma importante informação
sobre o papel das redes sociais para discutir o racismo, porque o tema des-
pertou discussões e isso se torna motivo de atenção nas grandes mídias.
A rede social, ao mesmo tempo em que se torna suporte para notícias
das mass media (rádio, televisão, cinema, revistas, jornais de grande cir-
culação), também “dita” o grau de valoração que uma situação deve ter.
O que é postado pode circular centenas (e até milhares) de vezes, por
meio de compartilhamentos, como forma de identificação ou de protesto.
Compostas por grupos com naturezas e interesses diversos, por ins-
tituições e empresas de setores e atividades variados, por pessoas anô-

130
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

nimas e celebridades, as redes sociais permitem, em conexão virtual, a


interação de seus usuários numa nova forma de organização social. Por
meio delas são mobilizadas várias intervenções sociais coletivas, tais
como os rolezinhos (convocação de jovens de classes populares para en-
contros em locais públicos ou privados, que provocou uma série de de-
bates associados à ocupação de lugares, à necessidade de áreas de lazer
e cultura, à ordem social, ao preconceito social etc.), as manifestações
políticas (como o “Protesto contra a corrupção”), as campanhas diversas
de arrecadação de fundos (para vítimas de tragédias naturais ou por ou-
tros fenômenos, para causas e problemas pessoais etc.), as campanhas
ligadas à saúde (para além da arrecadação de fundos, buscam-se doa-
dores de sangue e de órgãos), as passeatas (manifestações populares em
defesa de posições políticas, sociais, ideológicas ou religiosas, como a
“Marcha das Vadias”, “Marcha das Margaridas”, “Marcha Zumbi”, “Pa-
rada do Orgulho LGBT”, “Marcha para Jesus”, “Marcha da Maconha”
etc.), entre outras, que conectam e envolvem pessoas de diversas partes
do país ou fora dele, inicialmente criando uma realidade virtual, mas
podendo, posteriormente, tornar-se uma realidade presencial, física.
Tudo o que pode ser feito pelas redes sociais faz parte de fenômenos
comunicacionais mediados pelo computador ou por celulares com
acesso à internet, que, segundo Recuero (2009, p. 16), estão transfor-
mando “profundamente as formas de organização, identidade, conver-
sação e mobilização social”. Essa nova forma de interação está
relacionada ao que Lévy (1999, p. 94) denomina “cibercultura”. Trata-
se de um “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de
atitudes, de modos de pensamaento e valores que se desenvolvem jun-
tamente com o crescimento do ciberespaço” (LÉVy, 1999, p. 94).
Além da publicidade instalada no metrô do Rio de Janeiro, outros
anúncios também foram denunciados e retirados de veiculação pelo
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Ci-
tamos, mais particularmente, o de 2013, da Devassa, marca de cerveja da
empresa Brasil Kirin, em que o produto aparece ao lado da imagem de
uma mulher negra, cujo corpo é posto em evidência por roupas sensuais
e por cores fortes; seu olhar, bem como a sua pose, auxiliam a construção
do efeito de sensualidade. No seu lado esquerdo, lê-se em caixa-alta:

131
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

É PELO CORPO
QUE SE RECONHECE
A VERDADEIRA NEGRA.

Fonte: Diário do Centro do Mundo (2013)

É clara a objetificação sexual e a exotificação da mulher negra. O


corpo ratifica o estereótipo (ideias preconcebidas e classificatórias) da
sensualidade genética, ou seja, exterioriza o que faz parte do imaginário
coletivo daquilo que é intrínseco à cor da pele: o corpo feminino de pele
negra está estigmatizado pela sedução lasciva, está irrevogavelmente
destinado a ser fonte de grande prazer, disponível ao consumo tanto
quanto o produto posicionado ao seu lado. Como corpo e negra se refe-
rem tanto à mulher quanto à cerveja, o nome Devassa, cujos sentidos,
entre outros, é "depravada, desregrada, dissoluta, libertina"7, assume
ambos os referentes, destinando-lhes o papel de fontes “proibidas” de
prazer. É na eficácia da ambiguidade referencial que a força argumenta-
tiva se instaura: a seleção lexical, voluntariamente imprecisa, evita um
enunciado cuja exatidão poderia esvaziar os seus efeitos e provocar rea-
ções adversas.

7
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/devassa, consultado em 22/04/2018.

132
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

A voz que enuncia não é a de um “eu” particularizante, que instaura


a subjetivação no discurso, que aumenta o grau de responsabilidade pes-
soal no juízo que é feito e que aproxima aquele que fala daquilo que diz.
É na não pessoa ele, com espacialidade fora do aqui, que o discurso pro-
duz o efeito de objetividade, de afastamento do interlocutor, próprio do
discurso que simula a autoenunciação, que quer se mostrar sem media-
dor; não há um indivíduo, mas o suporte de uma representação coletiva:
“é pelo corpo que” transforma o subjetivo em norma geral que serve
como ponto de partida para o raciocínio que segue; de fato, quanto mais
ela estiver em comunhão com a doxa do auditório, mais o enunciado “no
poder”, com as consequências dele oriundas, será facilmente absorvido.
O tempo é o presente que, manifestado pelo presente formal, não faz re-
ferência ao tempo cronológico da história contada, mas ao omnitempo-
ral, contínuo-sempre, qualitativo, não mensurável, coexistente ao ser que
nele está necessariamente centrado, o presente/presença (COQUET, 1997,
p. 69), sem possibilidade de ser delimitado ou de ser orientado.
Chama a nossa atenção o adjetivo verdadeira. Uma verdadeira negra
só pode ser reconhecida quando avaliada pelo único critério válido: o
corpo portador de características eróticas estereotipadas. O uso normal
do que seja a verdadeira negra está conforme a essência que lhe foi so-
cialmente atribuída ou determinada; é a partir de certas características
corporais que se chegou a estabilizar os aspectos do que representa a es-
sência da mulher negra: a sexualidade à flor da pele.
Cabe ressaltar, porém, que numa sociedade regida por valores ra-
cistas e machistas, ter essa característica é algo positivo. Como bem lem-
bra Monnerat (2003, p. 98): “Nos textos publicitários, a valorização do
produto (objeto de busca do consumidor) se concretiza verbalmente,
muitas vezes, por meio da adjetivação. Os adjetivos são, portanto, formas
linguísticas desencadeadoras de valores positivos.”. Em a verdadeira
negra apresenta-se, portanto, um juízo de valor que se crê estar compar-
tilhado com o interlocutor; o adjetivo é porta-voz de valores ideológicos
e socioculturais postos em diálogo com o público-alvo do discurso pu-
blicitário, estabelecendo, desse modo, uma relação de proximidade in-
tersubjetiva. Se, por um lado, servir-se da atração e prestígio dessa
relação instaurada faz com que a força argumentativa imprima a sua in-
fluência sobre as vontades e as decisões do público, atravessadas que são

133
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

— tanto quanto a fala do locutor — pelas ideias preconcebidas, pelas


evidências de uma época, condicionadas pelas possibilidades de seu
tempo, por outro lado, opor-se a essa forma de agir social significa abrir
espaço para transcender as ideologias, é denunciar uma visão alienada
do mundo, é objetar às concepções de violência, evidência e natureza
dos discursos encráticos enraizados na doxa, desmistificando-os.
Em letras menores, mas ainda destacadas em caixa alta, a constru-
ção estereotipada da mulher negra recebe novas atribuições. Numa se-
quência notadamente descritiva, os adjetivos reforçam o evidente papel
ideológico-argumentativo:
DEVASSA NEGRA. ENCORPADA,
ESTILO DARK ALE. DE ALTA FERMENTAÇãO,
CREMOSA COM AROMA DE MALTE TORRADO.

Como já apontamos, Devassa negra extrai a sua força argumentativa


da imprecisão referencial, que serve tanto para produzir efeitos de sen-
tido que fazem remissão à luxúria, à concupiscência, ao comportamento
regrado pelo apetite sexual, quanto como estratégia de proteção da face
do locutor (como se pode observar no processo junto ao CONAR). As-
sociados os adjetivos à mulher negra, revela-se a visão tradicional dos
papéis sociais dessa mulher, que permanece presa aos modelos veicula-
dos pela opinião comum, pelas representações culturais que naturalizam
a objetificação sexual e a exotificação, pelas ideias artificialmente pre-
concebidas, impostas, porém, com o selo da natureza. O discurso sub-
misso a uma doxa dominante que mistifica o auditório é, sem dúvida,
manipulador, já que se fundamenta no que é evidente ao locutor (e su-
postamente ao auditório), ou seja, nas ideias convencionais em que as
ideologias se dissimulam.
Devassa negra em associação a encorpada tanto faz referência à con-
sistência da cerveja (grossa, consistente, espessa) quanto ao corpo da mu-
lher (corpulenta, avantajada, volumosa) preparado para o prazer. O
mesmo ocorre com estilo dark ale em que a mulher negra, por força de
analogia, é associada à volúpia: a ideia em destaque é a de que, tal como
a cerveja do tipo ale, produzida com levedura que dá melhores resultados
em temperaturas mais elevadas, fermentando a cerveja em períodos mais

134
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

curtos8, assim é a mulher negra nas questões relativas à sexualidade. A


qualidade cremosa é associada à cerveja e, mais recentemente, à conota-
ção erótica popular feminina, ou seja, à mulher gostosa, cremosa; o ex-
cesso dessa sexualidade à flor da pele se manifesta em sua alta9
fermentação cremosa (a ênfase recai metaforicamente no paladar). Por
fim, o aroma de malte torrado é clara erotização (pela cor e pelo olfato)
que se soma às demais caracterizações para apresentar a mulher como
objeto sexual.
A propaganda recebeu 800 denúncias. Apesar disso, a defesa alegou
que se tratava de uma associação lúdica, como característica das campa-
nhas da marca. É nesse ponto que também podemos entender como o ra-
cismo velado funciona. Em muitos casos, aparece como elogio ou
“brincadeira”, como “valores positivos”; noutros, nem mesmo é admitido:
Nesta, Schincariol e Mood evocam a irreverência que tem mar-
cado as campanhas da cerveja Devassa. Consideram que o foco
do anúncio está totalmente ligado ao produto e negam qualquer
conotação de racismo ou apelo à sensualidade. Aludem, por fim,
ao fato de os consumidores terem o costume de se referir aos di-
ferentes tipos de cerveja da mesma forma que se menciona a cor
dos cabelos das mulheres (loira, ruiva etc.). Em campanha ante-
rior, lembra a defesa, para cerveja de cor clara, o slogan escolhido
foi “Devassa, bem loira” (CONAR [s.d.]).

Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 24) relatam que os discursos domi-


nantes são tão enraizados, que conduzem à naturalização ou à automati-
zação no modo como entendemos e vemos o mundo, levando à
reprodução regular do sistema de crenças e valores e do sistema de relações
e de identidade de determinados grupos sociais. A resposta dada pelas em-
presas reforça o apelo sensual da mulher negra, naturalizando essa prática.
Nessa peça publicitária, a representação da mulher negra na socie-
dade não está atrelada aos seus papéis sociais, mas àquilo que remete
8
Conforme Cervejas do Mundo. Disponível em: http://www.cervejasdomundo.com/Ale.htm.
Acesso em: 22/04/2018.
9
Há, sem dúvida, um processo de intensificação pelo qual os adjetivos são responsáveis. A im-
portância desse processo “reside no fato de ser ele um dos procedimentos responsáveis pela
argumentação de um texto, e tal processo permite ao interlocutor depreender o que está nas
entrelinhas, no âmago do texto, uma vez que o recurso intensificador exacerba a condensação
emocional de todo o fluir do texto” (AZEVEDO; OLIVEIRA, 2005, p. 19).

135
KELLy CRISTINA DE OLIVEIRA & MOISÉS OLÍMPIO-FERREIRA

aos tempos do colonialismo em que a ela era a fonte de prazer dos se-
nhores das fazendas, como pode ser lido no “Manifesto das Mulheres
Negras”, de 1975 (apud NASCIMENTO, 1978, p. 61): “[...] as mulheres
negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser objeto de prazer
dos colonizadores”. O autor esclarece que estamos diante da mais fami-
gerada “democracia racial, em cujo contexto o homem negro e a mulher
negra só podem penetrar sub-repticiamente pela porta dos fundos,
como criminoso ou como prostituta” (Ibid., p. 63). Há um reconheci-
mento geral, prossegue o autor, de que a posição da mulher negra na so-
ciedade era a de uma raça para dar prazer, pois fora prostituída no
passado e a baixo preço; do “intercasamento” resultou a mulata.
Essa associação fica evidente em pleno século XXI, por meio das re-
clamações dos consumidores ao CONAR: “A maioria das queixas de-
nuncia racismo, machismo e sexismo na peça, onde a mulher seria
tratada como ‘um objeto sexual, tal como se fazia na época da escravi-
dão’”. Destaca-se ainda, nesse processo jurídico, o entendimento da re-
latora do recurso que concordou com os consumidores, afirmando que
não conseguia “chegar a nenhuma conclusão diferente de que a mulher
negra está sendo retratada como objeto sexual”.

Considerações finais
As amostras em análise são consideradas textos (eventos situados),
mediados pelas práticas sociais que envolvem, segundo Fairclough
(2003, p. 24), outros elementos complexos da vida social e, por isso, é
preciso relacioná-los a instâncias da vida econômica, política, histórica
e cultural, como sugere Schwarcz (2012, p. 34):
Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compreen-
dida como uma construção local, histórica e cultural, que tanto
pertence à ordem das representações sociais — assim como são
as fantasias, mitos e ideologias — como exerce influência real no
mundo, por meio da produção e reprodução de identidades co-
letivas e de hierarquias sociais politicamente poderosas.

No caso do Brasil, o racismo é velado, bem particular, conhecido


como “o racismo à la brasileira” e se relaciona com fatos históricos e sociais

136
O RACISMO VELADO NO PROCESSO DISCURSIVO-ARGUMENTATIVO

da escravidão e pós-escravidão e, principalmente, com a sua firme con-


vicção de que o Brasil não é racista, pois o povo brasileiro nasceu “da fusão
harmoniosa de várias raças, que aprenderam a viver juntas e a trabalhar
juntas, numa exemplar comunidade” (NASCIMENTO, 1978, p. 88).
Essa crença (re)produzida pelo discurso midiático e associada a prá-
ticas sociais racistas são mais “penetrantes, se não as mais influentes, a
se julgar pelo poder baseado no número de receptores” (VAN DIJK,
2010, p. 73). A mídia produz efeitos de sentido coletivos de uma nação
igualitária e justa, impedindo a resistência e a luta de classes contra a
forma mais nefasta de racismo: o racismo não declarado. Para isso, o
sujeito deve tornar-se agente corporativo em ações coletivas (FAIR-
CLOUGH, 2003, p. 160).
O resultado dessas ações coletivas pode ser encontrado na ação mo-
vida pelos consumidores contra a peça publicitária e de seu reconheci-
mento pelas autoridades competentes. É desse movimento acional que
movimentos sociais surgem, promovendo agenciamento de políticas
identitárias e desnaturalizando as diversas formas de manifestações ra-
cistas, principalmente quando emergem das elites.

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139
A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA
ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe
FÁbIO De MeLO e LeANDRO KARNAL, NO
LIVRO CRER OU NÃO CRER.

Mônica Santos de Souza Melo

Neste estudo1, procuramos propor uma análise argumentativa dos


discursos do padre Fábio de Melo e do historiador Leandro Karnal, num
dos diálogos que compõem o livro intitulado “Crer ou não crer: uma
conversa sem rodeios entre um historiador ateu e um padre católico”,
publicado em 2017. A obra, que é uma transcrição de vários diálogos
entre esses dois autores, é especialmente instigante não apenas pelos
temas de que trata — dentre eles, a oposição fé-ciência, a importância
da fé, a existência de Deus e a morte —, mas também por apresentar um
embate envolvendo temas polêmicos, vistos sob pontos de vista antagô-
nicos: o de um padre católico e o de um ateu, o que se constitui num
fantástico exercício argumentativo de ambas as partes.
A obra compõe-se de sete partes, cada uma das quais contendo a
transcrição de um diálogo entre Fábio de Melo e Karnal sobre um tema
diferente. Ao final, há ainda um glossário e uma seção intitulada “nomes
citados”, nas quais são apresentados os conceitos e personagens citados
nas falas dos dois debatedores.
O título do livro remete à celebre frase pronunciada por Hamlet no
monólogo da peça homônima, de autoria de Shakespeare : “Ser ou não
ser, eis a questão”. Essa frase remete a situações associadas a reflexões de
cunho filosófico. No livro de Melo e Karnal, a reflexão não gira exata-
mente em torno da existência humana, mas, mais especificamente, em
torno de aspectos que envolvem a relação do homem com o plano espi-
ritual, com a religiosidade e as religiões, que poderiam justificar a esco-
lha entre crer ou não crer.

1
O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq.

141
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

Em uma palestra2, o professor Karnal relata que o livro se inspirou


em duas obras: “Em que creem os que não creem”, o debate entre Um-
berto Eco, ateu, e o cardeal Martini, de Milão, e “A monstruosidade de
Cristo”, do filósofo Zizek, debatendo com Milbank, filósofo inglês, no
qual se discute o caráter humano de Jesus.
No presente texto, focalizaremos um dos capítulos do livro, que con-
siste na transcrição do diálogo intitulado “A religião ajuda ou atrapalha?
E a Igreja?”, procurando analisar como se dá o jogo argumentativo no
qual os dois protagonitas interagem. Nessa parte do livro, os autores dis-
cutem os efeitos nocivos que a religião ou a Igreja poderiam provocar
sobre o fiel. Como se trata de uma discussão que tem por finalidade a
defesa de um ponto de vista sobre o papel da religião na sociedade, assim
como o convencimento do outro parceiro e do público leitor em torno
dos pontos de vista defendidos, consideramos relevante abordar o diá-
logo em termos de sua organização argumentativa, a partir de uma visão
discursiva. Para isso, nos pautaremos nas propostas de Amossy (2008)
e Charaudeau (2008), resumidas a seguir.

1. Uma análise argumentativa do discurso


Propomos aqui empreender uma “análise argumentativa do dis-
curso”, apropriando-nos da expressão e da proposta de Amossy (2008).
Parafraseando a autora, essa abordagem se nutre de teorias retóricas,
pragmáticas e lógicas e opta por uma abordagem que é, simultaneamente:
a) Comunicacional: o desenvolvimento do discurso argumenta-
tivo só pode ser compreendido dentro de uma situação de in-
terlocução, ou seja, a construção de uma argumentação não
pode estar dissociada da situação de comunicação na qual ela
deve produzir seu efeito.
b) Dialógica e interacional: o discurso argumentativo visa agir
sobre um auditório e, por isso mesmo, deve se adaptar a esse
auditório, sendo sempre interacional, mesmo que não haja
troca strito sensu de parceiros.
2
Crer ou não crer. Leandro Karnal.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xboQsJfcH2U. Acesso em 27 fev. 2018.

142
A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

c) Linguageira: o discurso argumentativo não se restringe a ope-


rações de natureza lógica. Ele se constrói a partir de escolhas,
dentro de um reportório que a língua oferece, o qual se cons-
titui de elementos de ordem lexical, de ordem enunciativa, de
elementos que permitem o encadeamento dos enunciados,
assim como de pressupostos e subentendidos.
d) Genérica: o discurso argumentativo se materializa sempre num
gênero que se caracteriza por determinados objetivos, esque-
mas de enunciação e distribuição de papéis prévios.
e) Estilística: o discurso argumentativo recorre a efeitos de estilo
e figuras que têm impacto sobre o auditório.
f) Textual: o discurso argumentativo deve também ser estudado
do ponto de vista textual, tendo em vista o uso de procedimen-
tos lógicos que são explorados no esquema complexo do dis-
curso numa dada situação.

Essa abordagem está em consonância com a proposta de Charaudeau


(2008). Para esse autor, a argumentação é um processo intersubjetivo, já
que exige, além de um sujeito que desenvolva uma asserção sobre uma
tese, um outro sujeito que constitui o alvo da argumentação e a quem o
sujeito que argumenta pretende levar a compartilhar não a mesma ver-
dade, mas uma veracidade, que dependeria das representações sociocul-
turais partilhadas pelos membros de um grupo dado e que é construído
a partir de crenças, experiências e do conhecimento; assim, a argumen-
tação depende dos fatores situacionais, isto é, da influência determinada
pela situação de troca e pelo contrato de fala. Além disso, para Charau-
deau, na busca pela influência, que consiste em fazer o outro partilhar
um universo de discurso, o enunciador pode lançar mão de um processo
lógico e de outros meios, como os proporcionados pelo dispositivo enun-
ciativo adotado e pelos modos de organização do discurso.
Charaudeau (2001) afirma que o sujeito desenvolve estratégias de ar-
gumentação em função das finalidades de influência que correspondem
a seu projeto de fala. O dispositivo argumentativo será constituído pela
tese a ser postulada e pelos universos de problematização e contextuali-
zação, implícitos e explícitos. Essas estratégias se desenvolvem de forma
a determinar a posição de autoridade do sujeito falante, reforçando sua

143
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

legitimidade. Além disso, servem para dotar o discurso de credibilidade


e, finalmente, para atrair o destinatário.
Para tanto, o sujeito se valerá de procedimentos argumentativos a
fim de legitimar ou inferir credibilidade à sua fala, ou ainda captar o seu
interlocutor. Na tentativa de legitimação, o enunciador3 se apoiará numa
posição de autoridade (seja institucional ou pessoal) para se pronunciar.
Já na tentativa de alcançar credibilidade, ele se manifestará de maneira
a determinar uma posição de verdade. Ora o enunciador optará pela
neutralidade, ora pelo engajamento. E, por fim, quando estiver em cena
o jogo de captação, ele tentará convencer o interlocutor sobre sua fala.
Para isso, a argumentação vai se apoiar em procedimentos semânticos
e discursivos.
Toda argumentação tem como objetivo principal estimular a adesão
de seus interlocutores a determinadas teses, de modo a neles criar uma
predisposição para uma ação efetiva. Para que haja a argumentação, esta-
belece-se entre os indivíduos um contrato intelectual, baseado principal-
mente no fato de eles pertencerem aos mesmos contextos sócio-históricos.
Portanto, a existência de um dispositivo argumentativo não é o único res-
ponsável pela argumentação de um texto. Esta depende também dos fa-
tores determinados pela situação de troca e pelo contrato de fala.

2. Religião e poder: por que discutir religião nos nossos dias?


Poderíamos nos perguntar sobre a pertinência de uma obra como
essa, que discute, em termos gerais, o papel da religião nos dias de hoje.
As respostas podem ser várias, mas temos a convicção de que todas re-
metem ao papel que a religião exerce e sempre exerceu como instância
de poder na sociedade, tanto por sua presença, quanto pela compreen-
são das relações sociais que proporciona aos fiéis, a partir de preceitos
definidos e mediados pelas diversas Igrejas. É comum, portanto, que os
indivíduos recorram a ela para compreender seu lugar no mundo, para
compreender a si mesmos e para balizar valores e comportamentos. Essa
influência, que afeta o comportamento moral, ético e político do fiel e,
3
Tomamos aqui as expressões “enunciador” e “locutor” como sinônimos.

144
A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

consequentemente, a sua própria identidade, é ressaltada em Lemos


(2005), quando afirma:
É exatamente por trabalhar com questões simbólicas que os dis-
cursos religiosos interferem na elaboração e difusão dos símbolos
culturalmente disponíveis, dos conceitos normativos, das noções
de fixidade e de identidade. Ao interferir na elaboração e difusão
destes elementos em conexão com outros campos da cultura, os
discursos religiosos penetram no âmago das concepções de vida
das pessoas. (LEMOS, 2005, p. 127)

A relação entre religião e poder foi estudada por autores como Fou-
cault e Bourdieu, no âmbito da Filosofia e da Sociologia, respectivamente.
Uma das discussões mais consistentes em torno da relação entre re-
ligião e poder foi empreendida por Foucault (2004). O tema da religião
é abordado em trabalhos nos quais esse autor estuda a chamada “genea-
logia do sujeito moderno” e se encontra em estudos que tratam de temas
como a sexualidade e a loucura. O autor considera que a religião — es-
pecificamente o Cristianismo — interfere decisivamente na constituição
do sujeito. Aborda o chamado poder pastoral, que apresenta algumas
características, dentre as quais, a possibilidade de proporcionar a salva-
ção àquele que nele crê.
O poder que a religião exerce na sociedade é também objeto de re-
flexão de Bourdieu. Para Bourdieu (1974), a religião é vista como veículo
de um poder simbólico. No seu entender, as práticas religiosas interfe-
rem nas relações de classe, uma vez que contribuem para a reprodução
e a permanência da ordem estabelecida. Assim,
Em uma sociedade dividida em classes, a estrutura dos sistemas
de representações e práticas religiosas próprias aos diferentes gru-
pos ou classes, contribui para a perpetuação e para a reprodução
da ordem social (no sentido de estrutura das relações estabeleci-
das entre os grupos e as classes) ao contribuir para consagrá-la,
ou seja, sancioná-la e santificá-la. (BOURDIEU, 1974, p. 52)

Enfim, colocar o “crer” em questão é também refletir sobre a vali-


dade e a pertinência dessa influência da religião na atualidade.

145
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

3. Argumentação no discurso religioso


Reboul (2000) aponta que um grande problema que se apresenta a
partir da implantação gradativa do cristianismo é a relação da nova re-
ligião com a cultura antiga, considerada idólatra, pagã e imoral. Porém,
com o tempo, os cristãos acabaram assimilando as contribuições da cul-
tura antiga, o que inclui a retórica. Reboul identifica duas razões prin-
cipais que justificariam a apropriação da retórica por parte da Igreja. A
primeira seria uma necessidade de a Igreja recorrer, em seu papel mis-
sionário, a mecanismos de comunicação e persuasão. A segunda seria o
caráter profundamente retórico da Bíblia, documento repleto de metá-
foras, alegorias, antíteses e que precisava não apenas ser lido, mas tam-
bém ser compreendido.
Nos debates transcritos no livro “Crer ou não crer...”, como foi dito,
evidencia-se o exercício da argumentação da parte de um cristão e de
um ateu, que pretendem convencer um ao outro e, principalmente, ao
público leitor, da pertinência do seu ponto de vista. Sendo assim, a pró-
pria existência desse tipo de debate comprova a necessidade de a Igreja
informar, instruir e convencer o grande público acerca da validade dos
princípios por ela defendidos.
A publicação desse livro é, portanto, um exemplo do esforço das
Igrejas, em geral, e do catolicismo, especificamente, de trazer a público
o debate em torno da religião, empreendimento ao qual o Padre Fábio
de Melo tem-se dedicado nos últimos anos, por meio não só da publi-
cação de livros, mas também da gravação de CDs, DVDs, apresentação
de shows e programas de TV.
Adotando os parâmetros definidos anteriormente, tanto por
Amossy quanto por Charaudeau, pretendemos analisar o diálogo entre
Karnal e Fábio de Melo do ponto de vista da situação de comunicação,
levando em conta os procedimentos semânticos e discursivos adotados
na encenação argumentativa.

146
A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

4. estratégias discursivas no diálogo entre Fábio de Melo e Lean-


dro Karnal: um jogo dialético e argumentativo
I. Descrição da situação de comunicação
A situação de comunicação da qual emergem as falas a serem ana-
lisadas é um diálogo que tem como finalidade a confecção e a publicação
de um livro em que se discutem os pontos de vista de um ateu e de um
religioso católico. Como não se trata de um mero diálogo, mas de um
debate que visa à produção de um livro, apresentam-se dois protagonis-
tas que alternam os papéis de enunciador e de interpretante a todo mo-
mento e que projetam, ambos, um destinatário duplo: o colega com o
qual dialogam e o eventual leitor do livro. Sendo assim, trata-se de um
diálogo que mais se assemelha a um debate e que se caracteriza por uma
finalidade argumentativa de ambas as partes. Temos aqui uma combi-
nação entre dialética e retórica. Entendemos a dialética nos termos de
Aristóteles, como “a arte do diálogo ordenado” (REBOUL, 2000, p. 28).
Num embate dialético é necessário levar em conta o interlocutor, pla-
nejando os argumentos em função dele. É isso o que acontece no diálogo
entre Karnal e padre Fábio.
Nele predominam as visadas de informação e incitação, porém a
tentativa de convencer sobre a pertinência do ponto de vista defendido
não se direciona apenas ao parceiro direto, mas também ao leitor, des-
tinatário secundário, que vai buscar no livro informações para pautar a
sua convicção ou fundamentos para uma tomada de posição diante da
dúvida entre crer ou não crer. Assim, os envolvidos representam posi-
ções institucionais e não apenas convicções individuais, estando cientes
de que a defesa dos valores pregados pelas posições que eles representam
pode colaborar para a mudança ou para a manutenção de opiniões do
público leitor do livro.
O diálogo se inicia a partir da pergunta de Karnal: Religiões ajudam
ou atrapalham o mundo? Karnal defende a tese de que as religiões são
prejudiciais, enquanto o Padre Fábio, ao contrário, procura apresentar
argumentos que destacam a importância das religiões.

147
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

II. procedimentos da encenação argumentativa


De acordo com Charaudeau (2008), a encenação argumentativa
consiste na utilização, por parte do sujeito argumentante, de procedi-
mentos pertencentes ao modo de organização argumentativo para ob-
tenção do seu propósito de comunicação, em função da situação de
comunicação em que se encontra e do seu destinatário. É o que aborda-
remos a seguir, partindo da descrição da situação de troca, para, em se-
guida, estudarmos as organizações descritivas das falas dos participantes.

III. Situação de troca


Temos, no capítulo analisado, uma situação de troca dialogal, em que
a “Proposta, Proposição e Persuasão se desenvolvem ao longo das réplicas
que se sucedem na troca linguageira.” (CHARAUDEAU, 2008, p. 227)
Para Charaudeau (2008), ao longo de uma interação, o sujeito pode
manifestar diferentes posições em relação ao emissor da proposta e/ou
em relação à própria argumentação. Em relação ao emissor da proposta,
pode apresentar rejeição ou aceitação de seu estatuto. No primeiro caso,
ele não dá crédito (ou dá pouco crédito) a quem emitiu a asserção com
valor argumentativo. No segundo caso, o sujeito envolvido numa inte-
ração com finalidade argumentativa pode admitir que os outros parti-
cipantes têm autoridade, crédito e saber para participar de um quadro
de questionamento.
O diálogo analisado é construído por dois sujeitos engajados em
teses divergentes, o que cria a expectativa de um embate. Tratando-se
de um diálogo entre um católico e um ateu, era de se esperar que hou-
vesse, de ambas as partes, uma rejeição do status do emissor, ou seja,
seria esperado que um sujeito não desse crédito ao outro. No entanto,
não é isso que acontece aqui. Há, de ambas as partes, um respeito pela
figura do outro, o que indica uma atitude “civilizada”. Assim, o sujeito
admite que o outro tem autoridade suficiente, crédito e saber para par-
ticipar do debate.

148
A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

padre Fábio: “Você, por exemplo, é ateu. Mas eu gosto de ouvi-


lo. Sua reflexão acerca das questões humanas me enriquece.”(p.86)
Karnal: [...] essa religião absolutamente simpática me dá a ime-
diata vontade de aderir ao ‘fabismo’, ou seja, ao cristianismo do
Padre Fábio, a me tornar um ‘fabiano’.” (p.83)

Constata-se não apenas uma aceitação do estatuto do interlocutor,


mas uma espécie de reverência mútua entre os participantes do debate, o
que é o prenúncio de uma discussão amistosa e respeitosa, apesar de haver
a defesa explícita e convicta de pontos de vista diferentes. Nessa perspec-
tiva, a postura dos debatedores, um diante do outro, reflete-se nos proce-
dimentos linguísticos e discursivos adotados ao longo do diálogo, que
muitas vezes se estrutura em torno de uma convergência de argumentos.
Quanto à posição em relação à argumentação, verificamos, ao longo
do diálogo, três modalidades básicas de relação entre teses e argumentos
expostos pelos dois debatedores, a saber: convergência total, convergên-
cia parcial e divergência total. Vejamos cada um desses casos, acompa-
nhados de exemplos extraídos do corpus.

I. Convergência
Uma das características principais do debate entre Karnal e Padre
Fábio é o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) denominam “intera-
ção por convergência”. Para os autores:
A própria convergência é, todavia, uma afirmação que sempre
pode, num sistema não-formal, ser contestada, pois depende da in-
terpretação dada aos argumentos: a identidade das conclusões des-
tes jamais é absoluta, porquanto estas formam um todo com os
argumentos e adquirem seu significado da maneira pela qual se
chega a elas. (PERELMAN; OLBRECHTS-TyTECA, 1996, p. 535).

Portanto, de acordo com os autores, a convergência, inserida numa


interação argumentativa, pode conduzir a conclusões a favor de teses
divergentes. A partir dessa visão, identificamos, no diálogo em questão
tanto aquilo que denominamos interação por convergência total, quanto
o que chamamos de interação por convergência parcial. No primeiro
caso, que é menos frequente no diálogo analisado, há uma concordância

149
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

total do ponto de vista dos participantes. Já no segundo, que é mais re-


corrente, há uma aceitação parcial do que é dito, seguida de uma recusa.
Entendemos que essa forma de argumentação funciona, nesse contexto,
como um procedimento que visa defender um ponto de vista divergente,
partindo de opiniões aparentemente compatíveis. Veremos a seguir al-
guns exemplos desses dois tipos de convergência nos dados analisados.

Convergência total: é a organização menos frequente no diálogo em


questão, como era de se esperar, uma vez que os participantes defendem
teses divergentes sobre a religião. Mesmo assim, em algumas situações,
há uma aceitação da argumentação do outro, o que mostra a tolerância
da parte de ambos.
Karnal: Na essência da organização religiosa estão a normatiza-
ção e a definição de algum tipo de ortodoxia. (p. 95)
pe. Fábio: Sim, Deus costuma ser vítima da inteligência humana.
Movidas por sentimentos e regras religiosas, muitas pessoas fo-
mentaram o absurdo em nome Dele. (p. 96)
Karnal: Eu acho que a arte, por exemplo uma imagem do Sagrado
Coração de Jesus, é um signo aberto. E, sendo um signo aberto,
pode ser interpretado de várias maneiras. [...] E vai se tornar uma
pessoa melhor graças ao símbolo material. (p. 109)
pe. Fábio: Com certeza.
Karnal: Meu livrinho de orações dava a tabela do que cada gesto
valia. Tinha bônus quando feito com água benta. (p.111)
pe. Fábio: Sim, a água benta dava um plus. (p.111)
Karnal: Porque eu acho que o que a psicanálise luta para fazer em
anos é o que um confessionário faz em minutos. (p. 103)
pe. Fábio: Concordo. A autoridade sacerdotal me permite gran-
des feitos. (p. 103)
pe. Fábio: Creditar poder de proteção à materialidade de um ob-
jeto é praticar o paganismo que Jesus condenou. Falta teologia,
catequese para esclarecer o papel do símbolo. (p.108)
Karnal: Eu tenho certeza disso, não discordo um milímetro. (p.108)

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A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

Há também casos de sequência de convergências, em que os parti-


cipantes desenvolvem uma mesma tese de forma colaborativa:
pe. Fábio: Muitos adentram o espaço religioso da mesma forma
como adentram um mercado de especiarias. (p.113)

Karnal: Sem distinção do sagrado e do profano. (p.113)

pe. Fábio: É, falando alto, sem nenhum respeito ao espaço reli-


gioso. Os celulares que fotografam, as máquinas filmadoras mu-
daram radicalmente o comportamento humano. O foco deixou
de ser a experiência mística e passou a ser, para muitos, a foto-
grafia que faremos.[...] (p.113)

Karnal: Acho que o momento mais difícil é entrar no Santo Se-


pulcro e a pessoa estar fazendo selfie. (p.113)

pe. Fábio: Justamente. (p. 113)

Na passagem acima, ambos defendem que falta reverência aos es-


paços sagrados e que as pessoas já não distinguem sagrado e profano.

Convergência parcial: trata-se da organização mais frequente no diá-


logo, que revela não só uma espécie de diplomacia por parte dos envol-
vidos, que evitam, em geral, desqualificar diretamente o ponto de vista
do outro, mas também uma estratégia por meio da qual se parte de um
ponto de vista comum, para em seguida rebatê-lo, com o uso de uma
concessão restritiva, inserindo-se, portanto, numa contra-argumenta-
ção. Essa estratégia é usada de modo mais frequente pelo padre Fábio,
como mostra o quadro na página seguinte.

II. Divergência
A divergência total é a ordem menos frequente no diálogo em ques-
tão. Nessa forma de organização, um dos participantes do diálogo se
opõe explicitamente e radicalmente à tese e aos argumentos defendidos
pelo outro participante. Alguns exemplos são:
Karnal: O mundo é inviável. A espécie humana é inviável. (p. 100)

151
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

Contra-argumentação
Tese de Karnal
de Fábio de Melo
Parte 1: Parte 2:
Teses Asserções de base Concordância Refutação
parcial de Fábio
As religiões se [...] para o cristia- E é por isso que o reco- Esse é o meu empenho-
se corromperam nismo conquistar o nhecimentoque Cons- diário. Resgatar essa
em alianças ImpérioRomano, ele tantino deu ao raiz, voltar às intenções
com o Estado teve que se associar cristianismo,oficiali- de Jesus, ao desejo que
paraobterem su- ao Estado Romano. zando-ocomo religião Ele tinha de que Seus
cesso. (p. 89) do Estado, continua discípulosfossem pro-
sendo umdesafio para motores de uma nova
nós, cristãos. (p. 89) sociedade. (p. 91)
Eu sei que a Igreja só É a elas que eu me
tem retas intenções prendo. (p.91)
emsua origem. (p.91)
Apesar de ter à Sem dúvida que é Também reconheço que Mas ela venceu mais do
sua frente uma muito simpático um em muitas situações his- que perdeu. Ela conti-
figura carismá- papa como o Cardeal tóricas a Igreja perdeu a nua sendo a instituição
tica, a Igreja Bergoglio, (...). Só que oportunidade de ajudar que mais faz caridade
continua sendo ele continuasendo o na internalização de va- no mundo. (p.95)
conservadora. dirigente de uma ins- lores, limitando-se a ser
tituição pesada, an- uma instância de medo
tiga, tradicional, que e julgamento. (p.95)
na essência continua,
por exemplo, não or-
denando mulheres,
apesar de falar da
igualdade.(p. 93-94)
A Igreja é é, his- Antigamente, em co- Sim, Deus costuma ser Eu acredito que os va-
toricamente, re- légios, amarrava-se a vítima da inteligência lores cristãos, quan-
pressora. mão da criança ca- humana. Movidas por dointernalizados, nos
nhota para que ela- sentimentos e regras re- salvamdo absurdo. (p.
não escrevesse com a ligiosas, muitas pessoas 95)
mão “errada”. (p.95) fomentaram o absurdo
em nome
Dele.(p.96)Muitas peda-
gogias que que nasce-
ram à sombra do
cristianismo são peda-
gogias absolutamente
cruéis. (p. 95)
As religiões se Aliás, os estádiosde Justamente. (p.100) Mas as caterses dos es-
aproximam de futebol têm umaraiz tádios diferem das ca-
espetáculos. muito próxima à ca- tarses religiosas, pois
tarse religiosa...(p. delas nós não espera-
100) mos mudança de vida,
comprometimento com
as questões humanas,
amor, respeito, solida-
riedade.(p.100)

Quadro 1— exemplos de convergência parcial

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A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
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pe. Fábio: Você diz que somos inviáveis. Esse pessimimsmo não
combina com você. (p. 101)
Karnal: Então, aparentemente, esse céu é um lugar onde só tem
a Madre Teresa. Esse céu só permite pessoas como Madre Teresa,
tão elevadas de espírito. (...) (p. 96)
pe. Fábio: Mas há muitos que alcançaram essa elevação espiritual.
(p. 97)

Esses dados nos mostram diferentes estratégias pelas quais os pro-


tagonistas do diálogo procuram defender seus pontos de vista, reba-
tendo, de forma mais ou menos incisiva, o argumento do outro. A seguir
veremos como cada envolvido no diálogo apresenta suas propostas, des-
tacando os principais procedimentos utilizados por cada um deles.

5. A organização argumentativa do discurso de Leandro Karnal


Embora demonstre certa reverência à figura do Padre Fábio, Lean-
dro Karnal não abre mão dos princípios gerais defendidos pelos ateus,
que se resumem na descrença em deus/deuses e em qualquer explicação
sobrenatural para os fatos. No diálogo em questão, ele enfatiza os pontos
negativos do cristianismo, especialmente do catolicismo, o que se explica
pelo fato de o interlocutor ser um padre católico. Para fundamentar a
tese de que a Igreja ou as religiões são nocivas, Karnal recorre preferen-
cialmente a saberes de conhecimento, do campo da História. Trata-se
aqui de uma clara influência do sujeito-comunicante (o historiador)
sobre o enunciador (o debatedor) e de uma interferência da formação à
qual pertence, que privilegia explicações objetivas para os fatos. Esse
tom mais objetivo de suas colocações é expresso por meio de uma pre-
dominância da modalidade delocutiva, uso compatível com a exposição
de saberes de conhecimento.
Sua proposta de que as Igrejas são prejudiciais é alicerçada em al-
gumas teses que são apresentadas ao longo do diálogo, das quais desta-
camos as que consideramos centrais no debate. Transcrevemos as
asserções a elas correspondentes:

153
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

Teses de Karnal Asserções


As religiões causam alienação. Essa crença na divina providência pode levar
a uma alienação: eu me torno massa de ma-
nobra de um destino, geralmente assumido
por líderes religiosos. (p. 82)

A religião é uma instituição comprometida A religião que funcionou historicamente no


econômica e juridicamente. mundo é a religião institucional com nor-
mas, prêmios e castigos. As religiões pos-
suem autoridades pagas, coletoras de taxas,
prédios e bens, influência política e entidade
jurídica. (p. 83)
O cristianismo inspirado no exemplo deJe- Então a pergunta é se a religião sobre a qual
sus não é praticado nem é viável. você fala, a fé que você está defendendo, que
é absolutamente bonita e poética... quantas
pessoas podem seguir? (p. 84)O cristianismo
é fruto de Paulo e não de Jesus. (p. 88)
Com a institucionalização, a Igreja perdeu o Para o cristianismo conquistar o Império
carisma. Romano, ele teve que se associar ao Estado
Romano. (p. 89)A religião que funcionou
historicamente no mundo é a religião insti-
tucional com normas, prêmios e castigos. As
religiões possuem autoridades pagas, coleto-
ras de taxas, prédios e bens, influência polí-
tica e entidade jurídica.” (p.83)Os
protestantes queimaram um médico, Miguel
Servet, em Genebra. A perseguição às bruxas
era comum a protestantes e católicos. Na es-
sência da organização religiosa estão a nor-
matização e a definição de algum tipo de
ortodoxia.(p. 95)
A Igreja se mantém conservadora. Só que ele (o Papa) continua sendo o líder
de uma instituição pesada, antiga, tradicio-
nal, que na essência continua, por exemplo,
não ordenando mulheres, apesar de falar da
igualdade. (p.94)
A Igreja é repressora. A Igreja transformou-se num mundo dera-
dares. (p.94)O catolicismo como experiência
histórica estabelece uma parte importante
desse discurso repressivo que torna o mundo
um lugar difícil.(p.96)

Quadro 2 — Teses de Karnal

Para fundamentar suas teses, Karnal recorre a alguns procedimentos


semânticos e discursivos. Os procedimentos semânticos, segundo Cha-
raudeau, se baseiam na utilização de argumentos fundamentados num
consenso social, em determinados domínios de avaliação. Na fala de
Karnal predominam os domínios do pragmático, do ético e da verdade.

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A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

Karnal recorre ao domínio do pragmático ao defender a tese de que


o cristianismo inspirado no exemplo de Jesus não é praticado nem é viá-
vel. Para o historiador, a fé “bonita e poética”, a qual ele denomina “fa-
bismo”, em que se aceitam diferenças e contradições não é viável para
os 2 bilhões de cristãos do mundo. Recorre, além disso, ao domínio do
ético ao defender a tese de que a Igreja é repressora. Para isso, recupera
o período de implantação do cristianimo, em que a Igreja teria se asso-
ciado ao Estado, abrindo mão do seu carisma.
Muito frequente também é a utilização do domínio da verdade. Por
meio de dados fundamentados historicamente e expressos por meio de
asserções delocutivas, Karnal procura assumir como verdades muitas
das teses que defende, tais como a proposta de que a Igreja é repressora:
O catolicismo como experiência histórica estabelece uma parte
importante desse discurso repressivo que torna o mundo um
lugar difícil. (p. 96)

Em termos de procedimentos discursivos, Karnal recorre frequen-


temente à argumentação pelo exemplo. Acredita-se que exemplos
podem funcionar como uma prova, uma vez que, a partir deles, for-
mula-se um princípio geral a partir de casos particulares ou da possibi-
lidade de casos semelhantes se repetirem. Sendo assim, Karnal, pauta-se
em exemplos de fatos registrados na História para fundamentar suas
teses. Para defender que a Igreja é repressora apresenta, entre outros, o
seguinte exemplo:
Os protestantes queimaram um médico, Miguel Server, em Ge-
nebra. A perseguição às bruxas era comum a protestantes e cató-
licos. (p. 95)

Também ao defender a tese de que a Igreja é conservadora cita a po-


sição do papa, quando era cardeal, sobre o casamento gay:
Por exemplo, o atual papa, quando ainda era cardeal, criticou a apro-
vação da lei que legalizava o casamento gay na Argentina. (p. 94)

A sequência de argumentos visando defender a tese geral de que a


religião é prejudicial provoca uma estruturação da fala do outro parceiro
do diálogo, baseada numa contra-argumentação. Veremos na sequência
como se dá a organização argumentativa da fala do Padre Fábio.

155
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

6. A organização argumentativa do discurso do padre Fábio de


Melo
No diálogo em questão constata-se que, embora o Padre Fábio de-
fenda a tese de que a Igreja mais ajuda do que atrapalha, ele constrói
essa tese a partir do reconhecimento de uma série de problemas enfren-
tados pela Igreja que são levantados por Leandro Karnal. Podemos dizer,
portanto, que, na fala do padre, há uma estrutura concessiva que poderia
ser resumida da seguinte forma: embora a Igreja apresente problemas,
ela mais ajuda do que atrapalha.
Uma evidência de que na fala se expressa essa organização que relati-
viza o papel da Igreja se encontra logo no início do diálogo, quando, diante
da pergunta de Karnal (“religiões ajudam ou atrapalham o mundo?”), o
padre responde com um surpreendente “Depende”. Assumindo que “um
discurso religioso tanto pode favorecer a maturidade humana como pode
dificultá-la” anuncia uma abordagem sem radicalismos e — ousaríamos
dizer — mais democrática do tema proposto. A admissão da tese de que a
religião pode, sim, ser nociva em algumas circunstâncias está expressa ex-
plicitamente em algumas asserções, ao longo do texto, como em:
Quando movida por interesses políticos, econômicos, ideológi-
cos, a religião torna-se um mero instrumento de poder. (p. 79)
Quando a fé em Deus não se desdobre em amor à vida, a religião
pode ser tornar um instrumento de alienação (...) (p.81)

Porém, o padre dá a entender que o lado nocivo das religiões não


está nas religiões em si, mas na interpretação que as pessoas fazem delas.
Assim, a princípio, as religiões não são movidas por interesse ou não
promovem a alienação, mas essas atitudes acabem sendo corrupções dos
seus sentidos originais. E, ao citar argumentos a favor dessa proposta,
recorre ao cristianismo:
Eu também acredito que esse cristianismo fecundo não é fácil de
ser assimilado e vivido. (...) A proposta de Jesus não é simples;
pelo contrário, é muito sofisticada. (p.85)

Quanto aos procedimentos semânticos, predomina na fala do


padre Fábio o uso do domínio do ético. Ele procura enfatizar que os

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A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

ensinamentos bíblicos se pautam em princípios éticos e que, se há pro-


blemas decorrentes da religião, eles se devem não a esses princípios,
mas a dificuldades que as pessoas têm em interpretá-los e colocá-los
em prática.Sendo assim, pauta-se no argumento pelo modelo para fun-
damentar a tese de que a religião não atrapalha; pelo contrário, ela ajuda
o indivíduo. Para Reboul (2000), o modelo é um exemplo apresentado
como digno de ser imitado, servindo como norma. Reconhecendo que
a igreja, ao longo do tempo, se corrompeu em vários setores, propõe
como modelo o amor de Deus, o comportamento dos primeiros cristãos
e, naturalmente, de Jesus Cristo, como mostram os seguintes exemplos:
Deus é misericordioso porque é justo. (p.91)
Os Evangelhos estão repletos de histórias que naturalmente nos
oferecem o código ético do Reino. (p. 90)
Em Jesus nós compreendemos que Deus é misericórdia. (p.91)
Jesus é a lei, o código a ser consultado.Para nós, cristãos, Nele
temos a nova e definitiva legislação. (p. 92)

Assume, por meio de um argumento de comparação, que a Igreja é


diferente do divino, sendo limitada, passível de erros e de interpretações
equivocadas do exemplo de Deus, mas que essas dificuldades não
podem comprometer a imagem e o papel da religião. Por meio da mo-
dalidade elocutiva, expressa sua convicção de que os valores pregados
pela Igreja, uma vez assimilados, nos orientam para atitudes corretas:
Eu acredito que os valores cristãos, quando internalizados, nos
salvam do absurdo. (p. 95)

Em termos dos procedimentos argumentativos, destaca-se a com-


paração, que é usada para embasar uma argumentação facilitando, em
geral, a compreensão da tese que se pretende defender. Na comparação
transcrita abaixo o padre procura explicar que a capacidade de assimi-
lação dos princípios cristãos, que depende da fé, requer maturidade:
A fé é um dom que se assemelha à semente. Ela nunca é a mesma
porque está sempre se transformando. (p. 88)

E, em outros momentos, chega a assumir que a dificuldade em in-


terpretar os ensinamentos de Deus pode corromper o homem:

157
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

Deus costuma ser vítima da inteligência humana. Movidos por


sentimentos e regras religiosas, muitas pessoas fomentaram o ab-
surdo em nome Dele. (p.96)

Essa interpretação equivocada pode corromper a própria imagem


de Deus, o que poderia ser uma das causas do ateísmo:
O ateísmo, em muitos casos, é a tomada de consciência de que o
Deus a quem fomos apresentados é bem pior do que nós. Sua ca-
pacidade de ser cruel supera a nossa. (p. 96)

Enumera algumas causas para essa dificuldade que as pessoas têm


em obter uma “elevação espiritual” (p. 97), dentre elas, a superficialidade
das relações e da estrutura social e a substituição da produção cultural
pelo entretenimento.
Destaca-se, entre os procedimentos usados pelo padre Fábio para
defender a tese de que a religião é benéfica ao ser humano, a descrição
narrativa. Por meio dela, o padre relata experiências vividas por ele para
reforçar a ideia de que as religiões em si não são prejudiciais, mas elas
dependem da interpretação que as pessoas fazem de seus princípios e
da forma como as pessoas a vivem no seu dia a dia. Sendo passagens
centradas em experiências pessoais, são marcadas pelo uso da modali-
dade elocutiva, com predomínio da primeira pessoa:
Eu atuo no espaço que posso, com aqueles que se dispõem a me
ouvir. Há doze anos apresento um programa de televisão em que
falo com as pessoas todas as quartas-feiras. Mas, como você
mesmo disse, eu também acredito que esse cristianismo fecundo
não é fácil de ser assimilado e vivido. Em muitos momentos do
meu discurso, você vai me encontrar dizendo isso. Requer matu-
ridade espiritual. A proposta de Jesus não é simples; pelo contrá-
rio, é muito sofisticada. (p. 85)

Verifica-se, portanto, uma argumentação voltada para rebater a tese


geral defendida por Karnal de que a religião é prejudicial. Para isso, o
padre se baseia em convicções pautadas em avaliações extraídas de ex-
periências pessoais, o que dá um tom mais subjetivo à sua fala, estando
essa mais sujeita a provocar um efeito patêmico sobre o parceiro e de-
mais destinatários da interação. Contudo, fica claro que essas experiên-
cias não são apenas descritas, mas reinterpretadas a partir de uma

158
A ReLIGIÃO AJUDA OU ATRApALHA? UMA ANÁLISe ARGUMeNTATIVA DO DebATe eNTRe FÁbIO De MeLO e
LeANDRO KARNAL, NO LIVRO CRER OU NÃO CRER.

posição que inclui os filtros fornecidos pelo domínio de avaliação reli-


gioso, ao qual o padre se vincula.
Compreendemos, apoiados em Orofiamma (2008), que a narrativa
de vida é um discurso que visa a produzir um efeito sobre o interlocutor.
Logo, tanto sua forma quanto seu conteúdo resultam das circunstâncias
em que a narrativa é inserida. Não se trata, portanto, de uma mera atua-
lização de fatos passados, mas de uma reconstrução estritamente ligada
ao momento de enunciação. É isso que se dá com as narrativas inseridas
pelo padre Fábio. Apoiando-se em sua experiência pessoal e sacerdotal,
que se pauta, segundo ele, no cristianismo em sua essência — um cris-
tianismo, diríamos, “de raiz” —, traduzido nos evangelhos, na vida de
Jesus neles relatada e nos exemplos dos primeiros cristãos, o padre tenta
provar que essa vivência da religião é não só viável, mas essencial para
que as pessoas vivam em harmonia.

Considerações finais
O diálogo entre Leandro Karnal e Fábio de Melo compõe uma obra
que exerce, entre outras funções, a finalidade de dar visibilidade às questões
relacionadas ao papel da religião na nossa sociedade. O diálogo exemplifica
um embate dialético e argumentativo em que uma série de procedimentos
são usados para pautar as teses defendidas pelos participantes. Destaca-se
que essas teses não são resultados de uma apreensão individual do tema,
mas representam posições às quais os envolvidos se vinculam.
Não se pode dizer que, nesse embate, há um vencedor, uma vez que
se trata de um diálogo aberto. Ganha, contudo, sem dúvida, o leitor, que,
ao acompanhar a discussão entre duas pessoas extremamente inteligen-
tes e conhecedoras do assunto, é levado a avaliar o real papel da religião
nos nossos dias. Por fim, o debate reforça o caráter pragmático e dialó-
gico da argumentação, que tem sido, atualmente, tão ressaltado no âm-
bito dos estudos discursivos.

159
MÔNICA SANTOS DE SOUZA MELO

Referências bibliográficas
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FOUCAULT, Michel. ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
LEMOS, Carolina Teles. Religião, gênero e sexualidade. O lugar da mulher na família
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MELO, Fábio de. Crer ou não crer: uma conversa sem rodeios entre um historiador ateu
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OROFIAMMA, Roselyne. Les figures du sujet dans le récit de vie. Sociologie et en for-
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PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado de argumentação: a nova retórica.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.

160
AS eMOÇÕeS NO DISCURSO SOb A peRSpeCTIVA
SeMIOLINGUÍSTICA

Renata Aiala de Mello

Introdução
A discussão acerca do papel das emoções no comportamento hu-
mano ainda é motivo de polêmica no âmbito de diversas áreas do co-
nhecimento. Constatamos que, no atual panorama das discussões, as
emoções não podem e não devem ser tratadas, debatidas a partir de um
único campo de pesquisa, de uma única disciplina, qualquer que seja
ela (Medicina, Filosofia, Psicologia, Artes, Ciências da Linguagem, etc.).
Desconsiderando, a princípio, as nuanças significativas existentes entre
essas áreas de conhecimento que tratam das paixões, poderíamos afir-
mar que elas se agrupam em dois grandes conjuntos que correspondem,
de um lado, à perspectiva imanentista, segundo a qual os sentimentos
seriam produtos da condição biológica do ser humano e, por outro lado,
à perspectiva social (a que adotamos), que postula uma concepção sim-
bólica das emoções, percebidas como estados subjetivos, determinados
pelas condições sociais e culturais e perpassadas na/pela linguagem.
Embora ainda seja um campo de investigação relativamente recente
para as Ciências da Linguagem, os estudos das emoções se configuram
como um tema de grande interesse para o desenvolvimento integral de
suas proposições teórico-metodológicas, já que contemplam uma di-
mensão constituinte de todo processo de interação social e se manifes-
tam, primordialmente, por meio dos discursos produzidos.
Preconiza-se, ainda assim, que não compete à Análise do Discurso (do-
ravante AD) e à Semiolinguística garantir a equivalência entre o efeito
pathêmico pretendido, a emoção manifestada no discurso e a emoção efe-
tivamente sentida pelos sujeitos. Para tratar das emoções em um deter-
minado corpus sob o viés da Semiolinguística, também chamada de
Teoria dos sujeitos em situação de comunicação, é preciso levar também
em consideração algumas premissas advindas de outras áreas do conhe-
cimento, como afirma Machado:

161
RENATA AIALA DE MELLO

No caso da Semiolinguística, a teoria dos sujeitos e a situação de


comunicação vão fazer apelo a dados vindos da Psicologia Social.
Para esta disciplina é importante estudar as sensações dos indi-
víduos face às percepções que têm do mundo; as emoções não
são causadas apenas pelas pulsões, pelo irracional ou por aquilo
que não se pode controlar: elas têm um caráter social, revelado
pelas trocas que os indivíduos estabelecem entre si, no âmbito da
comunicação. (MACHADO, 2007, p. 169)

Essa abertura teórica permite desenvolver pontos de vista diversos


e, por conseguinte, melhor direcionar novos olhares para a análise de
corpus os mais variados pelos (semio)linguistas, levando em considera-
ção a complexidade discursiva em sua dimensão tanto psíquica quanto
social (psicossocial). Consideradas sob esses parâmetros, questões liga-
das aos sujeitos falantes e interactantes, às suas emoções, se tornam ob-
jeto de estudo legítimo. Pensar os sujeitos e suas pathemizações nos
discursos equivale a pensar a dinâmica entre os indivíduos a partir da
concepção de sujeito como uma entidade constituída na interação
(psico)social.
Cabe ainda registrar que, para analisar as emoções no discurso, se
faz necessário também abordar alguns conceitos afins, convergentes e
tangenciais tais como estereótipo, saber de crença, imaginário e represen-
tação sociodiscursiva. Conceitos fortemente ligados aos procedimentos
que são de responsabilidade dos sujeitos envolvidos na interação, que
se ancoram nos universos sociais e contextuais, ou seja, que se adaptam
a liberdades e também a restrições, às possibilidades impostas/oferecidas
por aqueles textos e por aqueles discursos. Dessa forma, para a Semio-
linguística, analisar discursivamente um corpus, é preciso levar em con-
sideração as marcas linguísticas e enunciativas tais como as lexicais,
morfológicas, prosódicas, semânticas, argumentativas e persuasivas1 que
apontam para pathemias presentes. Compartilhamos, aqui, a visão de
Machado a respeito da presentificação do pathos no texto escrito:
1
Grosso modo, as “estratégias argumentativas” se ligam, a princípio, à razão, à lógica, ao logos e
aos fatos. Já as “estratégias persuasivas” se ligam, também a princípio, à emoção, ao apelo e ao
pathos. Aqui, ambas são tidas como complementares, visto que elas têm o mesmo objetivo
final, qual seja, o de convencer o interlocutor.

162
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

Quando pensamos em ‘emoções’ sendo passadas através do dis-


curso, e mais especificamente, através do discurso escrito, a ideia
de pathos nos vem logo à mente. A priori, esta ideia nos provoca
a seguinte sensação: imaginamos ‘explosões’ de recursos lingua-
geiros colocados no papel e que ali parecem ‘brotar’, a fim de fazer
com que uma determinada emoção entre na narrativa. (MA-
CHADO, 2007, p. 169)

Tomando como parâmetro esse posicionamento da estudiosa, algu-


mas questões instigantes e balizadoras se colocam:
— Como tratar das emoções em um corpus?

— Que procedimentos teórico-metodológicos utilizar para tra-


balhar com o conceito de pathos?

— Como as emoções se manifestam discursivamente?

— Quem (ou o que) pathemiza?

— Quais (e com que finalidades) as estratégias argumentativas e


persuasivas2 são utilizadas?

— Que marcas enunciativas permitem detectar a existência das


paixões em um determinado corpus?

— Quais tópicas seriam mais evidentes e mais recorrentes em um


determinado corpus analisado?

Optamos, nesse sentido, por trabalhar apenas com parte da Teoria


Semiolinguística de Charaudeau que trata das emoções no discurso de
uma maneira geral e, mais especificamente, das noções de pathos, sen-
timentos, paixões, afetos e sensações.3 Sem a pretensão de abarcar inte-
gralmente a obra do pesquisador, em toda a sua amplitude e
complexidade, privilegiamos somente textos nos quais ele lança mão,
direta e objetivamente, da noção de emoção no e pelo discurso. Recor-
tando um pouco mais, valemo-nos especificamente daquilo que acredi-
2
Por não corresponder diretamente à proposta deste texto, as noções de “argumentação” e “per-
suasão” não serão aqui aprofundadas.
3
Tratamos, aqui, do conceito de emoção e, juntamente com ele, com noções tidas ou como si-
nônimas de emoção ou tratadas como pertencentes ao mesmo campo semântico tais como
sentimento, paixão, afeto, pathos, pathemia e pathemização.

163
RENATA AIALA DE MELLO

tamos ser mais significativo e pertinente aos nossos fins e que possa efe-
tivamente ajudar a apresentar as contribuições da Semiolinguística para
os estudos discursivos sobre emoções. 4

1. As emoções segundo Charaudeau


A partir da leitura das obras do linguista que versam sobre as emo-
ções no discurso em geral e, mais especificamente, nos discursos político
e midiático, registramos seu posicionamento referente à abordagem in-
terdisciplinar do conceito e às delimitações teórico-metodológicas que
envolvem tanto a AD quanto as disciplinas afins5. Desse modo, (re)mar-
camos seu (e, por conseguinte, nosso) lugar de fala como analista do
discurso. Apresentamos também as contribuições do pesquisador para
o avanço dos estudos em AD, sobretudo no que diz respeito aos três
pontos que o estudioso vê como essenciais para o estudo do pathos no
discurso e às condições do efeito pathêmico.
Antes, porém, pontuamos o que Charaudeau diz sobre a nomencla-
tura a ser utilizada no tratamento da problemática das emoções no dis-
curso. Buscando destacar sua área de pesquisa e delimitar seu lugar de
fala, o autor (2000, 2010), afirma preferir os termos pathos, pathêmico e
pathemização ao invés de emoção. Todavia, em outro artigo (2007a,
2008), ele atesta não desejar entrar na discussão a respeito do emprego
de termos mais adequados a serem utilizados para designar esse con-
ceito. Essa abstenção se justifica, segundo o próprio autor, por trata-se
de termos susceptíveis de abarcar noções específicas, dependendo do
ponto de vista teórico também específico. Charaudeau se atem, nesse
momento, sem se aprofundar na questão, a diferenciar a noção de sen-
timento da noção de emoção, afirmando que a primeira estaria mais li-
gada à ordem da moral e a segunda mais ligada à ordem do sensível.
4
Lembramos que há diversos trabalhos de um leque de autores vinculados às áreas das Ciências
Humanas e Sociais, Letras e Linguística; autores tais como Amossy (2008), Aristóteles (2012),
Barthes (1970), Charaudeau (2010), Coudreuse (2001), Fiorin (2014), Greimas (1993), Ma-
chado (2007), Paperman (1995), Plantin (2011), dentre outros que estudam as emoções.
5
Charaudeau entende por áreas ou disciplinas afins aquelas de cunho retórico, sociológico, psi-
cossocial e sociodiscursivo que, com seus próprios pressupostos teóricos, específicos e parti-
culares, incluem, evidentemente, mas não exclusiva e especificamente, a comunicação como
fenômeno de produção de sentido social.

164
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

Entretanto, mesmo após essa demarcação, o estudioso decide por tomar


esses termos uns pelos outros.
Na esteira desses posicionamentos de Charaudeau, decidimos não
trazer para as nossas reflexões o debate a respeito de qual seria o melhor
termo, o mais apropriado, sob o ponto de vista da Linguística e da AD
para tratar das emoções. Assim sendo, usamos indistintamente os termos
sentimento, paixão, emoção e afeto para nos referir ao pathos e também
aos seus derivados. A razão dessa atitude é que abordamos as emoções,
evidentemente com cautela e com reservas, assim como Charaudeau o
faz, sob uma perspectiva discursiva, mas também interdisciplinar.
Aproveitamos esse momento para pedir uma licença (poética?) para
usar como correlatas de pathos, e a partir dessa grafia, as palavras pathè,
pathemia, pathêmica, pathético, pathemizante, pathemizado e pathemi-
zação, todas elas com “h” e em itálico, com o intuito de harmonizar essas
grafias com o termo pathos e de ficarmos, por conseguinte e coinciden-
temente, mais próximos da grafia em língua francesa: pathos, pathè, pat-
hémique, pathémisation, pathémisé, pathétique, que é, de modo geral, a
nossa segunda língua e, de modo particular, aquela que elegemos para
a leitura de várias obras em nossa carreira de analista do discurso e de
professora de francês.

2. A interdisciplinaridade nos estudos da emoção


Charaudeau faz questão de enfatizar que analisa as emoções no dis-
curso por meio de uma abordagem enunciativa, e não apenas psicosso-
cial, a partir do que ele chama de “trilogia da natureza do pathêmico”,
qual seja, a situação de comunicação, os universos de saberes partilhados
e as estratégias enunciativas. Daí, observamos a preocupação do pes-
quisador em situar seu lugar de fala, sob uma perspectiva que lhe “[...]
permite inserir a análise do discurso das emoções na filiação da retórica”
(CHARAUDEAU, 2010, p. 35 — grifo nosso), ainda que essa seja uma
área de conhecimento ou uma disciplina distinta da AD.6
6
Podemos perceber que, já na obra Langage et Discours (1983), Charaudeau absorve conceitos
vindos da Retórica.

165
RENATA AIALA DE MELLO

Vemos, desse modo, que a AD e, sobretudo, a Semiolinguística, se


constitui como uma disciplina de caráter interdisciplinar, que “bebe em
outras fontes”. Se trabalhar com emoções, paixões, pathos é estar pró-
ximo, na interface com a Retórica, que isso seja feito, segundo o autor,
a partir de uma teoria do sujeito e levando-se em conta a situação de
comunicação. O autor adverte que
Com relação aos fenômenos sociais, quaisquer que sejam, há
sempre várias análises [e abordagens] possíveis que dependem
do ponto de vista que se escolhe e da disciplina que lhe serve de
apoio. [...] Nenhum desses tipos de abordagem exclui os demais,
sendo que toda abordagem disciplinar, por definição, é parcial.
Mas uma das características das ciências humanas é a possível e
necessária articulação entre diferentes abordagens, o que carac-
teriza a interdisciplinaridade. (CHARAUDEAU, 2006a, p. 20-22)

Em um desdobramento desse pensamento, Charaudeau assevera


ainda que:
A definição e a classificação dos sistemas de pensamento não de-
pendem exclusivamente da análise do discurso: a Filosofia, a An-
tropologia Social, a Sociologia, a Psicologia Social contribuem
cada qual com sua parte. Entretanto, nenhuma delas é suficiente
para esgotar a questão; o ponto de vista de pertinência de cada
uma deve ser completado pelo das demais. É somente em uma
interdisciplinaridade a ser construída que serão encontradas ex-
plicações satisfatórias. (CHARAUDEAU, 2006b, p. 202-203)

E por fim, em outro texto, o autor reitera esse seu posicionamento,


agora, mais especificamente envolvendo a temática das emoções:
A primeira questão que um analista do discurso se coloca, ao tra-
tar das emoções, é saber se perante outras disciplinas das ciências
humanas e sociais esta noção pode ser objeto de um estudo espe-
cificamente linguageiro. Responder afirmativamente a essa ques-
tão supõe que delimitemos o quadro de tratamento no qual esta
noção se insere, que descrevamos as condições do seu surgimento
e que mostremos como isso se dá. (CHARAUDEAU, 2010, p. 23
— grifo nosso)

166
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

No que diz respeito às maneiras específicas, particulares, de estudar


os sentimentos em outras áreas de conhecimento, Charaudeau expõe
algumas razões às quais todo analista do discurso deve estar atento,
para, de maneira prudente, proceder ao trabalho de pesquisa. Passe-
mos, na sequência, a duas delas.
A AD se distinguiria, segundo o supracitado teórico, da psicologia
das emoções, que as aborda sob a perspectiva de reações sensoriais e
comportamentais dos indivíduos em relação às percepções que teriam
do mundo. Essa corrente de pensamento observa nas emoções o papel
desencadeador de pulsões, visto que as “[...] emoções podem ser pro-
vocadas fisiologicamente, e até mesmo mensuradas quimicamente.”
(CHARAUDEAU, 2010, p. 24). Nessa perspectiva, estudam-se, ainda,
nas emoções, as disposições de humor ou de caráter dos indivíduos (os
temperamentos), dentre outros aspectos. Ainda para a psicologia, as
emoções advêm de: (i) um “estado qualitativo” de ordem afetiva; (ii) de
um “estado mental intencional” de ordem racional e, por fim, (iii) as
emoções são origem de um “comportamento” que se manifesta por meio
das disposições de um sujeito, e controladas (até mesmo, sancionadas)
pelas normas sociais.
A AD também se distinguiria da sociologia das emoções, “[...] que
procura estabelecer categorias interpretativas, ideal-típicas [...] e intera-
cionistas” (CHARAUDEAU, 2010, p. 24-25 — grifo do autor). Essa ver-
tente se mostra interessada na problemática do comportamento
humano, no jogo das regulações e normas sociais, no grau de universa-
lidade e especificidade cultural inscrito nas emoções. Nesse sentido, de-
bruça-se também sobre a maior ou menor orientação acional, a
racionalidade, a coesão social e a coletividade com suas regras morais e
julgamentos, dentre outras questões.
Do que diz Charaudeau a respeito da psicologia e da sociologia das
emoções, percebemos que há entre elas muitos pontos em comum, mas
também entre essas áreas de conhecimento e a AD. Ambas se dedicam,
cada uma à sua maneira, a questões comportamentais dos sujeitos que
interessam sobremaneira também os estudiosos da AD. A interdiscipli-
naridade pode e deve ser vista, desse modo, como altamente benéfica,
pois rompe o isolamento e a divisão hermética das disciplinas e permite
que ultrapassemos as barreiras da compartimentalização do saber.

167
RENATA AIALA DE MELLO

A despeito do nosso posicionamento de levar em conta as contri-


buições de áreas afins, diz-se que a AD não poderia, em razão de seus
instrumentos teórico-metodológicos, observar as emoções como realidade
manifesta. É sabido, por conseguinte, que um analista do discurso não de-
veria tratar das reações sensoriais e naturais dos indivíduos perante a rea-
lidade e tampouco das pulsões humanas ou qualquer tipo de reação
comportamental. O linguista afirma isso em dois momentos distintos:
Em uma perspectiva da análise do discurso, os sentimentos não
podem ser considerados nem como uma sensação, nem como um
experimentado, nem como um expresso, pois, se de um lado, o dis-
curso pode ser portador e desencadeador de sentimentos ou emo-
ções, de outro, não é nele que se encontra a prova de autenticidade
do que se sente. Não se pode confundir, de um lado, o efeito que
pode produzir um discurso em relação ao possível surgimento de
um sentimento e, de outro, o sentimento como emoção sentida.
(CHARAUDEAU, 2007a, p. 241-242 — grifos do autor)
O objeto de estudo da análise do discurso não pode ser aquilo
que os sujeitos efetivamente sentem, nem aquilo que os motiva a
querer vivenciar ou agir, nem tampouco as normas gerais que re-
gulam as relações sociais e se constituem em categorias que so-
bredeterminam o comportamento dos grupos sociais.
(CHARAUDEAU. 2010, p. 25 — grifo nosso)

Vemos que Charaudeau se apoia em três pontos tidos como essen-


ciais para a abordagem discursiva da noção de emoção7; pontos que são
consenso entre sociólogos, psicólogos e filósofos. Para afirmar que as
emoções são de ordem intencional, o autor busca subsídios em Nus-
sbaum, Cayla e Elster (1995); para dizer que as emoções se ligam aos sa-
beres de crença, Charaudeau dialoga novamente com Elster e Nussbaum
(1995); e, finalmente, para sustentar que as emoções se inscrevem em
uma problemática da representação psicossocial, ele se apoia nos estudos
de Church (1995). Além disso, ao ligar a noção de emoção à visada pat-
hêmica, o analista do discurso cita évenot (1995) e novamente Elster
(1995); enfim, ao tratar da organização do universo pathêmico, ele se ba-
seia nas pesquisas desenvolvidas por Elster e Livet (1995).
7
Explanamos, mais adiante, os três pontos em questão. Por ora, nos limitamos a anunciá-los.

168
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

Continuando a delimitar o lugar do analista do discurso no trata-


mento das emoções e a propor uma série de reflexões a respeito dessa
questão, Charaudeau, apoiando-se nas três constatações supracitadas,
elenca, sem contudo, aprofundar, três problemas delas advindos, quando
analisa a pathemização no discurso: (i) a determinação do objeto dis-
cursivo; (ii) a organização do campo temático da emoção e (iii) a deter-
minação das marcas que seriam traços de emoção.
Em contrapartida a esses problemas, a AD, segundo o autor, pode e
deve tentar estudar o processo discursivo no qual as emoções emergem,
ou seja, tratá-las como um efeito visado, ainda que não haja garantias
sobre o efeito produzido. A emoção deve ser, assim, “[...] considerada
fora do vivenciado e apenas como um possível surgimento de seu sen-
tido em um sujeito específico em situação particular.” (CHARAUDEAU,
2010, p. 34). No que diz respeito ao efeito pathêmico, o autor assevera
que ele se dá através tanto da expressão quanto da descrição dos estados
emocionais. Na expressão pathêmica, a enunciação pode ser, ao mesmo
tempo, elocutiva e alocutiva, pois visa produzir um efeito no interlocu-
tor. Já na descrição pathêmica, a enunciação propõe ao interlocutor uma
cena dramatizante suscetível de produzir tal efeito.
Charaudeau nos alerta, enfim, a levar em conta tudo aquilo que cons-
titui a troca social e que produz sentidos no e pelo discurso como, por
exemplo, os desejos e as intenções dos sujeitos, suas relações de perten-
cimento a um grupo, o jogo das interações que se estabelecem entre esses
sujeitos ou grupos, os saberes de conhecimento e de crença que eles com-
partilham, além das circunstâncias da troca comunicativa, ao mesmo
tempo particulares e tipificadas. Isso porque, como afirma o teórico,
Levando-se em consideração que qualquer ato de discurso, sendo
em parte limitado por condições situacionais (que chamo de “con-
trato de comunicação” [a primeira sobredeterminação do sentido
de discurso]), e em parte deixado para a responsabilidade do su-
jeito da enunciação (que chamo de “espaço de estratégia”), pode-
mos dizer que a patemização do discurso resulta de um jogo entre
limitações e liberdades enunciativas: é preciso condições de pos-
síveis visadas patêmicas inscritas no tipo de troca. Entretanto, essas
visadas, se elas são necessárias, não são suficientes. Isso porque o
sujeito de enunciação pode escolher entre reforçá-las, apagá-las,

169
RENATA AIALA DE MELLO

ou até mesmo, acrescentar-lhes algo. (CHARAUDEAU, 2010, p.


40 — grifos nossos)

Todos esses aspectos levantados pelo autor são, certamente, de


grande valia para os estudos das emoções no discurso. Pontuadas essas
questões abordadas pelo analista do discurso sobre a interdisciplinari-
dade e as interfaces da Semiolinguística, assumimos que, ao analisar as
emoções, os pesquisadores se valem, com ponderação, somente de parte
do instrumental teórico-metodológico construído pelas disciplinas afins.
Isso porque a pathemização, sendo algo especular, ultrapassa, evidente-
mente, os limites do texto e do discurso, ainda que mantenha neles seu
registro. Por essa razão, não podemos simplesmente desconsiderar que
o pathos também alcança domínios tanto psicológicos, sociológicos e fi-
siológicos quanto sensoriais e comportamentais que envolvem os inte-
ractantes e que afetam, inclusive, o corpo e sua linguagem.
Passemos, na sequência, aos três pontos fundamentais apontados
por Charaudeau para estudar os efeitos pathêmicos do/no discurso.

3. Os três pontos essenciais de Charaudeau


Segundo Charaudeau, há três pontos essenciais que precisam ser le-
vados em conta, ao estudar discursivamente as emoções. O primeiro
ponto, ou melhor, a primeira assertiva do autor é que as emoções são de
ordem intencional. Nesse sentido, a intencionalidade diz respeito às vi-
sadas e à situação de comunicação na qual o sujeito enunciador está in-
serido. As visadas são, por sua vez, da ordem do racional. As emoções
devem ser vistas, assim, como algo que vai além das simples sensações
e pulsões. O linguista defende esse pensamento sem, contudo, negar seu
pertencimento ao universo do afetivo. Ele compartilha das ideias de Els-
ter (1995) para afirmar que as emoções se inscrevem em um quadro de
racionalidade, já que elas se manifestam a partir de alguma coisa e, por
isso mesmo, podem ser consideradas intencionais: “[...] as emoções se
manifestam em um sujeito ‘a propósito’de algo que ele imagina, de algo
que possa ser nomeado de intencional.” (CHARAUDEAU, 2010, p. 28)
Continuando, Charaudeau, baseando-se nos estudos de Nussbaum
(1995), assevera que há diferenças entre emoções tais como amor, medo,

170
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

ódio... e impulsos, instintos e sensações físicas tais como frio, fome, sede.
Tem-se, por um lado, que as emoções estão muito mais ligadas ao campo
cognitivo e, por outro, que os impulsos se apresentam, ou melhor, se
ligam a algo externo a eles. Por essa razão, alguns dos teóricos ligam
emoções à racionalidade. Ainda que o teórico se negue a entrar no debate
“cognitivista” das emoções, ele, retomando os dizeres de Elster (1995),
e de maneira resumida, afirma que
[...] a racionalidade está a serviço de um agir para alcançar um objetivo
(não necessariamente atingido), cujo agente seria, de uma maneira ou
de outra, o primeiro beneficiário: ela [a racionalidade] compreende,
assim, uma visada acional. (CHARAUDEAU, 2010, p. 27)

Charaudeau acredita, no entanto, que o fato de as emoções se inscre-


verem em um quadro de racionalidade não é o suficiente para explicar
suas especificidades, suas particularidades. Ele afirma que essa visada acio-
nal deve ser desencadeada por algo da ordem do desejo. Trata-se de uma
racionalidade subjetiva ligada a um conjunto de possíveis, ou melhor, à
representação desse conjunto de possíveis, que envolve experiências pes-
soais, situações vividas e saberes de conhecimento e de crença dos inte-
ractantes. É necessário, ainda, que os sujeitos possam avaliar (julgar,
interpretar) esses saberes para poderem vivenciar/expressar suas emoções.
Esse raciocínio nos leva ao segundo ponto, ou melhor, à segunda assertiva
do autor, a de que as emoções são ligadas aos saberes de crença.
As emoções, além de estarem associadas a informações e a conhe-
cimentos que alguém possui, advêm de uma espécie de julgamento
subjetivo que cada indivíduo faz desses dados. Charaudeau, apoiando-
se nas pesquisas de Elster e de Nussbaum (1995), afirma que as emoções
são “[...] simplesmente uma espécie de crença e de julgamento” (2010, p.
29), ou melhor, são interpretações das circunstâncias, baseadas em jul-
gamentos de ordem moral ligadas às crenças partilhadas dentro de um
grupo social e, consequentemente, às sanções morais desse grupo: “[...]
emoções e crenças estão indissoluvelmente ligadas: qualquer modificação
de uma crença leva a uma modificação da emoção.” (CHARAUDEAU,
2010, p. 29). Podemos ratificar, daí, mais uma vez, a racionalidade (sub-
jetiva e circunstancial) das emoções.

171
RENATA AIALA DE MELLO

Passemos a palavra, neste momento, ao próprio pesquisador, que


resume, de forma esquemática, o que ele entende a respeito dos saberes
de crença ligados às emoções:
(i) as crenças são constituídas por um saber polarizado em torno
de valores socialmente compartilhados;

(ii) o sujeito mobiliza uma, ou várias, das redes inferenciais pro-


postas pelos universos de crença disponíveis na situação onde
ele se encontra, o que é susceptível de desencadear nele um
estado emocional;

(iii) o desencadeamento do estado emocional (ou sua ausência)


o coloca em contato com uma sanção social que culminará
em julgamentos diversos de ordem psicológica ou moral.
(CHARAUDEAU, 2010, p. 30)

Como próximo passo desse raciocínio, temos o terceiro ponto, ou


melhor, a terceira assertiva do autor, segundo a qual as emoções se ins-
crevem dentro de uma problemática das representações psicossociais. Se-
gundo o semiolinguista, a relação do sujeito com o mundo se dá através
da representação, de uma construção imaginada desse mundo, logo, um
mundo simbólico. Como essa representação do mundo volta ao sujeito,
que a interioriza, ela é também uma auto-apresentação, através de um
fenômeno de reflexividade, de espelhamento, no sentido de que essa
construção retorna como imagem e por meio da qual ele define o mundo
e nele se define. Desse modo, a consciência do sujeito e sua identidade
se ligam, ao mesmo tempo, a algo que lhe é interno e externo. O sujeito
vive as emoções como um comportamento racional e reacional, seguindo
e segundo as normas sociais, os saberes de crença aos quais ele está ligado
e os quais ele interioriza, assimila como seu, e também os quais perma-
necem enquanto representações psicossociais, coletivas e partilhadas.
O autor chama uma representação de pathêmica quando essa
representação
[...] descreve uma situação a propósito da qual um julgamento
de valor coletivamente compartilhado — e, por conseguinte, ins-
tituído em norma social — questiona um actante que acredita
ser beneficiário ou vítima, e ao qual o sujeito da representação

172
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

se encontra ligado de uma maneira ou de outra. (CHARAU-


DEAU, 2010, p. 31)

Continuando nessa mesma linha de pensamento, Charaudeau lem-


bra que para Paperman (1995) essa representação explicaria a razão pela
qual, às vezes, as emoções resistem à razão como, por exemplo, quando
descobrirmos que o fato de não termos razão para ter medo não elimina,
necessariamente, a experiência do medo. Além de ligadas ao mundo
simbólico e à interioridade do sujeito, as representações são também so-
ciodiscursivas, ou, como assevera Charaudeau, baseando-se em Barthes
(1970), são “[...] mini-narrativas que descrevem seres e cenas de vida,
fragmentos narrados do mundo que revelam sempre o ponto de vista
de um sujeito.” (CHARAUDEAU, 2010, p. 32). Estamos falando de
enunciados ligados aos imaginários sociais e discursivos que nos ajudam
a conceber o mundo, a sentir e a expressar nossas emoções, a raciona-
lizá-las e até mesmo a estudá-las cientificamente, como é o nosso caso.
Esse ponto de vista de Charaudeau nos permite dizer que o sujeito
falante não tem outra realidade além daquela permitida pelas represen-
tações que circulam em seu grupo social e que são configuradas como
imaginários sociodiscursivos. Desse modo, as representações sociais re-
fletem e refratam os sujeitos na e da linguagem, e, concomitantemente,
contribuem para o estabelecimento e a cristalização de crenças em uma
determinada sociedade, orientam as condutas aceitas em uma dada
época e desempenham o papel de responsáveis pela constituição dos su-
jeitos com fins de adaptação às circunstâncias de comunicação, tudo isso
em um universo especular. Dito de outro modo, os imaginários socio-
discursivos agem na construção do sujeito da linguagem, ou, como
afirma o estudioso, no seu ethos, no seu pathos e no seu logos:
Assim, ele [o sujeito] constrói para si sistemas de pensamento
coerentes a partir de tipos de saber que são investidos, às vezes,
de pathos (o saber enquanto afeto), de ethos (o saber enquanto
imagem de si) e às vezes de logos (o saber enquanto argumento
racional). Assim, os imaginários engendrados pelos discursos que
circulam nos grupos sociais organizam-se em sistemas de pensa-
mento coerentes, criadores de valores, atuando no papel de just

173
RENATA AIALA DE MELLO

ficativa da ação social e instalando-se na memória coletiva.8


(CHARAUDEAU, 2007b, p. 54)

Apropriando-nos desse excerto, vemos a necessidade de trabalhar


com as representações psicossociais e sociodiscursivas. Isso porque ana-
lisar um corpus é também analisar, através das representações que o ha-
bitam, o constituem, a sociedade na qual sujeitos e obra se inserem. Sob
essa perspectiva, podemos afirmar que os interactantes presentes em
um corpus são moldados pelas representações sociais construídas na-
quele contexto. Entendemos que, se não todos, pelo menos a maioria
dos sujeitos vivencia e partilha as mesmas representações psicossociais
e sociodiscursivas de uma sociedade. Sociedade esta que normatiza, a
seu modo, a vida e os papéis sociais e que demarca as identidades. De-
fine, inclusive, que emoções sentir, como senti-las e discursivizá-las.
Nesse sentido, todos pathemizam e são pathemizados, intencionalmente
ou não, tendo em conta os saberes de crença e as representações sociais
que os regem e os moldam por aquela sociedade na qual eles vivem.

4. O efeito pathêmico e suas condições


Charaudeau (2007a; 2010), ao delimitar o quadro ideal de trata-
mento das emoções, diz que o analista do discurso deve levar em con-
sideração o fato de que o signo linguístico por si só não garante a prova
da existência da emoção no discurso, uma vez que a significação não se
encontra pura e simplesmente nesse signo. Dessa forma, a emoção tam-
bém é construída a partir de marcas enunciativas, e não apenas linguís-
ticas, estabelecidas pelo contrato comunicacional. Para o autor “[...] a
análise do discurso tem por objeto de estudo a linguagem, enquanto
produtora de sentido em uma relação de troca, visto que ela traz em si
mesma o signo de uma coisa que não está nela, mas da qual é portadora.”
(CHARAUDEAU, 2010, p. 25)
8
No original: « Il [le sujet] se construit ainsi des systèmes de pensée cohérents à partir de types
de savoir qui sont investis, tantôt, de pathos (le savoir comme affect), d’ethos (le savoir comme
image de soi), de logos (le savoir comme argument rationnel). Ainsi, les imaginaires sont en-
gendrés par les discours qui circulent dans les groupes sociaux, s’organisant en systèmes de
pensée cohérents créateur de valeurs, jouant le rôle de justification de l’action sociale et se dé-
posant dans la mémoire collective. »

174
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

O efeito pathêmico de um enunciado, segundo o teórico, pode ser


obtido pela utilização (ou não) de certas palavras e também de palavras
certas. Dito de outro modo, o sujeito enunciador geralmente tem à sua
disposição palavras que podem variar em níveis de transparência de
carga emocional. Segundo Charaudeau (2007a, 2010), trata-se de pala-
vras que, em ação, discursivizadas, de maneira mais ou menos transpa-
rente, têm altas chances de fazer insurgir no outro um estado emocional,
de lhe provocar um efeito pathêmico. Passemos, na sequência, às três
possibilidades elencadas pelo estudioso.
A primeira delas é a de recorrer a palavras tais como raiva, horror e
ódio, alegria, felicidade e esperança. Palavras como essas traduzem, com
certa clareza, os próprios sentimentos, sensações, emoções a que elas
correspondem. São signos linguísticos que parecem estar presos às suas
significações primeiras, denotativas, designando automaticamente, per
se stante, as emoções. Diríamos, então, que a palavra horror, por exem-
plo, sempre vai estar ligada ao sentimento de mesmo nome — horror
— como uma negatividade, independente da cultura, do tempo e do es-
paço, ou seja, independente da situação vivida e da situação de comu-
nicação na qual ela está sendo usada. Entretanto, a presença dessas
palavras “transparentes” no enunciado não significa nem que o sujeito
que as emprega as sinta, nem que elas efetivamente produzirão as emo-
ções que lhe são correspondentes (CHARAUDEAU, 2010). Cabe regis-
trar que o que acabamos de dizer serve, inclusive, para qualquer umas
das três circunstâncias elencadas pelo linguista.
Valendo-nos, ainda, de mais um exemplo, temos a palavra culpa (e,
por extensão, seu adjetivo correspondente culpado), que está indisso-
ciavelmente ligada a uma falta cometida, ao sentimento de culpa, à vio-
lação de uma prescrição moral ou ética, enfim, à constatação de um erro
embasada em julgamentos de valor coletivamente compartilhados. No
entanto, culpa/culpado pode ser (ou referir-se) tanto a causa quanto o
efeito de um mal, algo que acaba por suscitar, inevitavelmente, nos in-
teractantes, esse estado pathêmico de mesmo nome.
Ainda para Charaudeau (2007a, 2010), a segunda possibilidade do
enunciador pathemizar é usar palavras que, apesar de não terem uma
ligação direta com os sentimentos, ou seja, não serem transparentes
como na primeira possibilidade, são suscetíveis de expressar estados

175
RENATA AIALA DE MELLO

pathêmicos. Palavras como assassino, conspiração, vítima, herói, frater-


nidade e trabalhador, por exemplo, apesar de não corresponderem di-
reta e indissoluvelmente a sentimentos, estão indiretamente ligadas a
eles e são, por essa razão, fortes candidatas ao engendramento de pat-
hemias em qualquer contexto, em qualquer discurso.
Há, por fim, uma terceira possibilidade, ou seja, um terceiro grupo
de palavras, as tidas como não-transparentes, que não designam direta-
mente e tampouco indiretamente os sentimentos. São palavras que, de-
pendendo do sujeito enunciador, de seu poder discursivo estratégico em
construir suas visadas, enfim, de todo o universo comunicacional no qual
são usadas, podem vir a desencadear efeitos pathêmicos no interlocutor.
Nesse sentido, a palavra porta, por exemplo, estaria longe de pertencer à
primeira e também à segunda circunstância. Ela não pode ser conside-
rada como transparente no sentido de designar nem direta nem indire-
tamente um sentimento. Entretanto, no enunciado “O Sr. é uma porta!”
a palavra porta perde aqui seu significado primeiro, denotado, para ad-
quirir um sentido outro, conotado, metafórico e, com isso, pode (ou não)
servir aos fins do enunciador para expressar uma emoção e/ou levar o
interlocutor a um estado pathêmico. No exemplo acima, tudo leva a crer
que o enunciador estaria tentando, por exemplo, agredir o interlocutor
comparando-o a uma porta, ou seja, recorrendo a uma metáfora para
dizer que ele não é inteligente ou que não tem sentimentos.
Vemos, assim, que as três possibilidades elencadas por Charaudeau
levam em conta vários fatores, incluindo-se a finalidade, o como, o
quando, o por quem e o porquê, enfim, a situação de comunicação como
um todo. Ainda que precise ser mais e melhor pesquisado, percebemos
que o leque de palavras transparentes (primeira possibilidade) é bastante
restrito, visto que se limita àquelas que se referem aos sentimentos.
Quanto às palavras não-transparentes (segunda e terceira possibilida-
des), parece que o maior ou menor grau de suscetibilidade de pathemi-
zação estaria ligado às forças denotativas e conotativas, à polissemia, às
significações mais usuais ou mais ocasionais das palavras em uso. O que
acabamos de conjecturar nos leva à importância dos efeitos pathêmicos
e aos três tipos de condição que, segundo o estudioso, dependem esses
efeitos. Passemos a eles:

176
AS EMOÇÕES NO DISCURSO SOB A PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA

i) […] que o discurso produzido se inscreva em um dispositivo


comunicativo cujos componentes, a saber, sua finalidade e os
lugares que são atribuídos previamente aos parceiros da troca,
predisponham ao surgimento de efeitos patêmicos […];
ii) […] que o campo temático sobre o qual se apoia o dispositivo
comunicativo preveja a existência de um universo de patemi-
zação e proponha certa organização das tópicas susceptíveis
de produzir tal efeito […];
iii) […] que no espaço de estratégia deixado disponível pelas res-
trições do dispositivo comunicativo, a instância de enunciação
se valha da mise en scène discursiva com visada patemizante
[…]. (CHARAUDEAU, 2010, p. 39-40 — grifos do autor)

A partir dessas condições apresentadas por Charaudeau, estamos


convictos de que as emoções precisam ser tratadas como uma categoria
de efeitos visados no e pelo discurso em qualquer corpus selecionado.
Com isso, é possivel (re)compor, ainda que parcialmente, o universo so-
ciodiscursivo, os saberes partilhados de crença, os estereótipos, os luga-
res-comuns, dentre outros elementos presentes na situação de
comunicação analisada.

Considerações finais
Buscamos, com este artigo, alcançar, ao menos em parte, a comple-
xidade que envolve a questão do pathos sob o viés da Semiolinguística.
O conceito de pathos divide seu entendimento e suas fronteiras com vá-
rias áreas de conhecimento, possibilitando um grande leque de aborda-
gens, o que nos traz benefícios, mas também riscos de aplicação nas
análises de corpus. Ainda assim, trabalhar com a noção de pathos nos
leva a conhecer as fronteiras da AD e da Semiolinguística, dos gêneros,
da ética, da moral e da estética. Vimos que o território do pathos é vasto,
complexo, movediço. Com este trabalho, (re)afirmamos a importância
do conceito de pathos nos estudos sobre a linguagem, sobre o discurso.
Por uma questão de economia (tempo e espaço) limitamo-nos a al-
gumas contribuições da Semiolinguística para o entendimento das emo-
ções no discurso, mesmo (cons)cientes de que há importantes pesquisas

177
RENATA AIALA DE MELLO

sobre a temática advindas de áreas afins, áreas com as quais Charaudeau


dialoga. Ao darmos preferência à abordagem semiolinguística, acabamos
por não trabalhar diretamente com alguns autores de fundamental im-
portância no tratamento do pathos como, por exemplo, Aristóteles (2012),
Cícero (1964) e Quintiliano (1975). E também outros autores contempo-
râneos das ciências da linguagem como Amossy (2008), Plantin (2011),
dentre outros. Sabemos, entretanto, que a eles têm sido dedicada uma
vasta literatura produzida por filósofos e retoricistas, dentre outros.
Concluímos que trabalhar as emoções em um discurso sob o viés
da Semiolinguística possibilita um melhor entendimento sobre a socie-
dade, seus modos de pensar, seus limites morais, etc. Depreendemos
que as emoções se mostram e se transformam em espetáculo, visto que
há sempre a mise en scène dos sentimentos. O pathos é construído, mos-
trado e suscitado pela palavra e expresso de maneira sentimental. As
emoções não são totalmente apreensíveis em sua pluralidade, comple-
xidade e vastidão. Enfim, ao final deste nosso percurso, reconhecemos
que não existe verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas uma
verdade lúdica. Pesquisar o pathos no discurso significa também mer-
gulhar em uma profusão de sentimentos, emoções, paixões, para estudá-
las, descrevê-las e também experienciá-las.

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179
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO
MIDIÁTICA DA GAFe

Roberto Leiser Baronas


Julia Lourenço Costa

primeiras palavras
A compreensão de que o homem se apropria da língua, "não só para
veicular mensagens, mas principalmente, com o objetivo de atuar so-
cialmente" (KOCH, 2000, p. 21), incidindo argumentativamente sobre
o outro, se torna fundamental na atualidade. Nesse sentido, o enunciado
deve ser então encarado como produto de um sujeito sócio-historica-
mente constituído, que erige sua argumentação em torno da ideologia
que define sua inscrição em determinada comunidade discursiva. A ar-
gumentatividade funciona, portanto, como atividade estruturante de
todo discurso, na medida em que orienta os enunciados tanto interna-
mente (coesão e coerência, por exemplo); quanto em relação à sua ins-
crição em determinada formação discursiva. De acordo com Orlandi
(1998, p. 75) "a argumentação é vista pelo analista de discurso a partir
do processo histórico-discursivo em que as posições dos sujeitos são
constituídas". Dessa maneira, o sujeito se posiciona discursivamente e
seus argumentos são determinados historicamente e produto dos dis-
cursos vigentes.
Consideraremos, neste texto, um exemplo da discursividade em
torno da figura da mulher e dos papéis que ela desempenha socialmente.
A partir da análise de um enunciado sobreasseverado pela mídia brasi-
leira, é possível entrever tanto a posição do sujeito enunciador quanto
da própria mídia no jogo da argumentação, observado enquanto nego-
ciação discursiva do sujeito em sua relação simbólica com a história.
Partindo do pressuposto de que a argumentação determina o do-
mínio da organização do dizer e afeta sua ordem, analisaremos o enun-
ciado tenho convicção do que a mulher faz pela casa com base no
conceito de sobreasseveração (MAINGUENEAU, 2010), compreen-
dendo que esse processo de destacamento orienta argumentativamente

181
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

o discurso na mesma medida em que o inscreve em determinada posi-


ção enunciativa e ideológica.

1. A sobreasseveração do enunciado tenho convicção do que a


mulher faz pela casa
Na esteira de Maingueneau (2009), partindo da constatação banal
de que nos meios de comunicação circulam uma variedade de pequenos
enunciados (pequenas frases, títulos, manchetes, citações, chamadas,
hashtags, etc.) pretendemos neste texto refletir acerca do funcionamento
discursivo do enunciado tenho convicção do que a mulher faz pela casa,
que circulou no ciberespaço e ocupou lugar de destaque em variadas re-
portagens que abordaram, à época, o pronunciamento do Presidente
Michel Temer no Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 2017.
Na ocasião, o presidente cometeu o que os próprios veículos midiá-
ticos designaram como gafe. Nosso objetivo neste texto é refletir tanto
sobre a constituição linguístico-discursiva deste enunciado, partindo
dos pressupostos de Maingueneau sobre as frases sem texto (MAIN-
GUENEAU, 2014), quanto analisar o texto do presidente Temer à luz da
dimensão polêmica por ele gerada, a fim de compreendê-lo discursiva-
mente enquanto mobilizador do conceito de gafe.
De acordo com Maingueneau (2010, p. 10) os enunciados destaca-
dos funcionam de acordo com duas classes, conforme seu destacamento:
(1) constitutivo, aqueles que por natureza não possuem um contexto si-
tuacional (provérbios e fórmulas, por exemplo) e (2) destacamento por
extração de um fragmento de texto: lógica da citação.
Ainda segundo o autor, "essa extração não acontece de maneira indi-
ferenciada sobre um texto: certos fragmentos são apresentados na enun-
ciação como destacáveis" (MAINGUENEAU, 2010, p. 11), o que implica
afirmar que há algo na estrutura composicional do texto que faz com que
determinado fragmento produza uma "sensação de a destacabilidade"
(MAINGUENEAU, 2014, p. 14) de maneira mais incisiva que outros.
O enunciado tenho convicção do que a mulher faz pela casa, nosso
objeto de análise, foi destacado do pronunciamento do presidente do Bra-
sil no Dia Internacional da Mulher em 2017 e estampou as manchetes de

182
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA GAFe

variados jornais e revistas no ciberespaço, isto é, "no espaço de comuni-


cação aberto pela interconexão mundial de computadores" (LÉVy, 2010,
p. 94). O referido enunciado foi extraído do seguinte trecho da fala de
Michel Temer:
[...] E eu vejo como é importante, ou como são importantes, essas
solenidades, que não basta marcar no calendário o Dia da Mulher,
é preciso comemorá-lo. E comemorá-lo significa recordar a luta
permanente da mulher por uma posição adequada na sociedade.

Eu não preciso, depois do discurso emocionado da Luislinda, de


todos enfim, dizer da importância da mulher e da luta perma-
nente que a mulher vem fazendo ao longo do tempo no Brasil e
no mundo. Que aqui e fora do Brasil, em outras partes do mundo,
a mulher ainda é tratada como se fosse uma figura de segundo
grau, quando na verdade, ela deve ocupar o primeiro grau em
todas as sociedades.

Eu digo isso com a maior tranquilidade, porque eu tenho absoluta


convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Mar-
cela, o quanto a mulher faz pela casa, o quanto faz pelo lar, o que
faz pelos filhos. E, portanto, se a sociedade de alguma maneira vai
bem, quando os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada
educação e formação em suas casas. E seguramente isso quem faz
não é o homem, isso quem faz é a mulher1 [...] (grifos nossos).

Segundo a lógica enunciativa, o fragmento sobreasseverado do pro-


nunciamento do presidente se apresenta como destacável, uma vez que
Michel Temer finaliza o parágrafo anterior com a seguinte afirmação: a
mulher deve ocupar o primeiro grau em todas as sociedades, criando um
efeito de sentido, pela lógica da progressão textual, de que esse tema será
tratado com mais especificidade no parágrafo seguinte, no qual o enun-
ciado destacado está localizado. Antes disso, ainda, o locutor sublinha
que no Dia da Mulher deve ser recordada a luta permanente da mulher
por uma posição adequada na sociedade.
1
Para acesso ao texto completo:
http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/discursos/discursos-do-presidente-da-re-
publica/discurso-do-presidente-da-republica-michel-temer-durante-cerimonia-de-comemo-
racao-pelo-dia-internacional-da-mulher-brasilia-df

183
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

De acordo com Koch (2002), a progressão textual é determinada


pela relação estabelecida entre os elementos do texto a fim de que eles
possam conferir continuidade de sentidos no ato de tecer os fios do dis-
curso. Segundo a autora, a progressão textual
[...] diz respeito aos procedimentos linguísticos por meio dos
quais se estabelecem, entre os segmentos do texto (enunciados,
partes de enunciados, parágrafos e mesmos sequências textuais)
diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmático-discursi-
vas, à medida que se faz o texto progredir (KOCH, 2002, p. 121).

Nosso objeto de análise, o enunciado destacado tenho convicção do


que a mulher faz pela casa, teve seu grau de destacabilidade elevado de-
vido o contexto anterior da progressão do texto. Anteriormente a ele, o
presidente sublinha a necessidade de rememorar a luta das mulheres
por uma posição de igualdade e, em seguida, enuncia o trecho destacado
enaltecendo os papéis desempenhados - segundo sua perspectiva - pela
mulher no contexto social brasileiro.
Efetuando um processo de destacamento, o ator midiático recolhe,
isto é, distingue um fragmento como notável a partir do texto-fonte e,
de algum modo, o formata de maneira que possa ser retomado em va-
riados momentos, enfatizando seu caráter sentencial e sintetizador em
relação a determinado tema. Segundo Maingueneau (2014, p. 15), “esta
sequência é relativamente breve, portanto memorizável, e constitui uma
tomada de posição do enunciador sobre uma questão polêmica”.
A espera gerada pelo enunciador ao finalizar o parágrafo anterior
abordando o tema da importância da mulher na sociedade provoca
grande expectativa por parte dos coenunciadores, pois se trata de uma
temática contemporânea e polêmica, a qual raras vezes é abordada nos
pronunciamentos do Governo brasileiro, qual seja, a temática relacionada
ao papel social da mulher no cenário contemporâneo internacional.
A reiteração do enunciado destacado reside, portanto, em sua di-
mensão polêmica, isto é, "um debate em torno de uma questão de atua-
lidade, de interesse público, que comporta os anseios da sociedade mais
ou menos importantes numa dada cultura" (AMOSSy, 2017, p. 49).
A tensão instituída entre os parágrafos é fator que contribui para o
destaque, bem como a quebra disfórica da expectativa, uma vez que o

184
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA GAFe

presidente retoma o discurso do patriarcado, reafirmando “uma forma-


ção social em que os homens detêm o poder” (HIRATA et al. , 2009, p.
173) no lugar de reforçar o discurso da igualdade que prega “o pleno re-
conhecimento político e social das mulheres” (ib., p. 118).
No âmbito do discurso político, de acordo com Le Bart (2003), o
campo político se vale de illusios (BOURDIEU, 1994) como fundamento
de sua existência, parte das estratégias persuasivas e dos tipos de bens
simbólicos que produzem. A illusio “é o consenso (muitas vezes invisível
do interior) que torna os jogos internos ao campo não somente possí-
veis, mas mesmo parcialmente previsíveis”2 (BOURDIEU, 1994, p. 151).
Ainda segundo o autor, os discursos são determinados positiva ou
negativamente de acordo com as crenças partilhadas entre os coenun-
ciadores pressupostos. Positivamente caso essas crenças sejam reafirma-
das; negativamente quando o inesperado, do ponto de vista ideológico,
é enunciado.
O Governo, no pronunciamento do presidente, procura se inserir
no cenário internacional de discussões atuais acirradas em torno da
igualdade de gêneros nas esferas social, política e econômica. Para tanto,
afirma, num primeiro momento, a importância da mulher na sociedade,
mas comete então aquilo que foi chamado, pela própria mídia, de gafe.
É importante ressaltar neste momento do texto, a importância em
se pensar a estreita relação estabelecida contemporaneamente entre o
campo político e o campo midiático. Esta relação imbricada define o
que pode/deve circular: o discurso político se constitui como discurso
de poder e obedece a uma lógica que se vale dos efeitos de verdade; en-
quanto a mídia manobra o discurso político a fim de manter e fazer cir-
cular o material por ela produzido.
O fato de a própria mídia sobreasseverar o enunciado tenho convic-
ção do que a mulher faz pela casa e ao mesmo tempo classificá-lo, em
suas manchetes, como gafe, revela o processo de imbricamento entre o
campo político e o midiático. Sendo este o produtor dos enunciados so-
breasseverados que circulam, por exemplo, no ciberespaço, constituindo
a postura de determinado ator político sobre certo tema.
2
Tradução nossa do trecho original em francês: l'illusio c'est le consensus (souvent invisible de
l'intérieur) qui rend les jeux internes au champ non seulement possibles mais même partiellement
prévisibles.

185
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

Segundo Maingueneau (2014, p. 16), “os profissionais de comuni-


cação contemporânea passam seu tempo recortando fragmentos de tex-
tos para convertê-los em ganchos”, fato que corrobora com a falta de
delimitação do objeto discurso político, que contemporaneamente se
mescla com outros campos discursivos: o discurso acerca da vida pri-
vada e o próprio discurso midiático, por exemplo (LE BART, 2003).
A gafe é concretizada quando o presidente reafirma os pré-cons-
truídos acerca do papel desempenhado historicamente pela mulher e
dos espaços por ela ocupados; ao invés de abordar a temática conforme
as reivindicações atuais da sociedade em relação aos direitos das mu-
lheres e da igualdade de gênero. Temer é sancionado negativamente por
sua fala ser considerada sexista e obsoleta perante a sociedade. Há então
a sobreasseveração do trecho considerado mais simbólico e a classifica-
ção, pela própria mídia, deste texto destacado como gafe.
O presidente, no seu pronunciamento, afirma ter absoluta convicção,
até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela, o quanto a mu-
lher faz pela casa, o quanto ela faz pelo lar, o que faz pelos filhos. Além
disso reitera que se a sociedade vai bem é porque os filhos estão tendo
uma adequada educação e formação em suas casas. E seguramente isso
quem faz não é o homem, isso quem faz é a mulher.
Mais à frente Temer enuncia que as mulheres têm grande partici-
pação em todos os debates, até na economia, pois ninguém é capaz de
indicar desajustes, por exemplo, nos preços em supermercados do que a
mulher, além disso as flutuações econômicas são detectadas pelas mu-
lheres pelo orçamento doméstico por elas gerenciado.
O presidente reitera pré-construídos, como discursos anteriores, e “já-
ditos” mobilizados no interdiscurso (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU,
2008, p. 401) que concretizam a dimensão simbólica da dominação mas-
culina, isto é, "a primazia universalmente concedida aos homens que se
afirma na objetividade das estruturas sociais e de atividades produtivas,
baseadas em uma divisão sexual do trabalho" (BOURDIEU, 2014, p. 45).
A tensão estabelecida no embate ideológico entre os dois enuncia-
dos é fator que corrobora para a ascensão e destaque daquele que se re-
fere ao papel da mulher desempenhado nas tarefas domésticas, uma vez
que ele concretiza o discurso historicamente marcado na sociedade no
que tange questões relacionadas ao feminino, isto é, a subjugação que o

186
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA GAFe

gênero sofre em todas as esferas e a imposição de certas atividades e


comportamentos a serem desempenhados pela mulher.
Tal tensão desencadeia, como já enunciamos, um processo de so-
breasseveração (MAINGUENEAU, 2010, p. 11) abrindo
[...] a possibilidade de uma saída do texto, de uma 'destextualiza-
ção'. No caso da sobreasseveração, uma modulação da enunciação
que formata um fragmento como candidato à destextualização,
não é possível falar de 'citação': trata-se somente de uma operação
de destaque do trecho que é operado em relação ao restante dos
enunciados, por meio de marcadores diversos.

O autor prossegue afirmando que se compararmos o enunciado des-


tacado e seu correspondente no texto de origem, "na maior parte das
vezes, o enunciado sofre uma alteração quando é destacado" (MAIN-
GUENEAU, 2010, p. 11). Ainda de acordo com o autor, essa alteração
pode ser menos ou mais importante. No enunciado por nós eleito para
análise, tal diferença pode ser considerada relevante, uma vez que a troca
do advérbio de intensidade o quanto por do que, com função de pro-
nome demonstrativo, estabelece um novo processo de significação,
como podemos observar a seguir:
a) no texto original
"tenho absoluta convicção [...] o quanto a mulher faz pela casa"
uso do advérbio de intensidade o quanto, que intensifica o verbo fazer

b) trecho sobreasseverado
"tenho convicção do que a mulher faz pela casa"
uso da locução do que com valor de pronome demonstrativo

No texto original Temer enfatiza, com o uso do advérbio o quanto,


o verbo fazer, reforçando o papel da mulher na sociedade de maneira
geral - o problema reside então na forma como ele concretiza esse papel.
Por outro lado, no trecho sobreasseverado, a locução do que aponta para
o papel desempenhado pela mulher indicando qual o seu papel, de
modo mais específico e unificador.
A sutil diferença entre os enunciados demonstra que a sobreassevera-
ção sofreu uma avaliação prévia. Ao trocar o quanto por do que no enun-
ciado destacado, o sobreasseverador concretiza a limitação da visão do

187
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

presidente acerca do papel da mulher. Do que no trecho destacado concre-


tiza o achatamento, na visão do sobreasseverador, que o próprio presidente
promoveu em seu texto, acerca do debate em torno das reivindicações fe-
mininas. Com efeito, Maingueneau, (2010, p. 12) afirma que
essas alterações nos parecem reveladoras de que a sobreassevera-
ção de enunciados destacados têm um status pragmático distinto.
Os enunciados destacados decorrem de um regime de enunciação
específico, que propusemos chamar de "enunciação aforizante":
entre uma "aforização" e um texto, não há uma diferença de di-
mensão, mas de ordem.

O autor continua dissertando sobre as diferenças no regime de sub-


jetivação numa enunciação textualizante e numa enunciação aforizante,
destacada de um texto, no caso do enunciado por nós analisado. De
acordo com Maingueneau, “poderíamos dizer que na textualização não
nos relacionamos com Sujeitos, mas com facetas, aquelas que são perti-
nentes para a cena verbal” (MAINGUENEAU, 2010, p. 13).
Por outro lado, na enunciação aforizante, “não há posições correla-
tivas, mas uma instância que fala a uma espécie de 'auditório universal'
(Perelman)”, fato que é verificado na proliferação do enunciado tenho
convicção do que a mulher faz pela casa, nos mais variados veículos mi-
diáticos, comprovando o caráter universalizante da enunciação. A seguir
elencamos alguns exemplos extraídos da mídia digital:

Figura 1 — Folha de S. paulo3

3
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/03/1864708-tenho-conviccao-do-que-a-mulher-
faz-pelacasa-diz-temer-no-dia-da-mulher.shtml

188
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA GAFe

Figura 2 — O tempo4

Figura 3 — Jornal do Comércio5

Figura 4 — Folha pe6

4
http://www.otempo.com.br/capa/pol%C3%ADtica/tenho-convic%C3%A7%C3%A3o-do-que-
a-mulher-faz-pela-casa-diz-temer-1.1445110
5
http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/03/politica/550672-tenho-conviccao-do-que-a-mul-
her-faz-pela-casa--diz-michel-temer.html
6
https://folhape.com.br/politica/politica/politica/2017/03/08/NWS,20300,7,547,POLITICA,2193-
TENHO-CONVICCAO-QUE-MULHER-FAZ-PELA-CASA-DIZ-TEMER-DIA-MULHER.aspx

189
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

Figura 5 — Umuarama Ilustrado7

Figura 6 — bahia 24 horas8

Figura 7 — Jornal Daqui 20179

7
http://www.ilustrado.com.br/jornal/ExibeNoticia.aspx?NotID=78097&Not=%27Tenho%20co
nvic%C3%A7%C3%A3o%20do%20que%20a%20mulher%20faz%20pela%20casa%27,%20diz
%20Michel%20Temer
8
http://www.bahia25horas.com.br/2018/noticias/pol%EF%BF%BDtica,2912,039-tenho-conv-
ic-o-do-que-a-mulher-faz-pela-casa-039-diz-temer-no-dia-da-mulher.html
9
https://daqui.opopular.com.br/editorias/geral/michel-temer-comete-gafe-inacredit%C3%A1vel-
tenho-convic%C3%A7%C3%A3o-do-que-a-mulher-faz-pela-casa-1.1237543

190
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA GAFe

É possível verificar a partir dos recortes apresentados, portanto, que


este enunciado circulou na imprensa de norte a sul do país se configu-
rando enquanto "repetição constitutiva" (MAINGUENEAU, 2010, p.
14), característica do enunciado aforizado. Segundo Maingueneau, o
“aforizador assume o ethos do locutor que está no alto, do indivíduo au-
torizado” (ib.), fato que subjaz à sua própria circulação: tal enunciado
se propagou na mídia de modo irrestrito devido se constituir enquanto
aforização e estar autorizada por uma “Fonte transcendente”.

2. O enunciado sobreasseverado enquanto gafe


Compreendemos que “a enunciação é a acentuação da relação dis-
cursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou cole-
tivo” (BENVENISTE, 2006, p. 87) e pressupõe, portanto, a interação com
o outro que é regulada também de acordo com os pontos de vista par-
tilhados. Quando algo foge à linearidade na troca intersubjetiva, este
elemento pode ser caracterizado como um desvio na comunicação.
Esse desvio pode ser intencional (como no discurso do humor, no
discurso publicitário, poético etc.) ou não intencional (como no mal-
entendido e na gafe, por exemplo). De acordo com o Dicionário Houaiss
de Língua Portuguesa, a gafe pode ser definida como “1. Dito ou com-
portamento irrefletido (deslize, inconveniência); 2. Engano, indiscrição,
[...] por lapso ou negligência.”
Do ponto de vista linguístico-discursivo a gafe pode ser pensada de
acordo com a teoria das faces, que postula que a regra de convívio social
reside em revelar a face positiva e ocultar a face negativa. De acordo com
Brown e Levinson (1987, p. 62) a “face positiva é uma imagem própria
consistente ou ‘personalidade’(crucialmente incluindo o desejo que se
possui de que a sua face seja apreciada e aprovada) reivindicada pelos
interactantes”.
Ainda de acordo com os autores, a face negativa “é a reivindicação
básica de território, preservação pessoal, um certo descuido, isto é, para
liberdade de ação e a liberdade da não-imposição.” (ibidem). A gafe de-
corre da irrupção da face negativa, geralmente não esperada na interação
e caracterizada segundo seu caráter disfórico.

191
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

De acordo com Le Bart (2003), como vimos anteriormente, os dis-


cursos são determinados positiva ou negativamente pelas crenças que
ele mobiliza de acordo com o consenso: determinado positivamente
quando esse consenso é reafirmando e negativamente quando as fron-
teiras entre o impensável e o indizível são mobilizadas.
Com base na nossa análise é possível dizer que Maingueneau (2014,
p. 17) corrobora tal compreensão, afirmando que “por mais que os po-
líticos queiram, muitas 'pequenas frases' que a mídia faz circular são
fragmentos de textos que seu ator teria preferido que ficassem na som-
bra”, salientando que o fato de a mídia se empenhar em destacar enun-
ciados problemáticos em relação à doxa10.
Do ponto de vista discursivo a gafe está relacionada ao surgimento,
no fio do discurso, de algo que perturba a ordem inicial e estabelece uma
nova leitura. No caso do enunciado por nós analisado, a gafe está no fato
de um presidente da República, no século XXI, fazer um pronuncia-
mento em que a mulher é tema principal e esse tema ser figurativizado
com questões relacionadas à afazeres domésticos.
Le Bart (2003) define a gafe como “um enunciado que, por violar as
crenças fundadoras de um campo, suscita reprovação coletiva de todos
os atores do campo, até mesmo a autocrítica arrependida do falante”11
sendo regida, portanto pelo consenso que integra os participantes da
comunicação.
Ainda de acordo com o referido autor, o estudo das gafes do campo
político pode revelar maneiras de se entrever as crenças da illusio polí-
tica, uma vez que sem o surgimento de gafes, elas ficam invisíveis, por
serem fortemente interiorizadas e incorporadas pela comunidade de que
participam. O autor afirma que a illusio política é “interiorizada sob a
forma de um modo de ser”12 (LE BART, 2003).
10
A doxa pode ser compreendida como “[...] a opinião, a reputação, o que dizemos das coisas
ou das pessoas. A doxa corresponde ao sentido comum, isto é, a um conjunto de representa-
ções socialmente predominantes, cuja verdade é incerta, tomadas, mais frequentemente, na
sua formulação linguística corrente” (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2008, p. 176).
11
Tradução nossa do original em francês: […] on appelle gaffe un énoncé qui, parce qu'il violente
les croyances fondatrices du champ, suscite une réprobation collective de tous les acteurs du
champ, voire l'autocritique contrite du locuteur (LE BART, 2003).
12
Tradução nossa do trecho original em francês: […] elle (l'illusio) est intériorisée sous la forme
d'une façon d'être (LE BART, 2003).

192
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA GAFe

A própria imprensa caracterizou, à época, o pronunciamento do


presidente como gafe, afirmando que ele cometera realmente um desvio
discursivo ao não se colocar no plano da igualdade de gêneros. Alguns
veículos midiáticos ao reportarem a fala do presidente no Dia Interna-
cional da Mulher em 2018, fizeram ainda referência ao comportamento
inadequado do ano anterior, como podemos observar a seguir:

Figura 8 — Folha pe 201813

Figura 9 — Folha de S. paulo 201814

13
https://folhape.com.br/politica/politica/politica/2018/03/08/NWS,61312,7,547,POLITICA,219
3-UM-ANO-APOS-GAFE-TEMER-FAZ-DISCURSO-RAPIDO-DIA-MULHER.aspx
14
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/03/um-ano-apos-gafe-temer-faz-discurso-rap-
ido-no-dia-da-mulher.shtml

193
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

Figura 10 — Metro 1 201715

A quebra no discurso ocorre, como vimos, no momento em que ir-


rompe o enunciado aforizado tenho convicção do que a mulher faz pela
casa, que concretiza negativamente o tema e rompe, de acordo com a
Le Bart (2003), o consenso partilhado entre os coenunciadores. O ines-
perado surge enquanto gafe, no pronunciamento de Temer, de acordo
com duas esferas: política e social.
Da esfera política, a declaração de que Michel Temer não só tem co-
nhecimento, mas convicção do quanto a mulher faz pela casa gerou tanta
polêmica e foi denominada enquanto gafe, porque foi feita exatamente
no momento em que sua equipe econômica apresentava aos parlamen-
tares, e à própria sociedade, a proposta de que homens e mulheres de-
veriam seguir as mesmas regras para a aposentadoria.
De acordo com o regulamento da aposentadoria do Instituto Na-
cional de Seguro Social (INSS), de maneira sucinta, atualmente no Brasil
a aposentadoria pode ser apresentada de acordo com a idade: 95 anos
para homens e 85 anos para mulheres mais 15 anos de contribuição; 30
anos de contribuição ou 60 anos de idade e 15 de contribuição, para as
mulheres; 35 anos de contribuição ou 65 anos de idade e 15 de contri-
buição, para homens16. Tais dados confirmam as diferenças aplicadas na
prática de acordo com o gênero.
15
http://metro1.com.br/noticias/politica/50979,apos-gafe-temer-faz-discurso-rapido-no-dia-
das-mulheres.html
16
https://www.inss.gov.br/beneficios/aposentadoria-por-tempo-de-contribuicao/

194
UMA AbORDAGeM DISCURSIVA DA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DA GAFe

Para alguns especialistas envolvidos nas discussões em torno da Re-


forma da Previdência, ao fazer tal declaração, o presidente assinalou a
dupla jornada que a mulher encara cotidianamente trabalhando em ho-
rário comercial num emprego formal e cuidando, majoritariamente, da
casa e dos filhos.
Tal fato, segundo o jornal Folha de S. Paulo online de 08/03/201717,
teria "dificultado os argumentos a favor da unificação das regras no Con-
gresso Nacional", manifestando algum descompasso entre os argumen-
tos do presidente e de sua equipe econômica. A polêmica gerada, do
ponto de vista político, está assentada nesse desalinhamento averiguado
na argumentação.
Da esfera social, o pronunciamento de Michel Temer gerou polêmica
e foi encarado enquanto gafe, principalmente porque ele achata a atuação
feminina na sociedade às funções ligadas às questões domésticas (cuidar
da educação dos filhos, fazer compras no mercado, gerenciar o orçamento
doméstico) desconsiderando o protagonismo feminino nas mais variadas
funções e atividades de relevância no Brasil e no mundo.
Todavia, é preciso considerar que qualificar o trecho destacado en-
quanto gafe promove também sua própria redenção, pois ameniza a res-
ponsabilidade pelo que foi dito, o qualificando como “deslize”, “lapso” e
retirando a intencionalidade daquilo que foi dito. Le Bart (2003) afirma
que “desempenhar o papel de presidente da República, é se inscrever no
sub-grupo relativamente rígido de prescrições que enquadram precisa-
mente a tomada de palavra”18.
A mídia, portanto, em alguma medida, exime o presidente Michel
Temer da responsabilidade pelo que foi dito, construindo a cenografia
do “engano”, do “deslize” e da gafe, enquanto o texto lido por ele, em seu
pronunciamento, foi redigido por sua equipe política de acordo com
todas as possiblidades de reelaboração disponíveis e conforme a rigidez
das regras relacionadas à posição que o próprio enunciador ocupa.
17
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/03/1864825-meirelles-diz-que-temer-constatou-
um-fato-em-gafe-sobre-sobre-mulheres.shtml
18
Tradução nossa do trecho original em francês:[...] jouer son rôle de président de la République,
c’est s'inscrire dans uns sous-ensemble relativement rigide de prescriptions qui encadrent préci-
sément les prises de paroles (LE BART, 2003).

195
ROBERTO LEISER BARONAS & JULIA LOURENÇO COSTA

Adotar a postura de se analisar gafes delimita, de acordo com Le


Bart (2003) o corpus de pesquisa que será mais relevante nos períodos
de crise, nos quais o limiar da lógica interna do discurso político é me-
lhor revelado. Ainda segundo o autor,
por não serem problematizados, os enunciados comuns passam
despercebidos por estarem perfeitamente alinhados no horizonte
de expectativas daqueles para os quais são destinados. No entanto,
a dramatização que marca a junção das fronteiras dito/interdito,
admissível/inadmissível, permite revelar as crenças que subjazem
o discurso político.

É possível, portanto, pensar que, de alguma maneira, a lógica da so-


breasseveração, por estar relacionada ao destacamento de enunciados
polêmicos e sintetizadores de questões socialmente relevantes, mantém
relação de proximidade com o conceito discursivo de gafe, uma vez que
os destacamentos efetuados no campo midiático, de discursos políticos,
tem como objetivo intrínseco a seu funcionamento produzir enunciados
tanto reiteráveis, quanto polêmicos.
As mídias participam, portanto, ativamente na composição e ma-
nutenção da polêmica e, segundo Amossy (2017, p. 201), “transformam
o conflito em um acontecimento”, enquanto o jornalista polemiza fa-
zendo repercutir a fala dos atores sociais e políticos de acordo com dois
campos opostos. A instauração da polêmica nutre assim a dicotomiza-
ção, ao mesmo tempo em que reconhece a complexidade das opiniões
e das fundamentações ideológicas participantes do regime democrático.

Apontamentos finais
Ao analisarmos a circulação do enunciado tenho convicção do que
a mulher faz pela casa destacado pelos mais diversos suportes midiáticos
brasileiros do pronunciamento do presidente Michel Temer por ocasião
do Dia Internacional da Mulher em 2017, podemos constatar: a) os su-
portes midiáticos têm papel preponderante na transformação de um
enunciado em gafe, isto é, são eles que metaenunciativamente produzem
um comentário acerca do enunciado de outrem, qualificando como gafe,
o que implica dizer que a gafe não existe em si, mas é o produto de um

196
destacamento e, no mesmo processo com a transformação de um enun-
ciado em gafe, as mídias orquestram uma polêmica19 no espaço público;
b) ao produzirem essa metaenunciação em relação ao discurso do outro,
polemizando-o, por mais paradoxal que possa parecer, buscam eximir
esse outro, por meio da construção da cenografia do engano, do deslize,
de maneira a atenuar a responsabilidade por aquilo que foi dito.
Ao construir tal cenografia, a mídia deixa em suspenso o posicio-
namento do outro em relação ao tema polemizado. A designação de um
enunciado como gafe, apesar de à primeira vista construir a imagem dis-
fórica do seu locutor, dissimula sobre o fato de haver identificação deste
locutor com o discurso da gafe, deixando essa compreensão, por parte
do coenunciador, indeterminada. Ademais, a ambiguidade em relação
a não identificação plena do locutor com os discursos que sustentam a
gafe é politicamente mais produtiva para o locutor em questão, pois além
de colocar o sujeito enunciador da gafe em ampla circulação midiática,
joga com a possibilidade de abarcar distintos posicionamentos sociais,
como por exemplo, acerca do papel da mulher na nossa sociedade.

Referências bibliográficas
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BENVENISTE, E. problemas de Linguística geral II. Campinas: Pontes Editores, 2006.
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BROWN, P. & LEVINSON, S. Politeness: Some universals in language usage. Cambridge:
Cambridge University Press, 1987.
GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia San-
tos Raposo. Petrópolis: Vozes, 1985.
HIRATA, H. [et al.] (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora
UNESP, 2009.
HOUAISS. A. Dicionário Houaiss da Língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
KOCH, I. G. V. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez, 2000.
_______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

19
Uma polêmica é o conjunto das intervenções antagônicas sobre uma dada questão em dado
momento. (...). A polêmica se constrói através de todas as interações públicas ou semipúblicas
que tratam de uma questão social, e se manifesta na circulação dos discursos (AMOSSy, 2017,
p. 72). Como modalidade discursiva, a polêmica é antes de tudo, uma arte da refutação
(AMOSSy, 2017, p. 98).

197
LE BART, C. L'Analyse du discours politique: de la théorie des champs à la sociologie de la
grandeur. Mots. Les langages du politique. 72, 2003. Disponível em:
http://journals.openedition.org.mots/6323.
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MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
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198
ANÁLISe DO DISCURSO, ARGUMeNTAÇÃO e eNSINO

Rui Alexandre Grácio

«O indiscutível tende sempre a reformar-se em detri-


mento do discutível, o que se compreende, pois não se
poderia pôr em causa tudo e mais alguma coisa sob qual-
quer pretexto. Mas também é verdade que todo o pro-
gresso se joga na fronteira do indiscutível com o
discutível e efetua-se pondo em discussão o indiscutível.
(…) Necessitamos de pensamentos, não só daqueles com
quem estamos de acordo, não só daqueles com quem es-
tamos em desacordo, mas também daqueles com quem
estamos em total desacordo» (MORIN, 1999, p. 156).

1. Análise do discurso, argumentatividade e argumentação


As relações entre análise do discurso e argumentação são complexas:
por um lado, a argumentatividade cai sob a alçada da análise do discurso,
porquanto naquela há processos linguistico-discursivos a explicitar, es-
tratégias comunicativas a captar e toda uma série de questões de sentido
cuja orientação é importante mapear, saber ler e explicitar; por outro
lado, o analista do discurso não é um observador neutro: ele fala, discorre
sobre o discurso, interpreta, fundamenta recorrendo à materialidade tex-
tual, aos «observáveis» (AMOSSy, 2018, §50), à sua bagagem pessoal…
enfim, ele argumenta1. Deste perspetiva, mais do que afirmar que a ar-
gumentação é «um ramo da análise do discurso» (AMOSSy, 2016, p. 246)
talvez fosse também ajustado dizer que a análise do discurso é uma das
modalidades das práticas retórico-argumentativas.
É certo que, não raras vezes, vestimos a pele de analistas para nos
legitimarmos com uma aura de suposta imparcialidade enquanto ar-
gumentadores. Apelamos e gozamos assim de uma autoridade institu-
cionalmente validada por práticas disciplinares correntes ou, se não for
o caso, fazemos, por exemplo, apelo ao que Perelman designou como
1
Pelo menos se aceitarmos o ponto de vista teórico de Amossy, segundo a qual todo o discurso
tem uma «dimensão argumentativa».

199
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

auditório universal2. Mas, de uma forma geral, a argumentação en-


quanto posicionamento perspetivado surge, frequentemente, como a
recalcada da análise3 e, ao recorrer-se à etiqueta da «mera análise», pro-
cede-se como um hermeneuta-mor sem todavia o ter de assumir4.
É por isso importante voltar a frisar que, quando apresenta as suas
análises, o analista não pode ser dissociado do estatuto de argumentador
(e um argumentador é alguém que pensa e assume posicionamentos a
partir de uma perspetiva em detrimento de outras), facto que tem con-
sequências importantes, tanto a nível teórico, como a nível pedagógico.
Se pensarmos, por exemplo, numa situação de sala de aula, mesmo
que possamos conceder que, dada a sua posição de autoridade legítima,
o professor possa proceder como um hermeneuta-mor no sentido de
produzir juízos de última instância, estes juízos nunca devem comportar
uma visão dogmática do saber nem serem redutores quanto aos modos
de produção das significações, antes devem ser feitos num espírito plu-
ralista assente em argumentos plausíveis e pressupostos preferenciais
explícitos (ou explicitáveis).
Seja como for, é importante reconhecer que existe uma interdepen-
dência entre as competências de leitura do analista do discurso e as com-
petências do argumentador (o qual pode ocupar, numa mesma
interação, os papéis de proponente, oponente e questionador). Essa com-
plementaridade é, aliás, consonante com a definição de argumentação
que propus como «disciplina crítica de leitura e interação entre as pers-
petivas inerentes à discursividade e cuja divergência os argumentadores
tematizam em torno de um assunto em questão» (cf. GRÁCIO, 2013, p.
47 ou GRÁCIO, 2012, p. 323).
2
«Norma da argumentação objetiva» (PERELMAN; OLBRECHTS-TyTECA, 2005, p 34). No
entanto, esta frase deve ser lida considerando esta outra: «O auditório universal é constituído
por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas opo-
sições de que tem consciência. Assim, cada cultura, cada indivíduo tem sua própria concepção
do auditório universal, e o estudo dessas variações seria muito instrutivo, pois nos faria co-
nhecer o que os homens consideraram, no decorrer da história, real, verdadeiro e objetivamente
válido.» (PERELMAN; OLBRECHTS-TyTECA, 2005, p. 37).
3
Para uma desconstrução suposta neutralidade da noção de «análise», cf. Artigo intitulado «Re-
tórica e objetividade» (GRÁCIO, 2014, retomado em GRÁCIO, 2016, p. 127-142).
4
Trata-se da passagem do discurso para um registo impessoal, tão bem ilustrada na seguinte
passagem de o Banquete (201 c-d) de Platão: «AGÁTON: — Não sou capaz, caro Sócrates, de
te contradizer. Contigo está a razão! SÓCRATES: — Tu não podes, caríssimo Agáton, contra-
dizer a verdade. Contradizer a Sócrates não é difícil! (...)».

200
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

Assim — e apesar da sua incidência em unidades teóricas como


«texto» e «discurso», e não, por exemplo, em unidades como «assunto
em questão» ou «situação de argumentação» — a análise do discurso
deve ser salientada na sua valia pela acuidade de leitura que fomenta,
pelas capacidades interpretativas que incrementa e pelo aprofunda-
mento critico-analítico que estimula, isto para não referir as competên-
cias acrescidas que repercute em termos da composição textual e
discursiva.
No entanto, penso que a análise do discurso não está vocacionada
para potenciar o lado performativo (ligado a um «aqui e agora» profun-
damente situacional) das interações regidas por turnos de palavra e onde
se realiza a crítica do discurso de um pelo discurso do outro5. Ou seja:
onde assistimos à argumentação como desenrolar de uma interação
entre pelo menos duas partes encarnadas por pessoas reais e na qual o
jogo entre discurso e contradiscurso, bem como a interdependência dis-
cursiva (que significa que a interpretação do dizer de um não pode ser
dissociado da pressão do dizer do outro), são essenciais. Para além disso,
em tais performances, o pensamento é posto à prova sob os constrangi-
mentos e no tempo útil do episódio comunicativo, não havendo grande
espaço para análises aprofundadas6 (donde, em muitas circunstâncias,
o observador exterior perceber estratégias, por parte de alguns dos in-
tervenientes, como «ganhar tempo», «desviar-se da questão», «fugir ao
assunto», etc.).

2. ensino da argumentação e pensamento crítico


Uma das perguntas que me tenho colocado com persistência é a de
saber se as práticas pedagógicas ligadas ao ensino da argumentação pre-
param realmente as pessoas para lidarem com situações de argumentação
5
Para a questão uma proposta de articulação entre discurso argumentado e interação argumen-
tativa ver SIQUEIRA, 2016. Aí se mostra como a leitura e a análise podem potenciar também
a dimensão interativa das situações de argumentação.
6
Situação assinalada por Tito Cardoso e Cunha e Américo de Sousa quando observam: «como
seria caricato se uma situação argumentativa tivesse de ser interrompida a todo o tempo e
vezes sem conta só para que os respetivos destinatários, munidos de lápis, se pudessem certi-
ficar da forma lógica de cada argumento, da sua validade formal, ou mesmo da sua plausibili-
dade» (2005: 1834-1835).

201
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

em que a dimensão de interação por turnos de palavra é fundamental. E


o que tenho verificado é que, em termos europeus, ao contrário da tra-
dição nos Estados Unidos da América, o ensino da argumentação ficou
sempre muito apartado das práticas de debate. Centrada na língua, no
discurso, no fenómeno da comunicação ou nos efeitos persuasivos, a tra-
dição europeia parece privilegiar mais o estudo das construções elabo-
radas através de «meios verbais» do que o fenómeno de confronto de
ideias e perspetivas, com a respetiva atenção à problematicidade subja-
cente (ou seja, ao que está em causa, ao que se está a discutir, em suma,
ao assunto em questão com que as argumentações lidam e que procuram
tematizar)7.
Ora, na minha opinião, o confronto de ideias e perspetivas é aquilo
que mais plenamente encarna a noção de argumentação no seu dina-
mismo e — para retomar a tão difundida concepção «ferramenteira»
das suas finalidades — parece-me tempo do ensino da argumentação, a
par de todas as questões linguistico-discursivo-comunicacionais, se deve
preocupar, antes de mais, em fornecer «ferramentas» que ajudem a lidar
com questões de pensamento e que promovam as competências de pen-
samento in media res8. Penso, aliás, que um dos modos de forçar a pro-
blematização da teorização da argumentação é colocar a questão do seu
ensino e é nessa direção que desenvolveremos o presente ensaio.
O que António Sérgio (1980) refere a propósito do ensino da filo-
sofia aplica-se não só aqui como, no meu entendimento, delineia o ho-
rizonte apropriado a qualquer ensino com um cariz crítico,
emancipatório e humanista. Vejamos as suas palavras:
Porque, não consiste a educação filosófica na adoção de umas tan-
tas das opiniões de um filósofo, senão que no treino da atitude crí-
tica, no exercício pessoal de um pensar autêntico, no uso metódico
de um cepticismo activo, na prática da elucidação dos problemas
7
Veja-se, a este propósito a crítica que fiz ao padrão de argumentação de Toulmin (GRÁCIO,
2009, p. 27-29).
8
Como assinalei noutro local, a argumentação está «ligada à necessidade de nos orientarmos
no pensamento, de nos movimentarmos através de caminhos por entre redes de distinções e
de possibilidades (...) do que submetermos o discurso, os enunciados e as proposições a crité-
rios de avaliação, como os da verdade e da falsidade, da aceitabilidade, da racionalidade ou da
razoabilidade». (GRÁCIO, 2009, p. 148. Nesta obra propus também a analogia do caminho
como modelo inspirador para pensar a argumentação (cf. p. 130 e ss).

202
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

básicos. (...). Ao aprendiz de filósofo (ao jovem aprendiz, pretendo


eu dizer, e na minha qualidade de aprendiz mais velho) rogo que
não se apresse a adoptar soluções, que não leia obras de uma só
escola ou tendência, que procure conhecer as argumentações de
todos, e que queira tomar como primário escopo a singela façanha
de compreender os problemas (...).
Deverá pois a iniciação filosófica assumir um carácter essencial-
mente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que
não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas às
discussões ulteriores; e um bom professor do lidar filosófico é como
um indivíduo que nos leciona a ginástica procedendo ele próprio
como um bom ginasta, e obrigando-nos a nós a fazer ginástica; é
quem nos ministra um trabalho crítico, um modelo de elucidação
da faina de problemas (...). Repito: seja a filosofia para o aprendiz
do filósofo, não uma pilha de conclusões adoptadas, e sim uma ati-
vidade de elucidação dos problemas. É esta actividade que real-
mente importa e não o aceitar e propagandear conclusões. (...) Pois
que, (não nos cansemos de repetir) não é a filosofia uma colecção
de dogmas que nos cumpre decorar e repetir aos outros (...).

Esta citação, ainda que referindo-se especificamente ao ensino da


filosofia, realça sem dúvida o registo antidogmático inerente a uma ima-
gem argumentativa do pensamento (cf. GRÁCIO, 2016, pp. 92-110) e
pode, nesse sentido, ser generalizada como um princípio didático trans-
versal a todo o ensino que não perde de vista o livre exame e o espírito
crítico. Com efeito, pensa-se a partir da colocação de alternativas, li-
dando com elas, estabelecendo preferências e fazendo hierarquias entre
algo que se opõe, que é incompatível ou que difere. Alain sintetizou está
ideia dizendo que «Pensar é dizer não»9, frase que aqui aproveito para
9
«Penser, c'est dire non. Remarquez que le signe du oui est d'un homme qui s'endort ; au con-
traire le réveil secoue la tête et dit non. Non à quoi ? Au monde, au tyran, au prêcheur ? Ce
n'est que l'apparence. En tous ces cas-là, c'est à elle-même que la pensée dit non. Elle rompt
l'heureux acquiescement. Elle se sépare d'elle-même. Elle combat contre elle-même. Il n'y a
pas au monde d'autre combat. Ce qui fait que le monde me trompe par ses perspectives, ses
brouillards, ses chocs détournés, c'est que je consens, c'est que je ne cherche pas autre chose.
Et ce qui fait que le tyran est maître de moi, c'est que je respecte au lieu d'examiner. Même
une doctrine vraie, elle tombe au faux par cette somnolence. C'est par croire que les hommes
sont esclaves. Réfléchir, c'est nier ce que l'on croit. Qui croit ne sait même plus ce qu'il croit.
Qui se contente de sa pensée ne pense plus rien».
«Pensar é dizer não. Notai que o sinal do sim é do homem que adormece; pelo contrário, o
despertar sacode a cabeça e diz que não. Não a quem? Ao mundo, ao tirano, ao pregador? Só
aparentemente. Em todos estes casos é a si mesmo que o pensamento diz não. Ele quebra a

203
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

enfatizar não só a importância fulcral do contradiscurso na geração de


uma situação de argumentação, como também, para deixar explícito que
considero que os fenómenos argumentativos não se limitam ao estudo
dos «meios discursivos» mas caem, uma maneira mais essencial, sob a
égide do conflito de perspectivas de pensamento em situação10.
Com efeito, se se subscrever a ideia nietzscheana segundo a qual
«não existem factos, apenas interpretações» e, por conseguinte, se se
professar o perspetivismo para o qual a realidade com que os humanos
têm de lidar lhes chega sempre sob a forma de versões, estão será plau-
sível considerar que o conflito interpretativo é algo de inevitável e re-
corrente, que o recurso à argumentação é um procedimento apropriado
para lidar com esse conflito e que a racionalidade retórica (uma racio-
nalidade transacional que têm o diálogo11 na sua matriz) surge como o

concordância repousante. Separa-se de si mesmo. Combate contra si mesmo. Não há no


mundo outro combate. É por eu consentir, por não procurar outra coisa, que o mundo me
engana com as suas perspetivas, o seu nevoeiro, a sua confusão. Por respeitar, em vez de exa-
minar, é que me torno escravo do tirano. Mesmo uma doutrina verdadeira cai em falso por
causa da sonolência. É por acreditar que os homens são escravos. Refletir é negar o que se
crê. Quem acredita não sabe sequer aquilo em que crê. Quem se contenta com o seu pensa-
mento não pensa mais nada.» (ALAIN, 1985, pp. 351-352. Tradução nossa).
10
Assinalando-se aqui interdependências várias entre o verbal e o não-verbal. Recusando o deter-
minismo linguístico (mas sem obviamente pôr em causa a importância da linguagem), Willlard
escreveu, com humor e incisividade: «Na Grécia antiga, os homens eram possuídos pelos deuses;
na Idade Média eram possuídos por demónios e anjos; em tempos posteriores, eram possuídos
por vapores e bílis; nos nossos dias, desde que ficou na moda fazer da linguagem o seu atributo
mais fundamental, dizemos que homem está possuído pela linguagem». (1983, p. 63. Trad. minha).
«In ancient Greece, man were possessed by gods; in the Middle Ages they were possessed by de-
mons and angels: in later times they were possessed by vapors and bile; nowadays, since is faddish
to make language man’s most fundamental atribute, we say that man is possessão by language».
O nosso ponto de vista teórico é o de que o discurso constitui uma materialidade essencial
em argumentação, mas ele tem de se articular com todo um conjunto de de elementos situa-
cionais, nomeadamente de ordem simbólica, que sendo não-discursivos concorrem contudo
para o estabelecimento de simetrias e assimetrias relacionais determinantes para a compreen-
são dos episódios de argumentação.
11
«Sur le mot dialogue sont formés les deux adjectifs, dialogal et dialogique :
— l’adjectif dialogal renvoie au dialogue authentique, quotidien, ou naturel, entre deux ou
plusieurs participants, dans une situation de face à face ;
— l’adjectif dialogique s’utilise pour désigner un ensemble de phénomènes correspondant à
la mise en scène énonciative, dans la parole d’un locuteur unique, d’une situation de dialogue.
Le locuteur lie des contenus sémantiques à des sources constituant une gamme de voix aux-
quelles le locuteur peut s’identifier ou non. […]
On peut utiliser le mot dialogal pour couvrir à la fois le dialogal proprement dit, et le dialo-
gique (polyphonique et intertextuel), afin de mettre l’accent sur un aspect fondamental de
l’argumentation, celui d’articuler deux discours contradictoires.

204
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

pano de fundo onde as questões do raciocínio e do juízo se fundem com


as questões da coexistência e do sentido (ou, como Perelman (1972)
diria, onde as ideias de razão e de justiça se irmanam). Em suma, não se
trata apenas de raciocinar, de discorrer e de influenciar. Trata-se de pen-
sar, de discutir, de confrontar e de se posicionar. Ou, se quisermos reto-
mar os termos de James Crosswhite (2003, p. 385), que em seguida
citamos, trata-se de «controvérsia intelectual». Ora, nesta última, as pró-
prias situações de dúvida e a necessidade de ponderação são fomenta-
doras da inteligência e, como sublinha o referido autor, há um potencial
na argumentação retórica
«quer para melhorar o nosso entendimento da controvérsia inte-
lectual, quer para participar nela. Se tivermos um mapa dos tipos
de argumentos disponíveis num tipo particular de disputa, po-
demos ‘ver’não só os caminhos que foram tomados numa argu-
mentação como também aqueles que o não foram. Este ‘ver’ocorre
a muitos níveis de generalidade e nunca é automático. Não é por
vermos os contornos gerais de uma região argumentativa que po-
demos imediatamente imaginar toda a argumentação específica
que aí pode ocorrer. Ver alguma parte dela requer motivação, co-
nhecimento, experiência, imaginação, simpatia e todo um con-
junto de outras capacidades e virtudes intelectuais. Essa é a maior
dificuldade educativa que enfrentam aqueles que ensinam os
topoi. Contudo, os topoi podem funcionar com essas competên-
cias. Muito claramente, conhecer os caminhos de raciocínio não
tomados, alarga a nossa perspetiva e incrementa, também, a es-
fera a partir da qual é possível desenhar os nossos próprios argu-
mentos»12 (Trad. minha).

«Acerca do vocábulo diálogo, ele dá origem a duas palavras: dialogal e dialógico: — o adjetivo
dialogal remete para diálogo autêntico, quotidiano ou natural, entre dois ou mais participan-
tes, numa situação face a face;
— o adjetivo dialógico é utilizado para indicar um conjunto de fenómenos correspondentes
a uma encenação enunciativa, na fala de um locutor único, numa situação de diálogo. O lo-
cutor liga conteúdos semânticos a fontes que constituem uma gama de vozes com as quais o
locutor se pode identificar ou não [...]
Podemos utilizar o termo dialogal para abarcar simultaneamente o dialogal propriamente
dito, e o dialógico (polifónico e intertextual), salientando assim um dos aspetos fundamentais
da argumentação, o de articular dois discursos contraditórios.» (Plantin, 2016, p. 323. Trad.
minha).
12
«is reading also shows the potential of a deep rhetoric for both improving our understan-
ding of intellectual controversy and for participating in it. If one has a map of the kinds of ar-
guments available in a particular kind of dispute, one can ‘see’ not only what routes have been

205
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

Neste sentido, e para retomar a questão das relações entre análise


do discurso e argumentação, no momento em que apresenta a sua aná-
lise, o analista é também um argumentador e, naquilo que propõe, re-
percutem-se não apenas os pressupostos por ele assumidos (consciente
ou inconscientemente), como também as suas próprias preferências in-
terpretativas (geralmente associadas ao que seleciona como importante
a salientar13) e, ainda, o auditório a que se dirige.
Colocado o assunto sob este prisma, no presente ensaio assume re-
levo não só a questão do potencial que as práticas argumentativas têm
nos processos de apropriação reflexiva de conhecimento14 e de definição
identitária como, também, as questões do ensino da argumentação.
Disso que me ocuparei no ponto seguinte.

3. Reflexões propedêuticas sobre o ensino da argumentação


De acordo com Chaïm Perelman, a competência argumentativa não
se relaciona apenas com a arte de falar eloquentemente, mas remete tam-
bém para o laço indissociável entre eloquência, raciocínio discursivo e
orientação argumentativa. Dito de outro modo: entre saber comunicar,
discernimento reflexivo e manuseio das significações com vista a lidar
com posicionamentos.
Quando interrogado, no debate que se segue ao texto «L’idéal de ra-
tionalité et la règle de justice», se estaria disposto a resumir as suas ideias
na seguinte frase: «o acordo entre os que não pensam da mesma ma-
neira só pode ser feito pela eloquência, isto é, uma persuasão conduzida

taken by an argument but also what routes have not. is ‘‘seeing’’ occurs at many levels of
generality and is never automatic. Just because one sees the general outlines of an argumen-
tative region does not mean that one can suddenly imagine all the specific argumentation that
might occur within it. To see any at all requires motivation, knowledge, experience, imagina-
tion, sympathy, and a host of other abilities and intellectual virtues. is is the major educa-
tional difficulty faced by those who would teach the topoi. However, the topoi can work with
such abilities. Very clearly, knowing the untaken routes of reasoning enlarges one’s interpretive
perspective and increases, too, the sphere from which one might draw one’s own arguments».
13
A saliência é algo de importante do ponto de vista prático da comunicação: é ela que geral-
mente conduz os processos de compreensão e que evita o seu deslaçamento. Se a compreensão
se começa a deslaçar, a tendência é para que ocorram mal entendidos ou mesmo incompreen-
são. Os processos de saliência ajudam, qual luz de um farol, a apontar a direção (Para as noções
de saliência e de filtragem, propostas por Grize, cf. GRÁCIO, 2013, p. 72).
14
Tema desenvolvido de uma forma muito interessante em vários trabalhos de Selma Leitão.

206
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

e obtida por aquele que sabe falar», Perelman acrescenta: «E que sabe
pensar. Para mim a argumentação é um uso da palavra inseparável do
pensamento (...) o que eu queria dizer é que não se trata apenas de falar,
trata-se de raciocinar» (PERELMAN, 1970, p. 306. Trad. minha) 15.
Este parece-nos ser um bom ponto de partida para colocar a questão
do ensino da argumentação. As competências linguistico-discursivo-co-
municacionais são, sem dúvida, importantes para as práticas retórico-
argumentativas. Saber analisar e expressar-se, de uma forma correta,
clara, eloquente e adaptada ao auditório é uma competência base sem a
qual a capacidade de argumentar se vê drasticamente restringida. O
mesmo acontece, aliás, com o saber ouvir e interpretar a fala do outro
de modo a corresponder-lhe e a conferir uma base realmente dialógica
à interação. Não é por acaso que, tanto Martin Heidegger, como Hans-
Georg Gadamer, avançaram a ideia segundo a qual, antes de ser uma
arte de falar, a retórica é uma arte de ouvir16 (WU, 2013) e que Henry
Johnstone Jr. (2007, p. 24) se lhe referiu como «uma espécie de cunha,
tal como uma espécie de ponte e a retórica é a técnica de colocar uma
cunha entre a pessoa e os dados da sua experiência imediata», ou seja,
algo que a torna disponível para a escuta de argumentos e, desse modo,
convoca a ordem do pensamento, da reflexão e do raciocínio. Também
Toulmin, Rieke & Janik (1984, p. 14) referiram a abertura à escuta dos
argumentos como um traço distintivo da racionalidade humana. Neste
sentido escreveram que:
[…]qualquer pessoa que participa numa argumentação mostra a
sua racionalidade, ou a falta dela, através da forma como lida e
responde à oferta de razões a favor ou contra as teses. Se for
‘aberto aos argumentos’, ela reconhecerá a força das razões ou pro-
curará replicar-lhes, lidando com elas, em qualquer dos casos, de
uma forma ‘racional’. Se for ‘surdo aos argumentos’, pelo contrá-
rio, poderá ignorar razões contrárias ou responder-lhes com as-
15
«(…) l’accord entre ceux qui ne pensent pas de la même façon ne peut se faire que
par l’éloquence, c’est-à-dire, conduite et obtenue par celui qui sait parler». «Et qui
sait penser. Pour moi l’argumentation est un usage de la parole inséparable de celui
de la pensée. (…) ce que je voulais dire c’est qu’il ne s’agit pas seulement de parler, il
s’agit de raisonner».
16
Para um desenvolvimento deste tema ver WU, 2013, pp. 507-519.

207
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

serções dogmáticas, falhando, qualquer dos casos, em lidar com


os assuntos ‘racionalmente’(Trad. minha)17.

Ora, este é um aspeto relevante que desafia a limitação do foco do


ensino da argumentação aos planos do expressivo, do composicional e
do linguístico, apontando para uma dimensão de interação efetuada por
turnos de palavra e para a crítica do discurso de um pelo discurso do
outro, na qual a questão do ouvir e do posicionar-se perante o posicio-
namento do outro é fulcral.
Com efeito, uma coisa são os discursos postos a circular e a produzi-
rem efeitos comunicativos das mais variadas espécies18; outra são os dis-
cursos produzidos no contexto confrontacional de uma interação
organizada dialogicamente por turnos de palavra19. Neste último caso a
compreensão do episódio comunicativo deve ser realizada tendo em con-
sideração a dinâmica tensional que faz com que os diversos posiciona-
mentos sejam essencialmente interdependentes, isto é, surjam
simultaneamente como resposta contextualizada ao assunto em questão e
como resposta ao discurso do outro. Sobre um mesmo assunto é frequente
argumentarmos de maneira diferente perante interlocutores diferentes
17
«Anyone participating in an argument shows his rationality, or the lack of it, by the
manner in which he handles and responds to the offering of reasons for or against
claims. If he is ‘open to argument’, he will either acknowledge the force of those reasons
or seek to reply to them, and either way he will deal with them in a ‘rational’ manner.
If he is ‘deaf to argument’, by contrast, he may either ignore contrary reasons or reply
to them with dogmatic assertions, and either way he fails to deal with issues ‘ratio-
nally’». Sobre o tema da racionalidade argumentativa (na perspetiva de Perelman, ver
GRÁCIO, 1993 e sobre o tema da racionalidade retórica ver GRÁCIO, 1998).
18
Chamando-se frequentemente — por exemplo na análise do discurso — argumen-
tos, ou estratégias argumentativas aos desencadeadores verbais desses efeitos. Con-
tudo — e esta é a tese que defendemos — a existência de argumentos não basta para
configurar uma situação de argumentação.
19
É neste sentido que Gilbert (1997: 104-105) escreve: «um comercial televisivo, por
exemplo, envolve a transferência de informação num sentido único, portanto a sua
consideração como uma argumentação depende de permitirmos a unilateralidade.
Na medida em que as trocas envolvem normalmente duas partes, cada uma das
quais recebe e dá algo, um comercial não será uma argumentação» (Trad. minha).
«A television commecrial, for example, involves a one-way impartation of informa-
tion, so its identification as an argument depends on alowing on-sidedness. Insofar
as exchange normal envolve two parties, each of whom receive something and each
of whom give something, a comercial would not be an argument».

208
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

que apresentam diferentes formas de tematizar os assuntos e de se posi-


cionar. Isso significa que muito frequentemente a nossa forma de argu-
mentar — para além de todos os constrangimentos de ordem
sócio-institucional — é também moldada pelo modo de argumentar da-
queles com os quais nos correspondemos.
Deste modo, é a própria dinâmica tensional da interação argumen-
tativa que opera o deslocamento de um registo ontológico puro (ad rem)
para um registo que não se pode separar do retórico e do antropológico
(ad hominem)20. É também por esta via que se pode perceber a ideia de
que a estratégia é inerente às interações retórico-argumentativas. Nestas
lidamos com caminhos possíveis em que o mero plano analítico-formal
do raciocínio se afigura insuficiente para determinar os resultados da
interação, uma vez que não há nem uma estabilidade linear quanto aos
pontos de partida21, nem regras estabelecidas a priori que não possam
ser questionadas ou ajustadas na sua aplicação ao caso concreto22. Por
outro lado, a situação de argumentação típica não é a de lidarmos com
um conjunto definido de conceitos e de noções, mas o de existirem pelo
menos dois conjuntos que entre si conflituam.
Na realidade, a existência de preferências baseadas em valores por
vezes conflituais, de escolhas assentes em opções sobre o que é melhor
ou pior, bem como de colocações determinadas pragmaticamente pelo
que se considera preferível dentro do possível de cada caso particular,
faz com que a estabilidade exigida pelos sistemas formais, com os seus
inquestionados e inquestionáveis, não funcione no plano retórico. Aliás,
este limite à linearidade analítica no que diz respeito a lidar com ques-
tões de sentido em termos necessidade — algo que aparece sempre,
como uma espécie de zona cinzenta, quando se trata de aplicar esquemas
20
Escreve Michel Meyer: «em retórica, nunca existe ad rem puro» (Meyer, 2008:
109).Por seu turno, Henry Johnstone Jr. considera que toda a argumentação filosó-
fica é ad hominem, na medida em que a contra-argumentação deve ser feita tendo
também em conta os termos com que o oponente argumenta.
21
Como notou Perelman (2018, p. 25), numa argumentação o ponto de partida nunca
está assegurado: «deve ser admitido pelo auditório que se quer persuadir ou con-
vencer pelo discurso».
22
Poderíamos dizer que, no campo da argumentação, o plano lógico-formal dos ra-
ciocínios não se basta a si próprio, uma vez que estes são sempre desenvolvidos a
partir do registo mais amplo das perspetivas.

209
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

abstratos a situações concretas e particulares — permite compreender,


a contrario, o cunho humanista da retórica, a qual remete para a liber-
dade humana de questionar, de praticar o pensamento hipotético, de
lidar com o alternativo, plural e controverso, de procurar inventar e ajus-
tar as regras apropriadas para cada caso. Ciência do particular e do mais
ou menos (cf. Angenot, 2018, pp. 85-102), a retórica não tem vocação
para o universal nem para a construção do certo.
Argumentamos quando temos de lidar com o multidimensional, o
múltiplo e o complexo. Com aquilo que, tendo várias dimensões, precisa
de ser hierarquizado, pesado, refletido e ponderado. Resolvemos muitas
das situações em termos de «sim» ou «não» e, para isso, a inferência ló-
gica e a orientação argumentativa prestam-nos bons serviços. Nada
como ser lógico ou orientar para a resposta em certas ocasiões. Mas
quando matizamos de escalas graduadas as possibilidades entre o «sim»
e o «não», então os raciocínios e orientações feitos a partir de dados têm
de ser substituídos por considerações a partir de escolhas, o que já vai na
implicar a subjetividade e a liberdade de selecionar para argumentar
uma posição.
Mas, como referimos atrás, se as competências linguistico-discur-
sivo-comunicacionais — agora consideradas de um forma bilateral e di-
nâmica pelo realce da importância conferida ao ouvido e aos turnos de
palavra — são importantes, o saber pensar é também decisivo e remete-
nos para um plano filosófico do qual a argumentação não deve ser dis-
sociada, a não ser que a queiramos ver redutora e abstratamente como
um conjunto de técnicas prontas a usar para produzir determinados efei-
tos de influência. Por outro lado, do nosso ponto de vista a retórica tem,
por si só, uma conexão com a ética, com dizermos quem somos e onde
queremos estar23 e com o vivermos uns com os outros de uma forma in-
teligente e respeitosa.
Por conseguinte, quando refletimos sobre o ensino da argumentação
podemos dizer que é importante perceber e dominar o funcionamento
e os poderes da linguagem do ponto de vista linguistico-discursivo-co-
23
Será curioso relembrar, a este propósito, que quando Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005, p.
477) falam da técnica de dissociação de noções, não consideram que esta seja algo de pura-
mente verbal: «A dissociação exprime uma visão do mundo, estabelece hierarquias, cujos cri-
térios se esforça por fornecer».

210
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

municacional mas ainda mais importante é a forma como através dele


o pensamento crítico — ou seja, que pensa no registo do alternativo, faz
emergir a problematicidade e suscita reflexão — é posto em ação24. É
por essa razão que o estudo da argumentação se revela como lacunar se
for apartado da teoria do debate, embora haja que dizer que a teoria da
argumentação não se esgota na teoria do debate. Pense-se, a este res-
peito, em todas as teorizações que indiciem nos discursos argumentados
monologais e se focam na argumentatividade discursiva25.
Diferentemente de uma visão monologal do pensamento (em que
certamente estarão presentes traços de dialogismo), de um pensar por
e para si mesmo — ideias que frequentemente associamos ao processo
de formação de opinião e de tomada de posição26 —, a argumentação
remete para o plano dialogal, começando pela exposição e pela sujeição
das opiniões e dos posicionamentos de cada um à avaliação dos outros
e consumando-se através de uma dinâmica confrontacional de aprofun-
damento efetivo das divergências quanto ao modo de perspetivar os as-
suntos em questão27. Norteamos-nos pelo preferível e, num processo de
aferição dos retornos, procuramos levar a afirmação dos nossos pontos
de vista preferenciais tão longe quanto possível sem excluir a sua even-
tual revisão. Tentamos fazer com que a interação tenda para a nossa
perspectiva, mas esta tentativa implica atenção ao desenrolar dos turnos
de palavra para vermos até onde podemos ir tendo em conta o espaço
do interlocutor e a pressão do seu discurso.
O confronto pode adquirir uma dimensão mais cooperativa ou mais
competitiva, consoante os intervenientes, as situações e as finalidades da
interação, mas convém lembrar que, mesmo em argumentações com um
24
De acordo com Selma Leitão (2012, p. pp. 25 e 26), «dois processos epistêmicos são apontados
como específicos e inerentes à argumentação: a revisão de perspectiva e o pensamento refle-
xivo», afirmando ainda a pesquisadora que «pensar criticamente, por sua vez, depende subs-
tancialmente da capacidade humana de reconhecer diferentes pontos de vista a partir dos
quais um problema (tema, situação) pode ser abordado, e ‘pesar’ criteriosamente a força e a
fragilidade de cada possibilidade».
25
Para a explicitação da distinção entre argumentação e argumentatividade, cf. GRÁCIO, 2016.
26
É importante assinalar aqui que se a «deliberação íntima» remete para uma imagem argu-
mentativa do pensamento, ela não se confunde, na nossa perspetiva, com a uma situação de
argumentação: a simulação imaginativa não se deve confundir, em prol do rigor descritivo,
com o confronto real, concreto e situacional, entre dois argumentadores.
27
Ora, este parece-me ser um aspeto algo negligenciado pela perspetiva que a análise do discurso
tem da argumentação.

211
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

desfecho resolutivo (decisão), nas quais há alguém que é declarado vence-


dor e alguém é declarado vencido, razões vencidas não deixam de ser ra-
zões, a não ser para quem quiser tudo submeter à alternativa do verdadeiro
e do falso, o que, todavia, nos colocaria fora do campo da argumentação
retórica, no qual se tem de lidar com intensidades variáveis, hierarquização
de valores e escolhas ponderadas multidimensionadamente.
Lembremos, de novo, que mesmo quando se trata de aplicar regras
estabelecidas a situações concretas (como acontece paradigmaticamente
no direito), há muito frequentemente uma zona cinzenta que permite
não só discutir as questões da factualidade como, também, enquadrar os
assuntos segundo perspetivas que se opõem entre si. Mesmo em situações
apresentadas no binário do preto e branco, chegados à intervenção hu-
mana (onde há subjetividades em interação) logo surgem escalas de in-
tensidade, os números inteiros tornam-se decimais e as questões do mais
ou menos, do melhor e do pior e das prioridades, logo aparecem. Talvez
esta seja uma fórmula que os humanos arranjaram para lidarem com a
incerteza: quando aflitos, atêm-se dogmaticamente à ordem das certezas
para, na prática, e ainda que secretamente saibam que «as coisas nunca
são o parecem», não perderem a esperança no sentido.
Mas, voltemos à questão do ensino da argumentação. Uma das as-
sunções principais de que se deve partir é a de que estamos perante um
campo multidimensional que se articula com cada pessoa de uma forma
simultaneamente integral e individual. Significa isso que o seu ensino
nunca se pode reduzir a técnicas suprapessoais, à compreensão de me-
canismos abstractos, ao entendimento de estratégias ou a funcionamen-
tos linguísticos ou mesmo linguareiros. É claro que tudo isso é
importante, mas as dinâmicas argumentativas são profundamente plás-
ticas, processuais, situacionais e nelas está presente a liberdade e a res-
ponsabilidade de se posicionar e de selecionar o que se considera
apropriado para cada situação. É também por isso que, como salientou
a tradição retórica, o caráter, enquanto revelador da pessoa e do seu
ethos, é uma dimensão essencial nas transações argumentativas.
É importante não esquecer que a argumentação é uma subespécie
de comunicação e, como alertou Brockriede (2018, p. 15), é importante
«decidir se a argumentação é uma perspetiva útil a adotar no estudo de
um ato comunicativo». A este respeito torna-se útil diferenciar dois re-

212
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

gistos discursivos no que concerne às trocas verbais e que são relevantes


para definir uma situação de argumentação: a dimensão da conversação
(ou troca de impressões) e a dimensão do debate.
Embora na prática os planos sejam difíceis de distinguir, a troca de
impressões (conversação) é algo de diferente do debate. No primeiro há
uma colheita de informações, um aferir do que se pensa (nós e os outros),
um sondar do que circula socialmente28 e uma certa espontaneidade in-
formal29. Numa troca de impressões o confronto explícito não é geral-
mente tematizado — é, aliás, geralmente, evitado30 — embora certamente
existam afloramentos argumentativos31. No debate está em causa uma
confrontação e, em muitos casos, a finalidade de proceder a uma tomada
de decisão. É no entanto verdade que os constrangimentos sócio-insti-
tucionais impedem frequentemente o caminho do debate (as relações de
poder e a autoridade vedam frequentemente a possibilidade e por em
causa e de discutir), fazendo emergir um o registo conversacional no qual
o confronto é evitado em favor da polidez. Esta é, aliás, uma das razões
pelas quais defendemos que as situações de argumentação não são tão
vulgares quanto os seus teorizadores geralmente apregoam. A maior parte
das vezes as pessoas não estão para discutir os assuntos, tentando, através
da atenção aos afloramentos argumentativos, contornar situações de cho-
que frontal. A própria disponibilidade para entrar na discussão de assun-
tos depende muito do interesse, dos conhecimentos e das competências
que as pessoas acham que têm para o fazer e é frequente ouvir-se a frase:
28
Podemos fazer isso de muitas formas, desde em conversas no café com outras pessoas até à
leitura de jornais ou assistindo televisão.
29
Poderíamos dizer que neste tipo de interação é mais acentuada a componente expressiva de
quem gosta de falar do que a dimensão mais assertiva de quem pretende argumentar a sua
posição.
30
Note-se que é até habitual pedir-se desculpa por discordar, o que significa que, no quadro da
polidez da convivencialidade social há uma tendência para o acordo e o consenso.
31
Ou seja, momentos em que são registados eventuais pontos de desacordo que, no entanto,
não são tematizados explicitamente e ficam na esfera da opinião de cada um. Poderíamos
dizer de outra maneira: a argumentatividade inerente ao dizer prefigura ou indicia posicio-
namentos sem que estes tenham necessariamente de ser explicitados ou mesmo assumidos
pelo falante. Ducrot (1991, p. 12) colocou esta questão em termos do problema do implícito:
«o problema geral do implícito (…) é o de saber como é que se pode dizer algo sem contudo
aceitar a responsabilidade de o ter dito, o que significa beneficiar simultaneamente da eficácia
da palavra e da inocência do silêncio» (Trad. minha). «Le problème général de l’implicite (...)
est de savoir comment on peut dire quelque chose sans acccepter la responsabilité de l’avoir
dit, ce qui revient à bénéficier à la fois de l’efficacitè de la parole et de l’innocence du silence».

213
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

«não quero entrar em discussões». Na realidade, há muitos caminhos,


que não o da interação argumentativa, para realizar pretensões; há muito
modos de resolver situações apesar daquilo que os outros poderão pensar
e dizer e, até, sem precisar de discutir com eles32.
Para além do mais, faz parte da retoricidade da linguagem a possi-
bilidade de dizer sem ter que afirmar, ou de recusar sem ter negar (ou
seja, sem assumir explicitamente uma posição), como bem exemplificou
Michel Meyer (1994, pp. 69-70):
[...] a mulher sabe que tal homem procura seduzi-la e que o que
ele lhe diz remete na realidade para um desejo que seria brutal e
inaceitável exprimir francamente. O espectador sabe igualmente
que este ou aquele produto não tem forçosamente as qualidades
celebradas na publicidade e que é apenas a vontade de vender que
se exprime. A mesma coisa para o político, aparentemente preo-
cupado com o bem-estar dos eleitores. (…) Não existirá na sedu-
ção, qualquer que ela seja, uma etapa suplementar que, retardando
a resposta final, retarda a recusa eventual e, portanto, a rejeição de
outrem enquanto tal? Não existe como que uma espécie de deli-
cadeza de alma na figuratividade, um respeito que permite evitar
sem combater, recusar sem negar? Tudo leva a crer que a mani-
pulação consentida assenta numa dupla linguagem que engana e
não engana, e mesmo de que se tem necessidade para diferir a de-
cisão própria sem ter de enfrentar diretamente o outro. Um grau
mais de liberdade, se se quiser, na qual só os ingénuos verão uma
traição à verdade una e indivisível, de que os recetores da mensa-
gem seriam vítimas involuntárias.
32
Tal como também há meios retóricos para incentivar o outro a entrar numa situação de ar-
gumentação. Segundo Jean Goodwin (2002, p. 88) podemos falar de incentivos à argumen-
tação: «os incentivos podem ser geralmente categorizados como cenouras ou varas.
Oferecendo cenouras, o argumentador tentará fazer o seu interlocutor querer fazer uma ques-
tão do assunto; o assunto em questão aparecerá como desejável, atrativo ou do interesse do
outro. Ameaçando com a vara, o argumentador tentará fazer com que o outro tenha de fazer
disso um assunto em questão; este aparecerá como algo a que o outro foi obrigado, ou forçado
pelas circunstâncias, a encarar — ou, se não a encarar, pelo menos a tentar esquivar, evitar,
evadir ou contornar» (Trad. minha). «Inducements can generally be categorized as carrots or
sticks. By offering carrots, the arguer would try to make her interlocutor want to make an
issue of the matter; the issue would appear desirable, attractive or in the other's interest. By
threatening sticks, the arguer would try to make the other have to make an issue of it; the
issue would appear to be something the other was obligated, or forced by circumstances, to
address — or if not address, at least attempt to duck, avoid, evade or skate over».

214
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇãO E ENSINO

É precisamente por considerar que as situações de argumentação


não são tão banais e óbvias como se diz (a argumentação é, com efeito,
uma sub-espécie de comunicação) e, ainda, por nelas ser fundamental
a questão das assimetrias relacionais-situacionais e a focalizarão do as-
sunto em questão33 que subscrevo a posição de Michel Meyer (2005, p.
15)34 no que diz respeito às relações entre argumentação e retórica, ou
seja, «a argumentação apresenta uma especificidade inegável que, fa-
zendo parte da retórica, não convém identificar nem opor a esta».

4. para concluir
No presente ensaio apresentámos as relações entre análise do dis-
curso e argumentação de uma forma contrária à ideia vulgarizada se-
gundo a qual o estudo da argumentação cai sob a alçada da análise do
discurso. Afirmamos, com efeito, que se a argumentação implica pen-
samento perspetivado, então todos os aspirantes ao estatuto de objeti-
vidade não escapam a este perspetivismo. Assim sendo, tudo o que se
apresenta como um «em última análise» poderá gozar de uma legitima-
ção sócio-institucional e, nesse sentido, permanecer indiscutido mas,
nem por isso, é indiscutível, como aliás refere a epígrafe que selecionei
para o presente trabalho.
Lidar com a incerteza de uma forma crítica, compreender a diver-
sidade dos caminhos possíveis, perceber a dimensão de escolha e de po-
sicionamento inerente à seleção dos caminhos tomados, assumir a
responsabilidade identitária que decorre das nossas assunções, percep-
cionar as exigências performativas das situações de argumentação, ser
capaz de ponderar multidimensionalmente e de lidar com o múltiplo, o
controverso e o alternativo — eis algumas linhas fundamentais que as-
sociei ao ensino da argumentação que, a meu ver, permanecerá sempre
muito parcial e num registo excessivamente académico se não assumir
(e retornar) às bases filosóficas e, mais especificamente, a uma antropo-
logia retórica na qual a finitude e a exposição à problematicidade são o
33
Como assinalou Michel Mayer (2015, p. 16), «em argumentação, todo o esforço de concen-
tração incide sobre a questão e não sobre a distância que ela traduz: debatemos, discutimos
uma questão e é ela que determina o raciocínio a seguir» (itálico nosso).
34
Ver também, MEyER, 2018, p. 167-171.

215
RUI ALEXANDRE GRÁCIO

que melhor aferem a condição humana. Henry Johnstone Jr. (2018, p.


41) deu, há muito, a pista essencial quando falou de uma «natureza ar-
gumentativa do homem» sem a qual, concluía, «ele não poderia ser
homem».
Estas bases filosóficas da argumentação não devem ser negligencia-
das em detrimento de recortes disciplinares académicos tantas vezes
com efeitos redutores e estéreis. Ora, se for possível ter presente na cons-
telação intelectual, não só as ideias de que o homem é um ser de lingua-
gem e que a argumentatividade é inerente ao discurso35 mas, também,
a de que a sociabilidade humana não pode ser dissociada do sentido de
justiça e do exercício da liberdade quanto a posicionar-se, então talvez
a teorização da argumentação possa voltar a ganhar um sentido exis-
tencial que, nos nossos dias tão negligenciado tem sido em detrimento
do estudo dos «meios», dos «procedimentos», das «estratégias», enfim,
de «técnicas» que só são verdadeiramente interessantes se forem com-
preendidas no quadro da plasticidade imaginativa e criativa do pensar
dos humanos — que, certamente, cada um pode desenvolver — quando
confrontado com a problematicidade36.

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35
Coloca setas que orientam e assinalam a exposição humana à questão do sentido e à proble-
maticidade que lhe é inerente..
36
Não era afinal Cícero quem definia «argumento» como «algo de provável inventado para criar
confiança» (probabile inventium ad faciendam fidem)»? (Apud, Conley, 2003: 267).

216
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218
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT
INTeRDISCURSIVITé DANS LA MéDIATION
JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

Wander Emediato

Je cherche à comprendre un phénomène social et discursif — la mé-


diation journalistique d’un événement — dans un rapport de complémen-
tarité entre les études du discours, de l’énonciation et de l’argumentation.
Les notions d’événement et de médiation sont au centre de la probléma-
tique développée ici. La compréhension d’un événement passe par l’ana-
lyse des processus médiateurs dans sa construction sociale et discursive,
comme la médiation journalistique. Sa construction relève des processus
de médiations (langagières, sociales, institutionnelles) responsables pour
sa transformation en objet sémiotique. Ces processus de médiations de
l’événement sont l’affaire des médias, d’acteurs sociaux (légitimés et hé-
gémoniques) et des institutions qui concourent à sa construction. L’évé-
nement, tel que je l’envisage, n’est pas le produit du hasard ni quelque
chose qui survient produisant une rupture dans un ordre figé, une dis-
continuité dans la continuité. Au contraire, c’est un phénomène construit
depuis son émergence par des processus complexes et élaborés de mise-
en-scène, de médiatisation, d’argumentation et de dialogisme. Au niveau
théorique, je vise à intégrer les dimensions interne et externe du fonc-
tionnement du discours — sa dimension énonciative et langagière, ainsi
que sa dimension sociale et interdiscursive.

1. L’événement comme discours et comme action


L’objet empirique que j’étudie sera exposé ici par une description
définie : Le plan d’action mondial du FMI. En octobre 2017, le FMI a
publié une série de documents sur la conjoncture économique mon-
diale, ainsi que des perspectives pour l’avenir. Ces documents sont dis-
ponibles sur le site web du FMI. Ils ont été repris par les agences de
presse internationales et les médias du monde entier. L'analyse de la

219
WANDER EMEDIATO

manière dont les différents médias ont abordé ces « orientations » du


FMI est très pertinente, compte tenu des spécificités politiques et éco-
nomiques de chaque pays, ainsi que de l'orientation axiologique des
différents journaux.
Mon corpus comprend des documents originaux du FMI et des ar-
ticles journalistiques (publiés au Brésil et en France, mais aussi dans
d’autres pays) qui ont repris les mêmes sujets. L’événement a débuté par
un texte clé, attribué à la Directrice générale du FMI, Mme. Christine
Lagarde, intitulé Le plan d'action mondial. Une occasion à saisir. La pu-
blication de ces documents a été elle-même précédée par une conférence
de Mme Lagarde le 05 octobre 2017 à l’Université de Harvard, aux USA,
dont le texte officiel, intitulé Le moment de réparer la toiture, a été lui
aussi publié sur le site du FMI. Pour cet article, je m’intéresse aux reprises
du texte qui a été lu à Harvard. Il est, pour moi, le point de départ de
l’événement. L’occasion a été soigneusement mise en scène et le texte de
la conférence sert de base aux textes journalistiques ici analysés.
J’analyserai ici deux articles sur la question, publiés dans des jour-
naux français et brésilien, respectivement, Le Monde et O Globo.

1.1. Une analyse intégrée  : l’argumentation dans la gestion de


l’énonciation
Un ensemble d'objets hétérogènes peut caractériser l’étude sur l’ar-
gumentation, tels que :
a) Les structures argumentatives : les formes de raisonnement, les
types classiques de preuves (ethos, pathos, logos), et d'argu-
ments, les stratégies pour convaincre ou persuader quelqu'un
d'adhérer à une certaine thèse, l’examen interne de ces struc-
tures ainsi que de leurs conditions de validité, les fallacies, les
contradictions, les paralogismes, les domaine d’évaluation, etc.
b) Les relations (discursive, interdiscursive, intellectuelle) entre
le locuteur, le discours, le public et la société, la problématique
de l’auditoire.
c) L’orientation argumentative des unités linguistiques  ; les
schématisations discursives et leurs valeurs argumentatives ;
les connecteurs et les mots de l’argumentation, la dimension

220
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

ment est sans doute important, mais la synchronisation entre les mé-
dias, loin d’être une garantie d’authenticité de l’information, permet de
construire l’événement sur la base des points de vue hégémoniques.
L’événement est un phénomène intégré au dialogisme social et aux luttes
discursives qui, sur le plan social, imposent aux médias eux-mêmes des
paroles et des points de vue. Bien que le public soit une partie intégrante
du phénomène interdiscursif, il ne faut pas négliger le poids des sources
et des institutions qui s’articulent pour le faire surgir et circuler comme
discours, notamment par les médias, qui concourent à la représentation
hégémonique et synchronisée.
C’est le concept de médiation qui est en jeu dans la notion d’événe-
ment, telle que je voulais la traiter ici. Ce concept n’est pas simple à cerner,
d’autant plus qu’il est traité en linguistique de façon assez restreinte,
comme le montre Guentcheva (1984, 1996), qui reprend le terme mé-
diatif introduit par Lazard, en 1956, pour ne traiter que des formes lin-
guistiques1. Médiatif est ici synonyme d’eventialité. Un ouvrage
francophone publié sous la direction de Delamotte-Legrand (2004), à
partir d’un colloque organisé à Rouen2, montre bien la portée de la no-
tion. Alors que le premier volume s’attaque aux recherches des formes
du médiatif en langue (éventialité), dans des approches qui vont de la syn-
taxe à la sémantique, de la logique à la modalisation, le deuxième discute
de la notion en discours, dont la notion de médiation est plus étendue.
Je ne veux pas traiter la médiation en termes de marquage en langue
(médiatif), mais le problème posé est si pertinent qu’on voulait y faire
mention dans cet article et en reprendre certaines définitions opératoi-
res. La première est celle de Kronning :
[...] notre connaissance du monde est souvent, pour diverses
raisons, imparfaite. Aussi le langage nous offre-t-il des moyens
d’opérer une modalisation épistémique des énoncés, grâce à la-
quelle nous pouvons présenter les énoncés comme plus ou moins
1
« Cette notion revoie à un acte complexe d´énonciation qui consiste à présenter des faits dont
l´appréhension ne correspond pas à une constatation ou à un vécu de l´énonciateur, mais à
un ‘rapport médiat’ que l´énonciateur institue entre lui et le contenu propositionnel de son
énonciation, ce dernier pouvant être attribué à un tiers non spécifié, à un ouï-dire, à un rai-
sonnement abductif à partir d´indices généralement issus de la perception, ou encore à des
faits impliquant un constat inattendu. » (Guentcheva, 2004 : p. 25)
2
Colloque international La médiation : marquages en langue et en discours.

223
WANDER EMEDIATO

sémiotique de Lamizet (2006), par exemple, ajoute au phénomène une


dimension sociologique, symbolique, narrative et argumentative, bien
au-delà de sa seule sémiotisation substantive. L'événement est construit
par l'action sociale et discursive de divers agents sociaux qui assument
et représentent des positions hégémoniques dans la topographie sociale,
d'une part, et par la dimension sémiotique et discursive qui engendre
des significations, légitiment des manières d'interpréter et de compren-
dre les faits sociaux, d’autre part.
Dans le champ d’études journalistiques, Champagne (2000) délimite
l'événement dans le cadre de sa médiation journalistique et politique.
Pour lui, l’événement est un sous-produit du fonctionnement du champ
journalistique, notamment dans ses relations avec le champ politique.
Par l’action des agents, notamment les médias, l’événement est porteur
de représentations symboliques et devient ce qui est socialement consi-
déré comme tel, en obligeant le chercheur
[…] à s'interroger sur l'enjeu d'une telle lutte symbolique, sur le
système des agents qui sont en concurrence, sur la capacité de
chacun d'entre eux à imposer son point de vue, sur les bénéfices
qu'ils espèrent en retirer, etc.  (Champagne, idem, p. 408).

Pour Champagne, l’événement est avant tout une affaire des médias,
vus comme un dispositif qui lui donne sa forme et sa substance, par l’ac-
tion de plusieurs agents, internes et externes aux médias :
[…] les médias construisent les événements dont ils rendent
compte. […] en certains cas, ils peuvent être de simples relais,
plus ou moins conscients ou consentants, de stratégies de com-
munication fabriquées à leur intention par ceux qui cherchent à
produire « artificiellement » des événements afin de profiter des
retombées qu'ils peuvent engendrer... » (Champagne, 2000, p.
413-414).

Pourtant, les journalistes ne sont pas les maîtres incontrôlés des


événements, car ils opèrent dans un système dont ils font partie, sans
en être forcément la source. Un journal ne peut imposer à lui seul sa
vision de l’information et de l’événement. « L'événement implique une
synchronisation et une focalisation minimum des choix de l'ensemble
des journalistes sur un même sujet » (ib., 415). Cet aspect de l’événe-

222
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

ment est sans doute important, mais la synchronisation entre les mé-
dias, loin d’être une garantie d’authenticité de l’information, permet de
construire l’événement sur la base des points de vue hégémoniques.
L’événement est un phénomène intégré au dialogisme social et aux luttes
discursives qui, sur le plan social, imposent aux médias eux-mêmes des
paroles et des points de vue. Bien que le public soit une partie intégrante
du phénomène interdiscursif, il ne faut pas négliger le poids des sources
et des institutions qui s’articulent pour le faire surgir et circuler comme
discours, notamment par les médias, qui concourent à la représentation
hégémonique et synchronisée.
C’est le concept de médiation qui est en jeu dans la notion d’événe-
ment, telle que je voulais la traiter ici. Ce concept n’est pas simple à cerner,
d’autant plus qu’il est traité en linguistique de façon assez restreinte,
comme le montre Guentcheva (1984, 1996), qui reprend le terme mé-
diatif introduit par Lazard, en 1956, pour ne traiter que des formes lin-
guistiques1. Médiatif est ici synonyme d’eventialité. Un ouvrage
francophone publié sous la direction de Delamotte-Legrand (2004), à
partir d’un colloque organisé à Rouen2, montre bien la portée de la no-
tion. Alors que le premier volume s’attaque aux recherches des formes
du médiatif en langue (éventialité), dans des approches qui vont de la syn-
taxe à la sémantique, de la logique à la modalisation, le deuxième discute
de la notion en discours, dont la notion de médiation est plus étendue.
Je ne veux pas traiter la médiation en termes de marquage en langue
(médiatif), mais le problème posé est si pertinent qu’on voulait y faire
mention dans cet article et en reprendre certaines définitions opératoi-
res. La première est celle de Kronning :
[...] notre connaissance du monde est souvent, pour diverses
raisons, imparfaite. Aussi le langage nous offre-t-il des moyens
d’opérer une modalisation épistémique des énoncés, grâce à la-
quelle nous pouvons présenter les énoncés comme plus ou moins
1
« Cette notion revoie à un acte complexe d´énonciation qui consiste à présenter des faits dont
l´appréhension ne correspond pas à une constatation ou à un vécu de l´énonciateur, mais à
un ‘rapport médiat’ que l´énonciateur institue entre lui et le contenu propositionnel de son
énonciation, ce dernier pouvant être attribué à un tiers non spécifié, à un ouï-dire, à un rai-
sonnement abductif à partir d´indices généralement issus de la perception, ou encore à des
faits impliquant un constat inattendu. » (Guentcheva, 2004 : p. 25)
2
Colloque international La médiation : marquages en langue et en discours.

223
WANDER EMEDIATO

probables, ainsi que la possibilité de mettre en œuvre un marquage


médiatif (évidentiel) des énoncés, marquage par lequel nous pou-
vons indiquer la source ou la nature de la source d’où provient
l’information transmise par les énoncés. (Kronning, 2004, 35)

Kronning soulève le rapport entre modalisation et médiation, entre


un devoir épistémique et le renvoi à une source à laquelle le locuteur em-
prunte l’information et, en quelque sorte, sa vérité et sa crédibilité. Le lo-
cuteur présente l’information comme médiatisée et ajoute une
modalisation épistémique dans son énoncé. Laurendeau (1989a, 2004)
propose également de comprendre la notion de médiatif en rapport avec
la modalisation, auquel il rajoute le problème de la prise en charge. Pour
lui
La notion de mode médiatif émerge en fait de l’étude de la moda-
lité épistémique (...) Par-delà les hésitations terminologiques, ce
qui compte ici c’est que cette notion héritée de mode médiatif pro-
vient de l’étude de la propension, toute discursive, à citer une
source de savoir pour nuancer une prise en charge. (LAUREN-
DEAU, 2004, p. 87)

Si la notion de médiation nous amène au problème des enjeux por-


tant sur le fonctionnement énonciatif du traitement de l’information à
partir des sources, et bien sûr des stratégies et postures énonciatives de
mise à distance, on doit parler également d’une médiation sociale, ainsi
que d’un pouvoir des médiateurs, ou des porte-paroles s’exerçant sur le
langage. On reprend ici la question posée par Bourdieu (1982) : « La
force qui agit à travers les mots est-elle dans les paroles ou dans les porte-
paroles ?».
La question est complexe et nous oblige à opter pour une complé-
mentarité entre les formes sémiotiques et les porte-paroles — leurs statuts
et leurs institutions. Le problème de la médiation nous amène à un thème
assez traité, aussi bien en linguistique qu’en sociologie et en philosophie :
la responsabilité. Responsabilité énonciative, éthique, juridique3 ?
3
À ce propos, voir Rabatel (2017), chapitre 3, « La question de la responsabilité dans l´écriture
de presse », publié dans le livre Pour une lecture linguistique et critique des médias. Empathie,
éthique, point (s) de vue. Limoges : Éditions Lambert-Lucas, 2017. Voir aussi Rabatel, Énon-
ciation et responsabilité dans les médias, 2006.

224
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

2. Les postures énonciatives, la responsabilité et la prise en


charge
Le sujet de l’énonciation représente toujours le point de départ, mais
aussi un problème, pour toute analyse discursive. Renvoyer la fonction
sujet simplement à une place idéologique dans une topographie sociale
complexe n’a jamais résolu le problème et a souvent imposé des limites
aux travaux scientifiques par des hypothèses aprioristiques sur le champ
des formations idéologiques. Les études sur l’énonciation, notamment
celles développées en France à partir des années 1970, et ensuite, avec
force après les années 1990, ont beaucoup contribué aux recherches sur
les opérations discursives de l’énonciation. Je renvoie aux travaux de Pa-
trick Charaudeau, surtout dans sa Grammaire du Sens et de l’Expression
(1992), notamment la partie destinée à la modalisation et au mode d’or-
ganisation énonciatif, ainsi qu’aux publications d’Oswald Ducrot, Robert
Vion, Catherine Kerbrat-Orecchioni et Alain Rabatel, pour ne citer que
quelques travaux dans le contexte francophone. Il n’est pas nécessaire de
faire ici une révision de cette littérature, mais il est important de discuter
quelques problèmes fondamentaux pour une analyse des processus
énonciatifs insérés dans l’analyse du discours. Cette présentation per-
mettra de mieux éclaircir mon analyse.

2.1. Le fonctionnement énonciatif, le discours rapporté et la mise en


scène de points de vue
Les études sur le discours rapporté (DR) sont nombreuses en ana-
lyse du discours et mettent en évidence la complexité du phénomène de
la reprise des paroles — et des points de vue — d’autrui. L’ouvrage de
Laurence Rosier (1999) offre une mise en perspective historique, théo-
rique et descriptive du problème et des formes du DR. Elle souligne trois
conceptions ou lignes de traitement du DR dans le domaine des sciences
du langage : (1) l'approche métalinguistique qui appréhende le langage
dans sa composante réflexive, illustrée par les travaux d'Authier-Revuz;
(2) l’approche polyphonique et argumentative de Ducrot; (3) les travaux
de Maingueneau qui offrent une synthèse de l'approche argumentative
et de l'approche métalinguistique.

225
WANDER EMEDIATO

Charaudeau, dans sa Grammaire du Sens et de l’expression (1992), ac-


corde une place importante au discours rapporté dans le mode d’organisa-
tion énonciatif, car il le considère comme l’une de deux modalités de l’acte
délocutif, à côté de l’assertion. Pour cet auteur, le DR n’est pas une assertion
comme les autres : il s’agit de la représentation d’un Dire et non d’un état
de choses du monde. Charaudeau distingue les modalités délocutives (l’as-
sertion et le discours rapporté) des modalités allocutives (les injonctions,
les autorisations, les avertissements, etc.) et des modalités élocutives (l’opi-
nion, l’appréciation, le souhait, etc.). La catégorisation de Charaudeau té-
moigne de la façon dont le sujet parlant organise son discours et le situe
par rapport à son interlocuteur, au monde et à ce qu’il dit.
Le discours rapporté, comme modalité délocutive, témoigne donc
de la façon dont le locuteur se situe par rapport au monde, mais un
monde représenté par les paroles d’un tiers, sous la médiation d’un lo-
cuteur rapporteur. Plusieurs problèmes se présentent dès lors qu’un lo-
cuteur est amené à rapporter les paroles d’autrui  : a) la position du
locuteur rapporteur et du locuteur d’origine, ainsi que des interlocuteurs
et les circonstances (du temps et de l’espace) du discours d’origine et du
discours rapporté ; b) — les différentes façons de rapporter le discours
d’autrui, problématique linguistique qui n’est pas sans enjeux et qui, pour
Rabatel, renvoie aux postures énonciatives de sous-énonciation, Co-énon-
ciation et sur-énonciation dont on parlera plus loin ; c) — la description
du mode d’énonciation d’origine, qui renvoie aux différentes options de
représentation de l’attitude communicative d’autrui, comme les actes il-
locutoires ou les modalités énonciatives. En ce qui concerne l’usage du
DR par les médias, Charaudeau déclare :
L’un des problèmes majeurs auquel est confronté sans cesse le dis-
cours des médias — et particulièrement celui de la presse écrite
— est celui du Discours Rapporté. Qu’il s’agisse de traduire des
dépêches d’agences ou des déclarations d’hommes politiques, ce
discours navigue constamment entre une Citation fidèle (présen-
tée entre guillemets) mais qui peut rarement être donnée en to-
talité (in extenso), et une « interprétation » des faits et gestes, ainsi
que des non-dits  (CHARAUDEAU, 1992, p. 628).

En suivant ce modèle, moi-même (Emediato, 2000) ai mis en évi-


dence de différents enjeux journalistiques sur le traitement des titres de

226
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

journaux en DR. Qu’ils soient construits en discours direct ou indirect,


cité, intégré ou narrativisé, l’enjeu dépasse la problématique de la fidélité
ou de la transformation paraphrastique des discours d’origine. Il s’agit
de faire circuler des interprétations (des PDV) sur et à partir des discours
d’autrui comme partie intégrante de la construction événementielle. Et
la gestion des points de vue dans un texte ne se limite pas au discours
rapporté.

3. La construction interactionnelle des points de vue (pDV)


Rabatel (2004, 2017, entre autres) propose d’évaluer les rapports
entre locuteur et énonciateur, hérités de Benveniste et de Ducrot, en
mettant l’accent sur l’autonomie relative de l’énonciateur dans la gestion
du dialogisme interne, à travers la construction interactionnelle des
points de vue (Rabatel, 2004). Il s’agit d’évaluer comment le locuteur se
place derrière la (re) construction des points de vue des locuteurs/énon-
ciateurs seconds et joue sur la disjonction entre énonciateurs et locu-
teurs. Le locuteur sélectionne les points de vue, les hiérarchise, les
attribue (impute) à d’autres sources, voire les commente, les qualifie ou
les disqualifie, se déterminant par rapport à eux, renvoyant aussi à l’ar-
gumentation dans une version étendue4. Ces positionnements (internes)
peuvent en plus représenter des positions de l’énonciateur dans le dia-
logisme interdiscursif.
Pour l’analyse du discours, la gestion de points de vue concerne les
différentes formes de mise en discours du dialogisme. Pour ce qui est du
discours médiatique, elle est essentielle, car cela permet à l’instance jour-
nalistique de jouer sur sa responsabilité énonciative5 par des stratégies
énonciatives de prise en charge des points de vue qu’elle décide de faire
circuler, soit en adoptant une posture de co-énonciateur, de sous-énon-
4
Sur une conception élargie de l´argumentation, voir l’article « Repenser la « dimension argu-
mentative » du discours » dans le numéro 20/2018 de la revue Argumentation & Analyse du
Discours.
5
Pour Rabatel, avec qui je suis d´accord, la responsabilité énonciative fonctionne au niveau des
textes, et la prise en charge (pEC) au niveau des énoncés. On est toujours responsable de ce
qu´on dit, de ce qu’on prend en charge et aussi de ce qu´on rapporte, même si on ne le prend
pas en charge.

227
WANDER EMEDIATO

ciateur ou de sur-énonciateur, soit en jouant sur l’effacement énonciatif,


sur l’imputation de points de vue à des tiers ou sur leur hiérarchisation
dans le traitement de l’information.
La co-énonciation correspond à la production d'un point de vue
commun et partagé. Pour Rabatel, le concept renvoie uniquement au ni-
veau interne de la co-construction du PDV. Mais d’autres auteurs tra-
vaillent cette notion de façon plus élargie de dialogisme correspondant
à des calculs que le locuteur fait pour produire une énonciation qui re-
çoive le consentement du destinataire, anticipant sur ses réactions,
comme Morel et Danon-Boileau (1998). La notion de contrat de Cha-
raudeau ou celle de pré-validation contractuelle (Ghiglione, 1984, Eme-
diato, 2013) vont aussi dans cette direction. Ce concept est pour moi
doublement important : pour l'analyse du dialogisme interne, tel que Ra-
batel le propose, dans la mesure où les modes de prise en charge et de
représentation des discours d’origine par un locuteur (journaliste, par
exemple) indique la présence d’un consensus (sur le contenu proposi-
tionnel), c'est-à-dire, les locuteurs (premier et second) partagent le point
de vue exprimé ; important également pour l'analyse du dialogisme ex-
terne. Dans ce cas, l’instance de production (journalistique, par exemple)
calcule, comme dans la perspective de Morel et Danon-Boileau (1998),
de Charaudeau (1999), Ghiglione (1984) et Emediato (2000, 2007a,
2009, 2010, 2016, entre autres), que son lecteur (le destinataire) partage
le point de vue exprimé ou implicite dans l’énoncé (ou dans l’informa-
tion). Dans Emediato (2004, 2007a, 2013), il a été évalué, par exemple,
des aspects du traitement de l'information portant sur une éthique ci-
toyenne, en tant que point de vue supposé qui est partagé entre le journal
et ses lecteurs. Une telle « éthique citoyenne » est un pari de l'instance
médiatique dans un système commun de valeurs capable de guider les
interprétations ou valider le traitement de l’information. C'est une sorte
de pré-validation des accords de l’argumentation, à travers laquelle le
journal se présente à son lecteur comme son co-énonciateur, son repré-
sentant, son porte-parole.
La surénonciation est définie comme une expression par un premier
locuteur d'un point de vue dominant reconnu par les autres énoncia-
teurs. Le locuteur met en scène un PDV universel d'un auteur singulier
dont l'ethos révèle un sujet dont la voix est d’autorité et / ou largement

228
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

crédible. Une telle procédure peut être associée à des stratégies d'effa-
cement énonciatif par le locuteur de citations du point de vue original
d’un locuteur cité, amplifiant ainsi les effets de preuve et d’évidence du
contenu énoncé, comme dans certaines citations académiques, dans une
thèse, par exemple.
La sous-énonciation se réfère à l'expression, par un locuteur, d'un
point de vue dominé, au profit d’un surénonciateur. Le capital locutif
d'un locuteur peut être au service de la circulation des points de vue des
autres, d'un surénonciateur, ce qui fait du locuteur principal (journaliste,
par exemple) un sous-énonciateur qui énonce au profit de l’énonciateur
cité. Pour la sous-énonciation, il faut distinguer quand c'est une domi-
nation imposée ou choisie. Un sous-énonciateur peut exprimer un PDV
dominé en révérence à une autorité par politesse, respect, admiration,
ou par soumission, adhésion libre, aliénation, etc. (Rabatel, 2004, p.11).
Comme le souligne le linguiste, le mode dont le locuteur premier (L1)
gère le dialogisme interne peut fonctionner comme une stratégie d'ar-
gumentation par autorité polyphonique. Il s'agit donc d'une exploration
argumentative des énoncés de locuteurs seconds (l2/e2) en faveur du
point de vue de L1/E1.
Les postures énonciatives sont au centre des objectifs argumentatifs
de l'instance de production du discours, permettant d'intégrer les études
de l'énonciation aux études d'argumentation. Assumer une posture
énonciative consiste, pour un sujet, à s’investir d'une manière ou d'une
autre dans la construction d'un point de vue, et, par ce biais, s’investir
dans la construction de l’événement et dans son orientation argumen-
tative. Le locuteur, responsable pour la construction du texte, donne
existence à des énonciateurs dont il organise les points de vue et les at-
titudes à travers la mise en discours des énoncés qu’il rapporte, et il peut
entretenir avec eux des relations de consensus ou de dissonance, ou, en
d’autres termes, co-orientés (consonantes) ou anti-orientés (dissonan-
tes). Les points de vue en question circulent dans un environnement so-
cial et sont évalués, caractérisés et discriminés, constituant ainsi des
positions spécifiques et parfois concurrentes dans l'interdiscours.
L'effacement énonciatif (Vion, 2003, 2004, 2005), est un type de pos-
ture énonciative — de mise à distance et d'opacité — qui permet au lo-
cuteur de se présenter d'une certaine manière comme neutre, objectif,

229
WANDER EMEDIATO

impartial, ce qui peut être important pour son image sociale/institution-


nelle. Les stratégies d'effacement énonciatif et la posture de surénoncia-
tion, répondent à ce que d'autres auteurs ont appelé la stratégie de
désinvestissement du sujet, de démodalisation (Parret, Berrendonner,
1983), de délocution (Charaudeau, 1994 ), ou de désinscription énoncia-
tive (Rabatel, 2004) marquant le passage d'une énonciation personnelle
à une énonciation impersonnelle. En tant que stratégie énonciative, cela
permet au locuteur d'imposer — sans opinion explicite — son point de
vue personnel, lui donnant une apparence — ou un visage — d'objecti-
vité. Maintenir ce "visage" est essentiel, par exemple, au journalisme de
référence.

4. Analyse des textes


Mon analyse, comme je l’avais expliqué au début de cet article, s’in-
téresse à la construction d’un événement désigné comme Le plan d’action
mondial du FMI. Le corpus de la recherche est bien plus large que celui
que j’analyserai ici, car il comporte des documents du FMI publiés en
2017, notamment un texte du FMI portant le titre Le plan d’action mon-
dial de la directrice générale du FMI : une occasion à saisir, suivi de plu-
sieurs études de conjoncture économique et des articles de presse qui
les ont repris, diffusés et commentés. Je ferai l’analyse ici de deux articles
de presse publiés en France (journal Le Monde) et au Brésil (journal O
Globo) sur la Conférence de Mme. Lagarde à Harvard. Le segment du
corpus ici analysé n’est pas moins importante, mais sa fonction est uni-
quement de montrer un aspect partiel de l’événement et du corpus.

4.1. Analyse du journal Le Monde


Le texte analysé a été publié par le journal Le Monde (06.10.2017)
le lendemain de la Conférence de Mme Lagarde à Harvard. Nous avons
procédé à une segmentation du texte en fragments qui correspondent
aux choix faits par le journal sur des extraits du discours de Christine
Lagarde (désormais l2/e2, c’est-à-dire, locuteur/énonciateur second)6.
6
On suivra pour notre analyse le critère suivant : Le locuteur premier (L1/E1) est toujours le

230
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

Chaque extrait rapporté par le journal correspond à un point de vue


(PDV) considéré comme pertinent aux buts d’information dans la co-
construction de l’événement. Ce même procédé sera mis en place dans
l’analyse du texte du journal brésilien O Globo.
Fragment 1 : titre et chapeau : un pDV narrativisé : le locuteur
comme agent promoteur des réformes
(1) Avec la reprise économique, la présidente du FMI promeut le
temps des réformes
Lors d’un discours à l’université de Harvard, aux Etats-Unis, Chris-
tine Lagarde a assuré que 75 % des pays du monde se redressaient

Dans le chapeau (lead) du texte, le locuteur/journaliste assume la


posture prototypique des journaux de référence, l’effacement énonciatif
: il situe la scène de l’énonciation de son locuteur second (l2/e2) dans le
temps et dans l’espace (Harvard) et le PDV (75% des pays du monde se
redressaient) est imputé à l2/e2 (Christine Lagarde) avec une Prise en
Charge forte (l2/e2 a assuré que...). Toutefois, il faut souligner deux as-
pects qui semblent impliquer d’une certaine façon L1/E1. La topicalisa-
tion (Avec la reprise économique) et l’imputation du PDV narrativisé
dont l2/e2 devient l’agent de promotion des réformes (les réformes, SN
défini, présuppose l’existence de l’objet). En effet, le SN défini “La reprise
économique” n’est pas clairement attribué à l2/e2, ce qui laisse entendre
que L1/E1 assume, du moins en partie, la PEC de la vérité de son con-
tenu (il y a reprise économique).
Par la suite, le texte présente des paroles attribuées à l2/e2 par le dis-
cours indirect (discours rapporté intégré) et par des expressions qui sont
encore ambigües par rapport au problème de l’imputation et de la PEC,
comme dans le fragment (2) ci-dessous :
Fragment 2: un pDV analogique et informatif
(2) A l’instar de la croissance en France, la reprise économique
mondiale s’installe durablement, a estimé, jeudi 5 octobre,
Christine Lagarde, directrice générale du Fonds monétaire in-
ternational (FMI).

journaliste (ou l´instance journalistique), parce que c´est le journaliste qui rapporte les paroles
d´un locuteur second (l2/e2), dans ce cas, Mme. Christine Lagarde. C´est donc le journaliste
qui assume la responsabilité énonciative sur le texte, alors qu´au locuteur second est imputé
des énoncés, des points de vue et la prise en charge.

231
WANDER EMEDIATO

Dans ce passage, le SN défini qui, dans le titre, laissait vague l'instance


de sa PEC, est affecté à l2 / e2, mais contextualisée dans un procès verbal
duratif (la reprise économique mondiale s’installe durablement ...). Le choix
du verbe est significatif, car cela permet au locuteur premier d’imputer
des attitudes modales différentes au discours de l2/e2. En tête, dans le
fragment (1) l2/e2 a assuré; dans le fragment (2), l2/e2 a estimé, ce qui
ne produit pas le même effet par rapport au phénomène de la PEC. As-
surer et estimer sont significativement différents en termes de force mo-
dale (+ évidence pour assurer / — évidence et + probabilité pour
estimer). Le journaliste joue sur le plan de la force d’engagement, même
si cela n’affecte pas forcément la prise en charge. Assurer implique sans
doute pour L1/E1 que l2/e2 ait assuré (j’assure que) dans son discours.
Pour estimer, c’est plus ambigu : a-t-elle dit : J’estime (= je pense que, je
considère que, = PDV personnel, mais réfléchi, argumenté) ou est-ce
L1/E1 qui juge que l’avis de Lagarde est une estimation moins fiable que
dire « j’assure » ?
Un autre aspect pertinent de cette section est la présence de l'expres-
sion À l'instar de la croissance en France. Le texte ne précise pas si l2 / e2
assume également la PEC de ce PDV ou si c'est L1 / E1 qui assume sa
PEC. Tout au long du texte, il n'y a aucune évidence que Christine La-
garde, estimant que la reprise de la croissance mondiale est mise en place
aurait avancer aussi le PDV qu'une telle reprise soit faite à l'instar de la
croissance française. En outre, s’il s’agit d’une reprise d’un PDV assumé
par I2 /e2 il ne devient significatif dans le texte du journal Le Monde que
par le fait qu'il est un journal français et qu’il parle surtout aux lecteurs
français (loi de proximité géographique), pour lesquels l'analogie avec la
situation économique locale serait pertinente. Un tel PDV, par exemple,
serait beaucoup moins pertinent pour les lecteurs brésiliens sur le même
sujet — ou totalement hors de propos. En faisant de la sorte, le journal
Le Monde assume une posture de coénonciation vis-à-vis des PDV du
FMI/Lagarde et aussi de surénonciateur, dans la mesure où il énoncé plus
que son locuteur/énonciateur second, renforçant son PDV par l’analogie
qu’il décide de faire avec la situation française, PDV donc orienté vers le
point de vue du FMI. Il faut tout de même considérer que la surénoncia-
tion se fait sur une mise en contexte (la pertinence locale) et ne change
en rien l’orientation vis-à-vis du PDV de l2/e2.

232
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

Fragment 3: un pDV prédictif


(3) en prenant un peu de recul, « on voit que la reprise mondiale,
tant attendue, s’installe durablement », a-t-elle déclaré lors d’un
discours à l’université de Harvard (Massachusetts, etats-Unis).
en juillet, le FMI a anticipé une croissance mondiale de 3,5 %
cette année et de 3,6 % pour 2018.
« La semaine prochaine, nous allons publier une prévision ac-
tualisée en ouverture des assemblées annuelles et elle devrait
être encore plus optimiste ». 

Il va sans dire que l’énoncé entre guillemets est bien attribué à l2/e2
et signalé d’ailleurs comme une déclaration de l2 dans un espace assez
symbolique (Harvard). La localisation spatiale n’est pas sans enjeux dans
la construction de l’événement, car l’espace symbolique renforce la cré-
dibilité et la légitimité du locuteur d’origine et des propos qui y sont
tenus. Néanmoins, force est de constater que ce PDV (la reprise mondiale
s’installe durablement) n’est pas assumé de façon personnelle par l2/e2,
puisqu’il ne le déclare pas comme un « je », mais comme « on » (on voit
que...). Il ne s’agit pas de quelque chose de trivial, car il faut représenter
ce PDV comme une donnée factuelle et non comme une opinion indi-
viduelle. Christine Lagarde, bien que citée nominalement, représente
une institution, le FMI. La modalité épistémique est présentée sur le
mode médiatif, le sujet énonciateur renvoie implicitement l’information,
par son statut, a une source qui garantirait, avec elle, la vérité du contenu
propositionnel.
Le PDV est, en tout cas, assumé pleinement. Certes, Lagarde se re-
tranche derrière un « on » et, dans certains cas, cela correspond à un af-
faiblissement de la prise en charge. Mais ici, c’est tout le contraire, en
ceci que Lagarde pose son PDV comme une ON-Vérité (Berrendonner,
1981), et donc un PDV qui n’est pas que le sien, mais est appelé à être
vérifié et donc partagé par tous : ici, ce qui est important, c’est « ON
VOIT » + ON constate. La PEC du PDV pourrait d’ailleurs être encore
plus forte si on mettait au futur dans un énoncé hypothétique : si on pre-
nait un peu de recul, on verrait/ si on prend un peu de recul, on verra
(= on ne peut que voir). C’est ce que Rabatel appelle dans Homo narrans
(2009) une évidence perceptuelle. C’est un PDV dont le statut de vérité
est renforcé par le caractère indéfini du « on », PDV des spécialistes, et

233
WANDER EMEDIATO

d’abord des spécialistes du FMI, dont Christine Lagarde, qui est bien
citée nominalement, et se présente comme légitime représentant d’une
institution, le FMI.
Par ailleurs, il faut désormais savoir à qui l’on peut attribuer l’expres-
sion (et le PDV) « en prenant un peu de recul ». Une telle expression
semble qualifier la déclaration de l2 — elle a donc une valeur adverbiale
modale. L2 a déclaré x en prenant un peu de recul. Il ne peut s’agir que
d’un commentaire de L1 sur la déclaration de l2. La suite (l’anticipation
de la croissance mondiale...) est attribuée au FMI (institution). Cette hy-
pothèse n’est pas infirmée par l’énoncé originel oublié sur la page du FMI
et qui transcrit fidèlement le discours de Lagarde à Harvard. Elle montre
que, volontairement ou non, ce PDV modal qui garantit le PDV de l2 est
pris en charge par L1. A noter que l’hypothèse est confirmée dans ce texte-
ci par le fait que ON peut ainsi renvoyer à Lagarde, au FMI et à ses spé-
cialistes, à tous les économistes, même s’ils n’appartiennent pas au FMI,
et même à tous les lecteurs qui sont capables de « prendre un peu de
recul » : on a là, typiquement, ce que Rabatel appelle une coénonciation. 
Un autre problème concerne l’énoncé interne au discours rapporté
"tant attendue", qui semble polyphonique : l2 prend en charge ce PDV
(que la reprise mondiale est tant attendue), mais il impute également cet
"attente/espérance" à un énonciateur sans locuteur, c’est-à-dire, à un tiers
interdiscursif. Il est d’abord celui de Lagarde, mais aussi endossable (=
susceptible d’être pris en charge) par L1, des tiers, et notamment des lec-
teurs énonciateurs non locuteurs. 
On voit bien que la gestion dialogique de l’article du journal Le
Monde endosse les points de vue de l2/e2 ainsi que sa façon de le pré-
senter, ne comportant, jusqu`à présent, aucune posture énonciative anti-
orientée (interprétative ou critique). L’effacement énonciatif contribue
à laisser parler l2/e2 sans modaliser ses propos.
Fragment 4 : un pDV explicatif causal
(4) elle a souligné que près de 75 % des pays du monde se re-
dressaient, « ce qui signifie plus d’emplois et une amélioration
du niveau de vie dans de très nombreuses régions du monde ».

Cet extrait est représentatif du mode dont le locuteur/journaliste


(L1/E1) peut faire de la reprise de paroles d’un autre un enjeu pour sa

234
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

propre argumentation ou, du moins, pour sa prise en charge des PDV


d’autrui. L1 rapporte un PDV de l2/e2 selon lequel 75% des pays du
monde se redressaient. Les verbes choisis SOULIGNER et ESTIMER
sont tous les deux des verbes de procès mentaux, mais ils sont utilisés
dans le texte de manière distincte et cela mérite d’être observé. Le verbe
estimer, choisi par L1 dans le premier extrait, se réfère à la prévision
d’une croissance mondiale durable, donc à une prédiction qui ne peut
pas être de l´ordre du factuel et de l’assertion d’évidence. Par ailleurs, le
verbe souligner semble approprié au PDV 75% des pays du monde se re-
dressaient, présenté comme une donnée factuelle et non comme une pré-
diction ou un souhait du locuteur. Notons, donc, que le choix des verbes
n’est pas sans enjeux dans le discours rapporté de la presse. Le phéno-
mène de la prise en charge joue un rôle là-dedans. Le choix de certains
verbes implique davantage la prise en charge par le locuteur/journaliste
des PDV de ses locuteurs seconds, soit en le situant dans une posture
de coénonciation (il semble entériner la vérité du pdv), soit dans une
posture de surénonciation (en disant plus que le l2/e2).
Notons maintenant que l’extrait rapporté entre guillemets (« ce qui
signifie plus d’emplois et...) est bien un PDV attribué à l2/e2 et qu’il une
valeur argumentative explicative et causale (que l’on pourrait paraphra-
ser par un schème logique du type /puisque p, donc q/ = puisque 75%
des pays se redressaient, il y aura donc plus d’emplois et une amélioration
de la qualité de vie des populations de ces pays)7.
Néanmoins, le fait d’être rapporté entre guillemets (oratio recta) peut
bien déresponsabiliser le locuteur/journaliste de sa prise en charge, mais
cela ne nous convainc pas totalement. Notons que si le locuteur/journa-
liste choisissait de le rapporter en discours indirect (oratio obliqua), sa
vraie disposition de tenir distance de ce pdv et de laisser la prise en charge
à l2/e2 serait plus réussie avec l’usage assez courant dans la presse du con-
ditionnel, qui marque plus explicitement le mode médiatif :
7
On n´a pas besoin d´être un spécialiste en économie pour savoir que le fait d´avoir un redres-
sement économique dans certains pays ne résulte pas, nécessairement, en une amélioration
de la qualité de vie des populations, puisqu´il s´agit, là, d´une économie politique et non d´une
question arithmétique. Plusieurs analystes ont déjà publié des articles scientifiques qui mon-
trent un décalage entre la croissance économique, l´augmentation globale de la richesse et cel-
les des inégalités sociales et la pauvreté. On voit bien ici la force des porte-parole sur les effets
du langage.

235
WANDER EMEDIATO

elle a souligné que près de 75 % des pays du monde se redres-


saient, ce qui signifierait plus d’emplois et une amélioration du
niveau de vie dans de très nombreuses régions du monde.

Ou encore avec une attribution directe au locuteur de ce PDV-causal.


elle a souligné que près de 75 % des pays du monde se redres-
saient, ce qui signifierait, selon Lagarde, plus d’emplois et une
amélioration du niveau de vie dans de très nombreuses régions
du monde.

Le locuteur/journaliste ne fait toutefois pas le choix de ces stratégies


de mise à distance et de médiation langagière pourtant assez courantes
dans la presse. Il faut par ailleurs souligner, ici, que nous constatons, à
chaque analyse qu’on fait de la pratique du discours rapporté dans la
presse, que des énoncés placés entre guillemets ne représentent pas for-
cément du discours cité. Cela nous fait voir la pertinence du concept
d’imputation énonciative proposé par Rabatel. En effet, pour ce qui est
de notre petit extrait analysé, l’énoncé entre guillemets ne reprend pas
ce qui a été effectivement dit par Lagarde à Harvard. Sur le site du FMI,
son discours censé représenter l’allocution à Harvard, a été publié
comme il suit :
Si l’on examine le pIb, la relance touche près de trois quarts de
la planète : c’est l’accélération la plus généralisée depuis le début
de la décennie. elle se traduit par des emplois plus nombreux
et un meilleur niveau de vie dans une grande partie du monde.

On peut tout de suite noter que les problèmes sont nombreux en ce


qui concerne le discours rapporté, la gestion de PDV et ses enjeux. S’il
peut y avoir une analogie entre 75% des pays du monde et près de trois
quarts de la planète, elle n’est pas totale. De même pour la conclusion
(assez élargie), il y a des nuances significatives entre :
a — elle (la relance) se traduit par des emplois plus nombreux
et un meilleur niveau de vie dans une grande partie du
monde (paroles de Lagarde)
et
b — ce qui signifie plus d’emplois et une amélioration du niveau
de vie de très nombreuses régions du monde. (paroles du
journaliste

236
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

Le choix par L1 de ce qui signifie pour rapporter elle traduit, est assez
compatible au niveau de l’acte assertif (d’évidence et non de probabilité),
ce qui nous permet de noter que L1 prend en charge le PDV à ce niveau
modal, c’est-à-dire que la conclusion est bien au niveau de l’évidence et
non de la probabilité, et les deux (L1 et l2) sont d’accord là-dessus. Il
s’agit bien d’un acte de paraphrase énonciative, proche de ce qui propose
Fuchs, avec une valeur pragmatique importante car les locuteurs sem-
blent s’entendre au niveau sémantique et, donc, interdiscursif. Il en va
de même, pourrait-on dire, pour la paraphrase énonciative entre « un
meilleur niveau de vie » et « une amélioration du niveau de vie ». Il ne
s’agit pas non plus du discours cité (bien qu’entre des guillemets), mais
d’une paraphrase énonciative assez approximative qui relie, en termes
d’enjeux, les deux locuteurs/énonciateurs (L1/E1 et l2/e2) autour de l’ob-
jet en question (la conclusion nécessaire à tirer de la relance/redresse-
ment économique). Il nous reste demander si le choix du
locuteur/journaliste pour la nominalisation, qui renvoie à une proces-
sualisation de l’action, ne ferait pas de lui un surénonciateur, dans la me-
sure où il semble aller bien au-delà des paroles rapportées et du PDV de
l2/e2. En effet, il nous semble qu’établir un lien de cause et conséquence
entre la relance économique et un meilleur niveau de vie est moins con-
traignant que de lier deux processus interdépendants (mais non néces-
saires), le redressement économique et l’amélioration du niveau de vie
(le processus suppose une duration, une constante, impose un raison-
nement scalaire du type plus il y a du redressement économique, plus il y
aura une amélioration du niveau de vie).
Fragment 5 : un pDV restrictif assez stratégique dans l’argu-
mentation
(5) La directrice du FMI a néanmoins constaté que « cette reprise
n’était pas totale », et que dans un certain nombre de pays, la
croissance est « trop faible ». L’an dernier, 47 pays ont vu par ail-
leurs leur pIb par habitant décliner.

Le journal reprend le PDV de l2/e2 qui a une valeur restrictive et,


pourrait-on dire, une force perlocutoire d’avertissement. Il s’agit d’un
PDV important, car il joue un rôle important dans l’argumentation. L’op-
timisme déclaré à propos de la conjoncture économique mondiale est

237
WANDER EMEDIATO

maintenant réorienté vers une menace à la reprise durable. L’avertisse-


ment est bien joué vis-à-vis de la suite du texte qui reprend le but prin-
cipal de l’événement qui est l’incitation à l’action. Si tout va bien et qu’il
n’y a pas de menaces à l’horizon, à quoi bon agir et faire des réformes ?
Ce sera bien le rôle du fragment (6) et de la suite du texte.
Fragment 6 : pDV d’avertissement et d’incitation à l’action
(6) Ne pas gâcher la bonne reprise.
Selon elle, la question principale est désormais de « savoir com-
ment saisir l’opportunité de ce redressement pour sécuriser la re-
prise et créer une économie qui profite au plus grand nombre ».
elle a relevé « des menaces à l’horizon » comme un niveau de
dette élevé dans de nombreux pays, l’expansion rapide du crédit
en Chine ou des prises de risques trop importantes sur les mar-
chés financiers.
« Il faut aborder ce moment [de reprise] comme une opportu-
nité de faire les changements nécessaires à une prospérité à long
terme, a-t-elle ajouté. Nous ne devrions pas gâcher la bonne re-
prise. » Il est toujours plus facile de mettre en œuvre des réfor-
mes lorsque l’économie se porte bien, a-t-elle fait valoir.

Le fragment (6) est précédé d’un sous-titre qui est la reprise des pa-
roles de l2/e2, comme verra dans l’extrait en discours cité ci-dessus. La
stratégie journalistique du détachement (Maingueneau, 2014) met en
évidence la posture énonciative de coénonciation adoptée par L1/E1,
qui procède à une aphorisation du pdv de l2/e2. L’aphorisation est partie
intégrante du but global de cet événement : inciter à l’action et faire de
l’engagement dans les réformes une opportunité, plus qu’une nécessité
ou une contrainte. On voit bien que le journal Le Monde s’engage dans
ce PDV et dans cette argumentation dans la mesure où il choisit de dé-
tacher le PDV stratégique et de le mettre en relief dans l’aphorisation.
On peut d’ailleurs ici constater une confluence entre la notion de sché-
matisation, chez Grize, par les opérations de mise en relief et d’éclairage,
et celles de détachement et d’aphorisation, chez Maingueneau (2014).
Dans le cas analysé, ces stratégies placent L1/E1 dans une posture de
coénonciation avec l2/e2, dans la mesure où ils semblent bien partager
le PDV et les buts.

238
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

Fragment 7 : un pDV d’incitation aux réformes


(7) « Intuitivement, on sent que cela fait sens : il est plus aisé de
réformer le code des impôts quand les salaires augmentent ou de
modifier la réglementation du travail quand le plein emploi est
presque là », a relevé Mme Lagarde qui a invité les pays où les fi-
nances publiques sont solides — comme en Allemagne ou en
Corée du Sud — à investir davantage sur leur propre marché et
les pays pauvres à contenir leur dette publique.

Le journal Le Monde conclut son texte en reprenant les PDV de l2/e2


d’incitation aux réformes. On peut noter, donc, que le choix du journal
et de rester dans la coénonciation discrète, dans la mesure où elle est
masquée par l’effacement énonciatif et délègue la PEC à l2/e2. Néan-
moins, l’effacement énonciatif n’oblige pas le journal à conclure avec le
PDV solitaire de l2/e2, une fois de plus marqué par l’incitation á l’ac-
tion. En effet, le journal aurait pu conclure de plusieurs façons différentes
sans mettre en doute son contrat d’objectivité. Il aurait pu convoquer
une autre source anti-orientée vis à vis des PDV de l2/e2, par exemple,
voire un PDV relativisant la modalité d’évidence des arguments et des
pdv repris sans aucune contestation. Nous ne voulons pas ici, bien sûr,
dire aux journaux comment ils devraient conduire leurs discours mé-
diatifs, nous voulons tout simplement souligner que les choix opérés
sont significatifs, car ils ne sont pas uniques.

4.2. Analyse du journal O Globo


Fragment 8: Titre et chapeau : un pDV déontique et l’incitation
à l’action
(8) MUNDO DeVe 'AGARRAR OpORTUNIDADe' De Re-
CUpeRAÇÃO GLObAL, DIZ DIReTORA DO FMI
Christine Lagarde disse que a recuperação global está "criando
raízes".

On voit bien la pertinence des choix éditoriaux. Alors que le journal


Le Monde titre sur un PDV narrativisé de l2/e2 (... promeut le temps des
réformes), le journal brésilien O Globo choisit de rapporter son PDV via
une modalisation déontique dont l’acteur principal est le monde (« (le)
Monde doit saisir l’occasion »....). O Globo adopte dès le début du texte

239
WANDER EMEDIATO

une posture énonciative de coénonciation sur le but global de l’événe-


ment (Le Plan d’action mondial du FMI : une occasion à saisir), et cette
posture est renforcée par la topicalisation du PDV en forme d’un énoncé
assertif jussif dans une modalité déontique. La façon dont O Globo re-
prend les pdv de l2/e2 n’est pas aussi discrète que dans le journal français,
car il va droit au but final. Lorsque Le Monde interprète le PDV de l2/e2
comme l’action d’un agent qui aurait donc un vouloir-faire, il impute la
prise en charge de cet engagement pour les réformes au locuteur d’ori-
gine. La topicalisation du PDV déontique par O Globo l’implique da-
vantage sur sa prise en charge, car il assume le devoir-faire.
Dans le chapeau, à la différence du journal français qui rapporte le
PDV de l2/e2 par des énoncés descriptifs (...75% des pays se redres-
saient), O Globo rapporte son PDV dans la forme métaphorique présen-
tée par le locuteur d’origine (...la reprise globale prend racine...). La
référence à l’espace de l’énonciation, présente dans le titre du journal Le
Monde, n’est faite que dans la suite du article d’O Globo.
Fragment 9: le pDV de départ : information et incitation à l’action
(9) A diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional
(FMI), Christine Lagarde, disse nesta quinta-feira (5), que o
mundo está vivendo uma recuperação econômica, abrindo uma
janela para os países tocarem reformas destinadas a alcançar
uma prosperidade mais ampla e duradoura.
"A muito esperada recuperação global está criando raízes", disse
ela em um pronunciamento nesta noite na Kennedy School of
Government de Harvard.
países ao redor do mundo vivem uma expansão econômica re-
novada ou sustentada, e isso coincide com maior estabilidade
dos bancos e confiança dos mercados, afirmou.

Dans ce fragment, on pourra noter que le choix stratégique (énon-


ciatif et argumentatif) du journal GB est de mettre en relief le but stra-
tégique de l’acteur principal (le FMI) avec lequel il semble partager les
PDV et l’orientation argumentative de l’événement : inciter les pays aux
réformes économiques. Ainsi, le PDV de Lagarde/FMI (le monde vit
une récupération économique) sert de prémisse justifiant le PDV (les
réformes [qui] conduiront à une prospérité ample et durable). On pourrait

240
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

prétendre qu’ici, le journal O Globo va au-delà de la coénonciation (par-


tage des PDV), en adoptant une posture énonciative plus proche de la
surénonciation (partage les PDV qui amplifierait ses conséquences). Sa
reprise est allusive, dans une forme de discours indirect, ce qui permet
au journal d’ajouter, par la transformation paraphrastique, des aspects
plus personnels aux PDV de Lagarde, comme l’affirmation, attribuée à
Lagarde, que ... Les pays autour du monde vivent une expansion écono-
mique rénovée ou durable... stabilité des banques et confiance dans les
marchés....
Fragment 10: un pDV questionneur
(10) "Será que o mundo pode agarrar a oportunidade de uma
ascensão para garantir a recuperação e criar uma economia
mais inclusiva, que funcione para todos?", questionou.

Ce fragment est intéressant, car ce PDV est imputé à l2/e2 comme


un questionnement. Nous pensons qu’il est orienté vers la même stra-
tégie argumentative du locuteur d’origine. À l’origine, d’ailleurs, si l’on
se réfère au discours publié sur le site du FMI, censé représenter le dis-
cours lu à Harvard, Lagarde aurait dit ce qui suit :
posons-nous cette question : le monde pourra-t-il saisir la
chance offerte par la reprise afin de la pérenniser et de créer une
économie plus inclusive, qui profite à tous ?

Il s’agit à la fois d’inciter les pays et leurs gouvernements à « saisir la


chance » en faisant les réformes proposées par le FMI et de justifier ces
actions comme nécessaires (à la reprise globale) mais aussi comme « jus-
tes », c’est-à-dire, en tenant compte de l’inclusion (qui profite à tous). Il
est intéressant de noter que le journal français, vu comme plus huma-
niste et social-démocrate, n’a pas choisi de rapporter ni de commenter
ce PDV de l’inclusion et que c’est le journal O Globo, vu comme plus li-
béral et à droite qui l’a fait. Cela montre bien que la gestion des PDV est
bien à l’origine des visées argumentatives des locuteurs. Dans un monde
où la gestion de l’économie suscite la méfiance, étant marquée par des
crises dues au manque de responsabilité et de contrôle, l’argument de la
justification devient nécessaire. Notons encore que GB se maintient tou-
jours dans une posture énonciative de surénonciation, plus que dans

241
WANDER EMEDIATO

une coénonciation, car il transforme subtilement le PDV de l2/e2 pour


en dire davantage. En effet, entre
« saisir la chance offerte par la reprise afin de la pérenniser... »
(propos de Lagarde publié)
et
« saisir la chance d’une ascension pour garantir la reprise »

il y a tout de même une nuance qui profite au PDV d’O Globo qui veut
mettre plus d’accent sur la « chance » et « la garantie d’une reprise » que sur
le fait d’avoir déjà une reprise favorable et, donc, il ne faut pas la gâcher.
Fragment (11) — Un pDV “ intrus” idéologique.
Desde o ano passado, o FMI enfrenta uma onda de populismo
nos países desenvolvidos, com forças hostis ao liberalismo co-
mercial ascendendo nos estados Unidos e na europa.

Ce fragment montre une fois de plus que le journal O Globo en plus


d’entériner les PDV du FMI, dans une posture de coénonciation, veut aussi
adopter une posture de sur-énonciation. Dans un article dont le but prin-
cipal est de rapporter la Conférence à Harvard et faire circuler les PDV du
FMI sur la nécessité de s’engager dans les réformes économiques, il choisit
d’intégrer un PDV extérieur à la conférence, en mettant en relief la menace
représentée par « une vague de populisme dans les pays avancés, avec des
forces hostiles au libéralisme commercial croissant aux USA et en Europe ».
Ce PDV est absent de la scène d’énonciation originelle, en aucun moment
de la conférence Lagarde fait mention au populisme ni aux forces hostiles
au libéralisme commercial. Avec ce PDV, le journal O Globo cadre le FMI
dans le rôle narratif de victime, le populisme est confondu avec les forces
hostiles au libéralisme8. Quoi qu’il en soit, le PDV en question est exclusif
du journal O Globo et est certes orienté vers la défense du libéralisme com-
mercial et le refus du populisme et de l’anti-libéralisme. On est ici au centre
de la dimension axiologique de l’interdiscours, le journal assumant une
position idéologique qui sert également de clin d’œil aux lecteurs d’O Globo.

8
On sait que depuis longtemps les forces hostiles au libéralisme s´opposent au FMI, mais ces
forces hostiles ne sont pas forcément celles du populisme en ascension aux USA (Trump) ou
en Europe (extrême-droite notamment)

242
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

Fragment 12 : Le pDV restrictif 


(12) Mas Lagarde destacou que o que ela disse tem ameaças no
horizonte, inclusive crescimento lento, desigualdade crescente
em economias avançadas e fracasso na adaptação às mudanças
tecnológicas.
"Como resultado, nosso tecido social está desgastado, e muitos
países estão vivenciando polarizações políticas elevadas".

Comparons maintenant le fragment (5) à PDV restrictif d’O Globo,


avec le fragment (5) à PDV restrictif du Monde. Dans le journal français,
la restriction se borne aux conjonctures économiques défavorables
(« cette reprise n’était pas totale », car, dans un certain nombre de pays,
la croissance est « trop faible ». L’an dernier, 47 pays ont vu par ailleurs
leur PIB par habitant décliner). Dans O Globo la restriction choisit de
focaliser sur les « menaces à l’horizon », telles que l’inégalité croissante,
les polarisations politiques dans certains pays, les échecs technologiques.
Ces choix ne sont pas sans enjeux, car ils renvoient (sans le dire) à la
conjoncture locale de chaque pays, telle que les journaux en question
l’entendent ou veulent la souligner, ce qui nous permet de poser que le
locuteur second (Lagarde) fonctionne comme une sorte de source hy-
perdialogique dont le discours peut être découpé et sélectionné par le lo-
cuteur premier (journaliste) en fonction des buts locaux et des intentions
secondaires des médias.
Fragment 13: Le pDV d’avertissement
(13) Lagarde disse que a falta de ações "deixaria uma boa recu-
peração ir para o lixo", levando ao crescimento fraco, criação
de empregos lenta, redes de segurança desgastadas e sistemas
financeiros expostos a crises futuras.

Comparons le fragment (13), du Globo, avec le fragment (6), du


Monde. Les deux ont le même but, rapporter le PDV d’avertissement de
l2/e2, et, dans les deux journaux, il s’agit d’un moment clé de l’argumen-
tation du texte (de L1/E1 et de l2/e2). Éviter tout excès d’optimisme qui
pourrait freiner l’action pour les réformes. Pour Le Monde, la forme
choisie de rapporter ce PDV, on l’a vu, c’est de détacher les paroles (et le
PDV) de l2/e2 et d’en faire une aphorisation. Le journal O Globo a choisi,
quant à lui, de reprendre les paroles de l2/e2 dans une forme de discours

243
WANDER EMEDIATO

indirect intégré suivi d’un fragment cité traduit de façon du moins hy-
perbolisée (traduire ne pas gâcher la bonne reprise pour jeter une bonne
reprise dans la poubelle n’est pas tout à fait une traduction descriptive.
On sait bien que la traduction n’est pas sans enjeux et ici on dirait que O
Globo s’implique dans la prise en charge du PDV et y ajoute une nuance
affective). Quoi qu’il en soit, chaque journal, à sa façon, met en relief le
même PDV avec le même but d’avertissement.
Fragment 14: le pDV déontique et d’incitation à l’action pour
le réformes et contre les inégalités
(14) Além de pedir políticas monetárias e fiscais que estimulem
o crescimento, Lagarde também afirmou que os países deveriam
investir em infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento para im-
pulsionar a produtividade e a demanda, o que pode reduzir o
desemprego e os subempregos. expandir o acesso à saúde e à
educação, bem como a adoção de impostos progressivos, pode
ajudar a reduzir a desigualdade, acrescentou.
"pesquisas do FMI mostram que a desigualdade excessiva difi-
culta o crescimento e esvazia a base econômica de um país", afir-
mou. "ela erode a confiança na sociedade e alimenta tensões
políticas".

Ce fragment est d’autant plus important qu’il met en évidence des as-
pects énonciatifs, argumentatifs et interdiscursifs saillants. Sur le plan énon-
ciatif il reprend le pdv d’incitation à l’action de l2/e2 pour les réformes,
mais à la différence du Monde, il spécifie des buts et des secteurs des réfor-
mes (monétaires, infrastructures, recherche, développement, santé, édu-
cation, fiscalité, etc.). Mais O Globo reprend également des PDV
axiologiques de l2/e2 qui mettent l’accent sur les inégalités sociales comme
obstacles au développement et comme source de tensions politiques. Ces
PDV jouent un rôle important dans l’argumentation du FMI dans la cons-
truction globale de l’événement, d’autant plus que le FMI a toujours été loin
du débat politique et assez borné aux questions économiques et monétaires.
L’argument d’autorité vient soutenir ce pdv (Les recherches du FMI mon-
trent que...), en rendant l’inégalité (excessive) une question logique et scien-
tifique (ce qui a pour but justement de dépolitiser la question).
Il n’est pas paradoxal de voir que c’est le journal O Globo, de ligne li-
bérale, qui met en relief ces PDV axiologiques contre les inégalités dans

244
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

un discours d’économie, au contraire du journal Le Monde, considéré


comme étant plus proche de la gauche socialiste, qui ne met pas en relief
ce PDV. C’est que ce PDV joue un rôle d’argument du FMI et de sa po-
litique libérale pour les réformes (libérales) et que cet argument sert en
plus à anticiper des réactions de gauche susceptibles d’avancer justement
les inégalités comme arguments contre les réformes. L’enjeu est complexe
et le combat (énonciatif et argumentatif) se fait ici dans l’arène de l’in-
terdiscours.
Fragment 16: le pDV écologique
(16) Lagarde também disse que a mudança climática é "uma
ameaça a cada economia e a cada cidadão". ela exemplificou
com o caso de bangladesh, onde uma alta de 1ºC anual em
média na temperatura reduziria o pIb per capita em quase
1,5%. "Tomadores de decisão devem usar todas as ferramentas
à sua disposição para agir agora", disse ela.

Ce PDV repris par O Globo est absent du journal Le Monde. Il ajoute


à l’argumentation « sociale » du FMI un ethos écologique. Comme l’ar-
gument contre les inégalités, l’argument écologique est aussi associé au
domaine économique. Il s’agit d’une menace pour l’économie, comme le
démontre l’exemple du Bangladesh. Et encore une fois, il y a également
de l’incitation à l’action pour lutter contre le problème du réchauffement
global. On sait bien comment le Brésil est concerné par ce problème vis-
à-vis de sa responsabilité envers l’Amazonie, entre autres questions con-
cernant le problème de l’environnement. Ce PDV serait-il donc plus
pertinent dans O Globo que dans le journal Le Monde, c’est-à-dire, plus
pertinent et concret dans le contexte de l’interdiscours brésilien que fran-
çais ? C’est une matière à réflexion pour laquelle on n’a pas de réponse.
Ce que je pourrais avancer à cette étape de la recherche, c’est que chaque
journal, tout en reprenant les PDV les plus importants, liés aux enjeux
majeurs et aux buts globaux de l’événement, de façon assez semblable,
porte tout de même des nuances assez intéressantes liées aux PDV spé-
cifiques qu’il reprend et semble entériner vis-à-vis de leurs contextes lo-
caux ou des aspects concernant leurs positions dans l’interdiscours.

245
WANDER EMEDIATO

5. Le protoénonciateur du discours des médias


Le rapport entre médiation et gestion de PDV nous permet de saisir
une perspective de la construction de l’événement qui relève de la façon
dont les médias diffusent les PDV des porte-parole autorisés, mettent
en scène leurs discours, ainsi qu’une scénographie qui leur confère de
la légitimité et du sérieux. Pour Charaudeau (2009), « ... l’événement mé-
diatique prétend se présenter à l’état brut dans sa pure authenticité ».
Pour le journaliste, on le sait, il s’agirait de rapporter les faits de la façon
la plus précise possible, comme l’activité qui consiste à rapporter des
paroles, des déclarations, des discours d’autrui. C’est le contrat de cré-
dibilité. Mais cette médiation faite au nom de la crédibilité et de l’aut-
henticité de l’information joue un rôle important au profit des discours
hégémoniques. Les postures énonciatives, telles que celle de la coénon-
ciation, entérinent les PDV des locuteurs/énonciateurs seconds et l’effa-
cement énonciatif ouvre le chemin au mode médiatif qui fait du locuteur
second une source autorisée dont les paroles doivent être rapportées en
authenticité et sans controverse9.
En s’effaçant derrière la figure d’un locuteur rapporteur, les journa-
listes laissent parler leurs sources « en toute objectivité », ils renvoient
la vérité de l’information à une source dont le statut de sérieux et de cré-
dible est garanti par la scénographie (le rôle institutionnel du locuteur
d’origine, l’institution du FMI, l’espace de l’énonciation, l’Université de
Harvard, le rôle du journaliste, la crédibilité de l’organe de presse). En
plus, lorsqu’il n’y a pas de locuteurs/énonciateurs anti-orientés par rap-
port aux PDV d’un locuteur/énonciateur second unique, toute la scé-
nographie est construite pour laisser parler cette source sans aucune
controverse argumentative. Et c’est bien le cas de ces matières journalis-
tiques dites d’information.
L’orientation argumentative de ces matières journalistiques va vers
la construction d’un énonciateur principal, ou protoénonciateur (Rabatel,
2005a, 2017) qui aura sans doute des effets sur l’interprétation des lec-
9
On sait bien que le débat sera fait ailleurs et dans d´autres genres médiatiques et textuels de
l´information médiatique, mais ces matières journalistiques qui font partie de notre corpus
sont au centre de la construction de l´événement par le fait même qu´il s´agit bel et bien de
l´Information. C´est ce genre qui crée l´effet d´évidence et de vérité, car les autres genres, sont
de l´opinion, toujours source de suspicion.

246
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

teurs et sur la construction globale de l’événement. Ce protoénonciateur,


comme le rappelle Rabatel (2017 p. 429) est un « énonciateur principal »
qui résulte des positions assumées au cours du texte sur lesquelles le lo-
cuteur principal (L1/E1) s’aligne, bien que dans la forme de l’effacement
énonciatif. De cette manière,
On comprend que ce protoénonciateur est une construction de
l’interprétant, construit sur la base des instructions du texte (...)
en effaçant au maximum les traces du locuteur citant au profit des
locuteurs cités, il se produit un effet d’objectivité, de transparence
immédiate de la parole des acteurs politiques : la mise en scène
donne l’illusion du vrai par l’effacement de son metteur en
scène... » (Rabatel, 2017, p. 430).

Ce protoénonciateur est livré aux lecteurs dans une modalité épisté-


mique/médiative d’évidence, d’autant plus que les PDV mises en scène ne
sont jamais contestés par d’autres locuteurs/énonciateurs, ni par L1/E2.
L’orientation interprétative dans les deux journaux, chacun bien sûr
à sa façon et avec ses caractéristiques propres (Le Monde plutôt dans la
co-énonciation ; O Globo dans la co-énonciation et dans la sur-énoncia-
tion, collaborent donc vers le but final de l’événement pris dans son sens
large, celui de la nécessité épistémique de s’engager dans les réformes
économiques pour saisir l’occasion, c’est-à-dire, pour (convaincre leur
lectorat de) s’engager au plus vite dans Le Plan d’Action Mondial du FMI.
Notre analyse a été réalisée sur un bref échantillon, i.e., sur deux
matières journalistiques, issues des deux pays différents. Néanmoins, le
corpus de la recherche qui a donné origine à cet article est bien plus large
et comporte des dizaines de textes publiés dans des journaux de réfé-
rence de plusieurs pays qui reprennent la scène d’énonciation d’origine,
soit la Conférence à Harvard. On a déjà vérifié que la façon dont ces
journaux de référence traitent cette information est assez synchronisée
et, dans une large majorité, va vers la construction du même protoénon-
ciateur. C’est ce qui nous permet d’avancer, en guise de conclusion, que
les médias de référence jouent un rôle considérable dans la construction
et la diffusion de l’événement. Les journaux entérinent les PDV du FMI
et l’orientation argumentative de son Plan d’Action assumant, d’une
façon dominante, une posture énonciative de co-énonciateur.

247
WANDER EMEDIATO

Conclusion
Pour conclure, je voulais mettre en rapport les deux activités dis-
cursives, l’argumentation et l’énonciation, avec la dimension plus englo-
bante de l’interdiscours.
J’ai soutenu ici l’idée que la mise en scène des points de vue par les
journaux de référence collabore à la construction événementielle en
mettant en relief les PDV des locuteurs autorisés et légitimés dans l’es-
pace social. La presse participe ainsi à leur légitimation, dans la mesure
où elle les prend comme tels en leur donnant un capital verbal (et vi-
suel) important en dépit d’autres locuteurs bien moins visibles. Cela est
d’autant plus vrai que les PDV de ces locuteurs sont diffusés partout
dans le monde, repris par les médias de référence. Cela contribue à la
fois au processus de hiérarchisation des locuteurs médiatiques, ainsi qu’à
la marginalisation d’autres locuteurs qui n’apparaissent pas assez dans
les médias de référence et doivent faire recours à des médias plus mar-
ginaux (presse d’opinion, presse politique, presse indépendante, etc.).
Les locuteurs mis en relief par la presse de référence en sont les vedettes,
médiatisés comme des locuteurs autorisés et légitimes, correspondant
ainsi à des locuteurs des idéologies hégémoniques (Gramsci, 1995 ; Fair-
clough, 2001 ; ompson, 1990).
Dans ces matières journalistiques dites d’« information », où le lo-
cuteur principal joue sur son effacement énonciatif et laisse parler les
locuteurs autorisés, en choisissant, bien sûr, les fragments de discours
« pertinents », congruents avec la visée argumentative des uns et des au-
tres, l’événement est coconstruit en fonction de l’hégémonie, et c’est la
raison pour laquelle les PDV sont repris, diffusés et rarement commen-
tés ou mis en débat avec d’autres locuteurs non hégémoniques. La cons-
truction d’un événement comme Le Plan d’Action Mondial du FMI
demande la mise en œuvre des procédés de diffusion globale synchro-
nisée, car il a pour but de provoquer des réactions orientées vers le plan
d’action et non vers la contestation, d’autant plus que l’urgence (des ré-
formes et des plans d’action) joue sur une temporalité précise dont un
débat approfondi et long ruinerait la possibilité de réussite. C’est pourquoi
il s’agit d’un discours argumentatif et en même temps programmateur
(Greimas, 1983) ou d’incitation à l’action (Adam, 2017). En effet, la façon

248
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

dont le locuteur principal rapporte les PDV de l2/e2, y compris par la


référence à la scène d’énonciation d’origine (Conférence à Harvard) con-
tribue à mettre en scène un énonciateur-programmateur compétent, dé-
tenteur d’un savoir et d’un savoir-faire à propos de la conjoncture
économique mondiale et donc certes autorisé et légitime à orienter les
actions globales à mettre en place pour « sauver le monde » de la crise.
On pourrait signaler la place de l’argumentation dans son rapport
direct avec la gestion du dialogisme interne. La place faite au discours
institutionnel et au locuteur autorisé et légitime (la Directrice générale
du FMI) sert d’argument d’autorité ad verecundiam, car le locuteur se-
cond est un spécialiste dans le domaine de l’économie (un programmateur
compétent). La référence à l’université de Harvard contribue à renforcer
l’argument d’autorité. Le locuteur principal sélectionne en plus dans le
discours d’origine des arguments de causalité (cause profonde et cause fi-
nale) qui justifient le bien fondée de l’argumentation pour les réformes :
elles sont nécessaires pour cause de la crise immobilière et financière qui
a débuté aux USA (cause profonde) et elles apporteront une meilleure
qualité de vie pour tous, des emplois, une croissance durable, un plus
grand respect de l’environnement, etc. (cause finale) ; elles mettent en re-
lief des prémisses (l’occasion est propice à l’action proposée car il y a une
reprise économique...); des arguments fondés sur des valeurs (de la justice
sociale, vers une meilleure distribution de la richesse, diminuer les iné-
galités sociales, etc.). L’absence des PDV contraires (anti-orientés) dans
ces reportages peut être vue comme une violation à la règle d’une discus-
sion idéale et heuristique (une argumentation fallacieuse). Mais on justi-
fierait, bien sûr, l’absence de controverse du fait qu’il s’agit de textes
informatifs et non d’opinion, exclusivement sur la conférence de Harvard,
au nom de l’objectivité de l’information. Mais dans ce cas on pourrait se
demander la raison du faible débat, dans les médias, sur le Plan d’Action
Mondial du FMI, pourtant si important et urgent pour sauver le monde
de la catastrophe !
L'analyse du processus d'argumentation et de persuasion dans le dis-
cours ne peut pas négliger cette réflexion sur l'interaction entre les atti-
tudes projectives, tournées vers l’identification, et impositives, qui agissent
sur les croyances et les représentations de l'autre, en circonscrivant un
cadre de raisonnement pour le lecteur. Ils semblent constituer un double

249
WANDER EMEDIATO

processus qui sert à la fois à maintenir et à renforcer les états d'adhésion


(attitude projective), et à les cadrer (attitude impositive). Il est vraie que
« Toute argumentation commence par simplifier le monde, inextrica-
blement variable et changeante..., en le remplaçant par un schéma » (An-
genot, 2008 : 148-149). L’argumentation schématise le monde en le
réduisant au connu, au discutable, à l'agréable, au raisonnable, enfin, au
bon sens (doxa), mais il peut déplacer aussi ces représentations en pro-
posant leur débat quotidien. Imposer un cadre de vérité à l'autre c'est
aussi en faire une schématisation (Grize) capable de masquer d'autres
perspectives possibles, c’est circonscrire la pertinence sous la base des
discours hégémoniques. On pourrait penser qu’il ne s’agit pas d’argu-
mentation, mais d’une présentation des données, des points de vue, sans
interférence et, donc, sans intention de persuader. Enfin, comme l’avait
souligné Angenot,
Les données retenues, les notions schématisées ne forment pas
encore de l’argumentation, mais c’est déjà de la stratégie persua-
sive — et c’est souvent un moment sournois de cette stratégie. La
compilation et l’organisation sémantique des “données” peuvent
paraître quelque chose d’anonyme et de donné, quelque chose qui
enregistre innocemment l’empirie sans qu’aucune position n’ait
encore été prise » (Angenot, 2008, p. 149).

La construction de ce type d’événement, dont les enjeux sont glo-


baux, nous place au centre de la problématique de l’interdiscours et du
rôle que jouent les discours hégémoniques à l’intérieur de celui-ci, ainsi
que les moyens mis à leur disposition. Le rapport entre l’interdiscursivité
et l’argumentation nous mène à la problématique posée par Angenot
(2000) à propos de la circonscription de la pertinence, et aussi celle dis-
cutée par Lamizet (2006, 2011), pour qui un fait devient événement à
partir du moment où les médias et les acteurs des médiations politiques,
culturelles et symboliques lui donnent une signification et le situent dans
l’espace public. La médiation implique l’exercice d’un pouvoir symboli-
que sur les sujets qui se trouvent dans la temporalité et l’espace de l’évé-
nement. Et le pouvoir symbolique est une manière d’imposer aux autres
une définition de la réalité (Widmer, 2010). Il relève d’un processus ar-
gumentatif et social.

250
ARGUMeNTATION, pOSTUReS éNONCIATIVeS eT INTeRDISCURSIVITé
DANS LA MéDIATION JOURNALISTIQUe D’UN éVéNeMeNT

Les journaux contribuent à l’élaboration de la façade positive, heu-


ristique et authentique de l’événement par des procédés divers tels que
l’effacement énonciatif (et la production d’effets d’objectivité), la mise en
scène des locuteurs hégémoniques, la circulation des PDV légitimés et
renforcés par des effets d’évidence dus notamment à la force assertive
des modalités épistémiques associées au mode médiatif (l’information
suppose toujours une source légitime et crédible qui présente le locu-
teur principal comme un simple informateur neutre et compromis avec
l’instance citoyenne). Autant de procédés qui agissent dans l’interdis-
cours pour renforcer les positions hégémoniques sur les positions plus
marginales. Il s’agit ici des positions hégémoniques axiologiques impli-
cites derrière l’effet de réel construit par un discours d’objectivité. Cette
position est plus explicite dans le journal brésilien qui fait référence aux
menaces au libéralisme.
Un autre aspect de l’interdiscursivité présente dans ces matières
journalistiques correspond à la mise en relief des buts locaux cherchés
par l’événement global, car dans chaque espace géographique on notera
des spécifications : dans le journal français Le Monde, l’analogie faite
avec l’expression (Á l’instar de l’économie française...), analogie d’ailleurs
absente du discours du locuteur2/énonciateur2 ; dans le journal brésilien
O Globo, la mise en relief des propos de l2/e2 concernant les inégalités
sociales, les risques de dérives politiques, la violence et autres précarités,
qui ne feraient qu’augmenter sans les réformes économiques, n’est pas
innocente et met en évidence ce qui semble être plus pertinent, au niveau
local, dans cet événement global. La mise en relief des aspects locaux
dans les matières journalistiques concernant cet événement est constatée
aussi dans les médias d’autres pays, correspondant donc à des traces per-
tinentes de l’interdiscursivité.
Le mode médiatif/épistémique du traitement objectif de l’informa-
tion, caractéristique des médias de référence, positionne ces matières
journalistiques dans la posture de coénonciation. Néanmoins, je me suis
posé la question de la complexité des postures énonciatives lorsque l’on
examine les médias de référence et le traitement du discours rapporté.
D’une part, la coénonciation semble constituer la posture la plus perti-
nente du moment où le locuteur premier ne conteste jamais les PDV des
locuteurs seconds, les présente sur le mode épistémique de l’évidence,

251
WANDER EMEDIATO

topicalise les PDV en les mettant en relief sous la forme d’assertions ou


des descriptions définies (ex. la reprise économique) avant de les repren-
dre ensuite par du discours cité ou intégré. On est tenté de voir dans
cette posture le devoir épistémique postulé par Kronning (2004) pour le
mode médiatif. D’autre part, on pourrait également penser qu’il s’agit
d’une sous-énonciation, et dans ce cas de figure, les médias adopteraient
la posture de locuteur dominé. Charaudeau (2000), en réfléchissant sur
les critiques habituelles qui décrivent les médias comme des manipula-
teurs de l’information, avait proposé de les voir plutôt comme un mani-
pulateur manipulé.
Cette proposition va à l’encontre de l’oscillation entre la posture de
co-énonciation et de sous-énonciation, et plaide plutôt en faveur d’une
sur-énonciation qui fait son nid dans la co-énonciation, comme les cou-
cous qui couvent les œufs des autres à leur avantage...

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VION, Robert. « ‘Effacement énonciatif ’et stratégies discursives », in De Mattia (M.) et
Joly (A.) (eds), De la syntaxe à la narratologie énonciative, pp. 331-354. Gap, Paris
: Ophrys. 2001.
VION, Robert. « Effacement énonciatif et stratégies discursives » in Joly A. & De Mattia
M. (éds), De la syntaxe à la narratologie énonciative. Textes recueillis en hommage
à René, Rivara, Paris, Ophrys, 331-354. 2001a.

254
SObRe OS AUTOReS

Cláudio Humberto Lessa possui graduação em Letras Português e In-


glês pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1993), mes-
trado e doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Tem se dedicado ao estudo do discurso político, das
ideologias políticas, da argumentação. Desde o pós-doutorado, em 2011,
tem desenvolvido pesquisa sobre a relação entre as representações so-
ciais e a constituição de identidades em narrativas de si (de alunos da
EJA, de políticos, de celebridades, entre outras). É professor do CEFET-
MG, onde atua nos cursos técnicos, na Educação de Jovens e Adultos,
no terceiro turno, no curso superior de Letras e na pós-graduação.
Atualmente, coordena o grupo de pesquisas Narrar-se CEFET-MG: es-
tudos sobre narrativas de si em diversos corpora e suportes.
E-mail: claudiohlessa@gmail.com

Clebson Luiz de brito é professor do Departamento de Letras da Uni-


versidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É Doutor em Estu-
dos Linguísticos pela UFMG (2015), com estágio doutoral na
Universidade de Paris IV-Sorbonne, além de Graduado em Letras —
Língua Portuguesa também pela UFMG (2007). Atua no ensino de Lín-
gua Portuguesa, com ênfase em abordagens do Texto e do Discurso. É
atualmente Coordenador do curso de Letras - Língua Portuguesa e Li-
teraturas da UFRN.
E-mail: clebsonlb@gmail.com

255
Françoise Sullet-Nylander é professora titular do Departamento de es-
tudos românicos e clássicos da Universidade de Stockholm (Suécia)
onde ensina língua francesa e Análise do Discurso. Efetua pesquisas
sobre polifonia, discurso relatado, reformulação e jogos de linguagem
em textos jornalísticos e em debates políticos. Seus trabalhos mais re-
centes centram-se sobre o humor e ironia e sobre os termos utilizados
pelos participantes de debates políticos ao se dirigirem uns aos outros,
no intervalo ocorrido entre os dois turnos das eleições presidenciais na
França (2016-2107).
E-mail: Françoise.Sullet-Nylarder@su.se

Glaucia Muniz proença Lara tem doutorado em Semiótica e Linguística


Geral pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora
da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), onde atua tanto na graduação quanto na pós-graduação na
área de Língua Portuguesa (Estudos Textuais e Discursivos). É também
coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísti-
cos/UFMG (gestão 2017-2019). Publicou vários capítulos de livro e ar-
tigos em revistas científicas nacionais e internacionais, além de ter
(co)organizado as coletâneas: “Discurso e (des)igualdade social” (2015)
e Representações do outro: discurso, (des)igualdade e exclusão” (2016).
E-mail: gmplara@gmail.com

Helcira Maria Rodrigues de Lima. Mestre (2001) e doutora (2006) em


Estudos Linguísticos — Análise do discurso — pela Universidade Fe-
deral de Minas Gerais (UFMG), onde realizou, também, uma pesquisa
de pós-doutorado (2007-2008). Faz parte do corpo docente da
FALE/UFMG (professor associado), desde 2008, onde atua na gradua-
ção e na pós-graduação. Presidente da Sociedade Brasileira de Retórica
(SBR), representante da SBR no conselho da Associação Latino-ameri-
cana de Retórica (ALR). Membro da Organização Ibero-americana de
Retórica (OIR). Membro do Núcleo de Análise do discurso
(FALE/UFMG). Coordenadora da Implantação da Plataforma Vieira e

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líder do grupo de pesquisa “Retórica e argumentação”, juntamente com
a professora Dra. Maria Cecília Miranda (FAFICH/UFMG).
E-mail: helciralima@uol.com.br

Ida Lucia Machado é doutora em Letras pela Universidade de Toulouse


II (França). Realizou dois pós-doutorados em Análise do Discurso em
Paris XIII e Paris III (França). Fundou e é membro do Núcleo de Análise
do Discurso da FALE/UFMG. Atualmente faz parte do quadro de pro-
fessores permanentes da Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da
FALE/UFMG, onde ministra cursos de Análise do Discurso de tendên-
cia francesa e orienta mestrandos e doutorandos. Suas pesquisas cen-
tram-se em estudos discursivos, narrativas de vida, ironia e paródia. É
bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
E-mail: idaluz@hotmail.fr

Jacyntho Lins brandão é Doutor em Letras Clássicas pela Universidade


de São Paulo. Leciona na Universidade Federal de Minas Gerais desde
1977, ocupando atualmente o cargo de Professor Titular de Língua e Li-
teratura Grega. Na mesma Universidade, foi Diretor da Faculdade de
Letras e Vice-Reitor. É sócio fundador da Sociedade Brasileira de Estu-
dos Clássicos. Foi Professor Visitante na Universidade de Aveiro/Por-
tugal e na Universidad Nacional del Sur (Bahía Blanca, Argentina), bem
como Directeur d’Études Invité na École des Hautes Études en Sciences
Sociales (Paris, França). Seus principais trabalhos são na área de litera-
tura grega. Publicou ainda obras de ficção. É pesquisador do CNPq.

Julia Lourenço Costa. Graduada em Letras pela Universidade Federal de


São Carlos -UFSCar; mestra e doutora em Linguística pela Universidade
de São Paulo - USP, com período de doutorado sanduíche na Université
Paris-Sorbonne IV, sob a supervisão de Dominique Maingueneau. Atual-
mente é Pós-doutoranda na Universidade Federal de São Carlos, sob a su-
pervisão do Prof. Dr. Roberto Baronas (UFSCar - processo FAPESP
número 2017/12792-0) e uma das editoras da revista Linguasagem, uma

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realização do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação
em Linguística da Universidade Federal de São Carlos (DL/PPGL-UFS-
Car). É membro participante do Grupo de Estudos em Semiótica da Uni-
versidade de São Paulo - GES-USP e do Laboratório de Estudos
Epistemológicos e Discursividades Multimodais - LEEDIM-UFSCar.
E-mail: julialourenco@usp.br

Kelly Cristina de Oliveira realizou Estágio Pós-doutoral na Universi-


dade Federal de Minas Gerais, com bolsa CAPES/PNPD (2015-2016).
É Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São
Paulo-USP, FFLCH, bolsista CAPES- Demanda Social (2008-2012), com
estágio no exterior na University of Birmingham- UK, no Center Ad-
vanced Research in English (CARE), (2009-2010) — fomentado pela
CAPES/PDEE. Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela Universi-
dade de São Paulo-USP (2004-2007). Graduada em Letras —
Tradutor/Inglês pelo Centro Universitário Capital (1997-2000). Tem ex-
periência na área de Letras, com ênfase em Texto e Discurso, atuando
principalmente nos seguintes temas: Análise Crítica do Discurso, dia-
cronia, jornal paulistano e gêneros do discurso.
E-mail: kellycristina@usp.br

Moisés Olímpio-Ferreira. Doutor em Letras pela Universidade de São


Paulo (2012) - com estágio de bolsa sanduíche da CAPES nas Univer-
sidades Lumière Lyon 2 e Catholique de Lyon, França (2009-2010) -,
Mestre em Letras (2006) e Graduado em Letras com habilitação em
Grego Clássico e Português (2000) também pela Universidade de São
Paulo. É coeditor da EID&A (Revista Eletrônica de Estudos Integrados
em Discurso e Argumentação) e pesquisador do ELAD (Estudos de
Linguagem, Argumentação e Discurso), do REDINTER (Grupo de Es-
tudos em Retórica, Discurso e Interdisciplinaridade) e do GERAR
(Grupo de Estudos de Retórica e Argumentação). Atua nos campos da
Retórica, Nova Retórica, Argumentação, Análise do Discurso, Teoria e
Análise Linguística.
E-mail: moisesolim@usp.br

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Mônica Santos de Souza Melo é Doutora em Estudos Linguísticos pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2003), tendo realizado estágio
pós-doutoral em Análise do Discurso (2012) na mesma instituição.
Atualmente é Professora Associada IV da Universidade Federal de Vi-
çosa, onde leciona e orienta pesquisas na Graduação e no Programa de
Pós-Graduação em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas:
discurso (religioso, político e jurídico), argumentação, semiolinguística
e mídia. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
E-mail: monicassmelo@yahoo.com.br

Renata Aiala de Mello. Possui Doutorado (2013-2016) em Estudos Lin-


guísticos do Texto e do Discurso pela Pós-Graduação em Estudos Lin-
guísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais e Mestrado (2011-2012) junto ao mesmo Programa de Pós-gra-
duação. É professora efetiva de língua, literatura e cultura francesa da
Universidade Federal da Bahia. Atua principalmente nas áreas: Análise
do Discurso de orientação francesa, Teoria Semiolinguística, Literatura
Francesa, ensino de Língua Portuguesa, Francesa e Inglesa e tradução.
E-mail: demello.renata@gmail.com

Roberto Leiser baronas. Graduado em Letras pela Universidade Federal


do Mato Grosso - UFMT; doutorado em Linguística e Língua Portu-
guesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Rea-
lizou doutorado sanduíche na Université Paris Est - Crétéil/França, sob
a supervisão de Simone Bonnafous e Pós-doutorado na Pontifícia Uni-
versidade de São Paulo - PUC-SP, sob a supervisão de Beth Brait. Tra-
balhou como professor de Língua Portuguesa na rede estadual de ensino
fundamental e médio de Mato Grosso e onze anos e meio na Universi-
dade do Estado do Mato Grosso - UNEMAT. Atualmente é professor
associado no Departamento de Letras da Universidade Federal de São
Carlos - UFSCar. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPQ;
autor/organizador de diversos livros na área, tradutor de artigos rele-
vantes; participante e/ou coordenador de Laboratórios (LEEDIM-UFS-
Car; FesTA-IEL/Unicamp; Instituto Mattoso Câmara-UFSCar); foi

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editor da revista da ABRALIN e é editor da revista Linguasagem-UFS-
Car. Atual presidente da Associação Nacional de Pós-graduação em Le-
tras e Linguística - ANPOLL.
E-mail: baronas@uol.com.br

Rui Alexandre Grácio. Doutor em Ciências da Comunicação (2011),


Mestre em Filosofia Contemporânea (1993) e licenciado em Filosofia
(1987). É professor profissionalizado e formador especialista desde 1997,
reconhecido pelo Conselho Científico-Pedagógico de Formação Contí-
nua. É autor de vários manuais escolares e de diversas publicações na
sua área de pesquisa. É investigador do CECS (linha de investigação de
Estudos Culturais), integra o grupo de pesquisa GPARA - Grupo de Pes-
quisas em Argumentação e Retórica Aplicadas, da Universidade Federal
de Sergipe e é colaborador estrangeiro do grupo de pesquisa Estudos de
Linguagem, Argumentação e Discurso - ELAD, da Universidade Esta-
dual de Santa Cruz, Brasil.
E-mail: rgracio@gmail.com

Wander emediato. Doutor em Ciências da Linguagem (Universidade


de Paris XIII - 2000), Pós-doutorado em Linguística (Universidade de
Lyon 2 -Laboratoire ICAR-CNRS - 2010 e 2017), Graduação e Mestrado
em Letras (UFMG, 1994). Professor da Faculdade de Letras e do Pro-
grama de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da UFMG (PosLin).
Membro do Núcleo de Análise do Discurso da UFMG (NAD-UFMG)
e atual líder do Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso do CNPq.
E-mail: wemediato@hotmail.com

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Este livro foi produzido em Coimbra (Portugal) no mês de agosto de 2018.
Capitaneado por Ida Lúcia Machado, Gláucia
Muniz Proença Lara e Wander Emediato de
Souza, o presente livro apresenta ao leitor uma
variedade de temas, numa pluralidade de cor-
pora e abordagens, tomados do passado, do pre-
sente — e até de um futuro do passado, no caso
do curioso experimento do Padre Antônio
Vieira. Por outro lado, ele confirma a capacidade
de agregação, de interlocução e diálogo que é
uma marca do Núcleo de Análise do Discurso
da Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Minas Gerais, cujas atividades, desenvolvidas
ininterruptamente há quase três décadas, cria-
ram, difundiram e consolidaram uma área de es-
tudos evidentemente nuclear.

www.ruigracio.com

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