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Cadernos Walter Benjamin 18

VIOLÊNCIA E DIREITO NO ESTADO DE EXCEÇÃO EFETIVO


SEGUNDO WALTER BENJAMIN

José Valdo Barros Silva Júnior

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar a crítica de Walter Benjamin ao poder-violência


institucionalizador do Direito, com a introdução de um poder divino puro que
interrompa a marcha do poder mítico do soberano. Para tal empreendimento será
necessário destacar as insuficiências da teoria do estado de exceção de Carl
Schmitt, visto que ela possui um caráter fictício no que respeita à capacidade do
poder de decisão do soberano de agir para o reestabelecimento da ordem jurídica.
Discorrer-se-á sobre a relação do problema político de um poder destituinte do
direito com o problema metafísico da potência e do ato, para a formação de uma
potência revolucionária que aniquile a constituição fetichista da realidade histórica
barroca.

Palavras-Chaves: Poder. Violência. Direito. Estado de exceção. Potência


revolucionária.

VIOLENCE AND LAW IN THE STATE OF EXCEPTION EFFECTIVE


ACCORDING TO WALTER BENJAMIN

ABSTRACT

The following paper aims to present the Benjamin's critique to power-violence that
institutionalize the right, with the introduction of a pure divine power to stop the
march of the mythical sovereign power. For such is necessary to explicit the
Schmitt's theory of state of exception, because there is a fictional character in the
decision-making capacity of sovereign to act for the reestablishment of the state of
right. We will discuss the relationship of the political problem of power with the
metaphysical problem of potential and actual for the formation of a revolutionary
power that annihilates the fetishistic constitution of the baroque historical reality.

Keywords: Power. Violence. Right. State of exception. Revolutionary power.

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1 Crítica do poder-violência

Partindo da ideia convencionalmente aceita de que a relação basilar de todo


ordenamento juridicopolítico é a relação entre meios e fins, Walter Benjamin intenta
situar o problema da violência fora dessa relação como um princípio em si mesmo
fundador e mantenedor do direito. No ensaio Crítica da Violência - Crítica do Poder
de 1921, Benjamin tem por objetivo explicitar o vínculo questionável entre a
violência e o direito. Para desferir uma crítica do poder-violência, este pensador irá
tratar dos pressupostos elementares das correntes do Direito Natural e do Direito
Positivo sobre o assunto em questão.
Há, segundo Benjamin, um dogma básico comum tanto ao Direito Natural
quanto ao Direito Positivo acerca da relação entre a violência e o direito, levando-
se em conta a justiça como critério dos fins e a legitimidade como critério dos
meios, dogma este que é posto assim: “fins justos podem ser obtidos por meios
justos, meios justos podem ser empregados para fins justos”. (BENJAMIN, 1986,
161). A pretensão do Direito Natural é legitimar os meios pela justiça dos fins,
enquanto que a do Direito Positivo é garantir a justiça dos fins pela legitimidade
dos meios. O ponto-cego existente em ambas essas correntes se funda no não
questionamento crítico da própria violência que põe e mantém o direito.
Uma figura sob a qual a violência aparece com sendo demasiado
ameaçadora ao direito é a figura do “grande bandido”, visto que o direito considera
o poder deste indivíduo um “perigo de subversão da ordem jurídica”. A mera
existência do poder desse grande bandido fora do âmbito do jurídico pode implicar
que a busca dos seus fins naturais, quando perseguidos com maior ou menor
violência, pode se chocar contra os fins jurídicos. Além disso, esse poder, que se
manifesta nos seus feitos pelo uso da violência, suscita uma “secreta admiração
do povo”, mesmo que os seus fins sejam os mais execráveis possíveis, causando
uma antipatia da multidão com relação ao direito. O temor deste último a esse “fora
da lei” conduz à monopolização jurídica do poder-violência ante ao indivíduo, e o
faz não para garantir uma suposta justiça de seus fins jurídicos, mas para
“assegurar a própria existência do direito”. (Cf. BENJAMIN, 1986, 62-63)
Ora, essa disposição do direito em monopolizar o poder-violência a fim de
se garantir a si mesmo, em detrimento dos fins jurídicos justos, é já um indício

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importante da possibilidade de crítica da violência imanente ao direito. A mera


existência do direito não pode ser considerada uma justificativa legítima do uso
monopolizado da violência frente ao indivíduo. Mas tentemos nos aproximar mais
da coisa mesma em análise.
Outra forma em que o direito pode entrar em contradição com os seus fins
jurídicos é o direito de guerra, enquanto violência primitiva e arquetípica que serve
a fins naturais, tendo, pois, um forte cunho legislador. Ou seja, o poder militar de
guerra é poder instituinte do direito. Porém, tal poder tem outra função, que se
manifesta no grande problema do militarismo: “a compulsão ao uso generalizado
da violência como um meio para os fins do Estado”. (BENJAMIN, 1986, 164). Por
isso, o poder militar constitui uma violência assaltante que institui o direito, cujo
caráter compulsivo subordina os cidadãos à lei do serviço militar obrigatório como
sendo um fim jurídico mantenedor do direito. Pode-se dizer, então, que a violência
assaltante do poder militar é um poder que institui e mantém o direito.
O aspecto assaltante do poder-violência instituidor e mantenedor do Direito
o insere no interior da ordem do destino, cuja ameaça mais profunda se expressa,
terrivelmente, no poder supremo de decidir sobre a vida e a morte. O traço
essencial do direito, originado do poder de dispor violentamente sobre a vida e a
morte, é “um elemento de podridão dentro do direito” (BENJAMIN, 1986, 166). O
poder-violência, juridicamente configurado e inscrito na ordem do destino, sob este
aspecto, torna patente a falácia do dogma básico compartilhado pelo Direito
Natural e o Direito Positivo de que “fins justos podem ser obtidos por meios
legítimos, meios legítimos podem ser usados para fins justos” (BENJAMIN,
1986,170).
Por estar submetido à ordem do destino, o poder jurídico se encontra imerso
numa contradição insolúvel que torna impossível uma articulação apropriada entre
meios e fins. Com isso, esse tipo de violência, que põe e mantém o direito no
domínio da ordem do destino, se mostra incapaz de decidir racionalmente sobre
como estabelecer a relação entre meios legítimos e fins justos, pois não se pode
discernir adequadamente sobre o “certo” e o “errado”, visto que se instaura uma
zona de indistinção entre ambos.

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O poder do destino tem por teor essencial uma violência imediata, que não
é passível de qualificação como sendo um meio referente a um determinado fim
proposto. Tal poder é tão somente a manifestação pura e simples da potência de
um hybris irracional. Isto se evidencia com o exemplo dado por Benjamin da
explosão de violência da ira dos Deuses que desaba sobre Níobe, em que ocorre
a morte sangrenta de seus filhos por ela haver tentado desafiar o poder do destino.
O poder do destino, enquanto manifestação imediata da violência mítica, é, para
Benjamin, instituinte do direito e está subjacente ao próprio poder jurídico. Há,
portanto, nesta perspectiva da violência fundadora do direito, uma analogia
significativa entre o poder do destino e o poder jurídico.
Pode-se dizer, com isso, que a origem profunda do poder-violência contém
como teor fatual a potência anômica irracional instituinte do direito, cuja função
primordial é a institucionalização mítica do próprio direito, operando uma
configuração sui generis na relação entre meios e fins. Em uma passagem
fulgurante do texto Crítica do Violência - Crítica do Poder, Benjamin explicita
categoricamente essa função do poder-violência:

A função do poder-violência, na institucionalização do direito, é dupla no


sentido de que, por um lado, a institucionalização almeja aquilo que é
instituído como direito, como o seu fim, usando a violência como meio;
e, por outro lado, no momento da instituição do fim como um direito, não
dispensa a violência, mas só agora a transforma, no sentido rigoroso e
imediato, num poder instituinte do direito, estabelecendo como direito
não um fim livre e independente de violência (Gewalt), mas um fim
necessário e intimamente vinculado a ela, sob o nome de poder (Macht).
A institucionalização do direito é institucionalização do poder e, nesse
sentido, um ato de manifestação imediata da violência. (BENJAMIN,
1986, 172, grifos nossos)

A máquina jurídica do poder-violência constitui uma relação toda especial


entre meio e fim, visto que põe a manifestação imediata da violência como meio
fundador do direito, cujo fim é instituir o direito como um poder profundamente
aferrado à violência institucionalizada (mediatizada juridicamente). O índice próprio
desta máquina diz respeito, pois, a um círculo vicioso existente entre a violência
mítica anômica e o poder do nómos (direito) – isto é, entre o poder de fato e o
poder de direito, estruturados visceralmente pela violência. É, portanto, através de
um ato de manifestação imediata da violência que se funda a referência do poder
jurídico sobre o corpo sociopolítico dos indivíduos no espaço do mundo da vida.

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Há que se determinar mais precisamente, então, o que é esta zona anômica de


indistinção entre fato e direito que torna possível a normatização efetiva do real por
um poder-violência institucionalizado.
Percebe-se, com isso, que Benjamin franqueou um outro horizonte possível
de abordagem do problema da referência da violência ao direito, não mais no
elemento da relação meio e fim, mas em uma zona anômica onde vigora o estado
de exceção. Para tal, será preciso conceitualizar o que é estado de exceção.

2 Estado de exceção fictício

O grande teórico, contemporâneo a Benjamin, que problematizou


argutamente a questão do estado de exceção foi Carl Schmitt, inicialmente na obra
A Ditadura (1921) e depois, mais desdobradamente, na obra Teologia Política
(1922). Em A Ditadura, Schmitt, ao tratar do estado de sítio sob a figura da ditadura
comissarial, compreende o ditador como uma pessoa extraordinária detentora do
poder soberano, o qual jaz em um limiar de indiscernibilidade entre violência e
direito. Esse ditador se serve de um aparato de governo fortemente centralizado
para a administração do Estado nacional moderno, cujo protótipo mais bem
definido se apresenta em Napoleão I. (Cf. SCHMITT, 1968, 20)
A ditadura é, segundo Schmitt, um estado de exceção necessário, cujo
significado juridicopolítico consiste na supressão da vigência do estado de direito,
para ocorrer o exercício do poder estatal de ingerência do soberano sobre os
direitos civis e políticos dos cidadãos, tais como sobre a sua liberdade e
propriedade. (Cf. SCHMITT, 1968, 23-24) Há uma dialética interna ao conceito de
ditadura que se radica na oposição acerba entre a possibilidade real de negação
das normas do direito e a realização efetiva das mesmas pelo poder excepcional
anômico do soberano, a fim de este último lograr um resultado concreto de
intervenção no curso causal de um acontecimento extraordinário da realidade
político-histórica. O logro desse resultado não depende, pois, do caráter normativo
de domínio do poder jurídico, mas da faticidade presente na conexão desse
acontecimento com o poder anômico do soberano, detentor de uma autoridade
suprema.

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A dialética interna do conceito [de ditadura, V. B.] se radica no fato de


que mediante a ditadura se nega precisamente a norma, cuja dominação
deve ser assegurada na realidade político-histórica. Entre a dominação
da norma a realizar e o método de sua realização pode existir, pois, uma
oposição. Desde um ponto de vista filosófico jurídico, a essência da
ditadura reside nisto, a saber, na possibilidade universal de uma
separação das normas do direito e as normas de realização do direito [...]
Partindo precisamente do que deve justificar, a ditadura se converte na
supressão da situação jurídica em geral, porque significa a dominação
de um procedimento que está interessado exclusivamente no logro de
um resultado concreto, mediante a eliminação do respeito essencial ao
direito. (SCHMITT, 1968, 26-27, grifos nossos)

Portanto, as normas de realização do direito contêm em si o elemento


anômico de supressão da situação jurídica geral para fazer atuar, sob a força da
faticidade do acontecimento da realidade político-histórica, o poder excepcional do
soberano com autoridade suprema. Manifesta-se, aí, uma relação paradoxal entre
o poder jurídico normatizador dos fatos sob a égide do direito e o poder excepcional
do soberano de lograr um resultado concreto sob um procedimento que elimina o
respeito essencial ao direito 1 . A perspectiva schmittiana é marcada por um
antagonismo entre forma normativa ideal e fato concreto extraordinário. E é,
especialmente, no caso concreto limite do contexto de estado de exceção que se
manifesta a verdadeira natureza do direito, pondo em curto-circuito a relação entre
meios legítimos e fins justos. O cerne mesmo do direito contém em estado de
latência a ditadura, enquanto estado de exceção em que há a supressão do
domínio normativo do poder jurídico para a vigência do poder fatual anômico do
soberano. Poder anômico este respaldado juridicamente pelo próprio direito.

1 O objetivo pretendido por Carl Schmitt em A Ditadura é inserir o estado de exceção no contexto
jurídico, estabelecendo uma articulação entre estado de exceção e ordem jurídica. Aí, a
inclusão do estado de exceção é levada a cabo pela relação dialética entre o poder
constituinte e o poder constituído. Para esse pensador, o poder constituinte não é mera
questão de força, mas é também uma questão de direito, visto que tal poder mantém uma
certa relação com a ordem jurídica, possuindo, pois, um traço mínimo de constituição. Esse
mínimo é um elemento formal especificamente jurídico, a saber, a decisão. A vinculação do
estado de exceção com a soberania, em sua Teologia Política, se dá pelo conceito de
decisão. No estado de exceção, o soberano se situa fora do ordenamento jurídico, porém,
por ser o responsável pela decisão última de sua suspensão, ele está ao mesmo tempo
incluído no próprio ordenamento.

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As situações-limite de caracterização do fato concreto extraordinário


sobreposto à forma normativa ideal são, para Schmitt, “a guerra contra o inimigo
exterior e a repressão de uma sublevação no interior”. Entretanto, vale salientar
que essas situações não são meras exceções esporádicas à regra, mas
configuram o paradigma de governo pelo qual se desdobra a natureza da coisa
mesma intrínseca ao direito, a saber, “o apoderamento de uma autoridade
suprema, que está juridicamente em situação de suspender o direito e autorizar
uma ditadura”. Portanto, o direito não é um meio legítimo para um fim justo, mas
um dispositivo jurídico “em condição de permitir uma exceção concreta, cujo
conteúdo é monstruoso” e que “se determina de uma maneira incondicional e
exclusiva em relação à situação das coisas”. (Cf. SCHMITT, 1968, 27-28)
Eis que o problema da ditadura se revela ser o problema do estado de
exceção concreto, no qual o direito torna patente o seu vínculo substancial
paradoxal com a manifestação da força imediata (violência anômica) do poder
soberano no acontecimento histórico extraordinário. O direito é compreendido,
pois, como direito excepcional do poder de intervenção da violência anômica em
uma situação-limite concreta.
O caráter da ação ditatorial do soberano no estado de exceção concreto
concerne ao exercício do poder estatal que se realiza de maneira imediata. Essa
ação tem por conteúdo preciso, segundo Schmitt, a eliminação do adversário
concreto, cujos pressupostos verdadeiros não são estabelecidos segundo
conceitos jurídicos, mas mediante determinações expressamente fáticas. Há uma
exigência imperiosa sobre a atuação do ditador em lograr um êxito efetivo sobre
um caso excepcional concreto. Na ditadura, o que predomina não é o meio jurídico
normativo que regula os atos do poder do soberano, mas tão-só o fim técnico
político determinado pelo grau extremo da necessidade da situação concreta,
conforme a conveniência do funcionamento estatal.

Daí que precisamente na ditadura domine exclusivamente o fim, liberado


de todos os entorpecimentos do direito, estando somente determinado
pela necessidade de dar lugar a uma situação concreta [...] A concepção
absolutamente técnica do Estado continua tendo um valor próprio
incondicionado, independentemente da conveniência, inacessível ao
direito. (SCHMITT, 1968, 42)

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O problema schmittiano da realização do direito implica o fato de que a ação


anômica do ditador pode criar uma situação na qual o direito se realiza pela sua
própria suspensão. Portanto, a ditadura é um problema da realidade concreta que
ainda mantém uma relação com o problema jurídico, visto que, mesmo sendo a
Constituição suspendida, ainda assim ela não perde a sua validade.
Paradoxalmente, com a sua suspensão na realidade concreta excepcional, o
direito ainda mantém a sua vigência em uma espécie de “limbo jurídico” no estado
de exceção. A exceção pertence à essência da ditadura, e sua condição de
possibilidade real jaz na ação ditatorial anômica do soberano de eliminação do
inimigo segundo o índice extremado da força da faticidade da situação-limite das
coisas estatais. Quanto a este particular Schmitt afirma o seguinte:

A ação do ditador tem de criar uma situação em que o direito possa


se realizar [...] Por conseguinte, a ditadura é um problema da
realidade concreta, sem deixar de ser um problema jurídico. A
Constituição pode ser suspendida sem deixar de ter validade, pois
a suspensão somente significa uma exceção concreta.
(SCHMITT, 1968, 182, grifos nossos)

A resposta mais bem elaborada sobre quem é essa autoridade de poder


incondicionado e exclusivo que age para criar essa situação jurídica paradoxal será
dada logo na primeira proposição de Teologia Política: “Soberano é aquele que
decide sobre o Estado de exceção.” (SCHMITT, 1996, 87) Há, para Schmitt, um
nexo intrínseco, contudo, não entre soberania e estado de direito (nómos), mas
entre soberania e estado de exceção (anomia). Segundo a concepção desse
pensador, a definição genérica e abstrata de soberania como o poder supremo e
originário de mandar não capta o teor fatual desse conceito-limite. O que
determina, enfaticamente, esse conceito é o seu poder de decisão especial em
caso concreto de conflitos extremados, no contexto do estado de exceção. O
sujeito da soberania é quem tem a competência política extraordinária de, em caso
de se dominar uma situação concreta limite, decidir sobre a supressão ou não da
Constituição. O soberano, enquanto detentor desse poder de decisão, “se situa
externamente à ordem legal vigente, mas mesmo assim pertence a ela, pois é
competente para decidir sobre a suspensão total da Constituição.” (SCHMITT,
1996, 88, grifos nossos)

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O estado de exceção não é anarquia nem caos, porque, mesmo com a


suspensão do direito, ainda assim subsiste um traço da ordem jurídica não
normativa. Por isso, embora a decisão seja um poder decisório anômico, ela
preserva um mínimo de especificidade jurídica neste contexto da exceção. O
mínimo dessa ordem jurídica está subsumido ao monopólio da decisão última do
soberano. O poder anômico do soberano se separa da norma jurídica genérica do
caso ideal homogêneo e captura um “direito de situação” especial (fato jurídico
concreto) para manifestar, juridicamente, o seu monopólio da decisão última, visto
que, paradoxalmente, a sua autoridade demonstra que para criar direito não
precisa ter direito.
Portanto, soberano é quem detém o poder de decidir sobre o estado de
exceção e possui a autoridade capaz de criar uma situação fática normal, no
interior da qual as prerrogativas jurídicas possam ter validade novamente. É o
poder anômico decisionista do soberano que, segundo Schmitt, funda a ordem
jurídica normal de vigência do direito. Schmitt explicita o vínculo íntimo entre poder
soberano de decisão e estado de exceção nesta passagem magistral:

Todo direito é um direito “situacional”. O soberano cria e garante a


situação como um todo, em sua totalidade. Ele detém o monopólio dessa
última decisão. É nisso que reside a essência da soberania estatal que,
portanto, define-se corretamente não como um monopólio da força ou do
domínio, mas, juridicamente, como um monopólio da decisão, em que a
palavra “decisão” é empregada num sentido genérico, passível de um
maior desdobramento. O caso de exceção revela com a maior clareza a
essência da autoridade estatal. Nesse caso, a decisão distingue-se da
norma jurídica e (formulando-a paradoxalmente) a autoridade prova que,
para criar a justiça, ela não precisa ter justiça. (SCHMITT, 1996, 93, grifos
nossos)

Uma excelente investigação sobre a teoria schmittiana da soberania foi


efetuada por Giorgio Agamben em Estado de Exceção de 2003. Este pensador
italiano identificou que há uma estratégia em Schmitt de estabelecer uma série de
cesuras e divisões no próprio corpo do direito para, com isso, tornar possível o
funcionamento da máquina do poder político, que tende a entrar em
desfuncionalidade com o advento do estado de exceção2.

2 “Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico,
ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam.
A suspensão da norma não significa a sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada

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A máquina do poder diz respeito ao engendramento de um espaço de


anomia no qual se institui uma força de lei sem lei, tornando possível um tipo
especial de referência da norma jurídica à realidade da vida muito problemática. A
força de lei sem lei consiste no dispositivo de inscrição de uma oposição entre
norma e decisão no corpo do direito, “em que, de um lado, a norma está em vigor
mas não se aplica (não tem 'força'), e em que, de outro lado, atos que não têm
valor de lei adquirem sua 'força'” (AGAMBEN, 2004, 61). E tais atos são
reivindicados pelo soberano ao decidir sobre uma ditadura comissária e ditadura
soberana.
Para Agamben, o estado de exceção schmittiano é um espaço de anomia
no qual as tensões jurídicas entre norma e decisão atingem sua máxima
intensidade e mostram sua mais íntima conexão paradoxal. O mínimo de vigência
formal da norma jurídica (fraqueza da norma do Direito) implica o máximo de
aplicação real do poder de decisão do soberano sobre a vida (força do ato de
decisão). O poder de decisão do soberano que incide sobre a vida é uma força de
lei sem lei, em que o direito vige formalmente, mas não tem significado de fato.
Na decisão sobre o estado de exceção, a norma é suspensa ou
completamente anulada; mas o que está em questão nessa suspensão
é, mais uma vez, a criação de uma situação que torne possível a
aplicação da norma (“deve-se criar a situação em que possam valer
[gelten] normas jurídicas” [ibidem, p. 19]). O estado de exceção separa,
pois, a norma de sua aplicação para tomar possível a aplicação. Introduz
no direito uma zona de anomia para tomar possível a normatização
efetiva do real. (AGAMBEN, 2004, 58)

A normatização efetiva do real pela atuação do poder anômico de decisão


do soberano, no estado de exceção, confere ao dispositivo da força de lei sem lei
um caráter místico ou fictício. A ficcionalidade desse dispositivo consiste no fato
de que se imprime no próprio corpo do direito uma cisão radical entre potência e
ato. A potência do poder anômico de decisão soberana torna-se incapaz de criar
uma situação concreta de aplicação possível da norma jurídica. Nesse espaço de
anomia, uma pura força de lei sem lei tende a realizar uma pura violência irracional.

não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.”
(AGAMBEN, 2004, 39)

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Agamben compreende que o conceito schmittiano de estado de exceção é


uma estratégia que traz a pura violência irracional para um contexto jurídico,
inscrevendo a anomia do poder no corpo mesmo do direito (nómos) pela ação
política do soberano. A violência soberana não institui nem mantém o direito, mas
o suspende pelo poder anômico da decisão. A decisão schmittiana é o instituto
excepcional que vincula soberania e estado de exceção. (Cf. AGAMBEN, 2004,
87)
Outro pensador que aborda com muita propriedade o problema da “lógica
do estado de exceção”' em Schmitt é Robert Kurz na obra Guerra de Ordenamento
Mundial. Para esse teórico alemão, Schmitt concebe uma Realpolitik fundada na
ideia de que é a autoridade e não a verdade que faz a lei, visto que o espaço no
qual a verdade do direito surge não é o estado normal do positivismo jurídico,
defendido pela doutrina do estado de direito liberal, mas se manifesta no poder de
decisão propriamente autoritário do soberano. Por isso, pode-se dizer que “o
estado de exceção constitui, para Schmitt, a verdade de fato [die eigentliche
Wahrheit] de toda Constituição e de todo direito” (KURZ, 2003, 337). Segundo
Kurz, a reflexão tradicional sobre a democracia sempre será secundária se ela
deixar obnubilado o “a priori constitutivo” [das konstitutive Apriori] que jaz no
fundamento da forma social de caráter fetichista que domina os indivíduos
modernos, sujeitando-os a relações irracionais de vínculos de poder. Na teoria da
soberania de Schmitt, “Estado normativo” [Normenstaat] e “Estado extraordinário”
[Maßnahmestaat] são as duas faces da mesma medalha, estando, aí,
estruturalmente conectados a forma jurídica com o conteúdo do poder irracional.
O aspecto do “arbítrio” [Willkür] está contido na própria norma jurídica
[Rechtsnorm]. (Cf. KURZ, 2003, 338-339)
Entretanto, embora Schmitt explicite que o núcleo essencial da democracia
moderna seja a ditadura, visto que as relações do Estado burguês na modernidade
são relações fundadas num poder-violência irracional, Kurz evidencia que ele não
consegue desferir uma crítica categórica e emancipatória ao Estado burguês no
contexto da forma social capitalista de caráter fetichista, porque assume uma
posição ontológica afirmativa em relação ao poder de decisão autoritária do

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soberano no estado de exceção moderno. A contraposição radical de Kurz frente


a Schmitt se manifesta nesta passagem:

Schmitt detectou o estado de exceção [Ausnahmezustand], e com isso o


núcleo de poder autoritário da democracia, como sendo propriamente o
ser-aí [Dasein] positivo da sociedade, enquanto comunidade de luta
existencial [existentielle Kampfgemeinschaft] da nação mistificada no
interior da arena internacional sangrenta. (KURZ, 2003, 340)

3 Indecisão soberana e poder divino puro

Em franca oposição ao decisionismo de Carl Schmitt, Benjamin em Origem


do Drama Barroco Alemão defendeu a teoria da indecisão do soberano sobre o
estado de exceção. Segundo essa teoria, pode-se dizer que não há apenas uma
cisão no corpo do nómos entre a norma e a sua realização, mas há uma cisão
radical no próprio gesto político de decisão do soberano, visto que se abre uma
fratura abissal insuturável entre a potência do poder soberano e a sua capacidade
de exercer sua decisão efetiva em ato no estado de exceção.
O paradigma que cifra o estado de exceção benjaminiano não é o
romantismo do milagre schmittiano em que “a força da vida real rompe a crosta de
uma mecânica cristalizada na repetição”, mediante a compreensão da “exceção
que prova tudo”, inclusive a regra, e que é mais interessante porque “imagina o
genérico com uma paixão enérgica”. (SCHMITT, 1996, 94) Para Benjamin, o
estado de exceção é determinado por uma escatologia barroca na qual o poder de
decisão do soberano é quase impossível. A secularização do conceito
teologicopolítico de soberano não o exime da possibilidade real de ser arrastado
na mesma catástrofe de absoluta indeterminação entre anomia e direito, visto que
a sua condição humana está aferrada à imanência da realidade histórica barroca.
A faticidade ontológica do estado de exceção barroco é tão pesada que não
é apenas a força normativa do direito que sucumbe, mas também o poder
soberano de decisão se torna impotente. “No drama barroco, nem o monarca nem
os mártires escapam à imanência.” (BENJAMIN, 1984, 91) Com isso, torna-se nula
a capacidade de a autoridade do monarca soberano, por um ato milagroso de
produzir do nada o direito, decidir sobre o estado de exceção. Quanto a essa
indecisão soberana no âmbito barroco do estado de exceção, Benjamin afirma o
seguinte em Origem do Drama Barroco Alemão:

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A antítese entre o poder do governante e sua capacidade de governar


conduziu, no drama barroco, a um traço próprio, mas que só
aparentemente é característico do gênero, e que só pode ser explicado
à luz da doutrina da soberania. Trata-se da indecisão do tirano. O
Príncipe, que durante o estado de exceção tem a responsabilidade de
decidir, revela-se, na primeira oportunidade, quase inteiramente
incapacitado para fazê-lo. (BENJAMIN, 1984, 94)

Portanto, o caráter místico ou fictício do estado de exceção schmittiano, que


pretende relacionar o poder anômico do soberano ao contexto jurídico, com o
instituto da decisão anômica de institucionalização do direito novamente, é
criticado por Benjamin porque “impossível de decidir sobre qualquer problema
jurídico” (BENJAMIN, 1986, 171). Contra esse estado de exceção fictício, Benjamin
propõe um estado de exceção efetivo presidido por um poder divino, cujas “formas
de manifestação [...] não se definem pelo fato de Deus em pessoa exercer esse
poder de modo imediato, com milagres” (BENJAMIN, 1986, 173), visto que ele é
marcado pela “ausência de qualquer institucionalização do direito” (BENJAMIN,
1986, 173).
A máquina do poder juridicopolítico 3 , então, tende a entrar em colapso
porque, quando a exceção se torna a regra, a norma coincide totalmente com a
decisão anômica, devorando a si mesma e conduzindo à impotência o poder
místico do soberano de institucionalização do direito. No espaço anômico do
presente histórico barroco onde vigora o estado de exceção, com a gravidade
fática de sua força catastrófica, tende-se a conduzir o poder mítico do soberano a
um desastre colossal de violência sanguinária sacral. Benjamin deixa manifesta
essa condição catastrófica do poder soberano neste texto lapidar:

o soberano do século XVII, o mais alto dos seres criados, irrompendo no


delírio como um vulcão, destruindo-se, e destruindo toda a sua corte [...]
Porque se a figura do governante, no momento em que ele ostenta o seu

3 “A crítica da violência, ou seja, a crítica do poder, é a filosofia de sua história. É a “filosofia”


dessa história, porque somente a ideia do seu final permite um enfoque crítico, diferenciador
e decisivo de suas datas temporais. Um olhar dirigido apenas para as coisas mais próximas
perceberá, quando muito, um movimento dialético de altos e baixos nas configurações do
poder enquanto instituinte e mantenedor do direito. A lei dessas oscilações consiste em que
todo poder mantenedor do direito, no decorrer do tempo, acaba enfraquecendo indiretamente
o poder instituinte do direito representado por ele, através da opressão dos antipoderes
inimigos.” (BENJAMIN, 1986, 174-175)

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Cadernos Walter Benjamin 18

poder da forma mais furiosa, simboliza ao mesmo tempo a manifestação


da história e a instância que coíbe as suas vicissitudes, então algo pode
ser dito em favor do César sucumbido a seu delírio de poder: ele se torna
vítima da desproporção entre a dignidade hierárquica desmedida de que
Deus o investiu, e a miséria da sua condição humana. (BENJAMIN, 1984,
94, grifos nossos)

O poder decisório do soberano é incapaz de cortar o nó górdio que liga


violência e direito porque, no contexto do estado de exceção, anomia e nómos se
tornam indiscerníveis. Por isso, Benjamin propõe um outro tipo de poder, que
esteja além do poder que funda o direito e o poder que o mantém. 4 O poder, pois,
que pode manifestar a sua potência no estado de exceção efetivo da realidade
histórica barroca é poder divino puro, cuja tarefa fundamental é destituir o direito e
aniquilar o Estado.

Tal tarefa suscita, em última instância, mais uma vez, a questão de um


poder puro, imediato, que possa impedir a marcha do poder mítico. Do
mesmo modo como, em todas as áreas, Deus se opõe ao mito, assim
também opõe-se ao poder mítico o poder divino. Este é o contrário
daquele, sob todos os aspectos. Se o poder mítico é instituinte do direito,
o poder divino é destruidor do direito. (BENJAMIN, 1986, 173, grifos
nossos)

Portanto, a proposta de Benjamin é a construção de um poder divino puro


que se contraponha radicalmente a todos os aspectos do poder mítico

4 O ponto culminante da oposição radical entre Benjamin e Schmitt acerca do estado de


exceção situa-se no fato de este último propor o problema do estado de exceção a partir de
uma teoria da soberania fundada na decisão da violência soberana. Porém, Benjamin trata
esse problema a partir do conceito de tempo, ou, melhor dizendo, do conceito de
consumação do tempo, no contexto da realidade barroca do acontecimento do eschaton.
Note-se que uma conceituação do Drama barroco está intimamente ligada a uma teoria do
estado de exceção, visto que a própria vida histórica natural é o núcleo mesmo do teatro do
mundo lutuoso de sofrimento, cujo elemento determinante é a imanência da catástrofe no
tempo histórico barroco sob a ordem do destino. O estado de exceção é o tópos onde irrompe
a possibilidade real do poder anômico do soberano de suspensão da vigência do direito para
intervir no acontecimento histórico, tensionado pela contradição dialética extrema entre
imanência e transcendência de sua ação em relação à faticidade inexorável da realidade
barroca. O estado de exceção só pode se tornar efetivo pela contradição dialética e barroca
entre o soberano e o Messias. O eschaton jaz no cerne do Trauerspiel, enquanto profanação
mesmo tempo, festiva e belicosa da ordem do destino do teatro do mundo da história natural.
Para uma consideração da relação entre estado de exceção e escatologia, (cf. CASTRO,
2013, 86-90).

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institucionalizador do direito.5 Tais aspectos são a imposição de limites ao poder


dos indivíduos, a autorização do vigor da culpa e da punição, e o seu caráter
ameaçador e sangrento. O poder mítico é poder sangrento anômico que
estabelece a dominação do direito sobre os vivos pela suspensão da ordem
jurídica, incutindo neles um processo de culpabilização sobre sua vida nua e
natural, abandonado-a à penitência e à violência do soberano. Ao contrário, o
poder divino puro arrebenta os limites impostos pelo direito, absolvendo da culpa
o portador da mera vida nua e natural, cujo fim é a instauração de uma vida integral
marcada pela ausência de qualquer institucionalização do direito. O poder divino
puro é poder aniquilador do direito, que manifesta a sua potência golpeadora não-
violenta no espaço da realidade histórica barroca do estado de exceção efetivo, o
qual é incapaz de ser decidido pelo poder soberano da teoria de Schmitt.
Um texto muito interessante que traça a distinção precisa entre Schmitt e
Agamben sobre o estado de exceção é From Walter Benjamin to Carl Schmitt, via
Thomas Hobbes, de Horst Bredekamp. Para este último, o conceito de estado de
exceção em Schmitt está intimamente ligado à ideia de um tempo histórico que
quebra com a sua normalidade ordinária e faz irromper um acontecimento
extraordinário. Tal acontecimento é, na interpretação arquicatólica romântica de
Schmitt, um katechon, pelo qual se introduz na história um interregno do tempo
entre o presente e a vinda do Anticristo.

O katechon, seja qual for a forma que ele possa assumir, produz a
histórica; sem ele, o próprio curso do tempo teria terminado. Ele detém o
fluxo do tempo conduzindo à contra-era do Anticristo [...] O jogo
recíproco, que envolve o tempo contínuo da normalidade com o choque
[shock] do estado de exceção, produz a história que é dada à
humanidade como instante último do tempo [Frist]. (BREDEKAMP, 1999,
253)

Segundo Bredekamp, o estado de exceção em Schmitt é condição de


possibilidade essencial da soberania, enquanto que em Benjamin a soberania

5 “Se o poder mítico é instituinte do direito, o poder divino é destruidor do direito; se aquele
estabelece limites, este rebenta todos os limites; se o poder mítico é ao mesmo tempo autor
da culpa e da penitência, o poder divino absolve a culpa; se o primeiro é ameaçador e
sangrento, o segundo é golpeador e letal, de maneira não-sangrenta.” (BENJAMIN, 1986,
173)

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schmittiana é vista como existindo para evitar a radicalização do estado de


exceção efetivo com o advento de uma potência revolucionária.
Porém, a construção do poder divino puro destituidor do direito exige a
superação do suposto caráter sagrado da vida nua natural, visto que é mediante
esta superação que se poderá irromper uma vida história propriamente dita com a
manifestação de uma potência revolucionária. A violência pura dessa potência é,
para Benjamin, a única capaz de cortar radicalmente o nexo que envolve violência
e direito, porque ela não governa mas simplesmente se manifesta e atua6.
A violência pura da potência revolucionária não é um meio fundador do
direito, cujo fim seria a institucionalização jurídica do poder em si mesmo, mas ela
é um puro meio ou uma medialidade sem fim. Com isso, o problema do direito é
colocado em outros termos, para além, portanto, da articulação de fins justos
atrelados a meios jurídicos legítimos. A violência pura não estabelece uma relação
de meio em referência a um fim, mas uma relação com sua própria medialidade,
para a atualização de sua própria potência aniquiladora em contraposição liminar
ao poder institucionalizador da violência jurídica como um fim em si mesmo.

4 Ser puro e potência revolucionária

Um dos grandes desafios lançados por Giorgio Agamben em Homo Sacer I


de 1995 fora pensar a relação do problema político do poder constituidor do direito
com o problema metafísico da potência e do ato. “O problema desloca-se, assim -
diz Agamben - da filosofia política para a filosofia primeira (ou, se quisermos, a
política é restituída à sua condição ontológica)” (AGAMBEN, 2007, 51) Para tal
empreendimento, Agamben atualiza a tese de Aristóteles de que é possível
conceber a existência separada e autônoma da potência em relação ao ato. Nessa

6 “De novo, o puro poder divino dispõe de todas as formas eternas que o mito transformou em
bastardos do direito. O poder divino pode aparecer tanto na guerra verdadeira quanto no juízo
divino da multidão sobre o criminoso. Deve ser rejeitado, porém, todo poder mítico, o poder
instituinte do direito, que pode ser chamado de um poder que o homem põe (schaltende Gewalt).
Igualmente vil é também o poder mantenedor do direito, o poder administrado (verwaltete Gewalt)
que lhe serve. O poder divino, que é insígnia e chancela, jamais um meio de execução sagrada,
pode ser chamado de um poder de que Deus dispõe (waltende Gewalt).” (BENJAMIN, 1986, 175)

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perspectiva se atribui uma consistência própria à potência de poder até não passar
ao ato, desativando-se, com isso, a necessidade do vínculo estrutural entre
potência e ato. Por isso, traz-se à luz do dia a possibilidade real de uma potência
de não ser nem fazer em ato, isto é, uma impotência.
Introduz-se, então, um outro modo de potência que tem de se contrapor
frontalmente à potência soberana autofundadora do ser, enquanto princípio do
bando que vincula o poder constituinte ao poder constituído pelo mecanismo do se
aplicar desaplicando. A constituição da potência do não ser nem fazer tem de
depor a potência do bando soberano por um ato de violência especial, situando-
se, pois, para além de toda figura de relação – principalmente a relação jurídica. O
poder soberano não é capaz de decidir sobre o estado de exceção efetivo porque
está determinado pela potência inoperosa da relação de bando, que busca
constantemente uma autofundação do ser através da “opressão dos antipoderes
inimigos, acabando por enfraquecer o poder instituinte do direito” (BENJAMIN,
1986, 174-175)

A ruptura dessa trajetória, que obedece a formas míticas de direito, a


destituição do direito e dos podere dos quais depende (como eles
dependem dele), em última instância, a destituição do poder do Estado,
fundamenta uma nova era histórica. Se a dominação do mito em alguns
pontos já foi rompida, na atualidade, o Novo não se situa num ponto de
fuga tão inconcebivelmente longínquo, que uma palavra contra o direito
seja supérflua. Se a existência do poder, enquanto poder puro e imediato,
é garantida, também além do direito, fica provada a possibilidade do
poder revolucionário, termo pelo qual deve ser designada a mais alta
manifestação do poder puro, por parte do homem. A decisão, porém, se
o poder puro, num determinado caso, era real, não é possível da mesma
maneira, nem igualmente urgente para o homem. (BENJAMIN, 1986,175,
grifos nossos)

Contra essa potência do bando soberano, há que se vislumbrar uma


potência revolucionária que não se constitui marcada pelo índice do trespassar da
potência do poder instituidor do direito ao ato de realização do direito pelo poder
mantenedor do direito. O índice que tem de caracterizar uma potência
revolucionária é o do movimento de retorno à origem, cujo gesto não é a decisão

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mas um doar-se à negatividade de contraposição à culpa. A culpa7 é o teor de


verdade coisificante da relação de bando sob o dispositivo juridicopolítico de
abandono da singularidade dos indivíduos portadores da vida nua à violência sacra
do soberano; ela é o fator juridicopolítico essencial de formação da vida de seu
portador como vida nua, sem qualidade autenticamente histórica. Entretanto, a
culpa não é o único fator.
Pode-se dizer, consoante ao pensamento de Agamben, que a vigência do
direito pressupõe a existência de uma zona de indistinção entre um dentro e um
fora de seu âmbito, entre natureza e norma, fato e direito. Esta zona de indistinção
é o limiar que funda o nexo entre soberania e direito, onde este último se refere à
vida por uma lei que ao mesmo tempo a captura e a abandona. A vida que é
capturada e abandonada no processo de exclusão inclusiva do estado de exceção
é a vida nua do homo sacer, enquanto mero ser vivente portador de um corpo
biopolítico sobre o qual intercede o poder soberano. Portanto, a relação entre
poder soberano e vida nua é uma relação de bando, visto que a relação constitutiva
da lei com a vida não é uma aplicação, mas um abandono. É mediante este
mecanismo que se instaura uma violência sacra capaz de efetivar pelo poder do
soberano a matabilidade originária do homo sacer insacrificável, sem que isto seja
considerado homicídio.
No final de seu livro Homo sacer I, após traçar as três teses conclusivas de
sua pesquisa acerca do conceito de vida nua enredada na lógica paradoxal da
soberania, Agamben lança uma intuição fulcral, a saber, a analogia que há entre o
ser puro (da filosofia primeira ou ontologia) e a vida nua (concernente à política).
Tal analogia é razoável pois que ambos conceitos são vazios e indeterminados.
Embora Agamben mencione abismadamente este irrelato a partir da relação de
bando, ele não é capaz de assinalar em que consiste propriamente o seu caráter.
Tudo isso está evidente neste texto:

7 “O tempo do destino é o tempo que, a cada momento, pode-se tornacontemporâneo (não


actual). Está sujeito à ordem da culpa que nele determina esta conexão. É um tempo não
autônomo, e nele não existe nem presente, nem passado, nem futuro.” (BENJAMIN, 2008,
23, grifo do autor)

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O bando é uma forma de relação. Mas de que relação propriamente se


trata, a partir do momento em que ele não possui nenhum conteúdo
positivo, e os termos em relação parecem excluir-se (e, ao mesmo
tempo, incluir-se) mutuamente? O bando é uma pura forma do referir-se
a alguma coisa em geral, isto é, simples colocação de uma relação com
o irrelato. Neste sentido, ele se identifica com a forma limite da relação.
Uma crítica do bando deverá então necessariamente pôr em questão a
própria forma da relação e se perguntar se o fato político não seria por
acaso pensável além da relação, ou seja, não mais na forma de um
relacionamento. (AGAMBEN, 2007, 36, grifo do autor)

Ora, há que se determinar em que consiste esse irrelato e qual a sua origem,
pois é do decifrar do arcano dessa relação que depende a constituição de uma
potência revolucionária capaz de instaurar uma nova era histórica.
Além do aspecto juridicopolítico, há um aspecto socioeconômico que lança
as bases para se fincar a constituição da potência soberana sobre o portador da
vida nua na relação de bando – e este aspecto está completamente ausente da
investigação tanto de Benjamin quanto da de Agamben. É o fator do trabalho que
concerne ao fundamento originário de engendramento da culpa aferrada
biopoliticamente no corpo dos indivíduos modernos portadores da vida nua. É o
trabalho, no interior do processo de produção de mercadorias, que promove a
redução brutal do modo de ser qualitativo dos indivíduos à mera vida nua de
dispêndio de energia corporal e mental, em prol da valorização do Ser puro do
valor do fetiche do capital. A formação da culpa está intrinsecamente vinculada à
pro-dução (pro-ducere) do Ser-valor puro pela atividade abstrata do trabalho,
justamente porque conduz à existência fantasmagórica objetivada o poder
estranhado do fetiche do capital, como se fosse um sujeito de autoridade suprema
e absoluta.
Quem tentou articular um nexo entre vida nua e força de trabalho foi Karl-
Heinz Wedel no artigo Forma do Direito e "Vida nua". Wedel pretende
complementar a lacuna na teoria agambeniana do biopoder sobre o homo sacer
com o aspecto da subjetividade mercantil do trabalho, que reduz os seres humanos
à mera existência fisiológica. Para ele, há uma unidade recíproca entre a forma do
direito e a forma da mercadoria no interior da moderna sociedade produtora de
mercadorias, determinada pelo caráter fetichista do trabalho.

A forma burguesa moderna não implica apenas a existência [Existenz]


enquanto desprovida de significado [bedeutungsloses] e a referência da

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vida “nua” à forma do direito, mas a redução do mero ser-aí [Dasein]


fisiológico se manifesta justamente na utilização da força de trabalho. De
par com o “homo politicus” da subjetividade jurídica correspondente ao
“homo sacer” está incluído também o “homo oeconomicus” da sociedade
mercantil [Warengesellschaft], que no caso extremo é o trabalho
degradado à mera matéria. Para se poder levar a cabo uma descrição
adequada das relações modernas, é preciso ampliar, pois, a análise de
Agamben com o outro polo da sociedade mercantil moderna, porque a
forma moderna de redução à mera biomassa compreende tanto o Estado
e a forma do direito quanto também a esfera da economia e da forma da
mercadoria [...] Nos extremos casos cada vez mais frequentes do
capitalismo global, o bando da forma moderna da estatalidade
[Staatlichkeit] e da economia torna-se um traço terrível que reduz os
seres humanos à sua existência [Existenz] nua. (WEDEL, 2003)

Com a realização do fetiche do capital, opera-se a radicalização objetificada


da separação da vida nua em relação às múltiplas formas de vida concreta
qualificada historicamente. O sacrifício dos portadores da vida nua no altar onde
domina o poder fetichista do capital pelo trabalho vem de par com a sua submissão
ao poder do bando soberano.
Portanto, a coisa em geral que não tem nenhum conteúdo positivo é o Ser-
valor, cuja forma pura da relação ou o irrelato a que ele se refere é a constituição
do fetichismo enquanto autofundação da potência estranhada do capital, perante
a qual os indivíduos produtores são abandonados por um processo de
culpabilização. O processo de culpabilização se configura como uma perpétua
prestação de contas de sua atividade produtiva de dispêndio abstrato de energia
corpórea e mental de trabalho para a constante e infinita instituição do poder do
Ser-valor em grandezas monetárias cada vez maiores. A dívida que os produtores
portadores da via nua têm com a potência estranhada do capital é impagável. Por
isso, a absolvição de sua culpa dependerá da formação da potência do não ser
nem fazer de uma atividade profanadora que aniquile num só golpe duro e presto
a constituição do fetichismo por um ato de violência poética.

CONCLUSÃO
Com isso, coloca-se em outros termos o que realmente está em jogo no
desvendar do enigma do arcano da constituição fetichista que funda o poder-
violência institucionalizador do direito: a formação de uma potência revolucionária
que irrompa o contínuo de sofrimento da realidade histórica barroca por um ato de
violência poética. A violência poética não é uma posição-em-obra da verdade, mas

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a contraposição inoperosa de uma potência revolucionária destituidora da potência


fetichista do capital. O que está em jogo no estado de exceção efetivo não é o
desvendamento do sentido do ser, mas a revelação da verdade da potência
destituinte do Ser-valor estranhado do capital, que faça justiça ao contínuo de
sofrimento da história das relações fetichistas. A consumação do tempo
historiconatural do destino do Ser puro ocorre, metaforicamente falando, com a
destruição da obra do mundo pelo fogo dessa potência destituinte que consome-
se em chamas no núcleo duro dessa constituição fetichista, fazendo resplandecer
com o mais intenso brilho o advento de uma nova era histórica.

REFERÊNCIAS

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KURZ, Robert. Weltordnungskrieg: Das Ende der Souveränität und die


Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung. Bad Honnef:
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SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: A crise da democracia parlamentar.


Tradução: Inês Lobbauer. São Paulo: Scritta, 1996, pp. 81-130.

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Madrid: Revista de Occidente, 1968.

WEDEL, Karl-Heinz. Rechtsform und „nacktes Leben“. Anmerkungen zu Giorgio


Agambens „Homo sacer“. In: Krisis. Beiträge zur Kritik der
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