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Alf redo Wagner Berno de Almeida
UEA, pesquisador CNPq
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Arquivo Projeto Nova
Cartografia Social Sul
Ficha Catalográfica
I19 Identidade coletiva e conflitos territoriais no Sul do Brasil / Roberto
Martins de Souza ...[et al]. – Manaus, AM: UEA Edições, 2014.
250 p. : il. Color.
ISBN 978-85-7883-317-6
CDU 342.726
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reivindicações identitárias e que os territórios possuem evidente dimensão sim-
bólica. As mobilizações organizadas no Paraná pela Articulação Puxirão, pelos pes-
cadores artesanais, pelos ilhéus, pelos quilombolas e pelos indígenas bem ilustram
isto e propiciam, como exposto neste livro, um debate aberto e fecundo.
Nos meandros deste debate é que é possível, no plano teórico, rever instru-
mentos analíticos e repensar criticamente certos esquemas interpretativos. Assim,
contrapondo-se às explicações metafóricas, que tratam estas mobilizações como
“em rede”, a partir da metáfora weberiana da “teia de aranha”, pode-se asseverar
que a complexa sociodiversidade permite-nos advertir que as formas heterogêneas
de mobilização não seriam fios de uma mesma teia, compondo uma rede de tecido
e textura uniformes. Esta sociodiversidade tão pouco consiste numa trama que en-
reda ou emaranha, formando uma espécie de “rede elástica” projetada como laços
complementares, araneíferos. As metáforas, que insistem em figuras de aproxi-
mação, configurando geometricamente limites relativamente precisos, esbarram
no infinito dos significados desta diversidade complexa e dinâmica, que parece
driblar as delimitações usuais, apoiadas numa noção estritamente formal de ação
coletiva e de participação política.
Transcendendo às demandas de reconhecimento a Comissão Nacional tem con-
tribuído na articulação de estratégias localizadas de resistência e de reivindicações
de apropriação de territórios tradicionalmente ocupados, como no caso do recente
apoio à participação das comunidades caiçaras da Juréia2 em audiência pública na
Assembléia Legislativa de São Paulo. Ao fazê-lo, a Comissão admite, de maneira
implícita, que cada associação comunitária delineia uma forma peculiar de luta,
consoante suas condições intrínsecas de organização política, de mobilização e as
particularidades de suas respectivas territorialidades específicas.
As lutas por direitos territoriais, no presente, balizam os laços de solidariedade
numa quadra em que o governo praticamente não demarca terras indígenas e não
titula territórios de comunidades quilombolas, ribeirinhas e dos demais povos e
comunidades tradicionais. Justificar esta inocuidade pela “ausência de regulamen-
tação” contraria o que já está plenamente ratificado. No âmbito estrito da Con-
venção 169 há dispositivos operacionais reconhecidos e consolidados de maneira
explícita para povos indígenas e quilombolas. Mesmo que não haja dispositivos
específicos direcionados para todos os demais povos e comunidades tradicionais,
eles encontram-se implicitamente contemplados pela ratificação. Esta distinção
operacional não teria significação maior. Prova disto é que não dividiu a Comissão
Nacional e, ao contrário, tem facilitado os laços de solidariedade entre os repre-
sentantes dos diferentes povos e comunidades tradicionais em suas reivindicações
2 Num processo de lutas contra tentativas de deslocamento compulsório de famílias de moradores a União dos Mo-
radores da Juréia apresentou em audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo uma proposta,
fundamentada na Convenção 169, para recategorização do chamado “Mosaico da Juréia”, propondo a criação de quatro
reservas de desenvolvimento sustentável (RDS) nas terras tradicionalmente ocupadas pelos moradores, além da criação
de dois parques estaduais. No dia 06 de março de 2013 foi votado, entretanto, em sentido contrário, um Projeto de Lei
de n.60-12 que prevê a reclassificação da Estação Ecológica para um Mosaico de Unidades de Conservação, prevendo a
criação de apenas duas RDS o que acarretará na expulsão de grande parte dos moradores que tradicionalmente ocupam
a região da Juréia.
Vide União dos Moradores da Juréia - PNCSA – “Comunidades tradicionais caiçaras da Jureia,Iguape-Peruibe”. Nova
Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil - São Paulo. Fascículo n.1, junho de 2013.
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pelos territórios ocupados3. Deste modo, na percepção dos membros da Comis-
são parece prevalecer um princípio operativo: mais que as lutas pelo reconheci-
mento de identidades são as reivindicações de posse de um território, reforçadas
coletivamente, que constituiriam um fator de mobilização política para legitimar
as lideranças e os próprios representantes na Comissão Nacional. A participação
direta e diferenciada nas medidas de implementação dos direitos territoriais torna-
se, portanto um elemento central na estratégia destes movimentos sociais articula-
dos com as reivindicações de comunidades locais4. A força política construída pelas
mobilizações em torno do território institui uma dinâmica que emancipa, portanto,
estas comunidades locais das amarras burocráticas, que visam emparedar definiti-
vamente suas fronteiras. A luta pelos direitos territoriais e as distintas práticas de
delimitação das territorialidades específicas, fundamentais à reprodução social de
cada comunidade, evidenciam uma forma de autoconsciência cultural coextensiva
à capacidade de ampliar suas relações, consolidando de maneira dinâmica o ter-
ritório. (relações sociais)
Ao cotejar diversas possibilidades, sob o critério da divisão em biomas e
ecossistemas, verifica-se que no sertão nordestino, na floresta amazônica ou na
floresta atlântica e no planalto meridional não há uma identidade unitária e as
mesmas práticas que nivelem as comunidades tradicionais. Não há entre os povos
indígenas, nem entre estes e os quilombolas e não há entre as comunidades de
faxinais e de fundos de pasto. A imperiosidade do “denominador comum”, como
elemento explicativo, mais sugere um artifício de pesquisadores acadêmicos do
que uma realidade empírica. As unidades sociais, não obstante uma identidade co-
letiva a mesma, mostram-se heterogêneas e expressas por diferentes formas or-
ganizativas e de mobilização identitária, que enfatizam um processo de relações
associativas marcado por profundas distinções históricas e processos de lutas os
mais variados. A diversidade das unidades sociais aponta para uma difícil articu-
lação de diferenças, que se apóiam em relações quase institucionais e em modus
operandi que aparentemente se contraditam uns aos outros, desdizendo, como já
foi sublinhado, a produção linear da seda de que é feita a “teia de aranha”, que é
uma expressão metafórica do senso-comum erudito, e chamando a atenção para
vínculos hierarquizados, distintos e complexos que não formam necessariamente
laços geometrizados e complementares, característicos de figuras zoológicamente
compostas5. A fronteira identitária não passa necessariamente, portanto, por con-
dicionantes do quadro natural. Não é inspirada na fauna, nem nas comunidades tal
como biologicamente definidas. A metáfora araneiforme consiste numa “verdade
3 Conforme pronunciamento da representante das comunidades pantaneiras na Comissão Nacional, Claudia de Pinho,
em reunião promovida pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) para avaliação da Política Nacional de Desenvolvi-
mento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, realizada no Cenaflor-Ibama, em Brasília, no dia 03 de dezem-
bro de 2012.
4 O geógrafo T. Paoliello estuda a relação entre a luta pelo território e a consolidação de uma identidade coletiva em sua
dissertação defendida, em 2012, junto ao Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De
acordo com a abordagem do autor, em sua pesquisa sobre os Atikum e Pankará, no sertão pernambucano, não seriam
necessariamente as demandas pelo reconhecimento, mas as reivindicações de posse de um território, feitas de maneira
coletiva no tempo presente, que constituiriam “o gatilho que dispara o processo de etnogênese.” Leia-se Paoliello P. de
Oliveira, Tomas – Revitalização étnica e dinâmica territorial: alternativas contemporâneas à crise da economia sertaneja.
Rio de Janeiro. Contracapa. 2012
5 Para maiores esclarecimentos consulte-se: Almeida, A. W. B. de, e Dourado, S. - Consulta e Participação: a crítica à
metáfora da teia de aranha. Manaus. UEA Edições. Coleção Documentos de Bolso n.5. 2013 pp.11-34.
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científica aparente”, com todos os atributos acríticos da autoevidencia e todas as
ilusões derivadas. De igual modo a aludida fronteira não se prende a essencialis-
mos ou a características físicas, raciais ou de origem. Ela se mostra balizada por
experiências político-organizativas, de lutas concretas e de resistências cotidianas
refletidas em autorepresentações coletivas e por uma infrapolítica produtora de
dispositivos jurídicos apropriados. Em outros termos, a análise concreta de uma
situação concreta e a própria descrição etnográfica de uma ocorrência de conflito,
reforçada pelas relações sociais próprias do processo de produção cartográfica, po-
dem propiciar uma ruptura crítica com a generalidade dos fatores invariantes deste
modelo de explicação metafórica.
No reforço desta abordagem é que enfatizamos como dispositivo a Conven-
ção 169 da OIT ao apresentar aqui, para efeitos de discussão ampla e difusa, um
repertório de artigos e análises críticas que objetivam um aprofundamento das
questões sociológicas referidas ao entendimento das mobilizações políticas e das
reivindicações identitárias e econômicas dos povos e comunidades tradicionais no
momento atual.
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Apresentação
I
Os contadores de histórias, desde sempre, abrem mão de recursos sutis para
desafiar a imaginação do público, prendendo assim sua atenção com artimanhas
de todo tipo, alimentando a curiosidade de quem os escuta e estabelecendo cum-
plicidades imediatas. Um olho que brilha, um sorriso que se esboça. Mas, essa
curiosidade crescente e essa folia da imaginação não se desvanecem no final da
história, senão que marcam profundamente o silêncio que o desfecho do relato
irremediavelmente provoca. O final da história, abrupto ou esperado, arruma a re-
bentação dos sentidos, sopra forças e abre caminhos para continuar em frente.
São essas estórias de sempre, que contadas uma e outra vez, contadas de formas
diferentes, contadas com protagonistas outros, nos fazem e nos refazem também
hoje. Constroem-nos como partes de uma comunidade ampla de indivíduos talvez
esparsos, mas que se juntam ao redor do calor que irradia uma boa história, uma
história que no final das contas também acaba sendo, se olho brilhar, se o sorriso
esboçar, de quem a escuta.
A história, ou melhor, as histórias que este livro conta compõem um olhar cuida-
doso e próximo do processo de organização que os povos e comunidades tradicio-
nais de Paraná e Santa Catarina vêm realizando desde metade dos anos 2000. São
faxinalenses, indígenas, quilombolas, ilhéus, pescadoras e pescadores artesanais,
cipozeiras e cipozeiros, benzedeiras e benzedores e religiosas e religiosos de matriz
africana que com seus próprios ritmos e interesses foram se aproximando em
movimentos sociais específicos que lhes dessem fortaleza e lhes representassem:
a Articulação Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais (APF), a Articulação
1 Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia na Universidade Federal do Paraná (Curitiba-Brasil).
e-mail: <jorgemon00@hotmail.com>.
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dos Povos Indígenas do Sul (ARPIN-Sul), a Federação de Comunidades Quilom-
bolas do Paraná (FECOQUI), o Movimento dos Ilhéus do Rio Paraná (MOIRPA),
o Movimento dos Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná (MOPEAR), o Movi-
mento Interestadual das Cipozeiras e Cipozeiros (MICI), o Movimento Aprendizes
da Sabedoria (MASA) e o Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana (FPR-
MA).
Porém, são histórias que contam também como eles conseguiram ir além dessas
organizações específicas. Todos esses povos e comunidades tradicionais juntaram
forças, pulando preconceitos e dificuldades, para criar, em 2008, a Rede Puxirão de
Povos e Comunidades Tradicionais. Movimento de movimentos que se apresenta
na areia política para mostrar a vida e o dinamismo do caleidoscópio de identidades
coletivas que existem em estados como Paraná e Santa Catarina, apesar da omissão
dos discursos oficiais.
Os autores dos textos deste livro acompanharam esses processos de perto e
de longe, em um movimento que lhes permitiu viver a história para poder contá-
la. De perto, porque mais do que uma metodologia, a relação social de pesquisa
estabelecida com esses sujeitos que constroem suas identidades coletivas exige uma
interlocução edificada desde a proximidade, o respeito e a participação nos pro-
cessos. De longe, não por um suposto pré-requisito necessário de distanciamento
científico, e sim pela possibilidade de dar dois passos para trás e enxergar elemen-
tos que pudessem trazer para os textos, leituras ainda mais densas, universais e
articuladas das práticas e dos conflitos que identificam esses povos e comunidades
tradicionais.
Este livro retrata um primeiro intento. Um processo iniciático que pretende
registrar práticas, pesquisas e intuições de um grupo heterogêneo de pesquisadores
que foram se encontrando no rasto das problemáticas que tentam compreender e
divulgar: “Identidades coletivas e conflitos territoriais”. Em alguns casos, esses pes-
quisadores já estavam no acompanhamento dos primeiros eventos que marcam a
conformação da Rede Puxirão, como o I Encontro de Povos Faxinalenses, em 2005.
Em outros casos, essas pessoas foram se agregando ao calor da construção de treze
fascículos de cartografia social com faxinalenses, quilombolas, cipozeiras e cipozei-
ros, pescadoras e pescadores artesanais, ilhéus e benzedeiras e benzedores, entre
os anos de 2007 e 20112, além de três mapeamentos situacionais de faxinalenses,
cipozeiras e cipozeiros e benzedeiras e benzedores, também realizados nesses anos.
Desse encontro fecundo de organizações, caminhos sofridos e alegrias de se
reconhecer no outro, foram aparecendo, desde meados dos anos 2000, demandas
concretas que deveriam restabelecer uma justiça social e ambiental sempre esca-
moteada para estes grupos. Registrados nos textos deste livro aparecem algumas
das interpelações que os movimentos de representação desses grupos, por separado
e em conjunto, realizam ao Estado e à sociedade em geral. São demandas para par-
ticipar da necessária redistribuição que o Estado deveria enfrentar e a sociedade em
seu conjunto assumir como projeto nunca mais adiado: terra, renda, acesso a recur-
sos, etc. Mas também são demandas que pedem garantias de reconhecimento para
as especificidades manifestas que os povos e comunidades tradicionais mostram:
2 No momento em que escrevemos estas linhas (dezembro de 2014), há processos abertos de cartografia social com
pescadoras e pescadores artesanais, indígenas, faxinalenses e moradores de bairro.
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condições de vida nos territórios tradicionalmente ocupados, participação social
como iguais com reconhecimento das diferenças, reconhecimento pleno de uma
identidade autodefinida que se constrói sobre uma tradicionalidade em construção,
etc.
Redistribuição e reconhecimento: demandas apresentadas desde a contundên-
cia da experiência, da vida, de um cotidiano que contra toda lógica subsiste e se
recria, ao mesmo tempo, na manutenção dos tempos passados e na negociação com
os tempos presentes.
Resulta difícil estabelecer uma hierarquia clara e consensual sobre o que se-
ria mais importante nesse processo de construção de uma rede de povos e comu-
nidades tradicionais no Paraná e Santa Catarina, mas sem dificuldade podem ser
elencados uma série de situações e processos que ajudaram nessa questão: a em-
patia de lutas e desafios compartilhados recentemente e desde sempre; os avanços
na criação de uma legislação nacional sobre povos e comunidades tradicionais (es-
pecialmente a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Co-
munidades Tradicionais que permitiu reunir em um foro de escala nacional povos
e comunidades com práticas e conflitos similares); a participação dos grupos na
construção de cartografias e mapeamentos sociais que deram a oportunidade do
mutuo reconhecimento e da soma de experiências em comum, não só no Sul do
país, mas também com grupos de todo o Brasil que realizaram experiências simi-
lares; a colaboração de outras organizações, assessorias e pesquisadores, no pro-
cesso de apoio, diálogo e reivindicações, etc.
No entanto, resulta bastante fácil enxergar qual de todos esses elementos ficou
sempre muito aquém dos desafios, personificando a inação em um contexto de ação
necessária e omitindo-se em seu papel de fundamental mediador: o Estado e sua
proposta de Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais.
Seja como for, o que resulta evidente é que fruto concreto dessa mescla de
elementos geradores, tanto vindos de longe como recentes, e desses desencantos
com a resposta do Estado na escala nacional, foram aparecendo simultaneamente
reivindicações concretas e contundentes nas agendas destes grupos. E a lista não é
pequena, nem leviana. Entre outras podemos destacar as seguintes demandas:
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do Trabalho).
• Estabelecimento de um marco de referência e de respeito na relação com os
órgãos de fiscalização do meio ambiente, desativando a concepção meramente re-
pressora instalada até hoje nessas instâncias.
• Negociação renovada e em base a novos paradigmas acerca da sobreposição de
unidades de conservação em territórios tradicionalmente ocupados (rever as uni-
dades de conservação de proteção integral com povos e comunidades tradicionais
em seu interior, proteger o meio ambiente, as populações pré-existentes e os usos
tradicionais através de figuras de conservação de desenvolvimento sustentável, se-
gundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação).
• Necessidade de discutir novas abordagens acerca do que se considera
patrimônio material e imaterial e como apoiar o esbanjo de vida que existe em sua
recreação cotidiana.
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por esses grupos e a premente necessidade de escutar socialmente suas demandas
e suas histórias, de conhecer as formas em que se relacionam entre eles e com a
natureza, de não deixar perder a sociobiodiversidade que os define e, em muitos
casos, que os faz únicos.
II
Não perder a riqueza da experiência que esses povos e comunidades tradicio-
nais oferecem, nem enclaustrá-la nos museus ou no preconceito, são desafios de
primeira ordem frente a um mundo que se mercantiliza, se homogeneiza e se indi-
vidualiza rapidamente, dissolvendo-se em um presente míope e autorreferenciado.
Nesse sentido, os saberes acumulados nesses grupos se constituem em um ponto
de referência mais (tão importante e necessário como outros muitos) para refazer o
rumo e repensar a construção dessa sociedade, hoje sem passado nem futuro.
Por isso, a construção epistêmica que esses povos e comunidades realizam a
cada dia, na minuciosidade de um cotidiano que reflete a riqueza do passado e a
peleja do futuro, configura-se em aspecto essencial de suas contribuições para um
mundo que, geralmente, os nega como sujeitos sociais por inteiro. No entanto,
aproximar-se da forma em que é moldado esse conjunto de conhecimentos especí-
ficos apresenta duas dificuldades que se complementam: como abordar os saberes
dessas comunidades? Como socializar esses saberes?
Entre o folclore e a ingenuidade new age, portanto, entre a supervalorização
do que já não é mais e a supervalorização do que de repente se converte em tábua
de salvação única, as comunidades constroem seus conhecimentos em uma nego-
ciação sempre tensionada entre passado, presente e futuro. Uma negociação que
envolve acima de tudo sobrevivência, tanto material como do conjunto de saberes
que dão sentido a suas práticas cotidianas.
Não se trata de saberes menores, atrasados ou pertencentes a um senso comum
mais próximo da intuição natural que da sofisticação da cultura. Ao contrário, o
relato construído ao longo dos textos deste livro está marcado pelo convívio desses
grupos com saberes que reúnem um amplo espectro de elementos definidores: forte
arraigo dos conhecimentos, sempre vinculados estreitamente com a natureza cir-
cundante e com a reprodução da vida; são saberes que se fazem e refazem nas práti-
cas do dia a dia e nos conflitos internos e externos; as mudanças dos mesmos se
realizam habitualmente em processos de longo prazo, sopesando com calma a ver-
dadeira necessidade das modificações; densidade relacionada não só com o acúmu-
lo de tempos ou com o domínio do espaço, mas também com a ampla participação
da comunidade em seu conjunto nesses processos; os conhecimentos construí-
dos conjuntamente também são utilizados de forma conjunta ou apropriáveis por
qualquer membro da comunidade, reduzindo as interdições ao caráter de exceção;
apesar das condições de vida específicas dessas comunidades, não são isoladas, os
processos de construção do conhecimento, portanto, estão sempre condicionados
pelo encaixe das mesmas na sociedade em geral...
Na leitura atenta dos capítulos deste livro, essa lista pode ser ampliada e apro-
fundada, no entanto, sirva esse esboço apenas para introduzir um corolário dual:
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por um lado, a importância maior de esses saberes é a especificidade comunitária,
histórica e espacial que apresentam e não a abstração teórica que se possa fazer
deles; por outro lado, os profundos processos de subalternização que sofrem essas
comunidades tem um caráter material evidente, mas também um importante viés
de negação e imposição epistêmica.
Ao longo do livro, pode-se constatar um tratamento dado às comunidades, que
tenta se aproximar com atenção à especificidade de cada experiência, em função de
cada comunidade, expressa em um tempo histórico e em um lugar determinado,
situando em primeiro lugar o respeito às formas de construção de conhecimentos
que cada uma realiza nas suas práticas, através dos seus conflitos e na formação de
suas identidades. Afastando-se ao mesmo tempo dos estudos de caso que fragmen-
tam a realidade até esvaziá-la dos seus sentidos comuns e também das extrapo-
lações que permitissem atingir alguma lei geral da formação de identidades ou da
resolução de conflitos em comunidades tradicionais, os trabalhos que formam este
livro principiam leituras e interpretações amarradas a essas racionalidades outras
que como já foi dito estão expressas no cotidiano dessas comunidades.
Racionalidades que significam uma leitura própria do mundo em um mundo
que está precisando de múltiplas leituras.
Menos do que conceitos que abstraem as realidades concretas que conformam
as comunidades, os textos tentam dar conta dos sentidos próprios que os conheci-
mentos próprios de cada comunidade têm na comunidade em si e o eco que os mes-
mos provocam nas formas de entender e pensar a sociedade como um todo. Não
como receita ou como um corolário imprescindível e sim como aquelas histórias
que fazemos nossas… se o olho brilhar, se o sorriso esboçar.
A segunda parte do corolário permite situar a importância desses saberes es-
pecíficos das comunidades em um contexto maior dos processos de disputa e domi-
nação existentes na sociedade em geral. Esses saberes que ganham um sentido con-
creto e fundamental quando considerados nas comunidades onde são produzidos
e que ampliam ainda mais a lista de possibilidades com as quais pensar e impul-
sionar transformações sociais, situam-se em um campo escancarado de conflitos.
Uma parte importante dos processos de controle e/ou dominação que essas comu-
nidades experimentam por parte do Estado (mediante as diretrizes modernizantes
das políticas públicas ou mediante as atitudes preservacionistas das unidades de
conservação) ou do capital privado (através da mercantilização dos seus bens co-
muns), fortalecem-se pela negação/deslegitimação dos saberes comunitários.
As dicotomias acima elencadas (desenvolvido-atrasado, moderno-tradicional,
natureza-cultura, senso comum-conhecimento científico, etc.) são mobilizadas
como forma de reduzir os saberes das comunidades a meros produtos desprezíveis
diante dos desafios do mundo atual. Como expressões de um mundo que não cabe
mais neste mundo, seus saberes deveriam ser substituídos, segundo o pensamento
hegemônico, pelo conhecimento técnico-científico da sociedade moderna, prepara-
do para enfrentar um mundo ávido por eficiência, rapidez e sofisticação tecnológi-
ca, supostamente capaz de reduzir os problemas a soluções padronizadas.
Em função desse corolário duplo, a forma em que são abordados e considera-
dos os saberes dos povos e comunidades e as estratégias de produção dos mes-
mos não são questões secundárias, nem muito menos. Significam uma toma de
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posição, a construção de um lugar de enunciação que leva a considerar a dimensão
epistêmica dos processos de dominação, mas também dos processos de resistên-
cia e da construção de outras possibilidades societárias. A maneira em que os
próprios povos e comunidades tradicionais incorporam essa dimensão epistêmica
na gramática dos conflitos que enfrentam, ainda não faz parte do que os textos do
livro refletem, apenas se intui como caminhos para continuar em frente. Quem sabe
em um próximo livro?
No entanto, essa percepção nos remete à segunda pergunta que encabeça esta
parte II da apresentação e que serve como provocação para problematizar o papel
da construção dos saberes na criação de uma rede de povos e comunidades tradicio-
nais no Paraná e Santa Catarina: como socializar esses saberes das comunidades?
Após a leitura dos textos que compõem este livro resulta evidente que não
existem convergências definitivas, nem filiações teórico-metodológicas unívocas,
apenas a construção de uma reflexão coletiva, um lugar comum de enunciação que
envolve também as comunidades que participam da Rede Puxirão de Povos e Co-
munidades Tradicionais e que versa sobre: as formas em que se constroem e se so-
cializam as identidades coletivas; e os modos em que se apresentam e se estruturam
os conflitos territoriais, assim como as consequências que provocam.
Portanto, um dos desafios que agrupa estes trabalhos, consiste em que, sem es-
conder, nem substituir as vozes das comunidades, os autores consigam se somar
aos relatos comunitários de desafios cotidianos, reivindicações frente aos poderes
públicos ou reconstrução de um passado comum que não se descarta para pensar
o futuro.
Ainda que, sem decálogos nem cartas de intenções explícitas, alguns dos
caminhos percorridos em comum e que, acima de tudo, provocam encruzilhadas
mobilizadoras mais do que oferecem certezas complacentes são: as formas de
aproximação às comunidades, a relação que se estabelece com as mesmas, o equilí-
brio sempre em tensão que o conhecimento do real junto às comunidades e as pos-
sibilidades da teoria provêm.
Assim, nesse assumir que mais se tateia do que se avança a passo firme, começam
a se configurar então aproximações e distanciamentos epistêmicos na hora de pen-
sar e dialogar sobre as práticas, os conflitos e as identidades dos povos e comuni-
dades tradicionais do Paraná e Santa Catarina, os sujeitos protagonistas deste livro.
Talvez não seja muito por enquanto, mas nessas incertezas se configura também
um alerta face às formas em que os saberes das comunidades são apresentados fora
das comunidades, seja nos espaços acadêmicos, nos ligados aos poderes públicos
ou como conhecimento que a iniciativa privada possa aproveitar.
Por adotar o conhecimento construído por esses grupos o caráter de um bem
comum que se constrói e se utiliza de forma comunitária, sua apropriação de forma
individual significa uma violência. A socialização desse conhecimento deve se colo-
car o desafio de ampliar e não desvirtuar esse caráter de bem comum. Por isso,
todas as precauções são poucas na hora de decidir junto às comunidades com quem
se estabelecem relações sociais de pesquisa quais são as questões que podem ser
socializadas e como utilizar esses conhecimentos.
Seguramente, a especificidade e a diversidade dos saberes e das comunidades
inviabiliza ex ante qualquer pretensão de uma deontologia estrita e universal sobre
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a socialização desses conhecimentos, no entanto, das práticas habituais de pesquisa
que se podem observar, várias afrontam a importância de considerar a relação es-
treita entre o saber como bem comum e a comunidade que ao mesmo tempo em que
o cria e o cuida, se cria e se cuida. Por exemplo: a falta de retorno que as pesquisas
feitas sobre povos e comunidades tradicionais oferecem aos mesmos; a falta de con-
sulta prévia com o grupo sobre o que a pesquisa pretende divulgar; outorgar o papel
de mero objeto de pesquisa a(s) comunidade(s) estudada(s), roubando-lhe(s) seu
papel ativo e insistindo nesse trejeito residual de um positivismo científico desfo-
cado; a mercantilização dos saberes conhecidos durante as pesquisas na comuni-
dade, como uma “epistemopirataria” espúria que possa se voltar contra ela, seja via
expropriação dos bens comuns, seja fortalecendo novos mecanismos de subalterni-
zação; legitimar qualquer utilização dos saberes comunitários em função de um
desenvolvimento abstrato que melhoraria abstratamente a vida das comunidades e
da sociedade em geral (este aspecto será ampliado na sequência, na parte III desta
apresentação)...
A lista não se fecha aqui, nem pretende ser mais do que um alerta sempre
necessário na prática autorreflexiva dos pesquisadores que entram em contato com
a riqueza de conhecimentos que acumula uma comunidade tradicional. No fim das
contas, trata-se de lidar de igual a igual com o saber do outro, com a construção
epistêmica do outro que desafia a própria construção epistêmica.
III
Essa parte final da apresentação está dedicada a outro grande eixo de problemáti-
cas que os textos deste livro escancaram: os conflitos do desenvolvimento que os
povos e comunidades tradicionais sofrem. Um texto atrás do outro, percebe-se que
as práticas, conflitos e identidades que fazem parte da construção epistêmica desses
grupos enfrentam/padecem a poderosa construção epistêmica do desenvolvimento
com seus discursos, práticas e institucionalidade.
A ideia de desenvolvimento na sociedade atual está atrelada a um imaginário de
crescimento infinito, a práticas que sustentam a reprodução, cada vez mais rápida e
mais ampla, do capital e à formação de uma institucionalidade de controle cada vez
mais poderosa. Longe de qualquer reminiscência de um ideal de melhora da quali-
dade de vida geral, o desenvolvimento realmente existente se constitui como uma
estratégia de controle e de acumulação de capital cujo papel consiste em simplifi-
car a complexidade social a alguns parâmetros que supostamente identificam “uma
vida melhor”. A educação reduzida a anos de escolaridade formal, uma vida com
saúde simplificada no número de anos que se espera viver ou a satisfação de uma
vida plena condicionada à renda que uma pessoa possui, são algumas das formas
de resumir e dirigir o que entendemos pela sempre positivada e autorreferenciada
ideia do desenvolvimento.
No entanto, décadas de fracassos dos programas de desenvolvimento auspicia-
dos pelas instituições internacionais de controle, assim como do desenvolvimento
espontâneo prometido pela “mão invisível do mercado” mostram como a padro-
nização que o desenvolvimento empreende não incorpora, nem muito menos, as
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diversas possibilidades de inserção social e de uma vida repleta de sentidos.
As formas com que o desenvolvimento se apresenta e se impõe, às vezes como
mal menor e necessário, às vezes como melhor dos mundos possíveis, mas sempre
como única opção no “mundo possível” são diversas: substituição de mata nativa
por plantações industriais de árvores ou de policultura camponesa pelas monocul-
turas do agronegócio; instalação de megaempreendimentos (estradas, portos ou
barragens) que aceleram a reprodução de um capital que nunca distribui suas be-
nesses de forma equitativa; universalização de uma educação formal sem quali-
dade ou medicalização de um atendimento sanitário excludente em sua prática;
generalização do consumo de bens que apenas satisfazem momentaneamente o de-
sejo imediato e compulsório de consumir e não a satisfação ampla de necessidades
(alimentação ou moradia, mas também de participação, proteção ou identidade)...
O desenvolvimento se constitui assim em medida e objetivo de todas as coisas
e sujeitos. Apesar de expressar uma ideia poderosa, o desenvolvimento nasce da
cultura moderno-ocidental, masculina, branca e cristã na sua fase de domínio de
um capitalismo de reconstrução de pós-guerra no sistema-mundo, portanto, trata-
se de uma ideia parcial que não incorpora, nem muito menos, a diversidade de
formas de pensar e de viver que o mundo alberga.
No final da 2ª Guerra Mundial e frente ao duplo desafio de, primeiro, reerguer
a economia e a sociedade europeias, e depois de enfrentar os desejos de descoloni-
zação na África e na Ásia, já em um mundo bipolar, o desenvolvimento se institu-
cionaliza como uma estratégia geopolítica de incorporação dos anseios de melhoras
das populações por dentro do que seria o campo capitalista, diante da ameaça de
um socialismo real que fazia promessas de um mundo menos desigual e sem explo-
radores.
O American way of life que serviu naquele momento como linha que dividiria os
desenvolvidos dos subdesenvolvidos, hoje se naturalizou definitivamente e se com-
plexificou. Porém, continua sendo uma ideia alheia para muitos que, no entanto,
se erige na medida de tudo. Independentemente das especificidades históricas e
espaciais, os diferentes grupos sociais têm que enfrentar uma poderosa constelação
semântica, de práticas e de instituições que promovem como uma missão evange-
lizadora a ideia da supremacia e da bondade do desenvolvimento, que se expressa
com múltiplas faces, atreladas a um núcleo duro de controle social e acumulação do
capital: eficácia econômica; aceleração dos processos de mudança social sem rumo;
impulso modernizador incutido na prática do Estado; papel protagonista da ciência
e da tecnologia; liberdade formal; concorrência; aumento indefinido da produção e
do consumo; alimentação, educação, saúde e acesso à moradia padronizadas mun-
dialmente, entre outros.
Como a modernidade anunciadora do progresso e da liberdade que leva sem-
pre atrelada uma colonialidade que subalterniza e explora o outro (aquele não su-
ficientemente moderno), assim também, a promessa do desenvolvimento sempre
está acompanhada da destruição, da homogeneização e da ampliação das diferen-
ças que o crescimento nessa sociedade capitalista provoca. Como duas caras de uma
mesma moeda.
Essa releitura pouco complacente do desenvolvimento não se constrói apenas
no abstrato de uma filiação teórica determinada, reflete a forma em que os povos e
17
comunidades tradicionais são atingidos pela missão desenvolvimentista. Os textos
deste livro, explícita ou implicitamente, revelam como nas suas diversas modali-
dades o desenvolvimento impacta as comunidades gerando conflitos: conflitos do
desenvolvimento. Cada comunidade conta sua particular relação com esse desen-
volvimento que se imiscui nas suas práticas, que questiona suas identidades e nega
seu cotidiano em prol de uma teleologia associada a um fundamentalismo do pro-
gresso e, como a outra cara da moeda sempre presente, da própria dissolução.
Se acima foi considerado como núcleo duro do desenvolvimento, a dupla face
de controle social e acumulação do capital, nesse momento parece interessante
diferenciar as diversas formas em que o desenvolvimento se apresenta no dia a dia
dos povos e comunidades tradicionais do Paraná e Santa Catarina, na tentativa de
conhecer as modalidades diferenciadas de conflitos que cria. Porém, mais do que
uma classificação, trata-se nesse momento apenas de oferecer um panorama que
permita reconhecer a estreita ligação entre uma parte importante dos problemas
que enfrentam as comunidades tradicionais em função do discurso, das práticas
e da institucionalidade estreitos, impositivos e descentrados do desenvolvimento.
No fim das contas o desenvolvimento não é mais que uma construção epistêmica da
sociedade moderno-ocidental-masculina-branca-cristã que hierarquiza os saberes
dos outros como não saberes, apenas como folklore ou como ideias frágeis e descar-
táveis.
Um dos principais problemas que os povos e comunidades do Paraná e San-
ta Catarina enfrentam se refere à disputa territorial que significa a execução de
megaempreendimentos nas suas terras. No caso dos grupos retratados neste livro,
temos a construção da Usina de Itaipu e as consequências que provocou o alaga-
mento do seu reservatório, expulsando os ilhéus que moravam às suas margens e
nas ilhas do Rio Paraná que foram cobertas pelas águas e que até hoje demandam
uma saída justa para essa situação. Também podemos considerar dentro desse tipo
de empreendimento desenvolvimentista de grandes dimensões, macro, a expansão
das monoculturas de eucalipto em terras dos camponeses de Imbaú-PR, eliminan-
do a policultura, reduzindo a quantidade disponível de água e roubando até o sol
necessário para que as colheitas de alimentos das comunidades rurais do municí-
pio vinguem. A construção da fábrica de cimento da Votorantim no território dos
agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira (Imbituba-SC) seria
igualmente um exemplo de como o desenvolvimento de enormes dimensões e im-
pactos conflita na hora de disputar o mesmo território eliminando as terras onde se
planta mandioca e se aproveita o butiá.
Deve-se destacar que a assimetria de recursos financeiros, de apoio institucional
e de legitimidade diante da sociedade da escassez forçada em que vivemos é mani-
festa e que as possibilidades dos direitos territoriais e de vida que essas comuni-
dades conseguem fazer valer são mínimos e insuficientes, o que provoca a expulsão
e, acima de todo, a invisibilização do grupo e o silenciamento das suas demandas e
dos mais básicos direitos sociais. O desenvolvimento macro também provoca con-
flitos macro.
Com efeitos menos espetaculares, mas não menos impactantes nos povos e
comunidades tradicionais, o desenvolvimento incutido nas políticas públicas
modernizadoras das formas de vida das classes desfavorecidas apontam para outras
18
formas de desapropriação e de conflitos na implementação do desenvolvimento.
Trata-se de um desenvolvimento micro, dedicado a um público específico (agricul-
tores familiares, povos e comunidades tradicionais, etc.) e centrado na superação
da pobreza e na inclusão das classes marginalizadas. São, por exemplo, políticas
públicas de financiamento da agricultura familiar que obriga aos beneficiários a
adotar as mesmas formas de produção do agronegócio de grande escala (sementes
melhoradas, agrotóxicos, etc.) ou programas de modernização da frota pesqueira
mediante empréstimos. Estas políticas incorporam esses grupos em dinâmicas de
um mercado que afunila o sucesso de poucos. Na maior parte das circunstâncias,
a vantagem de um empréstimo para modernizar a produção significa o fracasso
de não se adaptar à lógica mercantil exigente e seletiva, o que pode até chegar a
expulsar o beneficiário (faxinalense, pescador artesanal, quilombola, etc.) de sua
comunidade por não poder cumprir com as condições desse empréstimo.
As diferentes formas de turismo no meio rural, na natureza ou comunitário,
nas suas expressões normalmente exógenas ao controle dos povos e comunidades
tradicionais e reificadoras de seus costumes também provocam impactos ligados
a um desenvolvimento micro. Até o turismo comunitário realmente existente, sig-
nifica na prática uma alteração das formas de vida, fora do controle dos supostos
beneficiários (as comunidades), que nem sempre se compensa com uma fonte de
renda durável e que traga uma qualidade de vida significativa.
A insistência do Estado em converter esses grupos em um outro modernizado,
em mercantilizar suas formas de vida para vendê-las aos turistas ou em reduzir
seus múltiplos significados a um folclore de museu, mostra a preponderância da
estratégia de controle social que o desenvolvimento possui. Se o desenvolvimento
macro agudizava a face de acumulação do capital, o desenvolvimento micro parece
impulsionar acima de tudo formas de ordenamento social em que a racionali-
dade hegemônica moderno-ocidental se instala como alternativa sem alternativas.
Qualquer outra forma de pensar e construir o mundo se descarta por irracional,
impossível ou irrelevante.
O desenvolvimento sustentável, última dessas tipologias do desenvolvimento
que estão sendo consideradas por mostrar elementos importantes dos conflitos que
as comunidades enfrentam, representa paradigmaticamente um desenvolvimento
micro que de forma sutil confronta os grupos com a expropriação ou com mudanças
radicais nas suas formas de vida.
Diante dos evidentes limites naturais, o capital da reprodução sem limites en-
controu uma saída mais discursiva do que efetiva no desenvolvimento sustentável.
Para conservar a lógica e as formas de reprodução do capital era imprescindível
incorporar minimamente uma preocupação com os recursos naturais e uma
preservação de suas fontes. Nesse sentido, e simplificando em função dos objetivos
deste texto, se instalou uma lógica tão publicitada como ilógica: a poluição e o con-
sumo voraz de recursos naturais a escala planetária poderia ser compensada com a
criação de unidades de conservação locais onde ter um cuidado maior desses recur-
sos, expulsando as populações que ali viviam ou limitando suas práticas.
Os conflitos do desenvolvimento que o desenvolvimento sustentável provoca são
especialmente observados nos casos de ilhéus e pescadores artesanais. A criação
do Parque Nacional de Ilha Grande no caso dos primeiros e do Parque Nacional do
19
Supergüi no caso dos segundos mostra como as populações que contribuíram com
manter a biodiversidade em seus territórios são penalizados, expulsos ou cerceados
nas suas práticas em prol de uma sustentabilidade de fachada que não coloca em
questão as verdadeiras causas dos problemas ambientais do mundo.
Aparentemente se trata de empreendimentos com fins tão louváveis como o cui-
dado do meio ambiente, mas quando enfrentados com as práticas tradicionais das
comunidades e com o tratamento de bens comuns que as comunidades geralmente
oferecem para os bens naturais dos seus territórios se percebe a irracionalidade de
um desenvolvimento que mais disciplina do que avança na melhora das condições
de vida da sociedade em geral e dos povos e comunidades tradicionais em particu-
lar.
O desenvolvimento, macro ou micro, desativado de sua representação habitual
carregada de legitimidade e de positividade, mostra sua face mais sombria. Os con-
flitos que se observam quando o lugar de enunciação se aproxima de quem padece
o desenvolvimento como violência material e epistêmica, neste caso os povos e
comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que revelam a espoliação e a ex-
pulsão que acompanha ao empreendimento desenvolvimentista, também mostra
seu absurdo como projeto de socialização, como um dos princípios fundamentais
da sociedade atual.
***
Esta longa apresentação acabou misturando “o que é” dos textos que compõem
o livro e o “que ainda não é” do grupo que os escreveu e que se tenta entender como
“identidades coletivas e conflitos territoriais”. Entre os ecos dos trabalhos do livro
(trabalhos comprometidos com uma realidade complexa e uns sujeitos em luta por
seus direitos e pela defesa de sua autonomia nos territórios que tradicionalmente
ocupam) e os ecos das práticas dos pesquisadores que assinam os textos (práticas
de longo prazo e proximidade com o que contam) a apresentação foi se conver-
tendo, não apenas na descrição do realmente existe, mas também um desiderato
para pensar a continuidade dessas práticas de pesquisa junto aos povos e comu-
nidades tradicionais do Paraná e Santa Catarina que têm desafiado todas as coisas
em contra para pensar outras formas de pensar o que significa o desenvolvimento,
a organização social, a construção dos saberes, o território e a vida.
Uma lutadora incansável pela visibilização dos conflitos dos povos originários e
camponeses em Argentina e em América Latina em geral, quando se refere ao papel
dos pesquisadores nas relações sociais de pesquisa que constroem, afirma com con-
tundência e como quem lança um desafio: “escrever com eles e não sobre eles”4. O
conjunto de textos e de autores que se reúnem neste livro como ao redor de um fogo
para escutar e contar histórias de sempre, mas também histórias atuais, refletem
esse desafio. Um desafio que se “ainda não é” em todas suas premissas e consequên-
cias, se pensa como caminho possível para perceber e acompanhar a alegre rebeldia
e a tenaz resistência de formas sociais que colocam a vida plena em primeiro lugar.
4 Norma Giarracca, professora da Universidad de Buenos Aires e coordenadora do Grupo de Estudios de los Movimien-
tos Sociales de América Latina (GEMSAL).
20
Narrativa sobre a sistematização das experiências da Rede
Puxirão de Povos e Comunidade Tradicionais
José Carlos Vandresen5
Rafael Palermo Buti6
Roberto Martins de Souza7
Resumo
21
Puxirão os indivíduos acionam suas identidades coletivas, constroem o reconheci-
mento formal dos coletivos sociais perante o mundo. O tema do reconhecimento
formal passa necessariamente pelo tema e pelo dilema da identidade coletiva. Estão
como que imbricados, fazem parte de um mesmo e único fenômeno: a busca pela
visibilidade, pelo direito, pela necessidade de mostrar ao mundo sua singularidade.
O projeto da sistematização teve como foco os processos de articulação e ex-
periência em rede dos Povos e Comunidades Tradicionais no reconhecimento for-
mal e elaboração de políticas públicas. Estruturamos as vivências e oficinas de sis-
tematização a partir de dois eixos, a saber: aquele que deu conta do processo de
mobilização dos povos e comunidades tradicionais mediante uma identidade cole-
tiva (os históricos, tanto de envolvimento dos grupos com a Rede Puxirão quanto
de formação da própria Rede, seu funcionamento e organização); e aquele que deu
conta das relações estabelecidas com o Estado, os avanços e obstáculos gerados
nessa relação.
Uma vez que reconhecimento formal e identidade coletiva caminham juntos,
pois implicados em um movimento singularizador, foi-nos importante refletir e
melhor problematizar sobre os modos como estas lideranças, que representam gru-
pos e coletivos sociais, formam, pensam, concebem e representam as identidades
coletivas de suas comunidades articuladas no espaço de uma Rede de Povos e Co-
munidades Tradicionais.
A primeira parte dos trabalhos de sistematização foi feita tendo como preocu-
pação esta dimensão: saber o quão a Rede Puxirão possibilitou a produção de novos
sujeitos políticos articulados mediante uma identidade coletiva e o quão estes novos
sujeitos políticos possibilitaram a articulação da Rede Puxirão. Em suma, procura-
mos discutir e problematizar como estes grupos, a partir de suas identidades cole-
tivas, se articulam na, e articulam a Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradi-
cionais.
Para isso elaboramos uma oficina, a Linha do Tempo, que nos permitiu visualizar
a caminhada das lideranças, lugares, demandas, lutas e conflitos dos grupos. Com
a Linha do Tempo, buscamos resgatar o vivido, mapear os percursos de cada indi-
víduo e coletivo social, evocando o “tempo dos antigos”, seus conflitos, assim como
as “boas lembranças”, percebendo sempre o caminho das estratégias destes sujeitos
em relação à outras configurações sociais e ao Estado.
Uma vez mapeado o processo de articulação, mobilização e reconhecimento, em
rede dos povos e comunidades tradicionais, foi importante inquirir sobre os novos
tipos de relações que estas articulações geram entre os Povos e Comunidades Tradi-
cionais e as instituições, secretarias, autarquias, fundações e órgãos dos poderes
públicos, responsáveis pela garantia e preservação dos direitos demandados. Em
outras palavras, no plano jurídico e político, as comunidades tradicionais tiveram
avanços e obstáculos neste percurso.
Importa frisar também que o ato de sistematizar o conhecimento sempre es-
teve presente nas práticas diárias e coletivas da Rede Puxirão. Muitas são as cartas
oficiais, os panfletos, os periódicos, as cartografias e as assinaturas já produzidos
que condensam e sintetizam um enorme conjunto de informações e reivindicações
sobre os movimentos e encontros que a Rede fez gerar, mover, ativar, informar e
provocar.
22
Em suma, na caminhada, buscamos refletir sobre a caminhada, agir sobre ela, e
é justamente a isso que se presta um trabalho de sistematização: apreender e fixar o
fluxo do vivido, e transformá-lo em objeto de reflexão crítica. É neste movimento, o
de transformar o sujeito da ação em objeto de reflexão, que o trabalho de sistemati-
zação de experiências se pretende uma ferramenta importante para a própria ação
(HOLLIDAY, 1996).8
Por andarem juntas, as lutas pela afirmação e reconhecimento da identidade
coletiva e direitos étnicos, que pensamos que estes dois eixos dão conta de nossa
preocupação maior, de nosso foco, que é a experiência social da articulação em rede
destes grupos sociais na busca pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e a
efetivação das respectivas políticas públicas.
Tudo o que será exposto ao longo do texto tem como base as oficinas, entrevis-
tas, conversas informais, bate-papos, rodas de conversa, vivências, entre outros,
experimentadas no espaço da Rede Puxirão. Falemos, portanto, um pouco da Rede
Puxirão e do muito que ela é.
23
À época do projeto da sistematização, as tarefas e ações da Rede estavam dis-
tribuídas em coordenações, secretarias e setores, dentre as quais:
- Coordenação Executiva: responsável pela articulação e ação política da Rede,
cujo papel era realizar as estratégias e tarefas de representação e negociação junto
aos órgãos do Estado e a relação com outros movimentos sociais;
- Secretarias: responsáveis pela assessoria técnica (elaboração de projetos e cap-
tação de recursos), política (articulação da Rede com as comunidades em vistas a
demanda por direitos), jurídica e de comunicação;
- Setor financeiro: responsável pela administração financeira e contábil dos pro-
jetos da Rede.
Os encontros entre os membros da Rede Puxirão seguiam um calendário especí-
fico, oficializado no início de cada ano: havia a Reunião Mensal (somente da coorde-
nação executiva); a Reunião Bimestral, ou Reunião da Equipe (formada pela Rede
Puxirão e por outros movimentos sociais, cuja finalidade é planejar as ações entre
todos os representantes dos movimentos sociais envolvidos na Rede); e a Reunião
Trimestral, ou Reunião Ampliada (realizadas nas comunidades com o objetivo de
conhecer a realidade social das comunidades envolvidas)10.
A Rede Puxirão, portanto, estava apoiada em instituições formais para viabilizar
seu funcionamento, sem ser, necessariamente, ela mesma, uma instituição formal:
mas um espaço de articulação e formação, um encontro entre diferentes grupos
étnicos da sociedade para lutar pela efetivação das políticas públicas e direitos fun-
damentais dos povos e comunidades tradicionais participantes, um espaço forta-
lecedor do poder de negociação com representantes do poder público.
No que trata da relação com as instituições de pesquisa, desde sua formação,
a Rede dialoga com o Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades
Tradicionais do Brasil (PNCSA), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em So-
ciedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM), tendo por objetivo a realização de cartografias sociais. Mais do que exer-
citar uma nova cartografia, tal pesquisa tem estimulado processos organizativos
associados ao autorreconhecimento e reconhecimento público da existência cole-
tiva desses grupos sociais. Outro importante parceiro da Rede puxirão foram os
projetos e pesquisadores vinculados ao curso de Geografia da Universidade Federal
do Paraná (UFPR).
A inserção da Rede Puxirão no projeto da Nova Cartografia Social permitiu a
abertura de um diálogo entre as diversas comunidades tradicionais no âmbito na-
cional, possibilitando a autonomização dos movimentos sociais. Sete foram as co-
munidades ligadas à Rede Puxirão já contempladas pelo projeto, o que mostra o
nível de engajamento e avanço de seus membros na luta reivindicatória pelos direi-
tos das comunidades tradicionais.
Neste percurso de quase três anos de envolvimento com o Projeto da Nova
Cartografia Social, foram realizados diversos fascículos11 de povos e comunidades
tradicionais participantes da Rede, interessados em qualificar suas formas organi-
zativas e repensar o padrão das relações políticas internos aos grupos, bem como as
10 Ver em anexo as tabelas elaboradas no planejamento da Rede para 2010.
11 Entre 2006 e 2011 foram realizados 4 fascículos da Série Faxinalenses no Sul do Brasil; 1 Fascículo dos Ilhéus do
Rio Paraná, 1 Fascículo dos Pescadores Artesanais; 3 Fascículo dos Quilombolas, além de 1 Mapeamento do Social dos
Cipozeiros e Cipozeiras e 1 Boletim Informativo das Benzedeiras na Região Centro Sul do Paraná.
24
estratégias de negociação12 com o Estado.
O espaço da sistematização
25
discutiam aspectos da realidade de cada grupo e setor, os andamentos de pautas
reivindicatórias, análise de conjuntura, além do encaminhamento das propostas e
projetos para os poderes públicos. No contexto do projeto de sistematização, a Rede
Puxirão se inserida em algo que não estava a ela circunscrito: pois compunha uma
equipe, sendo um pedaço, portanto, da diversidade. Contemos um pouco sobre a
história deste encontro da diversidade.
26
pos que passam a esboçar um novo padrão de relações políticas com o Estado.
Estas identidades sociais emergem em um contexto no qual a luta pelo direito à
terra está ligada aos modos específicos e tradicionais de sua ocupação, aquilo que
o antropólogo Alfredo Wagner (2006)16 chamou de “territorialidades específicas” e
“existência coletiva” em torno de uma identidade étnica.
A Rede Puxirão, ao compor um destes setores, atuava na Equipe, influenciando e
sendo influenciada política e metodologicamente por ela. Sua especificidade decorre
justamente do fato de se tratar de grupos que evocam identidades emergentes, com
características culturais singulares e modos específicos de territorialidade. A luta
pela manutenção deste ambiente está ligada à luta pela vida, pela reprodução de um
modo próprio de ser e estar no mundo. E isso significa essencialmente lutar pelo
direito aos usos tradicionais da terra, usos estes que não necessariamente seguem a
lógica do capital (especulativa e da propriedade privada) sobre ela.
O uso tradicional da terra diz respeito, portanto, à lógica central dessa diversi-
dade social: seja o gado criado em sistema comum pelos faxinalenses; seja o direito
ao livre acesso dos cipozeiros e benzedeiras ao cipó e às plantas de cura, seja a luta
dos pescadores de Superaguí pelos espaços que permitam a pesca artesanal, seja
a luta contra a intolerância religiosa por parte dos grupos ligados às religiões de
matriz africana, enfim, todas essas diferentes demandas dizem respeito aos modos
tradicionais de viver, de criar e de existir.
É isso o que consiste a Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais. Um
movimento que articula diferentes modos de ser e estar no mundo, e a partir desta
articulação permite agregar o valor do direito à existência destes diferentes modos
de existir socialmente. Essas diferenças, mobilizadas e articuladas em rede, ao seu
tempo e maturidade política, provocam os órgãos públicos a se posicionarem, pres-
sionam as velhas categorias do Estado a se transformarem.
É esta a finalidade da Rede Puxirão: uma vez que o reconhecimento formal des-
tas comunidades seja alcançado, novos padrões de relações político-organizativas
são estabelecidos com o Estado. E uma vez formados, políticas públicas que con-
templem o direito à diferença são demandadas, discutidas e promulgadas17: novos
decretos, novas portarias, novas resoluções, passam a fazer destas comunidades
tradicionais, agora na condição de sujeitos de direito.
Para entender melhor a atuação da Rede Puxirão é necessário desenhar em
que contexto da política nacional para as comunidades tradicionais ela se insere.
Sabemos que, se os encontros introdutórios entre aqueles três movimentos sociais
históricos (MST, MMC e MAB) possibilitaram a emergência de novos protagonistas
e a criação do que hoje conhecemos como Rede Puxirão, importante salientar que
tudo isso está em relação a um contexto maior de lutas e conquistas acumuladas
ao longo de décadas pelos movimentos que se organizam na categoria das comuni-
dades tradicionais, e que encontram espaço para expansão de seus direitos a par-
tir de 2003. Vamos ao contexto, é ele quem nos melhor fará entender a emergên-
cia deste fenômeno que atende pelo nome Rede Puxirão de Povos e Comunidades
16 Almeida, Alfredo Wagner B. de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais
e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas”. Manaus: FUA, 2006.
17 Ver Lei 15.673 que dispõe sobre o autorreconhecimento dos faxinalenses e seus acordos comunitários, ou as Leis
municipais aprovadas pelos movimentos faxinalenses e benzedeiras nos municípios de São Mateus do Sul, Rebouças, Rio
Azul, Pinhão, Antonio Olinto e São João do Triunfo.
27
Tradicionais.
18 Dentre os movimentos sociais com maior capital político que se engajaram nessa conquista foram o Conselho Na-
cional dos Seringueiros – CNS, a Comissão Nacional das Comunidades Quilombolas – CONAQ e o Movimento Inter-
estadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB compõe os grupos que atuaram diretamente na construção dessa
política pública.
28
públicos (como o IAP, o INCRA e o SEED19), visando o atendimento e execução da
legislação federal e estadual. Essas afirmações sociais e políticas fizeram consonân-
cia com a tônica dos relatos e manifestações empreendidas em razão do lançamento
da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos e Comunidades Tradicionais que reuniu
mais de 600 representantes desses grupos étnicos na Assembleia Legislativa do
Estado do Paraná, no dia 29 de abril de 2009.
Visando suprir a fragilidade dos marcos legais que garantam direitos aos povos e
comunidades tradicionais no Estado do Paraná, bem como reforçar os já existentes
no plano nacional, surgiu a proposta de elaboração da Política Estadual de Povos
e Comunidades Tradicionais, em audiência pública realizada na ocasião do lança-
mento da Frente Parlamentar. Para tanto, neste momento foi acordada a necessi-
dade de constituir um grupo de trabalho com representantes de comunidades tradi-
cionais e órgãos do governo Estadual com a finalidade de preparar uma Minuta de
Decreto Estadual que dispusesse sobre a criação da Comissão Estadual de Povos
e Comunidades Tradicionais, tendo como um dos seus objetivos a elaboração da
Política Estadual para esses grupos sociais.
Todas essas ações foram resultado de um acúmulo de forças entre uma demanda
que diz respeito às comunidades localizadas em todo o território nacional e uma
demanda das próprias comunidades situadas no Paraná que, a cada ano, passaram
a se mobilizar e mobilizar outras, gerando a possibilidade de proposições no plano
político paranaense. Uma rede maior, portanto, implicada nas demandas de uma
Comissão Nacional para os povos e comunidades tradicionais, em relação a uma
rede menor que, articulada na Rede Puxirão, reivindicava a efetivação de uma Co-
missão Estadual e criação de política voltada aos povos e comunidades tradicionais
paranaenses. Parafraseando José, um dos agentes mediadores vinculados à Cempo:
É neste contexto que muitas pessoas, que representam grupos sociais historica-
mente marginalizados, passam a agir em rede, a encarnarem a existência coletiva
de suas identidades emergentes: quilombolas, faxinalenses, ilhéus, cipozeiros, ben-
zedeiras, religiões de matriz africana, pescadores artesanais, passam a existir en-
quanto sujeitos de direito, sujeitos que não somente se fundamentam em direitos
já estabelecidos (como a Constituição Federal de 1988, a convenção 169 da OIT
e o decreto 6040/2007), mas que passam a participar da criação e elaboração de
leis, decretos, resoluções, portarias, fiscalizações para a preservação de seus modos
específicos de reprodução física e social.
Ou seja, uma luta que se inicia de modo atomizado se transforma em mobili-
zação coletiva. Esta mobilização, uma vez que galga visibilidade, tenciona o Estado
ao reconhecimento. Uma vez que o Estado a reconheça, abre-se a necessidade do
diálogo. E uma vez que o diálogo se torna possível há participação ativa na elaboração
e proposição de políticas públicas que garantam os direitos demandados. A questão
é saber até que ponto este diálogo entre Estado e Rede Puxirão tem realmente pos-
19 O IAP é o Instituto Ambiental do Paraná. O INCRA é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O SEED
é a Secretaria de Educação do Estado do Paraná.
29
sibilitado a efetivação de políticas públicas para as comunidades tradicionais.
30
Se trata da “descoberta” desses sujeitos de sua identidade coletiva, que possi-
bilita que eles continuem sendo o que sempre foram. Essas identidades “emergem”
porque estavam “imersas”. Dona Ana, Benzedeira, nos disse, em uma das oficinas
de sistematização, algo bastante ilustrativo sobre esta “emergência”: “a prática
das benzedeiras sempre existiu, estamos valorizando, mapeando, no movimento,
para criar a Rede.” (11/10/2010).
Portanto, a Rede acelera o processo de emergir e visibilizar, num movimento
singularizador de publicização e evidência social. As oficinas para sistematização
indagaram sobre o fenômeno da emergência das identidades coletivas inseridas na
Rede. Uma questão central, colocada por nós, e que nos permitiu boas reflexões, foi
essa: “o que é identidade coletiva?”; ou, “o que significa ser faxinalense, cipozeira,
quilombola, benzedeira?”
Por exemplo, assim como nos casos do faxinalense Hamilton e do ilhéu Tavares,
se hoje eu pergunto para Mariluz o que ela é, ela vai dizer que é quilombola. Se eu
pergunto pra Dona Maria o que ela é, ela vai dizer que é cipozeira. Se eu pergunto
pro Tarcísio o que ele é, ele vai dizer que é faxinalense. Isto é a identidade deles,
uma identidade que é coletiva pelo fato de ser acionada por um grupo de pessoas
que possui uma trajetória histórica em comum, muitas vezes ligados por vínculos
de parentesco e afeto, bem como por uma memória acerca dos fatores que deter-
minaram suas existências e dos eventos que culminaram em expropriações territo-
riais.
Mas se há 10 anos eu perguntasse pra Mariluz, pra Dona Maria e pro Tarcísio o
que eles eram, eles certamente não responderiam o que hoje respondem. Mas, se
antigamente eles não se diziam quilombolas, faxinalenses e cipozeiros, e hoje se
assumem enquanto tais, isso quer dizer que esta é uma identidade inventada, falsa,
forjada? Certamente não.
Como já mencionado, existe um contexto especial, atual, ligado às políticas for-
mais estatais, que possibilita que Mariluz se diga quilombola, que Dona Maria se
diga cipozeira e que Tarcísio se diga faxinalense. Esse contexto é fruto tanto da
mobilização, a nível nacional, das comunidades que passaram a discutir a questão
da política nacional dos povos e comunidades tradicionais, quanto dos esforços que
os movimentos sociais históricos, mediados pelo CPT, engendraram na região de
Guarapuava desde a década de oitenta, permitindo que esses coletivos reivindi-
cassem, através das categorias identitárias, a condição de sujeitos de direito junto
ao Estado, vis-a-vis ao movimento singularizador mediante a afirmação de uma
identidade coletiva.
O próprio Tavares tem três interessantes definições sobre seu envolvimento na
Rede, por ele colocadas em uma das oficinas: “Eu era pessoa, depois sou o movi-
mento. A nossa identidade sempre existiu, mas estava abafada (...) A partir do
diálogo com o outro é que sabemos quem somos.” (06/10/2009).
Sem dúvida nenhuma essas reflexões militantes nos ajudam a compreender este
fenômeno das identidades emergentes e a importância de uma rede que as arti-
cule. Estas pessoas, que hoje respondem como ilhéus, faxinalenses, quilombolas,
cipozeiros, entre outros, sempre foram o que sua identidade recentemente revela,
mas nunca fizeram disso a bandeira pela luta dos direitos, seja porque ser Ilhéu,
ser Faxinalense, ser Banzedeira, ser Quilombola nunca foram modos de ser bem
31
vistos pela sociedade hegemônica geral, seja porque nunca foram identidades nor-
matizadas e reconhecidas no mundo jurídico, nunca foram sujeitos de pleno direito
diante do Estado.
Podemos dizer que um grande desafio da Rede é o avanço no debate acerca
dos direitos diferenciados. É justamente para mostrar estes impasses que a Rede
Puxirão organizou dois seminários de direitos étnicos que contribuíram para o re-
finamento da questão, em um espaço de diálogos institucionais entre secretarias
do governo, órgãos federais, promotores públicos, deputados estaduais, lideran-
ças comunitárias e agentes mediadores ligados aos movimentos sociais. A própria
Sra. Margit, chefe do Departamento Socioambiental do IAP presente na Reunião da
Equipe de junho de 2010, fez uma importante afirmação:
Isso leva a entender que era preciso mudar a concepção, o discurso e as ações
dos agentes públicos no trato com esses grupos sociais. Nesse campo simbólico,
reconhecer pela identidade específica cada grupo passa a ser o alvo da disputa.
Como afirma Tavares “nossa identidade sempre existiu”, e por não ser reconhe-
cida e valorizada, estava “abafada”. Hoje não está mais. Porque é no “diálogo com
o outro” que juntas, estas identidades abraçam uma causa, uma causa que passa
pela visibilidade e pelo reconhecimento. A “pessoa” Tavares se tornou o “movimen-
to”, um movimento de milhares de Ilhéus, tornando-as, também, movimentos que
movimentarão outras, e assim por diante, criando-se a rede, criando-se em rede.
Roberto, um dos agentes mediadores vinculados a CEMPO, ilustra bem este
fenômeno. Diz ele que: “É no encontro em rede que há o reconhecimento. É no
comum enfrentamento que elas [as comunidades] vão se identificando como rede
(...) O cruzamento das mesmas demandas faz com que eles fortaleçam suas articu-
lações em rede.” (07/04/2009).
O pescador artesanal Samuel também pontuou, em uma reunião do setor, a im-
portância do “diálogo com o outro”:
Tavares também nos diz algo sobre a importância da rede: “Não éramos
legitimados” (...) “hoje estamos mais fortes, mais preparados”. E estar mais forte
é ter credibilidade, é ser ouvido, é ser visto, é ganhar legitimidade, é fazer jun-
to. E fazer junto não é esperar que os governantes, as secretarias e os órgãos do
governo elaborem a política estadual dos povos e comunidades tradicionais. Não! A
reclamação das lideranças comunitárias é que o diálogo com o Estado está sempre
32
orientado pelo próprio Estado.
A Rede Puxirão sempre se pretendeu o contrário: são as comunidades quem
devem chamar o Estado, coordenar os encontros, e a Comissão Estadual está para
criar este espaço de interlocução entre os povos e comunidade tradicionais e o Es-
tado. Um exemplo destes se deu no encontro com o ITCG (Instituto de Terras, Car-
tografia e Geociências do Paraná), no dia 04 de agosto de 2009. Ao falarem dos tra-
balhos do ITCG com as comunidades tradicionais do Paraná, os técnicos do órgão
mencionaram somente os indígenas e os quilombolas. Sobre esse episódio, há um
interessante relato de um dos agentes da Rede Puxirão:
33
Linha do Tempo, assim como outras oficinas e formas de reflexão e construção de
saber coletivos, foi fruto de uma construção datada e com um número específico de
participantes. Embora tais limitações tenham determinado algumas ausências no
gráfico da Linha do Tempo, buscamos, através da narrativa que segue, evidenciar
a importância desses segmentos no cenário dos movimentos sociais paranaenses,
bem como sua relação no espaço da Rede Puxirão.
Para a elaboração da Linha do Tempo, uma linha foi traçada em um quadro-
negro e, a partir dela, foram sendo colocadas as datas e os períodos que represen-
tam momentos marcantes na trajetória de cada grupo social desde seus primeiros
conflitos territoriais e processos mobilizadores. O resultado desta dinâmica está
colocado na imagem que segue.
34
TABELA
35
O propósito desta visualização geral do movimento foi permitir aos agentes a re-
construção da sua própria experiência em conjunto com as experiências de agentes
de outras comunidades. Eles eram provocados a discorrerem acerca dos aconteci-
mentos marcantes da vida de seu grupo, e relacioná-los com os acontecimentos e
momentos da Rede Puxirão e de outros grupos.
Conseguimos mapear o histórico de luta que vai do ano de 1983, com a criação
do Movimento dos Ilhéus, até o ano de 2010, com a lei municipal das Benzedei-
ras. Nossa memória marchou, portanto, ao longo destes 27 anos. Passamos, por
exemplo, pela criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pinhão em 1984,
tivemos conhecimento sobre a criação da APIG (Associação dos Pescadores e Il-
héus da Ilha Grande) em 1997, além da primeira Reunião da Equipe na CPT, em
1995.
Conversamos sobre a primeira reunião do setor, em 2007, mapeamos o início do
resgate das práticas das benzedeiras, naquele mesmo ano, descrevendo o I Encon-
tro Regional dos Povos e Comunidade Tradicionais, ocorrido em 2008. Refletimos
sobre a criação da Federação Quilombola do Paraná, em 2009, além do lançamento
da Frente Parlamentar, dentre outros episódios importantes da trajetória histórica
dos movimentos. O sentido era avançar da existência atomizada para a existên-
cia coletiva objetivada em movimentos sociais, como condição para a formação da
Rede.
De um período ao outro, mapeamos o histórico de luta e conflito de oito grupos
sociais: os Ilhéus, os Quilombolas, os Faxinalenses, as Cipozeiras, as Benzedeiras,
os Indígenas (kaingang e guarani), Pescadores Artesanais e as Religiões de Matriz
Africana. Nossa preocupação era fazer uma relação entre os períodos marcantes
dessas coletividades e os momentos em que passaram a se articular mediante uma
identidade coletiva. Assim, abaixo da linha do tempo marcada no quadro-negro,
colocávamos as datas históricas pontuadas pelos agentes, e acima da linha colocá-
vamos o período em que cada grupo passou a se mobilizar mediante uma identi-
dade coletiva.
Esta dinâmica permitiu às lideranças dos movimentos reflexões bastante inter-
essantes. A partir dos posicionamentos, percebemos que há diferentes tempos de
mobilização dos grupos ao longo do histórico de luta. Há movimentos que são an-
teriores à Rede Puxirão e outros que são posteriores a ela. Estes diferentes movi-
mentos refletem também os diferentes níveis de maturidade política e engajamento
das comunidades em relação às demandas da Rede Puxirão. Pelo tempo na luta
reivindicatória, há movimentos que de algum modo “sustentam” politicamente a
Rede, e que esperam a maturidade dos outros grupos para “caminharem juntos”
em Rede. Há aspectos positivos e negativos neste nivelamento, que pretendemos
explorar adiante.
Falemos um pouco dos movimentos que formaram a Rede, são deles as bases
que traçaram as linhas de ação da Rede Puxirão. Depois falaremos dos movimentos
que entraram na Rede, e que com as outras comunidades compõe a Rede Puxirão
de Povos e Comunidade Tradicionais.
36
Dos que fizeram acontecer a Rede
Os Faxinalenses
37
Segundo o mesmo Tarcísio, foi a APF que iniciou, em 2007, as tentativas, junto
a Assembleia Legislativa do Paraná, da criação da Frente Parlamentar de Apoio aos
Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná. Mas a proposta se efetivou quando
a maioria dos grupos percebeu a necessidade estratégica, o que impulsionou os
faxinalenses a levarem a discussão para outras comunidades tradicionais do Es-
tado.
Como os diálogos iniciais agregavam os grupos dos ilhéus e dos quilombolas,
foram estes três quem formaram as bases para a própria criação da Rede Puxirão,
embora suas estratégias de ação tenham se espelhado apenas no formato do movi-
mento dos faxinalenses (politicamente autônomo) representado pela APF. Com a
adesão de mais movimentos e a oficialização da Rede Puxirão no ano de 2008, no-
vas formas de organização da luta e resistência foram se engajando, sobretudo o
Fórum das Religiões de Matriz Africana e o movimento indígena, representado pela
ARPINSUL (Articulação dos Povos Indígenas do Sul do Brasil).
Foi também o movimento faxinalense quem esteve à frente das discussões sobre
a Política Nacional para os Povos e Comunidade Tradicionais, sendo atualmente
um dos grupos que compõe a Comissão Nacional dos Povos e Comunidades Tradi-
cionais. De um modo bastante claro, os faxinalenses são o grupo que mais avanços
no plano político e efetivo tem alcançado, e por isso, servido de força motriz para os
demais grupos que compõe a Rede Puxirão.
A própria trajetória de reivindicações e conquistas dos faxinalenses já os coloca,
frente aos outros movimentos, como referência quando se trata do reconhecimento
formal dos “acordos comunitários”, priorizando ações de uso comum da terra dos
recursos naturais e sua conservação através da aprovação de leis, à nível munici-
pal e estadual, o que evidencia os consideráveis avanços nas negociações com os
poderes públicos. Ainda que suas demandas territoriais tenham permanecido es-
tagnadas, as políticas de reconhecimento da identidade e das práticas sociais fazem
dos faxinalenses precursores dessas conquistas.
No Paraná, os faxinalenses estão amparados pela lei Estadual 15.673, de novem-
bro de 2007, que dispõe sobre o reconhecimento dos faxinais, dos modos especí-
ficos de sua territorialidade e dos seus acordos comunitários. O processo de auto-
definição coletiva passou a ser formalmente reconhecido pelo Estado do Paraná,
assim como em cinco leis municipais. O direito ao modo de vida faxinalense está
amparado por um documento do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), conhe-
cido por Procedimento Operacional Padrão (POP), criado em outubro de 2009
em vistas a regulamentar sobre o uso das terras tradicionalmente ocupadas pelos
faxinalenses. Tal documento coloca os técnicos do IAP como fiscalizadores do cum-
primento dos acordos comunitários elaborados pelos faxinalenses.20
Embora tais ganhos à nível jurídico (Lei Estadual e o POP) sejam resultado das
reivindicações e lutas da Articulação Puxirão, o reconhecimento formal dos faxinais
(e não dos faxinalenses) diante do Estado é anterior a ela. Data, por exemplo, de
agosto de 1997 a criação do Decreto Estadual n. 3446 que reconhece a existência
“do modo de produção denominado Sistema Faxinal” (cf. decreto n. 3446/1997).
É devido a este reconhecimento que o mesmo decreto cria, para a preservação das
20 A elaboração deste documento foi determinada por constantes pressões da APF junto ao IAP. O evento emblemático
para sua efetividade foi a ocupação da própria sede do Instituto por parte de mais de 100 militantes.
38
populações inseridas neste sistema, as Áreas Especiais de Uso Regulamentado,
conhecidas como ARESUR.
Os faxinalenses também estão amparados por leis municipais, todas elas decor-
rentes das reivindicações mediadas pela Articulação Puxirão, tais quais: as leis
municipais, de Rebouças (n.1.235/2008), de Pinhão (n.1.354/2007), de Antonio
Olinto (n. 1.354/2007) e de São Mateus (n.1.780/2008).
Ante o avanço jurídico e simbólico, os faxinalenses veem poucas conquistas na
criação de ARESUR’s e das Reservas de Desenvolvimento Sustentável – RDS via
ICMBio, enquanto políticas de acesso e controle do território, o que fragiliza as
conquistas anteriores. Soma-se a essas dificuldades a falta de sensibilidade dos
órgãos ambientais (como o IBAMA e a Força Verde) na aplicabilidade de suas leis,
desvalorizando os modos específicos de ocupação territorial faxinalense. Segundo o
faxinalense Hamilton, a discussão sobre legislação ambiental
não deve ser somente sobre as leis, mas sobre a quem se deve
aplicar as leis. O que é e o que não é crime. (...) Os modos de vida
diferentes tem que ter tratamento diferenciado. Para o nosso órgão
[IAP], o porco pode fuçar na água, para a Força Verde isso é crime.
Deve haver diferença no tratamento. O problema não é o porco,
mas a moto-serra do agronegócio. A legislação ambiental é nossa
inimiga. Não foi feita pra pegar a gente, mas pra pegar o grande, o
agronegócio. (Hamilton, 08/06/2010).
Os Ilhéus
39
Conforme os dados obtidos durante a Reunião da Rede foram aproximadamente
dez mil os Ilhéus afetados, direta e indiretamente, pela hidrelétrica. Destes, poucos
ficaram nas ilhas. Muitos saíram sem nenhum amparo do governo, “com uma mão
na frente e outra atrás”, como costumam dizer em várias das reuniões no espaço da
Rede. Aproximadamente dois mil Ilhéus se organizaram para trocar as terras alaga-
das por outras. Destas, trezentas e setenta famílias foram assentadas pelo INCRA.
Dos que ficaram na Ilha, todos foram atingidos tanto pelo decreto federal que
oficializou a criação do Parque Nacional da Ilha Grande, em 1997, quanto pela im-
plementação da Área de Proteção Ambiental Federal dos Rios e Várzeas do Rio
Paraná (APA), ambas sobrepostas às áreas tradicionalmente ocupadas pelos Ilhéus.
Tais normatizações não somente dificultaram a vida dos que estavam na ilha, dada
a impossibilidade de plantio, manejo da terra, pesca, entre outras atividades tradi-
cionais dos habitantes das ilhas, quanto impossibilitaram o retorno daquelas outras
famílias expropriadas no início dos anos oitenta.
A fala de Tavares, principal liderança dos Ilhéus do Rio Paraná no contexto da
Rede Puxirão, ilustra a mobilização do segmento: “Em 1983 nasceu o movimento
dos Ilhéus, e isso é uma identidade. Daí ela se apagou, e depois ela foi crescendo.
Nós, ilhéus, temos três momentos. (Tavares, 06/10/2009).
Este movimento pode melhor ser visualizado no gráfico da Linha do Tempo: o
primeiro momento é o da expulsão e da diáspora dela consequente. O movimento
dos Ilhéus nasce daí, da condição de expropriados. O segundo é o da mobilização
decorrente da oficialização do Parque Nacional de Ilha Grande. Logo após sua
criação, em 1997, os Ilhéus instituíram a Associação dos Atingidos pelo Parque Na-
cional da Ilha Grande (APIG), no intuito de oficializar uma entidade jurídica que os
representasse e que respondesse pelos problemas advindos da criação do parque. O
terceiro é o da inserção dos ilhéus no movimento de povos e comunidades tradicio-
nais, consequência dos diálogos do próprio Tavares, este, a principal liderança do
Ilhéus no âmbito das Reuniões da Equipe.
Como dito, assim como o faxinalense Hamilton, Tavares esteve na primeira Re-
união da Equipe, na condição de Ilhéu morador do assentamento do Candói-PR,
no ano de 2000, e de algum modo encarna o próprio movimento dos Ilhéus no
contexto da Rede Puxirão. Ele foi a via de acesso do movimento dos Ilhéus com a
própria Rede Puxirão, principal articulador do movimento no âmbito do reconheci-
mento formal enquanto comunidade tradicional. O fato, no entanto, de ser Tavares
a única liderança de peso traz algumas fragilidades ao movimento dos Ilhéus no
âmbito da Rede.
De alguma forma a representatividade dos Ilhéus na Rede Puxirão parecia estar
circunscrita aos ilhéus que vivem no Candói-PR, ou seja, aqueles que saíram em
decorrência das enchentes ocasionadas pela hidrelétrica. Este foi, inclusive, um de-
sabafo feito pelo próprio Tavares em uma das reuniões do Setor:
41
sentes na primeira reunião do Setor de Povos e Comunidades Tradicionais, no ano
de 2007.
É válido dizer que a comunidade Invernada Paiol de Telha foi a primeira do
Paraná a receber, no ano de 2005, a certidão de autorreconhecimento enquanto
quilombola, emitida pela Fundação Cultural Palmares. Ou seja, nos primeiros
diálogos entre CPT e a comunidade Invernada Paiol de Telha (datados do início
dos anos noventa) não havia a referência à categoria jurídica “remanescentes de
quilombo”. Ela só foi possível graças à mobilização das comunidades que objeti-
varam o cumprimento do decreto federal 4887/2003, que regulamenta o artigo 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988. Desde então, muitas
comunidades que possuem uma comum herança histórica com a escravidão pas-
saram a se autodefinir remanescentes de quilombo, assumindo assim a identidade
quilombola e a luta pelos direitos que o artigo 68 da ADCT da Constituição Federal
garante.
Podemos dizer que, à nível legal, os quilombolas (juntamente com os indíge-
nas) são os grupos da Rede melhor amparados juridicamente. Foi a partir do de-
creto 4887/2003 que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (IN-
CRA) ficou responsável pelos procedimentos necessários aos trabalhos técnicos
de reconhecimento, demarcação e identificação das terras quilombolas. O decreto
também delega à Fundação Cultural Palmares a responsabilidade nas emissões da
certidão de autorreconhecimento quilombola por parte das comunidades propo-
nentes.
De lá para cá, muitas comunidades quilombolas localizadas no Paraná rece-
beram a certidão de autorreconhecimento como requisito necessário para abertura
do processo administrativo junto ao INCRA. Das que deram entrada em tal pro-
cesso, nenhuma comunidade teve suas terras tituladas, uma vez que os processos
estão em litígio judicial. As ações comunitárias estão, ao que parece, circunscri-
tas aos esforços das próprias comunidades, não havendo uma articulação coletiva
quilombola de peso, um movimento auônomo que fiscalize, presencie e pressione
as atividades do Estado representado pelo INCRA.
As dificuldades de uma articulação e existência coletiva quilombola se devam,
como já mencionado, ao caráter emergente do fenômeno, o que refletia as dificul-
dades de articulação do movimento quilombola no âmbito de sua relação com a
Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais. Não havia, como para o caso
dos faxinalenses, um movimento coletivo autônomo das comunidades remanes-
centes de quilombo no Paraná: somente ações atomizadas de cada comunidade
frente ao Estado, ou tentativas de agrupamentos por parte do próprio Estado21.
Tendo como ponto de partida estas dificuldades, os quilombolas articulados
no espaço da Rede Puxirão estavam, à época das oficinas, tentando aproximar as
demandas comunitárias, em um processo de formação de lideranças. Uma dessas
ações estava também implicada no já referido projeto da “Nova Cartografia Social
dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Foram contemplados no projeto as co-
munidades quilombolas Paiol de Telha, João Surá e Rocio. Desses diálogos, a Rede
conseguiu mobilizar mais comunidades quilombolas e assim aumentar os planos de
21 O Grupo de Trabalho Clóvis Moura, sediado na Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Estadual, estimulou
o processo de criação da Federação Quilombola do Paraná.
42
mobilização coletiva frente o Estado (no caso, o INCRA), além de formar algumas
lideranças que passaram a assumir papel junto a Rede Puxirão.
Na Rede, Mariluz, membro da comunidade Invernada Paiol de Telha, é a prin-
cipal liderança quilombola. Além dela, participam das ações políticas, Alcione, da
comunidade do Rocio e Adir representando a comunidade de Manoel Ciríaco dos
Santos. Estes dois últimos se vincularam ao movimento a partir dos trabalhos de
assessoria da Rede, posteriormente, portanto, à sua criação.
À nível dos diálogos com o Estado, os quilombolas do Paraná estão represen-
tados pela Federação das Comunidades Quilombolas do Paraná, criada em 2009.
Tal Federação, embora simbolize um avanço para o movimento, pouco representa,
conforme o posicionamento da própria Rede, os reais anseios das comunidades
quilombolas paranaenses. Como resultado da falta de representatividade da Fed-
eração Quilombola, foi criada no contexto da Rede, neste ano de 2010, a Coorde-
nação Regional Quilombola do Vale do Iguaçu (COREQ), responsável por articular
as ações coletivas e mobilizar as lideranças das comunidades remanescentes de
quilombo localizadas nesta região específica, o Vale do Iguaçu.
Segundo Mariluz,
Como para o caso dos Ilhéus, o principal desafio dos quilombolas no contexto
da Rede Puxirão era dar conta da representatividade do movimento entorno das
muitas e diferentes comunidades que hoje respondem pelo nome de remanescentes
de quilombo. Seria necessário criar, a exemplo dos faxinalenses, um movimento
engajado e autônomo, que tivesse capacidade mobilizadora e resistisse para além
dos espaços das ações coletivas da Rede Puxirão.
Este é um problema que transcendia a própria atuação da Rede, pois se enraiza-
va nas dificuldades inerentes a quaisquer grupos sociais que, em interlocução com o
Estado, aderem a uma categoria jurídica englobante para lutarem por seus direitos
fundamentais. Se havia um comum entendimento dos membros da Rede Puxirão
acerca dos quilombolas era o da necessidade de tirar do Estado o monopólio da
mediação entre os quilombolas e a efetivação de seus direitos. É pra dar conta desse
problema que a COREQ foi criada.
De todo modo, estes três grupos foram os que impulsionaram a formação
da Rede Puxirão de Povos e Comunidade Tradicionais. A articulação política en-
tre Faxinalenses, Ilhéus e Quilombolas, ainda com representação parcial de cada
grupo, nos diz muito sobre a importância da mobilização de diferentes identidades
coletivas e contextos sociais em prol da defesa de seus direitos étnicos e coletivos.
Há aspectos positivos já mencionados anteriormente, no fato da Rede ser
“puxada” pelos faxinalenses, mas há também os aspectos negativos, ligados tanto às
dificuldades de mobilização e representação dos outros grupos, quanto o “desgaste”
dos faxinalenses em aguardar o estabelecimento das estratégias de formação e diálo-
go dos outros grupos, assim como compreender suas formas sócio-organizativas
43
diferenciadas.
44
no litoral do Paraná e Santa Catarina. O principal antagonista do modo de vida
cipozeiro é o impedimento do “livre acesso” ao Cipó-Imbé e outras fibras da floresta
utilizadas para a produção de artesanatos. Além disso, o movimento reivindica o
fim das restrições impostas pelo IBAMA, FATMA e IAP para coleta desses produ-
tos, bem como o retorno de seus territórios tradicionalmente ocupados.
Diferentemente do caso das cipozeiras, o Movimento Aprendizes da Sabedoria
foi formalizado no I Encontro Regional das Benzedeiras, Rezadeiras, Curadores,
Costureiras e Parteiras, realizado na cidade de Irati-PR, em setembro de 2008. Ou
seja, a formalização da identidade de benzedeira, curandeiro, costureira e parteira
é posterior à criação da própria Rede Puxirão. A criação daquele espaço de articu-
lação foi o que permitiu às benzedeiras iniciarem seu movimento reivindicatório a
partir de uma identidade coletiva.
Segundo o Movimento Aprendizes da Sabedoria são estimadas 7.000 pessoas no
Paraná praticantes do ofício de curar e ensinar remédios caseiros, colaborando di-
retamente para a saúde de milhares de pessoas todos os dias. Os principais conflitos
relativos a esses grupos se encontram na repressão dos conhecimentos e práticas
tradicionais de cura, praticada por diversas pessoas ligadas a instituições religiosas
e a medicina oficial. Outra situação enfrentada por esses grupos se traduz na dis-
puta pelo acesso aos recursos florestais medicinais, com a privatização do uso, além
de diversas formas de preconceitos praticadas por diversos atores da sociedade,
dentre eles padres, pastores, médicos e enfermeiras.
No âmbito da interlocução com a Rede Puxirão, o Movimento Aprendizes da
Sabedoria impulsionou a criação, no início de 2010, da Lei 1401, aprovada por una-
nimidade pela câmera de vereadores de Rebouças-PR. Tal lei é pioneira no gênero
em todo país ao reconhecer os donos de ofícios tradicionais como agentes promove-
dores da saúde popular através de suas práticas. Entre os direitos garantidos pela
lei aos benzedores estão a carteirinha, o certificado de reconhecimento e o livre
acesso às ervas e plantas medicinais do município.
Do litoral do Paraná grupos de Pescadores Artesanais localizados na Vila de Su-
peragui iniciam um processo mobilizador em 2008. Nesse contexto a produção da
cartografia social foi instrumento fundamental para reflexão que derivou em mo-
bilização dos pescadores. Uma das contribuições da Rede, segundo as lideranças
do MOPEAR, foi a necessidade de ampliar sua base, fazer formação e organizar
a coordenação do movimento. Os pescadores artesanais vinculados ao MOPEAR
receberam fortes estímulos para o fortalecimento de sua organização, da assessoria
da Rede e, especialmente dos faxinalenses. O processo de mobilização possibilitou
a articulação de várias comunidades pesqueiras, e não mais somente a da vila de
Superaguí.
Os principais conflitos ligados a esses grupos se traduzem na disputa pelo acesso
aos recursos pesqueiros com as embarcações industriais, além de restrições oriun-
das do IBAMA, projetos de pesquisa (Recifes Artificiais), impedimentos e limites
de uso dos recursos naturais resultante da sobreposição do Parque Nacional de Su-
peragui aos seus territórios tradicionais, além das áreas limitadas para pesca de
arrasto (conhecidas como milha de pesca) instituídas por normativa do Ministério
do Meio Ambiente.
O ano de 2010 foi particularmente promissor para a articulação do movimento
45
dos pescadores artesanais paranaenses. Através da mobilização conjunta com a
Rede, foi realizado, em novembro de 2010, o I Encontro dos Pescadores e Pescado-
ras Artesanais do Sul do Brasil, que agregou organizações de pescadores do Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Os Ciganos
Os Indígenas
46
aliança. Os representantes indígenas mais presentes eram os Guarani e, nas ações
coletivas, os Kaingangs.
A troca de experiências políticas entre os indígenas e os grupos da Rede foi fun-
damental para os novos movimentos, sobretudo no que se refere ao processo de
formação de lideranças e as estratégias de negociação com o Estado. Em muitas
ocasiões como no acampamento da Rede22 e na criação da Frente Parlamentar dos
Povos e Comunidades Tradicionais, a presença dos indígenas foi fundamental para
pressionar as autoridades públicas.
Observa-se, no entanto, que as pautas dos indígenas tinham em suas nego-
ciações agentes públicos e legislações distintas, o que dificultava aproximações nas
mobilizações. Por exemplo: na questão do território, enquanto o movimento indí-
gena negociava com a Funai a demarcação de suas terras, os quilombolas tinham no
INCRA suas demandas territoriais, os faxinalenses, pescadores, ilhéus e cipozeiros
no ICMBio a criação de seus territórios tradicionais.
47
costal. Os relatos mais abaixo dão conta do que foi um exercício de relação com a
alteridade por parte dos sujeitos protagonistas da rede (nesse caso de ecumenismo
“às cegas”), pois, face às estratégias comuns que mobilizavam ambos os grupos,
para articular era preciso conhecer o outro, compartilhar de sua luta. Nesse espaço,
os preconceitos eram tratados de modo silencioso para evitar constrangimentos23.
O Fórum trouxe três contribuições importantes. A primeira é o ganho que a Rede
Puxirão teve com a entrada destes novos protagonistas, suas articulações e estra-
tégias de mobilização (como, por exemplo, a Parada da Diversidade). A segunda é
pelo fato de tirar da Rede sua característica de lidar somente com territorialidades
vinculadas a grupos camponeses. São urbanas as terras tradicionalmente ocupadas
pelos grupos que compõe o Fórum Paranaense das Religiões de Matriz Africana.
Reivindicam seus direitos em um contexto urbano, de luta pela preservação e au-
toestima da religiosidade afrodescendente, onde a preservação destes territórios
existenciais, religiosos, simbólicos e efetivos está intimamente ligada às formas de
ser e estar no mundo de seus adeptos. Tal característica alarga também o campo de
articulação, contatos e atuação da Rede Puxirão para Curitiba, capital do Estado
paraense.
E terceiro: ao abraçar a causa dos grupos e expressões de matriz africana, a
Rede Puxirão está lidando com a verdadeira dimensão do respeito e do diálogo
com a diferença. Se até então a Rede mobilizava as diferentes comunidades tradi-
cionais do Paraná, todas estas diferenças estavam como que mediadas por um co-
mum modo de ver e entender o mundo, por um comum fundo religioso ligado ao
cristianismo. Hoje não: os grupos ligados às religiões de matriz africana mostram,
ensinam e dialogam diferentes maneiras de ver o mundo, relacionar-se com as coi-
sas do mundo, além ter diferentes expressões, referências e símbolos religiosos. Ou
seja, possibilitam o contato e a valorização com a verdadeira diferença: aquela que,
num primeiro momento, causa espanto.
Isso ficou claro em uma dos espaços de vivências religiosas que dão início a todos
os encontros da Reunião da Rede: a “mística”. Comumente feita pelos membros dos
grupos tradicionais, e sempre regada às leituras dos versículos bíblicos, a mística
do dia 01 de dezembro de 2009 teve como mediador Rômulo: principal liderança
do FPRMA vinculada à Rede Puxirão. Ali ele mostrou aspectos de cura de algumas
plantas, além da relação entre os elementos da Terra com os poderes das entidades
espirituais ligadas à religiosidade afro-brasileira.
Pedindo a permissão para todos que ali estavam, Rômulo, além de cantar refrões
que remetem à religiosidade afro, benzeu cada um dos participantes com a erva que
portava nas mãos. Foi um momento emocionante, e por dois motivos: o primeiro é
que a mística foi realmente emocionante. O segundo é talvez a causa do primeiro:
havia pessoas ali que estavam com receio, e que de algum modo estranharam todo
aquele discurso pautado na umbanda, macumba e no candomblé, estas, referências
vistas como “coisas do diabo e da bruxaria” no imaginário de muitas das populações
tradicionais paranaenses.
E estranharam por quê? Ora, porque desconheciam, porque nunca tinham ex-
perimentado, porque nunca tinham conversado sobre, porque nunca tinham senti-
23 Em novembro de 2009, membros do Fórum realizaram reunião da Rede no Terreiro de Candomblé. Ao final re-
alizaram uma cerimonia para proteger e abençoar os diferentes grupos na sua luta.
48
do o cheiro, porque nunca tinham visto. O fato é que no contato com o diferente sur-
giu a possibilidade da atenuação de certos preconceitos, surgiu a possibilidade do
diálogo, da tolerância e do respeito religiosos. E isso basta para que seja construído
um mundo novo, admiravelmente novo.
E isso para ambos os lados. O próprio Rômulo afirmou o pavor que os religiosos
de matriz africana têm dos dogmas das religiões cristãs, porque é no discurso pau-
tado na bíblia e no cristianismo que tem se dado a maioria das desautorizações
e dos desrespeitos às crenças e religiosidade de matriz africana. No contexto da
Rede, não somente as comunidades tradicionais cristãs camponesas aprendem
com as comunidades de religiosidade africana, mas estas também aprendem muito
do modo de vida cristão das comunidades tradicionais. Modos este que, vale dizer,
estão falando de uma mesma coisa: do respeito à natureza, do amor ao próximo e
da organização dos diferentes e excluídos como meio de transformar as relações de
poder na sociedade.
E essa abertura é, sem dúvida, o exemplo do verdadeiro diálogo com a alteridade
e o grande desafio deste novo momento da Rede, um momento onde ela se abre para
o novo, desvincula territorialidade do campesinato e religiosidade do cristianismo,
abrindo as portas para movimentos que lutam, sobretudo, pela justiça e o direito à
existência social, estes sim norteadores de quaisquer lutas e sonhos.
Considerações Finais
49
Rede Puxirão, cada uma vai compor, em seu tempo, um tipo de relação consigo
mesma e com o mundo que a cerca.
Há grupos e consciências de sua identidade anteriores à Rede. Há, também,
movimentos e consciências que foram formados por ela. É neste movimento de for-
mar e ser formado que pudemos vivenciar a riqueza e as limitações da mobilização
entorno de uma identidade coletiva, além de tudo o que este encontro de diferenças
permite gerar, tanto à nível dos diálogos formais com Estado, como novas formas
de mobilização política integradas.
Procuramos mostrar ao longo do texto que, por mais que oficialmente a Rede
Puxirão tenha sido formada no ano de 2008 (no I Encontro dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais), é anterior a tal data o início das mobilizações dos grupos
e atores que a formaram. Ela é, portanto, produto de um sem fim de articulações,
ações, passeatas, acampamentos, demandas, resistências, diálogos e reivindicações
feitas pelos movimentos sociais paranaenses desde, no mínimo, o início dos anos
oitenta.
Daquele tempo até o momento, as condições políticas se transformaram e no-
vas formas de luta atreladas ao localismo e os particularismo dos conflitos sociais
encontrou pontos de contato que esboçam essa articulação que atende pelo nome
de Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais. A Rede, no entanto, é uma
articulação ou espaço de congregação de um processo em que algumas identidades
coletivas categorizadas como povos e comunidades tradicionais em luta no Paraná
projetam possibilidades de efetivação de direitos em um contexto novo da política
nacional voltada às comunidades tradicionais.
Apesar da multiplicidade de demandas, atores, comunidades, encontros, o
caminho para que a Rede efetivamente se consolide no campo político e reivindi-
catório paranaense é um só: a continuidade de sua marca, que é agregar diferentes
movimentos sociais, e daí fazer surgir um corpo de referência que permita o em-
poderamento desses agentes sociais e a efetivação dos seus direitos fundamentais.
Ou seja, não há outro caminho para a Rede senão continuar suas estratégias de
mobilização comunitária agregando um número cada vez maior de grupos e agen-
tes sociais: é isso o que fez com que ações atomizadas, de pessoas e movimentos
sociais, adquirissem o caráter de mobilização coletiva e étnica engendrada por uma
rede de comunidades tradicionais. Vimos que é nesse encontro de diferentes gru-
pos sociais e suas demandas que as bases para a luta foram alicerçadas, que novos
padrões de relacionamento com o Estado foram criados, que novos aprendizados
foram potencializados, que velhos preconceitos foram revistos, que novas alianças
foram efetivadas, que novas realidades e tornaram possíveis.
Cabe pensar nos dilemas relacionados a continuidade da Rede e seu papel
de articulação e formação, e não de representação, evitando com isso a concen-
tração de tarefas, a fragilidade organizacional de alguns grupos, a não substituição
das representações dos movimentos pela Rede. São essas algumas preocupações
apontadas pela sistematização com os representantes das diferentes comunidades
tradicionais. Para tanto, propõe-se estimular trabalhos de formação de base, for-
talecer as coordenações dos movimentos, abrir canais de negociação permanentes
dos órgãos públicos com os movimentos e suas demandas.
A continuidade da Rede depende, portanto, tanto da permanência de sua agenda
50
aglutinadora e agregadora quanto de sua abertura para novas alianças e possibi-
lidades. É assim que ela fortaleceu suas bases e fundamentos históricos ligados à
proposta de viabilizar condições para o fluxo das demandas dos movimentos sociais
aqui mencionados, bem como permitiu que novas propostas, demandas e grupos
sociais a ela se aliassem. São esses dois movimentos, o de continuar a proposta
histórica e o de se abrir para os novos movimentos sociais, que possibilitarão que a
Rede se efetive como um espaço de articulação política não somente circunscrita ao
contexto paranaense, mas nacional e internacional.
Podemos dizer que a via para a efetivação desses direitos passa pela visibilidade
das comunidades diante do Estado e do mundo que as cerca. Esse primeiro passo, o
de mostrar as marcas, as trajetórias, as histórias, as demandas, as vozes, as bandei-
ras, está sendo dado. No encontro em rede, cipozeiras, pescadores artesanais, re-
ligiões de matriz africana, faxinalenses, benzedeiras e ilhéus têm lutado para emer-
girem enquanto sujeitos jurídicos, de pleno direito. Daí o rótulo de emergente a
todas essas comunidades que aos olhos do mundo e do Estado pareciam até então
inexistir. A Rede permite essa emersão, possibilitando o fortalecimento de uma
política estadual voltada aos povos e comunidades tradicionais. É sob o manto da
bandeira da Rede Puxirão que as vozes desses segmentos, dessas identidades cole-
tivas, passaram a aparecer e se fortalecer politicamente.
Um segundo passo também está sendo dado: o de, a partir da visibilidade, fazer
com que o Estado reconheça esses modos culturais específicos e defina um com-
promisso de amparo e proteção jurídica. Embora em fase germinal, esse amparo
já se esboça, de diferentes maneiras, para as comunidades tradicionais. Decretos
federais e estaduais, portarias, leis municipais, minutas, entre outros mecanismos
estatais, são tanto resultado da mobilização dos movimentos sociais quanto conse-
quência de um diálogo inicial entre sociedades civil, movimentos sociais e os po-
deres públicos brasileiros. Com todas as limitações inerentes ao processo, a Rede
Puxirão tem sido um importante espaço de diálogo e mediação entre as comuni-
dades tradicionais e o Estado brasileiro.
51
52
Comunidade de Pescadoras e Pescadores Artesanais Organizados –
Processos de R-existência na Vila do Superagüi-PR24
Dimas Gusso25
Marina Drehmer 26
Marina Eduarda Armstrong de Oliveira27
Mercedes Solá Pérez28
Resumo
Introdução
24 Este texto é realizado com concordância dos pescadores e pescadoras da Vila do Superagüi – sujeitos da pesquisa –,
buscando privilegiar o olhar desses sujeitos e em diálogo permanente com eles.
25 Faxinalense, estudante do Curso de Direito e assessor político do MOPEAR.
26 Estudante do Mestrado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e integrante do
ENCONTTA - Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra.
27 Estudante do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Universidade Federal do Paraná, integran-
te do ENCONTTRA – Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra e assessora política do MOPEAR.
28 Estudante do Doutorado em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco. Integrante do ENCONTTRA – Co-
letivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra –, CEGeT – Centro de Estudos de Geografia do Trabalho – e
NEACA – Núcleo de Estudos sobre Espaço Agrário, Campesinato e Agroecologia.
53
O extenso litoral brasileiro é marcado por distintos e recorrentes conflitos terri-
toriais atrelados ao contemporâneo panorama global cuja lógica econômica pauta-
se, entre outros aspectos, na mercantilização da natureza29 (CECEÑA, 2008). O
litoral norte do Estado do Paraná não é diferente. Os conflitos territoriais decor-
rem da disputa entre as comunidades locais – caiçaras e pescadores artesanais – e
os órgãos públicos ambientais – Instituto Ambiental do Paraná, Instituto Chico
Mendes de Biodiversidade, Ministério de Meio Ambiente. Essa região caracteri-
za-se pela presença da natureza exuberante – mangue, mata atlântica e restingas
– devido às práticas das comunidades locais de manutenção da mesma. Marcada
pela diversidade ambiental e cultural, essa região viu-se alvo de diversos interesses,
públicos e privados, especialmente a partir de meados do século XX. Esse cenário
de mercantilização da natureza – cujas ações são orientadas por uma perspectiva
na qual esta aparece como uma fonte infinda de mercadorias reais ou potenciais
que configura “uma paisagem de oportunidades” (CORONIL, 2005, p. 111), foi
acarretando conflitos e consequente mobilização de algumas comunidades locais
que viam seus territórios de vida ameaçados diante dos interesses de outrem.
Este artigo propõe um relato sobre o processo de organização dos pesca-
dores e pescadoras artesanais da Vila de Superagüi, município de Guaraqueçaba que
em decorrência de conflitos socioambientais, viram a necessidade de se organizar
como movimento social diante desse cenário de conflitos relacionados especial-
mente às proibições devido à implementação do Parque Nacional do Superagüi e
aos impactos da pesca industrial. Ambas as políticas – de conservação da natureza e
de modernização da pesca - comprometem a continuidade do acesso e manutenção
dos territórios e modos de vida tradicional desses pescadores, constituindo uma
disputa que envolve os próprios pescadores artesanais, o Estado – aqui represen-
tado por órgãos ambientais – e a iniciativa privada.
O processo de organização social do grupo teve como marco inicial o pro-
cesso da cartografia social que resultou – além da confecção do fascículo 16 da Nova
Cartografia Social publicado em 2010 – na formação do Movimento dos Pescadores
e Pescadoras Artesanais do Litoral do Paraná (MOPEAR) - em 2008, bem como no
autorreconhecimento como “pescadores e pescadoras artesanais”, o que permitiu
sua inserção na categoria política de Povos e Comunidades Tradicionais e a auto-
demarcação dos seus territórios de vida. Para compreender melhor esse processo, é
importante debruçar-se sobre os aspectos conjunturais que ajudaram a conformá-lo.
Para tanto, daremos início ao relato, por meio de uma contextualização da região
para compreender o panorama no qual as lutas e reivindicações dos pescadores e
pescadoras artesanais do Superagüi foram se delineando e ganhando força. A Vila
do Superagüi, comunidade situada na Ilha do Superagüi, teve um grande protago-
nismo nesse processo de mobilização política, o que a coloca no foco deste texto. A
realização do fascículo 16 da cartografia social contou com a participação de inte-
grantes da comunidade de Barbados – também trabalhada neste livro por Duarte e
Varella – e da comunidade da Vila das Peças.
A estrutura deste artigo divide-se em quatro partes. Após breve apresen-
tação da comunidade de pescadores artesanais de Superagüi passa-se à descrição
29 “Todo mundo parece concordar com este preceito [desenvolvimento sustentável], porém trata-se de um conceito
vazio que só aponta a um fim: desenvolvimento sustentável implica entregar a natureza para ser valorizada, para ser
desapropriada, para ficarmos despossuídos mais uma vez daquilo que nos pertence” (CECEÑA, 2008, p. 152).
54
dos conflitos – com o Parque Nacional do Superagüi e a pesca industrial, ao pro-
cesso de mobilização e conquistas do MOPEAR e finaliza-se com a agenda de ações
do Movimento.
55
compreendem que a luta contra essa Companhia foi um dos elementos que influ-
enciou a atuação ambientalista na região, tendo sido uma ação que fortaleceu a
implementação do Parque Nacional do Superagüi (PARNA do Superagüi). Isso,
aliado à “falta de importância econômica”31 da região que permitiu a manutenção
da natureza e a reprodução da vida dessas comunidades não ligada totalmente ao
modelo de produção capitalista, mas a um modo específico de reproduzir a vida. E
é exatamente por essa causa, que a região se torna alvo de políticas de desenvolvi-
mento sustentável, através da criação de diversas unidades de conservação (UC)
da natureza, que não levam em consideração os modos de vida das comunidades
locais.
Dentre as seis UCs existentes em Guaraqueçaba estão a Área de Proteção
Ambiental de Guaraqueçaba e três Reservas Particulares de Patrimônio Natural
(Figueira, Sebuí, Salto Morato) como UCs de Uso Sustentável, e a Estação Ecológica
de Guaraqueçaba e o PARNA de Superagüi como – UCs de Proteção Integral.– A
criação e implementação do PARNA do Superagüi foi um dos marcos que deu início
aos conflitos de ordem socioambiental, relacionados às restrições legais referentes
a esta categoria de UC delimitada sobre os territórios tradicionalmente ocupados32
dos grupos locais.
Na área que atualmente constitui o Parque Nacional do Superagüi, há aproxi-
madamente 15 comunidades, sendo cinco na Ilha das Peças (Vila das Peças, Laran-
jeiras, Guapicum, Tibicanga e Bertioga), seis na Ilha do Superagüi (Vila do Super-
agüi, Colônia, Barbados, Canudal, Vila Fátima, Barra do Ararapira) e três, bastante
próximas, na área continental (Sebuí, Saco da Rita, Abacateiro), que por vezes, são
agrupadas e nomeadas como Costão do Sebuí. Dentre as comunidades, sete estão
dentro dos limites do PARNA: seis na Ilha do Superagüi (todas, com exceção da Vila
do Superagüi) e uma na área continental (Abacateiro) (FIGURA 1). Porém, todas
as outras ainda que recortadas dos limites do PARNA encontram-se impactadas
pela sobreposição com essa UC, uma vez que o território de vida dos pescadores
não se restringe aos limites da vila, estendendo-se, não só aos espaços das práticas
produtivas (pontos de pesca, coleta, roçado), como também aos espaços sociais e
culturais. Um território sobre o qual, como alegam Whinter, Rodrigues e Maricon-
di, “é impossível delimitar um perímetro exato, contíguo e permanente, (…), uma
vez que, por exemplo, a própria dinâmica do ecossistema alterna, sazonalmente, as
possibilidades de realização das práticas produtivas” (1990, s/p).
31 A falta de importância econômica remete, segundo Bazzo (2010), a que não havia na Ilha do Superagüi nenhum ciclo
que se inserisse na economia do país, como poderia ser o açúcar, o café, a borracha, etc.
32 Conceito cunhado por Almeida (2005) para referir àqueles territórios que possibilitam a partir de modos específicos
a reprodução da vida das comunidades que têm um histórico identitário neles.
56
FOTO MAPA
FIGURA 1 – Comunidades e área do Parque Nacional do Superagüi. Fonte: RÖSLER 2006 apud BAZZO,
2010.
57
Kaigangs, Guaranis, Quilombolas, Cipozeiras, Ilhéus e Pescadores artesanais, que
trocaram experiências e resolveram unir as lutas na articulação da Rede Puxirão
dos Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná (REDE, 2013). A Rede visa o
fortalecimento político e institucional dos movimentos tanto individual quanto co-
letivamente, de modo que a luta por direitos se torne mais viável. Estes direitos
se referem especialmente ao acesso e manutenção dos seus territórios tradicional-
mente ocupados, e portanto, à sua identidade.
Os pescadores artesanais da Vila do Superagüi, diante desse fervilhar dos diver-
sos segmentos congregados também pelo Projeto da Nova Cartografia Social dos
Povos e Comunidades Tradicionais, solicitam o auxílio para o automapeamento de
sua comunidade.
O processo durou em torno de oito meses, nos quais a comunidade se reunia,
discutia diversas questões relativas às formas de organização da própria comuni-
dade (infraestrutura, legislação, direitos), práticas sociais (autorreconhecimento
coletivo, identidade e os limites impostos para sua reprodução por determinadas
políticas públicas), os conflitos no território (conflitos socioambientais) e as pos-
síveis formas de resistência (OLIVEIRA et al, 2012).
Durante o tempo de trabalho e elaboração do seu mapa, do qual resultou, em
2010, o Fascículo n.º 16 dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil “Pesca-
dores Artesanais da Vila do Superagüi”, eles fizeram um resgate da memória co-
letiva, trocaram experiências, compartilharam e sistematizaram as dificuldades
que passam. Todo esse processo de cartografia social fortaleceu a comunidade
especialmente no que diz respeito à construção da sua identidade coletiva e seu
autorreconhecimento34 enquanto comunidade tradicional, enquanto pescadores e
pescadoras artesanais.
Ainda que para o Estado, a pesca artesanal seja reconhecida estritamente como
uma atividade econômica35, para as comunidades dessas ilhas, a pesca artesanal é
uma arte36 que permite o ser/viver específico. Os pescadores artesanais têm lógicas
territoriais de relação estreita entre a água e a terra. Na água (rio, mar ou man-
gue), eles desempenham a atividade da extração do pescado e na terra têm suas
moradias, os espaços de beneficiamento do pescado para venda e espaços para ali-
da Política de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto 6040/07) e da articulação
entre movimentos sociais e o Projeto Nova Cartografia Social (atuando no Paraná desde 2005), vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia –PPGSCA- da Universidade Federal do Amazonas – UFAM - com
apoio do Instituto Equipe de Educadores Populares –IEEPE- e Centro Missionário de Apoio ao Campesinato (CEMPO)
na produção da Autocartografia Social.
34 O autorreconhecimento é promulgado no Brasil através do Decreto Nº 5051/04 que institui a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho no país. Esse Decreto, aliado aos Decretos 6040/07 da PNPCT, 6476 do Tratado
Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura e, 2519 sobre a Convenção da Diversidade
Biológica; , trazem à tona os direitos territoriais, étnicos e culturais dos povos e comunidades tradicionais, reconhecendo
também a relevância dos saberes tradicionais.
35 Lei n.º 11.959 de 29 de junho de 2009, classifica-se a pesca artesanal a atividade comercial “quando praticada direta-
mente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próp-
rios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte” (Art. 8º §I, a).
36 Em depoimento colhido para o fascículo da cartografia social, Azuir Barboza diz: “Ser um pescador artesanal é viver
da arte, a gente vive da arte manualmente, a gente sai pesca sete hora da manhã, seis hora da manhã, volta às três da tarde
e o trabalho é tudo manual, não tem nada de guincho, de equipamento sofisticado como: GPS e a sonda. O barco de
pequeno porte trabalha das sete às três, volta pra casa e lá no mar começa as se cria o pescado de volta, das três às seis da
manhã do outro dia. Viver da arte é desse tipo: pesca um dia, à noite descansa. Como não temos equipamento sofisticado
pra fica à noite lá fora, pra pesca à noite, dia e noite, então o nosso tipo de vida é esse aí” (NOVA CARTOGRAFIA, 2010).
Para informações sobre a arte da pesca, consultar Ramalho (2007).
58
mentação (CARDOSO, 2009). Quer dizer que a pesca artesanal é um modo de vida
que não se restringe à arte da pesca na água, mas inclui outras atividades em terra,
constituindoseus territórios de vida.
Neste sentido, a discussão identitária adquire papel central no contexto desses
grupos que recorrem à identidade coletiva como uma forma de bandeira mobili-
zadora, de articular suas lutas. Inserem-se, assim, no âmbito político-jurídico por
meio da categoria de Povos e Comunidades Tradicionais e r-existem aos processos
expropriatórios que dificultam ou coíbem a reprodução de suas vidas e o acesso
aos seus territórios. Por isso, torna-se muito importante insistir nessa discussão do
autorreconhecimento – que é pauta de muitos debates atuais - relatando o processo
pelo qual os moradores da Vila do Superagüi se autoidentificaram como pescadores
artesanais37, uma identidade que reflete a sua principal atividade, na qual foram se
especializando após as restrições impostas pelas políticas ambientais à boa parte de
suas outras práticas.
Além do autorreconhecimento, nesse processo de construção do fascículo da
cartografia social realizado pela comunidade, evidenciaram-se diversos conflitos,
entre os quais se foca na instalação do Parque Nacional do Superagüi e na pesca
industrial.
59
CARTOGRAFIA SOCIAL, 2010). Claramente, isso repercute na manutenção de
seus modos de reproduzir a vida que são cerceados pelas proibições e fiscalizações
dos órgãos ambientais. E, se já é comum os pescadores frequentemente transitarem
pelas ilhas e pelo interior da baía, inclusive mudando de comunidade, conforme as
relações sociais e de parentesco; as pressões fruto da política de desenvolvimento
sustentável têm provocado a ida de muitos pescadores artesanais à Ilha de Vala-
dares (periferia de Paranaguá) e, em menor grau, à sede do Município de Gua-
raqueçaba.
Outro aspecto importante, relacionado ao contexto do conservacionismo, é a
presença de inúmeras instituições não governamentais (Sociedade de Pesquisa em
Vida Selvagem e Educação Ambiental - SPVS -, Fundação O Boticário, SOS Mata
Atlântica, dentre outras) com interesses de realizar projetos e pesquisas vincula-
das à preservação da natureza excluindo as comunidades tradicionais desses ter-
ritórios (KASSEBOEHMER, SILVA, 2008). É exatamente o que o pescador da Vila
do Superagüi retrata em diálogo de campo39 quando comenta que vai “colocar uma
máscara de mico leão dourado para ver se nos preservam”. Ou seja, essa situação
provoca em seus moradores a sensação de que as questões ambientais são muito
mais valorizadas do que a sobrevivência das populações locais. Recentemente os
guaraqueçabanos organizaram uma campanha de denúncia intitulada de “Gua-
raqueçaba: Meio Ambiente Preservado & Autoestima Destruída”40 na qual alegam
que o Município possui os piores indicadores de desenvolvimento humano – IDH –
no ranking estadual e municipal. Quer dizer, que a preservação da natureza – como
natureza intocada – não garante a sobrevivência das comunidades, além disso, o
IDH, não incorpora a dimensão da biodiversidade.
A questão do lixo41 também gera controvérsias e justifica a intromissão dos órgãos
gestores ambientais. Segundo um funcionário da Força Verde(informação verbal)42,
o excesso de lixo acumulado se deve à ignorância das comunidades locais às quais
falta capacitação para gerenciá-lo. Isso evidencia a responsabilização atribuída
ao grupo por suas ações, postura que prevalece nas correntes ambientalistas he-
gemônicas, que tendem a deslocar as responsabilidades para os sujeitos, tirando
de cena os reais causadores dos impactos que, no limite, encontra-se associado à
produção massiva de plástico, sustentáculo do modo de produção capitalista cuja
principal matriz é o uso de petróleo e seus derivados. Esse comentário carregado
de preconceito expressa bem os posicionamentos dos executores das políticas am-
bientais, que, pensam ter como uma de suas “missões” levar às comunidades locais
o desenvolvimento para que deixem de ser atrasadas e, ao mesmo tempo, retira a
responsabilidade da Prefeitura de Guaraqueçaba de dar um destino ao lixo da Vila
do Superagüi. O excesso de lixo acumulado torna-se, então, mais um elemento, en-
tre muitos, para legitimar a ação tutelada dos gestores ambientais.
39 Informação oral em trabalho de campo realizado por Mercedes Solá Pérez por motivo da dissertação de Mestrado em
Geografia (2011).
40 Disponível em: http://vozdoguara.blogspot.com.br/
41 Solá Pérez (2012), em sua dissertação de Mestrado em Geografia, explica que a Prefeitura argumenta haver poucos
barcos para coletar o lixo e, por isso, somente é possível realizar a coleta uma vez por mês, o que implica uma carga em
torno de duas a três toneladas. Como essa carga de lixo não é a total produzida na Ilha o IBAMA pretende que os turistas
levem seu lixo de volta às cidades de origem onde há coleta frequente de lixo.
42 Informação verbal em trabalho de campo realizado por Marina Drehmer em 2012.
60
Políticas setoriais e a pesca industrial
61
sanais pesam juntas, em torno de 24 quilos e as da pesca industrial chegam a pesar
aproximadamente 150 quilos cada uma. Além disso, comenta que, as redes que os
pescadores artesanais utilizam não são pesadas o suficiente para atingir o fundo
depois da primeira milha, ao contrário das utilizadas na pesca industrial que são
bem pesadas e por isso conseguem varrer o fundo. Por esse fato, os pescadores ar-
tesanais acabam querendo pescar dentro da milha. A questão é, portanto, qual tipo
de portas e quais redes se utilizam e quais se proíbem: as dos pescadores artesanais
ou da pesca industrial (SOLÁ PÉREZ, 2012).
Ainda com respeito à concorrência entre a pesca artesanal e a industrial, “Os
conflitos internos à pesca resultam da competição pelos recursos entre diferentes
grupos de interesse. Em particular, o desenvolvimento da pesca empresarial na
plataforma costeira paranaense gerou uma série de conflitos com a pesca de menor
escala” (ANDRIGUETTO FILHO, 1999, p. 210). Embora tais grupos não tenham
limites precisos, os pescadores paranaenses conflitam com os grandes barcos de
outros estados que fazem pesca de arrasto pescando camarão rosa e sete barbas, ou
utilizam portas e parelhas, bem mais pesadas que aquelas dos pescadores artesa-
nais, que varrem o fundo do mar. Segundo os pescadores do Paraná, os barcos da
pesca industrial degradam o meio ambiente acabando com a biodiversidade e não
respeitam o limite de três milhas da costa reservados para os pescadores artesanais
(ANDRIGUETTO, 1999).
Somente apontando os principais conflitos dos pescadores e pescadoras artesan-
ais identifica-se a negação da vida44 deles por parte do Estado com base na aplicação
de políticas públicas de conservação da natureza e modernização da pesca. Tanto
a sua identidade como os seus territórios estão sendo espremidos, reduzidos para
inseri-los marginalmente ao modo de produção e consumo capitalista. As práticas
produtivas, a transmissão de saberes e os acordos comunitários são desqualificados
como formas possíveis de reproduzir a vida.
As conquistas do MOPEAR
62
tesanais.
Sobre a Instrução Normativa Nº 29/04, que proíbe a pesca na primeira milha, o
MOPEAR enviou ao Instituto Ambiental do Paraná (IAP) uma contraproposta, que
ainda aguarda resposta, na qual se solicita a sua modificação. Essencialmente trata
de três pontos: não incluir aos pescadores artesanais na proibição; dar ênfase na
especificidade das artes do pescador artesanal e, em função delas; permitir a pesca
em distâncias determinadas segundo as artes de pesca.
O MOPEAR também fez uma proposição de lei municipal junto à Câmara de
Vereadores de Guaraqueçaba em 2011, que ainda tramita, sobre o patrimônio ima-
terial que representam os pescadores e pescadoras artesanais. Essa lei reconhece-
ria no âmbito municipal aos pescadores artesanais como comunidade tradicional e
lhes permitiria o reconhecimento de suas práticas culturais.
A organização social, junto às oficinas sobre direitos na comunidade realizadas
pela cartografia social, gerou diminuição da repressão de órgãos ambientais que,
por vezes, abusava do poder chegando a prender os petrechos e os próprios pesca-
dores artesanais por pescarem antes da milha náutica ou por estarem com alguma
caça.
Ainda por conta da organização, através do MOPEAR, os pescadores unem suas
lutas com a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais45; estreitam o
diálogo com o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal e; cri-
am parcerias com diversos grupos, por exemplo, o Núcleo de Prática Jurídica, a
Terra de Direitos, o Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra
(ENCONTTRA)46, entre outros.
As ações do MOPEAR – como visto – trouxeram diversas conquistas no âmbito
da vida dos pescadores artesanais da Vila do Superagüi e em 2010, a partir da reali-
zação do I Encontro de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Sul do Brasil na sede
do Município de Guaraqueçaba, conseguiram organizar a Articulação Sul do Brasil
de Pescadores e Pescadoras Artesanais (REDE, 2010). Foi também a partir deste
encontro que as outras comunidades da Ilha vêm se interessando pela inserção na
organização social do MOPEAR e, por isso, há dois anos que se realiza o processo de
mapeamento social – a cargo da Nova Cartografia Social – de todas as comunidades
atingidas pela instalação do Parque Nacional do Superagüi47.
Até o momento foram realizadas entrevistas, registro fotográfico e coleta de
pontos de GPS nas comunidades Tibicanga, Barbados, Sebuí e Abacateiro e várias
lideranças têm intensificado as relações com o MOPEAR. O mapeamento tem sido
um grande desafio para o Movimento, já que além de persistir na lida cotidiana da
45 Em setembro de 2010 a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais organizou o I Acampamento dos Povos
e Comunidades Tradicionais do Paraná. O intuito era aprovar uma proposta de lei estadual de reconhecimento da cat-
egoria Povos e Comunidades Tradicionais. Em 18 de dezembro de 2012, através da publicação da Lei 17.425 foi criado o
Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná.
46 Entre os dias 19 e 21 de maio, foi realizado o curso de extensão “Cartografia social: uma ferramenta para o for-
talecimento identitário e a mobilização social” junto à Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais e pes-
quisadores da UFPR, IFPR, UNICENTRO, UDESC e UFSC. Os jovens pescadores artesanais ligados ao MOPEAR
participaram desse curso. Mas informações, consultar o site da Rede Puxirão < http://redepuxirao.blogspot.com.br/
search?q=curso+de+cartografia >.
47 Se o mote inicial é o conflito da superposição entre os territórios de vida e o PARNA do Superagüi, ao longo do pro-
cesso visibilizaram-se outros conflitos que as comunidades vivem, mas também o fortalecimento do movimento de luta
pela manutenção dos modos de vida – que claramente implicam em seu autorreconhecimento e autodemarcação territo-
rial – dos pescadores e pescadoras artesanais das Ilhas das Peças e do Superagüi.
63
pesca, os pescadores artesanais buscam driblar as dificuldades e continuar organi-
zados para manter seus territórios de vida.
Todos esses mecanismos que o MOPEAR vai criando, junto à Rede Puxirão e
às outras parceiras, permitem demonstrar que os pescadores e pescadoras artesa-
nais da Vila do Superagüi se reinventam a cada dia. Fortalecem a sua organização
através do autorreconhecimento com o objetivo de manter os seus territórios e, com
eles os seus modos de vida. Não somente resistem, mas se resignificam, r-existem
(PORTO-GONÇALVES, 2006).
64
interior da baía. Segundo relato obtido em entrevista com pescadores da comuni-
dade de Tibicanga, localizada na Ilha das Peças, essa escassez tem muito a ver com
o acidente de derramamento de óleo ocorrido no Porto de Paranaguá em 200449.
A Petrobrás já foi sentenciada a pagar uma multa de alto valor, porém as comuni-
dades pesqueiras impactadas ainda não conseguiram obter essa indenização.
O MOPEAR também vem dialogando com pescadores artesanais de outros mu-
nicípios numa tentativa de ampliar, fortalecer e visibilizar a luta dos pescadores
artesanais no Estado do Paraná. No fim de junho, foi sancionada a criação de um
Parque Nacional Marinho (PARNA Marinho dos Currais) no município de Pontal
do Paraná. Os pescadores artesanais desse município mostram-se apreensivos com
a criação dessa UC devido ao seu grau de restrição, e têm procurado os membros do
MOPEAR para articularem uma luta conjunta.
A Campanha Nacional pela Regularização do Território das Comunidades Tradi-
cionais Pesqueiras50, fomentada pelo Movimento Nacional dos Pescadores Artesa-
nais, também é um ponto de convergência entre os pescadores artesanais do MO-
PEAR, que têm colocado a campanha como pauta em todo o estado. Esta campanha
propõe uma lei federal de iniciativa popular que, através de abaixo-assinado, busca
garantir o acesso e manutenção dos territórios de vida das comunidades tradicion-
ais de pescadores e pescadoras artesanais em todo o país.
Considerações finais
65
de produção e consum(ism)o capitalista é perverso e avassalador. Nega qualquer
outro modo de vida que não participe do círculo vicioso da acumulação de capital. A
lógica de sustentação é justamente privar, des-envolver, negar, mercantilizar todas
as esferas da vida.
Uma possível saída diante do panorama de conflitos posto parece ser r-existin-
do, se organizando socialmente e se envolvendo em modos de vida, de ser/fazer que
não busquem a cobiça, a privação, o individualismo, um como único caminho a ser
seguido. Provavelmente não haja “a” resposta, mas um leque de possibilidades que
se abrem quando se propõem novas experiências, caminhos a serem percorridos.
Referências
BAZZO, Juliane. Mato que vira mar, mar que vira mato: o território em movi-
mento na
vila dos pescadores da Barra do Ararapira (Ilha do Superagüi, Guaraqueçaba,
Paraná).
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Curitiba: 2010.
BRASIL. Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, in-
cisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza e dá outras providências.
66
BRASIL. Decreto n.º 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Na-
cional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais.
67
OLIVEIRA, Marina Eduarda Armstrong de; RIBEIRO JR., Renato Alves;
ROCHA, Otávio Gomes; SILVA, Thiago Vinícius Almeida da; GÓMEZ, Jorge Ramón
Montenegro. O Poder de Resposta: A Cartografia Social dos Povos e Comunidades
Tradicionais. Anais XVI Encontro Nacional de Geógrafos – Crise, práxis e auto-
nomia: espaços de resistência e de esperanças. Porto Alegre, 2010.
68
Da sustentabilidade manifesta à dominação latente: cartografififfiias
participativas e conflffllitos territoriais
Resumo
O objetivo central deste artigo é discutir as latentes nuances políticas que per-
69
mearam os estudos cartográficos realizados na comunidade de Barbados como fun-
damento ao Plano de Manejo do Parque Nacional do Superagui (PNS), em Gua-
raqueçaba, no Estado do Paraná, a partir da análise de dados colhidos durante o
estudo que embasou a dissertação de mestrado de um dos autores e cujo conteú-
do possuía um caráter territorial, baseado no método etnográfico e em entrevis-
ta semiestruturada com um dos gestores do Parque.
Sem querer desviar o foco do tema central deste estudo, julgamos necessário
fazer um breve esclarecimento quanto a alguns princípios que norteiam a discussão
aqui proposta.
Salientamos que não é nossa intenção posicionarmo-nos contra as discussões
científicas que se prontificam a estudar as características e/ou a diminuição dos
impactos ambientais causados pela ação antrópica em Áreas Naturais Protegi-
das - não se nega, aqui, a importância e credibilidade destes estudos. Contudo,
levando-se em consideração que a ciência é vista nas sociedades hodiernas como o
principal instrumento “revelador da verdade”, e considerando-se, também, que sua
produção não possui um caráter de neutralidade (MINAYO, 2001), devemos alertar
quanto a algumas consequências desta tecnocracia aplicada à resolução de conflitos
territoriais entre comunidades autoidentificadas como tradicionais e Unidades de
Conservação.
As leis ambientais acabam vigorando impositivamente acima das leis sociais
locais, recriando culturas e territorialidades específicas. Tal imposição justifica-
se, nesse caso, a partir do conceito da “sustentabilidade”, apreciado como um dos
objetivos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC - Lei Federal
9985/2000). Para a citada lei, é sustentável aquele uso que é socialmente justo, eco-
nomicamente viável e que garante a perenidade dos recursos naturais renováveis
e dos processos ecológicos (art. 2º, inciso XI) - assim, sempre que possível, os ge-
stores das UCs devem assegurar a “sustentabilidade econômica” das Unidades (art.
5º, inciso VI) a partir dos recursos naturais (art. 4º, inciso IV) - e não das comuni-
dades que tem seus territórios tradicionalmente ocupados por UCs.
Tal “sustentabilidade” e “Desenvolvimento Sustentável” apresentados na lei são
pautados no tripé “economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente
correto” - e este, por sua vez, traz consigo latentes verdades do modelo de desen-
volvimento dominante, que se embasa, entre outras coisas, no modelo capitalista/
industrialista/ consumista (BOFF, 2012, p. 44): “economicamente viável” significa
“lucrar” e, assim, manter a ordem vigente.
Vale lembrar, aqui, as palavras de Almeida (2008a, p. 17) sobre a utilização
de conceitos científicos: estes não podem ser frigorificados, ou seja, não podem
ter uma definição pré-determinada, como se fossem consensuais, neutros e lidos
em eterna sinonímia pelos pesquisadores. Os conceitos científicos não têm uma
definição, mas, do contrário, assumem significados específicos para cada cientista
que reivindica para si a verdade sobre um determinado assunto - destarte, os con-
ceitos são sempre passíveis à contestação.
Neste sentido, antes de tratar sobre a sustentabilidade ou não de um grupo so-
cial que está em conflito territorial com uma UC, deve-se ter em mente quais são as
pretensões dos pesquisadores que arvoram discursivamente a “verdade científica”
sobre o que é ser “sustentável” - e de como, a partir disso, assumem para si o direito
70
e o poder de ditar como usar o território de acordo com suas convicções.
Como já afirmou Varella (2013, p. 190), o conceito da sustentabilidade pode “pro-
var” que empresas como a gigante suíça Eternit agem em prol do Desenvolvimento
Sustentável: algo extremamente contestável, uma vez que a empresa é proibida de
atuar em determinados países da Europa, dado o comprovado impacto ambiental
que ela gera. Por outro lado, o mesmo conceito pode aferir um caráter de “insus-
tentáveis” às diversas comunidades que se autoidentificam por identidades cole-
tivas que estão em conflito com Áreas Naturais Protegidas. Ainda que não se diga
isto de maneira explícita, muitas das proibições (diretas e indiretas) que sofrem
as comunidades que vivenciam este tipo de conflito provêm da aplicação (justifi-
cativa) genérica do discurso hegemônico sobre o que é sustentável (ignorando as
possibilidades dos grupos sociais contribuírem – o que muitas vezes já ocorre – na
conservação ambiental).
Em Barbados, comunidade autoidentificada como tradicional de Guaraqueçaba,
uma nova lógica de uso e apropriação territorial vem sendo imposta por agentes
externos a partir da aplicação do discurso hegemônico da sustentabilidade - o que,
por sua vez, vem desencadeando um complexo conflito territorial. Uma das princi-
pais causas deste conflito vem a ser o próprio Parque Nacional de Superagui, que se
manteve 24 anos sem um Plano de Manejo. Segundo Duarte (2013), mesmo com a
ausência deste documento, moradores de Barbados relataram que diversas práti-
cas tradicionais foram afetadas ou proibidas (formal ou informalmente) desde o
advento da Unidade de Conservação.
Conceitos norteadores
71
pelos que nele vivem), tudo isso serve de referencia paras as relações
sociais: barreiras ou fronteiras físicas ou imaginárias (SOUZA,
2005, p. 99).
Aspectos metodológicos
73
ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo – isto é, sobre o papel da
cultura na vida humana (GEERTZ, 1989, p. 37).
A presente pesquisa conta com dados coletados desde o ano de 2009, e teve
como instrumentos de pesquisa a observação participante, diários de campo, en-
trevistas semiestruturadas e mapeamentos temáticos. Entendendo que para captar
o sentido dos acontecimentos e dos discursos sociais dos moradores locais era
necessário “estar lá”, no cotidiano da comunidade estudada, como ressalta Geertz
(1989). A permanência em Barbados ocorreu em cinco visitas curtas (ficando na co-
munidade entre quatro e nove dias) e uma visita prolongada (de aproximadamente
três meses) ao longo dos anos de 2011 e 2012 (período de elaboração da dissertação
de um dos autores deste artigo). As visitas anteriores, desde o ano de 2009, tiveram
duração entre dois e quinze dias; no ano de 2013 realizaram-se duas visitas de qua-
tro dias para a atualização dos dados. Em 2014 foram realizadas visitas mensais
(com duração de dois dias).
O universo de pesquisa refere-se às comunidades tradicionais que têm suas
territorialidades específicas atingidas pelo “discurso hegemônico da sustentabili-
dade”, no Estado do Paraná, região Sul do Brasil, e o recorte do objeto consiste na
comunidade de Barbados, localizada no interior do Parque Nacional do Superagui,
situada na baía de Pinheiros.
Barbados possui, em média, 69 moradores, divididos em 19 famílias. Foram re-
alizadas entrevistas com a gestora do Parque, com representantes de 12 famílias
de Barbados, além de conversas informais com os moradores de vilas vizinhas (em
especial com aqueles mobilizados em torno do enfrentamento ao PNS). Dentre os
momentos da pesquisa em campo, destacamos a observação que fizemos da primei-
ra reunião dos moradores para fazer o mapeamento coletivo solicitado pelo ICMBio
para fundamentar o Plano de Manejo e a reunião promovida pelos moradores, de-
nominada de “Encontro sobre a Violação de Direitos Humanos Provocados pelos
Parques Nacionais em Territórios de Comunidades Caiçaras e Pescadores e Pes-
cadoras Artesanais no Paraná” – esta última será mais frisada no decorrer deste
artigo.
74
do Paraná: ora, como lembra Adams (2000), o próprio termo que dá origem ao
nome “caiçara” (como se autoidentificam parte dos moradores de Barbados) advém
do tupi guarani “Caá-içara”, que diz respeito à prática do cerco. Ou seja, umas das
principais práticas fundantes da cultura em questão é proibida e criminalizada por
uma imposição exterior às lógicas locais, pautada no discurso hegemônico da sus-
tentabilidade.
Outra questão polêmica refere-se ao cultivo de roças de subsistência. De acordo
com o SNUC o objetivo básico de um Parque Nacional é o de preservar os “ecos-
sistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica”, permitindo-se
apenas o desenvolvimento de pesquisas científicas, de atividades de educação am-
biental, de recreação e de turismo ecológico (Art. 11 da Lei 9.985 de 2000). Seg-
undo essa mesma lei (parágrafo 1º do Art. 11), por ser de posse e domínio públicos,
deve ocorrer a desapropriação de áreas particulares inclusas em seus limites. O
estabelecimento do Parque, por si só, impede o uso direto dos recursos, como o
cultivo de roças ou produção artesanal de determinados objetos (como canoas e re-
mos), prevendo, portanto, não só a interrupção de determinadas atividades, como,
também, a retirada das populações que poderiam desenvolvê-las.
Diversas outras práticas culturais foram afetadas direta e indiretamente pelo
estabelecimento da UC, como é o caso do fandango, dos mutirões e do extrativismo.
É importante lembrar que as práticas citadas não estão “desaparecendo esponta-
neamente” (Duarte, 2013), tampouco foram extintas: a modificação destas práticas
são consequências do processo sócio-histórico atual, consequência de outras causas
e eventualidades.
Duarte (2013) aponta que o conflito territorial local tem gerado uma articulação
entre os moradores das comunidades do interior e entorno da UC, que passam a
adotar estratégias de enfrentamento à questão, através de práticas como o boicote
coletivo ao estudo do Plano de Manejo e do Conselho Gestor da UC. Além disso,
passaram a desenvolver algumas de suas práticas (hoje criminalizadas) de forma
escondida.
Foi em meio a este turbulento processo de conflito territorial que o processo de
cartografia que aqui será relatado ocorreu, ainda no ano de 2012. Em meados deste
ano, sem grandes explicações, a comunidade de Barbados recebeu pessoalmente de
funcionários do ICMBio um mapa da região que, segundo os próprios moradores,
deveria ser preenchido coletivamente pela comunidade, de maneira a mapear todos
os usos territoriais que os moradores faziam, a fim de regularizar tais atividades no
Plano de Manejo da UC.
Durante o primeiro encontro para o mapeamento da comunidade, o qual par-
ticipamos como observadores, os moradores apresentaram dificuldades em inter-
pretar e preencher a carta do ICMBio - e isto se deu por diversos fatores como,
por exemplo, pela ausência de uma orientação sobre o que e como fazê-lo, como
interpretá-lo (localizar objetos espaciais) e preenchê-lo.
Outro aspecto que intrigou os moradores foi a ausência de algumas vilas no
mapa: para alguns moradores isto poderia ser estratégico, a fim de se criar a im-
pressão de um “vazio demográfico” - fenômeno este já identificado em outros lu-
gares por Almeida (2008a, p. 33). Vale frisar que um mapa é sempre um recorte e
um discurso sobre o mundo e, por isso, visa apresentar uma realidade a partir de
75
um documento técnico e científico – trata-se, portanto, de um discurso oficial que
visa retratar a própria realidade do local.
Dados os empecilhos encontrados, a comunidade decidiu e produziu, coletiva
e independentemente do órgão e dos pesquisadores, uma maquete de Barbados.
Julgaram que, assim, seria mais fácil apontar seus usos territoriais naquele instru-
mento que em um mapa: assim, poderiam animar (ou seja, explicitar os objetos
mapeados) de maneira dinâmica, à medida que a explicassem verbalmente aos
gestores do Parque.
Apesar deste processo, a equipe gestora dos estudos preliminares da UC optou
por outras estratégias “complementares” de mapeamento - a própria gestora nos
explicou em entrevista que depois deste mapeamento do uso e ocupação do solo,
houve um segundo mapeamento (realizado por uma bióloga) baseado no que a
gestora denominou de “mapa falado”. Segundo ela, foram produzidos dois mapas:
“[um mapeamento era para] falar sobre as coisas que eles têm orgulho e localizá-
las, como a paisagem, rio, manguezal. O outro era dos problemas [...]” (Guadalupe
Vivekananda em entrevista concedida em 2012).
De toda a forma, quando os estudos preliminares que foram encomendados pelo
ICMBio para servirem de subsídio ao Plano de Manejo do Parque foram entregues
aos moradores e ao público em geral, pelo menos três fatos chamaram nossa
atenção: 1) os estudos não apresentavam os mapas – nem os produzidos pelos mo-
radores (que, ainda que não possuíssem detalhes técnicos, como escala ou uso de
equipamentos de localização por satélite, apresentavam ricos detalhes sobre o uso e
ocupação do solo de parte do PNS), nem os produzidos pelos técnicos contratados:
isto, claro, impede uma real análise crítica do documento, uma vez que os mapas
do Plano de Manejo ditarão o uso territorial da UC; 2) os discursos dos moradores
não foram relatados: não se encontra, nos estudos preliminares, que tanto arvoram
o título de “participativo”, nenhuma menção ao processo de automapeamento pro-
duzido pela comunidade de Barbados: não se trata apenas de ignorar o produto (a
maquete), mas, também, de tornar invisível o próprio processo de politização da
natureza que ali acontece – ou seja, ignora-se o processo de mobilização política e
identitária dos moradores Barbados, que, atualmente, apresenta uma organização
social em torno da defesa de suas práticas territoriais tradicionais: é por isso que
em dezembro de 2013 aconteceu uma reunião organizada pelos moradores atingi-
dos pelo PNS, envolvendo mais de 200 moradores54. A intenção do encontro era,
resumidamente, tratar sobre os conflitos territoriais advindos do PNS; 3) as conse-
quências da participação local nos estudos preliminares - que fora resumida a uma
tutela. A prova maior disso é o fato do estudo ter ignorado as propostas elaboradas
pelos moradores diretamente afetados pelo PNS – ao invés da “participação” en-
volver os moradores como sujeitos da pesquisa, foram vistos/utilizados como ob-
jetos de pesquisa. Os dados extraídos deles foram (e serão) utilizados para se fazer
(direta ou indiretamente) a gestão do território da UC - incluindo, aqui, espaço, re-
cursos naturais (fauna e flora) e as próprias populações humanas - mas não foi in-
corporada ou sequer questionada a opinião dos moradores acerca suas demandas.
Ainda tratando da reunião de dezembro de 2013, cita-se que por se sentirem
54 Encontro sobre a Violação de Direitos Humanos Provocados pelos Parques Nacionais em Territórios de Comunidades
Caiçaras e Pescadores e Pescadoras Artesanais no Paraná, ocorrido na Ilha de Superagui, em Guaraqueçaba-PR.
76
disciplinados por estudos científicos que não dominavam, os moradores buscaram
apoio de alguns pesquisadores e de algumas universidades para tentar contrapor
os estudos preliminares do ICMBio – 20 pesquisadores se uniram para realizar
uma análise crítica do documento, a fim de demonstrar as inconsistências teóricas
e metodológicas dos estudos. Além disso, os pesquisadores acionados pelos mora-
dores realizaram análises dos documentos visando possibilitar uma tradução da
linguagem acadêmica e técnica para uma mais acessível aos moradores, uma vez
que grupos de diferentes comunidades reclamavam não compreender tais docu-
mentos e se mostravam preocupados com os conteúdos que seriam validados sem o
seu conhecimento pleno. Estas e outras críticas foram repassadas diretamente aos
gestores do PNS durante o evento de dezembro de 2013 (citado no parágrafo aci-
ma), juntamente com um abaixo-assinado com mais de 450 assinaturas de comuni-
tários que se autoidentificavam como pescadores tradicionais e caiçaras. No evento,
ao cabo de seu fim, fora produzida uma “Carta aberta à sociedade brasileira”, onde
podia se ler, entre outras coisas:
77
A gestora posiciona-se à favor de um protecionismo ambiental regulado pelas
leis reificadas – assim, a presença humana em um Parque Nacional só pode ser vista
como um empecilho. Nota-se que, em geral, se ignora o próprio processo histórico
de surgimento da UC e a toma como um fato dado: encarada como um processo,
pode-se afirmar que o conflito não é da comunidade com o Parque (os moradores,
alias, não se colocam contra a proteção ambiental), mas, sim, do Parque com a co-
munidade (que, de maneira preconceituosa, impede ou considera como negativa a
existência dessas comunidades em seu interior).
Os estudos preliminares do Plano de Manejo apresentam outra característica
marcante: tratam a experiência da identidade coletiva (e, consequentemente, a for-
ma de construir uma territorialidade específica e uma cultura específica) de manei-
ra também tutelada, explicitando o discurso hegemônico da sustentabilidade que
ali se impõe. Neste caso, o ponto de apoio de tal discurso se dá no próprio SNUC:
a permanência da comunidade de Barbados acontece a partir do disciplinamento
desta à atividades condizentes com as premissas do PNS. Indiferente à autoiden-
tificação e à identidade territorial da comunidade, esta (e outras) são induzidas a
terem sua existência material pautada em um “turismo ecológico/comunitário/de
base comunitária”: atividade esta preconizada como uma das únicas a poder existir
em um Parque Nacional. Ou seja: nenhuma atividade entra no escopo de discussão
do Plano de Manejo, senão aquelas que o órgão ambiental prevê como possíveis.
Como preconiza o discurso hegemônico da sustentabilidade do PNS, a sustenta-
bilidade da área só é atingível com a viabilização plena do Plano de Manejo que está
sendo elaborado – sustentabilidade, esta, que está diretamente ligada à ação de
manejar o território do Parque e, consequentemente, a territorialidade específica
das populações locais. O controle territorial (material) incide, claro, necessari-
amente sob o controle cultural da população: o Plano de Manejo não definirá so-
mente o que se pode fazer naquele lugar, como, também, que tipo de atividades as
populações poderão realizar ali. Tudo isto, enfim, balizando-se no discurso (cientí-
fico) sobre a sustentabilidade hegemônica.
78
se tratava o Plano de Manejo. O fato dos mapas autoproduzidos terem sido ig-
norados apontam para que tipo de participação o Plano de Manejo irá se munir:
daquela que possui menor caráter de espontaneidade e de polêmica – afinal, estas
eram as principais características dos produtos produzidos pelos moradores, visto
que questionavam diretamente as ordens impostas pelo discurso hegemônico da
sustentabilidade travada pelo órgão gestor da UC. Além disso, os estudos ignoram
os processos de mobilização em torno das práticas territoriais do grupo: as falas
dos moradores atingidos pelo PNS nos estudos preliminares resumem-se a citações
indiretas e, em grande medida, são relacionados a uma prática de turismo tute-
lado pelo órgão – assim, tem-se a impressão que esta atividade é prioridade para o
grupo.
Por fim, acreditamos que os estudos e proposições referentes ao Plano de Mane-
jo da UC enveredam à gestão dos conflitos existentes (ou seja, não discutem os
conflitos existentes, mas, sim, tentam modular a realidade e os moradores, de ma-
neira a inseri-los na realidade legal que se impõe sobre eles), de maneira que as
populações locais continuarão submetidas às imposições de um controle territorial
(e, assim, da própria vida material e imaterial) exógeno, embasado, por sua vez,
no discurso científico sobre a sustentabilidade hegemônica. A partir dos discursos
acerca a suposta busca pela “sustentabilidade”, o órgão gestor centraliza as decisões
territoriais locais - modificando não só a territorialidade específica das comuni-
dades que habitam o local onde o Parque instaurou-se, como, também, a própria
cultura da população em questão.
Neste sentido, acreditamos que a produção dos “estudos cartográficos” partici-
pativos realizados em Barbados, que tiveram origem de uma necessidade exógena
(leia-se: exigência do ICMBio), não serviu como um instrumento para uma reso-
lução real dos conflitos territoriais enfrentados naquele lugar: quando os mora-
dores apresentaram um discurso de práticas territoriais incompatíveis à UC, estes
dados simplesmente foram deixados de fora dos estudos, como se nunca tivessem
sido exigidos ou realizados. Com isto, tanto o processo quanto os produtos desta
politização da natureza vão sendo perdidos e, com isto, diminui-se cada vez mais
a possibilidade de uma discussão franca e democrática sobre a gestão de um ter-
ritório tradicionalmente ocupado e atingido por um Parque Nacional.
O desenrolar dos processos de mapeamento para os estudos do Plano de Manejo
não tiveram como premissa uma discussão efetiva sobre o uso e apropriação do
território, sequer sobre seus recursos. Ora, o estudo tinha apenas duas finalidades
claras: fornecer subsídios para a gestão e controle do território da UC; e para, no
máximo, servir de subsídio a possível criação de uma regionalização específica à
comunidade, como uma “zona histórico-cultural”, que possuiria, como fim maior,
novamente, o controle da população naquele território.
Além disso, Souza (2007), em estudo sobre os conflitos territoriais enfrentados
pelos faxinalenses, observou que a elaboração de leis e políticas públicas que não
tornavam explícitas a existência do grupo étnico mobilizado acabaram sendo insu-
ficientes para resolver as questões fundiárias e os conflitos do grupo, visto que tais
medidas mantinham “na invisibilidade o sujeito coletivo e o contexto em que nele
atuam e se manifestam” (SOUZA, 2007, p. 577).
Um dos moradores locais faz a crítica sobre os processos participativos para a
79
fundamentação do Plano de Manejo:
Pode-se notar na fala acima, que o morador da região percebe que a sustentabi-
lidade visada nos Planos de Manejo a partir da participação dos moradores locais
serve tão-somente para fazer o controle social do território: como o SNUC apregoa,
esta categoria de UC não permite sequer a existência de comunidades habitando
seu interior. “Participação”, neste contexto, significa legitimação das ordens exóge-
nas ditadas pelo órgão ambiental e pelos reprodutores do discurso hegemônico da
sustentabilidade.
A participação da comunidade no processo mapeamento poderia ser um dos
principais instrumentos para indicar a sua territorialidade específica, como já sa-
lientamos em outro momento (VARELLA; DUARTE; MARTINS, 2013) - mas vale
destacar, também, aquilo que Acselrad & Coli (2008) alertaram: existe a possibi-
lidade destes mapeamentos participativos servirem como instrumentos de domi-
nação contra os próprios mapeados, caso estes não compreendam técnicas empre-
gadas e a importância de seus usos. Enquanto o instrumento for utilizado por e para
agentes externos, os grupos continuarão sendo meros objetos de pesquisa.
A participação da comunidade em processos cartográficos que não visam servir
às comunidades mapeadas, mas somente à legitimação do controle externo sob o
território, pode dar à comunidade a ilusão de possuir algum controle sobre o terri-
tório. Mas, ao discutir o espaço sem abordar suas nuances sociais (o controle sobre
o território), estes processos podem desviar o foco dos questionamentos sobre a
própria formulação de políticas e distribuição do poder nas sociedades (ACSELRAD
& COLI, 2008, p. 37). Daí deriva a importância de se compreender as diferenças
entre espaço, território e territorialidade específica – categorias estas que foram
renegadas pelo órgão gestor: a única territorialidade percebida e concebida nos
estudos preliminares tem sido aquela que genericamente impede a existência de
comunidades no interior do PNS.
Além disso, se os mapas podem incorporar os conceitos da comunidade, podem,
da mesma forma, “excluir os de quem não participa” (ACSELRAD & COLI, 2008, p.
37). Neste sentido, ressaltamos que a metodologia consagrada e utilizada conven-
cionalmente em estudos de Planos de Manejo de UCs que têm populações em seu
interior, o DRP (Diagnósticos Rurais Participativos, que alega ter como vantagem
a rápida aplicação e que fora incorporado nos estudos preliminares do Plano de
Manejo do PNS), ao pautar-se em representantes da comunidade acaba recortando
e forjando uma “opinião pública” sobre a visão da coletividade. O recorte, em boa
80
verdade, não é o problema: afinal, isto é parte de qualquer estudo científico. Porém,
ao optar por um método de curta duração, os pesquisadores realizaram um estudo
sobre a realidade de cada comunidade em questão de horas: acreditamos que mais
de 20 anos de conflito não podem ser apreendidos em poucas horas de estudos,
feitos por pessoas estranhas à comunidade e que representavam, acima de tudo, o
interesse dos órgãos gestores (lembramos, aqui, que os moradores não se sentiram
representados nos estudos, e que tampouco este levou em consideração a visão e as
propostas espontâneas e polemicas trazidas pelos atingidos pelo PNS).
O valor intrínseco ao Plano de Manejo da referida UC advém do fato de balizar-
se em um discurso científico sobre a sustentabilidade, o que permite ao órgão aferir
o “grau de sustentabilidade” das culturas locais. A partir dessa lógica, estes estudos
servirão para legitimar o poder do órgão gestor da UC para controlar a cultura e
a territorialidade específica dos moradores, que passarão a ter de existir segundo
os preceitos da preservação ambiental compatíveis com os interesses do Parque
Nacional. Em um panorama mais crítico, onde a lei é lida e aplicada tal qual está
prevista, ou seja, como uma noção operacional, a própria permanência das comuni-
dades em seu território tradicionalmente ocupado torna-se inviável.
De maneira geral, pode-se afirmar que o conflito no lugar ainda vem sendo
encarado de maneira alienada: ignoram-se os processos sociais históricos que pro-
duziram o Parque Nacional de Superagui, e enfatiza-se a necessidade de se aplicar
as diretrizes impostas por “estudos científicos”, feitos por pessoas externas ao lu-
gar, que ditam quais os meios e formas mais “sustentáveis” de se usar o território:
mais que gerir o território, o Plano de Manejo do PNS apresenta-se potencialmente
como um discurso hegemônico da sustentabilidade.
Considerações finais
81
“mostra-se dependente da estrutura de poder na qual ele se instaura” (ACSELRAD
& COLI, 2008, p. 40) - como foi o caso dos processos que observamos. Destarte,
é necessário identificar e relacionar as tramas territoriais do espaço mapeado (a
disputa territorial), e as tramas dos sujeitos relacionados ao mapeamento (disputa
cartográfica), para então questionar: “qual é a ação política a que o gesto cartográ-
fico serve efetivamente de suporte?” (ACSELRAD & COLI, 2008, p. 41).
Ao ignorar os automapeamentos, os estudos preliminares perderam dupla-
mente: primeiro, porque acabaram estrategicamente com a perspectiva da comu-
nidade sobre a sobreposição de territorialidades - os dois processos de automapea-
mentos (feitos pelos moradores de Barbados e outro anterior, feito pelos da Vila de
Superagui) apontavam para uma mobilização social em torno dos conflitos territo-
riais que existem na região, frutos do discurso hegemônico da sustentabilidade; em
segundo lugar, os estudos perderam a oportunidade de se munirem de um produto
realmente participativo: o mapa e a maquete produzidos pela comunidade tinham o
potencial de servir como um instrumento jurídico para a regularização de questões
fundiárias do conflito territorial em questão.
Por fim, concluímos que os mapeamentos participativos ou qualquer outra es-
tratégia semelhante de identificação das territorialidades específicas de comuni-
dades afetadas pelo discurso hegemônico da sustentabilidade só servirão como
instrumentos contra hegemônicos quando deixarem de servir unicamente à repre-
sentação espacial da noção operacional do desenvolvimento sustentável e passarem
a questionar a essência dos processos cartográficos, ou seja, quando tratarem de
fato sobre a democratização dos territórios e o acesso aos recursos.
Bibliografia
82
logia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba.
83
Florestal) - Setor de Ciências Agrárias, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
84
VIVEKANANDA, Guadalupe. Parque Nacional do Superagüi: a presença
humana e os objetivos de conservação. 2001. Dissertação (Mestrado em En-
genharia Florestal) – Setor de Ciências Agrárias, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba.
85
86
A tutela das plantações industriais de árvores e a resistência camponesa
no município de imbaú - PR55
Resumo
55 Este artigo é o resultado parcial das discussões empreendidas durante a realização do Projeto de Extensão intitulado
Cartografia Social dos Impactos dos Monocultivos de Eucaliptos no Município de Imbaú – PR. A pesquisa somente foi
possível com apoio da CRADE, IFPR/PROEPI/Diext e dos bolsistas de extensão: Damaris Garces, Gislaine Lacerda,
Suzana Figueirdo e Simeia França.
56 Doutor em Sociologia - Docente Campus Paranaguá – IFPR. Coordenador do Projeto. roberto.souza@ifpr.edu.br
87
bilidade e situação de vulnerabilidade social decorrente de ameaças que assolam às
plurais formas de existência da cidadania no Município e região.
Introdução
88
uma relação social de pesquisa com os “Atingidos” pelas plantações arbóreas, a fim
de produzir conhecimentos e disseminar tecnologias apropriadas ao monitoramen-
to dos impactos pelas comunidades afetadas. Durante o período de um ano visita-
mos comunidades e participamos de reuniões com representantes de comunidades
para compreender a dinâmica dos conflitos sociais.
Destaca-se especial atenção as recorrentes violações de direitos fundamentais
evidenciadas pelo conhecimento das realidades localizadas de grupos socialmente
vulneráveis, em situação de injustiça ambiental, uma vez que sua existência social
no território se encontra fortemente ameaçada pelos planos de expansão61 do setor
de papel e celulose na região.
Os Procedimentos da Análise
89
mentos para registrar histórias sociais, de trabalho, da relação com o ambiente,
resistência e lutas contra a expansão dos monocultivos arbóreos.
As coordenadas geográficas foram marcadas pela própria comunidade por meio
de GPS, as localidades foram nomeadas e narradas em detalhes, juntamente com os
conflitos e/ou práticas produtivas que ganham forma nas legendas do mapa final.
Os expoentes nesse debate são o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida
(PPGSA - UFAM) e o geógrafo Henri Acselrad (IPPUR – UFRJ). Ambos esclarecem
que nessa forma de mapeamento, há uma interrelação entre as ferramentas tec-
nológicas e os conhecimentos tradicionais. O resultado é uma autodemarcação sufi-
cientemente precisa dos conflitos socioambientais a partir do que denominamos de
processos sociais de territorialização63 narrados pelos agentes sociais “Atingidos”
nas referidas comunidades.
Ao todo foram realizadas 8 “oficinas de mapas” ao longo do ano de 2012, onde
os agentes sociais utilizaram 3 formas de narrativas para exporem os conflitos entre
seus modos de vida e a expansão dos monocultivos: croquis (desenhos), entrevis-
tas e imagens (fotográficas). No entremear das oficinas, foram colhidas imagens
fotográficas e georreferenciados conflitos pelos “Atingidos”, a fim de qualificar o
banco de dados de conflitos de cada uma das comunidades afetadas. Tais dados,
organizados em entrevistas transcritas, imagens e croquis foram coligidos e os ma-
pas reelaborados, segundo revisões dos “Atingidos”. Identifica-se nessa interação
de pesquisa, novos conhecimentos64 sendo produzidos e apropriados pelos agri-
cultores, estudantes – bolsistas - e organizações que são colocadas em confronto
com as informações pretensamente triunfalistas sobre o desenvolvimento da região
produzidas pela empresa e reproduzidas pela mídia e agências governamentais.
No entremear da pesquisa documental e dos procedimentos cartográficos, man-
tivemos vigilância e aproximação crítica através da observação direta e a coleta de
relatos orais a campo, empreendidas ao longo de um ano e meio e, nas mais di-
versas situações de pesquisa e extensão. A metodologia constituiu uma busca de-
liberada pela comparação entre os discursos, na tentativa de exercitar a contra-
dição e a manifestação do antagonismo entre a realidade vivida pelos atingidos e
a publicidade empresarial. Para tanto, o esforço de análise exigiu a decomposição
dos elementos fundamentais presentes nos relatos orais obtidos nas “oficinas de
mapas” e, em visitas realizadas em 12 comunidades rurais, onde foram entrevis-
tados 22 agricultores “Atingidos” pelos monocultivos arbóreos. À confirmação dos
argumentos seguia-se o registro de imagens e coleta de dados georreferenciados
sobre situações conflituosas mencionadas que indicavam a espacialização dos im-
pactos socioambientais relacionados à redução dos espaços sociais na agricultura
camponesa; desestruturação dos sistemas produtivos tradicionais; degradação dos
63 Segundo ALMEIDA (2004) trata-se do processo de reorganização social decorrente de situações de conflito territorial
envolvendo grupos sociais que historicamente se contrapuseram ao modelo agrário exportador, apoiado no monopólio
da terra, no trabalho escravo e em outras formas de imobilização da força de trabalho. No entanto, o processo de ter-
ritorialização é um fenômeno complexo que não deve ser simplesmente considerado como uma imposição exógena e
hegemônica do Estado sobre a diversidade de expressões territoriais. Apesar de seus dispositivos de dominação e de re-
ordenamento da vida desses grupos sociais, ele também é reapropriado e reinterpretado pelos mesmos, que lhe atribuem
64 O conjunto desses dados ganhou o formato de Boletim Informativo n° 1, tendo como autores os próprios participantes
das oficinas de mapas. No dia 06/06/2013 foi realizado evento, intitulado: Seminário Regional sobre Violação dos Direitos
Humanos e as Plantações Arbóreas de Eucaliptos, que contou com a participação de 250 pessoas, momento em que ocor-
reu o lançamento público do Boletim.
90
recursos naturais, em detrimento de outros projetos sócioterritoriais para a região.
A Hegemonia Empresarial e a Resistência Camponesa
91
TABELA1
92
TABELA2
93
TABELA3
94
A despeito do uso das imagens de satélites, como princípio de reflexão crítica do
grupo - demonstração da expansão das plantações de madeira - o exercício com-
parativo entre os diferentes discursos ilustrou as dissonâncias entre o vivenciado
pelas comunidades locais atingidas pelas plantações de madeira e as estratégia de
comunicação empresarial, ressaltando as contradições do modelo que se sustenta
em grande medida na propaganda produzida pelo discurso empresarial pautado
pela suposta eficiência do conceito de “modernização ecológica”66.
Por outro lado, os dados apresentados no mapa dos conflitos confirma as nar-
rativas dos atingidos, visto que, os dados relativos ao avanço das plantações são
inequívocos e expressam com nitidez a evolução dominial do modelo celulose e pa-
pel sobre as comunidades rurais deste município, com área aproximada de 33.000
ha. Em 1990 as plantações de eucaliptos ocupavam 17% da área total. Em 2006,
passaram para cerca de 29%. E, no último levantamento, com imagens de 2011,
demonstram que mais de 40% da área de Imbaú está tomada pelas plantações de
arbóreas exóticas, em especial, eucaliptos.
A primeira observação de alguns participantes nas oficinas de mapas, se refe-
ria a situações de “desaparecimento” e “confinamento” de 9 comunidades rurais
nos últimos 20 anos: KM 222, Charqueada dos Betim, Imbaú dos Prestes, Serra do
Facão, São Geraldo, Charqueadinha, Bairro dos Bueno, Vila dos Crespos e Bairro
Gramado. Acrescenta-se a análise que tais comunidades não são informadas no
mapa oficial do município (Plano Diretor, 2009), ainda que, em visita a campo,
a equipe de pesquisa as tenha constatado, e membros dessas localidades estives-
sem participando das oficinas. Todavia, no confronto com as imagens de satélite é
notório o predomínio no uso do solo pelas plantações industriais de árvores nes-
sas localidades. Denota-se, no entanto, a resistência camponesa pela descrição dos
atingidos e a visualização pelos agentes de pesquisa de pequenas lavouras cercadas
por plantações de eucaliptos, sendo gradualmente substituídas por madeira, guar-
dando forte relação com o processo de desterritorialização dessas comunidades.
Relata-se ainda, de modo geral, uma diminuição acentuada das áreas de uso comum
dessas comunidades, tal como matas e beiras de rios, e até mesmo nascentes, rios e
córregos, que nos últimos dez anos foram comprometidos em sua vazão.
As conseqüências decorrentes desse controle territorial imposto pelo modelo de
papel e celulose foram narradas em tom de denúncia pelos agricultores nas visitas
realizadas em suas comunidades, bem como durante realização das oficinas de ma-
pas, podendo ser conhecidas na sua forma gráfica no mapa acima.
Dentre todas as denuncias aqui arroladas, fato marcante se refere a quatro situ-
ações de conflito: secagem de fontes de d’água, substituição de áreas de produção
de alimentos, casas abandonadas e confinamento das famílias. Todas as comuni-
dades visitadas apresentaram essas ocorrências em suas narrativas, a partir de situ-
ações mencionadas com objetividade e veracidade, sendo muitas delas registradas
em fotos e georreferenciadas. Em muitos casos a constatação foi realizada pelos
próprios pesquisadores a campo, ao serem conduzidos pelos atingidos até a locali-
66 A noção de “modernização ecológica”, segundo Acserald (2000), designa o processo pelo qual as instituições políticas
internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos proble-
mas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração
e no consenso.
95
zação de nascentes secas e casas abandonadas, que tinham nas suas proximidades
densas plantações de eucaliptos. O paralelo entre os conflitos e suas razões foram
descritos de modo testemunhal, ou seja, os atingidos narravam com precisão de
quem vivenciou a experiência ao descrever a relação de causa e efeito dos impactos
mencionados.
96
MAPA
97
Os Direitos Humanos Violados pelas Plantações Industriais de
Árvores
98
zadas, como estratégia de dissimulação do modelo de desenvolvimento, que se pre-
tende sustentável em sua forma discursiva, sua antítese manifestada via cartografia
social pela Comissão regional dos Atingidos pelo Deserto Verde confirma o sofri-
mento das comunidades que veem seu direito a cidadania diferenciada ameaçada
(Cf Constituição Federal art. 215, 216 e 225; Plano Nacional de Direitos Humanos,
Convenção OIT 169). Ou seja, seu modo de criar, de viver e de se expressar na
condição de camponeses e povos tradicionais em consonância as formas distintas
de uso dos recursos naturais encontra-se em condições de poder extremamente
desiguais nos últimos 70 anos, levando ao aguçamento das pressões territoriais e
ao limite o exercício da resistência camponesa para permanecer reproduzindo-se
física e socialmente.
A pressão da racionalidade dominante sobre as outras formas de conhecimento
corresponde a uma situação de colonialismo feito de marginalização, descrédito e
liquidação do que não possa ser reduzido aos imperativos da ordem racionaliza-
dora. Segue-se a um ordenamento do território por meio de incentivos, isenções e
flexibilização ambiental, que tem permitido uma acumulação de capital acelerada,
sem que as populações possam discernir sobre a mudança em seus lugares e suas
vidas, o que significa a completa perda da autonomia política e social sobre seu
destino, restando-lhes acatar as regras do jogo - vender suas terras ou plantar eu-
caliptos – da exclusão social, enquanto estratégia de sobrevivência.
Se nem as prefeituras têm força para mudar esse rumo, que dirá
nois que somo pequeno, sem reconhecimento, sem força. Digo mais,
quantia de gente que vendeu e foi embora, porque não tinha mais o
que fazer com essa situação. (Agricultora Atingida, Jacutinga)
Considerações Finais
Referências
67 Ao que tudo indica, esta dominação desdobra-se em vantagens obtidas junto a instituições estatais, financeiras e
de certificação, visto que, a adequação aos “critérios sociais e ambientais” alcançados segundo regras formuladas pelo
mercado de certificação lhe confere essas condições, além é claro, do poder simbólico que opera no campo das relações
políticas, visando atender seus interesses econômicos.
100
DALCOMUNI, S. M. A implantação da Aracruz Celulose no Espírito
Santo – principais interesses em jogo. (Dissertação de Mestrado) em Economia.
Rio de Janeiro: UFRRJ. 1990.
101
102
R-Existência da Comunidade de Agricultores e Pescadores Artesanais dos
Areais da Ribanceira, Imbituba - SC
Há um sonho...
(Valdira da Rocha Farias70)
Há um sonho a se realizar É farinha do mesmo saco
Dos agricultores que lutam Mas esta não vai para a mesa
em adquirir as terras Do agricultor honesto
Para plantar e para colher Que serve na incerteza
De realizar seus sonhos
Em ver seus frutos crescer Tem alguém da grande elite
Querendo nos afastar
É plantando que se colhe Das terras que nos pertence
Assim diz o velho ditado Do direito de plantar
Quem planta boa semente Humildade é nossa arma
Colhe frutos à vontade Por isso vamos lutar
Vai com fartura para a mesa
Do pobre e da alta sociedade Pedir não é feio. Feio é roubar
Por isso quero pedir
Eu só queria saber Para alguém nos ajudar
Porque tanto preconceito A encontrar uma solução
Com os pobres agricultores E nosso sonho realizar
Que lutam por seus direitos
E esperam que um dia Não sou contra o progresso
Tenham um final perfeito Nem daquele que o faz
Que a sua cidade cresça
Mas que não seja capaz
De pisar no mais pequeno
Introdução Em destruir a sua paz
103
Esta poesia nos parece ser a melhor maneira de iniciar este texto que tem a preten-
são de auxiliar a ecoar a voz de uma comunidade tradicional que vem reivindicando
direitos, enfrentando tensos e intensos conflitos na luta pela terra e pelo território.
A comunidade de Agricultores e Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira,
Imbituba – SC, vem resistindo historicamente à diversas formas de usurpação das
terras de uso tradicional, através da organização comunitária e da continuidade das
práticas tradicionais mesmo diante do violento processo de avanço da acumulação
por espoliação do capital (Harvey, 2004). Estas formas de resistência representam
uma luta pelo direito de continuar existindo enquanto comunidade, que se materi-
aliza em uma luta pelo reconhecimento do seu território tradicional.
Queremos desta forma, elucidar o processo de luta e r-existência dos Agricul-
tores e Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira que organizados politica-
mente por meio da afirmação dessa identidade coletiva acionam junto a essa
identidade a própria territorialidade do grupo como forma de resistência e luta por
direitos territoriais, ou seja, a afirmação identitária e territorial configura-se neste
caso como um elemento de r-existência da comunidade. Segundo Porto-Gonçalves
(2008), falar de movimentos de r-existência é falar de movimentos que não lutam
somente para resistirem a determinadas pressões, mas que lutam também por uma
determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de produção,
por modos diferenciados de agir e de pensar.
Buscaremos, assim, falar da relação interdependente da existência e resistên-
cia dos agricultores e pescadores dos Areais da Ribanceira, uma vez que a própria
existência do grupo é uma forma de resistência, sobretudo ao modelo de desen-
volvimento hegemônico que vem se estabelecendo na região. Em contrapartida,
essa resistência política em si torna-se um elemento que alimenta a unidade do
grupo e a sua própria existência.
Procuraremos mostrar também como a luta pela terra ganha a dimensão de luta
pelo território nesta comunidade, visto que estes se referem às terras de uso tradi-
cional não apenas como a base material de produção agropecuária, mas também
como a base de produção e reprodução (material e simbólica) da vida da comuni-
dade.
104
A área dos Areais da Ribanceira é utilizada principalmente para o plantio e o
extrativismo vegetal sob a modalidade de uso comum. Desde tempos imemoriais
os locais de moradia da comunidade são distribuídos no entorno dos Areias da
Ribanceira, principalmente nas proximidades do mar e de lagoas para a realização
da pesca artesanal. Contudo, devido à intensificação do processo de urbanização a
partir da década de 1970, os locais de moradia dessa comunidade se transformaram
em áreas urbanas e correspondem atualmente aos seguintes bairros71: Ribanceira,
Divinéia, Aguada, Ribanceira de Baixo, Arroio e Nova Brasília (conforme pode ser
observado no mapa 1). Mesmo com essa mudança, Areais da Ribanceira continuou
sendo o principal local de produção agrícola da comunidade e o uso comum tornou-
se um de seus elementos centrais de r-existência.
Almeida (2008: 133) ressalta que a modalidade de uso comum da terra trata-se
de um aspecto frequentemente ignorado da estrutura agrária brasileira. Afirma que
não se trata de situações nas quais o controle dos recursos básicos é exercido livre e
individualmente por um grupo de pequenos produtores, pois a terra de uso comum
é controlada por seus membros e “tal controle se dá através de normas específicas
instituídas para além do código legal vigente e acatadas, de maneira consensual,
nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que
compõem uma unidade social”.
71 Colocamos o nome dos bairros conforme a comunidade denomina e reconhece cada uma dessas localidades. Os
nomes oficialmente reconhecidos pela prefeitura corresponde respectivamente a: Ribanceira, Vila Nova Alvorada, Vila
Alvorada, Vila Esperança, Arroio e Nova Brasília.
105
Mapa 1 - Localização dos Areais da Ribanceira, Imbituba – SC.
106
A trajetória de luta pela terra e pelo território da comunidade tradicional dos
Areais da Ribanceira está atrelada a um processo perverso que transforma terras de
uso comum em terras de domínio de empresas de capital privado. Tal processo se
efetiva a partir de projeções de desenvolvimento calcadas, principalmente, em in-
teresses industriais e portuários e imobiliários, onde se busca “superar” quaisquer
aspectos agrários pelo viés da urbanização e industrialização.
Vale enfatizar que muitos territórios tradicionais são descontínuos, marcados
por vazios aparentes (sistemas rotativos de cultivos de terras com períodos de
pousio, áreas de estuários que são usados pela pesca somente em algumas épocas
do ano, etc.) e, assim, muitas vezes são vistos como “espaços vazios” onde os pro-
jetos hegemônicos se instauram. Contudo, trata-se de territórios tradicionais onde
a ofensiva do capital retira das populações tradicionais o poder real de definir
seu próprio destino. Esta lógica passou a assolar o uso tradicional dos Areias da
Ribanceira, sobretudo a partir da década de 1970 a partir de projeções que visavam
transformar a área em um distrito industrial tornando essas terras em situação de
litígio e que recentemente, no ano de 2010, culminou na instalação da empresa do
grupo Votorantim Cimentos72.
A construção da identidade coletiva de agricultores e pescadores artesanais dos
Areais da Ribanceira emerge diante desse contexto de tensão, de conflitos e carrega
em sua constituição uma dimensão territorial onde o território exerce um impor-
tante papel de aglutinador de dimensões materiais e simbólicas na constituição do
que Haesbaerth (1999) denomina de “identidades territoriais”. A identidade ter-
ritorial é aquela em que o poder simbólico tem como referencial um recorte ou
uma característica espacial, geográfica, que pode resultar na construção de uma
identidade pelo/com o território e que, por outro lado, esse concreto (material) de
dimensão espacial depende de uma apropriação simbólica para a constituição de
um território e de uma identidade territorial. Segundo o autor:
107
reivindicar o território é neste caso reivindicar o reconhecimento do modo de vida
e da própria territorialidade do grupo. Afinal, conforme enfatiza Porto-Gonçalves
(2003), a territorialidade precede o território, pois não há um território sem ter-
ritorialidade e que não tenha sido resultado de um processo de territorialização,
Os agricultores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira constituíram
um conjunto de práticas sociais em que a posse e o usufruto dos bens naturais (ter-
ra, mar, lagoas, vegetação) têm um forte componente comunitário que se distingue
do modelo historicamente legitimado pelo Estado: o modelo de apropriação pri-
vada da natureza, com destaque para a apropriação privada da terra e a exploração
incessante de bens naturais como terra, água, minerais, madeira, etc.
Pode-se até mesmo afirmar que para além da concepção da terra como “valor
108
de uso” e da “terra de trabalho” há uma concepção, inerente em muitas comuni-
dades tradicionais e no caso da comunidade em questão, da terra como espaço
de produção e reprodução da vida. Trata-se de uma dimensão que envolve outros
planos da prática sociocultural (religioso, identitário, cosmológico, linguístico,
etc.). Neste sentido, a terra não se restringe apenas como parcela de produção
agropecuária, mas ganha a dimensão de território, território de vida, base para a
produção e reprodução da vida de uma comunidade tanto em sua dimensão mate-
rial (espaço físico), política (relações de poder), econômica (atividades produtivas),
cultural (simbólico) e ambiental (bens de uso comum).
Mesmo não havendo cercas nas áreas de roças dos Areais da Ribanceira, é
bastante claro para cada agricultor(a) os limites da roça de cada um. A prática
agrícola se estabelece por meio de roças itinerantes, ou seja, ocorre uma rotação de
terras a serem plantadas, com intervalos de descanso da terra (pousio) de um ciclo
de produção ao outro, que varia de acordo com as condições do solo e das diferentes
formas de manejo.
O preparo da terra para o plantio ocorre de maneira individual e também por
meio de relações de reciprocidade na qual famílias se reúnem para ajudar mutua-
mente a realizar o preparo da terra e os plantios, depois cada família é responsável
por cuidar de sua roça à sua maneira. Dentre os cultivos destacam-se o plantio de
mandioca, aipim, milho, amendoim, batata-doce, abóbora, melancia, melão, pe-
pino, dentre outros. Esses cultivos são, por vezes, estabelecidos por sistemas de
consórcio de plantas, no qual é realizado o cultivo simultâneo de diferentes culturas
como, por exemplo, o plantio de milho, melancia, abóbora e amendoim entre as
mandiocas.
Dentre as diferentes práticas de manejo e uso dos recursos naturais destacam-
se a coleta do butiá e da palha do butiazeiro (Butia catarinensis), uma das mais
importantes práticas extrativistas que ocorre na região (Figura 1). A polpa do butiá
é consumida in natura ou então utilizada no preparo de doces, geléias, sucos e até
mesmo curtida na cachaça; e a palha do butiazeiro é utilizada no preparo de cha-
péus, vassouras, telhados, colchões, etc.
109
Além da forte relação e conhecimento sobre essas terras, a territorialidade dessa
comunidade está atrelada também a uma forte relação com as lagoas e o mar que
circundam e conformam o território de uso tradicional da comunidade de agricul-
tores e pescadores artesanais dos Areais da Ribanceira. Desde a Lagoa de Ibiraquera
e a Lagoa do Mirim, homens e mulheres se deslocavam para tarrafear camarão e
pegar siri; e voltados para o Oceano Atlântico, no mar e nos costões, a extração do
marisco e a pesca artesanal tinham o maior destaque:
Pode-se afirmar de forma geral que as terras e as águas são os principais elemen-
tos da territorialidade desta comunidade, é essa relação única com a terra e com as
águas que garantiram o sustento, a criação e propagação de uma cultura singular.
Adaptando-se às condições naturais do local esses agricultores e pescadores artesa-
nais se territorializaram, criaram o seu modo de vida, a sua territorialidade e con-
stituíram assim, material e simbolicamente o seu território tradicional: os Areais
da Ribanceira.
Outro aspecto importante da territorialidade dessa comunidade e também as-
sociado ao trabalho coletivo é o de processamento da mandioca, momento este de-
nominado de “farinhada” (Figura 3), que se inicia no mês de maio e se estende
110
até meados de agosto com a colheita da mandioca e seu processamento nos en-
genhos de farinha. Entre as décadas de 1960 e 1970 esta atividade representava
a base econômica de muitas famílias. Atualmente a importância dos engenhos de
farinha de produção familiar é relativamente pequena na economia estadual, mas
há aproximadamente quarenta anos eram centrais nas economias de muitas comu-
nidades do litoral catarinense.
112
na compreensão dos conflitos em que estavam inseridos, na construção de uma
identidade coletiva e no acionamento de uma luta por direitos.
Concomitantemente a mobilização política ocorrida durante a cartografia a co-
munidade organizou, no início de 2010, um abaixo-assinado de auto-reconheci-
mento. Se auto-identificaram enquanto comunidade tradicional de Agricultores e
Pescadores Artesanais dos Areais da Ribanceira. Esta identidade coletiva é caracte-
rística dos que estão envolvidos na prática da agricultura itinerante, no extrativismo
e na pesca artesanal nos Areais da Ribanceira. De acordo com Almeida (2008:119
e 123):
75 Seguindo a lógica de privatização de terras públicas, parte das terras dos Areais da Ribanceira sob domínio estatal da
Indústria Carboquímica Catarinense foi passada no ano 2000 para o domínio da Petrobrás Gás S/A (GASPETRO) e no
mesmo ano vendida à empresa privada ENGESSUL Indústria e Comércio Ltda. Fato que foi questionado pelo Ministério
Público Federal por meio da Ação Civíl Pública nº 2006.72.16.000828-9 que visava a nulidade da venda dos imóveis à
ENGESSUL.
113
Figura 4 – Seu Antero e Dona Aurina com os dois filhos e casa demolida aos fundos.
Foto: Acervo pessoal do casal, Antero e Aurina.
114
Figura 5 - Ato organizado pelo MST em Imbituba (fevereiro / 2010) contra a criminalização dos movimentos sociais,
dias após ter sido presa; no microfone a presidente da ACORDI.
Foto: Juliana Adriano, 2010.
Figura 6 - Caminhada dos Areais da Ribanceira até a prefeitura de Imbituba em julho de 2010, ato organizado pela
ACORDI
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.
115
Mesmo com todas as mobilizações e articulações feitas pela ACORDI em defesa
do território tradicional ocorreu, no dia 28 de julho de 2010, a ação de despejo so-
bre uma área com cerca de 250 hectares de terras nos Areais da Ribanceira. Casas
foram demolidas76 (Figura 7), caminhos históricos foram obstruídos, animais de
criação ficaram desaparecidos, houve ameaças intensas e frequentes gerando um
clima de grande tensão na comunidade. A ação de despejo foi o ápice da constante
violência (simbólica e material) que essa comunidade sofreu nos últimos anos e
causou imenso abalo emocional, psicológico, material e econômico às famílias:
Figura 7 - Sr. Antero Cardoso e sua casa ao fundo sendo demolida (à esquerda); Sr. José João Farias e sua casa
demolida ao fundo (à direita).
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.
Figura 8 - Área em que se localizava a casa do Sr. Antonio Valentim, demolida e queimada (à esquerda) e do Sr.
Anilton Sabino (à direita)
Foto: Ezequiel Antonio de Moura, 2010
76 Uma das casas demolidas foi da mesma família vítima de ato semelhante realizado em 2005, de forma ilegal, como já
relato anteriormente.
116
Alguns dias após a reintegração de posse foram realizados atos de mobilização
em solidariedade à comunidade: uma missa e um longo período de vigília que se
configuraram como importantes formas de acolhimento e fortalecimento dessa co-
munidade que se sentia violada e desamparada frente à execução da ação de despe-
jo (Figura 9).
Figura 9 - Missa em apoio à comunidade (à esquerda); reunião durante o período de vigília (à direita): ambas na
sede da ACORDI.
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.
Na área onde foram destruídas algumas das casas durante a ação de reintegração
de posse contra a comunidade, foi construída uma gigantesca Indústria de Cimen-
tos da Votorantin (Figura 10):
Figura 10 - Visão geral dos Areis da Ribanceira, durante a terraplanagem para instalação da empresa de cimentos
da Votorantim.
Foto: Pepe Pereira dos Santos, 2010.
117
vatizada, tampouco possuem alguma garantia de continuidade de posse da área. No
entanto, devido à redução da área disponível para os roçados e à violência material/
simbólica gerada pela ação de despejo, algumas famílias deixaram de seguir com
seus cultivos nos Areais da Ribanceira. Muitos agricultores e pescadores artesa-
nais, contudo, seguem ocupando parte de seu território tradicional, resistindo e
r-existindo frente às forças e ameaças da acumulação por espoliação do capital que
fazem com que seu território siga em litígio; e também continuam buscando forma
de produzir e reproduzir a sua forma de ser e estar que a caracteriza enquanto co-
munidade tradicional.
Considerações Finais
118
atualizando a expansão do capital por meio da acumulação por espoliação e da le-
gitimação da propriedade capitalista, promovendo pressões crescentes em direção
à mercantilização de bens não mercantis (terra, água e ar).
Trata-se de projetos amplamente antagônicos às formas de vida dessas popu-
lações, implicando na fragilização e, até mesmo, no desaparecimento dessas co-
munidades à medida que ocorre a usurpação de seus territórios tradicionais. Ter-
ritórios estes, constituídos por populações que detém a posse real da terra sem, no
entanto, possuir o título da terra porque isso implicaria o Estado reconhecer os usos
reais do território, assim como as múltiplas territorialidades existentes. São popu-
lações sem reconhecimento de jure, entretanto, as terras tradicionalmente ocupa-
das estão longe de serem “vazios demográficos”. Podemos afirmar que o reconheci-
mento dos usos reais do território por parte do Estado exige que se reconheçam as
múltiplas territorialidades existentes, ou seja, territorialidades constituídas a partir
do uso e apropriação comunitária da terra.
A comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira e tantas outras comuni-
dades tradicionais envolvidas em situações de conflitos territoriais estão colocando
em debate as terras de uso comum, suas práticas, seus saberes, suas identidades/
diferenças, seus territórios e suas múltiplas territorialidades. A complexidade des-
tas dimensões da luta pelo território apontam para a reconfiguração da questão (da
reforma) agrária e a questão ambiental brasileiras.
Bibliografia
119
HAESBAERT, Rogério. Identidades Territoriais. In: RODENDHAL, Z. CORRÊA, R. L.
(Orgs). Manifestações Culturais no Espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.
120
Tempo, território e conflitos sociais: práticas tradicionais e
desterritorialização de cipozeiros.
Douglas Ladik Antunes77
Roberto Martins de Souza78
Resumo
121
Introdução
122
setembro de 1850, criando obstáculos de todas as ordens para que
não tivessem acesso legal às terras os povos indígenas, os escravos
alforriados e os trabalhadores imigrantes que começavam a ser re-
crutados. Coibindo a posse e instituindo a aquisição como forma de
acesso à terra, tal legislação instituiu a alienação de terras devolutas
por meio de venda, vedando, entretanto, a venda em hasta pública,
e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevados das terras,
buscando impedir a emergência de um campesinato livre. A Lei de
Terras de 1850, nesta ordem, fechou os recursos e menosprezou as
práticas de manter os recursos abertos seja através de concessões de
terras, seja através de códigos de posturas, como os que preconiza-
vam o uso comum de aguadas nos sertões nordestinos, de campos
naturais na Amazônia ou de campos para pastagem no sul do País.
(ALMEIDA, 2008 p.39-40)
“As concessões obtidas pela Paix & Cia., aliado as suas iniciati-
vas, modificaram a paisagem humana pelo Sahy, armando-se um
cenário apropriado para a implementação de diferentes atividades
econômicas que vieram a consolidar a vila dos Barrancos”
Nos interessa ressaltar neste momento que as iniciativas do Estado, desde o Im-
pério através das sesmarias, privilegiou a posse e a concessão de terras aos interes-
sados em “torná-las produtivas” na economia baseada no extrativismo, de madeira
e palmito principalmente, e agropecuária para consolidar a posse, posteriormente.
Cabe-nos questionar se os colonos, caboclos, ou ribeirinhos, como afirmaria Vieira
(2007), teriam as condições (informações, acesso aos cartórios, respaldo político,
letramento) ao tempo das sesmarias, em tornar-se posseiros das respectivas terras.
Embora o território em discussão não fosse definitivamente caracterizado por “de-
123
sertos territoriais”, sendo “tradicionalmente ocupados”, o domínio da posse per-
meou meios alheios às possibilidades dos “caboclos”. Assim, mesmo que as práticas
tradicionais locais determinassem uma estratégia de “uso comum” do território,
como vimos em campo, com o tempo, a destituição da posse e o “fechamento” do
território passou a impor uma nova lógica de relações entre os sujeitos e a natureza.
Vieira ilustra o fato na passagem:
Para o Cipozeiro Seu Jango (2007) “o que é da natureza é de todo mundo”, e em-
bora na prática cada vez menos os recursos naturais estejam abertos, a frase denota
um valor de uso e uma compreensão de quem sobrevive do uso direto dos recursos
naturais, da natureza. Dona Judith reforça a afirmação de Seu Jango, quando diz
que “Isso aqui, esse mato, esse rio, tudo que você vê daqui, é nosso, porque faz
parte da nossa vida...” (2007).
124
Os relatos colhidos durante o percurso de pesquisa demonstram uma preo-
cupação dos cipozeiros frente ao processo de “perda” dos recursos naturais. Essa
noção de “perda” acentua-se no processo de formação dos cipozeiros quanto su-
jeitos políticos organizados no MICI. A manifestação sobre os direitos de uso da
natureza seria um indício de “desnaturalização” dos sujeitos, numa compreensão
de que os sujeitos não são parte da natureza, mas possuem direito de uso dela, para
sua sobrevivência em seu jeito de ser e existir.
Muitas são as narrativas que expressam essa preocupação; entre elas destacam-
se aqueles que apontam que, antigamente não se comprava nada, e hoje se com-
pra tudo, a necessidade de se percorrer longas distâncias para acesso aos recursos
naturais, a restrição de livre acesso por jagunços, que mantém partes do território
“fechados”, onde antigamente eram “livres”, repressão por orgãos ambientais de
fiscalização, que os tratam como “agentes da degradação”, o problema do desmata-
mento que exaure toda riqueza natural, a produção em monocultivo de vastas ex-
tensões de terra, que suprimem as áreas naturais e contaminam rios pelo uso de
agrotóxicos, a ação do Estado na construção de rodovias, onde fiscais agem com
repressão e as obras destroem áreas naturais, etc. Assim, a descrição sobre o ambi-
ente local no passado é exposto no léxico do “novo” ambiente.
125
nidades tradicionais, pelos agentes governamentais da área ambiental, que con-
sideram os cipozeiros “agentes da degradação”, conquanto parecem ignorar a ação
devastadora das plantações sobre a Mata Atlântica, mesmo em áreas de proteção
como a APA de Guaratuba, localizada no Paraná. Uma frase corriqueira entre mui-
tos informantes é de que “... o grande pode tudo, o pequeno não...”.
No depoimento de Dona Maria, da comunidade Sol Nascente, fica clara a
desigualdade de tratamentos e a indignação, quando sua família não podia fazer
uma roça que “... o meio ambiente vinha...”, enquanto que paradoxalmente, na
mesma localidade um morro inteiro foi subtraído para o aterramento de uma es-
trada. Neste morro estavam localizadas duas nascentes de água, e nem este fato im-
pediu tal desmonte de terra. Quando questionamos à essa senhora se “a fiscalização
tá em cima de caça e palmito?”, ela respondeu remetendo-se ao passado:
126
rancos, um fator de forte influência na paisagem local foi a intensa extração de ma-
deira desde o século XIX, que foi responsável pelo uso do boi na região, empregado
no reboque das toras (ibidem, 2007). Atualmente, em grande parte do território
destas comunidades, sob posse de grande empresários, estão “fechadas” ao uso dos
cipozeiros, como demonstra a Figura 1.
As placas, como esta acima, são muito comuns nas diversas comunidades da
região em estudo. Em Palmital, uma placa era complementada pela ameaça “sujeito
à prisão”, o que representa a inacessibilidade aos recursos que permitem a sobre-
vivência e a reprodução de sua cultura no território que há tempos atrás era de livre
acesso e uso comunal, e também a repressão e violência institucionalizada prati-
cada. Em entrevista, Dona Judith Lopes, ilustra bem alguns aspectos da paisagem
local e sua dinâmica, bem como a restrição ao livre acesso no território:
127
a samambaia, tem o cipó timbopeva que é o cipó de liaça, isso quase
ninguém tira também... só que depende do lugar, varia de um lu-
gar pra outro, tem lugar que tem e lugar que não tem... acho que é,
a palha, o musgo, o palmito, palmito mesmo é muito difícil de você
achar um palmito na matriz, só palmitinho novo, porque os palmito
melhor mesmo já foi tirado tudo, porque quem não tira de algumas
fazenda, o pistolero mesmo vende, por isso que eles não permite as
muitas vezes que as pessoa entra pra tirá cipó, porque eles qué vendê
o palmito né, se aparece uma pessoa tirando cipó lá, vai vê que tá
sendo tirado palmito e vai botá a boca no trombone...aí... por isso que
eles não qué mistura de cipozeiro com pistolero... [sobre as caças:]
Tem veado, tem capivara, tem quati, tem o tamanduá, tem onça,
tem cutia, tem tatú, que é o que mais tem, tem... porco do mato... o
cateto... isso só o que eu conheço que eu sei que tem que eu já vi...”
(fevereiro/2011)
O Mapeamento Situacional
128
fronteiras simbólicas, técnicas e morais com relação a outras práti-
cas organizadas, configurando certa perícia legitimada, redes inter-
pessoais e organizacionais, distribuição de recursos e regras internas
de jogo. Tendo como referência o campo da produção cartográfica,
este sub-campo caracteriza-se pelo fato de nele certos empreende-
dores institucionais empenharem-se em problematizar a cartogra-
fia convencional promovendo as tecnologias do mapeamento dito
participativo, alegando sua autoridade/perícia legítima para fazer
valer as reivindicações sobre territórios e seus recursos por parte de
populações locais.
(ACSELRAD & COLI, 2008, p. 17-18)
129
Catarina. A base cartográfica foi montada no Laboratório do Projeto Nova Car-
tografia Social de Guarapuava, sendo impressa em plotter (em formato A1) e tendo
os registros dos lugares81 principais feitos manualmente, à caneta. A referida estra-
tégia de pesquisa se deu nas discussões em reuniões, quando foram estabelecidas as
partes do território de início de pesquisa e seu desencadeamento. Em um segundo
momento do mapeamento houve o espaço aos esquemas de representação do grupo,
digamos simbólicos, no processo de elaboração das legendas, pois foi quando al-
guns elementos gráficos representativos emergiram durante o debate sobre os con-
flitos territoriais e as práticas tradicionais existentes, como será visto mais adiante.
Em termos de procedimentos de pesquisa empírica, o mapeamento situacional,
ou mapeamento social foi uma forma muito apropriada para a coleta de infor-
mações, tendo em vista a qualidade dos depoimentos registrados. Esta qualidade se
deu principalmente pela forma de abordagem das entrevistas, feitas pelos próprios
cipozeiros, em que, se estabelecendo uma relação de confiança, a partir de um
reconhecimento entre “iguais” e da solidarização aos problemas apontados, muitos
temas “vieram à tona” sem receios em sua colocação. Em alguns momentos os de-
poimentos foram tomados à medida que os “cipozeiros entrevistadores” ajudavam
no “tecido” do artesanato do “cipozeiro entrevistado”. Por se caracterizar como pes-
quisa qualitativa, as entrevistas foram realizadas por indicação de conhecidos entre
uma entrevista e outra, tendo como “pergunta-chave” a solicitação da indicação de
um nome considerado referência quanto cipozeiro em cada localidade, de forma
que cada entrevistado fosse reconhecidamente identificado como cipozeiro em sua
comunidade. Algumas entrevistas, por ocorrerem sem agendamento prévio e sim-
plesmente com a abordagem dos informantes no decorrer de suas práticas diárias,
aconteceram com mais de uma família ao mesmo tempo, em ocasiões em que coin-
cidentemente estavam reunidas.
Mesmo que determinadas famílias estivessem afastadas do “tecido” atualmente,
elas foram consideradas e registradas como “cipozeiras”, por entendermos que pa-
rar o “tecido” é uma condição circunstancial, devido à motivos específicos que im-
pediram a continuidade dessa prática quanto atividade econômica, sendo que, para
estas famílias, continua havendo o domínio do saber tradicional, e quando se apre-
sentam as condições de possibilidades, tal saber pode ser acionado quanto prática.
Esta compreensão temporal se estende ao conceito de “situacional” do mapeamen-
to, pois este contextualiza a realidade expressa da situação atual, devendo ser re-
elaborado conforme se apresentam novas dinâmicas territoriais.
O processo de mapeamento situacional pode ser entendido como a continui-
dade do processo de auto-cartografia dos cipozeiros publicada no Fascículo 9, in-
titulado: Cipozeiros de Garuva, da série Povos e Comunidades Tradicionais do Bra-
Topográfica Digital de Santa Catarina - EPAGRI/IBGE 2004; Mapa de Unidades Higrográficas de Santa Catarina - EPA-
GRI/SDS 2005; Remanescentes Florestais de Mata Atlântica - Centro de Sensoriamento Remoto/IBAMA 2007; Malha
Municipal Digital do Brasil IBGE/DGC/DECAR 2001; Base Digital da América do Sul - NIMA 2005; Levantamento de
Campo 2010.
81 Para Bourdieu (2008, p. 160) (...) O lugar pode ser definido absolutamente como o ponto do espaço físico onde um
agente ou uma coisa se encontra situado, tem lugar, existe. Quer dizer, seja como localização, seja, sob um ponto de
vista relacional, como posição, como graduação em uma ordem. (...) Os agentes sociais que são constituidos como tais
em e pela relação com um espaço social (ou melhor, com campos) e também as coisas na medida em que elas são apro-
priadas pelos agentes, portanto constituídas como propriedades, estão situadas num lugar do espaço social que se pode
caracterizar por sua posição relativa pela relação com os outros lugares (acima, abaixo, entre, etc) e pela distância que os
separa. (...)
130
sil em 2007. Esta última, distingui-se do mapeamento por ser um procedimento
restrito a um grupo de representantes escolhidos pelos próprios agentes sociais que
elaboram a cartografia em oficinas de mapas. De outro modo, o mapeamento se
caracteriza pela investigação in loco, através de abordagens dos agentes cipozeiros
junto às comunidades onde há indicações da presença de outros cipozeiros. Nesse
procedimento são observados os locais de conflitos, os principais pontos de coleta
de diversos recursos naturais - incluindo o cipó imbé, as principais dificuldades
e reivindicações do grupo articulado e mobilizado em torno dos temas que con-
vém ao grupo social. Nesse momento, fora toda a sistematização do conhecimento
produzido, expressa-se elementos situacionais que colaboram com a construção
da afirmação da identiária quanto cipozeiros , pode-se inferir que é o limite das
relações sociais conflituosas face seus antagonistas que tem definido este povo e
não o conteúdo da condição de cipozeiro.
Nas discussões propostas pelo MICI , o mapeamento supera o fascículo, pela
necessidades estratégica de explicitar toda abrangência territorial e situacional em
que vivem os cipozeiros, ou seja, desfocar sua existência somente indicada no mu-
nicípio de Garuva, para garantir a visibilidade dos sujeitos no litoral Sul do Brasil.
O processo de ampliação da visibilidade dos cipozeiros envolveu principalmente
o citado fascículo e a divulgação, no âmbito nacional, do vídeo Cipozeiros da Mata
Atlântica, no programa Globo Ecologia veiculado a partir de maio de 2008. Após
tal divulgação, membros da Rede Puxirão passaram a participar de reuniões de ar-
ticulação em Garuva, e posteriormente os representantes indicados dos cipozeiros
passaram a atuar nas ações da Rede no Paraná. Tal processo de articulação vem re-
percutindo no amplo processo de formação política dos cipozeiros, que é facilmente
perceptível nas elaborações discursivas dos mais participantes, bem como no maior
envolvimento e comprometimento com as ações em rede. Vale ressaltar a contigui-
dade entre Garuva e o município de Guaratuba - PR, e a grande proximidade entre
Garuva e Curitiba, capital desse estado.
O trabalho da Rede Puxirão, consiste em articulações nacionais e estaduais, ten-
do em foco a efetivação do Decreto Federal 6040/2007, via assessoria jurídica aos
grupos sociais, parcerias em projetos de desenvolvimento local, relações políticas
com Ministério Público, Assembléia Legislativa e órgãos do Governo do Paraná e
Federal. No âmbito local estimula tanto a mobilização das identidades coletivas,
através de discussões de leis municipais, elaboração de acordos comunitários, e
denúncias contra aqueles que ferem os direitos das comunidades envolvidas. Atual-
mente, em constante articulação, a Rede envolve os seguintes povos e comunidades
tradicionais: faxinalenses, ilhéus (atingidos pela represa da usina de Itaipú, até hoje
sem indenização), quilombolas (de diversas comunidades), guaranis mbyá, xetás,
benzedeiras, pescadores artesanais, cipozeiros e integrantes das religiões de matriz
africana. Desta Rede foi indicado um representante por grupo, ou segmento - como
os mesmos se referem, que constituíram um grupo de trabalho para a elaboração
da minuta da Lei Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais (que é a versão estadual do Decreto nº 6.040), tal grupo de
trabalho foi instituído na gestão do governador do Estado Roberto Requião.
Em meio a este processo de mobilização dos cipozeiros estimulados pelo pro-
cesso cartográfico, e na ampliação da compreensão política sobre a existência de
131
sua identidade coletiva em um amplo território, os cipozeiros propuseram e ini-
ciaram o mapeamento situacional do grupo, com o apoio de assessores da Rede
Puxirão e pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social.
Como forma de comprovação da coleta das informações em suas respectivas
comunidades, os locais de entrevista foram geo-referenciados com o uso de GPS
- Global Positioning System (ou Sistema de Posicionamento Global), também
foram feitos registros fotográficos das famílias entrevistadas (entrevistas semi-
estruturadas), as entrevistas foram gravadas em sua maioria, sendo transcritas
pelos pesquisadores. As entrevistas não gravadas foram imediatamente descritas
nos cadernos de campo e nas planilhas de dados. Assim, as informações foram sis-
tematizadas com o apoio dos pesquisadores82 e encaminhadas para o processo de
elaboração cartográfica em ArcGis, com apoio do Laboratório do Projeto Nova Car-
tografia Social em Guarapuava.
Os roteiros de mapeamento foram definidos pelos cipozeiros do grupo de co-
ordenação das ações do MICI, com participação direta de 5 adultos e jovens - fil-
hos e netos dos cipozeiros envolvidos (vale salientar a participação de Dona Maria
Hernaski, Dona Judith, Dona Judith Lopes, Dona Ruth, Dona Marlene, Seu Jango,
Seu Carlos, Dona Laurinda, Seu Avelino, Dona Irene, e entre os jovens - Leslie,
Neguinho e Bianca). Tais interessados foram capacitados, em novas oficinas, para
o uso dos equipamentos: máquina fotográfica digital, GPS e gravador portátil, na
ocasião das saídas a campo para registro dos depoimentos. Os adultos se sentiram
mais a vontade ao uso de gravadores e máquina fotográfica, enquanto que os jovens
manusearam com facilidade todos equipamentos, ficando ao seu encargo princi-
palmente a “marcação” de pontos no GPS, visto que praticamente todos os adultos
tinham maior dificuldade com este equipamento e delegaram seu uso ou aos jovens
ou aos pesquisadores, sempre lembrando: “pegue o ponto aqui”, ou ainda: “já mar-
cou o ponto? Então marque!”. Fora a importância das informações coletadas, e
descritas adiante, a situação social de realização do mapeamento foi muito rica, por
conta das discussões geradas a partir dos depoimentos e também pelos relatos ao
longo dos trajetos entre as comunidades.
Nas comunidades, sempre os cipozeiros eram os primeiros à fazer a abordagem
nas casas e a apresentação dos objetivos de estarem em pesquisa. Quando nos jun-
távamos ao grupo éramos apresentados como pesquisadores, aparentemente não
produzindo apatia inicial, pois somente somávamos ao trabalho. Assim, as conver-
sas se davam de iguais para iguais, naturalmente, nossa participação se resumia a
dúvidas ocasionais, à lembretes sobre informações em esquecimento, e em algumas
ocasiões em maior detalhamento sobre aspectos de direitos como a Constituição
Federal de 1988, a Convenção 169 da OIT, o Decreto 6040 de 2007, entre outros.
Nos oito meses de mapeamento social foram entrevistados informantes de 46
famílias, em 23 comunidades de cinco municípios diferentes; onde registramos a
referência a 534 famílias de cipozeiros nestas localidades (149 em Guaratuba - PR,
281 em Garuva - SC, 56 em Joinville - SC, 20 em Itapoá - SC e 28 em Araquari -
SC). Os relatos no mapeamento, bem como anteriores a ele, enalteceram alguns
elementos em que arriscamos classificá-los como categorias nativas. O fato relatado
82 A equipe de pesquisadores e assessores incluiam: Taísa Lewitzki (assessora da Rede Puxirão), Roberto de Souza Mar-
tins (professor do Instituto Federal do Paraná), Renato Alves Ribeiro Jr. (ex-bolsista de iniciação científica da UFPR) e
Douglas Ladik Antunes.
132
em “tirar cipó” está muito além que simplesmente “ir pro mato” e coletar a matéria
necessária ao artesanato, estando mais relacionado à uma forma de operacionalizar
os fazeres da vida diária da família que resulta de uma estreita relação com a na-
tureza, onde as atividades se dividem claramente entre as feitas “em casa” e as “fora
de casa”. Muitos dos conflitos relatados estão relacionados à restrição em “tirar
cipó”, ou seja, no “fechamento” do recurso.
O ato de “tirar” se relaciona aos fatos de acessar, pegar, utilizar, coletar, matar
e pode ser acionado ainda em relação à outras práticas culturais como pescar (ou
matar um peixe), caçar (matar uma caça), tirar palmito, etc, tendo repercussões
profundas na educação dos filhos e parentes, pois para “tirar cipó” é necessário que
se saiba “andá no mato”, entre outras coisas; e assim, para cada atividade relacio-
nada ao modo de vida são acionados uma diversidade de saberes e práticas que os
definem num sentimento de pertencimento, e consequentemente e dialeticamente
constroem sua territorialidade específica, junto às “malhas de cipó” ainda “abertas”
ou com restrições que representam ameaças a integridade dos cipozeiros.
Outra categoria que merece ênfase é o “tempo”, sendo referido em diferentes
situações, como na afirmação de sua tradicionalidade quando acionam as lembran-
ças do “tempo dos antigos”; ou ainda quando enfocam a “exploração do trabalho”
que lhes impõe uma rotina de trabalho fixa à prática do artesanato, não restando
tempo para outras práticas “fora da casa”, visto que um tempo significativo do ar-
tesanato ocorre no “tecido”, dentro de casa. Assim, o trabalho como meio de ex-
ploração, como forma de poder, impõe uma “nova” lógica de relações sociais e es-
paciais, significando, além da relação de dependência financeira, sua ingerência,
sua perda de domínio sobre o próprio tempo. Quando os cipozeiros, como Dona
Judith Lopes (2006), afirmam que “ir pro mato” é como uma “terapia”, entende-se
sua perspectiva em compreendê-lo quanto um momento “raro”, em oposição ao
trabalho com artesanato, que nunca seria afirmado quanto “terapia”, mas sim já foi
registr como “cachaça”.
Os conflitos verificados nas localidades parecem apontar uma articulação com
fatos da globalização da economia, ao se relacionar ao plantio de pinus e eucalipto,
produção de banana, arroz, etc, implementação de unidades de conservação, em
que Acselrad & Bezerra chamam de “nova geopolítica mundial dos recursos natu-
rais”, em que explicam que
133
Os conflitos relatados em cada comunidade são muito específicos às mesmas,
e, embora sejam perceptíveis semelhanças entre eles não há possibilidade de
generalizações, da mesma maneira que entender o cipozeiro como um traço gené-
rico do sujeito seria um enorme erro.
Uma terceira categoria de realidade, que deriva das anteriores é a noção de in-
justiça, quando os cipozeiros mencionam o “preço injusto”, ou “o grande pode tudo,
o pequeno não”, por estar atrelada ao processo de exploração de sua força de tra-
balho, e consequentemente ao domínio externo sobre seu tempo cotidiano, ao “fe-
chamento” do território tradicionalmente ocupado, onde os grandes proprietários
além de restringir o acesso, não são alvos sistemáticos da fiscalização ambiental, ao
mesmo peso que os cipozeiros. Enfim, a noção de injustiça permeia de um lado a
condição imposta por domínio de poderes sobre os cipozeiros, e de outro por uma
desigualdade de tratamentos estabelecidos pelo poder público.
Assim, os conflitos têm relevância e graus de importância diferentes de uma lo-
calidade para outra. Desta forma, procuramos interpretar e especificar os relatos
sobre os conflitos que foram mais marcantes no processo de mapeamento situa-
cional. Caracterizar o mapeamento quanto situacional, como dito anteriormente,
leva em consideração justamente o fato de que a situação relatada atualmente é
essa em cada comunidade, ou lugar, podendo mudar a dinâmica de relações justa-
mente como se considera a dinâmica da cultura.
134
vivência, a concessão de título estava vinculada a fatores externos às práticas ter-
ritoriais destes sujeitos, mantendo-os alheios e/ou submissos às decisões de acesso
aos territórios de uso comunal pelos então titulados “posseiros”.
A figura do “pistoleiro” ou “jagunço”, que é de contrato direto pelo “fazendeiro”,
surge como a figura de controle ao acesso à diversas áreas de manejo ou mesmo
de importância ritual, como o cemitério. A restrição do livre acesso ao território é
enunciada como a ameaça dos “pistoleiros” aos cipozeiros, salvo exceções por laços
de familiaridade, amizade e autorizações pontuais. Certos “pistoleiros” mais restri-
tivos ficam famosos por sua rigidez e maldade, como é o caso do chamado “Maneco
Preto”, que segundo Dona Maria P. (agosto/2009) era um cara ruim que matava,
arrancava a cabeça e com o corpo ainda quente violentava sexualmente a vítima.
A veracidade sobre tal fato fica em dúvida, como enfatiza a própria informante,
porém a permanência do “Maneco Preto” quanto um “mito” local, citado por mui-
tos, mostra claramente a relação entre a violência simbólica e a restrição de acesso
ao território imposto pela ameaça direta e o medo.
Em determinadas localidades os próprios “pistoleiros” tem maiores permissivi-
dades mediante cobranças pelo acesso, como por exemplo, no caso em que cipozei-
ros devem deixar parte do material coletado, como o cipó imbé, como forma de
pagamento ao direito de acesso. Em muitos casos os depoentes afirmam maior
restrição devido à caça e palmito, que, sendo confundidos com caçadores ou pal-
miteiros perdem todo e qualquer direito pelo manejo de diversos recursos antes uti-
lizados. Assim, uma tendência apontada é a maior restrição, notoriamente em áreas
mais abundantes em caça e palmito. Segundo a informação de uma cipozeira, isso
ocorre porque os próprios pistoleiros seriam “agentes” de venda do palmito, autori-
zando seu “roubo” no território sob seu cuidado, assim a circulação de cipozeiros
representariam aos mesmos um risco de denúncia aos órgãos de fiscalização am-
biental. Os depoimentos apontam que existem também pessoas “especializadas”
na caça, realizando uma forma de caça esportiva - sem respeito às formas corretas
e critérios de manejo “sustentável”, “tirando” mais que o necessário ao sustento,
como também aos palmiteiros - entendidos socialmente como ladrões, numa for-
ma de crime organizado. Ouvi, de informantes que optaram por não se identificar,
de que alguns chacreiros fazem a “ceva” (engorda) da paca para posterior caçada
“esportiva” local, e que, os interessados deste tipo de caça seriam autoridades de
cargos públicos da região de Joinville. Recentemente um caso muito comentado
foi sobre o vice-prefeito de Guaratuba, que foi preso sob acusação de liderar uma
quadrilha de “roubo de palmito”, segundo Seu Narciso (dezembro/2009) esse fato
é sabido há muitos anos. Para os cipozeiros, “no mato” fica difícil diferenciar quem
é cipozeiro, quem é palmiteiro e quem é caçador; sendo todos considerados poten-
ciais suspeitos de crimes. A dificuldade do reconhecimento coloca na mesma con-
dição de ilegalidade os cipozeiros, expondo-os a todas as formas de violência, seja
do Estado, como das quadrilhas de palmito e caçadores esportivos. Enquanto de
um lado há depoimentos sobre o envolvimento de autoridades na caça “esportiva”,
de outro, cipozeiros são violentamente reprimidos por policiais da Força Verde, que
invadem suas casas sem ordem judicial, e com força “prenderam uma senhora que
tava com o tatu na panela” e deram “um soco na boca” de um cidadão que negou-o
135
acesso à casa83.
A restrição do livre acesso aos recursos naturais é conseqüência à
restrição de livre acesso ao território, porém, esta categoria trata de situações em
que o cipozeiro passa a estar susceptível à fiscalização e ameaça de prisão pelo porte
do material colhido. Neste caso, a “ambientalização do direito” (ALMEIDA, 2008)
coloca em situação vulnerável os sujeitos da ação sem ao menos considerar e veri-
ficar a existência de estratégias de manejo “sustentável” e a relação entre a cultura
local e sua materialidade, considerando suas práticas espaciais. Cabe-nos lembrar
as reflexões de Almeida (2008) quando problematiza sobre quem são os verdadei-
ros agentes da degradação dos recursos naturais.
Em sua territorialidade os recursos são acessados de maneiras diversas,
atualmente certos depoimentos mostram a violência física e a violência simbólica
quando demonstram os mecanismos de restrição direta. Dona Nica e seu marido
(outubro/2009) afirmaram que “(...) se colocar o barco na água, leva tiro (...)”,
enfatizando a impossibilidade de pesca em rio próximo à sua casa, pois o mesmo
corta uma propriedade privada. Dona Ruth (2006) contou sobre outro cipozeiro,
que quando abordado pela polícia ambiental teve todo seu cipó picotado com facão
pelo policial, em outro depoimento foi afirmado que “(...) se cortar uma vara de
bambu, o meio ambiente vem (...)” (Seu Zé Cadomiro, março/2010). Tais ações res-
tritivas ignoram completamente as práticas de manejo dos recursos, pois existe um
forte laço entre o reconhecimento quanto cipozeiro tradicional e o reconhecimento
social sobre as práticas de manejo local. Dona Judith (2006), assumindo a necessi-
dade de caça para consumo da proteína, afirmou que “(...) sei quando posso tirar
uma paca, por exemplo, agora não é época de paca, ela tá prenha (...)”, o mesmo
afirmou ainda que na caça para o consumo é retirado somente o necessário para a
alimentação, que é dividida entre os familiares vizinhos. Existe uma ética de silên-
cio por tal assunto, visto sua forte restrição legal e violência praticada pela Polícia
Ambiental e Força Verde. Uma afirmação é sempre recorrente: de que cipozeiro não
é caçador nem palmiteiro.
Outra prática em vulnerabilidade é a “roça”. Em certas localidades a prática de
“roça”, ou corte de árvores em áreas com regime de pousio e rotatividade, é restri-
tiva por ação do “meio ambiente”, em referência aos orgãos de fiscalização ambien-
tal, como a Força Verde, por exemplo (polícia ambiental do Paraná). Nesta situação
a limitação da prática tradicional da roça - que é algo muito mais amplo que o sim-
ples plantio de espécies como mandioca, milho, feijão, etc - torna-se um problema
de ordem alimentar, econômica e de saúde, pois não recorrendo ao próprio alimen-
to o cipozeiro passa a necessitar de ganho econômico para a compra de alimentos
industrializados. Tal fato, não se restringindo aos cipozeiros, é bem explicado por
Litaiff (1996) como uma ameaça aos Guarani Mbyá, quando investem seu tempo de
trabalho na prática do artesanato - na perspectiva de venda em grandes centros -, e
assim deixam de plantar sua roça e passam a consumir produtos industrializados,
com claros prejuízos à saúde. Analogamente, aos cipozeiros a falta de alternativas
econômicas e a impossibilidade de subsistência na “roça” agravam suas condições
e práticas em sua territorialidade específica, mediante mecanismos de violência di-
83 Depoimentos (em fevereiro de 2011) de pessoas moradoras da APA de Guaratuba, que optaram por não se identificar
por medo de repressões locais.
136
reta e simbólica. O aparecimento dos orgãos de fiscalização, para Dona Judith (fe-
vereiro/2011), ocorre devido à queimada posterior ao roçado da área, assim, ao ver
a fumaça da queima, ou mediante denúncias anônimas, ocorre a fiscalização sobre
a área, podendo resultar na prisão do “dono da roça”. De maneira geral a prática do
roçado, do plantio e colheita é facilitado pelo regime de “matirão”.
As formas de Ameaças e Repressão acontecem em diversas situações sociais
que envolvem o acesso ao território tradicionalmente ocupado e aos recursos natu-
rais, porém não somente restritas à essas situações. Mais recentemente a região de
Garuva e Itapoá, principalmente, vem recebendo recursos oriundos do PAC - Plano
de Aceleração do Crescimento, do governo federal, para a construção do porto de
Itapoá e as estradas de acesso à ele. Nessas localidades, em depoimentos gravados,
alguns cipozeiros da Mina Velha afirmaram formas de ameaças que vem recebendo
dos agentes do governo, que segundo eles são fiscais das obras, que em suas investi-
das mais duras ordenaram a saída de suas casas para a construção da estrada, visto
que o traçado da estrada passava sobre seus terrenos (Seu Antonio Laite, setem-
bro/2009). Ao que tivemos notícias em tempo, tal depoente - conhecedor de seus
direitos -, não se retirou, moveu ação judicial, recebeu indenização, construiu sua
casa e finalmente mudou-se. Entre o tempo de a abertura da ação e a mudança, as
ameaças ocorriam sistematicamente como afirmou Seu Antonio Laite, de que não
ganharia nada e que “(...) seria melhor pegar os três mil reais, senão não vai ficar
com nada (…)’’, o fiscal sugeria assim sua mudança imediata, e, de fato, o litígio
sobre essa área atrasou o desenrolar das obras. Essa forma de violência abateu de
tal forma o cipozeiro que o mesmo afirmava ter “parado de tecer” por causa da es-
trada, pois “(...) o estado tá ameaçando (...)”, e que pretendia “voltar a tecer” tão
logo fosse possível, o que mantinha-o economicamente era a aposentadoria (setem-
bro/2009).
Em situação muito semelhante, Dona Maria (de Sol Nascente) foi obrigada re-
centemente ao seu deslocamento pelo mesmo motivo, embora não tenha infor-
mações sobre sua devida indenização; a mesma (em outubro/2009) demonstrou
grande indignação com a obra da mesma estrada, que passou em sua proximidade.
Neste caso, visitamos sua casa que situava-se defronte a um pequeno morro, que
segundo ela era de grande importância natural pois existiam ali duas nascentes
de água e duas cachoeiras que alimentavam um rio que delimitava seu terreno.
Ela dizia que antigamente não se podia nem fazer uma roça ali, pois logo vinha o
“meio ambiente” para multar, nessas condições ela foi impedida de possuir uma
vaca, por conta da proximidade do rio, de fazer carvão - oriundo das áreas de roça
-, de tirar cipó, etc. Certa vez ela afirmou ao policial: “(...) se vocês trouxerem cinco
litros de leite todo dia não precisa desmatar isso aqui (..)”, se referindo à uma área
de roça. Nesta condição a cipozeira afirmava que a sobrevivência ficou tão difícil
naquela localidade que “(...) todo mundo foi embora (...)”, a restrição dos meios
materiais, das práticas de sobrevivência foram condicionados de tal forma, que não
houve alternativas locais para a maioria dos antigos moradores, que se mudaram,
dando lugar aos novos proprietários - grandes produtores de banana e arroz. A
indignação desta senhora morava no fato de que as ameaças que sofreu historica-
mente foi em nome de um meio ambiente “preservado”, e que hoje, os mesmos
“agentes da preservação” estavam destruindo as fontes d’água, as duas cachoeiras
137
e a mesma natureza preservada em que antes ela era acusada de prejudicar. Mais
recentemente em nova saída para o mapeamento, passamos em frente à casa desta
senhora e percebemos que o mesmo morro que havíamos visto desmatado na época
da entrevista hoje não existe mais, a terra que o constituía foi utilizada como aterro
da estrada para o porto de Itapoá. Atualmente fomos informados de que sua casa
também havia sido derrubada e que esta senhora agora é residente da sede do mu-
nicípio de Garuva.
Histórias como essas são recorrentes em muitas das comunidades visitadas, que
apontam a existência de Grilagem, Golpes, Expulsão do Território e Êxodo,
como fatos ocorridos e vividos por familiares, vizinhos e amigos. Nestas ultimas
situações relatadas em Mina Velha e Sol Nascente, respectivamente, ficam claras
as formas de ação de agentes do estado - em diversos orgãos -, e dos empresários
agricolas, que sob a égide da necessidade de produção encabeçam duras investidas
aos “pequenos”, limitando cada vez mais as possibilidades em manter seu modo de
vida. No primeiro depoimento, do cipozeiro de Mina Velha, a conquista pelo direito
de indenização aconteceu primeiramente por seu conhecimento de seus direitos
fundamentais em viver com dignidade, porém o conhecimento por seus direitos
aconteceu da ocasião em que foi expulso de sua casa em situação anterior.
Os relatos de grilagem de terra e golpes também demonstram uma lógica, talvez
histórica, onde, em alguns casos os domínios da grande propriedade avançam sobre
os “pequenos”, derrubando-lhes a cerca e atropelando até seu direito pela proprie-
dade; em outros casos, são relatados fatos que começam na parceria da produção
agrícola, e que avançam no domínio do mais forte - seja por força física, ou outras
formas de violência - em golpes que repercutem no êxodo de seu território de
origem (Seu Felício e Dona Maria, novembro/2009). Tais situações sociais colocam
frente a frente os antagonistas sociais e influenciam profundamente as relações so-
ciais locais, visto que, no caso das grandes propriedades, seus trabalhadores são
também moradores locais, que em alguns casos agem sob ordens contra os próprios
vizinhos, e assim encampam um jogo de forças presente no dia a dia da comunidade
- do boteco ao mato.
Os relatos sobre os êxodos das comunidades foram coletados, obviamente, em
sua maioria, a partir da sede do município, ou nas comunidades de destino dos
“retirantes”. Na grande maioria dos relatos as pessoas raramente declararam que
viviam na mesma localidade desde o nascimento, porém, originários da região, ou
não, sempre houve a prática de uso comum do território tradicionalmente ocupado
principalmente em atividades relacionadas ao “mato”, à pesca, e claro à roça. Em
depoimento (Dona Maria, Dona Ruth e Dona Marlene, junho/2009) na região onde
se localiza o cemitério próximo ao Morro Grande, considerado um local sagrado por
muitos cipozeiros, fica clara a residência de aproximadamente trinta famílias até a
década de setenta, e que hoje não há mais ninguém, somente um fazendeiro que
restringe o acesso àquele antigo território ocupado (vide foto anterior da placa de
restrição ao acesso). Uma antiga moradora da localidade (Dona Maria Hernaski)
afirmou que houve um projeto do governo municipal na década de sessenta em
levar os cipozeiros das comunidades mais afastadas à sede do município, e que
o bairro nesta sede conhecido como Jorgia Paula, foi construído a partir dessa
mudança “em massa”; para ela o motivo de tal mudança foi de abrir caminho aos
138
grandes produtores de banana e arroz no município a partir da desocupação do
território, outros depoimentos convergem com este, embora Vieira (2007) aborde
a transformação da região do Lamim em um “deserto populacional” não investi-
gamos outros documentos historiográficos que confirmem tais indicações, nesse
ponto faz-se necessária uma pesquisa objetivada ao assunto. Segundo Dona Maria,
concomitante a este processo foi a implementação da empresa madeireira Batis-
tella, na sede do município, que foi responsável por grande transferência de mão-
de-obra das comunidades.
A concentração de mão-de-obra especializada em artesanato na sede do mu-
nicípio de Garuva é um fato amplamente conhecido, que, se por um lado garan-
tiu a desocupação de parte do território da região para a produção em regime de
monocultura, por outro, garantiu o exército de reserva e o lucro dos empresários do
artesanato. O afastamento de práticas como a roça, a pesca, o mato - que faz com
que os cipozeiros se realizem na plenitude de sua cultura e se reconheçam como tal
- tem repercussões psicológicas muito negativas que envolvem baixa auto-estima,
submissão, baixa coesão social, etc. Os relatos sobre depressão ou “tristeza” são
frequentes, um pouco menos frequentes são os relatos sobre suicídios. Isso parece
estar relacionado ao distanciamento entre o modo de ser e existir em uma cultu-
ra, passando a virar um trabalhador ou trabalhadora de um fazer especializado da
relação capital / trabalho. Onde o afastamento de suas práticas culturais em sua
territorialidade específica gradativamente significa o afastamento de sua identi-
dade cultural e coletiva.
Este cenário histórico e complexo abre campo ao fato facilmente verificável da
Exploração do Trabalho e Baixa Remuneração. Já em pesquisa preliminar
neste campo foi verificada a renda média mensal individual de aproximadamente
cento e cinco reais, ou um sexto de um salário mínimo, com o trabalho no arte-
sanato de cipó imbé (ANTUNES, 2007). Tal fato se explica em diversos fatores.
Primeiramente pela exploração do trabalho exercida pelos atravessadores, que ape-
sar de remunerar muito mal os cipozeiros e artesãos, são a única garantia de renda
mais perene aos mesmos. Outro problema relatado em relação aos atravessadores
é a recorrência de calotes no pagamento, cheques sem fundo, encomendas que não
são retiradas, etc, que produzem um certo “mapeamento” local dos atravessadores
“bons” que pagam pouco, mas pagam “direitinho”, dos atravessadores caloteiros,
que não trabalham por muito tempo na região com os mesmos cipozeiros e ar-
tesãos, diferenciando as fontes de fornecimento do artesanato na medida que reali-
zam seus “calotes”.
A falta de coesão social dos cipozeiros contribui para a compra de artesanato
distribuída na extensão do território (pelos atravessadores), com a comercialização
centralizada em grandes centros e mercados como os CEASAs, impondo também a
prática de barganha e certa concorrência entre um cipozeiro e outro. Outro aspec-
to que verificamos em certas comunidades foi a prática comercial exploratória de
famílias de cipozeiros moradores de comunidades em localidades remotas, como é
o caso do Descoberto, Empanturrado, Riozinho, Rasgado, Rasgadinho e Saí-mirim.
Os próprios cipozeiros que realizavam o mapeamento ficaram impressionados com
alguns preços relatados, como foi o caso dos “lequinhos” - leques trançados em
miniaturas - que o valor pago era de um real e setenta e cinco centavos a dúzia pro-
139
duzida, ou quinze centavos a unidade. Neste caso, a impossibilidade de envio aos
mercados interessados, e o completo desconhecimento sobre tais mercados, coloca
os cipozeiros em condição de dependência dos atravessadores para a comerciali-
zação do artesanato, que garante uma renda extra à família. São poucos os casos em
que as famílias de cipozeiros vivam exclusivamente do artesanato de cipó imbé. Na
oportunidade de venda direta em 2010, em uma feira promovida pelo Ministério de
Desenvolvimento Agrário - MDA, Seu Avelino, liderança cipozeira, vendeu a dois
reais e oitenta centavos uma bandeja que normalmente é vendida a trinta centavos
ao atravessador. Assim, novas perspectivas de mercado tem sido investigadas por
alguns cipozeiros mais sensibilizados às problemáticas da exploração comercial.
Assim, a Dificuldade de Comercialização também é fruto deste cenário
onde figura: a existência de atravessadores exploradores, o distanciamento entre
o mercado de consumidores finais e os cipozeiros produtores do artesanato, a falta
de coesão social e mobilização política pelos interesses e direitos coletivos funda-
mentais, e a concentração de produção direcionada somente à mercados de produ-
tos com baixíssimos valores agregados. A dependência em relação aos atravessa-
dores somada à distância dos pontos de coleta de matérias-primas tem submetido
algumas famílias de cipozeiros à dependência da compra destes materiais, fato
que agrava a situação, pois, para tecer não é mais necessário “ir pro mato”, o que
caracteriza uma especialização do trabalho ligado exclusivamente à mão de obra do
artesanato, “descolando” os cipozeiros das práticas e fazeres que caracterizam sua
cultura, sendo empregados somente como força de trabalho. Este deslocamento,
esta especialização, resulta no distanciamento entre o sujeito e seu ambiente, in-
clusive entre o sujeito e sua identidade cultural, que repercutem na perda de seu
“domínio” territorial pelo afastamento direto. Assim, através da imposição de um
poder econômico, comercial, há uma forma de “desterritorialização” dos sujeitos e
suas práticas. Entendemos que a dependência de uma lógica comercial, que produz
a dependência material, inclusive com a encomenda de peças diretamente ligada
ao fornecimento de matérias-primas, é um fato extremamente grave, visto que, é
reflexo do processo de desterritorialização do grupo, ligado é claro, ao processo
histórico - como vem sendo exposto.
A dificuldade de comercialização e exploração do trabalho artesanal, vem tra-
zendo outra preocupação aos pais de família, que é o Desinteresse dos Filhos.
Esta leitura, do afastamento dos filhos como uma preocupação, não foi algo dire-
tamente exposto na ocorrência das entrevistas feitas nas comunidades, mas surgiu
como produto dos debates das Oficinas de Legendas, ocorridas ao final de 2010.
Assim, nestas situações de discussões sobre as categorias de conflitos e sistemati-
zação do processo de entrevistas, algumas mães (Dona Iracema, Dona Ruth, Dona
Ângela) expuseram que seus filhos não querem mais tecer, não se interessam pela
atividade que propciou renda à sua própria criação, sob a justificativa de que é
“muito trabalho para pouco ganho”, que é algo lógico e compreensível, frente tais
formas de exploração.
Os relatos por Falta de Matéria-Prima são bem frequentes, embora tam-
bém seja enunciado como as “longas distâncias” que devem ser percorridas para
o manejo do cipó, entre outros materiais, e, embora hajam estratégias de manejo
responsável. Estes critérios de manejo, passados de pais para os filhos, permitem,
140
segundo os cipozeiros, a permanente presença de cipó nas áreas naturais, visto que
muitas dessas áreas são acessadas há muitos anos. Em outras palavras, tendo o
manejo correto não falta cipó. E nesse sentido os cipozeiros tradicionais, que se
reconhecem pela detenção de práticas e conhecimentos sobre o manejo, acusam
a presença mais recente do que denominamos de “cipozeiros ocasionais”, que não
possuem práticas de manejo com critérios, e portanto, destroem as mãezeiras, ti-
ram cipó verde, aumentam o peso do feixe com pedras ou banho do cipó em água
e “tiram só para vender”. Tais práticas predatórias, segundo eles, exercem maior
pressão sobre o recurso natural pois além da coleta em grandes volumes não há o
respeito ao ciclo natural da planta, que é compreendida como um bem somente
comerciável. Essas práticas são mais relatadas pelos cipozeiros residentes na sede
do município, onde há grande concentração dos mesmos, e uma procura por “ex-
tratores”, tendo em vista a necessidade de grande volume de matéria-prima para
suprir o mercado dos atravessadores e a falta de localidades próximas com livre
acesso e disponibilidade de recurso ao manejo. Importante frisar que a compra do
“cipó de fora” teve início na década de 90, segundo os relatos, o que está condicio-
nado a fatores já mencionados acima.
Outro fato que decorre na falta de matéria prima é o Desmatamento. Afinal,
sem “mato”, ou, sem floresta, não há cipó, sendo uma importante forma de geração
de renda com as florestas em pé. Mas claro que sua importância não se resume à
geração de renda. A percepção pelos desmatamentos é concordante com o “fecha-
mento” de grandes fazendas na região, entre algumas mais citadas: Comfloresta,
Weg - a Sentinela, entre outras, que tiveram como marco o plantio de pinus e eu-
calipto em monocultivo; para Vieira (2007) esse processo ocorre desde a ação das
empresas da Paix e Cia, como dito anteriormente. Nestas localidades os cipozeiros
apontam a supressão da floresta para a produção agrícola, como a banana, o arroz,
e as espécies exóticas como o Plantio de Pinus e Eucalipto. Sendo o desmata-
mento associado a formas de produção em escala, geralmente em regime de mono-
cultura.
Estas formas de produção também são associadas, em diversos depoimentos, à
Poluição e Envenenamento de Rios. Em depoimento na região de Bom Futuro
os cipozeiros (Dona Nica e seu marido, outubro/2009) afirmaram que na ocasião do
início da produção de arroz neste local, eles encontravam muitos pássaros mortos,
que “(...) chegava a tirar de saco (...)”, e que antigamente “(...) tinha cipó no quin-
tal (...)”, não precisando entrar grandes distâncias mato adentro para o manejo. Já
na região conhecida como Palmital, onde se localiza o Rio Palmital (principal aflu-
ente da Baia de Babitonga - que divide a ilha de São Francisco do Sul de Joinville),
ocorreu em mais de uma ocasião a morte de grande quantidade de peixes, quando
os cipozeiros desconfiavam do lançamento de “veneno” pelos arrozeiros; em 2009
dois senhores passaram mal ao ingerir os peixes “contaminados” (Dona Ruth, Seu
Jango e Dona Marlene, 2009). Tal fato foi denunciado à prefeitura e nada foi feito.
Localmente surgiu um boato de que os peixes haveriam morrido “(...) por causa
de uma fábrica de queijos, que laçou o soro na água (...)”. Até hoje ninguém sabe
exatamente os motivos.
As histórias de Assassinatos ocorreram em algumas localidades de maneira
mais enfática, como no caso do Rasgado e Rasgadinho, em que eram apontadas já
141
em um primeiro contato para o mapeamento, mas de maneira mais cuidadosa em
outras localidades. Nestas, informantes ilustram a violência do “pistoleiro” como
no Descoberto, em menção ao famoso e temido “Maneco Preto”, ou em situações
de ameaça como o dito em que “(...) o pistoleiro não matou meu marido porque ele
tava na cerca e falou que era pistoleiro também, mas o feixe tava amarradinho es-
condido (...)” (Dona Margarida, novembro/2009). Assim, os assassinatos estão en-
voltos por um receio ao depoimento, figurando de certa forma o que Arruti (2006)
denomina como o ethos do silêncio, mas também são mais abertamente declara-
dos nos casos de brigas pessoais como no conflito em uma ocupação de terra em
Sol Nascente. Os fatos mais impressionantes foram declarados em Rasgado e Ras-
gadinho (Guaratuba - PR), quando do assassinato de cinco pessoas em um ano, em
2008. Os informantes declararam que na ocasião das mortes, eram implantados
pequenos feixes de palmito ao lado dos corpos dos ditos cipozeiros, para que fossem
confundidos com palmiteiros. Nestas localidades os conflitos deflagrados colocam
em linha de frente algumas famílias de cipozeiros que vivem “do mato”, das peque-
nas roças, entre outras atividades, com os grandes produtores de banana e arroz.
Em tais localidades os trabalhadores da agricultura extensiva são trazidos do nor-
deste do Brasil e moram em casas padrão de madeira branca e azul, que em muito
lembram pequenas vilas operárias.
Os conflitos são muito particulares a cada comunidade, e, como dito, não é pos-
sível afirmar sua generalização no território mais abrangente. Estes resultados es-
tão postos no processo de mapeamento situacional dos cipozeiros, cujo mapa fi-
nal84 foi divulgado no 1º Encontro Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras (em
17 de dezembro de 2010). As subdivisões dos conflitos resultam de interpretações
comuns aos cipozeiros e a equipe de pesquisa durante a ocasião das oficinas de
legendas, considerando as ricas declarações obtidas e nos valendo das anotações
tomadas e das gravações feitas nas ocasiões das saídas a campo em oito meses de
mapeamento, principalmente.
A organização das informações dispostas no mapa final foi feita em duas Ofici-
nas de Legendas, que ocorreram nos meses de outubro e novembro de 2010. Assim,
foram discutidas todas as categorias de conflitos, e estes reorganizados de maneira
agrupada para sua exposição mais clara. Para cada conflito significativo foi elabo-
rado um desenho representativo, cujo ícone central do desenho foi um consenso do
grupo (composto por sete adultos e três crianças). Assim o grupo foi dividido em
três grupos menores, para divisão dos trabalhos e maior envolvimento de todos,
bem como maior produção de desenhos no curto período de tempo, sendo dois
grupos formados por três pessoas e um grupo de quatro pessoas. O trabalho das
crianças foi concentrado em grupo só, sendo estas orientadas por um adulto no
direcionamento dos desenhos.
O mapa situacional em sua forma final contou com longo trabalho de síntese
das legendas, e também um longo trabalho de adequação da base cartográfica, jun-
tamente com um geógrafo85. Na adequação da base cartográfica, houve vasta in-
vestida na adequação de cores e conteúdos ao reconhecimento das localidades do
84 O Mapa final não é posto na presente publicação por simples questão de espaço e formato do livro, caso haja interesse
em acesso a este, solicitamos contato com os autores.
85 O geógrafo Erwin Becker Marques antigo membro do Laboratório do Projeto Nova Cartografia Social de Guarapuava
- PR.
142
território pelos cipozeiros, como, por exemplo, na especificação de rios, estradas de
terra, escolas, igrejas, estradas estaduais e federais, nomes de municípios, distri-
tos e comunidades. Tal trabalho rendeu a elaboração de dezoito versões do mapa,
em aproximadamente seis meses de trabalho, desde o envio dos primeiros dados
como os pontos coletados nas comunidades até o fechamento propriamente dito.
Importante salientar que esse trabalho só foi possível por nossa viabilidade de co-
municação pela internet (através do software skype), interface do GPS através de
software livre (Track Maker) e trocas de arquivos pesados por sites de acesso livre
(4shared). Sem tais ferramentas o tempo do trabalho iria aumentar muito.
Salientamos tais aspectos de procedimentos para registrar que toda a descrição
detalhada dos conflitos e domínios sobre o território, feita pelo trabalho de pes-
quisa dos cipozeiros, e por nós assessorada, teve como objetivo a publicação e vali-
dação do mapa final cuja linguagem deveria representar essa tradução, em tempo
hábil ao seu lançamento no 1º Encontro Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras,
promovido pelo MICI, tendo como foco a mobilização política do grupo. Assim,
não bastassem os objetivos específicos à pesquisa de campo, para levantamento
de informações e sua sistematização, o mapeamento como sistema de represen-
tação de fatos direcionou-se à síntese e ampliação da visibilidade da identidade
coletiva objetivada em seu movimento social, cujas repercussões ainda estão em
andamento, não cabendo aqui uma avaliação conclusiva sobre seus resultados, e
sim somente sobre os meios de sua elaboração.
Após a divulgação do mapa final devemos registrar aqui outra forma de antago-
nismo social que recentemente assola o grupo em questão. Trata-se da negação da
autodefinição, imposta por categorias sociais externas ao grupo, notadamente de
análises acadêmicas que insistem em classificar o grupo segundo critérios fundiári-
os e de ocupação econômica, fugindo aos critérios indentitários. No próprio En-
contro do Movimento em 2010 e, em reunião do MICI em 2011 testemunhamos a
arrogância de pesquisadores que insistiram em afirmar que determinados sujeitos
de uma comunidade não são cipozeiros, como pode ser visto também em Ferreira
et al, 2011. Tal fato, de gravidade extrema, contradiz o fato registrado de que os
mesmos sujeitos se auto-definiram como cipozeiros nas entrevistas realizadas, bem
como contradiz os próprios pesquisadores em mensagem anterior no blog da Rede
Puxirão86, ao afirmarem literalmente que: “Sou professora na Federal do Paraná e
trabalho com um grupo de 20 cipozeiros na Comunidade Rural de São joaozinho na
APA de Guaratuba. Tenho muito interesse em participar do Encontro em agosto.
Gostaria de saber se o espaço contará com mesas de debates entre os cipozeiros?
Continue postando para que eu possa me inteirar dessas noticiais.”. Salientamos
aqui, que esta mensagem trouxe a informação sobre a existência de cipozeiros nesta
comunidade, e que isso influenciou na busca de maiores detalhamentos no pro-
cesso de mapeamento situacional. Entendemos que tal situação prejudica exclusi-
vamente aos grupos sociais envolvidos, pois confunde e inviabiliza seu processo de
mobilização política e de territorialização. Entendemos que a atitude destes pes-
quisadores vem tão somente afirmar e legitimar suas próprias categorias teóricas,
definidas em trabalhos acadêmicos quanto “caiçaras rurais” e “lavradores”, e que
86 Disponível em http://redepuxirao.blogspot.com.br/2010/02/cipozeiros-em-fase-final-de-seu.html, acessado em 13 de
novembro de 2012.
143
não somente desmobiliza os povos tradicionais envolvidos, como também subsume
seus direitos à auto-definição sob a ética da fenomenológica “democracia dialógi-
ca”. Como afirmado em situações práticas, mantemos a postura de que somente os
sujeitos sociais tem o poder de afirmar quem são, de se auto-definir em sua identi-
dade cultural como é posto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal (BRASIL,
1988), na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (BRA-
SIL, 2004) e no Decreto Federal nº. 6.040 (BRASIL, 2007).
Considerações Finais
144
Atualmente a pauta de trabalho dos cipozeiros do MICI se concentra em três
linhas de ação:
1. Na construção de uma lei municipal, inicialmente para Garuva, que permita
a reabertura do território tradicionalmente ocupado. O ponto de partida para esta
política pública surge dos debates sobre as experiências das Quebradeiras de Coco
Babaçú, com a lei do babaçu livre, da experiência das Benzedeiras e Agentes de cura
do Paraná, e dos acordos comunitários de comunidades Faxinalenses. E, embora a
esfera da conquista de novos direitos circunde a câmara municipal, os trabalhos de
formação e discussão sobre o contexto social vivido, frente aos seus direitos, deve
ser feito nas diferentes comunidades de cipozeiros, na compreensão de sua instru-
mentalização quanto operadores de direitos;
2. Na realização de pesquisas botânicas referentes ao Censo de Mãezeras e suas
áreas de decorrência em dois territórios distintos em Garuva, visando o possível
encaminhamento para a implementação de uma unidade de conservação de uso
sustentável dos recursos. Tal pesquisa deve testar a hipótese de que as estratégias
de manejo dos cipozeiros tradicionais respeitam a manutenção de estoque de cipó
imbé nas “malhas de cipó”, bem como questionar a superficialidade de determi-
nadas pesquisas e a proposta de sugestões desengajadas do contexto social, como
pode ser visto em Vieira, 2011.
3. Nas discussões sobre a formalização do grupo de cipozeiros e objetivação das
questões mercantis através de uma cooperativa de trabalho. Trata-se aqui de uma
demanda estreitamente engajada com a lógica de produção de uma coletividade,
que portanto necessita do trabalho de formação que contraponha a lógica das situ-
ações mercantis individualistas focadas na acumulação de capital.
Considerando a importância deste trabalho do MICI objetivado nas três linhas
de ação, enfatizamos aqui sua fundamental articulação, que se pese a importância
do processo de politização do grupo focado nestes trabalhos.
Referências
ACSELRAD, Henri & COLI, Luis Régis. Disputas Territoriais e Disputas Car-
tográficas. In: Acselrad, H. (org.). Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro
: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional, 2008.
145
anópolis. 2007. disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa
146
Nas Margens do Fundão: Política, Expropriação, Direito e História da
Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha/PR
Resumo
147
pos ligados aos movimentos sociais daquele Estado. Com o processo administra-
tivo para fins de regularização aberto junto ao Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária do Estado do Paraná (INCRA/PR) naquele mesmo ano, vislum-
brou-se a possibilidade de, pela primeira vez na história nacional, uma comunidade
quilombola paranaense ter um título de terras emitido pelo Estado, como condicio-
nante dos direitos constitucionais adquiridos.88
Muito embora todas as etapas de tal processo junto ao INCRA tenham sido cum-
pridas até o no ano de 2009, um relativo hiato, ou silêncio, por parte do órgão,
caracteriza o atual cenário reivindicatório do grupo. De um modo bastante con-
tundente, pode-se dizer que a história da comunidade quilombola Paiol de Telha
se confunde com a própria história social, jurídica e agrária brasileira, por basica-
mente três principais fatores. Primeiro porque, expulsos de suas terras desde a dé-
cada dos anos setenta, boa parte dos “negros do Fundão”, como são conhecidos -
hoje espalhados pela região de Guarapuava - jamais tiveram a possibilidade efetiva
de, pelos canais da justiça comum, reaver as terras das quais foram expropriados e
que reivindicam enquanto legítimos herdeiros.
Segundo, os fatores que culminaram com a saída dessas famílias das mesmas
foram determinados por ações orquestradas por atores ligados ao poder público
local: na ocasião, um delegado de Guarapuava foi o principal responsável pelas
ações envolvendo a saída das famílias, que tiveram que deixar as terras para que
estas acolhessem a então Cooperativa Central Agrária Ltda., formada por imi-
grantes de origem germânica recém-ingressos no Brasil conhecidos por “Suábios
do Danúbio”89. Além disso, essas terras só seriam legalizadas em nome da referida
cooperativa em decorrência de um processo de usucapião minado por vícios e im-
peditivos legais, movido pela mesma.
Terceiro, os fatores que incidiram na possibilidade, vinte anos depois de expulsos,
de o grupo reaver seus direitos pelas terras, foram determinados pela convergência
entre as estratégias de mobilização e autopreservação do grupo, a participação ativa
de setores ligados aos movimentos sociais paranaenses implicados com a questão
agrária e étnica do Estado, e a existência de uma política de reconhecimento le-
gal do direito quilombola por parte do Estado Nacional embasada na Constituição
88 O número do Processo administrativo da comunidade junto ao INCRA/PR é 54200.001727/2005-08. De acordo com
a Fundação Cultural Palmares, atualmente o Estado do Paraná conta com 35 comunidades quilombolas com certificado
de autodefinição emitido pela mesma. O INCRA informa que 37 comunidades quilombolas paranaenses estão com pro-
cesso administrativo aberto na autarquia para fins de regularização fundiária. Para maiores informações acessar: http://
www.palmares.gov.br/quilombola e file:///C:/Documents%20and%20Settings/Rafael/My%20Documents/Downloads/
processos_abertos.pdf.
89 Sua atual denominação é Cooperativa Agrária Mista Entre Rios Ltda. Seus associados imigrantes chegaram ao Brasil
a partir de 1951, vindos da região do médio Danubio, nos países da antiga Iugoslávia, Hungria e Romênia. A região
de origem dos suábios pertencia ao extinto império Austro-Húngaro, este, desmembrado após a I Guerra Mundial e
dividido entre os países acima mencionados. Apoiados por agências internacionais e pelo governo brasileiro no período
Vargas, os suábios vieram para o Brasil motivados, principalmente, motivados a desenvolver a cultura do trigo. Para
assentá-los foi adquirida uma área de 8.500 hectares decorrente de antigas fazendas de criar, na região nos campos de
Guarapuava. Era um grupo formado por 222 indivíduos que deram origem à colônia Entre Rios, organizados em cinco
núcleos, ou aldeias. Para dar suporte à imigração e representar os interesses dos colonos recém-chegados, em 1951 foi
criada a Cooperativa Central Agrária Ltda., à qual os colonos se associaram. A melhora no rendimento das lavouras
destes imigrantes exigiu a ampliação das áreas cultivadas e os colonos adquiriram outras fazendas locais, dentre as quais
a Fazenda Invernada Paiol de Telha Atualmente, a colônia Entre Rios ocupa uma área de 22.000 ha, continua sendo for-
mada por cinco aldeias e totaliza perto de 2.500 indivíduos. As culturas hoje praticadas são trigo, soja, cevada, milho e
outras menores, como batatas e verduras. Há também uma pecuária expressiva, com produção leiteira. Sobre o assunto
ver HELM, 1967. Ver também o site da Cooperativa http://www.agraria.com.br/.
148
Federal e outras condicionantes normativas. Foi a partir, portanto, desse encontro
entre política étnica, movimentos sociais e política de reconhecimento do Estado no
contexto de redemocratização do país, que o movimento pelo retorno às terras do
Fundão ganhou novos contornos, transformando-se em caso emblemático e carro-
chefe do movimento quilombola e social do Estado paranaense.
O presente artigo é uma tentativa de descrever, à luz de uma perspectiva
etnográfica e historiográfica, o histórico de luta e de estratégias de mobilização e
autopreservação do grupo. Primeiramente ele se apoiará na documentação que le-
gitimou a apropriação das terras da Invernada Paiol de Telhas por parte da Agrária
para, posteriormente, descrever, baseado em fontes documentais e etnográficas, as
ações de engajamento do grupo no intuito de reverter um quadro que sempre lhe foi
estruturalmente desfavorável e perverso naquele contexto social.
149
sas estratégias que permitiram que algumas delas passassem a viver, novamente,
juntas. Para compreender essas dinâmicas, passemos a descrever os bastidores do
processo que determinou a saída das famílias do Fundão.
150
nação, a “Cooperativa Agrária Entre-Rios Limitada” formalizaria o pedido de ação
de usucapião contra os “sucessores dos escravos Heleodoro e Outros”.
Parte do histórico de ocupação da Invernada Paiol de Telha está relatado no
próprio processo de usucapião. De acordo com o documento Autos do Processo
n. 136/86, Ação de Usucapião movida pela Cooperativa Agrária Mista Entre Rios
Ltda. sobre a área designada Invernada Paiol de Telhas, a ação de usucapião estava
fundamentada no fato de “alguns herdeiros terem cessionado seus direitos heredi-
tários a Oscar Pacheco dos Santos, que os cessionou à Autora”, na ocasião, a Coop-
erativa Agrária. Esta, por sua vez, “plasmada nos direitos hereditários (...) veio re-
sidir neste juízo com a presente ação” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 236).96
O documento traz a seguinte argumentação:
151
sessórios de todos os remanescentes que mantinham posse no imóvel,
os quais se retiraram da terra e lhe transferiram as posses, de sorte
que, nessa época, a autora passou a ter POSSE INTEGRAL da fa-
zenda (Idem, p. 07).
Os contestantes
E mais, o argumento que pesa a este dado pelo advogado, se deve ao fato mostra-
do pelo então advogado de Oscar Pacheco, João Fernando Cunha e Cunha, de que
“vários descendentes dos escravos ainda residiam na área”, e que o documento que
lega os direitos hereditários dos herdeiros à Cooperativa, comprova isto, sem se-
quer os identificar ou esclarecer se seus direitos foram adquiridos (Idem, p. 267).
A posse também não seria “contínua” pois não se poderia “somar essa atual e
recentíssima posse a dos antecessores de todos os descendentes vivos”, haja vista o
fato de a “ocupação se situar aquém do prazo legal” (Idem, p. 282, 283). Ligado a
isto, um dos argumentos do advogado de alguns herdeiros era o fato de, já em 1976,
os contestantes terem ajuizado uma ação de reintegração de posse, fundamentados
pelo “direito de arrependimento”.
152
O mesmo advogado de João Pacheco é quem contestaria, não somente a não “ex-
clusividade” da Agrária no exercício da posse da terra (“somente uma parcela dos
herdeiros teria vendido seus quinhões”, diria ele), mas o fato de que, se se guiasse
pelos artigos 550 e 552 do Código Civil97, a Cooperativa Agrária jamais poderia se
valer dos anos de ocupação dos herdeiros (que data do século dezenove) para, plas-
mada nos direitos hereditários a ela cessionados, fundamentar o pedido de “posse
contínua”. Pelo contrário, deveria ser contada a “continuidade” da posse da Autora
somente a partir dos anos que ela adquiriu, de seu próprio contestante (Oscar Pa-
checo dos Santos), as terras que em 1981 intentava usucapir: 17 de setembro de
1974, “data da escritura por ela celebrada, isto é, menos de sete anos quando do
aforamento desta ação” (Idem, p. 278). 98
A posse não seria “pacífica” pelo fato de a Agrária ter “maliciosamente se apro-
priado dos quinhões hereditários dos herdeiros que não venderam seus direitos”
(Idem, p. 277, 278). Eis, curiosamente, a argumentação dos defensores de Oscar
Pacheco. Ela se fundamenta no fato da Cooperativa ter se apropriado maliciosa-
mente dos quinhões hereditários daquela suposta minoria de famílias de herdei-
ros que não vendeu seus direitos. Justo Oscar Pacheco que, em carta de um dos
descendentes dos escravos em questão ao então presidente Ernesto Geisel, datada
de 1975, aparecia como a persona non grata dos descendentes dos escravos de
Balbina, por tê-los ludibriado, falsificado assinaturas e representações em prol da
aquisição daquele quinhão.99
A Procuradoria-Geral do Estado do Paraná também contestou a ação da Agrária,
sob a fundamentação de que tal Estado “jamais revalidou, ou legitimou para os
sucessores de Balbina ou os escravos libertos, ou mesmo à Autora, com relação
à área ali pretendida” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 337). O argumento
dos procuradores se baseava no fato de que as terras referentes ao imóvel Paiol de
Telha eram “devolutas do Estado”, tanto por que seus proprietários não receberam
as Cartas de Sesmarias quando ainda vigorava o regime imperial, quanto pelo fato
de, a partir da criação da “primeira e única legislação sistemática sobre as terras no
Brasil” (Idem, p. 338), - a Lei n. 601 do ano de 1850 -, não requereram a legitimação
de posse perante o Estado do Paraná, prevista por aquela nova legislação (Idem, p.
339).
Segundo a procuradoria, o imóvel legado por Balbina, remonta o ano de 1829,
quando seu marido, Manoel Ferreira dos Santos, “obteve direito a requerer uma
sesmaria”. Com seu falecimento, - “que apesar de ter sido contemplado com os di-
reitos para requerer uma sesmaria, não o fez - as terras em que se localizara ficaram
pertencendo à sua mulher, Balbina Francisca de Siqueira”. Ela, por sua vez, não
teria regularizado as terras, que poderia ser feita requerendo ao “Juízo de Comis-
sário de Guarapuava a medição para fins de legitimação da sua área, (...) a assim
obter a regularização do seu imóvel através de legitimação. Não o fazendo, tal área
97 Nas letras de Cunha e Cunha: “não o socorre o disposto no art.552 do cód. Civil, uma vez que não é possível acrescer
a posse dos antepassados em favor de um só herdeiro, em detrimento dos demais” (Idem, p. 273).
98 Para deslegitimar a condição de “posse contínua” defendida pela Agrária, Cunha e Cunha recorre ao entendimento
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando parafraseia a Ementa: “As coisas possuídas em comum não são
suscetíveis de usucapião, salvo se o condômino prescribente prove haver cessado, de fato o condomínio, passando a
possuir a coisa como exclusivamente sua por mais de 30 anos”. Como se vê, este não foi o caso do exercício de posse da
Autora: nem exclusiva, nem contínua, e, como se verá, nem pacífica.
99 Discorreremos adiante sobre esta carta.
153
não foi estremada do Domínio Público, permanecendo até a presente data como
devoluta do Estado do Paraná”. (Idem, p. 331, 332).
De acordo com os advogados da procuradoria, os então proprietários da fazenda
portavam somente “Confirmação Régia”, datada de 1855, espécie de “Registro de
Posse Paroquial”, simples autorização para se localizar. Não contavam, portanto,
com título legítimo emitido pela Coroa, mas mera autorização para “ocuparem” a
gleba de terras. Nas palavras de um deles:
Porém, nenhum dos argumentos acima citados fez com que a ação de usucapião
movida pela Agrária contra os sucessores dos escravos de Balbina fosse negada pe-
los juízes que responderam ao caso. Em 29 de março de 1989, o caso foi julgado pelo
poder judiciário, em 1ª Instância na Comarca de Pinhão, como favorável à Agrária.
O juiz da sentença, José Sebastião Fagundes Cunha, julgou “procedente o pedido
contido na demanda, para declarar o domínio da área em favor da Cooperativa
Agrária Mista Entre Rios Limitada” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 801).
Este julgamento foi fundamentado nas provas mostradas pelas “testemunhas
confrontantes”, que afirmavam que “todas as famílias que ali residiam cederam
seus direitos a Oscar ou a Autora, de forma pacífica e sem qualquer incidente”,
informando “que a Autora adquiriu os direitos de todos os herdeiros conhecidos e
que estavam na posse” (Idem, p. 799). Há de se ressaltar um dado importante no
documento. O fato de que somente “uma das testemunhas [de defesa dos herdei-
ros] afirma que foi retirada da área, e outra que ouviu comentários de que a violên-
cia fora utilizada para retirar posseiros do local”. Porém, absolutamente nenhum
desses argumentos pesou contra a Agrária.
De um lado temos uma testemunha que comprova não ter sido “pacífico” o pro-
154
cesso de aquisição de posse da área por parte da Agrária, e do outro, podemos ver,
do ponto de vista jurídico, corroborada a afirmação dada pelo presidente da Agrária,
Mathias Leh, em carta datada de 1974 a importantes órgãos e setores estaduais, de
que a aquisição, por parte da Agrária, daquelas terras, faria extinguir uma iminente
convulsão política e social na área, deflagrada por supostos “posseiros” que habita-
vam o local.100
Além disso, contrariando a fundamentação da defensoria pública do Estado,
Cunha afirma que não necessariamente “as terras que não foram registradas no
registro imobiliário sejam devolutas”. O juiz ainda salienta que a Lei n. 601 de 1850
evocada pelos procuradores do Estado é clara ao afirmar que as “terras públicas
deveriam ser consideradas devolutas”, mas não que “toda gleba que não seja par-
ticular é pública”.
O caso seguiria com o recurso de apelação, um mês depois, tanto da Procura-
doria Geral do Estado quanto de alguns autodenominados “herdeiros das terras
de Baibina”101, junto ao Egrério Tribunal de Justiça do Estado. As representações
adentradas por estes continuaram se fundamentando principalmente no fato de
que na “referida sentença de 1º grau, a posse não foi mansa e pacífica”, além de que
a Agrária adquiriu os direitos mencionados, de alguns herdeiros, o que significa,
não de todos, e em prejuízo dos contestantes que ora apelam, os quais adquiriram
os direitos de quase 40 cedentes herdeiros (...) sobre a totalidade da área, sem saber
a fração exata de cada um dos que lhes cederam (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86,
p. 817).
Já a procuradoria do Estado continuava argumentando contra a sentença pelo
fato de as terras em questão serem devolutas do Estado do Paraná. O desconten-
tamento do então e atual advogado da Agrária, Edison José Sanches, contra as in-
vestidas da procuradoria, se devia ao fato de o Estado estar se opondo à Coopera-
tiva, uma vez que “deveria ser cúmplice, e não contestador” (Idem, p. 837).
Para Sanches, era justamente a Agrária que assegurava a produção de alimentos
para a região, amparada historicamente por um projeto fundiário arregimentado,
inclusive, por grupos e setores importantes da sociedade paranaense, como mostram
aquelas correspondências trocadas em 1974 entre o presidente da Agrária e repre-
sentantes dos poderes municipal e estadual. Sobre elas, nas letras do advogado:
Alguns herdeiros contestaram, tais quais “Oscar de Castro”. Sobre ele Edison
José Sanches alega que nunca houvera qualquer “convicção” de sua parte, quando
afirma ter sido expulso das terras, comprovada pelo fato de nunca ter “reclamado ou
contestado a ação”. Tudo se passa como se, aqueles ou estes herdeiros ludibriados
100 Conforme a já mencionada carta da Cooperativa Central Agrária Ltda., assinada por seu presidente, aos seguintes
destinatários: Coordenação Regional do INCRA, Direção do Ministério da Agricultura do Estado do Paraná, Comando
do 26º GAC, Comarca de Guarapuava. 18 de outubro de 1974.
101 Os referidos herdeiros são: Waldemiro Odia, Jurandir Sebastião Teixeira e Izauri Fidêncio Madureira (Idem, p. 815)
155
pelos poderes constituídos, estivessem sempre aptos a se situarem juridicamente
em prol de seus direitos.
O exemplo mostrado por Sanches nos faz pensar que, se não houve contestação
jurídica da ação, não houve injustiça efetivada. É como se a linguagem das repre-
sentações e contestações “oficiais” fosse a única via pela qual o mundo efetivo pu-
desse ser legitimado. E é justamente este abismo, entre um mundo “efetivo”, e um
mundo “político” e “jurídico” - que ideologicamente representam, reportam e tra-
duzem o efetivo -, que possibilitou ao projeto de “reforma agrária pacífica” proposto
pela Agrária ignorar as vozes, contestações e situações daqueles que, tendo que cor-
rer - e recorrer - atrás de prazos e direitos situados em instâncias outras, perderam
as terras onde “efetivamente” nasceram e viveram.
E isto fato e feito, a força contestatória dos descendentes na busca por suas ter-
ras, fundamentados pelo “direito hereditário”, foi como que ocultada pela argu-
mentação já posta, de Sanches, de que “a sucessão hereditária não é oponível aos
direitos de posse da Autora”, haja vista que “os direitos hereditários foram anulados
pelo direito novo, nascido da posse exclusiva” (AUTOS DO PROCESSO n. 136/86,
p. 838), sabendo-se ignorado o fato de que, de exclusiva, pacífica e mansa, tal posse
nunca teve de nada.
O “juízo final” deste continuum de vozes e posições foi dado em outubro de 1991,
pelos juízes Duarte Medeiros e Mendes Silva, no Tribunal de Alçada do Estado do
Paraná. Ao Estado, o argumento de que o Registro do Vigário (datado de 1855)
“visava legalizar a situação de fato das posses”, fez com que “as terras de Balbina
teriam sido homologadas” e, por isso “a posse dos antecessores da Autora está esco-
rada em título reconhecido judicialmente, título legítimo” (fls. 926).
Aos herdeiros, (no caso, “Waldemiro Odia e outros”, estes, como já mencionado,
os únicos que contestaram a sentença proferida em 1989), houve improcedência
quanto ao apelo, pois não comprovaram sua condição de sucessores dos antigos
adquirentes - ex-escravos - e nem posse na área em questão. A prova testemunhal é
no sentido de que a autora adquiriu os direitos de todos os herdeiros conhecidos e
que estavam na posse e que desconhecem outros herdeiros que estivessem na posse
do imóvel e não foram cedentes (Idem, p. 927).
E assim parecia estar encerrada a questão judicial que envolveu, por dez anos, os
vivos e os mortos ligados àquelas terras e os direitos sobre elas. Nem os advogados
do Estado, nem os advogados dos herdeiros convenceram os juízes de que as terras
do Fundão não deveriam ser usucapidas à favor da Cooperativa Agrária Mista Entre
Rios. Mas quem disse que a briga terminaria por aí?
156
que tem o poder de mudar uma sentença transitada em julgado”102. Tal limitação
jurídica dificultava bastante as possibilidades de se encaminhar a luta dentro dos
canais do poder judiciário.
Simultaneamente às investidas de Domingos junto ao Ministério Público, no iní-
cio nos anos noventa ações praticadas por outros herdeiros das terras da Invernada
fizeram alavancar um tipo de insurgência que convergiu para a formação, materiali-
zação e visualização de um movimento que dia após dia agregava um número maior
de pessoas em prol da causa dos herdeiros das terras da Invernada. A possibilidade
do retorno às mesmas ganhou novos contornos em decorrência do engajamento
dos membros da família Santeiro – também descendentes dos escravos de Balbina -
que no ano de 1996 acamparam às suas margens reivindicando o direito às mesmas
e permitindo a publicização do conflito.
Não se tratava somente daqueles poucos herdeiros que responderam, atomi-
zada e judicialmente, no transcurso de toda a década dos anos oitenta, pelas ações
contestatórias ao pedido de usucapião movido pela Agrária. Assessorados pela en-
tão Pastoral Rural103, outros personagens e ações foram surgindo, e com eles as
inúmeras histórias e relatos das injustiças vividas entre os anos de 1973 a 1975
que não constavam nos autos do referido processo foram ganhando visibilidade
nas reuniões organizadas pelos parentes da Invernada, relatadas em pareceres,
representações jurídicas e notas de jornal que passaram a interpretar, traduzir e
dar novas luzes ao caso.
Este movimento permitiu agregar parentes que não se viam desde a época da
expulsão: gente espalhada pelos bairros populares e favelas de Guarapuava, pelos
quinhões de terra no município de Pinhão, de Reserva do Iguaçu, de Coronel Vivida,
Mangueirinha, pelas periferias das cidades catarinenses e paulistas. Famílias que
há muito não se viam passaram a evocar um estatuto que as elevava à condição
de novos sujeitos políticos e de direito, instituindo o “conflito como fato político
e público” através do reconhecimento coletivo de uma “situação de desrespeito”
(ARRUTI, 1997, p. 2006).
É a partir desta época que as ações atomizadas ganharam o corpo daquilo que
Almeida (2006) chama de “existência coletiva” em torno de uma “mobilização étni-
ca”. Ela se ancorava no fato de os “negros do Fundão” serem os legítimos donos das
terras doadas aos seus ascendentes por Balbina e que, ao agregarem suas trajetórias
à possibilidade de reativar a luta pelo direito as mesmas (legitimados por um docu-
mento da herança datado do século dezenove), encarnaram conjuntamente uma
condição que os diferenciava de quaisquer outras pessoas e grupos da região: a de
serem “herdeiros das terras da Invernada”, ou “negros da Invernada”, “do Fundão”,
ou da “Fazenda Paiol de Telha”.104
Vejamos, pois, o que ocorreu com os sucessores dos escravos no período que
sucedeu a sentença final do processo de usucapião julgado favorável à Agrária. As-
sim desenharemos as estratégias do grupo, dadas a partir de ações quer de cunho
102 Cf. Anotações sobre as possibilidades de luta jurídica e política em relação à grilagem da fazenda Paiol de Telha ,
Arquivo Cempo (Central de Apoio ao Campesinato Antônio Tavares – Guarapuava), s/d, s/autor.
103 A Pastoral Rural se transformaria na Comissão Pastoral da Terra de Guarapuava (CPT), dando prosseguimento à
assessoria junto ao grupo.
104 Como veremos adiante, a assunção ao rótulo “quilombola”, por parte do grupo, será dada em um período posterior
a este.
157
jurídico-formais e dentro da esfera do direito estatal (como pedidos de Audiência
Pública e abertura do processo administrativo junto ao INCRA), quer de cunho de
uma política étnica e dentro da esfera das tomadas de decisão “práticas” do próprio
grupo (como a formação do acampamento e a ocupação do território reivindicado).
Elas nos permitirão conhecer também as estratégias das agências do Estado em
suas tentativas de mediar e resolver o conflito, que não se traduzia a uma questão
meramente fundiária, mas, sobretudo, cultural e étnica.
Foram Domingos, Santeiro e sua falecida esposa, Anália, as figuras que con-
seguiram agregar e mobilizar um número grande de pessoas em prol de reaver as
terras do Fundão. Como se verá adiante, a seus modos, e a suas estratégias, estes
“anciões”105 costuraram o fio que pareceu formar o corpus do sistema político da
comunidade. Embora o guiando de modos bem diferentes, eles aparecem como os
principais protagonistas do movimento de retorno às terras, justamente por que
simbolizam e encabeçam dois diferentes tipos de estratégia e ação.
A família Santeiro106 foi a responsável direta por necessariamente todos os
acampamentos que ocorreram desde o primeiro, no ano de 1996. Passado o curso
dos anos que transcorreram a expulsão, as ações em vistas a luta por retornar ao
Fundão passaram a ser efetivadas na medida em que Santeiro, Anália e Osvaldo107
saíram de suas dependências do bairro Aeroporto, em Guarapuava, em dezembro
de 1996, para ocupar aquelas mesmas paragens de onde, vinte anos antes, foram
obrigados a sair assistindo, inclusive, um incêndio á sua casa. Como veremos adi-
ante, devido uma ação de reintegração de posse movida pela Agrária, o grupo de
acampados ficou apenas três dias no local.108
Eles tornariam a ocupar as terras seis meses depois, levando consigo não so-
mente os parentes mais próximos, mas muitas daquelas famílias que reivindicavam
o direito de ali viver. Nas palavras de Santeiro: “se a gente não acampar, as terras
nunca vão voltar pra gente”. Esta é a sina da família Santeiro, perdurada desde os
anos noventa até hoje, haja vista ainda estarem acampados. Foi a partir daquele
primeiro acampamento, em 1996, que a questão dos sucessores dos escravos de
Balbina tomou corpo e dimensão inesperados.
Simultaneamente a este movimento, desde pelo menos 1994, Domingos e seu
irmão, Geninho, passaram a se articular para atingir a mesma finalidade que a da
outra família. Porém, diferente das estratégias orquestradas pela família Santeiro,
Domingos se ancora em outros planos de ação e resistência. Seu material não é
105 Anciões é uma referência aos mais velhos, àqueles que viveram no Fundão e que reportam o “tempo dos antigos”.
Estes possuem bastante legitimidade para se posicionar no grupo, e resolver questões que a princípio só poderiam ser
resolvidas por aqueles que viveram nas terras da Invernada. Para oficializar esta posição de legitimidade, no ano de 2007
foi criado o “conselho dos anciões”.
106 Refiro-me aqui não somente às pessoas de Domingos Santeiro e sua esposa Anália, mas seus filhos, Milton, Gilson,
Nena, bem como o cônjuge desta, Osvaldo. É assim que muitas pessoas da comunidade se referem à eles, como “os
Santeiro”, ou “dos Santeiro”.
107 Osvaldo é casado com Nena, filha do casal Santeiro.
108 Estava também neste acampamento Ovídio, outro ancião da comunidade que à época vivia no Assentamento. Fa-
lecera no ano de 2010.
158
uma enxada, lonas e madeiras de um acampamento que se faz surgir em meio à
madrugada. Pelo contrário, suas ações são diurnas, pois é nesta fase do dia que
os procuradores, advogados, ativistas da causa se reúnem para discutir questões e
papéis que garantem direitos.
É de casa em casa, colhendo assinaturas dos herdeiros, promovendo reuniões
para a formação de uma associação, acessando a memória para contar as incríveis
histórias do Fundão, a saga dos seus ancestrais, que Domingos elabora seu plano de
retornar ao Fundão. Pode-se dizer que ele é o “teórico nativo” do grupo, a via pela
qual boa parte da história já escrita sobre a comunidade foi contada.
Muito embora ausentes no processo de usucapião, haja vista residentes no Es-
tado de São Paulo, foram os dois irmãos, Domingos e Geninho, quem, através de
documentações que reportam o ano de 1975, contaram e contam a história das pes-
soas que viveram no Fundão. São deles também as primeiras procurações e repre-
sentações que visavam, logo no início dos anos noventa, problematizar o sucesso
da Agrária no pedido de usucapião, reivindicando a necessidade de se instaurar
Inquérito Civil Público referente ao caso.
É com base nestes personagens que podemos elucidar duas diferentes estraté-
gias de mobilização e busca por direitos por parte da comunidade Paiol de Telha, e
assim entender por que a costura entre estes dois modos de reivindicação formou
o tecido no qual a bandeira da herança foi escrita. Passemos a descrever esses pro-
cessos.
159
testo de Títulos e Registro de Títulos da Comarca de Guarapuava, dando conta da
alforria e doação feita por Balbina aos seus ascendentes escravos com cláusula de
inalienabilidade. O oficial de justiça que cuidava da ação, ao lê-lo, disse a um dos
administradores da Agrária que acompanhava o caso que as terras eram realmente
dos negros. No dia seguinte, o Grupamento de Operações Especiais da Polícia Mili-
tar de Guarapuava já estava ali para despejá-los110. A saída foi noticiada no telejor-
nal da cidade. Nena, esposa de Osvaldo que não participou, assistiu de casa o ato.111
160
um novo recurso dos herdeiros para driblar a sentença da Procuradoria Geral da
República do Paraná que, em 1995, arquivou uma representação adentrada por
Geninho e Domingos”. Tratava-se de uma proposta de emenda ao artigo 68 dos
Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal
de 1988 apresentada pela então senadora petista Benedita da Silva.117
Se tal artigo estabelecia a obrigatoriedade de o Estado emitir a posse definitiva
das terras habitadas por comunidades remanescentes de quilombo, “pela emenda
constitucional, porém, o conceito de descendente passa a ser ampliado e as ter-
ras conhecidas como antigos quilombos poderiam ser tombadas como patrimônio
histórico cultural”.118
Sem explicar ao certo como ou porque, a partir da ampliação do conceito de
“descendente”, as terras conhecidas como “antigos quilombos” tornar-se-iam
patrimônio histórico cultural, a reportagem nos mostra que, pelo menos no âmbito
das estratégias políticas do grupo em sua relação com os agentes mediadores, a
costura entre o tema da comum herança histórica com a escravidão e o artigo 68 já
estava sendo feita desde meados da década de noventa.
Com base em uma emenda constitucional, tentava-se “driblar” uma sentença
judicial cujo prazo da ação rescisória já teria prescrito. Mário José Gisi, que foi o
procurador responsável pelo arquivamento da representação adentrada pelos herd-
eiros em 1995, recorreu a dois estatutos para fazê-lo: o artigo 109 do Código Penal
e o próprio artigo 68 dos ADCT. O primeiro estaria baseado na “extinção da puni-
bilidade pela prescrição”, ou seja, não haveria como, nas argumentações de Gisi,
instaurar inquérito policial para apurar as denúncias por que os crimes teriam sido
cometidos há mais de 20 anos, (em 1995), e por isso prescreveram pelo tempo.119
Já o argumento embasado no artigo 68 sentenciava a impossibilidade de tratar
do caso dos descendentes das terras da Invernada pelo fato destes não mais ali
viverem. Seria, portanto, uma saída para o movimento adequar a questão trazida
pela senadora Benedita Silva às suas pautas reivindicatórias. A emenda traria a li-
gação entre o “antigo quilombo” e seus “descendentes”. E é justamente esta ligação,
esta cola, entre o histórico de vida que remete à escravidão, e as estratégias políti-
cas do grupo em relação às políticas de reconhecimento do Estado embasadas nos
desdobramentos da constituição federal de 1988 que irão compor as principais e fu-
turas ações e reações da comunidade em sua necessidade de “driblar” os inúmeros
impeditivos legais postos em jogo.
161
Ribeiro, em matéria reportada no mesmo jornal, no dia 10 de fevereiro daquele
ano. Foi Amoriti Trinco Ribeiro o juiz que proferiu a sentença do pedido de ação
de usucapião movido pela Agrária no ano de 1981. Nada de anormal no fato se não
se tratasse do grau de parentesco entre o mesmo e uma pessoa que, como o del-
egado Oscar Pacheco dos Santos, é apontada pelos herdeiros e pela assessoria da
CPT como uma das principais responsáveis pelo processo de expropriação por eles
sofrido: João Trinco Ribeiro.
Como indicam suas assinaturas, Amoriti é ninguém menos que filho de João.
Foi João quem, no ano de 1967, juntamente com Alvy Vitorassi, adquiriu parte dos
“direitos hereditários” de algumas pessoas que viviam no local, sendo esses direi-
tos mais tarde cedidos e transferidos, em 1974, ao delegado local, Oscar Pacheco
dos Santos120. Neste mesmo ano, mas um mês antes de tê-los adquirido, o referido
delegado vendia à Cooperativa Central Agrária Ltda. “uma área de campos e capões
no imóvel Paiol de Telha, também conhecido como Fundão”, bem como cedia a esta
Cooperativa “os direitos hereditários e de posse” sobre a referida área.
Já na posse da área, em 1981, a Cooperativa, objetivando a regularização da área
e dos direitos adquiridos, demandou usucapião sobre as terras adquiridas em 1974.
O ganho de causa à Cooperativa foi dado em 1991. As terras dos libertos legatários
passavam, definitivamente, às mãos da referida empresa.
Ao longo de todo este processo, no entanto, não faltaram episódios que, no
mínimo, nos chamam a atenção, uma vez que também já foram postos a prova e
analisados por pessoas, movimentos e organizações que assessoram os negros da
Invernada. São várias as relações e os vínculos entre os “compradores” dos “direitos
hereditários e de posse” sobre aquelas terras e os que “regularizaram” as diferentes
aquisições.
Sabemos, por exemplo, que,
162
e como foi o caso, adquiri-las (HARTUNG et al 2008, p.87).
123 Cf. COFRE & IACOBACCI. Considerações sobre a ação de usucapião que tramitou sob o número 136/86, na Co-
marca de Pinhão. Mimeo, s/d.
124 Cf. A Tribuna de Guarapuava, ano I. n. 75, pp. 05, 10 a 16 de fevereiro de 1996.
163
Mais luzes sobre o caso: o protagonismo da CPT e as histórias docu-
mentadas por Domingos Guimarães
164
A época que ele [João Trinco] foi lograr o pessoal era 1966, quando o
Dr. Pacheco adquiriu a área foi em 1972, aí que começou os desfechos,
a apartar o pessoal, e o pessoal saiu, ele fingiu que tava dando es-
critura, que tava pagando, mas não pagou ninguém (GUIMARÃES,
1994).
165
O período que atravessa estes dois acontecimentos emblemáticos e importantes
para o grupo nos revela diferentes e surpreendentes estratégias na luta por reaver
aquelas terras referenciadas como primordiais à existência daquela coletividade.
Foram nestes nove anos - que separam a “constituição” de uma associação da “cer-
tificação” de um traço cultural - que muitas, mas muitas águas rolaram neste oceano
revoltoso das estratégias de mobilização e autopreservação do grupo.
No intervalo destes dois episódios, muitos acampamentos no entorno das ter-
ras da Invernada foram feitos, e desfeitos. Foi neste período também que alguns
membros da comunidade foram assentados pelo INCRA, em um quinhão de terras
localizado na Colônia Socorro, município de Guarapuava. O Estado, portanto, es-
teve presente no processo de assentamento, dando às sessenta e quatro famílias dos
sucessores dos escravos de Balbina terras pra viver.
Mas para que estes fatos ocorressem, seria necessário um novo “estopim”, uma
nova “desobediência civil” chamada acampamento. A família Santeiro, em conjun-
to com outras famílias de herdeiros, voltaram a ocupar as estradas que dão margem
ao território. O “Relatório de Deslocamento da Polícia Militar Devido à Invasão”
informava, no dia 16 de junho de 1997, que a propriedade da Agrária “foi invadida
por pessoas que se dizem donas da área, às 3 horas da manhã do dia 15 de junho”
(AUTOS DO PROCESSO n. 136/86, p. 24). Tratava-se de “09 barracas, no inte-
rior da fazenda”, contando com “41 pessoas, 30 adultos e 11 crianças”, cujos líderes
respondiam pelos nomes de “Santeiro e Ovídio”.
Diferentemente daquele primeiro, que contava apenas com 14 pessoas da família
Santeiro e de Ovídio, e sem apoio direto de nenhum grupo mediador, o acampa-
mento de junho de 1997 agregou um número maior de pessoas, além de respaldo da
CPT de Guarapuava e outros grupos que através dela passaram a conhecer a causa.
166
Conforme o relatório, as pessoas acampadas diziam ser “remanescentes de es-
cravos”, “procedentes de Guarapuava”, e que “os líderes, e mais pessoas, são os que
estiveram acampados em 15 de dezembro de 1996”. Além disso, “em breve acam-
parão ali mais 150 famílias”. O documento apenas adiantava algo que realmente
estava por suceder. Três dias depois, o oficial de justiça responsável pela ação de
despejo encontraria o local desabitado. A fazenda, pois, estava desocupada, mas
não a estrada que a rodeia.
Data, portanto, de 19 de junho de 1997, o dia que os tais 40 acampados monta-
ram suas barracas nas cercanias do Fundão. Com o passar dos dias, a estas famílias
se juntaram outras, totalizando aproximadamente 150 pessoas. E se para Edson
José Sanches - advogado contratado pela Agrária no processo de reintegração de
posse -, ao liberar a ocupação na estrada a justiça local não estava cumprindo o
respeitável “mandato liminar de manutenção de posse” (AUTOS DO PROCESSO n.
136/86, p. 75), para Odir Antônio Gotardo, então advogado do grupo de acampa-
dos, o fato de os herdeiros estarem fora da área ora pertencente à Cooperativa era
uma justificativa mais do que plausível para fundamentar o pedido de revogação da
liminar concedida.
E foi em obediência à medida liminar de reintegração de posse que os “réus”
saíram da fazenda para acampar “do lado de fora da cerca do imóvel”131. Ali per-
maneceram até agosto de 1998, quando o INCRA os removeu até os 1.050 alqueires
das terras localizadas na Colônia Socorro. O período deste acampamento foi pos-
sivelmente o mais importante para o movimento. E também o mais conturbado,
principalmente para as famílias acampadas.
O “Relatório da 14ª Subdivisão Policial de Guarapuava” informava que em 25
de agosto de 1997 a Cooperativa Agrária Mista Entre Rios solicitava a instauração
de Inquérito Policial, “contra as pessoas de Domingos Santeiro, Ovídio da Silva e
Osvaldo Alves dos Santos, por furto de madeiras e erva mate em folhas do imóvel
denominado Fazenda Fundão” (Idem, p. 30).
O relatório conclui que as pessoas que se dizem “descendentes de escravos filia-
dos à Associação Pró-Reintegração Paiol de Telha”, herdeiras das terras da Fazenda
Fundão, lideradas por aquelas três pessoas, adentraram no imóvel e após acam-
param a beira da estrada que liga os municípios de Reserva de Iguaçu e Pinhão,
exploraram o corte de árvores de pequeno porte para a instalação dos barracos,
fizeram ainda o uso de lenhas secas do imóvel e podaram alguns pés de erva mate
nativa. Ficou também evidenciado que os acampados, mesmo instalados ao lado da
estrada, fazem uso do imóvel para apanharem água, lavar roupas e tomar banho em
um riacho ali existente (Idem, p. 31).
Em outras palavras, uma vez vivendo às margens da fazenda, os herdeiros usu-
fruíam daqueles bens naturais para ali sobreviverem. Havia aproximadamente 90
barracas, construídas com lenha e lona, que se estendiam por dois quilômetros
de ambos os lados de um trecho da estrada que liga os municípios de Reserva do
Iguaçu e Pinhão. O trecho ocupado naquele período é próximo ao local onde atual-
mente alguns herdeiros permanecem acampados. E como hoje, ali eles apanhavam
a lenha para servir de estrutura das barracas e combustível para alimentar o fogo,
se utilizando do rio da Reserva para tomar água, se banhar, lavar os utensílios do-
131 Cf. relatório do poder Judiciário. Agosto de 1997
167
mésticos e vestimentas pessoais.
Estas ações, interpretadas pelo advogado da empresa como “ilegais”, justifica-
vam a instalação, por parte da Cooperativa, de uma guarita de segurança vizinha
à área ocupada pelos sucessores dos escravos de Balbina. A construção da guar-
ita foi autorizada pela Superintendência Regional do Paraná que, um ano antes,
em novembro de 1996, concedeu a Agrária um alvará autorizando “os serviços de
Vigilância Orgânica, exclusivamente dentro dos limites territoriais onde se encon-
tram localizadas suas instalações (...) em virtude da necessidade de segurança física
do patrimônio e mercadorias e bens de terceiros” (Idem, p. 36).
Uma vez acampados em 1997, a empresa acionava este dispositivo para legitimar
a presença de aproximadamente “35 profissionais”, sendo “16 vigilantes, cursados,
e 19 guardas de segurança” que cuidariam deste novo “problema” para a seguridade
da empresa. A Vigilância tinha como função também acompanhar e documentar
tudo o que ocorria entre os acampados. Temos, por exemplo, uma “Comunicação de
Ocorrência”, datada de 1º de setembro de 1997, que traz as seguintes informações:
168
colocado veneno nas águas utilizadas pelos acampados, o que os
levou para o hospital da cidade de Reserva do Iguaçu. O lavrador
aposentado disse que o grupo de pistoleiros é comandado por um
pessoa conhecida por “Luiz Branco”. Desde o início do acampa-
mento, há pessoas realizando filmagens e outras formas de pressões
psicológicas. Além dos acampados, também os funcionários da CPT
e um padre estariam recebendo ameaças. O coordenador Vandresen,
e o padre Antônio Potuski, da Paróquia de Pinhão, estariam sendo
seguidos à vários dias e receberam ameaças 133.
169
O Nuer tinha como assessor jurídico o já mencionado Dimas Salustiano da Sil-
va, que, anos antes, advogou a favor da comunidade quilombola de Frechal, no
Maranhão137. Foi Dimas quem organizou o Dossiê Paiol de Telha (SILVA, 1997),
uma espécie de compêndio formado por documentos antigos e recentes relativos
às terras da Invernada. Ali, o Artigo 68 já era acionado no intuito de dar suporte
jurídico à luta dos até então juridicamente conhecidos herdeiros das terras da In-
vernada138. É a partir das relações entre Dimas, Nuer e a comunidade, que foram
abertos os primeiros diálogos e possibilidades de o coletivo assumir o rótulo de
“remanescentes de quilombo”.139
CNPQ. Segundo Leite, “o projeto buscou um conhecimento mais aprofundado das situações existentes, tendo em vista a
possibilidade de sua inclusão no artigo 68 que prevê a regularização fundiária das terras das comunidades de quilombos.
O projeto previa a elaboração de laudos antropológicos para esclarecer sobre as terras herdadas, de modo a auxiliar os
herdeiros em sua luta pelo reconhecimento, regularização e retomada das áreas perdidas” (Idem, p.09).
137 Em 20 de maio de 1992, foi decretada como de interesse social, a Reserva Extrativista do Quilombo de Frechal (de-
creto n. 536/92). É da autoria de Dimas Salustiano da Silva o capítulo “Considerações Jurídicas”, que compôs o “relatório
básico referente às denominadas “terras de preto” de Frechal” (Projeto Frechal Terra de Preto, 1996, p.09).
138 Encontra-se também no dossiê, o resumo da ação de usucapião, o testamento de Balbina, as assinaturas dos herdeiros
alegando terem sido expulsos das terras da Invernada, documentos judiciais referentes ao caso, cartas do grupo endereça-
das ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, além das representações adentradas por Domingos,
incluindo as histórias por ele narradas. Muito possivelmente foi Dimas quem impulsionou Domingos A contá-las, dada
a importância do registro.
139 No ano de 1998, inclusive, a Fundação Cultural Palmares organizou uma comissão para investigar se ao grupo po-
deria ser relegada a condição de “remanescentes de quilombo”. A comissão foi ao acampamento feito pelos herdeiros, e
constatou que aquilo que viam não era um grupo remanescente de quilombo. Acerca dos critérios usados pela comissão,
podemos somente imaginar.
140 Cf. A tribuna de Guarapuava, 28 de março de 1998.
170
Dois dias antes, uma comissão da associação Heleodoro esteve em audiência
com o secretário de Estado para Assuntos Comunitários, José Carlos Vieira, e com
a Superintendência do INCRA no Paraná. No encontro foram discutidos tanto a
possível vistoria que o INCRA faria na área na Fazenda Paiol de Telha quanto o ca-
dastro das famílias descendentes dos escravos legatários de Balbina141. Já naquela
época, estava sendo cogitada a possibilidade de os acampados serem re-locados
para um quinhão de terras ofertado pelo INCRA.
Tratava-se de 586 hectares de terras localizadas no município de Reserva do
Iguaçu, distante aproximadamente 30 quilômetros do acampamento. Pelo fato de
as terras serem de pouca qualidade para o cultivo e terem dimensões imensamente
menores do que as da fazenda Paiol de Telha, os herdeiros preferiram continuar
acampados. O próprio Domingos, em entrevista concedida ao jornal A Tribuna de
Guarapuava, afirmava que a terra ofertada pelo INCRA era “bem menor que os 3,6
mil alqueires que temos de direito”, e que uma vez divididas entre as 400 famílias,
e mais aquelas que estavam por aparecer, só faria “aumentar ainda mais a fome que
atinge os acampados”.142
A discussão sobre um possível relocamento das famílias acampadas para outros
quinhões de terra que não os da Invernada se prolongou até o mês de julho de
1998, quando chegaram no acampamento Romeu, da App-Sindicato, Jorge Tadeu,
da ACNAP, e José Vandresen, da CPT, propondo a Ovídio, Santeiro e Domingos
conhecerem os 1.050 alqueires das terras que o INCRA estava negociando com o
Banco do Brasil, na Colônia Socorro.
A transação se deu principalmente devido aos diálogos entre o INCRA e o “pro-
fessor Romeu” da App-Sindicato, de Curitiba. O envolvimento de Romeu com
a causa se iniciou em 1997, quando compôs a comissão formada pelos grupos
já salientados. Foi Romeu quem mobilizou e sensibilizou vários dos grupos que
integraram a comissão, sendo também um dos responsáveis pelo “Jornal Paiol de
Telha”, uma publicação que, datada de julho de 1997 e assinada pelo “Movimento
de Apoio à Comunidade da Invernada do Paiol de Telha”, contou com uma tiragem
de 5 mil exemplares distribuídos por cidades da região de Guarapuava e Curitiba.
Nem Dionísio, nem a jornalista Cristina Estech (volta e meia atribuídos como
responsáveis pela transação com o INCRA) estiveram diretamente envolvidos na
mesa de negociações daquela autarquia. Foi Romeu quem o fez, e partiu para Guar-
apuava, juntamente com Jaime Tadeu, da ACNAP, para propor aos herdeiros as
terras que serviriam de base espacial para o Assentamento.
Foram com eles visitar as terras, aqueles dois anciões que moravam no Bar-
ranco, acompanhados de Domingos, que tem casa em Guarapuava. Voltaram com
o negócio já feito. O único destes que não gostou da proposta foi o referido ancião
que, pelos mesmos motivos acima mostrados quando a questão eram as terras lo-
calizadas em Reserva do Iguaçu, nem sequer almejou um lote na Colônia Socorro.
Na época desta transação, Osvaldo, genro de Santeiro, estava trabalhando em uma
cerraria vizinha ao acampamento e, quando voltou, se deparou com os barracos de-
sarmados. Embora não tivesse gostado da decisão, nada pode fazer: com os demais,
141 Estas duas ações só seriam iniciadas nove anos depois, em 2007, pelos técnicos responsáveis pelo processo de RTID
aberto no INCRA. A vistoria foi feito em dezembro de 2007, pela equipe de antropólogos responsável pelo relatório. O
cadastro foi entregue ao INCRA pela comunidade em maio de 2009.
142 Cf. A tribuna de Guarapuava, 28 de março de 1998.
171
desarmou seu barraco e foi se juntar aos outros, seus companheiros de vida, de luta.
Foi, portanto, em agosto de 1998, que o então presidente de República, Fernan-
do Henrique Cardoso, assinou, por “interesse social para fins de reforma agrária”,
o “decreto de 13 de agosto de 1998” que assentava, no “Imóvel Rural conhecido
como Fazenda Socorro, com área de um mil cinquenta e um hectares e noventa
ares, situado no município de Guarapuava143, aqueles que antes e ora acampavam
nas cercanias da Fazenda Paiol de Telha. Foram, portanto, a caminho da Colônia
Socorro, aqueles que se encontravam acampados, assumir uma outra condição no
mundo: a de assentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária,
contemplados no Programa de Readequação Fundiária do Município, instituído
pela prefeitura de Guarapuava, na gestão de Vitor Hugo Burko.144
Desde então algumas famílias se encontram assentadas, embora metade dos
primeiros “parceleiros” tenha abandonado o local, sendo que parte retornara ao
acampamento. Em boa medida, os atuais acampados são membros da família
Santeiro, a mesma que iniciara o movimento de retorno às terras no ano de 1996.
Diante da morosidade do processo administrativo de regularização fundiária aber-
to no INCRA/PR no ano de 2005, estão os acampados vivendo em gritante situação
de vulnerabilidade e às margens de um sistema social cujas raízes nos dizem muito
acerca da história social, agrária, do direito e da escravidão, não só paranaense, mas
brasileira.
A questão hoje
172
Não bastasse a morosidade do poder público no trato com o caso Paiol de Telha,
uma ação ordinária na Justiça Federal, sob o n. 2008.70.00.000158-3, foi movida,
no ano de 2008, pela Cooperativa Agrária e outras pessoas físicas contra o processo
administrativo aberto pela comunidade junto ao INCRA para fins de regularização
fundiária. Dando início a uma batalha judicial entre os procuradores do INCRA e os
advogados da Agrária, tal ação foi julgada em última instância no Tribunal Regional
Federal da Quarta Região (TRF 4) do Rio Grande do Sul em novembro e dezembro
de 2013. Baseados em uma Ação de Inconstitucionalidade (ADI-3239) movida pelo
extinto Partido da Frente Liberal (PFL) no ano de 2004, os advogados da Agrária
justificavam a ilegalidade do referido processo administrativo do INCRA alegando
a inconstitucionalidade do decreto 4887/03 que, por regulamentar o artigo 68 dos
ADCT da Constituição Federal, fundamenta a política pública fundiária do Estado
Nacional para com os grupos quilombolas.147
Um resultado favorável à Agrária certamente criaria um precedente negativo
para a continuidade de uma política pública do Estado para com os quilombos de
hoje, impedindo que, não somente a comunidade Paiol de Telha, mas milhares
destes, reivindicassem, na esfera administrativa estatal, seus direitos de acesso à
terra, reparação histórica e bens de serviço fundamentais historicamente inviabi-
lizados nas esferas judiciais. O caso Paiol de Telha é também emblemático nesse
sentido.
Por doze votos contra três, os desembargadores do TRF 4 decidiram pela
constitucionalidade do decreto 4887/03, invalidando a ação da Agrária e dando
ganho de causa ao INCRA e à comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha, na
ocasião assessorada pela Terra de Direitos. Talvez seja este um novo marco, do pon-
to de vista jurídico, no sentido de reverter os vícios e as injustiças que caracterizam,
no plano do cotidiano e do direito formal, a história, não somente da comunidade
Paiol de Telha, mas de inúmeros grupos negros e quilombolas que sempre viveram
às margens dos projetos de cidadania e justiça social do Estado Nacional.
Trata-se, portanto, de pensar a questão Paiol de Telha como um caso que diz
muito sobre a história e a atualidade brasileiras: um grupo de descendentes de
mobilização política, existência coletiva e amparo jurídico passaram a emergir e assim serem re-conhecidos por suas
identidades específicas. Estes são os casos de algumas das comunidades que fazem parte da Rede Puxirão de Povos e
Comunidades Tradicionais. Foi a Rede Puxirão quem protagonizou, na Assembléia Legislativa Paranaense no ano de
2009, a proposição de uma “Frente Parlamentar de Apoio aos Povos e Comunidades”, articulando a política estadual para
as comunidades tradicionais através da criação da “Comissão Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Alguns
membros da comunidade Paiol de Telha tiveram participação direta nestes processos. De um bastante contundente,
pode-se dizer que a existência da Rede Puxirão se deve ao histórico de mobilização da comunidade Paiol de Telha.
A ADI-3239, movida pelo PFL, questiona o Decreto Federal 4887/03 junto ao Supremo Tribunal Federal. Seu julgamento
teve início no ano de 2012 quando o então Ministro Relator, Cesar Peluso, votou pela inconstitucionalidade do decreto.
Outros ministros do Supremo Tribunal Federal ainda deverão votar, não sendo possível afirmar a posição do STF acer-
ca do tema. Para maiores informações sobre a questão jurídica da ADI-3239 ver: BOLETIM INFORMATIVO NUER/
UFSC, 2005. Sobre a questão judicial envolvendo a Agrária e o INCRA, consultar os sites: http://www.conflitoambiental.
icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=170 e http://terradedireitos.org.br/2013/12/19/por-12-votos-a-3-trf4-decide-
pela-constitucionalidade-do-decreto-de-titulacao-de-terras-quilombolas/.
147 A ADI-3239, movida pelo PFL, questiona o Decreto Federal 4887/03 junto ao Supremo Tribunal Federal. Seu jul-
gamento teve início no ano de 2012 quando o então Ministro Relator, Cesar Peluso, votou pela inconstitucionalidade do
decreto. Outros ministros do Supremo Tribunal Federal ainda deverão votar, não sendo possível afirmar a posição do
STF acerca do tema. Para maiores informações sobre a questão jurídica da ADI-3239 ver: BOLETIM INFORMATIVO
NUER/UFSC, 2005. Sobre a questão judicial envolvendo a Agrária e o INCRA, consultar os sites: http://www.conflitoam-
biental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=170 e http://terradedireitos.org.br/2013/12/19/por-12-votos-a-3-trf4-
decide-pela-constitucionalidade-do-decreto-de-titulacao-de-terras-quilombolas/
173
escravos que foram obrigados a sair de suas terras para abrigar um projeto imi-
grantista determinado pelo conluio de interesses entre setores dos poderes, público
e privado, municipal e estadual. Cujos membros, mesmo espalhados pelo entor-
no, protagonizaram estratégias de autopreservação, mediados pelos movimentos
sociais e amparados por uma política pública brasileira que ensaia, mesmo com
inúmeros antagonistas, colocar em novos termos a história, o lugar e o direito das
sociedades quilombolas e negras.
Um grupo que, mesmo tendo a seu favor provas incontestáveis das injustiças
pretéritas sofridas, continua desamparado de seus direitos constitucionais viola-
dos. A luta continua: certamente não serão os descendentes dos escravos libertos
legatários de Balbina, os “negros do Fundão” (dentre acampados, assentados, mo-
radores de Guarapuava e região), quem desistirão: quem dirão não! Em boa me-
dida, parte deles a reescrita da história, do direito e da política de uma nação.
Referências Bibliográficas
174
HARTUNG, Miriam. SANTOS, Tiago Moreira. BUTI, Rafael Palermo. Relatório
Antropológico de caracterização histórica, econômica e sócio-cultural.
Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha. Florianópolis: UFPR/UFSC/
INCRA, 2008.
Fontes Documentais
175
Jornal A tribuna de Guarapuava, 28 de março de 1998
Jornal A Nova Tribuna, março de 2000
Jornal A Tribuna Regional do Centro-Oeste, 30 de setembro a 6 de outubro de
2005
Jornal Paiol de Telha - Movimento de Apoio à Comunidade da Invernada do
Paiol de Telha, julho de 1997.
Jornal Diário de Guarapuava, 30 de setembro a 6 de outubro de 2005
Termo de Declaração apresentada no Centro de Apoio Operacional das Promo-
torias de Defesa dos Direitos e Garantias Constitucionais. Ministério Público do
Estado do Paraná. Maio de 1995.
Testamento de Manoel Ferreira dos Santos. Arquivo de notas do Cartório Gou-
veia. Livro 8, fls. 3v-6 Bairro do Pinhão, Freguesia de Guarapuava, 2 de abril de
1851.
176
Notas Biográficas
Dimas Gusso
177
Jorge Montenegro
Trabalha desde 2000 com pesquisas e projetos com movimentos sociais do cam-
po, desde 2005 com pesquisas vinculadas aos Povos e Comunidades Tradicionais
do Paraná. Mestre em Geografia pelo PPGG/UNICENTRO (2014) realizando pes-
quisa sobre a “Sobreposição de Unidades de Conservação em Territórios de Povos
e Comunidades Tradicionais”. Graduado graduação em Filosofia pela Universi-
dade Estadual do Centro-Oeste (2006). Pesquisador do Instituto Nova Cartografia
Social/Centro de Estudos do Trópico Úmido-CESTU, Universidade do Estado do
Amazonas-UEA. Integra o Núcleo de pesquisa Laboratório Nova Cartografia Social:
Processos de Territorialização, Identidades Coletivas e Movimentos Sociais - UEA/
CNPq e também o Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra-
ENCONTTRA - UFPR/CNPq. As pesquisas realizadas têm como foco a promoção
das identidades coletivas dos povos e comunidades tradicionais do Paraná, or-
ganizados na Rede Puxirão, sendo: faxinalenses, pescadores artesanais, indígenas,
ilhéus do rio Paraná, quilombolas, religiões de matriz africana, ciganos, portado-
res de ofícios tradicionais de benzimento e cipozeiras. A localização das pesquisas
estão dispostas principalmente na região centro sul do Paraná, noroeste e litoral
do Estado. Os principais temas pesquisados dizem respeita a identidades coleti-
vas, territórios, práticas e saberes tradicionais, soberania e segurança alimentar,
mapeamento e cartografias sociais, políticas públicas, direitos étnicos/coletivos e
unidades de conservação em territórios tradicionais. Atualmente, atuando como
coordenador estratégico e de formação no Sistema de CRESOL, vinculados ao
Instituto de Formação do Cooperativismo Solidário, sediado em Francisco Beltrão
no Paraná.
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Tradicionais, Unidades de Conservação, Cartografias Sociais e Geoprocessamento
Livre.
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com povos e comunidades tradicionais, campesinato, resistências sociais, conflitos
territoriais e questões sobre desenvolvimento.
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