Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Conselho editorial: Marcelo Bizar, Marco Trindade, Sônia Elã, Kátia Botelho
Secretária-geral: Sônia Elã
Revisão: a revisão dos textos é feita pelo próprio autor, não sofrendo alteração pela
revista (a não ser tão-somente quanto à correção de erros materiais).
Capa: Concepção: Marcelo Bizar e Marco Trindade; Arte e Grafismo: Marcelo Bizar
Orl a n d o Ol i v e i ra
Entre o pastor e o pai-de-santo
Tava numa maré de azar danada. Tudo dava errado! Tudo dava errado! Pra
você ter ideia, num dia chuvoso avistei uma moedinha de cinquenta centavos meio
de longe, sorri, me agachei para pegá-la e um ônibus meteu a roda numa poça
d'água e me deu um banho. A camisa, branquinha, branquinha, ficou imprestável.
Tive um prejuízo de mais de vinte paus.
Foi aí que resolvi deixar de ser racional e entrei numa igreja dessas em que o
pastor fala alto à beça ao microfone e toda hora pede doações. Como estava na
primeira fila e ele olhava pra mim, depositei ali na sacolinha um real. O homem me
olhou de ladinho e começou a vociferar:
- Aquele que doa pouco não mostra fé verdadeira em Deus! Mais que isso,
tenta enganar a Deus,e é punido com o fogo do Inferno!
Sentindo que falava pra mim, levantei-me e entrei no meio de outros
doadores e dei mais dois reais. Mas o danado percebeu e bradou:
- As pessoas não entendem que com Deus não se brinca! Certas coisas são
humilhação ao Senhor!
Misturei-me a uns outros crentes que estavam também de pé e saí de fininho.
Ganhei a rua e fiquei pensando comigo:
- Fogo do Inferno... Poxa...! E eu não aguento nem calor de trinta e três
graus. O que faço de minha vida...? O que faço de minha alma...?
E andando com esses pensamentos deparei com uma casa modesta que tinha
uma placa na porta: "Desfaço trabalho, trago seu amor de volta, dou prosperidade."
Era tudo o que eu queria: prosperidade, nenhum amor de volta, mas quem sabe um
novo amor? Quem sabe ainda a salvação da própria alma?
Foi pensando assim que entrei, esperei uns quinze minutos e um pai-de-santo
me atendeu:
- Muzifio tá cum zica braba, precebi quando zoiei. Vô tirá tudo de uma vez!
- Opa! - pensei comigo - Vou sair daqui com todos os meus problemas
resolvidos.
Tomei um passe dos bons, desfiei um rosário de lamúrias pro homem, fiz um pouco
de manha (quem não chora, não mama, não é?) e ouvi o diagnóstico:
- Mandinga feia feita pro fio. Coisa botada em cemitério, prás alma pior das
alma.
Perguntei de imediato, sem conter a ansiedade:
- E pai tira de mim, tira?
- Pai tira. - ele respondeu de pronto - É só comprá sete vela vremeia e preta,
dez ramo de vence-demanda, três foia de tinhorão-brabo, trazer três galinha preta
pra abatê e deixá duzento real pro santo.
Matar animais!!!??? Duzentos reais!!!??? O que queria aquele sujeito?Que eu
fosse contra meus sentimentos e princípios e virasse assassino de galinhas?! E
ainda morresse numa grana daquelas!?
Levantei, dei nele aquele abraço de preto-velho e saí rapidamente
prometendo voltar no dia seguinte. Quando tava no portão, o cara cuidou logo de
me avisar:
- Se não voltá encosto não sai do costado, num abandona muzifio nunca mais.
O que fui arranjar pra mim?! Dar uma grana alta à igreja ou viver
eternamente no Inferno, matar animais e dar uma nota de respeito ao pai-de-santo
ou ficar com o encosto a vida inteira nas minhas costas. Nas minhas costas???!! E
quando eu fosse sentar? Ia ficar no colo do encosto?! Não sou disso! Coisa mais
feia!! E quando fosse transar? Ah, é?! O engraçadinho do encosto ia ficar agarrado
às minhas costas...Mas que coisa mais trágica! O que é que ele ia ficar fazendo
comigo? Xi! Não quero nem pensar! Imagine também: já ouvi que o encosto faz
tudo o que a gente faz através da gente: então ele também ia transar com a
mulher que transasse comigo. Tem graça a gente dividir a mulher com os outros?
Puxa! E eu só dividi mulher sem saber: nunca aconteceu voluntariamente. E
quando eu fosse beber, o egun ia beber a maior parte, tomar um porre daqueles às
minhas custas e ainda zumbizar no meu ouvido pra eu arranjar confusão com os
outros na rua, e eu que ia tomar as porradas enquanto ele ia ficar rindo
gostosamente de mim. Ah, não, não era possível! Não podia aceitar tudo aquilo!
Foi por isso que voltei à igreja, aproveitei que não havia plateia e o pastor
tava sozinho, me aproximei dele e perguntei:
- Quanto os Senhores acham que eu devo doar?
- Os senhores? - ele mostrou estranheza.
- É que eu falo em nome do Senhor Deus e do senhor pastor.
- Hmm! - ele fez com a cabeça que entendera, pensou um pouco e
sentenciou: - Uns duzentos reais.
Fiquei numa sinuca-de-bico. Pensei, pensei, pensei até me dar conta de que
ao menos não iria pro Inferno. Mas quis me certificar de outros detalhes:
- Mas se tiver algum espírito mau me atrapalhando, os Senhores também
tiram, não?
- Claro, meu filho!
Calei por um tempo, um tanto acabrunhado, até que falei:
- E os Senhores aceitam parcelamento?
- Hmmmmm...! - ficou a matutar o santo homem... e pensou e pensou... até
que fez uma contraproposta: - O filho vai depositar vinte reais por mês, por toda a
vida, na conta da igreja, e eu vou lhe passar o número...
Aceitei, mas não perdi a oportunidade de fazer mais uma pergunta:
- E isso vai me trazer prosperidade?
- Claro, meu filho - ele me assegurou com sua calma constante, bem diferente
de toda aquela ebulição que mostrava diante da platéia.
Peguei a número da conta e passei a depositar. Regularmente. Sem atrasar
um dia.
Devo dizer que já faz doze anos e doze meses que deposito na conta da
igreja, e não obtive graça nenhuma, não prosperei e as aporrinhações continuaram.
Mas pelo menos me salvei de ir pro Inferno.
Ba r ã o d a M a t a
Viva o Dia da Consciência Negra
Onesio Meirelles
Os tambores
Kaju Filho
E a í , c ri o u l o ! ?
E aí crioulo, quanto tempo, aí cara, ainda dizem que eu não gosto de negro,
me amarro em tu crioulo, fala ai, como tá, bem, mal, mal, mal por que, não, que
pejorativo o que, crioulo é apelido carinhoso, para com isso, sabe que a gente é
amigo há mó tempão, a gente sempre teve liberdade pra falar um com outro, tu
sabe que crioulo não é humilhação, é amizade, intimidade.
Vem com essa historia agora de afirmação? Te chamo assim desde moleque
quando sua mãe ia lá pra casa fazer faxina e a gente ficava jogando Nintendo,
aprendi com meu pai a falar contigo assim, não é pra denegrir não.
Denegrir é um problema agora também? Tornar mais negro? Você virou
historiador das palavras agora? A gente fala, cara, é só uma palavra, que nem
judiar, quando digo que uma pessoa foi judiada, não quero que ela vire um judeu,
Deus a livre, mesma coisa denegrir, não quero que vire negra.
Não, problema nenhum com ser negra. Problema nenhum.
Tudo bem. Não quer mais, não falo mais. Te chamar pelo nome, é isso?
Tá bom. Vou te chamar pelo nome agora.
É roberto, né?
Maicon. Claro, Maicon, como vai sua mãe, Maicon?
Confundi com outro amigo negro. Tenho muitos amigos negros. Viu?
É, Maicon, espero que a nossa amizade antiga sobreviva ao politicamente
correto. Acabou a liberdade, os amigos não brincam mais, parece que o mundo tá
dividido, a gente não pode mais falar, eu sei que tu não gosta, eu sei que tu não é
escravo, sei que crioulo tem a ver com os negros que vinham da África, é o que, vai
me dar aula de História agora, tá me chamando de burro, na moral, é humilhante o
que tu tá fazendo comigo, cadê seu diploma de doutorado, porra, ah, tá aí, deixa eu
ver, Maicon da Silva Lessa, doutor em História, UFRJ, ah, doutorzinho, agora vai
querer o que, dar aula em universidade, já tá dando, professor substituto, é cota,
né, só podia ser cota, quer saber, Maicon, não vim aqui pra ser humilhado, vá te
tomar no cu, seu crioulo de merda.
J o n a ta n M a g e l l a
Dez anos sem Luiz Carlos da Vila (2ª parte)
Junior da Prata
Meus heróis não morreram de overdose
Os meus heróis
Não morreram de overdose
Faltou cuidado
Carinho e oportunidades
Morreram no navio negreiro,no Cais do Valongo
E conforme a cidade do Rio de Janeiro,foi sendo povoada morreram pelas ruas e nas
favelas , nos becos e vielas,que tiveram que habitar
pois,não tinham para onde ir.
Não tinham direito a escola, a casa e se sambistas, eram tratados como fora da lei
Cumpriam vadiagem.
Ninguém busca a miserabilidade, todos querem triunfar.
Na sua maioria eram negros e o racismo corroia suas entranhas, mas mesmo assim,
lutar pela vida era uma meta
No século XXI perduram estas desigualdades
E isto nos torna cada dia mais perplexos,
Como as desumanidades permanecem na humanidade
Meus heróis não morreram de overdose.
Eles estão por aí pelas ruas tentando concretizar seus objetivos
Minha esperança é a juventude negra que transforma nossas iniquidades em
valores potentes para construir um caminho...
Correm pelo meu rosto lágrimas por tantos
Jovens que à cada dia são assassinados. No lugar aonde nasci e vivo, eu uma
mulher negra que me dediquei a cuidar do corpo do outro, hoje tenho que chorar
por estes corpos aonde me vejo
Clamo por justiça...Marielle sempre presente. E representando todas as mulheres
que choram pelas vidas ceifadas e por aquelas que buscam viver dias melhores.
Márcia Lopes
Tempos sombrios
Ouça, chegue mais perto! Não houve? Talvez, porque venha de longa data!
Vem das cabeças calcinadas de bois estraçalhados, das vísceras expostas de
milhares de pessoas que, atônitas pelo barulho ensurdecedor das bombas, não
tiveram tempo de se abrigar. Abrigo, mas que abrigo? Pobres daqueles que o
procuraram em vão. Guernica já não mais os guardava! Restou-lhes o pincel, o
painel e a tristeza infinita!
Vedes ali? Ainda não? Toque as paredes, os sulcos produzidos por unhas
desesperadas, refletindo o último suspiro na câmara de gás! Auschwitz, Treblinka e
tantos outros não nos deixam esquecer!
Fascias, suásticas, sigmas, são tantos o símbolos e signos, braços estendidos
e falta de sentido! Vociferam bestas iracíveis que mutilam, queimam, quebram,
vibram e espumam com o sangue derramado daqueles que, “diferente do modelo”,
não merecem viver!
Acorda! Desperta da letargia alienante que te submergiram! Abra teus olhos e
corrija a miopia enquanto há tempo! Não levante falsas bandeiras. Olhe a periferia,
os grotões, as veredas, os becos e vielas, palafitas, e favelas! Olhe o mendigo, o
menor abandonado, o negro, o gay, a prostituta, o índio, o feio, o desdentado, o
velho, o nordestino e o caboclo! São feitos do mesmo barro que você!
Por que de repente, se sente tão diferente? Tu és elo da mesma corrente. Se
te disseram que és melhor e acreditastes! Se para ser melhor, tivestes que sangrar
os que estão ao teu redor! Sinto em te dizer, traz em ti o pior! Mas, atenta-te! A
palavra fácil aluga a mente rasa! A mente rasa arrasta-se a esmo, seguindo,
incontinente, os oportunistas de plantão, que adoram tanger gado.
O sangue a ser derramado hoje será o meu, amanhã o dos outros e depois o
teu! A máquina lubrificada com ódio não poupa ninguém, não tem apreço pela
consciência e nem pela poesia. Não enxerga vida na sua saga de identificar no que
é “diferente”, o mal!
Apressa-te! Para salvar-te no outro que queres exterminar e, se no final
perguntar – me pasmo: afinal “por quem os sinos dobram”? Dir-lhe-ei: eles dobram
por ti!
Silvio Silva
• U m l u g a r n o s u b ú rb i o
Qu i l o mb o d o C a mo ri m
A Revista Sarau Subúrbio, neste mês do dia da consciência negra (de todos os
dias), presta uma justa homenagem ao Quilombo do Camorim.
Tendo à frente como responsável direto o Sr. Adilson Almeida e com ele,
representantes de várias famílias descendentes de escravos e uma equipe de
colaboradores, que atuam incansavelmente, o Quilombo do Camorim é sem dúvida
um lugar de memória, ou melhor, de múltiplas memórias.
Localizado no sopé da Reserva do Maciço da Pedra Branca, em Jacarepaguá,
o citado quilombo é um espaço consagrado de memória e história da ancestralidade
negra na cidade do Rio de Janeiro.
Compondo com outras áreas quilombolas (Vargem Grande e Pau da Fome) um
conjunto de espaços territoriais que guardam importância ímpar na construção e
ampliação do conhecimento das heranças africana e afro-brasileira no contexto da
História de Jacarepaguá, em particular e da cidade do Rio de Janeiro, em geral.
A luta do Sr. Adilson e dos seus colaboradores para a certificação definitiva do
Quilombo do Camorim (recurso tramitando na Justiça contra a decisão negativa do
INCRA apesar de robusta documentação probatória) demonstra que não são poucos
e nem pequenos os desafios.
Na cidade do Rio de Janeiro, a especulação imobiliária e a ganância
financeira, agem de maneira predatória tentando ostensivamente apagar a
memória social e os traços mais profundos e longevos das culturas dos povos
indígenas e africanos que construíram sob ferro, fogo, suor e sangue a riqueza
dessa cidade e do país.
O Quilombo do Camorim é exemplo de resistência na preservação dos valores
identitários da população afrodescendente da Região de Jacarepaguá e adjacências.
Os importantes trabalhos de arqueologia desenvolvidos pela Arqueóloga Sílvia
Peixoto ( Museu Nacional / UFRJ) demonstram isso. Para além das atividades
arqueológicas, a educação ambiental, aulas de campo de História para alunos das
redes públicas e visitas guiadas compõem o rol de atividades desenvolvidas no
local.
Portanto, vale ressaltar, sobretudo, a luta em prol da preservação da memória
e da História que visam manter viva e valorizada para as futuras gerações a nossa
herança sociocultural africana e afro-brasileira. Com isso, a Revista Sarau Subúrbio
parabeniza o Quilombo do Camorim, o Sr. Adilson Almeida e toda a sua equipe e
grita a plenos pulmões: “ZUMBI VIVE”!
• Bi b l i o t e c a S u b u r b a n a
• Di s c o t e c a S u b u r b a n a
Evangelina, simplicidade e força
Nesse mês da Consciência Negra eu gostaria de falar sobre uma mulher que
eu particularmente admiro, embora não muito conhecida: Evangelina de Lima
Barreto, a irmã do grande escritor carioca Lima Barreto.
Neta de escravos, Evangelina nasceu no Rio de Janeiro em 1882, um ano após
o seu irmão famoso. Era a segunda de quatro irmãos, e a única mulher. Muitos
estudiosos de Lima Barreto dizem que ela era a única dentre os irmãos do escritor
que partilhava com ele o gosto por assuntos culturais. O pai João Henriques
estudava com os filhos, sempre estimulando o seu desenvolvimento. Foi ele que
convenceu Ginoca, como era carinhosamente chamada, a enviar um conto para um
concurso da revista “A Universal” em 1902. Esse conto intitulado “O noivado da
montanha” ganhou o segundo lugar, ficando atrás apenas de uma história de uma
escritora famosa na época. Será que Evangelina teria o mesmo talento literário do
irmão?
Seria complicado tentar responder esta pergunta. A vida de Evangelina não
foi fácil. Perdeu sua mãe ainda criança, nunca se casou e aos vinte e um anos
começou sua jornada de cuidadora do pai, João Henriques, que tendo enlouquecido
não podia mais trabalhar. O irmão Afonso, afundado no alcoolismo, também foi
objeto de seus cuidados. O escritor se preocupava com a irmã pelo fato dela ser
mulata numa sociedade machista e racista. Não queria que Ginoca tivesse o mesmo
destino de sua Clara dos Anjos. Durante anos, Evangelina seria mãe do pai e do
irmão. Isso duraria até 1922, quando num espaço de dois dias perdeu seus dois
“filhos”.
Mas a história de Evangelina não terminaria aí. Ela teve papel fundamental ao
preservar os manuscritos do irmão que seriam na década de 1950 objeto de estudo
de Francisco de Assis Barbosa, o primeiro biógrafo do escritor. Evangelina foi
também uma fonte oral da vida de Lima Barreto, tão bem retratado por Barbosa em
seu livro biográfico “A vida de Lima Barreto” que ajudou a consolidar o
reconhecimento de Lima como grande escritor brasileiro.
Evangelina esteve presente em diversas homenagens póstumas feitas ao
irmão (estas homenagens foram tema de um artigo meu no número 3 da RSS). Em
1951, foi recebida no Palácio do Catete pelo então presidente Getúlio Vargas. Esse
encontro deveu-se ao fato da família Lima Barreto ter finalmente conseguido os
direitos autorais de “Os Bruzundangas”, que até então pertenciam a uma empresa
do ramo da imprensa.
Após as mortes do pai e do irmão, Evangelina começa e dedicar-se ao piano,
tornando-se professora de Teoria e Piano do Colégio Santa Rita dos Pilares, além de
dar aulas particulares. Religiosa que era, tocava órgão em diversas igrejas do
subúrbio e participava de atividades religiosas. Era membro assistente da Casa
Santa Martha, organização fundada pelo padre da paróquia de Inhaúma e que
auxiliava “moças que lutam pela vida, contando apenas com o próprio trabalho”.
No dia 8 de março de 1956, falecia aos setenta e três anos Evangelina de
Lima Barreto em sua residência na Rua Amaro Cavalcante 923 no Méier. Foi
enterrada no Cemitério de Inhaúma. Evangelina, para mim, simboliza aquelas
mulheres que deixam de viver a própria vida para cuidar de entes queridos com
carinho e dedicação. Uma mulher modesta, porém guerreira, que sabia do valor da
obra do irmão e que lutou à sua maneira para o reconhecimento desta obra. Negra,
suburbana, professora, dona de casa, de vida simples, e que nos deixa um
tremendo exemplo de vida.
Fontes:
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio,
2002
LIMA, Elizabeth Gonzaga. Do conto ao romance: o processo criativo de Lima Barreto
entre a forma literária e o suporte. In: O eixo e a roda, Belo Horizonte, v.25, n.2, p.
105-126, 2016.
- Jornal A Cruz, ed.40 de 1932, p.3.
- Jornal Diário de Notícias, ed. 8769 de 29/05/1951.
- Jornal Última Hora, ed. 365 de 20/08/1952.
- Jornal do Brasil de 09/03/1956 ed. 56 p. 12.
Co n s c i ên c i a d el a s
Leonardo Bruno
C o n s c i ê n c i a n e g ra : j a ma i s e s q u e c e r
Jamais esquecer!
Jamais esquecer!
Jamais esquecer!
Jamais esquecer!
Não posso enlouquecer
Lutei pela liberdade
contra o trabalho forçado
e escondes a verdade?
Jamais esquecer!
Jamais esquecer!
Malkia Usiku
A Festa da Consciência Negra
Antero Catan
* A crônica "A festa da consciência negra" é uma crônica fictícia, sem qualquer
correlação com fatos ocorridos.
U m p i c o l é c o m Zu m b i
Rodolfo Caruso
Temposição das Almas Íncubas - 2º pentakapitel
II. Tatos
.- ... / .- .-.. -- .- ... / .. -. -.-. ..- -... .- ... / --.- ..- . .-. . -- / -.-. .- -. - .- .-. /
. .-.. .- ... / - . -. - .- -- / ... .- .. .-. / -.. . / --- -. -.. . / . ... - .- --- /
-. .- --- / -.-. --- -. ... . --. ..- . -- /
-. .- --- / ... .- -... . -- / --- / -- --- - .. ...- --- /
. .-.. .- ... / -. .- --- / -.. . ...- . -- / ... . .-. / .- - --- -- .. --.. .- -.. .- ... /
... .- -... . -- / -.. .. ... ... --- /
- . -. - .- .-. .- -- / ..-. ..- --. .. .-. /
-. .- --- / -.-. --- -. ... . --. ..- .. .-. .- -- /
..-. --- .-. -.-. .- ... / .- .. -. -.. .- ... / -.. . ... -.-. --- -. .... . -.-. .. -.. .- ... /
.- ... / .- .--. .-. .. ... .. --- -. .- .-. .- -- /
. .-.. .- ... / .--. .-. . -.-. .. ... .- -- /
-.. . / - --- -.. .- / .- .--- ..- -.. .-
Entendi o que ele queria dizer e comecei a gritar. Gritava sem parar até que o
vigiolhando veio até mim e começou a desferir em minhas costas as chicotadas e
eu gritava e gritava, gritava muito para que ele me desferisse os golpes. Ele não
sabia minha intenção.
Aquela injustiça e os gritos fizeram com que os outros presos encontrassem
forças de onde nem imaginavam. Rapidamente eles começaram a se soltar e os que
conseguiam ajudavam os outros. Derrepente o chicoteador caiu com um golpe em
minha cabeça. Nós seguimos, gritando e lutando com todos aqueles que nos
prendiam naquele navio. Demoramos algumas horas, perdemos muitos homens,
tomamos o tumbeiro exatamente quando passávamos próximos a uma ilha. Para lá
guiamos nosso barco.
Chegamos á ilha e pelos três montes pontiagudos como pães-de-açúcar e
tamanhos tipo numa escada de alturas soube onde estávamos. Ilha dos Mistérios de
Mundãozãoespírito.
Pazuzu Silva
A C o n s c i ê n c i a Ne g r a n a M a t e m á t i c a
Reluzem girassóis
jongos aos arrebóis
A diáspora negra conduziu
A Riqueza das Nações e O Capital
E das Gerais: El Dorado ou Playmobil
Gritou o poeta: geléia geral... o cultural!
Da Etiópia o sal
Vinho tão natural
Com ouro negro e cabras de Kaldi
Serviço da Guiné em recital
Cornetas gulturais, nosso halali
viver, vencer é o nosso cabedal
Marcelo Bizar
Remédios amargos e nada de cura
Dito isso, o senhor olhou pro lado onde estava o homem que parecia ser o
dono do bar e riram muito. Continuei depos que sorvi o último trago do conhaque
que agora bebia:
- Simples, amigos: os escravos negros trabalharam muito e construíram a
riqueza brasileira. Quando a escravidão foi abolida eles foram lançados à própria
sorte. Analfabetos, miseráveis, sem profissão a não ser servir de escravo. Vocês
acreditam que os donos de escravo da época queriam uma indenização. Quem
trabalhou de forma forçada e desumana foram os escravos e a elite escravocrata da
época queria ser indenizada. Quem deveria ter sido indenizado e não foi? Imaginam
quem seja?
Como diz a frase: "Pra curar precisamos às vezes de um remédio amargo!",
pensei comigo mesmo qual seria o sentido de tal frase no contexto pré-
abolicionista.
Lembrei também que não vivo sem cinema, uma constatação. Essa frase nos
leva longe.
Na verdade eu não vivo é sem filmes. Atualmente até mesmo no celular eu os
assisto. Mas, deixando bem claro, cinema é anos-luz de distância melhor do que
qualquer outro meio por onde podemos ver filmes.
Uma constatação é que existem poucos filmes que tratam da temática da
escravidão moderna. Menos ainda filmes que tratam da escravidão de africanos
trazidos à colônia portuguesa Brasil.
Alguns filmes homenageiam, glorificam a figura histórica da Princesa Isabel
ou glorificam os abolicionistas. Uns poucos falaram sobre personagens negros
escravizados importante. A maioria dos filmes tratam de Zumbi dos Palmares ou do
Quilombo dos Palmares. E sobre a escravidão em si, a questão ideológica da
escravidão moderna, a questão mercadológica e de formação do chamado Mundo
Moderno? São quantos? Muito poucos.
Uma das coisas que mais me incomodam em relação à escravidão no Brasil é
o fato de o país ter sido o último a aboli-la por completo.
Precisamos urgentemente de mais filmes, mais livros, mais análises sobre
questão, sobre o assunto. E acredito que também de mis pesquisas históricas.
Não sou historiador, longe disso, entretanto acredito que para uma correta
análise histórica da documentação de um período historiografado algumas
perguntas importantes precisam ser respondidas, dentre elas: "qual a motivação do
que ocorreu pra ocorrer tal fato?" e também "qual a finalidade de do que ocorreu?".
Acho essas perguntas importantes porque tive bons professores de História
na escola e um deles sempre procurava a justificativa do fato histórico (que quase
sempre revelava o motivo e a finalidade do fato ocorrido).
Meu professor de História sempre dizia: "Se vocês querem conhecer História e
de quebra entrar pra uma boa faculdade devem procurar a análise crítica dos fatos
históricos. Esse negócio de ficar decorando data e nome de figurões foi lá no
primário e até em alguns ginásios, infelizmente, mas segundo grau não tem mais
isso não. Vocês precisam pensar! Pensar!".
E o Dia da Consciência Negra existe pra isso: pra pensarmos sobre a questão
racial brasileira, sua gênese, sua história, seu tempo, sua herança.
J o n a s H é b ri o
Negro samba, vende peixe e se revolta
“Negro sim-senhor,
encontre o seu valor,
só compra meu peixe
com toda razão, aquele negro tinhoso,
o tal da insubmissão”
Marco Trindade
Coveiro do Irajá
Seu Zé era coveiro no cemitério de Irajá. Dia de finados, nos deixava arrumar
um troco, limpando os túmulos. Hoje, depois de tantos anos, o reencontro no bar ao
lado do cemitério.
O semblante cansado, introspectivo. Sempre foi assim: quase não sorria.
Parecia que era por respeito aos que enterrava todos os dias.
Conversa vai, conversa vem, Seu Zé, já com quase 80 anos diz que está
aposentado. E não tem saudade de quando trabalhava. Também, quem teria
saudade de uma profissão igual àquela?
Seu Zé veio do Piauí, chegou ao Rio no começo dos anos cinquenta, para casa
de uns parentes em Caixas. De onde vinha, já não se tinha nada. A seca daquele
ano levou o pouquinho que lhe restava. O mais velho dos nove filhos de Dona Cida,
Zé tentaria a sorte aqui no sudeste, para depois trazer a Mãe e os irmãos. O pai
falecera de tuberculose, há a quase um ano.
Chegando em Caxias, não encontrou os tais parentes. A informação é que
foram morar num conjunto residencial recém-inaugurado, conjunto dos marítimos,
próximo a Freguesia de Irajá. Zé partiu para lá a pé, diziam não ser muito longe.
Deram-lhe a indicação da igreja de Nossa Sra da Apresentação. Depois de algumas
horas, chegou ao largo onde tinha a igreja e ponto do bonde. Decidiu antes de
procurar Jeremias e Dolores, rezar um pouco. Pediu a Nossa Senhora que arrumasse
um emprego digno naquela terra, para que pudesse trazer a família. Depois foi ao
ponto, onde tinha uma vendinha, e perguntou sobre os parentes. Ninguém
conhecia.
Seguiu como indicado para as casas do conjunto residencial. Tinha uma
praça. Em torno dela as casas, que desciam arrumadas em quadras até uma última
curva de rua que dava num mato.
Já anoitecendo, Zé voltou à igreja, qualquer coisa dormiria por lá, pensou. O
padre perguntou se precisava de algo. Zé contou sua história, e o padre
sensibilizado ofereceu pousada numa das casas ao lado da igreja, próximo a
sacristia. “Ao lado do cemitério?”! Preocupado Zé pensou em desistir, com medo
dos mortos. Logo depois viu que não era com os mortos que teria que se preocupar.
Na segunda noite, depois de ter andado pra tudo que é lado tentando descobrir o
logradouro dos parentes de sua mãe e morrendo de fome e sono, Zé deitou-se na
cama do seu quartinho e desmaiou. Já alta madrugada, sente alguém mexer em
sua calça e em seu peito. Levanta assustado. Era o Padre. Incrédulo e abestado o
empurra, e grita: “Virgi Maria que não quero isso não.” Deus lhe perdoaria, diz o
Padre, mas Zé sai aos tropeços vestindo a calça e a blusa por dentro da noite.
E logo no cemitério foi que encontrou a tranquilidade para dormir, piada do
destino.
Pela manhã quando foi marcar mais duas sepulturas, o coveiro deu de cara
com Zé dormindo numa delas. “Mas que povo é esse que usa até sepultura pra
dormir?!” Zé levantou assustado, acreditando ser o coveiro uma assombração que
sabia de tudo e tinha vindo para levá-lo para o inferno. O coveiro, um homem velho,
desconfiou se não teria de novo o padre se feito de lobo. Suspirou como os sábios
quando não têm o que dizer. Apiedou-se do jovem e ensinou-lhe o ofício de coveiro.
“Não era lá o que eu tinha vindo procurar, mas se é o que se apresenta,
aceito, pensa Zé com seus botões, dois apenas.
Terei casa e comida, e ainda vou ganhar uns trocados no final do mês. Só
tenho que tomar conta dos mortos, e morto não dá trabalho”, pensa Zé.
Com a partida do Seu Ari, que ele mesmo enterrou. Assumiu o cargo. Com o
passar dos anos aprendeu a gostar do que fazia. Aprendeu a ler e escrever na
Escola Noturna dos padres ao lado do cemitério. Enviava cartas para os irmãos e
mãe, certo de que alguém leria pra eles. Não escreveu o que fazia, mas que estava
bem. Trabalhando, estudando as letras e os números, e já namorando. Sim, Zé
conheceu sua amada Elza, com quem viveu toda a vida. A enterrou quando
completavam 30 anos de casados. “Morreu dormindo, tinha uma alma tão boa que
Deus não lhe deu sofrimento na partida”, declarou seu Zé. Tiveram um filho, que já
estava formado e só lhe dava alegria.
Olhando o rosto sofrido de Seu Zé, perguntei sobre o filho. Disse que estava
na Alemanha com um bolsa de estudo de engenharia. Continuou falando como se
quisesse dar voz aos mortos: Minha vida foi aqui, enterrando homem, mulher,
jovem, criança, só tinha que fazer o buraco e cimentar, as dores eram por conta das
famílias, na sepultura eu só colocava o corpo. Me convencia disso, para que
pudesse exercer minha função corretamente. E quando às vezes a noite de lua
cheia trazia casais para namorar por aqui, via que era isso a vida, os mortos
acalentavam o amor fortuito de jovens corações apaixonados.
“Dona Neuza, sua mãe, quando a enterrei foi com pesar. Não por ela, mas
por vocês que iriam ficar sem mãe tão novos, me confidenciou numa voz amiga.
Cada um tem sua hora e eu tenho o numero certo da cova onde o corpo vai
ficar, porque o espírito foi para longe revoar em outros caminhos. Eu dizia para meu
filho, paciência na vida, que o certo lá na frente, só a morte.
nos convidava pra festas. Um coveiro na festa de batizado? De quinze anos?
Diziam que dava azar. Mas eu suportava. Meu filho tinha vergonha de mim, do meu
oficio, mas era o que nos garantia o sustento, e ainda de quando em vez gorjetas
de familiares, para que eu desse um carinho especial aquele morto.
Na minha função enterrei pessoas famosas. O último foi o nosso campeão da
Copa de 70 Carlos Alberto Torres, fiz uma linda sepultura. Antes, há anos foi Jorge
Lafond. Até me entrevistaram. Nos últimos tempos só o Pai do Zeca, seu Jessé, nos
trouxe visibilidade. Foi muita cervejada das boas, até eu bebi.
Lembro de uma vez que Zeca trouxe uma grande sambista para o Bar do
Cemitério que era o único aberto na madrugada pelo subúrbio. Foi emocionante.”
Seu Zé se despediu. fiquei pensando: quantas histórias deve ter para contar
o seu Zé Coveiro? quantas coisas que ele já viu? Pensei em escrevê-las, mas não
deu tempo. Seu Zé morreu algumas semanas depois do nosso encontro e soube que
pediu para ser cremado.
Onde já se viu coveiro ser cremado?!
E foi feita a sua vontade.
Nina na Peleja.
Do r i n a G u i m a r ã e s
Ab a r á
Modo de preparo:
Malkia Usiku