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Crítica e ideologia em tempos de “pós-verdade” https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/17/critica-e-ideologia-em-tempo...
Um exemplo. Tendemos a achar que uma coisa é a ciência, com sua autoridade neutra
e imparcial, e outra coisa é o que nós fazemos com a ciência – leia-se, disputar
ideológica ou politicamente suas implicações ou traduzindo suas descobertas em
aplicações tecnológicas. Isso nos leva à concepção errônea de que a ciência compõe-se
de ideias claras e consensualmente estabelecidas e não de controvérsias e polêmicas
que se transformam com o tempo. Conclusão: se há polêmica e controvérsia de
opiniões é porque estamos no campo da ideologia e da metafísica. A ciência silencia, a
ideologia faz falar. Nada mais equivocado para qualquer um que possua alguma
noção de teoria do conhecimento ou epistemologia. (Disso não decorre, obviamente,
que lá onde há polêmica e incerteza lá esteja apenas ciência).
“Parece óbvio pela ciência econômica que se não fizermos uma reforma
previdenciária o Brasil quebra” (verdadeiro), “logo precisamos aceitar esta
reforma indecente proposta por Temer” (falso).
“Parece evidente, pela ciência da administração, que diminuição de custos gera
aumento de receita” (verdadeiro), “logo temos que aceitar a privatização, a
redução e investimentos e a austeridade como políticas públicas” (falso).
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Crítica e ideologia em tempos de “pós-verdade” https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/17/critica-e-ideologia-em-tempo...
Isso não tornaria a psicanálise assemelhada com a homeopatia nem com a astrologia,
como o texto procura sugerir – e, ainda assim, o que isso importa ao argumento? As
generalizações que se seguem são cada vez piores. Encontramos afirmações do tipo:
“na Argentina admite-se que todos lapsos são reveladores” (por acaso, o povo
argentino sofreria de algum tipo de déficit cultural?); ou “na França a psicanálise é
ensinada como verdade inquestionável” (quer dizer então que todos os professores
franceses de psicanálise são ignóbeis dogmáticos?); ou “a Holanda consome poucos
ansiolíticos e lá a psicanálise inexiste” (que relação há entre os dois fatos?).
Depois vem uma nota histórica lembrando que Freud, enquanto neurologista,
estudou os efeitos analgésicos da cocaína (verdadeiro), o que o torna um vigarista
(falso). Aliás, seu colega de laboratório continuou a estudar os efeitos anestésicos
desta substância ganhando o prêmio Nobel em Oftalmologia por esse trabalho. Em
seguida, o autor retoma as críticas compiladas de dois livros: A batalha da memória,
no qual a psicanálise e atacada porque um grupo de psicoterapeutas inescrupulosos
(assumidamente não-psicanalistas) usa a teoria freudiana para criar “falsas
memórias” em seus pacientes gerando muitos infortúnios jurídicos e familiares, e O
livro negro da psicanálise, uma compilação de observações históricas interessantes,
algumas rigorosas outras não, de como os relatos de Freud não correspondiam
sempre ao que seus pacientes (cinquenta anos depois) lembravam sobre os fatos
(verdadeiro). Uma vez enunciado o veredito, o resto são corroborações. A diversidade
de teorias e de reformulações não apresentada como sinal de que ideias questionáveis
ou provisórias ficam para trás, como se espera de qualquer ciência, mas sim de que
haveria aí um truque maligno por parte dos psicanalistas (lembram-se de como os
críticos seriam sempre neutralizados como conspiradores?). Os problemas na lógica
argumentativa de Freud são mencionados a partir da sagaz crítica de Grünbaum, mas
o reconhecimento, por ele mesmo, trinta anos depois, que suas críticas estavam
equivocadas simplesmente não é mencionado. E o retrato do que um psicanalista faz
é simplesmente caricato:
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Crítica e ideologia em tempos de “pós-verdade” https://blogdaboitempo.com.br/2017/05/17/critica-e-ideologia-em-tempo...
A pós-verdade explora uma característica muito curiosa da internet que é sua relativa
flutuação de autoridade – o que, considerado por outro ângulo, é um de seus aspectos
mais democráticos. O autor desta aula de “pseudo-pseudociência” posiciona-se com
juízos amplos e assertivos, em uma avaliação de contornos morais evidentes (haja
vista o léxico utilizado: “farsantes”, “mentirosos”, “plagiários” etc.). Observando o
currículo Lattes, o cartão de vistas de qualquer pesquisador, vemos que seu autor,
aluno do curso de Filosofia na Universidade de Franca, realiza Iniciação Científica em
Microbiologia com enfoque em Astrobiologia. Surpreendentemente, ele não publicou
nenhum artigo sobre psicanálise nem psicologia. Pior, ele não publicou nenhum
artigo em nenhuma outra área científica ou fora dela. Ele simplesmente cortou e
colou opiniões da internet, aumentando sua reputação “crítica”, contando com a falta
de consequência, explorando a complacência geral do novo irracionalismo brasileiro.
Eis a definição de ideologia em tempos de pós-verdade. Não é apenas a infiltração de
ideias, interesses e doutrinações, mas a sua contra-apresentação como denúncia
científica e crítica.
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