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2. ESTADO DE MINAS ( ) Sexta-feira, 2 de novembro de 2018 .

“QUEM AMA NÃO MATA”: DOIS TEMPOS FOTOS: VERA GODOY/ARQUIVO EM

TRECHO DO MANIFESTO DAS MINEIRAS


Lançado em agosto de 1980 para denunciar (AGOSTO DE 1980)

casos de violência contra a mulher, movimento “Senhora, aqui está vossa chave
Para que vós entregueis a quem quiserdes, quando quiserdes,
ganha reedição neste mês, incorporando novos Porque maior que a dor de vos perder,
É a dor de vos deixar presa nesses ferros...”
grupos e novas pautas da luta feminista Assim um poeta da Idade Média despediu-se de sua senhora, antes
de partir para as Cruzadas. E entregou-lhe a chave do cinto de castidade,
contrariando todas as tradições da época. Por amor.
Em Minas, quase mil anos depois, as mulheres têm destinos difer-
entes: são mortas a tiros pelos homens dos quais queriam se separar.
Porque pediam a liberdade.
MIRIAN CHRYSTUS ção em todas as comunicações do movimento estudantil. Alguns desses casos chegam aos jornais. Às vezes, até ocupam as
ELIANE MARTA TEIXEIRA LOPES Alguns meses antes, o DCE vinha promovendo vários deba- primeiras e nobres páginas, o horário nobre da televisão. Mas nós sabe-
SILVANA CÓSER tes em seu espaço cultural na Rua Gonçalves Dias (hoje Ci- mos que morrem anonimamente centenas de mulheres da mesma
ne Belas Artes). Discutia-se com Plinio Marcos o teatro na- forma. E é por causa delas, por causa das Eloísas, das Angelas, Reginas,
cional e a censura; com Moniz Bandeira, a força das multi- Maltas e Marias, por nossa causa que estamos aqui. (...)
Julho de 1980 nacionais. Como num ritual, peças como O que mantém A morte nos trouxe até o adro desta igreja. Mas não é a morte que
De repente, aquela mulher, sorrindo na foto 3x4 da revis- um homem vivo, de Brecht, remetiam à ditadura. Músicas, nos anima a continuar. O que nos dá forças para prosseguir nessa luta,
ta Veja, nos assombrava: Eloisa Ballesteros, morta por seu poemas, tudo tinha um segundo texto, uma segunda inten- que poderá ocupar nossa vida inteira, é a certeza de que podemos trans-
marido com vários tiros, enquanto dormia. Motivo: suspeita ção. O mundo era como uma metáfora, todos engajados nu- formar essa sociedade doente que está à nossa volta”.
de traição. Duas semanas depois, outra mulher, Maria Regina ma interpretação crítica.
Souza Rocha, nas páginas dos jornais, morta a tiros, de ma- Então, aquele pequeno grupo de jovens estudantes orga-
nhã, ainda com o uniforme de ginástica. Motivo: o marido
não aprovava seus novos modos. Ela tinha, inclusive, dado
nizou no DCE um seminário que abordava a situação da
mulher no trabalho, nas relações pessoais, na vida política.
TRECHO DO MANIFESTO DAS MINEIRAS
para fumar. Entre outras, a feminista Branca Moreira Alves, irmã de (NOVEMBRO DE 2018)
“É preciso fazer alguma coisa”, pensávamos nós, mulheres. Márcio Moreira Alves, responsável por um discurso crítico
– que provocou a ira do regime militar e o fechamento do “Quando algumas mulheres não aceitam se submeter a um poder
Julho de 2018 Congresso Nacional, em 1968 –, falou da história do voto fe- persistente, antigo, convincente, muito convencido das razões e da
De repente, aquela mulher, tão linda, sorridente em fotos minino no Brasil e na Inglaterra, onde a luta durou quase importância desse poder para o funcionamento do mundo, o que se faz com
de família, aparecia naquelas imagens de câmera de seguran- 100 anos, envolvendo várias gerações de mulheres. There- essas mulheres? Mata-se. Sim, mata-se porque a morte é uma forma de
ça em preto e branco, no Jornal Nacional. Não havia som, mas zinha Zerbini falou sobre o Movimento Feminino pela Anis- lição poderosa, eficaz. É o derradeiro recurso: a eliminação do incômodo.
dava para escutar os gritos desesperados pedindo socorro, pe- tia, da necessidade e da urgência de trazer para casa os bra- (...) O pássaro que voa de forma a produzir um incômodo, a mosca,
dindo ajuda, na calçada em frente ao prédio em que morava, sileiros exilados pelo regime militar (o que ocorreria em o sagui, tudo o que corre livremente por aí. O que se faz quando este
na garagem, sendo derrubada e chutada dentro do elevador. 1979). Rachel Moreno falou da prostituição, e de como ela pequeno animal exerce seu livre-arbítrio sem consultar o poder
Via-se ela caminhar para a morte, que ocorreu alguns minu- era consequência da família monogâmica e sua exigência assentado há milênios em seu trono? O que você faz com este ser que
tos depois, longe das câmeras, arremessada da varanda do de fidelidade. incomoda? Mata-se. (...)
sexto andar. Motivo: o marido da advogada Tatiane Spitzner Após o seminário do DCE/UFMG, o grupo continuou se Há uma mulher e suas maneiras de existir.
não queria a separação. reunindo e se tornou referência em Minas. O grupo lia e dis- Suas maneiras de resistir.
“É preciso fazer alguma coisa”, pensamos nós, mulheres. cutia principalmente A origem da família e da propriedade Há muitas maneiras de se viver.
privada, de Engels (a busca da explicação de como havia se Há muitas formas de se matar uma mulher.
dado a grande derrocada do matriarcado); Descondiciona- (...) Há formas simbólicas de se eliminar uma mulher ou sua

E
m ambos os momentos, um pequeno grupo de mento da mulher, e Educar para a submissão, de Elena Bello- rebeldia. A liberdade é um símbolo. O voo do pássaro é um símbolo.
jornalistas iniciou o movimento. ti, que mostravam como, até antes de nascer, as expectativas A palavra é uma forma de liberdade. O pensamento é uma forma de
Ato de protesto pelo assassinato de Eloisa Ballesteros Stancioli e de Maria Regina dos Santos Sousa Rocha liberdade. Existir é uma forma de liberdade. A liberdade, a palavra,
Em 1980, Dagmar Trindade e Mirian Chrys- eram diversas para meninos e meninas e como a educação
lança a campanha “Quem Ama Não Mata”, nas escadarias da Igreja São José, em 18 de agosto de 1980 o pensamento são também possíveis de se calar antes que a morte
tus, repórteres, e Antonieta Goulart, chefe de forjava a submissão das mulheres.
reportagem da TV Globo Minas. A direção jor- A grande questão de fundo era “como havíamos nos tor- seja executada”.
nalística apoiou: tratava-se de ganhar espaço nado mulheres” (já que Simone de Beauvoir alertara que DEPOIMENTO
no Jornal Nacional. “ser mulher” não era uma questão meramente biológica,
Em tempos sem internet, o boca a boca, a imprensa – escri- mas um aprendizado social), e assim, com menos valor, me- É legal, mas... é triste
ta e televisiva – funcionaram como um rastilho de pólvora. nos direitos, menos liberdade e... pouco prazer sexual. Aos “É legal quando inventam aplicativos que indicam lugares
Foram realizadas reuniões na Pontifícia Universidade Cató- 20 anos, estávamos preocupadas com a questão do orgas- de risco ou um que seleciona motoristas mulheres,
lica (PUC Minas) e na Universidade Federal de Minas Gerais mo – ou a falta dele. quando existe uma lei (não tão eficiente) para amparar “Feminicídio é uma espécie de crime de ódio”
(UFMG). A decisão: fazer um ato público no adro da Igreja São Naquele dia, 18 de agosto de 1980, toda essa energia esta- brigas domésticas, quando algumas moças postam dicas
José, no coração de Belo Horizonte. va concentrada no adro da Igreja São José. Como numa cena de como se proteger ao andar na rua ou quando existe um Na entrevista a seguir, Marlise Matos, professora doutora do
Como era a Belo Horizonte de 1980? Como era o Brasil? teatral, cerca de 400 mulheres nas escadarias portavam velas vagão feminino no trem. Mas, mais do que tudo, é triste! É Departamento de Ciência Política da UFMG, coordenadora
Ainda estávamos numa ditadura. Já nos seus esterto- acesas e rosas vermelhas. Adélia Prado veio de Divinópolis e triste não se sentir senhora do seu corpo porque ele pode do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Mulheres (Nepem)
res, mas ainda viva. O país era governado por um militar, falou. Maria Campos, da Liga Feminina Católica; Genival Tou- ser violado a qualquer hora. É triste ter medo de andar na e da pesquisa “Investigando características de gênero
João Baptista Figueiredo, que prosseguia a linha da “dis- rinho, do PDT, único homem a falar no ato; uma feminista rua, de passar um batom, de usar uma roupa... E saber que, em processos de feminicídio em Minas Gerais”, realizada entre
tensão gradual, lenta e segura” proposta por Ernesto Gei- do Rio de Janeiro; Helena Grecco, do Movimento Feminino mesmo sem nada disso, você ainda é alvo. É triste ter que
pela Anistia. Mirian Chrystus encerrou com a leitura do Ma- 2015 e 2018, fala sobre feminicídio. (Miriam Chrystus)
sel. Os anos mais terríveis de tortura tinham ficado para ficar atenta até no transporte público. É triste ver as
trás, mas a ameaça pairava no ar. Um ato público era al- nifesto das Mineiras (leia na página 3), que reivindicava a re- histórias horríveis ocorrendo com outras mulheres só por
go original – e temerário. democratização do país – alertando que a democracia tinha serem mulheres. É triste ver quando as histórias dessas O que é exatamente o feminicídio? roupa, esse batom, ir a tal lugar
Aquele ato tinha antecedentes. Em 1975, Ano Internacio- que começar em casa e que as novas ideias só vingariam mulheres são pejorativamente contadas. É triste ser A violência afeta de maneiras di- com tal pessoa. Nada sendo feito,
nal da Mulher, um pequeno grupo de estudantes de jorna- quando misturadas ao leite materno. diminuída a estereótipos que dispensam sobre nós em ferentes homens e mulheres. A essas situações de violência ter-
lismo promoveu um seminário sobre a mulher brasileira Foi uma bela noite. Dela nasceu a frase “Quem ama não relação a estéticas, competição com as demais, cognição e sociedade brasileira é muito vio- minam na morte da mulher.
no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMG. Naque- mata”, pichada anonimamente em muros de Belo Horizon- comportamento. É triste não ter a liberdade de ir e vir”. lenta em vários níveis, instâncias
les tempos sombrios, o movimento estudantil e suas pala- te e no Colégio Pio XII, que as freiras logo apagaram. Anos de- e esferas. No geral, afeta os ho- O uso de álcool ou drogas pode
vras de ordem eram um foco de resistência da sociedade ci- pois, a partir de 1985, foram criadas as delegacias de mulhe- Maria Martuchelli, mens no espaço público, na rua também ser uma causa?
vil organizada. “Pelas liberdades democráticas” era a sauda- res por todo o país. estudante da UFMG, de 19 anos, no Facebook (2018) e, por conta do binarismo de gê- O abuso de álcool e drogas não é
nero, afeta as mulheres no espa- uma causa determinante – mas
ço privado, doméstico. O femini- pode estar associado. Quase sem-
cídio é um crime contra a vida pre, nos casos que analisamos, as

O MESMO SLOGAN. A
GEORGES BENDRIHEM/AFP
das mulheres por razões de do- pessoas tinham bebido muito,
minância, de controle patriarcal usadodrogasqueproduzemesta-
dos corpos das mulheres. Geral- dos alterados de consciência –
mente, ele é consequência de que não justificam o cometimen-
um histórico de violência. Ele é todocrime,masestãoassociados.

MESMA INDIGNAÇÃO
um tipo de crime de ódio prati-
cado por homens que colocam a Quem é o responsável primordial
mulher uma última vez na con- pela prática do feminicídio?
dição de objeto absoluto, reti- Para além do homem que come-
rando sua própria vida. te o crime de feminicídio, temos
a estrutura de uma sociedade
E qual é o modus operandi des- profundamente patriarcal e vio-
Agosto de 2018 morte de mulheres trans por companheiros pode ser incluída no ses assassinatos? lenta com as mulheres. O femi-
Numa conversa de Facebook, em agosto, jornalistas comentam conceito de feminicídio, lei aprovada em 2015 pela presidente Nos processos que analisamos, nicídio é o ponto de chegada, o
o recrudescimento da violência contra a mulher. “É preciso fazer Dilma Rousseff. não se identificou uma única for- momento final de um relaciona-
alguma coisa, não podemos perder a capacidade de nos indignar”, De todos os fenômenos culturais, o que mais impactou o fe- ma de matar. Encontramos algu- mento quase sempre violento.
afirmou Hélia Ventura, jornalista aposentada do Diário da Tarde. minismo dos anos 1970/80 foi o feminismo negro. Ele não veio maregularidadenousodeformas Em alguns casos, identificamos
Alguns dias depois, Mirian Chrystus publica, também no Face- apenas como mais uma vertente a se somar, mas como a prática de crueldade: não é uma única fa- a omissão do Estado, porque sua
book: “Mulheres do mundo, uni-vos”. É o começo da reedição do e reflexão teórica que colocou em xeque as bases do feminismo cada, são muitas; não é um único função primordial é garantir a
“Quem Ama Não Mata”, o potente slogan criado em 1980. tradicional. Este foi criticado como essencialista, por não levar tiro,sãomuitos,geralmentenafa- vida e a integridade dos indiví-
O mesmo slogan, a mesma indignação contra a mesma vio- em conta a concretude das experiências singulares de grupos de ce, para destruir o rosto da mu- duos. A princípio, seriam crimes
lência. Mas o mundo mudou, a sociedade é outra. Há 40 anos, o mulheres que não apenas as brancas de classe média. lher. Esse tipo de crime vem evitáveis. Muitas vezes, esses
feminismo se dividia basicamente em duas grandes correntes, a Assim, o movimento/ato “Quem Ama Não Mata” de 2018 vai acompanhado de requintes de parceiros íntimos e assassinos
europeia, com influência de Simone de Beauvoir, e a norte-ame- refletir esse momento da cena atual. Na próxima sexta (9), a partir crueldade,atédesinaisdetortura. têm outras experiências de vio-
ricana, de Betty Friedan. das 18h, na Avenida Álvares Cabral, em frente ao Sindicato dos Jor- lência que já tinham sido relata-
O feminismo norte-americano, em linhas gerais, era massivo nalistas, estarão presentes representantes de movimentos e cole- Quais são as causas mais amplas das na Justiça, alguns até com
e apontava falhas do sistema capitalista que poderiam ser sana- tivos que representam as lésbicas, as trans, as estudantes universi- do feminicídio? medidas protetivas decretadas.
das. Já o feminismo europeu influenciava mais o meio universi- tárias e secundaristas, as trabalhadoras rurais, as intelectuais, as re- A principal causa são as formas E o Estado não conseguiu garan-
tário, que reverberava as ideias para a sociedade através da mí- presentantes de instituições como a UFMG e a PUC, as prostitutas, hierárquicas, assimétricas, das tir a vida dessas mulheres. Então,
dia. A principal questão colocada pela intelectual francesa foi as líderes comunitárias, as feministas negras. Somando-se às atri- relações de gênero. A violência além de ser um crime de ódio
questionar a imbricação destino e biologia. “Não se nasce mulher, zes, cantoras, poetas, o ato será majoritariamente negro. Como ne- contra as mulheres é cíclica e contra as mulheres individual-
torna-se mulher”, afirmou Simone de Beauvoir. Estava aberto o gro é majoritariamente o Brasil. Todas vozes, em uníssono, contra crescente. Nunca começa com a mente, também é um crime de
caminho que desembocaria não em linha reta, na ideia de Judith o feminicídio e as outras formas de violência contra a mulher. facada, com o tiro. Geralmente é omissão do próprio Estado, que
Butler a respeito do gênero como performance: o feminino co- Mais uma vez, feminismo e política se encontram, se entrela- antecedida por coisas muito sim- deveria dar segurança e garantia
mo algo da esfera da construção de papéis. “A mulher é a porta- çam: em 1975, combatendo a ditadura militar; em 1980, reivindi- ples, tipo você não pode usar tal de vida a essas mulheres.
dora privilegiada do feminino”, afirmou, certa vez, a psicanalista cando a redemocratização do país e a anistia. Agora, juntamente
Ana Portugal. Privilegiada, mas não a única. Homens podem ser com as forças democráticas do país, contra violências praticadas
portadores do feminino, principalmente aqueles que se colocam durante o processo eleitoral, zelando pela nossa frágil democracia.
sob a bandeira das mulheres, segundo Lacan, os homens que não MOSTRA NA BIBLIOTECA

*
se veem e não agem como detentores do poder. Na próxima segunda (5), a exposição Memórias do Movimento Quem
Ama Não Mata será aberta, às 18h, na Biblioteca Pública de Minas Gerais.
IDENTIFICAÇÃO Assim, quando surgiu a ideia de se reeditar o ato A mostra faz um apanhado de ações feministas empreendidas no Brasil desde o
A intelectual francesa Simone de Beauvoir, em Paris, em 1971. Reflexão de 1980, logo se constatou a necessidade de incorporar as várias Mirian Chrystus é jornalista. Eliane Marta Teixeira Lopes século 19 até os dias de hoje. Haverá uma versão do Dicionário feminino da infâmia,
de Beauvoir sobre a condição da mulher é central no desenvolvimento do vozes do feminismo atual: “ser mulher” passa a ser, inclusive ju- é professora emérita da Faculdade de Educação (UFMG). lançado em novembro de 2015, exposta, assim como livros datados desde 1878.
feminismo europeu e foi referência para as ativistas brasileiras nos anos 1980 ridicamente, parte de sentimento e identificação: tanto que a Silvana Cóser é socióloga. Estará disponível para consulta uma versão on-line do Dicionário.

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