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A essência da hermenêutica protestante

Thomaz Kawauche (05/09/2002) – revisto e ampliado em 12/09/2002

Subjetividade é a verdade.
(Johannes Climacus)

Apesar do título sugerir que este seja mais um daqueles ensaios dogmáticos, com
pretensão de validade universal, escrito por alguém que se considera tão próximo da
verdade absoluta a ponto de ter a capacidade de descrever em poucas páginas qual seja a
essência da hermenêutica protestante, quero tranqüilizar meus leitores dizendo que tal
façanha não é, nunca foi e – espero – nunca será a minha intenção.

Para explicar o meu objetivo neste ensaio, quero fazer uso de uma analogia. Vamos
imaginar que estamos em frente a uma casa, tentando olhar para o seu interior. Vamos
imaginar ainda que a porta de entrada dessa casa esteja fechada. A analogia consiste em
dizer que a hermenêutica protestante é como a visão que temos da casa. Do lado de fora
está a fachada, correspondendo à hermenêutica utilizada pelas igrejas tradicionais. Do lado
de dentro está a essência, que é justamente o objeto do nosso interesse. Minha tarefa se
resume a abrir a porta para o interior da interpretação da Bíblia (na melhor das hipóteses)
ou, alternativamente, convidar meus leitores a espiar pelo buraco da fechadura (na pior das
hipóteses). Mas com um detalhe fundamental: a porta à qual eu me refiro não é a porta da
casa observada, e sim, a porta da casa do próprio observador. O interior seria então
interioridade, ou seja, subjetividade, nas palavras de Climacus-Kierkegaard.

A tese que eu pretendo defender é a seguinte: a fachada da hermenêutica


protestante esconde algo da interpretação da Bíblia que é muito mais primordial do que
aquilo que é ensinado nos seminários e faculdades de teologia. No entanto, o que eu
pretendo fazer aqui não é um tratado absoluto e definitivo do que venha a ser esse “algo”.
Afinal, um empreendimento desses seria tão difícil quanto derrubar a fachada da casa sem
destruir o seu interior. O que eu quero é apenas abrir a porta (ou, pelo menos, mostrar o
buraco da fechadura), apresentando assim algumas pistas que apontem na direção daquilo
que, neste ensaio, eu decidi chamar de “essência” da hermenêutica protestante – essência
esta que podemos buscar dialeticamente, vendo-a sempre fugir de nós na medida em que
nos aproximamos dela. Como se estivéssemos procurando o desconhecido que, quando
encontrado, passaria a ser conhecido e, portanto, deixaria de ser o que procuramos.
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Minha exposição se encontra dividida em dois blocos. No primeiro bloco, eu


apresento dois textos que abordam a questão do livre exame na leitura da Bíblia por parte
das igrejas protestantes, destacando nesses textos os pontos comuns dos autores que, sem
nenhum tipo de reserva, convergem para uma crítica direta da interpretação institucional e
objetiva realizada pelas igrejas. Tal interpretação, segundo os autores, funcionaria como
um órgão repressor das interpretações pessoais e subjetivas dos fiéis.

No segundo bloco, eu apresento algumas conclusões por parte de um teólogo e


psicólogo que recentemente defendeu sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo
a respeito da educação teológica dos seminários batistas no Brasil. Seu campo de
investigação é a psicanálise de orientação lacaniana e suas conclusões servem de apoio aos
argumentos desenvolvidos no primeiro bloco, além de enriquecerem a abordagem deste
trabalho com uma contribuição psicanalítica na questão da busca do tal “algo”, isto é, da
essência da hermenêutica protestante, possibilitando dessa forma um novo passo rumo a
um pensamento teológico brasileiro verdadeiramente multidisciplinar.

A idéia para este ensaio surgiu durante a leitura de um livro que já é considerado
clássico para as Ciências da Religião no Brasil: Introdução ao protestantismo no Brasil, de
Antonio Gouvêa Mendonça e Prócoro Velasques Filho, publicado pela Loyola em 1990.
Trata-se de uma coletânea de ensaios que, reunidos, fornecem uma visão global do
protestantismo brasileiro dentro de uma abordagem que combina sociologia, história e
teologia. O que nos interessa aqui é apenas o último capítulo, intitulado Catolicismo
“protestante”: as comunidades de base evangelizam o protestantismo brasileiro, escrito
pelo professor Antonio Gouvêa Mendonça, da Universidade Metodista de São Paulo.

Em seu texto Mendonça analisa o crescimento das comunidades eclesiais de base


(CEBs) da Igreja Católica em função da crise do protestantismo histórico no contexto do
Brasil pós-1950. O autor afirma que o sucesso das CEBs deve-se ao fato de elas terem
conseguido recuperar o espírito originário da Reforma Protestante do século XVI em uma
época de crescente urbanização – lembrando que o protestantismo no Brasil deu certo no
meio rural –, o que acabou promovendo na sociedade brasileira uma inversão radical na
relação entre catolicismo e protestantismo. Um dos pontos dessa inversão diz respeito ao
uso da Bíblia por parte dos protestantes históricos. Apesar de terem a Bíblia como Palavra
de Deus, a maneira como ela era interpretada pelos pastores tradicionais se revelava
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extremamente impopular, favorecendo a migração de fiéis para grupos do tipo CEBs ou


pentecostais. E é aqui que concentraremos nossa atenção.

O escolasticismo protestante, o pietismo e o fundamentalismo,


numa progressão histórica, anularam, ou quase anularam, todos os
efeitos da liberdade que a Reforma introduziu no acesso e uso da
Bíblia. A Reforma afastou toda forma excessivamente
institucionalizada de leitura da Bíblia e pretende manter um canal
sempre aberto de enriquecimento e renovação religiosa, isto é, a
revelação devia permanecer dinâmica nas mãos da Igreja como
fonte da liberdade do Espírito. Mas as sucessivas confissões,
catecismos e credos, os padrões exegéticos e hermenêuticos do
pietismo e o rigoroso esquema fundamentalista firmaram padrões
de leitura da Bíblia que hoje cerceiam a liberdade da consciência,
não deixando nada a desejar às antigas formas de intermediação
institucional. O que se nota agora, especificamente no
protestantismo tradicional brasileiro, é uma intermediação
uniforme e invisível entre a Bíblia e seu leitor de modo que o que
se lê não é mais o texto sagrado, mas um sistema de doutrinas
enrijecido e ideologizado. Esse sistema invisível integra de tal
modo a consciência que qualquer outra forma de leitura é
identificada como herética. É desse modo que a Bíblia perdeu seu
lugar no protestantismo e se transformou num instrumento
secundário de justificação de formas ideológicas de pensar
freqüentemente autoritárias, injustas e até ímpias. Acreditamos não
ser fora de propósito afirmar que esse estado de coisas é
responsável pela atual carência de biblistas no protestantismo
brasileiro. A leitura já esquematizada da Bíblia dispensa exegetas e
hermeneutas, os conhecedores das línguas originais, dos quais o
protestantismo tanto se orgulhou no passado. Eles já não são
necessários, e os poucos que restam são colocados sob suspeita; são
perigosos porque podem desestabilizar, com suas análises, o
sistema ideológico/religioso vigente. (1990, p. 273)

Logo após ler o parágrafo citado, lembrei-me de um trecho da tese de livre-


docência defendida na Unicamp pelo teólogo e filósofo brasileiro Rubem Alves, que foi
publicada pela Ática em 1978 (ou 1979, que é a primeira edição que tenho em mãos) sob o
título Protestantismo e repressão. Esse livro tem sido citado nos trabalhos mais
importantes de sociologia e antropologia da religião no Brasil (basta conferir os ensaios
bibliográficos de Antônio Flávio Pierucci e Paula Montero em O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995), volumes I e II, Brasília: CAPES, 1999), além de ter se estabelecido
como uma obra de referência para a teologia protestante latino-americana, se bem que com
sérias reservas por parte de muitos teólogos-pastores.
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O trecho em questão se encontra no capítulo III, no qual o autor trata da maneira


como o protestantismo constrói e conhece a realidade. Segundo Alves, os protestantes
encaram a Bíblia como o texto de autoridade máxima para a vida. No entanto, devido ao
problema da subjetividade na questão da interpretação, os protestantes acabam optando por
transferir essa autoridade máxima para o texto de uma confissão doutrinária (como, por
exemplo, a Confissão de Fé de Westminster, no caso dos presbiterianos) que determina
oficialmente qual deve ser a interpretação correta da Bíblia, fato que anula por completo o
sentido da expressão “livre exame”. E é exatamente sobre essa incoerência na idéia de livre
exame que Rubem Alves fala no seguinte trecho:

Os protestantes se vangloriam pelo fato de terem sido eles que


inauguraram o direito ao “livre exame” das Escrituras Sagradas,
pelos fiéis. (...)
Há, entretanto, um sério problema a ser resolvido: a situação
hermenêutica. A proximidade física indivíduo-texto, de maneira
nenhuma garante a proximidade entre a consciência que lê e a
significação do texto. A palavra sugere uma significação. Mas ela
não a contém. A significação não é um fato que me é dado. A
significação é algo que arranco do texto por meio de um processo
de interpretação. O texto responde sempre às perguntas que lhe
proponho. E as minhas perguntas são condicionadas por minhas
experiências biográficas e minhas neuroses; por minha cultura e
condição social; por minha situação econômica e minha idade. Se
as estruturas da razão fossem universalmente idênticas e não
condicionadas pelas condições de vida, poderíamos pensar,
hipoteticamente, numa leitura absolutamente uniforme, por todos.
Mas isto não ocorre. (...) Como resolver o problema da unidade da
verdade em contraposição à diversidade de interpretações? Tudo
indica que a Igreja Católica esteve, em última análise, com a razão:
o livre exame tende a produzir o cisma. Em conseqüência, a
interpretação não pode ficar a cargo da consciência, mas deve ser
estabelecida por um magisterium. Solução inaceitável para o
Protestantismo. (...)
O Protestantismo se viu obrigado a resolver o problema de uma
outra forma: não um magisterium mas um texto autoritativo
denominado confissão. O magisterium na Igreja Católica e as
confissões nas Igrejas Protestantes executam a mesma função:
estabelecer uma leitura uniforme do texto. Confissões são
documentos que, afirma-se, “contêm o sistema de doutrinas
ensinado nas Sagradas Escrituras”. (1979, p. 111)

A conclusão de Rubem Alves é que “não há livre exame”, uma vez que “a
interpretação correta já foi cristalizada num documento autoritativo”. (1979, p. 112)
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Os dois autores escrevem sobre o livre exame, ainda que cada um aborde o tema
sob uma perspectiva diferente. Enquanto Alves se concentra na formação da ortodoxia
protestante, Mendonça fala da rejeição dessa mesma ortodoxia. Contudo, é possível
perceber que tanto Alves quanto Mendonça orientam seus argumentos em relação a
algumas idéias que aparecem em ambos os textos. Partiremos agora para a análise dos
textos com base nesses pontos comuns.

O primeiro ponto é que não existe livre exame no protestantismo atual. Se, por um
lado, é bem conhecida a idéia mencionada por Mendonça de que a “Reforma afastou toda
forma excessivamente institucionalizada de leitura da Bíblia”, por outro lado, como aponta
Alves, a “proximidade física indivíduo-texto, de maneira nenhuma garante a proximidade
entre a consciência que lê e a significação do texto”. Ou seja, o livre exame do
protestantismo não implica necessariamente em livre interpretação. Neste momento,
devemos nos lembrar que até mesmo Lutero tinha seus métodos interpretativos bem
definidos, sendo que a idéia do livre exame na Reforma do século XVI parece mais
relacionada à liberdade do acesso ao texto bíblico do que à liberdade de interpretação.
Desta maneira, é possível concluir dizendo que o livre exame no sentido de livre
interpretação nunca existiu, visto que, na tradição cristã, a Igreja – tanto a Católica quanto
a Protestante – nunca deixou de ser uma instituição.

O segundo ponto é que a interpretação institucional anula a subjetividade do


indivíduo. Nos dois textos o indivíduo é apresentado como alguém que tem sua liberdade
interpretativa reprimida pela padronização de pensamento exercida pelas instituições.
Mendonça fala que as máquinas formatadoras de mentes construídas desde a Reforma
“firmaram padrões de leitura da Bíblia que hoje cerceiam a liberdade da consciência, não
deixando nada a desejar às antigas formas de intermediação institucional”. Alves comenta
o descabimento de tal procedimento, uma vez que cada indivíduo é único em sua maneira
de conhecer a realidade por meio da leitura da Bíblia, o que impossibilita toda e qualquer
uniformização hermenêutica. Em suas palavras: “Se as estruturas da razão fossem
universalmente idênticas e não condicionadas pelas condições de vida, poderíamos pensar,
hipoteticamente, numa leitura absolutamente uniforme, por todos.”

O terceiro ponto é que a objetividade serve como instrumento de dominação nas


mãos do clero (e clero aqui se refere tanto a católicos quanto protestantes). De acordo com
Alves, tanto o magisterium do catolicismo quanto as confissões do protestantismo são
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formas de dominação que visam estabelecer a verdade única. Essa unidade é de extremo
interesse para o clero, uma vez que somente através dela é que se legitima o poder nas
mãos dos sacerdotes. No caso de haver múltiplas interpretações, o poder distribuir-se-ia
igualmente entre todos os crentes, afinal, todos seriam sacerdotes (esta é, aliás, uma outra
questão importante no discurso da Reforma, e está diretamente relacionada à questão do
livre exame). Mendonça afirma que “a Bíblia perdeu seu lugar no protestantismo e se
transformou num instrumento secundário de justificação de formas ideológicas de pensar
freqüentemente autoritárias, injustas e até ímpias”. Isto é, apesar de haver entre os
protestantes a idéia de que todos são sacerdotes, existem alguns sacerdotes que possuem o
privilégio de dominar os outros por serem detentores da interpretação oficial da Igreja.

O quarto e último ponto é um jogo de contrastes. Tanto Alves quanto Mendonça


fazem uma comparação entre duas posições contrárias: de um lado, a interpretação estática,
associada às idéias de verdade absoluta, certeza objetiva e unidade de pensamento; de
outro, a interpretação dinâmica, associada à idéia de verdade(s) relativa(s), certeza(s)
subjetiva(s) e diversidade de pensamentos. O problema da interpretação dinâmica, segundo
Alves se encontra no fato de o controle escapar das mãos da classe dominante, o que
tornaria a verdade uma questão subjetiva, diversa e, portanto, imprevisível. Interessante
que Mendonça afirme que “a revelação devia permanecer dinâmica nas mãos da Igreja
como fonte da liberdade do Espírito”. Isso sim seria coerente com a proposta luterana
originária da Reforma, a saber, o sacerdócio universal dos crentes.

A conclusão que podemos estabelecer neste primeiro bloco é a seguinte: a


hermenêutica protestante em sua essência é anterior (ou interior) à leitura
institucionalizada da Bíblia. Embora não possamos negar que a Reforma tenha trazido
elementos que proporcionariam (pelo menos teoricamente) o livre exame como um
caminho de interpretação subjetiva do texto bíblico, podemos afirmar com base nos autores
citados que esse caminho permaneceu como uma via interditada. A institucionalidade da
Igreja sufocou de tal maneira a liberdade de consciência dos indivíduos que estes nunca
puderam afirmar sua subjetividade a fim de serem chamados, propriamente, “indivíduos”.
A consciência da massa popular era a consciência imposta pelos líderes eclesiásticos. A
subjetividade na interpretação, ainda que essencial na hermenêutica protestante,
permaneceu inédita na prática, como se fosse um quarto secreto da casa de nossa analogia,
trancado a sete chaves, nunca visto por ninguém, nem mesmo pelo próprio dono da casa.
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Na seqüência, passaremos para a tese de doutorado defendida na Universidade de


São Paulo em 2000 pelo teólogo e psicanalista Paulo Arthur Buchvitz. O título da tese é
Psicanálise e teologia: uma leitura da educação teológica a partir da psicanálise de
orientação lacaniana. Mas antes, é preciso deixar claro o motivo pelo qual decidi abordar
neste ensaio uma tese que trata sobre educação e psicanálise.

Em primeiro lugar, porque na tese em questão o autor considerou como objeto de


estudo a educação teológica dos batistas. O meu interesse pela abordagem de Buchvitz é
epistemológico, pois a maneira como os batistas conhecem a realidade se aproxima
bastante dos princípios da Reforma Protestante, ainda que alguns estudiosos (como
Mendonça) prefiram classificá-los como “paralelos à Reforma” (1990, p. 18 e 42). De
qualquer maneira, tendo em vista o que está sendo considerado neste ensaio, podemos
dizer que as conclusões de Buchvitz são pertinentes, uma vez que a atitude dos batistas
perante a Bíblia envolve um livre exame acompanhado por uma confissão doutrinária.

Em segundo lugar, porque o autor da tese faz um diagnóstico do ensino teológico


batista que serve de apoio à conclusão do primeiro bloco deste ensaio. Digo isto porque o
protestantismo sempre foi extremamente escolar (os cultos são salas de aula onde se estuda
a Bíblia) e, portanto, acredito que analisar o ensino teológico seja estruturalmente idêntico
a analisar o ensino doutrinário que acontece por meio da hermenêutica protestante.
Buchvitz apresenta seus argumentos fundamentados na psicanálise de orientação lacaniana,
sugerindo um sistema educacional baseado na construção do sujeito a partir de sua própria
linguagem. É certo que o escopo da tese em questão ultrapassa os limites deste ensaio, mas
nem por isso as conclusões de Buchvitz deixam de ser relevantes para o caso do livre
exame considerado aqui, uma vez que estaremos nos concentrando apenas na questão da
subjetividade.

Em terceiro lugar, porque essa tese foi escrita por um teólogo brasileiro e o objetivo
do meu projeto é justamente construir um pensamento teológico a partir de pensadores
brasileiros. Buchvitz tem dado sua contribuição nesse sentido dentro de sua área, que é a
Psicanálise.

Para o objetivo deste ensaio, no qual a subjetividade desempenha um papel


fundamental, é importante a apresentação do seguinte trecho:
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A Psicanálise possibilita a reformulação do modelo fundamental da


Pedagogia, assinalando que não existe uma regra geral para todos
os seres humanos. O sujeito deve ser percebido no singular, isto é,
o processo de cada um se concebe de forma própria. O enfoque
pedagógico tradicional pode fossilizar os educandos com o
conhecimento mecanizado, que deve ser reproduzido de igual
forma como lhes foi ensinado, mesmo que isto não faça nenhum
sentido para eles. (2000, p. 98)

Isso reforça a afirmação de Alves, que dizia que as estruturas da razão são
“condicionadas pelas condições de vida”, não sendo, portanto, “universalmente idênticas”.
Além disso, Alves lembra a natureza simbólica da palavra ao afirmar: “A palavra sugere
uma significação. Mas ela não a contém.” Quem dá o significado à palavra (ou à Palavra) é
o próprio leitor em sua subjetividade. Nas suas conclusões, Buchvitz escreve:

Em Lacan, há uma série de processos de que o educador não


consegue dar conta, desconhece os mal-entendidos da linguagem e
palavra. Estas não têm um único sentido ou emprego, mas um
sentido a mais, muitas funções. O último sentido não pode ser
atribuído a Deus, como tradicionalmente os pastores pensam,
porque, atrás do discurso, existe o que quer dizer e atrás do dizer,
há outros dizeres, nunca se esgotando. A palavra expressa os
significantes de cada sujeito de forma própria, gerando no aluno o
seu próprio idioleto para construção de sua aprendizagem, isto é, o
modo próprio de dizer o seu aprender. (2000, p. 126)

Lembrando a metáfora que utilizei para explicar o objetivo deste ensaio, é possível
entender que o interior da casa a ser descoberto é o interior da própria casa, ainda que o
que se observa seja uma outra casa. Na verdade, “o eu é um Outro”, como dizia Lacan. O
problema se encontra na alienação, ou seja, quando as pessoas relacionam a verdade com a
hermenêutica oficial da Igreja. Elas transferem a subjetividade da tarefa hermenêutica para
um Outro. É o Outro alienado que vai dizer o que é verdade e o que é heresia. Isso reforça
a denúncia de Mendonça quando ele chama o sistema hermenêutico dos protestantes de
“sistema de doutrinas enrijecido e ideologizado” causando o cerceamento da “liberdade de
consciência” na leitura da Bíblia. Por tudo isso que o autor denuncia as “formas
ideológicas de pensar”.

Outro detalhe importante é a negação do conhecimento estático. A construção do


sujeito em Lacan é constante, ou seja, dinâmica. Em linguagem filosófica, dizemos que a
construção do conhecimento do sujeito se dá através de um processo dialético.
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Em Lacan a linguagem não pára nem a educação. Ambas estão


sempre se estruturando de uma forma nova, que não se consegue
acompanhar, devido aos conceitos e imagens previamente
estabelecidos pela pedagogia. O professor pára o processo,
mantendo-se no que já sabe, tentando moldar a aprendizagem à sua
imagem e semelhança. Na educação teológica batista, o educador
quer moldar o aluno segundo as suas concepções pedagógicas e
teológicas. (2000, p. 127)

Isso reforça a idéia de que a interpretação realizada pelo sujeito deve,


necessariamente, ser imprevisível e não há nada que uma instituição eclesiástica possa
fazer contra isso. A verdade única não faz sentido algum, visto que os sujeitos são vários e,
portanto, várias são as interpretações. No caso do livre exame da Bíblia como abordado
aqui, cabe a famosa proposição de Kierkegaard: “Verdade é subjetividade”.

Há furos que vazam na comunicação, existindo sempre um mais


além, uma nova concepção e um novo questionamento. Na palavra,
há múltiplos sentidos, um mais além da palavra, para compreendê-
lo é preciso buscar uma outra palavra, mais profunda, levando o
sujeito a organizar deliberadamente seu discurso de tal modo que o
que ele quer dizer nem sempre pode ser dito. (...) O que se tem na
mente não é um sujeito real, mas a imagem dele feita pelas teorias
ou suas próprias concepções. Para resgatar o sujeito é preciso
procurá-lo em outro lugar, isto é, na sua própria fala, ação e
linguagem. (2000, p. 127)

A pergunta de Alves, “Como resolver o problema da unidade da verdade em


contraposição à diversidade de interpretações?”, deve permanecer sem resposta devido à
subjetividade de cada intérprete. Isso porque não se trata de um problema a ser resolvido, e
sim, de um mal-entendido a ser esclarecido.

O saber não constitui uma totalidade, não há “saber universal”, um


modo adequado a todas as culturas. A educação teológica pode
abrir-se para a compreensão das doutrinas cristãs, levando o aluno
às várias compreensões de si mesmo, das doutrinas que professa,
em que cada um pode ser sujeito de suas elaborações teológicas.
(2000, p. 127-128)

Quando o assunto é a construção do sujeito, a verdade absoluta e universal não faz


sentido. É por isso que também não faz sentido falarmos em interpretação única e
uniforme. A subjetividade interpretativa – tanto na educação teológica proposta por
Buchvitz quanto na hermenêutica protestante originária da Reforma – é o quarto secreto da
casa, ou seja, a essência daquilo que nossos olhos contemplam e, ao mesmo tempo, a
ausência daquilo que nossos olhos procuram.
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Buchvitz termina sua tese com um parágrafo muito interessante que fala da
subjetividade como o alvo utópico da educação teológica idealizada por ele:

No conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, um


homem deixa o convívio familiar para viver numa canoa que
flutuava rio afora, vindo às margens somente para pegar o alimento
colocado pelo filho. No contexto da educação teológica que sonho,
a partir da Psicanálise de Orientação Lacaniana, o sujeito em uma
leitura indireta da realidade teológica, pode viver na outra margem
da realidade, em que os significantes seus, não mais os significados
concretos e conceituais, o levem a construir, pela linguagem e fala,
a margem de sua própria existência, insituindo-se como sujeito
batista. (2000, p. 128)

A minha conclusão neste ensaio em particular não será uma conclusão, pois quero
deliberadamente deixar a questão em aberto. Se não fizesse assim, eu estaria afirmando
dogmas a respeito da essência da hermenêutica protestante, o que seria uma grande
contradição com tudo aquilo que foi discutido. Afirmo que a essência da hermenêutica
protestante se encontra na subjetividade de cada intérprete que tem acesso ao texto bíblico.
Se a interpretação é alegórica ou literal, isso é uma questão secundária. A questão primária
tem a ver com a subjetividade (ou interioridade) da interpretação. O que está em jogo não
são modalidades hermenêuticas, e sim, formas individuais de conhecer a realidade por
meio de um símbolo (o texto da Bíblia). Afirmo também que o texto bíblico tem natureza
simbólica e, portanto, limitar sua compreensão a uma leitura histórico-gramatical seria
diminuir a riqueza do próprio texto. Mas é claro que essas afirmações são minhas
afirmações, e de mais ninguém. Outras pessoas poderiam interpretar a questão de outra
maneira e nunca chegaríamos a um acordo definitivo (felizmente).

Que meus leitores possam ver este ensaio como um signo e não como um
significado. Ensaio que diz o não-dito da essência-ausência de mim mesmo.

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Referências bibliográficas

ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1979.


BUCHVITZ, Paulo Arthur. Psicanálise e teologia: uma leitura da educação teológica a
partir da psicanálise de orientação lacaniana. Tese de doutorado. Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. São Paulo: FE-USP, 2000.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa e VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao
protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990.

Por uma teologia brasileira do século XXI


http://www.geocities.com/teologia_xxi/

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