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Definição de obrigação
O Código Civil define obrigação como “o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica
adstrita para com outra à realização de uma prestação” (art.º 397.º, CC), tendo esta definição
raízes romanas e significando que as obrigações são situações jurídicas que têm como
conteúdo a vinculação de uma pessoa em relação à outra à adopção de uma determinada
conduta em benefício desta.
Em sentido amplo, uma obrigação pode abranger todo e qualquer vínculo jurídico entre duas
pessoas, v.g. deveres jurídicos genéricos, ónus ou sujeições.
A obrigação stricto sensu não se confunde com a sujeição pois esta última é a situação
jurídica passiva correspondente ao direito potestativo, consistindo na necessidade de
suportar as consequências correspondentes ao exercício de um direito potestativo.
Enquanto que uma obrigação é violável, é impossível violar-se uma sujeição devido à
inelutabilidade do surgimento dos efeitos jurídicos correspondentes ao exercício de um
direito potestativo.
O ónus não se confunde com a obrigação stricto sensu pois este primeiro consiste na
necessidade de adoptar uma conduta em proveito próprio, enquanto que a obrigação
consiste num dever jurídico, imposto em benefício do credor.
A obrigação stricto sensu não se confunde com o dever jurídico genérico pois estes últimos,
enquanto situação jurídica passiva correspondente aos direitos absolutos, são uma
expressão do princípio do neminem laedere, não consubstanciando qualquer vínculo
específico que habilite uma pessoa a exigir de outrem uma prestação.
A obrigação caracteriza-se por uma determinada pessoa se encontrar adstrita a realizar uma
específica conduta, positiva ou negativa, no interesse de outra, determinada ou
determinável. Esta conduta é designada por prestação.
A autonomia privada é definida por Menezes Cordeiro como uma “permissão genérica de
actuação jurígena”, consistindo assim num espaço de liberdade pois que, dentro de certos
limites, as partes podem provocar os efeitos jurídicos desejados. Esta é, assim, a liberdade
de produção reflexiva de efeitos jurídicos, com a repercussão destes últimos nas esferas de
quem os produziu, postulando, para o efeito, negócios jurídicos.
Dentro dos negócios jurídicos, os contratos possuem o primado na constituição de
obrigações, pois os negócios jurídicos unilaterais apenas em casos previstos na lei poderão
dar origem a obrigações (art.º 457.º, CC).
Liberdade contratual
A liberdade contratual é a possibilidade conferida pela ordem jurídica a cada uma das partes
de auto-regular, através de um acordo mútuo, as suas relações para com a outra, por ela
livremente escolhida, em termos vinculativos para ambas, sendo esta a parte mais
importante da autonomia privada, enquanto princípio de Direito das Obrigações.
A liberdade contratual comporta tradicionalmente a liberdade de celebração, a liberdade de
selecção do tipo negocial e a liberdade de estipulação.
A liberdade de celebração consiste na faculdade que é atribuída às partes de celebrar ou não
o contrato (art.º 405.º, CC), de escolher com quem contratar e, subsequentemente, a
possibilidade de livremente propor ou não a celebração do contrato e de aceitar ou rejeitar,
sem constrangimentos de qualquer ordem, uma proposta de contrato que lhe seja dirigida.
A liberdade de selecção do tipo negocial consiste na não-limitação das partes aos tipos
negociais reconhecidos pelo legislador, enquanto que liberdade de estipulação consiste na
faculdade de estabelecer os efeitos jurídicos do contrato.
MENEZES LEITÃO inclui também no âmbito da liberdade contratual a liberdade de
extinguir, por mútuo acordo, o contrato, através do respectivo distrate ou revogação.
É consequência do princípio da autonomia privada no Direito das Obrigações a supletividade
tendencial das suas regras, sendo as regras imperativas excepção.
Princípio da boa-fé
A boa-fé pode ser tida no seu sentido subjectivo ou objectivo. A boa-fé em sentido
subjectivo consiste na ignorância de estar a lesar direitos alheios.
A boa-fé em sentido objectivo consiste numa regra de conduta, sendo este o sentido mais
relevante no contexto do Direito das Obrigações, encontrando-se este princípio
essencialmente plasmado nos institutos da responsabilidade pré-contratual (art.º 227.º, n.º
1, CC), na integração dos negócios (art.º 239.º, CC), no abuso do direito (art.º 334.º, CC), na
resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias (art.º 437.º, n.º 1,
CC) e na complexidade das obrigações (art.º 762.º, n.º 2, CC). Estes institutos são, segundo
Menezes Cordeiro, concretizações dos deveres de actuar segundo a boa-fé, constituindo
deveres acessórios de protecção, informação e lealdade.
A concretização da boa-fé através dos institutos acima referidos postula vectores precisos
na ponderação do julgador, propondo Menezes Cordeiro a tutela da confiança e a primazia
da materialidade subjacente.
Para que a confiança seja juridicamente tutelada pelo princípio da boa-fé, exige-se no
quadro de um sistema móvel um conjunto de pressupostos, sendo estes a existência de uma
situação de confiança, traduzida numa boa-fé subjectiva, uma justificação para essa
confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis, um
investimento de confiança, consistente no facto da destruição da situação de confiança gerar
prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido actividades jurídicas
em virtude dessa situação, e a imputação da situação de confiança criada a outrem, levando
a que este possa ser considerado responsável pela situação.
A primazia da materialidade subjacente consiste na avaliação das condutas não apenas pela
sua conformidade com comandos jurídicos, mas também de acordo com as suas
consequências materiais, tendo como vectores a conformidade material das condutas, a
idoneidade valorativa e o equilíbrio no exercício das posições.
Princípio da responsabilidade patrimonial
O direito de crédito é um direito subjectivo que tem como objecto, nos termos do art.º 397.º
do Código Civil, uma prestação, ou seja, um comportamento que o devedor está vinculado a
adoptar em benefício do credor.
No entanto, a insusceptibilidade, no Direito actual, de imposição coerciva do
comportamento do devedor através de sanções com expressão física leva a uma divergência
doutrinária sobre se o verdadeiro objecto do direito de crédito é a prestação do devedor ou
o património deste, em virtude do não cumprimento da obrigação o tornar atingível por
execução específica ou por indemnização por incumprimento.
Portanto, existem enquanto possível objecto do direito de crédito a prestação, i.e., a
conduta do devedor, e o património, i.e., os bens do devedor.
Existem, portanto, diversas teses sobre o objecto do direito de crédito:
i Teorias personalistas – o objecto do direito de crédito é a prestação;
ii Teorias realistas – o objecto do direito de crédito é o património do devedor;
iii Teorias mistas – o objecto do direito de crédito é uma combinação da prestação
e do património do devedor;
iv Doutrinas da complexidade obrigacional – o objecto do direito de crédito consiste
numa realidade complexa.
As teorias personalistas, segundo as quais o direito de crédito é um vínculo pessoal, ou seja,
é uma conduta do devedor o objecto do direito de crédito, subdividem-se em duas posições:
i. O crédito como um direito sobre a pessoa do devedor;
ii. O crédito como um direito à prestação do devedor – teoria clássica.
A teoria do crédito como um direito sobre a pessoa do devedor tem a sua origem na época
arcaica do Direito Romano, configurando um direito de crédito como um direito de domínio
sobre uma pessoa. No entanto, para esta teoria o devedor permanece um sujeito da
obrigação, pelo que a execução para satisfação do direito de crédito apenas é passível de
realização sobre os bens e não sobre a pessoa do devedor.
Próxima desta teoria é a posição de SAVIGNY, o qual entendia que o direito de crédito se
caracterizava por representar um domínio sobre uma actuação de prestação do devedor, o
que significaria a inclusão dos direitos de crédito nos direitos de domínio, juntamente com
os direitos reais. Portanto, a concepção savignyana do crédito consiste num domínio sobre
uma actuação do devedor, sendo esta subtraída à liberdade deste último, ocorrendo assim a
sujeição dessa actuação à vontade do credor, o qual exerce um direito de domínio sobre essa
actuação.
WINDSCHEID criticou esta concepção pois tal faria com que o objecto do direito de crédito
recaísse na exigência do credor, sendo que a actuação é, também, uma expressão directa da
personalidade, sendo desta inseparável para configurar objecto de um direito de domínio.
LARENZ salienta que o credor apenas domina a actuação do devedor de forma mediata, pois
encontra-se na disponibilidade deste último a decisão de realizar a prestação ou, em
alternativa, sujeitar-se às consequências do seu incumprimento.
Características da obrigação
A distinção essencial entre direitos de crédito e direitos reais consiste no critério do objecto,
sendo que enquanto que o objecto de um direito de crédito é a prestação, i.e., uma conduta
do devedor, o objecto de um direito real é uma coisa.
Enquanto que um direito de crédito necessita da colaboração do devedor para o seu
exercício, mesmo que a prestação tenha como objecto uma coisa, o direito real não necessita
da colaboração de ninguém para o seu exercício por parte do credor, pois o seu direito incide
directa e imediatamente sobre uma coisa, não necessitando a colaboração de outrem para
ser exercido.
A relatividade estrutural dos direitos de crédito é outra forma de se distinguir os estes
primeiros dos direitos reais, pois o direito de crédito assenta numa relação, o que implica que
tenha de ser exercido contra o devedor. Por outro lado, o direito real não assenta em
qualquer tipo de relação, dado que se exerce directamente sobre a coisa, sendo oponível erga
omnes. Sendo o direito de crédito um direito relativo, a sua oponibilidade a terceiros é,
segundo Menezes Leitão, limitada, apenas ocorrendo em certas circunstâncias, enquanto
que a oponibilidade dos direitos reais é plena.
O direito real adere à coisa, estabelecendo uma vinculação tal com a coisa que dela é
inseparável, sendo esta a denominada inerência dos direitos reais, a qual tem uma
manifestação dinâmica que é a sequela, a qual significa que o titular de um direito real pode
perseguir a coisa onde quer que ela se encontre. No entanto, já não ocorre sequela nos
direitos de crédito, sendo que se alguém tem direito a uma prestação e o devedor aliena o
seu objecto, o credor já não a pode exigir, restando-lhe apenas pedir uma indemnização ao
devedor por ter impossibilitado culposamente a prestação.
Os direitos reais são também caracterizados pela prevalência, a qual significa, lato sensu,
que é prioritário o direito real primeiramente constituído sobre posteriores constituições,
salvo as regras do registo, e a maior força dos direitos reais sobre os direitos de crédito (da
qual Menezes Cordeiro discorda). Portanto, não é possível constituir sucessivamente dois
direitos reais incompatíveis sobre o mesmo objecto, prevalecendo então o primeiro. No
entanto, isso não ocorre com os direitos de crédito, os quais não possuem qualquer
hierarquização entre si pela ordem da constituição, concorrendo antes em pé de igualdade
sobre o património do devedor, o qual, sendo insuficiente, será rateado para se efectuar um
pagamento proporcional a todos os credores (art.º 604.º, n.º 1, CC), salvo se estes direitos de
crédito vierem acompanhados de um direito real que atribua prevalência no pagamento
(art.º 604.º, n.º 2, CC). Assim, para Menezes Leitão, os direitos reais prevalecem sobre os
direitos de crédito.
Da definição do art.º 397.º decorre que a prestação consiste na conduta que o devedor se
obriga a desenvolver em benefício do credor, consistindo na resposta à pergunta quid
debeatur, surgindo esta, portanto, como a contraposição ontológica ao conteúdo
deontológico da vinculação assumida pelo devedor. Portanto, a realização da prestação é
considerada como cumprimento da obrigação, importando a sua extinção (art.º 762.º, n.º 1,
CC).
A prestação pode tanto consistir numa acção como numa omissão, sendo o seu conteúdo
determinado pelas partes, dentro dos limites da lei (art.º 398.º, n.º 1, CC). A prestação
consiste frequentemente não propriamente na actividade mas antes no resultado dessa
mesma, conferindo à expressão “prestação” um duplo sentido.
A prestação, embora não necessite de ter valor pecuniário, deve corresponder a um
interesse do credor, digno de protecção legal (art.º 398.º, n.º 2, CC), negando a
patrimonialidade necessária da prestação, ainda que se verifique que a sua maioria detém,
de facto, valor patrimonial. No entanto, a fórmula legal pretende abranger como objecto da
obrigação situações não patrimoniais, correspondentes a interesses do credor que mereçam
uma efectiva tutela jurídica, v.g. publicação de um pedido de desculpas, já não se
encontrando dentro deste domínio situações que se reconduzam a outras ordens jurídicas.
LARENZ defende que o interesse do credor deve ser entendido meramente como o
interesse jurídico em receber a prestação, não os interesses pessoais e económicos que ela
lhe pode proporcionar.
A prestação consiste no objecto da obrigação (art.º 397.º, CC), tendo as partes a faculdade
de determinar o seu conteúdo dentro dos limites da lei (art.º 398.º, CC), pelo que esta tem
que respeitar certos limites legais para a sua constituição. Portanto, se a obrigação resulta
de um negócio jurídico, a obrigação estará sujeita às regras relativas ao objecto negocial
(art.º 280.º, CC), tendo como consequência a nulidade do negócio se a prestação
desrespeitar algum desses limites.
Portanto, as regras do art.º 280.º são plenamente aplicáveis à prestação, pelo que esta deve,
por isso, ser física e legalmente possível, lícita, conforme à ordem pública e aos bons
costumes e determinável. No entanto, a par da aplicabilidade da regra geral do art.º 280.º a
prestação, o legislador consagrou outros requisitos da prestação nos art.os 400.º e 401.º,
carecendo estes de articulação com a regra geral.
A impossibilidade da prestação produz a nulidade do negócio jurídico (art.º 280.º, n.º 1, CC),
podendo essa impossibilidade ser física ou legal. No entanto, para que a impossibilidade da
prestação produza a nulidade do negócio jurídico, é necessário que ela constitua uma
impossibilidade originária (art.º 401.º, n.º 1, CC), pelo que se a prestação se tornar
supervenientemente impossível, após a constituição do negócio, este último mantêm-se,
ocorrendo apenas a extinção da obrigação (art.º 790.º, CC).
Existem, ainda assim, casos em que a prestação é originariamente impossível, mas a
validade do negócio não é afectada, sendo estes os casos em que o negócio é celebrado para
a hipótese da prestação se tornar possível, ou em que o negócio é sujeito a condição
suspensiva ou a termo inicial e, no momento da sua verificação, a prestação já se tornou
possível (art.º 401.º, n.º 1, CC).
A impossibilidade tem necessariamente de ser absoluta, impedindo a realização da
prestação, e não meramente relativa, tornando excessivamente difícil ou onerosa a sua
realização.
A impossibilidade deve ser objectiva e não subjectiva, considerando-se apenas como
impossível a prestação que o seja em relação ao objecto e não relativamente à pessoa do
devedor (art.º 401.º, n.º 3, CC), valendo esta regra igualmente para a impossibilidade
superveniente (art.º 791.º, CC). Sendo as prestações, em princípio, fungíveis, o seu
cumprimento pode ser efectuado por qualquer pessoa (art.º 767.º, n.º 1, CC), pelo que se
apenas o devedor estiver impossibilitado de prestar, este deve fazer-se substituir no
cumprimento da obrigação. Portanto, inexiste qualquer obstáculo à constituição da
obrigação se a impossibilidade for meramente subjectiva, exigindo-se uma impossibilidade
relativa ao objecto e não meramente à pessoa do devedor.
O objecto negocial não pode ser contrário a qualquer disposição que tenha carácter injuntivo
(art.os 280.º, n.º 1, e 294.º, CC), constituindo as normas injuntivas um importante limite à
autonomia privada, impondo a nulidade dos negócios que as contrariem.
A ilicitude do negócio pode ser de resultado ou de meios, consoante o negócio vise
objectivamente um resultado ilícito ou se proponha alcançar um resultado lícito através de
meios cuja utilização é proibida por lei, sendo, em ambos os casos, o negócio nulo (art.º
280.º, n.º 1, CC).
Menezes Cordeiro entende que não se deve confundir a ilicitude de resultado com a situação
em que apenas o fim subjectivo de quem celebra o negócio é ilícito, sendo que nestes casos
o negócio será nulo apenas quando o fim seja comum a ambas as partes (art.º 281.º, CC).
A prestação tem que ser determinável, sendo o negócio nulo quando o seu objecto for
indeterminável (art.º 280.º, CC), não se devendo confundir indeterminável com
indeterminado, pois é possível a constituição de uma obrigação com uma prestação ainda
indeterminada, desde que esta seja determinável.
Em caso de indeterminação da prestação, a sua determinação pode ser confiada a uma ou a
outra das partes ou a terceiro, devendo, em qualquer caso, ser feita segundo juízos de
equidade se outros critérios não tiverem sido estabelecidos (art.º 400.º, CC). No art.º 400.º a
referência a “juízos de equidade” não significa uma remissão para o mero arbítrio das partes
ou do terceiro, significando, antes, o mesmo que “juízos de razoabilidade”, tendo de ser
estabelecidos sobre uma base objectiva. Portanto, as partes ou o terceiro não poderão
determinar arbitrariamente a prestação, tendo antes de seguir critérios pré-estabelecidos de
adequação ao fim da obrigação e à prossecução do interesse do credor, pelo que o acto de
determinação da prestação consiste num acto jurídico simples, aplicando-se por analogia as
regras dos negócios jurídicos (art.º 295.º, CC).
No entanto, se do negócio não resultar qualquer critério que permita realizar a determinação
da prestação, esta terá necessariamente de ser considerado nulo por indeterminabilidade do
objecto (art.º 280.º, n.º 1, CC).
A prestação não pode ser contrária à ordem pública e aos bons costumes (art.º 280.º, n.º 2,
CC), tratando-se tal de uma remissão para conceitos indeterminados, cuja concretização
deve ser realizada pelo julgador. Segundo Menezes Cordeiro, esta concretização passa, em
matéria de bons costumes, pela referência às regras de conduta familiar e sexual, bem como
as regras deontológicas estabelecidas no exercício de certas profissões. Para o mesmo
Autor, a referência à ordem pública remete para os princípios fundamentais do ordenamento
jurídico, cuja contrariedade, ainda que não conste de norma expressa, implica a invalidade
do negócio.
Menezes Leitão aponta para que, em semelhança com a ilicitude da prestação, também
apenas o fim subjectivo das partes pode ser contrário à ordem pública ou aos bons costumes,
sendo o negócio, neste caso, nulo apenas quando o fim for comum a ambas as partes (art.º
281.º, CC).
Menezes Leitão entende que a obrigação é, no fundo, uma situação complexa, superando a
simples decomposição dos seus elementos principais como o direito à prestação e o dever
de prestar. Esta abrange ainda deveres secundários, acessórios, sujeições, poderes ou
faculdades e excepções, chamando-se a tal de “relação obrigacional complexa”.
A qualificação das obrigações naturais como obrigações é controversa. Estas são definidas
pelo art.º 402.º do Código Civil como as obrigações que se fundam “num mero dever de
ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a
um dever de justiça”. Assim, o que caracteriza a obrigação natural é a não exigibilidade
judicial da prestação, resumindo-se a sua tutela jurídica à possibilidade de o credor conservar
a prestação espontaneamente realizada (soluti retentio), à qual o art.º 403.º se refere. Exclui-
se, por conseguinte, a possibilidade de repetição do indevido (art.º 476.º, CC), salvo se o
devedor não tiver capacidade para realizar a prestação.
Se o devedor tiver capacidade para realizar a prestação e a efectuar espontaneamente – i.e.,
sem qualquer coacção – já não pode pedir a restituição do que prestou, mesmo que, por erro,
estivesse convencido da coercibilidade do vínculo (art.º 403.º, n.º 2, CC).
As obrigações naturais não são convencionáveis livremente pelas partes no exercício da sua
autonomia privada, pois tal equivaleria a uma renúncia do credor ao direito de exigir o
cumprimento, o que é proscrito pelo art.º 809.º. Portanto, apenas serão admissíveis as
obrigações naturais referentes a deveres de ordem moral ou social que correspondam a um
dever de justiça.
A lei determina como aplicável às obrigações naturais o regime das obrigações civis em tudo
o que não se relacione com a realização coactiva da prestação, salvo as excepções
legalmente previstas (art.º 404.º, CC). No entanto, Menezes Leitão considera que não será
aplicável às obrigações naturais o regime das fontes das obrigações, a estipulação de
garantias, a aplicação do regime do cumprimento e do não-cumprimento nem o regime da
prescrição.
Na Doutrina portuguesa, Guilherme Moreira, Galvão Telles e Antunes Varela consideram as
obrigações naturais como relações de facto às quais o direito atribui eficácia. No entanto, a
doutrina dominante, defendida por Manuel de Andrade, Vaz Serra, Almeida Costa, Menezes
Cordeiro, Ribeiro de Faria e Nuno Pinto de Oliveira defendem que as obrigações naturais são
verdadeiras obrigações jurídicas, diferindo o seu regime apenas pela lei não permitir a sua
execução.
Menezes Leitão considera que a obrigação natural não é uma verdadeira obrigação jurídica,
na medida em que nela não existe um vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fique
adstrita para com outra à realização da prestação (art.º 397.º, CC). Este Autor considera que
a existência de um dever moral e social correspondente a um dever de justiça é insuficiente
para se considerar subsistente na obrigação natural um vínculo jurídico, dado que é a própria
lei a negar-lhe a faculdade de exigir judicialmente o cumprimento e esta última é inseparável
do direito de crédito, daí a proibição legal à sua renúncia antecipada (art.º 809.º, CC).
Por outro lado, este Autor nota que nas obrigações civis o cumprimento da obrigação não
aumenta o património do credor, uma vez que o devedor se limita a solver um crédito que já
consistia um valor patrimonial no âmbito desse património. Na obrigação natural, o direito
de crédito, sem a faculdade de exigir o cumprimento, não tem conteúdo, não podendo
nunca, para Menezes Leitão, considerar-se como um valor no activo patrimonial do credor,
pelo que o cumprimento da obrigação natural representa um incremento do património do
credor natural à custa do património do respectivo devedor, levando a que a situação se
aproxime da doação, sem que tenha espírito de liberalidade.
Nas obrigações naturais inexiste consequentemente um direito primário à prestação, como
direito de crédito, limitando-se a lei a reconhecer causa jurídica à prestação realizada
espontaneamente, excluindo que o prestador possa vir a recorrer à prestação do indevido.
Portanto, para Menezes Leitão, a obrigação natural não parece qualificável como um dever
jurídico, mas antes como um dever oriundo de outras ordens normativas que, pelo facto de
corresponder a um dever de justiça, leva a que o direito atribua causa jurídica às atribuições
patrimoniais realizadas espontaneamente em seu cumprimento. Assim, o art.º 403.º, n.º 1,
não juridificando a obrigação natural, mas antes da tutela da aquisição pelo credor natural,
em consequência da prestação, à qual se atribui causa jurídica.
São prestações fungíveis aquelas em que a prestação pode ser realizada por outrem que não
o devedor, podendo este fazer-se substituir no cumprimento, enquanto que as prestações
infungíveis são aquelas em que só o devedor pode realizar a prestação, não sendo permitida
a sua realização por terceiro.
As prestações são, regra geral, fungíveis, podendo ser realizadas por terceiro, interessado
ou não no cumprimento da obrigação (art.º 767.º, n.º 1, CC). A prestação é, no entanto,
infungível (art.º 767.º, n.º 2, CC) quando a substituição do devedor no cumprimento prejudica
o credor (infungibilidade natural), ou quando se tenha acordado expressamente que a
prestação só pode ser realizada pelo devedor (infungibilidade convencional).
A fungibilidade da prestação tem uma importância especial para efeito da execução
específica da obrigação. Se a prestação for fungível, o credor pode, sem prejuízo para o seu
interesse, obter a realização da prestação por outra pessoa, às custas do devedor. Assim, se
a prestação consistir na entrega de coisa determinada, o credor pode requerer em execução
que a entrega lhe seja feita (art.º 827.º, CC), obtendo, por via executiva, a realização da
prestação de outrem, que não o devedor. Também se a prestação for de facto positivo pode,
se for fungível, se sujeita à execução específica, a qual consiste em requerer a realização por
outrem da actividade que o devedor se tinha comprometido a realizar (art.º 828.º, CC), sendo
que se se tratar de prestação de facto negativo ocorre um fenómeno semelhante. Mesmo
que a prestação consista numa actividade jurídica, é admissível a sua substituição no
cumprimento, mediante emissão pelo tribunal de sentença com os mesmos efeitos do
contrato prometido (art.º 830.º, CC).
Se a prestação for infungível, a substituição do devedor já não é possível, pelo que a lei não
admite a execução específica da obrigação. No entanto, é admissível em alguns casos a
aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, visando coagir o devedor a cumprir a
obrigação (art.º 829.º-A, CC), estando também sujeitas a um regime específico em caso de
impossibilidade da prestação, uma vez que nelas a impossibilidade relativa à pessoa do
devedor acarreta mesmo a extinção da obrigação, em virtude de não ser admitia a sua
substituição no cumprimento (art.º 791.º, CC).
São prestações instantâneas aquelas cuja execução ocorre num único momento, enquanto
que as prestações duradoura são aquelas cuja execução se prolonga no tempo, em virtude
de terem por conteúdo um comportamento prolongado no tempo ou uma repetição
sucessiva de prestações isoladas por um período de tempo.
Para uma prestação ser caracterizada como duradoura a sua realização global tem que
depender sempre do decurso de um período temporal, durante o qual a prestação deve ser
continuada ou repetida. Pode-se distinguir neste âmbito entre prestações duradouras
continuadas ou periódicas. Nas prestações duradouras continuadas a prestação não sofre
qualquer interrupção, enquanto que nas prestações duradouras periódicas a prestação é
sucessivamente repetida em certos períodos de tempo, tendo em comum, porém, o facto
desta aumentar em função do decurso do tempo.
Por outro lado, as prestações instantâneas não têm o seu conteúdo ou extensão delimitados
em função do tempo, sendo classificáveis em prestações instantâneas integrais ou
fraccionadas. As prestações instantâneas integrais são aquelas realizadas de uma só vez,
enquanto que as prestações instantâneas fraccionadas são aquelas em que o seu montante
global é dividido em várias fracções.
As prestações instantâneas fraccionadas são distinguíveis das prestações duradouras
periódicas pelo facto de se estar, nas primeiras, perante uma única obrigação cujo objecto é
dividido em fracções, com vencimentos intervalados, havendo sempre uma definição prévia
do seu montante global e o decurso do tempo não influi no conteúdo e extensão da
prestação, mas apenas no seu modo de realização. Nas prestações duradouras periódicas,
verifica-se, pelo contrário, uma pluralidade de obrigações distintas, embora emergentes de
um vínculo fundamental que sucessivamente as origina, pelo que, por definição, não pode
haver qualquer fixação inicial do seu montante global, já que é o decurso do tempo que
determina o número de prestações que é realizado.
Portanto, a distinção entre as prestações duradouras e as instantâneas baseia-se no facto
do decurso do tempo determinar o conteúdo da obrigação nas primeiras, dado que mesmo
nas prestações instantâneas fraccionadas, o decurso do tempo não influi no conteúdo da
obrigação, determinando apenas o seu vencimento (art.º 805.º, n.º 2, alínea a), CC). Pelo
contrário, nas prestações duradouras, contínuas ou periódicas, o decurso do tempo influi no
conteúdo e extensão da obrigação, pelo que a extinção ou alteração do contrato antes do
decurso do prazo implica a não constituição ou alteração da prestação relativa ao tempo
posterior.
As prestações duradouras implicam a atribuição de um regime especial de extinção aos
contratos que as incluem, sendo que o facto de estes se poderem prolongar no tempo implica
que a lei deva assegurar também alguma limitação à sua duração, sob pena da liberdade
económica das partes poder ficar seriamente comprometida.
Portanto, a lei tem de assegurar uma delimitação temporal aos contratos de execução
duradoura, o que é realizado através do acordo prévio das partes fixando um limite temporal
ao contrato – caso em que o decurso do tempo importa a extinção do contrato por
caducidade – ou, quando isso não sucede, através do instituto da denúncia do contrato. A
denúncia do contrato é um instituto típico dos contratos de execução duradoura,
caracterizando-se por permitir, quando as partes não houverem fixado a duração do
contrato, que qualquer delas proceda à sua extinção para o futuro, através de um negócio
jurídico unilateral receptício. Assim, se alguém celebrar um contrato de execução duradoura,
o contrato pode manter-se durante um certo lapso de tempo, não vigorando ilimitadamente,
uma vez que ambas as partes têm o direito de o denunciar para o futuro.
Se forem celebrados por tempo indeterminado, os contratos de execução duradoura
podem, assim, ser denunciados pelas partes. Se não o forem, a aplicação da resolução dos
contratos não está excluída, exigindo-se, no entanto, fundamentos específicos,
correspondentes à inexigibilidade de manutenção por mais tempo do vínculo contratual.
Ainda assim, o regime da resolução dos contratos de execução duradoura sofre um desvio à
regra geral, sendo que enquanto que a resolução do contrato tem geralmente eficácia
retroactiva (art.º 434.º, n.º 1, CC), nos contratos de execução duradoura esta não abrange as
prestações já executadas, salvo se entre elas e a causa de resolução existir um vínculo que
legitime a resolução de todas elas (art.º 434.º, n.º 2, CC).
Os contratos de execução duradoura caracterizam-se também pelo facto de nestes
vigorarem com maior intensidade os deveres acessórios, pelo facto de se tratarem de
relações que, atendendo à sua duração, pressupõem uma intensa relação de confiança e
colaboração entre as partes, pressupondo uma aplicação mais intensa do princípio da boa-fé
e dos deveres acessórios de protecção, informação e lealdade em ordem a manter uma
permanente confiança recíproca e entendimento mútuo no âmbito daquele contrato. Disto
decorre que, se alguma das partes vier a lesar a confiança da outra, mesmo que não
incumprindo uma prestação recíproca, a parte lesada tem o direito de resolução do contrato,
com fundamento em justa causa.
Obrigações genéricas
O art.º 539.º define as obrigações genéricas como aquelas em que o objecto da prestação se
encontra apenas determinado quanto ao género, significando isto que a prestação se
encontra determinada apenas por referência a uma certa quantidade, peso ou medida de
coisas dentro de um género, mas não estão ainda concretamente determinados quais os
espécimes daquele género que vão servir para o cumprimento da obrigação.
Pelo contrário, as obrigações específicas são aquelas em tanto o género como os espécimes
da prestação se encontram determinados.
As obrigações genéricas são bastante comuns no comércio, ocorrendo quase sempre que se
efectua uma negociação sobre coisas fungíveis, não consistindo necessariamente, no
entanto, o seu objecto neste tipo de coisas. Enquanto que a classificação entre coisas
fungíveis e infungíveis se relaciona com a sua consideração usual no tráfego, a classificação
entre obrigações genéricas e específicas resulta do acordo das partes. Portanto, é possível
que coisas infungíveis sejam objecto de obrigações genéricas.
O facto da obrigação ser genérica implica diferenças de regime, tendo que ocorrer um
processo de individualização dos espécimes dentro do género, sendo este a escolha que
pode caber, nos termos gerais, a ambas as partes ou a terceiro (art.º 400.º, CC). A regra nas
obrigações genéricas é a de que a escolha cabe ao devedor (art. 539.º, CC), devendo este,
para Menezes Cordeiro, entregar uma coisa de classe e qualidade média, invocando este
ilustre Autor o regime da integração dos negócios jurídicos segundo os ditames da boa-fé
(art.º 239.º, CC). No entanto, para Menezes Leitão, esta solução decorre do art.º 400.º que,
ao estabelecer que a determinação da prestação deve ser adequada à satisfação do interesse
do credor, o que não ocorrerá se a prestação for exclusivamente determinada com coisas de
qualidade inferior.
A indeterminação inicial da obrigação genérica coloca o problema da averiguação do
momento em que tem lugar a transferência da propriedade sobre as coisas que vão servir
para o cumprimento da obrigação, o que releva para efeitos de risco, dado que a regra é a de
que o perecimento da coisa corre por conta do seu proprietário (res perit domino, cfr. art.º
796.º, CC). Na obrigação genérica a transferência da propriedade não pode ocorrer no
momento da celebração do contrato, conforme resulta genericamente do art.º 408.º, n.º 1,
relativamente às coisas determinadas. Um direito real só pode ter por objecto coisas
corpóreas e determinadas, pelo que um direito a uma quantidade de coisas a escolher de
certo género seria sempre qualificado como um direito de crédito. Portanto, é sempre
necessária a determinação da prestação para obter a transferência da propriedade,
operando esta transferência apenas quando a coisa é determinada com o conhecimento de
ambas as partes.
No entanto, as obrigações genéricas têm um regime especial, transmitindo-se a
propriedade – e o risco a ela associada – no momento da concentração da obrigação, i.e.,
quando a obrigação passa de genérica a específica, não se exigindo que seja conhecida de
ambas as partes.
Existem três teorias relativas à determinação do momento da concentração da obrigação:
i. Teoria da escolha – defendida por Thöl;
ii. Teoria do envio – defendida por Puntschart;
iii. Teoria da entrega – defendida por Jhering.
Segundo a teoria da escolha, a concentração da obrigação genérica ocorre logo no
momento em que o devedor procede à separação dentro do género das coisas que pretende
usar para o cumprimento da obrigação. Nesse momento, o devedor já teria procedido à
escolha das coisas dentro do género, pelo que a obrigação deixaria de ser genérica e passaria
a considerar-se específica. Assim, ocorrendo posteriormente o perecimento destas coisas,
esse risco correria por conta do credor e o devedor não seria obrigado a entregar outras
coisas do mesmo género.
Segundo a teoria do envio, a simples separação não basta para a concentração da obrigação
genérica, exigindo-se antes que o devedor proceda ao envio para o credor das coisas com
que pretende cumprir a obrigação. Neste caso, logo que as coisas saem do domicílio do
devedor a obrigação genérica concentrar-se-ia, pelo que o risco do seu perecimento durante
o transporte correria por conta do credor.
Finalmente, segundo a teoria da entrega, a concentração da obrigação genérica só ocorreria
com o cumprimento da obrigação, só nesse momento se efectuando a transferência do risco
para o credor. Consequentemente, qualquer perecimento da coisa que ocorresse
anteriormente a esse momento correria por conta do devedor.
A lei portuguesa consagrou relativamente à concentração das obrigações genéricas por
escolha do devedor como regra geral a teoria da entrega de Jhering. Enquanto a prestação
for possível com coisas do género estipulado o devedor não fica exonerado pelo facto de
terem perecido aquelas com que se dispunha a cumprir (genus nanquam perit), consagrando-
se a irrelevância geral da escolha ou do envio para efeitos de concentração da obrigação
genérica (art.º 540.º, CC).
Se o devedor continua a ter que entregar coisas do mesmo género, tal significa que a
obrigação genérica ainda não se concentrou, ocorrendo tal apenas, regra geral, com o
cumprimento, sendo esse também o momento da transferência da propriedade sobre as
coisas objecto da obrigação genérica, dado que a transmissão da propriedade das coisas
genéricas exige a sua concentração (art.º 408.º, n.º 2, CC), o que normalmente apenas ocorre
mediante a entrega pelo devedor (art.º 540.º, CC). A lei admite, no entanto, certos casos em
que, embora cabendo a escolha ao devedor, a obrigação se concentra antes do cumprimento
(art.º 541.º, CC), sendo estas o acordo das partes, o facto de o género se extinguir a ponto de
restar apenas uma – ou, mais precisamente, a quantidade devida – das coisas nele
compreendidas, o facto do credor incorrer em mora e a promessa de envio do art.º 797.º.
Para Menezes Cordeiro, a norma do art.º 541.º documenta cedências do legislador às teorias
da escolha e do envio, pelo que, neste caso, o legislador se teria desviado da teoria da
entrega, discordando Menezes Leitão de tal asserção.
Este último Autor entende que a possibilidade do acordo das partes afastar a regra geral da
concentração da obrigação genérica no momento do cumprimento trata-se de um contrato
modificativo da obrigação, através do qual as partes substituem uma obrigação genérica por
uma específica. No tocante à situação de o género se extinguir ao ponto de restar apenas a
quantidade de coisas que o devedor deve prestar, este Autor entende que a concentração
ocorre por mero facto da natureza, inexistindo um desvio à regra geral. Se as coisas
sobrantes também desaparecessem, deixaria a prestação de ser possível com coisas do
género estipulado, pelo que o devedor estaria sempre exonerado em virtude da
impossibilidade da prestação (cf. art.º 790.º, CC).
No caso da mora do credor (cf. art.º 813.º, CC), ocorre nesta situação que este último, sem
motivo justificado, recusa receber a prestação ou não pratica os actos necessários ao
cumprimento da obrigação, determinando a lei que, neste caso, a obrigação genérica se
concentra, correndo o risco de perecimento destas coisas por conta do credor, entendendo
Menezes Leitão que esta regra especial se trata de uma ficção estabelecida para estender a
aplicação às obrigações genéricas do regime do art.º 814.º, n.º 1, fazendo recair sobre o
credor em mora os riscos do perecimento superveniente das coisas com que se dispunha a
prestar. No entanto, a obrigação permanece genérica se o devedor, perante a mora do
credor, proceder à consignação em depósito de coisas do mesmo género que não sejam
aquelas que o credor recusou, ninguém consideraria que a consignação não se fez em relação
à coisa devida (art.º 841.º, CC), pelo que se o credor posteriormente abandonar a sua
situação de mora, não pode recusar a entrega pelo devedor de outras coisas do mesmo
género que não sejam as inicialmente oferecidas.
No caso da promessa de envio referida no art.º 797.º, inexiste, para Menezes Leitão, uma
hipótese sequer de concentração da obrigação genérica antes do cumprimento. A norma em
análise não se refere às dívidas em que o devedor se compromete a levar ou a entregar a
coisa até ao local do cumprimento, suportando até então o risco do transporte, referindo-se
apenas às denominadas dívidas de enviou ou de remessa, em que o devedor não se
compromete a transportar a coisa até ao local do cumprimento, mas apenas a, no local do
cumprimento, colocar a coisa num meio de transporte destinado a outro local. Assim, essas
obrigações cumprem-se no próprio local de envio ou da remessa, ficando a obrigação extinta
nesse momento em virtude do cumprimento. O facto do credor ainda não ter recebido a
prestação é irrelevante, uma vez que o cumprimento pode ser realizado a terceiro se assim
tiver sido estipulado ou consentido pelo credor (cf. art.º 770.º, al a), CC).
Assim, para Menezes Leitão, a concentração da obrigação genérica, quando a escolha
compete ao devedor, apenas se dá no momento do cumprimento, podendo até lá o devedor
revogar escolhas que anteriormente tenha realizado, apenas não sucedendo tal se este tiver
perdido a possibilidade material de o fazer (perecimento das restantes coisas do género), ou
se a escolha tiver sido aceite, o que significa que as partes por acordo modificaram a
obrigação, transformando-a em específica. Inexistem, assim e para este Autor, desvios à
consagração da teoria da entrega no art.º 540.p, como soluções próximas da teoria da
escolha ou do envio, pois a mora do credor não deve impedir a realização de nova escolha
pelo devedor até ao cumprimento e na promessa de envio referida no art.º 797.º é de
verdadeiro cumprimento que se trata.
No entanto, quando as escolhas competem ao credor ou a terceiro, a lei adopta plenamente
a teoria da escolha, sendo esta irrevogável (art.º 542.º, CC). Portanto, a escolha pelo credor
ou terceiro concentra imediatamente a obrigação, desde que declarada respectivamente ao
credor ou a ambas as partes. Se, no entanto, a escolha couber ao credor e este não a fizer
dentro do prazo estabelecido ou daquele que para o efeito que for fixado pelo devedor, é a
este que a escolha passa a competir (art.º 542.º, n.º 2, CC), passando, neste caso, a ser
aplicáveis as disposições dos artigos 540.º e 541.º, como se a escolha coubesse ao devedor
desde o início.
Obrigações alternativas
Obrigações pecuniárias
Obrigações de juros
Uma situação específica que pode ocorrer nas obrigações respeita à possibilidade de
indeterminação do credor, podendo este não ficar determinado no momento em que a
obrigação é constituída, embora deva ser determinável, sob pena de nulidade do negócio
jurídico de que resulta a obrigação (art.º 511.º, CC). No entanto, o devedor é
obrigatoriamente determinado no momento em que a obrigação é constituída.
A indeterminação temporária do devedor pode resultar de se aguardar a verificação de um
facto futuro e incerto, ou em virtude de a ligação entre o credor e a relação obrigacional se
apresentar como indirecta ou mediata, sendo essa qualidade determinada através de uma
relação de natureza diferente.
Obrigações plurais
Existem obrigações plurais que tem como objecto uma prestação indivisível, tratando-se,
neste caso, de obrigações plurais indivisíveis. Neste caso, “se a prestação for indivisível e
vários os devedores, só de todos eles pode o credor exigir o cumprimento da obrigação, salvo
se tiver sido estipulada a solidariedade ou esta resultar da lei” (art.º 535.º, CC). Portanto, a
prestação tem de ser exigida de todos os devedores simultaneamente.
Nas obrigações indivisíveis com pluralidade de devedores, extinguindo-se relativamente a
algum ou alguns dos obrigados, não inibe o credor de exigir a prestação dos restantes
obrigados, contanto que lhes entregue o valor da parte que cabia ao devedor ou devedores
exonerados (art.º 536.º, CC). Ou seja, apesar da indivisibilidade da prestação, o facto de ela
se extinguir relativamente a algum ou alguns dos devedores não acarreta necessariamente
a sua extinção integral, sendo admitido um acréscimo da responsabilidade dos restantes
obrigados, desde que seja previamente compensado por uma contraprestação de entrega
do valor da parte do devedor ou devedores exonerados.
Se ocorrer uma impossibilidade superveniente da prestação imputável a algum ou alguns
dos devedores, os restantes ficam exonerados (art.º 537.º, CC), devendo aquele ou aqueles à
qual esta é imputável ser sujeito à indemnização por impossibilidade culposa (art.º 801.º, n.º
1, CC). Relativamente aos restantes devedores, derivando a impossibilidade de uma causa
que não lhes é imputável, deverão ver extinta a sua obrigação (art.º 790.º, CC).
Se a obrigação for indivisível com pluralidade de credores, a lei refere que qualquer um deles
tem o direito de exigir a prestação por inteiro, mas que o devedor, enquanto não for
judicialmente citado, só relativamente a todos os credores em conjunto se pode exonerar
(art.º 538.º, CC). Segundo Menezes Cordeiro, este regime significa que a citação judicial do
devedor por um dos credores transforma a obrigação conjunta em solidária, apontando
Menezes Leitão para o facto de que a extinção da obrigação relativamente a algum ou alguns
dos credores implica a aplicação analógica do art.º 536.º, podendo os restantes credores
exigir a prestação do devedor apenas se lhe entregarem o valor da parte que cabia à parte do
crédito que se extinguiu.
As obrigações correais caracterizam-se por, embora havendo uma pluralidade de devedores
ou de credores, quer a obrigação quer o direito de crédito apresentam-se como unos, pelo
que, ao contrário das restantes obrigações plurais, o crédito não se pode extinguir apenas
em relação a um dos devedores, ou a um dos credores, extinguindo-se antes globalmente
sempre que ocorra uma circunstância extintiva que afecte um dos sujeitos da obrigação.
As obrigações disjuntas correspondem a obrigações de sujeito alternativo, ou seja, em que
existe uma pluralidade de devedores ou credores, mas apenas um virá, por escolha, a ser
designado sujeito da relação obrigacional. Ao contrário do que ocorre nas obrigações
alternativas, a escolha não se coloca neste caso em relação a várias prestações, mas em
relação aos sujeitos a obrigação, vindo posteriormente um de entre vários, a ser designado
como devedor ou credor.
As obrigações em mão comum correspondem a situações, em que apesar de ocorrer uma
pluralidade de partes da relação obrigacional, essa pluralidade resulta da pertença da
obrigação a um património de mão comum autonomizado do restante património das
partes, o que leva a que o vínculo se estabeleça de uma forma colectiva, onerando o conjunto
de devedores com o dever de prestar ou o conjunto de credores com o direito à prestação.
Os contratos – generalidades
Os negócios jurídicos costumam ser distinguidos em unilaterais, que são os que possuem
apenas uma parte, e contratos, que são os que possuem duas ou mais partes. Normalmente,
o contrato possui apenas duas partes, sendo, por isso, designado de negócio jurídico
bilateral, podendo, no entanto, ocorrer que o contrato tenha cariz multilateral quando tiver
mais que duas partes.
Na definição tradicional entende-se por parte, não uma pessoa, mas antes o titular de um
interesse, o que poderia implicar que duas ou mais pessoas constituíssem uma única parte,
quando tivessem interesses comuns. Daí a exigência de uma contraposição de interesses, na
autoria das declarações negociais, contraposição essa que seria resolvida através
precisamente da estipulação contratual. Portanto, o contrato consistiria, para Antunes
Varela, “num acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta
ou proposta, de um lado; aceitação do outro) contrapostas, mas perfeitamente
harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses”
ou que nele existe, segundo Almeida Costa, “a manifestação de duas ou mais vontades, com
conteúdos diversos, prosseguindo distintos interesses e fins, até opostos, mas que se
ajustam reciprocamente para a produção de um resultado unitário”.
No entanto, a classificação clássica das partes em função dos interesses foi criticada não
apenas por apelar a uma realidade extra-jurídica, mas também porque os vários
intervenientes num negócio unilateral podem ter interesses diversos, sem prejuízo da sua
posição comum.
Menezes Cordeiro vem propor, em alternativa, que a distinção entre negócios unilaterais e
contratos se baseia nos efeitos que venham a ser desencadeados, sendo que “nos negócios
unilaterais os efeitos não diferenciam as pessoas que eventualmente neles tenham
intervindo, pelo que tende neles a haver uma única pessoa, uma única declaração ou um
único interesse”. Pelo contrário, nos contratos “os efeitos diferenciam duas ou mais pessoas,
isto é: fazem surgir, a cargo de cada interveniente, regras próprias que devem ser cumpridas
e possam ser violadas independentemente umas das outras; em moldes formais, há mais
que uma parte; e em consequência, tendem a surgir várias declarações, várias pessoas e
vários interesses”.
Para Menezes Leitão, a distinção entre contratos e negócios jurídicos unilaterais reside no
facto do primeiro se assumir como o resultado de duas ou mais declarações negociais
contrapostas, mas integralmente concordantes entre si, de onde resulta uma unitária
estipulação de efeitos jurídicos, enquanto que os negócios jurídicos unilaterais produzem
efeitos apenas com uma declaração negocial.
Na tradição romana, a eficácia dos contratos consensuais era solo consensu, i.e., pelo mero
acordo entre as partes, fosse qual fosse o modo por que ele se manifestasse. No entanto, os
contratos reais exigiam a entrega da coisa visada.
Esta distinção tem, em regra, o seguinte conteúdo no Direito actual:
a. Os contratos consensuais não exigem qualquer forma específica, bastando que as
declarações de vontade que os integrem se manifestem de modo mutuamente
compreensível;
b. Os contratos formais requerem que as declarações em causa se exteriorizem por via
pré-determinada legalmente;
c. Os contratos reais (quoad constitutionem) implicam, além das declarações de vontade
(consensuais ou formais, dependendo do caso), a entrega de uma coisa.
O Direito romano era bastante formalista, sendo que este veio a regredir ao longo dos
tempos, mantendo-se, no entanto, em alguns negócios, devendo-se tal à solenidade, ligada
à vantagem de dar publicidade a certas ocorrências, à reflexão, promovida junto das partes,
à facilidade de prova, devida aos documentos e pelas memórias que fiquem dos actos
celebrados. No entanto, ainda que relevem as “razões justificativas” (art.os 221.º, n.º 2, e
238.º, n.º 2, CC), elas nem sempre são racionais, em virtude da sua dissociação com os
valores em jogo.
A regra geral é a de que, quando a lei nada disser, os contratos são consensuais (art.º 219.º,
CC), sendo esta norma entendida como uma extensão do princípio da autonomia privada.
A forma legal, ou seja, aquela que é exigida pela lei, para determinado negócio, é exigida
apenas para o cerne ou “núcleo contratual fundamental”, ficando as estipulações acessórias
incluídas nessa forma quando assumam uma delicadeza ou uma feição semelhante ao núcleo
(as “razões da exigência especial”, cfr. art.º 221.º, n.os 1 e 2, CC), aplicando-se a fortiori esta
regra a contratos subsequentes, modificativos ou extintivos do primeiro. Quando as
estipulações acessórias forem anteriores ao contrato ou dele contemporâneas, elas só valem
se se provar que correspondem à vontade das partes, no momento da contratação formal
(art.º 221.º, n.º 1, CC).
Quando forma for voluntária, ou seja, quando for adoptada pelos contratantes, embora
dispensada por lei e por convenção, as estipulações acessórias valem quando se mostre que
correspondem à vontade das partes (art.º 222.º, n.º 1, CC), sendo que o abandono da forma
convencional pode resultar, tacitamente, da conduta das partes com ela incompatível.
Quando a forma for convencional, ou seja, pactuada, pelas partes, em acordo a tanto
dirigido, as estipulações acessórias que não a observem não serão, em princípio, aplicáveis,
em virtude da presunção (ilidível, art.º 350.º, n.º 2, CC) de que as partes só por esse modo se
quiseram vincular.
No tocante aos contratos mistos que, no seu seio, alberguem elementos contratuais sujeitos
a forma solene, ocorre que a “parcela” não submetida à forma, seja ela legal, voluntária ou
convencional, seja considerada, para efeito das competentes regras, como “estipulação
acessória”. No entanto, quando do conjunto do contrato, pela sua natureza, não seja nele
possível o discernimento de várias áreas, a exigência de forma para uma delas contamina o
conjunto.
O contrato nominado tem uma designação própria (um nomen ou nome), fixado na lei. O
inominado não a tem: ou dispõe de uma denominação habitual, na gíria do sector ou entre
os juristas, ou é referenciado através de perífrases.
Nos seus contratos, as partes recorrem, geralmente, a denominações. O uso de um nomen
comum pode significar a vontade de ambas de remeter para o correspondente regime. Será,
no entanto, necessária uma verificação casuística, recorrendo às regras da interpretação,
prevalecendo o regime, de todo o modo, sobre as (meras) qualificações das partes, as quais
podem estar erradas.
São contratos típicos aqueles cujas cláusulas nucleares constem da lei, sucedendo tal
normalmente em torno de um nomen iuris, pelo que os contratos típicos tendem a ser
nominados. O tipo é, assim, o núcleo legalmente regulado.
Os contratos atípicos, pelo contrário, resultam do exercício da autonomia privada, sendo o
tipo, por seu turno, o conjunto concatenado das regras legais aplicáveis ao contrato visado,
o qual apresenta uma lógica interna.
A par dos tipos contratuais legais, tem-se, ainda, tipos sociais, ou seja, encadeamentos de
cláusulas habitualmente praticadas em determinados sectores, em regra dotados de
designação própria e que, mau grado a não formalização em lei, traduzem composições
equilibradas e experimentadas. Não obstante a ausência de regulação pelo legislador, o tipo
social pode funcionar em moldes paralelos ao tipo legal, evitando este, às partes, o terem de
se repetir em lugares comuns, ao mesmo tempo que afeiçoa as soluções historicamente mais
equilibradas.
Os tipos sociais são, com frequência, alvo de pequenas codificações, feitas em cláusulas
contratuais gerais, havendo, então, que proceder ao seu controlo material através da LCCG.
Os contratos obrigacionais apenas produzem efeitos no plano das obrigações, enquanto que
os contratos reais quoad effectum constituem, modificam ou extinguem direitos reais.
Os contratos reais quoad effectum situam-se, em regra, na jurisdição da compra e venda, da
doação, e, em alguns casos, da sociedade. Os contratos com eficácia real quoad effectum
tendem a ser mais formais e a apresentar uma maior rigidez em virtude de modificarem
situações jurídicas reais, sujeitas a uma tipicidade legal.
Nada impede às partes de inserirem, num contrato, elementos obrigacionais e reais quoad
effectum.
O contrato comum estabelece uma regulação básica, de âmbito genérico, sobre a qual se
pode firmar uma regulação mais especializada, em função de interesses ou vectores
sectoriais, tratando-se, nesse caso, de um contrato especial.
A duplicação de contratos, em comuns e especiais, é de regra quando exista um Direito
comercial autónomo, dado que todo este será Direito privado especial. A autonomização de
algumas províncias comerciais poderá também ditar o surgimento de novas especialidades.
No entanto, a duplicação de contratos em comum e especial também ocorre dentro do
Direito civil.
Num contrato ocorre, geralmente, a produção de efeitos perante as duas partes, as quais
devem respeitá-los. Tal ocorre mesmo nos contratos gratuitos, v.g. doação, em que as partes
ficam envolvidas em prestações secundárias e deveres acessórios.
Em certos casos, todavia, apenas uma das partes fica vinculada, dispondo a outra do direito
potestativo de desencadear, para ambas os efeitos contratuais, v.g. “promessa unilateral”
(art.º 411.º, CC).
Os contratos monovinculantes são claramente diferentes dos não-sinalagmáticos, os quais
fixam um regime relevante entre as partes, sem inserir, uma delas, na posição potestativa de
tudo desencadear. Ocorre também que um contrato sinalagmático pode depender da mera
vontade de uma das partes, v.g. opção de compra.
No entanto, Menezes Leitão entende que é impossível a autonomização de uma
classificação dos contratos em monovinculantes ou bivinculantes, entendendo este Autor
que “dizer que só uma das partes tem uma obrigação ou dizer que só uma das partes está
vinculada é, no fundo, dizer exactamente a mesma coisa”.
Menezes Cordeiro aponta para que, no verdadeiro contrato gratuito, a vontade livre do
sacrificado manifestou-se pela intenção de dar – o animus donandi – sendo a presença deste
factor condição sine qua non para a aplicação das regras próprias das liberalidades. Tal
aspecto é da maior importância pois o Direito não admite, em certas condições,
desequilíbrios excessivos entre as posições das partes, ocorrendo que, no surgimento de um
contrato gratuito, desejado como tal (animus donandi), o desequilíbrio é justo e admissível.
Os contratos gratuitos têm um relevo social e económico considerável, dando corpo a
manifestações de solidariedade, fundamentais para a coesão ética e social de qualquer
comunidade.
Contratos mistos
É contrato misto aquele que envolve regras próprias de um tipo contratual e regras que lhe
sejam estranhas, seja por pertencerem a um tipo diverso, seja por não caberem em qualquer
tipo. Os contratos mistos são, por conseguinte, contratos atípicos lato sensu.
Os contratos atípicos stricto sensu são aqueles cuja regulação nada tenha a ver com qualquer
tipo legal.
A união de contratos
Deve distinguir-se dos contratos mistos a figura da união de contratos. No contrato misto,
ainda que se recolham elementos de vários tipos contratuais, estes elementos dissolvem-se
para formar um contrato único. Na união de contratos, pelo contrário, essa dissolução não
ocorre, verificando-se antes a celebração conjunta de diversos contratos, unidos entre si.
Assim, a união de contratos permite que cada contrato mantenha a sua autonomia,
possibilitando a sua individualização em face do conjunto, existindo, no entanto, um nexo
entre os vários contratos.
Admitem-se as seguintes formas de união de contratos:
i. União externa;
ii. União interna;
iii. União alternativa.
Ocorre uma união externa quando a ligação entre os diversos contratos resulta apenas da
circunstância de serem celebrados ao mesmo tempo, já que as partes não estabeleceram
qualquer nexo de dependência entre os diversos contratos.
Na união interna, pelo contrário, os dois contratos apresentam-se ligados entre si por uma
relação de dependência, já que na altura da sua celebração, uma das partes estabeleceu que
não aceitaria celebrar um dos contratos sem o outro. Esta dependência pode ser unilateral
quando apenas um dos contratos depende do outro, ou bilateral, quando ambos os contratos
se encontram dependentes entre si. Em qualquer caso, as partes querem um dos contratos,
ou ambos, como associados economicamente, pelo que a validade e a vigência de um ou
ambos dos contratos ficará dependente da validade e vigência do outro.
Na união alternativa, as partes declaram pretender ou um ou outro contrato, consoante
ocorrer ou não a verificação de determinada condição. A verificação da condição implica
assim a produção de efeitos de um dos contratos, ao mesmo tempo que exclui a produção
de efeitos do outro. Os contratos encontram-se, por isso, numa fase inicial unidos entre si,
mas essa união é meramente ocasional e virá a ser resolvida a favor da permanência de
apenas um dos contratos.
Não sendo a única fonte das obrigações, o contrato é a mais importante entre todas elas.
No entanto, o contrato não se limita a constituir, modificar e extinguir relações
obrigacionais, nascendo dele também relações jurídicas familiares, direitos sucessórios e
direitos reais.
A regra geral, no tocante à constituição e transferência de direitos reais, é a da sua
verificação por mero efeito do contrato (art.º 408.º, CC).
Assim, se for celebrado um contrato de compra e venda, este imporá ao vendedor a
obrigação de entregar a coisa (art.º 879.º, CC), sendo que, ao mesmo tempo, por força da
regra geral do art.º 408.º, a celebração do contrato transfere, desde logo, do vendedor para
o comprador, o domínio sobre a coisa.
Aos contratos com semelhante efeito chamam-se contratos com eficácia real ou contratos
reais quoad effectum.
A celebração de contrato com sinal, tendo íntima ligação com o contrato-promessa, não se
confunde com este.
O sinal consiste na coisa que um dos contraentes entrega ao outro, no momento da
celebração do contrato ou em momento posterior, como prova da seriedade do seu
propósito negocial e garantia do seu cumprimento (sinal confirmatório) ou como
antecipação da indemnização devida ao outro contraente, na hipótese de o autor do sinal se
arrepender do negócio e voltar atrás (sinal penitencial), podendo a coisa entregue coincidir
ou não com o objecto da prestação devida ex contractu.
O contrato-promessa é uma convenção autónoma, enquanto que a constituição de sinal é
uma cláusula dependente de um outro negócio, no qual se insere, podendo este último
acompanhar tanto um contrato-promessa, como um contrato definitivo.
No contrato-promessa em que um dos contraentes entregue ao outro qualquer quantia em
dinheiro ou alguma coisa, mesmo que a coisa coincida no todo ou em parte com a prestação
correspondente ao contrato prometido, a entrega tanto pode representar a constituição do
sinal como uma antecipação de pagamento, consoante as circunstâncias.
Na promessa de compra e venda presume-se, até prova do contrário, que reveste o sentido
de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda
que declaradamente a título de antecipação ou princípio de pagamento.
No caso de, sem que o contrato-promessa tenha eficácia real, uma acção de execução
específica julgada procedente que tenha sido registada pelo seu autor, esta sentença é
oponível a terceiros, desde que a sentença favorável venha a ser registada.
O registo da sentença que julgue definitivamente procedente a acção de execução
específica baseada em contrato-promessa de venda de coisa imóvel, destituída de eficácia
real, tem os seguintes efeitos:
a. O direito do promitente-adquirente, convertido em adquirente pela sentença de
procedência da acção, prevalece evidentemente, pela publicidade que o registo
conferiu à acção, sobre o direito de todos os promitentes-adquirentes baseados em
contratos-promessa de data posterior, quer estes tenham, quer estes não tenham
eficácia real;
b. A prevalência do registo da sentença favorável ao promitente-adquirente estende-se
ao próprio registo da transmissão efectuada pelo promitente-vendedor a terceiro,
depois de registada a acção de execução específica, por duas razões: primeiro,
porque o registo da acção, embora provisório por natureza, tornou pública a
pretensão do promitente, alertando, por conseguinte, qualquer futuro adquirente
contra o perigo decisivo da sua aquisição; segundo, porque, de outro modo, o
promitente-vendedor, depois de demandado na acção de execução específica, teria
sempre um meio fácil de inutilizar o efeito principal da procedência da acção,
alienando entretanto o imóvel a terceiro;
c. A prevalência do registo da sentença favorável ocorre sobre terceiro que houver
adquirido antes da propositura de acção de execução específica quando esta última
for julgada procedente antes do terceiro adquirente proceder ao registo da aquisição.
Sinal
O regime do contrato-promessa deve ser articulado com o regime do sinal, o qual consiste
numa cláusula acessória dos contratos onerosos, mediante a qual uma das partes entrega à
outra, por ocasião da celebração do contrato, uma coisa fungível, que pode ter natureza
diversa da obrigação contraída ou a contrair. O sinal funciona, nesse caso, como fixação das
consequências do incumprimento, uma vez que se a parte que constituiu o sinal deixou de
cumprir a sua obrigação, a outra parte tem o direito de fazer sua a coisa entregue. Se o não
cumprimento partir de quem recebeu o sinal, este tem que o devolver em dobro (art.º 442.º,
n.º 2, primeira parte, CC).
No entanto, se se verificar o cumprimento do contrato, a coisa entregue deve ser imputada
na prestação devida – valendo, então, como princípio de pagamento – ou restituída, caso
essa imputação não seja possível (art.º 442.º, n.º 1, CC).
Para Menezes Leitão, o sinal representa um caso típico de datio rei, transmitindo-se a
propriedade com uma função confirmatória-penal, podendo nessa medida qualificar-se
como um contrato real simultaneamente quoad effectum e quoad constitutionem. O sinal só
se constitui com a tradição da coisa que é o seu objecto, sendo nesse momento a propriedade
adquirida pelo accipiens, mas podendo vir a ser forçado a restituí-la ao dans se não for
possível a sua imputação à prestação devida. Sendo possível essa imputação, a coisa objecto
do sinal fica definitivamente no património do accipiens, em caso de cumprimento do
contrato. Verificando-se o incumprimento do contrato, há lugar à aplicação dos efeitos
penais, passando pela perda do sinal ou pela sua restituição em dobro.
Envolvendo uma estipulação da indemnização em caso de incumprimento, o sinal aproxima-
se da cláusula penal (art.º 810.º, n.º 1, CC), distinguindo-se desta apenas pelo facto de
pressupor a entrega prévia de uma coisa fungível.
A regra geral é que, no contexto dos contratos, a realização de uma datio rei, por uma das
partes, na altura da celebração do contrato ou em momento posterior, não implica
presunção de constituição de sinal sempre que se verifique coincidência entre a datio rei
realizada e o objecto da obrigação a que aquela parte está adstrita (art.º 440.º, CC). Nesta
situação, entende-se que o que se visou com a datio foi antecipar o cumprimento da
obrigação e não a constituição de sinal, devendo as partes, se pretenderem que a prestação
entregue tenha o carácter de sinal, atribuir-lhe especificamente essa natureza.
No entanto, no caso dos contratos-promessa, não podendo em caso algum a datio rei
coincidir com a prestação a que fica adstrito, dado o facto do contrato-promessa instituir
apenas obrigações de prestação de facto jurídico, i.e., a celebração do contrato definitivo, a
entrega de uma coisa nunca poderia constituir cumprimento. Portanto, aplica-se o art.º 441.º
aos contratos-promessa, o qual dispõe:
“No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia
entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação
ou princípio de pagamento do preço.”
Disto decorre que a entrega de quantias em dinheiro (datio pecuniae) pelo promitente-
comprador ao promitente-vendedor constitui presunção da estipulação de sinal por essa via,
e isso mesmo quando as quantias entregues o sejam a título de antecipação ou princípio de
pagamento do preço. Dado que a obrigação de pagamento do preço surge com a celebração
do contrato definitivo, a sua antecipação ou princípio de pagamento na fase do contrato-
promessa tem por referência uma obrigação ainda não existente, sendo, portanto,
insuficiente para a elisão da presunção de constituição de sinal.
Funcionamento do sinal
A lei estabelece uma distinção no regime do sinal, consoante ele seja aplicado
genericamente a todos os contratos, ou especificamente ao contrato-promessa.
O art.º 442.º, n.º 1, refere-se ao regime do sinal em geral, indicando o seu funcionamento
em caso de cumprimento da obrigação, imputando-se o sinal na prestação devida quando
coincida com esta. Sendo impossível a imputação, pela coisa entregue não coincidir com a
prestação devida, deve o sinal ser restituído em singelo, ocorrendo tal também nos casos em
que se verifique a impossibilidade da prestação por facto não imputável a qualquer das partes
ou imputável a ambas.
O art.º 442.º, n.º 2, primeira parte, refere-se igualmente ao regime do sinal em geral,
explicando o seu funcionamento em caso de não-cumprimento. Neste caso, se o não-
cumprimento for de quem constituiu o sinal, este será perdido a favor da contraparte. Se for
esta a incumprir o contrato, terá de restituir o sinal em dobro.
O art.º 442.º, n.º 2, segunda parte, trata-se do sinal no contrato-promessa. Se houver
tradição da coisa a que se refere o contrato-prometido, o promitente-adquirente pode optar,
em lugar da restituição do sinal em dobro, por receber o valor actual da coisa, com dedução
do preço convencionado, acrescido do sinal (em singelo) e da parte do preço que tenha sido
paga.
A Doutrina discute se a exigência do aumento do valor da coisa ou do direito, a que se refere
o contrato-prometido, pressupõe que tenha sido constituído sinal ou basta-se apenas com a
tradição da coisa.
Menezes Cordeiro e Menezes Leitão entendem que deve ser exigida a constituição de sinal,
uma vez que, quando este não é estipulado, a tradição da coisa para o promitente-
comprador apresenta-se como um acto de mera tolerância do promitente-vendedor, não
havendo razão para que ele seja prejudicado por esse acto. Galvão Telles e Januário Gomes
entendem que o aumento do valor da coisa ou do direito tem lugar mesmo que não tenha
sido estipulado sinal, já que não haveria motivo para só se aplicar este regime quando o sinal
exista em alternativa a este.
Para Menezes Leitão, o art.º 442.º, n.º 3, primeira parte, o qual vem referir que “em qualquer
dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa,
requerer a execução específica do contrato, nos termos do art.º 830.º” tem uma redacção
defeituosa, uma vez que ela faz parecer que o contraente não faltoso tem sempre a
possibilidade de optar pela execução específica em alternativa ao sinal. Não é isto que
ocorre, sendo que, em face ao art.º 830.º, havendo sinal, presume-se que as partes efectuam
uma estipulação contrária à execução específica (art.º 830.º, n.º 2, CC), só podendo esta
funcionar em alternativa caso as partes ilidam esta presunção, ou se trate da hipótese
prevista no art.º 830.º, n.º 3, onde a execução específica é imperativa.
O art.º 442.º, n.º 3, segunda parte, prevê ainda que “se o contraente não faltoso optar pelo
aumento da coisa ou do direito, conforme se refere no número anterior, pode a outra parte
opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o
disposto no art.º 808.º”. Menezes Cordeiro qualificara esta figura como a “excepção do
cumprimento do contrato-promessa”.
Antunes Varela e Menezes Cordeiro entendem que a mera ocorrência de mora é bastante
para a aplicação do art.º 442.º, n.º 3. Galvão Telles e Calvão da Silva entendem que se exige
uma situação de incumprimento definitivo. Almeida Costa considera que o regime do art.º
442.º, n.º 3, acrescenta ao art.º 808.º um novo caso de transformação da mora em
incumprimento definitivo, que seria a exigência do sinal ou do aumento do valor da coisa, a
qual constituiria uma declaração tácita de resolução do contrato-promessa. Januário Gomes
veio defender que se deveria distinguir entre os dois casos previstos no art.º 808.º, para a
transformação da mora em incumprimento definitivo, exigindo-se previamente à restituição
do sinal em dobro ou do aumento do valor da coisa, a outorga ao devedor de um prazo
suplementar de cumprimento, podendo este, no entanto, após esse prazo, caso houvesse
opção pelo valor da coisa, ainda cumprir a obrigação, a menos que se verificasse a perda do
interesse do credor.
A jurisprudência adopta maioritariamente a posição de que se deve exigir uma situação de
incumprimento definitivo.
Menezes Leitão entende que para a aplicação do mecanismo do sinal se deve exigir o
incumprimento definitivo da obrigação, por objectiva perda de interesse na prestação ou
pela fixação de um prazo suplementar de cumprimento. Este Autor entende também que
enquanto que os efeitos do sinal apenas ocorrem em caso de incumprimento definitivo, a
opção pelo aumento do valor da coisa ou do direito pode ocorrer antes, em caso de simples
mora, valendo esta como renúncia do promitente-comprador a desencadear o mecanismo
do sinal, uma vez verificado o incumprimento definitivo.
O direito ao aumento do valor da coisa ou do direito, reconhecido ao promitente-
comprador, trata-se, no entender de Antunes Varela, de uma forma especial de sanção
pecuniária compulsória, enquanto que para Galvão Telles se trata de uma indemnização
compensatória, destinada a ressarcir os prejuízos causados pelo incumprimento definitivo,
atento o facto de surgir em paralelismo com a exigência do sinal em dobro.
Menezes Leitão entende que este direito é um afloramento do princípio da proibição do
enriquecimento injustificado. O sinal funciona, no regime supletivo, enquanto fixação
antecipada da indemnização devida, em caso de não cumprimento, pelo que a parte não
poderá reclamar outras indemnizações, para além daquelas previstas na lei (art.º 442.º, n.º
4, CC). Se as partes estabelecerem um regime em contrário, a convenção de sinal funcionará
como um limite mínimo da indemnização, que não obstará a que a parte lesada possa
reclamar uma quantia superior se demonstrar que sofreu danos mais elevados. De qualquer
forma, o n.º 4 do art.º 442.º exclui apenas outras indemnizações resultantes do não
cumprimento do contrato-promessa.
Funções do sinal
O sinal vinculístico, ou seja, o sinal existente num contrato-promessa em que haja ocorrido
tradição da coisa, é reforçado pela atribuição, ao promitente-adquirente, de um direito de
retenção (art.º 755.º, n.º 1, al f), CC).
O direito de retenção é uma garantia especial que permite ao devedor que disponha de um
crédito contra o seu credor, reter a coisa em seu poder se, estando obrigado a entrega-la, o
seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados (art.º
754.º, CC). Havendo retenção de coisas móveis, o seu titular goza dos direitos e está sujeito
às obrigações do credor pignoratício, salvo no que respeita à substituição e reforço da
garantia (art.º 758.º, CC), sendo que se estiver em jogo a retenção de coisas imóveis, como
ocorre no caso paradigmático da promessa habitacional, o seu titular tem os seguintes
poderes (art.º 759.º, CC):
i. De executar a coisa, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor
hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor;
ii. De fazer prevalecer esse seu poder sobre a hipoteca, ainda que registada
anteriormente;
iii. De beneficiar das regras do penhor, as quais incluem a defesa possessória.
O direito de retenção veio, assim, blindar em absoluto o promitente-adquirente traditário.
Menezes Cordeiro e Menezes Leitão entendem que o direito de retenção surge apenas caso
tenha sido passado sinal:
i. Porque os créditos referidos no art.º 442.º são apenas o da restituição do sinal em
dobro ou o aumento do valor da coisa e não o crédito geral indemnizatório ex
798.º;
ii. Porque, não havendo sinal, a tradição será uma mera tolerância, não cabendo
penalizar o promitente-vendedor.
A retenção só garante o direito ao aumento do valor da coisa e não à restituição do sinal em
dobro, sendo que estes Autores entendem que o direito do credor hipotecário tem um direito
que se reporta ao valor da coisa ao tempo da hipoteca e não ao aumento desse valor.
Pactos de preferência são os contratos pelos quais alguém assume a obrigação de, em
igualdade de condições, escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) como seu
contraente, no caso de se decidir a celebrar determinado negócio.
Os pactos de preferência, ainda que sejam mais vulgares na compra e venda – pactos de
prelacção (pacta prelationis) ou preempção –, podem ter também por objecto outros
contratos. Os pactos de preferência são admitidos em relação à compra e venda (art.º 414.º,
CC) e relativamente a todos os contratos onerosos em que tenha sentido a opção por certa
pessoa sobre quaisquer outros concorrentes (art.º 423.º, CC).
Do pacto de preferência nasce uma obrigação típica: para uns autores, a de o devedor não
contratar com terceiro (non facere), se o outro contraente se dispuser a contratar em iguais
condições; para outros, a de, querendo contratar, o obrigado escolher a contraparte, de
preferência a qualquer outra pessoa (facere). Em face dessa obrigação, fica a plena liberdade
de o titular da preferência aceitar ou não a celebração do contrato, nos termos em que o
obrigado se propõe a realizá-lo.
É de se notar, porém, que o pacto de preferência raramente surgirá isolado, dado que tal
configuraria uma liberalidade, pelo que este surge usualmente como uma cláusula no seio de
um contrato mais vasto.
Para Antunes Varela e Almeida Costa, valem para os pactos de preferência, como
verdadeiros contratos que são, as regras gerais dos contratos.
Para Menezes Cordeiro, o pacto de preferência não pode ser insensível ao contrato definitivo
nele prefigurado, defendendo este ilustre Autor a aplicação, à preferência, do princípio da
equiparação, fundada nos seguintes motivos:
i. Pela preferência pode o obrigado ficar na eventualidade de ter mesmo de fechar
o contrato definitivo, não podendo este, por via da preferência, conseguir algo
que o Direito proíba, pelo que os requisitos da preferência terão de ser os do
contrato definitivo, o que se consegue pela equiparação;
ii. Na preferência, tem-se um contrato preparatório, que pode desembocar no dever
de contratar, procedendo as razões que, na promessa, conduzem à regra da
equiparação;
iii. O art.º 415.º, embora epigrafado “forma”, limita-se a remeter, sem excepções
nem distinções, para o art.º 410.º, n.º 2, o qual pressupõe a aplicabilidade do
primeiro número deste artigo;
iv. Que o regime do contrato-promessa é a base para a construção do regime de
outros contratos prévios.
Este Autor defende, subsequentemente, a aplicabilidade, ao pacto de preferência, das
regras aplicáveis à capacidade, à conformidade legal e aos demais requisitos atinentes ao
objecto (art.º 280.º, CC), próprias do contrato preferível. Ainda nos termos do aplicável art.º
410.º, n.º 1, devem ser excepcionadas as regras que, pela sua razão de ser, não caibam na
preferência. No entanto, a aproximação preconizada não deve conduzir a resultados tão
estritos como os verificados no contrato-promessa, dado que no pacto de preferência,
contrariamente ao contrato-promessa, apenas se encontra prefixado o tipo geral do
contrato definitivo, geralmente a compra e venda.
O art.º 415.º, remetendo para o art.º 410.º, n.º 2, leva a que a forma aplicável ao pacto de
preferência seja equivalente àquela aplicável ao contrato-promessa.
Assim, se a preferência respeitar a contrato para cuja celebração a lei exija documento
(autêntico ou particular), o pacto só é válido se constar de documento escrito, assinado pelo
obrigado, não sendo necessária a assinatura da outra parte, visto esta não ser promitente.
No entanto, Menezes Cordeiro nota que seria pouco compaginável uma preferência ad
nutum, pelo que ou existe uma contraprestação – o prémio da preferência – ou este inclui-se,
como cláusula, num pacto mais vasto, de onde promanam deveres para ambas as partes.
Neste caso e para este Autor, será exigível, se necessário, a assinatura de ambas as partes,
aplicando-se na falta de uma destas o regime do contrato-promessa, relativo à redução ou
conversão.
O pacto de preferência origina uma relação complexa e duradoura entre as partes, sendo
que até à sua extinção pelo exercício (ou não-exercício) ou por qualquer outra forma de
extinção das obrigações, a preferência existe e deve ser respeitada.
Ao lado da prestação principal – a de dar preferência, a tanto por tanto – e das prestações
secundárias, como a de fazer a competente comunicação, existem deveres acessórios.
Apesar da situação de preferência ser mais lassa que a promessa, surge, entre as partes, uma
situação de confiança e, ainda, uma estruturação material. Portanto, consubstanciam-se
deveres de segurança, de lealdade e de informação, que devem respeitar as partes. Menezes
Cordeiro chama ao relacionamento surgido na situação de preferência de modus praelationis.
A comunicação não está sujeita, por lei expressa, a nenhuma forma, entendendo até alguma
jurisprudência que esta pode ser mesmo verbal. Para uma comunicação relativa a um
contrato definitivo para o qual a lei exija documento, seja particular ou autêntico, exige-se,
porém, forma escrita (art.º 410.º, n.º 2, CC). A comunicação, a ser aceite pelo preferente,
gera um dever – contratual – de contratar ao qual se aplica o regime do contrato-promessa.
A comunicação pode, ainda, seguir a forma de notificação judicial, observando-se, nessa
altura, o disposto no art.º 1458.º do Código de Processo Civil.
A comunicação deve ser feita quando exista uma proposta contratual eficaz e enquanto tal
eficácia se mantiver ou, pelo menos, na presença de um projecto de contrato firme e sério.
A não se verificarem tais requisitos, das duas uma:
i. Ou o preferente prefere, convicto de que, se não o fizer, o terceiro ficará com o
negócio – estando enganado, já que o terceiro não celebraria tal contrato;
ii. Ou o preferente rejeita, deixando o negócio para o terceiro que, afinal, não o quer.
A lei fixa um prazo curto para que o preferente se pronuncie – oito dias (art.º 416.º, n.º 2, CC)
– a fim de assegurar que a proposta ou o projecto mantêm a sua actualidade.
Se se tratar de notificação judicial para preferência (art.os 1028.º e ss., CPC), a lei exige que
o contrato preferível seja celebrado no prazo de vinte dias após o exercício da preferência.
Se tal não acontecer, deve o preferente, sob pena de perda do seu direito (art.º 1028.º, n.º 3,
CPC) “requerer, nos 10 dias subsequentes, que se designe dia e hora para a parte contrária
receber o preço por termo no processo, sob pena de ser depositado, podendo o preferente
depositá-lo no dia seguinte, se a parte contrária, devidamente notificada, não comparecer
ou se recusar a receber o preço” (art.º 1028.º, n.º 2, CPC). Efectuado o pagamento ou
depositado o preço, os bens são adjudicados pelo tribunal ao preferente, com eficácia
retroactiva à data do pagamento ou do depósito (art.º 1028.º, n.º 4, CPC).
O art.º 417.º, n.º 1, prevê a hipótese de venda da coisa juntamente com outras, tratando-se
de um preceito dirigido à compra e venda:
“Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o
direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo
lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem
separáveis sem prejuízo apreciável.”
O regime da venda de coisa juntamente com outras aplica-se mesmo em casos de
preferência com eficácia real (art.º 417.º, n.º 2, CC).
A sequência será a seguinte:
i. O obrigado à preferência faz a comunicação da venda da coisa conjuntamente
com outras, não se considerando como tal a hipótese de vendas simultâneas com
valores individualizados, o que nem sempre será exacto – depende da vontade
das partes e da substância económica do negócio;
ii. Recebida a comunicação, o preferente pode exercer o seu direito em relação à
coisa-objecto, pelo preço que proporcionalmente lhe caiba: quando esteja este
indicado, não existe qualquer problema, embora se possa mostrar que não é ele
o valor venal; quando este não se encontrar indicado, o preferente depositará –
havendo lugar a depósito – o valor que, perante a boa-fé, achar razoável, fazendo
depois os ajustes decididos pelo tribunal, ou fazendo-se uma proporção simples
e relegando para execução de sentença o valor a pagar;
iii. Caso entenda que a separação lhe traz um prejuízo considerável, o que terá de
provar, pode o obrigado à preferência exigir que a preferência abranja todo o
conjunto – a discordância do preferente envolve oposição ao projecto e renúncia
à preferência.
Menezes Leitão entende que o art.º 417.º visaria as uniões de contratos e o art.º 418.º os
contratos mistos.
A segunda valoração tem a ver com a fungibilidade do negócio projectado, pelo que, saindo
do estrito plano da preferência e, portanto, quando esta recaia em objecto ou em conteúdo
inseridos em negócio mais vasto e não sendo eles divisíveis, o exercício do direito do
preferente sobre o conjunto implica que o mesmo seja fungível. Sendo-o, ele preferirá, ou
não, sobre o conjunto, consoante a decisão jurídico-económica que possa ou entenda tomar.
Não o sendo, a lei permite:
i. Ou a conversão da parte não-fungível em dinheiro;
ii. Ou ao afastamento da preferência quando isso não seja possível;
iii. Ou o afastamento da parte não-fungível, quando não seja essencial ou quando
tenha fins fraudulentos.
O art.º 418.º contém doutrina que não se limita aos contratos complementares, devendo-se
antes estender a todo o universo das uniões de contratos e dos contratos mistos, quando não
sejam desagregáveis e se apresentem não-fungíveis.
Pluralidade de preferentes
O art.º 419.º soluciona, à luz dos princípios gerais, as hipóteses de pluralidade de titulares
do direito de preferência. Tem-se três possibilidades básicas, que abrem sempre na
indivisibilidade dos direitos – ou cada um exerceria a sua parte:
a. Preferências conjuntas – só podem ser exercidas por todos os preferentes, em bloco,
e o obrigado só perante todos eles se exonera (art.º 419.º, n.º 1, 1.ª parte, CC), mas se
o direito se extinguir em relação a algum deles ou ele não o quiser exercer, acresce
aos restantes (art.º 419.º, n.º 1, 2.ª parte, CC), v.g. comunhão.
b. Preferências disjuntas – só um deles pode exercer o direito, afastando, com isso, os
restantes – não existindo processo de escolha, abre-se licitação, revertendo o excesso
para o obrigado (art.º 419.º, n.º 2, CC), v.g. relações de vizinhança e arrendamento;
c. Preferências sucessivas – existe uma ordem de prevalência entre os diversos
preferentes, designadamente nas preferências legais – o direito é submetido ao
primeiro, passando ao segundo se ele não quiser exercê-lo e assim sucessivamente.
Em termos de comunicação, esta deve ser realizada, sempre, a todos os preferentes, só
depois se abrindo o processo de escolha entre eles. Não pode um preferente exercer
validamente o seu direito se não mostrar que todos os outros foram avisados e que não
quiseram ou não puderam preferir. Quanto muito, entender-se-á nas preferências
sucessivas, preferindo o de grau superior, não há que indagar de comunicações aos
restantes.
Havendo eficácia real, a preferência produz efeitos perante os terceiros adquirentes da coisa
em jogo, através de uma acção a tanto destinada – a acção de preferência, sendo esse o
sentido da remissão para o art.º 1410.º, feita no art.º 421.º, n.º 2.
Pactuada uma preferência com eficácia real, esta pode operar tanto para a primeira
transmissão como para sucessivas, dependendo da estipulação das partes. O registo
protegerá a confiança dos sucessivos adquirentes, os quais ficarão obrigados à competente
obrigação de comunicação. Nada dizendo, e dada a natureza real da preferência, entender-
se-á que, estando registada, ela perdura através das transmissões ulteriores.
Em todo o direito, enxameiam os casos de preferências legais, sabidamente de tipo real.
Assim, é a propósito de tais preferências que tem sido equacionada a eficácia real e testados
os seus meandros.
A acção de preferência tem como âmbito os diversos direitos de preferência real perante
qualquer contrato preferível.
A jurisprudência tem também defendido que o preço deve ser depositado em dinheiro, não
bastando uma garantia bancária.
A simulação
A preferência com eficácia real e a daí derivada acção de preferência levantam o problema
relativo a quando a alienação feita pelo obrigado à preferência, a um terceiro, assente num
contrato simulado.
Há simulação quando se reúnam cumulativamente três requisitos (art.º 240.º, CC):
a. Um acordo entre o declarante e o declaratário;
b. No sentido de uma divergência entre a declaração e a vontade das partes;
c. Com o intuito de enganar terceiros.
Estes elementos devem ser invocados e provados por quem pretenda prevalecer-se da
simulação ou de aspectos do seu regime.
O acordo entre as partes é essencial para prevenir a confusão com o erro ou a reserva mental,
surgindo a divergência entre a vontade e a declaração como dado essencial da simulação e
prendendo-se o intuito de enganar terceiros com a criação de uma aparência. Terceiros são,
neste caso, quaisquer pessoas alheias ao conluio, não necessariamente ao contrato
simulado.
Existem diversos tipos de simulação, sendo esta fraudulenta quando vise prejudicar alguém
– animus nocendi ou animus decipiendi – ou inocente, quando não tenha tal escopo. A
simulação é absoluta quando as partes não pretendam celebrar qualquer negócio, ou
relativa, quando sob a simulação se esconda um negócio verdadeiramente pretendido – o
negócio dissimulado. A simulação diz-se objectiva quando a divergência voluntária recaia
sobre o objecto do negócio ou sobre o seu conteúdo, sendo subjectiva quando ela incida
sobre as próprias partes.
O art.º 240.º, n.º 2, considera, lapidarmente, o negócio simulado como nulo, não se
tratando, no entanto, de verdadeira nulidade, dado que esta não pode ser invocada por
qualquer interessado nem – a fortiori – ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cf. Ac. STJ
25/03/2003). Assim, o negócio simulado não produz efeitos entre as partes e perante
terceiros que conheçam ou devessem conhecer a simulação.
A simulação não prejudica a validade do negócio dissimulado, dispondo-se apenas que,
quando tenha natureza formal, ele só seja válida se houver sido observada a forma exigida
pela lei (art.º 241.º, n.º 1, CC).
A prova da simulação
O pacto de opção é um contrato pelo qual uma das partes (o beneficiário, o titular ou o
optante) recebe o direito de, mediante uma simples declaração de vontade dirigida à outra
parte (o vinculado ou o adstrito à opção), fazer surgir o contrato entre ambas combinado – o
contrato definitivo.
A opção representa, para o seu beneficiário, uma vantagem evidente, permitindo-lhe, por
sua exclusiva vontade, adquirir uma determinada posição jurídica, traduzindo, em
compensação, uma desvantagem de conteúdo inverso para o adstrito.
É compreensível, por isso, a existência de uma contrapartida monetária na concessão de
uma opção – um preço –, pagando o optante ao adstrito pela constituição da opção.
A cláusula de pagamento tem natureza acessória, podendo escapar à forma imposta à opção
(art.º 221.º, CC), sendo, no entanto, recomendada, por razões de clareza, de facilidade de
prova e de linearidade fiscal, a sua inserção no próprio pacto. No entanto, se, por razões de
negócios, for inconveniente o seu conhecimento no mercado, recomenda-se a sua inserção
num segundo documento.
A opção tem uma especialidade: normalmente pactuada pelas partes mas, em certos
domínios, ditada pela prática comum e apoiada nas circunstâncias que a rodeia. Esta dá azo,
na esfera do optante, a uma posição livremente disponível.
O pacto de opção origina direitos e deveres para ambas as partes. No que toca ao optante,
ele recebe o direito potestativo de, por uma simples manifestação da sua vontade, provocar
o aparecimento do contrato definitivo.
O direito de opção é exercível pelo tempo estipulado pelas partes, ocorrendo que, na
hipótese de as partes nada terem clausulado nesse domínio, Menezes Cordeiro entende que
se deve aplicar, por analogia, o art.º 411.º, pedindo o vinculado, ao tribunal, que fixe um
prazo razoável para o seu exercício.
O optante deve satisfazer as cláusulas acessórias a que, porventura, esteja sujeito, com
relevo para o pagamento do preço da opção, quando pactuado. Este fica também inserido
numa teia de deveres acessórios (art.º 762.º, n.º 2, CC) que, entre outros aspectos, o obrigam
a não complicar a posição do adstrito à opção.
O adstrito à opção fica imerso numa situação de sujeição, a qual é, pela natureza das coisas,
insusceptível de violação. No entanto, este fica vinculado a prestações secundárias e deveres
acessórios, de modo a permitir, ao optante, o exercício eventual da opção, retirando, dela,
todas as vantagens que, pela natureza das coisas, ela possa proporcionar.
A opção tem uma estrutura que não lhe permite encarar com facilidade o seu próprio
incumprimento, em virtude de se ter, no seu cerne, um direito potestativo e uma sujeição. O
incumprimento de uma opção residirá, fundamentalmente, na inobservância de prestações
secundárias que tenham sido pactuadas ou na desatenção pelos deveres acessórios que
recaiam, ex bona fide, em qualquer das partes.
No caso do adstrito à opção alienar a coisa que era suposto manter para o optante, aplica-
se, por analogia, o art.º 274.º, tornando-se a venda a terceiro ineficaz quando a opção seja
exercida – o optante adquire a propriedade da coisa onde quer que ela esteja, podendo exigir,
depois, a sua entrega. Ressalvam-se apenas as hipóteses de o terceiro poder, por razões
próprias, invocar a usucapião ou a aquisição tabular. Ocorre, em qualquer caso, violação de
prestações secundárias e de deveres acessórios, pelo que o adstrito deverá indemnizar o
optante pelas maiores despesas que tenha ocasionado.
A venda feita nestas condições é meramente ineficaz no caso de exercício da opção, sendo,
fora desse caso, válida e legítima, produzindo efeitos até ao exercício deste direito
potestativo.
Se o adstrito destruir a coisa ou se recusar a entrega-la, o optante pode exercer o seu direito
– o qual visa o contrato e não a coisa. Caso o exerça e a coisa haja sido destruída, verifica-se
a violação da propriedade e do contrato definitivo; de igual modo, a recusa da entrega da
coisa implica a inobservância do definitivo e o desrespeito pela propriedade. O optante pode,
neste caso, reagir usando os competentes institutos.
A natureza da opção
Pela teoria unitária, a opção e o contrato principal constituiriam um único contrato, sendo a
opção, no fundo, um contrato condicionado à conclusão da vontade do optante.
A teoria da separação contrapõe o papel específico da opção, o seu teor criativo e a
descontinuidade entre a opção e o principal. Posta a questão nestes termos, a teoria da
separação é, no entender de Menezes Cordeiro, a recomendável, em virtude da opção
suscitar valorações próprias e um regime distinto, que não se dilui no definitivo.
Então, para que haja contratos a favor de terceiro, é necessário que o terceiro seja titular do
direito à prestação ou beneficiário directo da atribuição nascida do contrato.
Nos contratos a favor de terceiro, deve assinalar-se, em primeiro lugar, os dois contraentes:
o promitente (reus promittendi), a pessoa que promete realizar a prestação; e o estipulante
(reus stipulandi) ou promissário, a pessoa a quem a promessa é feita, perante quem ou à
ordem da qual a vantagem do terceiro é criada. O terceiro beneficiário adquire direito à
prestação ou a outro benefício, em regra desde a celebração do contrato.
O Código Vaz Serra não só reconheceu em termos muito amplos a validade das estipulações
a favor de terceiro, como traçou com bastante latitude o quadro das espécies que elas
abrangem, contrariamente à proibição histórica de estipulações a favor de terceiro (alteri
stipulari nemo potest).
O único requisito estabelecido para a validade do contrato é paralelo ao que vigora para a
constituição de qualquer obrigação, exigindo-se que o promissário ou estipulante tenha na
prestação prometida ao terceiro um interesse digno de protecção legal.
A lei consagra não apenas a eficácia dos contratos com eficácia obrigacional, mas também
a dos contratos liberatórios (art.º 443.º, n.º 2, CC) e a dos contratos constitutivos,
modificativos ou extintivos de direitos reais, que não envolvem nenhuma obrigação do
promitente em relação ao terceiro beneficiário. Através desses contratos, que contêm
verdadeiros actos de disposição a favor de terceiro, operam-se imediatamente na esfera
jurídica do terceiro os efeitos decorrentes do contrato.
Não é exigida a gratuitidade da vantagem proporcionada ao beneficiário.
Contrato para pessoa a nomear é aquele cujos termos permitem que uma das partes tenha
o direito de designar um terceiro que encabece os direitos e as obrigações dele derivados.
Num primeiro tempo, o contrato é concluído entre duas partes, podendo uma delas, porém,
indicar um terceiro que irá ocupar o seu lugar. No contexto do contrato para pessoa a
nomear, usa-se a seguinte terminologia:
i. Promitens ou promitente – a parte firme;
ii. Stipulans ou estipulante – a parte que pode nomear um terceiro, para ocupar o
seu lugar;
iii. Amicus – o terceiro;
iv. Eligendus – o amicus ou terceiro, antes de ter ocorrido a sua nomeação;
v. Electio ou electio amici – a escolha ou a escolha do amigo ou terceiro, para ocupar
o lugar definitivo no contrato;
vi. Electus ou amicus electus – o terceiro nomeado, que passa a parte definitiva, no
contrato;
vii. Facultas amicum eligendi – a faculdade de designar o terceiro ou amicus, para
integrar o contrato.
Funções e figuras afins
O contrato para pessoa a nomear servirá, naturalmente, as funções que as pessoas, nele
partes, hajam por convenientes. No entanto, existem as seguintes funções típicas:
i. Discrição – certas figuras públicas não podem surgir em público sem serem
incomodadas, sendo que a presença de procuradores nem sempre resolve o
problema;
ii. Vantagem negocial – o resguardo de conhecidos comerciantes ou intermediários
pode evitar perturbações no mercado;
iii. Negociação em dois tempos – um adquirente pode reservar-se a faculdade de
manter o bem para si ou de o passar a outrem;
iv. Rapidez – pretendendo concluir um negócio por conta de outrem e não tendo
poderes de representação, o agente pode recorrer ao contrato para pessoa a
nomear como modo expedito de, mais tarde, se redocumentar;
v. Benefício fiscal – a alternativa para uma contratação por conta de outrem, sem
representação, é o mandato, o qual obriga a uma dupla transmissão, com
duplicação fiscal.
O contrato para pessoa a nomear ocupa, em sobreposição, funções que podem ser
asseguradas por outros institutos, distinguindo-se:
i. Da representação – nesta, os efeitos produzem-se imediata e automaticamente na
esfera do representado e não, num primeiro momento, na do representante, não
requerendo uma actuação específica para passar à do representado;
ii. Da representação sem poderes – o “representante” actua em nome e por conta do
“representado”, embora lhe faltem os poderes; no contrato para pessoa a nomear, o
stipulans age em nome próprio;
iii. Da cessão da posição contratual – aqui, os contratantes iniciais são os definitivos, não
havendo cláusula de pessoa a nomear; ocorre simplesmente que, em momento
posterior e eventual, um deles, com o acordo do outro, cede a sua posição a um
terceiro (art.º 428.º, CC);
iv. Da venda de bens alheios – o alienante, quando eles sejam tomados por futuros (art.º
893.º, CC), deve procurar adquiri-los, para regularizar a situação; tal implica,
logicamente, um contrato distinto, inexistente no contrato para pessoa a nomear;
v. Do contrato a favor de terceiro – este é o beneficiário de um prestação, não
ocupando, mesmo quando adira ao contrato, a posição de parte;
vi. Do mandato sem representação – o mandante, em tal conjuntura, vem,
supervenientemente, a receber os direitos adquiridos por sua conta pelo mandatário,
não indo ocupar, ab initio, a posição deste;
vii. Da gestão de negócios – este instituto tem um âmbito mais vasto, sem que o gestor
venha a ocupar a posição do dominus.
Regime e efeitos
A cláusula para pessoa a nomear consta, em princípio, do próprio contrato que a contenha.
Nada obsta a que se insira num texto à parte ou, até, subsequente – no entanto, revestirá,
todavia, a forma exigida para o contrato em si, em virtude de procederem as razões
justificativas da forma (art.º 221.º, n.º 2, CC), para além da regra relativa à forma da
procuração (art.º 262.º, n.º 2, CC).
No entanto, nem todos os contratos comportam cláusula para pessoa a nomear, excluindo
a lei (art.º 452.º, n.º 2, CC):
i Os casos em que não é admitida a representação;
ii Aqueles em que a determinação dos contraentes é indispensável.
A representação é universalmente admitida, mesmo no casamento (cf. art.º 1620.º, CC),
desde que se indique, na procuração, o outro nubente e a modalidade do casamento.
Relativamente à “determinação dos contraentes”, pode-se apontar:
1. Negócios intuitu personae em que as qualidades pessoais da contraparte sejam
essenciais;
2. Negócios de tipo não-patrimonial
3. Negócios em que os valores subjacentes impliquem a imediata indicação do
contratante em jogo.
Menezes Cordeiro entende que deve ser realizada uma ponderação casuística sobre os
aspectos envolvidos.
Concluído o contrato para pessoa a nomear, inicia-se um procedimento que poderá culminar
na colocação do amicus na posição do stipulans, com a seguinte sequência:
a. Conclusão do contrato;
b. Concordância do amicus;
c. Electio.
A conclusão do contrato com cláusula de pessoa a nomear é o pressuposto básico de todo o
desenvolvimento subsequente. O amicus dará ou não o seu assentimento, sendo que, neste
último caso, o processo cessa. Embora a lei não o diga, a concordância do amicus é necessária
pelas regras gerais do Direito privado e pelo art.º 453.º, n.º 2, que manda seja a nomeação
acompanhada do instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à
celebração do próprio contrato.
Quanto à electio, esta deverá ser feita por escrito, ao outro contraente, no prazo
convencionado ou dentro dos cinco dias posteriores à conclusão do contrato (art.º 453.º, n.º
1, CC). Se o contrato não indicar outro prazo e mesmo havendo procuração anterior, a
nomeação deve ser feita do prazo de cinco dias, sob pena de o contrato produzir efeitos
perante os contratantes iniciais. No caso de se tratar de um contrato-promessa em que se
estipulou que o definitivo será concluído com o promitente em causa ou com quem ele
indicar, a electio pode ocorrer apenas na celebração do definitivo.
A ratificação deve constar de documento escrito (art.º 454.º, n.º 1, CC) ou de documento de
força probatória equivalente à do contrato, quando superior (art.º 454.º, n.º 2, CC).
Natureza
Existem as seguintes teorias sobre a natureza jurídica do contrato para pessoa a nomear:
i. Teoria da condição – o contrato para pessoa a nomear seria o contrato definitivo
sujeito a uma dupla condição – resolutiva quanto à aquisição pelo estipulante e
suspensiva quanto à aquisição pelo amicus – defendida por Guilherme Moreira,
Galvão Telles, Antunes Varela, Ribeiro de Faria e Menezes Leitão;
ii. Teoria do duplo contrato – o contrato para pessoa a nomear consistiria, em rigor, em
dois contratos, um celebrado entre o promitens e o stipulans e outro celebrado entre
o promitens e o eligendus. Num primeiro tempo, o promitens contrataria, a título
provisório, com o stipulans. Desde logo, porém, estaria subjacente um contrato,
agora definitivo, entre o promitens e o eligendus;
iii. Teoria da concentração subjectiva – o sujeito seria inicialmente indeterminado, até
ocorrer a imputação individualizante;
iv. Teoria da faculdade alternativa – a obrigação surgiria encabeçada pelo stipulans, mas
com a possibilidade, a cargo deste, de se fazer substituir;
v. Teoria da formação sucessiva – no contrato para pessoa a nomear, ter-se-ia, um
procedimento complexo, que culminaria com o contrato definitivo. Neste processo
encontrar-se-ia, sucessivamente: a dissociação entre a formação do acto e a
realização da relação, facultando a distinção entre partes num sentido formal e num
sentido substancial; a actuação sucessiva da previsão, que comporta, além do
contrato, a designação de um terceiro e a exibição dos necessários instrumentos de
legitimação; a suspensão provisória da relação;
vi. Teoria da sub-rogação legal – verificados os requisitos a que a lei submente a
desingação e a eficácia, não havendo lugar à representação, o terceiro ingressaria na
posição do stipulans, num típico fenómeno de sub-rogação;
vii. Teoria da autorização – a situação do promitens seria enfraquecida, autorizando a
que, do outro lado, operasse uma substituição da parte, com eficácia ex tunc;
viii. Teoria do negócio per relationem – o conjunto articulado dos estipulações que regem
os interesses das partes são visados no negócio, sendo o seu concreto objecto
determinado per relationem, i.e., por instruções ou indicações ulteriores;
ix. Teoria da representação – o contrato para pessoa a nomear andará na órbita da
representação.
Menezes Cordeiro entende que o contrato para pessoa a nomear consiste numa categoria
contratual típica e autónoma, implicando, num todo coerente, a cláusula para pessoa a
nomear, a electio com os seus requisitos com os seus requisitos ou alternativas: ou o amicus
electus, ou o stipulans ou a ineficácia do conjunto.
Menezes Cordeiro entende que o art.º 458.º, n.º 1, não origina qualquer obrigação nova,
limitando-se a permitir que se prometa uma “prestação”, comum ou pecuniária, devidas,
anteriormente, por força de qualquer outra fonte. O único papel desse preceito será, para
este Autor:
a. Dispensar o beneficiário de indicar a verdadeira fonte da obrigação em jogo;
b. Fonte essa cuja existência se presume, até prova em contrário.
Existe, neste caso, um negócio unilateral, ainda que com mera eficácia declarativa, limitada
à inversão do ónus da prova. Antes, caberia ao beneficiário que invocasse uma obrigação,
provasse a sua fonte ou origem; agora, pode este contentar-se com a apresentação da
“promessa” ou de “reconhecimento”, cabendo ao devedor demonstrar que, afinal, ela não
existia.
A declaração de promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida tem um
destinatário – o próprio beneficiário, devendo ser interpretada nos termos normais (art.º
236.º, n.º 1, CC). Se da declaração resultar a existência de uma dívida, ainda que, a tanto, ela
não for primacialmente destinada, funciona a presunção do art.º 458.º.
Exige-se documento escrito para a declaração (art.º 458.º, n.º 2, CC), salvo “se outras
formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental”. Cabe-lhes, no
entanto a prova de que as tais formalidades são exigidas, em função da relação principal.
Promessa pública
O art.º 459.º ocupa-se da promessa pública, sendo que segundo o n.º 1 dessa norma:
a. Aquele que, por anúncio público;
b. Prometer uma prestação;
c. A quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto, positivo ou
negativo;
Fica desde logo vinculado à promessa. Este estará, salvo declaração em contrário, vinculado
mesmo em relação àqueles que se encontrem na situação prevista ou tenham praticado o
facto, sem atender à promessa ou na ignorância dela (art.º 459.º, n.º 2, CC).
A situação distingue-se, muito claramente, da oferta ao público (art.º 230.º, n.º 2, CC), sendo
que nesta, o destinatário apenas adquire o direito potestativo de, pela aceitação, constituir
o contrato, só nessa altura se constituindo, propriamente, obrigado; na promessa pública, o
beneficiário adquire imediatamente o direito à prestação, ficando, desde logo, o promitente
adstrito à sua efectivação.
Feita a promessa pública, o promitente queda obrigado:
a. Até que, surgindo alguém nas condições nela previstas, ele extinga, pelo
cumprimento, a sua obrigação;
b. Até que expire o prazo nela fixado (art.º 460.º, CC);
c. Até que a sua natureza ou o seu fim ditem a sua extinção (art.º 460.º, CC);
d. Até que, não tendo prazo, seja revogada (art.º 461.º, n.º 1, CC);
e. Até que, tendo prazo, seja revogada, antes dele, por haver justa causa (art.º 461.º, n.º
1, in fine, CC).
A justa causa será, neste caso, um motivo atendível, objectiva ou subjectivamente, que
torne a promessa inexigível, perante os valores fundamentais do sistema – a boa fé. Na
determinação da justa causa haverá, designadamente, que atender à confiança que ela
tenha suscitado no público a que se destine.
Concurso público
O art.º 463.º, relativo a concursos públicos, constitui uma especial modalidade de promessa
pública. A sua particularidade reside na atribuição da prestação operar a favor de quem vença
um concurso, a título de prémio. Deve-se proceder a articulação do regime do concurso
público com a figura da abertura de concurso para a celebração de um contrato.
A oferta da prestação pelo concurso só é válida se fixar um prazo para a apresentação dos
concorrentes (art.º 463.º, n.º 1, CC), de outra forma, o concurso ficaria indefinidamente
aberto, podendo surgir mais concorrentes, sem que nada de decidisse.
A decisão de admissão ao concurso ou de concessão do prémio compete, exclusivamente,
às pessoas designadas no anúncio – o “júri” – ou, na sua falta, ao promitente (art.º 463.º, n.º
2, CC).
Responsabilidade civil é o instituto que é uma forma de constituição de obrigações pela qual
uma pessoa (o agente) fica adstrita a uma obrigação de indemnizar (a indemnização) outra
pessoa – o lesado (art.os 483.º a 510.º, CC).
A responsabilidade nuclear é a que advém da prática de factos ilícitos (art.os 483.º e ss., CC),
também chamada de responsabilidade aquiliana. Esta tem em comum com as
responsabilidades pelo risco e pelo sacrifício o facto de não pressupor, num momento prévio,
nenhuma ligação específica entre os intervenientes. Nesta importante dimensão contrapõe-
se à responsabilidade contratual, que emerge do incumprimento de um contrato, também
chamada, por poder derivar da violação de outras obrigações, que não contratuais, de
responsabilidade obrigacional (art.os 798.º e ss., CC).
A responsabilidade pressupõe sempre a ocorrência de um dano – a supressão de uma
vantagem tutelada pelo Direito – implicando distinções e subdistinções, além de regras
delicadas de compartimentação.
O dano é suportado pela pessoa a quem caibam as vantagens suprimidas ou é atribuído a
outrem tratando-se da imputação do dano, a qual poderá ser aquiliana (a quem praticou o
delito) ou contratual (a quem violou o contrato); imputação delitual (por facto ilícito), pelo
risco ou pelo sacrifício.
Menezes Cordeiro aponta para o facto da obrigação ser considerada actualmente uma
relação complexa, compreendendo o dever de prestar, os deveres secundários e os deveres
acessórios. Assim, o seu incumprimento-padrão traduz-se na não-execução definitiva ou na
impossibilitação do dever de prestar principal, subsistindo a obrigação, sendo-lhe apenas
enxertado o dever de indemnizar. Portanto, poderá ocorrer uma readaptação das prestações
secundárias e dos deveres acessórios, mantendo a obrigação a sua identidade e sendo
impensável dispensar a sua fonte original.
A responsabilidade obrigacional está ao serviço do valor “contrato”, de que é um lógico
prolongamento. A responsabilidade aquiliana cobre uma área distinta, não derivando de
prévias obrigações específicas, com o seu conteúdo complexo e o seu séquito de deveres,
antes emergindo da inobservância de deveres genéricos de respeito, estruturalmente
distintos e varáveis em função das circunstâncias. O relacionamento específico entre os
envolvidos surge apenas com o facto ilícito e os demais pressupostos, servindo o valor
“propriedade lato sensu”.
As diferenças de regime
Havendo, entre as partes, uma obrigação específica, cabe ao devedor executar a prestação
principal. O dever dele é o bem do credor, atribuído e legitimado pelo ordenamento. Não
cumprindo o devedor, é grave, dado que este está a frustrar, pela sua conduta, precisamente
o valor que o Direito atribuíra ao credor. Em face do incumprimento, o devedor é
automaticamente condenado a indemnizar, i.e., a prosseguir, no plano indemnizatório, o
dever de prestar principal que inadimpliu.
A fim de se tutelar a posição do credor, coloca-se o ónus da prova no devedor, ao qual
competirá:
a. Ou provar o cumprimento, tratando-se de um facto extintivo, cujo ónus probatório
lhe assiste (art.º 342.º, n.º 2, CC);
b. Ou provar que tinha uma qualquer causa de justificação ou de excusa para não
cumprir (art.º 799.º, n.º 1, CC).
A “presunção de culpa” do art.º 799.º, n.º 1, é, de facto, uma presunção de culpa e de
ilicitude, pelo que quando haja inadimplência, presume-se que esta ocorreu ilicitamente e
com culpa (dolo).
O fenómeno da interpenetração
O concurso
Para Teixeira de Sousa e Menezes Cordeiro, inexiste uma relação de especialidade que
permita a prevalência da imputação obrigacional, verificando-se, antes, um concurso de
títulos de aquisição de pretensões, de tal modo que o autor pode invocar cada um deles – ou
todos – cabendo ao defendente repelir cada um deles. Seria posteriormente necessário
ponderar caso a caso os termos divergentes dos regimes.
Menezes Cordeiro aponta para que os institutos ligados às relações obrigacionais sem dever
de prestar principal encontram fundamento na boa-fé, explicitamente prevista para o efeito
nos artigos 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2. Estas visam, em virtude de uma especial conexão entre
as partes, proporcionar determinadas tutelas, através da actuação dos envolvidos. Trata-se
de orientar, pela positiva, a actuação das pessoas e não de as responsabilizar ab initio.
Para este Autor, a noção de “terceira via” terá vantagens na área dos deveres do tráfego, os
quais emanam da responsabilidade aquiliana, visando reforçar os bens nela em jogo. Tais
deveres são específicos, sendo muito gravosos para a liberdade das pessoas, escapando
totalmente à sua vontade – directa (contrato) ou indirecta (contacto social e
paracontratualidade). Por isso, apesar da especificidade, quem, por eles e pela sua alegada
inobservância, queira ser indemnizado, terá de provar a sua existência, a ilicitude da violação
e a culpa do agente. Aí o regime será, de facto, intermédio.
Portanto, Menezes Cordeiro situa a “terceira via” numa dependência da responsabilidade
aquiliana.
A responsabilidade por factos ilícitos, também dita delitual, corresponde à previsão do art.º
483.º, n.º 1, assentando na violação ilícita e culposa de direitos subjectivos ou de normas
destinadas a proteger interesses alheios. Surge como figura nuclear, descendente directa da
lex aquilia, em torno da qual se articulam os pressupostos da responsabilidade civil.
A responsabilidade pelo sacrifício ou por factos lícitos não vem genericamente referida na
lei civil, implicando a prática de um acto voluntário que, apesar de danoso, o Direito admite,
mercê das circunstâncias em que seja levado a cabo. Apesar da ilicitude, ele pode originar
um dever de indemnizar.
Existem, na responsabilidade pelo sacrifício, pressupostos diferentes dos da
responsabilidade delitual e que obrigam à construção de um subsistema coerente.
A responsabilidade por factos ilícitos, pelo risco e pelo sacrifício pertencem ao tipo mais
geral da responsabilidade aquiliana, tratando-se, todavia, no tocante às últimas duas
modalidades, de subtipos desfocados, uma vez que só com adaptações seguem o regime
material. Este fenómeno só é captável com recurso às ordenações e à doutrina dos tipos.
Os pressupostos da responsabilidade civil (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal) dão
azo a diversas classificações.
De acordo com o facto, a responsabilidade diz-se por acção ou por omissão. Pode, ainda, ser
singular ou conjunta, em função dos autores do facto, tendo-se, nesse plano, a
responsabilidade pessoal e as responsabilidades por actos do representante, do mandatário,
do comissário ou do auxiliar. Existe a responsabilidade da pessoa singular e a das pessoas
colectivas. Existem as responsabilidades profissionais e a do produtor, dotada de um regime
especial.
A responsabilidade pode também ser por facto próprio ou por facto de terceiro. O facto pode
ter relevância apenas civil ou, também, penal, ocorrendo as responsabilidades simples ou
conexa com a criminal.
No campo da ilicitude e em função dela, distingue-se as responsabilidades por violação de
um direito subjectivo ou por inobservância de normas de protecção, existindo nesta última o
subtipo da responsabilidade por violação de deveres de cuidado (deveres do tráfego).
O tipo de direito subjectivo permite ainda referir a responsabilidade do terceiro pela violação
do crédito, a responsabilidade pela violação de direitos de personalidade, reais, familiares ou
relativos a bens intelectuais, entre outros.
O dano pode ser moral ou patrimonial, directo ou indirecto, emergente ou lucro cessante,
presente ou futuro, indemnizável ou compensável. Existe ainda a responsabilidade por
danos meramente patrimoniais, a qual se reporta àqueles que não correspondam a
vantagens tuteladas pela inclusão no conteúdo de um direito subjectivo.
A causalidade permite falar na responsabilidade isolada ou concordante, real ou hipotética,
efectiva ou virtual.
Figuras afins
A responsabilidade civil distingue-se do enriquecimento sem causa, dado que a primeira lida
com danos e a segunda com enriquecimentos, tendo pressupostos próprios e regimes
diferenciados, integrando dogmáticas inconfundíveis.
A obrigação derivada de negócio jurídico e que seja desrespeitada por omissão dá azo a
responsabilidade obrigacional. Da mesma forma, a inobservância de obrigações legais
explícitas conduz a esse tipo de responsabilidade – é o caso dos chamados “delitos
tipificados” (art.os 491.º, 492.º e 493.º, CC), que, inclusive, prevêem uma presunção de
“culpa”.
Nas situações de negligência, em que o bem protegido é atingido pela inobservância de
certos deveres de cautela que se impusessem, a omissão é determinada pela violação, por
um agente, de um direito subjectivo ou de uma norma de protecção (art.º 483.º, n.º 1, CC).
No caso dos deveres de tráfego, i.e., os deveres que protegem certos bens delicados ou que
impendem sobre quem tenha o controlo de fontes de perigo, tem-se uma construção
derivada da responsabilidade aquiliana e que pode integrar a chamada “terceira via”.
A imputabilidade
A presença de um facto com relevância civil, para efeitos de imputação delitual, requer que
o agente se tenha, efectivamente, autodeterminado. Portanto, as suas acções ou omissões
correspondem a duas capacidades suas:
a. A capacidade de entender;
b. A capacidade de querer.
Inexistirá a primeira se, por falta ou deficiência das capacidades cognitivas, naturais ou
artificiais, o agente não tinha a possibilidade de aprender o significado das suas actuações,
faltando a segunda se o agente, por constrições externas, não dispunha de liberdade.
Presume-se que todas as pessoas são imputáveis, sendo ainda imputáveis aquelas, que
violando deveres de cuidado, se coloquem transitoriamente num estado de inimputabilidade
(art.º 488.º, n.º 1, 2.ª parte, CC). Qualquer verdadeira inimputabilidade deverá ser provada
por quem, dela, se queira prevalecer.
Não há limites de idade, para efeitos de imputação delitual, presumindo-se apenas a falta
de imputabilidade nos menores de sete anos e nos interditos por anomalia psíquica (art.º
488.º, n.º 2, CC).
Para Menezes Cordeiro, a contraposição feita no art.º 483.º, n.º 1, entre direitos e “...
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios...” inculca que “direitos”
são, neste caso, o direito subjectivo proprio sensu. A tutela aquiliana é concedida, apenas,
perante permissões específicas de aproveitamento de bens. As permissões genéricas, desde
que não se contundam com direitos de personalidade não se encontram abrangidas pela
responsabilidade aquiliana.
Excluem-se também da tutela aquiliana dos direitos de outrem os denominados danos
puramente patrimoniais, i.e., os danos que não passem pela violação de um direito
subjectivo.
Como segunda modalidade de ilicitude tem-se, seguindo o art.º 483.º, n.º 1, o “... violar ...
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios...”.
As normas de protecção são actualmente entendidas como “correias de transmissão” de
valores apurados, noutros âmbitos jurídicos, para o domínio aquiliano. O Direito Civil estatui,
predominantemente, com recurso a direitos subjectivos – às pessoas são confiadas posições
vantajosas que lhes permitem o específico aproveitamento de certos bens. Assim, a ilicitude
tipicamente civil tem a ver com a violação de direitos subjectivos.
Noutras áreas normativas, as normas jurídicas prescrevem regras de conduta, no interesse
geral e de cada um, mas sem delimitar porções axiológicas entregues, em exclusividade, a
certas pessoas. Tal ocorre, por exemplo, com normas penais e contra-ordenacionais.
Quando a violação de tais normas provoque danos, embora não se tenham propriamente
violado direitos subjectivos, pode caber o dever de indemnizar, desde que verificados os
demais requisitos. Estão em causa, entre outras, as normas que visem afastar os perigos
abstractos.
Para a aplicação do art.º 483.º, n.º 1, relativamente às normas de protecção, são necessários
os seguintes requisitos:
1. Requer-se a presença de uma norma de conduta, devidamente aplicável;
2. Essa norma deve destinar-se a proteger determinados interesses alheios, como tal se
entendendo vantagens juridicamente protegidas e cuja supressão dê azo a um dano;
3. A adopção, pelo agente, de um comportamento contrário à referida norma de
conduta;
4. De tal maneira que sejam precisamente atingidos os interesses protegidos pela
norma violada.
As normas de protecção não têm de advir de leis expressas, podendo ser construídas por
elaboração jurídico-científica, predominando, ainda, regras de direito público.
A natureza da ilicitude
As causas de justificação
A ilicitude ocorre, pela positiva, quando se viole um direito subjectivo ou uma norma de
protecção e, pela negativa, se o agente não se prevalecer de uma causa de justificação.
Causa de justificação será, assim, a eventualidade que torne permitida a implicação de um
dano.
A colisão de direitos
Pode ocorrer que alguém disponha de um direito cujo exercício vá causar danos a outrem,
contradizendo direitos subjectivos do lesado ou inobservando normas de protecção
destinadas a proteger precisamente os interesses atingidos pelo exercício em jogo. Ou,
ainda, pode acontecer que o destinatário de um dever se encontre na contingência de, para
o cumprir, ter de violar um direito alheio ou uma norma de protecção.
Tratando-se de direitos (ou obrigações), aplica-se o art.º 335.º, n.º 1, 2.ª parte, cedendo
todos na medida do necessário, para que todos produzam o seu efeito, sem maior
detrimento para qualquer das partes. Pressupõe-se, assim, que sejam possíveis “cedências”
e “exercícios parcelares”.
A legítima defesa
Assim, o núcleo da legítima defesa é o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e
contrária à lei, pautando-se o preceito pelo prisma das causas de justificação. São
pressupostos da legítima defesa:
a. Uma agressão actual e contrária à lei, contra a pessoa ou património do agente ou de
terceiro;
b. Um acto de defesa necessário;
c. O prejuízo causado pelo acto não ser manifestamente superior ao que pode resultar da
agressão.
O estado de necessidade
O estado de necessidade é a situação na qual uma pessoa se veja constrangida a destruir ou
a danificar coisa alheia, com o fim de remover o perigo de um dano manifestamente superior,
quer do agente, quer de um terceiro (art.º 339.º, n.º 1, CC).
Os pressupostos do estado de necessidade podem extrair-se do art.º 339.º, n.º 1:
i. Um perigo actual de um dano, para o agente ou para um terceiro;
ii. Dano esse que seja manifestamente superior ao dano causado pelo agente;
iii. Um comportamento danoso, destinado a remover esse perigo.
A acção directa
Na legítima defesa, o Direito permite que o particular afaste, pela força, uma agressão ilícita;
no estado de necessidade, pode o mesmo atingir bens jurídicos, para prevenir um dano
iminente. A acção directa consiste na possibilidade de recorrer à força para realizar ou
assegurar o próprio direito (art.º 336.º, n.º 1, CC).
Em princípio, a acção directa coloca-se nas antípodas do modo de ser do Direito, não
podendo ninguém ser juiz em causa própria. São pressupostos da acção directa:
i. A necessidade de realizar ou de assegurar o próprio direito;
ii. O recurso à própria força;
iii. A contenção nos meios usados.
A necessidade de realizar ou de assegurar o próprio direito afere-se por dois parâmetros
(art.º 336.º, n.º 1, CC):
a. A urgência, de modo a evitar a inutilização prática do direito em causa;
b. A impossibilidade de recorrer, em tempo útil, aos meios coercivos normais.
A referência ao “próprio direito” deve ser tomada em termos latos: a acção directa tem
cabimento para defender quaisquer posições activas, desde que suficientemente precisas
para permitirem as conexões subsequentes. A posição jurídica a defender deverá ser
susceptível de coerção jurídica, podendo a necessidade ser ditada por facto humano ou
natural.
O recurso à própria força representa o cerne da acção directa, exigindo-se uma específica
vontade de auto-ajuda ou acção directa, requerendo um máximo de racionalidade, por parte
do agente.
A acção directa pode dirigir-se contra coisas ou contra pessoas, devendo a actuação por ela
pressuposta ser duplamente contida:
1. Não pode exceder o que for necessário para evitar o prejuízo (art.º 336.º, n.º 1, in fine,
CC);
2. Não deve sacrificar interesses superiores aos que o agente vise realizar ou assegurar
(art.º 336.º, n.º 3, CC).
A acção directa é lícita e legitimadora, não tendo o agente, verificados os seus pressupostos,
qualquer dever de indemnizar os danos que dela decorram. Estes serão imputáveis ou ao
“resistente” ou a quem haja ocasionado a situação ou, finalmente, ao risco próprio dos
circunstantes.
O excesso de acção directa verificar-se-á quando o agente ultrapassasse, na sua acção, o que
for necessário para evitar a inutilização prática da posição a tutelar ou, em qualquer caso,
quando sacrifique interesses superiores aos que visava realizar ou assegurar (art.º 336.º, n.º
1, in fine e n.º 3, CC). O excesso é ilícito, com as devidas consequências, admitindo Menezes
Cordeiro a desculpabilidade do excesso, quando os factos ocorram em ambiente de especial
tensão, havendo, contudo, que providenciar quanto aos danos.
O art.º 338.º prevê expressamente a acção directa putativa, na qual o agente age na
suposição errónea de se verificarem os pressupostos que justificam a acção directa. O erro é
possível perante qualquer um dos pressupostos da acção directa. Assim, pode ocorrer que o
agente suponha agir em legítima defesa, quando o caso seja de acção directa, e
inversamente.
O juízo de desculpabilidade seguirá, nos termos gerais (art.º 487.º, n.º 2, CC), a bitola do
bonus pater familias, colocado na concreta posição do agente. Quando tal juízo seja negativo,
o agente não tem cobertura jurídica, devendo indemnizar.
Qualquer um corre o risco de ver, contra si, formar-se uma aparência de acção directa.
O consentimento do lesado
O acto lesivo dos direitos de outrem, é lícito, desde que este tenha consentido na lesão (art.º
340.º, n.º 1, CC). Assim, são pressupostos do consentimento do lesado:
i. Um direito disponível;
ii. Um acto de consentimento;
iii. Um acto lesivo.
A disponibilidade do direito é um requisito basilar, sendo que o consentimento do lesado
não exclui a ilicitude do acto quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons
costumes (art.º 340.º, n.º 2, CC).
Existem, assim, as hipóteses da indisponibilidade de um direito e as hipóteses de, havendo
embora disponibilidade, o consentimento do lesado se revelar ineficaz, para efeitos de
justificação de ilicitude, por o concreto acto ofensivo ser, por si, contrário à lei ou aos bons
costumes. As hipóteses de proibição legal são mais extensas do que poderia parecer,
abrangendo designadamente:
a. Os direitos de personalidade, nos quais existem restrições ponderosas (art.º 81.º, CC);
b. Nos direitos de crédito, onde não é permitida uma renúncia prévia aos direitos do
credor (art.º 809.º, CC), tendo a remissão, sempre, natureza contratual (art.º 863.º,
n.º 1, CC);
c. Não é possível a doação de bens futuros (art.º 942.º, n.º 1, CC);
d. No Direito da Família trabalha-se, em regra, com situações indisponíveis.
O art.º 340.º só opera perante a responsabilidade aquiliana (art.º 483.º, n.º 1, CC),
especialmente com direitos reais e – nas devidas margens – com direitos de personalidade.
O acto de consentimento será, em rigor, um acto unilateral. Não se exclui, no entanto, uma
natureza negocial: o dominus poderá estipular os termos e o alcance da autorização dada,
havendo, nessa eventualidade, liberdade de celebração e liberdade de estipulação.
Dependendo das circunstâncias (art.º 127.º, CC), o consentimento do lesado exigirá
legitimidade, capacidade de gozo e capacidade de exercício. Integrará uma declaração de
vontade, expressa ou tácita, e deverá passar pelo crivo das regras sobre a perfeição e a
eficácia das declarações de vontade.
Se o “lesado” não se encontrar em condições de consentir na lesão, mas esta é do seu
interesse e corresponde à sua vontade plausível (art.º 340.º, n.º 3, CC), o consentimento tem-
se por verificado.
Perante o consentimento do interessado, será levado a cabo um acto lesivo, em sentido
amplo, o qual pode consistir:
i. Num acto que provoque um dano efectivo, de tipo patrimonial ou moral;
ii. Num acto que não seja danoso, mas que integre, todavia, um núcleo de bens aos
quais os terceiros não devam aceder.
O acto lesivo não poderá ir além do consentido. Havendo excesso ou ocorrendo um
consentimento putativo, o agente será responsável pelos danos, salva a hipótese de falta de
culpa.
No Código Civil, Menezes Cordeiro aponta para a existência de oito acepções tendenciais de
culpa:
1. Culpa como negligência, contraposta ao dolo;
2. Culpa como dolo ou negligência, contraposta à ilicitude;
3. Culpa como dolo, negligência, ilicitude e, nalguns casos, a causalidade;
4. Culpa como dolo, negligência, ilicitude e causalidade;
5. Culpa como ignorância censurável – má-fé subjectiva;
6. Culpa como inobservância de deveres específicos de cuidado e de actuação;
7. Culpa como imputabilidade de algo a alguém, incluindo a título objectivo;
8. Culpa como imputação jurisdicional de responsabilidade a um cônjuge, pela
separação ou divórcio.
Menezes Cordeiro entende que o sentido dogmaticamente mais apurado e abaixo utilizado
é o do pressuposto da responsabilidade aquiliana, contraposto à ilicitude, ou seja, uma culpa
em sentido amplo, sem se confundir com a faute. A “mera culpa” deverá ser chamada de
negligência. Assim, define-se culpa como o juízo de censura ao agente por ter adoptado a
conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar
conduta diferente.
O dolo
O dolo trata-se de uma graduação da culpa em sentido amplo, agindo com dolo aquele que
procede voluntariamente contra a norma jurídica cuja violação acarreta o dano.
Existem três tipos de dolo:
i. Dolo directo – o agente actua directamente contra a norma;
ii. Dolo necessário – o agente actua em determinado sentido que, não sendo
propriamente a norma violada, implica, no entanto, a inobservância voluntária desta;
iii. Dolo eventual – o agente actua em determinado sentido que, não sendo o da violação
da norma, pode implicar a inobservância voluntária desta. Menezes Cordeiro entende
que há dolo eventual quando a conduta do agente ainda possa ser reconduzida à
violação da norma e não à simples inobservância de deveres de cuidado. Para tal,
basta averiguar se a conduta do agente era norteada de antemão pela possibilidade
de violação, sendo esta aceite como fim, ainda que instrumental.
A culpa traduz o juízo de censura que recai sobre aquele cuja actuação é reprovada pelo
Direito – culpa lato sensu.
Actualmente, a mera culpa ou negligência tem sido entendida como a violação (objectiva)
de uma norma por inobservância de deveres de cuidado ou, conforme explícito no Código
alemão, por violação do cuidado necessário no tráfego.
O Código Civil refere-se no seu art.º 487.º, n.º 2, relativo à negligência, à diligência do bonus
pater familias, ao invés dos deveres de cuidado.
Contrariamente ao dolo, o qual é de fácil apreciação em virtude de ser suficiente a
constatação de que existiu vontade de prevaricar, a negligência ocorre em situações em que
a violação danosa emerge simplesmente de um desrespeito por deveres de precaução que a
causou.
Os deveres de cuidado e a medida de esforço exigida ao agente são dados pelo art.º 487.º,
n.º 2, o qual define o critério de apreciação da culpa como derivando:
1. Da diligência do bonus pater familias;
2. Em face das circunstâncias de cada caso concreto.
Assim, quem, inobservando a diligência do bonus pater familias, violar objectivamente uma
norma, age com negligência.
Contrariamente ao que ocorre no Direito Penal, em que o tipo negligente tem um âmbito de
aplicação mais estrito (art.º 13.º, CP), no Direito Civil a distinção entre dolo e negligência é
pouco relevante para efeitos de imputação delitual (art.º 483.º, n.º 1, CC).
No entanto, a determinação do montante da obrigação varia em razão da culpa ser por dolo
ou por negligência (art.º 494.º, CC), ocorrendo que na imputação delitual dolosa, a obrigação
de indemnização deve equivaler ao montante do dano, enquanto que na imputação
negligente, o juiz pode determinar uma indemnização inferior, conforme as circunstâncias.
As causas de excusa
É, no Direito Civil, causa de excusa todo o factor que, apesar de não integrar propriamente
a impossibilidade de entender e de querer, consubstanciadora de inimputabilidade, conduz,
no entanto, a uma tal perturbação da vontade do agente que evita o juízo de desvalor,
integrante da ideia de culpabilidade, ou seja, havendo causa de excusa, não há culpa.
Pessoa Jorge consagrou as seguintes modalidades de causas de excusa:
i. O erro desculpável;
ii. O medo invencível;
iii. A desculpabilidade.
Por erro desculpável deve entender-se o falso entendimento, por parte do agente, dos
elementos condicionantes que ditaram a sua atitude objectivamente contrária à norma,
quando não existisse nenhum dever de cautela, em ordem a evitar o engano. O erro deve,
desta forma, recair sobre factores determinantes da conduta – essencialmente – e não deve
ser, ele próprio, fruto de violação de deveres de cuidado – desculpabilidade.
Em princípio, também, o erro não deve recair sobre elementos da ordem jurídica, mas tão-
só sobre elementos de facto.
O medo invencível também exclui a reprovação do agente, pela afectação que acarreta à sua
vontade, que se pretende livre e esclarecida. Necessário é, no entanto, que o medo recaia
em aspectos verdadeiramente condicionantes do comportamento do agente –
essencialidade – e que seja de molde a, em termos de normalidade, explicar o desvio da
vontade – invencibilidade. Quando o medo resulta de uma atitude humana, pode falar-se em
coacção psicológica; quando derive de circunstâncias diversas, a hipótese é de estado de
necessidade subjectivo.
A desculpabilidade, finalmente, surge como factor que, não podendo ser qualificado de erro
ou de medo é, no entanto, de tal natureza que, face ao sentir geral, impede a reprovação do
Direito, com referência a determinada conduta.
A desculpabilidade explica-se como cláusula de segurança, em situações extremas, contra o
rigor das normas de que resultariam efeitos nunca queridos pelo Direito. Assim, a
desculpabilidade manifesta-se quando, por qualquer razão ponderosa, a exigência, ao
agente, do acatamento da conduta devida, ofenda gravemente o princípio da boa-fé.
O dano – generalidades
A tendência actual, nos diversos ordenamentos, vai no sentido de admitir o dano moral
como dano proprio sensu. Constata-se que a responsabilidade civil não tem exclusiva função
reconstitutiva, podendo contentar-se com simples papel compensatório.
A questão da imoralidade por recepção de dinheiro, a troco de valores morais pretendidos,
tem sido afastada em virtude do crescente dinamismo do Direito das Obrigações, como
disciplina predominantemente patrimonial, tendendo os princípios patrimoniais a penetrar
todos os meandros do Direito. Por abstracção, o dinheiro nunca é imoral.
Seria também totalmente injusto deixar sem qualquer reparação civil os danos morais, cuja
ocorrência inflingiria autêntico sofrimento ao lesado. Não se pode negar, no entanto, que a
cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um
sofrimento para o obrigado, pelo que, nessa medida, a indemnização por danos morais
reveste uma certa injunção punitiva, à semelhança, aliás, de qualquer indemnização.
O Código Civil acolhe a ideia de dano não patrimonial, no n.º 1 do art.º 496.º, merecendo a
redacção do preceito críticas da parte de Menezes Cordeiro. No entanto, este Autor entende
que, contrariamente ao que a letra da lei faz parecer, o dano não patrimonial é um dano
autónomo, sendo qualquer um que tenha essas características.
O art.º 495.º trata da imputação por danos patrimoniais provocados nas pessoas que
rodeavam o morto. Estão cobertos os danos derivados das tentativas de salvar o morto, do
funeral e as demais (art.º 495.º, n.º 1, CC) e que recaiam sobre os intervenientes (art.º 495.º,
n.º 2, CC). Estão, ainda, cobertos os danos provocados nas pessoas que dependiam
economicamente do falecido (art.º 405.º, n.º 3, CC).
O art.º 496.º versa sobre os danos não patrimoniais causados, também, nas pessoas mais
próximas do morto. A morte de uma pessoa que provoque, efectivamente, danos morais
complexos nas pessoas que a rodearam, levanta delicados problemas atinentes a dois
pontos:
i. Quem sofre os danos;
ii. Como calcular esses danos.
Em rigor, a morte de uma pessoa pode causar desgosto a um número indeterminado de
pessoas, pelo que o legislador sentiu, então, a necessidade de delimitar, precisamente, quem
sofreu danos, para efeitos de Direito, sob pena de se perder qualquer indemnização útil,
esvaída num sem fim de prejudicados. Portanto, os danos apenas ocorrem nas esferas do
cônjuge não separado, dos filhos e outros descendentes e, na sua falta, os pais e outros
ascendentes e, finalmente, os irmãos ou sobrinhos (art.º 496.º, n.º 2, CC), admitindo
Menezes Cordeiro, em virtude dos valores em jogo e do espírito da lei, uma prudente
interpretação extensiva.
O n.º 4 do art.º 496.º vem dar várias indicações ao juiz, para o cálculo da indemnização, o
qual tenderá a ser fortemente variável, consoante as circunstâncias. Assim, além de se ter
em conta a fórmula dolosa ou negligente da imputação, por remissão para o art.º 494.º,
manda a lei atender aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e aos sofridos pelos
beneficiários acima referidos nos n.os 2 e 3 do mesmo artigo.
Menezes Cordeiro entende que os danos referidos no art.º 496.º, n.º 4, são todos os danos
morais que emergem da morte de uma pessoa – que não directamente a morte, sendo que
a morte é a base da indemnização. Para a delimitação da morte deve atender-se ao tipo
desta. Fala-se em danos sofridos pela vítima e pelas próprias pessoas, apesar de estarem
apenas em causa os danos sofridos por estas, porque não é indiferente, para avaliar o
sofrimento dos sobreviventes, o padecimento da vítima de que todos tiveram
conhecimento. Assim, para computar os danos sofridos pelas pessoas referidas no art.º
496.º, n.º 2, há que computar não só o sofrimento delas, mas o próprio sofrimento do morto.
Os artigos 495.º e 496.º não tratam, nem tinham de tratar, dos danos sofridos pelo próprio
morto, os quais, podendo ser patrimoniais ou morais, derivam das normas que garantem a
sua propriedade (em sentido amplo) e os seus bens de personalidade, conjuntamente com
as cláusulas gerais dos art.os 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1. Nos termos gerais do fenómeno
sucessório, as indemnizações a que tais danos dêem lugar transmitem-se aos sucessores do
morto que podem coincidir, ou não, com as pessoas referidas no art.º 496.º, n.º 2. Havendo
coincidência, as pessoas visadas acumularão indemnizações: directamente, pelos danos por
elas sofridos e a título de sucessão, pelos danos suportados pelo morto.
A doutrina divide-se na questão de saber se, entre os danos sentidos pelo morto que se
transmitem aos sucessores, na óptica da indemnização, se compreende a própria morte.
Para Menezes Cordeiro, se a morte dá lugar a um dano imputável face à própria vítima, em
termos de originar responsabilidade civil, é evidente que o direito à indemnização se
transmite aos sucessores.
No entanto, existe doutrina que duvida da existência de tal dano dado que a morte sobrevém
com a extinção da personalidade da vítima, pelo que esta já não seria pessoa em termos de
poder sofrer o dano-morte e porque o artigo 496.º, n.º 2, ao determinar os beneficiários da
indemnização por morte, excluiria quaisquer outros, por via sucessória. Menezes Cordeiro
responde que o último argumento é completamente inoportuno, dado que nada no art.º
496.º exclui a possibilidade da vítima de uma lesão que lhe cause a morte sofrer danos
ressarcíveis, patrimoniais e morais. Para este Autor, o primeiro argumento não pesa dado
que basta o reconhecimento do direito à vida para existir tal lesão.
Assim, a morte de uma pessoa é, para esta, um dano que pode dar lugar a imputação, sendo
o destino da indemnização, depois, uma questão de Direito das Sucessões.
O art.º 496.º, n.º 2, visa, apenas delimitar os beneficiários, iure proprio, de determinadas
indemnizações por morte de pessoa próxima. É, no entanto, um mapa rígido, que escapa,
inclusive, à própria vontade do morto, o qual, por testamento, por exemplo, poderá querer
indicar o beneficiário da indemnização pela sua própria morte. A consagração de uma
indemnização ao próprio morto permite reforçar o dispositivo do art.º 496.º, n.º 2, tornando-
o mais maleável e permitindo à vítima, nos esquemas do Direito das Sucessões, beneficiar
quem entender.
A solução da querela tem de ser procurada através de uma interpretação valorativa e não de
um esquema aparentado à jurisprudência dos conceitos. Portanto, a questão de saber se o
dano morte é, ou não, indemnizável não pode ficar dependente de lucubrações teóricas,
assentes em exercícios silogísticos formais. O Direito civil não pode deixar de sancionar o
dano-morte. Concomitantemente, consegue-se um esquema que permite a atribuição de
indemnizações complementares.
Existe uma posição – defendida por Antunes Varela, Oliveira Ascensão, Ribeiro de Faria e
Pamplona Corte-Real – que contesta que o direito à vida possa ser indemnizável a favor do
lesado, fazendo-o com os seguintes argumentos:
1. Com a morte cessa a personalidade; logo, não se pode constituir um direito em algo
que já não existe;
2. Os trabalhos preparatórios e o cuidado posto (por Antunes Varela) em contraditar as
iniciativas iniciais de Vaz Serra, favoráveis ao dano-morte, mostrariam que a lei não
consagraria tal solução;
3. O art.º 496.º esgota o universo dos danos indemnizáveis e dos seus beneficiários.
Menezes Cordeiro responde a esta argumentação afirmando que:
1. Se a morte não é ressarcível, então a vida não é um direito subjectivo, representando
tal, por puras razões conceptuais, um enorme retrocesso na defesa da dignidade
humana, alcançada nas últimas décadas;
2. Os trabalhos preparatórios mostram apenas a intenção subjectiva de quem os fez,
não tendo a intenção em análise obtido assento final no Código;
3. O art.º 496.º não esgota o universo a que se aplica, funcionando, ao seu lado, os
artigos 70.º, n.º 1, 483.º, n.º 1, e 2024.º.
Existe uma outra posição – defendida por Galvão Telles, Almeida Costa, Leite de Campos,
Menezes Cordeiro e Menezes Leitão – favorável a que, para além das indemnizações
atribuídas por via do art.º 496.º, ainda haja outras, por danos morais e pela supressão do
direito à vida, do próprio lesado, e que seguem, depois, por via hereditária. Fundamentam
esta posição os seguintes argumentos:
a. Não faz sentido descobrir “direitos” e, depois, negar-lhes o regime; se existe um
direito à vida, então há que dotá-lo da competente tutela aquiliana, logicamente a
favor do seu titular;
b. A actual responsabilidade civil tem funções retributivas e preventivas; ora tais
funções perder-se-ão quando se admitam direitos que desapareçam logo que sejam
violados;
c. A mera aplicação do art.º 496.º, n.º 2, desarticulado do resto do ordenamento,
conduz a resultados inaceitáveis;
d. As indemnizações arbitradas pelos tribunais portugueses são, para Menezes
Cordeiro, totalmente insatisfatórias.
A jurisprudência envereda, na sua larga maioria, pelo caminho de que a morte é um dano
indemnizável, transmissível iure hereditario.
No universo dos danos, remonta ao Direito romano a distinção entre danos emergentes e
lucros cessantes. O dano emergente é o que resulta da frustração de uma vantagem já
existente; o lucro cessante advém da não concretização de uma vantagem que, doutra
forma, operaria.
De Cupis coloca a tónica desta distinção no momento presente ou futuro em que se
verifiquem os interesses atingidos pelo dano, considerando Menezes Cordeiro que tal
asserção é admissível. No entanto, Pessoa Jorge afirma que os danos emergentes são
presentes e os lucros cessantes futuros, estando esta distinção consignada no art.º 564.º, n.º
1. Neste quadro, o lucro cessante consiste no lesado ter a titularidade de um direito que lhe
facultaria um ganho futuro.
Gomes da Silva propõe uma classificação diferente, isolando quatro tipos de danos:
i. A perda ou deterioração de um bem existente no património do ofendido;
ii. Os gastos extraordinários que o ofendido é obrigado a fazer, por força da lesão;
iii. O desaproveitamento de despesas já feitas;
iv. Os lucros cessantes.
Menezes Cordeiro entende que é possível reconduzir os gastos extraordinários e o
desaproveitamento de despesas aos danos emergentes, dado que em ambos os casos se
verifica a frustração de vantagens já existentes, sem contrapartida e por força da lesão.
Esta distinção tem, praticamente, mero interesse descritivo, uma vez que a lei trata, regra
geral, os dois tipos de danos de uma forma unitária.
A natureza do dano
Menezes Cordeiro define o dano como a diminuição de uma qualquer vantagem tutelada
pelo Direito, existindo fundamentalmente duas orientações sobre a sua natureza jurídica:
a. Dano abstracto;
b. Dano concreto.
A teoria do dano abstracto diria que o dano consistiria na diferença de valores existentes no
património, antes ou depois da lesão ou, se se quiser, na diferença entre o valor real do
património com a lesão e o seu valor hipotético se lesão alguma tivesse ocorrido. A teoria do
dano concreto defende, simplesmente, que o mesmo se traduz na lesão de um determinado
bem.
Castro Mendes propõe, em alternativa, a seguinte sistematização para as teorias
explicativas da natureza do dano:
i. Subjectivas;
ii. Objectivas;
iii. Intermédias.
As teses subjectivas defendem que o dano teria por objecto a pessoa ou algo que se define
em função dela, sendo que a sua principal modalidade explicitá-lo-ia como uma lesão a um
interesse subjectivo. As teorias objectivas defendem que o dano implicaria a perda de valor
de um património ou a lesão de uma coisa ou de um interesse (objectivo). As teses
intermédias são de três tipos: as que misturam elementos objectivos e subjectivos, “por
carência de análise”; as que constroem dois conceitos de dano, um objectivo e um subjectivo,
“inutilmente”; as que apresentam o objecto do dano como algo de intermédio entre a pessoa
e o bem.
A teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non defende que o prejuízo
deveria ser considerado como provocado por quaisquer eventos cuja não verificação tivesse
acarretado a inexistência de dano, i.e., o nexo causal dar-se-ia a favor de qualquer evento
que fosse condição necessária do dano.
Menezes Leitão entende que, aplicada ao Direito, a teoria conduz a resultados absurdos.
Efectivamente, ao se afirmar a relevância de todas as condições para o processo causal, já
que per se nenhuma teria força suficiente para afastar a outra, o resultado é abdicar-se de
efectuar uma selecção das condições juridicamente relevantes.
A teoria da última condição só considera como causa do evento a última condição que se
verificou antes de este ocorrer e que, portanto, o precede directamente. Esta orientação não
tem sido acolhida, dado que pode surgir como última condição uma conduta que, em termos
valorativos, pouco ou nada tenha a ver com o dano.
A teoria da condição eficiente pretende que para descobrir a causa do dano terá que ser
efectuada uma avaliação quantitativa da eficiência das diversas condições do processo
causal, para averiguar qual a que se apresenta mais relevante em termos causais. Esta teoria
não fornece, para Menezes Leitão, um verdadeiro critério para o estabelecimento do nexo
causal, ado que a escolha da condição mais eficiente em termos causais apenas é possível
remetendo para o ponto de vista do julgador, o que acaba por redundar num subjectivismo
integral, totalmente inadequado para a construção jurídica.
A teoria da causalidade adequada, defendida pela maioria da Doutrina, designadamente por
Antunes Varela, entende que para que exista nexo de causalidade entre o facto e o dano não
basta que o facto tenha sido em concreto causa do dano, em termos de conditio sine qua non.
É também necessário que, em abstracto, seja também adequado a produzi-lo, segundo o
curso normal das coisas.
A averiguação da adequação abstracta do facto a produzir o dano só pode ser realizada a
posteriori, através da avaliação de se seria previsível que a prática daquele facto originasse
aquele dano (prognose póstuma). A doutrina da adequação aceita que essa aceita que essa
avaliação tome por base não apenas as circunstâncias normais que levariam um observador
externo a efectuar um juízo de previsibilidade, mas também circunstâncias anormais, desde
que recognoscíveis ou conhecidas pelo agente. Tal implica que a doutrina da causalidade
adequada remeta, no fundo, para questões de imputação subjectiva.
Para Menezes Leitão, a teoria da causalidade adequada subjaz ao art.º 563.º do Código Civil,
entendendo, pelo contrário, Menezes Cordeiro que não existe no preceito supra-referido
referência a qualquer adequação.
A teoria do escopo da norma violada defende, pelo contrário, que para o estabelecimento
do nexo de causalidade é apenas necessário averiguar se os danos que resultaram do facto
correspondem à frustração das utilidades que a norma visava conferir ao sujeito através do
direito subjectivo ou da norma de protecção. Assim, a questão da determinação do nexo de
causalidade acaba por se reconduzir a um problema de interpretação do conteúdo e fim
específico da norma que serviu de base à imputação dos danos. Trata-se da posição
defendida por Menezes Leitão.
O art.º 484.º prevê a ocorrência de alguém “afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar
o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa”, sendo “facto”, neste caso, uma afirmação ou
uma insinuação, feita pela palavra (escrita ou oral), pela imagem ou pelo som, que impliquem
ou possam implicar desprimor para o visado. Este resultará – ou poderá resultar – apoucado,
aviltado ou, por qualquer outro modo, diminuído na consideração social ou naquela que ele
se tenha a si mesmo. A pessoa média normal – bonus pater familias – é a bitola da avaliação
do facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome do visado.
A defesa do crédito e do bom nome de cada pessoa pode entrar em colisão com
prerrogativas constitucionalmente garantidas e, designadamente, com a liberdade de
informação ou, pelo prisma subjectivo, com o direito, de cada um, à informação.
Deve ter-se presente que o direito à honra é um direito de personalidade, marcando um
círculo em que o interesse da pessoa beneficiária prevalece sobre quaiquer pretensos valores
superiores.
Quanto se refere a liberdade de informação, há que reportá-la a algo de socialmente útil ou
relevante.
A violação do direito ao crédito ou ao bom nome pode determinar danos patrimoniais e não-
patrimoniais, sendo que os primeiros devem ser ressarcidos, até ao montante do prejuízo,
sendo ainda computáveis danos emergentes e lucros cessantes. Os segundos colocam um
problema de danos morais, a arbitrar de acordo com o art.º 496.º, n.º 3, 1.ª parte. A
indemnização deve, para Menezes Cordeiro, ser suficientemente pesada, para exprimir a
reprovação do Direito e ter efeitos no futuro.
No entanto, a tutela indemnizatória é insuficiente, sendo, em regra, mais importante a
reposição da verdade ou a reparação da ofensa feita.
Para Menezes Cordeiro, o art.º 485.º, n.º 1, não desresponsabiliza (todos) os conselhos,
recomendações ou informações, reportando-se (apenas), aos simples conselhos,
recomendações ou informações, distinguindo-se entre:
i. Indicações circunstanciais, sem consistência aparente e, nessa medida,
insusceptíveis de criar uma situação de confiança na pessoa normal;
ii. Verdadeiros conselhos, recomendações ou informações, nas quais quaisquer
pessoas acreditam e que são susceptíveis de determinar, da parte destas,
efectivas actuações.
Assim, este preceito leva, pois, a distinguir situações “simples”, que não ocasionem
confiança legítima nem induzam condutas, de outras, mais poderosas, em que o informado
se vai auto-determinar (razoavelmente) pelo que ouviu. No primeiro caso justifica-se uma
certa desresponsabilização, no segundo, não.
A sequência vocabular do art.º 485.º, n.º 1, sugere que a desresponsabilização apenas ocorre
em relação ao resultado normalmente ligado à informação prestada. Se o iter desencadeado
pelos conselhos, recomendações ou informações puder esconder perigos ou danos, que o
“aconselhante” conheça (dolo), ou deva conhecer (negligência), já haverá responsabilidade.
Apenas a negligência leve é causa de desresponsabilização.
O legislador, no confronto entre os artigos 491.º, 492.º e 493.º, deu mostras de flutuações
de linguagem que, no fundo, traduzem uma certa dificuldade em descolar da linguagem
napoleónica.
O elemento substancial que dá corpo ao art.º 492.º é uma clara obrigação de prevenir o
perigo dos desmoronamentos: seja evitando vícios de construção, através de uma adequada
observância das regras da arte, seja procedendo à conservação que se mostre necessária. O
conteúdo desta obrigação é totalmente variável, em função das circunstâncias.
A ilisão segue uma de duas vias: ou a prova do cumprimento, ou a demonstração da
procedência de uma causa de excusa.
O final do art.º 492.º, n.º 1, compreende uma hipótese de relevância negativa da causa
virtual – o edifício ruiu por vício ou por falta de manutenção; todavia, verifica-se que os danos
assim ocasionados adviriam, igualmente, de uma outra causa, que não chega a manifestar-
se (a causa virtual), com isso se evitando a responsabilidade (relevância negativa).
O art.º 492.º, n.º 2, convola para a pessoa obrigada, por lei ou por negócio jurídico, a
conservar o edifício ou obra, a responsabilidade por defeito de construção. O dever do
tráfego, passa, como é lógico, para esta.
O art.º 493.º, relativo a danos causados por coisas, animais ou actividades, diz no seu
primeiro número:
“Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver
assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os
animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se
teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
O n.º 2 diz respeito a actividades perigosas.
No tocante a animais, o preceito-base é o art.º 502.º: o dono deles ou qualquer outra pessoa
que os utilize no próprio interesse, responde pelos danos que eles causarem, desde que
resultem do perigo especial que envolva a sua utilização. Este preceito trata de
responsabilidade objectiva, que não pode ser afastada.
O art.º 493.º, n.º 1, trata de algo diferente, prevendo:
i. Alguém que tenha em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar;
ii. Ou tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais,
Responde pelos danos que as coisas ou os animais causarem. O dever de vigilância, que se
deveria manter inter partes, projecta-se, protegendo terceiros. Ficam em aberto duas
hipóteses de alijamento da responsabilidade:
1. A de o vigilante provar que “nenhuma culpa houve da sua parte”;
2. Ou “que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
Assim como ocorre no art.º 492.º, n.º 1, a “presunção de culpa” neste preceito é uma
presunção de ilicitude, i.e., perante os danos, postula-se ter havido inobservância do dever
de vigiar. Com isto, estando em causa animais, a lei visou prevenir o proliferar de danos: o
proprietário, não usando os animais no interesse próprio, sairia da previsão do art.º 502.º.
Quando a coisas: a não haver uma autónoma responsabilidade civil do vigilante, este poderia
ser descuidado, com prejuízo para terceiros.
As “coisas e animais” só podem causar danos em sentido naturalístico, devendo-se, pois,
subentender um tipo de causalidade natural, ligada aos especiais riscos que envolvam.
O art.º 493.º, n.º 2, tem o maior interesse, por computar, subjacente, o princípio geral das
actividades perigosas, dispondo:
“Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou
pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou
todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.”
Havendo uma actividade perigosa, a pessoa que dela se sirva ou que a desencadeie tem
deveres de prevenção e de cuidado a seu cargo: os deveres do tráfego. Tais deveres têm o
conteúdo de, nas condições existentes e de acordo com as (boas) técnicas aplicáveis,
prevenirem danos, pessoais ou materiais.
Quando a actividade seja perigosa e dela decorra danos, é ao beneficiário que cumpre provar
o efectivo cumprimento de tais deveres: tal é o concreto sentido que, aqui, assume a
presunção de culpa.
Os deveres do tráfego
Na base dos deveres do tráfego, tem-se uma situação potencialmente danosa para os
membros da comunidade jurídica e designadamente:
i. Pessoas inimputáveis (“incapacidade natural”) e, como tal, duplamente perigosa:
por poderem apresentar condutas irracionais e, como tal, imprevisíveis e
agressivas e por não responderem, elas próprias e em princípio, pelos danos (art.º
491.º, CC);
ii. Edifícios ou outras obras, que podem sofrer de vícios de construção ou de defeitos
de conservação, não-aparentes e, como tal, susceptíveis de atingir terceiros (art.º
492.º, CC);
iii. Coisas ou animais que estejam sob vigia, postulando, desde logo, o facto de
estarem sob vigilância a eventualidade do perigo, ficando a segurança de
terceiros dependente do vigilante (art.º 493.º, n.º 1, CC);
iv. Actividades perigosas, por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados
(art.º 493.º, n.º 2, CC).
Estas situações podem advir de relações jurídicas específicas (obrigações), legais ou
negociais. No entanto, o que está em causa não é a protecção das partes nas relações
existentes – para isso, valeria a responsabilidade obrigacional – mas sim a de terceiros. Tem
um conteúdo variável até ao infinito.
Para prevenir o perigo, a lei prevê os deveres do tráfego, os quais não são, todavia, pré-
determinados, nem nos seus sujeitos, nem no seu conteúdo, de modo a poderem dar azo a
uma verdadeira obrigação. Eles antes nascem ao sabor das muitas circunstâncias que podem
acompanhar cada uma das situações em presença, disto resultando a inversão do ónus da
prova: é ao lesante que compete fazer prova da sua correcta execução.
Subjacente está uma dupla ideia do legislador: a de incentivar a que, no momento próprio,
sejam tomadas as devidas precauções e a de fazer correr, pelos beneficiários do perigo, o
risco dos danos. Como contrapeso, é-lhes conferida a hipótese de se prevalecerem da
relevância negativa de causas virtuais.
Os deveres do tráfego têm natureza aquiliana, sendo puramente defensivos, visando evitar
danos, não tendo nem sujeitos nem conteúdo pré-determinado. O seu incumprimento, para
Menezes Cordeiro, Carneiro da Frada e Adelaide Menezes Leitão, só releva havendo danos.
A comissão
A incumbência deve ser aceite, sendo que se assim não for, o comissário irá agir como
terceiro estranho, respondendo, nos termos gerais, pelas decisões que tome e ponha em
prática, mas sem com isso envolver a responsabilidade do comitente. Não se exige ao
comissário qualquer aceitação juridicamente operacional, em termos de dar azo a um
contrato, sendo-lhe apenas exigida a imputabilidade geral (art.º 488.º, CC).
Da incumbência e da sua aceitação decorre uma relação entre as partes, entendendo
Antunes Varela que se exige um nexo de subordinação entre o comitente e o comissário, a
qual poderá ter carácter permanente ou duradouro, assim como pode ser puramente
transitória, ocasional, limitada a actos materiais ou jurídicos de curta duração. Para Menezes
Cordeiro, a comissão existe quando alguém encarrgue outrem de agir por conta do primeiro.
Havendo comissão, o art.º 500.º, n.º 1, depende, ainda, dos seguintes pressupostos:
i. A ocorrência de danos – danos;
ii. Causados pelo comissário – causalidade;
iii. Desde que, sbore este, recaia também a obrigação de indemnizar – imputação ao
comissário.
A ocorrência de danos é o ponto de partida de qualquer situação de responsabilidade civil,
não especificando o art.º 500.º, n.º 1, qualquer tipo de danos. Portanto, incluem-se, nos
termos gerais, todos os tipos de danos, incluindo os morais. No entanto, só relevam os danos
que ocorram no âmbito da comissão em jogo.
Os danos resultantes devem ter sido causados pelo próprio comissário, exigindo-se, para
que seja operável a imputação pelo risco sobre o comitente, que também sobre o primeiro
recaia a obrigação de indemnizar (art.º 500.º, n.º 1, in fine, CC). A doutrina divide-se no
tocante ao título de imputação que deverá recair sobre o comissário:
i. O comissário deveria incorrer em responsabilidade delitual – defendida por
Antunes Varela, Rui de Alarcão e Pedro Nunes de Carvalho;
ii. Basta que o comissário incorra em responsabilidade, no âmbito da sua comissão
e isso quer tal suceda a título delitual, quer pelo risco – defendida por Menezes
Cordeiro, Almeida Costa, Sofia Galvão;
iii. Basta que recaia sobre o comissário uma presunção de culpa, sendo, no entanto,
duvidosa a possibilidade de aqui serem abrangidas a responsabilidade pelo risco
ou pelo sacrifício praticado pelo comissário – defendida por Menezes Leitão e
Ribeiro de Faria.
Menezes Leitão nega a possibilidade de a imputação ao comissário ser puramente objectiva
dado que isso impediria a existência do direito de regresso do comitente contra o comissário,
atendendo ao n.º 3 do art.º 500.º, visando a responsabilidade do comitente apenas a garantia
do pagamento da indemnização ao lesado. Menezes Cordeiro, admitindo que, em termos
práticos, a responsabilidade do comitente garanta a do comissário, entende que inexiste,
numa perspectiva técnica, qualquer obrigação de garantia, antes existindo uma clara
obrigação principal.
Para este Autor, o n.º 3 do art.º 500.º deve ser lido no seu contexto, significando que se o
comitente responder pelo comissário responsável pelo risco sobre este recai também a
obrigação de indemnizar.
No exercício da função
Se houver, da parte do comitente, “também culpa”, aplica-se o n.º 2 do art.º 497.º, existindo
o direito de regresso na medida das respectivas culpas e das consequências que delas
advierem, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis (art.º 500.º, n.º 3, 2.ª
parte, CC). Menezes Cordeiro nota que a expressão “também culpa” deve ser interpretada
em sentido amplo, significando “imputação”, seja qual for o título. Assim, a lei prevê a
hipótese de o dano, imputável ao comitente a título de comissão, poder ser-lhe também
imputado, directamente, a qualquer outro título, surgindo várias hipóteses:
a. Que o dano seja imputável a ambos, comitente e comissário, a título de ilicitude e
culpa;
b. Que seja imputável ao comitente, a título de culpa, e ao comissário, a título de risco;
c. Que seja imputável ao comitente a título de risco, por um instituto diverso daquele
do art.º 500.º, e ao comissário, a título de ilicitude e culpa ou, até, a título de risco.
Assim, nestas eventualidades, o direito de regresso do comitente ficará diminuído, havendo
que valorar a medida das imputações em concurso presumindo-se iguais, quando certa saída
não se imponha.
A natureza da responsabilidade do comitente
Para os efeitos do art.º 502.º, deve considerar-se como “animal” o ser vivo não-humano que,
em termos de normalidade social, como tal é considerado. Assim, excluem-se as plantas e
os micro-organismos, as quais são objecto, em certos casos, de regras especiais. Faltando
estas, aplicam-se as regras gerais e, sendo o caso, fazendo o apelo aos deveres do tráfego,
pelo manuseio de material perigoso.
A lei faz uma contraposição fundamental, em termos de responsabilidade:
i. Alguém tem em seu poder um animal com o encargo da vigilância (art.º 493.º, n.º
1, CC) – responde pelos danos que ele causar, salvo provando que agiu sem culpa
ou que os danos se teriam, do mesmo modo, produzido;
ii. Alguém utiliza no seu próprio interesse quaisquer animais (art.º 502.º, CC) –
responde pelos danos que estes causarem, desde que resultem do perigo especial
que envolve a sua utilização.
No primeiro caso, há uma situação específica com presunção de “culpa”, mais
especificamente culpa in vigilando; no segundo, a imputação é verdadeiramente objectiva ou
pelo risco.
A imputação derivada do art.º 502.º pode concorrer com a do art.º 493.º, n.º 1. Assim, o dono
de um cão perigoso tem o dever de o vigiar, presumindo-se, se ele causar danos, a culpa in
vigilando do art.º 493.º, n.º 1, respondendo este pelo risco, se esta presunção for ilidida.
Se alguma causa fortuita ou actuação de terceiro potenciar o perigo, estas enquadrar-se-ão,
da mesma forma, no “perigo especial” envolvido pela utilização do animal, funcionando a
responsabilidade objectiva em pleno. Assim, o descontrolo súbito do animal integra o risco
imputado pelo art.º 502.º.
Além dos danos físicos e patrimoniais, outros relevam e são indemnizáveis.
Natureza; regimes especiais para cães perigosos
No domínio dos danos causados por animais, o art.º 502.º, correspondendo a uma antiga
tradição, consagra um esquema de responsabilidade pelo risco. Independentemente de
saber se o dono ou detentor do animal observou os deveres de cuidado que coubessem e
mesmo que se mostre que os cumpriu, ele responde pelo risco envolvido. Os arestos
jurisdicionais tornam notório que a ordem jurídica sanciona os donos, ficando subjacente,
ainda que de modo indirecto, se houve danos, foi porque não se tomaram as precauções
necessárias, tendo-se, pois, presente, a ideia de ilicitude imperfeita.
Actualmente, existem problemas causados por raças especialmente agressivas de cães que,
ainda que o art.º 493.º, n.º 1, dobrado pelo art.º 502.º, chegassem para a imputação de
danos, levaram o legislador a produzir o Decreto-Lei n.º 315/2009, relativo a animais
perigosos ou potencialmente perigosos, funcionando tais normas como normas de
protecção.
A aplicação da comissão
Subjacente à imputação pelo risco por danos causados por veículos está a ideia da ilicitude
imperfeita, dirigindo-se o risco contra quem tem a “direcção efectiva” do veículo e, portanto,
contra a pessoa que pode prevenir danos, tomando antecipadamente todas as medidas que,
para tanto, sejam necessárias. Tratando-se de pessoa não imputável, a responsabilidade é
filtrada pelo art.º 489.º, imputada a pessoa a quem incumbe a vigilância – e que, aqui, deveria
ter tomado as medidas preventivas necessárias – e isso por forma a não privar o não-
imputável dos alimentos necessários (art.º 503.º, n.º 2, CC).
Havendo responsabilidade por danos causados por veículos, seja por via delitual, seja por via
do risco, as indemnizações caberão, à partida, aos lesados. No entanto, é possível a exclusão
ou limitação, por contrato, no tocante aos danos que atinjam os bens (art.º 504.º, n.º 4, CC,
a contrario).
A ideia básica da lei é a de que, no tocante a acidentes de viação, não deve haver danos por
indemnizar. Dada a generalização do uso de veículos motorizados e os riscos envolvidos,
pretende-se uma socialização lata dos danos envolvidos. O art.º 505.º fixa três casos de
exclusão de responsabilidade:
i. A aplicação do art.º 570.º;
ii. A imputação do acidente ao lesado ou a terceiro;
iii. O caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
A aplicação do art.º 570.º consome a imputação do acidente ao lesado, pelo menos quando
haja culpa deste. Além disso, fixa algumas consequências de ordem geral, para a hipótese do
concurso de “culpas”. A exclusão de culpa opera quando o acidente for, no todo, imputável
ao lesado, com ou sem culpa deste.
Causas de força maior estranhas ao veículo seriam, por exemplo, o desmoronamento da
berma, o atentado terrorista que projectasse a viatura contra um prédio, etc.
A colisão de veículos
O art.º 506.º, n.º 1, regula os casos em que sobrevenha uma colisão de veículos, mas sem ser
possível imputá-la à culpa de nenhum dos condutores intervenientes. Tal eventualidade
pode advir de se verificar que, de facto, nenhum teve culpa ou, muito simplesmente, não se
ter conseguido provar, ou atribuir, a qualquer deles, a causa do acidente.
Prevêem-se duas hipóteses:
a. Ambos os veículos contribuíram para os danos;
b. Apenas um deles lhes deu azo.
Na primeira hipótese, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada
um dos veículos houver contribuído para os danos. Estes são computados conjuntamente,
fazendo-se depois a repartição. Quanto à medida do risco, esta será calculada em função da
perigosidade típica de cada veículo, implicando um camião mais riscos do que um misto.
Na segunda hipótese, a responsabilidade corre por quem, a qualquer título, responda pelo
veículo causador.
A solidariedade
Quando a responsabilidade pelo risco recaia sobre várias pessoas, mesmo quando haja culpa
de alguma ou de algumas, a obrigação de indemnizar é solidária (art.º 507.º, n.º 1, CC). Se a
“culpa” fosse de todas, já haveria solidariedade ex vi art.º 497.º, n.º 1.
Quando algum dos co-responsáveis solidários seja chamado a indemnizar, o que pague tem
direito de regresso contra os demais (art.º 524.º, CC), nos seguintes termos (art.º 507.º, n.º
2, CC):
1. Se todos respondem pelo risco, a indemnização reparte-se entre os responsáveis de
harmonia com o interesse de cada um na utilização do veículo;
2. Se houver culpa de algum ou alguns deles, apenas os culpados respondem; tendo os
restantes o “direito de regresso pleno” contra eles;
3. Se houver vários culpados, há que atentar na medida das culpas respectivas (art.º
497.º, n.º 2, CC).
Quando não se consiga determinar a medida do interesse de cada um, eles presumem-se
iguais, presumindo-se essa mesma igualdade no tocante à medida das culpas (art.º 497.º, n.º
2, in fine, ou art.º 506.º, n.º 2, CC).
A limitação da responsabilidade
Há responsabilidade pelo sacrifício sempre que o Direito admita, como lícita, a prática de
determinados danos mas, não obstante, confira ao lesado o direito a uma indemnização. Por
isso, fala-se, também, em responsabilidade por factos lícitos.
A ideia de base é a de que o Direito, de acordo com critérios nominalmente enformados pelo
interesse público exige, em cetos casos, sacrifícios selectivos que envolvem a supressão ou a
compressão de direitos privados ou o postergar de interesses seus legalmente protegidos.
Quando tal suceda, impõe-se compensar o atingido.
Existem dois requisitos para a fixação de directrizes de ordem geral:
i. A permissão de causar um dano, através da inobservância de direitos subjectivos
ou de interesses juridicamente tutelados;
ii. A imposição de um dever de indemnizar.
A permissão de causar um dano é, seguramente, excepcional. Uma autorização geral para
lesar as pessoas, em áreas de tutela jurídica, não surge compaginável com uma ideia
consistente de ordenamento civil. Pode-se, portanto, falar numa tipicidade de situações de
possível imputação pelo sacrifício, a qual se pode inferir do n.º 2 do art.º 483.º.
As previsões de sacrifício
O instituto da compensatio lucri cum damno, ainda que não consubstancie, em sentido
próprio, uma limitação à indemnização, delimita-a. Assim, os “lucros” da lesão devem influir
no cálcuo da indemnização ou, em alternativa, pode o responsável exigir ao lesado, no
momento do pagamento da indemnização ou posteriormente, a cedência dos direitos que
lhe advenham da lesão, pagando, neste caso, o valor completo da indemnização (art.º 568.º,
CC).
A indemnização solidária só surge quando prescrita por lei (art.º 513.º, CC), ou quando
acordada pelas partes. Nos restantes casos de complexidade subjectiva, aplicar-se-á o
regime supletivo da parciariedade.
Menezes Cordeiro, rejeitando a total relatividade das obrigações, entende que qualquer
terceiro que viole um crédito ou, de alguma forma, colabore com o devedor em tal violação,
é responsável, nos termos gerais, pelos prejuízos causados, desde que se verifiquem os
requisitos da imputação delitual.
Diz-se, em Direito Penal, que há concurso de infracções quando uma pessoa, na mesma
ocasião, pratique vários crimes. A teoria naturalística distingue o concurso real do concurso
ideal:
i. No concurso real, verifica-se que várias acções violam várias normas jurídicas;
ii. No concurso ideal, verifica-se que uma acção viola uma pluralidade de normas.
A ideia do critério da unidade da acção tem vindo a ser abandonada em favor de uma
construção jurídica, mandando não o número de acções verificadas, mas antes o número de
juízos de valor concitados por determinado comportamento juridicamente reprovado,
decidindo o número de tipos legais de crimes praticados pelo agente.
Esta questão é reconduzível a um problema de concurso de normas, uma vez que falar em
pluralidade de juízos de valor legais equivale à menção da pluralidade de previsões
normativas realizadas pela actuação do agente, tendo, quando transplantada para a
responsabilidade civil, uma importância bem menor do que aquela detida no Direito Penal.
Podem, no entanto, ocorrer na responsabilidade civil fenómenos de concurso de normas
merecedoras de atenção por parte da doutrina.
Concurso objectivo
Pereira Coelho entende que as disposições que admitem a relevância negativa da causa
virtual não são excepcionais quando sedimentem a teoria da diferença no cálculo da
indemnização. No entanto, serão excepcionais na medida em que mandem atender, na
determinação do dano, a circunstâncias posteriores à real verificação do dano. Assim, a regra
seria a da irrelevância, ainda que o Autor aceite a aplicação analógica dos casos
consubstanciados na lei como de relevância, a outras hipóteses.
Pessoa Jorge pronuncia-se, pelo contrário, pela relevância da imputação virtual. Este Autor
faz, fundamentalmente, apelo à teoria da diferença: se, estabelecida a diferença entre a
situação real de um património e a sua situação hipotética sem o dano, verificar que, mercê
da intromissão de outro evento, não há qualquer diferença, não haveria responsabilidade.
Antunes Varela, por seu turno, defende a irrelevância negativa da causa virtual, salvo a
hipótese de disposição legal excepcional em contrário. No entanto, este Autor entende que
tal não obsta a que a causa virtual do dano seja tomada na devida conta, quer no cálculo do
lucro cessante, quer na adaptação da indemnização em renda às circunstâncias que vão
sendo conhecidas pelos interessados.
Menezes Cordeiro entende que da lei não se extrai, directamente, qualquer conclusão. As
previsões limitadas de relevância negativa, já referidas, tanto podem conduzir ao aflorar de
uma regra geral como à consagração de simples excepções, insusceptíveis de extensão.
A imputação delitual deriva da cominação, ao autor de um delito, do dever de indemnizar o
dano provocado. Para tanto, basta que o dano seja prefigurado como fim, pelo agente, e que
advenha da utilização, pelo mesmo agente, dos meios postos ao serviço desse fim. Sobre o
todo recai, depois, a previsão da ilicitude, com a culpa. Este Autor não vê como este esquema
possa ser perturbado pelo concurso virtual, mantendo-se todo o processo delitual incólume
ainda quando se estabeleça que, na sua ausência, teria operado uma outra imputação de
dano idêntico.
Na imputação objectiva verifica-se, com as adaptações necessárias, outro tanto. Um dano
é, aí, imputado a uma pessoa, independentemente da prática de qualquer delito, surgindo
os esquemas de imputação objectiva em previsões normativas singulares (art.º 483.º, n.º 2,
CC). Estas previsões singulares cobrem a totalidade da imputação em si, pelo que este Autor
entende que a relevância virtual de qualquer outra eventualidade teria de constar das
respectivas previsões, o que, normalmente, não se verifica.
A primeira conclusão traçada por este Autor é que, a nível factual, o substrato das
imputações delitual ou objectiva em nada é alterado pela eventualidade de concurso virtual.
Salvo nos casos dos artigos 491.º, 492.º, n.º 1, , 493.º, n.º 1 e 802.º, um delito não deixa de o
ser, i.e., não perde a natureza de acto ilícito, sempre que o dano por ele provocado viesse a
emergir de um outro factor nem a imputação objectiva é paralisada em circunstâncias
equivalentes. Assim, Menezes Cordeiro opta pela irrelevância negativa da imputação virtual.
Prescrição
Tal como acontece com o art.º 482.º, no enriquecimento sem causa, também o art.º 498.º,
ao fixar a prescrição do “direito à indemnização”, distingue duas realidades substantivas:
i. O direito potestativo de, uma vez reunidos os diversos requisitos, invocar uma
situação de responsabilidade civil, fazendo nascer a obrigação de indemnizar –
prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve
conhecimento do seu direito, embora com desconhecimento da pessoa do
responsável e da extensão integral dos danos (art.º 498.º, n.º 1, CC);
ii. A situação global de responsabilidade civil prescreve no prazo de 20 anos a contar
do facto danoso (art.º 498.º, n.º 1, in fine, CC).
Menezes Cordeiro acrescenta uma terceira realidade substantiva – a obrigação de
indemnizar prescreve no prazo de 20 anos após a sua constituição (art.º 309.º, CC).
A razão de ser deste preceito reside na seguinte ideia: perante um dano que dê azo a um
dever de indemnizar, a lei pretende uma solução rápida. A incerteza é prejudicial, enquanto
as delongas vão dificultar a reconstituição dos elementos que rodeiem e expliquem o facto
danoso.
O direito de regresso entre os responsáveis prescreve no prazo de três anos (art.º 498.º, n.º
2, CC) – a pessoa chamada por via do regresso deve, quanto possível, estar próxima do facto
danoso.
O prazo trienal liga-se ainda, às perspectivas actuais que descobrem, na responsabilidade
civil, importantes dimensões preventivas e retributivas.
É previsto o alongamento do prazo quando o facto ilícito constituir crime para o qual a lei
estabeleça um prazo mais longo, sendo esse último o aplicável (art.º 498.º, n.º 3, CC). A
aplicação de tal prazo depende apenas de os factos serem subsumíveis numa previsão penal,
sendo que esse alargamento também se aplica ao direito de regresso.
O dever de prestar principal é fixado não pelo seu conteúdo, mas pela sua finalidade – a
supressão do dano. Está-se, assim, perante um vínculo finalisticamente determinado: ao
devedor (ao agente) cabe fazer tudo o que seja necessário para suprimir o dano.
Infere-se daqui que, à partida, o conteúdo concreto da prestação não é conhecido – apenas
se apreende o dano que ela visa afastar. A regra básica, é, sempre, a do princípio da reparação
total. De outro modo, ficará ainda uma parcela de dano por ressarcir, não tendo sido
cumprido o dever de indemnizar.
Por isso e entre outros aspectos:
i. Quando a reparação de um bem não seja viável, a indemnização não deve ser o
do seu valor venal, mas sim o custo da sua substituição;
ii. Prevalece, nos termos legais, a reparação natural, cabendo ao lesado justificar o
porquê de um pedido em dinheiro; a passagem a uma indemnização a dinheiro só
ocorre quando se verifiquem os requisitos legais;
iii. A aplicação do art.º 562.º envolve a actualização do valor em jogo, só sobre ele se
aplicando juros; a obrigação de indemnização é uma obrigação de valor.
Por fim, tem-se os deveres acessórios, que retransmitem, para a obrigação de indemnizar,
os valores fundamentais do ordenamento. Ambos os sujeitos ficam ligados a deveres de
protecção, de lealdade e de informação. Tudo deve ser feito para conter os danos, sendo
trocados todos os elementos necessários para uma correcta reparação.
A obrigação de indemnização tem, por tudo isto, uma natureza própria e um regime
específico. A sua fonte é a responsabilidade civil e a sua estrutura e o seu funcionamento
estão dominados por considerações funcionais e teleológicas.
O Código Civil consagra a seguinte definição de gestão de negócios (art.º 464.º, CC):
“Dá-se a gestão de negócios, quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse
e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada.”
Trata-se de uma forma específica de constituição de obrigações, que não se reconduz nem
a um contrato, nem a um negócio unilateral.
Os requisitos e as acções
A gestão de negócios preenche os artigos 464.º a 472.º do Código Civil, tendo-se o seguinte
quadro:
i. Noção – art.º 464.º;
ii. Posição do gestor – art.os 465.º a 467.º;
iii. Posição do dono do negócio – art.os 468.º a 472.º.
As repercussões da gestão relativamente a terceiros devem ser construídas a partir dos
preceitos referentes ao dono do negócio e na base dos princípios gerais.
Modalidades
A gestão de negócios reporta-se a uma actividade humana que envolve, como serviço, o
ocupar-se de assuntos próprios de uma outra pessoa: o gerido ou gestido. Assim, distingue-
se:
a. A gestão lato sensu, que envolve todas as situações nas quais alguém se ocupe de
negócios alheios;
b. A gestão stricto sensu, que se restringe à intervenção não autorizada, por lei ou pelo
visado, em negócios alheios.
A gestão envolve, em regra, ainda que não exclusiva ou necessariamente, uma prestação de
serviço, por parte do gestor. Tem-se uma série de distinções que operam na base das
possíveis actuações em causa, podendo a gestão ser:
i. Material, jurídica ou mista, consoante envolva a prática de actos materiais,
jurídicos ou mistos;
ii. Momentânea ou continuada, conforme implique a prática de um acto isolado ou
uma alteração prolongada;
iii. Pessoal ou patrimonial, em função da natureza pessoal ou patrimonial;
iv. Simples ou conexa, de acordo com a natureza, exclusivamente alheia do negócio
gestido ou conjuntamente alheia e própria;
v. Pessoal ou profissional, segundo a confluência da actuação desenvolvida com a
própria profissão do gestor: alheia à profissão, no primeiro caso ou própria dela,
no segundo;
vi. Civil, processual, fiscal ou administrativa, seguindo a natureza dos actos que
sejam praticados pelo gestor;
vii. Comum ou de emergência, dependendo de se ter iniciado em circunstâncias
normais ou com vista à prevenção de um perigo eminente ou ao seu
agravamento.
O dono pode reagir diversamente, perante uma gestão alheia dos seus negócios, tendo-se:
a. A gestão aprovada quando ele declare estar genericamente de acordo com o que
tenha sido feito;
b. A gestão não-aprovada, na hipótese inversa.
No último caso, a não-aprovação poderá resultar do puro silêncio do dono ou, pelo contrário,
de uma expressa declaração de discordância. No entanto, esta distinção não se confunde
com outra, a qual tem a ver, em rigor, com os actos praticados pelo gestor em nome do dono,
os quais poderão ser:
1. Ratificados, sempre que o dono os faça seus, operando os seus efeitos perante
terceiros;
2. Não-ratificados, no caso contrário, não operando os seus efeitos contra terceiros.
Figuras afins
A gestão de negócios anda próxima de todas as figuras em que alguém se ocupe de negócios
alheios, distinguindo-se de todas essas situações pelo facto de não pressupor qualquer título
jurídico – contratual ou legal – que habilite o gestor a agir, tendendo também a assumir um
âmbito mais vasto de possíveis actuações.
A gestão de negócios distingue-se, sem prejuízo das potenciais sobreposições de figuras e
das distinções operadas na base do empirismo ou de critérios flutuantes, das seguintes
figuras:
i. Do mandato (art.º 1157.º, CC) – o gestor não celebra um contrato prévio e não
está obrigado a praticar os actos que leve a cabo; além disso, o mandato é
circunscrito a actos jurídicos, enquanto a gestão pode envolver actos materiais;
ii. Da empreitada (art.º 1207.º, CC) – além da falta do contrato, o gestor tem um
campo de actuação que supera o da mera realização de uma obra;
iii. Do depósito (art.º 1185.º, CC) – não há contrato e actuação em jogo não se
circunscreve à guarda de uma coisa;
iv. Da prestação de serviço (art.º 1154.º, CC) – a gestão pode ser uma prestação de
serviço, mas não necessariamente nem pactuada, em momento prévio;
v. Das responsabilidades parentais (art.os 1877.º e ss., CC) – a gestão não é pré-
determinada pela lei, nem envolve deveres automáticos para os gestores;
vi. Da tutela (art.º 1935.º, CC) – a qual substitui, em certos casos, as
responsabilidades parentais.
A gestão implica a prática de actos por conta do dono, devendo ser contraposta:
a. À representação (art.os 258.º e ss., CC) – esta pressupõe a prática de actos jurídicos
em nome do representado (contemplatio domini), por conta dele e havendo poderes
de representação; na gestão, estes actos podem não ser jurídicos, pode não haver
contemplatio domini e não há poderes de representação;
b. À representação sem poderes (art.º 268.º, CC) – o acto é praticado em nome e por
conta do dono, mas sem poderes de representação. Pode haver, neste caso, gestão
(representativa), mas a gestão tem um âmbito mais amplo, ocupando-se da actuação
do gestor e não apenas dos actos que sejam levados a cabo no seu âmbito;
c. No abuso de representação (art.º 269.º, CC) – funcionam os elementos distintivos
indicados para a representação sem poderes;
d. À administração, designadamente de sociedades (art.º 985.º, CC) – o administrador
pratica actos jurídicos e materiais (poder de gestão), repercutindo-os na própria
sociedade (poder de representação), tendo o direito e o dever de o fazer; o gestor não
tem poderes de representação, não tem título para agir e não tem o dever de o fazer.
O gestor actua (ou pode actuar) com terceiros, em benefício do dono. No entanto, tal não
se confunde com um contrato a favor de terceiro, dado que a gestão tem um âmbito que
transcende, ou pode transcender, a mera contratação, com o terceiro, em benefício do dono;
este pode não obter, apenas, o direito a uma prestação; o enquadramento geral da figura
não é contratual e não segue o regime do contrato a favor de terceiro.
A gestão de negócios origina situações que são enquadráveis noutros institutos, como:
1. O enriquecimento sem causa (art.º 473.º, CC) – a gestão pode provocar deslocações
patrimoniais que traduzam o enriquecimento do dono e o empobrecimento do
gestor; os pressupostos do enriquecimento são, todavia, distintos, centrando-se todo
o instituto em efeitos e não ,propriamente, no modo de conduzir a actividade dos
intervenientes;
2. A responsabilidade civil (art.º 483.º, n.º 1, CC) – o gestor, agindo sem título na esfera
do dono, pode provocar danos ou, de todo o modo, pode mover-se num estado de
coisas que o próprio dono pretendesse manter incólume; no entanto, os pressupostos
da responsabilidade civil são distintos.
A gestão de negócios, se devidamente iniciada e conduzida, funciona, na prática, como
causa de justificação – torna lícita uma conduta que, de outra forma, não o seria, inibindo o
dever de indemnizar. No entanto, não se confunde com o estado de necessidade, em virtude
das diferenças nos seus pressupostos:
i. O estado de necessidade requer que o dano a evitar seja manifestamente superior
ao que seja causado para o evitar (art.º 339.º, CC);
ii. A gestão de negócios exige uma consonância com o interesse objectivo do dono
(evitar o perigo) mas não deixa de o ser quando o resultado não seja obtido.
Requisitos – generalidades
O art.º 464.º do Código Civil, dando uma noção de gestão de negócios, fixa os seus requisitos
legais, os quais derivam em linha recta do Direito romano, podendo distinguir-se:
i. A direcção de negócio;
ii. A alienidade;
iii. O exercício;
iv. Por conta do dono;
v. No interesse do dono;
vi. A falta de autorização.
A direcção de negócio
A direcção de negócio referida no art.º 464.º deve ser tomada em sentido amplo,
abrangendo uma actuação directa do gestor e, ainda, uma actuação que, juridicamente, lhe
seja imputável. Pode-se configurar casos nos quais:
a. O gestor se faça representar, para efeitos de gestão;
b. O gestor actua com recurso a auxiliares;
c. O gestor seja uma pessoa colectiva, que actue através dos seus administradores.
“Direcção” traduz ainda a ideia de uma actuação controlada pelo próprio gestor, por
oposição a meras situações de decurso aleatório ou entregues a terceiros.
A ideia de “negócio” deve ser tomada em termos amplos, não se tratando de um negócio
jurídico em sentido técnico, i.e., um facto humano dotado de liberdade de celebração e de
liberdade de estipulação, antes ficando abrangidos:
1. Negócios proprio sensu;
2. Actos jurídicos não negociais;
3. Actos materiais.
O “negócio” abrange, ainda, actuações complexas que redundem em múltiplos actos
jurídicos ou em actuações materiais variadas, falando-se, então, numa única gestão de
negócios sempre que as conexões existentes entre os actos em causa permitam, em termos
operacionais para a determinação do regime, considerar a presença de uma única gestão.
A “direcção de negócio” pode traduzir-se numa abstenção ou numa suportação, sendo que,
conceptualmente, tanto uma como outra podem surgir como objecto de obrigações.
A alienidade
Actuar “por conta” de uma pessoa é expressão retirada do mandato (art.º 1157.º, CC) e que
significa praticar actos destinados à esfera jurídica do beneficiário, existindo três teorias
sobre esta actuação:
i. Teoria objectiva;
ii. Teoria subjectiva;
iii. Teoria da combinação.
De acordo com a teoria objectiva, a actuação por conta do dono surgiria logo que o gestor
agisse no âmbito deste, i.e., “por conta de outrem” adviria da própria alienidade do negócio.
Segundo a teoria subjectiva, apenas a intenção do gestor permite qualificar uma sua
conduta como “para outrem” ou “por conta de outrem”.
A teoria da combinação apela a elementos objectivos e subjectivos, entendendo Menezes
Cordeiro que se trata da teoria mais adequada.
A gestão de negócios assenta numa actuação do gestor, uma acção humana, sendo, por
conseguinte, voluntária e pré-modelada para o seu fim. A intenção só, por si, não é acção,
não sendo juridicamente relevante nem, consequentemente, para a gestão de negócios. E a
sequência não-intencional tão-pouco será acção nem, a fortiori, “gestão” seja do que for.
A acção humana, porque humana e porque acção, não é causal, i.e., não surge como
consequência inelutável de um circunstancialismo natural que a anteceda. Antes deve ser
entendida como acção final, i.e., como uma sequência desencadeada para a obtenção do fim
prosseguido pelo agente. Tudo isto é aproveitável para a explicação da ideia da actuação por
conta de outrem.
No interesse do dono
A falta de autorização
A “falta de autorização” referida no art.º 464.º apresenta um sentido muito lato, devendo o
gestor agir fora de qualquer relação jurídica pré-existente que legitime a sua actuação.
Assim, deve excluir-se:
i. O mandato ou qualquer outro contrato, concluído entre gestor e dono e no seio
do qual se inscreva a actuação levada a cabo;
ii. Uma procuração que, independentemente do dever de praticar o acto, lhe dê,
desde logo, como destino, a esfera do dominus;
iii. Um status (responsabilidades parentais, qualidade de administrador ou de
incumbido da gestão) que o habilite à actuação em jogo;
iv. Uma norma legal que determine a actuação;
v. Uma permissão específica de agir – legítima defesa, acção directa ou estado de
necessidade.
O interesse do art.º 465.º, alínea a), promove a delimitação negativa da actuação do gestor,
não devendo este atentar contra os interesses protegidos do dono, conduzindo tal a
responsabilidade civil.
O art.º 465.º, em três sucessivas alíneas, fixa deveres de aviso, de prestação de contas e de
informação:
b. Avisar o dono do negócio, logo que seja possível, de que assumiu a gestão;
c. Prestar contas, findo o negócio ou interrompida a gestão, ou quando o dono as exigir;
d. Prestar a este todas as informações relativas à gestão;
O aviso de que o gestor assumiu a gestão é óbvio: de outro modo, poderá haver duplicações
de esforços e maiores prejuízos. Além disso, deve ser dada a possibilidade ao dono do
negócio de se ocupar do assunto, interrompendo a gestão, chamando-as a si, ratificando ou
não os actos praticados em seu nome ou nada fazendo. A obrigação de aviso, “logo que
possível”, é o sucedânceo da de realizar os actos previstos no mandato ou de executar
quaisquer serviços de conteúdo não jurídico.
O dever de prestar todas as informações relativas à gestão, imposto pelo art.º 465.º, alínea
d), sempre se imporia por via da boa-fé (art.º 762.º, n.º 2, CC) ou, mais directamente, pelo
dever legal de informar (art.º 573.º, CC), caso estejam em causa elementos que o dono não
possa, desde logo e por si, sem esforço, apreender. O preceito não fixa o momento em que
as informações devam ser prestadas, sendo possível distinguir:
i. Logo no momento do aviso ao dono do negócio, devem ser prestadas todas as
informações pertinentes, designadamente as necessárias para se apreender a
matéria em jogo e os actos praticados;
ii. Sempre que, prosseguindo a gestão, surjam elementos novos, capazes de levar o
dono a intervir ou, em qualquer caso, susceptíveis de representar, para este, um
factor relevante; eles devem ser comunicados ao dominus;
iii. Quando o dono as peça.
As informações a prestar são “todas”, mas desde que razoáveis e pertinentes.
O dever de entrega
O gestor deve entregar ao dominus tudo o que tenha recebido de terceiros no exercício da
gestão ou o saldo das respectivas contas, com os juros legais, relativamente às quantias em
dinheiro, a partir do momento em que a entrega haja de ser efectuada (art.º 465.º, al e), CC).
O dever de entrega, ao dono, é um corolário lógico da actuação havida, por conta dele,
tendo-se várias hipóteses, consoante as circunstâncias:
1. A entrega de coisas corpóreas, obtidas com a gestão;
2. A transmissão, para o dono, de direitos adquiridos pelo gestor, em nome próprio, mas
por conta do dono e no âmbito da gestão;
3. A transferência, para o dono, de posições contratuais ou de débitos, resultantes da
gestão;
4. A manutenção de uma conta-corrente, quando haja entregas e recebimentos de bens
homogéneos ou de valores, com a restituição do saldo a que haja lugar;
5. O pagamento dos juros legais, relativamente às importâncias em dinheiro que o
gestor tenha detido, por conta do dono,
A determinação da exacta obrigação de entrega depende do destino que tenham os actos
celebrados pelo gestor com os terceiros. Ter-se-á, pois, de se indagar se houve, ou não,
aprovação, se ocorreu ratificação e se o dono exerceu as facultades que cabem ao mandante
sem representação.
A responsabilidade do gestor
A culpa é, para Menezes Cordeiro, ponderada, nos termos gerais, ao abrigo do n.º 4.º do
art.º 487.º, aplicável à responsabilidade obrigacional (art.º 799.º, n.º 2, CC). No entanto,
Antunes Varela apela para aquilo que faria o dono do negócio e não o bom pai de família,
invocando a culpa in concreto, considerando Ribeiro de Faria que não se deveria exigir um
grau de diligência superior àquele de que o gestor é capaz. Almeida Costa defende que não
se deve exigir ao gestor um zelo superior ao que este põe nos seus próprios negócios, dado
o “carácter espontâneo e altruísta da gestão de negócios”, tal não se aplicando quando o
gestor actue no âmbito da sua actividade profissional ou quando, ainda que de boa-fé, ele
tivesse afastado da gestão, outra pessoa.
Quando duas ou mais pessoas actuem conjuntamente como gestoras, de certo negócio, as
obrigações delas para com o dono são solidárias (art.º 467.º, CC). No entanto, no caso inverso
– o de haver vários donos de negócio – inexiste base legal para a fixação de uma regra de
solidariedade.
O gestor não tem nenhuma linha pré-fixada de actuação, só podendo este iniciar a gestão
se for objectivamente útil e, tendo-o feito, ele deve respeitar os interesses juridicamente
protegidos do dono do negócio e, ainda, a sua vontade real ou presumida. Assim sendo,
chegar-se-ia a uma situação em que, parente uma gestão puramente danosa, o dono ainda
teria que reembolsar despesas e indemnizar prejuízos, o que não é conformar-se com o
interesse do dono.
Assim, ainda que a lei não o diga expressamente, há, sempre, que proceder a um cálculo
custos/benefícios, antes de condenar o dono a reembolsar as despesas do gestor.
A lei não conduz a uma apreciação de mérito sobre a gestão levada a cabo, assistindo ao
gestor um espaço discricionário de gestão. Por isso se compreende que as despesas a
reembolsar, verificados os requisitos, sejam todas as que o próprio gestor tenha
considerado, fundadamente, indispensáveis (art.º 468.º, n.º 1, CC). Quanto ao “prejuízo”: o
gestor, no seu esforço, pode ser levado a gastar dinheiro (despesas) ou a sacrificar outras
vantagens, patrimoniais ou pessoais, que lhe deveriam caber (prejuízo), devendo estes
também ser indemnizados, pela mesma ordem de motivos e com os limites apontados às
despesas. O dono é responsável pelo (mero) risco, o que envolve, necessariamente, cautelas
e limites.
Se a gestão não for regular, i.e., se, tendo-se iniciado em termos úteis, ela não respeitar o
interesse do dono ou a sua vontade, real ou presumível, não há lugar ao reembolso das
despesas. Para além da responsabilidade fixada no art.º 466.º, n.º 1, apenas poderá haver
azo à aplicação do enriquecimento sem causa (art.º 468.º, n.º 2, CC). Com o seguinte alcance
prático: o dono, tendo obtido efectivas vantagens com a actuação do gestor, deve devolver
a este não as despesas, mas apenas aquilo com que tenha beneficiado, descontadas todas as
desvantagens, com a actuação do gestor, ficando ressalvada a hipótese de, não obstante,
haver aprovação da gestão pelo dono (art.º 468.º, n.º 2, in fine, CC).
A remuneração do gestor
Direitos do dono
O dono detém algumas posições activas, as quais correspondem, de um modo geral, aos
deveres do gestor. Assim, assistem ao dono:
i. A pretensão genérica de que o seu interesse e a sua vontade, real ou presumível,
sejam respeitados (art.º 465.º, al a), CC);
ii. O direito a ser avisado da assunção da gestão (art.º 465.º, al b), CC);
iii. O direito à prestação de contas, findo o negócio ou interrompida a gestão (art.º
465.º, al c), CC);
iv. O direito a pedir a prestação de contas (art.º 465.º, al c), CC);
v. O direito a obter todas as informações relativas à gestão (art.º 465.º, al d), CC);
vi. O direito a haver quanto o gestor tenha recebido de terceiros, no exercício da
gestão, ou o saldo das respectivas contas (art.º 465.º, al e), CC);
vii. O direito aos juros legais relativos às importâncias em jogo, desde o momento da
sua percepção (art.º 465.º, al e), CC).
A aprovação da gestão
A aprovação da gestão não se confunde com a ratificação dos actos que tenham sido
praticados pelo gestor em nome do dono (art.º 268.º ex vi art.º 471.º, CC), ocorrendo que:
1. A aprovação reporta-se à gestão, em bloco; a ratificação, a determinados actos,
selectivamente;
2. A aprovação implica renúncia a indemnizações e reconhecimento de deveres de
reembolso e de compensação por um prejuízo; a ratificação conduz ao acolhimento,
na própria esfera do dono, de actos praticados pelo gestor em seu nome;
3. Pode haver aprovação sem ratificação e inversamente: exprimem institutos distintos,
com regimes próprios.
Aos negócios celebrados entre o gestor, em nome do dono, com terceiros, aplica-se o art.º
268.º (ex vi art.º 471.º, 1.ª parte, CC). O art.º 268.º, por seu turno, diz respeito à representação
sem poderes:
1 Tem-se um acto praticado em nome de outra pessoa (contemplatio domini);
2 Por conta dela;
3 Mas sem os necessários poderes de representação.
O regime do mandato sem representação funciona, na parte aplicável, sempre que o gestor
tenha concluído negócio com terceiros em seu próprio nome (art.º 471.º, 2.ª parte, CC).
Nessa eventualidade, a primeira constatação é a de que o contrato produz os seus efeitos
entre o gestor e o terceiro (art.º 1180.º, CC). Na hipótese de tal contrato não interessar ao
gestor, revelando-se, para ele, como um encargo inútil, poderá o mesmo ser computado
como “prejuízo” para efeitos de ser indemnizado pelo dono, nas hipóteses de a gestão ser
regular (art.º 468.º, n.º 1, in fine, CC) ou de o dono a ter aprovado (art.º 469.º, CC).
O gestor fica obrigado a transferir, para o dono, os direitos adquiridos no âmbito da gestão
(art.º 1181.º, n.º 1, CC), tratando-se de um poder do dono, que este usará como entender.
Salvo limites impostos pela boa-fé, pode o dono recusar acolher mesmo os negócios que,
para ele, sejam vantajosos.
A gestão de negócios pode aplicar-se nos casos em que o gestor procure enfrentar situações
de emergência, suportando despesas e prejuízos para evitar (ou tentar evitar) danos
patrimoniais e pessoais noutras pessoas. Nessa eventualidade, a pessoas em cuja esfera se
evita a provocação de danos são “donas do negócio”.
A Doutrina tem ordenado os diversos elementos que podem conduzir a uma gestão de
emergência:
1. Um perigo eminente de verificação muito provável de um dano, para cuja remoção
ou prevenção não seja possível obter o prévio assentimento do “dono”;
2. Relativo ao património ou à pessoa do “dono do negócio”, admitindo-se que possam
estar em causa pessoas especialmente próximas do dono, como os filhos ou
trabalhadores;
3. Operando-se sempre uma verificação no plano da proporcionalidade do
perigo/custos.
À partida, o regime do estado de necessidade é mais adequado, sendo que, com efeito, uma
actuação de emergência destinada a remover perigos é, em geral, causa de danos e não
(apenas) de despesas. Quanto aos danos, só por excepção eles se limitarão à própria esfera
do agente/”gestor”. Impõe-se também um enquadramento em termos de licitude, que
somente o art.º 339.º pode assegurar.
Relativamente ao regime, este deve ser muito flexível, podendo as circunstâncias ser tão
variáveis que rodeiem o surgimento do perigo e as medidas possíveis para o remover ou
atenuar.
A gestão de negócios pode sobrepôr-se, total ou parcialmente, com outras figuras, nada
permitindo considera-la como um instituto subsidiário. Assim sendo, pode uma determinada
factualidade integrar, além do estado de necessidade, a própria gestão de negócios.
Assim, quando uma factualidade de base integre o estado de necessidade e a gestão de
negócios, podem os interessados escolher a gestão, na margem em que esta, por não exigir
danos a evitar muito superiores aos causados, tenha um âmbito mais extenso de aplicação.
Havendo dúvidas, podem-se invocar os dois institutos em alternativa ou a título subsidiário,
competindo ao tribunal decidir. A Doutrina sublinha a especial versatilidade da gestão de
negócios: à disposição dos interessados.
Natureza da gestão
A gestão de negócios não deixa de invocar a ideia de uma relação de facto, colocando-se o
gestor, social e valorativamente, numa situação tal que não pode deixar de, dele, se esperar
o desenvolvimento de uma actividade útil.
Enquanto fonte de obrigações, a gestão é, analiticamente, um acto stricto sensu uma vez
que os seus efeitos são os da lei, sendo a relação gestor-dono uma obrigação complexa, que
os une sem dever de prestar principal. Assenta, assim, em múltiplos deveres secundários, de
base legal e num dever acessório básico, de protecção.