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Real demais pra ser romance

Guto Leite

só escreve claro quem pensa claro


P. C. Guedes: Romances: teoria e prática

Recebi o Tratado geral da reunião dançante (1998), do Paulo Guedes,


pelas mãos do Fischer, que me disse algo como “o melhor romance urbano da
Porto Alegre recente”, ou “pra tu ir te acostumando com o porto-alegrês” ou. Eu
fazia Especialização em Literatura Brasileira na época, em 2008, aula aos
sábados, e li o romance entre uma e outra aula. Contei pro Fischer que tinha lido
e ele perguntou, na lata: “que tal?” Como bom mineiro, respondi que tinha
gostado. Como mau mineiro, ficou na cara que não tinha gostado. Tenho na
memória, que pode não ser verdade, como sabemos, a cara dele de “talvez tu
não esteja pronto”, ou “talvez tu precise de mais tempo por aqui pra sacar o livro”,
ou “talvez não seja inteligente o bastante pro livro”, ou. A minha síntese, que só
fui dizer aos dois, Paulo e Fischer, oito anos mais tarde, foi a seguinte: trata-se
de um livro real demais pra ser romance.

Quando retornei ao livro, e entre uma e outra leitura são quase dez anos
de morar por aqui, de amaciar meu ouvido para essa língua, de conhecer a
cidade e os espaços fora da cidade que a constituem etc., como também tem
um monte de estudos meus sobre ficção, sobre memória, sobre a relação entre
a literatura e o mundo e tudo o mais, achei que aquele mirrado Guto de 2008
não estava tão errado assim, mas consigo avançar mais na leitura desse belo
romance que é o Tratado, e explicar melhor aquela primeira sensação. Antes de
tudo, pela observação direta de que gostei mais dessa leitura do que da primeira.
(Um bom sinal, me parece, na contramão dos livros que parecem incríveis numa
primeira leitura, bons, somente, na segunda, entediantes na terceira, e assim
vai). Também, sem mediações, reparei que ri muito mais do que há dez anos –
mais adaptado a este humor de punhal, em relação ao humor de tramoia de onde

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nasci –, que me senti muito mais próximo dessa coisa etérea que é a identidade
de um lugar, presente no jeito de citar as pessoas, os lugares, na maneira de
tecer os comentários, que me senti menos repelido pelo porto-alegrês e por certo
tônus de bravata, que mais desafia do que acaricia o leitor.

Indo pras cabeças, o livro parece se organizar em torno de dois


princípios. O primeiro deles, o da relação entre ficção, memória e verdade. Nas
palavras sem meia do narrador: “Tu te engana, outra vez, Vera Lúcia [mas
poderia ser Guto Leite, Luís Augusto, Magali Endruweit, Luciene Simões,
Homero Araújo]: o autor é que é uma projeção do personagem” (p.60),
invertendo provocativamente o vetor entre matéria e representação. O que é
ficção no Tratado? E o que é ficção de modo geral? Já tento responder. O
segundo princípio, na página subsequente:

Estou sentado aqui desde as oito tentando continuar estes


escritos, mas parece que felicidade e inspiração se repelem, ou
o meu senso crítico repele o produto desse conúbio: escrevo e
risco, escrevo e risco e amasso a folha. Não é zelo pela
qualidade literária deste meu diário, só não quero parecer bocó
para meus leitores, mesmo que os leitores sejam apenas
aqueles a quem me dirijo: Vera Lúcia [mas poderia ser...] e eu.
É mais por minha exigência de leitor do que por meu orgulho de
escritor. (p.61)
O que nos deixa com outras duas perguntas: que escritor é possível de um leitor
ideal ou próximo do ideal, ou perfeccionista? Ou ainda: que leitor é postulado
pelo Tratado geral da reunião dançante? São quatro perguntas pra responder e
a vida não é longa, então vamos lá.

Seja na forma estética, seja em sua matéria, as indicações são muitas


de que tudo é ficção no romance e nada é ficção no romance. Tascar logo o
termo “autoficção”, recorrente na crítica nos últimos trinta anos, também diz
pouco. Defendo que uma das principais características do Tratado é ser uma
provocação inteligente justamente sobre o que podemos classificar como
romance e o que podemos chamar de ficção. Imageticamente subordinado, me
vem a ideia de um DNA em que uma coluna são os textos e paratextos do
presente do narrador e outra coluna são os contos que compõem o livro
homônimo dentro do livro. Pra não perder a piada, o DNA do livro é a relação
entre esses dois tempos, constantemente conectados e que se projetam um
sobre o outro, isto é, tanto as memórias e as histórias são comentadas no diário

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que o narrador vai escrevendo, a partir do verão de 1982, quanto o diário faz
referências às passagens de outros tempos, que pouco adiante ganham corpo
ficcionalmente. Uma das piadas mais valiosas do livro é que o Tratado mesmo,
aquele que você compra na livraria, só existe no somatório das duas colunas,
como se “ficção” e “realidade” não bastassem sozinhas.

Essa estrutura espiralada – jeito elegante de expressar uma outra


imagem, talvez mais precisa, a de um pano torcido – responde por muitas
qualidades do romance, como a maneira com que as personagens são
construídas muito rapidamente e de fora pra dentro, primeiro mencionadas e
depois recheadas pelas narrativas em que figuram, ou essa sensação de
espelhos paralelos, em que medimos um tempo no outro e, no limite, medimos
nosso tempo no espelho ficcional do Tratado. Cá pra mim tenho que também
essa estrutura responde pelo rol de mulheres salientado pelo editor Machado
Penumbra Neto ao recusar o romance – a narrativa do grande conquistador, que
pode ou não projetar o autor, como um duplo invertido – e responde pela
ambiência de calor por todo o livro, que representa uma outra Porto Alegre em
relação à capital mais fria do país, seu estereótipo.

Os capítulos não numerados e sem estarem segmentados, por exemplo,


desde o prefácio “Um livro encantado”, do Fischer, parecem sugerir que
poderíamos estar diante do velho conjunto de textos, agora somados às cartas,
ainda lutando para virar livro. Por conta disso, somos sugados à esfera de
intimidade do narrador, como se fôssemos um daqueles poucos
correspondentes selecionados para quem o romance foi enviado inicialmente, o
que abre, ao menos dois caminhos: o primeiro, longe do épico imutável e
dividino, como em Grande sertão, por exemplo, aqui estamos nas pequenezas
da vida cotidiana, não somos os leitores diante do mito, mas somos os primeiros
leitores, os que podem opinar, os que (com alguma imaginação) podem mudar
o curso da obra; o segundo caminho confere à obra um estatuto de “em
construção”, capciosamente, como se o autor ainda não estivesse certo de
publicá-la (afinal, é só pra organizar as coisas na cabeça), mas, em
contrapartida, lançando-a muito próxima à estrutura da vida, esse livro peculiar
que só completamos ao perdê-lo. Como se vê, a organização geral é de fôlego
e poderosa.

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Por esse caminho fica mais razoável responder à segunda pergunta,
sobre qual é, com efeito, a natureza da ficção, de um modo geral, e pensar no
Tratado à luz dessa resposta. Embora não seja intuitivo, me parece razoável
propor que toda ficção dialoga, não com o real, mas com outra ficção,
conformada por nossas consciências e que pensamos depositar bem justa sobre
o real – como em “Sobre o rigor na ciência”, de Borges –, para podermos chamá-
la de realidade. Antes que me pensem maluco, o real existe (as pedras estão aí
para prová-lo, sobretudo nas testas e nas vidraças!); só não precisamos do
Lacan para considerar o real para sempre intangível. A questão é que, pensando
dessa forma, uma boa ficção não consiste numa forma estética que representa
de maneira sensível e aguda um processo social, mas uma uma forma estética
que representa de maneira sensível e aguda uma outra ficção que relacionamos
a uma determinanda época. Sem querer chatear o leitor com minúcias, o cerne
é que um romance pode ser realista demais, lúcido demais, próximo demais do
real e isso não significar que ele seja boa ficção, ou melhor, que ela seja boa
ficção para algumas pessoas e não para a maioria, precisando ser mais opaco
para cumprir certo papel de mediação da “realidade”.

Acaba que o faço aqui é ou um elogio ou uma crítica ambivalentes, ou


seja, ou estou chamando a atenção para o quanto o livro consegue flagrar essa
constelação infinitesimal de detalhes a que chamamos vida – como comparação,
vide o realismo quase didático de O amor de Pedro por João (1982), por exemplo
–, ou estou dizendo que, para a ficção, nem sempre uma maior acurácia quer
dizer uma ficção de maior alcance. Em suma, ser ruim para a ficção pode ser
bom. Ou ainda: tal como vemos embaçado o mundo, faz bem para a recepção
de uma ficção que ela seja também um pouco embaçada.

Com isso, creio que entendemos melhor o comportamento do livro e o


comportamento de sua recepção. Não acho exagerado afirmar que em vários
aspectos o livro ilumina aquilo que nós escondemos em nossas próprias vidas.
Por exemplo: muitas das linhas narrativas do livro simplesmente não dão em
nada. Pessoas se mudam, pessoas vão embora, pessoas voltam, pessoas não
dão a mínima para algo com que o narrador se preocupava muito etc.
Complementarmente, há algumas histórias e personagens que se parecem uns
com os outros e creio que deem conta do quão repetitiva (e original) pode ser a

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vida. A chave para o que proponho pode ser obtida na maneira como é narrado
o reencontro do narrador com Vera Lúcia, que começa assim:

Nosso reencontro em abril de 79 foi fulminante: eu estava na fila


da caixa do Banco do Brasil absorvido no planejamento de um
texto que eu tinha de escrever pra revista do Colégio sobre o
nosso apoio aos professores do estado em greve; (...) (p.81)
Para além da capacidade de manter com poucas pontuações períodos muito
longos (ao que já volto!), o desejo narrado entre os dois é feito sem qualquer
sentimentalismo, pudor ou sensacionismo. Nem transforma o que é corporal em
algo abstrado; nem recua encabulado, falsamento encabulado, na verdade,
porque o encabulado mesmo nem toca no assunto; nem busca se aproveitar da
matéria narrada para interessar o leitor, causar-lhe sensações, digamos. O tom
é médio, direto e, no bom sentido, antiliterário.

Feitas minhas provocações sobre a relação entre o livro e ficção,


gostaria de abordar a terceira e a quarta perguntas, antes de algumas
considerações finais: como um leitor perfeccionista pode escrever um livro? E,
logo em seguida: que leitor o Tratado geral da reunião dançante projeta?

No livro e em seus paratextos fica claro que o Tratado foi escrito e


reescrito por muito tempo. O leitor percebe isso na escolha precisa das palavras,
na variação de ritmos entre frases longas e curtas – nas longas, como na poesia,
é muito fácil perder o pé e deixar o leitor à deriva. O perfil do livro, no entanto, é
menos dessa obsessão do que o encontro de uma maneira de driblá-la: a
incorporação de uma série de “imperfeições” alheias, de usos parciais do perfeito
mecanismo linguístico, a fim de que o conjunto soe como um sistema perfeito de
imperfeições combinadas. Na linha do livro que são as cartas e diálogos no
presente do narrador, o que foi escrito e pelo autor e o que foi escrito por outras
pessoas? Quantas falas e quantas cartas são reais? Se não completamente
reais, há passagens reais? Quais? Quantas? Sei que são perguntas que
poderiam ser feitas a qualquer obra, mas estou afirmando que essa questão é
especialmente importante no livro de Paulo Guedes. Mais do que isso: elas
respondem a uma certa sabedoria de vida, qual seja, não há forma estática,
acabada e perfeita do que quer que seja, o mais próximo que se pode chegar a
um lugar ótimo, bom ou razoável é com outras pessoas e suas línguas e suas
perspectivas. Com isso, me parece, ergue-se essa narrativa de característica tão

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geracional, posto que conjuga diferentes visões de mundo próximas a essa
perspectiva que as orquestras. Como um leitor perfeccionista pode escrever um
livro? Abrindo mão de escrevê-lo. E a partir dessa perspectiva que organiza as
outras eu respondo à quarta e última pergunta.

Certamente o leitor projetado pelo romance é um leitor bastante


qualificado e aqui está uma das tensões que atravessa o livro. Por mais que seja
escrito no mais direito porto-alegrês, lapidado e relapidado pelo autor, o que
tenderia a aproximá-lo do leitor médio, o tipo de humor e a variação geral de
formas (conto, carta, diário) e ritmos pede alguém acostumado aos jogos da
linguagem, da ficção e da literatura. Um exemplo somente, dentre muitos, está
logo na abertura, na carta de Machado Penumbra Neto, que funciona como
prefácio. Assim despede-se o missivista: “Um abraço do amigo, ex-colega e
admirador (...)”. O “ex” em questão se refere somente a “colega” ou também a
“admirador”, já que a carta relata justamente uma impressão negativa sobre o
livro enviado para leitura? Em segundo nível, como assim usar um parecer
negativo de editor como prefácio do livro que o leitor está começando a ler? Não
é lá uma grande injeção de ânimo, certo? Um segundo exemplo (não resisti) está
nas epígrafes. Assim que comecei a pensar que epígrafe é um recurso meio
ambíguo, já que sintetiza, o que é bom, mas dá um carteiraço, o que é ruim, o
autor começa a colocar epígrafes falsas, como “E quem não se sentiria ridículo
voltando para casa com dois jontex no bolso? Bóreas Peixoto: Freud para
conquistadores”. A não ser que seja um livro raro, longe das atuais lupas do
Google, aposto minhas fichas que é um piada com o fértil Bóreas mitológico. Mas
para quem não conhece Joseph Conrad, por exemplo, autor de outras das
epígrafres do livro, como distinguir a piada da não piada, neste caso? Esse misto
de provocação sofisticada e certo despudor no trato com a vida marca fortemente
a obra e, salvo engano, está sintetizado já em seu título.

Tratado geral da reunião dançante é, num primeiro momento, um


piparote. Não há tratados gerais para as reuniões dançantes. Quem esteve lá,
nas originais, e quem viveu seu retorno, nos anos 80-90, sabe disso. Uma das
suas graças é justamente não haver tratado, outra, a de tentar erigir tratados
para se sair um pouco melhor nelas. (Tem ainda como chiste isso que é unir uma
expressão grave, “tratado geral”, a algo que é do entretenimento mais

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descompromissado.) Uma segunda leitura marca um corte geracional muito
específico. Em descrição precisa:

associam-se à reunião dançante a cuba-libre, a turma, cadeiras


e mesas, discos ou conjunto melódico, conforme a idade da
aniversariante e a grana do pai dela. À festinha ligam-se o violão,
o canto livre, os corpos sobre o tapete, a caipirinha, o papo, a
brincadeira, independentemente do pai, da grana, da
aniversariante, do aniversário. (p.178-179) [itálico do autor]
Essa passagem que vai das reuniões dançantes às festinhas ilustra muito mais
do que isso, ou melhor, os encontros são microcosmos das tensões que
atravessaram o país na passagem dos anos 50 para os anos 60, da cuba-libre à
capirinha, dos discos ou conjuntos melócios aos violões etc.. Uma terceira leitura
é a dinâmica mesma das reuniões dançantes em que nem sempre se dança com
quem se quer, muito menos na hora em que se quer. Assim, dançam com o
narrador Ceres, Eliana, Aninha, Miriam, Vera Lúcia e outras, como também os
amigos, Rubem, Flávio etc., e se aponta para uma determinada disposição em
relação à vida – minha quarta leitura. Não se trata de aceitação fatalista do
acaso, mas de entender que a reunião dançante pode ser uma metáfora da vida
no sentido de se comportar com força e inteligência diante do que se apresenta,
mas de não ter a ilusão de que se é possível controlar uma reunião dançante
nem viver demasiadamente no que se projeta, desejos ou planos.

Se é razoável a leitura que proponho até aqui – recapitulemos: duas


colunas relacionadas de tipos de texto e tempos da narrativa, narratividade
colada ao máximo no real, uma obra visivelmente burilada por muito tempo e
ambivalente em relação ao leitor que projeta, fluida na linguagem e exigente em
algumas construções –, o Tratado geral da reunião dançante ocupa um lugar
peculiar na literatura de seu tempo. Para pensar nos contemporâneos, em vez
do balanço sensível, melancólico e cosmopolita de Caio Fernando Abreu
(nascido em 1948), uma visão intelectiva, pragmática e localista1. No lugar da
“barafunda” e da vertigem de um mundo que se repete em Chico Buarque (de

1Com o perdão da nota num texto que é pra ser leve, chamo de “cosmopolita” uma visão que
pensa ou não o local a partir de certa perspectiva global. No melhor dos casos, não apaga o local
pelo global, como é o caso de Caio. Em contrapartida, chamo de “localista” uma visão que pensa
ou não o global a partir do local. No caso de Paulo Guedes, não apagando o primeiro. Não há
um teor necessariamente negativo em nenhum dos dois termos.

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1944), uma visão racional e solar que busca dar conta de como é possível viver
nos rincões de um mundo que (cá entre nós) deu errado.

Espero ter conseguido despertar o leitor para a leitura do livro. Também


espero que tenha ficado claro que o ponto aqui não foi indicar méritos ou
deméritos do Tratado, minha leitura não pretendeu se movimentar por esses
termos. (Paradoxalmente, fico feliz por não ser próximo o bastante do Paulo
Guedes para conseguir ler o romance com alguma distância e poder recomendá-
lo sem constrangimentos.) Me interessou mesmo foi alinhar as razões de por
que devemos ler este livro, sendo que muitos dos aspectos que coloquei aqui
mais tensionam do que distendem a leitura. Em 2008, custei a remar nesse rio;
em 2017, economizei as remadas para postergar o fim. Dentre os sabores da
leitura deste ano, foi reparar que o começo do diário é exatamente no mês em
que nasci, janeiro de 1982. Com bebês em casa, penso que eu estava nessa
condição dependente enquanto o Paulo ou o narrador equilibravam recente
demissão, escola, sindicato, primeiro filho, cartas, contos e diário. Um dos
segredos do Tratado é esse desenrolar da História.

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