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Revista do Instituto Humanitas Unisinos


Nº 427 - Ano XIII - 16/09/2013 - ISSN 1981-8769

A política desnudada. Cinco séculos


de O Príncipe, de Maquiavel

Helton António Bento: José Antonio


Adverse: Maquiavel, o pai Martins:
Uma política da da filosofia política A corrupção política e
incerteza e do conflito moderna a falta de virtù
E MAIS

Perfil: Colby Dickinson e Adam Gelson Luiz Fiorentin:


A filosofia substantiva Kotsko: Abordagem
de Franklin Leopoldo e Agamben e a estreita relação interdisciplinar da saúde
Silva entre filosofia e teologia pública em debate
A política desnudada. Cinco séculos
Editorial

de O Príncipe, de Maquiavel

O
que faz com que uma obra Para  José Luiz Ames, da Universi- sofia que oriente a política com vistas a
como O Príncipe, de Nicolau dade Estadual do Oeste do Paraná — uma sociedade melhor, acentua Bernar-
Maquiavel, siga suscitando Unioeste, uma das novidades dos escri- do Alfredo Mayta Sakamoto, da Uni-
debates e sendo importante tos de Maquiavel foi a reflexão sobre a versidade Estadual do Oeste do Paraná
para compreendermos o fenômeno po- política e o Estado enquanto este ainda — Unioeste.
lítico cinco séculos após sua publicação? estava em formação. Alessandro Pinzani, da Univer-
Para além do senso comum, que estabe- Categorias médicas foram utiliza- sidade Federal de Santa Catarina —
lece um nexo direto entre as ideias do das por Maquiavel em seu pensamento
UFSC, assinala que, para Maquiavel,
pensador florentino e toda a sorte de político, mas de modo transformado,
um bom príncipe é aquele que conse-
vilanias que seriam aceitáveis na políti- observa Marie Gaille, da Universidade
gue estabelecer “um domínio capaz de
ca, a IHU On-Line desta semana ouviu Paris Diderot, na França.
diversos especialistas para ponderar o Ricardo Fubini, da Università degli sobreviver-lhe”.
impacto desse pensamento até nossos Studi di Firenze, na Itália, considera Ma- A obra Agamben and theolo-
dias. quiavel o precursor das revoluções mo- gy  (London: T & T Clark International,
Para  Helton Adverse, da Uni- dernas, e localiza a ruptura com a tradi- 2011), de Colby Dickinson, professor
versidade Federal de Minas Gerais — ção e a violência que isso implica como da Universidade Loyola, em Chicago, é
UFMG, Maquiavel é autor de ideias que basilares de seu pensamento. debatida pelo próprio autor e por Adam
deixaram marcas indeléveis na reflexão Marco Vanzulli, professor na Univer- Kotsko, docente no Shimer College,
política ocidental, sem o apelo à trans- sidade degli Studi di Milano-Bicocca, na também em Chicago. A política é “es-
cendência para explicar o fenômeno Itália, aponta O Príncipe como uma obra petáculo religioso mal disfarçado” e é
político. que é um verdadeiro campo de batalha. A preciso que Agamben aprofunde o nexo
António Bento, filósofo docente investigação maquiaveliana sobre a natu- entre  Paulo e o desenvolvimento do
na Universidade da Beira Interior, em reza do poder, o que ele é e como exer- pensamento econômico, afirmam.
Portugal, assevera que Maquiavel pode cê-lo seguem atuais, pontua. Trata-se de O Prof. Ms. Gelson Luiz Fioren-
ser considerado o pai da filosofia políti- um pensamento que analisa de modo lú- tin concede uma entrevista explicando
ca moderna. A despeito do ódio e des- cido a “política antes do advento do pen-
do que se trata e como será o II Semi-
prezo imensos que gerou, sua influência samento único da liberal-democracia”.
nário do Mercosul sobre pediculose,
política jamais deixou de ser sentida. Gonzalo Rojas, da Universidade
De acordo com José Antônio Mar- Federal de Campina Grande, na Paraíba, escabiose e tungíase: uma abordagem
tins, da Universidade Estadual de Ma- diz que, para Gramsci, Maquiavel inova interdisciplinar, que ocorre no final do
ringá — UEM, a partir dos escritos do ao compreender a política como uma mês de setembro na Unisinos.
florentino, a corrupção deve ser com- ciência autônoma, com princípios e leis A revista IHU On-Line está disponí-
preendida como uma doença que inicia particulares, diferentes daqueles utiliza- vel em html, pdf, e ‘versão para folhear’
em determinada parte do corpo político dos na moral e na religião. na página eletrônica do IHU.
e, se não for debelada, continua a se Na obra fundamental de Maquia- A todas e a todos uma boa leitura e
expandir. vel não há um modelo, projeto ou filo- uma excelente semana!
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REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos
André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio do Centro de Pesquisa e Apoio
Neutzling (inacio@unisinos.br).
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semanal do Instituto Curitiba-PR.
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Telefone: 51 3591 1122 – ramal 4128. acessada às segundas-feiras, Márcia Junges Mtb 9447 Editoração: Rafael Tarcísio
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Sua versão impressa circula às Fachin Mtb 13.062 Atualização diária do sítio:
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Revisão: Carla Bigliardi Silva e Suélen Farias

2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Biografia
6 Helton Adverse: Uma política da incerteza e do conflito
10 António Bento: Maquiavel, o pai da filosofia política moderna
19 José Antonio Martins: A corrupção política e a falta de virtù
24 José Luiz Ames: A atualidade do republicanismo maquiaveliano
29 Marie Gaille: O governante e o médico e a importância do prognóstico antecipado
34 Riccardo Fubini: Maquiavel, o precursor das revoluções modernas
38 Marco Vanzulli: Uma obra que é um campo de batalha
43 Gonzalo Rojas: A política desnudada
47 Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto: O Príncipe e a falta de uma utopia política
51 Alessandro Pinzani: Maquiavel e as instituições estáveis como objetivo da ação política
55 Baú da IHU On-Line

DESTAQUES DA SEMANA
57 PERFIL: A filosofia substantiva de Franklin Leopoldo e Silva
61 LIVRO DA SEMANA: Colby Dickinson e Adam Kotsko: Agamben e a estreita relação
entre filosofia e teologia
67 Destaques On-Line

IHU EM REVISTA
73 Agenda de Eventos
75 Retrovisor
76 Publicação em Destaque: A pessoa na era da biopolítica: autonomia, corpo e sociedade www.ihu.unisinos.br
77 Entrevista de Eventos: Gelson Luiz Fiorentin: Abordagem interdisciplinar da saúde
pública em debate
79 Sala de Leitura

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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Biografia

Tema de Capa
Nicolau Maquiavel (1469-1527) e a partir dessa experiência retirou de publicado postumamente, em
nasceu em Florença, na Itália. Foi his- alguns postulados para sua obra. De- 1532. Teve origem com a união de
toriador, poeta, diplomata e músico pois de servir em Florença durante Giuliano de Médici e do Papa Leão
italiano do Renascimento. É reconhe- 14 anos foi afastado e escreveu suas X, com a qual Maquiavel viu a pos-
cido como fundador do pensamento principais obras. Conseguiu também sibilidade de um príncipe finalmente
e da ciência política moderna, pelo algumas missões de pequena impor- unificar a Itália e defendê-la contra
fato de ter escrito sobre o Estado e o tância, mas jamais voltou ao seu anti- os estrangeiros, apesar de dedicar a
governo como realmente são, e não go posto como desejava. obra a Lourenço de Médici II, mais jo-
como deveriam ser. Os recentes estu- Como renascentista, Maquiavel vem, de forma a estimulá-lo a realizar
dos do autor e da sua obra admitem se utilizou de autores e conceitos esta empreitada. Outra versão sobre
que seu pensamento foi mal interpre- da Antiguidade clássica de maneira a origem do livro diz que ele o teria
tado historicamente. nova. Um dos principais autores foi escrito em uma tentativa de obter fa-
Desde as primeiras críticas, fei- Tito Lívio1, além de outros lidos atra- vores dos Médici, contudo ambas as
tas postumamente pelo cardeal inglês vés de traduções latinas, e, entre os versões não são excludentes.
Reginald Pole, as opiniões, muitas ve- conceitos apropriados por ele, encon- A obra está dividida em 26 capí-
zes contraditórias, acumularam-se, de tram-se o de virtù e o de fortuna. tulos. No início ela apresenta os tipos
forma que o adjetivo maquiavélico, de principado existentes e expõe as ca-
criado a partir do seu nome, significa O Príncipe racterísticas de cada um deles. A partir
esperteza, astúcia, aleivosia, maldade. “O Príncipe” é provavelmente o daí, defende a necessidade de o prín-
Maquiavel viveu a juventude livro mais conhecido de Maquiavel cipe basear suas forças em exércitos
sob o esplendor político da República e foi escrito no ano de 1513, apesar próprios, não em mercenários. Após
Florentina durante o governo de Lou- tratar do governo propriamente dito e
renço de Médici e entrou para a polí- dos motivos por trás da fraqueza dos
1 Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.): historiador
tica aos 29 anos de idade no cargo de romano. Autor de Ab urbe condita (Desde
Estados italianos, conclui a obra fazen-
Secretário da Segunda Chancelaria. a fundação da cidade), na qual narra a do uma exortação para que um novo
Nesse cargo, observou o comporta- história de Roma desde sua fundação, príncipe conquiste e liberte a Itália.
em 753 a.C., até o início da Era Cristã.
mento de grandes nomes da época Escrevia em latim. (Nota IHU On-Line)
Fonte: http://bit.ly/sigVc

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EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 5


Uma política da incerteza e
Tema de Capa

do conflito
Autor de ideias que deixaram marcas indeléveis na reflexão política ocidental,
Maquiavel se recusa a enquadrar a política em um esquema normativo, observa
Helton Adverse. Sem o apelo à transcendência para explicar o fenômeno político,
o florentino reconhece no Estado o aglutinador e organizador do conflito

Por Márcia Junges

M
aquiavel é um pensador que “mina ro. Pelo contrário. Ao incorporar como um
nossas certezas, abala nossas con- dos conceitos fundamentais de sua reflexão
vicções e nos alerta que, ao aden- a noção de Fortuna, Maquiavel conserva, no
trarmos no domínio da ação política, somos interior de sua própria ‘filosofia política’, a in-
vulneráveis aos efeitos daquilo que nós mes- certeza e o inacabamento da ação política”. A
mos produzimos, sem ter sobre as ações um atualidade da obra de Maquiavel se dá, entre
controle definitivo”. A reflexão é do filósofo outros aspectos, por pensar o caráter relacio-
Helton Adverse, em entrevista concedida por nal do exercício do poder, o que pressupõe
e-mail à IHU On-Line. “Um livro como O Prín- “seu constante enfrentamento e a necessidade
cipe esclarece que o poder é algo a ser sempre de seu rearranjo. Nesse sentido, a atual crise
conquistado; mostra também que as circuns- de representatividade é mais um capítulo da
tâncias que o condicionam são mutáveis e que história política moderna na qual o povo foi al-
o homem político deve, se quiser continuar çado ao patamar de agente político”.
a exercer o poder, demonstrar sensibilidade Helton Adverse é graduado em Psicologia
às alterações trazidas pelo tempo”. Seu pen- pela Fundação Mineira de Educação e Cultu-
samento, destaca Adverse, “se alimenta das ra, mestre e doutor em Filosofia pela Univer-
(e está também exposto às) instabilidades do sidade Federal de Minas Gerais — UFMG com
campo político que examina”, e não deve ser a tese Aparência, retórica e juízo na filosofia
considerado como uma obra acabada ou sis- política de Maquiavel. Docente na UFMG, é
temática, pois “não oferece um saber seguro autor de Maquiavel. Política e Retórica (Belo
sobre a ação política de modo a proporcionar Horizonte: UFMG, 2009).
àquele que o conhecesse o êxito duradou- Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a relação está em questão não é simplesmente controle sobre seus subordinados, o
entre aparência, retórica e juízo na a necessidade de o governante recor- que resolveria a política em um jogo
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filosofia política de Maquiavel? rer a um conjunto de técnicas que lhe de aparências no qual a “verdadeira
Helton Adverse - Em diversas assegurem a composição de uma boa política” seria a dos bastidores, isto é,
passagens de seus livros, Maquiavel imagem tendo em vista a dominação: não seria visível a não ser para aque-
chama a atenção para o seguinte fato: na verdade, Maquiavel observa que o les que se encontram no centro do
as relações de poder não são devida- problema da imagem e da aparência poder. Ora, Maquiavel nos diz exata-
mente compreendidas se não forem está no fundamento do poder. Dizen- mente o contrário.
referidas à dimensão “imaginária” do de outra maneira, a imagem não
da política. Isto significa que aquele é algo acessório, um mero “fenôme- Ser e aparência
que exerce o poder (o príncipe) deve no de superfície” da política, mas um Por exemplo, em um trecho mui-
levar em consideração, no exercício dos eixos em torno dos quais se es- to conhecido, presente no capítulo
de seu governo, o impacto que sua truturam as relações de poder. Caso a XVIII de O Príncipe, ele afirma que os
imagem exerce sobre aqueles que imagem fosse este mero “fenômeno homens, em sua maioria, julgam com
governa. Esta é, certamente, uma de superfície”, aumentariam as possi- os olhos, ou seja, julgam à distância;
máxima prudencial conhecida muito bilidades de o príncipe dominar uma poucos são aqueles que “podem
antes de Maquiavel. Porém, o que técnica que lhe asseguraria um firme tocar” o príncipe e, consequente-

6 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


mente, julgá-lo com “as mãos”. Estes Helton Adverse - Sob diversos Ora, parece claro que reencon-

Tema de Capa
“muitos” que julgam com os olhos, aspectos, o pensamento de Maquia- tramos o problema da indistinção en-
Maquiavel denomina “vulgo”, e, diz vel exerceu influência sobre Hannah tre ser e parecer em Maquiavel. Com
ele, no mundo “só existe o vulgo”. Arendt. Alguns dos temas centrais da efeito, a virtù (como excelência per-
É, portanto, neste encontro com o obra da filósofa alemã mantêm es- formativa plenamente efetivada na
“vulgo”, sendo objeto de seu juízo, treita relação com as preocupações glória) manifesta toda sua potenciali-
que o príncipe se constitui como um maiores de Maquiavel, dentre eles dade somente sob a condição de que
homem de poder. O juízo elaborado o problema da fundação do corpo esteja abolida a distância que separa
na proximidade do tato, embora seja político. No entanto, acredito que o ser de seu aparecer: sem a chance-
politicamente relevante, é insuficien- seja importante destacar um ponto la do reconhecimento, o homem de
te para a conformação do espaço po- fundamental, para o qual suas obras virtù vê abortadas as possibilidades
lítico. Mais precisamente, este juízo convergem: apesar das diferentes de se constituir como um homem de
não é “originário” do político porque vias que seguem, ambos os pensa- poder.
não é um juízo “público”. O “juízo das dores concordam que na política ser
mãos” indica a necessidade de uma e parecer coincidem. A via, porém, IHU On-Line - Qual é o nexo
“técnica” política (o homem de poder que conduz Arendt a esta conclusão entre o desejo de liberdade e a Re-
deve saber o que faz e saber se distin- passa por Maquiavel. Isto fica claro pública no pensamento maquiave-
guir de sua pessoa pública). quando lemos as considerações da liano? Qual é a atualidade dessa
Contudo, a “primazia” do “juízo autora sobre a natureza da ação po- concepção?
do olhar” embaralha a distinção entre lítica, presentes sobretudo em seu Helton Adverse - A república,
homem público e homem privado, o livro A Condição Humana (São Paulo: para Maquiavel, é a única forma de
que nos permite entender que no es- Forense Universitária, 2010). Um dos organização política na qual os ho-
paço político não é possível distinguir traços característicos da ação é sua mens encontram a liberdade política.
ser e aparência. É exatamente devido irredutibilidade a categorias como Isso porque a república implica, por
a essa impossibilidade de separar ser meio e fim, o que significa que, em um lado, a não dominação dos cida-
e aparência que a política revela sua certa medida, a ação é fim nela mes- dãos por um grupo em especial ou
“homologia estrutural” com a retóri- ma. Sendo assim, é possível identifi- por um único homem (todos estão
ca. O discurso retórico se caracteriza car o elemento propriamente “per- submetidos à lei). Por outro lado, a
pela suspensão dessa distinção, to- formático” na política. Arendt, então, república corresponde a uma forma
mando as palavras em sua capacida- relembra (ao contrário da tradição de associação política na qual os ci-
de “efetiva”, isto é, sua força plástica, interpretativa que vê no florentino o dadãos se veem na necessidade de
seu poder de conformação da reali- pensador do pragmatismo político) participar mais ou menos ativamente
dade. Nesse sentido, a retórica não que Maquiavel já havia intuído esta da vida pública, isto é, os cidadãos
concerne à essência das coisas; antes, dimensão performática com seu con- exercem efetivamente o poder. Mas
ela é o discurso que pressupõe e, ao ceito de virtù. Na leitura de Arendt, o é preciso lembrar que o desejo de
mesmo tempo, reinaugura a coinci- conceito maquiaveliano é mais bem liberdade não é um desejo “natural”,
dência entre ser e aparecer. compreendido à luz das artes per- o que quer dizer que Maquiavel o
formativas, como o teatro. Isso não compreende como um desejo políti-
IHU On-Line - Como política e significa identificar o espaço político co, que se constitui no âmbito da vida
aparência se conciliam no pensa- com o palco, mas a analogia permite política. Em princípio, ele é reativo,
mento de Hannah Arendt1 a partir de compreender que, à semelhança de isto é, ele é um desejo (típico daque-
suas leituras de Maquiavel? um ator, o agente político aparece em les que Maquiavel chama de “povo”)
um espaço público no qual, por meio de não ser dominado pelos homens
de sua ação, uma história é realizada que têm proeminência e que desejam
1 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa
e uma personagem ganha existência. dominar (que Maquiavel chama de
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e socióloga alemã, de origem judaica.
Foi influenciada por Heidegger, Hus- A qualidade requerida para a excelên- “grandes”). Porém, o desejo de liber-
serl e Karl Jaspers. Em consequência a cia desta atuação seria, no entender dade ultrapassa o limite de uma ca-
perseguições nazistas, em 1941, partiu
para os Estados Unidos, onde escreveu
de Arendt, o que Maquiavel chamou tegoria de cidadãos (o “povo”), uma
grande parte das suas obras. Lecionou de virtù e sua consequência mais visí- vez que ele pode coincidir com o bem
nas principais universidades deste país. vel seria a glória. comum, isto é, estar livre da opres-
Sua filosofia assenta numa crítica à so-
ciedade de massas e à sua tendência
são e viver sob leis. É esta capacidade
para atomizar os indivíduos. Preconiza Edith Stein. Três mulheres que marca- de “universalização” do desejo de li-
um regresso a uma concepção política ram o século XX, disponível em http:// berdade que o transforma no desejo
separada da esfera econômica, tendo bit.ly/v0aMxT, e 206, de 27-11-2006, in-
como modelo de inspiração a antiga titulada O mundo moderno é o mundo
político por excelência e que permite
cidade grega. Entre suas obras, estão: sem política. Hannah Arendt 1906-1975, compreender por que a república é a
Eichmann em Jerusalém - Uma reporta- disponível em http://bit.ly/1aEYDyQ. única forma de associação política ca-
gem sobre a banalidade do mal (Lisboa: Nas Notícias Diárias de 04-12-2006, você
Tenacitas, 2004) e O Sistema Totalitá- confere a entrevista Um pensamento
paz de satisfazê-lo.
rio (Lisboa: Publicações Dom Quixote, e uma presença provocativos, conce- Esta concepção de “liberdade
1978). Sobre Arendt, confira as edições dida com exclusividade por Michelle- pública” conserva sua atualidade pela
168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, sob -Irène Brudny, disponível em http://bit.
o título Hannah Arendt, Simone Weil e ly/17SjvPl. (Nota da IHU On-Line)
seguinte razão: podemos facilmente

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 7


ver que os conflitos entre diferentes ximo de Maquiavel, Leonardo Bruni3. ça, além da dimensão real, comporta
Tema de Capa
interesses caracterizam a arena públi- Do clássico de Vegetius (De re milita- também uma dimensão imaginária
ca e podemos igualmente ver que a ri), Maquiavel retoma as linhas gerais e simbólica, o que quer dizer que a
liberdade política não decorre de sua da argumentação, assim como o tom força é efetiva não apenas nas “vias
supressão, mas de nossa capacidade, nostálgico. Do De militia, de Bruni, a de fato”, mas também por aquilo que
como cidadãos, de absorvê-los e su- vigorosa defesa do estabelecimento deixa entender e faz suspeitar. Nesse
bordiná-los ao bem comum. de armas próprias e a crítica ao costu- sentido, a força é tão mais eficaz po-
me florentino de contratar mercená- liticamente quanto mais é suposição
IHU On-Line - Em que consiste a rios. O que se sobressai das diversas de força, e o homem de poder é tão
arte da guerra, em Maquiavel? Quais linhas argumentativas desenvolvidas mais poderoso quanto mais hábil é
são os pensadores que o influen- por Maquiavel, é o reconhecimento ao se movimentar na margem ampla
ciaram no desenvolvimento desse da limitação de uma concepção es- construída pela imaginação política.
conceito? sencialmente “irênica” da política, Esta é uma lição que Hobbes4 apren-
Helton Adverse - Da Arte da isto é, a ignorância de que as armas, deu e que irá desempenhar um papel
Guerra integra as considerações po- como ele afirma no capítulo XII, de O fundamental em sua teoria política.
líticas de Maquiavel, longe de se Príncipe, sejam um dos fundamentos
constituir como algo secundário. Vale do Estado. IHU On-Line - O que muda na
a pena notar que, dentre os “escri- concepção de Estado e poder a partir
tos políticos”, o livro sobre a arte da IHU On-Line - E quanto à ques- dos escritos desse pensador?
guerra foi o único publicado durante tão do uso da força na política, como Helton Adverse - O pensamento
a vida de Maquiavel. Nesta obra, vá- esta se apresenta ao longo de seus de Maquiavel deixou marcas profun-
rias de suas teses políticas são identi- escritos? das na reflexão política ocidental. Sob
ficadas e apresentadas sob uma nova Helton Adverse - Como afirma diversos aspectos, ele pode ser con-
luz. Por exemplo, o importante tema o citado capítulo XII de O Príncipe, siderado um precursor, dando, pela
da imitação dos antigos ganha um um dos alicerces do domínio político primeira vez, um tratamento concei-
novo tratamento, circunstanciado na são as armas; logo, a força. Porém, é tual a temas tão importantes quanto
reflexão sobre a ordenação da força necessário lembrar que as armas não o do conflito político, o da revolução,
militar. O tema da força e sua relação esgotam o tema da força. O capítulo o da aparência, etc. Além disso, vale a
com a política aí também encontra XVIII de O Príncipe destaca duas for- pena notar que Maquiavel se recusa a
lugar, assim como o da fraude e da mas de “combate político”: a forma enquadrar a política em um esquema
dissimulação. Mas é necessário ob- “humana” (as leis) e a forma “bestial” normativo. Esta é a origem da rotu-
servar que a questão da milícia é, por (a força). Daí é possível seguir duas lação de sua obra como “realista”, o
si só, algo de extrema importância séries de considerações: a primeira que é pertinente em certo sentido.
para Maquiavel, desde a época em nos faz entender que a força está in- Entretanto, o que me parece funda-
que ocupava o cargo de secretário tegrada à vida política como um dos mental é que Maquiavel assume, com
da Segunda Chancelaria de Floren- aspectos da ação. Nesse sentido, não muita coragem, os riscos de pensar a
ça. Já nessa época Maquiavel estava é razoável para Maquiavel acreditar política sem qualquer referência a fa-
convencido de que a organização de que o campo da política seja essen- tores transcendentes. Por esse moti-
uma força militar é crucial para uma cialmente o domínio da harmonia, da vo, seu pensamento se alimenta das
cidade assegurar sua independência concórdia e do consenso. Maquiavel (e está também exposto às) instabili-
e dar vazão a suas ambições políticas. está ciente de que a forma “huma- dades do campo político que exami-
Junte-se a isso o fato de que a prática na” da ação encontra seus limites na. Seu pensamento não é uma obra
militar é um poderoso instrumento na própria natureza da vida política: acabada, sistemática, não oferece um
de consolidação da virtude cívica. Em em momentos cruciais (como o da saber seguro sobre a ação política de
poucas palavras, a arte da guerra é guerra, mas não apenas) o exercício modo a proporcionar àquele que o
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imprescindível para a vida política na do poder não pode dispensar o exer- conhecesse o êxito duradouro. Pelo
medida em que atende a uma neces- cício da força e a presença de algum
sidade externa (a defesa da cidade) e grau de violência. Dizendo de outra 4 Thomas Hobbes (1588–1679): filósofo
a uma necessidade interna (a educa- maneira, a política não pode ser re- inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã
ção cívica). duzida à experiência do diálogo e do (1651), trata de teoria política. Neste
livro, Hobbes nega que o homem seja
Vale ainda lembrar que Maquia- entendimento e do uso da racionali- um ser naturalmente social. Afirma, ao
vel encontra muitos antecessores em dade. Por outro lado (e essa é a se- contrário, que os homens são impulsio-
sua reflexão sobre o tema. Podemos gunda série de considerações), a for- nados apenas por considerações egoís-
tas. Também escreveu sobre física e psi-
destacar dois: o primeiro, o romano cologia. Hobbes estudou na Universidade
Vegetius2; o segundo, bem mais pró- para a medicina veterinária. (Nota da de Oxford e foi secretário de Sir Francis
IHU On-Line) Bacon. A respeito desse filósofo, confira
3 Leonardo Bruni (1369-1444): Filósofo a entrevista O conflito é o motor da vida
2 Vegetius (Publius Flavius ​​Vegetius humanista, historiador, chanceler italia- política, concedida pela Profa. Dra. Ma-
Renatus): escritor do Império Romano. no e secretário papal de quatro pontífi- ria Isabel Limongi à edição 276 da revista
Escreveu Epitoma rei militaris (tam- ces. É reconhecido como um dos primei- IHU On-Line, de 06-10-2008. O material
bém conhecida como De re militari) e ros historiadores modernos (Nota da IHU está disponível em http://bit.ly/q6Wr-
Digesta Artis Mulomedicinae, um guia On-line) Na. (Nota da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


contrário. Ao incorporar como um
“Maquiavel intui dirigirmos nossa atenção para o atual

Tema de Capa
dos conceitos fundamentais de sua problema da corrupção, poderemos
reflexão a noção de Fortuna, Maquia-
vel conserva, no interior de sua pró-
algo que será então nos perguntar se ele não indica
a limitação de nossas instituições po-
pria “filosofia política”, a incerteza e o
inacabamento da ação política.
definitivamente líticas, sua incapacidade de assegurar
uma participação política mais efetiva

No campo da incerteza
incorporado na e fomentar um engajamento político
mais consistente.
A leitura de sua obra, por conse-
guinte, nos revela uma face da vida
história teórica e IHU On-Line - O que O Príncipe,
política que até então permanecia na prática do Estado de Maquiavel, tem a nos dizer em
sombra em razão da ênfase concedi- um momento no qual a democracia
da à racionalidade e à previsibilidade. moderno: o representativa passa por grandes
Maquiavel faz exatamente o oposto: questionamentos não só no Brasil,
mina nossas certezas, abala nossas Estado encontra, mas em grande parte do mundo?
convicções e nos alerta que, ao aden- Helton Adverse - O Príncipe é
trarmos no domínio da ação política, como condição de um livro escrito em um contexto de
somos vulneráveis aos efeitos daqui-
lo que nós mesmos produzimos, sem possibilidade de crise, no qual as comunidades políti-
cas italianas se veem ameaçadas por
ter sobre as ações um controle defini-
tivo. Certamente, isso faz reformular seu surgimento, o inimigos externos, mas também por
sua própria incapacidade política de
alguns conceitos-chave na tradição
do pensamento político, como o con-
conflito” assegurar uma ordem estável no âm-
bito interno. Momentos como este
ceito de poder. Tenho a impressão de são valiosos do ponto de vista teóri-
que Maquiavel demonstra que ele é co, porque nos permitem enxergar
essencialmente “relacional”, porque mais claramente quais são os funda-
jamais será totalmente eliminada.
não tem outro fundamento a não ser mentos sobre os quais se assentam
Toda e qualquer comunidade política
o que deriva da própria ação humana. nossa vida coletiva. Encontramos,
é sujeita à corrupção porque os tem-
Um livro como O Príncipe escla- então, a ocasião propícia para passar
pos e as circunstâncias mudam, o que
rece que o poder é algo a ser sempre em exame esses fundamentos e, no
a leva a perder sua força e vitalidade
conquistado; mostra também que que concerne à prática política, é o
originárias. É importante colocar o
as circunstâncias que o condicionam momento oportuno para reformular
problema nesses termos para evitar o
são mutáveis e que o homem político e reformar.
tratamento exclusivamente moral do
deve, se quiser continuar a exercer o Por outro lado, o livro de Ma-
problema da corrupção política. Não
poder, demonstrar sensibilidade às quiavel permite compreender que
há dúvidas de que a corrupção, en-
alterações trazidas pelo tempo. Com os questionamentos e a instabilidade
relação ao conceito de Estado, não é tendida como ação criminosa realiza- são inerentes à vida política moder-
raro atribuir a Maquiavel a responsa- da individualmente ou em grupo, e na na. Se o exercício do poder é sempre
bilidade por sua primeira formulação qual o interesse coletivo é preterido “relacional”, nada mais natural do
teórica. Esta é uma questão que divi- tendo em vista o interesse privado, é que seu constante enfrentamento e a
de os comentadores. Quanto a mim, um problema político grave. Contu- necessidade de seu rearranjo. Nesse
creio que valha a pena assinalar que do, um pensador como Maquiavel sentido, a atual crise de representati-
Maquiavel intui algo que será defi- nos ajuda a entender as causas pro- vidade é mais um capítulo da história
nitivamente incorporado na história fundas da corrupção, e elas não são política moderna na qual o povo foi
teórica e prática do Estado moderno: encontradas na suposta natureza alçado ao patamar de agente político.
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o Estado encontra, como condição egoísta do homem, muito menos na Sem querer menosprezar o impacto
de possibilidade de seu surgimento, maldade intrínseca a determinados que manifestações e protestos mais
o conflito. Em outras palavras: existe grupos sociais. A corrupção, para Ma- ou menos ruidosos, mais ou menos
Estado na medida em que os confli- quiavel, é um problema que concerne violentos, podem ter, é necessário
tos que estruturam e convulsionam a todo o corpo político: ela assinala a lembrar que o povo é, por natureza,
a vida política requerem a existência incapacidade dos cidadãos (em geral) refratário a qualquer representação
de uma estrutura institucional que os de encontrar ou manter a forma po- definitiva. Nesse sentido, sempre ha-
acomodem sem suprimi-los. lítica adequada a seus anseios. Con- verá um déficit de representatividade
sequentemente, a corrupção tem de nas democracias modernas. Tenho
IHU On-Line - Em que medida o ser referida à história política de um a impressão de que ao reconhecer,
conjunto da obra de Maquiavel pode povo, na qual será possível aferir o em seus escritos, o papel político do
nos ajudar a repensar a problemáti- grau de comprometimento que o vin- povo — e a inevitável turbulência que
ca da corrupção no Estado moderno? cula a suas instituições, ao mesmo produz na vida pública —, Maquiavel
Helton Adverse - A corrupção é tempo que evidencia a qualidade po- vislumbrou um elemento essencial
uma possibilidade da vida política que lítica dessas mesmas instituições. Se de nossa atualidade política.

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 9


Maquiavel, o pai da filosofia
Tema de Capa

política moderna
Segundo o filósofo António Bento, o maquiavelismo “sobreviveu” ao seu criador,
mesmo entre aqueles que se diziam seus inimigos políticos. Thomas Hobbes foi
largamente influenciado pelas ideias do florentino ao compor o Leviathan

Por Márcia Junges

“O
s termos ‘maquiavelismo’ e ‘ma- António Bento é doutor em Filosofia pela
quiavélico’ se impuseram no Universidade da Beira Inteiror — UBI, em Co-
imaginário político moderno eu- vilhã, Portugal, onde é vice-diretor do curso
ropeu como sinônimos de uma ação política de Ciência Política e Relações Internacionais.
baseada na fraude, na violência e na impieda- Aí integra como investigador o Instituto de
de”, reflete o filósofo português António Ben- Filosofia Prática (IFP) e o Centro de Estudos
to, na entrevista que concedeu, por e-mail, à Judaicos (CEJ). É membro do editorial da re-
IHU On-Line. E acrescenta: “acusar um deter- vista Machiavelli and Machiavellism integra-
minado inimigo político de ‘maquiavelismo’ e da no Progetto Hypermachiavellism (www.
estigmatizar publicamente os seus atos como hypermachiavellism.net). Organizou e editou
‘maquiavélicos’, constitui, no fundo, uma sim- Maquiavel e o Maquiavelismo (Coimbra: Al-
ples arma de arremesso político”. A influência medina, 2012) e Razão de Estado e Democra-
política do pensador florentino, “a despeito cia (Coimbra: Almedina, 2012). Mais recen-
de um desprezo e de um ódio imensos, ja- temente, organizou e editou (com José Rosa)
mais deixou de se sentir. Pelo contrário, antes Revisiting Spinoza’s Theological-Political Trea-
ganhou mais e mais terreno, e, como de cer- tise (Zürich — New York: Hildesheim, Georg
ta maneira não poderia deixar de acontecer, Olms Verlag, 2013).
preferencialmente no próprio seio daqueles Confira a entrevista.
que se declaravam seus inimigos políticos”.

IHU On-Line - O que é o maquia- nhas as lendas associadas ao nome ca, estão na origem da designação,
velismo e o hipermaquiavelismo? Maquiavel! como se sabe, de duas perversões
António Bento - Uma resposta Mas, enfim, para tentar res- sexuais de base: o “sadismo” e o
adequada e, tanto quanto possível, ponder concretamente à sua per- “masoquismo”. Aceitando proviso-
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exaustiva, à sua pergunta — na apa- gunta, começaria talvez por evocar riamente e com reservas esta analo-
rência tão genuína e simples — mo- um estudo de Gilles Deleuze2 sobre gia, pode-se perguntar se Maquiavel
bilizaria certamente uma biblioteca a repercussão dos nomes de Sade e não será também um daqueles gran-
inteira, não uma biblioteca qualquer, de Masoch na história da literatura des “doentes” típicos que empres-
nem sequer uma biblioteca especia- médica, os quais, constituindo pro- tam às doenças (o “maquiavelismo”;
lizada em estudos sobre Maquiavel, digiosos exemplos de eficácia clíni- o “hipermaquiavelismo”) os seus no-
mas uma “biblioteca total”, digamos mes próprios? Mas talvez devamos
que à semelhança daquela “Bibliote- começar por modificar ligeiramente
ge Luis Borges.A virtude da ironia na sala
ca de Babel” concebida por Jorge Luis de espera do mistério, disponível http://
a pergunta, de modo a obtermos
Borges1! Tal a “reputação” e tama- bit.ly/hjDZxG. (Nota da IHU On-Line) outro tipo de respostas, respostas
2 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo que, precisamente, digam respeito
francês. Assim como Foucault, foi um
1 Jorge Luis Borges (Jorge Francisco Isi- dos estudiosos de Kant, mas tem em
a outro tipo de perguntas: não serão
doro Luis Borges Acevedo) (1899-1986): Bérgson, Nietzsche e Espinosa poderosas antes os “médicos” que, a posterio-
poeta, escritor, tradutor, crítico literário interseções. Deleuze atualizou conceitos ri e analisando de perto a “doença”,
e ensaísta argentino. A Revista IHU On- como os de devir, acontecimentos e sin-
-Line dedicou a edição 193 ao autor Jor- gularidades. (Nota da IHU On-Line)
agrupam sintomas até então disso-

10 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


ciados (batizando-os, desbatizando- tário florentino possui um carácter da política com a perversidade, mas a

Tema de Capa
-os e rebatizando-os) compondo um “cínico”, “irreligioso”, “blasfemo”, acusação implícita de que a perver-
“quadro clínico” novo e original à “demoníaco”: “O público está persua- sidade política absorve e resume em
custa de um sortilégio extraordiná- dido de que o maquiavelismo e a arte si mesma toda e qualquer forma de
rio e de um estranho poder de cono- de reinar tiranicamente são termos perversidade que o homem possa co-
tar signos (signos políticos, no caso de igual significação”. Um século mais nhecer ou praticar. Por exemplo, do
de Maquiavel) que um determinado tarde, Toussaint Guiraudet5 escrevia o ponto de vista político que enforma
nome próprio possui e liberta? seguinte num prefácio às Œuvres de a visão dos funcionários católicos go-
Machiavel: “O nome de Maquiavel vernamentais da Contrarreforma, o
Maquiavelismos parece consagrado em todos os idio- “maquiavelismo”, depositário de toda
A verdade é que os termos “ma- mas a recordar ou mesmo a expressar a sorte de iniquidades e malfeitorias,
quiavelismo” e “maquiavélico” se im- todos os desvios e as prevaricações era a encarnação da imoralidade em
puseram no imaginário político mo- da política mais astuciosa e mais cri- política, uma encarnação de tal ma-
derno europeu como sinônimos de minosa. A maior parte de todos os neira forte que, como refere Claude
uma ação política baseada na fraude, que o pronunciaram, como a todas Lefort8, “sugere a identificação da
na violência e na impiedade. Como as outras palavras de uma língua, an- política com a imoralidade”. Mais:
quer que seja, “maquiavelismos” há tes de saberem o que ele significa e tendo em conta que a malignidade e
e haverá, com toda a certeza, sempre de onde deriva… deve ter acreditado a “tentação” do “maquiavelismo” é a
muitos e diversos, de acordo, aliás, que era o nome de um tirano”. Fede- malignidade e a “tentação” de obter
com as épocas da história e com os rico Chabod6, por exemplo, para me o sucesso e o poder por meio do mal,
combates políticos que lhes dão for- deter apenas em um interessante es- “o maquiavelismo é o nome dado
ma. Já no século XVII, naquela que tudioso contemporâneo da obra de à política na medida em que ela é o
foi, sem dúvida, a primeira grande Maquiavel, observa, a justo título, o mal” (Claude Lefort).
cruzada moralista — simultaneamen- modo como todos nós, mesmo an- Ora, creio que o mesmo se po-
te contrarreformista e protestante tes de havermos lido — quanto mais derá dizer dos dias de hoje, sobretu-
— contra os escritos e ensinamen- estudado — as obras de Maquiavel, do se tivermos em conta, como ob-
tos políticos de Maquiavel, existiram usamos, sem hesitações de qualquer serva Carl Schmitt9 no seu opúsculo
decerto o “maquiavelismo” de Ma- espécie, o termo “maquiavelismo”: O Conceito do Político, que “todos
quiavel, o “maquiavelismo” dos “ma- “É como se Maquiavel tivesse criado os conceitos, representações e pala-
quiavelistas” e o “maquiavelismo” não a teoria da política, mas a própria vras políticas têm um sentido polê-
dos “antimaquiavelistas”. E os “anti- política, sem mais; como se, antes mico; visam a um antagonismo con-
maquiavelismos” serão tantos quan- dele, os monarcas tivessem sido to- creto e estão ligados a uma situação
tos os potenciais inimigos — coevos, dos eles candura, bondade e boa fé, concreta cuja última consequência
modernos, contemporâneos — de e apenas de Maquiavel houvessem é um agrupamento amigo-inimigo,
Maquiavel: anglicanismo ou protes- aprendido a reger o Estado com ou- transformando-se em abstrações va-
tantismo, jesuitismo ou galicanismo, tros meios que não o pai-nosso”. zias e fantasmagóricas quando esta
tacitismo, cepticismo, fideísmo, ate- situação deixa de vigorar”. Sob esta
ísmo, etc. Cada uma destas seitas ou A política como “o mal” perspectiva, acusar um determinado
ideologias acusou as outras ou foi por Em poucas palavras, tamanho inimigo político de “maquiavelismo”
elas acusada de “maquiavelismo”. A é, enfim, o poder de sugestão da ex- e estigmatizar publicamente os seus
verdade é que, como observou al- pressão “maquiavelismo”, que hou- atos como “maquiavélicos” constitui,
gures Thomas Berns3, “nenhuma se ve mesmo quem pretendesse traçar no fundo, uma simples arma de arre-
reivindicou do maquiavelismo, de uma história do “maquiavelismo an- messo político.
tal modo que este inimigo comum e terior a Maquiavel” (cf. Maurice Joly7,
fugidio a que Maquiavel deu o seu Diálogo no Inferno entre Maquiavel e
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8 Jean-Claude Lefort (1924-2010): fi-
nome parece ser o grande ausente do Montesquieu, 1864) ou de um “ma- lósofo francês, autor, entre outros, de
debate”. quiavelismo perpétuo e universal”, A invenção democrática: os limites da
dominação totalitária (São Paulo: Bra-
Pierre Bayle4, por exemplo, na dando assim razão aos que pensam siliense, 1983) e Desafios da escrita
entrada “Maquiavel” do seu Dictio- que o “mito do maquiavelismo” traz política (São Paulo: Discurso Editorial,
nnaire historique et critique (1697), consigo não apenas uma identificação 1999). Por ocasião de seu falecimento,
a IHU On-Line entrevistou a filósofa Ol-
faz-se portador da opinião reinante gária Matos, na edição 348 da revista
segundo a qual o ensino do secre- IHU On-Line, de 25-10-2010, disponível
5 Toussaint Guiraudet (Charles Philippe em http://migre.me/34oI9 e intitulada
Toussaint Guiraudet): autor e pesquisador Claude Lefort e a invenção democrática.
3 Thomas Berns (1967): filósofo, pro- da obra de Nicolau Maquiavel. (Nota da (Nota da IHU On-Line)
fessor de filosofia política, de filosofia IHU On-Line) 9 Carl Schmitt (1888-1985): jurista e
da legislação e ética, Me. em Estudos da 6 Federico Chabod (1901-1960): histo- cientista político alemão. A IHU On-Line
Renascença pela Universidade de Ferra- riador e político italiano. Desenvolveu 139, de 2-05-2005, publicou o artigo O
ra e Dr. em Filosofia e Letras pela Univer- sua tese na Universidade de Turin sobre a pensamento jurídico-político de Heideg-
sidade Livre de Bruxelas. (Nota da IHU obra de Nicolau Maquiavel (Nota da IHU ger e Carl Schmitt. A fascinação por no-
On-Line) On-line). ções fundadoras do nazismo, do filósofo
4 Pierre Bayle (1647-1706): filósofo e 7 Maurice Joly (1829-1878): advogado e Yves-Chales Zarka, disponível em http://
escritor francês. (Nota da IHU On-Line) humorista francês. (Nota da IHU On-line). bit.ly/TJcnLW. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 11


Jesuitismo e maquiavelismo mesmo extrapolam as ideias propos- ra a Maquiavel. E se Maquiavel mor-
Tema de Capa
A propósito do caráter semanti- tas por Maquiavel? rera, os fantasmas associados à sua
camente flutuante e politicamente es- António Bento - Creio que a teoria política haveriam de regressar
tratégico dos termos “maquiavelismo” resposta anterior deixa já entrever abruptamente em todas as suas no-
e “maquiavélico”, e para, finalmente, as chaves para a compreensão do vas reencarnações. Exemplo do que
terminar de responder a uma pergun- que alguns comentadores chamam acabo de referir é o modo como, já
ta cuja resposta é praticamente inter- de “o enigma Maquiavel”. Em todo o em 1589, Christopher Marlowe13, no
minável, recordo as palavras certeiras caso, talvez importe sublinhar, uma prólogo de O Judeu de Malta, apre-
de Claude Lefort na sua obra Le travail vez mais, o carácter semanticamente senta o secretário florentino:
de l’œuvre Machiavel: “Enquanto na flutuante e politicamente estratégico «Apesar de o mundo pensar que
França o maquiavelismo é principal- dos conceitos em questão. No fundo, Maquiavel morreu,
mente o símbolo de uma política de o que eles significam é algo de muito Foi tão-só a sua alma que voou
intolerância, cujo objetivo é sujeitar a simples, mas tremendamente efeti- para além dos Alpes;
religião ao serviço do governo, na Es- vo, a saber: que a influência política E agora, que o Guise morreu,
panha ele associa-se aos partidários de Maquiavel, a despeito de um des- veio de França,
da tolerância, àqueles que são acusa- prezo e de um ódio imensos, jamais Para ver estas terras, e folgar
dos de arruinar a unidade religiosa, deixou de se sentir. Pelo contrário, com os amigos.
com o fim único de assegurar o poder antes ganhou mais e mais terreno, e, Para alguns o meu nome é, se
do Estado. Enquanto aos olhos dos je- como de certa maneira não poderia calhar, odioso,
suítas o maquiavelismo é o breviário deixar de acontecer, preferencial- Mas, vós, os que me amais, li-
da Reforma, para os protestantes ele mente no próprio seio daqueles que vrai-me das suas línguas;
confunde-se com o jesuitismo”. se declaravam seus inimigos políticos. E fazei-lhes saber que eu sou
Não por acaso, a assimilação do Com efeito, foram principalmente os Maquiavel,
“jesuitismo” ao “maquiavelismo” to- seus inimigos políticos mais resolu- Que não julgo os homens, nem,
mou, num país católico como Portu- tos e radicais que contribuíram para portanto, as palavras que estes dizem.
gal, foros de cidadania na formulação fortalecer o interesse na sua pessoa Muito me espantam aqueles
de um autor como António Sérgio10, e desencadear uma obsessiva curio- que tanto me odeiam.
o qual, opositor da ditadura de An- sidade pela sua obra, ao ponto de E se alguns falam abertamente
tónio Oliveira Salazar11, equacionou a abominação e a diabolização do contra os meus livros,
do seguinte modo ambos os «ismos» nome Maquiavel ser acompanhada Hão de, ainda assim, ler-me, e
nos seus Diálogos de Doutrina Demo- por um estranho sortilégio que, não desse modo chegar
crática (1933): “Um dia, num palácio raras vezes, se traduziu numa admira- À cadeira de Pedro; e mesmo
dos arredores da cidade de Milão, ção e fascínio compulsivos. quando me põem de parte,
a princesa italiana que nele morava Ernst Cassirer12, na sua obra O São envenenados pelos imitado-
mostrou-me um crucifixo de lavor ar- Mito do Estado, observou muito bem res que não me largam.»
tístico, obra italiana do Renascimen- este aspecto primordial do significa-
to. Admirei. ‘Agora’, disse-me a dona, do e da repercussão política da obra IHU On-Line - Carl Schmitt com-
‘puxe pela parte superior da cruz.’ de Maquiavel. Em suma, a reputação preendia Maquiavel como alguém
Puxei. Cedeu. Brilhou uma lâmina. Era e a influência de Maquiavel atingi- mais do que apenas o autor de O
um punhal com a forma exterior de ram ao longo dos séculos um ponto Príncipe. Tendo esse horizonte em
um crucifixo. Aí tens a imagem da per- tal que se foi tornando cada vez mais vista, que chaves de leitura devem
versão da mente a que eu dou o nome difícil encontrar qualquer diferença ser tomadas em consideração a par-
de ‘jesuitismo’. A religião exterior e o significativa entre os admiradores e tir das outras obras desse pensador,
mal interior; a política a destruir a éti- seguidores de Maquiavel e os seus como Os Discursos sobre a primeira
ca; a ordem aparente a corromper o detratores e inimigos. Pode, aliás, ad- década de Tito Lívio?
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espírito, a coerência íntima; a verdade mitir-se que é na paradoxal aliança de António Bento - O problema não
sacrificada a um efeito sensível”. uns e de outros que hão de ser bus- é pacífico, nem isento de certas pai-
cadas as razões remotas da crescente xões, digamos assim, hermenêuticas.
IHU On-Line - Em que medi- fortuna do “maquiavelismo” e do “hi- Muito antes de Carl Schmitt, outros
da esses conceitos transcendem ou permaquiavelismo” no pensamento autores, não menos importantes que
político moderno e contemporâneo. o jurista alemão, insistiram no duplo
O “maquiavelismo”, enfim, sobrevive- aspecto do ensinamento político de
10 António Sérgio (1883-1969): filósofo Maquiavel, consoante este é deduzi-
português dedicado aos estudos da po-
lítica, educação e da história. (Nota da 12 Ernst Cassirer (1874-1945): filósofo
do de O Príncipe ou de Os Discursos
IHU On-Line) alemão de origem judaica que perten- sobre a primeira década de Tito Lívio
11 António de Oliveira Salazar (1889- ceu a Escola de Marburg.Foi um dos mais (ou ainda de Histórias Florentinas).
1970): político nacionalista português. importantes representantes da tradição
Instituiu o Estado Novo em 1933 e, na con- neokantiana de Marburgo. Desenvolveu
dição de Presidente do Conselho de Minis- uma filosofia da Cultura como uma te-
tros, implementou um regime de inspira- oria dos símbolos, baseada na Fenome- 13 Christopher Marlowe (1564-1593):
ção fascista, governando o país como um nologia do Conhecimento. (Nota da IHU dramaturgo, poeta e tradutor inglês.
ditador até 1968. (Nota da IHU On-Line) On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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Afinal, bem vistas as coisas, não biu severamente o seu livro, segundo um homem inspirado pelo Demônio,

Tema de Capa
teria sido o próprio Maquiavel – de penso; é ela que ele mais claramen- para arrastar os homens bons à perdi-
acordo com uma tradição republica- te descreve”. Em pleno Iluminismo, ção, o grande subversor, o mestre do
na, liberal, romântica, e até marxista, numa época em que uma afetada ex- mal, le docteur de la scélératesse, o
de interpretação do seu pensamento pressão pública de uma repugnância inspirador do Massacre de São Barto-
– muito pouco “maquiavélico”, um pela política fez a sua escola, no arti- lomeu, o modelo de Iago. É o ‘sangui-
daqueles instrutores de príncipes que go “Maquiavelismo” da Encyclopédie nário Maquiavel’ das famosas quatro-
conhecem o jogo político do Estado (t. IX, Neuchâtel, 1765, p. 793), Dide- centas e tal referências da literatura
e que integralmente o ensinam, ao rot16 dá, também ele, pouco mais ou isabelina. O seu nome acrescenta um
passo que o “maquiavelismo” vul- menos, uma interpretação semelhan- novo ingrediente à figura mais antiga
gar, esse sim, ensinaria a fazer outra te de O Príncipe: “Quando Maquiavel do Old Nick (O Diabo). Para os jesuí-
coisa? Tal é já a opinião do prudente escreveu o seu tratado do príncipe, é tas, ele é ‘sócio do diabo nos crimes’,
Espinosa14, para quem “talvez Ma- como se ele tivesse dito aos seus con- um escritor infame e um cético, e O
quiavel quisesse mostrar quanto uma cidadãos, lede bem esta obra. Se um Príncipe é, nas palavras de Bertrand
multidão livre deve ter medo de con- dia aceitardes um senhor, ele será tal Russell19, ‘um manual para gangs-
fiar a sua defesa a um só, o qual, se como eu vo-lo pinto: eis o animal fe- ters’”. Para concluir, refiro apenas as
não for vaidoso nem julgar que pode roz ao qual vos abandonareis”. palavras que um autor da estatura de
agradar a todos, tem de temer re- Leo Strauss20 consagra ao duplo ensi-
voltas todos os dias, sendo por isso “Manual para gangsters” no de Maquiavel (tirânico em O Prín-
obrigado a precaver-se e a atraiçoar Quanto ao ódio que os seus cipe; republicano nos Discorsi): “Não
a multidão em vez de governá-la” contemporâneos destilaram sobre escandalizaremos ninguém, apenas
(Tratado Político, V). Em idêntico Maquiavel, apresentara-o já Trajano nos exporemos ao ridículo amável
sentido se pronunciou Jean-Jacques Boccalini17, na primeira década de ou em todo o caso inofensivo, se nos
Rousseau15: “Fazendo crer que dava seiscentos, nos seguintes termos: “Os declaramos inclinados para a opinião
lições aos reis, dava-as bem grandes inimigos de Maquiavel consideram-no antiquada e simples segundo a qual
aos povos. O Príncipe, de Maquiavel, homem digno de punição porque re- Maquiavel era um mestre do mal”.
é o livro dos republicanos”. Ademais, velou como os príncipes governam e,
numa elucidativa nota que acrescen- assim, instruiu o povo; ‘colocou dentes IHU On-Line - De que modo
tou à versão do Contrato social de de cães nas ovelhas’, destruiu os mitos Maquiavel e Hobbes21 problemati-
1772, observa ainda Rousseau, a pro- do poder, o prestígio da autoridade, zam a questão da natureza humana
pósito de O Príncipe, de Maquiavel, o tornou mais difícil governar, porque os e do absolutismo? Como tais com-
seguinte: “Maquiavel era um homem governados podem saber a este res- preensões repercutem na política
honesto e um bom cidadão. Mas, peito tanto quanto os governantes”. ocidental?
atado à missão dos Médicis, viu-se Não foi, porém, esta benigna in- António Bento - A questão do
forçado, na opressão da sua pátria, a terpretação que os autores da teoria “absolutismo”, se tomarmos este con-
mascarar o seu amor à liberdade. Já a política católica da Contrarreforma ceito no seu estrito significado histó-
escolha do seu execrável herói (César colheram nos escritos de Maquiavel, rico e político, só se põe a partir do
Bórgia) manifesta bem a sua intenção nem a alegada admiração do secretá- momento em que Jean Bodin22, pri-
secreta; e a oposição das máximas rio florentino pelos ideais republica-
do seu livro O Príncipe às dos seus nos da Roma antiga magnificamente lítico britânico. (Nota da IHU On-Line)
Discursos sobre Tito Lívio e às da sua expressa nos Discorsi suscitou alguma 19 Bertrand Russell (1872-1970): mate-
mático, filósofo, lógico e político liberal
História de Florença demonstra que vez neles simpatia ou simplesmente britânico. (Nota da IHU On-Line)
este político profundo não teve até respeito. Àquela visão benevolen- 20 Leo Strauss (1899-1973): filósofo po-
agora senão leitores superficiais ou te atrás referida, preferiram a visão lítico teuto-americano. Fundou a escola
de pensadores “Straussians” e foi forte
corrompidos. A corte de Roma proi- mais comum e mais antiga de Ma-
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crítico da filosofia moderna. (Nota da
quiavel, uma visão segundo a qual, IHU On-Line)
e cito Isaiah Berlin18, “Maquiavel é 21 Thomas Hobbes (1588–1679): filósofo
14 Espinosa (Baruch de Espinosa) (1632- inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã
1677): filósofo holandês, pertencente a (1651), trata de teoria política. Neste
uma família judia originária de Portugal. 16 Diderot (Denis Diderot) (1713-1784): livro, Hobbes nega que o homem seja
Publicou o Tractus Tehologico-Politicus e filósofo e escritor francês. A primeira um ser naturalmente social. Afirma, ao
Ética, além de ter deixado várias obras peça importante da sua carreira literária contrário, que os homens são impulsio-
inéditas, estas publicadas em 1677 com é Lettres sur les aveugles à l’usage de nados apenas por considerações egoís-
o título Opera Posthuma. A Revista IHU ceux qui voient, em que resume a evolu- tas. Também escreveu sobre física e psi-
On-Line, na edição 397, Baruch Spino- ção do seu pensamento desde o deísmo cologia. Hobbes estudou na Universidade
za. Um convite à alegria do pensamen- até ao cepticismo e o materialismo ateu, de Oxford e foi secretário de Sir Francis
to, disponível em http://bit.ly/Q5v356. o que o leva à prisão. Mas a obra da sua Bacon. A respeito desse filósofo, confira
(Nota da IHU On-Line) vida é a edição da Encyclopédie (1750- a entrevista O conflito é o motor da vida
15 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), 1772), que leva a cabo com empenho e política, concedida pela Profa. Dra. Ma-
filósofo franco-suíço, escritor, teórico po- entusiasmo apesar de alguma oposição ria Isabel Limongi à edição 276 da revista
lítico. A Revista IHU On-Line, na edição da Igreja Católica e dos poderes estabe- IHU On-Line, de 06-10-2008. O material
397, Somos condenados a viver em socie- lecidos. (Nota da IHU On-Line) está disponível em http://bit.ly/q6Wr-
dade? As contribuições de Rousseau à mo- 17 Trajano Boccalini (1556-1613): humo- Na. (Nota da IHU On-Line)
dernidade política, disponível em http:// rista italiano. (Nota da IHU On-Line) 22 Jean Bodin (1530-1596): jurista fran-
bit.ly/YGU1gM. (Nota da IHU On-Line). 18 Isaiah Berlin (1909-1997): filósofo po- cês, membro do Parlamento de Paris

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meiro, e Thomas Hobbes, depois, de- Thomas Hobbes deduz o seu Levia- a promessa, enfim, de proteção da
Tema de Capa
finem e formulam, cada um, eviden- than. Sabe-se também como uma vida que o poder soberano moder-
temente, à sua maneira, o conceito boa parte — a grande parte — da no faz aos seus súditos, contém em
jurídico-político de “soberania”. Creio tradição da filosofia política moder- si mesma, e de maneira constitutiva,
que cometeríamos um anacronismo na provém da racionalização deste a possibilidade (dir-se-ia, antes, a ne-
se porventura começássemos a falar “medo” e da naturalização deste “di- cessidade) inversa: o poder absoluto
impropriamente de “soberania” e de reito”. A um medo “natural” racionali- de dar a morte. O que isto significa é
“absolutismo” em Maquiavel. zado, faz ela corresponder um direito que não apenas o “estado de natu-
Quanto à questão da “natureza “racional” naturalizado. O que isto reza” sobrevive no “estado político”,
humana” ou “antropologia política” imediatamente significa é que a eco- como nele se intensifica sob o seu
de Maquiavel e de Hobbes, a proxi- nomia política da vida moderna se modo mais próprio, aí adquirindo o
midade entre ambos é manifesta e define por um cálculo racional de ris- seu cunho tipicamente moderno.
indesmentível, pois as obras de um e cos e de benefícios no qual o “medo” Com efeito, no nexo constitutivo
de outro pressupõem o homem como é disposto como o fundamento práti- entre a política e a vida que define a
covarde, medroso, mau, egoísta, in- co e a garantia especulativa do “direi- biopolítica moderna, a política (em
grato, violento, etc. Até certo ponto, to”. Mais: a naturalização do direito termos hobbesianos, a proteção imu-
e de uma certa maneira, como um à conservação da vida só pode ter nitária proporcionada pelo “estado
dia observou Carl Schmitt, podemos como corolário o aumento do medo civil”) é a continuação da guerra (do
tomar todas as teorias do Estado e da morte violenta e a consequente risco e do perigo do “estado natural”)
todas as ideias políticas na sua cor- existência de um «direito» que deve por outros meios. Assim, expulso,
respondente antropologia e classifi- modernamente apresentar-se — e por um artifício da razão, para o ex-
cá-las conforme elas, consciente ou justificar-se — como uma segurança terior do “pacto”, este poder de dar a
inconscientemente, pressuponham contra o medo. Uma segurança “míti- morte irrompe no interior do próprio
que o homem é “mau por natureza” ca”, em todo o caso, e, no sentido que “pacto”, como a sua condição de pos-
ou “bom por natureza”. Na verdade, Walter Benjamin23 atribui ao que ele sibilidade. Em termos hobbesianos,
a elucidação desta questão é fun- chama “violência mítica” do direito, é este ponto de intersecção entre o
damental para o esclarecimento do também uma segurança “sagrada”. “pactum societatis” e o “pactum sub-
conceito moderno de “direito natu- Foi neste ponto que Thomas Hobbes jectionis” que faz da vida individual
ral”, tal como, precisamente, Thomas nos colocou e do qual ainda hoje per- de cada súdito simultaneamente um
Hobbes o formulou. Não por acaso, manecemos cativos: a política conce- sujeito da “soberania” e um sujeito
o pai da filosofia política moderna, bida como fábrica de segurança e o à “soberania”. Com efeito, no seu afã
Maquiavel, considera que “quem pre- direito como apólice universal contra de colocar a morte ao serviço da esfe-
tenda fundar um Estado e dar-lhe leis o medo. De acordo com o que antes ra mítica do direito, o poder soberano
deve antecipadamente pressupor os ficou dito, decorre, portanto, da pró- institui um contrato com os súditos
homens como maus e sempre pron- pria lógica jurídica hobbesiana, que ao mesmo tempo que lhes lança uma
tos a mostrar a sua malvadez logo quanto mais “conservável” é a vida ordem: “obedece se queres ver a tua
que para tal se lhes ofereça uma oca- de que a política soberana se ocupa, vida protegida”; “eu lhe dou a vida,
sião”. A verdade é que, um século e tanto mais essa vida é potencialmen- mas posso, a qualquer momento,
meio depois de Maquiavel ter proferi- te “sacrificável”. retirá-la”. O poder soberano garante,
do esta sentença, é ainda sobre a de- pois, a proteção da vida apenas com
monstração deste enunciado relativo Poder imunitário a permanente intrusão da ameaça
à natureza do homem que Thomas A moderna e sumamente hob- de morte. Numa perspectiva cínica
Hobbes funda a necessidade do seu besiana vontade de segurança, com (ou talvez apenas realista), dir-se-ia
Leviathan (metáfora bíblica para o Es- a sua lógica imunitária de prevenção que não se trata aqui senão da con-
tado moderno). e cura, faz periclitar a própria vida ao trapartida política (que é também o
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expulsar ilusoriamente a morte do seu perigoso reverso) que assiste o


Medo “natural” e direito âmbito da vida. Mas esta potência de estabelecimento do direito natural
“racional” contradição ínsita ao princípio imuni- moderno, cuja positivização, pode-se
Sabe-se como é de uma deter- tário de conservação da vida revela- dizer, Hobbes inaugurou. Trata-se, em
minada articulação entre o medo da -se ainda de outra forma no pensa- todo o caso, como refere Thomas Ho-
morte violenta (a paixão mais pode- mento de Thomas Hobbes. A verdade bbes no final do Leviathan, do cum-
rosa) e o direito à conservação da é que a vontade de segurança, a imu- primento inviolável de uma “mutual
vida (o direito mais sagrado) que nização (sempre precária) à morte, relation between protection and obe-
dience”. Carl Schmitt formulou um
dia esta permanente conexão entre
e professor de Direito em Toulouse. É 23 Walter Benjamin (1892-1940): filóso- proteção e obediência que caracteri-
considerado por muitos o pai da Ciência fo alemão. Foi refugiado judeu e, diante
Política devido a sua teoria sobre sobera- da perspectiva de ser capturado pelos
za a doutrina do Estado de Thomas
nia. Baseou-se nesta mesma teoria para nazistas, preferiu o suicídio. É associado Hobbes do seguinte modo: “O prote-
afirmar a legitimação do poder do homem à Escola de Frankfurt, da qual é consi- go ergo obligo é o cogito ergo sum do
sobre a mulher e da monarquia sobre a derado um dos principais pensadores.
gerontocracia. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)
Estado”.

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Paradigma da imunidade nea é imediatamente uma imunopolí- na vontade de poder e na transvalo-

Tema de Capa
Mas as consequências profun- tica de tendência paranoica, que des- ração dos valores?
das do pensamento político de Tho- confia de fronteiras que se tornam António Bento - Creio, since-
mas Hobbes repercutiram de modo cada vez mais indelimitáveis. […] É, ramente, que em absolutamente
assaz veemente e surpreendente na com efeito, impossível compreender nenhum sentido. Efetivamente, não
nossa contemporaneidade. De acor- os objetivos proclamados da biopolí- creio que se possa, e menos ainda
do com Roberto Esposito, o autor tica sem interrogar a sua ‘outra cena’, deva, misturar o sol materialista de
que melhor refletiu sobre as conse- o seu fantasma de imunização abso- Florença com o nevoeiro metafísico
quências do paradigma securitário luta, de proteção total”. de Bayreuth… Isto, claro, ressalvando
hobbesiano nas sociedades contem- Com efeito, capturada numa embora toda a genuína admiração de
porâneas, a política conhece cada dialética aporética entre o risco e a Nietzsche por Maquiavel: “A minha re-
vez mais, e hoje, porventura, mais proteção, um risco que requer prote- criação, a minha predileção, a minha
do que nunca, apenas um “paradig- ção tanto quanto a própria proteção cura de todo o platonismo foi sempre
ma imunitário”. De acordo com a produz, por sua vez, risco, a política Tucídides26. Tucídides e, talvez, O Prín-
interessante leitura que Esposito faz moderna tende a criar, por um exces- cipe, de Maquiavel, me são mais afins
do pensamento político de Thomas so neurótico de prevenção, autoimu- pela determinação incondicional de
Hobbes, se os conceitos modernos nidade, instituindo assim o perigo de não se deixar iludir em nada e de ver
de “soberania”, “propriedade” e “li- morte para a própria espécie. Desse a razão na realidade — não na ‘razão’,
berdade” tendem, num determinado modo, a prevenção — e, no limite, a e menos ainda na ‘moral’…”, confessa
momento da sua história, a confluir e eliminação — da doença, pode reve- o “cabeça-de-dinamite” (Ernst Jün-
a reduzir-se à “segurança” do sujeito lar-se mais perigosa do que a própria ger27) em O Crepúsculo dos Ídolos.
que é seu titular, isso é a inevitável doença. A consequência disso é que a
consequência do modo imunitário vida política ocidental entra num cur- IHU On-Line - Nesse sentido,
como a modernidade pensa a políti- to-circuito permanente. E este cres- como o “estatuto da mentira na Filo-
ca. Segundo Esposito, o que ele desig- cente interesse pela ideia de regula- sofia Política” pode ser compreendi-
na como “paradigma da imunidade” ção do risco, consequência, muitas
resulta do duplo processo cruzado vezes, de um pânico politicamente
de politização da vida e de biologi- administrado, deu origem ao estabe- de Friedrich Nietzsche e pode ser aces-
zação da política, o qual reúne num lecimento da categoria do “precautio- sada em http://migre.me/s7BU. Confi-
ra, também, a entrevista concedida por
único horizonte de sentido as duas nary principle” (ou “Vorsorgeprinzip” Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU
dimensões do conceito de “imunida- no original), a que eu chamo princípio On-Line, de 10-05-2010, disponível em
de”: a dimensão jurídico-política e a de absolutização da imunidade polí- http://bit.ly/18TFDHq, intitulada O bio-
logismo radical de Nietzsche não pode
dimensão biológica. Ainda, segundo tica. Princípio da irresponsabilidade. ser minimizado, na qual discute ideias
este autor, uma vez consumada a de sua conferência “A crítica de Heideg-
completa sobreposição do léxico polí- IHU On-Line - Em que sentido as ger ao biologismo de Nietzsche e a ques-
tão da biopolítica”, parte integrante do
tico e do léxico médico modernos, “a constatações políticas de Maquiavel Ciclo de Estudos Filosofias da diferença
imunização torna-se não apenas no ecoam nas concepções políticas de - Pré-evento do XI Simpósio Internacio-
instrumento, mas também na forma Nietzsche25, como na grande política, nal IHU: O (des)governo biopolítico da
vida humana. Na edição 330 da Revis-
da civilização ocidental”. ta IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a
Finalizando: que um paradigma da IHU On-Line) entrevista Nietzsche, o pensamento
25 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi- trágico e a afirmação da totalidade
político imunitário governa hoje de lósofo alemão, conhecido por seus con- da existência, concedida pelo Prof.
maneira transversal e capilar as rela- ceitos além-do-homem, transvaloração Dr. Oswaldo Giacoia e disponível em
ções humanas globais no seu conjun- dos valores, niilismo, vontade de poder http://bit.ly/15UTSzj. Na edição 388,
e eterno retorno. Entre suas obras fi- de 09-04-2012, leia a entrevista O
to, comprova-o o fato de a modulação guram como as mais importantes Assim amor fati como resposta à tirania do
afetiva e o controle da intensidade do
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falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janei- sentido, com Danilo Bilate, disponível
medo se terem tornado um assunto ro: Civilização Brasileira, 1998), O an- em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU
ticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A On-Line)
político de interesse público. Cada vez genealogia da moral (5. ed. São Paulo: 26 Tucídides (460–400 a.C.): historiador
mais, a “sociedade do risco” em que Centauro, 2004). Escreveu até 1888, grego, autor de História da Guerra do
nos movemos é permanentemen- quando foi acometido por um colapso Peloponeso, em que ele conta a guerra
nervoso que nunca o abandonou, até o entre Esparta e Atenas, ocorrida no sé-
te ameaçada pelo pânico ante toda dia de sua morte. A Nietzsche foi dedi- culo V A. C. No dia 29-05-2003, durante
a espécie de potenciais catástrofes cado o tema de capa da edição número a segunda edição do evento Abrindo o Li-
(ambientais, ecológicas, epidêmicas, 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, in- vro, promovido pelo IHU, a obra História
titulada Nietzsche: filósofo do martelo da Guerra do Peloponeso foi apresentada
terroristas, políticas, econômicas, e do crepúsculo, disponível em http:// pelo Prof. Dr. Anderson Zalewski Vargas,
etc.) que devem ser cientificamente bit.ly/Hl7xwP. Sobre o filósofo alemão, da Pós-Graduação em História da UFRGS.
prevenidas. Como observa Frédéric conferir ainda a entrevista exclusiva A revista IHU On-Line entrevistou o his-
realizada pela IHU On-Line edição 175, toriador na 62ª edição, de 02-06-2003. O
Neyrat24: “A biopolítica contemporâ- de 10-04-2006, com o jesuíta cubano material está disponível para download
Emilio Brito, docente na Universidade de no link http://bit.ly/186nPXl. (Nota da
Louvain-La-Neuve, intitulada “Nietzsche IHU On-Line)
24 Neyrat Frederick (1968): filósofo fran- e Paulo”, disponível em http://bit.ly/ 27 Ernst Jünger (1895-1998): escritor,
cês, dedicado aos temas da biopolítica, dyA7sR. A edição 15 dos Cadernos IHU filósofo e entomologista alemão. (Nota
imunopolítica e ecologia política. (Nota em formação é intitulada O pensamento da IHU On-Line)

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do se pensarmos a partir da perspec- nunca puseram realmente em ques- indivíduo se quer conservar relativa-
Tema de Capa
tiva de Maquiavel e Nietzsche? tão o valor da verdade e muito me- mente aos outros indivíduos”, diz-nos
António Bento - São, com cer- nos esclareceram as razões para que Nietzsche, “este, na maior parte das
teza, perspectivas distintas as de Ma- o homem se submetesse à verdade. vezes, utiliza o intelecto num estado
quiavel e de Nietzsche em torno da Esqueceram-se, afinal, pensa Nietzs- natural das coisas, somente para a
“mentira”, em geral, e, sobretudo, a che, de fazer uma pergunta simples, dissimulação; mas, como o homem
respeito da “mentira política”, em uma pergunta, porém, incontornável: quer existir tanto por necessidade
particular. Contudo, há que sublinhar Quem procura a verdade? Quer dizer: como por tédio, socialmente e por re-
igualmente a existência de afinidades o que é que quer aquele que procura banho, precisa fazer a paz e aspira a
e de semelhanças. No caso de Niet- a verdade? Qual é o seu tipo? Qual a que desapareça do seu mundo o mais
zsche estamos, por um lado, perante sua vontade de poder? brutal bellum omnium contra omnes.
uma teoria artística da mentira, que Esta paz traz consigo algo que se pa-
faz do poder do falso uma magnifi- Verdade e convenção rece com o primeiro passo para a ob-
cação do “mundo enquanto erro”, Convém sublinhar que não se tenção daquele enigmático impulso
transformando a vontade de enganar trata, para Nietzsche, de pôr em dúvi- para a verdade”.
num ideal estético superior e, por ou- da a vontade de verdade, embora ele Podemos, enfim, dizer que o
tro, diante de uma teoria pragmática nos venha lembrar que os homens, pensamento de Nietzsche concebe a
da linguagem. de fato, não amam, naturalmente, valorização da verdade como uma su-
Num ensaio de 1873, intitulado a verdade, e que muitas vezes, mais bordinação da verdade à convenção.
Acerca da verdade e da mentira no do que os seus erros, são os seus O indivíduo que mente é o que trans-
sentido extramoral, Friedrich Nietzs- interesses e a sua estupidez que os gride convenções que são importan-
che elabora uma teoria da verdade separam da verdade. Com muita se- tes para a manutenção da paz social
que está muito próxima de algumas riedade, Nietzsche aceita pensar este e é, também, por essa razão que a
modernas teorias pragmáticas da lin- problema colocando-se, de boa fé, no antinomia moral verdade/mentira —
guagem. Em primeiro lugar, a verda- próprio terreno em que o problema que é anterior à antinomia epistemo-
de é aí valorizada porque é útil para é posto: no terreno moral. Assim, lógica verdade/falsidade — se impôs
a comunidade, boa para a socieda- Nietzsche procura antes pensar o definitivamente. A primeira oposição,
de, e não porque corresponda a um que a verdade pode significar como de origem moral, determinou a se-
efetivo conhecimento das coisas. conceito, que tipo de forças e que gunda, de cariz epistemológico.
Em segundo lugar, a linguagem, en- espécie de poderes se apropriam
quanto instrumento privilegiado do dela. Por outro lado, em Humano, Imperativo
conhecimento, é fundamentalmente Demasiado Humano (§ 54), Nietzsche Quanto a Maquiavel, o proble-
uma estrutura de dissimulação, um afirma que o mentiroso não é excluí- ma da mentira surge associado à ne-
mecanismo de apropriação e de cap- do da comunidade pelo fato de dizer cessidade de dissimulação/simulação
tura da realidade, e não uma espécie mentiras, mas porque essas mentiras intrínseca ao político e, por vezes, à
de espelho da realidade. O ponto de são ilusões consideradas perniciosas estritamente necessária inobservân-
partida desta concepção nietzsche- para a paz ou para o contrato social: cia da palavra dada. Com efeito, no
ana da linguagem é que a verdade “Por que dizem os homens, a maior capítulo XVIII de O Príncipe, o secre-
não é valorizada por interesses, em parte das vezes e na vida de todos os tário florentino observa o seguinte:
primeiro lugar, científicos, ou éticos, dias, a verdade? Não é certamente “Quão louvável seja num príncipe o
em geral, mas por sujeitos interessa- porque um Deus proibiu a mentira. manter a palavra dada e viver com
dos na sobrevivência e numa vida co- Mas sim, primeiramente: porque di- integridade e não com astúcia, qual-
munitária, social, estável. A verdade zer a verdade é mais fácil, dado que a quer um o entende. No entanto, vê-
não é, portanto, dissociável da noção mentira exige invenção, dissimulação -se pela experiência do nosso tempo
de verdade como “valor”, a qual inte- e memória. E é ainda: porque em cir- terem feito grandes coisas aqueles
ressa mais ao instinto de preservação cunstâncias simples, é vantajoso falar príncipes que tiveram em pouca con-
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(“Erhaltungstrieb”) e menos a uma francamente: quero isto, fiz aquilo, e ta a palavra dada e que souberam,
espécie de instinto para a verdade ou assim sucessivamente; portanto, por- com a astúcia, dar a volta aos cére-
de inclinação natural do homem para que o caminho da coação e da auto- bros dos homens; e no fim superaram
a verdade (“Wahrheitstrieb”). Na Ge- ridade é mais seguro que o do ardil. aqueles que se fundaram na sinceri-
nealogia da Moral (III, 24) Nietzsche Mas, por pouco complicadas que te- dade. […] Não pode, portanto, um se-
observa: “A verdade tem sido sempre nham sido as circunstâncias domés- nhor prudente, nem deve, observar a
postulada como essência, como Deus, ticas em que uma criança tenha sido palavra dada quando tal observância
como instância suprema [...] Mas a educada, ela serve-se naturalmente se volta contra ele e se extinguiram
vontade de verdade tem necessida- da mentira e diz sempre, involunta- os motivos que o fizeram prometer.
de de uma crítica. Defina-se assim a riamente, tudo o que serve aos seus E, se os homens fossem todos bons,
nossa tarefa — é necessário de uma próprios interesses: a noção da ver- este preceito não seria bom. Mas,
vez por todas pôr em questão o valor dade, a repugnância pela mentira em porque eles são ruins e não a obser-
da verdade”. O problema que Nietzs- si, lhe são totalmente estranhas e ina- variam para contigo, tu também não
che aqui apresenta é muito simples: cessíveis, e a criança mente com toda a tens de observar para com eles,
no seu entender, os filósofos clássicos a inocência”. “Na medida em que o nem faltarão jamais a um príncipe

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motivos legítimos para mascarar a como instrumentos relativamente nos seus piores excessos, às situações

Tema de Capa
inobservância”. inofensivos no arsenal da ação po- de perigo iminente e atual”.
Tal como em O Príncipe, tam- lítica”. Que a política e a verdade Neste ensaio, Arendt esboça a
bém nas Histórias Florentinas (III, sempre estiveram em más relações problemática da efetividade e da per-
5) Maquiavel justifica o perjúrio e a e que a boa fé jamais foi incluída na formatividade de uma mentira cuja
mentira pelo imperativo pragmático classe das virtudes políticas, é algo estrutura e acontecimento estariam
da necessidade e utilidade: “E, como bem conhecido e mesmo um lugar ligados, de maneira essencial, ao con-
em todos o temor de Deus e a reli- comum. Com efeito, o segredo, os ar- ceito de “ação”, e, mais precisamen-
gião desapareceram, o juramento e a cana imperii, o engano, a falsificação te, ao conceito de “ação política”. É
palavra empenhada são respeitados deliberada e a mentira descarada são este um motivo presente logo nas
só quando podem tornar-se úteis, e usados como meios legítimos para al- primeiras páginas de Lying in Politics.
os homens disto se valem não para cançar fins políticos desde os primór- Reflections on the Pentagon Papers:
cumprir, mas como meio de melhor dios da história documentada. Não “Uma característica da ação humana
enganar; e quanto mais fácil e se- por acaso, Hannah Arendt lembra-o é que ela começa sempre algo novo,
guramente o engano é conseguido, constantemente: “As mentiras foram o que não significa que seja sempre
mais louvores e glória adquirem: por sempre consideradas necessárias e permitido começar ab ovo, criar ex
isso os homens nocivos são louvados justificáveis, não apenas à profissão nihilo. De modo a arranjar espaço
como laboriosos, e os bons, como to- do político e do demagogo, mas tam- para a nossa própria ação, algo que
los, são ralhados”. bém à do homem de Estado. Por que já aí estava antes deve ser removido
será assim? O que é que isto repre- ou destruído, e deste modo as coisas
Mutação na história da mentira senta, por um lado, para a natureza e mudam e deixam de ser o que eram
Finalmente, há que referir, ainda a dignidade da esfera política, e, por antes. Essa mudança teria sido im-
que necessariamente de forma muito outro, para a natureza e a dignidade possível se não pudéssemos remover-
breve e alusiva, às reflexões de Han- do domínio da verdade e da boa-fé?”. -nos mentalmente do local onde fisi-
nah Arendt28, uma admiradora con- Um dos pontos interessantes camente estamos e imaginar que as
fessa do pensamento de Maquiavel, da argumentação de Hannah Arendt coisas poderiam ser muito diferentes
sobre a mentira política moderna. neste ensaio prende-se com o reco- do que de fato são. Por outras pala-
Não foi há muito tempo que a autora nhecimento da existência de uma vras, a negação deliberada da verda-
de Truth and Politics (1967) chamou transformação ou mutação na histó- de fatual — a capacidade para mentir
a nossa atenção para o carácter ativo ria da mentira. Uma mutação simul- — e a faculdade de mudar os fatos —
e afirmativo da mentira, para o fato taneamente na história do conceito a capacidade para agir — estão inter-
de “as mentiras, desde que utiliza- de mentira e na história da própria ligadas. Elas devem a sua existência à
das como substitutos de meios mais prática do mentir. Segundo Arendt, a mesma fonte: a imaginação”.
violentos, poderem ser consideradas mentira teria modernamente atingi-
do o seu limite absoluto, tornando-se Verdade dos fatos e opinião
28 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa agora “completa e definitiva”. Ao con- Finalmente, Hannah Arendt lem-
e socióloga alemã, de origem judaica. trário de Oscar Wilde29, que no seu O bra-nos que o mentiroso é, por ex-
Foi influenciada por Heidegger, Hus- Declínio da Mentira diagnostica uma celência, um homem de ação. Entre
serl e Karl Jaspers. Em consequência a
perseguições nazistas, em 1941, partiu agonia da mentira e lamenta que os mentir em política e agir em política,
para os Estados Unidos, onde escreveu políticos, os advogados, e mesmo os entre manifestar a sua liberdade pela
grande parte das suas obras. Lecionou jornalistas, saibam cada vez menos ação, transformar os fatos e antecipar
nas principais universidades deste país. o futuro, há como que uma afinidade
Sua filosofia assenta numa crítica à so- mentir e cultivem cada vez menos a
ciedade de massas e à sua tendência mentira, Arendt considera preocu- essencial. A imaginação: eis, segun-
para atomizar os indivíduos. Preconiza pante o crescimento hiperbólico da do Arendt, a raiz comum à “capaci-
um regresso a uma concepção política dade de mentir” e à “capacidade de
separada da esfera econômica, tendo
mentira na arena política moderna:
“A possibilidade da mentira completa agir”. Capacidade de produzir a ima-
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como modelo de inspiração a antiga
cidade grega. Entre suas obras, estão: e definitiva, ainda desconhecida nas gem. Pois “imagem” é justamente a
Eichmann em Jerusalém - Uma reporta- palavra-chave ou o conceito maior
gem sobre a banalidade do mal (Lisboa:
épocas anteriores, é o perigo que de-
Tenacitas, 2004) e O Sistema Totalitário corre da moderna manipulação dos de todas as análises consagradas à
(Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978). fatos. Mesmo no mundo livre, onde o mentira política do nosso tempo. Sob
Sobre Arendt, confira as edições 168 da governo não monopolizou o poder de esta perspectiva, a mentira é o futu-
IHU On-Line, de 12-12- 2005, sob o títu-
lo Hannah Arendt, Simone Weil e Edith decidir e de dizer o que é ou não é da ro, podemos arriscar dizê-lo, sem,
Stein. Três mulheres que marcaram o esfera da fatualidade, gigantescas or- contudo, trair a intenção de Arendt
século XX, disponível em http://bit.ly/ ganizações de interesses generaliza- neste contexto. Dizer a verdade é,
v0aMxT, e 206, de 27-11-2006, intitulada pelo contrário, dizer o que é ou terá
O mundo moderno é o mundo sem políti- ram uma espécie de mentalidade de
ca. Hannah Arendt 1906-1975, disponível raison d’État, outrora confinada ao sido, o que será sempre preferir o
em http://bit.ly/1aEYDyQ. Nas Notícias domínio dos negócios estrangeiros, e, passado. Hannah Arendt fala, pois,
Diárias de 04-12-2006, você confere a en- de uma afinidade indesmentível da
trevista Um pensamento e uma presença
provocativos, concedida com exclusivida- mentira com a ação, com a mudança
de por Michelle-Irène Brudny, disponível do mundo — em suma, com a polí-
em http://bit.ly/17SjvPl. (Nota da IHU 29 Oscar Wilde (1854-1900): escritor ir- tica. “Ao contrário daquele que diz
On-Line) landês. (Nota da IHU On-Line)

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a verdade — diz ela —, o mentiroso do. Contudo, as bases desse deicídio doutrina de Maquiavel, para a sua mo-
Tema de Capa
não tem necessidade desses arranjos já vinham sendo construídas antes ralidade diabólica e sem escrúpulos.
duvidosos para aparecer na cena polí- do filósofo alemão. Nesse sentido, Maquiavel teria sido um ateu conscien-
tica, afirma aquilo que não é, porque é correto compreender Maquiavel te empenhado em subverter e destruir
deseja que as coisas sejam diferen- como um dos pilares não só do lai- o cristianismo. Maquiavel teria sido o
tes daquilo que são, isto é, ele quer cismo, mas de um fenômeno ainda primeiro filósofo político moderno, al-
mudar o mundo. […] Por outras pala- mais profundo como o niilismo? guém que, tendo iniciado a revolução
vras, a nossa capacidade para mentir António Bento - Tem-se abusado contra a tradição do pensamento polí-
— mas não necessariamente a nossa em demasia dos conceitos de “laicis- tico ocidental, iniciaria também o de-
capacidade para dizer a verdade — mo”, “secularização”, “niilismo”… Não clínio da própria civilização ocidental.
pertence aos poucos dados óbvios e posso agora entrar na sua discussão, Tudo o que agora posso laconicamen-
demonstráveis que confirmam a exis- mas recordo que num um texto escrito te dizer — sem, contudo, justificar a
tência da liberdade humana”. nos anos 40 do século XX, intitulado O minha posição — é que esta não é, de
Tudo se passa como se não pu- fim do maquiavelismo, Jacques Mari- todo, a minha opinião.
desse haver história em geral, e his- tain30, reatualizando sob a forma de um
tória política em particular, sem esta tolerante humanismo cristão os velhos IHU On-Line - O que o “Prínci-
ação, sem esta liberdade que a pos- argumentos dos autores católicos da pe” moderno deveria aprender com
sibilidade de mentir oferece. Hannah Contrarreforma contra Maquiavel, in- a obra do pensador florentino?
Arendt julga, contudo, saber que os siste na “perversidade” do secretário António Bento - Para que possa-
fatos se afirmam a si próprios pela florentino ao sublinhar que ele ensinou mos responder a esta pergunta é pre-
sua inflexibilidade; que, se os fatos os homens não apenas a fazer o mal, ciso que saibamos exatamente a que
são manipuláveis, uma tal manipula- mas a fazê-lo de consciência tranquila: ponto o “Estado de direito” hodierno
bilidade está paradoxalmente ligada à “O que era simples fato, com toda a se afastou realmente de Maquiavel.
grande resistência que eles oferecem fraqueza e inconsistência que, mesmo É necessário que avaliemos primeiro,
à distorção, pois os fatos seriam por- no mal, é própria das coisas acidentais e escrupulosamente, o que nos cus-
tadores dessa irreversibilidade que e contingentes, depois de Maquiavel fi- ta esse afastamento, o que pagamos,
constitui, para ela, a marca distintiva cou sendo direito, com toda a firmeza enfim, por ele. É necessário, por isso,
de toda a ação humana. Com efeito, e solidez próprias das coisas necessá- que saibamos até onde, de maneira
Hannah Arendt está profundamente rias […]. Esta é a perversão maquiavé- talvez insidiosa, Maquiavel se apro-
convencida de que o peso e a esta- lica da política, que emerge do fato da ximou de nós e do nosso “Estado de
bilidade dos fatos — fatos que, por “tomada de consciência” maquiavélica direito”. É, pois, necessário que o pró-
pertencerem ao passado, cresceram do comportamento político médio da prio “Estado de direito” apure o que
até uma dimensão que se pôs fora humanidade. A responsabilidade his- há ainda de maquiaveliano naquilo
do nosso alcance — jamais poderão tórica de Maquiavel é a de ter aceita- que lhe permite pensar-se e definir-
ser substituídos por um artifício pro- do, reconhecido e adotado como regra -se contra Maquiavel. Por fim, é ne-
duzido pelo poder. Assim, que a linha o fato da imoralidade política e de ter cessário ainda que se avalie em que
separadora entre a verdade dos fatos declarado que a boa política, a política medida o protesto moral do “Estado
e a opinião seja cada vez mais tênue, conforme sua natureza e seus autênti- de direito” contra Maquiavel não
isso se explica, segundo Arendt, pelas cos fins, é, por essência, uma política será talvez ainda uma armadilha que
numerosas máscaras que a mentira, não moral”. Mais próximo de nós no o próprio Maquiavel lhe estendeu
como forma de ação, pode assumir. tempo, um autor da envergadura de — uma armadilha de onde ele, Ma-
Mas a verdade — julga Arendt — será Leo Strauss chama a atenção para o quiavel, maliciosamente o espreita e
sempre estabilidade e irreversibilida- caráter violentamente anticristão da observa.
de e sobreviverá indefinidamente às Na verdade, se hoje o “Estado
mentiras, às ficções e às imagens. Por 30 Jacques Maritain (1882-1973): filó- de direito” se confronta com a sua
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conseguinte, caso a verdade dos fatos sofo francês. O pensamento tomista de própria imagem no espelho político
Maritain serviu-lhe de parâmetro para
fosse um dia consistente e totalmente a abordagem e julgamento de situações
de Maquiavel, não é, sobretudo, por-
substituída pelas mentiras, não seriam concretas como a política, a educação, que procure saber quais os pressu-
as mentiras que passariam a ser acei- a arte e a religião vigentes. Mas tratou postos do “maquiavelismo” que nele
também da base da gnosiologia, decidin-
tas como verdade, nem seria a verda- do-se pelo realismo imediato e intuição
— sob formas novas, é verdade — se
de que passaria a ser difamada como do ser, tal como no aristotelismo e na es- mantêm presentes. Assim, subme-
mentira, seria antes o sentido pelo colástica originária. Diferenciou a filoso- ter Maquiavel e o “maquiavelismo”
fia e a ciência experimental, bem como ao ponto de vista da nossa atualida-
qual nos orientamos no mundo real as diversas ciências filosóficas. Advertiu
que ficaria definitivamente destruído. para a diferença entre o tema da lógica de política não significa apenas uma
Este o medo de Hannah Arendt. e o da gnosiologia. Foi um dos principais mera contabilidade da herança que
expoentes do tomismo no século XX. o presente recebe do passado; antes
Uma de suas obras principais é Por um
IHU On-Line - Foi apenas no humanismo cristão (São Paulo: Paulus, implica, e de modo decisivo, uma ri-
século XIX que se proferiu de modo 1999). Sobre Maritain, confira o recém- gorosa avaliação do significado da
veemente o vaticínio da morte de -lançado Maritain à contre-temps: Pour brecha que o ponto de vista do pre-
une démocratie vivante (Paris: Desclée
Deus, através do último homem que de Brouwer, 2007), do filósofo jesuíta sente abre entre o passado e a sua
Nietzsche assenta na praça do merca- Paul Valadier. (Nota da IHU On-Line) própria autointerpretação.

18 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


A corrupção política e a falta

Tema de Capa
de virtù
Como uma doença, a corrupção inicia em certa parte do corpo político e, se não
for combatida, continua a se alastrar, adverte José Antonio Martins. Entretanto,
Maquiavel nunca vinculou esse processo a “desvios morais de um indivíduo ou
falta de virtude de um grupo”

Por Márcia Junges

“S
ão as possibilidades de retarda- ao corrupto —, para Maquiavel a corrupção
mento ou postergação do proces- deve ser percebida na medida em que ela se
so da corrupção, por meio da ação insere como prática no corpo político, práti-
política dos homens, que refletem a novida- ca caracterizada pela pouca participação nos
de do pensamento político maquiaveliano. negócios públicos fundamentalmente”.
Consequência direta desse argumento é que Martins analisa, também, o sucesso da
a corrupção não se coloca na esfera moral ou obra de Maquiavel logo após seu lançamento,
individual, ou seja, as causas da corrupção cinco anos depois da morte do autor, sendo
não estão em indivíduos isolados, mas se in- até hoje uma das obras mais lidas e comen-
serem dentro de uma lógica de ação corrupta tadas sobre a questão política. Outro tema
incorporada pelos diversos atores políticos, da entrevista é a incompreensão de O Prínci-
um modo de agir corrupto que está disse- pe, tido como um libelo à monarquia. O fato
minado pelos diversos órgãos ou instituições é que “depois de O Príncipe, inaugura-se um
políticas da cidade”. A afirmação é do filósofo novo modo de pensar o campo do político”.
José Antonio Martins, em entrevista conce- E acrescenta: “o pensamento político ma-
dida por e-mail à IHU On-Line. Surgida pri- quiaveliano nos revela algo presente ainda
meiramente entre o povo, a corrupção passa no nosso modo de fazer política. Nessa sua
para as instituições “quando estas não visam capacidade de desvelar a lógica de ação po-
mais o interesse público, mas os desejos pri- lítica, Maquiavel consegue retratar e explicar
vados”. Vale ressaltar que, em todos os es- algo que ainda perdura, gostemos ou não, no
tágios de corrupção na esfera política, “Ma- palco das ações políticas”.
quiavel nunca responsabiliza ou vincula esse José Antonio Martins é graduado, mestre
processo a desvios morais de um indivíduo e doutor em Filosofia pela Universidade de
ou falta de virtude de um grupo. O que ele São Paulo — USP com a tese Os fundamentos
indica em várias obras é que isso tudo nasce da República e sua corrupção nos Discursos de
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da falta ou de pouca virtù, conceito este vin- Maquiavel. Docente na Universidade Estadu-
culado totalmente ao campo das ações polí- al de Maringá — UEM, é autor de Corrupção
ticas. Assim, ao contrário do que muitos de- (São Paulo: Globo, 2008 e organizador da edi-
fendem em nossos dias, de que a corrupção ção bilíngue de O Príncipe (2ª ed. São Paulo:
decorre de indivíduos corruptos — donde o Hedra, 2009).
combate à corrupção concentrar-se na caça Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se apresen- José Antonio Martins - Essa va em entender como Maquiavel
tam os fundamentos da República pergunta me leva a recuperar o tema concebia a corrupção política. Ini-
e sua corrupção nos Discursos de da minha pesquisa de doutorado. cialmente eu me baseava em uma
Maquiavel? Num primeiro momento eu pensa- informação incompleta, originada

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 19


da leitura também superficial do The alastra-se por todo ele, levando-o a que têm por finalidade fazer cumprir
Tema de Capa
Machiavellian Moment1, de John Po- morte, que no caso, seria a perda da as leis e as decisões do corpo políti-
cock2, que destacava no pensamen- liberdade política na cidade. co —, essas instituições garantirão a
to maquiaveliano a recuperação de sanidade do corpo, pois a corrupção
uma noção política clássica, de corte IHU On-Line - Qual é a peculiari- é principalmente uma doença. Con-
polibiano (do historiador grego Polí- dade da noção de corrupção política tudo, se a corrupção atingir além do
bio3 de Megalópolis), no qual todos nos escritos maquiavelianos? povo as instituições, então teremos
os corpos políticos nascem, crescem José Antonio Martins - A noção um caso de corrupção política endê-
e, necessariamente, se corrompem de corrupção de Maquiavel é herdei- mica, aquilo que ele nomeia como a
e desaparecem ao final deste ciclo. ra, em grande medida, das concep- “cidade corrompidíssima”. Em todos
Tinha como hipótese que, segun- ções políticas clássicas (aristotélica, estes estágios de corrupção na esfe-
do Maquiavel, a corrupção atingiria polibiana e ciceroniana), visto que ele ra política, Maquiavel nunca respon-
toda e qualquer forma política. O entende esse fenômeno como algo sabiliza ou vincula esse processo aos
que a pesquisa mostrou é que a cor- inerente aos corpos políticos. No limi- desvios morais de um indivíduo ou
rupção é um fenômeno que atinge, te, a corrupção política é um dado na- falta de virtude de um grupo. O que
sim, toda e qualquer forma de orga- tural, ocorrerá necessariamente em ele indica em várias obras é que isso
nização política. Todavia, tendo em qualquer cidade, assim como a doen- tudo nasce da falta ou de pouca virtù,
vista a ênfase republicana do pensa- ça e a morte ocorrerá em qualquer conceito esse vinculado totalmente
mento político maquiaveliano, é no ser vivo. Para Maquiavel a corrupção ao campo das ações políticas. Assim,
interior desta reflexão republicana política não possui esse caráter deter- ao contrário do que muitos defen-
de Maquiavel que a noção de cor- minista tão acentuado como para os dem em nossos dias, de que a cor-
rupção política encontra sua melhor gregos. A corrupção no pensamento rupção decorre de indivíduos corrup-
exposição. De modo sintético, a cor- político maquiaveliano não é uma de- tos — donde o combate à corrupção
rupção decorre primeiramente no terminação inexorável da natureza, concentrar-se na caça ao corrupto —,
povo, na medida em que este deixa mas se apresenta em um campo de para Maquiavel a corrupção deve ser
de atuar com contundência na esfe- possibilidades: pode ocorrer como percebida na medida em que ela se
ra pública e passa, num segundo mo- pode ser retardada. São as possibili- insere como prática no corpo políti-
dades de retardamento ou posterga- co, prática caracterizada pela pouca
mento, para as instituições, quando
ção do processo, por meio da ação participação nos negócios públicos
estas não visam mais ao interesse
política dos homens, que refletem fundamentalmente.
público, mas aos desejos privados.
a novidade do pensamento político
Assemelhada a uma doença, a cor-
maquiaveliano. Consequência direta IHU On-Line - Como podemos
rupção começa em uma parte do
desse argumento é que a corrupção compreender que uma obra escrita
corpo político e, se não for detida,
não se coloca na esfera moral ou in- há cinco séculos continue tão atual?
dividual, ou seja, as causas da corrup- Quais são os principais pontos em
1 The Machiavellian Moment: Floren-
tine Political Thought and the Atlantic ção não estão em indivíduos isolados, tal escrito que seguem importantes
Republican Tradition (O Momento Ma- mas se inserem dentro de uma lógica para a política?
quiaveliano: Pensamento Político de
Florença e a Tradição do Republicanismo
de ação corrupta incorporada pelos José Antonio Martins - O Prín-
Atlântico). Princeton: Princeton Univer- diversos atores políticos, um modo cipe é certamente uma das obras
sity Press, 1975. A obra investiga as ba- de agir corrupto que está dissemina- com uma história muito intrigante e
ses ideológicas do modelo constitucional
estadunidense, fixando-as na tradição
do pelos diversos órgãos ou institui- curiosa. Maquiavel não viu o seu tex-
republicana pós-Renascimento, primeiro ções políticas da cidade. to publicado, pois ele somente passa
na Itália e depois no Reino Unido. (Nota a ser impresso cinco anos após a sua
da IHU On-Line)
2 John Greville Agard Pocock (1924):
IHU On-Line - Em que aspectos morte, e se torna, já de início, um su-
a cisão entre moral e política for- cesso estrondoso, primeiramente na
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historiador britânico. Dedica sua in-


vestigação acadêmica às tradições do mulada por Maquiavel oferece uma península itálica, e depois por qua-
pensamento político republicano e ao
chamado ‘republicanismo atlântico’,
chave de compreensão sobre a cor- se toda a Europa. Mas, mesmo após
abrangendo principalmente as discipli- rupção política? sua censura pelo Index da Igreja Ca-
nas de História e Ciência Política, mas José Antonio Martins - O tema tólica e da sua proibição por vários
com contribuições também ao Direito e
à Filosofia. Integra a chamada ‘Escola de da corrupção política é certamente governos ao longo desses 500 anos,
Cambridge’. (Nota da IHU On-Line) um local privilegiado para perceber ele foi um dos textos mais lidos e co-
3 Políbio (203-120 a.C.): historiador da essa separação entre as esferas moral mentados entre as obras políticas.
Grécia Antiga. Integrante da nobreza,
dedicou-se à atividade política em Me- e política. Assim como o virtuosismo Podemos elencar algumas razões
galópolis. Defendeu a independência da de um ator político não extingue da para esse fenômeno: o tamanho do
região de Acaia e se elegeu comandante cidade a corrupção, do mesmo modo, texto, visto que se trata de um opús-
de cavalaria do exército. Na sua obra,
constrói uma análise das motivações e a tentativa de corrupção de um sin- culo com 26 capítulos, o que permite
valores presentes nos fatos narrados, gular, por si só, não engendra numa uma leitura rápida; a língua, pois não
pretendendo produzir uma visão mais corrupção do corpo político. Para Ma- foi escrito em latim, mas num diale-
ampla do que a mera associação dos
acontecimentos a datas. (Nota da IHU quiavel, se a corrupção atinge parte to italiano (o toscano) de mais fácil
On-Line) do povo, mas não as instituições — leitura, com um estilo de redação

20 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


elegante, envolvente, com exemplos que se travaram, que a reflexão po- que estava concluindo um livro intitu-

Tema de Capa
e metáforas que facilitam a sua com- lítica maquiaveliana ganha seus con- lado De principatibus (cuja tradução
preensão; e, a meu ver, o elemento tornos definitivos. correta deveria ser Dos principados
mais significativo, Maquiavel revela ou Sobre os principados). É essa in-
os mecanismos, as lógicas das ações Atemporalidade formação sobre o manuscrito, e não
políticas. Essa exposição de como de Com efeito, ao olharmos a se- a data da primeira publicação (que
fato funciona o mundo político, nas quência de elaboração dos textos, ocorre somente em 1532), que mar-
suas genuínas razões, sem rodeios iniciando com os primeiros opúscu- ca simbolicamente o nascimento da
ou disfarces, os motivos que levam los da época em que ele trabalhava obra. Contudo, mais do que recordar
os atores políticos a decidirem, to- na Chancelaria de Florença, passan- o momento em que ela foi escrita, en-
dos esses aspectos despertam a do posteriormente por O Príncipe, os tendo que devamos considerar, antes
curiosidade daqueles que querem Discursos, os demais textos políticos de qualquer coisa, como uma obra,
desvendar esse universo político. Ao menores e culminando na História um livro se mantém durante longo
explicitar esse mistério (que a tradi- de Florença, encontramos nessas tempo com tanta força e vitalidade,
ção interpretativa também nomeia obras as respostas para as demandas seja no tempo, seja no espaço. Na
como os Arcana Imperii), Maquiavel teóricas que o seu tempo formulou verdade, são 500 anos de um texto
faz um texto atualizado, pois a lógica e que ele, na condição de pensador que foi muito lido e comentado, não
de funcionamento do mundo políti- político, tentou encetar suas respos- somente nos territórios italianos, ao
co pouco alterou nesse tempo. tas. Mais ainda, encontramos nos qual faz referência de modo direto,
escritos políticos maquiavelianos o mas em todo o planeta. Este feito,
IHU On-Line - Qual é o contexto esforço para dar conta de proble- para uma obra não literária e não reli-
da escrita de O Príncipe e o que essa mas e dificuldades que perpassavam giosa, é certamente o fenômeno mais
obra reflete da vivência política do o pensamento político há séculos, significativo sobre o qual devamos
próprio Maquiavel e dos homens de como é o caso da questão dos ciclos refletir.
seu tempo? políticos e da corrupção dos gover-
José Antonio Martins - Essa é nos, por exemplo. É particularmente IHU On-Line - Qual é a impor-
uma boa questão até para entender por esse aspecto, por tentar dar con- tância de se ler O Príncipe tendo em
o modo como os pensadores elabo- ta de grandes dificuldades teóricas vista, igualmente, os Discursos sobre
ram seus textos. A Florença de Ma- do pensamento político ocidental, a primeira década de Tito Lívio?
quiavel, do final do século XV e das que as obras maquiavelianas não José Antonio Martins - O Prín-
primeiras décadas do século XVI, foi ficam restritas ao seu tempo e às cipe é, equivocadamente, definido
um palco de lutas políticas intensas, suas circunstâncias, tornando-se de como um livro em defesa da mo-
com mudanças de governos, sempre fato universais no tempo e no es- narquia, enquanto os Discursos são,
atribuladas. Juntamente com esses paço. O modo como o pensamento corretamente, caracterizados como
fatos históricos, a cidade também político maquiaveliano se estrutura a obra republicana de Maquiavel. O
se tornou um centro de reflexão e é educativo para nós, visto que nos problema é que o principado, tema
debate sobre o melhor modo de or- textos estão evidentes os dramas de da primeira parte de O Príncipe e
denar politicamente a cidade, quais seu momento histórico. Contudo, o critério para análise da figura des-
instituições criar ou extinguir, como pensador não se fixa somente nessas se príncipe, não é necessariamente
os grupos políticos poderiam ou não dificuldades, mas extrapola a sua re- um regime monárquico. Uma leitura
ter acesso às decisões, enfim, um flexão e a insere no quadro dos pro- atenta do texto revela que o princi-
verdadeiro centro de reflexão políti- blemas do pensamento político. Isso pado é um regime no qual aquele
ca. Isolar a produção intelectual de é um exemplo de como se compor- que lidera a cidade deve estar o tem-
Maquiavel desse contexto é um grave tam os grandes pensadores políticos, po todo atento aos movimentos dos
equívoco, pois foi no interior das lutas pois eles partem de seu mundo, dos diversos atores políticos e trabalhar
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políticas — nas quais ele tomou par- seus contextos e, sem negá-los ou ig- para conservar a sua legitimidade
te como membro ativo de um grupo norá-los, inserem essas dificuldades na disputa política. Nesse sentido,
político que governou a cidade, entre na história do pensamento político. esse comandante político não se as-
1498 e 1512, sob o comando de Pier semelha ao monarca clássico, muito
Soderini4 — e dos debates públicos 500 anos menos ao monarca absolutista do
A efeméride dos 500 anos de século XVI, como alguns tendem a
4 Pier Soderini ou Piero di Tommaso So- O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, retratá-lo. Compartilho da hipótese
derini (1452-1522): político de Florença. decorre de uma carta de 19 de de-
Durante seu governo, foram reformados defendida por alguns comentadores
o sistema judiciário e a organização tri- zembro de 1513, endereçada ao seu de que o principado pode ser o regi-
butária. Era considerado um líder mo- amigo e funcionário da Santa Sé, me no qual se transforma a repúbli-
derado e sábio, embora desprovido de Francisco Vettori5, na qual ele relata
certa malícia política e tido como um ca corrompida, conservando, quanto
articulador frágil. Por sugestão de Ma- se trata de um principado civil, várias
quiavel, criou uma força militar estatal 5 Francisco Vettori (1474-1539): his- características da dinâmica políti-
para substituir as milícias formadas por toriador e político. Foi embaixador de
mercenários estrangeiros. (Nota da IHU Florença junto ao Papa, em Roma, e na ca republicana. Donde poderíamos
On-Line) França. (Nota da IHU On-Line) pensar que uma leitura dos Discur-

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 21


sos estaria como pressuposto para O
“Maquiavel não política, essa que exige engajamento
Tema de Capa
Príncipe. Nesse sentido, a república e participação ativa na vida da cida-
corrompida é o pressuposto do prin-
cipado civil, modelo de principado viu o seu texto de, entre outras qualidades, torna o
ator político, cidadão ou governante,
do livro, instaurando assim a vincu-
lação e passagem dos Discursos para publicado, pois uma figura que deve ter qualidades
políticas.
O Príncipe.
ele somente passa IHU On-Line - Quais foram os
IHU On-Line - Quais são as
principais mudanças de perspectiva a ser impresso autores fundamentais que influen-
ciaram Maquiavel?
apontadas em O Príncipe em termos
da política? cinco anos após José Antonio Martins - Maquia-
vel faz referência direta a alguns es-
José Antonio Martins - A pri-
meira e certamente a mais impor- a sua morte, e critores romanos, como Tito Lívio,
Lucrécio6, Salústio7, Cícero8, Ver-
tante é que O Príncipe expõe um
mundo desconhecido pelos homens, se torna, já de gézio9, bem como aos gregos Políbio,
Platão10 e, certamente, Aristóteles11.
principalmente se levarmos em con-
ta a tradição anterior a Maquiavel
dos manuais “espelhos de prínci-
início, um sucesso Todavia, apesar de ele não nomear

pe”. Em sua exposição, o Florentino


rompe com essa tradição de textos
estrondoso, 6 Lucrécio: poeta e filósofo latino
que viveu no século I a.C. Sua fama
decorre do poema De rerum natura
endereçados aos governantes que
procuravam orientar a conduta, com
primeiramente na (Da natureza), onde expõe a filosofia
de Epicuro de Samos. Para Lucrécio,

península itálica,
o epicurismo era a chave que poderia
destaque para o cultivo das virtudes desvendar os segredos do universo e
cristãs. Ao manter aparentemente garantir a felicidade humana. (Nota IHU
esse formato, a obra maquiavelia-
na desconcerta o seu leitor, pois é
depois por quase On-Line)
7 Salústio (Gaius Sallustius Crispus) (86-
35 a.C.): historiador latino. Nasceu em
sim um manual para governantes
também, porém não orienta o prín-
toda a Europa” Sabine, Itália. (Nota IHU On-Line)
8 Cícero (Túlio Cícero) (106-43 a.C.):
filósofo, orador, escritor, advogado e
cipe neste sentido, mas alerta para político romano. (Nota da IHU On-Line)
práticas e critérios muito próprios 9 Vergézio (Giovanni Vergezio): escritor
do campo político, muitos dos quais e calígrafo do período do Renascimento
o pensamento de Maquiavel foi sub- em Florença, mestre na língua grega.
contrários ao ideário das virtudes metido ao longo dos séculos? (Nota da IHU On-Line)
cristãs. Consequência direta desse José Antonio Martins - O pri- 10 Platão (427-347 a. C.): filósofo ate-
niense. Criador de sistemas filosóficos
modo de apresentar o texto é a reve- meiro mal-entendido, talvez o mais influentes até hoje, como a Teoria das
lação dos mecanismos de funciona- grave, é de que ele foi um defensor Ideias e a Dialética. Discípulo de Sócra-
mento do universo político em seus de um modelo de governante monár- tes, Platão foi mestre de Aristóteles. En-
tre suas obras, destacam-se A República
termos verdadeiros, sem floreios. quico inescrupuloso e que a política e Fédon. Sobre Platão, confira as entre-
Esse realismo, como muitos gostam é um campo de ação sem virtudes ou vistas “As implicações éticas da cosmolo-
de qualificar o texto de Maquiavel, qualidades, consagrado naquilo que gia de Platão” e “O Platão de Lima Vaz”,
ambas concedidas pelo filósofo Prof. Dr.
inaugura um novo capítulo, seja na ficou conhecido como o maquiavelis- Marcelo Perine, respectivamente às edi-
reflexão política, seja no modo como mo. Na verdade, essa interpretação ções 194, de 04-09-2006, e 374, de 26-
se avalia o mundo político. Depois surgiu entre seus adversários, que o 09-2011, da revista IHU On-Line, dispo-
níveis em http://bit.ly/pteX8f e http://
de O Príncipe, as interpretações e acusavam de ser um pensador amo- bit.ly/oaAUiL. Leia, também, a edição
os comentários sobre o modo como
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ral. Essa corrente interpretativa, que 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-
os atores políticos tomam suas deci- se inicia com os católicos do século 2009, intitulada Platão. A totalidade em
movimento, disponível em http://bit.
sões, suas razões, suas finalidades, XVI e perpassa os séculos, perde força ly/iSqddU. (Nota da IHU On-Line)
seus interesses não evidentes, nun- quando, no século XIX, os estudos da 11 Aristóteles (Aristóteles de Estagira)
ca mais foram os mesmos, pois as obra maquiaveliana são retomados (384–322 a.C.): filósofo nascido na Cal-
cídica, Estagira, um dos maiores pensa-
boas intenções, o bem comum pre- com força no contexto da unificação dores de todos os tempos. Suas reflexões
sente nos discursos do governante da Itália, e, com maior vigor, no sécu- filosóficas — por um lado originais e por
que zela pelo seu povo, estarão sem- lo XX, quando temos de fato o início outro reformuladoras da tradição grega
— acabaram por configurar um modo de
pre em dúvida. Enfim, e esse dado é de estudos e pesquisas acadêmicas. pensar que se estenderia por séculos.
consenso entre os historiadores do É consenso geral hoje que os adver- Prestou inigualáveis contribuições para o
pensamento político, depois de O sários intelectuais de Maquiavel não pensamento humano, destacando-se nos
campos da ética, política, física, metafí-
Príncipe, inaugura-se um novo modo perceberam a força e a profundidade sica, lógica, psicologia, poesia, retórica,
de pensar o campo político. da noção de virtù, fundamento do zoologia, biologia, história natural e ou-
agir político. Longe de ser amoral, o tras áreas de conhecimento. É conside-
rado, por muitos, o filósofo que mais in-
IHU On-Line - Quais foram os pensamento político maquiaveliano, fluenciou o pensamento ocidental. (Nota
principais mal-entendidos aos quais ao defender a necessidade da virtù da IHU On-Line)

22 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


vários autores, podemos perceber
“O primeiro mal- zes se põe como o antônimo da virtù.

Tema de Capa
que vários outros autores romanos Todavia, por maior que seja a virtù de
e pensadores medievais foram lidos
e se tornaram ou fonte para seus ar- entendido, talvez um indivíduo ou de uma cidade, ela
não é o bastante para conter as for-
gumentos, ou adversários a serem re-
batidos, e neste caso claramente po- o mais grave, é ças da natureza que atuam sobre os
destinos dos homens, donde sempre
demos identificar os escritos políticos ser necessário considerar a fortuna.
de Agostinho de Hipona12. Conforme de que ele foi A noção de fortuna deve ser pensada
esclarece Eugenio Garin13, é na cultu- no interior da cultura do Renascimen-
ra do Renascimento italiano que está um defensor to, nesse desejo dos homens do pe-
a verdadeira fonte de Maquiavel. ríodo em afirmar suas capacidades ou
de um modelo potencialidades e poderem, assim,
IHU On-Line - Em que medida controlar a natureza. Apesar dessa
os conceitos de virtù e fortuna são de governante crença nas capacidades humanas,
tributários a Tito Lívio e reinterpre- vários pensadores do Renascimento,
tados pelo pensador florentino? monárquico como Maquiavel, reconheciam que a
José Antonio Martins - Esses força humana não podia tudo, que a
conceitos não nascem diretamente inescrupuloso natureza exercia seu poder sobre os
destinos humanos. Donde ser neces-
de Tito Lívio, mas de outras fontes.
Aqui cabe um esclarecimento neces-
sário. Maquiavel comenta apenas os
e que a política sário ao homem de virtù saber reco-
nhecer e tentar controlar os ímpetos
dez primeiros livros da História de
Roma de Tito Lívio, que era composta
é um campo de da natureza, a fortuna, que sempre
acaba interferindo no destino dos ho-
por 142 livros, donde o correto seria
nomear Discurso sobre a primeira de-
ação sem virtudes mens. Enfim, os fundamentos da no-
ção de fortuna devem ser buscados
zena, e não década, como se adotou
nas edições brasileiras. Ele escolhe
ou qualidades, na cosmologia do Renascimento, nes-
ta certeza de que a natureza interfere
apenas esses livros para comentar
por dois motivos: primeiro, por ser
consagrado no destino dos homens.

nessa parte da obra que o historiador


romano narra o surgimento de Roma
naquilo que ficou IHU On-Line - Gostaria de
acrescentar algum aspecto não
e sua transição do período monárqui-
co para o republicano. Tendo em vista
conhecido como o questionado?
José Antonio Martins - Apenas
que Maquiavel desejava fazer uma
exposição sobre a república, essa maquiavelismo” insistir que, a despeito do intervalo
de tempo que nos separa do momen-
primeira parte do livro auxiliaria em to de confecção de O Príncipe, e não
sua tarefa. O segundo motivo para a somente dessa obra, mas o corpus
escolha do texto liviano foi porque político maquiaveliano, a sua refle-
anos antes, defendendo um modelo xão repercute com força em nossos
um de seus adversários intelectuais,
republicano cujo centro decisório es- dias, não porque temos semelhan-
Bernardo Rucellai14, aristocrata e
tivesse na mão da aristocracia. Ora, ças culturais, sociais, mentais com
cunhado de Lorenzo de Médici15, ha-
Maquiavel escolhe o mesmo trecho o “momento maquiaveliano” (para
via feito também uma exposição so-
para comentar a fim de mostrar ou- usar uma boa expressão de John Po-
bre esse trecho da obra de Tito Lívio,
tra tese, a de que a república romana cock), mas porque o pensamento po-
encontrou sua glória porque foi, ao lítico maquiaveliano nos revela algo
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12 Agostinho de Hipona (Aurélio Agosti-
nho ou Santo Agostinho) (354-430): bispo longo dos anos, dando maior espaço presente ainda no nosso modo de
católico, teólogo e filósofo. É considera- ao povo nas decisões políticas.
do santo pelos católicos e doutor da dou- fazer política. Nessa sua capacidade
trina da Igreja. (Nota da IHU On-Line) de desvelar a lógica de ação política,
13 Eugenio Garin (1909-2004): historia- Cosmologia do Renascimento Maquiavel consegue retratar e expli-
dor, filósofo e filólogo italiano, reconhe- Os motivos pela escolha do texto
cido por seus estudos sobre a Renascen- car algo que ainda perdura, gostemos
ça. (Nota da IHU On-Line) de Tito Lívio não se calcam na recu- ou não, no palco das ações políticas.
14 Bernardo Rucellai (1448-1514): ban- peração da noção de virtù e fortuna. Mais do que tentar estabelecer vín-
queiro, embaixador, de família oligarca, Sobre a primeira, como já dissemos,
homem dedicado às letras. Era casado culos e pontes anacrônicas entre o
com Nannina de Médici, a irmã mais ve- sua elaboração decorre da constata- nosso contexto e o do cinquecento
lha de Lorenzo de Médici, e tio dos papas ção de que os atos políticos possuem florentino de Maquiavel, cumpre-nos
Leão X e Clemente VII. (Nota da IHU On-
-Line)
uma lógica de ação própria, com re- extrair de seus textos essa explicação
15 Lorenzo de Médici (Lourenço II de gras e finalidade muito precisas. Ra- de como funciona uma parte impor-
Médici) (1492–1519): governante de zão pela qual tem se tornado praxe tante de nossas vidas e utilizar esse
Florença e Duque de Urbino. Sua filha,
Catarina, se tornaria rainha da França. não traduzir o termo italiano virtù conhecimento para criticar e estabe-
Maquiavel dedicou O Príncipe a ele. por virtude, visto que esta muitas ve- lecer modos de conduta política.

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 23


A atualidade do republicanismo
Tema de Capa

maquiaveliano
Uma das novidades dos escritos de Maquiavel foi a reflexão sobre a política e o
Estado enquanto este ainda estava em formação, observa José Luiz Ames. Tais
obras podem nos ajudar a entender as manifestações de desagravo que expressam
“a vitalidade política de um Estado”

Por Márcia Junges

“E
nquanto o lugar comum da inter- e promover as transformações institucionais
pretação de O Príncipe era o de nela contida”. Segundo Ames, é fundamental
uma obra destinada a orientar os analisar a vida política e seu desenvolvimen-
tiranos no poder, Rousseau insiste em que a to na esfera da aparência: “a verdade da po-
sua finalidade é de acautelar o povo contra o lítica é possível de ser captada tão somente
que os tiranos podem fazer, a fim de ajudá- pelos efeitos (resultados ou consequências)
-lo a resistir a eles. Com esta interpretação, das ações. E nisto consiste a conhecida ruptu-
Rousseau ajudou a recuperar o republicanis- ra maquiaveliana com a moral e a instituição
mo maquiaveliano, concepção da mais plena da política como um domínio autônomo, algo
atualidade nos debates políticos contemporâ- pensado a partir dela mesma”.
neos, e a desfazer a imagem de maquiavélico, Graduado em Filosofia pelo Instituto Edu-
isto é, da justificação dos meios pelo fim”. A cacional Dom Bosco, José Luiz Ames é mestre
ponderação é do filósofo José Luiz Ames, na em Filosofia pela Pontifícia Universidade Ca-
entrevista que concedeu por e-mail à IHU tólica do Rio Grande do Sul — PUCRS e doutor
On-Line. E acrescenta: “estar ‘condenado’ a em Filosofia pela Universidade Estadual de
viver em sociedade não é uma questão que Campinas — Unicamp com a tese Maquiavel:
preocupe o florentino. Interessa-lhe, isto sim, a lógica da ação política (Cascavel: Edunioes-
examinar as condições sob as quais a vida em te, 2002). Leciona na Universidade Estadual
sociedade pode converter-se em um vivere do Oeste do Paraná — Unioeste e é autor de,
libero, isto é, em uma forma de existência po- entre outros, Liberdade e libertação na ética
lítica na qual os homens são regidos por leis de Dussel (Campo Grande: CEFIL, 1992) e Fi-
autoimpostas e na qual os cargos públicos es- losofia Política: Reflexões (Curitiba: Protexto,
tão abertos de forma igual a todos”. As obras 2012). É o criador da página Portal da filoso-
do florentino auxiliam no entendimento das fia, http://portaldafilosofia.blogspot.com.br/,
manifestações de rua, que demonstram “a site no qual publica vários artigos sobre filo-
vitalidade política de um Estado. Cabe à po- sofia política.
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testas fazer a adequada decifração desta grita Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como podemos tante cargo na república de Florença. como a conhecemos hoje, não exis-
compreender o contexto filosófico e Destacaria três aspectos importantes tia ainda. O “Estado” que Maquia-
político do surgimento das ideias de para a compreensão do contexto filo- vel serviu como Segundo Chanceler
Maquiavel? sófico e político que influenciaram no por quase 15 anos foi a república de
José Luiz Ames - Nicolau Ma- desenvolvimento de suas ideias. Florença.
quiavel nasceu em Florença, Itália, Um primeiro é o de que a Itália, Um segundo aspecto é o de que
em 3 de maio de 1469 e morreu em neste período, era um mosaico de os Estados Nacionais tais como os co-
21 de junho de 1527. Pouco sabemos cerca de 20 Estados de dimensões nhecemos hoje estavam ainda em for-
de sua vida antes de 1498, ano em territoriais e regimes políticos muito mação. O conceito propriamente dito
que foi eleito para exercer um impor- variáveis. A Itália como Estado, tal de “Estado” como entidade abstrata

24 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


e soberana ainda não existia. Será nascem do modo como é resolvida a sujeita se resultasse da livre escolha;

Tema de Capa
apenas bem mais tarde, com Jean oposição dos desejos (outras vezes por outro lado, a necessidade força a
Bodin1 e Thomas Hobbes, que ele virá ele também se refere a eles como limitação recíproca dos desejos natu-
à luz. Maquiavel, porém, com suas humores) fundamentais de “gran- ralmente inconciliáveis de grandes e
ideias, contribuirá decisivamente na des” e “povo”. Para Maquiavel, esta povo, fazendo surgir a vida política.
sua formulação, particularmente com cisão é constitutiva de todas as so-
sua defesa enfática da necessidade ciedades e é de tal grandeza que é IHU On-Line - Como Maquiavel
de uma autoridade suprema como impossível encontrar unidade entre concilia a liberdade do sujeito e a
condição de conservação da unidade ela. Importante destacar de imediato regulação dos desejos do povo via
de um povo sob um território. que grandes e povo não são, em Ma- política?
quiavel, categorias socioeconômicas, José Luiz Ames - Faz-se presente
Reflexão filosófica sobre o poder e sim ontológicas. No entanto, ainda no pensamento maquiaveliano uma
Um terceiro aspecto a considerar que o movimento natural do desejo ideia geral de liberdade concebida
é a influência exercida sobre o pen- de grandes e povo seja o de aniquilar como atributo do homem, liberdade
samento de Maquiavel pela função cada qual ao outro, é contido em seu entendida como algo inerente à con-
pública por ele desempenhada. Ma- curso, porque cada parte é limitada dição humana. Contudo, tanto liber-
quiavel foi eleito, em 19 de junho de pela outra: o desejo de comandar dos dade quanto livre arbítrio, como qua-
1498, ao cargo de chefe da Segunda grandes encontra, no desejo de liber- lidades do homem (a noção de sujeito
Chancelaria da república de Florença, dade do povo, seu limite e vice-versa. é estranha ao contexto maquiavelia-
que tratava dos negócios internos e Isso obriga as duas partes ao acordo: no, sendo anacrônico seu uso para
extraordinários, entre os quais os pro- nascem dali leis e instituições capazes explicar sua obra, pois surgirá apenas
blemas da guerra. Foi à frente desse de dar vazão aos desejos dissimétri- bem mais tarde, com Descartes2 e
cargo, que exerceu até 7 de novembro cos de grandes e povo. Hobbes, por exemplo), são sempre
de 1512, que ele teve a oportunidade É preciso ter presente ainda que compreendidas em um contexto
de conhecer profundamente os princi- esse acordo não põe fim ao conflito, sócio-histórico bem determinado, e
pais Estados europeus graças às mais não é capaz de neutralizá-lo, mas ape- não em uma perspectiva individual
de 20 missões diplomáticas em que nas normalizá-lo em formas sempre e subjetiva. É este sentido político de
representou sua pátria. precárias e provisórias. O confronto liberdade, liberdade compreendida
Maquiavel foi, portanto, o pen- de grandes e povo em uma arena po- como uma experiência que se dá em
sador que refletiu sobre a política e lítica, isto é, pelas vias institucionais e
um contexto associativo, que prevale-
o Estado num período em que este legais, tem como resultado uma cer-
ce na obra de Maquiavel.
estava ainda em formação e o fez a ta ordem político-institucional que é
O homem é livre (ou é capaz
partir de um conhecimento adquirido mais favorável ora a uma ora a outra
de livre arbítrio), para Maquiavel,
direta e pessoalmente dos aconteci- das partes em confronto na totalida-
sempre no quadro de uma vida asso-
mentos de seu tempo. Ele eleva esta de social. O equilíbrio alcançado num
ciada, de uma coletividade humana
experiência ao nível abstrato da refle- momento jamais é tal que não possa
determinada. Libertà e libero arbi-
xão filosófica sobre o poder. Maquia- ser revertido em uma situação poste-
trio não são experiências humanas
vel pensa filosoficamente sobre a po- rior. A impossibilidade de uma parte
que podem ser ditas de um singular
lítica na perspectiva de oferecer um impor-se plenamente sobre a outra
na interioridade de seu espírito (de
entendimento do quadro contempo- assegura, por um lado, que as leis te-
nham em vista o bem comum e não o um sujeito), mas da relação deste
râneo, por um lado, mas também de
da parte vencedora e, de outro, deixa homem com os demais dentro de
proporcionar uma compreensão do
sempre em aberto a possibilidade de uma coletividade política. Maquiavel
político como dimensão inerradicável
reversão. jamais se ocupa dessas expressões
do ser humano.
como se fossem essências abstratas
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IHU On-Line - Em que medida Desejo e necessidade
2 Descartes (René Descartes) (1596-
a necessidade e o desejo estão no Estas considerações evidenciam, 1650): filósofo, físico e matemático
cerne da instauração política para pois, que o desejo, naturalmente francês. Notabilizou-se sobretudo pelo
Maquiavel? desmesurado, de grandes e povo é seu trabalho revolucionário da Filoso-
fia, tendo também sido famoso por ser
José Luiz Ames - Maquiavel ex- contido pela necessidade. A necessità o inventor do sistema de coordenadas
plica, em O Príncipe (capítulo XV), é, assim, a coação imposta pelas con- cartesiano, que influenciou o desenvol-
que todas as formas de vida política dições reais nas quais a ação política vimento do cálculo moderno. Descartes,
por vezes chamado o fundador da filo-
se desenrola ao forçar os homens a sofia e matemática modernas, inspirou
1 Jean Bodin (1530-1596): jurista fran- agir em uma determinada direção, ou os seus contemporâneos e gerações de
cês, membro do Parlamento de Paris então de limitar a desmesura de seus filósofos. Na opinião de alguns comen-
e professor de Direito em Toulouse. É tadores, ele iniciou a formação daquilo
considerado por muitos o pai da Ciência desejos. Dessa maneira, ao cons- a que hoje se chama de racionalismo
Política devido a sua teoria sobre sobera- tranger os homens a seguir a única continental (supostamente em oposição
nia. Baseou-se nesta mesma teoria para alternativa viável concretamente nas à escola que predominava nas ilhas bri-
afirmar a legitimação do poder do homem tânicas, o empirismo), posição filosófica
sobre a mulher e da monarquia sobre a circunstâncias dadas, a necessidade dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota
gerontocracia. (Nota da IHU On-Line) evita a dispersão a que a ação estaria da IHU On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 25


ou metafísicas. Assim, libertà é algo Rousseau, como sabemos, foi um Maquiavel desenvolve ali a ideia de
Tema de Capa
que se diz, fundamentalmente, de leitor que tinha a obra de Maquiavel que o príncipe precisa assumir deter-
uma cidade: “livre” é uma cidade, e em alta consideração. Reconhecia no minadas qualidades estimadas pelos
ainda que libertà possa ser uma expe- florentino um patriota e defensor da súditos, quer as possua ou não. Trata-
riência “do homem”, pressupõe uma liberdade dos povos: enquanto o lugar -se de desempenhar um papel, como
comunidade política concreta na qual comum da interpretação de O Príncipe num teatro, parecendo e não sendo
esta possibilidade se realiza. “Cidade era o de uma obra destinada a orientar de um modo ou de outro. Por que,
livre”, uma vez que é disso que se tra- os tiranos no poder, Rousseau insiste poderíamos perguntar, o ator político
ta fundamentalmente, é aquela que em que a sua finalidade é de acautelar precisa levar a efeito ações que dissi-
vive sob suas próprias leis, e não sob o povo contra o que os tiranos podem mulem aos governados seu verdadei-
o domínio estrangeiro. O contrário fazer, a fim de ajudá-lo a resistir a eles. ro objetivo?
de cidade livre é servitù, termo que Com esta interpretação, Rousseau aju- A exigência de parecer se impõe
Maquiavel utiliza para caracterizar a dou a recuperar o republicanismo ma- como uma necessidade política de
cidade governada por estrangeiros, quiaveliano, concepção da mais plena construção da imagem. Não pode ser
independentemente de sob quais ins- atualidade nos debates políticos con- interpretada como pura encenação,
tituições governem, ou se agem com temporâneos, e a desfazer a imagem ou como desejo puro e simples de
clemência ou com crueldade. de maquiavélico, isto é, da justificação ludíbrio. Muito antes, é uma atitude
A salvaguarda da liberdade está, dos meios pelo fim. deliberada de evidenciar o caráter
pois, em evitar cair, internamente, virtuoso de que estão revestidas as
na servidão de uma tirania e, exter- IHU On-Line - Qual é a atualida- ações que pratica (ou seja, de que es-
namente, sob a dominação de outra de da compreensão da violência po- tão a serviço do bem público), sendo
potência. Consequentemente, a li- lítica dissimulada e da violência ori- irrelevante saber se elas são ou não
berdade pode existir em dois planos ginária, constatadas por Maquiavel? virtuosas “em si”; isto é, se a intenção
distintos: a liberdade dos cidadãos José Luiz Ames - Maquiavel com a qual são praticadas está em
sob uma república e a liberdade da propõe-se a pensar a política desde a conformidade com a virtude ou não.
república enquanto forma de organi- ação, ideia que é expressa por ele na Em outras palavras, que a intenção é
zação política diante das demais po- famosa proposição de que pretende julgada por seus efeitos e que a ação
tências. Podemos chamar a primeira seguir a verdade efetiva da coisa (O encontra seu sentido unicamente ao
de liberdade no Estado, e a segunda, Príncipe, capítulo XV). Em que con- longo do tempo, o que significa di-
liberdade do Estado. Uma e outra de- siste esta verdade? Para Maquiavel, zer que está submetida ao juízo da
vem ser entendidas, sobretudo, não a verdade política da ação pode ser história.
como liberdade individual, mas como captada unicamente por meio de A concepção de verità effettuale
liberdade do corpo político no seu seus efeitos, e não pelas motivações; proposta por Maquiavel permite pen-
conjunto. quer dizer, ela se situa nas conse- sar que a realidade se esgota com-
quências, nas repercussões — sejam pletamente na aparência não porque
IHU On-Line - Até que ponto elas afortunadas ou infelizes — sobre somente trapaceando o ator político
Maquiavel se aproxima de Rousseau o sistema complexo das condições a seria capaz de satisfazer suas ambi-
ao perceber que estamos “condena- partir das quais a ação se desenrola. ções, e sim porque é o único modo de
dos” a viver em sociedade? Dessa maneira, não basta colecionar aceder ao vivere politico. Em outras
José Luiz Ames - Maquiavel se fatos para encontrar a verdade: uma palavras, a vida política se desenvol-
mostra indiferente em relação à exis- sucessão de acontecimentos apenas ve na esfera da aparência: a verdade
tência “natural” do homem; isto é, significa algo se alguém (um prínci- da política é possível de ser captada
de uma existência que os contratu- pe ou um colegiado de cidadãos sob tão somente pelos efeitos (resultados
alistas, entre os quais Rousseau, de- uma república) lhe revelar o sentido. ou consequências) das ações. E nisto
nominam “estado de natureza”. Ma- Uma vez que a ação política está consiste a conhecida ruptura maquia-
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quiavel parte simplesmente do fato submetida à lógica da necessidade, veliana com a moral e a instituição da
da vida humana sob o Estado; sequer o ator político vê-se obrigado a ava- política como um domínio autônomo,
se ocupa em problematizar a neces- liar vícios e virtudes unicamente em algo pensado a partir dela mesma.
sidade ou não da existência coletiva. relação aos seus efeitos, ou seja, em
Assim, estar “condenado” a viver em função de suas possibilidades de con- IHU On-Line - Qual é a origem
sociedade não é uma questão que quista e conservação do poder. As- da compreensão maquiaveliana de
preocupe o florentino. Interessa-lhe, sim, por ser a necessidade, e não uma que a política é um jogo?
isto sim, examinar as condições sob norma do bem, que determina a ação José Luiz Ames - Ernst Cassirer
as quais a vida em sociedade pode política, a exigência de conservar o é, talvez, o mais conhecido dos de-
converter-se em um vivere libero; isto poder pode obrigar o ator político a fensores da tese de que Maquiavel é
é, em uma forma de existência políti- “entrar no mal”. um técnico frio, sem compromissos
ca na qual os homens são regidos por éticos ou políticos, um analista políti-
leis autoimpostas e na qual os cargos Esfera da aparência co objetivo, um cientista moralmente
públicos estão abertos de forma igual Os capítulos XVI a XIX de O Prín- neutro e desinteressado quanto ao
a todos. cipe completam esta concepção: uso de suas descobertas “técnicas”,

26 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


que podem servir tanto a libertado-
“Maquiavel tante na obra de Maquiavel, mas

Tema de Capa
res quanto a déspotas. Para Cassirer, seu objetivo ultrapassa largamente a
a atividade política se ajustaria tanto
ao Estado legal quanto ao ilegal, não foi, portanto, o mera descrição minuciosa da vida po-
lítica. Maquiavel percebe o poder em
sendo imoral nem moral, mas sim
amoral. Ele simplesmente ofereceria pensador que sua inserção ineludível naquilo que
considera a atividade mais sublime e
a todos os soberanos, reais ou virtu- enobrecedora dos seres humanos: a
ais, legítimos ou ilegítimos, conselhos refletiu sobre a política. No entanto, suas afirmativas
eficazes para estabelecer e manter o não são empíricas ou puramente des-
seu poder, para evitar as discórdias política e o Estado critivas: não só nos diz que na política
internas, para prevenir ou para triun- o mal está sempre presente, que ele
far sobre as conspirações. Maquiavel num período é utilizado normal e impunemente
é apresentado como o profeta da téc- nela, mas sustenta que, em determi-
nica em política, o mestre do realis- em que este nadas situações, o mal deve ser feito
mo amoral. O campo de preocupação no âmbito da política. Esta não é uma
de Maquiavel não seria a política em
sentido normativo, e sim desta ativi-
estava ainda em afirmação de alguém que aspira à im-
parcialidade científica. É um juízo nor-
dade humana no sentido puramente
descritivo, abordando-a de modo se-
formação e o fez mativo que é preciso ser interpretado
como uma recomendação ética para
melhante a um cientista social que
descreve como funcionam de fato
a partir de um aquele que age no campo da política.
Revela que Maquiavel está longe de
as realidades políticas. Indignar-se
diante dos meios indicados para a
conhecimento mostrar-se indiferente em relação ao
fim visado pelas ações humanas. Sua
fundação e conservação de Estados
enunciados por Maquiavel seria algo
adquirido direta e linguagem deixa claro que a política
não se mede unicamente pelo êxito,
tão fora de lugar quanto repreender
um físico que enuncia o valor de uma pessoalmente dos não é um simples cálculo estratégico,
mas revela que há um valor a ser rea-
constante.
Esta compreensão maquiavelia- acontecimentos lizado através da política.

IHU On-Line - Em que consiste a


na da política como um jogo implica a
redução da ação política em uma pura de seu tempo” concepção maquiaveliana de “inimi-
técnica possível de ser aprendida, en- go político”? Há algo de sua influên-
sinada e elaborada teoricamente. O cia no pensamento de Carl Schmitt3?
objeto dessa técnica é o estudo das tas regras, mas não teria manifesta- José Luiz Ames - A percepção da
regras que conduzem ao êxito sem do a menor disposição de mudá-las, dimensão de “o político” leva a admi-
considerações sobre o sentido e o va- considerando-as tão próprias ao jogo tir que as questões políticas sempre
lor, nem dos meios utilizados, nem da político como as leis da ciência em implicam decisões que requerem
meta visada. A política como técnica relação aos corpos físicos. Sua ex- uma opção entre alternativas antagô-
é axiologicamente neutra. Os meios periência teria lhe ensinado que o nicas. Nesse ponto, pode-se reconhe-
utilizados visam apenas preservar a jogo político sempre foi jogado com cer a contribuição de Carl Schmitt.
“saúde” do Estado. Assim como o mé- fraude, engano, traição e crime. Ele Uma das ideias centrais de Schmitt é
dico que amputa a perna do paciente não censuraria, mas também não sua tese segundo a qual as identida-
não pode ser condenado por mutilar recomendaria estas coisas. Sua úni- des políticas consistem em certo tipo
um corpo, mas, ao contrário, deve ser ca preocupação seria a de encontrar de relação nós/eles, a relação amigo/
louvado por devolver-lhe a saúde, o inimigo. No campo das identidades
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a melhor jogada — a que ganha a
político que utiliza meios cruéis para partida. Assim, do mesmo modo que coletivas, trata-se sempre da cria-
o bem do Estado protege a “saúde” nos encanta a habilidade do jogador ção de um “nós” que somente existe
da coletividade e merece o louvor que engana seu adversário com toda em oposição a um “eles”. Ainda que
quando alcança êxito. sorte de ardis e estratagemas, Ma- nem toda relação nós/eles se con-
quiavel também teria se fascinado verta numa relação amigo/inimigo
Estratagemas e fascinação com o jogo político no qual os atores (ou seja, numa relação “política”), se
pelo jogo político se utilizariam de estratagemas para torna tal quando o “eles” é percebido
A interpretação da política como vencer. O criticável na ação dos ato- como negando a identidade do “nós”.
um jogo faz de Maquiavel um pen- res políticos, nesta perspectiva, não
sador que considera a ação política seriam seus crimes e sim seus erros, 3 Carl Schmitt (1888-1985): jurista e
como amoral. Com efeito, tal como cientista político alemão. A IHU On-Line
precisamente quando estes os fazem 139, de 2-05-2005, disponível em http://
em um jogo, importa conhecer de- perder o jogo! bit.ly/TJcnLW, publicou o artigo O pen-
talhadamente as regras e aplicá-las É inegável que o componente samento jurídico-político de Heidegger
com perfeição. Maquiavel teria sido e Carl Schmitt. A fascinação por noções
empírico, próprio da análise do po- fundadoras do nazismo. (Nota da IHU
aquele pensador que descobriu es- der, desempenha um papel impor- On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 27


Consequentemente, o que Schmitt
“Muito embora de apontar no presente a estratégia de
Tema de Capa
nos revela é que “o político” não está ação mais apropriada para gerar efeitos
limitado a certo tipo de instituição ou
concebido como constituindo uma os termos positivos no futuro.

IHU On-Line - Pensando nos 39


esfera ou nível específico de socieda-
de. Tem de ser concebido como uma amigo/inimigo ministérios brasileiros da atual ges-
dimensão inerente a todas as socie- tão presidencial, em que aspectos
dades humanas e que determina a sejam novos, a ideia de Maquiavel sobre a polí-
nossa própria condição ontológica. tica de interesses e coalizões se faz
Muito embora os termos ami- o significado é notar?
go/inimigo sejam novos, o significa- José Luiz Ames - A concepção re-
do é perfeitamente perceptível já na perfeitamente publicana de Maquiavel faz com que se
obra de Maquiavel. Com efeito, para entenda o exercício do poder político
o florentino a oposição entre gran- perceptível como uma atividade que tem em vista
des e povo é, a princípio, da ordem o bem geral. Os interesses divergentes
da relação entre inimigos; quer dizer,
situa-se no plano ontológico e não no
já na obra de presentes no todo social se fazem pre-
sentes no enfrentamento, no embate
plano sócio-histórico. A paixão que
move grandes e povo é no sentido
Maquiavel” público. Nada menos republicano do
que compor um governo cedendo ao
de suprimir a força contrária. Este jogo de interesses de partidos como
movimento não se conclui unicamen- José Luiz Ames - A principal refe- é o caso brasileiro. A existência de 39
te porque (e também na medida em rência das reflexões de Maquiavel é a ministérios é expressão acabada de
que) cada parte é contida pela outra história. A vida histórica aparece a ele um modelo corporativista não republi-
no seu desejo desmesurado. Deste marcada por um conjunto de nuanças cano de governo. Ali não prevalece o
conflito essencial emerge uma re- dentre as quais a mais relevante é a bem geral, e sim os interesses localiza-
lação política na medida em que as convicção de sua radical imanência em dos de indivíduos e partidos. O público
leggi et ordini que resultam do con- oposição à transcendência medieval. submergiu e cedeu lugar ao privado: o
fronto possibilitam um ordenamento O movimento histórico adquire senti- poder é compartilhado em base à sa-
político favorável a todos. A criação do nele mesmo, e não pela realização tisfação dos interesses particulares de
das leis e instituições não elimina o de desígnios extraterrenos. O estudo grupos, e não dos grandes objetivos
antagonismo; apenas o “domestica”. da história, para Maquiavel, está vol- públicos da nação.
Somente a partir do momento tado para um objetivo prático: esta-
em que reconhecemos esta dimensão belecer regras gerais da ação política. IHU On-Line - Gostaria de
de “o político” (ou seja, a relação on- Assim, a formação do dirigente polí- acrescentar algum aspecto não
tológica de amigo/inimigo) e compre- tico deve seguir um programa de ca- questionado?
endemos que “a política” (ou seja, a pacitação por meio do conhecimento José Luiz Ames - O evento mais
relação histórica entre as forças sociais histórico. Isto significa que Maquiavel recente da vida democrática brasilei-
que institui práticas políticas) consiste desenvolve uma “praxeologia” capaz ra é o das manifestações populares
em dominar a hostilidade e domesti- de explicitar os fatores fundamentais que tomaram conta das ruas. Ma-
car o antagonismo potencial que exis- que determinam o campo político. quiavel, nos Discorsi (I,4-5), acentua
te nas relações humanas, poderemos Somente dessa maneira é possível ob- enfaticamente que o tumulto, a grita
colocar-nos a questão fundamental ter uma descrição do âmbito a partir popular, é o que produz um vivere li-
da constituição de um vivere libero, do qual o agente político pode alcan- bero. A manifestação popular é, por
como diz Maquiavel. Não se trata de çar êxito. Esta preparação supõe uma definição, desordenada. Sua vitalida-
determinar como chegar a um con- de está em ser a expressão mais au-
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rede conceitual por intermédio da


senso racional sem exclusões; ou, em qual Maquiavel procura captar o ma- têntica do espírito democrático. Para
outras palavras, como estabelecer um terial da experiência histórica antiga Maquiavel, ela tem sua legitimidade
“nós” sem que exista um “eles”. Isto e moderna segundo o critério de sua assentada no fato de ser a potentia,
é impossível, porque não pode existir utilidade prática. isto é, a fonte de todo poder. Quem
um “nós” sem um “eles”. Em outras Para Maquiavel, não interessa o precisa buscar legitimidade é a potes-
palavras, a relação ontológica amigo/ conhecimento histórico como um saber tas, isto é, o poder delegado exercido
inimigo é ineliminável. Trata-se, pelo desinteressado dos fatos. Ele se ocupa pelo executivo e o legislativo, e não
contrário, de saber como estabelecer da história para decifrar, nos aconteci- a potentia, isto é, o povo. A obra de
esta distinção “nós/eles” de modo a mentos passados, meios de ação efica- Maquiavel nos ajuda a compreender
ser compatível com o vivere libero. zes para a condução do Estado em seu que a existência de manifestações
tempo presente. Desse modo, pode-se de rua expressa a vitalidade política
IHU On-Line - Como a categoria dizer que o conhecimento histórico é de um Estado. Cabe à potestas fazer
da memória é examinada pelo pensa- concebido como mediador de uma es- a adequada decifração desta grita e
dor florentino? Como essa concepção tratégia de êxito político: os fatos são promover as transformações institu-
repercute na política de nossos dias? selecionados em vista da preocupação cionais nela contida.

28 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


O governante e o médico e a

Tema de Capa
importância do prognóstico
antecipado
Categorias médicas foram utilizadas por Maquiavel em seu pensamento político, mas
de modo transformado, observa Marie Gaille. Ao analisar uma “dinâmica do desejo
nos homens”, o pensador não quis elaborar uma concepção de “natureza humana”

Por Márcia Junges / Tradução: Vanise Dresch Por Márcia Junges

“M
aquiavel não retoma stricto a relação dos escritos maquiavelianos com
sensu a definição médica da a secularização. Segundo ela, por várias ve-
saúde e da doença, nem a dis- zes se tomou Maquiavel como um pensador
tinção entre os quatro humores, dominante ateu, “alguém que teria dado fim, em termos
na época. Em outras palavras, em seu pensa- gramscianos, ao reinado da transcendência.
mento, a transferência de categorias médicas Incontestavelmente, ele concentra sua aten-
para o pensamento político não ocorre sem ção nas condições humanas da ação política.
transformação”, analisa Maire Gaille, filósofa No entanto, não se pode afirmar sem nuan-
francesa, que concedeu a entrevista a seguir, ças que, para ele, o campo político seja isento
por e-mail, à IHU On-Line. “Em Maquiavel, de qualquer forma de intervenção divina”. E
a transferência de categorias médicas para arremata: “Muito mais latente em sua refle-
o pensamento político não tem como único xão é o papel político que uma religião pode
objeto essa metáfora do corpo político. As- desempenhar”.
sociada à imagem do corpo misto, encontra- Marie Gaille é diretora de Pesquisa no
mos em Maquiavel, de fato, uma tentativa SPHERE – Centro Nacional de Pesquisa
para pensar as transformações que a pólis Científica – Universidade Paris Diderot, na
sofre”, adverte. E acrescenta: “Diante dessa França. É autora de, entre outros, Liberté et
história essencialmente instável das pólis, o conflit civil, la politique machiavélienne en-
governante e o pensador político, segundo tre histoire et médecine (Paris: Champion,
Maquiavel, devem se assemelhar ao médi- 2004), Le gouvernement mixte, de l’idéal
co e tomar emprestado à arte definida pela politique au monstre constitutionnel en
tradição hipocrático-galênica diversas com- Europe (13è-17è siècles) (Presses Universi-
petências: a de prever ou fazer o prognóstico taires de Saint-Étienne, 2005) e Machiavel,
antecipado (“ver o invisível através do visí- biographie (Paris: Tallandier, 2005), que foi
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vel”), a de diagnosticar o mal quando ele se traduzido para o português como Maquiavel
manifesta e, por fim, a de tratar em função (Lisboa: Edições 70, 2008).
da gravidade do mal”. Gaille analisa, também, Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que sentido a ca intercambiam suas categorias. Os ou a política, a importar o vocabulário
filosofia política e moral está ligada à vaivéns acontecem nos dois sentidos. da outra. O Corpus hipocrático inclui
questão da medicina? A demonstração disso, por excelên- muitos termos de origem política ou
Marie Gaille - A filosofia políti- cia, é um trecho de Alcmeon de Cro- termos, tais como dynamis, que têm
ca e moral, a meu ver, está ligada à tona (500 a.C.), médico pré-socrático um significado indiferentemente polí-
questão da medicina de múltiplas que emprega os termos gregos iso- tico ou médico. A constatação dessas
maneiras. Como mostra a história da nomia e monarchia para designar a trocas entre medicina e política fez
filosofia, que têm suas raízes na he- saúde e a doença, sem que se possa dos empréstimos do pensamento po-
rança grega antiga, medicina e políti- saber qual foi a primeira, a medicina lítico à teoria médica, desde Platão,

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 29


um campo de estudos por inteiro na
“O saber médico e questionados enquanto tais. É antes
Tema de Capa
história da filosofia política. Esta se seu uso que constitui tema de discus-
interessa tanto pelo conteúdo dessas
trocas, quanto pelas diversas funções os conhecimentos são. A questão é a legitimidade desta
ou daquela prática, escolha ou deci-
que cumpre a importação de catego-
rias médicas ao pensamento político. biológicos ou são. Com outras disciplinas das ciên-
cias humanas e sociais, como a psico-
Em particular, a metáfora orgânica logia, a sociologia e a antropologia, a
do “corpo político” e aquela, corre- tecnológicos que o filosofia envolveu-se nessas contro-
lativa, de suas “doenças” ou “pato- vérsias para analisar seus conteúdos,
logias” foram temas de investigações acompanham não aclarar as dificuldades normativas
recorrentes. e às vezes também para propor, ela
são questionados mesma, uma avaliação dessas práti-
Discurso político e moral cas e desses argumentos.
A análise das metáforas médicas enquanto tais”
presentes no pensamento político re- IHU On-Line - Qual é a relação
pousa na ideia de uma transferência entre liberdade e conflito civil com a
de categorias, esquemas e represen- humana(s), conforme o gênero, a ida- política maquiavélica da história e da
tações de um universo de pensamen- de, a origem geográfica, etc. O estudo medicina?
to ao outro. Ora, a leitura do corpus proposto por M. Vegetti, “Classificare Marie Gaille - Maquiavel é um
das obras médicas sugere que, em uomini”, em 1978, indica que tal dis- autor que gera polêmica porque, en-
parte, a teoria médica já é, em si curso indissociavelmente médico, po- tre outras coisas, questiona o ideal
mesma, portadora de um discurso lítico e antropológico é identificável de paz civil e afirma que, em certo
axiológico ao mesmo tempo político desde a Antiguidade grega. O homem período de sua história republicana,
e moral: ela propõe normas de vida seria um comedor de pão e/ou um Roma ilustra o fato de que a liber-
aos indivíduos, apresenta uma an- construtor de navio? O homem seria dade foi favorecida e mantida graças
tropologia normativa que distingue aquele que se casa? O homem se- a perturbações, protestos, lutas do
e classifica, hierarquiza e ordena os ria um animal político? Entre outros “povo” contra os “grandes”. Mas ele
homens, indicando até mesmo, às ve- discursos, a medicina traz alguns ele- expressa essa tese, principalmente
zes, uma organização institucional de mentos para responder a essas per- nos Discursos sobre a primeira dé-
acordo com essa categorização. guntas, colocando no cerne de sua cada de Tito Lívio e em História de
Para mostrar quanto a proposta análise a mão, o coração e o sangue, Florença, através de um uso muito
de normas de vida é inerente ao dis- o cérebro. Diante das interrogações: original do pensamento médico de
curso médico, basta que o filósofo ob- “Existem diferenças entre certos ho- sua época. Maquiavel não emprega
serve a história da medicina, que evi- mens? Os homens podem ser classifi- nem a metáfora orgânica de inspira-
dencia perfeitamente a natureza e o cados e hierarquizados?”, a medicina ção aristotélica, nem aquela relativa
conteúdo do discurso sobre a alimen- também não se cala, propondo res- ao corpo de Cristo, tampouco a que
tação. Esse tipo de discurso herda uma postas relacionadas com os climas e o encontramos na boca de Menênio
tradição que remonta à Antiguidade. meio ambiente para explicar as dife- Agripa, que dá ênfase à cooperação
Em sua obra Ars medica, Galeno, por renças entre os homens. Por fim, ela necessária dos membros do corpo
sua vez, determinou os seis elementos defende a ideia de uma diferença dos em A história romana (II, 32), de Tito
da saúde: o ar, a alimentação e a be- sexos. É preciso também ir além das Lívio. Buscando seu vocabulário nas
bida, o sono e a vigília, o movimento fontes utilizadas por Foucault para concepções médica de sua época e na
e o repouso, a evacuação do corpo atestar a emergência de uma política filosofia natural de inspiração aristo-
(inclusive pela atividade sexual), as relativa à saúde de uma população: télica, ele desenvolve a metáfora do
paixões da alma ou as emoções. Esses “corpo misto”, corpo vivo e mortal,
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muitas dessas fontes são bem ante-


seis elementos fazem parte, no século riores ao século XVIII. composto por elementos simples e
XVII, da vulgata da arte de prevenir as Além disso, contemporanea- contrários, não hierarquizados entre
doenças. O tratado hipocrático do Re- mente, nos últimos cinquenta anos si, “os humores”. Não se trata de um
gime inaugura, portanto, um discurso pelo menos, ainda que de forma desi- corpo fechado, dentro do qual cada
médico preventivo, que adquiriu uma gual de uma sociedade a outra, a re- parte desempenha um papel que lhe
importante posteridade na Europa, lação entre medicina e filosofia moral é atribuído a priori, e sim de um cor-
enunciado geralmente por médicos, e política passa por uma evolução po de fronteiras móveis, em que a di-
mas também, às vezes, por filósofos importante. Desenvolvem-se contro- visão dos atributos sofre variações de
ou religiosos. vérsias normativas sobre as práticas acordo com a evolução das relações
médicas e os argumentos que susten- de força, e não conforme o critério de
Medicina e filosofia moral tam esta ou aquela decisão, tomada uma hierarquia “natural”.
Esse discurso médico tem outra à cabeceira do paciente ou visando Maquiavel não retoma stricto
faceta, um pouco menos conhecida, à coletividade. O saber médico e os sensu a definição médica da saúde e
que contém uma concepção norma- conhecimentos biológicos ou tecno- da doença, nem a distinção entre os
tiva da existência ou das existências lógicos que o acompanham não são quatro humores, dominante na épo-

30 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


ca. Em outras palavras, em seu pensa-
“É verdade que IHU On-Line - Em que sentido

Tema de Capa
mento, a transferência de categorias as ideias de Maquiavel mantêm sua
médicas para o pensamento político
não ocorre sem transformação. Seu Maquiavel fala influência em áreas como a política e
a medicina?
Marie Gaille - De meu ponto de
próprio par de humores, o dos gran-
des e o do povo, se assemelha mais dos humores, vista, é inútil procurar uma influência
aos pares de opostos que Alcmeon de Maquiavel na área da medicina. E
de Crotona concebeu. No entanto, das paixões, dos no prolongamento disso, é preciso di-
essa aproximação também tem seus zer que a obra de Maquiavel faz parte
limites: seu esquema binário não desejos, das de uma longa série de reflexões políti-
corresponde à ideia alcmeoniana de cas que utilizaram o pensamento mé-
uma infinidade de pares de opostos. necessidades dico. No entanto, ele não contribuiu
Para Maquiavel, um humor em parti- para a elaboração de uma filosofia da
cular, o dos grandes, é relativamente fundamentais dos medicina, e muito menos para a ética
mais nocivo que o outro na pólis, en- da medicina.
quanto, no modelo médico, nenhum
é caracterizado negativamente. Essas
homens, de sua Em contrapartida, a questão
sobre sua influência tem um sentido
diferenças não diminuem em nada
a importância da fonte médica para
relação com o mal para o campo político. Se perguntar-
mos sobre a influência de Maquiavel
compreender o modo como Maquia-
vel formula seu pensamento institu-
e o bem. Pode-se nos tempos atuais, a resposta é deli-
cada, pois tal influência é logo difrata-
cional e sua concepção da liberdade
política como “mistura equilibrada”.
até mesmo dizer da em várias opções interpretativas:
tem-se ainda e sempre Maquiavel
Elas indicam simplesmente que ele
faz da fonte médica, assim como de
que ele propõe como conselheiro dos príncipes, e
principalmente mestre do logro e da
suas outras fontes, um uso livre.
uma análise dissimulação, do uso refletido da as-
túcia e da força. Este é o Maquiavel
Prognóstico antecipado
Em Maquiavel, a transferência da dinâmica mais evidente, mais comum, mais
simples também. Encontramos hoje
de categorias médicas para o pensa-
mento político não tem como único do desejo nos também uma figura de Maquiavel
que engloba esses aspectos, mas é
objeto essa metáfora do corpo po- um pouco mais complexa: Maquiavel
lítico. Associada à imagem do corpo homens. Mas essa como pensador da ação política, so-
misto, encontramos em Maquiavel, bre o qual, a meu ver, Claude Lefort
de fato, uma tentativa para pensar evocação não escreveu páginas extraordinárias em
as transformações que a pólis so- Travail de l’oeuvre Machiavel (1971).
fre. A metáfora do “corpo misto” lhe está relacionada O seu pensamento sobre o con-
permite enfatizar o fato de que toda flito civil e a relação deste com a liber-
pólis tem um tempo de vida determi- com o projeto dade é também muito influente, mas
nado, que ela pode morrer antes do foi retomado em diferentes direções.
momento de sua morte natural, mas
pode também manter-se até esse
de elaborar Sobre este assunto, publiquei uma
parte do meu trabalho de doutora-
momento se aqueles que governam
souberem tomar as medidas ade-
uma concepção do: Liberté et conflit civil. La pensée
machiavélienne entre histoire et mé-
quadas. Além disso, toda pólis sofre da ‘natureza decine (Paris: Champion, 2004). O
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alterações, no sentido aristotélico do Capítulo 6 dessa obra foi dedicado ao
termo, isto é, mudanças, pelas quais
todas elas se mantêm fundamental-
humana’” “espelho apresentado por Maquia-
vel à democracia contemporânea”.
mente idênticas a si mesmas, mas Examinei ali principalmente os usos
sofrem também mutações naturais feitos da obra maquiavélica desde os
segundo um processo designado pelo antecipado (“ver o invisível através anos 1970 acerca do tema da liberda-
termo de “corrupção”. do visível”), a de diagnosticar o mal de política. Dentre os usos mais sig-
Diante dessa história essencial- quando ele se manifesta e, por fim, a nificativos do pensamento maquia-
mente instável das pólis, o gover- de tratar em função da gravidade do vélico sobre a liberdade, comentei
nante e o pensador político, segundo mal. Observa-se, assim, que, em caso aquele que Q. Skinner faz, apoiando-
Maquiavel, devem se assemelhar ao de crise, Maquiavel parece tomar -se em Maquiavel para lançar um
médico e tomar emprestado à arte emprestado ao tratado hipocrático alerta aos liberais. Segundo ele, estes
definida pela tradição hipocrático- O regime das doenças agudas a ideia se apoiam equivocadamente numa
-galênica diversas competências: a de uma terapia em sentido inverso e concepção negativa da liberdade e
de prever ou fazer o prognóstico proporcional à força da doença. deveriam adotar uma visão participa-

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 31


tiva dela, que o autor lê em Maquia-
“Muito mais riores designaram por um “estado
Tema de Capa
vel. Skinner atribui um lugar menor natural”? Fora alguns elementos de
ao conflito civil e concebe a participa-
ção cívica como o cumprimento ativo latente em sua exegese que estão presentes nos
Discursos, não sabemos, e podemos
e vigilante dos deveres cívicos. Esta
leitura de Maquiavel contrasta muito reflexão é o papel até mesmo suspeitar de que isso seja
uma questão anacrônica e pouco fe-
com a perspectiva de um “momento cunda para ler a obra de Maquiavel.
maquiavélico de Marx”, defendido político que uma
principalmente por M. Abensour, IHU On-Line - Quais são as in-
na França. Esta ideia, que pode ser religião pode fluências fundamentais de Maquia-
encontrada numa forma um tanto vel sobre os “leitores” Foucault e
diferente no pensamento de Negri, desempenhar” Schmitt?
dá ênfase à vontade supostamente Marie Gaille - A respeito deste
democrática do povo. Distingue-se ponto, remeto à análise que propus
do “momento maquiavélico” francês politização da natureza humana? Por na revista Multitudes, em 2003 (vo-
apresentado por S. Audier e ligado quê? lume 13, verão, acesso livre on line),
à ideia de conflito, mas abordado Marie Gaille - Penso que eu não intitulada “L’ordre conflictuel du po-
diferentemente por filósofos como adotaria essa perspectiva interpre- litique: une formule ambiguë” (A
M. Merleau-Ponty, R. Aron ou Lefort tativa. Isso requer vários “saltos” na ordem conflituosa do político: uma
(Machiavel, Conflit et liberte. Paris: análise textual, e não vejo nenhu- expressão ambígua). Leitores de Ma-
Vrin, 2005). ma vantagem teórica nisso. Vários quiavel, Foucault e Schmitt comparti-
comentadores defenderam a ideia lham com ele uma grande preocupa-
Alcance contemporâneo de uma antropologia maquiavélica. ção com a questão do conflito. Além
Em 2004, não me situando em É verdade que Maquiavel fala dos disso, eles têm em comum o fato de
nenhuma dessas duas óticas, defendi humores, das paixões, dos desejos, não terem buscado as condições de
a interpretação de que a concepção das necessidades fundamentais dos uma resolução do conflito. Apesar
maquiavélica da liberdade política homens, de sua relação com o mal desses elementos que parecem justi-
possuía uma atualidade que não era e o bem. Pode-se até mesmo dizer ficar uma aproximação, a análise dos
da ordem de uma retomada direta que ele propõe uma análise da di- usos que Foucault e Schmitt fazem
de seu pensamento. Parecia-me mais nâmica do desejo nos homens. Mas de Maquiavel evidencia que este não
uma ferramenta teórica de primeira essa evocação não está relacionada participa de forma significativa da
ordem para apontar dificuldades teó- com o projeto de elaborar uma con- reflexão dos dois primeiros sobre a
ricas e práticas que uma teoria con- cepção da “natureza humana”. Se tal conflituosidade do político. Podería-
temporânea da democracia precisa concepção aflora em seus textos, ela mos falar mais de um “não encontro”
levar em conta, principalmente a de é sempre secundária à ambição de desses três autores. A minha hipótese
conseguir pensar “instituições quen- pensar as condições para conquistar a esse respeito é a de que Maquiavel
tes”. Em Maquiavel, encontramos, de o poder e manter-se nele, como em tenta manter unidos um pensamento
fato, a exigência de um pensamento O Príncipe, de esclarecer as condi- da ordem institucional e um pensa-
da ordem (institucional), a “ordine”, e ções da manutenção da liberdade (da mento do conflito civil e de sua posi-
da desordem ou do conflito civil. independência e do regime “livre”, ou tividade, um gesto impossível de assi-
Esse aspecto sempre me pare- seja, republicano), como nos Discur- milar tanto para uma teoria da ordem
ce pertinente nos dias de hoje, mas sos sobre a primeira década de Tito absoluta, como para uma concepção
o que me parece mais interessante Lívio, e de compreender por que Flo- da resistência libertadora às margens
atualmente é explicitar o método a rença não consegue seguir o modelo da ordem.
partir do qual nos referimos a uma
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romano, como na História de Floren-


obra — neste caso, à obra de Maquia- ça. É por essa razão que, por mais IHU On-Line - Em que medida
vel — quando queremos determinar importante que seja esse esforço de o pensamento de Maquiavel pode
sua influência. É para esta perspectiva compreensão, a meu ver, ela não foi ser relacionado com a temática da
que eu gostaria de orientar a pesqui- apresentada por Maquiavel de forma secularização?
sa sobre o alcance contemporâneo sistematizada. Marie Gaille - Esta pergunta
do pensamento maquiavélico, princi- Considero também delicado fa- é muito interessante e possui dife-
palmente para explicitar em que as- lar de uma “politização da natureza rentes dimensões. Eu a abordei em
pectos a “cena política maquiavélica” humana” em Maquiavel. No pen- Machiavel et la tradition philosophi-
está repercutida em certos questio- samento dele, os homens sempre que (Paris, PUF, 2007; tradução em
namentos contemporâneos sobre os são vistos em sua vida de cidadãos, espanhol: Maquiavelo y la tradicion
processos de democratização. já inseridos numa forma política de filosofica, tr. de H. Cardoso, Buenos
sociabilidade. Será que, para ele, os Aires: Ediciones Nueva Vision, Cla-
IHU On-Line - A partir da pers- homens tiveram uma vida pré-social, ves Perfiles, 2011). De um ponto de
pectiva desse pensador, podemos pré-política? Será que conheceram vista exegético primeiramente, mui-
falar de uma moralização e de uma aquilo que teóricos políticos poste- tas vezes se quis fazer de Maquiavel

32 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


um pensador ateu, alguém que teria civil romana, ao contrário, é valoriza- para a História de Florença e A arte da

Tema de Capa
dado fim, em termos gramscianos, ao da como um elemento estruturante e guerra, ou ainda para os escritos go-
reinado da transcendência. Incontes- unificador da vida política em Roma. vernamentais. Sua escrita e composi-
tavelmente, ele concentra sua aten- O juramento tem uma dimensão re- ção são certamente determinantes, e
ção nas condições humanas da ação ligiosa. O apego aos deuses romanos poucos são aqueles que veem nesse
política. No entanto, não se pode “viriliza” os cidadãos. texto, como o historiador Paul Veyne,
afirmar sem nuanças que, para ele, Na medida em que Roma encar- um simples “bibelô de época”. É notá-
o campo político seja isento de qual- nou, para Maquiavel, o paradigma da vel o fato de ele ser lido mais além do
quer forma de intervenção divina. De liberdade, não podemos deixar de meio acadêmico, mesmo que seja de
resto, penso que esse ponto não é o nos perguntar sobre o papel desem- forma excessivamente simplificadora:
mais interessante a ser discutido na penhado pela religião, além do confli- best-seller editorial para conquistar
exegese maquiavélica: qualquer que to civil, no advento e na manutenção um lugar amoroso ou comercial e, ul-
seja o lado para o qual pese a balança da liberdade, de acordo com a visão timamente, parental e educativo.
interpretativa, a parte do “livre arbí- dele. A concepção rousseauniana da O contexto político e geopolítico
trio humano” é o que lhe interessa na religião civil suscita também essa in- mudou radicalmente. É difícil a priori
verdade. dagação. Entretanto, a resposta, a imaginar que o cidadão ou o gover-
Muito mais latente em sua refle- partir de Maquiavel, é complicada, so- no de uma sociedade democrática
xão é o papel político que uma reli- bretudo se a pergunta for formulada tenha algo a aprender com O Prínci-
gião pode desempenhar. Mais além na sua “tradução” contemporânea: pe. No entanto, este texto repercute
da dimensão biográfica, desde o efei- dispomos, hoje, de um equivalente como um clássico, principalmente em
to que os sermões de Savonarole pro- da religião romana? Uma democracia relação aos conselhos prodigados so-
duziram sobre o jovem Maquiavel até tem as mesmas necessidades políti- bre as condições instáveis e incertas
o papel desempenhado pelo papado cas da república romana referida por da ação política. E isso, ao contrário,
na sua vida depois de sua exclusão Maquiavel nos Discursos? deve nos levar a indagar: até que pon-
da chancelaria florentina, Maquiavel to agimos diferentemente num regi-
faz da religião um objeto de reflexão IHU On-Line - Qual é a atualida- me democrático e num principado?
obrigatório para todo e qualquer ator de de O Príncipe após 500 anos de Eu diria que sua atualidade resi-
político. sua publicação? de, acima de tudo, na exigência que
Marie Gaille - Como eu disse Maquiavel demonstra: exigência de
Provações políticas anteriormente, existem vários Ma- compreensão, de análise e de for-
Com ele, entramos num con- quiavel, dos quais um está especi- mulação. Ele decompõe os episódios
texto religioso pluralista: a religião ficamente ligado ao Príncipe. Este históricos que visualiza, concebe
cristã católica, que domina a sua épo- texto se destaca dos outros escritos as diferentes alternativas possíveis
ca, confronta-se com a religião civil de Maquiavel de forma incontestável do desenrolar da ação, pergunta-se
romana. Conhecemos o julgamento se seguirmos a história de sua pos- constantemente se uma delas não foi
severo que ele emite contra a primei- teridade editorial e de sua difusão, desprezada, distingue o que deve ser,
ra: chamando os homens a crer num embora hoje a exegese acadêmica etc. Pretende deixar de lado as ilu-
além, ela enfraquece a virtude deles de Maquiavel tenha cedido grande sões do pensamento e a preguiça do
e os prepara mal para as provações espaço para os Discursos sobre a pri- caráter. Temos nele um exemplo ex-
políticas da vida terrestre. A religião meira década de Tito Lívio ou mesmo cepcional do discernimento político.

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EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 33
Maquiavel, o precursor das
Tema de Capa

revoluções modernas
A ruptura com a tradição e a violência que isso implica está na base do pensamento
maquiaveliano, analisa Riccardo Fubini. Uma inversão do jusnaturalismo tradicional e
um consequente ateísmo político também podem ser verificados em seus escritos

Por Márcia Junges / Tradução: Moisés Sbardelotto

“S
egundo Maquiavel, a ‘moral’ (no to de Maquiavel, que ultrapassa, sem sequer
sentido individual do termo) não se discutir, a tradicional doutrina de fundamento
apoia sobre uma norma objetiva, aristotélico”. Tido como pensador basilar das
estabelecida por Deus ou pela natureza, mas revoluções inauguradas na modernidade, o
sim sobre um ordenamento humanamente florentino é lembrado, ainda, pela “suposta ‘se-
estabelecido. A força ‘põe’ a lei, e esta última paração’ da política da moral, e a consequente
constitui a garantia da moral comum. Trata-se, ‘autonomia’ da política”. Para Fubini, trata-se
em outros termos, da inversão do jusnaturalis- de uma “fórmula de conveniência, em tem-
mo tradicional. Se este último era fundamen- pos posteriores, para a justificação, ao mesmo
tado em uma teologia (estoica, cristã), em Ma- tempo, do Estado e da moral burguesa”.
quiavel temos, em termos consequenciais, um Riccardo Fubini leciona na Università degli
ateísmo político”, assinala o filósofo italiano Studi di Firenze, na Itália, onde ensina sobre a
Riccardo Fubini, em entrevista concedida por História do Renascimento. É autor de, entre
e-mail à IHU On-Line. E completa: “O sentido outros, Quattrocento fiorentino. Politica, di-
de uma ruptura de tradição, e da violência plomazia, cultura (Pisa: Pacini, 1996).
que ela implica, está na base do pensamen- Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as pe- da virtude intelectual da “prudência” está a própria ideia de justiça, ou, o
culiaridades do pensamento polí- sobre as paixões que movem a “von- que é o mesmo, a lei natural desejada
tico renascentista? E que posição e tade”. Uma influência determinante por Deus.
importância Maquiavel ocupa nes- e inseparável também é a do pensa- No princípio jusnaturalista, o
se contexto? Qual é a novidade do mento jurídico, isto é, do direito ro- pensamento jurídico medieval se
pensamento de Maquiavel em rela- mano interpretado pelos glosadores encontra com a teologia das gran-
ção ao pensamento político corrente e comentaristas, dos quais o principal des escolas da filosofia escolástica,
daquele período? foi Bártolo da Sassoferrato1. Daí deri- difundida na sociedade citadina na
Riccardo Fubini - Antes de falar vam, além dos conceitos básicos de pregação das ordens mendicantes.
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de pensamento político em abstra- “utilidade pública” e do primado da Mesmo descendo para o plano dos
to, deve-se ter presente que a pers- lei sobre o arbítrio individual, a noção grandes princípios ao mais modesto
pectiva antes de Maquiavel é a da da intangibilidade da própria lei, além da realidade político-social, o concei-
cidade-estado de Florença e das suas da variedade das interpretações e das to de “inovação” continua carregado
tradições. A cidade comunal, nas suas circunstâncias particulares. Aquilo de valor negativo, como violação de
tradições dos séculos XIII e XIV, adap- que para nós hoje é lei constitucional, uma “ordem” dada e comumente
tou às suas estruturas institucionais na legislação citadina comunal é en- participada.
e à mentalidade corrente as concep- tendida como reta interpretação de
ções aristotélicas na sua interpreta- uma tradição inviolável, em cuja base Historiografia renovada
ção e divulgação tomista. Os pontos A evolução política e institucio-
salientes são a soberania popular, nal de Florença a partir das últimas
1 Bártolo de Sassoferrato (1313-1357):
que se expressa através do voto rigo- Jurisconsulto medieval, reconhecido por
décadas do século XIV pôs em evi-
rosamente secreto dos Conselhos, o seu trabalho proeminente com Direito dência a crise de tais princípios. Na
primado do “bem comum” sobre os Romano. Seus estudos defendiam a legi- constituição do Estado regional, Flo-
timidade dos governos despóticos italia-
interesses particulares, a prevalência nos (Nota da IHU On-line).
rença reivindicou para si aquele prin-

34 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


cípio da soberania, que, em teoria, ações é atribuído à responsabilida- Lorenzo na sua cúpula (mediante a

Tema de Capa
cabia apenas aos poderes universais de humana. A ética política, ao estar criação do cargo de Gonfaloneiro vi-
da Igreja e do Império, guardiões e voltada a finalidades mais elevadas, talício) para adquirir o caráter de uma
garantes de qualquer outra legislação é distinta da meramente individual. verdadeira senhoria. 2) A expulsão do
inferior. Na consequente centraliza- A finalidade do Estado está voltada herdeiro de Lorenzo, Piero de Medici
ção do poder interno, desapareceu à ampliação dos seus poderes. Segu- (1494), na circunstância da queda na
o equilíbrio entre o órgão executivo ramente, é exaltado o regime “civil” Itália de Carlos VIII7, rei da França. As
da Signoria (os Priores das artes e republicano da cidade, que, ao con- pretensões, em Florença, de restri-
Gonfaloneiros de justiça, com os seus trário dos principados, fundados na tos grupos oligárquicos de conservar
dois “colégios” consultores e delibe- fidelidade feudal, contempla a igual- os velhos poderes foram abatidas
rativos) e os Conselhos citadinos (“do dade dos cidadãos no respeito da lei. pela proclamação de uma forma de
Povo” e “da Comuna”), que perderam Mas o governo também é julgado em regime até então desconhecida, que
de fato aquele papel representante relação à sua eficiência, e com isso se restituía a soberania efetiva ao povo
da cidade inteira que, contudo, o di- diferencia daquele meramente parti- na forma do Conselho Maior. Este era
reito estatutário lhes atribuía. Essa cipativo e administrativo da idade co- formado de direito por todos aqueles
foi a idade chamada da “oligarquia”, munal. Em tudo isso, as Histórias, de cidadãos que, em direito próprio ou
isto é, dominada por grupos restritos, Leonardo Bruni, constituem um ante- hereditário, remontando até a quarta
que controlavam, em uma crescente cedente essencial para o pensamento geração, tivessem feito parte dos re-
impopularidade, a cada vez mais am- político e historiográfico de Maquia- gimentos passados. Em outras pala-
biciosa política da Comuna, que se vel e Guicciardini4. vras, a forma do governo de regimen-
tornou (assim como o ducado de Mi- to (muito diferente dos Conselhos de
lão, da república de Veneza, do Esta- Novidade x tradição memória comunal) era preservada,
do da Igreja, do reino de Nápoles) um A razão da originalidade desses mas excluindo dela o componente
dos principais potentados da Itália. dois escritores políticos reside na faccioso e, portanto, legitimada como
Aquela legitimação que a oligarquia mudança radical da situação político- constituição “nova”. Em outros ter-
dominante não sabia mais encontrar -constitucional de Florença. Enfatizo mos, a novidade deixava de ser uma
nos princípios do direito e da doutri- a esse respeito duas fases sucessivas. conotação negativa, ou, em outras
na foi buscada na propaganda, mas 1) O advento do regime dos Médici5 palavras, a referência à tradição não
sobretudo em uma renovada histo- e, de modo particular, o governo de constituía mais uma norma legitiman-
riografia, capaz de reinterpretar a his- Lorenzo, o Magnífico 6(1469-1492), te. Quem afirmou isso não foi um ho-
tória da cidade em chave política, isto que suprime, de fato, os resíduos da mem político, mas sim um homem de
é, do “aumento” do seu poder e da constituição comunal, substituindo- fé, inspirado na profecia bíblica, Giro-
racionalidade do seu governo. -os por uma estrutura de poder que lamo Savonarola, protagonista de tal
A obra basilar nesse sentido, aguarda apenas pela legitimação de passagem essencial. Os florentinos,
bem presente a Maquiavel, é a de afirmou ele na sua pregação, não de-
Leonardo Bruni2, Historiae Florentini 4 Francesco Guicciardini (1483-1540):
viam mais apelar ao “costume”, mas
populi (desde as origens da cidade Historiador e estadista italiano. Conside- sim à “verdade”, entendendo com
até 1402), escrita nos anos 1416- rado um dos maiores escritores políticos essa palavra a pacificação e a justiça
da Itália renascentista, era amigo e crí-
1442 e traduzida em vulgar toscano tico de Nicolau Maquiavel. Um dos pais
desejadas por Deus. Eles deviam, em
aos cuidados República (nessa forma da história moderna, revolucionou ao outros termos, prescindir do seu pas-
foi impressa em 1476 e depois no- utilizar fontes oficiais e documentos do sado e fazer “coisas novas”.
governo para escrever a história da Itália
vamente em 1491). Ao contrário das (Nota da IHU On-line).
crônicas, que se referem às Sagradas 5 Casa de Médici: Dinastia política ita- Ruptura de tradição
Escrituras, e, quase constantemente, liana que começou a ganhar proemi- E com isso chegamos a Maquia-
nência com Cosme de Médici, em 1434.
à concepção providencialista de Paolo vel, aparentemente nos antípodas
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Foram a primeira dinastia a ganhar seu
Orosio3, as Histórias, de Bruni, são ra- status não pela guerra, casamento ou de Savonarola, na realidade, embo-
dicalmente secularizadas: a variação influência, mas pelo comércio. A família ra nas suas convicções materialistas,
foi a fundadora do Medici Bank, insti-
dos eventos é atribuída ao acaso (ou tuição financeira que se tornou uma das
profundamente influenciado por ele.
“sorte”), o sucesso ou o insucesso das maiores da Europa do século XV (Nota da Nas suas Istorie fiorentine, ele distin-
IHU On-line). gue uma república a ser ordenada
6 Lourenço de Médici (1449-1492): Es-
2 Leonardo Bruni (1369-1444): Filósofo tadista italiano também conhecido como
(isto é, diríamos nós, a ser reforma-
humanista, historiador, chanceler italia- Lourenço, o Magnífico. Neto de Cosme da), ou, vice-versa, a ser reordenada
no e secretário papal de quatro pontífi- de Médici, assume o papel de soberano (isto é, a ser re-ordenada de cima a
ces. É reconhecido como um dos primei- de Florença aos 20 anos de idade. Dife-
ros historiadores modernos (Nota da IHU rente de seu avô, Lourenço não foi bem
baixo na sua própria constituição). O
On-line). sucedido ao gerenciar o banco da família sentido de uma ruptura de tradição, e
3 Paulo Orósio (385-420): Historiador, e nem em utilizar as riquezas para neu-
teólogo e sacerdote cristão. Desenvolveu tralizar a oposição, o que resultou em
estudos em teologia, chegando a ser co- uma conspiração que quase o tirou do 7 Carlos VIII (1470-1498): Rei da Fran-
laborador de Santo Agostinho. Escreveu poder em 1478. O soberano ganhou a ini- ça da Dinastia de Valois, era conhecido
obras que ainda hoje são referenciais mizade do papa Sisto IV, enfrentou duras como O Afável. Seu reinado foi marcado
para a historiografia da Idade Antiga e da batalhas para se manter no poder (Nota por tentativas de conquistar o Reino de
Idade Média (Nota da IHU On-line). da IHU On-line). Nápoles (Nota da IHU On-line).

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da violência que ela implica, está na
“A obra basilar consideração a conjuntura política
Tema de Capa
base do pensamento de Maquiavel, de países que contestam a demo-
que ultrapassa, sem sequer discutir,
a tradicional doutrina de fundamento nesse sentido, cracia representativa e dos países
que lutam para derrubar regimes
autoritários?
aristotélico. O profetismo de Savona-
rola descendia, na sua visão, de uma bem presente a Riccardo Fubini – Esse tema é
direta inspiração divina e se traduzia enorme, porque envolve, junto com
em vontade de reforma. À “doutrina Maquiavel, é a de Maquiavel, também a tradição, ética,
cristã” da tradição eclesiástica, ele jurídica e política, daqueles princípios
opunha o direto, ainda mais efetivo, Leonardo Bruni, que ele, com tanta clareza corajosa,
“viver cristão”. Daí Maquiavel deri- inverte. Em suma, Maquiavel é o pre-
va o seu destacado voluntarismo. A Historiae Florentini cursor das revoluções modernas. Bas-
“virtude” que dobra a “sorte” reveste ta referir a uma passagem que, um
justamente o significado de um acan- Populi” pouco por acaso, eu li precisamente
tonamento dos cálculos prudenciais agora. Trata-se das Recordações, do
onde quer que eles conduzam à inér- famoso historiador e sociólogo fran-
cia ou à inaptidão política. cês do século XIX Alexis de Tocquevil-
ao contrário, “venceram”, tiveram o le, a propósito da revolução socialista
IHU On-Line - A relação entre sucesso desejado e foram venerados de 1848. O autor encontra nela uma
política e moral em Maquiavel está e obedecidos como pais fundadores viva confirmação da sua convicção
exaurida? Por quê? de um novo ordenamento. Segundo de viver, depois da grande Revolução
Riccardo Fubini - Retomo o para- Maquiavel, a “moral” (no sentido in- de 1789, em um estado de revolução
lelo com Savonarola. Tal paralelismo dividual do termo) não se apoia sobre permanente. Tal revolução, observa-
é explicitado pelo próprio Maquiavel uma norma objetiva, estabelecida por va Tocqueville, “havia sido determi-
em O Príncipe, na célebre passagem Deus ou pela natureza, mas sim sobre nada por causas tão permanentes e
em que ele distingue entre “profeta um ordenamento humanamente es- gerais que, depois de ter agitado a
desarmado” e “profeta armado”. O tabelecido. A força “põe” a lei, e esta França, era de se acreditar que sub-
profeta, na visão de Maquiavel, reali- última constitui a garantia da moral verteria todo o resto da Europa” (A.
za um ato de fundação em nome dos comum. Trata-se, em outros termos, De Tocqueville, Ricordi, Roma, 2012,
mais altos princípios, para garantir a da inversão do jusnaturalismo tradi- p. 140). Nisso o autor se refere ao que
obediência dos súditos. À profecia de cional. Se este último era fundamen- lia, a propósito do tumulto dos Ciom-
Savonarola, faltou a força de se impor tado em uma teologia (estoica, cris- pi, nas Istorie fiorentine, de Maquia-
(ou, na linguagem do Decennale, de tã), em Maquiavel temos, em termos vel, um autor ao qual demonstra uma
Maquiavel, de “crescer”) e por isso foi consequenciais, um ateísmo político. particular predileção: “Florença, em
apagada por um “maggior foco”, as Cada ato de reforço político, no limite particular, no fim da Idade Média, ha-
chamas da fogueira. Os “profetas ar- até militar, constituiu imediatamente via apresentado um espetáculo muito
mados” (Moisés8, Teseu9, Rômulo10), também um reforço da lei. A inver- semelhante ao nosso: a classe nobre
são dos valores éticos em O Príncipe, havia sido sucedida sobretudo pela
capítulos XV e seguintes, é a conse- classe burguesa, depois, um dia, esta
8 Moisés: profeta israelita. Segundo a
tradição judaica e cristã, foi autor dos
quência lógica de tal relação direta, havia sido por sua vez expulsa pelo
cinco primeiros livros do Antigo Testa- sem mediações de direito ou de dou- governo, e tinha se visto um gonfa-
mento. Para os judeus, ele é considerado trina, de política e lei. loneiro caminhando a pés descalços
um dos principais líderes religiosos. Para
os muçulmanos, foi um grande profeta.
Observo, de passagem, que a à frente do povo, liderando, assim, a
Durante 40 anos, conduziu o povo de Is- suposta “separação” da política da república”.
rael na peregrinaçao pelo deserto. Para moral, e a consequente “autonomia”
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o Cristianismo, é considerado o prometi-


do Messias. Moisés morreu aos 120 anos.
da política, sobre a qual se discursou IHU On-Line - O Príncipe é a obra
(Nota da IHU On-Line) longamente a propósito de Maquia- mais conhecida de Maquiavel. Con-
9 Teseu (1234 a.C. - 1204 a.C): Teseu: vel, é fórmula de conveniência, em
Herói da mitologia grega e fundador de
tudo, Os Discursos sobre a primeira
Atena. Sua mais famosa façanha foi ma-
tempos posteriores, para a justifica- década de Tito Lívio são igualmente
tar o Minotauro de Creta e encontrar a ção, ao mesmo tempo, do Estado e importantes. Qual é a importância
saída para o labirinto onde o monstro da moral burguesa. e a necessidade de se compreender
habitava seguindo o fio do novelo de lã
carregado por Ariadne, filha do rei Mi- suas ideias a partir do conjunto de
nos. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line - Qual é a atualida- sua obra?
10 Rômulo (771 a.C - 717 a.C): Primeiro de de suas concepções tomando em Riccardo Fubini - Não há dúvida
rei de Roma, cidade que fundou com seu
irmão Remo, de acordo com a lenda, em de que Maquiavel alimenta em si um
753 a.C. Os irmãos eram filhos do deus espírito vivamente citadino e repu-
Marte com a mortal Reia, filha do Rei Nú- o reino usurpado a quem lhe era direi-
mitor, que em uma trama de golpe de to, os gêmeos partem para fundar uma
blicano. Ele não ignora que a implan-
estado é presa e separada dos gêmeos. nova cidade. A discussão sobre seu nome tação de um principado em Florença
As crianças são abandonadas, mas sal- e a localização leva a uma briga entre implicaria a inversão, inevitavelmente
vas por uma loba que os amamentam. os irmãos que termina com a morte de
Mais tarde, quando finalmente retomam Rêmulo. (Nota da IHU On-Line)
violenta, do ordenamento igualitário

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da sociedade citadina (típico de Ma- idôneos para estabelecer a fidelida- mente disseminados na política do

Tema de Capa
quiavel é ignorar os “caminhos do de dos novos súditos, para além das Ocidente?
meio”, isto é, diríamos nós, as vias velhas dependências e costumes feu- Riccardo Fubini – A este ponto
de compromisso). O Príncipe não foi dais. Os Discursos referem-se a outra cada um pode dar a sua resposta. O
escrito em relação à mãe-pátria flo- problemática, sobre como implantar importante, como se pode ver a par-
rentina, mas sim na perspectiva de um regime duradouro nas repúbli- tir desta entrevista, é que se conti-
um “principado novo”, isto é, aquele cas (no modelo de Roma, descrito na nua discutindo sobre Maquiavel. Por
que o Papa Leão X11 pensava para o primeira Decade de Tito Lívio), e têm exemplo, a “apatia política” sobre a
irmão Giuliano no complexo de Par- como argumento principal a força, qual você escreve, se traduz perfei-
ma, Piacenza, Modena e Reggio (em inevitavelmente também expansiva, tamente na linguagem de Maquiavel,
torno daquele que depois se torna- que deriva da participação popular, no “ócio”, o principal dos vícios que
ria o principado Farnese), esperando como no caso da inserção dos ple- ele indica em contraste à “virtude”
Maquiavel ser nomeado na ocasião beus no aparato de governo na Roma ativa dos seus heróis políticos. O mes-
como “secretário” do “príncipe novo”. antiga. O adversário mais direto é, mo pode ser dito sobre a “corrupção”,
As violências, por exemplo, de Cesare neste caso, para Maquiavel, as re- que em Maquiavel tem o significado
Borgia12, são indicadas como meios públicas aristocráticas, antigamente estendido da impotência da lei para
Esparta, modernamente Veneza, cuja se fazer valer; daí a necessidade do
11 Papa Leão X (1475-1521): Papa cató- duração, tão exaltada pelos escrito- advento de um novo Legislador. Para
lico durante a Reforma Protestante. Nas- res, na realidade, não é senão inércia, responder mais completamente, se-
cido Giovanni di Lorenzo de’ Medici, foi ou, diríamos nós, egoísmo de classe. ria necessário um cientista político
o último não sacerdote ser eleito Papa
(Nota da IHU On-line). IHU On-Line - A partir das con- dotado de virtude profética, como
12 César Bórgia (1475-1507): Príncipe, cepções políticas de Maquiavel, como evidentemente eu não sou. Mas isto
cardeal e nobre italiano durante a podemos pensar fenômenos como a basta para indicar a magnitude dos
Renascença. Após o assassinato de
seu irmão, abandona a vida religiosa e apatia política e a corrupção, larga- problemas que, por vias mais ou me-
torna-se Duque de Valentinois. Após a nos diretas, Maquiavel ainda levanta.
morte de seu pai, o Papa Alexandre VI,
é incapaz de manter o poder por muito Bórgias. César chegou a ser preso, mas
tempo pois quem assume o papado é o conseguiu escapar e morreu em batalha
Papa Júlio II, reconhecido inimigo dos na Espanha.) (Nota da IHU On-line).

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Uma obra que é um campo de
Tema de Capa

batalha
Investigação maquiaveliana sobre a natureza do poder, o que ele é e como se o
exerce segue atual, assevera Marco Vanzulli. Trata-se de um pensamento que
analisa de modo lúcido a “política antes do advento do pensamento único da
liberal-democracia”

Por Márcia Junges/Tradução: Moisés Sbardelotto

É
preciso fazer tábula rasa das interpre- nos anos 1700, fora de si um imenso desen-
tações que, até o século XVI, se sobre- volvimento dos estudos sobre o funciona-
puseram à obra de Nicolau Maquiavel, mento econômico dos Estados e comércios,
aconselha o filósofo italiano Marco Vanzulli os estudos monetários, as teorias da melhor
em entrevista concedida por e-mail à IHU On- economia nacional”. E assevera: “A leitura de
-Line. “Nesse sentido, a obra de Maquiavel é Maquiavel consente-nos voltar, sem preten-
um autêntico campo de batalha. Ler Maquia- são, às formas de desunião social, a um pen-
vel por Maquiavel pode parecer, de um lado, samento que olha lucidamente para a política
uma operação difícil ou até mesmo ingênua antes do advento do pensamento único da
ou irrealista, como a que pretende voltar a liberal-democracia”.
uma pureza do original”, observa. Em seu Marco Vanzulli é doutor em Ciências Hu-
ponto de vista, “um tema de grande inova- manas pela Universidade de Nice Sophia Anti-
ção em Maquiavel é ter juntado à tradicional polis — UNSA, na França, com a tese L’idée de
teorização sobre o exercício do poder grande science chez Vico. Mythe et anthropologie. Le-
atenção às maneiras de sua conquista”. Van- ciona na Universidade degli Studi di Milano-
zulli examina também como Maquiavel e Vico -Bicocca, na Itália. É autor de, entre outros, La
procuravam compreender a tradicional ques- scienza delle nazioni e lo spirito dell idealismo.
tão do caráter instável das democracias. “De Su Vico, Croce, Hegel (Milano: Guerini e Asso-
um lado, a política constitui-se claramente ciati, 2003) e La scienza di Vico. Il sistema del
na esfera autônoma do pensamento, e, de mondo civile (2ª ed. Milano: Mimesis, 2006).
outro, essa autonomia vê crescer, sobretudo Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a impor- to realista. Refiro-me naturalmente à constitui a sua atitude para julgar as
tância do pensamento de Maquiavel audácia de O Príncipe, uma ousadia relações entre os homens. Um passo
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para a filosofia política de seu tempo que atravessa toda a obra, mas que é audacioso, o de Maquiavel, que se
e para a filosofia política dos nossos expressa de modo felicíssimo no Ca- pode encontrar na celebérrima tese
dias? pítulo XV, e na famosíssima admoes- sobre a relação entre a grandeza do
Marco Vanzulli - Maquiavel tação para “buscar a verdade efetiva império romano e a desunião da ple-
expressa uma filosofia política que da coisa”. No texto, essa admoesta- be e do senado, no Capítulo 4, do Li-
pretende romper com toda a tradi- ção — o “realismo” de Maquiavel, vro I dos Discursos, ou na temática,
ção precedente. Considere-se o uso como se diz — é imediatamente usa- tratada tanto em O Príncipe quan-
contínuo dos advérbios adversativos, da para redefinir a atitude do prínci- to nos Discursos, sobre a fundação
que seguem a referência à opinião pe para com a ética e a religião (e as do governo popular, que não é um
comum, particularmente, mas não duas coisas, do ponto de vista de Ma- fundamento instável, sobre terreno
exclusivamente, em O Príncipe. Essa quiavel, são uma só coisa, uma vez pantanoso, como no ditado popular
sua atitude nas comparações entre que está ausente nele a considera- (veja-se o Capítulo IX, sobre o princi-
a tradição e a imaginação literária é ção da religião como transcendência, pado civil de O Príncipe, e em muitas
devido à sua nítida distinção entre o como algo que não seja humano, isto passagens dos Discursos), mas a mais
pensamento utópico e o pensamen- é, divino, teologia), mas, em geral, sólida base política.

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Pensamento imaginativo servou que, por isso, Gramsci — que, para citar Koselleck3, em termos de

Tema de Capa
Agora, se considerarmos que como marxista, punha-se a pergunta “prognóstico” e não de “progresso”.
Maquiavel é um autor fundamental- da tomada do poder — tinha achado- No entanto, mesmo sobre este ponto,
mente anticínico, compreenderemos -o particularmente interessante). Seria, aconselho, entre outros, a leitura, no
que o seu “realismo” não é desapego todavia, um erro para qualquer um que contexto dos Discursos, no Proêmio ao
das coisas humanas, porque, como no desejasse entender Maquiavel (um Segundo Livro, no qual Maquiavel, an-
fundo sempre se alerta (com algumas erro que foi cometido desde o século tes de confirmar que os antigos eram
exceções, que depois talvez teremos XVI) tomar essas considerações fun- melhores do que os modernos e que
oportunidade de indicar), a sua escri- damentais sobre poder como meras os romanos eram os mais virtuosos
ta é também ação política. Como bem conclusões técnicas, como regras ma- dos italianos, explora com profundi-
escreveu Frederico Chabod, em Ma- nualísticas boas para cada uso, separá- dade admirável a natureza do nosso
quiavel a capacidade lógica e a com- -las do quadro filosófico maquiaveliano olhar histórico.
preensão profunda da realidade reali- sobre o homem e sobre a sociedade
zam-se e tornam-se pensamento vivo em que estão colocados. Rompimento
e orgânico apenas por intermédio de Maquiavel é um clássico, cujas
uma poderosa e inesgotável imagina- IHU On-Line - Em que sentido páginas devem ser reconhecidas, ou
ção. Agora, o pensamento imaginativo as ideias desse pensador ajudam a seja, além de mostrar-nos, de um
de Maquiavel não é separável da sua compreender as questões de teoria lado, um autor que pensa diferente-
capacidade de análise; é, na verdade, da história e da política? mente de nós, com outras categorias,
a alma. Todos esses motivos devem Marco Vanzulli - A primeira ope- outra temporalização dos eventos,
ser levados em consideração, se se de- ração a fazer é, sem dúvida, a de pro- por outro lado, mostra-nos um au-
seja compreender a peculiaridade do curar ler Maquiavel por Maquiavel; tor que pensa como nós, que coloca
pensamento de Maquiavel. em outras palavras, fazer tábula rasa as questões que estão em curso, e,
Do ponto de vista mais estrita- de todas as interpretações que, até o por isso, para o futuro, os problemas
mente da teoria da política, continua século XVI, sobrepuseram-se à obra sobre os quais sempre se meditará.
a ser fundamental a investigação de maquiaveliana (tivemos pesadas e Em segundo lugar, Maquiavel, com
Maquiavel sobre a natureza do poder, volumosas no próprio recente século talento e perspicácia inigualáveis, es-
sobre o que ele é e como se o exerce. XX). Nesse sentido, a obra de Maquia- tabeleceu a questão da relação entre
Como se observou, um tema de gran- vel é um autêntico campo de batalha. força e imaginação no mundo políti-
de inovação em Maquiavel é ter jun- Ler Maquiavel por Maquiavel pode co de modo muito concreto, de uma
tado à tradicional teorização sobre o parecer, de um lado, uma operação forma que deveria ser questionada
exercício do poder grande atenção às difícil ou até mesmo ingênua ou irre- também a partir das questões de his-
maneiras de sua conquista (Bobbio1 ob- alista, como a que pretende voltar a tória política contemporânea. Vê-se
uma pureza do original, eliminando, em muitos contextos: toda a exposi-
de repente, toda a Wirkungsgeschi- ção incomum da virtude do príncipe,
1 Norberto Bobbio (1910-2004): filósofo
e senador vitalício italiano. Considerado
chte2, que constituiria, segundo uma a partir do capítulo XV de O Prínci-
um dos grandes intelectuais italianos, tradição hermenêutica, o próprio sen- pe, é atentíssima, é mesmo focada
Bobbio era doutor em Filosofia e Direito tido da obra. Essa operação, de outro no motivo da “reputação”, ou seja,
pela Universidade de Turim, fez parte
do grupo antifascista Giustizia e Liberta
lado, é tornada substancialmente mais sobre a imaginação que o povo tem
(Justiça e Liberdade). Adepto do socialis- fácil em uma comparação direta com do príncipe: a diferença entre a ação
mo liberal, Bobbio foi preso durante uma a página maquiaveliana, que conserva real do príncipe e a imaginação que o
semana, em 1935, pelo regime fascista de
Benito Mussolini. Em 1994, Bobbio assu-
um extraordinário frescor. Maquiavel povo tem é considerada inevitável, e,
miu publicamente uma posição contra as ajuda-nos, em primeiro lugar, a com- baseando-se nela, Maquiavel rompe
políticas defendidas por Silvio Berlusconi, preender — isso pode parecer trivial, decisivamente com os tratados hu-
que representava o centro-direita nas
mas abre o caminho para uma refle- manistas quatrocentistas.
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eleições gerais. Nesta altura, escreveu
um dos seus ensaios mais conhecidos Di- xão muito fecunda, e, no meu modo
reita e Esquerda, no qual se pronunciou de ver, ineludível — o quanto mudou IHU On-Line - Em que medida a
contra a “nova direita”. Além desta obra,
Bobbio assinou e realizou mais de 1300
a nossa concepção da história política, obra de Maquiavel influencia o pen-
livros, ensaios, artigos, conferências e pela sua comparação com o modelo samento político de Vico e Gramsci?
entrevistas. Norberto Bobbio recebeu o romano e pelo seu pensar a história,
doutoramento Honoris Causa pelas uni-
versidades de Paris, Buenos Aires, Madrid, 3 Reinhart Koselleck (1923-2006): Um
Bolonha e Chambéry (France). Autor de dos mais importantes historiadores
livros de impacto, como Direita e Esquer- neiro: Contraponto, 2003. Na 89ª edição alemães do pós-guerra, destacando-se
da, tinha como principais matrizes de sua da Revista IHU On-Line, de 12-01-2004, na como um dos fundadores e o principal
obra a discussão da guerra e da paz, os editoria Memória, além de um artigo de teórico da história dos conceitos. As suas
direitos humanos e a democracia. Alguns Ricupero, um de Janine Ribeiro, foi publi- investigações, ensaios e monografias
dos livros mais recentes são: Teoria Ge- cada a biografia de Norberto Bobbio, em cobrem um vasto campo temático. No
ral da Política. Rio de Janeiro: Campus, virtude de seu falecimento aos 94 anos, geral, pode-se dizer que a obra de Kosel-
1999; Diálogo em Torno da República. Rio no dia 9-01-2004. (Nota da IHU On-Line) leck gira em torno da história intelectual
de Janeiro: Campus, 2001; Entre Duas 2 História dos Efeitos (Wirkungsgeschi- da Europa ocidental do século XVIII aos
Repúblicas. Brasília: Ed. UnB, 2001; Elo- chte). Refere-se a continua influência da dias atuais. Também é notável o seu in-
gio da Serenidade. São Paulo: Ed. Unesp, recepção de obras ou acontecimentos teresse pela teoria da história. (Nota da
2002; O Filósofo e a Política. Rio de Ja- (Nota da IHU On-line). IHU On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 39


Marco Vanzulli - Vico4 é enor- Martelli7, para satisfazer a exigên- tos histórico-teóricos da sua reflexão.
Tema de Capa
memente influenciado por Maquia- cia do próprio sistema filosófico, Não faltam, se bem que sejam menos
vel. Na sua obra, podem-se mesmo as categorias dos “distintos”, faz de numerosos do que os outros, estudos
descobrir os moldes maquiavelia- Maquiavel o descobridor da auto- que avizinharam a obra de Maquiavel
nos em contextos altamente críti- nomia da política da moralidade, à tradição humanística, à mentali-
cos. Isso quer dizer literalmente que e vê no motivo da força o elemen- dade política dos tribunais italianos,
Maquiavel ajuda Vico não somente to fundamental da relação política; dos diplomatas e dos embaixadores
a pensar, mas também a formular Gramsci é influenciado também por italianos na Itália e na Europa. Assim,
o próprio pensamento. Isso não outras interpretações de sua época o olhar lucidamente realista não pa-
significa, porém, que os moldes de (encontram-se, nos Cadernos do Cár- receria somente de Maquiavel. Ele,
Maquiavel significam as mesmas cere, referências às obras de Croce e entretanto, produz uma profunda
coisas nos dois autores. Eu diria que Russo, Hércules e Chabod). Todavia, filosofia, não apenas um pensamen-
o tema dos direitos civis, a questão além dessas influências, é originalís- to político, uma filosofia que fala do
do conhecimento da virtù das repú- simo no envolver-se na problemática homem, da religião (nesse sentido,
blicas, é um legado de Maquiavel, do partido marxista, aquela do ideal tem razão Leo Strauss9, quando diz
é claro, nem sempre separável em político nacional que o secretário flo- que Maquiavel fala das religiões tout
Vico pela convivência com outros rentino perseguia, retomando a seu court, não somente da religião como
autores. E, por outro lado, o pen- modo a questão de quem era o ver- instrumentum regni, exatamente no
samento de um autor que é apenas dadeiro destinatário de O Príncipe. sentido de compreender profunda-
um pouco original não é redutível Assim, em comparação com Croce, mente o que a religião, em um de-
à soma das fontes que atuam nele. o pensador sardo contextualiza his- terminado meio-chave, significa, da
Nesse sentido, achei sempre muito toricamente, de um lado, o pensa- maneira como o faz Maquiavel, dar
questionável a crítica antiviquiana mento de Maquiavel, vinculando-o uma interpretação filosófica da re-
de Paolo Rossi 5(veja Le Sterminate à “classe revolucionária” do tempo, ligião), da natureza, etc. O realismo
Antichità6). ou seja, os republicanos das cidades lúcido já expresso por outros não ti-
Voltando à relação Vico-Maquia- italianas, progressistas, antifeudais, nha alcançado a plenitude conceitual
vel, parece-me também que alguns e, de outro, dobra-o às suas próprias que se acha em Maquiavel, que, no
motivos de valorização nas compara- exigências e expectativas teóricas de entanto — e esse é outro caráter fun-
ções das repúblicas populares são de certo modo menos arbitrárias do que damental de seu pensamento —, ao
ascendência maquiavelianas. Toda- a de Croce. Aqui Gramsci é verdadei- mesmo tempo o embebeu fortemen-
via, como tive oportunidade de escre- ramente o fundador de uma linha te com um ideal civil que é a alma de
ver, para Vico a questão maquiavelia- interpretativa que terá grandes resul- suas obras. Nada a ver com a dico-
na da manutenção da virtude política tados. Pensa-se, todavia, em Maquia- tomia abstrata e rígida entre moral
não pode ser resolvida, permanecen- vel de Althusser8, impensável sem as ou consciência e razão de Estado de
do no nível político, porque a ciência Breves Notas de Gramsci. autores como Botero, que, por certo,
de Vico parte dos princípios da natu- influenciou a leitura maquiaveliana
reza comum das nações, que são mais IHU On-Line - Quais são as prin- de Croce.
inclusivas e gerais. cipais premissas do pensamento de
Maquiavel? O erro de Croce
Autonomia política da Marco Vanzulli - Depois de ha- O estilo dilemático, no qual as
moralidade ver insistido, e com justiça, na novida- questões teóricas são esclarecidas e
Quanto a Gramsci, ele é certa- de e na ruptura instituída pelo pensa- ao mesmo tempo simplificadas e a
mente influenciado, ao ler Maquia- mento maquiaveliano, é igualmente escolha segura de uma das alternati-
vel, pela interpretação crociana, que, justo colocá-lo em sua própria época, vas apresentadas, é típico do estilo de
como sublinha justamente Michele e ter assim a melhor disposição para Maquiavel. Guicciardini repreenderá
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compreender quais são os pressupos- pela simplificação e perda da varieda-


de e da maior contingência que a rea-
4 Giambattista Vico ou Giovanni Bat-
tista Vico (1668-1744): filósofo italiano. 7 Michele Martelli(1940): Filósofo e en-
lidade apresenta não tão facilmente
Discerniu a explosiva mistura da razão saísta italiano. Seus estudos anteriores resumível em máximas ou diagramas
com a mecânica e ofereceu uma nova se concentravam no pensamento de Niet- ou leis gerais. Em Maquiavel, um modo
ciência que poderia trazer as mais altas zsche, Gramsci e outros pensadores do
percepções da Renascença para dentro século XX. Recentemente, tem levantado
da metodologia dos primeiros investiga- discussões filosóficas que fazem críticas 9 Leo Strauss (1899 - 1973): Filósofo po-
dores modernos (Nota da IHU On-line). radicais contra o dogmatismo, fundamen- lítico teuto-americano especialista em
5 Paulo Rossi (1923-2012): Filósofo ita- talismo e todas as formas de absolutismo filosofia política clássica. Foi professor
liano e historiador. Desenvolveu seus es- contrárias à liberdade de pensamento e à de Ciência Política da Universidade de
tudos em história da filosofia e da ciên- democracia (Nota da IHU On-line). Chicago (1949-1969). Originalmente se-
cia, incialmente voltado para o período 8 Louis Althusser (1918-1990): filósofo guia o pensamento neo-Kantiano e dos
correspondente ao século XVI a XVIII. marxista francês. Seu envolvimento com fenomenologistas (Husserl e Heidegger),
Especialista na obra de Bacon e Vico, a ideologia marxista pode ser devido ao e mais tarde passa a se concentrar nos
teve especial interesse pelo período da tempo gasto nos campos de concentração estudos gregos de Platão e Aristóteles,
Revolução Científica do século XVII (Nota nazista, durante a segunda guerra mun- encorajando a aplicação de suas ideias
da IHU On-line). dial, depois da qual começou sua carreira na teoria política contemporânea. (Nota
6 NT: As Antiguidades sem Fim. acadêmica (Nota do IHU On-Line). do IHU On-Line).

40 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


tal de argumentar está a demonstrar final, a escolha é pela maior estabi- sistema científico da Nova Ciência, e

Tema de Capa
uma grande confiança na eficácia da lidade das monarquias, mas não há desmembrava-a em partes pré-filosó-
sua abordagem, que não aspira tanto dúvida de que, para ele, a plenitude e ficas e partes pseudocientíficas.
a colocar-se como “tratado de política”, o ápice de um percurso civil venham
mas propõe as soluções para os proble- na república popular, onde a política IHU On-Line - Qual é o limite in-
mas políticos de sua época por inter- resolve-se com transparência, e está transponível da política sobre a base
médio de uma conceptualização e, por- ausente o tema da razão de Estado. do pensamento desses dois autores?
tanto, de uma teorização da política. Mesmo Maquiavel — republicano no Marco Vanzulli - Uma diferença
Não surpreendentemente, ob- coração, como também Guicciardini, fundamental entre Maquiavel e Vico
serva-se que as últimas obras per- mesmo ele, como o amigo, acabou é que o segundo coloca fortemente
dem o vigor, a concisão figurativa da acusado de ser um mero conselhei- como tema, e em conexão com a polí-
primeira produção. Está aqui tam- ro dos tiranos! — oscila entre essas tica, as razões ligadas ao “econômico”,
bém o motivo da união entre “teo- duas formas políticas. O Príncipe, à propriedade, ao trabalho e à reivin-
ria” e “prática” característica das assim como os Discursos, bem longe dicação dos direitos; para Maquiavel,
obras de Maquiavel. Foi certamente de serem obras de “ciência política” o econômico, como escreveu Rober-
um erro de Croce (já em certo sen- geral, são, também, as respostas pre- to Esposito10, representa de alguma
tido desmascarado por Gramsci) de cisas para os problemas político-ins- maneira “o impensado”: veja-se a
tornar Maquiavel um “teórico”, um titucionais de Florença. Felix Gilberto discussão em Discursos, I, 37, sobre a
“cientista” da política. Por outro lado, mostrou-o muito bem. Portanto, o reforma agrária dos Gracos, a imobili-
essa união entre teoria e prática em horizonte do bem comum para Ma- dade que simboliza o corpo da cidade,
Maquiavel constituiu o ponto de par- quiavel está historicamente entre o dividida em dois estados de espírito
tida para interpretações arrojadas, repensar da participação popular da imutáveis (“e estão em cada república
mas absolutamente sem fundamento comunidade florentina (relançada no dois estados de espírito diversos, o do
nos textos, como aquelas atuais que período de seu amigo Soderini Savo- povo e o dos grandes”), os “grandes”
enfatizam indevidamente a noção narola) e a forma monárquica do go- e o “povo”, as considerações sobre
de “multidão” em Maquiavel, distor- verno Medici, no contexto iminente “plebe”; o público, para Maquiavel,
cendo-lhe o pensamento. O risco é o da servidão da Itália. deve ser mantido rico, e os cidadãos,
de submeter o pensamento de Ma- não demasiadamente ricos, para ter
quiavel sobre “povo” às exigências Hipoteca interpretativa a cidade virtuosa. Não são temas no-
contemporâneas, mas que não eram Para Vico, o contexto históri- vos, encontramo-los frequentemente
as do escritor florentino. Por “povo”, co impõe o desenvolvimento de um na tradição ocidental, da antiguidade
Maquiavel não compreende o que pensamento político que favoreça grega em diante. De nosso ponto de
se pensa da Revolução Francesa em ideologicamente o acesso das classes vista, a consideração da política, ao
diante. Recordemos que, em Maquia- progressistas à condução do governo, contrário, apresenta uma impureza de
vel, o “povo” opõe-se aos “grandes”, solidamente na mão da monarquia fundo, dada às exigências econômicas,
às famílias patrícias conservadoras, absoluta em quase toda a Europa. às constantes influências econômicas
mas não inclui os assalariados, a ple- Trata-se de iluminá-los. Nesse pon- na política, que se desejava, em vez
be, a parte mais pobre da população to estão as oscilações significativas disso, puro exercício de autoadminis-
florentina, que não constitui cida- nas diversas versões da Nova Ciên- tração de parte de uma comunidade.
dania em sentido próprio. O nosso cia, como mostra a maior ou menor De um lado, a política constitui-se cla-
filosofar sobre um autor não pode ênfase no argumento do recurso, as ramente na esfera autônoma do pen-
descuidar de levar em consideração mesmas variações no estilo literário. samento, e, de outro, essa autonomia
esses aspectos histórico-políticos. Mesmo em Vico, portanto, a dimen- vê crescer, sobretudo nos anos 1700
são político-prática do pensamento fora de si um imenso desenvolvimento
IHU On-Line - Quais são as prin- moderno é fundamental, não extrín- dos estudos sobre o funcionamento
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cipais questões que surgem do pen- seca, não é simples corolário de uma econômico dos Estados e comércios,
samento de Maquiavel e Vico sobre ciência geral. Ciência que, em Vico, é os estudos monetários, as teorias da
o tema do bem público? fortemente (não é por acaso que o tí- melhor economia nacional.
Marco Vanzulli - Em ambos, a tulo da sua obra principal seja Nova
atenção para tal questão está relacio- Ciência, mas os seus comentaristas A economia como “a própria
nada àquela da virtude de uma civili- raramente levaram-no a sério) dota- ciência”
zação e às formas de governo e de vida da, no entanto, de uma complexidade Tradicionalmente, a economia
cívica mais adequada para sustentá- que escapa a todas as interpretações era considerada em sintonia com a
-la, e ambos têm, tradicionalmente, dominantes. E, mesmo aqui, não se
a preocupação do caráter transitório pode insistir o bastante sobre a pe- 10 Roberto Esposito: filósofo italiano,
da república popular. Desse ponto sada hipoteca interpretativa colo- especialista em filosofia moral e política.
De sua vasta produção bibliográfica, ci-
de vista específico, poder-se-ia dizer cada pela interpretação crociana de tamos Pensiero vivente. Origine e attua-
que ambos tentam dar uma resposta 1911, que, se atribuía a Maquiavel lità della filosofia italiana (2010), Bios.
à tradicional questão do caráter ins- uma ciência que não existia, desta Biopolitica e filosofia (2008), L’origine
della politica. Hannah Arendt o Simone
tável das democracias: em Vico, no vez não compreendia o caráter do Weil? (1996). (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 41


moral e a política, sobre a qual vinha de Zum ewigen Frieden12, com seu dania e dos direitos, o que, em última
Tema de Capa
colocada toda a ênfase. Mas, nos anos louvor à república e a condenação da instância, é mediado virtuosamente
1700, a economia não desempenha democracia) — do pensamento liberal pela própria política, que represen-
mais, na disposição dos conhecimen- do final do século XVIII e democracia. taria uma esfera de recomposição e
tos, um papel intermediário entre Essa identificação terminou por cons- de distribuição. Tudo isso é mesmo
moral e política, mas torna-se com- tituir um verdadeiro “pensamento verdade em alguns sentidos: no ideo-
pletamente a própria ciência. Para único”, que se queria como incompa- lógico, mesmo porque, muitas vezes,
pensar essa situação, que parece apo- rável e definitivo. É considerada a for- parafraseando Marx, em O Capital,
rética aos olhos do homem moderno, ma final (ao contrário das catástrofes quando fala do fetichismo, o que pa-
é necessária uma nova concepção da totalitárias dos anos 1900 ou a deca- rece, é; e em sentido histórico isso é
dinâmica histórica. Vico, pensador dência da civilização), também gra- necessariamente (mas, igualmente,
que vive entre os anos 1600 e 1700, ças à sua difusão histórico-geográfica necessariamente de modo parcial)
está também conceitualmente entre (vejam-se os escritos de Robert Dahl13, verificado na socialdemocracia. O
Maquiavel, entre o mundo clássico, para uma ênfase desse aspecto). socialismo democrático do século XX
se assim se deseja, e a modernidade desenvolveu efetivamente também
(entendo a Revolução Francesa), mas Conflito a ser superado essas funções, com equilíbrio difícil,
ainda não dispõe daquela concepção A teorização e a afirmação, jamais resolvido e continuamente por
de temporalidade que estará na base mesmo em nível de senso comum, redefinir, entre a exploração do traba-
do conceito de progresso, ou seja, da da “democracia representativa” têm lho e da redistribuição.
ideia do caráter totalmente inédito as características de uma ideologia Agora, sem procurar levar a
do futuro. Então, quando se interroga no sentido marxista. E um de seus cabo uma crítica das noções de di-
sobre formas de governo, tornam a aspectos fundamentais é o de con- reito e representação à maneira de
ser debatidas as questões tradicionais siderar o conflito social como algo Hanna Arendt, que desloca, em mi-
da manutenção do ápice de um mo- que pode ser superado pela políti- nha opinião, o foco dos pontos mais
vimento político antes da inevitável ca ou que, de outra forma, não tem nevrálgicos indicados com clareza por
decadência, isto é, o ápice de todo um qualquer influência sobre a política, a Marx, também porque não se trata
percurso civil, e a sua ciência — que qual prescinde disso na base da cida- de refutar a dimensão dos direitos,
junta magistralmente os diversos pla- mas de esclarecê-la e de ampliá-la,
nos do devir histórico — volta a confi- permanece a questão da redefinição
mais influentes da Filosofia. Kant teve
nar a política em um círculo de consi- um grande impacto no Romantismo ale-
do impacto das divisões de classe nas
derações puramente políticas. mão e nas filosofias idealistas do século instituições políticas democrático-re-
XIX, tendo esta faceta idealista sido um presentativas liberais. Para Maquia-
ponto de partida para Hegel. Kant esta-
IHU On-Line - Quais elementos beleceu uma distinção entre os fenôme-
vel, o bem comum produz-se no inte-
de O Príncipe, de Maquiavel, são nos e a coisa-em-si (que chamou noume- rior de uma divisão não dissimulada,
oferecidos para pensar sobre a crise non), isto é, entre o que nos aparece e o de algum modo social e politicamen-
que existiria em si mesmo. A coisa-em-si
da democracia representativa e da não poderia, segundo Kant, ser objeto
te aberta e reconhecida, e que não
colonização da política por parte da de conhecimento científico, como até se pretende suprimir. Algo que será,
economia em nosso tempo? então pretendera a metafísica clássica. a seguir, obscurecido pela igualdade
A ciência se restringiria, assim, ao mun-
Marco Vanzulli - A democracia do dos fenômenos, e seria constituída
dos cidadãos proclamada pela Revo-
representativa resgatou apenas re- pelas formas a priori da sensibilidade lução Francesa, que separa e compli-
centemente, na história do pensa- (espaço e tempo) e pelas categorias do ca a relação entre a esfera social e a
entendimento. A IHU On-Line número 93,
mento político ocidental, a palavra de 22-03-2004, dedicou sua matéria de
esfera política.
“democracia”, uma palavra que antes capa à vida e à obra do pensador com Nas democracias representa-
era geralmente desprezível. Mas a o título Kant: razão, liberdade e ética, tivas contemporâneas, é comum a
disponível para download em http://
resgataram ao preço de identificar a ideia de que a divisão social, por si só
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migre.me/uNrH. Também sobre Kant foi


palavra “democracia” com “democra- publicado este ano o Cadernos IHU em escondida, seja superada pelo fato da
cia representativa” ou “democracia formação número 2, intitulado Emma- representação, e que o estado de di-
nuel Kant - Razão, liberdade, lógica e
liberal”. É um mecanismo de pensa- ética, que pode ser acessado em http://
reito seja ipso facto o estado da igual-
mento desencadeado pela primeira migre.me/uNrU. Confira, ainda, a edição dade. Como o espaço do ideológico
vez pelo poderoso dispositivo do pac- 417 da revista IHU On-Line, de 06-05- cresceu nas sociedades democráticas
2013, intitulada A autonomia do sujeito,
to social hobbesiano, e, depois, fun- hoje. Imperativos e desafios, disponível
contemporâneas ou, soi-disant, da
damentando-se com a identificação em http://bit.ly/10v60Ch. (Nota da IHU racionalidade política compartilhada
— todavia não unânime no mesmo On-Line) é um ponto que mereceria, partindo
12 Rumo a paz perpétura / Zum Ewigen
pensamento liberal (pensa-se, somen- Frieden (São Paulo: Ícone Editora, 2010).
dessas considerações, ser aprofunda-
te para dar um exemplo, em Kant 11 13 Robert A. Dahl (1915): Um dos mais do. A leitura de Maquiavel consente-
referenciados cientistas políticos ainda -nos voltar, sem pretensão, às formas
em atividade. É professor emérito de
11 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo ciência política na Universidade Yale, Es-
de desunião social, a um pensamento
prussiano, considerado como o último tados Unidos e escreveu principalmente que olha lucidamente para a políti-
grande filósofo dos princípios da era mo- sobre as condições e processos da políti- ca antes do advento do pensamento
derna, representante do Iluminismo, in- ca democrática contemporânea (Nota da
discutivelmente um dos seus pensadores IHU On-Line).
único da liberal-democracia.

42 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


A política desnudada

Tema de Capa
Para Gramsci, Maquiavel inova ao compreender a política como uma ciência
autônoma, com princípios e leis particulares, diferentes daqueles utilizados na
moral e na religião, observa Gonzalo Rojas

Por Márcia Junges

U
m campo autônomo, com regras de dores, mas também a política da filosofia da
jogo próprias, e que “evita a guerra e práxis, o que dá um caráter essencialmente
permite uma vida civilizada”. Essa era revolucionário” às suas ideias.
a compreensão de Nicolau Maquiavel sobre Gonzalo Rojas é graduado em Ciência
a política, explica o cientista político Gonza- Política pela Universidade de Buenos Aires
lo Rojas, na entrevista concedida por e-mail — UBA, doutor em Ciência Política pela Uni-
à IHU On-Line. Seu pensamento incomoda versidade de São Paulo — USP com a tese Os
porque “desnuda” a política, “deixa de ser o socialistas na Argentina (1880-1980). Um sé-
‘bem comum’, ou uma ‘vontade divina’ para, culo de ação política, e pós-doutor pela Uni-
pelo contrário, ser definida como a luta pelo versidade Estadual de Campinas — Unicamp.
poder e sua conservação entre os homens”. Leciona na Universidade Federal de Campina
Promovendo um cisma entre religião e polí- Grande, na Paraíba.
tica, o florentino “melhorou a técnica política Confira a entrevista.
tradicional dos grupos dirigentes conserva-

IHU On-Line - Em que aspectos rios, reações ou aprovações como o Maquiavel é um realista, do
Maquiavel é um escritor fundante da florentino. Maquiavel incomoda des- ponto de vista que estuda a realida-
moderna Ciência Política? Alguns au- nudando a política mesma, que deixa de como ela é, não como deveria ser.
tores assinalam que Maquiavel foi o de ser o “bem comum”, ou uma “von- Ele não acredita que essa realidade
autor de uma teoria política ao cindir tade divina” para, pelo contrário, ser seja imutável. Sendo a política domi-
o Estado da religião e ao separar a definida como a luta pelo poder e sua nação, conflito, toda decisão política
ética cristã da esfera política. Outros conservação entre os homens. inclui a avaliação de que grupos so-
afirmam que Maquiavel somente A principal preocupação de Ma- ciais vão se beneficiar e outros irão se
teorizou situações que presenciara, quiavel é atingir um objetivo político, prejudicar. O realismo, la veritá effet-
sem haver formulado uma teoria es- como lograr a unidade nacional italia- tuale delle cose, a verdade efetiva das
pecificamente. Qual é seu ponto de na dispersa em múltiplos principados, coisas, é um componente de uma vi-
vista? unidade lograda pela França e Espa- são moderna da política.
Gonzalo Rojas - Maquiavel é o nha; como elaborar uma estratégia
primeiro filósofo político que separa bem-sucedida para alcançar o poder IHU On-Line - O que O Príncipe
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a “política” da moral e da religião. À e como o conservar, o que, segundo tem a dizer à política de nossos dias?
diferença da teoria política clássica Sheldon Wolin1, supunha uma econo- Quais são as ideias fundamentais
(grega antiga), onde a política faz par- mia da violência2. dessa obra que encontram reflexo
te de uma totalidade, sendo a polis na práxis política do século XXI? Em
o único marco onde o homem pode que aspectos Antonio Gramsci se
1 Sheldon S. Wolin (1922): filósofo políti-
desenvolver suas atitudes individuais, co norte-americano e atualmente é pro-
“apropriou” de Maquiavel em uma
morais e intelectuais pela sua nature- fessor emérito na Princeton University. perspectiva contra-hegemônica?
za, e da teoria política medieval, onde Wolin é conhecido por ter criado o termo Gonzalo Rojas - Gramsci apre-
“totalitarismo invertido”, fazendo refe-
predomina uma visão teocrática, des- rência às tendências políticas do gover-
senta, na sua interpretação de Ma-
cendente do poder político onde este no dos Estados Unidos. Este, ao mesmo
emana de Deus, Maquiavel concebe a tempo em que promove investidas em
todo o mundo em defesa da democra- pelo filósofo político Sheldon Wolin
política como um campo autônomo, cia, assume ele próprio comportamento (1922) que versa sobre o uso racional da
que tem regras de jogo próprias. Não totalitário – partilhando semelhanças e violência. Trata-se da limitação de seu
há escritor político que tenha susci- diferenças em relação ao regime nazista uso por meio de sua aplicação sensata,
(Nota da IHU On-line). e não da sua eliminação total (Nota da
tado tantas controvérsias, comentá- 2 Economia da violência: Termo criado IHU On-line).

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 43


quiavel, a importância teórica e polí-
“Maquiavel Política e violência
Tema de Capa
tica de pensar um príncipe moderno Gramsci faz uma inversão da
no marco da filosofia da práxis, a ne-
cessidade de que a secularização da concebe a política definição de guerra de Carl Von Clau-
sewitz4, que podemos relacionar com
política torne-se um senso comum
e a política como uma práxis para a como um campo os objetivos da guerra e da paz em O
Príncipe, de Maquiavel, quando este
construção de relações de forças pró-
prias na luta pelo poder na formação autônomo, que escreve sobre a importância dos exer-
cícios físicos e a leitura da história por
de uma nova vontade coletiva nacio-
nal e popular, para transcender as so- tem regras de jogo parte do príncipe. Segundo Gramsci,
tem de se fazer uma análise concreta
ciedades capitalistas “ocidentais”. da situação concreta em cada forma-
A ideia de Estado ampliado em próprias” ção econômico-social para elaborar
Gramsci como uma articulação de co- uma estratégia revolucionária. No
erção e consenso é relacionada com florentino aparece a ideia de verda-
a existência, para Maquiavel, de di- utiliza, mas inverte a relação realiza- de real das coisas diferenciadas das
ferentes tipos de Estado. Esses tipos da por Maquiavel entre Oriente e Oci- representações imaginárias das mes-
de Estado podem se resumir a dois: dente, quando o florentino interpreta mas. Os dois têm uma visão não con-
as repúblicas, onde os homens são que no Oriente (Turquia) é difícil a servadora do poder político. A ordem
cidadãos, ou os principados, onde os conquista e fácil a permanência no é necessária, mas a política substitui
homens são súditos. A ideia do Esta- poder, e no Ocidente (França) ocorre a violência, a conceição de estabilida-
do como um centauro está junta em o contrário. de política, essa preocupação obses-
Gramsci na ideia de Estado ampliado, Gramsci, depois da inversão da siva não é imutável, é produto de um
com coerção e consenso, como dois relação, entende que da interpreta- equilíbrio de forças. A política evita a
momentos simultâneos da domina- ção do tipo de estado que se enfrenta guerra e permite uma vida civilizada,
ção burguesa, mas aparece também se desprende o tipo de luta que se segundo o florentino. Estas apropria-
no príncipe que, entre as bestas, tem realiza. Dessa forma, nos apresen- ções nos fazem refletir sobre a pos-
que escolher a zorra e o leão. A zor- ta as possibilidades para passar de sibilidade da utilização de Gramsci
ra porque vê as armadilhas, e o leão uma guerra de manobra (Oriente) a de Maquiavel em uma perspectiva
para amedrontar os lobos. uma guerra de posição (Ocidente) contra-hegemônica.
no marco de uma nova estratégia
Crise orgânica revolucionária nos países capitalistas Caráter revolucionário
Gramsci entende a política como desenvolvidos. Maquiavel inova toda a concep-
relações de força e a necessidade de Segundo Gramsci, só num con- ção do mundo, segundo Gramsci, ao
o príncipe moderno construir rela- texto de crise orgânica é possível separar a política como uma ciência
ções de força próprias nas diferentes que o bloco histórico dominante autônoma com seus princípios e leis,
situações de luta. Isso nos remete à seja substituído pelo bloco histórico diversos daqueles da moral e da re-
diferença entre as armas próprias e as contra-hegemônico, mas, no caso em ligião. Para Gramsci, esta proposição
alheias realizadas pelo florentino com que não exista esse bloco alternativo, tem um grande alcance filosófico. O
sua interpretação da política como a oportunidade se perde e se produz estilo de O Príncipe é o de um mani-
luta pelo poder, separada da moral e uma recomposição do bloco domi- festo político, de partido. O Príncipe é
da religião. Gramsci, seguindo Lênin3, nante sob novas bases. Podemos rela- um homem de ação que impulsiona
cionar isto com os conceitos de virtu- a ação dos outros, é um político. Gra-
3 Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924): de (a virtù romana) e fortuna; já que, msci desenvolve uma crítica à inter-
Revolucionário e chefe de Estado russo.
Lênin foi um dos responsáveis pela Revo- para o florentino, sem oportunidade pretação de Croce5, segundo a qual
o maquiavelismo é uma ciência que
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lução Russa (1917) e a influência de seu as virtudes se perdem, sem virtude


pensamento influenciou partidos comu- a oportunidade terá vindo em vão. serve tanto aos reacionários como
nistas em todo o mundo, levando ao sur-
gimento da corrente teórica Leninismo. Então, a fortuna mostra seu poder aos democratas, afirmando que essa
Foi incitado dede cedo ao pensamento quando não tem virtude organizada.
político especialmente por influência de Destacamos, também, a questão da
seu irmão, Alexandre Uilánov. É a con- 4 Carl Von Clausewitz(1780-1831): Ge-
denação de Uilánov à morte, após um organização em Gramsci, assim como neral do Reino da Prússia. É reconhecido
atentado contra a vida do czar Alexandre a diferenciação de príncipe moderno como um grande teórico militar, espe-
III, que desperta em Lênin o desejo de de príncipe. cialmente por sua obra Da Guerra (São
combater o regime autocrático do país. Paulo: Martins Fontes, 2010). Ficou co-
Mais tarde, ingressa no Partido Social nhecido por sua associação entre guerra
Democrata Russo, e as posições duras e política, onde afirma que “a guerra
e revolucionárias do grupo defendido em 1917, influenciada pelo desconten- é a continuação da política por outros
por Lênin levam à divisão do partido em tamento com a participação do País na meios” (Nota da IHU On-line).
duas vertentes: Bolcheviques, de orien- I Guerra Mundial. Participou ativamente 5 Benedetto Croce (1866-1952): filóso-
tação radical, e Mencheviques, de ca- da criação da União Soviética, em 1922. fo idealista italiano. Influenciou os
ráter moderado. Após a Revolução Rus- No mesmo ano, no entanto, é acometido pensamentos estéticos da primeira
sa, em 1905, Lênin foge da Rússia, mas por uma crise de hemiplegia e precisa se metade do século XX, incluindo Rogin
retorna anos depois e passa a liderar o afastar do poder, sendo sucedido por Jo- G. Collingwood e John Dewey. (Nota da
Partido Bolchevique, que toma o poder sef Stalin (Nota da IHU On-line). IHU On-Line).

44 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


interpretação é verdadeira só em ter-
“A preocupação de males. O livro O Príncipe afirma

Tema de Capa
mos abstratos. Segundo o comunista que sim, o príncipe tem que escolher
italiano, pode-se pensar que Maquia-
vel tem em vista “quem não sabe” de Maquiavel não entre os grandes e o povo, tem que
se decidir, sem dúvida alguma, pelo
e pretende educar politicamente
“quem não sabe”, de forma positiva, era só entender povo, principalmente porque neces-
sita viver sempre com o mesmo povo,
quem deve reconhecer como neces- mas não com a mesma nobreza.
sários certos meios, mesmo próprios lucidamente o O povo só pede para não ser opri-
dos tiranos, porque deseja deter- mido, ponto de partida e chegada da
minados fins. Quem não sabe nes- drama político e interpretação dos elitistas, mas esta
sa época? A classe revolucionária, o afirmação só é real para Maquiavel
“povo”, a “nação italiana”. de civilização que nos principados onde seus habitantes
Maquiavel tem um objetivo são súditos; então, o povo é um ator
claramente político: persuadir estas se desenvolvia passivo. Mas nas repúblicas é dife-
forças a ter um “chefe” que saiba rente, porque o povo está constituído
aquilo que quer e como obtê-lo, acei-
tá-lo com entusiasmo, mesmo se suas
ante seus olhos, pelos cidadãos. Nos capítulos XXIX e
LVIII do livro I dos Discursi, Maquiavel
ações possam estar ou parecer con-
traditórias com a ideologia difundida
senão mudar um sustenta que o povo é menos ingrato,
mais sábio e constante que o príncipe.
na época, a religião. Para Gramsci, o
maquiavelismo melhorou a técnica
estado de coisas” Drama político
política tradicional dos grupos diri- Nos três livros, Maquiavel refere
gentes conservadores, mas também se pergunta também que lugar ocu- que O Príncipe deve possuir armas
a política da filosofia da práxis, o que pa ou deve ocupar a ciência política, próprias, sendo sua principal ocupa-
dá um caráter essencialmente revolu- a política como ciência autônoma, ção, durante a paz, se preparar na
cionário ao florentino. em uma concepção sistemática, coe- arte da guerra, na organização e dis-
rente e consequente do mundo, em ciplina dos exércitos, constituindo a
Superação da sociedade uma filosofia da práxis, em uma con- verdadeira ciência do governante. A
capitalista cepção do mundo. Como conclusão preocupação de Maquiavel não era
Em outra parte dos Cadernos, é geral do trabalho, consideramos que só entender lucidamente o drama po-
importante a crítica que Gramsci rea- as análises das reconceitualizações lítico e de civilização que se desenvol-
liza sobre a teoria dos partidos políti- gramscianas de Maquiavel fornecem via ante seus olhos, senão mudar um
cos elaborada pelo discípulo de Max elementos para uma filosofia da prá- estado de coisas. Era um político, um
Weber6, Robert Michels7, autor da xis contra-hegemônica que permite homem de ação que exorta à ação,
“lei de ferro das oligarquias”. Gramsci superar a sociedade capitalista. segundo Antonio Gramsci. Fiel a este
talante, mais de uma vez Maquiavel
6 Max Weber (1864-1920): sociólogo IHU On-Line - Tomando O Prín- pega a justeza da observação de seu
alemão, considerado um dos fundado-
cipe em consideração, alguns estu- admirado Dante ao falar que “em
res da Sociologia. Ética protestante e
o espírito do capitalismo (Rio de Janei- diosos apontam Maquiavel como política não se age para saber, senão
ro: Companhia das Letras, 2004) é uma absolutista. A partir dos Discursos que se sabe para agir”. Qualquer in-
das suas mais conhecidas e importantes
sobre a primeira década de Tito Lí- terpretação monoexplicativa da obra
obras. Cem anos depois, a IHU On-Line
dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17- vio, o florentino é tido como republi- de Maquiavel, no meu entendimen-
05-2004, intitulada Max Weber. A ética canista. Como percebe essas concei- to, expressa uma incompreensão da
protestante e o espírito do capitalismo
tualizações e o que elas expressam obra maquiaveliana.
100 anos depois, disponível para down- www.ihu.unisinos.br
load em http://bit.ly/13MmaZt. De sobre a (in)compreensão da obra
Max Weber o IHU publicou o Cadernos maquiaveliana? IHU On-Line - Rousseau afirmou
IHU em Formação nº 3, 2005, chamado
Gonzalo Rojas - Temos três que, fingindo dar lições aos reis, Ma-
Max Weber – o espírito do capitalismo.
Em 10-11-2005, o professor Antônio obras fundamentais do florentino quiavel deu lições ao povo. Qual é o
Flávio Pierucci ministrou a conferência — Os discursos sobre a década de fundamento dessa ideia?
de encerramento do I Ciclo de Estudos
Tito Lívio, O Príncipe (1513) e A arte Gonzalo Rojas - Em geral eu
Repensando os Clássicos da Economia,
promovido pelo IHU, intitulada Relações da guerra — nas quais encontramos agrupo em quatro, mas poderiam
e implicações da ética protestante para suas preocupações centrais. Consi- ser mais, as interpretações sobre
o capitalismo. (Nota da IHU On-Line)
deramos obras complementárias, de Maquiavel.
7 Robert Michels (1876-1936): sociólogo
alemão, autor de Para uma sociologia jeito nenhum excludentes. Através de 1) Benedetto Croce, interpreta-
dos partidos políticos na democracia Tito Lívio, Maquiavel pôde expressar ção conhecida como historicista: Ma-
moderna. (Lisboa: Antígona, 2001). For-
suas ideias sobre a política, a repúbli- quiavel foi um puro teórico, objetivo e
mulou a teoria da destinação oligárquica
dos partidos, conhecida como “lei de ca e o conflito. Deve-se destacar que neutro, que fez a ciência política sem
bronze”. Juntamente com Gaetano Mo- o conflito entre a plebe e a nobreza, a paixão, falou das coisas como elas são
sca e Vilfredo Pareto, é um dos formula-
plebe e o Senado, foi causa de gran- (realista) e essas coisas podem servir
dores da teoria das elites. (Nota da IHU
On-Line). deza e liberdade para Roma, e não a qualquer um.

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 45


2) Maquiavel como maquiavéli-
“A principal para desmascará-los. Poderíamos pôr
Tema de Capa
co, denunciado como o cínico imoral Gramsci, até certo ponto, neste bloco
da política, lido e aceito pelos ho-
mens políticos do absolutismo como preocupação também por algumas das problemati-
zações apresentadas acima.
Frederico II8 de Prússia. Os maquiave-
listas, os elitistas (W. Pareto9, G. Mos- de Maquiavel 4) Hegel15, que nos seus escritos
políticos, na parte sobre a constitui-
ca10 e R. Michels) e os gerencialistas ção alemã, coloca que a Itália não
(Benham11) absorvem um aspecto de é atingir um tem Estado como a Alemanha, mas
Maquiavel, a ideia de que o povo nos teve um teórico para pensar sua au-
principados é passivo, e tiram uma objetivo político, sência e defende a ideia de Maquiavel
conclusão geral: então, só é capaz de de utilizar o cinismo contra o cinismo.
agir na política uma minoria ativa. É como lograr a A interpretação democrática,
uma interpretação elitista de Maquia- a que agrupamos como terceira, é
vel. Federico Chabod12, um dos prin- unidade nacional a rousseauniana, e tem como fun-
damento, entre outras coisas, de
8 Frederico II (1712-1786) - Primeiro Rei italiana dispersa forma simplificada, que na verdade
os monarcas governaram durante
da Prússia. Ficou conhecido pelos cogno-
mes de “o Grande” e “o Único”. É consi-
derado um déspota esclarecido (Nota da em múltiplos séculos do mesmo jeito e não preci-
sariam que alguém explicasse o que
IHU On-line).
9 Vilfredo Pareto ou Wilfried Fritz Pare-
to (1848-1923): Cientista político, soció-
principados” deveriam realizar para conquistar e
manter principados. Maquiavel esta-
logo e economista italiano. Foi o criador
da Lei da eficiência de Pareto, onde des-
ria escrevendo ao povo para advertir
creve o conceito de “ótimo de Pareto”. cipais estudiosos da obra de Maquia- sobre as maldades dos tiranos. De-
Segundo o proposto pelo autor, uma si-
vel, afirma que este “abriu o caminho vemos lembrar que, para Rousseau,
tuação econômica será ótima quando for
impossível melhorar a situação de um para os excessos do absolutismo”. o conceito de povo é diferente do
agente, sem com isso degradar a situa- 3) Interpretação “democrática” que conhecemos hoje, já que este
ção de outro. Foi um dos criadores da
de Maquiavel opondo os Discursi ao se diferencia da canalha. Mas esse é
teoria das elites, juntamente com Ga-
etano Mosca e Robert Michels (Nota da Príncipe [1513], Spinoza, Rousseau e o argumento central desta hipótese
IHU On-line). toda a tradição do Risorgimento — De rousseauniana.
10 Gaetano Mosca (1858-19410): jurista,
cientista político, historiador e político Sanctis13, Mazzini14, para os quais Ma-
15 Friedrich Hegel (1770-1831): filóso-
italiano. Foi um dos criadores da teo- quiavel foi um republicano que disse fo alemão idealista. Como Aristóteles e
ria das elites, juntamente com Vilfredo ao povo a verdade sobre os tiranos, Santo Tomás de Aquino, tentou desen-
Pareto. Esta teoria, também conhecida volver um sistema filosófico no qual es-
como Elitismo ou Teoria do Poder, funda- tivessem integradas todas as contribui-
menta-se na ideia do favorecimento das ções de seus principais predecessores.
minorias e na centralização oligárquica obra de Nicolau Maquiavel (Nota da IHU Sua primeira obra, A fenomenologia do
do poder político (Nota da IHU On-line). On-line). espírito, tornou-se a favorita dos hege-
11 Jeremy Bentham (1748-1832). Filó- 13 Francesco de Sanctis (1817-1883): lianos da Europa continental no século
sofo, jurista e reformador social britâ- Crítico literário especialista em Dante, XX. Sobre Hegel, confira a edição nº 217
nico. É reconhecido como o fundador ensaísta e político italiano. Dono de da IHU On-Line, de 30-04-2007, intitula-
do utilitarismo moderno, que prega o ideias e propostas liberais, foi persegui- da Fenomenologia do espírito, de Georg
desenvolvimento de ações com a má- do e preso após participação na Insurrei- Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007),
xima eficiência para o bem-estar social ção Napolitana. Foi professor de vários em comemoração aos 200 anos de lan-
e a felicidade. Foi também o primeiro pensadores de renome, entre eles Bene- çamento dessa obra. O material está
a utilizar o termo deontologia, para se detto Croce (Nota da IHU On-line). disponível em http://bit.ly/1eEonKO.
referir ao conjunto de princípios éticos a 14 Giuseppe Mazzini (1805-1872): Sobre Hegel, leia, ainda, a edição 261 da
serem aplicados às atividades profissio- político e revolucionário italiano. IHU On-Line, de 09-06-2008, Carlos Ro-
nais (Nota da IHU On-line). Participou ativamente do Risorgimiento, berto Velho Cirne-Lima. Um novo modo
12 Federico Chabod (1901-1960): His- movimento que buscava a unificação dos
www.ihu.unisinos.br

de ler Hegel, disponível em http://bit.


toriador e político italiano. Desenvolveu estados italianos em uma nação (Nota da ly/1g0xNhE. (Nota da IHU On-Line)
sua tese na Universidade de Turin sobre a IHU On-line).

LEIA OS CADERNOS TEOLOGIA PÚBLICA


NO SITE DO IHU
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46 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427
O Príncipe e a falta de uma

Tema de Capa
utopia política
Na obra fundamental de Maquiavel não há um modelo, projeto ou filosofia política
que oriente a política com vistas a uma sociedade melhor, acentua Bernardo Alfredo
Mayta Sakamoto

Por Márcia Junges

“O
legado de Maquiavel é uma polí- atualmente as democracias representativas
tica realista. Daí a origem do ter- correm o perigo de ter seu poder centralizado
mo realpolitik e da máxima ‘o fim “de consolidar privilégios e excluir setores da
justifica os meios’”, destaca Bernardo Alfredo sociedade”, isso porque esse sistema político
Mayta Sakamoto na entrevista que concedeu, “é uma forma de governo que depende de
por e-mail, à IHU On-Line. “Percebemos que, nós. É um invento social”.
em Maquiavel, a justiça nos principados favo- Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto é gra-
rece os príncipes. A justiça é dos mais fortes, duado e especialista em Filosofia pela Uni-
não existe a virtude de justiça. Em Hume, a versidade Nacional Mayor de San Marcos, no
justiça permeia a sociedade, é a virtude arti- Peru. É mestre em Filosofia Política pela Uni-
ficial que une a sociedade e que estabelece versidade Estadual de Campinas — Unicamp,
ordem e segurança duradoura”. De acordo onde cursou doutorado em Ciência Política
com Sakamoto, falta uma utopia em O Prín- com a tese Da ordem astronômica à ordem
cipe. “A obra encontra-se imersa na época, social: o indivíduo e a gravitação como fun-
na sua determinação histórica. Mostra-se damentos do mercado (Cascavel: Edunioeste,
explicitamente a natureza ‘besta-homem’ do 2010). Leciona na Universidade Estadual do
príncipe: aparentar, mentir, trair, matar, pos- Oeste do Paraná — Unioeste e é autor, entre
suir virtù para dominar a fortuna, aprender outros, de Filosofia Política (São Luís: Uema-
pela história fatos dos tiranos para conquistar net, 2012).
ou manter o poder”. Em seu ponto de vista, Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o maior le- de ética, sem princípios morais, pro- compõem a sociedade: o príncipe,
gado político de Maquiavel? põe-se um projeto social sem utopia. a aristocracia e o povo. Maquiavel
Bernardo Alfredo Mayta Saka- Por quê? Porque a natureza humana apresenta as boas leis como a expres-
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moto - Suas obras, principalmente O está inserida em uma história circular, são das partes constitutivas de uma
Príncipe e os Discorsi. Em O Príncipe, a finita. O ser humano é assim, não vai república. É uma política totalmente
política apresenta-se como a relação melhorar. No caráter do bom gover- inclusiva.
de poder determinada pelo critério nante, os valores de ser e aparentar
do governante. É uma política orien- são equivalentes. IHU On-Line - Qual é a relevân-
tada para a obtenção e conservação Nos Discorsi (Comentários so- cia e atualidade de O Príncipe cinco
do poder. O legado de Maquiavel é bre a primeira década de Tito Livio), séculos após sua escrita?
uma política realista. Daí a origem do Maquiavel concebe as melhores leis Bernardo Alfredo Mayta Saka-
termo realpolitik e da máxima “o fim — as que determinam a liberdade e moto - O leitor atual de O Príncipe
justifica os meios”, que os tradutores a estabilidade política — decretadas rejeita seu conteúdo, pois descreve
anotaram e Maurice Joly divulgou no em uma república com “forma mista as práticas do governo absolutista, do
Diálogo no Inferno entre Maquiavel de governo”, isto é, as boas leis são poder de um indivíduo. Lembremos
e Montesquieu no século XIX. Em O aquelas formuladas na república que que esta obra foi originalmente um
Príncipe a prática da política é privada não exclui nenhum dos setores que manual para o governo de Lorenzo

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 47


de Medici. Então, por mais virtù que porque consideravam o florentino gam a liberdade política dos cidadãos.
Tema de Capa
possua o governante sobre a fortuna, a “um partidário constante da liberda- Consideramos ainda que, para Rous-
compreensão da época turbulenta da de política”, como diz Spinoza. Este e seau, a “vontade geral” pode errar
qual viveu Maquiavel, das imperiosas Rousseau acreditavam que O Príncipe quando proliferam as associações ou
“razões de estado”, tais critérios não era um livro para o povo, destinado partidos na sociedade.
justificam a aprovação centralizadora a advertir a gestão dos monarcas, Gramsci, em Maquiavel, A Polí-
da forma monárquica. A literatura de com a intenção de que o povo opri- tica e o Estado Moderno, reafirma a
ciência e ficção apresenta fracassos mido conheça a astúcia e a violência orientação de O Príncipe, a obtenção
destes governos (ainda que concebidos dos príncipes. É conhecida a frase de e conservação do poder, na idade con-
com as melhores intenções para com Rousseau sobre esta obra de Maquia- temporânea. Em sua concepção mar-
o povo), como em Metrópolis, 1984, vel: “fingindo dar lições aos reis, deu- xista, Gramsci une Marx e Maquiavel.
A Revolução dos Bichos, etc. Mas, por -as, grandes, aos povos”. Para estes O partido comunista teria um guia
que rejeitamos o conteúdo de O Prínci- dois filósofos, O Príncipe era um ma- ou manual para atingir o socialismo.
pe? Porque vivenciamos a democracia, nual para o povo, e não para os mo- O “príncipe-partido” tem aliados su-
o governo de todos; nesta, a transpa- narcas. Maquiavel era o libertador do balternos na sociedade capitalista: os
rência dos atores políticos e dos gastos povo, o libertador da consciência dos trabalhadores, a intelectualidade or-
públicos são as demandas imperantes oprimidos. Gramsci, pensador marxis- gânica e outros setores que concebem
para o desenvolvimento social. ta, concebeu as ações expostas em O a destruição inevitável do capitalismo.
Príncipe como as tarefas contemporâ-
IHU On-Line - Quais foram os neas do partido comunista na era de IHU On-Line - A partir da justiça,
principais pensadores influenciados desmoronamento do capitalismo. O virtude principal para David Hume4,
pelas ideias do florentino e em que “príncipe-partido” outorgaria estabili- que nexos e distanciamentos podem
aspectos o legado maquiaveliano dade a esta época conturbada. ser estabelecidos com a compreen-
lhes foi decisivo? são de justiça no pensamento de
Bernardo Alfredo Mayta Saka- “Príncipe partido” Maquiavel?
moto - Os principais pensadores in- Spinoza elogiou reiteradas vezes Bernardo Alfredo Mayta Saka-
fluenciados pelas ideias de Maquiavel o autor de O Príncipe. No seu Tratado moto - Na Antiguidade, a justiça é re-
foram Spinoza1, Rousseau2 e Gramsci3, Político expõe que a natureza humana presentada por uma divindade cega
é homogênea: “todos os indivíduos, com uma balança. Ela representa a im-
incluindo os príncipes, estão submeti- parcialidade, o desinteresse, a hones-
1 Baruch de Spinoza (1632 – 1677): filó-
sofo holandês. Sua filosofia é considerada dos a emoções”. Ao estudar as formas tidade, que outorga a cada qual o que
uma resposta ao dualismo da filosofia de do Estado monárquico, aristocrático
Descartes. Foi considerado um dos gran-
lhe corresponde. Para Aristóteles, “a
des racionalistas do século XVII dentro e democrático, prefere a liberdade justiça é a virtude”, enfatizando que é
da Filosofia Moderna, e o fundador do política da democracia, pois todos a principal entre todas as virtudes. Em
criticismo bíblico moderno. Confira a
edição 398 da revista IHU On-Line, de são governados pelas leis, e não pelo O Príncipe, de Maquiavel, no qual se
06-08-2012, intitulada Baruch Spinoza. domínio de algum ou alguns dos ho- exclui a ética (valores que sempre são
Um convite à alegria do pensamento, dis-
ponível em http://bit.ly/ITqFx. (Nota da
mens. Ressalto “homens” porque, transcendentais), a justiça se apresen-
IHU On-Line) para Spinoza, as mulheres, os servido- ta como o poder do mais forte, do prín-
2 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): res, as crianças e os pupilos estão sob
filósofo franco-suíço, escritor, teórico po- cipe, isto é, exibe-se uma justiça transi-
lítico e compositor musical autodidata. a autoridade dos maridos, amos, pais tória, provisória. Este critério de justiça
Uma das figuras marcantes do Iluminismo e tutores.
francês, Rousseau é também um precur-
é exposto em Trasímaco5, personagem
Em Rousseau, o legado de liber-
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sor do romantismo. As ideias iluministas


de Rousseau, Montesquieu e Diderot, que dade de Maquiavel é exposto em O
defendiam a igualdade de todos perante 4 David Hume (1711-1776): filósofo e
a lei, a tolerância religiosa e a livre ex- Contrato Social: criar um governo de historiador escocês, que com Adam Smith
pressão do pensamento, influenciaram a iguais, através do contrato, no qual se e Thomas Reid, é uma das figuras mais
Revolução Francesa. Contra a sociedade importantes do chamado Iluminismo es-
de ordens e de privilégios do Antigo Regi-
expresse a “vontade geral”, o liame cocês. É visto, por vezes, como o terceiro
me, os iluministas sugeriam um governo social, que decretará leis que outor- e o mais radical dos chamados empiristas
monárquico ou republicano, constitucio- britânicos. A filosofia de Hume é famosa
nal e parlamentar. Sobre esse pensador pelo seu profundo ceticismo. Entre suas
confira a edição 415 da revista IHU On- 1937, dias antes de falecer. Nos seus Ca- obras, merece destaque o Tratado da
-Line, de 22-04-2013, intitulada Somos dernos do cárcere, substituiu o conceito natureza humana. Sobre ele, leia a IHU
condenados a viver em sociedade? As da ditadura do proletariado pela “hege- On-Line número 369, de 15-08-2011, inti-
contribuições de Rousseau à modernida- monia” do proletariado, dando ênfase tulada David Hume e os limites da razão,
de política e disponível em http://bit.ly/ à direção intelectual e moral em detri- disponível para download em http://bit.
YGU1gM. (Nota da IHU On-Line) mento do domínio do Estado. Sobre esse ly/pFBA94 (Nota da IHU On-Line)
3 Antonio Gramsci (1891-1937): escritor pensador, confira a edição 231 da IHU On- 5 Trasímaco: personagem do diálogo pla-
e político italiano. Com Togliatti, criou o -Line, de 13-08-2007, intitulada Gramsci, tônico A República, principal interlocutor
jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Secretá- 70 anos depois, disponível para download de Sócrates no primeiro livro desta obra.
rio do Partido Comunista Italiano (1924), em http://migre.me/65usZ. (Nota da É responsável pela apresentação da defi-
foi preso em 1926 e só foi libertado em IHU On-Line) nição de que a justiça não é nada mais do

48 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


de A República, de Platão, que diz que
“Em O Príncipe encontrou em A República, de Platão,

Tema de Capa
“em toda parte só existe um princípio as origens do totalitarismo, uma so-
de justiça: o interesse do mais forte”.
Para Hume, a justiça é a virtude
falta utopia. A ciedade excludente que privilegia um
reduzido grupo social que segura o
que ordena as sociedades. Para este
filósofo empirista escocês, interessa-
obra encontra- poder. A educação para alguns privi-
legiados é fundamental para manter
do no conhecimento do ser humano
(sua obra principal é O Tratado da
se imersa na a ordem hierárquica.

A falta de uma utopia


Natureza Humana), a virtude é arti-
ficial, pois surge na convivência so-
época, na sua Ainda assim, considerando Pla-
cial e não se encontra no indivíduo. determinação tão como originador do totalitaris-
mo, ele tem um projeto político, um
Analogamente ao artifício da criação
e do desenvolvimento das regras de histórica. Mostra- ideal de pólis orientado pelo bem.
Por exemplo, propõe o comunismo
gramática de cada língua (que surgem
primeiramente para comunicar-se até se explicitamente radical na classe dos guerreiros, uma
dissolução da família — “todos são
atingir as regras da correta comunica-
ção escrita e falada), a justiça surge a natureza de todas, e todas de todos”, “os filhos
na família como “regras particula- chamarão a cada guerreiro de pai e
res” até desenvolver-se, no processo “besta-homem” a toda guerreira de mãe” —, porque
de formação das sociedades, como nesta classe militar Platão concebe
regras de justiça (leis expostas nas do príncipe: eliminar os pronomes possessivos
“meu” e “teu”.
constituições, códigos, estatutos,
etc.). Para Hume, quando a autorida- aparentar, mentir, Em O Príncipe falta utopia. A
obra encontra-se imersa na época, na
de familiar é insuficiente para manter
a ordem social, o poder destas regras trair, matar (...)”. sua determinação histórica. Mostra-
tem que ampliar-se para preservar -se explicitamente a natureza “besta-
não só uma família, senão as famílias -homem” do príncipe: aparentar,
que constituam uma determinada so- justiça. Em Hume, a justiça permeia mentir, trair, matar, possuir virtù para
ciedade. A sociedade está unida pelos a sociedade, é a virtude artificial que dominar a fortuna, aprender pela
laços da justiça, por isso, esta virtude une a sociedade e que estabelece or- história fatos dos tiranos para con-
deve ser estabelecida pela educação dem e segurança duradoura. quistar ou manter o poder. Thomas
e pelas convenções humanas. More7, contemporâneo de Maquia-
IHU On-Line - Ao localizar em vel, descreve em Utopia uma socieda-
Invenção da justiça Platão as origens do totalitarismo, de ideal fundamentada em leis justas
A invenção da justiça, segundo percebe em Maquiavel as raízes da e em instituições político-econômicas
Hume, estabelece ordem e seguran- dissociação entre política e ética comprometidas com o bem-estar da
ça para os indivíduos que procuram ou tratou-se, tão somente, da cons- coletividade. Um dos aportes da Uto-
viver em paz e em felicidade preser- tatação realista do que ele perce- pia de More para a sociedade atual é
vando suas propriedades. Também, bia no meio político no qual estava a imposição das oito horas de traba-
a justiça permite a rebelião ou sub- inserido? lho, pois nessa sociedade imaginária
versão perante os tiranos: “podemos Bernardo Alfredo Mayta Saka- os homens fazem três atividades ao
nos opor aos mais violentos efeitos dia: trabalhar, dormir e lazer. Per-
www.ihu.unisinos.br
moto - Platão é um centralista do po-
do poder supremo sem ser, por isso, der político. Ele propõe o rei-filósofo cebemos com More que a utopia se
culpados de crime ou injustiça”. como o governante, aquele que sabe. converte em realidade, é um aporte
Assim, percebemos que, em Ma- Ele percebe que a natureza origina para melhorar o mundo, ordenar as
quiavel, a justiça nos principados fa- seres humanos distintos, uns poucos três principais atividades humanas
vorece aos príncipes. A justiça é dos para governar e muitos para obede-
mais fortes, não existe a virtude de cer. Sua tripartição das almas esta- pensamento, uma teoria só será científi-
belece a hierarquia social. Popper6 ca se puder ser falseada, isto é, colocada
que a “conveniência do mais forte”, “fa- à prova diante da experiência. (Nota da
zer o que é do interesse do mais forte”. IHU On-Line).
Assevera que a lei criada pelo arbítrio do 6 Karl Popper (1902-1994): filósofo 7 Sir Thomas More, ou Thomas Morus
governante tem a qualidade de lei justa, austríaco-britânico. Destacou-se como (1478—1535): advogado, escritor, políti-
ao contrário do que defendia Sócrates, filósofo social e político e defensor da co e humanista inglês. Foi executado por
que afirmava que a ruína da cidade se democracia liberal. É conhecido como o ordem do rei Henrique VIII e posterior-
define pela sujeição da lei ao governante criador do conceito de Falseabilidade, mente canonizado pela Igreja Católica
e sua salvação pelo império da lei sobre que a coloca como uma característica com o nome de São Thomas Morus. Sua
os governantes “que fazem a si mesmos fundamental para a demarcação cientí- obra mais famosa é Utopia, de 1516.
escravos da lei”. (Nota da IHU On-Line) fica de uma teoria. De acordo com este (Nota da IHU On-Line).

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 49


pelas horas do dia. Em O Príncipe, de
“Hoje, com as para a república. Nos Discorsi, Ma-
Tema de Capa
Maquiavel, não há utopia, não há um quiavel é um defensor da liberdade
modelo, um projeto, não há uma filo-
sofia política propriamente dita para
democracias política porque procura estabelecer
uma república estável. Sabendo que
orientar a política e fazer uma socie-
dade melhor.
representativas, a lei determina a liberdade política, e
procurando as melhores leis, o floren-

IHU On-Line - Nesse sentido,


existe o perigo tino propõe a república de “governo
misto”, na qual todos os setores ou
como podemos compreender a linha
política realista na qual se inscrevem
de centralizar- classes sociais decretam leis. A lei
formulada pelas partes de toda a Re-
Maquiavel, Spinoza e Montesquieu?
Qual é a sua pertinência para pen-
se o poder, pública terá maior legitimidade que
aquelas leis estabelecidas por algum
sarmos o fenômeno político em tem- de consolidar dos setores ou de determinada classe
pos de desencanto com a democra- social. A relação explícita entre lei e
cia representativa? privilégios e liberdade política encontra-se em O
Bernardo Alfredo Mayta Saka- Espírito das Leis, do barão de Mon-
moto - A formulação das melhores excluir setores tesquieu: “Num Estado, isto é, numa
leis, que possuam a legitimação de
toda a sociedade, é o interesse do da sociedade. sociedade em que há leis, a liberdade
não pode consistir senão em poder
Maquiavel dos Discorsi, do Tratado
Político, de Spinoza e do Espírito das Por quê? Porque fazer o que se deve querer e em não
ser constrangido a fazer o que não se
leis, de Montesquieu. Nos Discorsi, as
melhores leis originam-se na repúbli- a democracia é deve desejar”, em que o barão deter-
mina que a lei consolida a liberdade
ca de governo misto, participa toda
a sociedade, equilibrando-se os três uma forma de política.

poderes: rei, nobreza e povo. Assim,


evita-se o centralismo do poder.
governo que IHU On-Line - Gostaria de
acrescentar algum aspecto não
Spinoza, descrevendo uma natu-
reza comum entre os homens, com-
depende de nós”. questionado?
Bernardo Alfredo Mayta Saka-
postos de paixões e razão, concebe
moto - A filosofia política se distingue
a forma democrática como melhor
da ciência política e da política por ser
governo que o monárquico e o aristo- Hoje, com as democracias represen- análise dos conceitos políticos, da re-
crático. A democracia representa me- tativas, existe o perigo de centralizar- flexão sobre a legitimação do poder
lhor a sociedade dos seres humanos, -se o poder, de consolidar privilégios e a procura de normatividade valo-
e as leis democráticas outorgam liber- e excluir setores da sociedade. Por rativa da justiça na política. A ciência
dade política a todos os membros da quê? Porque a democracia é uma for- política é a ciência que estuda o fe-
sociedade.
ma de governo que depende de nós. nômeno político com as metodolo-
Democracia, um invento social Ela é um invento social. Talvez o desâ- gias de pesquisa próprias das ciências
Montesquieu, para evitar a cen- nimo surja pelo “medo à liberdade” empíricas ou naturais, como a Física
tralização do poder, concebe uma so- (Fromm). Parece mais fácil “a servi- e a Biologia. A política é a gestão, a
ciedade na qual existam três poderes dão voluntária” (“cada povo merece ciência de governar.
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equitativos: legislativo, judicial e exe- seus governantes”, La Boétie) que os Por estes critérios conceituais, O
cutivo, determinando funções e inde- deveres do cidadão na democracia Príncipe, de Maquiavel, é mais orien-
pendência entre eles. As leis dos po- representativa. Uma forma de evitar tado para o que hoje denominamos
vos são determinadas pela geografia, a centralização de poder nas demo- ciência política ou política. Por quê?
clima, etnia, costumes, crenças, espí- cracias é exigir dos representantes Considero que Maquiavel trabalhava
ritos, etc.; as melhores leis serão as a transparência de sua gestão e dos como conselheiro de principados, era
decretadas nas repúblicas com tripar- gastos públicos e a promoção da in- assessor de príncipes, esse era seu
tição de poder, pois outorgam liber- clusão social. ganha-pão. Os Discorsi são obra de
dade política a toda sua população. um filósofo político. Maquiavel pro-
Estes três pensadores tentavam IHU On-Line - Em que sentido põe uma república mista que é está-
evitar a concentração de poder em Maquiavel é um defensor da liberda- vel e justa porque equilibra as paixões
um setor ou classe social que compõe de política? dos indivíduos — expressados nos
a sociedade, por isso suas propos- Bernardo Alfredo Mayta Saka- interesses dos grupos —, através da
tas por equilibrar ou dividir o poder. moto - Ao procurar as melhores leis formulação de leis.

50 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


Maquiavel e as instituições

Tema de Capa
estáveis como objetivo da
ação política
Para Maquiavel, um bom príncipe é aquele que consegue estabelecer “um domínio
capaz de sobreviver-lhe”, adverte Alessandro Pinzani. A preocupação do florentino era
o vivere civile, ou seja, a existência política de uma comunidade, mesmo que fosse
preciso o uso de meios tidos como imorais

Por Márcia Junges

“F
oi um verdadeiro choque cultural, capazes de garantir uma vida livre e gloriosa
também pela linguagem crua e pela à comunidade política regida por elas. Neste
maneira direta na qual Maquiavel sentido, sua atualidade deveria consistir em
expressava seu pensamento. Até hoje certas indicar aos políticos a primazia da dimensão
passagens podem chocar o leitor contempo- institucional sobre a do seu poder pessoal”.
râneo, pouco acostumado ao estilo conciso Alessandro Pinzani nasceu em Florença
e direto dos historiadores romanos que ins- (Itália). Doutorou-se em Filosofia na Univer-
piraram o florentino. O uso de expressões sidade de Tübingen, na Alemanha. De 1997
típicas do italiano falado em Florença, que até 2004, trabalhou como pesquisador e do-
até hoje é bastante direto e cortante, contri- cente em Tübingen, onde, em 2004, obteve
bui para dar a impressão de um realismo que a habilitação e a livre-docência em Filosofia.
beira o cinismo. Mas é uma falsa impressão: Em 2001-2002, foi Visiting Scholar na Co-
Maquiavel é sempre movido por um profun- lumbia University de Nova Iorque, Estados
do senso da dimensão ética da política e por Unidos. Desde julho de 2004 é professor no
uma grande preocupação pelo vivere civile”. Departamento de Filosofia da Universida-
A ponderação é do filósofo Alessandro Pinza- de Federal de Santa Catarina - UFSC. É autor
ni na entrevista que concedeu, por e-mail, à de Maquiavel e “O Príncipe” (Rio de Janeiro:
IHU On-Line. Segundo ele, “o erro típico de Jorge Zahar, 2004), Diritto, politica e morali-
certa interpretação do pensamento maquia- tà in Kant (Milão: Bruno Mondadori, 2004),
veliano é o de fazer dele um autor maquia- Ghirlande di fiori e catene di ferro. Istituzioni
vélico, interessado somente na conquista do e virtù politiche in Machiavelli, Hobbes, Rous-
poder sem nenhuma consideração de caráter seau e Kant (Firenze: Le Lettere, 2006) e An
ético ou moral, enquanto na realidade a ação den Wurzeln moderner Demokratie. Bürger
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do príncipe (do governante, em geral) deve und Staat in der Neuzeit (Berlim: Akademie
orientar-se por esta preocupação para com a Verlag, 2009), entre outros.
criação e manutenção de instituições políticas Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que aspectos versão manuscrita, difundida quase gens podem chocar o leitor contem-
O Príncipe continua atual 500 anos clandestinamente nas cortes e nos porâneo, pouco acostumado ao estilo
após seu lançamento? palácios dos governos, e depois em conciso e direto dos historiadores ro-
Alessandro Pinzani - O Príncipe versão impressa. Foi um verdadeiro manos que inspiraram o florentino. O
representou um desafio à maneira choque cultural, também pela lin- uso de expressões típicas do italiano
de pensar a política e, sobretudo, guagem crua e pela maneira direta falado em Florença, que até hoje é
a figura do governante já no século na qual Maquiavel expressava seu bastante direto e cortante, contribui
XVI, quando apareceu, primeiro em pensamento. Até hoje certas passa- para dar a impressão de um realismo

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 51


que beira o cinismo. Mas é uma fal- à política? Como o contexto político cruelíssimo tirano Agátocles4 era um
Tema de Capa
sa impressão: Maquiavel é sempre daquela época influenciou na reda- homem dotado de virtù, isto é, do
movido por um profundo senso da ção de O Príncipe? conjunto de qualidades necessárias
dimensão ética da política e por uma Alessandro Pinzani - A obra re- a um governante bem-sucedido (au-
grande preocupação pelo vivere civi- presenta a primeira tentativa de pen- dácia, prudência, dissimulação, capa-
le. O erro típico de certa interpreta- sar a relação entre ética e política de cidade de interpretar corretamente
ção do pensamento maquiaveliano é maneira diferente da tradição anterior. a situação histórica e de aproveitar
o de fazer dele um autor maquiavéli- Exteriormente se apresenta como um a ocasião certa para agir, bem como
co, interessado somente na conquista “espelho dos príncipes”, ou seja, como capacidade de ser friamente cruel
do poder sem nenhuma consideração um dos tantos manuais para gover- para eliminar seus inimigos), Maquia-
de caráter ético ou moral, enquanto nantes que formam um gênero literá- vel diz que não deveria ser tomado
na realidade a ação do príncipe (do rio bastante comum na Idade Média e como exemplo, contrariamente a ou-
governante, em geral) deve orientar- na Renascença; contudo, ele se distan- tros príncipes que também souberam
-se por esta preocupação para com a cia profundamente deles. Em vez de usar da crueldade para alcançar o po-
criação e manutenção de instituições recomendar ao príncipe que siga os di- der, como César Bórgia.
políticas capazes de garantir uma vida tames da doutrina cristã para melhor Embora Maquiavel não o diga
livre e gloriosa à comunidade políti- exercer o poder que Deus lhe confiou explicitamente, a diferença consiste
ca regida por elas. Neste sentido, sua para governar os súditos (como faziam no fato de que Agátocles quis o poder
atualidade deveria consistir em indi- os autores destes manuais, de Tomás pelo poder, enquanto Bórgia tentou
car aos políticos a primazia da dimen- de Aquino1 a Patrizi2 ou Pontani3), Ma- criar um principado novo que unifi-
são institucional sobre a do seu po- quiavel elabora sugestões que têm casse os vários estados italianos. Jus-
der pessoal. Infelizmente não é esta como finalidade a conquista e a manu- tamente a referência a Bórgia mostra
a lição que muitos tiram desta obra, tenção do poder independentemente como Maquiavel escreveu com a in-
como demonstram livros estúpidos de qualquer consideração referente tenção de oferecer indicações con-
com títulos como Maquiavel para à doutrina cristã ou às virtudes que a cretas para a ação daqueles homens
executivos e que fazem dela um sim- tradição atribuía ao bom príncipe. Um políticos do seu tempo que tivessem
ples manual de estratégia para obter bom príncipe é, para ele, aquele que a intenção de constituir um principa-
o poder através da astúcia ou da for- sucede em sua obra de conquista e do novo. Em particular, sua esperan-
ça. Nada mais longe da intenção ori- que consegue estabelecer um domí- ça era que alguém tentasse unificar a
ginária de Maquiavel. nio capaz de sobreviver-lhe. Por isso, Itália, até então dividida em estados
não é verdade que para Maquiavel fracos em luta entre si e, portanto, à
Contínua mudança o fim justifica os meios, como pensa mercê das grandes potências estran-
Outro aspecto negligenciado, certa interpretação vulgar. A ação do geiras: da França, da Espanha e do
mas que merece reflexão, é a ideia príncipe deve ser submetida ao fim Império.
de que nada é eterno neste mundo. superior da criação de uma entidade Perante esta situação, a preo-
Seguindo os antigos, em particular política capaz de durar no tempo, não cupação de Maquiavel é de que a
Platão (que Maquiavel conhecia indi- ao fim meramente individual da con- Itália acabe sendo terra de conquista
retamente), o florentino está conven- quista do poder pelo poder. e dominação para estes sujeitos po-
cido de que na esfera sublunar tudo líticos, cuja força principal consiste
está envolvido em um processo de Interpretação errônea precisamente em ser o que a Itália
contínua mudança e, portanto, está Por esta razão, ao observar, no não conseguiu ainda ser: um Estado
fadado a perecer: não somente os capítulo VIII de O Príncipe, que o territorialmente extenso, governado
indivíduos, mas também os estados e por instituições estáveis. Maquiavel
os impérios. Por mais que Maquiavel percebe a importância da formação
1 São Tomás de Aquino (1225-1274): pa-
se preocupe com a questão da estabi- do Estado nacional moderno, mas
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dre dominicano, teólogo, distinto expo-


lidade das instituições, ele sabe que ente da escolástica, proclamado santo e não consegue identificar todos os
nenhuma instituição durará eterna- cognominado Doctor Communis ou Doc- fatores necessários para a sua forma-
tor Angelicus pela Igreja Católica. Seu
mente. Pelo contrário, nós, moder- maior mérito foi a síntese do cristianis-
ção: pensa que se trata somente de
nos, pensamos que nossos Estados mo com a visão aristotélica do mundo, uma questão militar e política, como
sejam imortais. Nunca pensamos que introduzindo o aristotelismo, sendo re- se a obra de reunificação nacional
descoberto na Idade Média, na escolás-
no futuro o Brasil possa deixar de exis- tica anterior. Em suas duas “Summae”,
operada pelos reis da França ou da
tir, por exemplo, ou que a democra- sistematizou o conhecimento teológico e Espanha fosse reduzível unicamente
cia, assim como a conhecemos, possa filosófico de sua época: são elas a Sum- à conquista de novos territórios ou à
ma Theologiae, a Summa Contra Genti-
ser substituída por outras formas de les. (Nota da IHU On-Line)
governo. Tendemos a pensar que não 2 Francesco Patrizi (1529-1597): Filóso- 4 Agátocles de Siracusa (361 a.C - 289
haja alternativas ao presente. fo humanista e cientista italiano. Era co- a.C): Rei da Sicília e tirano de Siracu-
nhecido por ser defensor do Platonismo sa. Foi citado no tratado O Príncipe, de
e adversário do Aristotelismo (Nota da Maquiavel, e descrito como alguém que
IHU On-Line - Qual é a novida- IHU On-Line). cometou grandes atrocidades no princí-
de dessa obra no que diz respeito ao 3 Ioannes Iovianus Pontanus ou Giovanni pio, mas que ascendeu à glória por suas
Gioviano Pontano ou Ioannis Ioviani Pontani constantes vitórias contra as invasões de
tratamento que dispensou à ética e (1426-1503): Humanista e poeta italiano. Cartago.

52 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


submissão de príncipes e repúblicas política é imoral ou que o homem po- (Esparta, conquistada por Tebas) ou

Tema de Capa
preexistentes. Faltam a Maquiavel lítico deve ser malvado. Como já dis- fracassaram miseramente (Veneza,
as categorias intelectuais (históricas se, a ação política deve ter como fim cuja derrota em Agnadello8 é citada
e sociológicas) para pensar o Esta- a criação de instituições estáveis (na várias vezes nas obras de Maquiavel
do moderno; por isso ele nunca usa medida em que algo pode ser estável como exemplo negativo). Roma, pelo
o termo italiano stato para indicar o neste mundo) e isso pode levar os contrário, soube conquistar um im-
Estado, mas somente para indicar a governantes (os criadores de novos pério e a glória eterna. Além disso,
situação de poder na qual se encon- estados ou os que tentam reformar embora sua vida como república te-
tra um governante. Contudo, a maio- estados existentes) a praticar ações nha sido menor do que a de Esparta
ria dos tradutores (para português que seriam inaceitáveis, se considera- e Veneza, garantiu aos seus cidadãos
ou para outros idiomas) traduz stato das a partir de uma moral pessoal ou uma maior liberdade, chamando-os a
como Estado — o que não somente individualista. Um ato de crueldade é participar não somente de suas em-
constitui um anacronismo, mas pode condenável, do ponto de vista desta preitadas militares, mas também do
levar a interpretar erroneamente o moral, mas pode ser justificado, se governo da cidade. Poderíamos dizer
pensamento de Maquiavel. serve ao fim superior da criação ou que na opinião de Maquiavel é me-
da salvaguarda de instituições políti- lhor para uma república ser uma cha-
IHU On-Line - Em que sentido cas. Neste sentido, embora Maquia- ma forte e brilhante, embora de curta
Maquiavel desvendou a lógica da vel não pense minimamente no con- duração, do que uma vela fraca que
ação política? ceito de razão de Estado (que surgirá se consome lentamente.
Alessandro Pinzani - Em primeiro no fim do século XVI), podemos dizer Ora, é neste sentido que deve-
lugar, Maquiavel pretende identificar que há no seu pensamento a possibi- mos entender a importância superior
algumas regularidades presentes na lidade de desenvolver tal conceito. dos fins políticos sobre os fins morais.
ação dos homens políticos da Anti- O poder pelo poder não constitui, aos
guidade e de seus tempos. Isso não Chama forte e brilhante olhos de Maquiavel, um fim político
significa que haja leis históricas imutá- Botero6 ou Paruta 7(os primeiros que merece ser alcançado a qualquer
veis, embora haja em Maquiavel uma teóricos da razão de Estado) tiraram preço.
filosofia da história, a saber, a visão esta conclusão de sua leitura de Ma-
cíclica inspirada por Políbio5 (que, por quiavel, mas é provável que o florenti- IHU On-Line - Qual é a com-
sua vez, seguia Platão). Porém é ine- no questionasse a ideia de que a esta- preensão desse pensador sobre as
gável que, para Maquiavel, nada de bilidade do Estado deve ser garantida utopias políticas e em que medida
verdadeiramente novo acontece neste a qualquer preço, inclusive sacrifican- essa ideia nos ajuda a compreen-
mundo: os homens permanecem os do a liberdade dos cidadãos. Repito, a der o atual rechaço à democracia
mesmos e, em geral, nada apreendem preocupação principal de Maquiavel representativa?
do passado. Somente alguns indiví- não era com a estabilidade, mas com Alessandro Pinzani - Creio que
duos podem servir-se do estudo da uma forma de vivere civile, de exis- respondi a esta questão anteriormen-
história antiga e recente para trazer li- tência política de uma comunidade, te, quando mencionei a incapacidade
ções relevantes para sua ação. É a eles que merecesse ser realizada inclusive atual de pensarmos em alternativas
que Maquiavel endereça seus escritos. com meios considerados imorais. Por à situação existente. Por mais realis-
Para agir de maneira efetiva no âmbito isso, ele prefere o modelo de Roma ta que Maquiavel possa ser, ele não
político é necessário conhecer a natu- àquele de Esparta ou Veneza. Estas acredita na imutabilidade e inevitabi-
reza humana (imutável) e os exemplos duas repúblicas tiveram vida muito lidade de qualquer forma de governo
dos que tentaram realizar os mesmos mais longa e pacífica do que aquela, ou de qualquer situação de poder.
fins que nos propomos. Por isso, é ne- mas o preço disso foi uma vida obs- Além disso, para ele a única forma de
cessário saber como agiu Agátocles, cura, com instituições estáveis, mas vida política aceitável é a que garante
apesar de ele ser um exemplo que não que sufocavam a iniciativa dos indi- a liberdade política dos cidadãos. Se
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deveria ser seguido. víduos e, sobretudo, impediram que a democracia representativa se reve-
Em segundo lugar, Maquiavel estas cidades alcançassem a glória lar incapaz disso, deveríamos pensar
afirma a independência da política de Roma. Aliás: quando tentaram de- em alternativas. Contudo, não tenho
da moral tradicional, em particular da dicar-se à conquista de um império, certeza de que ela tenha esgotado
moral cristã. Isso não significa que a perderam rapidamente sua liberdade suas potencialidades. Parece-me, an-

5 Políbio (203 a.C. — 120 a.C.): histo- 8 Batalha de Agnadello ou Vailá: Uma
riador da Grécia Antiga. Integrante da 6 Giovanni Botero (1540-1617): ex-jesu- das maiores e mais significantes batalhas
nobreza, dedicou-se à atividade política íta, foi secretário do Cardeal Carlo Bor- da Guerra da Liga de Cambrai. Os france-
em Megalópolis. Defendeu a indepen- romeu em Milão. Foi um dos primeiros ses, comandados por Luiz XII, atacaram e
dência da região de Acaia e se elegeu teóricos das relações internacionais e da derrotaram os venezianos em Agnadello
comandante de cavalaria do exército. demografia. (Nota da IHU On-Line) em maio de 1509. A batalha é menciona-
Na sua obra, constrói uma análise das 7 Paolo Paruta (1540-1598) foi um histo- da do Príncipe, de Maquiavel, que chama
motivações e valores presentes nos fa- riador e estadista veneziano. Estudioso atenção para o fato de que em um dia
tos narrados, pretendendo produzir uma das obras de Maquiavel e Guicciandini, os venezianos “perderam aquilo que a
visão mais ampla do que a mera associa- buscou unificar as novas ideias dos pen- poder de tantos trabalhos haviam con-
ção dos acontecimentos a datas. (Nota sadores italianos com a tradição clássica quistado em oitocentos anos”. (Nota da
da IHU On-Line) ao qual pertence. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 53


tes, que estamos perante uma crise
“Maquiavel afirma máquina suas peças não mudam no
Tema de Capa
de identificação dos cidadãos com as tempo). Contudo, considero proble-
instituições políticas em geral, já que
eles percebem que suas vidas são a independência mático comparar dois pensadores tão
distantes cultural e temporalmente
muito mais atingidas por mecanismos
aparentemente subtraídos ao contro- da política da (os 140 anos que passam entre a pu-
blicação de O Príncipe e a de Leviatã
le da política, como os da economia. são marcados por mudanças cruciais
Sem contar que a corrupção dos re- moral tradicional, para a história do Estado moderno e,
presentantes é sempre expressão da portanto, para a filosofia política).
corrupção dos representados que os em particular da
elegem (particularmente no âmbito IHU On-Line - Maquiavel é
local, onde mecanismos como o voto moral cristã. Isso um autor incompreendido ou mal
de troca, o clientelismo e o nepotismo interpretado?
são mais frequentes). Contudo, duvi- não significa que Alessandro Pinzani - As duas coi-
do que Maquiavel possa ajudar-nos sas. Há toda uma literatura sobre as
a entender os problemas do mundo
contemporâneo: falta-lhe qualquer
a política é imoral interpretações de Maquiavel, que às
vezes são tão interessantes quanto a
atenção para a dimensão econômica
propriamente dita (ele vê na rique-
ou que o homem própria obra do florentino. Podería-
mos dizer que cada época teve seu
za somente mais um instrumento de
poder, sem perceber a existência de
político deve ser Maquiavel e que cada teoria política
teve que tomar posição implícita ou
uma esfera econômica em si) e para a
complexidade social (reduz as tensões
malvado” explicitamente perante seu pensa-
mento, mas muitas vezes as interpre-
sociais que caracterizavam a Florença tações em questão se baseiam sobre
do seu tempo à luta entre grandi e po- mal-entendidos ou erros de leitura ou
polo, entre aristocratas ou ricos, por e organizados com base na ideia de de tradução, como já mencionei. Até
um lado, e povo simples, pelo outro). que existe um soberano que concen- leitores que gostavam dele e tenta-
tra em si todos os poderes. A preo- vam resgatá-lo da imagem diabólica
IHU On-Line - O que o recurso cupação principal de Hobbes não é de certa tradição (o Old Nick dos ingle-
ao raciocínio por dilemas expres- para com a existência de uma forma ses) basearam frequentemente suas
sa sobre o pensamento político de governo que garante o máximo defesas em leituras extremamente
maquiaveliano? de liberdade aos cidadãos, mas para questionáveis: pensem em Rousse-
Alessandro Pinzani - Em suas com a existência de uma forma de au e sua afirmação de que o Príncipe
argumentações Maquiavel segue os governo que garanta o máximo de seria uma obra irônica, que pretende
modos próprios da retórica clássica, paz, segurança e estabilidade. Os dois denunciar a imoralidade dos sobera-
que era uma das matérias principais pensadores passaram por experiên- nos absolutos fingindo recomendar
na educação humanista do seu tem- cias muito diferentes: Maquiavel, pe- ações absolutamente abomináveis
po. Contudo, Maquiavel está sempre las lutas internas das cidades-estados (Rousseau era moralista demais para
consciente de que há na realidade hu- italianas e pelas invasões estrangei- entender deveras Maquiavel). Poder-
mana e política restos não elimináveis ras, Hobbes, pelas lutas religiosas na -se-ia discutir por horas sobre as in-
de irracionalidade, que tornam im- Europa e pela Guerra Civil inglesa. Os terpretações de Maquiavel e nunca
possível enfrentar questões políticas dois compartilham certo realismo, chegaríamos a uma conclusão sobre
servindo-se unicamente da lógica (que particularmente no que diz respeito qual delas seja a mais correta ou, pelo
para ele é a lógica clássica aristotélica) às relações internacionais. O breve menos, a mais razoável. Isso também
ou encontrar leis imutáveis que per- escrito de Maquiavel Parole da dirle faz parte da grandeza e da fascinação
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mitam prever sempre os resultados sopra la provisione del danaio an- deste pensador.
de nossas ações (Fortuna é o principal tecipa em tudo a visão que passará
obstáculo, neste contexto). Podería- à história como visão hobbesiana:
mos dizer que, para Maquiavel, a ideia
de uma técnica do governo no sentido
os estados são sujeitos egoístas que
pensam somente em seus interesses Leia mais...
dos tecnocratas contemporâneos não e não se sentem plenamente vincula-
dos pelos tratados, considerando-se >>Alessandro Pinzani já concedeu
faria sentido nenhum.
justificados em quebrar sua palavra outra entrevista à IHU On-Line.
IHU On-Line - Que aproxima- quando isto for do seu interesse. E os
ções e distanciamentos são perceptí- dois acreditam que a natureza huma- • Os rumos do republicanismo. Entre-
veis entre Maquiavel e Hobbes? na é imutável. Contudo, Maquiavel
vista especial com Alessandro Pin-
Alessandro Pinzani - Diversa- baseia esta crença em sua filosofia
mente de Maquiavel, Hobbes vive cíclica da história, enquanto Hobbes zani. Notícias do Dia 05-12-2006,
em uma época na qual os estados a baseia em uma visão mecanicista
do ser humano (se o homem é uma disponível em http://bit.ly/1ck8qYk
nacionais são plenamente formados

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Baú da IHU On-Line

Tema de Capa
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2013, disponível em http://bit.ly/YGU1gM
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• Henrique Cláudio de Lima Vaz. Um sistema em resposta ao niilismo ético. Edição 374, 26-09-2011, disponível em http://
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• O (des)governo biopolítico da vida humana. Edição 343, de 13-09-2010, disponível em http://migre.me/63S4C
• Escolástica. Uma filosofia em diálogo com a modernidade. Edição 342, de 06-09-2010, disponível em http://migre.me/63S6m
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• O Mal, a vingança, a memória e o perdão. Edição 323, de 29-03-2010, disponível em http://migre.me/63SaD
• Filosofia, mística e espiritualidade. Simone Weil, cem anos. Edição 313, de 03-11-2009, disponível em http://migre.
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• Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. Edição 308, de 14-09-2010, disponível
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• Platão, a totalidade em movimento. Edição 294, de 25-05-2009, disponível em http://migre.me/63SkL
• Levinas e a majestade do Outro. Edição 277, de 14-10-2008, disponível em http://migre.me/63Snu
• Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel. Edição 261, de 09-06-2008, disponível em http://migre.me/63SpD
• A evolução criadora, de Henri Bergson. Sua atualidade cem anos depois. Edição 237, de 24-09-2007, disponível em
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• O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Edição 220, de 21-05-2007, disponível em http://migre.me/63Svl www.ihu.unisinos.br
• Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 1807-2007. Edição 217, de 30-04-2007, disponível em
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• O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt. 1906-1975. Edição 206, de 27-11-2007, disponível em
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• Michel Foucault, 80 anos. Edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://migre.me/63Szo
• O pós-humano. Edição 200, de 16-10-2006, disponível em http://migre.me/63SAh
• A política em tempos de niilismo ético. Edição 197, de 25-09-2006, disponível em http://migre.me/63SBa
• Ser e tempo. A desconstrução da metafísica. Edição 187, de 03-07-2006, disponível em http://migre.me/63SCH
• O século de Heidegger. Edição 185, de 19-06-2006, disponível em http://migre.me/63SDq
• Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XXI. Edição 168, de 12-12-2005, dis-
ponível em http://migre.me/63SEs
• * Nietzsche, filósofo do martelo e do crepúsculo. Edição 127, de 13-12-2004, disponível em http://migre.me/63SJ4
• Kant: razão, liberdade e ética. Edição 94, de 22-03-2004, disponível em http://migre.me/63SKv

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 55


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
www.ihu.unisinos.br

IHU em
Revista
56 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Destaques da Semana
Perfil

A filosofia substantiva de
Franklin Leopoldo e Silva

Franklin Leopoldo e Silva prefere de formação; depois migrou para co- viajando para Minas Gerais e por isso
a filosofia menos como verbo e mais légios maristas, onde completou a for- me considero com essa dupla ‘natura-
como substantivo. “A filosofia não é, mação básica. Em seguida foi para um lidade’”, conta. www.ihu.unisinos.br
para mim, tanto no sentido de filoso- colégio estadual no antigo ginasial,
far, mas no sentido de transmiti-la, de equivalente ao atual ensino médio. Aposentadoria – Ao contrário do
forma clara e coerente, aos alunos”, Por fim, ingressou na Universidade de que se poderia supor, a aposentado-
dispara. Apesar da contundência São Paulo — USP, onde trabalhou até ria do professor Franklin resultou em
da afirmação, quem vê o professor a aposentadoria. mais trabalho que descanso. “Minha
Franklin quase escondido detrás das Franklin nasceu, como ele mes- rotina piorou muito depois que eu me
lentes transparentes de seus óculos, mo diz, por acaso, na capital paulista, aposentei. Acabei aceitando muitos
com seu jeito tranquilo e um tanto mas não por acaso vive desde então convites para dar aula e isso acabou
quanto discreto, não imagina que na na cidade em que veio ao mundo. desorganizando minha vida”, revela.
infância foi um garoto “rebelde”, se- Seus 66 anos de vida foram vividos Atualmente, ministra cursos e aula em
gundo sua própria autodefinição. Sua na mesma cidade, mas se considera três faculdades — São Bento, São Ju-
mãe sempre exigiu que ele estudasse mais mineiro que paulista. “Nasci em das e Centro Universitário São Camilo.
em colégios confessionais, começan- São Paulo, mas como minha família é
do nos salesianos, onde foi “convida- toda do Sul de Minas e minha mãe fi- Sossego – Nas poucas horas que
do a sair”, ainda nos primeiros anos cou viúva jovem, passei muito tempo tem livre, Franklin comenta que gosta

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 57


de viajar e conhecer cidades peque- mente com mais vagar, e agora está meu mestrado. Nessa situação, que
Destaques da Semana
nas. “Eu gostaria de morar em uma procurando outros livros do mesmo ainda era muito difícil, foi contratado
cidade pequena, mas não posso. En- autor. Seu gosto por Henri Bergson6 um grupo de professores e nós divi-
tão sempre que possível vou para um nas pesquisas na área da filosofia se dimos as aulas, sempre com muita
lugar tranquilo”, diz. O professor tenta revela nas escolhas literárias, pois tensão interna — da universidade — e
manter certa regularidade nas idas ao aponta certa predileção por livros que externa, com alunos passando dificul-
cinema, mas confessa que não dedica têm o tempo como eixo central nas dades e sendo perseguidos”, recorda.
muito tempo a atividades de lazer, so- narrativas. “O tempo é, para mim, um Concluiu o mestrado em 1976 e o dou-
bretudo porque São Paulo é um cida- dos temas mais fascinantes da litera- torado em 1981, sempre estudando
de muito difícil de se locomover. tura”, frisa. Bergson, bem como a livre docência,
em 1991, dedicada ao mesmo autor.
Família – Franklin é separado, Futebol – Antes de dizer para
pai de dois filhos e avô. Ele conta que, que clube torce, Franklin se justifica: Filosofia – Franklin conta que
dos filhos, o que mais se aproximou “Dentro do contexto paulista, é meio herdou de sua professora do ginásio
da filosofia estudou sociologia e ini- estranho o clube para o qual eu torço. seu ponto de vista sobre a filosofia.
ciou o mestrado em educação, mas Sou torcedor da Portuguesa de Des- “Ela sempre procurou fazer conexões
abandonou e agora se dedica ao tra- portos e desde que eu era bem garo- entre a filosofia antiga e a filosofia
balho com informática. O outro filho tinho é o mesmo time, é uma coisa de moderna e contemporânea e tinha
é engenheiro. raiz mesmo”. Cresceu sendo, normal- muita habilidade de fazer isso com
mente, a exceção entre os torcedores, pessoas jovens, sem muita leitura”,
Literatura – Apaixonado confes- e se diz fascinado pelo fato de o clube avalia. “Isso permitia que víssemos a
so por literatura, diz que uma das coi- ser “perseguido”, pois quando ganha filosofia não como uma coisa longín-
sas que mais o incomoda na rotina de campeonato a cartolagem do futebol qua, mas como um passado histórico
trabalho é justamente a falta de tem- tira o título, ou seja, é marginalizado. relevante e importante para pensar-
po para ler. “Eu gosto muito de litera- mos a atualidade. É por isso que a
tura, mas não leio tanto quanto gos- Regime Militar – As aulas de fi- filosofia é sempre contemporânea”,
taria. Li durante muito tempo Proust1, losofia no colégio despertaram em completa.
inclusive fiz trabalhos sobre ele, e Franklin o gosto pela filosofia. Em
gosto muito de Virginia Woolf2, Carlos 1967 ingressou na graduação na Dedicação – “Minha dedicação à
Drummond de Andrade3 e Fernando Universidade de São Paulo — USP, filosofia sempre foi ao ensino. Quando
Pessoa4, são meus poetas favoritos. em pleno regime militar. “Em 1968, percebo certas hierarquias entre pes-
Gosto muito de um tipo de literatura agravou-se muito a questão militar quisa e ensino, penso que este deve
mais introspectiva”, conta. Na hora de no Brasil, com a instauração do AI-5, vir acima, pois a pesquisa só tem valor
recomendar um livro, não pestaneja e muitos professores foram cassados. se for voltada ao ensino”, argumenta.
e aponta As horas (São Paulo, Com- Então o curso que eu fiz, do ponto de Franklin admite que tal perspectiva
panhia das Letras, 1999), de Michael vista acadêmico, foi muito truncado, não é tão bem vista hoje em dia, mas
Cunningham5, obra que leu recente- porque o departamento de filosofia assume tal posição e é por isso que
ficou muito esvaziado. Teve muita dis- se intitula professor de filosofia. “Não
1 Valentin Louis Georges Eugène Marcel
ciplina improvisada, falta de professo- tenho nenhuma pretensão de ser fi-
Proust (1871-1922): escritor francês res e, ao mesmo tempo, uma situação lósofo ou qualquer coisa do gênero”,
célebre por sua obra obra À la recherche muito tensa e ameaças constantes”, dispara. Para ele, o papel do professor
du temps perdu (Em Busca do Tempo
Perdido), que foi publicada em sete
lembra. é suscitar nos alunos a capacidade de
volumes entre 1913 e 1927. (Nota da IHU refletir sobre as coisas e foi para isso
On-Line) Primeiras aulas – Formou-se em que diz ter-se dedicado ao longo de
2 Virginia Woolf (1882-1941): escritora
1971 e no ano seguinte começou a le- sua trajetória.
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inglesa. Estreou na literatura em 1915


com o romance The Voyage Out. (Nota da cionar. “Naquela época não precisava
IHU On-Line) de títulos, então comecei trabalhar Heidegger – Apesar de se inte-
3 Carlos Drummond de Andrade (1902-
1987): poeta brasileiro, nascido em Minas
logo em seguida, enquanto fazia o ressar muito por filosofia francesa
Gerais. Além de poesia, produziu livros do final do século XIX, o professor
infantis, contos e crônicas. Confira a conta que um dos principais autores
edição 232 da Revista IHU On-Line, de 20- em 2002 para o cinema. (Nota da IHU On-
08-2007, intitulada Carlos Drummond de Line).
que estudou durante a graduação foi
Andrade: o poeta e escritor que detinha 6 Henri Bergson (1859-1941): filósofo e Martin Heidegger7. “Havia um grupo
o sentimento do mundo, disponível em escritor francês. Conhecido principalmen-
http://migre.me/qR6O. (Nota da IHU te por Matière et mémoire e L’Évolution
On-Line) créatrice, sua obra é de grande atuali- 7 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
4 Fernando Pessoa (1888-1935): escritor dade e tem sido estudada em diferen- alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem-
português, considerado um dos maiores tes disciplinas, como cinema, literatura, po (1927). A problemática heideggeriana
poetas de língua portuguesa. (Nota da neuropsicologia. Sobre esse autor, confira é ampliada em Que é Metafísica? (1929),
IHU On-Line) a edição 237 da IHU On-Line, de 24-09- Cartas sobre o humanismo (1947), Intro-
5 Michael Cunningham (1952): escritor 2007, A evolução criadora, de Henri Ber- dução à metafísica (1953). Sobre Heide-
norte-americano que ficou conhecido gson. Sua atualidade cem anos depois, gger, a IHU On-Line publicou na edição
pelo seu romance As Horas, ganhador do disponível para downoload em http://mi- 139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento
Prêmio Pulitzer para ficção e adaptado gre.me/Jzy0. (Nota da IHU On-Line) jurídico-político de Heidegger e Carl Sch-

58 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


de professores que gostava muito do professores privilegiavam a filosofia tardia, segundo ele mesmo define,

Destaques da Semana
tema, por isso li muito Heidegger na francesa, mas a questão da língua foi mas que gerou marcas significativas
minha graduação e segui lendo até o preponderante, porque eu estudei em seu pensamento, sobretudo na
hoje”, explica. Depois das pesquisas inglês e francês, mas nunca conse- organização de seus cursos. “Durante
realizadas com Bergson, o professor gui ir adiante no alemão, embora te- algum tempo, frequentando a Facul-
passou a estudar Jean-Paul Sartre8 e, nha tentado várias vezes”, esclarece. dade Jesuíta de Filosofia e Teologia –
para melhor compreendê-lo, recorreu Franklin considera que, para um tra- Faje, convivi com o padre Lima Vaz e
a Edmund Husserl9 — fenomenologia balho de pesquisa mais sério, é preci- li toda a sua obra. Depois fui convida-
— e a Heidegger — analítica da exis- so ir aos originais, mas suas leituras de do a fazer um dos capítulos do livro
tência —, que são os geradores do Husserl e Heidegger derivam da rela- dedicado a ele. Tive uma relação pes-
pensamento de Sartre. ção deles com os franceses. soal rápida com ele e mais demorada
com seus textos. Creio que a minha
Filosofia francesa – O interesse Fé e Razão – Coube ao professor formação teria sido diferente se eu
nasceu da necessidade de fazer um dar um curso sobre filosofia medieval
trabalho durante a graduação e foi na USP e, para tanto, dedicou-se a estu- n. 102, jan.-ab. 2005, p. 5-24, publica
quando descobriu Bergson. “Meus dar amplamente a obra de Santo Agos- o artigo Um Depoimento sobre o Padre
tinho, embora não tenha lido toda a li- Vaz, de Paulo Eduardo Arantes, professor
do Departamento de Filosofia da USP,
mitt. A fascinação por noções fundadoras
teratura. Daí surgiu o interesse pelo eixo que merece ser lido e consultado com
do nazismo, disponível para download em principal da filosofia de Agostinho, fé e atenção. Celebrando a memória do
http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger, razão. “Como eu trabalho com filosofia Padre Vaz, a edição 142, de 23-05-2005,
confira as edições 185, de 19-06-2006, in- publicou a editoria Memória, disponível
titulada O século de Heidegger, disponível
medieval nas minhas incursões, even- para download em http://migre.me/
para download em http://migre.me/uNtv, tualmente faço trabalhos relacionados DtoL. Confira, ainda, os seguintes
e 187, de 3-07-2006, intitulada Ser e tem- à teologia, mas não é minha vertente materiais, publicados pela IHU On-Line:
po. A desconstrução da metafísica, que a Entrevista da Semana intitulada Vaz
pode ser acessado em http://migre.me/
principal. Embora trabalhe em faculda- e a filosofia da natureza, com Armando
uNtC. Confira, ainda, o nº 12 do Cader- des confessionais, minha competência Lopes de Oliveira, na edição 187, de
nos IHU Em Formação intitulado Martin é muito pequena nesse ponto de vista, 03-07-06, disponível em http://migre.
Heidegger. A desconstrução da metafísica, me/DtoR; a entrevista Vaz: intérprete
que pode ser acessado em http://migre.
mas acompanho e tenho lido muito. Pa- de uma civilização arreligiosa, com
me/uNtL. Confira, também, a entrevista rece ser uma retomada do problema da Marcelo Fernandes de Aquino, na edição
concedida por Ernildo Stein à edição 328 fé e da razão por meio da crise da mo- 186, de 26-06-06, disponível em http://
da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, migre.me/Dtp2; os Artigos da Semana
disponível em http://migre.me/FC8R, in-
dernidade. Isso é um respiro de certo intitulados O comunitarismo cristão e a
titulada O biologismo radical de Nietzsche dogmatismo laico da filosofia”, justifica. refundação de uma ética transcendental,
não pode ser minimizado, na qual discu- O professor ressalta, entretan- na edição 185, de 19-06-06, disponível
te ideias de sua conferência A crítica de em http://migre.me/Dtpc, e Um diálogo
Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a
to, que as discussões em torno da cristão com o marxismo crítico. A
questão da biopolítica, parte integrante temática da fé e da razão têm sido contribuição de Henrique de Lima Vaz,
do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença mais amplas e que há uma abertura na edição 189, de 31-07-06, disponível
- Pré-evento do XI Simpósio Internacional em http://migre.me/DtpD, ambos de
IHU: O (des)governo biopolítico da vida
maior para tratar do assunto. Isso autoria do Prof. Dr. Juarez Guimarães.
humana. (Nota da IHU On-Line) porque, segundo ele, antigamente Inspirada no pensamento de Lima Vaz,
8 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo os debates sempre implicavam certo a IHU On-Line edição 197, de 25-09-
existencialista francês. Escreveu obras 2006 trouxe como tema de capa A
teóricas, romances, peças teatrais e
compromisso religioso — com o cris- política em tempos de niilismo ético,
contos. Seu primeiro romance foi A tianismo ou o judaísmo, por exem- disponível para download em http://
náusea (1938), e seu principal trabalho plo. “Há uma abertura muito grande, migre.me/DtpM. Nessa edição, confira
filosófico é O ser e o nada (1943). especialmente as entrevistas com
Sartre define o existencialismo em
tenho acompanhado como posso as Juarez Guimarães, intitulada Crise de
seu ensaio O existencialismo é um discussões e penso que seja alguma fundamentos éticos do espaço público, e
humanismo como a doutrina na qual, coisa muito importante, pois dá um a entrevista com Marcelo Perine, Padre
para o homem, “a existência precede a Vaz e o diálogo com a modernidade.
outro horizonte para a reflexão filo-
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essência”. Na Crítica da razão dialética Esse tema, em específico, foi abordado
(1964), Sartre apresenta suas teorias sófica”, avalia. por Perine em uma conferência em 22-
políticas e sociológicas. Aplicou suas 05-2007, no Simpósio Internacional O
teorias psicanalíticas nas biografias futuro da Autonomia. Uma sociedade
Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953).
Lima Vaz – A descoberta de Lima de indivíduos? Na edição 186 da IHU On-
As palavras (1963) é a primeira parte de Vaz10 por Franklin ocorreu de forma Line, de 26-06-2006, o reitor da Unisinos,
sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido Prof. Dr. Marcelo Aquino, SJ, concedeu
para o prêmio Nobel de literatura, que a entrevista Vaz, intérprete de uma
recusou. (Nota da IHU On-Line) 10 Henrique Cláudio de Lima Vaz civilização arreligiosa. Confira no link
9 Edmund Gustav Albrecht Husserl (1921 – 2002): filósofo e padre jesuíta, http://migre.me/DtpU. Leia, também,
(1859-1938): matemático e filósofo autor de importante obra filosófica. A a edição especial da IHU On-Line sobre
alemão, conhecido como o fundador da IHU On-Line número 19, de 27-05-2002, o legado filosófico vaziano: edição 374,
fenomenologia, nascido em uma família disponível em http://migre.me/Dto9, de 26-09-2011, Henrique Cláudio de
judaica numa pequena localidade da dedicou sua matéria de capa à vida e à Lima Vaz. Um sistema em resposta ao
Morávia (região da actual República obra de Lima Vaz, com o título Sábio, niilismo ético, disponível em http://bit.
Checa). Husserl influenciou, entre humanista e cristão. Sobre ele também ly/qE7Dm8. O último Cadernos IHU foi
outros, os alemães Edith Stein, Eugen pode ser consultado na IHU On-Line nº dedicado ao pensador, intitulado Ética
Fink e Martin Heidegger, e os franceses 140, de 09-05-2005, um artigo em que e Intersubjetividade: a filosofia do agir
Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, comenta a obra de Teilhard de Chardin, humano segundo Lima Vaz, a 42ª edição,
Michel Henry e Jacques Derrida. (Nota da disponível em http://migre.me/Dtoo. traz o texto de Antonio Marcos Alves da
IHU On-Line). A revista Síntese. Revista de Filosofia, Silva. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 59


o tivesse encontrado antes. Ele tem anos atrás; nem mesmo dentro da a vida toda. Se o hábito fosse mais
Destaques da Semana
uma virtude de estruturar o pen- USP o modelo francês é hegemônico. frequente entre as pessoas, teríamos
samento e eu utilizo muito isso nas Com o correr do tempo e a mudança muitos problemas evitados”, consi-
aulas, pois, quando se quer dar a en- das gerações e do clima da filosofia, dera. “A convivência é o principal ga-
tender a um aluno a estrutura de um inclusive na França, a forma pela qual nho”, conclui.
pensamento filosófico, antropológi- minha geração foi formada – da his-
co, ético, histórico, o padre Vaz ofe-
rece todas as condições. Isso decor-
tória da filosofia ao modelo estrutural
– mudou muito. Isso se relativizou e Leia mais...
re da sua erudição e capacidade de não tem mais a importância que ti-
sintetizar todos esses pensamentos”, nha”, comenta. Para ele, tal perspec- • A universidade e a formação cidadã.
avalia o professor. “Lima Vaz era um tiva deixou de ser um padrão ideoló- Um divórcio. Entrevista concedida
perfeito historiador da filosofia, mas gico e passou a ser uma possibilidade para IHU On-line em 05-09-2013,
ao mesmo tempo era um filósofo. Era metodológica. disponível em http://bit.ly/1cJsEuE
uma síntese difícil de ser encontrada • A greve de fome de D. Cappio. Seu
— um erudito e um pensador origi- Ensinamento – Para o professor
significado ético e político, hoje.
nal”, define Franklin. Franklin, o grande ensinamento de
Entrevista concedida para IHU On-
sua vida foi o de que a sala de aula é
Modelo francês - O professor um lugar de educação ética e políti- -line em 20-01-2008, disponível em
discorda da ideia de que há uma es- ca. “É um local onde se aprende não http://bit.ly/180c8Fn
pécie de modelo hegemônico de fa- somente a conviver com o outro, no • A banalidade da ética e da política.
zer filosofia e nem mesmo considera sentido exterior, mas chegar ao aluno Revista IHU On-Line, edição 197, de
a USP como expressão do modelo pela capacidade de se colocar no lu- 25-09-2006, disponível em http://
de racionalidade francesa no Brasil. gar dele. Isso é um aprendizado que
bit.ly/1b1TYo1
“Hoje é muito diferente de 10 ou 15 vale para a sala de aula, mas vale para

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60 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


Livro da Semana

Destaques da Semana
DICKINSON, Colby. Agamben and theology
(London: T & T Clark International, 2011)

Agamben e a estreita relação


entre filosofia e teologia
Campos do saber estão imbricados e apontam para a necessidade de diálogo,
frisam Colby Dickinson e Adam Kotsko. Política é “espetáculo religioso mal
disfarçado” e é preciso que Agamben aprofunde o nexo entre Paulo e o
desenvolvimento do pensamento econômico

Por Márcia Junges/Tradução: Luís Marcos Sander

“Todo o projeto da teologia precisa ser Paulo no desenvolvimento do pensamento


repensado a partir de seus fundamentos, e a econômico”.
filosofia — ou a ‘filosofia da teologia’, talvez — Colby Dickinson é professor assistente
desempenha um papel central na redefinição de Teologia na Universidade Loyola, em Chi-
das tarefas teológicas com que nos defronta- cago. Ele é autor de Agamben and Theology
mos atualmente”, assinala Colby Dickinson, (London: T&T Clark, 2011) e Between the Ca-
autor de Agamben and theology (London: non and the Messiah: The Structure of Faith in
T&T Clark International, 2011), na entrevista Contemporary Continental Thought (London:
que concedeu juntamente com Adam Kotsko, Bloomsbury, 2013) e de vários artigos sobre
por e-mail, à IHU On-Line. Kotsko menciona a filosofia e teologia continental contempo-
que, a partir da obra agambeniana, teologia rânea. É editor de The Postmodern ‘Saints’ of
e filosofia estão conectadas e se comunicam France (London: T&T Clark, 2013) e The Sha-
mutuamente. “Ele reconhece a existência de ping of Tradition: Context and Normativity
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uma distinção, mas elas parecem ser duas (Leuven: Peeters, 2013).
maneiras de realizar uma tarefa fundamental- Adam Kotsko é professor assistente de
mente semelhante”, assevera. Ciências Humanas no Shimer College, em
Dickinson acentua que a política funcio- Chicago. Ele é autor de Žižek and Theology,
na hoje “como um espetáculo religioso mal Politics of Redemption: The Social Logic of
disfarçado, completada com suas conclama- Salvation, Awkwardness e Why We Love So-
ções à glória para permear cada gesto seu. ciopaths: A Guide to Late Capitalist Television.
Pode-se observar, em primeiro lugar, quão Ele traduziu várias obras de Giorgio
‘sagrados’ se tornaram certos espaços e pes- Agamben. Escreve no blogue An und für sich
soas políticas ao longo do tempo”. Kotsko, por (itself.wordpress.com).
sua vez, gostaria que Agamben “tivesse dito Confira a entrevista.
mais a respeito de como entende o lugar de

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 61


IHU On-Line - Qual é a peculiari- são paulina do “messiânico” e sua ca- mim — uma das poucas vezes em que
Destaques da Semana
dade do nexo entre filosofia e teolo- pacidade de derrubar qualquer uma ele comentou efetivamente sobre a
gia na obra de Agamben1? de nossas representações através de prática do próprio Jesus. Certamente
Colby Dickinson - De muitas for- uma “divisão da própria divisão” (em essa é uma fonte relevante para pen-
mas, quero responder essa pergunta Il tempo che resta: un commento alla sar sobre o “messiânico”!
dizendo simplesmente que, de acordo Lettera ai Romani. Torino: Bollati Bo-
com a leitura que Agamben faz dessas ringhieri editore, 2000), está sinalizan- IHU On-Line - Quais são os diálo-
disciplinas, no fim das contas há pou- do o cerne “teológico” de nossos mais gos fundamentais que esse pensador
ca diferença entre elas, exceto que a básicos empreendimentos filosófi- estabelece entre esses dois campos
teologia — falando do ponto de vista cos. É por isso que acho que a mais do saber?
histórico — entendeu as coisas errado filosófica obra de Agamben sempre Colby Dickinson - O que parece
bem cedo, e só agora tem uma opor- terá seu equivalente teológico, assim singular em sua obra é que Agam-
tunidade de assumir sua “missão” de como seus escritos sobre teologia ben oferece à teologia uma chance
novo. Quando ele fala da compreen- sempre terão importantes conclusões genuína de vislumbrar seu próprio
filosóficas. funcionamento interior em termos
1 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia- Adam Kotsko - Concordo que de seus movimentos políticos, espe-
no. É professor da Facolta di Design e arti na concepção de Agamben as duas cificamente da maneira como foram
della IUAV (Veneza), onde ensina Estéti-
ca, e do College International de Philoso-
disciplinas estão necessariamente empregados ao longo do tempo. Em O
phie de Paris. Sua produção centra-se nas conectadas ou se comunicam mutua- reino e a glória (São Paulo: Boitempo,
relações entre filosofia, literatura, poe- mente. Ele reconhece a existência de 2011), por exemplo, ele salienta repe-
sia e fundamentalmente, política. Entre
suas principais obras, estão Homo Sacer:
uma distinção, mas elas parecem ser tidamente como o discurso cristão da
o poder soberano e a vida nua I (Belo Ho- duas maneiras de realizar uma tare- trindade está atolado numa economia
rizonte: Ed. UFMG, 2002); A linguagem fa fundamentalmente semelhante. E que é muito deste mundo, repleta de
e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2005); Infância e história: destruição da
penso que uma parte do que o leva a implicações comunitárias e até finan-
experiência e origem da história (Belo ver essa conexão necessária é sua re- ceiras. Ele também faz a mesma coisa
Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de jeição absoluta de tentativas moder- em seus comentários sobre o “corpo
exceção (São Paulo: Boitempo Editorial,
2007); Estâncias – A palavra e o fantasma
nas de estabelecer a “religião” como glorioso”, o corpo pós-Ressurreto que
na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. um âmbito separado, encerrado em si é realmente outra forma de falar de
UFMG, 2007); e Profanações (São Paulo: mesmo — abrindo um caminho para nossos corpos muito terrenos (em
Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-
2007 o site do Instituto Humanitas Uni-
uma forma nova e diferente de con- Nudez). Faz um bom tempo agora
sinos – IHU publicou a entrevista Estado ceber a relação entre teologia e filo- que muitos teólogos e teólogas vêm
de exceção e biopolítica segundo Giorgio sofia fora do paradigma de religioso/ tentando expressar como cada teolo-
Agamben, com o filósofo Jasson da Silva
Martins, disponível para download em
secular. gia realmente fala muito sobre nosso
http://migre.me/uNk1. A edição 236 da Colby Dickinson - E esta é a razão contexto pessoal (p. ex., as teologias
IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a pela qual sua noção de “profanação” feminista, negra, hispânica, etc.). O
entrevista Agamben e Heidegger: o âm-
bito originário de uma nova experiência,
é tão intrigante para mim, embora que Agamben parece estar dizendo
ética, política e direito, com o filósofo talvez seja muito desconcertante para a esses esforços é que eles têm ra-
Fabrício Carlos Zanin. Para conferir o outros. Há um sentido, penso eu, em zão em reconhecer a importância de
material, acesse http://migre.me/uNkY.
Confira, também, a entrevista Compre-
que “profanar” aquilo que nos pare- olhar nosso próprio terreno a partir
ender a atualidade através de Agamben, ce “sagrado” é um ato blasfemo, mas do qual falamos, mas também que
realizada com o filósofo Rossano Pecora- é um ato que parece muito central esse discurso igualmente não vai lon-
ro, disponível para download em http://
migre.me/uNme. A edição 81 da Revista
para a tradição cristã, pois isso é algo ge o suficiente. Todo o projeto da teo-
IHU On-Line, de 27-10-2003, tem como que Jesus deve ter conhecido. Seus logia precisa ser repensado a partir de
tema de capa O Estado de exceção e a muitos atos de “blasfêmia” pode- seus fundamentos, e a filosofia — ou
vida nua: A lei política moderna, dispo-
riam, na verdade, ser reinterpretados a “filosofia da teologia”, talvez — de-
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nível em http://migre.me/uNo5. Leia,


ainda, as edições 344, de 21-09-2010, como atos de profanação, no uso que sempenha um papel central na redefi-
intitulada Biopolitica, estado de exce- Agamben faz desse termo. Acho que nição das tarefas teológicas com que
ção e vida nua. Um debate, disponível
em http://migre.me/5WjQm e 343, de
esse também é um ponto cuja signifi- nos defrontamos atualmente.
13-09-2010 O (des) governo biopolitico cância estamos apenas começando a Adam Kotsko - Parece-me que
da vida humana, disponível em http:// vislumbrar. o “ponto de contato” é, na verdade,
migre.me/5WjSa. Confira também a
entrevista especial com o pesquisador
Adam Kotsko - Com certeza. Esse a noção do messiânico, que, em al-
Oswaldo Giacoia Junior sobre um dos foi um aspecto realmente intrigante gumas obras (como O sacramento
livros de Agamben, cujo tema é O que de O sacramento da linguagem (Belo da linguagem), pode parecer um si-
resta de Auschwitz e os paradoxos da
biopolítica em nosso tempo, disponível
Horizonte: Editora UFMG, 2011) para nônimo do filosófico, de modo que
em http://bit.ly/17227VY, assim como a Agamben consegue detectar padrões
matéria Auschwitz revisitada pelo olhar messiânicos de pensamento em Aris-
de Giorgio Agamben, baseada na pales- . Acompanhe e participe da programação
tra de Giacoia Junior, acessível pelo link do Seminário O pensamento de Agamben:
tóteles, por exemplo, e, implicitamen-
http://bit.ly/19ByxJ8. Em 2013, o IHU já técnicas biopolíticas de governo, te, reivindicar São Paulo 2como parte
realizou o Minicurso de Giorgio Agamben soberania e exceção, cuja programação
– 2013, cuja programação pode ser aces- completa pode ser conferida em http://
sada em http://bit.ly/VUyR2V bit.ly/WdV0ca. (Nota da IHU On-Line). 2 Paulo de Tarso (3 – 66 d. C.): nasci-

62 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


integrante da tradição filosófica. Será
“O vácuo no cerne ja claro que ele quer se distanciar até

Destaques da Semana
interessante ver o que acontece com certo ponto da interpretação psica-
a distinção entre filosofia e teologia nalítica, não está tão claro qual é sua
em sua obra subsequente a Opus da soberania pode própria posição. Acho que essa é uma
Dei (Opus Dei. Arqueologia do ofício área em que a obra de Eric Santner4
(Homo Sacer, II, 5. São Paulo: Editora ser uma fonte de é realmente valiosa para entender
Boitempo, 2013), onde ele postula Agamben, porque ele complemen-
duas ontologias, uma do ser e outra
do mando, o que pode corresponder
transformação ta continuamente os conceitos de
Agamben com conceitos psicanalíti-
(ou servir como objeto de) à filosofia
e à teologia, respectivamente. e criatividade. cos, e, olhando retrospectivamente, a
proposta do próprio Agamben pode,
Colby Dickinson - Uma das coi- às vezes, parecer incompleta. É como
sas que mais apreciei em Opus Dei, Isso porque ele se ele precisasse desse complemento
na verdade, foi a volta dele ao ético- psicanalítico e, ainda assim, não qui-
-filosófico ao criticar o senso de “de- corresponde à sesse lidar com ele.
ver” kantiano — algo que, na opinião
de muitas pessoas, está muito ligado a
um senso interno de mandar ou con-
inoperatividade IHU On-Line - Para Agamben, a
assinatura do sagrado foi transferida
trolar a si mesmo, se posso expressá-
-lo assim. Há muito a ser repensado fundamental da da religião para o espaço da política.
Quais são as consequências desse
ainda dentro da tradição ocidental deslocamento de perspectiva em ter-
cristã em relação ao dever, à obriga- humanidade: mos filosóficos e teológicos?
ção e à responsabilidade, para men- Colby Dickinson - Em suma, a
cionar apenas alguns conceitos cen- o fato de não consequência dessa transferência é
trais, e acho que Agamben está aqui que a política, atualmente, funciona
apontando o caminho para tal refor-
mulação, e o está fazendo de formas
termos uma como um espetáculo religioso mal
disfarçado, completada com suas
muito profundas.
Adam Kotsko - A maneira como finalidade ou conclamações à glória para perme-
ar cada gesto seu. Pode-se observar,
Agamben fala do imperativo categó- em primeiro lugar, quão “sagrados”
rico kantiano combina muito com a tarefa dada se tornaram certos espaços e pessoas
explicação psicanalítica do relaciona- políticas ao longo do tempo. De uma
previamente maneira profundamente irônica, en-
do em Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, tão, Agamben tenta, em certo senti-
era originariamente chamado de Saulo.
Entretanto, é mais conhecido como São no mundo” do, preservar a capacidade (“original”,
ou talvez simplesmente paulina) da
Paulo, o Apóstolo. É considerado por mui-
tos cristãos como o mais importante dis- teologia de criticar a esfera política
cípulo de Jesus e, depois de Jesus, a figu-
mento desse imperativo com o supe- e sua dependência das reduções vio-
ra mais importante no desenvolvimento
do Cristianismo nascente. Paulo de Tar- rego — junto com toda a crueldade e lentas cometidas no tocante a suas
so é um apóstolo diferente dos demais. o sadismo aí implicados. Ele reconhe- representações dadas, normativas.
Primeiro porque ao contrário dos outros,
ce a existência dessa conexão escre- Embora ele seja altamente crítico em
Paulo não conheceu Jesus pessoalmente.
Era um homem culto, frequentou uma vendo uma longa nota sobre “Kant relação ao legado da teologia, falando
escola em Jerusalém, fez carreira no avec Sade”, de Lacan3, e, embora este- do ponto de vista histórico, há tam-
Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. bém algo na tradição cristã especifica-
Educado em duas culturas (grega e judai-
mente — desde os escritos de Paulo
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ca), Paulo fez muito pela difusão do Cris- 3 Jacques Lacan (1901-1981): psica-
tianismo entre os gentios e é considerado nalista francês. Realizou uma releitura até a tentativa de São Francisco de As-
uma das principais fontes da doutrina do trabalho de Freud, mas acabou por
da Igreja. As suas Epístolas formam uma eliminar vários elementos deste autor
seção fundamental do Novo Testamento. (descartando os impulsos sexuais e de ponível para download em http://migre.
Afirma-se que ele foi quem verdadeira- agressividade, por exemplo). Para Lacan, me/zAMO, e edição 303, de 10-08-2009,
mente transformou o cristianismo numa o inconsciente determina a consciência, intitulada A ética da psicanálise. Lacan
nova religião, e não mais numa seita do mas este é apenas uma estrutura vazia estaria justificado em dizer “não cedas
Judaísmo. Sobre Paulo de Tarso a IHU e sem conteúdo. Confira a edição 267 da de teu desejo”?, disponível para downlo-
On-Line 175, de 10-04-2006, dedicou o Revista IHU On-Line, de 04-08-2008, inti- ad em http://migre.me/zAMQ. (Nota da
tema de capa Paulo de Tarso e a con- tulada A função do pai, hoje. Uma leitu- IHU On-Line)
temporaneidade, disponível em http:// ra de Lacan, disponível em http://migre. 4 Eric L. Santner  (1955): Acadêmico
migre.me/FC0K; edição 32 dos Cadenros me/zAMA. Sobre Lacan, confira, ainda, norte-americano, professor do departa-
IHU Em Formação, Paulo de Tarso desafia as seguintes edições da revista IHU On- mento de Estudos Germãnicos da Univer-
a Igreja de hoje a um novo sentido de -Line, produzidas tendo em vista o Co- sity of Chicago. Seus estudos abordam
realidade, disponível em http://bit.ly/ lóquio Internacional A ética da psicaná- literatura, psicanálise, religião e filoso-
tnxDBC; edição 55 dos Cadernos Teologia lise: Lacan estaria justificado em dizer fia. É especialista em poesia alemã e em
Pública, São Paulo contra as mulheres? “não cedas de teu desejo”? [ne cède estudos do Holocausto. Ele é autor, entre
-- Afirmação e declínio da mulher cristã pas sur ton désir]?, realizado em 14 e 15 outros, do livro On The Psychotheology of
no século I, disponível em http://bit.ly/ de agosto de 2009: edição 298, de 22-06- Everyday Life. Chicago University Press.
tlt5R9. (Nota da IHU On-Line) 2009, intitulada Desejo e violência, dis- (Nota da IHU On-Line).

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 63


sis 5de encarnar uma “forma de vida” as pessoas aqui ligam o político com esses dois pontos deveria, na avalia-
Destaques da Semana
para além da lei, como vimos na obra o religioso, mas, pelo menos, Agam- ção de Agamben, ficar não preenchi-
mais recente Altíssima pobreza (São ben parece ilustrar bem habilmente do e aberto para as riquezas que tal
Paulo: Boitempo, 2013) — que tem por que certos grupos político-religio- travessia poderia trazer, embora tais
condições de formular uma crítica sos têm tanta influência nos Estados coisas estivessem, muitas vezes, para
substancial do uso do “sagrado” por Unidos. além de palavras, certamente para
parte da esfera política. Ao mesmo Adam Kotsko - Essa certamente além da representação.
tempo, tal interpretação das coisas é uma área em que ele é muito ben- A teologia, entretanto, procurou
também lhe permite descartar qual- jaminiano. Estou pensando na parte tapar esse espaço aberto com suas
quer senso de “sacralidade” como de Sobre o conceito de história (W. próprias conjeturas e redes represen-
manobra política para o poder sobe- Benjamin, Magia e técnica, arte e po- tacionais, com a intenção de manter
rano. Tais percepções motivam sua lítica: ensaios sobre literatura e histó- uma estrutura específica de poder
busca de uma “profanação absoluta” ria da cultura. São Paulo: Brasiliense, (soberano), algo muitas vezes ligado
de nosso mundo como única forma de 1994) em que ele critica severamente ao direito divino dos reis de gover-
ser autenticamente “religioso”, e, no os liberais progressistas por ficarem nar e coisas afins. A busca de Agam-
fim das contas, suspeito que essa pro- chocados com o fato de essas coisas ben por uma “ateologia poética” é a
fanação tenha algo fundamental em “ainda” serem possíveis — e o mes- esperança que ele oferece a nosso
comum com as tentativas do próprio mo poderia ser dito sobre os liberais mundo contemporâneo de ficar livre
Jesus de despojar as pessoas de seus progressistas dos Estados Unidos que de tais estruturas e reivindicações
ídolos “sagrados” falsos. estão constantemente esperando que “divinas”, de modo que a própria hu-
Adam Kotsko - O que é o mais in- a religião se extinga para que nossa manidade possa tomar a tarefa (mais
teressante para mim, a partir da pers- história possa finalmente tomar o cur- justa) de assumir responsabilidade
pectiva da teoria da religião, é que so “normal”. por si mesma, e não amortecer suas
Agamben crê que esse deslocamento experiências, como querem muitos
da sacralidade da religião para a polí- IHU On-Line - Do que se trata a atualmente. De fato, a palavra que
tica só é possível porque a própria no- “ateologia poética” de Agamben? E Agamben usa para designar esse
ção do sagrado aponta para uma épo- como podemos compreender a ci- amortecimento da experiência — a
ca “anterior” à separação inicial da são entre poesia e filosofia em seu “museificação” de nosso mundo —
religião e da política. Poder-se-ia pen- pensamento? diz muito sobre como o “teológico”
sar que uma noção como “a sacralida- Colby Dickinson - A poesia, para realmente deve ser entendido. Assim
de da vida humana” se parece mais a Agamben, e principalmente em sua como um museu tira coisas do uso
uma metáfora tirada da esfera religio- forma fragmentária moderna, dirige diário, também o religioso reivin-
sa, que visa a enfatizar a importância nossa atenção para a desintegração dica tirar objetos de seu uso diário,
extrema da vida humana — mas, se do “sujeito”, passando de sua “assi- conferindo-lhes certa sacralidade. Os
o religioso e o político estão sempre natura” teológica para uma nova for- esforços de Agamben, pelo contrário,
conectados porque compartilham a ma de viver “para além” dos limites visam tirar a aura sacra de tais obje-
mesma raiz na experiência humana, do sujeito tradicional (metafísico, te- tos e fazê-los voltar a seu uso. Penso
então uma metáfora nunca pode ser ológico, soberano). Nesse sentido, a muitas vezes na forma como as igre-
apenas uma metáfora. poesia — especialmente nos poetas jas hoje em dia se tornaram museus
Colby Dickinson - Percebo aqui que mais diretamente procuraram e os museus funcionam como igrejas
o potencial para uma vasta descons- abrir tal espaço para nós, como Gior- e os dois atendem cada vez mais a in-
trução de grande parte da retórica gio Caproni 6ou Rilke7, por exemplo dústria turística.
política atual, algo que, ao menos nos — torna-se um exercício “ateológi-
Estados Unidos, parece ligar, muito à co” e um movimento em direção a IHU On-Line - Que aproximações
vontade, o político com o religioso, e uma esperança para a humanidade são possíveis entre Agamben, Benja-
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isso sob o falso pretexto de um senso encontrar sua libertação de tais for- min e Girard8?
predeterminado do que exatamente é ças opressoras. Tradicionalmente, na
o “sagrado”. Acho que muitas pessoas compreensão dele, era a teologia que 8 René Girard (1923): filosofo e antro-
fora dos Estados Unidos geralmente preenchia o espaço vazio entre a filo- pólogo francês. Partiu para os Estados
ficam surpresas quando veem como sofia e a poesia, dois campos inter- Unidos para dar aulas de francês. De suas
obras, destacamos La Violence et le Sacré
-relacionados com focos diferentes: (A violência e o sagrado), Des Choses Ca-
5 São Francisco de Assis (1181-1226): respectivamente, o conhecimento chées depuis la Fondation du Monde(Das
frade católico, fundador da “Ordem dos e a experiência. O movimento entre coisas escondidas desde a fundação do
Frades Menores”, mais conhecidos como mundo), Le Bouc Émissaire (O Bode ex-
Franciscanos. Foi canonizado em 1228 piatório), 1982. Todos esses livros foram
pela Igreja Católica. Por seu apreço à 6 Giorgio Caproni (1912 - 1990). Poeta, publicados pela Editora Bernard Grasset
natureza, é mundialmente conhecido crítico literário e tradutor italiano. (Nota de Paris. Ganhou o Grande Prêmio de Fi-
como o santo patrono dos animais e do da IHU On-Line). losofia da Academia Francesa, em 1996,
meio ambiente. Sobre Francisco de Assis 7 Rainer Maria Rilke (1875-1926): um dos e o Prêmio Médicis, em 1990. O seu livro
confira a edição 238 da IHU On-Line, de mais importantes poetas de língua alemã mais conhecido em português é A violên-
01-10-2007, intitulada Francisco. O san- do século XX por sua obra inovadora e seu cia e o sagrado (São Paulo: Perspectiva,
to, disponível para download em http:// incomparável estilo lírico. (Nota da IHU 1973). Sobre o tema desejo e violência,
migre.me/61MbS. (Nota da IHU On-Line) On-Line) confira a edição 298 da revista IHU On-Li-

64 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


Colby Dickinson - Acho que esse
“Quando ele fala IHU On-Line - O que significa a

Destaques da Semana
nexo de autores pode ser ligado atra- figura do trono vazio utilizada por
vés do foco de cada um no papel da
violência em relação à religião, es- da compreensão Agamben em O Reino e a Glória?
Adam Kotsko - Em O reino e a
glória, o objetivo de Agamben é re-
pecialmente porque cada um quer
tomar, mais ou menos, o partido das paulina do velar que o poder soberano está
forças fracas, messiânicas da história fundamentalmente vazio, e o trono
contra os poderes fortes, soberanos “messiânico” e vazio é uma imagem vigorosa para
que, do contrário, tendem a gover- expressar essa realidade (ou falta
nar as coisas. Essa certamente era sua capacidade de de realidade). Mas ele faz uma coisa
uma convergência importante de interessante com essa imagem. Ela
ideias para Benjamin, e creio que derrubar qualquer parece ser meramente uma maneira
para Agamben também. Para este de desmascarar a ilegitimidade do
último, especialmente em sua série uma de nossas poder soberano, mas ele sustenta
Homo Sacer e, anteriormente, em que também há algo positivo a ser
Linguagem e morte, há uma forte li-
gação entre sacrifício, violência e — o
representações dito. O vácuo no cerne da soberania
pode ser uma fonte de transforma-
que Girard nomearia — mecanismos
avulsos da vítima. Embora eu não
através de uma ção e criatividade. Isso porque ele
corresponde à inoperatividade fun-
chegasse a dizer que a obra deles se
sobrepõe inteiramente — e estou fa-
“divisão da própria damental da humanidade: o fato de
não termos uma finalidade ou tarefa
lando principalmente de Agamben e
Girard aqui —, certamente sou leva-
divisão” (em O dada previamente no mundo. O po-
der soberano mascara essa inoperati-
do a ver suas respectivas obras como
que formando um esforço conjunto
tempo que resta), vidade reivindicando ser a finalidade
de toda atividade humana, e des-
para iluminar as injustiças feitas à ví-
tima, as noções falsas de sacralidade está sinalizando o mascarar o poder soberano nos dá a
possibilidade de criar finalidades ou
que atuam dentro de tais mecanis-
mos e coisas afins. Penso que o fato cerne “teológico” tarefas novas e diferentes para nós.
Colby Dickinson - Eu acharia mui-
de Gianni Vattimo9 ter conseguido
interpretar Girard como alguém cuja de nossos to interessante colocar essa concep-
ção do “vácuo” no cerne da soberania
obra nos leva, em última análise, em diálogo com a noção de “perico-
rumo a uma sociedade mais “secu- mais básicos rese” de Moltmann10, em que é dito
lar”, parece apenas confirmar a lei- que a própria trindade tem um vácuo
tura independente que Agamben faz empreendimentos em seu cerne. Nesse livro, Agamben

ne, de 22-06-2009, disponível em http:// filosóficos”


bit.ly/doOmak. Leia, também, a edição 10 Jürgen Moltmann (1926): professor
especial 393 da IHU On-Line, de 21-05-
2012, sobre o pensamento de Girard, in- Colby Dickinson emérito de Teologia da Faculdade Evan-
gélica da Universidade de Tübingen. Um
titulada O bode expiatório, o desejo e a dos mais importantes teólogos vivos da
vioLência (Nota da IHU On-Line) atualidade. Foi um dos inspiradores da
9 Gianni Vattimo (1936): Estudou filoso- Teologia Política nos anos 1960 e influen-
fia na Universidade de Turim e depois na ciou a Teologia da Libertação. É autor de
de Heidelberg. Discípulo de Hans-Georg Teologia da Esperança, São Paulo: Her-
Gadamer, seguiu a corrente hermenêu- das coisas (embora o próprio Agam- der, 1971 e O Deus Crucificado. A cruz
tica. Influenciado também por Martin de Cristo, fundamento e crítica da teo-
ben preferisse usar a palavra “profa-
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Heidegger, que lhe ofereceu a “rejeição logia cristã, Deus na Criação. Doutrina
à concepção objetiva estrutural e estável no”, e não “secular”). É interessante, Ecológica da Criação. Vozes: Petrópolis,
do Ser”. Desde muito jovem, Vattimo foi ao menos de relance, pensar sobre 1993, entre outros. Confira a entrevis-
professor de Estética na Universidade de ta de Jürgen Moltmann, um dos maiores
Turim. Em 1961 publicou “O conceito de como o principal ponto salientado teólogos vivos, na IHU On-Line n.º 94, de
produção em Aristóteles”. Foi professor por Girard — que a sociedade está 29-03-2004. Desse autor a Editora Uni-
universitário em Los Angeles e Nova York. essencialmente fundamentada na sinos publicou o livro A vinda de Deus.
É Doutor Honoris Causa pela Universidade Escatologia cristã. São Leopoldo, 2003.
de Palermo e pela Universidade de La Pla- exclusão (“bode expiatório”) de uma O professor Susin apresentou o livro A
ta. Confira entrevistas e artigos do autor vítima fraca e que nossas mais bási- Vinda de Deus: Escatologia Cristã, de
publicados no sítio do IHU: “Evangelho: cas estruturas políticas se baseiam Jürgen Moltmann, no evento Abrindo o
as palavras divinas de Jesus. Artigo de Livro do dia 26 de agosto de 2003. Sobre
Gianni Vattimo”, disponível em http:// nessa lógica — é também aquilo que o tema, confira na IHU On-Line número
bit.ly/12jKXUn; Comunismo hermenêuti- subjaz, em última análise, à crítica 72, de 25-08-2003, a entrevista do Prof.
co, ética cristã, globalização e política da política feita por Agamben. Seria Dr. Frei Luiz Carlos Susin. A edição 23
contemporânea. Entrevista com Gianni dos Cadernos Teologia Pública, de 26-09-
Vattimo, disponível em http://bit.ly/ possível fazer muito mais com isso, e 2006, tem como título Da possibilidade
X9XxyB; “Os políticos têm medo do Va- acho que muita coisa está sendo de- de morte da Terra à afirmação da vida. A
ticano”. Entrevista com Gianni Vattimo, senvolvida nesse sentido pelos mui- teologia ecológica de Jürgen Moltmann,
disponível em http://bit.ly/1aEv11h. de autoria de Paulo Sérgio Lopes Gonçal-
(Nota da IHU On-Line) tos girardianos atualmente. ves. Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 65


retoma muito brevemente a noção de envolve muito bem com a tradição obra ao longo da última década ou
Destaques da Semana
trindade de Moltmann, mas não trata teológica, mas, como a maioria dos algo assim. As aulas de Foucault so-
diretamente dessa conexão, e penso outros filósofos, pode rejeitar teólo- bre a governamentalidade realmente
que em algum lugar aí se perde uma gos contemporâneos. deram ênfase às formas pelas quais
oportunidade de explorar noções “al- o paradigma econômico-gerencial
ternativas” do divino, noções que es- IHU On-Line - E o que podemos pareceu governar em lugar do que
tão além da compreensão de sobera- compreender com a categoria de muitos têm visto como o ator político
nia divina que é a usual dele. “profanação” a que se refere nessa dominante, o ator estatal-político so-
Adam Kotsko - Fiquei desa- mesma obra? berano. De muitas formas, entretan-
pontado com a forma como ele lida Colby Dickinson - Essa ques- to, Agamben parece não conseguir
com Moltmann, em que se limita a tão realmente chama a atenção, em inserir essa ideia na crítica do poder
um comentário ferino onde ele sus- minha opinião, para a influência da soberano que vem desenvolvendo na
tenta que Benjamin já tinha se saí- obra de Foucault12 sobre sua própria série Homo Sacer (Belo Horizonte:
do melhor na tarefa que Moltmann Editora UFMG, 2002).
se propõe cumprir e à citação que Adam Kotsko - Esse é um aspec-
12 Michel Foucault (1926-1984): filósofo
identifica a trindade econômica e francês. Suas obras, desde a História da
to do argumento de Agamben em O
a imanente (que, na verdade, pro- Loucura até a História da sexualidade (a reino e a glória que acho difícil de
vém de Karl Rahner11!). Agamben se qual não pôde completar devido a sua entender. Primeiramente, ele parece
morte) situam-se dentro de uma filosofia
do conhecimento. Suas teorias sobre o
estar apresentando o paradigma eco-
11 Karl Rahner (1904-2004): importante saber, o poder e o sujeito romperam com nômico como uma alternativa melhor
teólogo católico do século XX. Ingressou as concepções modernas destes termos, ao paradigma político-teológico da
na Companhia de Jesus em 1922. Dou- motivo pelo qual é considerado por cer-
torou-se em Filosofia e em Teologia. Foi tos autores, contrariando a sua própria
soberania, especialmente na medida
perito do Concílio Vaticano II e professor opinião de si mesmo, um pós-moderno. em que o localiza nas epístolas pau-
na Universidade de Münster. A sua obra Seus primeiros trabalhos (História da linas. Contudo, perto do fim do livro
teológica compõe-se de mais de 4 mil tí- Loucura, O Nascimento da Clínica, As
tulos. Suas obras principias são: Geist in Palavras e as Coisas, A Arqueologia do
ele tachou o paradigma econômico
Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer Saber) seguem uma linha estruturalista, de, em última análise, “infernal” e
des Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941, o que não impede que seja considerado sem redenção e voltou ao paradigma
Schrifften zur Theologie (Escritos de Teo- geralmente como um pós-estruturalista
logia). Em 2004, celebramos seu cente- devido a obras posteriores como Vigiar e
soberano em sua análise da glória. Eu
nário de nascimento. A Unisinos dedicou Punir e A História da Sexualidade. Fou- gostaria que ele tivesse dito mais a
à sua memória o Simpósio Internacional cault trata principalmente do tema do respeito de como entende o lugar de
O Lugar da Teologia na Universidade do poder, rompendo com as concepções clás-
século XXI, realizado de 24 a 27 de maio sicas deste termo. Para ele, o poder não
Paulo no desenvolvimento do pensa-
daquele ano. A IHU On-Line nº. 90, de pode ser localizado em uma instituição mento econômico.
1º-03-2004, publicou um artigo de Rosi- ou no Estado, o que tornaria impossível a Colby Dickinson - E isso torna a
no Gibellini sobre Rahner, disponível em “tomada de poder” proposta pelos mar-
http://migre.me/11DTa, e a edição 94, xistas. O poder não é considerado como
despertar em mim o desejo de vê-lo
de 02-03-2004, publicou uma entrevista algo que o indivíduo cede a um soberano lidar com algo como a noção de “peri-
de J. Moltmann, analisando o pensamen- (concepção contratual jurídico-política), corese” de Moltmann, ou o vácuo no
to de Rahner, disponível para download mas sim como uma relação de forças. Ao
em http://migre.me/11DTu. No dia 28- ser relação, o poder está em todas as
cerne de Deus. Penso que tal noção
04-2004, no evento Abrindo o Livro, Érico partes, uma pessoa está atravessada por poderia ser a única forma de voltar —
Hammes, teólogo e professor da PUCRS, relações de poder, não pode ser conside- teologicamente, ao menos — a uma
apresentou o livro Curso Fundamental da rada independente delas. Para Foucault,
Fé, uma das principais obras de Karl Rah- o poder não somente reprime, mas tam-
exposição do que, exatamente, pode
ner. A entrevista com o prof. Érico Ham- bém produz efeitos de verdade e saber, ser feito com o paradigma soberano
mes pode ser conferida na IHU On-Line constituindo verdades, práticas e subje- no fim das contas.
n.º 98, de 26-04-2004, disponível para tividades. Em três edições a IHU On-Line
download em http://migre.me/11DTM. dedicou matéria de capa a Foucault: edi-
Ainda sobre Rahner, publicamos uma ção 119, de 18-10-2004, disponível para
entrevista com H. Vorgrimler no IHU On- download em http://migre.me/vMiS,
www.ihu.unisinos.br

-Line n.º 97, de 19-04-2004, sob o título edição 203, de 06-11-2006, disponível
Karl Rahner: teólogo do Concílio Vatica- em http://migre.me/vMj7, e edição 364,
no nascido há 100 anos, disponível em de 06-06-2011, disponível em http://bit. IHU: O (des)governo biopolítico da vida
http://bit.ly/mlSwUc. A edição número ly/k3Fcp3. Além disso, o IHU organizou, humana. Para maiores informações,
102, da IHU On-Line, de 24-05-2004, de- durante o ano de 2004, o evento Ciclo acesse http://migre.me/JyaH. Confira a
dicou a matéria de capa à memória do de Estudos sobre Michel Foucault, que edição 343 da IHU On-Line, intitulada O
centenário de nascimento de Karl Rah- também foi tema da edição número 13 (des)governo biopolítico da vida humana,
ner, disponível para download em http:// dos Cadernos IHU em Formação, disponí- publicada em 13-09-2010, disponível em
migre.me/11DTW. Os Cadernos Teologia vel para download em http://migre.me/ http://bit.ly/bi5U9l, e a edição 344, in-
Pública publicaram o artigo Conceito e vMjd sob o título Michel Foucault. Sua titulada Biopolitica, estado de excecao
Missão da Teologia em Karl Rahner, de contribuição para a educação, a política e vida nua. Um debate, disponível em
autoria do Prof. Dr. Érico João Hammes. e a ética. Confira, também, a entrevista http://bit.ly/9SQCgl. A edição 364, de
Confira esse material em http://migre. com o filósofo José Ternes, concedida à 06-06-2011 é intitulada ‘’História da lou-
me/11DUa. A edição 297, de 15-06-2009, IHU On-Line 325, sob o título Foucault, cura’’ e o discurso racional em debate,
intitula-se Karl Rahner e a ruptura do a sociedade panóptica e o sujeito his- inspirada na obra História da loucura, e
Vaticano II, disponível para download em tórico, disponível em http://migre.me/ está disponível em http://bit.ly/lXBq1m.
http://migre.me/11DUj. (Nota da IHU zASO. De 13 a 16 de setembro de 2010 (Nota da IHU On-Line)
On-Line) aconteceu o XI Simpósio Internacional

66 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


Destaques On-Line

Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 05-09-2013 a 13-09-2013, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

A universidade e a formação cidadã. Programa Mais Médicos e os problemas


Um divórcio estruturais da saúde pública brasileira
Entrevista especial com Franklin Leopoldo e Entrevista especial com Nêmora Barcellos,
Silva, graduado, mestre e doutor em Filosofia graduada em Medicina pela Universidade
pela Universidade de São Paulo — USP, onde Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS e mestre
leciona. e doutora em Medicina: Ciências Médicas pela
Confira nas notícias do dia 05-09-2013 mesma universidade. Atualmente é professora
Acesse o link http://bit.ly/1cJsEuE do Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
da Unisinos e professora colaboradora do
“A universidade enfrenta dificuldade porque se Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia
vive numa época em que tudo o que é ética e da UFRGS.
politicamente necessário é considerado irrelevante”, Confira nas notícias do dia 07-09-2013
constata o filósofo Franklin Leopoldo e Silva. “A Acesse o link http://bit.ly/1dM6HOJ
universidade praticamente perdeu seu caráter de
instituição política graças ao avanço da mentalidade “Nossas universidades formam profissionais para
mercantil e pragmática que dispensa a formação os centros urbanos, voltados às especialidades e
ético-política e privilegia a informação e o subespecialidades e muito distantes da Atenção
treinamento para o mercado”, pontua ele. Segundo Primária à Saúde, a idealizada porta de entrada
o docente, isso acontece porque a universidade do sistema para toda a população brasileira”,
deixou de “se relacionar” com a sociedade e passou afirma a médica Nêmora Barcellos. “O Programa
a “se subordinar a ela”, renunciando a “sua lógica Mais Médicos, embora possa suprir necessidades
interna e sua natureza específica, assimilando de imediatas de muitos municípios brasileiros, necessita
fora parâmetros que venham a inseri-la no modelo de análise mais profunda, uma vez que o aumento
hegemônico de sociedade, que, na época atual, é o isolado do número de profissionais médicos não
mercado”. E acrescenta: “Esta recusa de si mesma será capaz de resolver os problemas estruturais
a desfigura e a torna uma unidade produtiva na enfrentados por este sistema”, declara ela. Na sua
funcionalidade do mercado, sem qualquer referência avaliação, o ingresso maciço de médicos no país
ética e política que definiria seu perfil institucional”. para atuar na Atenção Básica poderá “contribuir de
Na avaliação do filósofo, a universidade caminha forma decisiva no caminho da concretização de um
no “sentido de divorciar o treinamento profissional SUS mais justo e equânime”. Para a médica, a falta
da formação do cidadão, o que pode produzir de acesso aos serviços de saúde “vem empurrando
competências específicas e, ao mesmo tempo, cada vez mais a população, mesmo sem condições
www.ihu.unisinos.br
prejudicar a cidadania, ou simplificá-la, adaptando-a de arcar com as despesas de um plano de saúde,
às relações exclusivamente mercadológicas”. Por em direção ao setor privado. Este deveria ser
conta desse cenário, “as ciências humanas sofrem, complementar ao sistema público, e não a saída
evidentemente, uma pressão no sentido de se para um SUS ineficiente e muitas vezes inacessível”.
conformar a tais parâmetros, o que significa o Nêmora pontua ainda que “nos últimos dez anos,
esvaziamento de sua significação. A ‘sustentabilidade’ o Brasil acumulou uma carência de 54 mil médicos
das áreas de ciências humanas fica assim e necessitaria contratar 168.424 profissionais
dependendo daquelas que ‘realmente importam’: para atingir o patamar da Inglaterra, que é de 2,7
científicas e tecnológicas, criando modelos e profissionais por mil habitantes”.
referências que, se implantados, deformam o perfil
das ciências humanas”.

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 67


Dom Helder Câmara: “A síntese da “O Congresso é dominado por grandes proprietários
Destaques da Semana
de terra, por ruralistas que farão de tudo para barrar
melhor tradição espiritual da América as demarcações de terras indígenas e fazer com
Latina” que se perpetuem os conflitos entre ruralistas e
indígenas”, diz o antropólogo Daniel Pierri.
Entrevista especial com Ivanir Rampon,
A PEC 215 “é um absurdo jurídico e político”,
graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia
complementa. Segundo ele, ao pretender passar
e Pastoral — Itepa Faculdades, em Filosofia
do Executivo para o Legislativo a homologação
pela Universidade de Passo Fundo — UPF,
das terras indígenas e as matérias relacionadas
mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de
a quilombos e povos tradicionais, a PEC 215
Filosofia e Teologia — FAJE e doutor em Teologia
“desvirtua o conceito de direito originário”, ou seja,
pela Pontifícia Universitas Gregoriana, Roma.
de que os povos tradicionais têm o direito sobre as
Atualmente leciona no Itepa, em Passo Fundo —
terras que ocupam. Para Pierri, a criação de uma
RS.
Comissão Especial referente à Proposta de Emenda à
Confira nas notícias do dia 08-09-2013
Constituição — PEC 215 pela Câmara dos Deputados
Acesse o link http://bit.ly/1fNCfAo
demonstra “a postura tímida do governo” em relação
à questão indígena e a revelação de uma “agenda
“Sua fonte foi a religiosidade tradicional católica,
clara de caça aos direitos indígenas, com a intenção
principalmente do povo cearense e nordestino.
de restringir os direitos e perpetuar os conflitos
Ele apreciava as devoções populares à Eucaristia, à
que estão instalados em algumas regiões do país”.
Maria, aos santos, aos anjos e ao Papa. O núcleo da
Na avaliação do antropólogo, falta uma postura da
sua espiritualidade era o amor a Deus e às criaturas”,
presidente Dilma em relação à PEC. “Ela deixa os
menciona o teólogo Ivanir Rampon. “Dom Helder foi
ministros tratarem disso, eles batem a cabeça uns
um místico original”, enfatiza o padre Rampon, autor
com os outros e não sabemos qual que é a posição
do livro O caminho espiritual de Dom Helder Câmara
do Executivo como um todo”. E dispara: “Certamente
(São Paulo: Paulinas, 2013). Para Rampon, a mística
uma postura muito mais incisiva do Executivo poderia
e a espiritualidade do arcebispo emérito de Olinda
ter evitado a criação dessa Comissão”.
e Recife, que faleceu em 27 de agosto de 1999, são
as “facetas mais importantes” de Dom Helder, que,
“antes de ser padre ou bispo, antes de ser o guia da
Igreja no Brasil, antes de ser o defensor dos pobres,
antes de ser o promotor da justiça e dos direitos Pré-sal e a política entreguista do
humanos contra toda a opressão, foi um místico”. Estado brasileiro
Sem essa característica, acentua, “provavelmente, ele
não teria sido o bispo das favelas do Rio de Janeiro, Entrevista especial com Paulo Metri, graduado
o arcebispo dos pobres no Nordeste, o advogado em Engenharia Mecânica pela Pontifícia
do Terceiro Mundo, o apóstolo da não violência, a Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-
esperança de uma sociedade renovada segundo o Rio e conselheiro do Clube de Engenharia do Rio
ideal cristão, o poeta-místico e profeta de uma fé de Janeiro.
jovem e forte”. Confira nas notícias do dia 10-09-2013
Acesse o link http://bit.ly/17TeV1n
www.ihu.unisinos.br

“Se for feita uma enquete nas ruas do Brasil, de


norte a sul, perguntando ao povo: ‘O que você acha
PEC 215: Uma ação deliberada contra a sobre o leilão de Libra, que irá acontecer em 21 de
Constituição Federal outubro próximo?’, será constatado que 99% da
população desconhece o que é Libra. Um assunto tão
Entrevista especial com Daniel Pierri, graduado
relevante mereceria, no mínimo, um plebiscito bem
e mestre em Antropologia pela Universidade
organizado para a decisão ser tomada”, assinala Paulo
de São Paulo — USP, atualmente associado ao
Metri. Apesar de a Petrobras deter 91% das reservas
Centro de Estudos Ameríndios — CESTA/USP e
do petróleo brasileiro, os contratos de concessão
colaborador do Centro de Trabalho Indigenista
assinados entre o Estado brasileiro e as petroleiras
no Programa Guarani Sul e Sudeste.
internacionais fizeram com que o país perdesse “1,54
Confira nas notícias do dia 09-09-2013
bilhão de barris de petróleo” em 2012, informa o
Acesse o link http://bit.ly/17klPxs
engenheiro. Segundo ele, “as petrolíferas estrangeiras

68 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


impuseram como condição para vir para o Brasil período de pagamento do investimento é tão rápido

Destaques da Semana
a exportação do petróleo produzido. Os governos assim”, pontua o geólogo. E continua: “Há um grupo
aceitaram e continuam aceitando esta condição. grande de cientistas que trabalham diretamente com
Assim, nenhuma refinaria é construída por elas a questão da água e que estão legitimamente muito
no Brasil. A razão é óbvia, pois a maioria possui preocupados com a possibilidade de autorização da
refinarias nos seus países de origem, que dependem exploração do xisto no Brasil, sem que tenhamos uma
do petróleo vindo do exterior”. Paulo Metri também definição clara dos prejuízos que isso irá causar para
critica o leilão de Libra, o qual irá conceder áreas os aquíferos”. De acordo com Scheibe, a comunidade
para a exploração de petróleo e gás natural na região científica brasileira solicitou que o xisto seja excluído
do pré-sal, na Bacia de Santos — SP. “Sobre este do leilão energético programado para os dias 28 e
leilão, que corresponde à alienação de uma riqueza 29 de novembro. Os especialistas argumentam que
no valor de, no mínimo, US$ 1 trilhão, o povo não é preciso estudar com calma as variáveis que estão
sabe de nada. Libra é um campo com as reservas contidas na exploração. Na avaliação do pesquisador,
razoavelmente medidas, então não pode ser leiloado. a extração do gás não convencional “gera problemas
Leilão é, na melhor das hipóteses, para blocos com ambientais sérios tanto do ponto de vista da
perspectiva de existência de petróleo. Só no Iraque contaminação do metano, como da contaminação
e no Brasil se leiloa petróleo conhecido existente no da água que se utiliza para fazer o fraturamento
subsolo, sendo que, no Iraque, há tanques, caças hidráulico”. E acrescenta: “Querer começar a explorar
e metralhadoras apontadas para os iraquianos. E o xisto no Brasil, sem uma infraestrutura adequada,
aqui?”, questiona. Na avaliação dele, Libra “tinha sabendo que se trata de uma exploração controlada e
que ser entregue à Petrobras, sem leilão, para esta que toda a grande produção é feita no primeiro ano,
assinar um contrato de partilha com a União, se é querer se arriscar a produzir o gás e não ter o que
comprometendo a remeter 80% do lucro líquido para fazer com ele”.
o Fundo Social, o que nenhuma empresa privada
fará”.

A redução da jornada e a necessária


reorientação estratégica do movimento
Xisto: implicações econômicas e sindical
ambientais
Entrevista especial com Bernardo Corrêa,
Entrevista especial com Luiz Fernando Scheibe, sociólogo da Fundação Lauro Campos.
doutor em Ciências (Mineralogia e Petrologia) Confira nas notícias do dia 12-09-2013
pelo Instituto de Geociências da Universidade Acesse o link http://bit.ly/15YEuuY
de São Paulo – USP. Atualmente é professor
aposentado da Universidade Federal de Santa “O banco de horas tem sido um dos principais
Catarina – UFSC. mecanismos deste processo de não compensação
Confira nas notícias do dia 11-09-2013 e, portanto, de incremento à superexploração e
Acesse o link http://bit.ly/1fYJqpr à precarização da força de trabalho”, constata o
sociólogo. Apesar de as principais centrais sindicais
A dependência energética externa dos Estados apoiarem a PEC 231/95, referente à redução da www.ihu.unisinos.br
Unidos e o uso de tecnologias que possibilitam jornada de trabalho, é preciso “introduzir de forma
a extração do gás não convencional – conhecido mais efetiva a discussão sobre o fim do banco de
popularmente como xisto – no território horas e a compensação justa de horas-extras”, diz
estadunidense têm gerado interesse de vários países Bernardo Corrêa. Segundo ele, “o banco de horas tem
em explorar essa fonte de energia. Entretanto, sido um dos principais mecanismos deste processo
segundo o geólogo Luiz Fernando Scheibe, as de não compensação e, portanto, de incremento
vantagens econômicas dessa extração são apenas à superexploração e à precarização da força de
“aparentes”, porque a exploração do gás envolve um trabalho”. Na avaliação do sociólogo, “a flexibilização
processo complexo e “a grande produção” dos poços da jornada não tem favorecido os trabalhadores,
só ocorre no primeiro ano. “Depois do primeiro ano pois tem feito com que se amplie o mecanismo de
de extração se produz muito pouco gás. Esses dados, apropriação pelo capital da parte não remunerada do
inclusive, estão disponíveis no material da Agência trabalho”. Na avaliação do sociólogo, ao aceitarem
Nacional do Petróleo - ANP. A questão é saber se o o banco de horas, CUT, Força Sindical, CTB e CGT

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 69


“terão uma contradição mesmo que haja a redução sociais”. É assim que Alcides Silva de Miranda define
Destaques da Semana
da jornada formal, pois esta apropriação informal o Programa Mais Médicos, que oferece bolsas a
e flexível do tempo livre dos trabalhadores seguirá 4 mil médicos estrangeiros que atuarão no país.
permitindo que as empresas incrementem a taxa Nesta entrevista, Miranda enfatiza que a “questão
de exploração mediante um tempo de trabalho que primordial que se apresenta é: mesmo que o
não é sequer negociado”. Na entrevista a seguir, Programa Mais Médicos possa se tratar inicialmente
concedida por e-mail, ele enfatiza a necessidade de medida governamental específica, parcial e de
de uma “reorientação estratégica do movimento cunho eleitoral, devemos buscar sua desqualificação
sindical, superando o corporativismo, a cooptação absoluta e recusa peremptória? Ou devemos
por parte do Estado e a burocratização das direções aproveitar a oportunidade da inclusão de questão
sindicais, para que o movimento dos trabalhadores tão significativa para a população brasileira, de
possa de fato reconquistar a iniciativa, única forma, a modo a buscar a vinculação com medidas de caráter
meu ver, de garantir a redução da jornada e combater mais estruturante? Conforme o velho dito popular,
sua flexibilização”. deveríamos ‘jogar fora a criança, juntamente com a
bacia e a água suja do banho’?”. Na avaliação dele, ao
longo das duas últimas décadas, o Estado brasileiro
priorizou “estratégias incrementais, parciais e
Programa Mais Médicos. As iniquidades transitórias para constituir e viabilizar o SUS”. Diante
sociais, a formação e o trabalho médico do atual quadro da saúde pública no país, ele enfatiza
a necessidade de um “incremento na formação de
em questão especialistas em Medicina de Família e Comunidade,
que ainda é insignificante. Mas, para tanto, não
Entrevista especial com Alcides Silva de
basta aumentar a oferta de vagas em programas
Miranda, especialista em Medicina da Família
de Residência Médica nesta especialidade, torna-
e Comunidade, mestre em Saúde Pública
se necessária uma política de valorização efetiva
pela UECE e doutor em Saúde Coletiva pela
destes especialistas, a começar pelo enfrentamento
Universidade Federal da Bahia – UFBA.
das especializações precoces ocorridas já nos anos
Confira nas notícias do dia 13-09-2013
iniciais da graduação médica; torna-se imprescindível
Acesse o link http://bit.ly/1g958XV
a valorização salarial e a garantia da carreira de
“Mais uma estratégia incremental e parcial”, mas Estado”.
com “claro enfoque de enfrentamento de iniquidades

LEIA OS CADERNOS IHU IDEIAS


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EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 71


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
72 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Agenda de

IHU em Revista
Eventos
Eventos do Instituto Humanitas Unisinos — IHU
programados para a quinzena de 17-09-2013 a
30-09-2013.

Data: 18-09-2013
Evento: A tradição religiosa: Africanista
Ministrantes: Mãe Dolores, Pai Dejair e Pai Daniel
Horário: 19h30min às 22h10min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/18t7x0d

Data: 23-09-2013
Evento: Foucault e as tecnologias de subjetivação
Palestrante: Prof. Dr. Castor Ruiz (Unisinos)
Horário: 19h30min às 22 horas
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/11amEa0

Data: 25-09-2013
Evento: A tradição religiosa: Umbanda
Ministrante: Pai Nilton
Horário: 19h30min às 22h10min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/18t7x0d

Data: 25-09-2013
Evento: Ciclo de Cinema — Exibição do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, EUA,
1968, 149 min) www.ihu.unisinos.br
Horário: 16h30min às 19 horas
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://bit.ly/17rKtiT

Data: 26-09-2013
Evento: Mesa-redonda sobre Pediculose: processo de infestação, problemas decorrentes, medidas
de controle e as questões socioambientais
Debatedores: Dr. Julio Vianna Barbosa (Fiocruz), Dr. Pedro Marcos Linardi (UFMG), Dra. Maria do Carmo Ferreira (UNIRIO).
Coordenação: Profa. MS Raquel Castilhos Fortes (Unisinos)
Horário: 10 horas às 12 horas
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Mais informações: http://bit.ly/1azASpc

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 73


IHU em Revista
Data: 26-09-2013
Evento: Mesa-redonda sobre Escabiose, Ácaros Domiciliares e Carrapatos: processo de infestação,
problemas decorrentes, medidas de controle e as questões socioambientais
Debatedores: Dr. Noeli Juarez Ferla (Univates/RS), Dr. João Martins (Fepagro – Eldorado do Sul/RS). Coordenação: Dr. Julio
Vianna Barbosa (Fiocruz)
Horário: 14 horas às 16 horas
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Mais informações: http://bit.ly/1azASpc

Data: 26-09-2013
Evento: Mesa-redonda sobre Determinantes e Condicionantes em Saúde
Debatedores: Dra. Vera Maria Ribeiro Nogueira (UFSC), Sandro Camargo (Semae — São Leopoldo/RS). Coordenação: Dra.
Ruth Henn (Unisinos)
Horário: 16h20min às 18 horas
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Mais informações: http://bit.ly/1azASpc

Data: 27-09-2013
Evento: Mesa-redonda sobre Miíases: processo de infestação, problemas decorrentes, medidas de
controle e as questões socioambientais
Debatedores: Dra. Cláudia Soares Santos Lessa (UNIRIO). Coordenação: Dr. José Antônio Batista da Silva (Prefeitura de
Itaboraí/RJ)
Horário: 8h40min às 10 horas
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Mais informações: http://bit.ly/1azASpc

Data: 27-09-2013
Evento: Mesa-redonda sobre Tungíase: processo de infestação, problemas decorrentes, medidas de
controle e as questões socioambientais
Debatedores: Dr. Raimundo Wilson de Carvalho (ENSP/Fiocruz). Coordenação: Dr. Pedro Marco Linardi (UFMG)
Horário: 10h20min às 12 horas
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Mais informações: http://bit.ly/1azASpc
www.ihu.unisinos.br

Data: 27-09-2013
Evento: Mesa-redonda sobre Vigilância Ambiental
Debatedores: Prof. Dr. Jader da Cruz Cardoso (La Salle – Canoas/RS), Alberto do Nascimento Leães (Vigilância Ambiental
de São Leopoldo/RS), Dr. José Antônio Batista da Silva (Prefeitura de Itaboraí/RJ). Coordenação: Dr. Raimundo Wilson de
Carvalho (ENSP/Fiocruz)
Horário: 14 horas às 16 horas
Local: Anfiteatro Pe. Werner
Mais informações: http://bit.ly/1azASpc

74 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


Retrovisor

IHU em Revista
Veja algumas das edições já publicadas da Revista IHU On-Line

Agrotóxicos. Pilar do agronegócio


E368-Ano-XI-04-07-2011
Disponível em http://bit.ly/lookqu

Os males causados pelos agrotóxicos à saúde humana e ao meio ambiente são


o tema desta edição da Revista IHU On-line. A discussão recupera o contexto do uso
indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras brasileiras, avalia a necessidade de seu
uso para o sucesso da produção agrícola e levanta o debate sobre o imperativo da
reavaliação dos defensivos químicos no Brasil. Contribuem para o debate os pesqui-
sadores Wanderlei Pignati, José Juliano de Carvalho, Mohamed Ezz El Din Mostafa
Habib, Letícia Rodrigues da Silva e Rubens Nodari.

Rock’n’roll na veia
Edição 212–Ano–VII-19-03-2007
Disponível em http://bit.ly/ySPITJ

Por ocasião da criação pioneira do primeiro curso superior de Formação de


Músicos e Produtores de Rock na Unisinos, esta edição da Revisa IHU On-line le-
vanta a discussão sobre a relevância do gênero musical e a indústria da música
para suas matérias de capa. Renomados artistas do cenário musical gaúcho, como
Humberto Gessinger, Wander Wildner além do próprio Frank Jorge — um dos co-
ordenadores do curso recém-formado — unem-se a advogados, historiadores, pro-
fessores e pesquisadores para enriquecer o debate. Contribuíram Antônio Marcus
Alves de Souza, Carlos Eduardo Miranda, Cristina Capparelli, Débora Sztajnberg,
Heron Vargas, João Paulo Sefrim e Johnny Lorenz.

www.ihu.unisinos.br
Que universidade o País necessita?
Edição 90-Ano-IV-01-03-2004
Disponível em http://bit.ly/17tdY0O

De uma edição de 2004 da Revista IHU On-line, recuperamos uma discussão


que ainda permanece atual: o papel das Universidades brasileiras. A responsabili-
dade social destas instituições, em que ponto elas se inserem na construção de um
projeto nacional e os enfoques possíveis e necessários para a formação superior no
País são alguns dos temas abordados. Cristovam Buarque, Wrana Panizzi, Ione Bentz
e Luis Ugalde participam da discussão para tentar responder, afinal, que Universida-
de o Brasil realmente necessita.

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 75


Publicaçãos em destaque
IHU em Revista

A pessoa na era da biopolítica:


autonomia, corpo e sociedade

Cadernos IHU ideias traz, na sua


194ª edição, o texto A pessoa na era da
biopolítica: autonomia, corpo e socie-
dade, da professora doutora em Direito
e livre docente da Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro — UFRJ, Heloisa
Helena Barboza.
A contemporaneidade é um espa-
ço no qual a biopolítica marca a matriz
epistêmica de nossas sociedades. É
dentro deste contexto que a professora
estabelece o diálogo entre a governan-
ça da vida humana, a autonomia dos
sujeitos e formação social marcada por
este campo de tensão. Sob a luz do Di-
reito brasileiro, Heloisa reflete. “A pro-
posta do presente trabalho é singela, ou
ao menos tenta ser prudente: abordar
os efeitos de algumas interferências no
corpo humano, que suscitam questões
jurídicas à luz do direito brasileiro. Mais
precisamente, procura-se trazer ao de-
bate o corpo como locus de construção
da identidade do ser humano, a qual se
dá à luz da autonomia e da subjetivida-
de, em sua possível harmonização com
o Direito. Considera-se o corpo do início
do século XXI, que traduz de modo bas-
tante claro a era da biopolítica, cenário
inafastável que fornece os elementos e
onde se desenvolve o mencionado pro-
cesso de construção. Indispensáveis,
por conseguinte, breves incursões nos
www.ihu.unisinos.br

conceitos envolvidos, especialmente no


de biopolítica, como formulado por Mi-
chel Foucault”, explica.
Esta e outras edições dos Cader-
nos IHU ideias podem ser adquiridas
diretamente no Instituto Humanitas
Unisinos — IHU ou solicitadas pelo en-
dereço humanitas@unisinos.br.
Informações pelo telefone (51) 3590
8247.
A partir do dia 04 de outubro de 2013,
o arquivo será disponibilizado em PDF
no link http://bit.ly/GD6sTY.

76 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


Entrevista de Eventos

IHU em Revista
Abordagem interdisciplinar da
saúde pública em debate
A Unisinos sediará, nos dias 26 e 27 de setembro, o II Seminário do Mercosul
sobre pediculose, escabiose e tungíase, onde profissionais de várias áreas
discutirão o tema

Marcadas pelo tabu e pelo preconcei- mação, às condições de moradia e aos ser-
to, inclusive entre profissionais das áreas da viços municipais. Não raro, seres humanos e
saúde, doenças como pediculose (piolho-da- animais domésticos dividem o mesmo espaço
-cabeça), escabiose (sarna) e tungíase (bicho- de convívio, favorecendo o surgimento de en-
-do-pé) serão o centro das discussões no II fermidades entre uma camada social com o
Seminário do Mercosul sobre pediculose, mínimo de condições básicas de renda e hi-
escabiose e tungíase: uma abordagem inter- giene”, avalia Gelson. “Os parasitas e vetores,
disciplinar, que será realizado nos dias 26 e geralmente, possuem um ciclo de vida curto.
27 de setembro no Auditório Pe. Werner, na Assim, apresentam intensa multiplicação com
Unisinos, em São Leopoldo. A proposta do número elevado de indivíduos. As populações
evento, coordenado pelo professor mestre que vivem em situação de miséria, pobreza e
Gelson Luiz Fiorentin, que concedeu entrevis- vulnerabilidade social geram considerações
ta por e-mail à revista IHU On-Line, é “capaci- favoráveis para multiplicação e manutenção
tar nossos agentes (públicos) e ampliar o nú- do ciclo desses animais em suas habitações”,
mero de pessoas trabalhando nessas áreas”, complementa.
explica Gelson. Gelson Luiz Fiorentin é graduado em
Segundo o coordenador do evento, há Ciências e em Biologia pela Unisinos. Fez
uma carência de ações objetivas no sentido mestrado em Biociências (Zoologia) pela Pon-
de garantir acesso à informação e prevenção tifícia Universidade Católica do Rio Grande do
junto às comunidades mais vulneráveis, so- Sul — PUC-RS. Atualmente é professor titular
bretudo quando se leva em conta a carência da Unisinos e professor titular da Universida-
de profissionais para a área. “A desigualdade de Luterana do Brasil — Ulbra.
social e a miséria potencializam a incidência Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br
entre a população com menor acesso à infor-

IHU On-Line – Quais são os obje- podem causar, principalmente, na co- -pé) apresentam uma característica
tivos do II Seminário do Mercosul so- munidade escolar. comum, que é o prurido (coceira),
bre pediculose, escabiose e tungíase? muitas vezes bastante intenso. Esse
Gelson Luiz Fiorentin - Trata-se IHU On-Line - Como cada uma sintoma, aliado a outros, pode gerar
de um seminário que visa salientar dessas doenças se manifesta e quais irritação e consequentemente alterar
a importância conjunta entre educa- são suas características? o rendimento escolar.
dores e gestores das áreas de saúde, Gelson Luiz Fiorentin - A pedi-
ambiente e assistência social sobre culose (piolho-da-cabeça), a esca- IHU On-Line - Alguma dessas
os prejuízos que esses organismos biose (sarna) e a tungíase (bicho-do- doenças pode levar à morte? Como?

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 77


Gelson Luiz Fiorentin - Qualquer atua com vários profissionais, porém IHU On-Line - Que caracterís-
IHU em Revista
doença, se não for tratada adequa- não ocorre a participação de biólogos, ticas devem ter as equipes mul-
damente, pode levar seu hospedeiro que somaria no diagnóstico ambiental tidisciplinares para atender esse
à morte. Para destacar a importância das habitações e seus entornos. público?
da “educação preventiva”, por exem- Gelson Luiz Fiorentin - Primei-
plo, a pessoa com bicho-do-pé pode IHU On-Line - Em que medida es- ro, as equipes precisam, realmente,
adquirir infecção secundária, como o tas doenças estão associadas a ques- ser constituídas por profissionais que
tétano. Se não for atendida, pode le- tões sociais como pobreza, más con- possam observar além da patologia.
var à morte. dições de moradia e desinformação? Nesse caso, as pessoas e suas condi-
Gelson Luiz Fiorentin - A falta ções socioambientais são extrema-
IHU On-Line - Em que medida as de infraestrutura nas cidades, princi- mente relevantes. Os profissionais
enfermidades humanas causadas por palmente nas periferias dos grandes devem estar preparados com “olhos
insetos se configuram como um pro- centros urbanos, onde o saneamen- clínicos” para elaboração de diagnós-
blema de saúde pública? to básico é precário e há acúmulo ticos corretos.
Gelson Luiz Fiorentin - Bem, ini- de lixo, é um fator não negligenci-
cialmente, devemos esclarecer que no ável pelo número de incidência de IHU On-Line - Quais são os prin-
seminário vamos trabalhar principal- pediculose, tungíase e escabiose. cipais desafios ao controle de pedicu-
mente com insetos e acarinos, os quais A desigualdade social e a miséria lose, escabiose e tungíase no Brasil?
podem ser vetores de agentes patogê- potencializam a incidência entre a No que o país avançou nas últimas
nicos. Não podemos negligenciar tam- população com menor acesso à in- décadas?
bém que estes sintomas estão intrinsi- formação, às condições de moradia Gelson Luiz Fiorentin - O Brasil
camente associados à pobreza, onde e aos serviços municipais. Não raro, avançou na área da saúde pública
precárias condições de saneamento seres humanos e animais domés- e na educação. Somente nos tor-
levam a uma maior probabilidade de ticos dividem o mesmo espaço de naremos um país desenvolvido por
ocorrência, e, justamente por este convívio, favorecendo o surgimento meio de um processo de educação
estigma, muitos gestores dos setores de enfermidades entre uma camada de qualidade, iniciando pelo ensino
públicos culpabilizam o indivíduo pela social com o mínimo de condições fundamental. Qualificar e valorizar
falta de higiene e não focalizam suas básicas de renda e higiene. Os para- os profissionais e criar condições
ações no cerne da questão social. sitas e vetores geralmente possuem adequadas para exercer um trabalho
um ciclo de vida curto. Assim, apre- com dignidade.
IHU On-Line - No Brasil, como sentam intensa multiplicação com
os agentes de saúde pública tratam a número elevado de indivíduos. As IHU On-Line - Deseja acrescen-
questão? populações que vivem em situação tar algo?
Gelson Luiz Fiorentin - Não so- de miséria, pobreza e vulnerabilida- Gelson Luiz Fiorentin - Para
mos especialistas na área. Estamos de social geram considerações favo- uma abordagem em saúde coleti-
muito longe de atingir nossas metas ráveis para multiplicação e manu- va, não basta apenas uma consti-
com a saúde pública. Precisamos ca- tenção do ciclo desses animais em tuição de equipe multidisciplinar.
pacitar nossos agentes e ampliar o nú- suas habitações. Há necessidade e urgência de as
mero de pessoas trabalhando nessas áreas do conhecimento saírem de
áreas. O programa Estratégia de Saú- IHU On-Line - Por que há carên- suas “caixinhas” e de seus saberes
de da Família — ESF1, por exemplo, cia de profissionais para essa área? e adotarem uma intervenção inter-
Gelson Luiz Fiorentin - Além da disciplinar. Em uma realidade na
www.ihu.unisinos.br

1 Estratégia de Saúde da Família: o carência, podemos destacar que pare- qual atravessamentos como a misé-
programa visa a reorganização da atenção ce não haver interesse, por muitos ad- ria, a degradação ambiental, a falta
básica em saúde no país, conforme os
preceitos do Sistema Único de Saúde - ministradores, com a saúde das pes- de infraestrutura, o difícil acesso à
SUS. É coordenado pelo Ministério da soas que mais necessitam. Estamos informação e aos serviços públicos
Saúde, em conjunto com os gestores
estaduais e municipais, e executado por precisando educar para a prevenção. se manifestam aos pares, não há
equipes multiprofissionais compostas Nesse contexto, as crianças e adoles- espaço para uma única visão, pois
por, no mínimo: um médico generalista
ou especialista em Saúde da Família ou centes são os que sofrem as maiores as expressões da questão social se
médico de Família e Comunidade; um consequências. manifestam sob vários prismas, ne-
enfermeiro generalista ou especialista em
Saúde da Família; um auxiliar ou técnico
cessitando, dessa forma, da soma
de enfermagem; agentes comunitários dos conhecimentos.
de saúde. Eventualmente, as equipes dentista generalista ou especialista em
contam também com profissionais de Saúde da Família e auxiliar e/ou técnico
saúde bucal, entre os quais cirurgião- em Saúde Bucal. (Nota da IHU On-Line).

78 SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 | EDIÇÃO 427


Sala de Leitura

IHU em Revista
♦ ♦ ♦ ♦ ♦

SOUZA, Carlos Leite de; e AWAD, Juliana di Cesare Marques. Ci-


dades Sustentáveis, Cidades Inteligentes. Porto Alegre: Editora
Bookman, 2012.

O desenvolvimento futuro dos municípios e das cidades de-


pende de um profundo planejamento em bens e serviços, infor-
mação e conhecimento, capital e pessoas. Nesse sentido, o livro
‘Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes’ introduz o conceito de
sustentabilidade no planejamento das cidades, abordando seus
maiores desafios do momento: questões ambientais, moradia,
mobilidade, inclusão, segurança, oportunidades e governança.
Um ponto que destaco nesta obra acontece quando o autor analisa a reinvenção das cidades
e insere os conceitos de inovação e economia criativa na discussão proposta, posicionando os
processos que envolvem criação, produção e distribuição de produtos e serviços.
Fabricio Tarouco é coordenador do curso de Design da Unisinos.

♦ ♦ ♦ ♦ ♦
TAHAN, Malba. O homem que calculava, 79. Ed. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2010.

O homem que calculava narra as aventuras de um calculista persa,


chamado Beremiz Samir, no caminho entre Samarra e Bagdá, no século
XIII. Ao longo da história, são apresentados problemas e curiosidades
matemáticas, inspirados nos contos de Mil e Uma Noites. Malba Tahan
ensinava matemática por meio da ficção e é aqui que reside a grande
curiosidade. O autor Malba Tahan, nascido em 1885, na Árábia Saudita,
cuja obra seria traduzida pelo fictício professor Breno Alencar Bianco,
nada mais é do que o pseudônimo do matemático e escritor brasileiro Júlio César de Mello e
Souza. Júlio César foi um aluno com mau desempenho em matemática, apontando o ensino
tradicional como vilão. A própria biografia do professor, que ficou célebre por sua atuação
inovadora, com uma didática própria, lúdica e divertida, é um enredo de ficção, visto que
somente conseguiu destaque para os seus contos quando criou um fictício autor americano,
R. S. Slade, viabilizando a publicação de sua obra.
Gustavo Paim é professor do curso de Direito da Unisinos.
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CURY, Augusto Jorge. Pais brilhantes, professores fascinan-
tes. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2003.

Este livro é recomendado especialmente para pais, profes-


sores e todos os compromissados com uma educação de exce-
lência. O autor é médico psiquiatra, pós-graduado em psicologia
social e cientista. Após realizar a leitura, alterei minha postura
como pai e professor. “Falar do conhecimento sem humanizá-lo,
sem resgatar a emoção da história, perpetua nossas misérias e
não as cura.” Ele mostra que, para sermos eficazes na educação,
temos que usar as ferramentas utilizadas pelos pais brilhantes
e pelos professores fascinantes. Além disso, alerta para os pecados capitais dos educadores
e ensina técnicas pedagógicas que podem revolucionar tanto a sala de aula como a sua casa.
Para terminar, uma mensagem que retirei do livro: “Bons pais dão oportunidades, pais brilhantes nunca desistem.”
João Hermes Nogueira Junqueira é professor do curso de Engenharia Civil da Unisinos.

EDIÇÃO 427 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE SETEMBRO DE 2013 79


Contracapa
Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania
O Instituto Humanitas Unisinos - IHU realiza entre os dias 2 de outubro e 19 de novembro de 2013 diversos
debates sobre os 25 anos da Constituição no Brasil. O documento que marca a transição do Estado absoluto para
o Estado libe-ral será discutido por pensadores de diversas áreas.
Os desafios de nossa jovem democracia são inúmeros, ainda mais quando se coloca em perspectiva a complexa
rede formada por questões sociais, econômicas e ambientais. Os avanços e os limites da Constituição serão ampla-
mente abordados nas dez conferências previstas para o seminário. Mais informações no link http://bit.ly/1bMX8eT.

Programação
Data: 28-10-2013
Data: 02-10-2013 Evento: Reconhecimento de culturas, direito à terra
Evento: A Constituição no Supremo Tribunal Fede- e a Constituição Federal de 88.
ral: a (des) construção da democracia brasileira Mesa redonda com Prof. Dr. José Otávio Catafesto
Palestrante: Prof. Dr. Adriano Pilatti – Instituto de de Souza – LAE/UFRGS e Profa. MS Janaina Cam-
Direito/PUC-Rio pos Lobo – INCRA - UFRGS.
Horário: 17h30min às 19h Horário: 20h às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Evento: Vivências e Reflexões sobre o Processo Data: 31-10-2013


Constituinte: o período pré e pós Constituição Evento: A evolução processual, participação, re-
Palestrante: Prof. Dr. Adriano Pilatti – Instituto de presentação e democracia progressiva a partir da
Direito/PUC-Rio Cons-tituição Federal de 1988
Horário: 20h às 22h Palestrante: Prof. Dr. Luiz Werneck Vianna - PUC-Rio
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Horário: em definição
Local: Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Data: 03-10-2013
Evento: Constituição e Constituinte: limites, avan- Data: 06-11-2013
ços, golpes e resistências Evento: Ética, Política e Constituição no Brasil: 25
Palestrante: Prof. Dr. Dalmo de Abreu Dallari - USP anos de avanços
Horário: 20h às 22h Palestrante: Prof. Dr. Roberto Romano – Unicamp
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Horário: 20h às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Data: 15-10-2013
Evento: Cidadania e Republicanismo no Brasil: um Data: 12-11-2013
olhar a partir da Constituição Federal de 88 Evento: O direito e a memória no Brasil a partir da CF 88
Palestrante: Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Júnior - UNB Palestrante: Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho
Horário: 20h às 22h - PUCRS
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Horário: 20h às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Data: 21-10-2013
Evento: Impactos econômicos do Marco Constitucio- Data 18 e 19-11-2013
nal no Brasil Evento: III Seminário: Observatórios, Meotodolo-
Palestrante: Profa. Dra. Tania Bacelar de Araújo – UFPE gias e Impactos nas Políticas Públicas: Estado, So-
Horário: 17h às 19h ciedade, Democracia e Transparência
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Programação completa no link http://bit.ly/1bMX8eT

Data: 22-10-2013 Data: 19-11-2013


Evento: A questão ambiental no Brasil e a Constituição Evento: CF, os Direitos Sociais e a cidadania
Federal hoje. Avanços e retrocessos Palestrante: Profa. Dra. Maria da Gloria Gohn - Uni-
Palestrante: Prof. MS André Lima - IPAM camp
Horário: 20h às 22h Horário: 20h às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

twitter.com/ihu http://on.fb.me/o26cNs

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