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Revista do Instituto Humanitas Unisinos


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Nº 399 - Ano XII - 20/08/2012 - ISSN 1981-8769

Vilém Flusser: Um
comunicólogo transdisciplinar
Eva Batličková: Michael
Erick Felinto: Imagens técnicas, Manfred Hanke:
Um teórico barroco? instrumento de “Flusser foi um pioneiro,
manipulação do homem mas chegou antes da
hora”
E MAIS

Todd Salzman e Marcelo Sgarbossa: Textos inéditos de


Michael Lawler: “Sou mais feliz quando Flusser nesta edição:
Por uma nova estou de bici” “No além das máquinas”
moralidade sexual e “Modelos do corpo
humano”
Vilém Flusser:
Editorial

Um comunicólogo transdisciplinar

A
vida e obra do filósofo e teó- sidade Católica de São Paulo – PUC- A IHU On-Line agradece ao professor
rico da mídia, Vilém Flusser -SP, Flusser se revela cada vez mais um Siegfried Zielinski1 (teórico da mídia
são descritos, comentados e pensador pioneiro dos novos e sur- alemão) pelo envio dos textos.
analisados nesta edição da preendentes desenvolvimentos cultu- A Editora Unisinos acaba de pu-
IHU On-Line. E dois textos dele, inédi- rais e comunicacionais do século XXI. blicar o livro A pessoa sexual (original
tos, são publicados. De acordo com César Baio, pro- inglês: The sexual person) de Todd
Indisciplinado e polêmico Flusser fessor-adjunto do Instituto de Cultu- Salzman e Michael Lawler, ambos pro-
não foi nada tradicional, academica- ra e Arte da Universidade Federal do fessores do departamento de Teologia
mente falando. “Seu discurso não era Ceará – UFC, Flusser tinha um estilo da Universidade Creighton, nos Esta-
um que a academia aceitasse com fa- muito específico de escrita. Para ele, dos Unidos. Publicamos uma ampla e
cilidade, porque ele dava saltos entre seus textos, ora entusiasmados, ora instigante entrevista com os autores
diversas formas de conhecimento; críticos com as tecnologias de comu- da obra.
não era um pensamento sempre ló- nicação, deixam até hoje estonteados A vida e o trabalho do advogado
gica e rigorosamente estruturado”, seus leitores. Jacques Távora Alfonsin também são
avalia o professor da Universidade Es- O professor-associado na UERJ, destaques nesta edição.
tadual do Rio de Janeiro – UERJ, Erick Gustavo Bernardo Krause, por sua Por fim, o advogado e professor
Felinto de Oliveira. vez, avalia que Flusser constitui a si universitário Marcelo Sgarbossa con-
Segundo Michael Manfred Hanke, mesmo como um personagem enig- cede uma entrevista em que antecipa
professor da Universidade Federal do mático que pode muito bem resumir aspectos da conferência “Mobilida-
Rio Grande do Norte – UFRN, Vilém o homem ocidental do século XX. de urbana: a bicicleta como meio de
Flusser era indisciplinado e seria um Por fim, para o professor titular transporte sustentável” a ser proferi-
horror para o sistema Capes ou CNPq. do Departamento de Filosofia da Uni- da e debatida na próxima quinta-feira,
Eva Batličková, da República versidade Federal de Minas Gerais dia 23 de agosto, na Sala Ignacio Ella-
Tcheca, destaca que Flusser sempre – UFMG, Rodrigo Antonio de Paiva curía e Companheiros, no IHU.
se engajava em prol do homem, que, Duarte, Flusser é um filósofo atualís-
para ele, significava posicionar-se con- simo, pois parece ter previsto – mais A todas e a todos uma ótima se-
tra a máquina. de vinte anos antes que essas coisas mana e uma excelente leitura!
O editor-chefe da revista Flusser se tornassem realidade – o nosso coti-
Studies e um dos pesquisadores da diano totalmente telematizado.
obra de Flusser, Rainer Guldin, frisa
que o autor viu alguns aspectos pro- Também compõem esta edição
1 Leia uma entrevista concedida por ele
blemáticos do estar em rede, do exis- dois textos inéditos de Vilém Flusser, à IHU On-Line, intitulada “Ser offline
tir online. que foram cedidos pelo Arquivo Flus- e existir online”, publicada na edição
Já para Norval Baitello Junior, ser, na Universidade de Arte, em Ber- número 375, de 03-10-2011, disponível em
http://bit.ly/PyeX5H (Nota da IHU On-
professor titular da Pontifícia Univer- lim, o qual possui os direitos autorais. Line)
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Unisinos André Langer e Darli Sampaio,
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São Leopoldo/RS. ISSN 1981-8769. (grazielaw@unisinos.br). Projeto gráfico: Agência
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Telefone: 51 3591 1122 - ramal 4128. acessada às segundas-feiras, da Unisinos - Agexcom.
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Revisão: Isaque Correa
Schneider (jacintos@unisinos.br). (icorrea@unisinos.br). Wagner Altes e Mariana Staudt

2
Tema de Capa
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Biografia de Vilém Flusser
7 Michael Manfred Hanke: “Flusser foi um pioneiro, mas chegou antes da hora”
12 Eva Batličková: Imagens técnicas, instrumento de manipulação do homem
15 Erick Felinto de Oliveira: Um teórico barroco?
19 Texto inédito de Flusser: No além das máquinas
23 Rainer Guldin: Flusser e a filosofia da pluralidade, do encontro e do diálogo
27 Norval Baitello Junior: Um filósofo, culturólogo e comunicólogo
29 César Baio: Guru ou pessimista em relação à sociedade informacional?
32 Gustavo Bernardo Krause: Personagem enigmático do século XX
34 Rodrigo Antonio de Paiva Duarte: Imagens técnicas, código fundante da pós-história
36 Mais um texto inédito de Flusser: Modelos do corpo humano

DESTAQUES DA SEMANA
42 LIVRO DA SEMANA: Todd Salzman e Michael Lawler: Por uma nova moralidade
sexual
48 COLUNA DO CEPOS: César Bolaño: Valério Brittos e o campo da Economia Política da
Comunicação brasileira: contribuição teórica e a pauta pendente
50 DESTAQUES ON-LINE

IHU EM REVISTA
52 Agenda da Semana
53 Perfil: Jacques Távora Alfonsin
60 Marcelo Sgarbossa: “Sou mais feliz quando estou de bici”
62 IHU Repórter: Petronila Libana Rauber Cechin www.ihu.unisinos.br

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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Alguns traços da vida

Tema de Capa
e obra de Vilém Flusser

Pesquisadores da obra de
Vilém Flusser o apresentam
aos leitores e às leitoras
da IHU On-Line:

“Vilém Flusser foi um filósofo e de quinze países, boa parte do seu veu pode ser mais bem compreendido
teórico da mídia nascido em 1920, trabalho permanece desconhecido, hoje do que em sua época. Outro as-
em Praga. Em 1940, imigrou para o inclusive do público brasileiro. pecto que caracteriza a grande impor-
Brasil com Edith Barth, que viria a ser tância da sua obra é a perspectiva te-
sua esposa. Aqui, naturalizou-se e vi-
Perspectiva teórica e filosófica órica e filosófica peculiar adotada por
veu por mais de trinta anos, até seu
peculiar ele, fortemente influenciada pela ci-
retorno à Europa, no início da década Muitos dos seus textos ainda es- bernética e pela fenomenologia. Esse
de 1970. No Brasil, seu pensamen- tão restritos a usuários da língua ale- ponto de análise específico e original
to floresceu e seus primeiros textos mã. A amplitude das publicações na- permitiu muitos dos seus conhecidos
foram escritos e publicados. Seu re- quele país permite que Flusser ocupe insights.
torno ao velho continente o inseriu atualmente um lugar de destaque na César Baio
nos círculos intelectuais ao lado dos teoria da mídia, na Alemanha. No Bra- Professor adjunto do Instituto de
grandes pensadores da época, o que sil, desde a década de 1970, sua influ- Cultura e Arte da Universidade Federal do
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o tornou reconhecido mundialmen- ência foi grande em um determinado Ceará – UFC
te. Tanto na Europa como no Brasil, círculo intelectual paulistano. À medi-
a radicalidade de seu pensamento, da que seus textos estão sendo redes-
cobertos e publicados, a importância “Vilém Flusser é um dos pensa-
seus métodos não acadêmicos e o
de sua obra cresce no meio acadêmi- dores mais originais e instigantes do
seu poder de argumentação chama-
co brasileiro e internacional. Grande século XX. Judeu, nasceu em Praga,
vam a atenção até mesmo de seus
parte dessa valorização se deve ao na antiga Tchecoslováquia, mas pre-
críticos. Entretanto, embora seu mais
fato de Flusser ter enfrentado, logo cisou fugir da invasão nazista, che-
conhecido livro, Filosofia da caixa
no alvorecer das tecnologias de infor- gando ao Brasil em 1940. Naturaliza-
preta1, tenha sido publicado em mais
mação e comunicação, algumas das do brasileiro, viveu entre nós por 30
principais questões que surgem de anos, mas a ditadura militar o obri-
1 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa
Preta. Ensaios para uma futura filosofia da uma cultura permeada pelos aparatos gou a voltar à Europa em 1973. Au-
fotografia (São Paulo: Hucitec, 1985) (Nota tecnológicos. Muito do que ele escre- tor de mais de 30 livros e de cerca de
da IHU On-Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 5


mil ensaios curtos, é mais conhecido Breve biografia de Vilém conservador entre seus pares. Apa-
Tema de Capa
como escritor de língua alemã, em- Flusser rentemente, a não renovação do
bora tenha escrito e reescrito quase Nascido na recém independente seu contrato com a Universidade
todos os seus trabalhos em quatro Tchecoslováquia, de uma família de deveu-se à falta de comprovação de
línguas, nessa ordem: alemão, por- intelectuais judeus (seu pai era pro- títulos acadêmicos.
tuguês, inglês e francês. Não escrevia fessor universitário de matemática e De todo modo, uma vez excluído
em tcheco, considerando sua língua física), Vilém Flusser estudou filosofia da universidade, Vilém deixa o Brasil
materna “adocicada demais”. na Universidade Carolina, em Praga, em 1972 para viver inicialmente na
Gustavo Bernardo Krause entre 1938 e 1939. Naquele ano dei- Itália e posteriormente na França e na
Professor Associado da Universidade do xou seu país, com os pais de sua futura Alemanha.
Estado do Rio de Janeiro – UERJ mulher, Edith Barth, para viver em Lon- Manteve-se bastante ativo até
dres. Prosseguiu seus estudos na Lon- o final de sua vida, escrevendo e mi-
don School of Economics and Political nistrando conferências na área de
“Vilém Flusser foi um pensador
Science, sem no entanto concluí-los. Teoria da Comunicação. Seus traba-
extremamente lúcido, que contribuiu
Em 1940, seus pais, irmã e avós lhos se concentraram na discussão
e dialogou com várias disciplinas das
são mortos em campos de concen- do pensamento de Heidegger, sendo
ciências humanas. Entrou na história
tração da Alemanha: o pai, em Bu- marcados pelo existencialismo e pela
do pensamento como teórico de mí-
chenwald; os avós, a mãe e a irmã, em fenomenologia.
dia, mas ele era também um impor-
Theresienstadt. Vilém Flusser morreu em aciden-
tante filósofo, especialmente no cam-
No ano seguinte, ele e Edith emi- te de trânsito, ao visitar sua cidade
po da filosofia da linguagem. Além
gram para o Brasil. No mesmo ano, ca- natal, para ministrar uma conferência.
disso, seus textos possuem um grande
valor literário. sam-se no Rio de Janeiro, fixando-se
posteriormente na cidade de São Pau-
Principais obras
lo. Em 1950, naturaliza-se brasileiro. • Língua e Realidade (São Paulo,
Luta contra a ideologia e a Ao longo da década de 1960, le- 1963)
demagogia ciona Filosofia da Ciência, na Escola • A História do Diabo (São Paulo,
O que considero mais importan- Politécnica da USP, e Filosofia da Co- 1965)
te na obra de Flusser é sua infatigável municação, na Escola Superior de Ci- • Da Religiosidade (São Paulo, 1967)
luta contra qualquer tipo de ideologia nema e na Escola de Arte Dramática • Le Monde Codifié (Paris, 1972)
e demagogia, que assumem as formas (EAD), também em São Paulo. Publica • Natural:mente (São Paulo, 1979)
mais inesperadas na nossa sociedade. seu primeiro livro - Língua e realidade • Pós-história (São Paulo, 1982)
Ele nos ensina que toda informação em 1963. • A Filosofia da Caixa Preta: Ensaios
que recebemos, por mais clara e trans- Porém, em 1970, quando a re- para uma futura filosofia da foto-
parente que nos possa parecer, precisa forma universitária agregou todos grafia (São Paulo, 1983)
ser detalhadamente examinada. Por- os professores de filosofia da USP • Ins Universum der technischen
que nós todos vivemos num mundo ao Departamento de Filosofia da Bilder (Göttingen, 1985)
codificado e, sem o permanente es- FFLCH, Flusser, que era professor da • Die Schrift – Hat Schreiben
forço de decifrá-lo, tornamo-nos facil- Politécnica, não foi recontratado. A Zukunft?(Göttingen, 1987)
• Vampyroteuthis infernalis (Göttin-
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mente manipuláveis e exploráveis” hipótese de que sua saída da Univer-


Eva Batličková sidade tenha sido mais um episódio gen, 1987)
É mestre em filosofia e língua e literatura de repressão política relacionado • Angenommen – eine Szenenfolge
portuguesa. “A época brasileira de Vilém ao regime militar, vigente na época, (Göttingen, 1989)
Flusser” é o título de sua dissertação de não parece provável. A maioria dos • Gesten – Versuch einer Phänom-
filosofia. membros do Departamento era bas- enologie (Düsseldorf/Bensheim,
Atualmente, trabalha na editora tante crítica com relação ao regime, 1991).
Annablume. enquanto Flusser era considerado

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Tema de Capa
“Flusser foi um pioneiro, mas
chegou antes da hora”
A comunicação ainda não era valorizada como disciplina acadêmica nos anos em
questão, no final da década de 1960. Quando a Escola de Comunicações e
Artes – ECA foi criada, em 1972, Flusser já não estava mais no Brasil, explica
Michael Manfred Hanke

Por Thamiris Magalhães

“A
obra de Flusser é uma teoria da ousadas, mesmo correndo riscos têm seu va-
comunicação e cultura refletida fi- lor”, admite Hanke.
losoficamente”, conclui o professor Michael Manfred Hanke possui mestra-
Michael Manfred Hanke, em entrevista con- do em Linguística, Psicologia e Comunicação
cedida por e-mail à IHU On-Line. “Quem está pela Universidade de Bonn, na Alemanha,
em busca de uma reflexão filosófica nesse doutorado pela Universidade de Essen, tam-
sentido está bem servido com o autor”, conti- bém na Alemanha, revalidado na modalidade
nua. Para o docente, Flusser representa uma Doutor em Letras: Estudos Literários no Brasil
ponte. “Ele traz pensamentos filosóficos tra- em 2001 e pós-doutorado pela Universidade
dicionais (Kant, Hegel, Marx, os gregos), com de Siegen, Alemanha. Possui livre-docência
pensadores mais recentes do século XX (Hus- em Ciências da Comunicação pela Essen. É
serl, Heidegger, Sartre, Wittgenstein, entre professor visitante em Belo Horizonte, Co-
outros), e se baseia no pensamento da teoria lônia, Weimar, Mogúncia, Milão e Berlim. É
de informação. As ideias e questionamentos professor-adjunto da Universidade Federal do
destes são transformados pelos olhos de Flus- Rio Grande do Norte – UFRN, no Centro de
ser e, assim, eles são apresentados para nós”. Ciências Humanas, Letras e Artes, no Depar-
Ademais, segundo Michael, Vilém Flusser tamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras
era indisciplinado. “Flusser seria um horror Modernas, e docente permanente do Progra-
para o sistema Capes ou CNPq. Ele acabaria ma de Pós-Graduação em Estudos da Mídia,
com a estrutura. Ou melhor, a estrutura, sen- na linha de pesquisa “Estudos de Mídia e Pro-
do mais forte, acabaria com ele. Mas ultrapas- dução de Sentido”.
sar fronteiras, pensar diferente, construções Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Como foi a vinda não perdeu a vida, porque foi retido o que possibilitou a entrada para o
de Vilém Flusser para o Brasil? Por pela polícia nazista na fronteira entre Brasil. Assim, ele e a família chegaram
que ele resolveu vir para o país? Alemanha e Holanda. Seu futuro sogro aqui, resultados de fatores imponde-
Michael Manfred Hanke – Flus- conseguiu libertá-lo, porém, depois ráveis e acasos. Essa condição mexeu
ser foi filho de uma família de classe cobrou para isso. Flusser conseguiu fu- com ele psicologicamente e depois
alta em termos econômicos e cultu- gir para Inglaterra, mas, dado o perigo esses elementos biográficos foram
rais, com uma boa formação escolar, de invasão nazista naquele país tam- até refletidos filosoficamente, nas re-
multilíngue e multicultural, de Praga, bém, a fuga continuou. Entre diversas flexões sobre emigração e Heimatlo-
de origem judaica. Fez parte da co- opções, surgiu Brasil como destino. sigkeit, apatridade. Ademais, o Brasil,
munidade tcheco-alemã de Praga. A Judeus não foram permitidos entrar em primeira instância, foi uma opção.
invasão nazista em 1939 acabou com em nosso país naquela época. Por isso Com o passar dos anos, a relação, a in-
essa vida e todos os planos de um fu- o filósofo e a família da futura esposa timidade com a cultura e a nação cres-
turo promissor. Para salvar sua vida, compraram documentos do consulado ceram e o autor se identificou cada vez
ele teve que fugir. Por muito pouco brasileiro que atestaram origem cristã, mais com o país.

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IHU On-Line – De que maneira Quem confiaria num país assim sob fo e assim se considerou. A partir de
Tema de Capa
Flusser foi recepcionado no Brasil? essas circunstâncias? 1965, aderiu-se ao pensamento comu-
Qual a importância da vinda dele nicológico e a comunicação ganhou
para o país? Reviravolta posição de liderança em sua identi-
Michael Manfred Hanke – Os pri- Flusser, ainda naquela época, dade. Depois chega a defender que a
meiro anos foram difíceis, marcados não foi professor concursado. Traba- comunicação substituiu a filosofia na
pela luta pela sobrevivência. O sogro lhou como horista em universidades posição do carro-chefe das humanida-
cobrou dele o sustento da família, o particulares, com baixa remuneração. des. O conceito da comunicação por
que impediu a continuação de sua Então, com a situação política, aca- este caminho acadêmico do autor é
vida acadêmica. Nos anos de guerra dêmica e financeira ruim, a realidade composto por estas influências.
e pós-guerra, não pôde se falar em não era um cenário favorável. Ele ain-
recepção propriamente. Apenas pos- da participou como curador da Bienal Comunicação analisada
teriormente Flusser se encaixou na de São Paulo. Porém suas ideias não filosoficamente
vida intelectual paulista, no Instituto foram realizadas, e se viu diante de Filosoficamente, o conceito é de
Brasileiro de Filosofia – IBF, sob a dire- um fracasso. A viagem para a Europa caráter existencialista, influenciada
ção do seu amigo Miguel Reale1, que levou a esposa e o autor primeiramen- por Heidegger2 e Sartre3, formulado
o acolheu e ofereceu um lugar, aque- te para Itália, e eles inicialmente es- numa forma dramática, segundo o
le lugar que ele tinha perdido quando tenderam a viagem. Depois, encanta- qual o homem é um ser “condenado
jovem. Melhor tarde do que nunca. ram-se com a vida na Europa e Flusser,
Flusser no final da década de 1950 co- em particular, sentiu-se academica- 2 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
meçou sua carreira acadêmica. mente bem vindo – recebeu convites alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
(1927). A problemática heideggeriana é
A importância dele para o Bra- para mesas-redondas em Paris, para ampliada em Que é Metafísica? (1929),
sil se deveu ao fato de que São Paulo ser professor visitante no sul da França Cartas sobre o humanismo (1947),
etc. Ele avaliou que as chances da vida Introdução à metafísica (1953). Sobre
naquela época era um caldeirão com Heidegger, a IHU On-Line publicou na
muitos ingredientes. Flusser contri- seriam melhores, e o casal Flusser re- edição 139, de 2-05-2005, o artigo O
buiu, trazendo a bagagem do velho solveu ficar. Sua produtividade subiu; pensamento jurídico-político de Heidegger
o clima intelectual teve um impacto e Carl Schmitt. A fascinação por noções
continente, de Praga, com uma forma- fundadoras do nazismo, disponível para
ção tradicional, e muita curiosidade positivo. Entretanto, nunca perdeu a download em http://migre.me/uNtf.
por aventuras de pensamento, inte- ligação com o Brasil, sempre voltando Sobre Heidegger, confira as edições 185,
de 19-06-2006, intitulada O século de
resse para questões contemporâne- aqui para ministrar conferências, mini- Heidegger, disponível para download
as, de filosofia, cultura, comunicação, cursos e participar de debates. em http://migre.me/uNtv, e 187, de
3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A
mudanças estruturais da sociedade e desconstrução da metafísica, que pode
do pensamento, história da ciência e IHU On-Line – Qual a contri- ser acessado em http://migre.me/uNtC.
da condition humaine. buição de Flusser para o jornalismo Confira, ainda, o nº 12 do Cadernos IHU
brasileiro? Em Formação intitulado Martin Heidegger.
A desconstrução da metafísica, que pode
IHU On-Line – Quais foram os Michael Manfred Hanke – Flus- ser acessado em http://migre.me/uNtL.
motivos que o levaram a deixar o ser sempre se viu como teórico da Confira, também, a entrevista concedida
por Ernildo Stein à edição 328 da revista
Brasil? comunicação, como filósofo da comu- IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
Michael Manfred Hanke – Existe nicação e cultura, além de escritor. Na em http://migre.me/FC8R, intitulada O
época paulista, exerceu a função de biologismo radical de Nietzsche não pode
um panorama de motivos, e o peso ser minimizado, na qual discute ideias de
destes não está completamente escla- jornalista, pelo menos publicou no Es- sua conferência A crítica de Heidegger ao
recido. Flusser deixou o país em maio tado de São Paulo e na Folha de S. Pau- biologismo de Nietzsche e a questão da
lo. Ler esses artigos hoje vale a pena biopolítica, parte integrante do Ciclo de
de 1972, no auge dos anos de chumbo Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento
(ele foi um bom escritor e um repre-
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da ditatura militar. Quem gosta de vi- do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)


ver num país com ditadura militar? O sentante da cultura do livro). Na medi- governo biopolítico da vida humana. (Nota
da IHU On-Line)
autor, que não foi nem comunista nem da em que a reflexão teórica da comu- 3 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo
de esquerda, não foi, por esse motivo, nicologia contribuiu para o jornalismo, existencialista francês. Escreveu obras
o pesquisador contribuiu. Mas dada teóricas, romances, peças teatrais e
perseguido. Mas o clima intelectual foi contos. Seu primeiro romance foi A
ruim e obviamente também perigoso. a dicotomia entre prática e teoria, a náusea (1938), e seu principal trabalho
ênfase de Flusser centrou-se sobre a filosófico é O ser e o nada (1943). Sartre
define o existencialismo em seu ensaio O
segunda, enquanto considerou o jor- existencialismo é um humanismo, como
nalismo como parte da prática. a doutrina na qual, para o homem, “a
1 Miguel Reale (1910-2006): filósofo, existência precede a essência”. Na Crítica
jurista, formado pela Faculdade de da razão dialética (1964), Sartre apresenta
Direito da Universidade de São Paulo - IHU On-Line – De que manei- suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou
USP, educador e poeta brasileiro e um dos suas teorias psicanalíticas nas biografias
líderes do integralismo no Brasil. Conhecido ra o teórico definiu o conceito de Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). As
como formulador da Teoria Tridimensional comunicação? palavras (1963) é a primeira parte de sua
do Direito, na qual os elementos da tríade Michael Manfred Hanke – No iní- autobiografia. Em 1964, foi escolhido para
fato, valor e norma jurídica compõem o o prêmio Nobel de literatura, que recusou.
conceito de Direito. (Nota da IHU On-Line) cio de sua carreira, Flusser era filóso- (Nota da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


a morte”. Ou seja, só o homem é um
“Flusser foi filho do - FAAP. Ele foi também professor

Tema de Capa
bicho que sabe que vai morrer. Por- na Universidade de São Paulo - USP,
que não aguenta essa solidão funda-
mental, ele busca a comunicação. Em de uma família na Escola Politécnica e responsável
pela disciplina Filosofia e Evolução da
outros termos – heideggerianos – a
Geworfenheit – somos “jogados”, ou de classe alta Ciência (a partir de 1963, auxiliar de
ensino; entre 1967 e 1971, professor
colocados no mundo de certa forma
que nossa condition humaine nos de- em termos contratado).

Decepção
termina sermos seres sociais, que só
sobrevivem se comunicando. Sem co- econômicos O conceito, muito avançado e in-
teressante, é aquele que Flusser ten-
municação, a vida humana não seria
viável; sequer o ser humano não po- e culturais, tou realizar na FAAP. Mas ele se mos-
trou muito decepcionado em relação
deria ser pensado. Nosso Lebenswelt
– mundo da vida – é composto por com uma boa ao sucesso da implementação desse
projeto, no artigo publicado e tam-
língua, relações sociais, cultura, redes
simbólicas etc. Sem ele não haveria formação escolar, bém nas cartas que trocou nessa épo-
ca, preservadas no Arquivo Flusser. Ou
possibilidade de se ser homem.
O destaque da dimensão social multilíngue e seja, o pesquisador mesmo não ficou
satisfeito com a implementação de
do ser humano e, em consequência,
de relações e da comunicação se de- multicultural, de suas ideias.
riva também da filosofia dialógica de
Martin Buber4. O “eu” é constituído Praga, de origem Pioneiro
por um “outro eu” que usa “você” Flusser foi um pioneiro, mas
quando se dirige ao primeiro eu judaica” chegou antes da hora. Salvo engano,
(Ich-Du-Philosophie). a comunicação ainda não era valori-
zada como disciplina acadêmica nos
Teoria cibernética e a anos em questão, no final da década
comunicação próximos, mas não necessariamente de 1960. Quando a Escola de Comu-
Por parte da comunicação, Flus- conjuntos. E a interpretação cultu- nicações e Artes – ECA foi criada, em
ser foi influenciado pela teoria ciber- ral é uma especificidade de Flusser, 1972, Flusser já não estava mais no
nética apresentada na década de 1950 que juntou pensamentos geralmente Brasil.
(nos EUA), em uma mistura com a diferenciados. Flusser começou a lecionar teo-
então popular teoria termodinâmica, De qualquer forma, o conceito de ria de comunicação em 1963 (comu-
que cunhou os conceitos de entropia informação para Flusser está no fundo nicação verbal e audiovisual). Mas
e neguentropia. Esse pensamento das da definição de comunicação. Comu- ele atuou em primeiro lugar como
ciências exatas foi combinado com um nicação é definida como armazena- filósofo, no Instituto Brasileiro de
pensamento das ciências humanas. mento, processamento e distribuição Filosofia. A maioria de suas publica-
Entropia significa o caminho de toda de informação adquirida. Mas o termo ções foi na revista do IBF, na área de
energia no universo: ela se difunde informação tem que ser visto no con- filosofia. Não existia a área da comu-
com todos os processos de transfor- texto das teorias citadas. nicação nem revistas ou congressos.
mação. Informação é vista como pro- IHU On-Line – Sendo o criador do O pensamento comunicológico de
cesso contrário, não como perda, mas primeiro curso de Comunicação, em Flusser não tinha como se realizar.
como construção de informação. Em São Paulo, e um dos pioneiros na área Só na década de 1970, na França,
termos de ciências humanas, é cultura de ciência da mídia e da comunicação ganhou forma escrita (em francês)
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ou redes simbólicas que armazenam em nosso país, de que maneira Flus- e respectivamente publicada depois
os processos que as produzem. É im- ser é visto atualmente na academia em alemão, apesar dos primeiros
portante frisar que o casamento en- brasileira? Por que, somente em sua passos em publicações no Brasil. Ele
tre termodinâmica e cibernética não fase europeia, após ter saído do Bra- produziu as obras sobre comunica-
é necessário; são dois pensamentos sil, seu pensamento foi mais divulga- ção a partir da década de 1970 até
do, ganhando forma de publicação? 1991, quando estava na Europa. As
Michael Manfred Hanke – É ver- obras estão sendo traduzidas e pu-
4 Martin Buber (1878-1965): filósofo dade que Flusser defende a criação do
vienense de origem judaica, foi o primeiro
blicadas no Brasil (na editora Anna-
professor de uma cátedra de Judaísmo na primeiro curso de Comunicação em blume). Elas abordam também ou-
Universidade de Frankfurt. Com a ascensão São Paulo. Mas é necessário conside- tros temas, além da comunicação.
do nazismo, abandonou a cátedra e mudou-
se para Jerusalém, onde passou a lecionar
rar as fontes que o próprio Flusser nos Com certeza, sem a ditadura mi-
como professor da Universidade Hebraica. dá. Ele foi professor em várias univer- litar, durante a qual Flusser deixou
A obra de Buber centra-se na afirmação das sidades particulares, entre outras, na o Brasil, toda essa história teria sido
relações interpessoais e comunitárias da
condição humana. (Nota da IHU On-Line) Fundação Armando Alvares Pentea- diferente.

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 9


IHU On-Line – Qual a importân-
“O conceito de se baseia no pensamento da teoria
Tema de Capa
cia das obras e teorias do autor para o da informação. As ideias e questio-
estudo das ciências sociais hoje?
Michael Manfred Hanke – A informação namentos desses pensadores são
transformados pelos olhos de Flusser
obra de Flusser é uma teoria da co-
municação e cultura refletida filoso- para Flusser e, assim, eles são apresentados para
nós. De tudo isso, talvez o mais im-
ficamente. Quem está em busca de
uma reflexão filosófica nesse sentido está no fundo portante seja: a indisciplina, a falta
de bom comportamento. Flusser se-
está bem servido com o autor. Flus-
ser representa uma ponte. Ele traz da definição ria um horror para o sistema Capes
ou CNPq, que engaveta as disciplinas;
pensamentos filosóficos tradicionais
(Kant5, Hegel6, Marx7, os gregos), de comunicação” ele acabaria com a estrutura. Ou me-
lhor, a estrutura, sendo mais forte,
acabaria com ele. Mas ultrapassar
5 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo fronteiras, pensar diferentemente,
prussiano, considerado como o último fazer construções ousadas, mesmo
grande filósofo dos princípios da era com pensadores mais recentes do
moderna, representante do Iluminismo, século XX (Husserl8, Heidegger, Sar- correndo riscos têm seu valor.
indiscutivelmente um dos seus pensadores
mais influentes da Filosofia. Kant teve um tre, Wittgenstein9, entre outros), e
grande impacto no Romantismo alemão IHU On-Line – Qual a relevân-
e nas filosofias idealistas do século XIX, cia dos estudos de Flusser para a
tendo esta faceta idealista sido um ponto em http://migre.me/s7lq. Também sobre atualidade?
de partida para Hegel. Kant estabeleceu o autor, confira a edição número 278 da
uma distinção entre os fenômenos e a IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada Michael Manfred Hanke – A meu
coisa-em-si (que chamou noumenon), A financeirização do mundo e sua crise. ver, a arquitetura do pensamento de
isto é, entre o que nos aparece e o que Uma leitura a partir de Marx, disponível
existiria em si mesmo. A coisa-em-si não para download em http://migre.me/s7lF. Flusser tem uma camada muito tra-
poderia, segundo Kant, ser objeto de Leia, igualmente, a entrevista Marx: os dicional constituída pelo pensamento
conhecimento científico, como até então homens não são o que pensam e desejam, de Kant, Hegel, Marx, e os gregos, já
pretendera a metafísica clássica. A ciência mas o que fazem, concedida por Pedro de
se restringiria, assim, ao mundo dos Alcântara Figueira à edição 327 da revista mencionado acima. Esse fundamento
fenômenos, e seria constituída pelas formas IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível é enriquecido por uma camada mais
a priori da sensibilidade (espaço e tempo) para download em http://migre.me/Dt7Q.
e pelas categorias do entendimento. A (Nota da IHU On-Line) atualizada, do século XX, por Husserl,
IHU On-Line número 93, de 22-03-2004, 8 Edmund Husserl (1859-1938): filósofo Heidegger, Wittgenstein, Sartre, e pela
dedicou sua matéria de capa à vida e à alemão, principal representante do cibernética, semiótica, e teoria da co-
obra do pensador com o título Kant: razão, movimento fenomenológico. Marx e
liberdade e ética, disponível para download Nietzsche, até então ignorados, influenciaram municação. O autor utiliza esses ins-
em http://migre.me/uNrH. Também sobre profundamente Husserl, que era um trumentos poderosos para enfrentar
Kant foi publicado este ano o Cadernos crítico do idealismo kantiano. Husserl
IHU em formação número 2, intitulado apresenta como ideia fundamental de seu os desafios da cultura contemporânea,
Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica antipsicologismo a “intencionalidade da fazendo uso e refazendo as inquieta-
e ética, que pode ser acessado em http:// consciência”, desenvolvendo conceitos ções desses pensadores consagrados,
migre.me/uNrU. (Nota da IHU On-Line) como o da intuição eidética e epoché.
6 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo Pragmático, Husserl teve como discípulos às vezes com muita liberdade. Assim,
alemão idealista. Como Aristóteles e Santo Martin Heidegger, Sartre e outros. (Nota da ele preserva a tradição e a renova ao
Tomás de Aquino, tentou desenvolver IHU On-Line)
um sistema filosófico no qual estivessem 9 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo mesmo tempo.
integradas todas as contribuições de seus austríaco, considerado um dos maiores do
principais predecessores. Sua primeira século XX, tendo contribuido com diversas Imagens e comunicação digital
obra, A fenomenologia do espírito, tornou- inovações nos campos da lógica, filosofia
se a favorita dos hegelianos da Europa da linguagem, epistemologia, dentre
Flusser levantou duas questões
continental no século XX. Sobre Hegel, outros campos. A maior parte de seus importantes: a importância crescente
confira a edição nº 217 da IHU On-Line, de escritos foi publicada postumamente, mas das imagens e da comunicação digital.
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30-04-2007, intitulada Fenomenologia do seu primeiro livro foi publicado em vida:


espírito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel Tractatus Logico-Philosophicus, em 1921. Imagens não foi um campo muito tra-
(1807-2007), em comemoração aos 200 Os primeiros trabalhos de Wittgenstein balhado na área das humanas. Flusser
anos de lançamento dessa obra. O material foram marcados pelas ideias de Arthur
está disponível em http://migre.me/ Schopenhauer, assim como pelos novos
entendeu que o código da escrita não
zAON. Sobre Hegel, leia, ainda, a edição sistemas de lógica idealizados por Bertrand seria mais o código dominante do fu-
261 da IHU On-Line, de 09-06-2008, Carlos Russell e Gottlob Frege. Quando o Tractatus turo e que imagens em movimento,
Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo foi publicado, influenciou profundamente o
de ler Hegel, disponível em http://migre. Círculo de Viena e seu positivismo lógico (ou imagens técnicas, produzidas por apa-
me/zAOX. (Nota da IHU On-Line) empirismo lógico). Confira na edição 308 da relhos, convencionais ou digitais, ga-
7 Karl Marx (1818-1883): filósofo, IHU On-Line, de 14-09-2009, a entrevista
cientista social, economista, historiador e O silêncio e a experiência do inefável
nharam muito espaço. E ele chamou
revolucionário alemão, um dos pensadores em Wittgenstein, com Luigi Perissinotto, atenção para essa mudança no reper-
que exerceram maior influência sobre o disponível para download em http://migre. tório na comunicação.
pensamento social e sobre os destinos me/qQYt. Leia, também, a entrevista A
da humanidade no século XX. Marx foi religiosidade mística em Wittgenstein,
estudado no Ciclo de Estudos Repensando concedida por Paulo Margutti, concedida
os Clássicos da Economia. A edição número à revista IHU On-Line 362, de 23-05-2011, Revolução informacional
41 dos Cadernos IHU Ideias, de autoria disponível em http://bit.ly/lUCopl. (Nota
de Leda Maria Paulani tem como título A da IHU On-Line)
O outro aspecto trata a revolução
(anti)filosofia de Karl Marx, disponível informacional, as mudanças provoca-

10 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


das pelas novas tecnologias de arma-
“A obra de Flusser lógica de Martin Buber, mas também

Tema de Capa
zenamento, microchips etc., a rapidez pela filosofia da linguagem inicial de
crescente do processamento de infor-
mações e as mudanças provocadas
é uma teoria da Flusser. A língua só existe enquanto
uso, quer dizer, para a comunicação
por isso no mundo e em nossa manei-
ra de representar e entendê-lo.
comunicação e entre pessoas. Mas a língua é consi-
derada somente como um dos códigos

Pioneirismo cultura refletida usados para se comunicar – há ou-


tros sobre ao quais o filósofo refletiu
Assim, Flusser foi um dos pri-
meiros pensadores a refletir filo- filosoficamente. depois.

Revolução
soficamente sobre as mudanças
fundamentais na comunicação e, con- Quem está em Para Flusser, a situação atual
sequentemente, no mundo, que estão
submetidas constantemente. A acele- busca de uma (contemporânea) é marcada por uma
revolução na estrutura da comunica-
ração das novas tecnologias contribui
para transformações radicais, como o reflexão filosófica ção e da informação. A era do digital,
a mudança dos códigos de escrita
crescimento do fluxo das informações
na realidade midiatizada e globalizada, nesse sentido está para os das imagens técnicas, em
geral, bem como as novas formas de
o que modifica parâmetros básicos do
nosso mundo, como fragmentos até bem servido com entender e codificar o mundo iriam
constituir uma “revolução” no senti-
então desconectados, agora dados em
presença simultânea, e que formatam o autor” do verdadeiro do termo. Entretanto,
a comunicação deveria ser utilizada
a estrutura das coisas e do próprio sempre para estabelecer laços inter-
pensamento e modificam as catego- pessoais, o que vale também para as
rias do espaço e do tempo. Nossa cul- novas tecnologias. Caso contrário,
tura midiática se baseia cada vez mais estas inovações representariam mais
em imagens fragmentadas, e cada vez jeitos agindo nesse mundo. Ao mes- perigo do que benefício, e aqui entra
menos em conceitos complexos, com mo tempo, constitui a base dos mo- a crítica da tecnologia heideggeriana.
aparelhos técnicos e memórias eletrô- delos de pensamento que operam na Ou seja, Flusser pensava a comuni-
nicas, que expandem as fronteiras da ciência, na lógica, na arte e na políti- cação a partir das ciências humanas
nossa vida real até o espaço virtual. ca. Essa mudança de paradigma é ba- e enfrentava as novas tecnologias
Consequentemente, o significado de seada na retificação de nossos canais como desafio para o homem e sua
nós mesmos e da realidade se altera de comunicação e no papel do com- cultura.
substancialmente. putador como memória externaliza-
da. Essa análise e a crítica da cultura IHU On-Line – Gostaria de
Código flusseriana, que ganhou forma como acrescentar algum aspecto não
Flusser analisa tudo isso nos ter- utopia positiva da sociedade telemá- questionado?
mos de “comunicação”, “sociedade tica, apresenta-se hoje, surpreenden- Michael Manfred Hanke – Flus-
de informação”, “cultura midiatizada” temente em muitos aspectos, como ser era um pensador polêmico não
e “crise da linearidade”. O código li- sendo bastante atual. bem comportado. Mas ganhou lugar
near e conceitual, presente na es- de referência no panorama dos pen-
crita, no texto e no livro está sendo IHU On-Line – De que maneira sadores da mídia e da comunicação.
substituído por um código estrutura- podemos relacionar a teoria da mídia Podemos acompanhar o processo
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do por imagens, que se manifesta em e da comunicação de Flusser com as de recepção de um autor acadêmico
imagens em movimento e nas super- novas tecnologias de informação e a partir da seguinte questão: se ele
fícies dos aparelhos técnico-digitais. sistemas de mídia? estimula em sala de aula o aluno ou
A mudança dos nossos códigos cultu- Michael Manfred Hanke – Flus- não. O pensador, 20 anos depois de
rais, de nossas estruturas de pensa- ser sempre se definiu como teórico seu falecimento, desperta interesse
mento e os modelos de mundo, em ou filósofo da comunicação, nunca da e curiosidade de alunos, ou seja, ele
consequência da transformação da mídia. Ele rejeitou o termo “mídia”, o toca o estudante, estimula e provoca
sociedade causada pela tecnologia, que, entretanto, não significa que suas reflexão. No Brasil, faltam a tradução
foram considerados por Flusser como reflexões não seriam pertinentes para e a divulgação de algumas obras des-
irreversíveis. Enquanto isso cada có- esse campo. Porém, comunicação foi conhecidas do autor. Ele faz parte do
digo constitui seu próprio modo de vista como base do animal social que patrimônio intelectual do país, o que
pensar, o que, por sua vez, define a é o ser humano, que depende da co- merece ser cuidado.
percepção, os conceitos de tempo e municação interpessoal. Isso foi forte-
espaço, como também os atores-su- mente influenciado pela filosofia dia-

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 11


Tema de Capa
Imagens técnicas, instrumento
de manipulação do homem
Flusser sempre se engajava em prol do homem, que, para ele, significava posicionar-se
contra a máquina, avalia Eva Batličková

Por Thamiris Magalhães

É
exatamente o espírito profundamente ram, pelo contrário, um poderoso instrumen-
filosófico e existencial dos trabalhos de to de manipulação do homem”.
Vilém Flusser que mostra a diferença Em relação aos trabalhos de Flusser, Eva
ontológica entre o homem e a máquina. “O deixa claro que seus textos eram, inúmeras
homem é um ser infinitamente complexo, vezes, criticados porque não mantinham as
enigmático, imprevisível e livre, enquanto a regras científicas e acadêmicas. “No entan-
máquina, por mais rápida e eficaz que seja, to, o próprio autor pouco se importava com
não é mais que mera materialização dos tex- as críticas. Seu estilo era diferente, engajado,
tos científicos”, analisa uma das mais influen- pois seu objetivo não era escrever para a aca-
tes pesquisadoras de Flusser na atualidade, demia, mas para homens vivos”.
Eva Batličková, em entrevista concedida por Eva Batličková é mestre em filosofia e lín-
e-mail à IHU On-Line. Para ela, apesar das ide- gua e literatura portuguesa. “A época brasilei-
ologias que o tentam encobrir, é preciso saber ra de Vilém Flusser” é o título de sua disserta-
que o objetivo dos aparelhos não é deixar o ção de filosofia.
homem mais feliz, “porém manter vivos a si Atualmente, trabalha na editora Annablume.
mesmos junto com o sistema que lhes alimen- Confira a entrevista.
ta”. E admite: “As imagens técnicas se torna-

IHU On-Line – Qual foi a maior grande preocupação de Flusser com que esta convivência não é gratuita.
contribuição de Flusser para o campo as imagens técnicas, que são um meio Apesar das ideologias que o tentam
comunicacional? de comunicação relativamente novo. encobrir, é preciso saber que o ob-
Eva Batličková – Sua grande con- E como elas são, em princípio, um jetivo dos aparelhos não é deixar o
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tribuição para o campo comunicacio- produto de aparelhos programados, homem mais feliz, porém manter vi-
nal consiste, sem dúvida, em sua con- e não mais dos intelectos humanos, vos a si mesmos junto com o sistema
cepção de comunicação não como um toda a nossa cultura como a conhe- que lhes alimenta. E isso sem menor
imprescindível instrumento da vida cemos se transforma profundamente escrúpulo com o homem. Os apare-
social de seres vivos, porém como a rumo a uma sociedade desumanizada. lhos podem ser ou mais ou menos
essência de cada intelecto, o princípio perigosos: desde a máquina fotográ-
de cada cultura e da realidade que nos IHU On-Line – Qual o lega- fica, que nos obriga aceitar sua ótica
cerca. Se certa comunidade fala inglês do deixado por Flusser para a unidimensional, até Auschwitz1, um
contemporâneo ou chinês do primeiro contemporaneidade?
milênio a.C., se ela se comunica me- Eva Batličková – Nós, vinte e um 1 Auschwitz-Birkenau: nome de um grupo
diante textos lineares ou por imagens anos depois da morte de Vilém Flus- de campos de concentração localizados
no sul da Polônia, símbolos do Holocausto
tradicionais ou técnicas, isso muda ser, convivemos muito mais com todo perpetrado pelo nazismo. A partir de
radicalmente a realidade em que esta tipo de aparelhos do que ele. Por isso 1940 o governo alemão comandado por
Adolf Hitler construiu vários campos de
comunidade vive. E aqui enraíza a é cada vez mais atual sua advertência concentração e um campo de extermínio
nesta área, então na Polônia ocupada.

12 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


aparelho político extremamente per-
“Apesar das pessoas estão vivendo em função das

Tema de Capa
verso e nocivo. Em seu livro Pós-his- imagens. Esse fenômeno o autor cha-
tória2, Flusser fala que no final todos
os aparelhos funcionam no sentido
ideologias que o ma de idolatria. Nessa época, surge a
escrita linear e com ela o pensamen-
do aniquilamento do homem, tanto
do funcionário que os serve como do
tentam encobrir, to histórico. Os textos são abstração
do segundo grau e se esforçam para
programador, porque todos necessa-
riamente objetivam, desumanizam o
é preciso saber explicar as imagens – trabalham com
uma dimensão só, conceitual. Numa
homem. que o objetivo dos história relativamente recente, os
textos adquiriram o grau da abstra-
IHU On-Line – Qual o mérito da aparelhos não é ção tão alto que se tornaram inimagi-
obra A filosofia da caixa preta – En- náveis e extremamente afastados da
saios para uma futura filosofia da fo- deixar o homem vida cotidiana. A humanidade chegou
tografia de Vilém Flusser? à textolatria. Foi quando apareceram
Eva Batličková – Em A filosofia de mais feliz, porém as imagens técnicas, que pareciam
caixa preta, Flusser mostra as conse- ser um ótimo instrumento para visua-
quências da transformação do códi- manter vivos a si lizar os textos e os deixar novamente
go comunicacional para a sociedade compreensíveis. Com o decorrer do
contemporânea. A cultura ocidental, mesmos junto com tempo, percebemos que se tratou de
como a conhecemos, é uma cultura uma ilusão e que as imagens técnicas
histórica, cujo tempo é linear e se pro- o sistema que lhes se tornaram, pelo contrário, um po-
jeta para o progresso e evolução. Es-
força-se para mudar o mundo median- alimenta” deroso instrumento de manipulação
do homem.
te o trabalho e suas ciências procuram
causas e consequências. A cultura his- IHU On-Line – Para Flusser, o que
tórica se afirmou depois da crise e de- caráter traiçoeiro: elas parecem ser vinha a ser a época “pós-histórica” e
cadência da cultura pré-histórica, ba- janelas para o mundo, mas na verda- qual a sua relação com os códigos pe-
seada no pensamento imagético, que de trata-se da abstração de terceiro los quais nos comunicamos?
vivia num tempo cíclico e pensando de grau – elas superam tanto a abstração Eva Batličková – A época pós-his-
maneira que Flusser chama de mági- do primeiro grau, que foi o mundo tórica, como já mencionamos, é para
ca – o homem tenta mudar o mundo simbólico das imagens tradicionais, Flusser condicionada pela mudança
mediante a manipulação de imagens. como a abstração de segundo grau, o de códigos de comunicação. As ima-
mundo conceitual da escrita. Imagens gens, com seu mundo simbólico que
Imagens técnicas dominava a época pré-histórica, estão
técnicas são abstrações de terceiro
O que está acontecendo nos úl- novamente entrando em cena, desta
grau. Elas são baseadas nas abstrações
timos aproximadamente cem anos é vez sob a forma da imagem técnica.
de textos científicos e sua “magia” é,
a nova dominação da imagem na cul- O pensamento histórico e causal, com
em princípio, muito simples: mudar o
tura; desta vez, as imagens técnicas. seu tempo linear, é substituído pelo
mundo programando o homem.
Com este processo, está se esgotan- pensamento imagético, e o tempo
do a cultura histórica e nós podemos passa a ser circular. O tempo circular
IHU On-Line – De que maneira
presenciar a volta do tempo cíclico é um império do eterno retorno; a his-
Flusser abordou as teorias de ima-
e do pensamento mágico da época
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gem? Qual a relação entre mundo – tória com suas mudanças revolucioná-
pós-histórica. O grande perigo das rias acabou. O maior drama da nossa
imagem – texto – imagem técnica?
imagens técnicas, que o autor chama época é que as imagens técnicas não
Eva Batličková – Como já foi
de imagens do segundo grau, é seu são produtos dos intelectos humanos,
dito, a imagem é um tipo de abstra-
ção. A imagem tradicional é, confor- porém dos programas de aparelhos.
me Flusser, a abstração do primei- Quem começou a dominar nosso mun-
Houve três campos principais e trinta
e nove campos auxiliares. Os campos ro grau. Ela representa o mundo de do são então aparelhos que degradam
localizavam-se no território dos municípios
maneira simbólica, abstraindo duas o homem de um ser livre para uma
de Auschwitz e Birkenau, versões em língua
alemã para os nomes polacos de Oświęcim dimensões de quatro que nos cercam parte do programa. E, neste contexto,
e Brzezinka, respectivamente. Esta área (espaço e tempo). Numa época (Flus- é importante salientar que aparelho,
dista cerca de sessenta quilômetros da
cidade de Cracóvia, capital da região da ser a coloca para 2000 a.C.), a huma- para Flusser, é um conceito bastante
Pequena Polônia. (Nota da IHU On-Line) nidade se deparou com o problema amplo; ele abrange, como dissemos,
2 FLUSSER, Vilém. Pós-História. Vinte tanto a famosa máquina fotográfica
instantâneos e um modo de usar (São de que as imagens não representam
Paulo: Duas cidades, 1983). (Nota da IHU mais o mundo, porém o cobrem e as como os aparelhos sociopolíticos e
On-Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 13


suas consequências, como Auschwitz,
“O maior drama
Tema de Capa
Hiroshima3 ou Gulag4.

IHU On-Line – De que forma


da nossa época é
Flusser utilizou a semiótica em seus
trabalhos?
que as imagens
Eva Batličková – Flusser como
pensador era profundamente anties-
técnicas não Leia as
sencialista e considerava todos os
sistemas de significações altamente
são produtos
flexíveis e relativos. Ele aplicava esta dos intelectos
concepção inclusive na nossa realida-
de “material”, alegando que o cosmos humanos, porém
humano, no sentido de universo or-
ganizado, é tirado do caos animales- dos programas de entrevistas
co justamente pela sua organização e
sentido. E, como tanto a organização aparelhos”
como a atribuição de sentido são pro-
dutos da sociedade, até a realidade
que nos cerca muda conforme a nos-
sa relação conceitual e estrutural com
porque procura se afastar de todo
ela. Assim, para Flusser, por exemplo,
a pedra para os gregos era um obje- conhecimento tradicional. Flusser a do dia no
to completamente diferente da pedra adotou como seu método, o que lhe
como nós a entendemos. permitiu analisar os problemas de ma-
neira diferente e chegar a conclusões
IHU On-Line – De que maneira a surpreendentes. Embora o existencia-
fenomenologia influenciou o pensa- lismo tenha saído de moda na segun-
mento e as obras de Flusser? da metade do século XX, para Flusser
Eva Batličková – Em sua autobio-
grafia Bodenlos5, Flusser escreve que
o homem e sua condição no mundo
nunca deixaram de ser o centro de sítio do IHU:
sua ambição filosófica é, de um lado, suas reflexões. Seus textos eram, inú-
construir uma ponte entre a filosofia meras vezes, criticados porque não
da linguagem e, de outro, a fenome- mantinham as regras científicas e aca-
nologia e o existencialismo. A fenome- dêmicas. No entanto, o próprio autor
nologia como método é interessante pouco se importava com as críticas.
Seu estilo era diferente, engajado, pois
seu objetivo não era escrever para a
3 Hiroshima: capital da província japonesa academia, mas para homens vivos.
de Hiroshima. Fica no rio Ota (Ota-gawa),
cujos seis canais dividem a cidade em ilhas.
Cresceu em torno de um castelo feudal do IHU On-Line – Em que aspectos a
século XVI. Recebeu o estatuto de cidade
cibernética influenciou no pensamen- www.ihu.
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em 1589. Serviu de quartel-general durante


a guerra sino-japonesa (1894-95). Em 6 de to e nas teorias de Flusser?
agosto de 1945 foi a primeira cidade do Eva Batličková – Flusser sempre
mundo arrasada por uma bomba atômica,
lançada pelos Estados Unidos, resultando se engajava em prol do homem, que,
em 250 mil mortos e feridos. (Nota da IHU para ele, significava posicionar-se con-
On-Line)
4 Gulag: sistema de campos de trabalhos tra a máquina. E é exatamente o espí-
forçados para criminosos, presos políticos e rito profundamente filosófico e exis-
qualquer cidadão em geral que se opusesse

unisinos.br
ao regime da União Soviética, sendo, tencial de seus trabalhos que mostra
porém, que a grande maioria era de presos a diferença ontológica entre o homem
políticos. No campo Gulag de Kengir, em
junho de 1954, existiam 650 presos comuns
e a máquina. O homem é um ser infi-
e 5200 presos políticos. (Nota da IHU On- nitamente complexo, enigmático, im-
Line) previsível e livre, enquanto a máquina,
5 “Sem chão” em tradução livre.
Referência: FLUSSER, Vilém. Bodenlos, por mais rápida e eficaz que seja, não
uma autobiografia filosófica. (São Paulo: é mais do que mera materialização
Annablume, 2007) (Nota da IHU On-Line)
dos textos científicos.

14 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


Tema de Capa
Um teórico barroco?
Existiu em Flusser uma vontade de unificar aquilo que foi separado pela
modernidade, como arte, ciência, religião; de quebrar as barreiras dos campos que
foram fraturados pelo pensamento moderno, assinala Erick Felinto de Oliveira

Por Thamiris Magalhães

“F
lusser era um pensador realmente vieram depois nos caracterizar como proble-
transdisciplinar”, frisa o professor mas contemporâneos. “Um dos temas, por
Erick Felinto de Oliveira, em entre- exemplo, o autor antecipa (...) é a questão do
vista concedida por telefone à IHU On-Line. pós-humanismo.”
O autor não tinha fronteiras no pensamento, Erick Felinto de Oliveira é doutor em Lite-
segundo o docente, e ele passeava por várias ratura Comparada pela Universidade Estadual
referências e por diversos campos de força in- do Rio de Janeiro – UERJ/UCLA e tem pós-
telectuais. “Obviamente, a sua reflexão sobre -doutorado em Comunicação pela Universität
comunicação é muito forte. O pensamento der Künste, Berlim. É pesquisador do CNPq e
dele tinha um foco importante sobre a ques- professor adjunto na UERJ, instituição em que
tão da tecnologia e dos meios, principalmente realiza pesquisas sobre cinema e cibercultura.
esse começo que ele viveu com o início ain- É autor dos livros A religião das máquinas: en-
da da revolução digital. Esse aspecto da obra saios sobre o imaginário da cibercultura (Por-
dele é bastante relevante. Mas Flusser era um to Alegre: Sulina, 2005); Avatar: o futuro do
pesquisador que, de fato, foi muito aprovei- cinema e a ecologia das imagens digitais (com
tado no campo das artes, das artes tecnológi- Ivana Bentes. Porto Alegre: Sulina, 2010); e A
cas. Ele era muito respeitado, principalmente imagem espectral: cinema e fantasmagoria
na Alemanha, nesse horizonte da arte–mídia. tecnológica (São Paulo, Ateliê Editorial, 2008).
O que comprova isso é o fato de a universida- Ainda este ano lançará pela editora Paulus,
de onde está sediado o Arquivo Flusser hoje em parceria com a professora Lucia Santaella,
ser uma Universidade de Artes”, diz. o livro Explorador de abismos – Vilém Flusser
Erick aponta que o pesquisador intuiu vá- e o pós-humanismo.
rias forças culturais e energias espirituais que Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você realizou seu Obra fragmentária dade, textos que foram compilados e www.ihu.unisinos.br
pós-doutorado na Alemanha, na Uni- Flusser tem uma trajetória bas- isso dificulta muito o trabalho, inclusi-
versidade das Artes – instituição na tante curiosa. Ele demorou muito tem- ve para definir o que é obra do Flus-
qual também se encontra o Arquivo po para ser reconhecido e não é muito ser, porque é uma obra fragmentária.
Flusser. O que mais lhe chamou a lido fora da Alemanha e do Brasil. Ago- Existem aqueles livros orgânicos, que
atenção na visita ao Arquivo? ra que os Estados Unidos da América ele escreveu do começo ao fim, como
Erick Felinto de Oliveira – A quan- começa a citar seus textos com mais A história do diabo (Martins Editora,
tidade de material inédito que existe. frequência. Então, a sua fama veio tar- 1965), por exemplo, mas têm tam-
Têm desde textos que nunca foram de. E, de fato, aconteceu de maneira bém vários casos de livros que foram
publicados até cartas pessoais; exis- mais decisiva na Alemanha. O pes- compilações de textos seus. A biblio-
tem documentos pessoais de Flusser quisador, além disso, escrevia muito grafia flusseriana é muito complicada,
e há uma parte da biblioteca pessoal para jornais e revistas. Muito do que porque podemos encontrar o mesmo
dele também. Estima-se que, pelo me- ele publicou em vida foram nesses ensaio publicado em dois volumes di-
nos, 80% do que ali se encontra ainda dois meios de comunicação e vários ferentes. E como ele morreu em aci-
não tenha sido publicado. de seus livros publicados são, na ver- dente de carro em 1991, depois disso

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 15


algumas editoras desejaram realizar
“Flusser era influência do filósofo nos estudos de
Tema de Capa
uma edição mais ou menos “comple- Flusser?
ta”. Uma delas, porém, faliu no meio
do processo e isso ficou incompleto.
um pensador Erick Felinto de Oliveira – Exis-
tiu, como de vários outros autores. Ele
Teve ainda a questão dos direitos au-
torais. Até hoje existem vários imbró-
realmente nem sempre citava, aliás, raramente o
fazia, mas Benjamin era um dos pou-
glios na Alemanha em relação a isso
devido à dificuldade de se tentar repu-
transdisciplinar” cos que Flusser mencionava literal-
mente. Por exemplo, o texto clássico A
blicar um texto. Então, é um verdadei- obra de arte na época da sua reprodu-
ro labirinto. A obra de Vilém Flusser é tibilidade técnica (Porto Alegre: Zouk,
veu bem antes de Flusser, também
muito complexa. E o Arquivo Flusser 2012). Então, Benjamin, McLuhan4,
traz pistas interessantes para pensar-
tem recursos muito limitados. Heidegger5 e Husserl6 eram algumas
mos as tecnologias digitais e a cultura
contemporânea. Em relação a Flusser,
IHU On-Line – O que mais lhe 4 Herbert Marshall McLuhan (1911-
ele não chegou a viver plenamente a 1980): sociólogo canadense. Fez, em suas
interessa e chama atenção nos traba-
onda de transformações tecnológicas obras, uma crítica global de nossa cultura,
lhos de Flusser? apontando o fim da era do livro, com o
que aconteceu. Aliás, nós ainda esta- domínio da comunicação audiovisual. Seus
Erick Felinto de Oliveira – Flus-
mos vivendo isso. Mas intuiu. A minha principais livros são A galáxia de Gutenberg
ser era um pensador realmente trans- (1962) e O meio é a mensagem (1967).
perspectiva, pelo que leio de Flusser,
disciplinar. Não tinha fronteiras no Confira a edição 357 da revista IHU On-
é que ele intuiu várias forças culturais Line, de 11-04-2011, intitulada 100 anos
pensamento e ele passeava por várias de McLuhan: um teórico de vanguarda,
e energias espirituais que vieram de-
referências e por diversos campos de disponível em http://bit.ly/oZJlrh. (Nota
pois nos caracterizar como problemas da IHU On-Line)
força intelectuais. Obviamente, a sua 5 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
contemporâneos. Um dos temas, por
reflexão sobre comunicação é muito alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
exemplo, que, creio, o autor antecipa, (1927). A problemática heideggeriana é
forte. Seu pensamento tinha um foco
porque quando ele morreu isso ainda ampliada em Que é Metafísica? (1929),
importante sobre a questão da tec- Cartas sobre o humanismo (1947),
era muito incipiente, é a questão do Introdução à metafísica (1953). Sobre
nologia e dos meios, principalmente
pós-humanismo2. Esse, inclusive, é o Heidegger, a IHU On-Line publicou na
esse começo que ele viveu com o início edição 139, de 2-05-2005, o artigo O
tema do livro Explorador de abismos
ainda da revolução digital. Esse aspec- pensamento jurídico-político de Heidegger
– Vilém Flusser e o pós-humanismo e Carl Schmitt. A fascinação por noções
to de obra sua é bastante relevante. fundadoras do nazismo, disponível para
(São Paulo: Paulus, 2012), publicado
Mas Flusser era um pesquisador que download em http://migre.me/uNtf.
em parceria com a professora Lucia Sobre Heidegger, confira as edições 185,
foi muito aproveitado no campo das de 19-06-2006, intitulada O século de
Santaella3.
artes tecnológicas. Ele era muito res- Heidegger, disponível para download
peitado, principalmente na Alemanha, em http://migre.me/uNtv, e 187, de
IHU On-Line – Já que o senhor ci- 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A
nesse horizonte da arte–mídia. O que desconstrução da metafísica, que pode
tou Walter Benjamin, houve alguma ser acessado em http://migre.me/uNtC.
comprova isso é o fato de a universida-
Confira, ainda, o nº 12 do Cadernos IHU
de onde está sediado o Arquivo Flusser Em Formação intitulado Martin Heidegger.
hoje ser uma Universidade de Artes. da Escola de Frankfurt. Sobre Benjamin, A desconstrução da metafísica, que pode
confira a entrevista O império do instante ser acessado em http://migre.me/uNtL.
e a memória, concedida pelo filósofo Confira, também, a entrevista concedida
IHU On-Line – Poderíamos reler espanhol José Antonio Zamora às Notícias por Ernildo Stein à edição 328 da revista
do Dia 01-11-2009, disponível em http:// IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
Flusser na contemporaneidade com o bit.ly/2FtAJl. (Nota da IHU On-Line) em http://migre.me/FC8R, intitulada O
surgimento e fortalecimento das mí- 2 Pós-humano já foi tema de capa da biologismo radical de Nietzsche não pode
Revista IHU On-Line, edição 200, de 16- ser minimizado, na qual discute ideias de
www.ihu.unisinos.br

dias digitais? Ele nos ofereceu pistas


10-2006, disponível em http://migre. sua conferência A crítica de Heidegger ao
nesse sentido em seus trabalhos? De me/9PL3Q. (Nota da IHU On-Line) biologismo de Nietzsche e a questão da
que maneira? 3 Lucia Santaella: professora titular biopolítica, parte integrante do Ciclo de
no programa de Pós-Graduação em Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento
Erick Felinto de Oliveira – Sem Comunicação e Semiótica da PUC-SP, com do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)
dúvida. Qualquer pesquisador, não doutoramento em Teoria Literária na mesma governo biopolítico da vida humana. (Nota
instituição e Livre-Docência em Ciências da da IHU On-Line)
importa em que momento tenha es- Comunicação na ECA/USP. É coordenadora 6 Edmund Husserl (1859-1938): filósofo
crito, pode oferecer pistas sobre o da Pós-graduação em Tecnologias da alemão, principal representante do
Inteligência e Design Digital, diretora do movimento fenomenológico. Marx e
presente. Walter Benjamin1, que vi- Centro de Investigação em Mídias Digitais – Nietzsche, até então ignorados, influenciaram
CIMID e coordenadora do Centro de Estudos profundamente Husserl, que era um crítico do
Peirceanos, na PUC-SP. Dentre suas dezenas idealismo kantiano. Husserl apresenta como
1 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo de livros publicados, destacamos A ecologia ideia fundamental de seu antipsicologismo
alemão crítico das técnicas de reprodução pluralista da comunicação (Paulus, 2010), a “intencionalidade da consciência”,
em massa da obra de arte. Foi refugiado Linguagens líquidas na era da mobilidade desenvolvendo conceitos como o da intuição
judeu alemão e diante da perspectiva de (Paulus, 2007) e Corpo e comunicação: eidética e epoché. Pragmático, Husserl teve
ser capturado pelos nazistas, preferiu ao Sintoma da cultura (Paulus, 2004). (Nota como discípulos Martin Heidegger, Sartre e
suicídio. Um dos principais pensadores da IHU On-Line) outros. (Nota da IHU On-Line)

16 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


referências que Flusser utilizava de encontrar uma maneira diferente de

Tema de Capa
forma mais explícita. Mas o autor cos- “Existiu em Flusser repeti-las. Então, o que Flusser fazia,
tumava incorporar as ideias sem men- como muitos outros autores contem-
cionar as fontes. uma vontade de porâneos, era oferecer um olhar sin-
gular sobre essa massa crítica, que já
IHU On-Line – De que maneira a unificar aquilo que existe, e trazia a sua contribuição sin-
Escola de Toronto foi referência im-
portante nas obras de Flusser? foi separado pela gular, pessoal. Quando ele falava, ten-
tava combinar uma coisa muito com-
Erick Felinto de Oliveira – A Es-
cola de Toronto se enquadra na linha modernidade, plexa, que é a cibernética, que foi uma
das grandes fontes de influência de
da relação entre tecnologias da comu-
nicação e cultura. Ademais, a questão
como arte, seu pensamento, com a fenomenolo-
gia, o que é uma combinação bastante
das materialidades das tecnologias
e os impactos materiais destas eram
ciência, religião; complicada, mas que traz uma pers-
pectiva interessante de como pensar
pontos que apareciam com bastante
força no pensamento de Flusser. Ele
de quebrar as esses dois polos, o que representa, em
certo sentido, um aspecto mais mate-
era um pensador que fazia parte des-
sa tradição materialista, que avaliava
barreiras dos mático, ligado à racionalidade, do que
ao que seria a criatividade, a poesia e
de que forma as configurações tecno-
lógicas e as estruturas materiais dos
campos que a arte. Existiu em Flusser certo impul-
so barroco; uma vontade de unificar
meios produziam formas de cognição. foram fraturados aquilo que foi separado pela moderni-
Nesse aspecto, ele convergiu bastante dade, como arte, ciência, religião; de
com a Escola de Toronto. pelo pensamento quebrar as barreiras dos campos que
foram fraturados pelo pensamento
IHU On-Line – De que manei- moderno” moderno.
ra Flusser definiu o conceito de
comunicologia? IHU On-Line – Como você avalia
Erick Felinto de Oliveira – Co- que estaria tomando como base esses a divulgação de Flusser nos cursos de
municologia era a proposta de uma princípios e, com isso, oferecendo ins- pós-graduação em Ciências da Comu-
ciência que, curiosamente, não seria trumentos para analisar diferentes fe- nicação nas universidades brasileiras?
parte das ciências humanas, mas seria nômenos e aspectos da vida. Erick Felinto de Oliveira – Muito
mais ampla do que esta. Tratava-se de pequena e fraca. Flusser ainda não é
uma visão de que a comunicação é a IHU On-Line – Qual a peculiari- uma referência realmente forte, in-
essência da experiência humana. Sen- dade de Flusser já que, muitas vezes, clusive no Brasil. Na Alemanha é mui-
do assim, ela estaria em toda a parte. ele conseguiu reunir conceitos muitos to mais do que aqui. Lá, atualmente,
A comunicologia seria, portanto, uma dos quais distintos, como a semiótica, qualquer manual de Teoria da Mídia
espécie de disciplina transdisciplinar. a fenomenologia e a cibernética, em coloca Flusser como pensador funda-
Sem fronteiras muito rígidas, que seus estudos? Ele teve êxito nisso? mental. Ele foi inclusive comparado ao
abarcasse todo um campo de ques- Erick Felinto de Oliveira – É difícil McLuhan, como se fosse o McLuhan
tões da vida humana, da sociedade, falar em uma obra original. O que os da Alemanha. Aqui no Brasil a divulga-
da cultura, a partir de um prisma que grandes pensadores e teóricos fazem ção é muito fraca. Apenas pequenos www.ihu.unisinos.br
tem bastante a ver com a cibernética, hoje é oferecer uma perspectiva, um grupos e poucos autores têm feito um
porque esta também tinha como pro- olhar diferente, em cima do estudo trabalho de estudar sua obra. Em São
posta criar uma grande disciplina que que já foi dito. Umberto Eco7 costu- Paulo, tem um núcleo mais forte de
fosse capaz de explicar praticamen- mava dizer que: “todas as histórias já flusserianos. Mas ainda é incipiente.
te tudo, com base em determinados foram contadas”. Deve-se, portanto, São várias as razões que fazem
princípios, como a centralidade da Flusser ser ainda pouco conhecido
noção de informação, nos processos e trabalhado. Uma delas se dá pelo
7 Umberto Eco (1932): autor italiano
culturais, sociais, humanos e da vida. mundialmente reputado por diversos
fato de o autor não ter sido tradicio-
E a noção de informação estaria no ensaios universitários sobre semiótica, nal, academicamente falando. Seu
centro disso tudo bem como a trans- estética medieval, comunicação de massa, discurso não era um que a academia
linguística e filosofia, dentre os quais se
missão, a armazenagem e o processa- destacam Apocalípticos e Integrados; A aceitasse com facilidade, porque ele
mento de informação. Então, a comu- estrutura ausente; e Kant e o ornitorrinco. dava saltos entre diversas formas de
Tornou-se famoso pelos seus romances,
nicologia seria uma espécie de ciência sobretudo O nome da rosa, adaptado para conhecimento; não era um pensa-
o cinema. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 17


mento sempre lógica e rigorosamente
“É preciso ainda dos pensamentos de Flusser. Penso
Tema de Capa
estruturado. É evidente que podemos que ele deve continuar crescendo nos
criticar esse seu estilo; creio que não
precisamos ter uma atitude dogmática
entender que próximos anos. Creio que isso é bas-
tante interessante porque precisamos
de que o pensador é uma divindade, e
não pode ser questionado – até por-
existem certas de pesquisadores como ele que trans-
gridam os paradigmas tradicionais, as
que isso é totalmente antiflusseriano.
Ele era um tipo de pensador que tam-
formas de fronteiras que tentamos estabelecer
entre conhecimentos e disciplinas
bém gera isto: fãs, discípulos. O que é
perigoso, com uma obra tão diversa e
pensamento em
até contraditória como a dele. É preci- que a contradição Leia mais...
so ainda entender que existem certas
formas de pensamento em que a con- é um elemento >> Veja o que mais a IHU On-Line já
tradição é um elemento interessante.

Academia brasileira conservadora


interessante” publicou de Erick Felinto:

• A era da memória total e do esque-


Outra razão é o fato de a acade-
mia brasileira ser muito conservadora. cimento contínuo. Entrevista publi-
-se dominar as quatro línguas e isso
Daí um pensamento desta natureza,
já é um desafio, considerando que, cada na Revista IHU On-Line núme-
como de Flusser, ter muita dificulda-
talvez, a maior parte do que ele tenha
de em se estabelecer em nosso país ro 368, de 04-07-2011, disponível
escrito esteja em alemão. Em segun-
como algo reconhecido dentro de
do lugar, o português, depois francês em http://migre.me/9PHgh;
nosso sistema acadêmico. Creio que
e inglês.
estamos formando uma geração de • Inovação, não saudosismo: o desa-
pensadores, nos cursos e nas pós-gra-
IHU On-Line – Como avalia a di- fio dos estudos sobre comunicação e
duações do Brasil que não conseguem
vulgação de Flusser para os próximos
pensar fora da caixa. Os americanos mídia. Artigo publicado nas Notícias
anos?
têm essa expressão. Isso é um proble-
Erick Felinto de Oliveira – Tenho do Dia do sítio do IHU em 16-06-
ma. São especialistas que, na verda-
um feeling de que realmente Flusser
de, não conseguem fazer ponte. Não 2011, disponível em http://migre.
irá começar a aparecer nos próximos
conseguem produzir um pensamento
anos. Começam a surgir eventos aqui me/9PHlI;
original porque não se permitem sair
no Brasil nesse sentido. Em Fortaleza,
da fronteira na qual foram limitados. • Um futuro complexo, híbrido, incer-
tem um grupo interessante de estu-
Flusser era o oposto disso. Ele era um
dos sobre Flusser. Além disso, terá um to e heterogêneo. Entrevista publi-
autor multidisciplinar.
evento em dezembro em Natal sobre o
E a última razão é a de que se tra- cada na Revista IHU On-Line núme-
autor; vários de seus livros estão sen-
ta de uma obra difícil, vasta, que trata
do lançados nos Estados Unidos. Têm ro 375, de 03-10-2011, disponível
de diversos temas, sendo escrita em
coisas sendo traduzidas para o inglês.
quatro línguas. Então, para fazer um
Então, está começando, talvez, uma em http://migre.me/9PHqe.
estudo sério da obra de Flusser, deve-
onda internacional de revalorização
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18 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


No além das máquinas –

Tema de Capa
um texto inédito de Flusser
Publicamos nesta edição dois textos inéditos de Vilém Flusser, enviados pelo professor
Siegfried Zielinski1, a quem agradecemos. Os artigos originais, bem como seus direitos
autorais, são do Arquivo Flusser, localizado na Universidade de Arte, em Berlin.

O primeiro texto, intitulado “No além das máquinas”, segue abaixo. O segundo,
“Modelos do corpo humano”, segue ao final deste tema de capa, logo após a
entrevista de Rodrigo Duarte.

No além das máquinas


(Para o engenheiro Milton Vargas)

Vilém Flusser e Milton Vargas se correspondiam regularmente e Flusser escrevia


ensaios especialmente para o amigo, mesmo sem a intenção de publicá-los.

Para poder-se trabalhar, é pre- Tampouco tem sentido considerar a sobre o alvo do trabalho, o “dever-ser”
ciso supor que o mundo não é como modificabilidade do mundo se não se do mundo. Isto é, trabalha-se etica-
deve ser, e que é possível muda-lo. sabe que o mundo não é como deve mente, moralmente, religiosamente,
Tais pressupostos são problemas. Do ser: nenhuma técnica sem ontologia e politicamente, de “boa fé”, em suma:
problema como o mundo é trata a on- deontologia. praticamente. Na segunda fase alguns
tologia, do problema como dever trata “Originalmente” (isto é, desde homens se concentram sobre o ser do
a deontologia, e do problema como que há gente que trabalho), não se mundo que se revela sob trabalho. As-
pode ser mudado trata a técnica. Os distinguia entre os três aspectos do sim surge o trabalho epistemológico,
problemas se engrenam. Não tem trabalho. O lado ontológico, deon- científico, experimental, “sem fé”, em
sentido dizer que o mundo é como tológico e técnico da magia pode ser suma: trabalha-se, também, teorica- www.ihu.unisinos.br
dever, se não se sabe como ele é: ne- visto por nós, mas não pelo mágico. mente. Na terceira fase o interesse se
nhuma deontologia sem ontologia. Mas uma vez vislumbrada a distinção concentra sempre mais sobre o mé-
Nem dizê-lo se não se sabe como o tripartite, surge um problema de se- todo do trabalho, e o trabalho tende
mundo deve ser: nenhuma ontologia gunda ordem: o da relação entre os a ser seu próprio propósito. Surge o
sem deontologia. Negar que o mundo três aspectos. A história de tal pro- trabalho funcional, técnico, progra-
é como deve ser não tem sentido sem blema secundário (que é a história da mado, crono e organigrafado, de “má
saber que pode ser mudado: sem téc- humanidade) é esta: na primeira fase fé”, em suma: tende-se a trabalhar efi-
nica nem ontologia nem deontologia. da distinção o interesse se concentra cientemente. Na primeira fase predo-

____________________
1 Siegfried Zielinski: teórico da mídia alemão. Aborda principalmente os temas de Teoria da Mídia, Arqueologia e Variantologia da Mídia
na Universidade de Berlim. É autor de A arqueologia da mídia: em busca do tempo remoto das técnicas de ver e do ouvir (São Paulo:
Annablume, 2006). Leia uma entrevista concedida por ele à IHU On-Line, intitulada “Ser offline e existir online”, publicada na edição
número 375, de 03-10-2011, disponível em http://bit.ly/PyeX5H (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 19


minam questões finais, “para quê?”; pita na Suíça é de $ 8.780.– por ano, teoria nasceu com os gregos antigos
Tema de Capa
na segunda questões causais, “por o que não satisfaz as necessidades, já é duvidosa. Elementos teóricos são
quê?”; na terceira questões formais, que os suíços procuram aumentá-la. inseparáveis em todo trabalho prático
“como?”. Há, pois, três modelos histó- Em suma, a meta do trabalho não é (na Babilônia, no Egito, na Palestina).
ricos do trabalho: o do revolucionário satisfazer uma necessidade biológica, E teoria em sentido exato, teoria eli-
engajado, o do cientista pesquisador, e mas realizar um valor codificado, um minadora de valores, não surgem se-
o do funcionário tecnocrata. “dever-ser” inserido em determina- não na Itália do século XIV. É somente
A maioria da humanidade não da escala. Porque trabalho é movi- quando a epistemologia se “libera” da
trabalha. Serve de instrumento para o mento natural, mas gesto codificado ética, quando a questão do “bem” é
trabalho de outrem. Em tal alienação (cultura). posta entre aspas, que surge a teoria
não está interessada nem em episte- Na pré-história mágica a ques- científica, isto é, o trabalho de pesqui-
mologia, nem em ética, nem em meto- tão dos valores não pode ser posta, sa. E isto leva ao divórcio entre o ser-
dologia. Não quer saber nem como o porque, para poder medir, é preciso -assim e o dever-ser que caracteriza o
mudo é, nem como deve ser, e a ideia estar-se do lado de fora do objeto a Ocidente moderno. O mundo passa a
de querer mudar o mundo não lhe ser medido. Mas o dever-ser a ser ter duas regiões: a dos valores (a so-
ocorre. A maioria da humanidade par- medido pervade, durante a época má- ciedade), na qual é preciso perguntar
ticipa da história passivamente: sofre. gica, tanto o mundo trabalhado quan- “por quê?”, e a dos dados (a nature-
E a minoria que trabalha é simultanea- to o homem que o trabalha. Homem za), na qual é preciso perguntar “por
mente revolucionária, científica e tec- e mundo estão plenos do dever-ser, quê?”. E a cultura passa a dividir-se
nocrática, porque todo tipo de traba- de “deuses”, e mundo e homem são em científica e humanista. À questão
lho envolve todos os demais. Os três governados pelas regras da ética, as “que devo fazer?” (guerras religiosas,
modelos não são jamais realizados em “leis” da recriminação, do tabu, do lutas políticas) acrescenta-se a outra:
sua pureza. A divisão proposta da his- “pecado”. A questão que domina em “por que faço o que faço?” (problema
tória não passa de esquema. Mas de tal situação não pode ser “que devo da relação entre ciência e política, en-
esquema útil. Permite lançar luz espe- fazer?” (questão do valor), mas “que tre juízo lógico e juízo imperativo). A
cífica sobre a dita “crise dos valores”. acontece se não faço o que devo fa- questão do valor não se põe apenas
Porque permite lançar a seguinte zer?” (questão da punição). Os valores enquanto “qual valor?”, mas também
tese: na pré-história, durante a domi- não podem ser duvidados, não há dis- enquanto “que é valor?”. A existência
nação do trabalho mágico, os valores tância para tanto. Não estão por cima, moderna é obrigada não apenas a tra-
não podiam ser questionados. Du- ou dentro, ou diante do homem, mas balhar praticamente, engajadamente,
rante o trabalho engajado a questão o homem está neles. Toda a dúvida se mas também teoricamente, cientifica-
dos valores predomina. Durante o concentra sobre a infração dos valores mente. Não apenas para o “bem”, mas
trabalho-pesquisa a questão dos valo- indubitáveis. também para a “verdade”.
res é suspensa. E durante o trabalho A questão “que devo fazer?” sur- Ciência e política, epistemologia
funcional a questão dos valores não ge qual espada flamejante no caminho e ética, se divorciaram. Isto leva a com-
tem sentido. Tal tese merece atenção, da humanidade quando os homens parar as duas formas de trabalho, a fim
mas exige consideração prealável: “va- caem fora dos valores. Jaspers pensa de reunificá-las, já que não pode haver
lor” é medida do dever-ser, e há várias que isto se deu graças ao emergir de ontologia sem deontologia e vice-ver-
escalas de valores, por exemplo, os novo nível de consciência no século sa. E tal comparação formal leva, por
de “uso”, de “troca”, os “simbólicos” VIII a.C., na Jônia, na Palestina, na Ín- sua vez, à tecnicalização do trabalho.
etc. Isto é, “valor” é conceito codi- dia e na China. E tal pergunta impõe As perguntas finais e causais (“para
www.ihu.unisinos.br

ficado. Uma tendência biologizante a outra: “para quê faço?”. O valor se quê” e “por quê”) são reduzidas, em
do século passado sustentava que os torna problema, barra o caminho. Isto tam comparação a perguntas formais
homens trabalhavam para “satisfazer é a origem da existência histórica, que (“como”). As consequências disso con-
suas necessidades”, tal tese passou é existência problemática: obrigada tinuam imprevisíveis. Já produziram a
a ser o “senso comum” da atualida- a questionar o dever-ser do mundo. Revolução Industrial e o Aparelho. Já
de. (“Senso comum” é raciocínio em Obrigada a formular códigos, leis, im- produziram o trabalho pelo trabalho
base de preconceitos relativamente perativos. Obrigada a viver religiosa- (l’art pour l’art), na forma da moral de
recentes.) A tese biologizante é insus- mente, politicamente. Obrigada a tra- trabalho burguesa, na forma da glori-
tentável. As “necessidades” humanas balhar praticamente, engajadamente. ficação fascista do “ato”, e na forma
são definíveis apenas em nível biológi- Isto é, para o “bem”. da filosofia do trabalho marxista en-
co, e animais não trabalham. A renda Mas a questão do valor implica a quanto laborterapia salvadora. E estão
per capita no Tchad é $ 80.– por ano, do ser, a medição do dever-ser impli- produzindo atualmente à análise es-
o que satisfaz as necessidades, já que ca a medição do ser-assim, e a práxis trutural, à tecnocracia, à cibernética,
os chadianos vivem. A renda per ca- implica a teoria. A afirmação que a em suma: ao trabalho funcional como

20 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


propósito de si mesmo. Ciência e polí- quê” à do “por quê”, a visão da má- para a ética, mas também para a epis-

Tema de Capa
tica se reunificam sob o signo da téc- quina muda em dois sentidos. De um temologia. Mas sobretudo problema-
nica, já que questões finais e causais lado surgem máquinas que servem à tizam o conceito do trabalho.
passam, ambas, a serem “metafísicas” descoberta, e não à modificação, do O aparelho, e sobretudo o apa-
em sentido pejorativo: tanto a questão mundo, os ditos “aparelhos”. Pode-se relho pós-industrial, inverte a relação
do “valor” quanto a da “coisa em si” dizer que o telescópio é bom para ver pré-industrial entre a máquina e o
são questões mal colocadas, porque as montanhas da Lua, tanto quanto o homem. Antes da Revolução Indus-
não há método que possa levar a res- moinho é bom para fazer farinha, mas trial a máquina está entre o mundo
postas. A existência pós-industrial está não se pode fazer que as montanhas a ser trabalhado e o homem quem o
condenada a não mais poder trabalhar da Lua devem ser outra coisa como o trabalha: é a prolongação do homem,
nem prática, nem teoricamente, mas trigo deve ser farinha. Os aparelhos “pertence” ao homem. Daí o proble-
a funcionar formalmente. Nem para o são bons, mas não são bons para algo. ma fundamental da existência histó-
“bem”, nem para a “verdade”, mas em Do outro lado máquinas não são vistas rica: quais os homens aos quais má-
função da função que desempenha. apenas enquanto meios, mas também quinas “devem” pertencer? Depois da
Isto é a crise dos valores.o trabalho enquanto sistemas. Tal visão causal da Revolução Industrial o homem passa
se tornou, a rigor, impossível. Com máquina produz a cosmovisão meca- a funcionar em função das máquinas
isso não acaba apenas a história, mas nicista (máquinas enquanto modelos dentro de um ou vários aparelhos. O
também a forma humana de existir de mundo), para a qual a questão final mundo a ser trabalhado passa para o
(homo faber). Se não posso perguntar perde sentido (o mundo pode ser bom além do horizonte, passa a ser “meta-
“que devo fazer?”, não mais trabalho. ou não, mas não é bom para algo). E físico”, isto é, coisa em si. Em outros
Mas a consciência disso ainda não se produz também a visão teórica da má- termos, antes da Revolução o homem
repandiu. Embora a subconsciência quina, a qual permite fazer novas má- é a constante, e a máquina a variável
já o registre. Trabalha-se sempre me- quinas, isto é, a Revolução Industrial da relação máquina/homem, e depois
nos, e sempre com menos empenho, explode. Na época moderna, a máqui- da Revolução o aparelho passa a ser a
porque “máquinas podem fazê-lo”. É na passa a ser problema, porque colo- constante. Antes da Revolução seria
preciso, pois, considerar as máquinas, ca a questão do valor, em vez de me- impensável dizer-se que o moleiro e
se quisermos captar a essência (eidós) ramente servir à realização de valores. o trigo servem para alimentar o moi-
da impossibilidade para o trabalho. É Uma das consequências da Revo- nho. Depois da Revolução não apenas
preciso ir além da máquina para poder lução Industrial é o acúmulo de má- a mão de obra serve à indústria, mas
ver a existência sem trabalho. quinas em conjuntos chamados “apa- isso até é sacralizado: os franceses
Máquinas são objetos feitos para relhos”. Telescópios complexos. Que o servem à França. Tal situação kafkiana
vencer a resistência que o mundo põe aparelho administrativo de um país ou provoca, no século XIX, reação curiosa.
ao trabalho. São “boas” para isso. A o aparelho industrial de um continen- Surge a esperança que as má-
flecha paleolítica é boa para matar te são máquinas do tipo “telescópio” quinas sincronizadas em aparelhos
renas, o arado neolítico é bom para a não é imediatamente óbvio, mas dá-se podem “libertar” o homem para tra-
agricultura, e o moinho clássico é bom claro quando considerado. O aparelho balhos criativos. Máquinas podem
para transformar trigo em farinha. administrativo, anto quanto o telescó- substituir os escravos. A humanidade
Isso porque animais devem ser mor- pio, serve para apresentar o mundo, pode, toda ela, desalienar-se. A histó-
tos, campos devem dar trigo, e trigo não para modifica-lo. A questão “para ria enquanto processo durante o qual
deve ser farinha. Máquinas não são, quê serve a França?” não pode ser a humanidade transforma o mundo
pois, problemas, mas métodos para respondida com “a fim de modificar naquilo que deve ser pode passar a www.ihu.unisinos.br
resolver problemas. São objetos práti- o mundo”, mas com “a França é boa ser história da humanidade toda. Tal
cos, políticos, religiosos (como já eram ou não, mas não é boa para algo”. A esperança é responsável pelo clima
objetos rituais na época da magia). França, tanto quanto o telescópio, otimista, progressista do século XIX,
Máquina são objetos pré-históricos apresenta “um mundo”, é aparelho, e foi articulada mais adequadamente
absorvidos pela história; em todo caso isto é, conjunto de máquinas para o pelo marxismo. Tal esperança ainda
são objetos pré-modernos: exigem a qual a pergunta “para que serve isso?” não está totalmente morta, embora
pergunta “para quê” isso serve?”. Ser- levanta problemas. esteja atualmente óbvio que peça por
vem ao engajamento. Aparelhos, tanto quanto máqui- incompreensão do aparelho. A morte
Na época moderna máquinhas nas tout court, modificam o mundo, de tal esperança progressista é lenta,
se problematizam, e é por isso que mas o fazem acidentalmente (princí- porque se trata da última fé que nos
ocupam um dos centros do interesse. pio de Heisenberg). Aparelhos do tipo resta.
(O helenismo, essa modernidade frus- telescópio e França provocam pontos O aparelho não pode libertar o
trada, apenas prefigura tal problema- de vista, ideologias deformadoras do homem para trabalhos criativos. Não
ticidade.) Quando a pergunta “para mundo. São problemas não apenas o pode, porque exige, em seus está-

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 21


gios iniciais, que o homem sirva ao (uma Inglaterra sem ingleses). Mas o dito “standard” de vida (o que impli-
Tema de Capa
aparelho. E porque, nos seus estágios homem não pode libertar-se do apa- caria no aumento da dita “qualidade
mais avançados, pode, em tese, re- relho porque existe nele. Sem apare- de vida”), e passar destarte impercep-
alizar não importa que trabalho, in- lhos, ciberneticamente sincronizados tivelmente para fora do aparelho. É a
clusive o mais “criativo”, melhor que ou não, a humanidade morreria. Não atitude dos hippies, dos ecólogos, em
qualquer homem. Mas sobretudo o porque os aparelhos satisfazem as suma: da dita “nova esquerda”. Uma
aparelho não pode libertar o homem “necessidades” de uma humanidade quarta atitude é a tentativa de per-
para trabalhos criativos, porque tra- em explosão demográfica (tal argu- turbar o aparelho por dentro a fim de
balhar criativamente, depois do apa- mento do senso comum já foi refu- criar buracos de “mau funcionamen-
relho instalado, não tem sentido. Não tado), mas porque os aparelhos são to”, dentro dos quais a humanidade
apenas o homem não pode escrever atualmente o mundo dentro do qual, estaria livre. É a atitude da contesta-
sinfonias no primeiro estágio indus- para o qual e do qual a humanidade ção anárquica, dos ditos “terroristas”.
trial, porque precisa funcionar em de vive. Uma Inglaterra sem ingleses é Mas todas tais atitudes (e outras não
seguros, e no segundo estágio por- imaginável, mas não um inglês sem mencionadas) não podem contornar
que computadores fazem sinfonias Inglaterra. O aparelho é constante, o o fato que além das máquinas não é
mais perfeitas mais rapidamente. Não homem é variável. possível imaginarmos existências que
pode escrever sinfonias porque sinfo- Diante desse fato (inconsciente- trabalham, isto é, mudam o mundo a
nias não tem sentido em situação de mente já sorvível, embora ainda não fim de que o dever ser seja.
funcionamento. Se posso mostrar sob totalmente conscientizado), várias Máquinas pós-industriais são
análise formal não apenas o que a sin- novas atitudes estão se formulando. resultados da concentração do inte-
fonia é (carga informativa etc.), mas Uma é a de considerar toda tentativa resse sobre o aspecto metodológico,
também como programar emissor e de querer transcender o aparelho ten- do “como”, do processo do trabalho.
receptor de sinfonias, se portanto a tativa “mística”, e, por certo, “traido- Não estão sendo abusadas, nem nos
questão do valor perdeu sentido, fazer ra” da fidelidade ao aparelho (única abusam: funcionam corretamente. A
sinfonias perdeu sentido. Não há nada fidelidade que resta depois da morte técnica, que não é possível sem onto-
para o qual a máquina possa libertar, e dos valores). É a atitude dos funcioná- logia nem deontologia, não obstante
a colocação mesma do problema (para rios em carreira e dos tecnocratas (dos devorou tanto ontologia quanto deon-
quê libertar?) pode ser mostrada sem que creem ideologicamente terem su- tologia. Nenhuma espécie de saudo-
sentido. perado todas as ideologias). Outra ati- sismo pode reinstaurar o Ser e os Va-
Mas isso não é tudo. Não ape- tude é a do desespero: não se escapa lores. A função, a relação, o “campo”,
nas a máquina não pode libertar o mais ao aparelho, e todos estão con- o “Sachverhalt”, o “ecos”, devorou Ser
homem, mas o homem não pode denados a funcionarem em vez de vi- e Valor ao encerrá-los na caixa preta
libertar-se do aparelho. Não apenas verem. É a atividade kafkiana, mas seu do “nonsense”. Por isso a vida no além
no sentido já arcaico que o aparelho clima não é mais do absurdo vivencia- das máquinas é estritamente imaginá-
exige que o homem o sirva (“England do, mas do absurdo amortecido pelo vel. Embora em certo sentido já este-
expects everybody to do his duty”), consumo. Uma terceira atitude é a jamos nela.
porque a cibernética permite vislum- tentativa de demolir os aparelhos aos
brar aparelhos autônomos do homem poucos, diminuir progressivamente o
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22 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


Tema de Capa
Flusser e a filosofia da
pluralidade, do encontro
e do diálogo
Nesse diálogo, segundo Rainer Guldin, não existe uma voz que poderia falar por todas
as outras. Cada voz pode se articular livremente

Por Thamiris Magalhães|Tradução: Moisés Sbardelotto

V
ilém Flusser conseguiu enxergar além tar novos mundos e novos modos de intera-
de seu tempo. Apesar de não vivenciar gir. De outro, porém, sempre alertou para os
o fortalecimento das mídias digitais, o perigos inerentes à criação e à utilização de
autor conseguiu deixar marcas de seus tra- novas mídias.”
balhos que ainda hoje servem de base para Ligado à Università della Svizzera Italiana,
pensarmos a contemporaneidade. “Flusser em Lugano, na Suíça, onde leciona filosofia,
viu alguns aspectos problemáticos do estar Rainer Guldin é editor-chefe da revista Flusser
em rede, do existir online. Em um texto dos Studies e um dos pesquisadores mais renoma-
anos 1970, ele descreve o diálogo em rede dos da obra desse autor. Estudou Germanísti-
como um modelo em que tudo é sacrificado ca e Letras/Inglês na Universidade de Zurique
pela circulação contínua de informações de e na Universidade de Birmingham (Reino Uni-
todos os tipos. A fluidez é tudo”, explica um do). Obteve doutorado em Literatura Alemã
dos pesquisadores mais renomados da obra com uma tese sobre Hubert Fichte. Já minis-
de Flusser, Rainer Guldin, em entrevista con- trou aulas na Universidade Bauhaus de Wei-
cedida por e-mail à IHU On-Line. mar e na Universidade do Estado do Rio de Ja-
Rainer Guldin frisa que Flusser sempre neiro. É autor de diversos ensaios dedicados a
teve uma atitude muito ambivalente com re- obra de Vilém Flusser, a teorias da tradução e
lação às mídias. “De um lado, ele acentuou a a história do corpo humano.
sua criatividade, a sua possibilidade de inven- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos original. Traduzir significa abrir-se a a sua coerência interna, mas também
definir os conceitos de “traduções” e novas situações, sabendo que, apesar para publicar diversas variações do
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“retraduções”, cunhados por Flusser? de ser necessária, a tradução é funda- mesmo texto. Aqui, provavelmente
Rainer Guldin – Flusser tinha mentalmente impossível. O processo também teve um papel importante o
uma visão muito ampla do conceito de de tradução é aberto, pode continuar aspecto financeiro.
tradução. Traduzir é, sobretudo, trans- ad libitum sem que jamais se chegue
formar, recriar, de modo a descobrir a reproduzir exatamente o original. Tradução e retradução
novos aspectos. Traduzir implica sem- Quando renunciamos conscientemen- Flusser nunca reescreveu um tex-
pre um salto de um universo ao outro, te a esse ideal e nos concentramos no to na mesma língua, mas sistematica-
um corte radical, e com isso é ilusório que acontece no processo de tradução mente traduziu todos os seus textos.
querer acreditar que se possa tradu- para descobrir novas perspectivas, o Assim, cada texto tem uma ou mais
zir literalmente, sem perda alguma, intraduzível deixa de ser um proble- variações em uma outra língua. Em um
bem como tentar defender um prin- ma e se torna uma inspiração a seguir. caso, até 12 versões diferentes. Penso
cípio errôneo de reprodução perfeita. Flusser usou a tradução para criticar os que essa interpretação muito dinâmi-
A tradução, como Flusser a entendia, seus textos, para submetê-los ao regi- ca e criativa do conceito de tradução
não quer produzir uma cópia exata do me lógico de outra língua, para testar tem a ver tanto com as bases da sua

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 23


filosofia como com a prática diária de
“Traduzir é, termediário e híbrido entre as línguas
Tema de Capa
tradução e de retradução. Os dois as- e culturas individuais. Em vez de se
pectos se pressupõem mutuamente.
A tradução é um processo fundamen- sobretudo, interessar apenas pela passagem do
sentido de uma língua a outra, agora
talmente linear. O conceito de retra-
dução, ao invés, introduz a noção de transformar, estamos muito interessados pelo que
acontece na passagem de uma língua
reflexão e de inversão. Depois de ter
traduzido um texto do português para recriar, de modo a outra. Os problemas, as hesitações,
as contradições insolúveis. Esse novo
o alemão, do alemão para o inglês e
do inglês para o francês, cumulando a descobrir novos conceito de tradução poderia nos aju-
dar a entender melhor o que acontece
novos pontos de vista e aspectos vi-
síveis apenas através do espectro de aspectos” quando ocorre uma transformação.
Flusser se interessou pela teoria da
uma outra língua, Flusser retraduzia tradução de modo sistemático espe-
o seu texto na língua inicial, tentando cialmente nos anos 1950 e 1960, em
criar uma síntese de todos os aspectos tro. Ele começou com uma definição uma época, portanto, em que ainda
encontrados no processo de tradução. estritamente linguística da realidade. predominava uma concepção funda-
Nesse ponto, impunha-se também A língua inventa, cria a realidade. Mas, mentalmente linguística da tradução,
uma comparação entre o primeiro em seguida, ele reformulou o seu pen- que idealizava a ideia de um transpor-
e o último textos para ver como eles samento, adotando sempre novos te sem perdas do conteúdo original.
diferiam um do outro. Naturalmente, modelos: a teoria da informação, a te- Flusser não seguiu mais as mudanças
podia-se “coenvolver” esse texto em oria da comunicação, a cibernética, a que ocorreram em seguida e morreu
mais uma rodada de dança. Nesse teoria dos jogos, a teoria dos gestos. antes que se impusesse a cultural turn
sentido, um texto nunca estava total- Poder-se-ia descrever o desenvolvi- [virada cultural] na teoria da tradução
mente terminado. Flusser mencionava mento do seu pensamento como uma e translational turn [virada transla-
dois critérios para interromper a dan- contínua tradução e retradução, uma cional] nos cultural studies [estudos
ça: satisfação pessoal ou possibilidade espiral que vai se ampliando à medi- culturais]. Penso que esses desenvol-
de publicação. Esse é o aspecto prático da que prossegue, que avança, mas vimentos o interessariam muito.
da tradução e da retradução. A isso é que gira continuamente em torno dos
preciso acrescentar que tradução e re- mesmos temas, combinando desse À frente do seu tempo
tradução são duas metáforas centrais modo repetição e novidade. Isto é, Apesar disso, Flusser desenvol-
no seu sistema filosófico. No texto Cai- poder-se-ia aplicar a metáfora da re/ veu um conceito de tradução muito
xa preta, dos anos 1980, por exemplo, tradução ao conjunto da sua obra. à frente do seu tempo. Esse conceito
Flusser liga a tradução à história, e a Isso confere à sua obra uma grande inspirado por Quine1, mas, sobretudo,
retradução à pós-história. A história riqueza, mas, ao mesmo tempo, tam- por poetas como Haroldo de Campos2,
traduz imagens em textos, e a retra- bém uma notável coerência interna. de quem Flusser traduziu duas passa-
dução retraduz textos em imagens. A Pensar é traduzir: transformar o que gens em alemão, privilegia a transfor-
tradução é um princípio operacional já se sabe, integrando novos elemen- mação, a recriação. Haroldo de Cam-
que funciona mesmo quando se pas- tos. Recriar traduzindo em novos con- pos falava de transcriação. Através da
sa de um discurso a outro, ou de uma textos mais amplos, acrescentando e possibilidade da retradução, Flusser
fase da vida a outra. Sempre que ocor- integrando sempre novos elementos. também introduziu um princípio fun-
re uma transformação, estamos diante damentalmente democrático no pro-
de uma forma de tradução. Um perigo IHU On-Line – Qual é a relevân- cesso de tradução. Quando traduzo do
inerente a essa visão metafórica totali- cia atual das postulações flusserianas alemão ao francês, as minhas decisões
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zante do fenômeno da tradução é que sobre a tradução para os estudos de ocorrem em função do francês, que é
a metáfora corre o risco de perder o tradução em geral? a metalíngua do alemão, língua obje-
seu significado. Rainer Guldin – Nos últimos to. Mas posso ainda inverter essa rela-
anos, chegou-se a uma teoria da tra- ção hierárquica, traduzindo do francês
IHU On-Line – De que forma a dução que sucessivamente integrou para o alemão. Nesse caso, o alemão
obra do filósofo pode ser compreen- o aspecto cultural, a importância do se torna metalíngua do francês, que,
dida como uma reflexão sobre o fenô- contexto político-social de cada ope-
meno da tradução? ração de tradução e a própria figura 1 Willard Van Orman Quine (1908-
do tradutor. Em vez do conceito de 2000): um dos mais influentes filósofos e
Rainer Guldin – O princípio da lógicos norte-americanos do século XX,
tradução, como já se disse, é opera- equivalência que subordinava a tra- considerado o maior filósofo analítico da
cional em todos os níveis da sua obra. dução ao original, lentamente se im- segunda metade deste século. (Nota da
pôs um conceito de tradução como IHU On-Line)
Flusser constantemente ampliou e 2 Haroldo de Campos (1929-2003): poeta
modificou o seu modo de pensar tra- transformação. Além disso, falou-se concretista e tradutor brasileiro. (Nota da
duzindo conceitos de um campo a ou- muitas vezes de um terceiro espaço in- IHU On-Line)

24 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


por sua vez, se torna língua-objeto.
“A tradução é computador”. Nesse sentido, qual a

Tema de Capa
Toda língua pode ser língua-objeto e atualidade do pensamento de Flusser
metalíngua. Trata-se de tomar todas
as línguas à disposição e usá-las como um processo para os dias de hoje, com o surgimen-
to e fortalecimento das mídias digi-
metalíngua das outras, para depois
usar essas línguas-objeto como meta- fundamen- tais? Como podemos “reler” Flusser
nesse sentido?
língua da sua própria metalíngua. Esse
jogo de inversões contínuas que Flus- talmente linear. Rainer Guldin – Flusser morreu
em 1991. Portanto, ele não conheceu a
ser formulou a partir do seu método
de trabalho poderia ser usado como O conceito de internet e tudo o que se seguiu. Porém,
formulou o conceito de sociedade tele-
um modelo de comunicação intercul-
tural. É nisto que reside a verdadeira retradução, ao mática perto do fim dos anos 1980. Isso
implica uma existência dialógica com
atualidade de Flusser: não tanto nos
conteúdos que ele propôs, mas sim invés, introduz a os outros. Nas sociedades telemáticas,
os indivíduos não se inclinam mais ao
nos métodos que elaborou.
noção de reflexão mundo dos objetos, não são mais assu-
jeitados à realidade das coisas, mas são
IHU On-Line – Poderíamos pen-
sar, a partir do que o filósofo afirma- e de inversão” nós de uma rede intersubjetiva. Flusser
resumiu essa ideia na diferença entre
va, que temos e teremos dois tipos de sujeito e projeto. Estar online na socie-
escrita? Por quê? dade telemática implica viver a reali-
certamente o estimulariam para ten-
Rainer Guldin – Penso, ao invés, dade como projeto coletivo contínuo.
tar superar a crise da escrita.
que Flusser queria dizer que, com a Toda forma de saber, todo valor é ema-
invenção das imagens técnicas, a es- nação desse projeto coletivo, e por isso
IHU On-Line – De que maneira o
crita mudou fundamentalmente, que só pode ser um consenso temporário.
filósofo, habitante de várias pátrias e
haviam se criado novos modos de A liberdade na sociedade telemática
de vários mundos linguísticos, apro-
expressão e que era preciso tentar consiste, para o autor, na participação
veita esta condição e desenvolve uma
pensar usando imagens em vez de pa- na elaboração sempre nova de consen-
forma única para escrever seus livros,
lavras, fazendo filmes, por exemplo; so e na sua projetação.
formular suas teorias e lidar com
que era preciso criar novos mundos
utilizando o computador. Flusser ten-
questões filosóficas? Desafios do “existir online”
Rainer Guldin – Flusser nasceu Flusser, porém, viu também al-
tou integrar, ao menos em parte, as
em Praga, mas viveu na Inglaterra, no guns aspectos problemáticos do estar
novas mídias no seu modo de escre-
Brasil, na Itália e na França. Um im- em rede, do existir online. Em um texto
ver. O livro Angenommen, supomos,
portante princípio da sua filosofia era dos anos 1970, ele descreve o diálo-
que, infelizmente, ainda não foi tra-
a ideia de que era preciso multiplicar go em rede como um modelo em que
duzido ao português, embora alguns
continuamente os pontos de vista, de tudo é sacrificado pela circulação con-
capítulos já existam em uma versão
modo a poder se aproximar da reali- tínua de informações de todos os tipos.
portuguesa, é concebido como uma
dade: acumular pontos de vista, para A fluidez é tudo. Aqui tudo é distribuído
série de cenários para pequenos fil-
criar no fim uma visão de conjunto. a todos, até mesmo informações muito
mes em vídeo. Na introdução, Flusser
Essa ideia certamente é inspirada problemáticas. O autor compara a rede
convida artistas de vídeo a entrar em
pela sua vida entre línguas, continen- dialógica com a boataria, as fofocas e
contato com ele para uma possível
tes e tradições culturais. Flusser fez a a conversa fiada. Muitas vezes, falta
colaboração. A primeira edição alemã
sua estreia com o tcheco e o alemão, na rede um princípio seletivo. Isso le-
do livro A escrita era acompanhada www.ihu.unisinos.br
acrescentando pouco a pouco o inglês, vou, na internet, à criação de sites de
por um disquete para MS-DOS no qual
o português, o italiano e o francês. extrema direita e a uma preponderân-
o leitor podia anotar as suas impres-
Tudo isso fez com que a sua filosofia cia de textos que negam o Holocausto
sões. O último livro que ele escreveu,
seja uma filosofia da pluralidade, do – até porque essas opiniões não pas-
mas que não chegou a concluir, era
encontro, do diálogo. Nesse diálogo, sariam pelo filtro das editoras. A rede,
uma tentativa de integrar consciente-
não existe uma voz que poderia falar porém, também é fundamentalmente
mente a imagem no texto. Flusser fez
por todas as outras. Cada voz pode se democrática, no sentido da grass roots
isso acentuando o aspecto figurativo
articular livremente. democracy [democracia de base]. Ela
das palavras, tomando-as literalmen-
te, retraduzindo, ou seja, as palavras absorve todas as informações indiscri-
IHU On-Line – Em A escrita: há minadamente. Esse é um comentário
nas imagens das quais haviam nasci-
futuro para a escrita?, Flusser afirma- muito interessante se pensarmos na
do. Dentro de certos limites, Flusser
va: “em vez de textos que se dirigem internet e nos celulares, no Twitter, no
se deixou inspirar pelas novas mídias
ao leitor, prescrições para as máqui- Facebook e na revolução árabe da pri-
do seu tempo. Os últimos desenvol-
nas e, em vez de obras, programas de mavera de 2011.
vimentos na técnica da comunicação

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 25


Bibliophagus convictus “Sempre que ocorre dentro de um diálogo coletivo.
Tema de Capa
Em uma das suas magníficas e Em vez de um autor individual que
irônicas ficções filosóficas, textos hí-
bridos na fronteira entre ciência, arte
ocorre uma escreve textos que representam a re-
alidade, na sociedade telemática qual-
e filosofia, Flusser descreve um inseto
a meio caminho entre a abelha e a for-
transformação, quer um é um nó ativo em uma rede
intersubjetiva. Essa é uma mudança
miga, o Bibliophagus convictus. Esse
animal se nutre apenas de textos es-
estamos diante radical: no diálogo coletivo, cria-se
um possível consenso intersubjetivo
critos com tinta de impressão. No pro-
cesso de mastigação, a saliva que con-
de uma forma de e obras coletivas que sugerem novos
modos de existir, realidades impossí-
tém uma enzima, a criticase, faz com
que, a partir de uma reação química
tradução” veis, como o mundo do Vampyroteu-
this infernalis.
da enzima com a tinta de impressão,
seja gerado um ácido, o informasis. O IHU On-Line – Gostaria de acres-
necessidades melhor do que nós, e os centar algum aspecto não questionado?
texto mastigado é transformado em
nossos movimentos são registrados Rainer Guldin – Sim. Penso que
uma bolinha que passa depois de inse-
fielmente pela utilização do celular e Flusser permaneceu atual por uma
to a inseto, cada um dos quais engole
do nosso cartão de crédito. Ler Flus- série de motivos. Não só pelo seu in-
uma pequena porção. Assim, todos
ser também significa, portanto, tomar teresse pelas novas mídias, mas tam-
os Bibliophagi são “informados”. O
consciência desses outros aspectos bém pelos diferentes estilos que ele
problema são os textos pouco infor-
mais problemáticos, mas sem abraçar praticou na sua vida. O prefixo inter
mativos, redundantes, os textos que
uma visão puramente pessimista. resume, a meu ver, muito bem essa
reciclam informações sem criar nada
de novo – e Flusser parece querer nos atitude básica: abolir fronteiras, pôr
IHU On-Line – Qual a novidade em contato, comparar, contaminar,
dizer que cada vez há mais destes últi-
da relação estabelecida por Flusser sobrepor, combinar, unir, misturar,
mos. Esses textos levam a formações
entre o nosso “ser off-line” e o “exis- con/fundir. A obra de Flusser nasceu
cancerígenas no inseto individual an-
tir online”? entre línguas diferentes, é fundamen-
tes e, depois, graças à facilidade com
Rainer Guldin – Com a invenção talmente interdisciplinar, a meio cami-
a qual as informações circulam em
das imagens técnicas, como a foto- nho entre a filosofia e a literatura; ela
rede, infectam como um vírus a todo
grafia, o filme e o vídeo, e de modo combina os discursos mais diferentes,
o ninho. A ironia é clara: a utopia da
ainda mais radical com a possibilidade sem nenhum respeito pelas fronteiras
comunicação perfeita e total se torna
das imagens digitais que permitem a que as separam normalmente.
um pesadelo totalitário. E esse é outro
produção de imagens que já não re-
aspecto importante a não se esquecer.
presentam mais a realidade, a escrita Antiacadêmico
perde importância notavelmente. Em A filosofia de Flusser não é só
Ambivalência com relação às seu livro A escrita, Flusser se pergunta profundamente antiacadêmica, mas
mídias se e como a escrita poderá sobreviver também indisciplinada, no sentido de
Flusser sempre teve uma atitude a todas essas mudanças. A frase que ser insubordinada e recalcitrante, mas
muito ambivalente com relação às mí- você citou é um comentário sobre a também no sentido de que não é nada
dias. De um lado, ele acentuou a sua mudança radical da escrita que não fácil classificá-la, pois se recusa a ser
criatividade, a sua possibilidade de in- é mais vista como o meio [medium] classificada. Essa é uma das razões
ventar novos mundos e novos modos principal para articular o pensamento, pelas quais, nas livrarias europeias,
de interagir. De outro, porém, sempre mas como um código que é devorado era preciso buscar os livros de Flusser
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alertou para os perigos inerentes à pelo novo código das imagens técni- sempre em diversos setores, na filoso-
criação e à utilização de novas mídias. cas, que serve para a criação de pro- fia, na ensaística, na teoria das mídias,
Essa ambivalência, principalmente o gramas que, por sua vez, produzirão na fotografia e no design. Esse erro,
aspecto crítico, se perdeu um pouco realidades novas. A escrita deixou de compreensível, além do mais, não
nos últimos 15 anos. Hoje, fala-se mui- ter o predomínio sobre o mundo das acontece no Brasil, graças também ao
to dos sucessos e das possibilidades imagens e passou ao serviço destas. trabalho da editora Annablume de São
quase ilimitadas dos computadores, Com isso muda também o conceito de Paulo, que publicou nos últimos anos
dos celulares, dos smartphones, dos artista, de obra e de criatividade. As quase toda a obra de Flusser, mas
iPods, e muito pouco dos perigos ine- obras não são mais o produto de um sempre de um ponto de vista unitário.
rentes a tudo isso. Não só da circula- autor singular que cria novas realida- E esse é um aspecto, talvez o mais fas-
ção de informações imprecisas e mui- des a partir do nada, que articula a sua cinante da sua obra: a enorme riqueza
tas vezes mentirosas, mas também das interioridade subjetiva. As novas mí- de temas, pontos de vista, muitas ve-
possibilidades cada vez mais refinadas dias, sobretudo o computador, nos en- zes contraditórios, e ao mesmo tempo
de um controle social contínuo e total: sinam que criar é recombinar informa- a surpreendente unidade básica da
o Google parece conhecer as nossas ções já existentes e que isso sempre sua obra.

26 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


Tema de Capa
Um filósofo, culturólogo e
comunicólogo
Flusser se revela cada vez mais um pensador pioneiro dos novos e surpreendentes
desenvolvimentos culturais e comunicacionais do século XXI, admite
Norval Baitello Junior

Por Thamiris Magalhães

“O
pensamento de Flusser pode- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
ria ser visto a partir de três – PUC-SP, atuando na pós-graduação em Co-
modos de olhar, ou em gran- municação e Semiótica. Foi diretor da Facul-
des rubricas, em minha opinião: o comuni- dade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP
cológico, o culturológico e o filosófico”, afir- e professor-convidado das Universidades de
ma o professor Norval Baitello Junior, em Viena, Sevilha, São Petersburgo, Autónoma
entrevista concedida por e-mail à IHU On- de Barcelona e Évora. Fundou e dirige o Cen-
-Line. Para ele, esta é sua principal riqueza tro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica
para os estudos da comunicação, trazendo da Cultura e da Mídia – CISC desde 1992. Seus
reflexão e fundamentação multidisciplina- livros mais recentes são A serpente, a maçã
res para objetos tipicamente comunicacio- e o holograma (Paulus, 2010), La Era de la
nais como o livro, a escrita, o gesto, a foto- iconofagia (Sevilha, 2008) e Flussers Völlerei
grafia, a televisão, as imagens, as chamadas (Köln, 2007). Desde 2007 é coordenador da
tecnoimagens etc. área de Comunicação e Ciências da Informa-
Norval Baitello Junior concluiu o doutora- ção da Fundação de Amparo à Pesquisa do
do em Comunicação na Freie Universität Ber- Estado de São Paulo – Fapesp.
lin em 1987. Atualmente é professor titular da Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua opinião, a cidade, o design, a meditação, os novas descobertas, novas associações,
quais são os conceitos-chave para moluscos, o corpo, a pele, o tempo, o estimula o pensar criativo, liberto dos
a compreensão do pensamento de espaço, os brasileiros, até a holografia, parâmetros rígidos da ciência compar-
Flusser? as imagens, o consumo, o feminino, timentada e disciplinar.
Norval Baitello Junior – Como a arqueologia, a casa, as religiões, os Assim, são muitas suas contribui- www.ihu.unisinos.br
pensador complexo e pioneiro em mitos antigos e os modernos e muitís- ções para o pensamento contempo-
suas reflexões sobre a nova ordenação simos outros temas). râneo, sobretudo como um pioneiro
midiática do mundo por meio da cres- de uma área que hoje se torna impe-
cente e onipresente tecnologia, não é Criatividade rativa, uma teoria das mediações ou
fácil resumi-lo em poucas palavras. Ele O que sempre chama a atenção teoria dos meios (ou da mídia). Ou,
escreveu muito e em muitos formatos em seus textos é o ponto de vista quando estudado dentro de outras
(desde os textos curtíssimos publi- sempre surpreendente, como quem molduras disciplinares, mas com olhar
cados em jornais até os livros, quase prepara um bote aos seus leitores, transversal, como pioneiro da filosofia
tratados, como A escrita, Historia do um assalto relâmpago, oferecendo da mídia.
Diabo, Língua e realidade, Gestos, Fi- olhares imprevistos, mostrando a face
losofia da caixa preta, Vampyrotheutis surpreendente de objetos aparente- IHU On-Line – Poderia destacar
infernalis, ou seus dois livros inaca- mente banais. Em suma, é um pen- sua importância para as ciências da
bados, apenas em alemão, Do sujeito sador sempre preparado para dar um comunicação?
ao projeto e hominização). Além dis- bote por meio de seus textos, mas um Norval Baitello Junior – O pen-
so, abordou múltiplos temas (desde bote que enriquece os leitores com samento de Flusser poderia ser visto

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 27


a partir de três modos de olhar, ou em onde ele adquiriu o andar ereto e bí- foram todos sistematicamente escri-
Tema de Capa
grandes rubricas, em minha opinião: pede e se tornou um incansável nôma- tos e estão preservados na íntegra e
o comunicológico, o culturológico e o de. A segunda catástrofe, a civilização, ainda não publicados. Estimamos que
filosófico. Está aí sua principal rique- foi trazida pelo assentamento em mo- uma parcela equivalente a 90% da
za para os estudos da comunicação, radias fixas que possibilitou a criação e obra de Flusser não está ainda publi-
trazendo reflexão e fundamentação a posse de animais e terras. A terceira cada. Este material se encontra hoje
multidisciplinares para objetos tipica- catástrofe começa a ocorrer e não tem em Berlim, no Arquivo Flusser, na Uni-
mente comunicacionais como o livro, ainda nome. Caracteriza-se pelas mo- versidade das Artes.
a escrita, o gesto, a fotografia, a televi- radias que se tornam inabitáveis, pois
são, as imagens, as chamadas tecnoi- estão perfuradas e são invadidas pelo Novidade
magens etc. furacão da mídia. Nosso Centro Interdisciplinar de
A primeira catástrofe foi pauta- Pesquisas em Semiótica da Cultura e
IHU On-Line – Quais são as três da pelo verbo fahren (deslocar-se, em da Mídia – CISC, com o apoio do Pro-
catástrofes às quais Flusser se refere alemão) e trouxe ao homem o desen- grama de Pós Graduação em Comuni-
e o que elas representam? volvimento do erfahren (ficar saben- cação e Semiótica da PUC-SP, fechou
Norval Baitello Junior – Esta do, experienciar, em alemão). um acordo com a Universidade das
curiosa periodização da história hu- A segunda foi pautada pelo sitzen Artes de Berlim e estará instalando no
mana, em três grandes catástrofes, (estar sentado) e trouxe consigo o be- Campus Ipiranga da referida universi-
foi apresentada por Vilém Flusser pela sitzen (possuir). A terceira, ainda ino- dade brasileira um arquivo-espelho,
primeira vez em um dos simpósios da minada, está apenas começando, mas uma réplica de todos os documen-
série denominada Kornhaus-Seminare já prenuncia um retorno a algum tipo tos do arquivo berlinense, algo como
(Seminários do Celeiro) na aldeia ale- de nomadismo, pois este é constituti- trinta mil páginas datilografadas com
mã de Weiler, a convite do comunicó- vo do humano, mas possivelmente por todos os seus escritos, textos, aulas,
logo e jornalista alemão Harry Pross1 meios virtuais. correspondências, conferências, pu-
(este também um pioneiro na propo- blicados e não publicados. Será um
sição de uma teoria da mídia, já na IHU On-Line – Qual é a peculia- facilitador para todos os pesquisa-
década de 1970), com a presença de ridade da arqueologia realizada por dores brasileiros e latino-americanos
Abraham Moles 2, Vicente Romano, Flusser? que queiram pesquisar Vilém Flusser.
Lev Koppelev3, entre outros. O tema Norval Baitello Junior – Um E será uma forma de iniciarmos o mo-
do simpósio, naquele ano do final da dos mais instigantes movimentos de vimento de resgate do pensamento
década de 1980, era o “Euronomadis- seu pensamento é o diagnóstico da flusseriano no Brasil, como um tributo
mo”. Foi depois publicado em um livro emergência das ciências arqueológi- a um dos mais conhecidos pensadores
seu, denominado Medienkultur (Cul- cas, aquelas que escavam as camadas brasileiros no mundo, uma vez que ele
tura dos meios), que ele infelizmente soterradas do pensamento humano. próprio se apresentava, em seu exílio
não teve tempo de traduzir para o por- Dentre elas, inclui-se a própria ar- europeu, como um brasileiro. Um filó-
tuguês, como fazia com suas outras queologia, a história, a psicanálise, a sofo, culturólogo e comunicólogo que
obras. etimologia, a ecologia. São ciências se revela cada vez mais um pensador
preservacionistas. Por assim dizer, pioneiro dos novos e surpreendentes
As catástrofes buscam o sentido prospectivo no sen- desenvolvimentos culturais e comuni-
Flusser afirmava que a espécie tido retrospectivo. cacionais do século XXI.
humana foi gerada por três grandes
catástrofes. A primeira, chamada ho- IHU On-Line – No momento,
minização, foi provocada pela desci- como se desenvolve a pesquisa sobre
Leia mais...
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da do primata arborícola às savanas, Flusser no Brasil?


Norval Baitello Junior – Um nú-
mero crescente de pesquisadores co- >> Norval Baitello Junior já concedeu
1 Harry Pross (1923-2010): jornalista
alemão, professor da Hochschule für Arbeit, meça a estudar Flusser em sua com- outra entrevista à IHU On-Line.
Politik und Wirtschaft em Wilhelmshaven e plexidade, ou seja, não mais apenas
da Escola de Desenho de Ulm. (Nota da IHU Confira:
On-Line)
focados em sua obra mais conhecida
2 Abraham Moles (1920-1992): engenheiro e traduzida pelo mundo afora, A fi- • “Estudar a história dos tempos pro-
elétrico e engenheiro acústico  francês, losofia da caixa preta, que na versão
além de doutor em física e filosofia. fundos da imagem significa também
Também foi professor de sociologia, alemã se chama Por uma filosofia da
psicologia, comunicação, design na fotografia. Há um imenso campo ain- buscar raízes da própria escrita”. En-
“Hochschule für Gestaltung d’Ulm” e nas da por ser descoberto e estudado. Por trevista publicada na IHU On-Line,
universidades de Estrasburgo, San Diego,
México e Compiègne. (Nota da IHU On- exemplo, seus cursos dados nos anos
Line) 1960 em São Paulo (às vezes cursos número 375, de 03-10-2011, dispo-
3 Lev Zinóvievich Kópelev (1912-1997):
escritor, filólogo e dissidente soviético. ministrados em seu terraço, apenas nível em http://migre.me/aiHnd.
(Nota da IHU On-Line) para os jovens colegas de seus filhos)

28 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


Guru ou pessimista em relação à

Tema de Capa
sociedade informacional?
Flusser tinha um estilo muito específico de escrita. De acordo com César Baio, seus
textos, ora entusiasmados, ora críticos com as tecnologias de comunicação, deixam
até hoje estonteados seus leitores
Por Thamiris Magalhães

F
lusser foi, a um só tempo, considera- como os objetos, espaços e situações que
do por muitos “um guru e por outros experienciamos. O corpo, uma sala de aula,
um pessimista em relação à sociedade um jogo de futebol, um objeto de design são
informacional que se erguia nas últimas dé- mídias tanto como o vídeo, o cinema ou a
cadas do século XX”. “Mas este aspecto de internet”.
sua escrita não é apenas estilístico. Faz parte César Baio possui graduação em Comu-
de uma intrincada e estratégica maneira de nicação Social pela Universidade de Taubaté,
Flusser filosofar”, explica César Baio, em en- mestrado e doutorado em Comunicação e Se-
trevista concedida por e-mail à IHU On-Line. miótica pela Pontifícia Universidade Católica
Segundo Baio, na visão de Flusser os estudos de São Paulo – PUC-SP. Parte de sua pesquisa
de Comunicação não devem ficar restritos às de doutorado foi realizada na Universidade
mídias, pelo menos não no sentido restrito de Artes de Berlim – UDK, durante um estágio
deste termo, quando entendido unicamente no Vilém Flusser Archive. É professor-adjunto
como meios de comunicação de massa, redes do Instituto de Cultura e Arte da Universidade
informacionais ou as chamadas novas mídias. Federal do Ceará – UFC.
“A comunicação, segundo ele, deve conside- Confira a entrevista.
rar também a comunicação face a face, assim

IHU On-Line – Como Flusser defi- ao livro publicado em Alemão), que mídia de Flusser está direcionada ao
niu o conceito de comunicação? Para seria um campo de estudos voltado estudo da cultura. Para Flusser, os
ele, ela sempre depende da mídia? à análise dos processos simbólicos estudos de comunicação não devem
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Por quê? do ser humano. O estudo da comuni- ficar assim restritos às mídias, pelo
César Baio – O conceito de co- cação, para ele, manteria como foco menos não no sentido restrito deste
municação é um eixo fundamental do os processos de codificação próprios termo, quando entendido unicamen-
pensamento de Flusser. Para ele, nos dos aparatos midiáticos e da própria te como meios de comunicação de
comunicamos para criar uma razão cultura. massa, redes informacionais ou as
de viver, para esquecer a morte, para chamadas novas mídias. A comuni-
dar sentido a nossa própria existência A teoria da comunicação e da cação, segundo ele, deve considerar
que, de início, nada significa, é absur- mídia também a comunicação face a face,
da. A comunicação é, assim, um ato Partindo da premissa aristoté- assim como os objetos, espaços e si-
que visa dar sentido a nós mesmos lica de que o ser humano é um ser tuações que experienciamos. Para o
e ao mundo que nos cerca. É a par- zoon politikon, ou seja, que existe autor, o corpo, uma sala de aula, um
tir dessa concepção de comunicação essencialmente por sua capacidade jogo de futebol, um objeto de design
que ele propõe a comunicologia (do de comunicação por meio de sím- são mídias tanto como o vídeo, o ci-
termo Kommunikologie, que dá nome bolos, a teoria da comunicação e da nema ou a internet. No entanto, Flus-

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 29


ser foi um dos primeiros a identificar
“Para Flusser, o toiévski2. Muitas vezes, esse enfrenta-
Tema de Capa
o grau de importância que teriam os mento é radicalizado ao máximo pela
aparatos técnicos de comunicação na
sociedade atual e, por isso, sempre
corpo, uma sala de alternância entre pessimismo e oti-
mismo. Tal ambivalência é muito sig-
reservou a eles um tratamento espe-
cial em sua filosofia. Foi justamente
aula, um jogo de nificativa, pois representa tanto uma
profunda recusa de um futuro em que
este cenário marcado pela telemáti-
ca e pela ubiquidade das tecnologias
futebol, um objeto existiríamos “em função” dos aparatos
técnicos, das mídias, das imagens e
de mediação, principalmente aquelas
baseadas em imagens, que o levou
de design são dos automatismos de todas as ordens
como também uma tentativa de suge-
a falar de uma revolução comunica- mídias tanto como rir futuros alternativos em que fosse
cional (uma revolução dos códigos), possível um maior grau de liberdade
principal aspecto da mudança de pa- o vídeo, o cinema em relação à própria cultura. Ele esta-
radigmas que o conduziu ao conceito belecia um jogo com estas duas visões
de pós-história, este que é bastante ou a internet” da tecnologia, e era esse jogo que ele
diferente de pós-modernidade. propunha para nós.

IHU On-Line – Qual foi a maior cultura de maneira geral, que operam Aparatos técnicos
descoberta de Flusser para o campo por meio de processos de codificação. Para Flusser, os aparatos técnicos
comunicacional? Flusser chama a atenção para a impor- seriam um dos artefatos que em maior
César Baio – Essa é uma questão tância dos processos de codificação, grau materializariam os processos de
difícil de ser respondida, pelo menos de afirmando que eles estão marcados por automatização que instituímos cultu-
maneira assim resumida. Pela abran- modelos epistemológicos e operam de ralmente. Cada aparato técnico guar-
gência da visão que Flusser estabele- acordo com políticas, éticas e estéticas da em si uma sedimentação de sensi-
ceu sobre os processos comunicacio- específicas a cada aparato simbólico. bilidades, modelos epistemológicos,
nais, não sei se seria possível apontar políticos, éticos e estéticos. Muito do
um conceito único como o mais impor- IHU On-Line – Qual a relação do que ele escreveu sobre as tecnologias
tante. São muitas as passagens de sua autor com as consequências da revo- de mediação foi uma tentativa de tor-
filosofia que vêm sendo retomadas, in- lução causada pela atual tecnologia nar isso evidente. Não necessariamen-
fluenciando em diversos sentidos tanto da mídia e informação? te para ser combatido nem para ser
os estudos de comunicação como os de César Baio – Flusser tinha um es- usado irrefletidamente. Mas para que
outras áreas em que os processos sim- tilo muito específico de escrita. Seus pudéssemos jogar com elas. Conhecer
bólicos são objeto de estudo, tais como textos, ora entusiasmados, ora críticos as regras e a posição das peças para
as artes e os estudos culturais. Falar em com as tecnologias de comunicação, fazer os nossos próprios movimentos
descoberta é também algo delicado, até hoje deixam estonteados seus lei- dentro da rede complexa que é a cul-
ainda mais quando se fala de Flusser, já tores. Isso fez com que Flusser fosse a
que ele pensa o mundo como resulta- um só tempo considerado por muitos
do processual de um complexo sistema um guru e, por outros, um pessimista religiosa) e em disciplinas tão diversas
como a crítica literária, história, filosofia,
de produção simbólica, e não necessa- em relação à sociedade informacional antropologia e psicologia. (Nota da IHU On-
riamente como algo que esconde uma que se erguia nas últimas décadas do Line)
2 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski
coisa a ser revelada. Mas talvez seja século XX. Todavia, esse aspecto de (1821-1881): um dos maiores escritores
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possível assumir como um dos eixos sua escrita não é apenas estilístico. russos e tido como um dos fundadores
Faz parte de uma intrincada e estraté- do existencialismo. De sua vasta obra,
fundamentais do seu pensamento so- destacamos Crime e castigo, O idiota,
bre comunicação a concepção de mun- gica maneira de Flusser filosofar. Isso Os demônios e Os irmãos Karamázov. A
do codificado e as articulações feitas a porque se trata do enfrentamento esse autor a IHU On-Line edição 195, de
11-9-2006, dedicou a matéria de capa,
partir dele. Ao entender nossa existên- entre consciências plenivalentes, para intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos
cia como algo desprovido de sentido usar um termo cunhado por Mikhail do ser humano, disponível em http://bit.
ly/g98im2. Confira as seguintes entrevistas
anterior, ele assume que o mundo so- Bakhtin1, ao analisar a obra de Dos- sobre o autor russo: Dostoiévski e Tolstoi:
mente nos é acessível por meio de um exacerbação e estranhamento, com Aurora
Bernardini, na edição 384, de 12-12-2011,
mundo de segunda ordem, codificado 1 Mikhail Mikhailovich Bakhtin  (1895- disponível em http://bit.ly/upBvgN;
por signos. O mundo da natureza seria 1975) – filósofo e pensador russo, Polifonia atual: 130 anos de Os Irmãos
teórico da cultura europeia e das Karamazov, de Dostoievski, entrevista
assim algo que não mais nos é acessí- artes. Foi um verdadeiro pesquisador com Chico Lopes, edição nº 288, de 06-04-
vel, se não por esta “ponte” que é a cul- da linguagem humana. Seus escritos, em 2009, disponível em http://bit.ly/sSjCfy;
tura. Com esse raciocínio, ele busca re- uma variedade de assuntos, inspiraram Dostoiévski chorou com Hegel, entrevista
trabalhos de estudiosos em um número com Lázló Földényi, edição nº 226, de
velar o caráter artificial das mídias e da de diferentes tradições (o marxismo, 02-07-2007, disponível em http://bit.ly/
a  semiótica,  estruturalismo, a crítica uhTy9x. (Nota da IHU On-Line)

30 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


tura atual, formada por meios de co-
“Flusser tinha marcam a existência humana. De fato,

Tema de Capa
municação em rede. a leitura dos textos de Flusser como

IHU On-Line – Qual a relação que


um estilo muito “teorias da fotografia” ou da “mídia”,
de maneira aplicada, simplifica e reduz
Flusser como filósofo estabelece en-
tre a filosofia e a comunicação?
específico de extremamente a envergadura de suas
proposições.
César Baio – Talvez um dos aspec-
tos mais importantes da originalidade
escrita. Seus Filósofo
da filosofia flusseriana seja a sua rela-
ção com os processos de codificação,
textos, ora Para acessar realmente Flusser,
é preciso entendê-lo como filóso-
ou seja, com a comunicação humana, entusiasmados, fo, como um gerador de diagramas
abstratos que, para serem aplicados,
seja ela interpessoal e midiática, en-
globando assim áreas como as da arte, ora críticos com precisam dos filtros próprios às teo-
rias. Nesse aspecto, o título refeito
da ciência, da religião e dos estudos
culturais. Porém, o pensamento de as tecnologias por ele após a revisão que fez da obra
para posterior lançamento no Brasil
Flusser não apenas tratava de comu-
nicação, mas também era influenciado de comunicação, é mais adequado. Filosofia da caixa
pela comunicação, mais precisamente preta, portanto, trata dos processos
pelos processos dinâmicos e interati- até hoje deixam de mediação por meios tecnológicos,
vos próprios aos sistemas complexos tomando a fotografia como objeto
da física quântica e da cibernética. O estonteados seus para uma análise que abrange todos
os aparatos técnicos de comunicação,
conceito de comunicação faz parte das
bases da cibernética que tanto influen- leitores” ou, como no título brasileiro, da “caixa
ciou Flusser, assim como os processos preta”. O livro foi sua primeira inves-
simbólicos também mantêm bases na tida teórica de fôlego nas questões
fenomenologia de Husserl, outra gran- que surgem a partir das tecnologias
de influência do autor. A importância César Baio – Apesar de seu mais de mediação. Nos textos que se segui-
dessas influências ganha corpo na conhecido livro ter sido lançado com ram, ele amadureceu este pensamen-
concepção de mundo codificado men- o título original Für eine Philosophie to, elaborando uma apurada filosofia
cionada anteriormente, de modo que der Fotografie (Para uma filosofia da sobre o aparato técnico. Em seu Elo-
a comunicação não é apenas o objeto fotografia) e continuar sendo lido por gio à superficialidade, publicado no
da filosofia flusseriana como também alguns como uma crítica à fotografia, Brasil como O universo das imagens
sua própria matriz conceitual. suas reflexões extrapolam esta ou qual- técnicas: um elogio à superficialidade
quer outra mídia em especial. Trata- (São Paulo: Annablume, 2008), Flus-
-se de um modelo filosófico para se ser apresenta uma mais bem orienta-
IHU On-Line – No que consiste a compreender não apenas as mídias de da abordagem do tema aos aspectos
filosofia da fotografia analisada por maneira abrangente, como também os abrangentes do aparato técnico, em
Flusser? processos de codificação cultural que meio ao cenário pós-histórico.

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EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 31


Tema de Capa
Personagem enigmático
do século XX
Uma das peculiaridades do pensamento flusseriano é a dificuldade que ele suscita,
no leitor, em concordar ou discordar dele, ou seja, a dificuldade de definir o que seria
exatamente o êxito, destaca Gustavo Bernardo Krause

Por Thamiris Magalhães

Q
dutivo, professor extremamente carismático
uestionado sobre quais as principais e, ao mesmo tempo, uma pessoa de trato
descobertas realizadas por Flusser re- extremamente difícil, constitui a si mesmo
ferentes às imagens técnicas, Gustavo como um personagem enigmático que pode
Bernardo Krause diz, em entrevista concedida muito bem resumir o homem ocidental do sé-
por e-mail à IHU On-Line, que Flusser relacio- culo XX”.
na, de maneira muito sofisticada e difícil de Gustavo Bernardo Krause é mestre em
resumir, o problema da comunicação através Literatura Brasileira pela Universidade do Es-
das imagens aos problemas centrais da reli- tado do Rio de Janeiro – UERJ e doutor em Li-
gião. “Sua filosofia dos media é basicamente teratura Comparada pela mesma instituição.
uma epistemologia, isto é, uma teoria do co- Fez estágio de pós-doutorado em Filosofia
nhecimento, sempre nos perguntando como na Universidade Federal de Minas Gerais –
não sabemos o que não sabemos e, então, UFMG. Trabalha como professor-associado
por que precisamos fingir que sabemos, por na UERJ, lecionando a disciplina Teoria da
exemplo, através da produção e reprodução Literatura. Bolsista do CNPq, desenvolve o
das imagens – no caso das imagens técnicas, projeto intitulado “Da metaficção de volta
através da sua produção e reprodução com- à metafísica: o Deus da ficção e a ficção de
pulsiva e infinita”. Deus”. Publicou um livro de poemas, dez ro-
Para Krause, a circunstância de a vida de mances e dez ensaios. Organizou ainda oito
Vilém Flusser ser tão instigante quanto a sua coletâneas.
obra merece, algum dia, um romance ou um Confira a entrevista.
filme. “Filósofo extremamente criativo e pro-

IHU On-Line – Qual o mérito da IHU On-Line – Quais as principais cas, através da sua produção e repro-
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obra A filosofia da caixa preta – En- descobertas realizadas por Flusser re- dução compulsiva e infinita.
saios para uma futura filosofia da fo- ferentes às imagens técnicas?
tografia de Vilém Flusser? Gustavo Bernardo Krause – Ele IHU On-Line – De que modo
Gustavo Bernardo Krause – É relaciona, de maneira muito sofistica- Flusser percebeu a importância fun-
uma das obras filosóficas mais impor- da e difícil de resumir, o problema da damental da comunicação para o ho-
tantes sobre a fotografia em todos os comunicação através das imagens aos mem e a sociedade, tanto na forma
tempos, lado a lado com as de Roland problemas centrais da religião. Sua fi- do diálogo interpessoal como na for-
Barthes1 e Susan Sontag2. Sua reflexão losofia dos media é basicamente uma ma midiática?
sobre a fotografia, na verdade, se apli- epistemologia, isto é, uma teoria do Gustavo Bernardo Krause – Ao
ca a todos os meios de comunicação. conhecimento, sempre nos pergun- reconhecer que toda a ciência é es-
tando como não sabemos o que não sencialmente linguagem e não verda-
1 Roland Barthes (1915—1980): escritor,
sabemos e, então, por que precisa- de, ele se dedicou a estudar as formas
sociólogo, crítico literário, semiólogo e mos fingir que sabemos, por exemplo, dessa linguagem, a saber, as formas
filósofo francês. (Nota da IHU On-Line) através da produção e reprodução das contemporâneas de comunicação,
2 Susan Sontag (1933-2004): escritora e
ativista estadunidense. (Nota da IHU On-Line)
imagens – no caso das imagens técni- que passam pela procura da verdade

32 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


e pelo discurso sobre a verdade. Para na sua velha máquina manual. Todavia Gustavo Bernardo Krause – Uma

Tema de Capa
pensar apenas em termos de cada e ao mesmo tempo, tornou-se um dos das peculiaridades do pensamento
pessoa, não falamos o que pensamos, principais pensadores da computação flusseriano é a dificuldade que ele sus-
mas pensamos quando falamos e por- e da cibernética, antecipando as mu- cita, no leitor, em concordar ou discor-
que falamos, isto é, quando e somente danças no pensamento e na socieda- dar dele, ou seja, a dificuldade de defi-
quando nos comunicamos. de que seriam provocadas pela nova nir o que seria exatamente o êxito. Sua
linguagem e pelas novas práticas dela filosofia menos ensina ou descreve do
IHU On-Line – De que manei- derivadas. que provoca e estimula. Nesse senti-
ra Flusser relacionou filosofia e co- do, sua ela é antes arte do que ciência,
municação? Qual a influência da IHU On-Line – Como podemos justificando que ela ficasse conheci-
fenomenologia para seus estudos definir a teoria da comunicação pro- da, conforme a famosa atribuição de
comunicacionais? posta por Vilém Flusser? Abraham Moles3, pela expressão “fic-
Gustavo Bernardo Krause – A Gustavo Bernardo Krause – Ele ção filosófica”.
relação se dá exatamente pela via da formula sua teoria da comunicação
fenomenologia, que é antes um mé- principalmente em três livros: A filoso- IHU On-Line – Gostaria de
todo, e não uma escola filosófica. Esse fia da caixa preta, A escrita e Comu- acrescentar algum aspecto não
método se dedica a suspender o juízo nicologia. Dos dois primeiros já estão questionado?
o máximo de tempo possível, aperfei- publicadas as versões em português. Gustavo Bernardo Krause – A
çoando a epoché dos antigos céticos, Não é uma teoria fácil de resumir. É ba- circunstância de a vida de Vilém Flus-
para permitir a emergência de uma sicamente uma teoria antiessencialis- ser ser tão instigante quanto a sua
perspectiva diferente da habitual, di- ta, explorando o axioma nietzschiano obra merece, algum dia, um romance
ferente do senso comum. de que não há fatos, apenas versões ou um filme. Filósofo extremamente
– isto é, gestos de comunicação. Nessa criativo e produtivo, professor extre-
IHU On-Line – De que maneira teoria, ele quebra as fronteiras entre mamente carismático e, ao mesmo
Flusser se apropriou da cibernética ciência, religião, filosofia e arte, vendo tempo, uma pessoa de trato extre-
em seus estudos? esses quatro campos como variações mamente difícil, constitui a si mesmo
Gustavo Bernardo Krause – do mesmo campo, o da comunicação. como um personagem enigmático que
Quando ganhou de presente uma pode muito bem resumir o homem
máquina de escrever elétrica de um IHU On-Line – Qual a peculia- ocidental do século XX.
de seus filhos, Flusser a recusou, ar- ridade de Flusser, relacionado a ou-
gumentando que a máquina de es- tros estudiosos no campo da comu- 3 Abraham Moles (1920-1992): engenheiro
crever manual lhe dava muito mais nicação? De que maneira o autor, elétrico e engenheiro acústico francês,
além de doutor em física e filosofia.
responsabilidade sobre o que escre- reunindo correntes teóricas muitas Também foi professor de sociologia,
via, enquanto a elétrica o desrespon- vezes bastantes distintas, como a se- psicologia, comunicação, design na
sabilizaria, devido à sua facilidade de miótica, a fenomenologia e a ciberné- “Hochschule für Gestaltung d’Ulm” e nas
universidades de Estrasburgo, San Diego,
voltar atrás e corrigir-se. Até o fim da tica, conseguiu obter êxito em suas México e Compiègne. (Nota da IHU On-
vida, datilografou tudo o que escreveu pesquisas? Line)

Evento: IHU ideias

Data: 30-08-2012 www.ihu.unisinos.br


Palestra: Palestina e Israel: caminhos para uma paz justa
Palestrantes: Profa. Dra. Nancy Cardoso Pereira – Centro Ecumêni-
co de Estudos Bíblicos – CEBI; Eduardo Minossi de Oliveira - gradua-
do em Geografia pela UFRGS e Érico Teixeira de Loyola - graduado
em Direito pela UFRGS
Horário: 17h30min às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações: http://migre.me/amHhD

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 33


Tema de Capa
Imagens técnicas, código
fundante da pós-história
Elas tendem a absorver e a reinterpretar nos seus próprios termos os
elementos remanescentes das imagens tradicionais e da escrita, esclarece
Rodrigo Antonio de Paiva Duarte

Por Thamiris Magalhães

“F
lusser é um filósofo atualíssimo, e doutorado em Filosofia – Universität Ge-
pois parece ter previsto – mais de samthochschule Kassel. Realizou estágios
vinte anos antes que essas coisas de pós-doutoramento na University of Ca-
se tornassem realidade – o nosso cotidiano lifornia at Berkeley, na Universität Bauhaus
totalmente telematizado da internet, da TV de Weimar e na Hochschule Mannheim. É
digital, das redes sociais, do vídeo e do áudio professor titular do Departamento de Filo-
HD”, diz Rodrigo Antonio de Paiva Duarte, em sofia da Universidade Federal de Minas Ge-
entrevista concedida por e-mail à IHU On- rais. Dentre inúmeras publicações no Brasil
-Line. E acrescenta: “mais importante do que e no exterior, destacam-se os seus livros:
essa simples previsão, é a família conceitual Marx e o conceito de natureza em ‘O Capital’
que ele nos legou, por exemplo, em sua obra (Edições Loyola, 1986), Mímesis e racionali-
Pós-história. Vinte instantâneos e um modo dade. A concepção de domínio da natureza
de usar, um instrumental altamente críti- em Theodor W. Adorno” (Edições Loyola,
co (por exemplo, os conceitos de aparelho, 1993), Adornos. Nove ensaios sobre o filóso-
funcionário e programa, dentre outros) para fo frankfurtiano (EDUFMG, 1997), Adorno/
compreendermos esses novos fenômenos – e Horkheimer e a Dialética do Esclarecimento
até mesmo nos valermos deles quando neces- (Jorge Zahar, 2002), Teoria crítica da indús-
sário – sem cair vítima do grande potencial de tria cultural (UFMG, 2003), Dizer o que não
manipulação neles implícito”. se deixa dizer. Para uma filosofia da expres-
Rodrigo Antonio de Paiva Duarte possui são (Argos, 2008), Indústria cultural: uma in-
graduação em Filosofia pela Universidade trodução (FGV, 2010) e A arte (WMF Martins
Federal de Minas Gerais – UFMG, mestra- Fontes, 2012). 
do em Filosofia pela mesma Universidade Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Flusser traz em sua parece dar como certo o desapareci- mente o código fundante que tende
obra A escrita – Há futuro para a escri- mento da escrita, tal como a conhe- a substituí-la, a saber, o paradigma
ta questões referente à especificidade cemos desde aproximadamente o ter- das imagens técnicas.
do escrever, a diferença entre o pintar ceiro século antes de Cristo. Por outro,
e o digitar etc. Mas, nesse sentido, o além de escrever um livro para refletir IHU On-Line – Qual a relação
que ainda ficou por ser resolvido em sobre essa situação, muitas vezes Flus- que Flusser faz das imagens técnicas
sua análise com relação à escrita, no ser expressa nele certa nostalgia pela com a escrita?
seu entendimento? escrita, já que ela se identifica com o Rodrigo Antonio de Paiva Duar-
Rodrigo Antonio de Paiva Duar- pensamento conceitual e reflexivo. Ele te – À primeira vista, essa relação pode
te – Parece-me fácil constatar nessa dá a entender que abrir mão da escrita, ser de convivência, tal como ocorreu
obra uma grande ambiguidade por pura e simplesmente, pode ser muito com as imagens tradicionais depois
parte de Flusser: por um lado, ele perigoso, se já não dominarmos plena- do surgimento da escrita (essa se con-

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solidou como código fundante no Oci- mais importante do que essa simples lidade vivida, inventou primeiramen-

Tema de Capa
dente apenas milênios depois de sua previsão, é a família conceitual que te as imagens tradicionais – código
invenção no Oriente Próximo, por volta ele nos legou, por exemplo, em sua bidimensional (ou plano) enquanto
do século III a.C.). Mas Flusser suge- obra Pós-história. Vinte instantâneos um primeiro método para orientação
re que há também uma tendência de e um modo de usar, um instrumental no mundo. Ao abstrair mais uma di-
predomínio quase total das imagens altamente crítico (por exemplo, os mensão, a humanidade estabeleceu
técnicas sobre os dois outros códigos conceitos de aparelho, funcionário e a escrita: código unidimensional (ou
que já foram dominantes (as imagens programa, dentre outros) para com- linear) que a permitiu pela primeira
tradicionais e a escrita), o que instau- preendermos esses novos fenômenos vez conceptualizar suas vivências. Esse
ra uma situação de muita incerteza, já – e até mesmo nos valermos deles dois estágios iniciais, como se sugeriu
que o potencial de falsificação e de ma- quando necessário – sem cair vítima acima, correspondem respectivamen-
nipulação ideológica das tecnoimagens do grande potencial de manipulação te à pré-história e à história. Quando
é exponencialmente maior do que os neles implícito. a humanidade se viu pela primeira vez
paradigmas que as antecederam. em condições de abstrair mais uma
IHU On-Line – Flusser acreditava dimensão, estabelecendo um código
IHU On-Line – Qual a principal no avanço, cada vez maior, das ima- zero-dimensional (ou pontual), isso
lição que Flusser nos deixou em rela- gens técnicas. Nesse sentido, qual a significou o surgimento das imagens
ção à coexistência entre as imagens visão que o autor tinha com relação técnicas (em meados do século XIX,
técnicas e a escrita? ao futuro da escrita? com a invenção da fotografia) e a colo-
Rodrigo Antonio de Paiva Du- Rodrigo Antonio de Paiva Duar- cação no horizonte, pela primeira vez,
arte – Como sugeri acima, esse é um te – Minha resposta a essa questão de uma experiência pós-histórica.
tópico em que, na obra de Flusser, não será muito semelhante ao que disse
parece haver muita clareza: por vezes acima: Flusser não ousa afirmar cate- IHU On-Line – Flusser acreditava
ele parece defender um ponto de vista goricamente que as imagens técnicas que as imagens, e não mais os textos,
cumulativo entre os três códigos que substituirão totalmente a escrita, mas são, na contemporaneidade, os me-
geraram a pré-história (imagens tra- vê tendências muito claras nessa dire- dia dominantes? Se sim, por quê?
dicionais), a história (escrita) e a pós- ção (que parece não lhe agradar total- Rodrigo Antonio de Paiva Duarte
-história (imagens técnicas). Segundo mente, já que ele afirmou numa carta – Basta olhar ao nosso redor para ver
essa visão, o cenário de coexistência a Leônidas Hegenberg que “ainda não como são influentes e determinantes
entre os códigos poderia se prolongar cheguei a nenhuma conclusão, salvo em nossa vida os media relacionados
quase indefinidamente. Parece-me, esta: a única vida digna é a diante da com as imagens técnicas (fotos, víde-
no entanto, que a posição mais tardia máquina de escrever”). os, filmes etc.). Isso certamente ca-
(e talvez definitiva) do filósofo é de racteriza uma situação de predomínio
que a pós-história é uma espécie de IHU On-Line – Vilém Flusser se das imagens técnicas sobre os outros
buraco negro que suga tudo para si, tornou mundialmente conhecido códigos que já foram – cada qual em
inclusive as tendências pré-históricas pela sua teoria dos novos media, na sua época – determinantes em nossas
e históricas persistentes na experiên- qual se destaca o conceito de imagem vidas. Por outro lado, se o que está em
cia humana. Em outras palavras, as técnica ou tecnoimagem. Do que se questão é conceptualizar, não conhe-
imagens técnicas – código fundante trata essa teoria? Qual a sua relação cemos código melhor do que a escrita.
da pós-história – tendem a absorver e com o conceito de pós-história da Os media associados às tecnoimagens
a reinterpretar nos seus próprios ter- qual o próprio autor trabalha? até agora não se mostraram adequa- www.ihu.unisinos.br
mos os elementos remanescentes das Rodrigo Antonio de Paiva Duar- dos à conceptualização. Flusser che-
imagens tradicionais e da escrita. te – Seria muito difícil resumir a teo- gou a sugerir que deveríamos apren-
ria das imagens técnicas em poucas der a dominar uma imaginação que
IHU On-Line – Qual o principal linhas sem distorcê-la. O próprio Flus- fosse para as imagens técnicas o que a
legado deixado por Vilém Flusser ser começou a desenvolvê-la no final conceptualização é para a escrita. Mas
para os nossos dias? da década de 1970, e até sua morte, esse tópico permaneceu algo muito
Rodrigo Antonio de Paiva Duar- em 1991, ainda estava elaborando- obscuro em sua obra e confesso que
te – A meu ver, Flusser é um filósofo -a, adaptando-a aos novos tempos da não tenho a menor ideia de como isso
atualíssimo, pois parece ter previsto digitalização dos media, que se anun- poderia ser feito. Isso talvez explique
– mais de vinte anos antes que essas ciavam então. Muito resumidamente: por que esta entrevista, a ser vincula-
coisas se tornassem realidade – o nos- Flusser afirmava que o processo civi- da num meio digital – portanto rela-
so cotidiano totalmente telematizado lizatório é um processo de abstração cionado com as imagens técnicas –, se
da internet, da TV digital, das redes no qual a humanidade, ao tirar uma apresenta sob a forma de escrita.
sociais, do vídeo e do áudio HD. E, dimensão das três existentes na rea-

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Tema de Capa
Modelos do corpo humano –
um texto inédito de Flusser
Vilém Flusser
Para Gabriel Borba

Modelos mudam. Esta afirmati- que muda a dinâmica dos modelos, mundo é visto e modelado como con-
va é característica da chamada “idade muda a cosmovisão. O exemplo clássi- texto composto de objetos. Por exem-
moderna”. Na Antiguidade e na Idade co é a biologia, isto é, a substituição do plo, o corpo humano aparece, sob tal
Média modelos são imutáveis. Para modelo sincrônico dos enciclopedistas perspectiva, como sendo um entre vá-
os gregos e os cristãos “sabedoria” é pelo modelo diacrônico darwiniano. rios objetos no mundo, e como objeto
contemplação dos modelos imutáveis Outro exemplo é a química, isto é, a de tipo específico, chamado “organis-
(das formas). Embora o método varie substituição do modelo de valências mo”. Os modelos do corpo humano
(theoria para os gregos, “fé” para os pelo modelo de interferências de ór- que a ciência nos fornece (mapas ana-
cristãos). Para os modernos “saber” é, bitas de elétrons. Terceiro critério: tômicos, descrições fisiológicas etc.)
entre outras coisas, manipular e mu- perspectiva. (1) Modelos objetivos são projeções a partir de tal ponto de
dar modelos. Toda vez que um modelo (projetados de um ponto de vista que vista tanto quanto certos mapas geo-
muda, muda a nossa visão, e portanto transcende o fenômeno). (2) Modelos gráficos são projeção “mercator”. O
compreensão do modelado. Mas há subjetivos (projetados do ponto de vis- ponto de vista “objetivo”, assumido
feedback em tal processo. Toda vez ta de quem enfrenta o fenômeno). (3) metódica e conscientemente desde
que a nossa compreensão de um de- Modelos intersubjetivos (projetados pelos menos o Renascimento, apre-
terminado fenômeno se revela insatis- a partir do concreto estar-no-mundo sentava sempre dificuldades de várias
fatória, buscamos novo modelo. humano). Na nossa tradição modelos ordens. Por exemplo, a dificuldade de
Há vários critérios para classificar objetivos (por exemplo, os da ciência) se saber exatamente o que é o sujeito
modelos. Três dos critérios são o mo- e modelos subjetivos (por exemplo, os transcendente, e com que métodos
tivo do presente ensaio. Primeiro cri- da arte) se completam para resultar ele consegue transcender o objeto.
tério: dimensão. (1) Modelos lineares, em nossa cosmovisão. A crise da nossa Mas os modelos funcionavam extre-
por exemplo descrições, equações e cosmovisão se manifesta, entre outras mamente bem na práxis, de forma que
curvas. (2) Modelos planos, por exem- coisas, pela crescente problematicida- tais dificuldades foram sendo relega-
plo mapas geográficos e desenhos de de dos modelos objetivos e pelo apa- das a segundo plano. Ultimamente, no
aparelhos. (3) Modelos tridimensio- recimento de modelos intersubjetivos. entanto, estão surgindo dificuldades
nais, por exemplo casas-miniatura e Os três critérios motivam o pre- de ordem diferente. Está se tornando
estruturas de arame com bolas mode- sente ensaio pela razão seguinte: mos- sempre mais claro nos mais variados
lando estruturas de moléculas. Toda tram que a elaboração de novos mo- campos de atividade que a divisão ní-
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vez que muda a dimensão do mode- delos é problema técnico e problema tida “sujeito/objeto” é impraticável.
lo, muda a cosmovisão. O exemplo de ponto de vista, e que poucas são as O princípio de Heisenberg é apenas
clássico disso é o aparecimento do atividades humanas tão revolucioná- um entre vários exemplos disso. Pois
globus, isto é, a curvatura do mapa. rias quanto o é a elaboração de novos tal dificuldade prática não pode ser
Outro exemplo é o aparecimento de modelos. Começarei pela discussão do relegada a segundo plano, porque faz
modelos tridimensionais da informa- problema do ponto de vista, e aplica- surgir a suspeita que modelos obje-
ção genética, isto é, o desdobramento rei a discussão ao fenômeno “corpo tivos deformam de alguma maneira
dos modelos bioquímicos planos para humano”. o fenômenos a ser compreendido (e
dentro do espaço. Segundo critério: A grande maioria, senão a tota- manipulado). E há outra suspeita, tal-
dinâmica. (1) Modelos sincrônicos, lidade, dos modelos postos ao nosso vez ainda mais perturbadora. Possivel-
por exemplo mapas anatômicos e ma- dispor pelas ciências é do tipo “obje- mente o próprio modelo interfere no
pas políticos. (2) Modelos diacrônicos, tivo”. Tais modelos são projetados a fenômeno a ser modelado, de manei-
por exemplo modelos plásticos de or- partir de uma “transcendência” do ra que o próprio fenômeno se deforma
ganismos com órgãos substituíveis, e sujeito que pretende orientar-se no para adaptar-se ao modelo. A relação
séries de mapas históricos. Toda vez mundo. A partir de tal perspectiva o entre modelos econômicos, políticos

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e sociais, de um lado, e a realidade a Representa profunda revolução na tando animais e deuses. E os críticos

Tema de Capa
ser por eles modelada é bom exemplo história (com efeito, inicia a história sumerianos discutirem se os leões
disso. De maneira que não é mais tão propriamente dita), porque possibili- carimbados podem vir a substituir os
fácil assumir-se pontos de vista objeti- ta a elaboração de modelos lineares leões talhados em pedra. Embora ou-
vos e projetar-se modelos a partir de (históricos) do mundo. A aeronáutica tros sumérios já tivessem procurado,
tal perspectiva. Não é fácil por razões surgiu por razões independentes da com êxito duvidoso, talhar letras em
práticas, que se apresentam às teóri- atividade modeladora, e também a pedras. É que é difícil libertar o tijolo
cas sempre existentes. Isso é aspecto fabricação de tijolos. Mas dado um da pedra, e o videoteipe da pintura e
de nossa crise (o aspecto “crise da contexto específico, no qual por uma da fita de cinema.
objetividade”). ou outra razão certos modelos dispo- O paparelo sumeriano, em si du-
Em consequência está sendo níveis são julgados insuficientes (por vidoso, pode ser elaborado. (Os su-
elaborado, em toda parte, um novo exemplo, desenhos de necas ou a mérios podem ser manipulados para
ponto de vista (que é “novo” apenas projeção “mercator” para mapas), o servirem de modelos para o nosso
no sentido de “deliberadamente as- desenvolvimento tecnológico recente problema.) Supomos que por razões
sumido para superar a crise”). É o pode oferecer a possibilidade para a não mais reconstitutíveis todos os mo-
ponto de vista de quem não procura elaboração de modelos de novo tipo. delos que os sumérios faziam do seu
transcender o mundo, mas assumir- Tal parece ser o caso da atualidade. mundo deixavam progressivamente a
-se enquanto mergulhado dentro do Dispomos atualmente de toda satisfazê-los. Por serem tais modelos,
mundo. A elaboração de tal ponto de uma gama de métodos novos para a por exemplo, cenas (pintadas, esculpi-
vista, e de modelos projetos a partir comunicação de fenômenos que nos das ou representadas por ritos). Não
de tal ponto de vista, é o programa da cercam. Filmes, videoteipe e hologra- satisfaziam mais, porque o mundo não
“fenomenologia”. Pois os modelos que mas são apenas exemplos da grande era mais compreensível como conjun-
vêm sendo propostos sob tal perspec- variedade de expressão nova da qual to de cenas. Passou a ser, por falta de
tiva nova modificarão nossa cosmovi- dispomos. O que caracteriza todo este novo tipo de modelos, incompreensí-
são radicalmente. Por exemplo, a nos- desenvolvimento é isto: podemos vel. Em tal situação crítica surgiram as
sa visão do corpo humano. Não mais doravante estruturar as nossas men- tentativas destinadas a elaborar mo-
é visto como um entre os objetos do sagens de forma previamente impos- delos mais adequados. O resultado foi
mundo que nos cerca, mas como nos- sível. Por exemplo, no filme e no vide- a escrita alfabética linear que fornecia
sa maneira de “estarmos-no-mundo”, oteipe podemos de forma estruturar modelo para nova compreensão do
isto é, vivenciarmos e manipularmos planos linearmente, e no holograma mundo: não mais cena, mas processo.
os objetos que nos cercam. Tais mo- podemos fazer o plano transparente A crise tinha sido superada, e o mun-
delos do nosso corpo, se e quando para o espaço. Ou podemos, graças a do voltou a ser compreensível. Pois a
disciplinarmente elaborados, não se- esses e outros meios, diacronizar sin- elaboração do novo tipo de modelo
rão mais objetivos (como que vistos a cronias e sincronizar diacronias. Em era motivada pela crise, isto é, por um
partir de marcianos), mas intersubjeti- outros termos, podemos doravante novo ponto de vista relativo ao mundo.
vos (vistos a partir da condição corpó- elaborar modelos de tipos previamen- E a crise foi efetivamente superada,
rea comum a todos os homens). Nem te impossíveis por falta de tecnologia porque uma nova tecnologia (a fabri-
serão subjetivos (vistos a partir de um apropriada. Tal virtualidade mode- cação de tijolos) permitiu a elaboração
específico sujeito). No entanto, ainda ladora da chamada “revolução nos do tipo de modelo apropriado à nova
não dispomos de modelos satisfató- meios de comunicação”, e o impacto compreensão do mundo. E na medida
rios deste tipo. Não dispomos de tais que teria, se realizada, não parece ter na qual os tijolos vinham sendo utili-
modelos, embora a literatura “feno- penetrado profundamente a consci- zados enquanto modelos (na medida
menologia do corpo humano” esteja ência geral, e isso é surpreendente. na qual surgiam bibliotecas de tijolos),
aumentando e se aprofundando com É surpreendente porque, de um lado, uma nova cosmovisão ia sendo elabo-
cada ano que passa. Isso tem a ver a carência de modelos de novo tipo é rada, cosmovisão contida apenas em
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com o problema técnico da elabora- parente, e, de outro, as experiências germe no projeto inicial da escrita. De
ção de modelos. com os videoteipes em curso pare- forma que uma nova compreensão do
Modelos são instrumentos para cem clamar por utilização “modelar” mundo motivou a invenção da escrita,
a compreensão (e posterior manipu- desse meio (para citar apenas um e, por sua vez, a escrita possibilitou
lação) do fenômeno por eles mode- único exemplo). Assim, por exemplo, a elaboração dessa compreensão em
lado. Como todo instrumento, são necessitamos de modelos radicalmen- cosmovisão progressivamente rica. O
resultados de determinada tecnolo- te novos para as várias cosmogonias paralelo sugere que os novos meios
gia. Os mapas elaborados à base de que vêm sendo elaboradas por meios de comunicação ocupam, no nosso
aerofotografia são modelos diferentes obviamente inadequados (descrições contexto, o lugar ocupado na Suméria
dos mapas elaborados à base da na- discursivas, desenhos planos etc.), e pelos tijolos.
vegação costeira. Consequentemente a técnica dos videoteipes parece in- Mas o paralelo sugere também
é diferente a visão que temos do mo- dicada para tais modelos. A nossa é que Toth (o inventor mítico da escri-
delado (de um país, por exemplo). A a situação de sumérios que dispõem ta) deve ter sido, por necessidade,
escrita alfabética é resultado de deter- de tijolos e os utilizam apenas para uma espécie de grêmio composto de
minada técnica de trabalhar-se barro. neles imprimirem carimbos represen- “pensadores”, “técnicos” e “artistas”.

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“Pensadores” para projetarem os no- se aglomerar em torno da bola e se concreticidade do problema. Tal re-
Tema de Capa
vos modelos a partir do novo ponto de dispersar em direção do horizonte da gião intermediária entre meu corpo e
vista (não mais cênico, mas histórico. tela. Imaginemos, finalmente, que al- meu contexto tenderá a coincidir com
“Técnicos” para manipularem os tijo- guns elementos penetram a parede da os modelos objetivos do corpo huma-
los de maneira a torná-los utilizáveis bola mais ou menos profundamente, no fornecidos pela biologia, e deverá
enquanto modelos. E “artistas” para e que a bola expele ocasionalmente recorrer amplamente a eles.
traduzirem os modelos tradicionais secreção que congela para formar ele- Outro problema específico se
(pinturas, esculturas), para o novo mé- mento do contexto. Proponhamos tal apresenta vindo do meu futuro. Cha-
dium agora disponível. E isso explica imagem, possivelmente acompanha- memo-lo “um texto impresso”. Ao se
por que ainda não dispomos de mode- da de som apropriado, como modelo apresentar o problema, a parede da
los satisfatórios que recorram aos no- fenomenológico do corpo humano. bola se abre e forma canal pelo qual
vos meios: os grêmios ainda não estão Para tanto rotulemos as várias o problema penetra a vacuidade. Cha-
constituídos. Os novos meios ainda partes do modelo. Chamemos a va- memos tal canal “meus olhos”. Em
estão em posse de técnicos e, muito cuidade de bola da bola “eu”, a sua tal instante meu corpo todo passa a
precariamente, em posse de artistas. parede “meu corpo”, o contexto “meu ser suporte dos meus olhos. E todo
Os pensadores, isto é, os filósofos e mundo”, e o horizonte “minha morte”. ele olhos. Funciona exclusivamente
cientistas que estão assumindo o pon- Chamemos os elementos do contexto em função dos meus olhos. Mas logo
to de vista fenomenológico, ainda não que se aproximam da bola “meus pro- depois, com a apresentação de mais
cooperam sistematicamente na mani- blemas”, e as secreções expulsas em outro problema, a parede da bola
pulação de tais meios. Se for consegui- direção do contexto “minhas obras”. se abre para formar canal diferente.
da cooperação sistemática de técnicos Chamemos o movimento dos elemen- Meu corpo passa a ser, todo ele, su-
de comunicação com artistas, filósofos tos em direção da bola “meu futuro”, porte da minha boca, do meu dedo,
e cientistas visando deliberadamente o movimento da expulsão da secreção do meu sexo, e assim por diante. O
a projeção de novos tipos de modelos, “meu passado”, e os lugares de feed- modelo deve tornar evidente tal cons-
um passo decisivo em prol de uma su- back entre bola e contexto na super- tante modificação da função do meu
peração de aspecto epistemológico da fície externa da bola “meu presente”. corpo enquanto mediação entre “eu”
nossa crise teria sido dado. Para tanto Tais rótulos bastarão provisoriamente e “meu mundo”. Isso pode ser feito
seria necessário que os técnicos ad- para a inserção de informações no mediante iluminação variável da bola
mitam as suas limitações, os artistas modelo. O modelo deve ser, no entan- (uma cor correspondente a “pé”, outra
abandonem a sua atitude estetizante, to, mantido aberto. Isto é modificável a “dente” e assim em diante), ou me-
e os filósofos e cientistas desçam do na medida na qual informações vão diante vários sons que acompanham
seu pedestal de hermetismo erudito. sendo inscritas. Isto é, o videoteipe a abertura de vários canais na bola.
E que os detentores dos meios de co- deve ser reutilizável repetidas vezes. Deve ser também mostrada a interfe-
municação possibilitem experiências Procuremos imaginar como tal inscri- rência entre os vários canais, e a ma-
em tal sentido. Admitidamente é mui- ção de informações poderia dar-se: neira como moldam o problema que
to difícil imaginar que tais condições Um problema específico se apre- por eles passa.
se reúnam. No entanto, embora seja senta vindo do meu futuro. Chame- Mas o modelo deve poder mos-
difícil imaginar-se tal reunião das con- mo-lo “dor de fígado”. Seria leviano, trar também que os canais que as-
dições, não é tão difícil imaginar-se o no entanto, chamar o ponto no qual sim se abrem aos problemas que se
seu possível resultado. Os parágrafos a dor se apresenta no meu corpo de apresentam não são todos do mesmo
seguintes procuração imaginar um “fígado”, e dizer que conseguimos lo- tipo. O canal “olho”, por exemplo, se
possível modelo do corpo humano, calizar um órgão do corpo no modelo. distingue do canal “dedo” pelo seguin-
projetando do ponto de vista fenome- Seria leviano, porque sem dor o fígado te: meu corpo tem vários dedos, e um
nológico (intersubjetivo), e recorrendo não é vivenciado como fazendo parte dedo pode apalpar outro dedo. Mas
a um videoteipe deliberadamente ma- do meu corpo. Ao contrário de outras embora meu corpo tenha dois olhos,
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nipulado para tanto. O propósito disso partes, o fígado faz parte do meu cor- um não pode ser o outro. Em outros
não é tanto querer seduzir técnicos de po apenas na forma de problema. Este termos, o dedo é vivenciado enquanto
videoteipe para a tentativa de realizar fato deve ser nitidamente reconhe- parte do corpo à sua própria maneira
o modelo imaginado. É mais a tentati- cível no modelo. Deve haver região (é palvável), mas o olho é vivenciado
va de provocar discussão em torno da intermediária entre bola e contexto enquanto parte do corpo apenas por
viabilidade de modelos desse tipo. (talvez colorida de determinada ma- mediação de outra parte (é palvável,
neira), que pode ser rotulada “aspecto mas não visível). Isso o modelo pode
*** problemático ou teórico” do meu cor- tornar evidente pela relação entre
po. O fígado estará localizado dentro canal e vacuidade. O olho seria mais
Imaginemos na tela [da] TV uma
de tal região na proximidade da pare- semelhante à vacuidade (mais como
bola oca de parece grossa. Imagine-
de da bola, e as moléculas de proteína “eu”) do que o dedo, o qual seria mais
mos tal bola translúcida, plástica e em
estarão localizadas na mesma região semelhante aos elementos do con-
movimento constante. Imaginemos a
na proximidade do contexto. O critério texto (mais como “meu mundo”). Em
bola inserida em contexto composto
da localização será a maior ou menos consequência a parede da bola (meu
de elementos móveis que tendem a

38 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


corpo) tenderia, toda ela, ser mais se- através desta, para uma reorientação

Tema de Capa
***
melhante à vacuidade (mais oca) em no nosso contexto. Para tornar mais
O modelo proposto é rudimentar
determinados momentos, e mais se- claro o propósito, é preciso acrescen-
e serve apenas à ilustração de possí-
melhante aos elementos do contexto tar o seguinte:
veis modelos na direção apontada.
(mais compacta), em outros momen- A função de novos tipos de mode-
Mas por rudimentar que seja, permi-
tos. Seria talvez possível, ao longo da los não é a de propor novas informa-
te vislumbrar objeções fundamentais
utilização do modelo, descobrir um ções relativas ao fenômeno modelado,
contra a empresa toda. Não é possível
ritmo em tal pulsação da bola. mas a de reestruturar as informações
calar tais objeções até em ensaio tão
Uma secreção específica é expul- existentes. Nenhuma das informações
esboçado quanto o é o presente. Por
sa da parede da bola em direção do aqui mencionadas é, obviamente,
outro lado, não é possível procurar
contexto e congela para formar ele- nova. Pelo contrário, são informações
enumerar todas as objeções que vêm
mento do contexto. Chamemos tal se- tão corriqueiras e gastas que tendem
à mente. Procurarei considerar apenas
creção “meu gesto de escrever” e tal a serem esquecidas. A função de no-
duas entre elas, por me parecerem as
elemento congelado “carta por mim vos modelos é a de reestruturar infor-
mais decisivas.
escrita”. O modelo deve poder mostrar mações existentes de tal maneira que
(1) Modelos são instrumentos
como tal secreção começa a formar- reapareçam. Isso não exclui que a apli-
para a compreensão dos fenômenos
-se na parede interna da bola, em que cação de novos modelos não resulte
que modelam. São, pois, instrumentos
meandros complexos penetra pela em informações novas. Mas tal não é
“epistemológicos” que visam resul-
parede, e como irrompe em determi- o seu ponto de partida.
tar em determinada “episteme”. Mas
nado ponto da superfície, chamado O que caracteriza a nossa situação
são necessariamente instrumentos
“minha mão”. Deve poder mostrar ain- não é a carência de informações, mas
elaborados à base de uma teoria do
da como, durante o processo, a bola seu aparente excesso. “Informação
conhecimento esposada por quem as
toda se transforma em cunha que tem em excesso” significa que os modelos
elabora. São instrumentos pré-conce-
minha mão por conta. De forma que disponíveis se tornam ilegíveis porque
bidos. De maneira que nunca poderão
em tal momento o meu corpo todo não conseguem estruturar as informa-
resultar em conhecimento diferente
sustenta a minha mão no seu gesto de ções com as quais são alimentados. Os
daquele previsto pela teoria que lhes
escrever, e forma parede de um canal modelos disponíveis são pouco satis-
deu origem. Nesse sentido, não são
entre “eu” e “minha mão escrevendo”. fatórios, não apenas porque são sus-
métodos eficientes para produzirem
Mas o modelo não deve contentar-se peitos quanto à sua perspectiva, mas
conhecimento novo. O modelo aqui
com isso. Deve poder mostrar que a porque tendem a serem ilegíveis. Mas
proposto do corpo humano é disso
verdadeira ponta de minha cunha não muito provavelmente se trata de dois
bom exemplo. Se analisado revela ser
é minha mão, mas a caneta por ela aspectos do mesmo problema. Novos
modelado por determinada teoria do
segurada. Em tais instantes, pois, a ca- tipos de modelos provavelmente aca-
conhecimento. O sujeito conhecedor
neta deve formar a parte mais carac- bariam com a nossa impressão que
aparece no seu centro (embora nega-
terística do meu corpo. Mas o modelo estamos sendo inundados por infor-
tivamente na forma de vacuidade), o
não deve esconder o fato que em ou- mações, e provocariam nova fome de
objeto conhecível aparece em deter-
tros instantes a caneta não é parte do informação, isto é, nova curiosidade. E
minada posição com relação ao su-
corpo, mas elemento do contexto. Tais fariam isso, por serem modelos novos,
jeito, e o horizonte chamado “minha
elementos do contexto que podem ser isto é, serem projetados de novo pon-
morte” revela de que tipo de teoria
invertidos para apontarem o contexto to de vista e consequentemente estru-
se trata: a do existencialismo. E tal
e fazerem parte do corpo podem ser turarem as informações disponíveis de
pré-modulação do modelo por deter-
chamados “instrumentos”, e devem nova forma.
minada teoria não é defeito apenas
ser nitidamente reconhecíveis como O modelo proposto, por rudi-
do modelo proposto, mas caracteriza
tais no modelo. mentar que seja, sugere que os no-
todos os modelos. Não se deve, pois,
Não há, evidentemente, necessi- vos meio de comunicação podem ser
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nutrir demasiada esperança quanto
dade em continuar imaginando possí- utilizados com tal finalidade. Como
à ação revolucionária, inovadora, de
veis informações a serem inscritas no modelos de quatro dimensões (es-
modelos de novos tipos.
modelo. Seu número é enorme. Ima- pacio-temporais) que diacronizam
A objeção é válida, e não há como
gine-se, por exemplo, o encontro de sincronias e sincronizam diacronias
negá-lo. Mas o modelo proposto, por
dois ou vários corpos na mesma tela, e são projetados do ponto de vista
rudimentar que seja, mostra que tal
e considere-se apenas a superposição intersubjetivo. Não, por certo, para
objeção não invalida necessariamente
dos vários contextos, para se captar a substituírem os modelos existentes.
a tentativa. Trata-se de modelo desti-
riqueza de informações inseríveis no Mas para, recorrendo a eles, enrique-
nado a fornecer conhecimento novo
modelo. O propósito desta “proposta cer a nossa visão de mundo. É claro,
com relação a determinado fenôme-
de modelo” ficou, creio, atingido. O tais modelos não são novos no sen-
no, “corpo humano”, e não a fornecer
de mostrar que tal tipo de modelo, e tido de jamais antes imaginados. São
uma teoria de conhecimento nova.
que não seja tão rudimentar como o novos no sentido de materializações
Não visa, pois, propor solução nova
é o proposto, poderá servir para uma de modelos imaginados. Mas isso se-
para o problema antiquíssimo “sujei-
reorientação no corpo humano, e, ria muita novidade.
to/objeto”, mas visa aplicar ponto de

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 39


vista específico desse problema ao da “alma” na estrutura tradicional, e
Tema de Capa ***
fenômeno a ser conhecido, ponto de o horizonte do modelo corresponde
O exemplo de um novo tipo de
vista este ainda não elabora suficien- ao lugar do “Deus transcendente”.
modelo possível fornecido neste en-
temente por modelos. As visões obje- O vazio dos dois lugares no modelo
saio visa contribuir para a discussão
tivistas e subjetivistas do passado difi- corresponde à visão das religiões tra-
do problema da carência de modelos.
cultam sobremaneira o conhecimento dicionais que certos têm na atualida-
Tal carência é um aspecto da nossa cri-
do corpo humano, ao introduzirem de. Tal pré-modulação do modelo por
se. No caso da nossa compreensão do
constantemente a antinomia “corpo/ determinada religiosidade não é de-
corpo humano a crise está assumindo
espírito”, ou “corpo/alma”, antinomia feito apenas do modelo proposto, mas
a seguinte forma: os nossos modelos
esta que se revelou pouco fértil. A quanto a uma possível “nova cosmovi-
objetivos do nosso corpo estão se tor-
visão fenomenológica não vê tal an- são” graças a modelos de novos tipos.
nando sempre mais aperfeiçoados,
tinomia. Para ela “corpo” é extrapo- A objeção é válida, mas curiosa-
o que permite conhecimento teórico
lação reificante do conteúdo de uma mente pode ser invertida para passar
sempre melhor, e manipulação técni-
específica experiência, e “espírito” a sustentar a tentativa proposta. O
ca sempre mais eficiente. E contribui
(ou “alma”) é extrapolação reificante argumento é este: os modelos atual-
para teoretização crescente do fenô-
da maneira pela qual tal experiência mente disponíveis encobrem o fato
meno “corpo”, e consequentemente
ocorre. Sob tal visão nem “corpo” nem que, todos eles, inclusive os aparen-
para a nossa crescente alienação com
“alma” ocorrem na realidade concre- temente mais abstratos e teóricos, e
relação à experiência concreta do cor-
ta. A virtude do modelo proposto (se os aparentemente mais “isentos de
po. Isto tende a nos transformar em
virtude há) reside justamente no fato valor”, são elaborações de determi-
robôs manipuláveis cientificamente.
da eliminação da antiquíssima antino- nada religiosidade. Tal encobertura
Os modelos subjetivos do nosso cor-
mia ao nível da utilização prática do problematiza todos os conhecimentos
po dos quais dispomos são o inverso
modelo. O modelo deixa, no entan- que tais modelos oferecem. O modelo
de tal medalha. Aceitamos a vivência
to, tal antinomia intocada ao nível da proposto, pelo contrário, por ter sido
concreta do corpo com crítica decres-
elaboração e crítica do modelo. Não projetado a partir do concreto “estar-
cente, e isso tende a uma crescente
resolve o problema “sujeito/objeto”, -no-mundo”, permite a descoberta
submissão ao corpo e endeusamen-
porque não responde à pergunta: de tal estrutura latente com relativa
to da Vicência que temos do corpo.
“onde está o elaborador e utilizador facilidade. Porque o concreto “estar-
O sensacionalismo (no sentido de
do modelo”. Nesse sentido, a objeção -no-mundo” tem dimensão religiosa.
“submissão às sensações do corpo”)
é correta. Mas não é este o propósito Em outros termos, o modelo não visa
está adquirindo formas sempre mais
do modelo proposto, nem de não im- dar resposta à problemática religiosa,
acentuadas, das quais apenas uma é
porta que outro modelo. e não visar tal meta. Não serve, por
o uso das drogas. Trata-se de aliena-
(2) Modelos são instrumentos exemplo no modelo proposto, para
ção com relação ao corpo que está em
para a compreensão dos fenômenos sugerir métodos para a salvação da
retroalimentação com a outra, a obje-
que modelam, isto é, para orientação alma, nem para sugerir métodos para
tivizante. De maneira que “cultura” e
no mundo que nos cerca. Pois “orien- a superação do mito da alma. Nesse
“contracultura” se revelam, no caso do
tar-se no mundo” é, no fundo, questão sentido, a objeção é correta. Mas o
nosso corpo, não opostos, mas parale-
religiosa, qualquer que seja a nossa modelo, por exemplo o proposto, visa
los. E o que está sendo afirmado com
atitude com relação à religiosidade. proporcionar conhecimento do corpo
relação ao nosso corpo pode, mutatis
Porque é questão “qual é a minha si- humano, e um dos conhecimentos
mutandis, ser afirmado com relação a
tuação e possível meta no mundo?”, que proporciona é o que nós, os oci-
numerosos outros problemas.
e isto é, no fundo, questão religiosa. dentais, vivenciamos o nosso corpo à
Pois dispomos tanto de método
Mas modelos não podem fornecer maneira ocidental, como “encarnação
filosófico e científico (o fenomenoló-
respostas a tal pergunta, porque são da alma”, qualquer que seja a nossa
gico) quanto de meios novos (os for-
elaborados à base de determinada re- atitude consciente a respeito disso.
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necidos pela “revolução dos meios de


ligiosidade de quem as elabora (con- Nesse sentido, a objeção vem a forta-
comunicação”) para tentarmos elabo-
fessa ou inconfessa, consciente ou lecer a tentativa.
rar novos tipos de modelos. Tipos de
inconsciente). De maneira que quem Outras objeções são formuláveis.
modelos destinados a fornecer conhe-
elabora modelos já está em posse da Embora não devam ser ignoradas, não
cimento não fornecido pelos modelos
resposta que finge procurar mediante devem inibir a tentativa. Devem, pelo
atualmente em uso. E tal conhecimen-
o modelo. O modelo aqui proposto contrário, ser enfrentadas na medida
to novo poderá possivelmente, em-
é disso bom exemplo. O modelo, se na qual a elaboração e utilização dos
bora não necessariamente, contribuir
analisado, revela a estrutura das re- modelos progride. Devem ser adia-
para a superação de certos aspectos
ligiões tradicionais do Ocidente. E o das. E adiar objeções é uma maneira
da nossa crise. O desafio é, pois, em-
revela sob forma característica para de removê-las do caminho. Porque,
polgante. Transmitir tal sensação de
um estágio específico que tais religi- afinal de contas, a prova do bolo é no
aventura não é o menor dos propósi-
ões alcançaram na atualidade para comê-lo.
tos do presente ensaio.
certas pessoas. A vacuidade no cen-
tro do modelo corresponde ao lugar

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Tema
Tema
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Destaques
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Livro da Semana
Destaques da Semana

SALZMAN, Todd. LAWLER, Michael. A pessoa sexual.


São Leopoldo: Unisinos, 2012.

Por uma nova moralidade sexual


Há uma “cultura do medo” na Igreja em relação a escrever e ensinar qualquer coisa
que questione o ensino magisterial sobre “temas tabu” na ética sexual, destacam
Todd Salman e Michael Lawler

Por Márcia Junges |Tradução Luís Marcos Sander

“D
entro de relacionamentos conju- mesmo no matrimônio, a atos sexuais abertos
gais heterossexuais, atos sexuais para a procriação”. Salzman e Lawler reivindi-
férteis ou inférteis do tipo repro- cam uma “nova moralidade, enraizada numa
dutivo e não reprodutivo podem ser unitivos antropologia renovada, que se foca em pessoas
e, portanto, morais”, constatam Todd Salzman e não em atos, em relacionamentos e não
e Michael Lawler, autores do livro A pessoa na biologia, no real e vivencial e não na per-
sexual (São Leopoldo: Unisinos, 2012), na cepção de um ideal, em princípios e virtudes
entrevista que concederam, por e-mail à IHU (como, por exemplo, a justiça e o amor) e não
On-Line. Segundo eles, “muitas pessoas que em normas absolutas, ajudaria a recuperar a
são gays, lésbicas, bissexuais e transgênero credibilidade da igreja para os fiéis, para quem
(LGBT), suas famílias e seus amigos e amigas deixou a igreja e para quem só tem experiên-
são afastadas da Igreja Católica por causa da cias e percepções externas da igreja”. O livro
afirmação antropológica de que a inclinação A pessoa sexual acaba de ser traduzido para a
homossexual é ‘objetivamente desordena- língua portuguesa pela Editora Unisinos.
da’”. Os pesquisadores analisam, ainda, a Todd Salzman é Ph.D pela Universidade
resistência e suspeita eclesiástica para com Católica de Louvain, na Bélgica. Michael Law-
temas relacionados à sexualidade humana. ler é graduado em Matemática pela Universi-
Em seu ponto de vista, essa é uma longa his- dade de Dublin e em Teologia pela Pontifícia
tória nas tradições cristãs. “Platão e Aristó- Universidade Gregoriana – PUG, em Roma. É
teles suspeitavam profundamente do prazer Ph.D em Teologia Sistemática pelo Instituto
sexual, e essa suspeita era compartilhada Aquinas de Teologia, em Saint Louis. Ambos
pelos estoicos, que tiveram a maior influên- lecionam no departamento de Teologia da
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cia sobre a abordagem cristã da sexualidade e Universidade Creighton, nos Estados Unidos.
restringiam os atos sexuais ao matrimônio e, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos A primeira e mais fundamental normativa e a orientação homossexu-
compreender a “antropologia cató- dimensão é a mudança de ênfase na al ou bissexual como “objetivamente
lica renovada” a qual vocês se pro- própria tradição católica que passou desordenada” – como ensina o magis-
põem na obra A pessoa sexual? da pessoa sexual considerada pri- tério –, que passou para a concepção
Todd Salzman e Michael Lawler mordialmente como pessoa procria- da orientação sexual – heterossexual,
– Extraindo percepções da tradição dora para a pessoa sexual conside- homossexual ou bissexual – como di-
católica, da Escritura, das disciplinas rada primordialmente como pessoa mensão intrínseca da pessoa sexual e,
seculares do conhecimento moral e da relacional. portanto, “objetivamente ordenada”
experiência humana, há seis dimen- A segunda dimensão, que extrai para a pessoa heterossexual, homos-
sões fundamentais da antropologia percepções das ciências biológicas e sexual ou bissexual, respectivamente.
católica renovada no livro A pessoa sociais, é uma mudança na percepção A terceira dimensão é uma com-
sexual (The sexual person). da orientação heterossexual como preensão holística e integrada da pes-

42 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


soa sexual considerada em termos bitação, homossexualidade e técnicas tuição Pastoral sobre a Igreja no Mun-

Destaques da Semana
relacionais, físicos, emocionais, psico- de reprodução artificial? do de Hoje, eliminou a linguagem da
lógicos e espirituais. Todd Salzman e Michael Lawler – hierarquia das finalidades do matrimô-
A quarta dimensão postula um Necessitamos de uma nova moralida- nio. Antes do Vaticano II, declarava-se
desejo fundamental das pessoas de de conjugal para tornar a ética sexual que a procriação era a finalidade pri-
estarem em relacionamento, incluin- católica mais positiva e digna de cré- mordial e a união entre os cônjuges, a
do o relacionamento sexual, com ou- dito para as pessoas modernas. Essa finalidade secundária do matrimônio.
tra pessoa. Esse desejo se realiza num moralidade terá implicações normati- Na Gaudium et spes, essa linguagem
complexo de relacionamentos que o vas para todas as dimensões antropo- hierárquica a respeito das duas fina-
magistério designa como complemen- lógicas acima mencionadas. Uma nova lidades do casamento é rejeitada; as
taridade. Complementaridade quer moralidade conjugal precisa enfatizar finalidades unitiva e procriadora são
dizer que certas realidades formam a pessoa relacional mais do que a pes- vistas como finalidades iguais no re-
uma unidade e produzem um todo soa procriadora e separar a ligação lacionamento conjugal. Em A pessoa
que nenhuma delas produz sozinha. intrínseca e inseparável entre os senti- sexual, sustentamos que a finalidade
Na descrição do magistério, a dos unitivo e procriador do ato sexual procriadora do matrimônio, o que a
complementaridade sexual apon- sustentada pela Humanae vitae1. Humanae vitae especifica como o sen-
ta para o matrimônio heterossexual A obra A pessoa sexual oferece tido procriador do ato sexual – isto é,
como o relacionamento sexual está- uma justificação metodológica e an- abertura para a transmissão da vida –,
vel exclusivo entre um homem e uma tropológica para uma nova moralidade é moralmente sem sentido no caso de
mulher. conjugal. Tomamos como base e des- casais férteis casados que optam por
A quinta dimensão expande a dobramos as implicações lógicas e nor- não procriar por razões que tanto o
descrição da complementaridade mativas da nova moralidade conjugal papa Pio XII4 como o papa Paulo VI5
sexual por parte do magistério indo que se refletem na evolução radical do chamam de “razões sérias”, mesmo
além do casamento heterossexual en- ensino moral conjugal do catolicismo durante todo o casamento, e no caso
tre homem e mulher e postulando um ocorrida no Concílio Vaticano II2. No de casais, igualmente casados, que são
desejo fundamental de complementa- Concílio, Gaudium et spes3, a Consti- estéreis ou estão na pós-menopausa,
ridade holística na pessoa sexual ao in- que não podem procriar durante todo
tegrar a orientação sexual como uma 1 Humanae Vitae (em português “Da vida o matrimônio por razões fisiológicas.
dimensão intrínseca da antropologia humana”): encíclica escrita pelo Papa Para esses casais, a finalidade unitiva
sexual. A complementaridade holísti- Paulo VI. Foi publicada a 25 de Julho de do casamento ou o sentido unitivo do
1968. Inclui o subtítulo Sobre a regulação
ca inclui a orientação sexual, a com- da natalidade, descreve a postura que a
plementaridade pessoal e biológica e Igreja Católica faz em relação ao aborto e
a integração e manifestação de todas outras medidas que se relacionam com a atual. Constituição pastoral, a 4ª das
as três na pessoa sexual. vida sexual humana. Segundo alguns geraria Constituições do Concílio do Vaticano II.
polÊmica porque o Papa nela definiu que a Trata fundamentalmente das relações entre
A sexta dimensão postula que contracepção, exclusivamente por meios a igreja e o mundo onde ela está e atua.
“atos sexuais verdadeiramente huma- artificiais, é proibida pelo Magistério da Trata-se de um documento importante,
nos” realizam as pessoas sexuais. Um Igreja Católica. (Nota da IHU On-Line) pois significou e marcou uma virada da
2 Concílio Vaticano II: convocado no dia Igreja Católica “de dentro” (debruçada
ato sexual verdadeiramente humano é 11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram sobre si mesma), “para fora” (voltando-
um ato em concordância com a orien- quatro sessões, uma em cada ano. Seu se para as realidades econômicas,
tação sexual de uma pessoa que facili- encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo políticas e sociais das pessoas no seu
ta uma valorização, integração e parti- Papa Paulo VI. A revisão proposta por este contexto). Inicialmente, ela constituía
Concílio estava centrada na visão da Igreja o famoso “esquema 13”, assim chamado
lha mais profunda do si-mesmo (self) como uma congregação de fé, substituindo a por ser esse o lugar que ocupava na lista
corporificado da pessoa com outro si- concepção hierárquica do Concílio anterior, dos documentos estabelecida em 1964.
-mesmo corporificado tanto em amor que declarara a infalibilidade papal. As Sofreu várias redações e muitas emendas,
transformações que introduziu foram no acabando por ser votada apenas na quarta
como em justiça (amor justo). sentido da democratização dos ritos, como e última sessão do Concílio. O Papa
A conclusão normativa que se a missa rezada em vernáculo, aproximando Paulo VI, no dia 7 de dezembro de 1965, www.ihu.unisinos.br
segue dessas seis dimensões antro- a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este promulgou esta Constituição. Formada por
pológicas da pessoa sexual é a se- Concílio encontrou resistência dos setores duas partes, constitui um todo unitário.
conservadores da Igreja, defensores da A primeira parte é mais doutrinária, e a
guinte: alguns atos homossexuais e hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos segunda é fundamentalmente pastoral.
heterossexuais, aqueles que cumprem foram, aos poucos, esvaziados, retornando Sobre a Gaudium et spes, confira o nº 124
as exigências de complementaridade a Igreja à estrutura rígida preconizada pelo da IHU On-Line, de 22-11-2004, sobre os
Concílio Vaticano. O IHU promoveu, de 11 40 anos da Lumen Gentium, disponível em
holística e amor justo, são verdadei- de agosto a 11-11-2005, o Ciclo de Estudos http://bit.ly/9lFZTk, intitulada A igreja:
ramente humanos e morais; e alguns Concílio Vaticano II – marcos, trajetórias 40 anos de Lúmen Gentium. (Nota da IHU
atos homossexuais e heterossexuais, e perspectivas. Confira, também, a On-Line)
aqueles que não cumprem as exigên- edição 157 da IHU On-Line, de 26-09- 4 Papa Pio XII (1876-1958): nascido Eugenio
2005, intitulada Há lugar para a Igreja na Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, foi eleito
cias de complementaridade holística e sociedade contemporânea? Gaudium et Papa em 2 de março de 1939. Foi o primeiro
amor justo, não são verdadeiramente Spes: 40 anos, disponível para download Papa nascido na cidade de Roma desde
humanos e são imorais. na página eletrônica do IHU, http://migre. 1724. (Nota da IHU On-Line)
me/KtJn. Ainda sobre o tema, a IHU On- 5 Paulo VI (1897-1978): Giovanni Battista
Line produziu a edição 297, Karl Rahner Montini foi papa da Igreja Católica entre
IHU On-Line – Em que aspectos e a ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, 1963 e 1978. Chefiou a Igreja Católica
é preciso uma nova moralidade con- disponível no link http://migre.me/KtJE. durante a maior parte do Concílio Vaticano
(Nota da IHU On-Line) II e foi decisivo na colocação em prática
jugal em relação à contracepção, coa- 3 Gaudium et Spes: Igreja no mundo das suas decisões. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 43


ato sexual é a finalidade primordial ou da coabitação estável iniciada com o informadas, como o ensinamento de
Destaques da Semana
até exclusiva do matrimônio ou o sen- compromisso de casar-se, da homos- que a orientação homossexual é “ob-
tido primordial ou até exclusivo do ato sexualidade e da reprodução artificial, jetivamente desordenada”.
sexual. Postular a finalidade unitiva do dependendo do sentido desses atos
casamento ou o sentido unitivo do ato para os relacionamentos. Repetimos IHU On-Line – Por que há tanta
sexual como a finalidade primordial nossa conclusão normativa aqui: al- resistência dentro da Igreja Católica
ou até exclusiva do matrimônio ou o guns atos homossexuais e heteros- nesses temas?
sentido primordial ou até exclusivo do sexuais, aqueles que cumprem as Todd Salzman e Michael Lawler
ato sexual numa nova moralidade con- exigências de complementaridade – Antes de responder a essa pergunta,
jugal tem implicações profundas para holística e amor justo, são verdadei- e tendo em vista que ela tem implica-
as relações sexuais e as normas que ramente humanos e, por conseguinte, ções para perguntas subsequentes, é
orientam essas relações. morais; e alguns atos homossexuais e importante fazer uma distinção ter-
heterossexuais, aqueles que não cum- minológica. O termo “Igreja Católica”
Atos morais e imorais prem as exigências de complementa- é usado em ao menos dois modos
Em primeiro lugar, dentro de re- ridade holística e amor justo, não são diferentes. Ele pode designar o que o
lacionamentos conjugais heterosse- verdadeiramente humanos e, por con- Vaticano II chamou de povo de Deus,
xuais, atos sexuais férteis ou inférteis seguinte, são imorais. os bispos, sacerdotes e leigos em con-
do tipo reprodutivo e não reprodutivo junto; ou pode designar uma parte
podem ser unitivos e, portanto, mo- IHU On-Line – Em que sentido muito mais estreita da igreja, a saber,
rais. Essa norma reafirma o que os ca- uma nova moralidade nesses temas o magistério ou a igreja magisterial. A
sais casados já vivenciam; atos sexuais traria outros horizontes à Igreja Cató- resistência em relação a esses temas,
do tipo reprodutivo e atos sexuais do lica junto aos seus fiéis? à qual esta pergunta faz referência,
tipo não reprodutivo podem ser uniti- Todd Salzman e Michael Lawler vem, em grande medida, do magisté-
vos para os casais. – Acreditamos, e os dados das ciências rio; a vasta maioria do povo de Deus
Em segundo lugar, visto que atos sociais mostram, que as atuais normas não parece ter a resistência a esses te-
sexuais heterossexuais do tipo não re- sexuais católicas, que condenam ab- mas que tem o magistério.
produtivo podem ser unitivos, a com- solutamente a contracepção, o sexo A resistência e suspeita eclesiásti-
plementaridade heterogenital, que é pré-matrimonial, atos homossexuais, ca para com temas relacionados à sexu-
necessária para atos sexuais do tipo a masturbação e a maioria das tecno- alidade humana tem uma longa história
reprodutivo, não é mais essencial para logias reprodutivas carecem de cre- nas tradições cristãs. Platão6 e Aristó-
realizar a finalidade unitiva do casa- dibilidade entre a vasta maioria dos teles7 suspeitavam profundamente do
mento ou o sentido unitivo do ato se- fiéis no mundo moderno. Além disso, prazer sexual, e essa suspeita era com-
xual. Isso quer dizer que atos sexuais acreditamos que muitas pessoas que partilhada pelos estoicos, que tiveram
homossexuais do tipo não reprodutivo são gays, lésbicas, bissexuais e trans- a maior influência sobre a abordagem
também podem ser unitivos. gênero (LGBT), suas famílias e seus cristã da sexualidade e restringiam os
Em terceiro lugar, a nova mora- amigos e amigas são afastadas da Igre- atos sexuais ao matrimônio e, mesmo
lidade conjugal levanta as seguintes ja Católica por causa da afirmação an-
perguntas: se a finalidade unitiva do tropológica desta de que a inclinação 6 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense.
casamento ou o sentido unitivo do ato homossexual é “objetivamente desor- Criador de sistemas filosóficos influentes
sexual é primordialmente fundamen- denada”. Essa afirmação é percebida até hoje, como a Teoria das Idéias e a
tal para um relacionamento conjugal, como uma negação fundamental de Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi
mestre de Aristóteles. Entre suas obras,
quais são as implicações desse desen- que as pessoas LGBT sejam criadas à destacam-se A República e o Fédon. Sobre
volvimento para a moralidade con- imagem e semelhança de Deus. Uma Platão, confira e entrevista “As implicações
jugal? Visto que casais homossexuais nova moralidade, enraizada numa an- éticas da cosmologia de Platão”, concedida
podem vivenciar e vivenciam efetiva- pelo filósofo Prof. Dr. Marcelo Perine
tropologia renovada, que se foca em à edição 194 da revista IHU On-Line,
mente o sentido unitivo do ato sexual pessoas e não em atos, em relaciona- de 04-09-2006,disponível em http://
www.ihu.unisinos.br

em atos sexuais não reprodutivos, de- mentos e não na biologia, no real e migre.me/uNq3. Leia, também, a edição
ver-se-ia permitir que eles se casem? vivencial e não na percepção de um 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-
2009, intitulada Platão. A totalidade em
Ou então: o casamento é essencial ideal, em princípios e virtudes (como, movimento, disponível em http://migre.
para realizar o sentido unitivo em atos por exemplo, a justiça e o amor) e não me/uNqj. (Nota da IHU On-Line)
sexuais? Podem casais – heterossexu- em normas absolutas, ajudaria a recu- 7 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a.
ais, homossexuais ou bissexuais – que C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira,
perar a credibilidade da Igreja para os um dos maiores pensadores de todos os
não são casados realizar o sentido uni- fiéis, para quem deixou a Igreja e para tempos. Suas reflexões filosóficas — por um
tivo do ato sexual? quem só tem experiências e percep- lado originais e por outro reformuladoras da
Em A pessoa sexual, defendemos ções externas da Igreja. Além disso, tradição grega — acabaram por configurar
um modo de pensar que se estenderia por
uma nova moralidade conjugal em uma nova moralidade poderia ajudar a séculos. Prestou inigualáveis contribuições
que a finalidade unitiva do casamen- curar indivíduos LGBT, seus pais, famí- para o pensamento humano, destacando-
to ou o sentido unitivo do ato sexual lias e amigos, e todas as pessoas que se nos campos da ética, política, física,
é o fundamento para um relaciona- metafísica, lógica, psicologia, poesia,
foram afastadas pelos ensinamentos retórica, zoologia, biologia, história
mento conjugal. Essa nova moralidade sexuais do magistério, especialmen- natural e outras áreas de conhecimento.
conjugal justifica normas que admi- te pelos ensinamentos baseados em É considerado, por muitos, o filósofo que
tem a moralidade da contracepção, mais influenciou o pensamento ocidental.
afirmações antropológicas sexuais mal (Nota da IHU On-Line)

44 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


no matrimônio, a atos sexuais abertos cujas reflexões teológicas discordam cida antes de qualquer outra coisa, se

Destaques da Semana
para a procriação. Suas suspeitas em das do magistério. necessário até contra a exigência da
relação ao prazer sexual e sua ênfase A combinação dessas razões cria autoridade eclesiástica. A consciência
de que todas as relações sexuais devem uma suspeita e um temor profundos confronta [o indivíduo] com um tribu-
ser relações sexuais matrimoniais vi- tanto para com a sexualidade como nal supremo e último, que, em última
sando à procriação foram incorporadas para com qualquer diálogo sobre pon- análise, está além da reivindicação de
em concepções cristãs sobre a sexuali- tos de vista alternativos, científica e grupos sociais externos, até mesmo da
dade humana. Embora Agostinho8, que teologicamente fundamentados, sobre igreja oficial.”
muitas vezes é chamado de doutor do a sexualidade humana. Basta simples- Uma pessoa forma e informa sua
matrimônio cristão, reafirmasse que mente examinar a história do “silencia- consciência com base no discernimen-
a sexualidade e a atividade sexual são mento”, da “repreensão” ou da emis- to orante, informada pelas fontes do
boas porque foram criadas boas pelo são de “notificações” para teólogos e conhecimento moral (Escritura, tradi-
Deus bondoso, também sustentava teólogas que contestaram o ensino ca- ção, disciplinas seculares do conheci-
que a bondade delas é ameaçada pelo tólico oficial sobre a sexualidade para mento moral e experiência humana),
prazer associado à relação sexual e pela perceber que esse é um tema sobre o orientada pelo Espírito Santo e, talvez,
concupiscência engendrada pelo peca- qual o magistério não quer dialogar. por um aconselhador competente e
do. Ele afirma que a atividade sexual faz um juízo moral com base nesse
no matrimônio é boa quando sua fi- IHU On-Line – Em que medida processo. A afirmação de Ratzinger
nalidade é a procriação, e constitui um essa resistência da Igreja Católica sobre a consciência, que é uma ex-
pecado venial quando, “mesmo que sobre tais assuntos é, em última ins- pressão acurada do ensino tradicional
seja com o cônjuge, [visa] satisfazer a tância, um cerceamento da liberdade da igreja sobre a autoridade final da
concupiscência”. A aversão católica ao sobre os corpos e mentes? consciência, destaca o fato de que a
prazer sexual atingiu seu ápice quando Todd Salzman e Michael Lawler resistência do magistério ao diálogo
o papa Gregório Magno baniu do aces- – Não cremos que o magistério tenha sobre questões de ética sexual com
so à igreja qualquer pessoa que apenas uma política explícita de restrição da as pessoas que formaram e informa-
tivesse tido uma relação sexual praze- liberdade dos corpos e mentes dos fi- ram sua consciência e chegaram a
rosa. Em nossa opinião, o juízo de Brun- éis resistindo ao diálogo aberto e sin- conclusões diferentes sobre questões
dage a respeito do efeito da história da cero sobre questões de ética sexual, sexuais é uma fundamental falta de
patrística é acurado: “O horror cristão mas a postura rígida e autoritária que respeito pela autoridade da consci-
ao sexo colocou, durante séculos, uma ele assume sobre essas questões pode ência. O antigo aforisma parece se
pressão enorme sobre a consciência e ter esse efeito. Ao ensinar o que en- aplicar absolutamente a questões se-
a autoestima dos indivíduos no mundo sinam sobre questões sexuais, presu- xuais: Roma locuta est, causa finita est
ocidental.” Essa pressão enorme con- mimos que as pessoas que ocupam o (Roma falou, o caso está encerrado).
tinua até o presente e se evidencia no magistério estejam seguindo sua cons- Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o
foco do magistério na “ortodoxia pél- ciência em relação a como entendem, magistério tenta restringir a liberdade
vica” na igreja. Portanto, as razões da interpretam e aplicam as fontes do co- da consciência e definir de maneira es-
resistência à discussão de questões se- nhecimento moral (Escritura, tradição, treita como as pessoas se expressam
xuais na Igreja Católica são, em grande disciplinas seculares do conhecimento em atos sexuais corporais.
medida, históricas. moral e experiência humana) às ques-
tões de ética sexual. Infelizmente, o IHU On-Line – Qual é a impor-
Um tema silenciado respeito pela consciência e por sua tância de se pensar uma antropologia
Elas também são de caráter rela- capacidade de discernir a verdade em católica renovada frente ao recrudes-
cional e vivencial. Um sacerdócio ce- questões de ética sexual que conce- cimento da intolerância em “temas
libatário não tem informações viven- demos ao magistério não é retribuí- tabu” como a homossexualidade e,
ciais sobre o uso moral da sexualidade do na mesma moeda pelo magistério ainda, a ordenação de homossexuais
humana em relações sexuais justas e aos teólogos e aos fiéis em geral. Essa e mulheres? www.ihu.unisinos.br
amorosas. Essa falta de vivência, mes- ausência de reciprocidade pode, sem Todd Salzman e Michael Lawler
mo sem negar inteiramente o que o dúvida, ter o efeito de restringir a li- – Cremos que essas reflexões são cru-
magistério diz sobre a sexualidade berdade das mentes ou consciências ciais para fazer a igreja e o magistério
humana, pode afetar negativamente dos fiéis, e é uma violação direta do avançar em sua teologia e seu ensino
as reflexões teológicas sobre a sexu- ensinamento sobre a autoridade da sobre a sexualidade humana. Há des-
alidade humana, a antropologia e as consciência há muito estabelecido na dobramentos incríveis nas ciências
normas deduzidas dessas reflexões e tradição católica. sociais e biológicas no tocante à sexu-
a disposição de travar diálogo com as Concordamos com o jovem Jose- alidade humana, e os teólogos e teó-
pessoas que têm informações viven- ph Ratzinger, agora papa Bento XVI, logas católicos precisam ter liberdade
ciais sobre relações sexuais morais e que, em seu comentário sobre as refle- de se envolver no diálogo com esses
xões da Gaudium et spes sobre a cons- desdobramentos sem temer represá-
ciência, observa o seguinte: “Acima do lias magisteriais para fazer avançar a
8 Aurélio Agostinho (354-430): Conhecido
como Agostinho de Hipona ou Santo papa como expressão da reivindicação pesquisa católica sobre questões muito
Agostinho, bispo católico, teólogo e vinculante da autoridade eclesiástica importantes. Atualmente, e por boas
filósofo. É considerado santo pelos católicos ainda se encontra a consciência da razões, há uma “cultura do medo” na
e doutor da doutrina da Igreja. (Nota da
IHU On-Line)
própria pessoa, que deve ser obede- igreja em relação a escrever e ensinar

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 45


qualquer coisa que questione o ensino Todd Salzman e Michael Lawler – Igreja Católica considerando que na
Destaques da Semana
magisterial sobre “temas tabu” na ética Mais uma vez, isso depende de como moral dessa religião o sexo deve ser
sexual. Professores católicos, funcio- se entende o termo “Igreja Católica”. praticado somente para fins reprodu-
nários diocesanos e até sacerdotes e The sexual person recebeu o prêmio tivos? Como entender esse paradoxo?
bispos perderam seu emprego ou fo- da imprensa católica americana na Todd Salzman e Michael Law-
ram censurados por dizer ou escrever categoria livro, o primeiro lugar em ler – Isso faz parte da desconexão (ou
coisas que contradizem ou até simples- teologia, em 2009. Ele foi resenhado paradoxo) que tentamos salientar no
mente levantam perguntas a respeito muito positivamente por teólogos e livro A pessoa sexual. Por um lado,
de ensinamentos magisteriais sobre es- teólogas numa série de revistas teo- houve uma mudança radical na antro-
sas questões. A atmosfera é medieval, lógicas importantes no mundo intei- pologia sexual no Concílio Vaticano II
opressiva, um abuso de poder e peca- ro. Recebemos numerosos e-mails de que eliminou a linguagem hierárquica
minosa. Um bom exemplo desse clima apoio de colegas teólogos e pessoas sobre as finalidades do matrimônio.
opressivo é a Carta Apostólica Ordina- leigas que nos agradeceram pelo livro, As finalidades unitiva e procriadora
tio sacerdotalis, de João Paulo II, sobre especialmente depois que o Comitê do casamento estão em pé de igual-
a questão da ordenação de mulheres de Doutrina da Conferência Episcopal dade. Isso assinalou uma passagem
ao sacerdócio, onde ele afirma, sem dos Estados Unidos “repreendeu” o li- da tradicional antropologia sexual
provas, que a questão da ordenação vro em 2010. Na Igreja Católica como primordialmente procriacionista para
de mulheres foi objeto de ensinamento povo de Deus há apoio, interesse e uma antropologia sexual relacional e
definitivo e não está mais aberta para uma fome espiritual pela nova menta- primordialmente unitiva. O magistério
debate ou discussão. Essa postura con- lidade que estamos propondo. oferece alguns belos ensinamentos e
traria a intuição em termos tradicionais Para a Igreja Católica como ma- reflexões, por exemplo na Humanae
e teológicos. Se o ensinamento é ver- gistério, a questão se coloca de modo vitae, sobre a finalidade unitiva do
dadeiro, como sustenta o magistério, inteiramente diferente. O Comitê de matrimônio e o sentido unitivo do ato
pensar-se-ia que o debate e discussão Doutrina da Conferência Episcopal sexual e da sexualidade humana. Atos
contínua tornaria essa verdade mais dos Estados Unidos repreendeu nos- sexuais podem nos fazer crescer rela-
clara e evidente ainda. Encerrar o de- so livro em 2010. Mais recentemente, cionalmente e aprofundar nosso rela-
bate e discussão nos parece ser uma a Congregação para a Doutrina da Fé cionamento com nosso cônjuge e com
postura opressora baseada no medo silenciou três sacerdotes-teólogos ir- Deus. Agostinho tinha e tem razão: o
e um sinal de que os argumentos não landeses e emitiu uma “notificação” sexo é bom porque é criado por um
resistem a um exame científico, como referente ao livro Just love [Amor jus- Deus bondoso e amoroso. Um grupo
é o caso no ensinamento que proíbe a to], da especialista em teologia moral convocado pela Conferência Nacional
ordenação de mulheres. Margaret Farley, publicado em 2006, dos Bispos dos Estados Unidos chega
dois anos antes do nosso. Não sabe- a afirmar que atos sexuais conjugais
A voz dos sem voz mos ao certo se haverá um silencia- mutuamente prazerosos são possivel-
Entretanto, mais importante do mento ou notificação semelhante, por mente as experiências humanas que
que a necessidade de liberdade te- parte da Congregação para a Doutrina simbolizam do modo mais pleno a co-
ológica para a reflexão sobre esses da Fé, em relação a The sexual person municação amorosa entre a Trindade
“temas tabu” é a realidade de que ou a nosso novo livro, Sexual ethics: divina, o que é uma declaração que
muitas pessoas sofreram e continuam a theological introduction, publicado reafirma a bondade tanto da sexua-
a sofrer por causa das normas absolu- pela Georgetown University Press em lidade humana como de atos sexuais
tas do magistério a respeito de temas 2012. Se isso não acontecer, não será verdadeiramente humanos.
sexuais “tabu”. Elas se sentem afasta- porque as concepções do magistério
das e isoladas de sua Igreja e de seu sobre essas questões estejam ficando Paradoxo e desconexão
Deus por causa das normas absolutas “mais brandas”. Será, mais provavel- Há dois problemas quando o ma-
que proscrevem atos contraceptivos mente, porque somos homens leigos gistério trata da sexualidade dentro da
ou homossexuais, por exemplo, e por casados que estão fora do alcance do igreja. Em primeiro lugar, raramente ou-
www.ihu.unisinos.br

causa da antropologia que classifica magistério, que pode pressionar os vimos falar da beleza positiva da sexuali-
a orientação homossexual como uma bispos e/ou as ordens religiosas para dade humana e de sua bondade funda-
“desordem objetiva”. Os teólogos e “silenciar” religiosos e religiosas, mas mental. Em segundo, o que se ouve com
teólogas têm não apenas um direito, não leigos. frequência é o ensino negativo do ma-
mas especialmente uma responsabili- Apesar da falta de abertura pura gistério contra certos atos sexuais, espe-
dade de se manifestarem pelas pesso- a discussão e diálogo aberto e sincero cialmente atos homossexuais. O magis-
as que não têm voz, que estão isoladas com o magistério sobre essas ques- tério dá continuidade a uma agressiva
e afastadas. A vocação do cristão de tões, temos a esperança de que, a lon- campanha mundial contra atos homos-
dizer a verdade ao poder e de ser uma go prazo, à medida que mais pessoas sexuais e o casamento entre pessoas do
voz dos sem voz também se aplica ao se manifestarem sobre essas ques- mesmo sexo. Há uma desconexão entre
teólogo e teóloga católica. tões, o povo de Deus transforme o a ênfase do magistério na importância e
clima no magistério para permitir uma significação relacional do sentido uniti-
IHU On-Line – Em que medida discussão e diálogo aberto e sincero. vo da sexualidade humana e a redução
essa nova mentalidade que vocês por ele promovida dessa importância e
propõem encontra espaço para dis- IHU On-Line – Como podemos significação relacional a um foco na re-
cussão dentro da Igreja Católica? discutir sexualidade no âmbito da produção. Esse foco fica evidente nas

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normas absolutas que proíbem a con- que o sexo pode ser usado de formas bre a importância de se ser responsá-

Destaques da Semana
tracepção, atos heterossexuais do tipo que nos ajudem ou nos prejudiquem vel ao expressar a sexualidade. Essas
não reprodutivo, atos homossexuais e a em nossos relacionamentos com mensagens, e não normas “proscrito-
masturbação. Deus, o próximo e nós mesmos, e es- ras” absolutas fundamentadas numa
Essa desconexão salienta o para- pecificar diferentes formas pelas quais antropologia sexual reprodutiva,
doxo entre o ensino efetivo do magis- ele pode ajudar ou prejudicar. Reenfa- deveriam servir de informação aos
tério sobre a importância da finalidade tizamos aqui um princípio importan- pais católicos e ser comunicadas com
unitiva do matrimônio ou o sentido te que precisa ser traduzido para um abertura, sinceridade e frequência às
unitivo do ato sexual e as normas ab- nível apropriado à idade das crianças crianças numa idade apropriada.
solutas que enfocam primordial ou com exemplos igualmente apropria-
exclusivamente a reprodução. Nós pro- dos à idade delas: atos sexuais verda- IHU On-Line – Considerando a
pomos um foco maior e uma prioriza- deiramente humanos, holisticamente sexualidade como um fenômeno hu-
ção do sentido unitivo da sexualidade complementares, justos e amorosos mano, como pode ser compreendida
humana. Com este foco e esta priori- são fundamental e moralmente bons. e sustentada a prática do celibato?
zação, muitas das normas absolutas do Todd Salzman e Michael Lawler –
magistério que enfocam e priorizam a Mensagens prejudiciais Para pessoas de orientação homossexual
reprodução teriam de ser reavaliadas, Uma mensagem não proveitosa ou heterossexual, o celibato “por causa
reformadas ou abandonadas. seria ensinar, como o faz o Catecis- do reino” sempre pode ser uma opção
mo da Igreja Católica, a adolescentes livre para vivenciar a própria sexualidade.
IHU On-Line – Como uma famí- do sexo masculino ou feminino que Entretanto, se o celibato é obrigatório e
lia estruturada a partir da moralidade a masturbação é uma “ação intrínse- a única opção para uma pessoa – o que
católica pode orientar seus filhos a ca e gravemente desordenada”, sem ele é, de acordo com o ensinamento ma-
respeito da sexualidade? acrescentar a advertência acerca da gisterial, não só para os sacerdotes, mas
Todd Salzman e Michael Lawler responsabilidade moral ou pecamino- também para todas as pessoas com uma
– Antes de tudo, cremos que é crucial sidade acrescentada pelo Catecismo: orientação homossexual –, isso pode ser
que os pais corporifiquem e enfatizem “Para formar um juízo equitativo sobre prejudicial em termos emocionais, psico-
a bondade da sexualidade e seu poder a responsabilidade moral do sujeito e lógicos, relacionais e espirituais. A opção
como uma forma íntima de comuni- orientar a ação pastoral, deve-se levar de ser celibatário nunca deveria ser im-
cação humana. Nos Estados Unidos, em conta a imaturidade afetiva, a for- posta; tal imposição pode ser uma vio-
estudos indicam que só 50% dos pais ça do hábito adquirido, os quadros de lação da consciência e destrutiva para a
falam a seus filhos a respeito da se- ansiedade ou outros fatores psicológi- pessoa sexual.
xualidade e que muitos dos que o fa- cos ou sociais que diminuem, ou então
zem oferecem apenas um único “papo reduzem a um mínimo, a culpabilida- IHU On-Line – Gostaria de
sobre sexo”. As crianças não vivem de moral.” Outra mensagem não pro- acrescentar algum aspecto não
num vácuo. Se elas não estão obten- veitosa, que seria bastante prejudicial questionado?
do informações boas, acuradas e po- em termos emocionais, psicológicos Todd Salzman e Michael Lawler –
sitivas sobre sexualidade de seus pais e desenvolvimentais, seria se um pai No prólogo do livro A pessoa sexual, nós
(ou mesmo que as estejam obtendo), ou mãe de um filho gay ou uma filha afirmamos que estamos inteiramente
muitas vezes elas estão recebendo in- lésbica informasse a ele ou ela que o abertos ao diálogo e esperamos que ele
formações duvidosas e prejudiciais de magistério ensina que uma inclinação estimule o diálogo entre teólogos/teólo-
seus pares, da mídia, internet e cul- homossexual é “objetivamente desor- gas, pessoas leigas e o magistério sobre
tura. Os dados mostram que muitos denada”. Os pais precisam separar o o tema muito importante da ética sexu-
pais não falam com seus filhos sobre joio do trigo do ensino magisterial so- al. Estendemos essa esperança e esse
sexualidade porque não se sentem à bre a sexualidade humana ao ensinar convite a nossos irmãos e irmãs que
vontade com sua própria sexualidade. seus filhos a respeito da sexualidade. lerem esse livro em português e espe-
Os pais precisam se informar sobre Para fazer isso, eles precisam se sen- ramos que o magistério acabe se envol- www.ihu.unisinos.br
sexualidade e se sentir à vontade para tir à vontade com sua própria sexua- vendo no diálogo construtivo e autênti-
discutir assuntos ligados à sexualidade lidade, informar-se sobre o ensino da co. Também esperamos que as pessoas
a fim de dialogar com seus filhos. igreja e os pontos fortes e fracos desse que se sentem afastadas, frustradas ou
Em segundo lugar, os pais pre- ensino e começar a conversar sobre traídas por alguns aspectos do ensino
cisam distinguir entre o ensinamen- sexualidade com seus filhos numa ida- do magistério sobre a sexualidade hu-
to sexual católico que é proveitoso de precoce para criar uma atmosfera mana encontrem sentido, esperança e,
e aquele que não é proveitoso para confortável para o diálogo e a discus- talvez, até uma certa paz lendo nosso
comunicar uma mensagem sobre a são. Não só alguns aspectos do ensino livro. Tentamos recorrer ao que há de
sexualidade humana que seja positi- magisterial, mas também as muitas melhor na tradição cristã católica até
va, sadia, moral e apropriada à idade crenças culturais de que o sexo é tabu o presente e defender teologicamente
dos filhos. Uma mensagem proveitosa não contribuem para criar uma atmos- uma antropologia sexual e uma ética
poderia consistir em enfocar o amor fera confortável ou sadia. sexual que reconheçam a sexualidade e
incondicional de Deus pelos seres Como dissemos acima, o magis- atos sexuais verdadeiramente humanos,
humanos, todos criados à imagem e tério tem efetivamente algumas coisas holisticamente complementares, justos
semelhança de Deus, com uma sexu- inspiradoras a dizer sobre o sentido e amorosos como bons em termos fun-
alidade que é boa. Outra mensagem é unitivo da sexualidade humana e so- damentais e morais.

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 47


Valério Brittos e o campo da Economia
Política da Comunicação brasileira:
contribuição teórica e a pauta pendente

Por César Bolaño*

É com angustia e tristeza que me ponho ao conhecimento empírico de uma realida-


a escrever estas linhas, mas não poderia dei- de em transformação e pouco estudada no
xar de fazê-lo, pois se trata de compromisso país.
assumido há meses com o querido amigo Aplicando o mesmo paradigma desen-
que se foi. A dor é tanto maior porque Va- volvido para a análise do mercado brasileiro
lério foi meu discípulo, o mais comprome- de televisão (de massa), pôde explicitar a
tido e leal que se possa ter. Um presente, existência de um paralelismo interessante
um empréstimo, do céu. Quando o conhe- na evolução histórica de ambos os setores
ci, em 1997, já era um intelectual formado, do audiovisual, que passam, em momentos
com livro publicado e recém-ingressado no históricos distintos, por processos de oligo-
doutoramento da UFBa, sob a orientação do polização. Em 1995, a estrutura da indústria
nosso amigo comum, Sérgio Mattos. de TV brasileira, no seu conjunto, mudara
Seu interesse era retomar, na perspec- essencialmente, inaugurando uma nova
tiva da Economia Política da Comunicação situação, que denominou fase da multipli-
(EPC) – tal como eu a vinha desenvolvendo cidade da oferta, conceito que eu próprio
e divulgando através dos grupos da INTER- adotaria, quando da segunda edição de
COM e da ALAIC, que viriam a constituir a Mercado Brasileiro de Televisão, em 2004,
rede EPTIC em 1999 –, o objeto do seu pri- por ele prefaciada.
meiro livro, um estudo pioneiro da TV seg- Já nessa segunda edição de meu pri-
mentada no Brasil. Após aquele primeiro meiro livro, um trecho foi escrito a quatro
encontro, de alegre lembrança, dedicou-se mãos, fato que se repetiria de forma amplia-
com a enorme energia que o caracterizava da no nosso livro em comum sobre a TV di-
ao desenvolvimento da EPC brasileira, am- gital, publicado em 2007. A dedicação com
pliando significativamente o seu escopo, que Valério assumiu o acompanhamento
seja em nível teórico, seja no que se refere do mercado brasileiro de televisão (aberta

___________________________
* César Bolaño é membro fundador do Grupo Cepos e o atual pesquisador-líder sucedendo Valério
Brittos; doutor e mestre em economia pela Unicamp, jornalista formado pela USP, é professor do de-
partamento de economia da UFS e presidente da Associação Latino-Americana dos Investigadores da
Comunicação (ALAIC). E-mail: bolano.ufs@gmail.com

48 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


e segmentada, analógica e digital) e a determinações de ordem econômica EPC e da Comunicação em geral. Não
identidade de pensamento que tínha- e cultural no nível das estruturas de há espaço aqui para esse tema. Vol-
mos dava-me liberdade para dedicar- mediação constituídas pelos capitais tarei a ele em outro momento, nesta
-me a outros temas – da subsunção do individuais em concorrência –, a chave mesma coluna.
trabalho intelectual à epistemologia –, para a compreensão das barreiras nas O fato é que, seja pela sua con-
ampliando o potencial explicativo do indústrias culturais e da comunicação, tribuição teórica, seja pelo seu ativis-
referencial teórico que estávamos, ha- e tendo em vista os limites da própria mo acadêmico e institucional, Valério
via já dez anos nesse momento, cons- EPC para defini-lo cabalmente, faltan- Brittos colocou o grupo CEPOS, por
truindo em parceria. do incorporar, de forma mais sistemá- ele criado, e a UNISINOS, no centro
No dia do seu falecimento, Valé- tica, contribuições de outras origens, do mapa da EPC mundial. Ao lado do
rio era seguramente o maior conhe- Valério se encarregará de montar, no OBSCOM/UFS, forma o eixo histórico
cedor da situação e das tendências da interior do grupo CEPOS, um pequeno principal da EPC brasileira. Do ponto
TV brasileira em todas as suas moda- programa de pesquisa sobre o tema, de vista da pesquisa empírica, um es-
lidades. Tínhamos previsto, quando apontando inclusive para a necessida- tava mais dedicado à TV digital, o ou-
ele adoeceu, retomar a produção de de de se pensar em padrões alterna- tro à economia da Internet. Os concei-
outro livro comum sobre o tema, para tivos, ligados à comunicação contra tos (padrões, barreiras, fases, forma,
a comemoração dos 25 anos de publi- hegemônica. funções, convergência) que desenvol-
cação de meu Mercado Brasileiro de Ainda na tese de doutoramento, vemos visam iluminar a parte da reali-
Televisão, em que utilizaríamos outro além dos conceitos citados e da perio- dade social que nos toca analisar. Isto
conceito que Valério estava começan- dização da TV segmentada e da TV de não mudou.
do a trabalhar com seus alunos e cola- massa no Brasil, Valério realizará um O programa de pesquisas cita-
boradores, o de pluri-TV. estudo sobre a TV portuguesa, que, do sobre os padrões tecnoestéticos,
Outra contribuição fundamental em seguida, continuará acompanhan- aliado à compreensão das tendências
de Valério à construção do nosso qua- do. Também a Espanha será matéria particulares da digitalização sobre as
dro teórico foi o aprofundamento do de seu interesse e de forma sistemá- diferentes indústrias culturais e da
conceito de barreiras à entrada, de tica com a aprovação do projeto que comunicação, deve demonstrar o seu
larga tradição na Ciência Econômica, coordenava, pela CAPES, sobre a TV poder explicativo, apoiando-se no
que eu propusera incorporar ao cam- digital terrestre, nos marcos do qual amplo marco conceitual, que Valério
po da EPC, com base na definição de organizaria inclusive um importante ajudou a construir e que permanece
Mario Possas. Valério é quem faz a seminário em Madrid, em 2010. Esta aberto à contribuição dos pesquisado-
classificação das barreiras em técnico- e outras ações em nível internacional res que constroem hoje a EPC brasilei-
-econômicas e estético-produtivas. fazem parte, aliás, de sua importante ra. A eles se dirigem em especial estas
Ademais, sendo o meu conceito de pa- contribuição também para a organiza- linhas. Em memória do nosso mestre
drão tecnoestético – articulador das ção e institucionalização do campo da e amigo.

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 49


Destaques On-Line
Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 14-08-2012 a 20-08-2012,
disponíveis nas Entrevistas do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Convenção 169 da OIT: A relevante queda do crescimento


o descaso brasileiro evangélico revelado pelo Censo 2010
Entrevista especial com Carolina Bellinger, Entrevista especial com Paulo Ayres Mattos,
advogada da Comissão Pró-Índio de São Paulo teólogo, docente da Universidade Metodista de
Confira nas Notícias do Dia de 14-08-2012 São Paulo
Acesse no link http://bit.ly/OW3KuW Confira nas Notícias do Dia de 17-08-2012
Acesse no link http://bit.ly/NsbbKk
Depois de ignorar diversas vezes a Convenção 169
da OIT, que determina o direito de consulta prévia “As pessoas, hoje, têm mais liberdade para escolher
às comunidades indígenas e quilombolas, o Estado e combinar diversas opções em seu próprio cardápio
brasileiro foi pressionado após a divulgação do religioso como num balcão de comida a quilo”,
Informe da Comissão de Peritos da OIT, ocorrida diz bispo emérito metodista e pesquisador do
nesse ano. Apesar das críticas recebidas, “o governo pentecostalismo.
federal não apresentou nenhuma proposta por
enquanto”.

Guerrilha do Araguaia:
uma guerra interna
Complexo Industrial de Suape:
os limites do desenvolvimento Entrevista especial com Leonencio Nossa,
jornalista
Entrevista especial com Heitor Costa, físico, Confira nas Notícias do Dia de 18-08-2012
integrante da Rede Brasileira de Justiça Acesse no link http://bit.ly/NsbbKk
Ambiental – RBJA e da Articulação Antinuclear
Brasileira – AAB “O extermínio no Araguaia foi uma política de
Confira nas Notícias do Dia de 15-08-2012 Estado”, aponta o entrevistado. “A guerrilha foi mais
Acesse no link http://bit.ly/PXZzxi um momento da história de refluxo do país no tempo.
É a ilustração máxima de um Estado que não aceita o
O polêmico projeto do Complexo Industrial de diálogo e promove uma guerra interna”.
Suape, instalado no estado de Pernambuco em 1975,
durante a ditadura militar, tem recebido críticas de
ambientalistas e pesquisadores, porque se baseia na
“concentração de investimentos” e causa inúmeros Acordo Coletivo de Trabalho com
problemas ambientais e sociais. Propósito Específico é a negação
dos direitos trabalhistas
www.ihu.unisinos.br

Entrevista especial com com Graça Druck,


Hidronegócio atinge a pesca artesanal socióloga, professora na Universidade Federal da
Bahia
Entrevista especial com Maria José Pacheco, Confira nas Notícias do Dia de 20-08-2012
secretária executiva nacional do Conselho Acesse no link http://bit.ly/NWaQPc
Nacional dos Pescadores
Confira nas Notícias do Dia de 16-08-2012 “A proteção social e a garantia dos direitos através da
Acesse no link http://bit.ly/NGNn83 legislação e das instituições que operam o direito do
trabalho são, mais do que nunca, indispensáveis nos
Da mesma forma que o agronegócio, o hidronegócio, dias atuais”, constata a pesquisadora.
uma das apostas comerciais do Estado brasileiro, tem
gerado conflitos e afetado as populações ribeirinhas e
pescadores, que sobrevivem da pesca artesanal.

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Tema
de
Capa

Destaques
da Semana

www.ihu.unisinos.br

IHU em
Revista
EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000 51
IHU em Revista
Agenda da
Semana
Eventos do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
programados para a semana de 20-08-2012 a 27-08-2012

Tema: Mobilidade urbana: a bicicleta como meio de transporte sustentável


Palestrante: Prof. MS Marcelo Sgarbossa
Evento: IHU ideias
Data: 23-08-2012
Mais informações: http://bit.ly/Pg66Yz

Evento: Jesus e o Reino no Evangelho de Marcos


Tema: Primeira etapa O início do Evangelho de Marcos – Mc 1,1-15
Data: 13-08-2012 a 26-08-2012
De 13 a 19 de agosto – Contexto histórico e literário do Evangelho de Marcos
De 20 de agosto a 26 de agosto – Jesus o Messias e as expectativas messiânicas (Mc 1, 1-15)
Mais informações: http://zip.net/bghpr0

Evento: IHU ideias

Data: 23-08-2012

Palestra: Mobilidade urbana: a bicicleta como meio de

transporte sustentável

Palestrante: Prof. MS Marcelo Sgarbossa – Laboratório


www.ihu.unisinos.br

de Políticas Públicas e Sociais - LAPPUS

Horário: 17h30min às 19h

Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Mais informações: http://migre.me/amHhD

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Perfil

IHU em Revista
Jacques Távora Alfonsin
Por Márcia Junges

“C
ostuma-se atacar quem trabalha inspiração evangélica que o acompanha até
como nós, em defesa dos direitos hoje. “Não se lida com o povo como se lida
humanos, como gente atrasada, com um imóvel, ou um animal. Tem que se li-
ideologicamente desorientada, que atrapalha dar com o povo considerando sua dignidade,
o progresso impulsionado pelo capital globa- sua cidadania”, destaca. Ele destaca que há
lizante. Isso está acontecendo agora em Porto uma diferença gigantesca “quando se inter-
Alegre, com a defesa que estamos fazendo preta uma lei em favor do capital, e quando
das multidões pobres afetadas pelos megae- se interpreta em favor das/os pobres”. Em seu
ventos da Copa do Mundo”. O desabafo é do ponto de vista, o bode expiatório no Brasil de
advogado Jacques Távora Alfonsin, na entre- hoje são os pobres.
vista que concedeu pessoalmente em seu es- Jacques Távora Alfonsin é advogado do
critório na ONG Acesso, Cidadania e Direitos MST e procurador aposentado do estado
Humanos, no centro de Porto Alegre. Numa do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito,
manhã chuvosa, esse defensor dos direitos pela Unisinos, onde também foi professor. É
dos mais pobres recebeu a IHU On-Line para membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos
uma conversa informal, mas repleta de argu- Humanos e publica periodicamente seus arti-
mentação jurídica e fundamentação humana. gos nas Notícias do Dia da página do IHU. Foi
Aluno do Ir. Antonio Cechin*, no Colégio Ro- nomeado membro da Comissão Estadual da
sário, passou a lutar pelos direitos daqueles Verdade
que foram empobrecidos, alicerçado em uma Confira a entrevista.

Família – Sou casado há 48 anos respeito. Deu-me uma neta, América; interno do Colégio Rosário. Lá, entre
com Ana Isabel. Nas pastorais sociais, o Tiago, professor e amante da natu- outros bons professores, fui aluno do
comunidades eclesiais de base, cre- reza, defensor do meio ambiente, pai Irmão Antonio Cechin, a quem devo
ches de crianças pobres e no grupo do Rodrigo, meu terceiro neto; e a muito por ter-me inspirado defender
de mulheres que compõe a chamada Raquel, atriz de teatro, muito atenta à os direitos humanos das/os pobres.
“mística feminina” ela é conhecida saúde da sua mãe, a quem dedica par-
por Belinha. Sou pai de três filhas e te dos seus dias. Procurador do Estado – Fiz ves-
www.ihu.unisinos.br
um filho: a Verônica, psicopedagoga, tibular para a faculdade de Direito e
dedicada à música e ao canto. Integra Origens – Sou filho de Tapes, Rio estudei de 1958 a 1963 na Pontifícia
um coral que eu apelidei de “sol de si”, Grande do Sul. Nasci há 73 anos, de Universidade Católica do Rio Gran-
tal a luz e o som que envolve a gen- mãe Nicolina, escrivã, e pai Severino, de do Sul – PUCRS. Formado, prestei
te quando o ouve. Deu-me um neto, caixeiro viajante. Vivi minha infância concurso para a Procuradoria Geral do
Henrique; a Betânia, advogada e pro- à beira da Lagoa dos Patos. Como na- Estado, que na época se chamava Con-
fessora, dedicada ao estudo e à prática quela época não havia escola de se- sultoria Geral do Estado. Nesse con-
do Direito Urbanístico, muito conhe- gundo grau onde eu pudesse estudar, curso eu podia optar por ser consultor
cida no Brasil pelo que já escreveu a vim para Porto Alegre como estudante ou assistente judiciário naqueles car-
___________________
* Antônio Cechin: graduado em Letras Clássicas (grego, latim e português) e em Ciências Jurídicas e Sociais. Especialista em Economia
e Humanismo no IRFED de Paris, ele já trabalhou, entre outras coisas, como diretor do Colégio Marista São Luís, em São Leopoldo,
Coordenador da Equipe de Catequese Libertadora do Regional Sul-3, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Secretário
particular do Promotor Geral da Fé, no Vaticano e assessor do MST enquanto esse estava ligado às Comunidades Eclesiais de Base (de 1979
a 1984). Confira sua trajetória de vida e sacerdócio na entrevista “Os pobres me evangelizaram”, publicada na edição 223 da revista IHU
On-Line, de 11-09-2007, disponível em http://bit.ly/P97Xvx. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 53


gos públicos então conhecidos como de uma grande injustiça, aí se dá uma quele latifúndio um dos mais exitosos
IHU em Revista
advogados de ofício. Optei por ser flagrante violação da lei, pois, entre assentamentos de reforma agrária do
advogado de ofício, profissional que, outros ordenamentos jurídicos, o Es- país. A partir daí, sempre que chama-
pago pelo Estado, trabalhava para as/ tatuto da Terra, o Estatuto da Cidade do, prestei meus serviços profissionais
os pobres. Hoje, funções como essa e o Código Florestal só admitem que em defesa de sem teto e de sem terra.
são desenvolvidas pela Defensoria a propriedade sobre terra cumpre sua Eu e alguns/as companheiras/os reu-
Pública. Atuei nessa prestação de ser- função social medindo-se o uso que nidos sob a Renap – Rede Nacional de
viço de 1965 a 1975, quando passei à está sendo feito dela em prol do bem Advogadas/os Populares, passamos
defesa do domínio público, dentro da coletivo, não havendo como, então, a atuar em conjunto apoiando os di-
mesma Procuradoria. considerar-se uma tal obrigação cum- reitos humanos fundamentais sociais
prida, com a simples exibição de um dessas multidões pobres.
Ocupação vitoriosa – Em 1979, documento comprobatório de que al-
o Ir. Cecchin estava dando assistência guém é dono de uma fração de terra. Gesto desesperado
à conquista de uma área de terra em Nem a chamada “produtividade” da Em 1998 houve uma ocupação de
Canoas-RS, com extensão de 42 hecta- terra é suficiente para que tal função terras muito significativa em Bossoro-
res, no antigo Prado. A pessoa jurídica seja julgada como obedecida, pois en- ca, RS, na Fazenda Primavera, onde as/
que mantinha a exploração da corri- tre produtividade (em prol do bem co- os sem-terra obtiveram outra vitória
da de cavalos ali tinha abandonado o mum ou coletivo como dizem as leis) emblemática, que deu chance a uma
imóvel. Um grupo formado por mais e produtivismo, medido apenas pelo nova postura dos tribunais em relação
de cem famílias, que não tinha onde sucesso econômico de um latifúndio, a elas/eles e as/os sem teto. Isso por-
morar, ocupou então aquela área. Os que não faz da terra mais do que uma que, no julgamento do recurso judicial
proprietários entraram com uma ação mercadoria como outra qualquer, interposto pelas rés/réus da ação de
de reintegração de posse. O Ir. Antonio existe uma grande diferença. O des- reintegração de posse que tinha sido
me pediu para fazer a defesa daquela conhecimento dessa diferença crucial proposta contra elas/eles, o voto ven-
multidão. A sentença nos foi desfa- é suficiente para matar um agricultor cedor de uma das Câmaras Cíveis do
vorável. Entramos com um recurso, sem terra, como aconteceu com Elton Tribunal de Justiça do Estado chegou a
endereçado ao Tribunal de Alçada do Brum da Silva1 em São Gabriel-RS, no dizer que, quando estivessem em con-
Estado – que ainda existia na época ano de 2009, durante a execução de flito direitos patrimoniais e direitos
– e conseguimos modificar a decisão uma ordem judicial de reintegração de humanos fundamentais, não havendo
judicial em favor das/os moradoras/ posse. outra saída que não a do sacrifício de
es. Foi uma das maiores vitórias que, um deles, o sacrificado deveria ser o
nesse tipo de ação judicial, as/os po- Multidões pobres patrimonial. Isso criou uma polêmica
bres alcançaram. Em 1983, o Tribunal Alguns exemplos, todavia, parece muito grande no Rio Grande do Sul e
de Alçada julgou que o povo poderia terem vencido esse mal do quanto é no Brasil inteiro.
ficar lá. Essa área deve abrigar, hoje, ineficiente o princípio da função so- O certo é que, a partir de então,
milhares de famílias, agora contem- cial na maioria das decisões adminis- os seminários de divulgação de direi-
pladas com progressiva regularização trativas e judiciais. Em 1985, durante tos, doutrinas, publicações de artigos,
fundiária, garantida pelo Estatuto da a ocupação da Fazenda Annoni, em decisões judiciais passaram a lembrar
Cidade e promovida pelo município. Sarandi-RS, as/os sem terra ficaram esse precedente e a função social da
sabendo da ação judicial de Canoas propriedade e da posse começou a
Função social da propriedade, e buscaram socorro no meu trabalho adquirir um novo apoio. Assim, ao
especialmente a da terra profissional. Como resultado da sua lado de muitas derrotas, alcançamos
Esse princípio constitucional está forte mobilização, que contou inclusi- vitórias importantes, algumas até de
longe de merecer toda a atenção que ve com o apoio de igrejas, como a Ca- renovada discussão dos tribunais em
a importância dos seus efeitos exige. tólica, do Pe. Arnildo2, hoje existe na- relação a esse gesto desesperado que
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Tanto nas decisões tomadas pelo po- o povo faz em defesa de sua vida,
der administrativo do Estado como 1 Elton Brum da Silva: sem-terra morto em dignidade e cidadania, quando ocu-
naquelas tomadas pelo Judiciário, ele agosto de 2009, pela Polícia Militar do Rio pa latifúndios mal utilizados ou até
Grande do Sul, durante um conflito com
é um dos menos lembrados nos con- os trabalhadores sem-terra, acampados abandonados no campo e na cidade.
flitos possessórios e reivindicatórios no município de São Gabriel, “a cidade do Sempre se via como crime qualquer
que são levados aos tribunais. Espe- latifúndio”. Confira depoimentos sobre sua gesto de ocupação de terra, urbana
morte nas
cialmente em matéria de terra, onde Notícias do Dia 27-08-2009, em http://bit. ou rural, por parte do povo pobre. E
eu mais atuo, a simples presença de ly/OswtZH. (Nota da IHU On-Line) por incrível que possa parecer, a re-
um papel tipo registro de um imóvel 2 Arnildo Fritzen: pároco de Ronda forma que se pretende no novo Có-
Alta e um dos mentores de Encruzilhada
em nome de um latifundiário tem sido Natalino, centro do acampamento dos digo Penal irá colocar esse gesto de
considerada suficiente para descartar sem-terra. Fazia a ligação entre o MST e desespero de gente faminta e sem
qualquer cogitação da função social do ala progressista da Igreja Católica.
Confira a entrevista com Antonio Cechin
espaço titulado (por sua própria natu- às Notícias do Dia 05-08-2008, disponível também, E assim surgiu Encruzilhada
reza indispensável à vida de todas/os e em http://migre.me/Msgn e intitulada Natalino, notícia publicada em 20-07-2008,
não só das/os proprietárias/os). Além Encruzilhada Natalino, 30 anos. O disponível em http://migre.me/MshO.
nascimento de um acampamento. Leia, (Nota da IHU On-Line)

54 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


teto, como ato de terrorismo. Se isso
“Estabelecemos Felizmente, o povo está obtendo

IHU em Revista
passar no Congresso, assistiremos um algumas vitórias significativas nes-
retrocesso extraordinário em matéria
de tratamento dos conflitos sociais li- um diálogo sa conjuntura jurídica. Por exemplo,
uma área imóvel da Fase, situada no
gados a terra.
E agora está chegando também a com pastorais Morro Santa Tereza, na frente do es-
tádio Beira-Rio, onde serão realizados
modificação do Código Florestal. Por alguns jogos da Copa, foi objeto de
mais que a presidente Dilma Roussef sociais, outras querela na administração do gover-
tenha vetado uma série de disposi- no do estado que precedeu a atual,
tivos, a tendência do Congresso Na- ONGs, sindicatos, pois ela desejava vender ou trocar a
cional, sabidamente fiel à bancada mesma área. Para essa alienação de
ruralista, é de manter uma reforma partidos políticos, 75 hectares oferecia-se a justificava
que vai depredar nossa natureza, vai de obter recursos capazes de custe-
atacar nossos mananciais, tratando a movimentos ar a descentralização da Fase. Nada
terra como uma coisa de proprietário, contra descentralizar aquela unidade
somente, desconsiderando o fato de
ser ela um bem garante de sustento e
populares de perfil de prestação de serviço e humanizar
a pena de crianças e adolescentes
vida de todo o povo. assemelhado ao julgadas/os infratores. A Fase preci-
sa disso, mas não à custa de moradia
Trabalho com o povo
É claro que ainda estamos muito
do MST” de pessoas que ali habitam. E o povo
teve uma reação espetacular. Reuniu-
longe, seja por parte das/os juristas, -se em assembleia no auditório Dante
seja das/os advogadas/os e juízas/es, Barone, da Assembleia Legislativa e,
de termos uma visão hierárquica dos na presença dos representantes do
direitos humanos exercendo preferên- poder público de então, manifestou
cia junto aos direitos patrimoniais. Por trabalho sempre teve uma grande ins-
sua firme disposição de resistir. O go-
isso eu valorizo tanto aquele acórdão piração evangélica. Estabelecemos um
verno viu-se compelido a abandonar
de uma Câmara Cível do Tribunal de diálogo com pastorais sociais, outras
a infeliz ideia. Esse exemplo está sen-
Justiça do Rio Grande do Sul, no caso ONGs, sindicatos, partidos políticos,
do seguido pela população das três
da Fazenda Primavera, em Bossoroca. movimentos populares de perfil asse-
áreas a que fiz referência, nas quais
Conflitos sociais como aquele, melhado ao do MST.
se acredita que nada ocorrerá sem
que sempre terminam em juízo, leva- sua audiência e respeito aos seus di-
Resistência popular
ram minha filha Betânia, em 1996, a reitos como, aliás, determina expres-
Costuma-se atacar quem traba-
sugerir a criação, aqui em Porto Ale- samente o Estatuto da Cidade.
lha como nós, em defesa dos direi-
gre, da ONG Acesso, Cidadania e Di-
tos humanos, como gente atrasada, Tendência mercadológica
reitos Humanos, que se dedica, com a
ideologicamente desorientada, que
assessoria jurídica popular que presta Quando há disposições legais que
atrapalha o progresso impulsionado
às/aos pobres, à divulgação de seus di- são favoráveis aos pobres, é preciso
pelo capital globalizante. Isso está
reitos, por cartilhas e artigos em livros que elas sejam tão ou mais respeita-
acontecendo agora em Porto Alegre,
e redes sociais, de forma a fazer com das do que quando defendem o direi-
com a defesa que estamos fazendo
que todo o fato ocorrido, seja na ad- to patrimonial. Porque não é possível
das multidões pobres afetadas pelos
ministração pública, no Legislativo ou que esse mesmo Estatuto da Cidade,
megaeventos da Copa do Mundo. Es-
no Judiciário, merecendo uma análise que prevê em seu artigo 2º, inciso XIII,
tamos trabalhando em três áreas de
técnica, acadêmica ou com repercus- a obrigatoriedade de a população resi-
Porto Alegre em que tais “investimen-
são universitária, possa ser traduzi- dente em área urbana afetada por in-
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tos” ameaçam seriamente o direito de
do em linguagem acessível para esse tervenção pública, ser ouvida, prossiga
moradia de milhares de famílias: no
mesmo povo. A Acesso não foi criada sendo desrespeitado. Não se lida com
Morro Santa Teresa, na divisa Cristal
para trabalhar para o povo, mas sim o povo como se lida com um imóvel,
e Tronco e na cabeceira do aeroporto,
com o povo. E isso tem clara inspira- ou um animal. Tem que se lidar com o
na chamada Vila Floresta. Sobre o que
ção na Teologia da Libertação3. Nosso povo considerando sua dignidade, sua
está acontecendo nesses locais, a mí-
cidadania. E há, ainda, muitas outras
dia mostra que Porto Alegre irá viver
3 Teologia da Libertação: escola disposições, como a Lei Orgânica do
uma verdadeira mudança para melhor
importante na teologia da Igreja Católica, Município, a Constituição do Estado,
desenvolvida depois do Concílio Vaticano em sua estrutura urbana. E pouco ou
a Constituição Federal, a Medida Pro-
II. Surge na América Latina, a partir da nada se fala a respeito do prejuízo que
opção pelos pobres, e se espalha por todo visória 2220 reconhecendo direitos a
isso irá acarretar para as famílias que
o mundo. O teólogo peruano Gustavo essas multidões pobres. Todas essas
Gutiérrez é um dos primeiros que propõe terão de ser transferidas do local onde
leis são simplesmente ignoradas sem-
esta teologia. A teologia da libertação tem residem, algumas há décadas.
um impacto decisivo em muitos países do pre que o poder público pensa lidar
mundo. Sobre o tema confira a edição 214 com o destino do povo como se esse
da IHU On-Line, de 02-04-2007, intitulada download em http://bit.ly/bsMG96. (Nota nada tivesse a dizer. O maior desafio
Teologia da libertação, disponível para da IHU On-Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 55


que o Direito enfrenta é o de garantir
“A dignidade cialmente a partir das Conferências de
IHU em Revista
o exercício dos direitos humanos fun- Medellín e Puebla, fez toda uma auto-
damentais sociais, previstos no Art. 6º
da Constituição Federal. Alimentação, humana não é análise do seu trabalho e, pelo menos
nos documentos relativos às suas con-
moradia, saúde, educação, transporte,
segurança, lazer, trabalho, previdência uma coisa a ser clusões, tomou posição em favor das/
os pobres sempre que esse fingimen-
social, são direitos que dependem to se exibe como legítimo. É preciso
da ação, e não da omissão do poder atribuída pelos que se atente muito para esse fato,
público. Entretanto, muito frequen- valorizando as relações que o direito
temente são apagados e escondidos outros a cada mantém com a moral, sem respeito
como inexistentes, quando entram em das quais a corrupção política se torna
conflito com essa tendência mercado- pessoa. É algo a endêmica, fiel a quem tem poder eco-
lógica do tipo transformação da terra nômico para mandar sem aparecer. A
em pura mercadoria, como se um bem ser reconhecido, dignidade humana não é uma coisa a
dessa espécie não constituísse fonte ser atribuída pelos outros a cada pes-
de vida para todas/os. é intrínseco, soa. É algo a ser reconhecido, é intrín-
seco, inerente a cada ser humano. O
Efeitos dos golpes de estado
sobre o povo e sua dignidade inerente a cada paradigma do respeito devido a sua
presença na lei, então, não pode nem
O episódio de deposição do pre-
sidente Lugo repete, no Paraguai, o
ser humano” deve ser o mesmo que trata dos direi-
tos patrimoniais.
que já aconteceu no Brasil. Qualquer
representante do poder público que Dilma e a reforma agrária
se atreve a mexer no problema da Confesso minha admiração pelas
terra, como ocorreu com Brizola e medidas do governo na área social,
Jango, é confrontado pelos “terra- países, inclusive os da América Latina. com a criação de políticas compensa-
-tenentes” que, com o poder extra- Um golpe de Estado, portanto, é uma tórias como foi a do Fome Zero, como
ordinário que têm nas mãos, ime- clara violação desse princípio-direito, é a do o Bolsa Família, o Minha Casa,
diatamente, sem respeito ao direito mas todas as ditaduras latino-ameri- Minha Vida. Penso constituírem-se
de defesa, tomam o poder. Lugo foi canas de fins do século passado con- em políticas públicas emergenciais e
julgado em menos de 48 horas, sem denaram-no, pela força, a letra morta necessárias, diante da pobreza e da
condição de defesa de qualquer tipo. e votaram constituições autoprocla- miséria de milhões de brasileiras/os.
E isso tudo sob uma capa de cons- madas como democráticas. Em matéria de reforma agrária, po-
titucionalidade. Aí se passa a im- A necessidade de se reagir con- rém, o atraso na sua execução é ina-
pressão de que a soberania do povo tra tal hipocrisia tem muito a ver com ceitável. Há um esvaziamento notável
paraguaio foi respeitada porque o o nível de conscientização de todo do Instituto Nacional de Colonização
Parlamento votou esse golpe. Há o povo da América Latina, a “pátria e Reforma Agrária – Incra, para o qual
uma clara diferença quando se inter- grande”, como a denomina de forma faltam mínimas condições de cumprir
preta uma lei em favor do capital, e certeira Dom Pedro Casaldáliga4. E a missão que lhe foi confiada. Como
quando se interpreta em favor das/ muito a ver com democracias como todo o povo sem terra do país, estou
os pobres. O assim chamado “de- a nossa, quando esse regime se satis- muito decepcionado com o poder Exe-
vido processo legal” sofre de uma faz apenas com as aparências do que cutivo da União. O Incra está comple-
discriminação histórica quando tra- sejam garantias de um direito efetiva- tamente sucateado. A procuradoria
mita tendo o pobre como investiga- mente emancipatório. A Igreja, espe- jurídica desse órgão, no Rio Grande
do. Quase como regra ele é julgado do Sul, por exemplo, está muito des-
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como tendo desrespeitado esse tipo falcada. Gente que trabalhava com
de processo. Quando é a representa- 4 D. Pedro Casaldáliga: bispo prelado de as desapropriações de imóveis rurais
ção do capital, todavia, que é posta São Félix, Mato Grosso. É poeta e escritor foi deslocada para a Advocacia Geral
de renome internacional. Quando assume
sob suspeita, ultrapassa-se qualquer a prelazia de São Felix, em pleno regime da União – AGU, e “gente histórica”,
formalidade, como aconteceu no Pa- militar, denuncia veementemente o diga-se de passagem, que estava aí há
raguai. A reforma agrária lá preten- latifúndio e defende a reforma agrária e anos. A impressão que se retira disso,
o direito indígena à terra. Foi duramente
dida por Lugo colocava essa repre- perseguido pelo regime militar. Pe. pelo menos à vista do que acontece
sentação no banco dos réus. Deu no João Bosco Penido Burnier, jesuíta, foi no Rio Grande do Sul, é que os direitos
que deu. assassinado ao lado dele, no dia 12 de humanos fundamentais dos sem-terra
outubro de 1976. A edição 137 da IHU On-
Nossa Constituição Federal em Line, de 18 de abril de 2005, publicou uma não são considerados prioridade pelo
seu artigo primeiro afirma que o povo entrevista com Casaldáliga: O próximo governo Dilma.
é soberano, como afirmava também pontificado será um tempo de transição
a que estava em vigor quando Jango
significativo. A edição 89, de 12 de janeiro A economia solidária crimi-
de 2004, trouxe entrevista com o religioso,
foi deposto. Ao que se saiba, o mesmo falando sobre a homologação de terra
nalizada por ser diferente da
preveem as constituições dos demais contínua para índios. (Nota da IHU On- capitalista
Line)

56 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


Desde que o Fórum Social Mun-
“Há um A necessidade de se criar um

IHU em Revista
dial ocupou Porto Alegre pela pri- bode expiatório
meira vez, o empenho por “um outro
mundo possível” passou a defender esvaziamento O bode expiatório de hoje, no
Brasil, é a/o pobre. René Girard6, exa-
uma economia solidária bem diferen-
te da capitalista. Proposta defendida notável do minando vários episódios historiados
na Bíblia, mostra como a violência pre-
por movimentos sociais da mais va-
riada espécie, lutando em favor de Instituto Nacional sente no comportamento de alguém
precisa de um bode expiatório no qual
uma justiça social efetivamente dis-
tributiva, tem atraído para eles con- de Colonização e possa descarregar todo o peso da má
consciência que tenha sobre sua pró-
denação irada, deboche e violência
repressiva. O pior é que, em nome de Reforma Agrária – pria responsabilidade nas relações
sociais que estabelece. Então, tudo
uma certa governabilidade, mantém-
-se um grau de intervenção pública na Incra, para o qual aquilo que não queremos enfrentar,
como é o caso da eficácia dos direitos
terra que não fira a conveniência e a
suscetibilidade dos “terra-tenentes”, faltam mínimas humanos em favor das/os pobres, pre-
cisa encontrar uma motivação que crie
como os latifundiários são chamados
na América Latina, Daí a uma crimina- condições de um juízo de valor negativo contra elas/
eles. Aí, ele é marcado socialmente
lização generalizada dos movimentos
sociais vai um passo apenas, pois o cumprir a missão como mau, viciado, bêbado, vagabun-
do e preguiçoso. É evidente que exis-
avanço de transnacionais sobre o ter-
ritório do país não tem como priori- que lhe foi tem pessoas aproveitadoras no meio
dos mais pobres – mas isso existe em
dade saciar a fome do povo, respeitar
a biodiversidade e o meio ambiente conferida” todas as classes sociais. Paulo Freire7,
como se sabe, ensina que o opressor
defendidos por aquelas organizações mora dentro do oprimido, o que nos
populares. Assim que elas tomam pé,
toda a reação contrária é vista como 6 René Girard (1923): filosofo e antropólogo
crime. MST, Movimento dos Atingi- francês. Partiu para os Estados Unidos
que afirma criar-se em relação a esse
dos por Barragens – MAB, Movimen- para dar aulas de francês. De suas obras,
povo a “sociologia das ausências”, destacamos La Violence et le Sacré (A
to dos Pequenos Proprietários – MPA, violência e o sagrado), Des Choses Cachées
uma espécie de cortina capaz de
Movimento das Mulheres Campone- depuis la Fondation du Monde(Das coisas
separá-lo a ponto de ser considera-
sas – MMC, Comissão Pastoral da escondidas desde a fundação do mundo), Le
do inexistente. Daí a dificuldade de Bouc Émissaire (O Bode expiatório), 1982.
Terra – CPT e outras organizações do Todos esses livros foram publicados pela
se aceitar tal conjuntura, ainda mais
povo veem seus integrantes compa- Editora Bernard Grasset de Paris. Ganhou
sabendo-se ser esse mesmo povo po-
recendo aos tribunais para responder o Grande Prêmio de Filosofia da Academia
bre que nos alimenta, retirando nos- Francesa, em 1996, e o Prêmio Médicis,
por qualquer atitude que tenham to- em 1990. O seu livro mais conhecido em
so pão da pequena propriedade fa-
mado contra essa – aí sim – invasão português é A violência e o sagrado (São
miliar. Às vezes, não consegue cobrir
estrangeira. Assim como os indíge- Paulo: Perspectiva, 1973). Sobre o tema
nem o custo da sua produção. Essa desejo e violência, confira a edição 298
nas e os quilombolas, aquela gente da revista IHU On-Line, de 22-06-2009,
realidade não tem passado desper-
toda ainda sofre um patrulhamento disponível em http://bit.ly/doOmak. Leia,
cebida pelo Conselho de Desenvolvi-
e uma crítica severa de grande parte também, a edição especial 393 da IHU On-
mento Econômico e Social do Estado, Line, de 21-05-2012, sobre o pensamento
da mídia financiada por esse tipo de de Girard, intitulada O bode expiatório, o
nem quanto o governo do estado que
capital. desejo e a vioLência (Nota da IHU On-Line)
o tem ouvido, a respeito – isso é ne-
Há um autor português que nos 7 Paulo Freire (1921-1997): educador
cessário reconhecer – quer valorizar brasileiro. Como diretor do Serviço de
visita regularmente e a quem admiro
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a economia solidária e a as pequenas Extensão Cultural da Universidade de
muito, Boaventura de Sousa Santos5, Recife, obteve sucesso em programas
propriedades rurais. Os seminários de alfabetização, depois adotados pelo
que estão sendo realizados no inte- governo federal (1963). Esteve exilado
5 Boaventura de Sousa Santos (1940): rior do Estado, para audiência direta entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto
doutor em sociologia do direito pela de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi
Universidade de Yale e professor de seus proprietários e discussão das também professor da Unicamp (1979)
catedrático da Faculdade de Economia soluções possíveis para os seus pro- e secretário de Educação da prefeitura
da Universidade de Coimbra. É um dos blemas, a atenção às cooperativas, de São Paulo (1989-1993). No II Ciclo de
principais intelectuais da área de ciências Estudos sobre o Brasil, do dia 30-09-2004,
sociais, com mérito internacionalmente especialmente as pequenas, inclusive o professor Dr. Danilo Streck, do PPG em
reconhecido, tendo ganho especial as que fornecem energia, as medidas Educação da Unisinos, apresentou o livro
popularidade no Brasil, principalmente, do RS mais igual e do RS mais renda, o A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire.
depois de ter participado nas três edições Sobre a obra, publicamos um artigo de
do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. apoio às obras e serviços indispensá- autoria do professor Danilo na 117ª edição,
Confira a entrevista especial concedida por veis à melhoria das condições de vida de 27-09-2004. Confira, ainda, a edição
Boaventura às Notícias do Dia do IHU, em das famílias assentadas pela reforma 223 da revista IHU On-Line, de 11-06-
30-01-2010, disponível em http://migre. 2007, intitulada Paulo Freire. Pedagogo da
me/2K7Hy, intitulada O Fórum Social agrária testemunham esse esforço. esperança, disponível para download em
Mundial desafiado por novas perspectivas. http://migre.me/2peDT. (Nota da IHU On-
(Nota da IHU On-Line) Line)

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 57


ajuda a compreender a atitude de
“O bode criou, ela pode pouco. Por isso estão
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muita gente, não só a das pessoas sendo criadas em cada estado comis-
carentes. Daí a se esconder o quanto
a estrutura de opressão é geradora expiatório de sões semelhantes, como já aconteceu
aqui no Rio Grande do Sul, visando
de pobreza prova em que extensão a
realidade social pode ser manipula- hoje, no Brasil, empoderar a capacidade de inves-
tigação e de responsabilização das
da, a ponto de se admitir pobreza e pessoas que patrocinaram as atroci-
miséria como coisa “normal”. Entre- é a/o pobre” dades praticadas durante a ditadura.
tanto – nem há novidade nisso – com As próprias vítimas daquele regime
raras exceções, o pobre não é pobre, estão se organizando para isso, mas
ele é empobrecido por força de todo o passados tantos anos desde a prática
modo de produção capitalista que te- daqueles crimes, esperava-se mais. A
exemplo, a partir da Universidade de
mos, indiferente ao respeito devido às Comissão de Anistia com as indeni-
Brasília, graças ao apoio que recebe
pessoas e à natureza. zações que já determinou pagar tem
do seu reitor José Geraldo de Souza
Constitui álibi oportunista con- dado às famílias dos desaparecidos e
Jr.9, conta com divulgação e capilari-
tra essa constatação sociológica o ar- mortos pelo regime militar ao menos
dade capaz de ouvir e defender víti-
gumento segundo o qual a economia algum sinal de que o país lhes deve
mas de injustiças históricas, aprofun-
socialista é pior. Será? Se o bode está desculpas pelos males que praticou.
dar estudos sobre assessoria jurídica
aqui ou lá, o que parece indispensável Os países vizinhos ao Brasil já acerta-
popular, estabelecer um diálogo críti-
é afastar-se uma saída escapista que ram as contas com seu passado. Nós
co com toda a sociedade, identificar
pode estar na base dessa discussão e ainda não. Manter nomes de ditado-
causas de desigualdade social disfar-
partir-se para um modelo de econo- res em logradouros públicos e outras
çadas em leis interpretadas como jus-
mia solidária como aquele proposto homenagens desse tipo, por exem-
tas, mas de aplicação injusta. Sempre
pelo Fórum Social Mundial. plo, só contribui para acentuar essa
que o/a juiz/a não toma consciência
vergonha. É difícil se encontrar algum
Juiz, um servidor público de que o argumento de autoridade
monumento que valorize quem rea-
Quando insisto em relembrar o não pode substituir a autoridade do
giu contra a opressão. A história vai
conflito histórico que se repete en- argumento, acaba por trair a própria
mantendo, assim, um perfil oficialis-
tre direitos humanos fundamentais razão de ser do serviço que deve ao
ta de apoio à violência praticada no
e direitos patrimoniais, falo sobre povo.
passado.
a dificuldade que os primeiros têm, Friedrich Miller escreveu um livro
novamente em questões relaciona- a que deu o título de Quem é o povo, Monocultivo do eucalipto
das com a terra, em se valer do Ju- no qual ele mostra que grande parte A pretexto de se estimular a silvi-
diciário. Em geral, a/o pobre conhece das decisões judiciais se inspira em po- cultura, o bioma Pampa10 está sendo
a/o delegada/o de polícia, mas não sições hermenêuticas que obedecem invadido pelo eucalipto e o papel da
conhece o/a juiz/a, pois este/a, exce- não aos códigos, mas a um “metacó- árvore substituído pela árvore capaz
ções à parte, muitas vezes entende o digo”, algo que está acima deles, uma
exercício do poder próprio da autori- cultura dominante, ideologicamente
dade como aquele que deve manter acomodada para “não se envolver”, 10 Bioma pampa: nome de origem
frequentemente preconceituosa. Não quechua genericamente dado à região
distância do povo. Não faltam reações pastoril de planícies com coxilhas, entre o
contra esse tipo de atitude. Militan- há dúvida de que a/o pobre é uma víti- estado brasileiro do Rio Grande do Sul, as
tes de defesa dos direitos humanos, ma costumeira desse tipo de decisões. províncias argentinas de Buenos Aires, La
Pampa, Santa Fé, Entre Ríos e Corrientes
movimentos organizados sob ideários
Acerto de contas com o passado e a República Oriental do Uruguai. É
emancipatórios do tipo “direito alter- também chamada de campos sulinos.
Em função da delimitação dada Ecologicamente, é um bioma caracterizado
nativo”, e “direito achado na rua”,
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à Comissão da Verdade, pela lei que a por uma vegetação composta por gramíneas
entre outros, com críticas fundamen- e plantas rasteiras, sendo encontradas
tadas, especialmente endereçadas ao algumas árvores e arbustos próximos a
positivismo jurídico, mesmo descon- edição 305 da IHU On-Line, de 24-08-2009, cursos d’água, que não são abundantes.
intitulada O direito achado na rua. Alguns Comparados às florestas e às savanas,
siderados por juristas de nomeada, apontamentos, disponível em http://bit. os campos têm importante contribuição
empenham-se em mudar esse tipo ly/NXjd0s. (Nota da IHU On-Line) na preservação da biodiversidade,
de postura. Graças a eles, entretanto, 9 José Geraldo de Souza Jr.: professor e principalmente por atenuar o efeito estufa
reitor da Universidade de Brasília – UNB, e auxiliar no controle da erosão. Sobre o
boa parte de juízas/es começa a se advogado graduado pela Associação de pampa, confira a edição 247 da IHU On-
dar conta de que alguns paradigmas Ensino Unificado do Distrito Federal, mestre Line, de 10-12-2007, intitulada O Pampa
de interpretação dos fatos, das leis e em Direito pela Universidade de Brasília e o monocultivo do eucalipto, disponível
e doutor em Direito (Direito, Estado e em http://bit.ly/tcF9AS. Outro tema afim
do direito estão viciados por uma cul- Constituição) pela Faculdade de Direito da é tratado na edição 183, de 05-06-2006,
tura jurídica de opressão e preserva- UnB. Atualmente é membro de associação Floresta de Araucária: uma teia ecológica
ção de injustiça social, que pode ser corporativa da Ordem dos Advogados do complexa, disponível em http://bit.ly/
Brasil. Confira a entrevista Princípios bUgV2J. Leia, também, a edição 27 do
vencida. O direito achado na rua8, por de uma organização social da liberdade Cadernos IHU Em Formação, cujo título
concedida à edição 305 da revista IHU On- é Monocultura do eucalipto. Deserto
Line, de 24-08-2009, disponível em http:// disfarçado de verde?, disponível em http://
8 Sobre o direito achado na rua, confira a bit.ly/P96uFs. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/K1OjgE. (Nota da IHU On-Line)

58 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


de se transformar em papel. Biólogos
“O pobre não lo Bonavides. Dos estrangeiros, dou

IHU em Revista
e agrônomos advertem ser esse bioma muita atenção à obra de Boaventura
único no mundo. Isso tem sido des-
considerado por grupos econômicos é pobre, ele é de Sousa Santos, José Joaquim Go-
mes Canotilho, Peter Haberle, Antonio
transnacionais, empenhados em mon-
tar empresas gigantescas, de fachada, empobrecido por Castanheira Neves, Norberto Bobbio,
Stefano Rodota, Luigi Ferrajoli, Pietro
passando por ser brasileiras e assim Barcelona, Pietro Perlingieri, Maria
burlando as leis que defendem nossas força de todo o José Añon Roig, Agnes Heller, Hannah
áreas de fronteira. Tramitam projetos Arendt, Juan Ramon Capella. Leituras
de lei no Congresso nacional visando modo de produção que dão valiosa sustentação aos di-
até diminuir o tamanho da faixa de reitos humanos são as dos teólogos
fronteira, para que empreendimen- capitalista que da chamada teologia da libertação,
tos desse tipo possam eliminar toda a como, entre outros, os irmãos Boff,
biodiversidade ali presente. Isso mos- temos, indiferente Frei Betto, Gustavo Gutiérrez, Oscar
tra o quanto a soberania do povo é Romero, Pedro Casaldaliga, Tomás
obrigada a ceder diante do interesse
mercantil dessas transnacionais como
ao respeito devido Balduino, Inacio Ellacuría, Jon Sobrino,
Luiz Carlos Susin, José Comblin, Enri-
a Aracruz, a Stora Enzo e a Votorantim. às pessoas e à que Dussel, José Antonio Pagola, Car-
los Mesters e Jung Mo Sung.
Decepção
Não se pode negar que há um
natureza”
progressivo descrédito da sociedade
civil na política e nos políticos. Por Leia mais...
mais que os programas dos partidos
se digam fiéis à democracia, às ações >>Confira outras entrevistas
em defesa da cidadania e da dignidade Autores favoritos concedidas por Jacques Távora
humana, na prática a disputa do poder Devo muito a autores que, direta Alfonsin à IHU On-Line:
pelo poder faz esquecer esse ideário. ou indiretamente, me ajudam a pres-
tar os meus serviços profissionais. Do • Código Penal e a justiça social. En-
Em época de eleição, essa distorção
se acentua de maneira inaceitável. ponto de vista estritamente jurídico, trevista com Jacques Távora Alfon-
Em nome da vitória, assiste-se a uma me inspiram de modo particular as/ sin. Notícias do Dia 07-08-2012,
promiscuidade de alianças as mais in- os advogadas/os e juristas que sofre-
disponível em http://bit.ly/PCbVem
concebíveis entre partidos de progra- ram na época do regime militar e que
mas diferentes e até contrários entre não cederam um centímetro na defesa • Plano de Sustentabilidade Finan-
si. Quando um partido político vive em dos direitos humanos, desde Raymun- ceira. A proposta de Tarso Genro.
função somente da eleição, em vez de do Faoro, Fábio Konder Comparato,
Entrevista especial com Jacques Al-
ajudar, ele só atrapalha o eleitorado. Hélio Bicudo, Dalmo Dallari. Aprendo
Divide e separa o povo não em função muito com gente aqui do Estado. Er- fonsín. Notícias do Dia 07-06-2011,
dos seus direitos e dos seus interesses, nildo Stein, Lenio Streck (a quem devo disponível em http://bit.ly/PyUxeG
mas sim de conveniências casuísticas e a orientação na minha dissertação • Da sociedade para o governo: os
temporárias que, amanhã, vão mudar de mestrado), Eugenio Facchini Neto,
de novo. Nisso desfaz instâncias his- Ingo Wolfgang Sarlet, Rui Portanova, caminhos do Conselhão do Tarso.
tóricas construídas por outras organi- Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, José Entrevista especial com Jacques Al-
zações populares. Aliás, o apetite que Carlos Moreira da Silva Filho, Tarso fonsin. Notícias do Dia 04-02-2011,
demonstra para “faturar” alguma con- Genro, Ruy Rosado de Aguiar Junior,
www.ihu.unisinos.br
Betânia de Moraes Alfonsin, entre disponível em http://bit.ly/NARoNa
quista popular assemelha-se a uma
verdadeira apropriação indébita. Não outras/os, publicaram livros e artigos • Reforma agrária e limitação da pro-
por acaso, a demora em se dar anda- que servem de sólido apoio para o priedade: requisitos para justiça no
mento, no Congresso Nacional, às leis meu trabalho. Dos que já faleceram,
campo. Entrevista especial com Ja-
indispensáveis para uma reforma po- não posso deixar de lembrar Ruy Cirne
lítica comprova a resistência mantida Lima, Ovidio Araujo Baptista da Silva e cques Alfonsin. Notícias do Dia 16-
por tais vícios. Felizmente, existem va- Ernani Maria Fiori. 08-2010, disponível em http://bit.
liosas exceções a tal tipo de compor- Leio e aprendo muito também
ly/Scyb3J
tamento, como aquela de a/o eleita/o com autores de outros estados dedi-
tratar o seu mandato como imperati- cados não só ao direito como à filoso- • Violência contra os movimentos
vo, prestando contas periodicamente fia, à sociologia e à ética. Lembro João sociais. Entrevista especial com Ja-
ao seu eleitorado quanto àquilo que Baptista Herkenhoff, José Geraldo de cques Alfonsin. Notícias do Dia 20-
está fazendo ou deixando de fazer em Sousa Junior, Carlos Frederico Marés,
seu favor. Luiz Edson Fachin, José Eduardo Faria, 02-2009, disponível em http://bit.
José Reinaldo de Lima Lopes, Pau- ly/Oswk8G

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 59


Entrevista de Eventos
IHU em Revista

“Sou mais feliz quando


estou de bici”
Na opinião de Marcelo Sgarbossa, o lema da felicidade, hoje, deveria ser “trabalhe
menos, com prazer e mais devagar – consuma menos, com prazer, e mais devagar, e
viva melhor, com prazer e viva mais”

Por Graziela Wolfart

V
ocê ou alguém do seu convívio cos- tivo à compra de automóveis as cidades vão
tuma usar a bicicleta como meio de ficar ainda mais caóticas e poluídas. Precisa-
transporte ou até eventualmente para mos de gestores que tenham visão de futuro
um passeio ao ar livre? Na cultura do automó- e comecem a realizar políticas de desestímulo
vel, é cada vez mais raro pessoas que redes- ao uso do automóvel e incentivo ao transpor-
cubram o prazer de pedalar. Pois esse é justa- te coletivo – com energias limpas – e ao uso
mente o tema da fala de Marcelo Sgarbossa: da bicicleta”.
“Mobilidade urbana: a bicicleta como meio de Marcelo Sgarbossa possui graduação em
transporte sustentável”. Ele estará na próxima Direito pela Pontifícia Universidade Católica
quinta-feira, dia 23 de agosto, das 17h30min do Rio Grande do Sul – PUCRS, é mestre em
às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Compa- Análise de Políticas Públicas pela Universida-
nheiros, no IHU abordando o assunto, sobre de de Turim, Itália, e doutorando em Direito
o qual concedeu a entrevista a seguir para a pela Universidade Federal do Rio Grande do
IHU On-Line, por e-mail. O advogado e pro- Sul – UFRGS. Atualmente é corregedor geral
fessor universitário defende que a bicicleta é da Superintendência dos Serviços Penitenciá-
um meio de transporte sustentável por vários rios (Susepe) do Rio Grande do Sul e diretor
motivos. “O principal talvez seja, além do não do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais
uso de combustíveis, o fato de ser o meio de – LAPPUS, de Porto Alegre (www.lappus.org).
transporte mais eficiente que existe: o ciclista Advogado e professor universitário, Sgarbos-
se movimenta levando consigo cerca de 10 kg, sa tem trajetória acadêmica e profissional
enquanto que, para transportar uma pessoa, marcada pelo estudo e militância em Direitos
o automóvel precisa gerar energia para mover Humanos e Políticas Públicas. Integra o movi-
www.ihu.unisinos.br

uma tonelada. A bicicleta também é sustentá- mento Massa Crítica Porto Alegre, que incen-
vel do ponto de vista econômico, social e até tiva o uso da bicicleta. Mais informações em
emocional”. E lamenta: “infelizmente, no Bra- http://massacriticapoa.wordpress.com/ .
sil, ainda não chegamos ao fundo do poço em Confira a entrevista.
termos de mobilidade urbana. Com o incen-

IHU On-Line – Quais os elemen- veis, o fato de ser o meio de transporte ponto de vista econômico, social e até
tos que fazem da bicicleta um meio mais eficiente que existe: o ciclista se emocional.
de transporte sustentável? movimenta levando consigo cerca de IHU On-Line – Qual o incentivo
Marcelo Sgarbossa – A bicicleta 10 kg, enquanto que, para transportar que os governos e as políticas públi-
é um meio de transporte sustentável uma pessoa, o automóvel precisa ge- cas na área do transporte oferecem
por vários motivos. O principal talvez rar energia para mover uma tonelada. para o uso da bicicleta como meio de
seja, além do não uso de combustí- A bicicleta também é sustentável do transporte?

60 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


Marcelo Sgarbossa – Os gover-
“Tenho usado o turo e comecem a realizar políticas de

IHU em Revista
nos – e, portanto, as políticas públicas desestímulo ao uso do automóvel e
– estão voltados para a cultura “carro-
cêntrica”. Não é só no Brasil que isso
meu automóvel incentivo ao transporte coletivo – com
energias limpas – e ao uso da bicicleta.
ocorre. Ou seja, ter um carro é um sím-
bolo de status social e pertencimento
como exceção, não IHU On-Line – Quais as novidades
ao grupo que supostamente “venceu
na vida”. Uma visão equivocada e que
como regra” do trabalho da Massa Crítica Porto Ale-
gre? O que de mais rico e interessante
não combina com uma justiça da ocu- o grupo tem conseguido realizar?
pação dos espaços públicos, tão ne- lhar de “bici”, combinando com outros Marcelo Sgarbossa – A Massa
cessária nos dias atuais. Em razão dis- colegas de trabalho. Isso já ocorre aqui Crítica é uma celebração da vida, da
so, as políticas públicas nesta área são em Porto Alegre, tornando o grupo liberdade e da ocupação dos espaços
pífias: as poucas ciclovias existentes mais visível e, portanto, mais seguro. públicos pelas pessoas. É maravilhoso
são voltadas apenas para o lazer, re- poder pedalar por Porto Alegre num
velando a ultrapassada concepção da IHU On-Line – Como entender a grupo de mais de mil pessoas. É como
bicicleta como um brinquedo. E onde cultura de fomento ao uso do auto- se você sentisse, ao menos uma vez por
as ciclovias não são para lazer, são fei- móvel aqui no Brasil? mês, ao menos por duas horas, que a
tas “para não atrapalhar os carros”. Ci- Marcelo Sgarbossa – Há que se cidade foi feita para as pessoas, não
clovias em cima das calçadas, ciclovias admitir que o automóvel é um bem para as máquinas. Mas a Massa não é
nos canteiros, e assim por diante. maravilhoso. Eu tenho um e é muito um movimento ou uma organização.
útil em certos momentos. Mas pro- Não há reuniões da Massa, líderes ou
IHU On-Line – Qual a segurança curo não utilizar no dia a dia. Ou seja, algo assim. O que há são associações
que os cidadãos brasileiros e gaúchos tenho usado o meu automóvel como de ciclistas como a Mobicidade e ciclis-
dispõem no trânsito quando se loco- exceção, não como regra. No Brasil, a tas militantes, os chamados “cicloati-
movem como ciclistas? ideia de velocidade esteve sempre as- vistas”, que lutam por direitos de todos
Marcelo Sgarbossa – Em termos sociada com virilidade, riqueza, emo- e por uma nova visão de cidade. Estes
percentuais, há poucos acidentes com ção. As mortes nas estradas e o sofri- grupos já conseguiram muitas coisas:
ciclistas. Mas as pessoas não são nú- mento já deveriam ter sensibilizado ações judiciais em favor das ciclovias,
meros. A maioria dos motoristas res- os legisladores para restringir a todo cooperação com o Detran para políti-
peitam os ciclistas, mas se apenas um tipo de imagem que traga esta falsa cas voltadas para o uso da bicicleta; co-
desrespeitar, as consequências podem ideia de que velocidade é um bem. operação para ensinar outras pessoas a
ser graves. Lei já existe: o Código de Uma vida baseada no fast food é uma andar de bicicleta (Escola da Bicicleta),
Trânsito Brasileiro, em seu artigo 201, vida infeliz. O lema da felicidade, hoje, cooperação para aprender a arrumar a
exige que o motorista passe a, pelo deveria ser “trabalhe menos, com pra- própria bicicleta (Oficina Comunitária);
menos, 1,5m de distância do ciclis- zer e mais devagar – consuma menos, acompanhamento de pessoas que têm
ta. Eu não me sinto ameaçado quan- com prazer, e mais devagar, e viva me- medo de andar no trânsito (bicianjo);
do ando no trânsito de Porto Alegre, lhor, com prazer e viva mais”. discussões sobre feminismo (As Cícli-
mas isso é um sentimento individual, cas); pressão sobre os gestores para
e não pode servir como regra geral. IHU On-Line – Em que sentido realização de políticas mais eficientes
Lembrando que fui ciclista profissional podemos aprender com a experiên- e adequadas e assim por diante. Mas
de competição no passado, e por isso cia europeia de uso da bicicleta como é preciso lembrar sempre que, se a www.ihu.unisinos.br
não sirvo como parâmetro, pois já me meio de transporte? Massa é celebração, tem que celebrar.
acostumei a andar no trânsito. Marcelo Sgarbossa – A Europa As festas organizadas por pessoas que
tem toda uma tradição com o uso da participam da Massa Crítica são ótimas.
IHU On-Line – Em que ambientes bicicleta. Mesmo assim, na Holanda,
o uso da bicicleta é mais recomendá- por exemplo, as ciclovias só foram IHU On-Line – O senhor costuma
vel e até viável? feitas depois de muito ativismo, em usar a bicicleta em seu cotidiano? Em
Marcelo Sgarbossa – A lógica do especial de mães que tiveram seus fi- que situações?
compartilhamento da via é a correta. lhos mortos no trânsito. Infelizmente, Marcelo Sgarbossa – Sim, eu uso
Nesse sentido, as ciclovias são um mal no Brasil, ainda não chegamos ao fun- todos os dias, salvo quando chove ou
necessário, pois causam uma segrega- do do poço em termos de mobilidade tenho que carregar algo que a bici não
ção. No contexto histórico atual, eu re- urbana. Com o incentivo à compra de comporta. Vou para o trabalho, dou
comendaria o uso da bicicleta em ciclo- automóveis as cidades vão ficar ainda aula na faculdade, vou ao Fórum. En-
vias ou em grupos. Em alguns países há mais caóticas e poluídas. Precisamos fim, sou mais feliz quando estou de
incentivo para as pessoas irem traba- de gestores que tenham visão de fu- bici.

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 61


IHU Repórter
IHU em Revista

Petronila Libana Cechin


Por Thamiris Magalhães

“S
ou determinada e exigente comi- Libana Rauber Cechin, em entrevista concedi-
go mesma e na minha profissão, da pessoalmente à IHU On-Line. De bem com
porque, como profissional que lida a vida, a docente, que trabalha há 38 anos nes-
com a saúde do ser humano, isso me impõe ta instituição, se diz contente, pois tudo aqui-
uma responsabilidade muito grande. Essa lo que é e possui são conquistas que realizou,
responsabilidade também está presente jun- porque sempre colocou um foco em sua vida.
to dos alunos, uma vez que auxilio na forma- Seu maior sonho é que a pobreza neste mundo
ção ética e profissional de qualidade desses possa se extinguir aos poucos. “Que as pessoas
futuros profissionais que irão lidar com seres possam ter o pão de cada dia. E que exista um
humanos fragilizados em sua saúde”, frisa a pouco mais de paz entre os povos.” Conheça
professora do curso de Enfermagem Petronila um pouco mais sua história de vida.

Origem – Nasci dia 29 de junho Atualmente ela trabalha em uma em- Faculdade foi integrada na Universida-
de 1942. Tenho 70 anos. Sou de uma presa que elabora vacinas contra o de do Vale do Rio dos Sinos em 1974,
família de origem alemã. Nasci num câncer, aqui em Porto Alegre. Tenho o que constitui hoje o Curso de Gradu-
distrito chamado Vigia, que perten- uma irmã, Zita Maria Rauber Pedro- ação em Enfermagem – Unisinos. Em
ce ao município de São Sebastião do ti, que é professora aposentada; e seguida, realizei um curso de especia-
Caí. Minha família é de lá. Meus pais dois irmãos, sendo que o mais velho, lização em Enfermagem Obstétrica na
são falecidos. Minha mãe faleceu há Arcênio Inácio, faleceu há um ano, e Universidade Federal do Rio Grande
35 anos, com 66 anos. E meu pai mor- Vicente José Rauber é engenheiro e do Sul – UFRGS e, como fui convidada
reu há dois anos, com 97 anos, muito atualmente é diretor financeiro da Re- para lecionar no curso de auxiliar de
lúcido. Ele se coordenava sozinho. O finaria em Canoas – Refap. enfermagem, que hoje são técnicos
grande hobby dele, nos últimos anos, de enfermagem, percebi que tinha
era jogar carta e ler jornal em alemão, Incentivo – Meus pais sempre uma boa formação técnico-científica
que era editado em São Paulo. Era incentivaram meus irmãos e a mim na área, mas me faltava uma forma-
um jornal bem compacto, ocupando para prosseguir os estudos. Tanto as- ção pedagógica. Então, busquei o Cur-
www.ihu.unisinos.br

praticamente a semana para a leitura. sim que todos nós somos formados. so de Licenciatura Plena na Pontifícia
Na realidade, se ele não tivesse tido Então, com 13 anos, após concluir o Universidade Católica do Rio Grande
uma queda, provavelmente estaria primário (hoje fundamental) vim para do Sul – PUCRS.
vivo ainda hoje, porque era muito São Leopoldo estudar no Colégio São
saudável. José, fazer o Ginásio e em seguida Mestrado – Posteriormente, com
cursei contabilidade no Colégio São a exigência das universidades, que
Vida pessoal – Sou casada. Meu Luiz, em São Leopoldo, como segundo precisavam de mestres e doutores, fiz
marido, Ademar Rossi Cechin, é au- grau, o que hoje corresponde ao ensi- mestrado na Universidade Federal de
tônomo. Moramos em Porto Alegre. no médio. Santa Catarina – UFSC, na área da Saú-
Temos duas filhas: Cláudia, fonoaudi- de da Mulher. Na verdade, nos anos
óloga, concursada pela Secretaria de Formação – Fiz Enfermagem na 1970 fui selecionada para uma vaga
Saúde de Bom Princípio, e Giovana, Faculdade de Enfermagem Madre no mestrado na UFRGS, mas como
farmacêutica, que fez pós-graduação Anna Möller, pertencente às Irmãs eu era mais jovem, meu foco no mo-
na Universidade de São Paulo – USP. Franciscanas, em Porto Alegre. Essa mento não era exatamente prosseguir

62 SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 | EDIÇÃO 399


IHU em Revista
te, tudo parece impossível, cito que
“Deus Proverá”.

Sonho – Que a pobreza neste


mundo possa se extinguir aos poucos.
Que as pessoas possam ter o pão de
cada dia, no sentido mais amplo. E que
exista um pouco mais de paz entre os
povos.

os estudos e sim viajar. Então, realizei Hospital Presidente Vargas, ambos em Música – Gosto de clássicas e po-
uma viagem para a Europa. Porto Alegre. Também atuei na área pulares com cunho alegre. A música
privada como enfermeira obstétrica me dá paz e me eleva, deixa o ambien-
Academia – Entrei em 1974 na no Hospital Ernesto Dornelles. Além te leve, alegre.
Unisinos, portanto, trabalho há 38 da área hospitalar, fui concursada pela
anos nesta instituição, no Curso de En- Secretaria da Educação, atuando na Unisinos – É uma extensão da
fermagem. Minhas disciplinas sempre equipe de profissionais da saúde pres- minha família. Na realidade, se eu for
eram voltadas para a área da saúde tando atendimento às crianças e ado- fazer os cálculos, grande parte das ho-
da mulher, e na área da neonatologia. lescentes da rede escolar do Estado, ras de minha vida aconteceram dentro
Lecionei também no curso de Biolo- em Porto Alegre. da Unisinos. Ela representa para mim
gia, na disciplina anatomia humana,
uma instituição onde cresci muito,
na Unisinos e na UFRGS, como profes- Lazer – Gosto de ler. Cinema. profissional e pessoalmente. É um lu-
sora substituta, na saúde da mulher. Viagem. gar que me ofereceu muita oportuni-
Em 1994, fui eleita pelo colegiado do
dade, tanto na minha vida profissional
curso chefe de departamento, cujo Livro – Gosto de livros que con- como na minha vida pessoal. Tenho
cargo foi extinto em 1995, quando, tem a história da vida das pessoas e um grande carinho e agradecimento
então, a Unisinos criou as equipes de da cultura dos povos. Esses são dois por esta instituição, porque ela apos-
coordenadores. A partir daquela data focos que sempre procuro nas minhas tou e confiou na Libana, tanto como
até hoje componho a equipe de coor- leituras. docente quanto como coordenadora,
denação do Curso de Graduação em
uma vez que estou há muitos anos na
Enfermagem. Além disso, desde 1991, Filme – Seguem praticamente a
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coordenação. Vir para a Unisinos para
coordeno o Curso de Especialização mesma linha dos livros. Não gosto dos mim sempre é um prazer, porque aqui
em Enfermagem Obstétrica, que se que têm guerra e violência; prefiro temos um excelente ambiente de tra-
encontra hoje na décima edição. algo mais alegre e humorístico. balho e pessoas que colaboram muito
umas com as outras – aqui, criamos
Atuação na enfermagem – Na Religião – Sou católica. Eu cons- verdadeiros amigos.
minha trajetória profissional, além truí minha espiritualidade na fé, pois
de docente, também trabalhei com temos momentos em nossa vida que IHU – É um veículo muito impor-
enfermeira assistencial, sempre na são difíceis e são nestes momentos tante e que projeta a Unisinos para
área da neonatologia e da obstetrícia. que a fé nos ilumina e nos dá o norte. fora dos seus muros, porque seleciona
Concursada pelo Ministério Exército e Ela nos dá forças para podermos atra- pessoas que trazem conhecimentos
pelo Instituto Nacional de Previdên- vessar essas dificuldades. Nesse senti- muito interessantes e importantes,
cia Social – INPS, atuei em diferentes do, tenho uma frase que para mim é ampliando os conhecimentos das pes-
períodos no Hospital do Exército e no impactante – quando, humanamen- soas que acompanham sua trajetória.

EDIÇÃO 399 | SÃO LEOPOLDO, 20 DE AGOSTO DE 2012 63


Contracapa
IHU em Revista
Bicicleta como meio de transporte sustentável
Você ou alguém do seu convívio costuma usar
a bicicleta como meio de transporte ou até eventual-
mente para um passeio ao ar livre? Na cultura do au-
tomóvel, é cada vez mais raro pessoas que redescu-
bram o prazer de pedalar. Pois esse é justamente o
tema da fala de Marcelo Sgarbossa: “Mobilidade
urbana: a bicicleta como meio de transporte susten-
tável”. Ele estará na próxima quinta-feira, dia 23 de
agosto, das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ella-
curía e Companheiros, no IHU, abordando o assunto,
sobre o qual concedeu uma entrevista publicada na
presente edição da IHU On-Line.

O desafiador debate entre fé e ciência


O que esperar de um possível?, no próximo dia 3 de outubro, às 19h30min.
embate entre fé e ciência? Será um debate entre o Prof. Dr. Marcelo Gleiser,
Uma tem algo a contribuir do Dartmouth College – Hanover/EUA e o Prof. Dr.
com a outra, ou são ape- George Coyne, do Vatican Observatory, University of
nas elementos opositores Arizona/EUA. A atividade integra a programação do
diante dos fenômenos da XIII Simpósio Internacional IHU - Igreja, Cultura e So-
vida? ciedade. A semântica do Mistério da Igreja no con-
texto das novas gramáticas da civilização tecnocientí-
Aos interessados e às fica, que ocorre de 2 a 5 de outubro de 2012.
interessadas, a Unisinos
será o espaço da palestra Mais informações em http://bit.ly/KRlwl8
Fé e ciência: um diálogo

Ciclo de Estudos sobre Sociedade Sustentável


Com o objetivo de refletir sobre as perspectivas
de emergência de uma sociedade sustentável, no
sentido de evidenciar, teoricamente, a necessidade
de um novo paradigma civilizacional, prospectando
alternativas sustentáveis de organização social e
econômica, capazes de contribuir à sustentabilidade
do Planeta e da sociedade, o IHU promove o Ciclo
de Estudos em Educação a Distância (EAD) – Socie-
dade Sustentável. O primeiro módulo inicia hoje, dia
20 de agosto e vai até o dia 08 de setembro, com
o tema “O estado atual da crise civilizacional: onde
estamos?”. Mais informações podem ser obtidas em
http://bit.ly/NWRJVc

twitter.com/ihu bit.ly/ihufacebook

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