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Índice
Introdução ... ... ... .. .. .. ... ... .. .. ..... .. .. .. .. ... .. ... .. .. .. ..... .. .. ... ... ... .. .. .... .... .. .. . 11
7
Marie-France Castarede
] 31
CAPÍTU LOV: pARA UMA ABORDAGEM PSICAN ALÍTICA DA VOZ
133
Freud e a música.............................................................................
139
Voz entre corpo e
.. .. .. ... 148
Voz, espaço transic ional . ... ... . ... . ... . .... .. . .. .. .... .. .. .. .. . .. .. .. ... .. . .. ..
smo.... ........... ........... ........... ........... ........... ........... ....... 150
Voz e narcisi
dade... ........... ........... ........... ........... ........... ........... ...... 161
Voz e sexuali
17 5
CAPÍTU LO VI: As FORMAS CULTURAIS DO CANTO ........... ........... ........... .
O canto religio so ............................................................................
177 Aux voix cheres qui se sont tues
179
A ópera: castrati e divas .................................................................
...... 194
O lied ........................................................................................ Mon rêve familier
porâne o .. .. .. .. .. .. .. .. .... ..... .. .. .. .. .. .. .... .. .. .. .. .. .... .. .. .. ... .. 199
O canto contem
O canto como actividade cultural e o papel da cultura na econom
ia Je, fais souven~ ce rêve étrange et pénétrant
psíquic a . . .. .. .. .. .. . . .. .. .. .. .. ... . .. .. ... .. .. ... . .. ... .. .. .. ... .. . .. . .. .. . .. ... .. . .. .. ... . 202 D un~ f~mme mconnue; et ~ue j 'aime et qui m' aime,
Et qm n, est,_ chaque fms, m tout à fait la même
N1 tout a fmt une autre, et m'aime et me comprend.
CAPÍTU LO A VOZ NO TRATAMENTO PSICAN ALÍTICO
VII:
........... ........... ... 217 Car elle me comprend, et mon creur, transparent
E A EXPERIÊ NCIA DO CANTO ........... ........... ...........
A voz, «meio de comun icação » no tratam ento psicana lítico..
....... 219 Pour elle seule, hélas! cesse d'être un probleme
. .. .. .. . . .. .. . . . . .. . . .. . .. .. . . . . . . .. . .. .. . . . . . . . . .. .. . . . .. . . . .. . . . . ... ... 225 Pour elle seule, et les moiteurs de mon front blême
Canto e psican álise Elle seule les sait rafraichir, en pleura11t. '
229 Est-elle brune, blonde ou rousse? - Je l'ignore.
CAPÍTU LO VIII: A VOZ NA ESSÊNCIA DA PERSONALIDADE .. .. .. ...... .. .. .. .. ..
Patolo gia mental da voz............................................................
...... 231 Son nom? Je me souviens qu'il est doux et sonore
........... ........... ........... ........... . 247 Comme ceux des aimés que la Vie exila.
A terapêutica......................................
foniatr ia ........... ........... ........... ........... .. 248
Uma aborda gem médica: a Son regard est pareil au regard des statues
... .. .... . 248
As terapias vocais ... .. .. . .. ... .. ... . .. .. .. ... .. .. .. ... .. .. .. .. ... .. ... .. ... .. .. . .. E~. pour. sa voix, lointaine, et calme, et gra~e, elle a
(métod o de Yva Barthé lémy) ........... ........... ........... 249 L mflexwn des voix cheres qui se sont tues
O canto tónico
ge), da
A sintoni a ou o canto das forças primor diais (Henri Chédor
........... ......... 250 Paul Verlaine
escola do Roy Hart Theate r ........... ...................... (Poêmes saturniens: Mela11cholia)
mal de viver (Rolan d
A análise da melodi a de cada um: o canto do
.. ... . . .. ... .. . . . .. . . . .. .. . .. . .. .. .. .. . . .. 251
Magna bosco) . ... .. .. .. .. .. ... . .. .. .. ... ... ...
251
O grito primal .. .. .. .. .. .. .. .. .. ...... .. .. ...... .. .. .. .. .... .............. .... .. .. .. ...........
...... 253
A bioene rgia .............................................................................
8
Introdução
11
Marie-France Castarede
para o
tarde para a perceber e que, por ameaça, a voz
, que não sabe se a a rece-
é também enigma para o corpo
be ou se liberta dela.
s e
Impõe um percurso iniciático, remetendo para as origen
da vida, da
atingindo o último. Huma na e subjectiva, é o eco
nasce r para o mun-
nossa vida, da nossa maneira particular de
do, de nele estar presente, e de o deixar. Capítulo I
que a
Eu própr ia fui-me apercebendo progressivamente de
voz é essenciaL Criou -me nos tempo s remot os do meu
nosta
passa
lgia
do
da
Nas origens da voz e do canto
primordial, agarro u-me à existê ncia com a aguda
iores, e mais
melodia materna, prelúdio a todas as ligações poster
ana-
tardiamente fascinou-me na escuta subtil do jogo de vozes
lítico e na belez a das obras music ais.
A mi-
Foi o amor à voz que me incitou à prática do canto.
sta amad ora (1), que durou uma dezen a
nha experiência de corali o
o praze r intens o de me sentir conci liada com
de anos, deu-me
de cantar,
meu próprio corpo, que participa plenamente no acto
no e no canto a
conciliada com os outros no canto em unísso
menti stas da orque stra,
várias vozes (2), conciliada com os instru
do maest ro unific ador. Expe-
que cantam connosco sob a batuta
e com o
riência única do entendimento com um outro fraterno
os todos juntos , enqua nto dura o conce rto, a
público, para criarm
nidad e.
ilusão mome ntâne a e feliz de uma verdadeira comu ta,
O canto e a música convidam a uma comunicação perfei
sentir felize s, porqu e sim-
tomad a real pela partitura. Fazem-nos
huma-
bolizam a harmonia, sonho sempre frágil das sociedades
o por Fellin i nas suas duas alego rias
nas, como é demo nstrad
cinematográficas, Ensai o de orque stra e O navio ...
r-
Passeio, convite à viage m ... poderia ser esse o nosso percu
canto , tal como a
so em tomo do canto da voz. Todavia, esse
s de se ter esgota do a ta-
música, só se ouve no silêncio, depoi
garelice das palavras ...
Maniban, Abril de 1987
Barenboi:m sob a
(') Nos coros da orquestra de Paris, criados por Daniel
tutela de M. Guy e dirigidos por A. Oldham .
o resto do seu nai-
(2) Cada coralista partilha a mesma linha melódica com
caso, os sopran os) e afina com a linha melódi ca dos outros nai-
pe (no meu
pes (contraltos, tenores, baixos) .
12
«É por isso que as primeiras línguas foram cantantes e
apaixonadas e só depois passaram a ser simples e
metódicas ... »
15
A Voz e os Seus
Marie-France Castart?de
16 17
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
tuem uma excepção singular da natureza porque o seu canto é espectros harmônicos regulares. Estes são compostos por um som
mais do domínio da cultura, dado servir para se e designado por «fundamental» e por múltiplos desse som, chama-
comunicarem: dos «harmônicos». Quando se analisam, parecem ser formados
por traços paralelos e equidistantes, como se enviassem a ener-
«Não há dúvida de que o homem não é o único produ- gia sonora através de carris. São assim os sons da voz, pelo
tor de sons musicais já que partilha esse privilégio com as menos nas vogais faladas e cantadas. Em contrapartida, os sons
aves ... A tonalidade musical- tanto entre as aves como dos chimpanzés são formados por harmônicos que são equidis-
entre os homens - é uma moda da sociedade ... Os sons tantes durante demasiado pouco tempo para serem ouvidos como
musicais são do domínio da cultura.» (') tal, ou demasiado misturados a ruídos.
Durante séculos, os homens tentaram em vão fazer falar os
Olivier Messiaen vai mais longe ao afirmar que há muitas macacos. Estes, que parecem porém ser inteligentes, ficavam
aves que não são só virtuoses, são também artistas, nomeadamen- indiferentes, nem sequer se mostravam interessados em repetir
te pelos seus cantos territoriais (2). como papagaios, até ao dia em que se percebeu que, se não fa-
Se subirmos na escala animal e virmos o que se passa com lavam, talvez fosse apenas porque o seu órgão vocal não lho
os mamíferos, e entre eles com os primatas, depararemos com permitia. Pelo contrário, uma linguagem como a dos surdos-
uma categoria de macacos que apaixonou uma geração inteira de -mudos convilha-lhes bem mais, como demonstrou o filme de-
investigadores: os chimpanzés. Fisiologicamente, o homem, tal dicado a Kokko, o gorila que fala.
como os grandes macacos e muitos mamíferos, forja os sons Aliás, se os nossos antepassados puderam inventar a lingua-
vocais na garganta (3) porque tem o poder de comprimir a tra- gem, foi porque o homem possui uma musculatura e um conjunto
queia, tubo constituído por anéis cartilaginosos que une os de nervos e de músculos muito rico ao nível das faces, dos lá-
brônquios à garganta. Se introduzirmos ar nesse tubo e o com- bios e da língua, o que lhe proporciona uma melhor precisão ar-
primirmos grosseiramente em vários sítios, obteremos uns sons ticular:
sussurrados ou todo o tipo de pigarros, gritos e grunhidos. Para
se obter um som harmónico puro, tem de se comprimir a gar- «0 que falta ao chimpanzé não é a aptidão cerebral, é
ganta num único ponto, o que o ser humano faz normalmente a aptidão glótica», escreve Edgar Morin (4).
devido à sua capacidade de unir (entre 1 e 8 milímetros) as cor-
das vocais, pequenos músculos situados na laringe, e apenas elas. Inversamente, foi graças às suas capacidades vocais que os
Assim, o gesto vocal que permite a emissão dos sons harmônicos, nossos grandes antepassados pré-hominídeos se tomaram homens:
vogais ou canto, exige um controlo extremamente preciso da podiam emitir com precisão, por um lado, certos ruídos, que
musculatura que reveste a parte superior da traqueia. depois vieram a ser as consoantes, e, por outro lado, sons har-
Parece que os grandes macacos têm ao nível da garganta a mônicos, que depois vieram a ser as vogais e o canto. Ao mes-
mesma imprecisão que revelam no controlo dos lábios ou da lín- mo tempo que o seu poder vocal, descobriram a articulação da
gua. Só podem comprimir a sua musculatura traqueal de uma linguagem: a dupla diferenciação entre as vogais, por um lado,
forma grosseira; só podem emitir sons de tipo grunhido ou uivo e, por outro, entre as vogais e as consoantes. Neste aspecto, a
que, embora sejam muito diversos, não são sons que possuam forma recurvada do tubo entre a laringe e os lábios (tubo que,
no macaco, é direito) desempenhou um papel importante.
(') Lévi-Strauss (C.), Le cru et le cuit, Paris, Plon, 1964, nota p. 27.
(2) Samuel (C.), Entretiens avec O. Messiaen, Paris, Belfond, 1958.
( ) Morin (E.), Le paragime perdu: la nature humaine, Paris, Le Seuil,
4
(3) Muitos dos dados fisiológicos foram extraídos de L. J. Rondeleux, in
Le privilege des sons harmoniques, inédito. 1973, p. 53.
18 19
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
20 21
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
22 23
Marie-France Castarede Voz e os Seus Sortilégios
( ) Rousseau (J. J.) (1867), Essai sur l' origine des Zangues, Paris, Aubier,
15 6
(' ) Conjunto de sons que beneficiam do mesmo regime sonoro e fisioló-
1973, pp. 95-96. gico.
24 25
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios
A voz acompanha-nos através de todas as idades da vida: é harmônica entre as frequências próprias dos ressoadores e o
em recém-nascidos que temos a voz mais (mais alta e mais dos laríngeos, ou seja, a frequência do ''-'-L''-'"-U''-'"Ul'l·
cristalina). Durante os três primeiros anos, baixa não só Se essa relação não existe, a vibração laríngea é difícil e exige um
por motivos fisiológicos (abaixamento da laringe) mas tan:bém esforço muscular maior. Se se consegue estabelecer essa relação,
por motivos psicológicos, já que a criança a modela a parhr da a vibração laríngea é fácil e requer pouco esforço muscular.
voz dos que a rodeiam. Em seguida, esse «abaixamento» atenua- Na voz falada, o vibrador laríngeo fornece apenas a energia
-se (1 7 ) para recomeçar bruscamente na época da puberdade, ~ de acústica necessária. Pelo contrário, na voz cantada, que precisa
uma forma muito mais acentuada no rapaz do que na rapanga. de ter uma tonalidade precisa, a laringe desempenha um papel
Depois desse abaixamento brusco na altura da puberdade, a essencial porque é dela que depende a frequência. Nesse caso,
voz passa a baixar mais lentamente: a voz dos adolescentes que as cavidades de ressonância têm de se adaptar ao máximo para
mudaram de voz é geralmente mais alta, mais clara do que a do facilitar a emissão laríngea, o que exige certas modificações dos
adulto jovem; a do homem ou da mulher, na idade madura, é 'modelos articulatórios normalmente utilizados na voz falada (de-
muitas vezes um pouco mais grave e mais baça do que a do formação acústica das vogais e das consoantes, designada por
adulto jovem. Segue-se um longo período de estabilidade, exc~pto «abafamento» dos sons). A voz é mais baça e a vogal aberta
para a mulher, cuja voz, após a menopausa, se torna em mmtos transformou-se na vogal fechada, anterior ou posterior, acustica-
casos mais grave. . mente mais próxima:
A virilidade da mulher revela-se no outono da sua v1da, ao
passo que a feminilidade do homem se manifesta na sua primavera. «0 fenómeno do abafamento do som equivale a uma mu-
No final da existência, a falta de forças e de fôlego faz com que dança de mecanismo laríngeo (diminuição do registo) e, si-
a voz, por vezes, se torne roufenha e passe para o registo agudo. multaneamente, a uma modificação da forma e do volume
dos ressoadores.» (1 8)
Sob o ponto de vista da anatomia, chama-se «ressoadores» às No canto, a colocação da língua é importante. Deve respei-
cavidades que o som laríngeo atravessa antes de atingir o ar li- tar a posição articulatória de cada vogal e manter-se na parte
vre: faringe, cavidade bucal e, para certos sons, nasofaringe e anterior da boca, com a ponta em contacto com os incisivos in-
fossas nasais. feriores. Quanto ao véu palatino, deve formar uma espécie de
Na realidade, a dimensão e a forma dos ressoadores podem arco por cima da base da língua. A impressão de «garganta di-
variar em proporções consideráveis porque dependem de órgãos latada» (gola aperta, em italiano) que os cantores procuram está
móveis: maxilar, língua, músculos da faringe, laringe, véu pala- associada a essa posição particular. Do mesmo modo, os maxi-
tino, lábios. De facto, existem duas cavidades de ressonância lares inferiores descem para aumentar a cavidade bucal. Quanto
- a faringe e a cavidade bucal - com uma frequência própria. aos lábios, se estiverem ligeiramente estendidos («tubagem» que
É possível enumerar dez timbres vocálicos fundamentais que ca- estreita a origem do som), o som será mais cheio, mais grave;
racterizam as vogais; as consoantes são ruídos acrescidos. se, pelo contrário, estão puxados para trás, a voz será mais
O vibrador laríngeo situa-se no fundo das cavidades de resso- límpida e também mais estridente.
nância, que exercem sobre ele uma importante acção de retorno. Além disso, «a utilização das diferentes partes do aparelho
É desejável, sobretudo na voz cantada, conseguir criar uma rela- vocal faz-se por intermédio do sistema nervoso que funciona
(1 7 ) Dos sete anos á puberdade, o registo fundamental vai passar de (' 8 ) Comut (G.), La voix, Paris, PUF, Collection «Que sais-je?>>, 1983,
300 Hz para 250 Hz, na rapariga, e de 270 Hz para 180 Hz, no rapaz. p. 73.
26 27
A Voz e os Seus Sortilégios
Marie-France Castarede
A do som na voz falada muda constan-
como um anel cibernético '-'VlLHIJ>'-'llcv" por me-
motor e do a temente, acordo com a entoação, também
do de uma linha propriame nte musical.
definidas no há um outro do encéfalo di- quando se aproxima
rectamente implicado na voz: o Os estados afectivos graças às variações melódicas que cada pessoa pode
e as emoções desempen ham um papel important e na fonação, melhor as suas emoções: essas variações dependem, portanto, do
moduland o a tonalidade , o timbre e a intensidad e da voz. O dien- estado afectivo do locutor.
céfalo serve de transmissor em direcção:
28 29
Marie-France Castarede
30
«Sobre o que passa e se vai,
com mais grandeza e mais liberdade
o teu canto inaugural paira e persiste,
ó deus da lira!
À face da terra, só o canto
exalta e santifica.»
33
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios
(2) Schneider (M.), <<Musique, mythologie, rites>>, op. cit., p. 133. (') Catapatha Upanishad, citado por Schneider (M.), ibid., p. 133.
34 35
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
Aranda da os os deuses. O
e também na ou um mas é por
no no Níger e entre os Massai do da música que os homens os deuses e é
e da Tanzânia. Nas cosmogonias africanas, as teorias afinada» que o mágico consegue despertar os que ani-
propagaram-se tão amplamente como no é a partir do mam os objectos e identificar-se com eles. Como cada espírito
trovão, de um instrumento de música, de um sopro violento ou é uma melodia determinada, o timbre da sua voz e o motivo
de uma forte expectoração que a criação tem início. característico do seu canto serão os elementos principais da com-
Entre os egípcios, o deus Toth cria o mundo batendo com as posição em que o mágico aprisionará esse espírito. Um bom
mãos e soltando sete gargalhadas. Dessas gargalhadas nascem sete mágico tem de ser um bom cantor.
deuses: As cosmogonias antigas orientais permitem o acesso a uma
concepção da simbologia sonora a que os Ocidentais estão pou-
«Riu mais seis vezes e a cada gargalhada nascem seres co habituados e que ajuda a compreender melhor os fenómenos
e fenômenos novos ... Proferiu as três notas musicais I A O! vocais e musicais. O ritmo antecede o significado, ideia que vai
Então, o deus que é o senhor de tudo nasceu do eco desses de encontro às descobertas dos paleontólogos (5). Há uma plura-
sons.» (4) lidade potencial (pré-lógica e pré-figurativa) do símbolo sonoro
que permite remeter todos os fenómenos para infra-estruturas
Na cosmogonia chinesa, há um exército de ferreiros e de rítmicas: o denominador comum por excelência é o símbolo. Nes-
tocadores de tambor que povoa a montanha mítica. Outras tradi- te sentido, pode dizer-se que a música é a língua universaL De
ções referem que os primeiros cantos e os primeiros instrum~n facto, a música situa-se a um nível em que as representações con-
tos de música emanaram dos oito ventos ou das vozes dos mto cretas e os conceitos ainda não conseguem exprimir-se. A fór-
antepassados. No início, só havia sons que, a pouco e pouco, se mula dos mitos da criação fala-nos dessa primazia:
foram transformando em matéria, graças às obras e às viagens
circulares dos deuses. O som emitido a leste, para criar o espa- «No início, Deus criou o fluxo indiferenciado do tempo:
ço e a Primavera, era alegre. O grito criador da Primavera é a flutuando no tempo como verbo, confere-lhe um ritmo sono-
essência sonora do sol matinal, da aurora e da terra jovem. O Lá ro cheio de sentidos, mas sem um significado verbalmente
é o primeiro som de um sistema cósmico dominado pela ideia definível e sem uma forma concreta imaginável.» (6)
do ritmo das estações.
Como o homem nasceu do som, a sua essência será para Reencontramos um eco desta concepção do mundo em
sempre sonora e a sua natureza íntima caracterizar-se-á por dois Schopenhauer, em Richard Wagner, em místicos como S. João
cantos. O primeiro, o «som fundamental», protoplasma da sua da Cruz, ou em poetas como Novalis. As informilções mais preci-
força vital, antecede o primeiro grito do recém-nascido que, se- sas sobre esta doutrina foram-nos legadas pela India, que parece
gundo uma crença muito corrente, atrai a alma ao corpo e de- ter sido a sua grande inspiradora.
termina o nome íntimo do indivíduo. Todavia, para cada ser Actualmente, Georges Dumézil observa que «não deixa de ser
também se distingue uma «canção individual», melodia que ex- importante descobrir uma concepção da voz e da fala que é
prime o ritmo da sua personalidade própria. comum a vários povos indo-europeus» C). Com efeito, «num hino
A voz é o homem; o canto é a alma ou o veículo da alma.
O músico de canto luminoso é o mortal que mais se parece com
CS) Leroi-Gourhan, anteriormente citado.
6
( ) Schneider (M.), Encyclapédie des musiques sacrées, ap. cit., p. 58.
( 4) Schneider (M.), ap. cit., p. 143. C) Dumézil (G.), Apallan sanare, Paris, Gallimard, 1982, p. 7.
36 37
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
uma abstração isto é, voz e Pã concebeu a flauta de de canto tão mavioso como
taneamente a modos de o do rouxinol na Primavera. As Musas não tocavam nenhum
com a estrutura das três No hino a mas tinham vozes maravilhosas.
Apolo de Delos, é o próprio deus que ao nasce~ e:cpõe ou m,a~i Orfeu foi o mortal que melhor conseguiu igualar os deuses
festa os seus meios de acção, num quadro que d1sstmula a anahse e o que deu de facto a música ao mundo dos homens. De as-
da deusa indiana com originalidades motivadas pela diferença dos cendência prestigiosa, pertencia à família de Apolo, já que sua
lugares e dos tempos. No primeiro nível estão expressões diver- mãe era Calíope, a musa «da bela voz», rainha da poesia e da
sas das funções religiosas da voz. No segundo, em ambos os ca- eloquência. Orfeu herdou esse dom da música que a Trácia, país
sos, o roncar do arco ocupa o lugar da voz humana. No terce.iro, onde cresceu, ainda iria desenvolver, porque os Trácios eram, tal
no hino védico, a fala, na sua forma mais banal, pela comumca- como os Frígios, o povo mais músico da Grécia. Quando Orfeu
ção e a cooperação que possibilita, diz-se alimentadora e fonte cantava ou tocava, o seu poder era imenso e nada nem ninguém
de prosperidade, o que também significa, em Delas, o símbolo lhe podia resistir:
do outro, ilustrado pelos ritos e pelas lendas da ilha» (8).
Nesta análise é bem evidente a perspectiva religiosa anterior- «Nos bosques profundos e tranquilos das montanhas da
mente descrita: a voz é um aspecto fundamental da comunica- Trácia,
ção entre os homens e os deuses. Há ~~diadores q.ue podem Orfeu, com a sua lira melodiosa, arrastava as árvores,
ajudar os homens nessa relação com o d1vmo, essencialmente o E as feras do deserto vinham deitar-se a seus pés.»
brâmane e o rai, ou seja, o oficiante e o «vidente». Na guerra
contra o ímpio, o bárbaro ou o infiel, a deusa Vac reconhece Orfeu exercia o seu fascínio sobre tudo o que era animado
como seu o que se ouve, isto é, o concerto dos ruídos, dos cla- ou inanimado: os rochedos, as colinas seguiam-no e os rios al-
mores, das injúrias, dos apelos, dos gemidos. Vac desempenha teravam o seu curso.
também a terceira função, a da fala que circula entre os homens Sabe-se que participou na famosa expedição do Tosão de
para os intercâmbios que formam o espírito. Ouro. Com Jasão, navegou no Argos e rumou para a Cólquida.
Assim, «os Indianos védicos e os Gregos do início do pri- Quando os Argonautas estavam cansados ou quando o manejo
meiro milênio antes de Jesus Cristo recebiam dos seus antepas- dos remos lhes era particularmente penoso, Orfeu tangia a sua lira
sados uma mesma doutrina da voz humana, deduzida, como de nove cordas (acrescentou duas cordas à lira de Apolo, que só
muitas das suas concepções, da ideologia das três funções» (9). tinha sete ... ): logo se reanimavam e com um único impulso os
Por outro lado, Georges Dumézil demonstra que os primei- remos fendiam o mar, ao ritmo da melodia. Ou ainda, quando
ros instrumentos, o arco e sobretudo a lira, atributo de Apolo e, alguma disputa surgia, tirava do seu instrumento sons tão melo-
em seguida, de Orfeu, estão associados aos órgãos da voz. diosos, tão tranquilizadores, que os mais violentos se acalmavam
Na mitologia grega, os deuses também foram os primeiros e esqueciam a sua fúria. Graças a ele, os Argonautas foram sal-
músicos. Atena não era dotada para essa arte, mas foi ela quem vos das Sereias cujo canto mágico ouviram um dia, à tona das
inventou a flauta, embora nunca a tocasse. Hermes inventou a lira águas. As Sereias eram demônios marinhos, metade mulheres,
e doou-a depois a Apolo, que retirava dela sons tão melodiosos, metade pássaros; músicas notáveis, uma tocava lira, outra toca-
quando tocava no Olimpo, que os deuses ficavam extasiados. Para va flauta e a terceira cantava. Com a sua música atraíam os
si próprio, Hermes fabricou a flauta de pastor, cuja música fas- marinheiros para a ilha onde moravam, e devoravam-nos. Ulisses
tinha dado ordem para o atarem a um mastro e os seus compa-
nheiros tinham metido cera nos ouvidos para transporem a peri-
( 8) Dumézil (G.), Apollon sonore, op. cit., p. 11. gosa passagem sem cederem ao fascínio do seu canto melodioso
9
( ) Ibid., p. 52. e mágico. Os Argonautas, porém, sucumbiram ao encanto e,
38 39
A Voz e os Seus
Marie-France Castarede
alheios a deses-
de e viraram
onde estavam as Mas tocou
uma melodia tão clara e tão vibrante que o som das vo- Por volta a tecer para a doce
O véu da vida saído cedo do tear.
zes sedutoras e fatais: a nau seguiu o seu rumo e ps ventos le-
Vê bem, peço-te tão pouco,
varam-no para longe daquele perigoso lugar. A chegada a
Cólquida, Orfeu adormeceu com o seu canto a que guar- Só peço que ma emprestes e não que ma dês;
dava o bosque de Ares e a árvore de onde Jasão retirou o To- Ao acabar o curso dos seus anos na terra
Será tua para sempre.» '
são de Ouro.
No regresso à Trácia, Orfeu desposou uma naiade, Eurídice,
que amou apaixonada mente, mas a sua felicidade foi breve. Encantado com a sua voz, ninguém podia recusar-lhe fosse
o que fosse:
Quando Eurídice passeava com as suas aias por uma planície,
uma víbora mordeu-a num pé e ela morreu. Orfeu, louco de dor,
«Fez correr lágrimas de ferro
dirigiu-se ao reino dos mortos para tentar arrancá-la de lá. Pen-
Pelas faces de Plutão
sava:
E o inferno concedeu o que o Amor implorava.»
«Com o meu canto
Encantarei a filha de Deméter, O que nos importa não é contar o final da história, demasiado
Encantarei o Soberano das Sombras; co.nhe~;do para ser aqui repetido, mas esclarecer o sentido do
Comoverei os seus corações com a minha melodia m1to ( ) qu,e _ilustra as nossas palavras: a voz e o seu prolonga-
E para longe do Hades levarei Eurídice.» mento, a mustca, encarnadas por Orfeu, são mediadoras; garantem
P~~sager:s: p~ssagem na floresta hostil, porque as feras se recon-
Ousou fazer o que nenhum mortal tinha alguma vez feito para ciliam nao so c?m Orfe~ mas também umas com as outras; pas-
salvar o seu amor: descer aos infernos. Quando lá chegou, fez sagem das sere1as, vencidas no seu apetite devorador; passagem
ecoar a sua lira e, nesse instante, tudo se imobilizou, fascinado: dos v~ntos e d~ mar, porque a natureza se acalmou; passagem
o cão Cérbero afrouxou a sua vigilância; a roda de Íxion deixou do remo dos VIvos para o reino dos mortos, porque os guar-
de girar; Sísifo apoiou-se à sua pedra; Tântalo esqueceu-se da sua das, Caronte e Cérbero, ficam enfeitiçados. Graças à música da
sede; pela primeira vez, os rostos das Fúrias, deusas do terror, sua vo~, Orfeu v~r:ce todos os obstáculos: não conseguirá dar de
cobriram-se de lágrimas. O senhor do Hades e a sua rainha apro- novo v1da a Eund1ce, obra materna que fracassa no último ins-
tante ...
ximaram-se para ouvir melhor. Orfeu cantou:
. Outro mit~), outra exemplificação da primazia do sonoro é o
«Ó deuses que governais o mundo da sombra e do silêncio, mito de Narc:so .lig~do ao mito da ninfa Eco. Esta, que não ti-
Todos os que nasceram da mulher virão um dia até vós. nha a, a.scen~enci~ Ilustre de Orfeu, embora fosse protegida de
Toda a beleza descerá um dia ao vosso reino. Artem1sm, fm castigada, devido ao fascínio da sua voz, por Hera,
Detemo-nos por um instante à face da terra
Depois pertencemo-vos para sempre. . (1°) Notamos a importância deste mito em inúmeros artistas românticos·
Mas aquela que procuro veio até vós demasiado cedo; m~s recentemente, o f}~ósofo, ~arcuse considerou-o como a contrapartida d~
Antes de o rebento florir foi colhido. n;~to de Pr~n;eteu_, herm ar9uet1po do, princípio de rendimento; Orfeu é 0 he-
Tentei em vão suportar a minha perda; roJ do dom1n10 nao repressivo da estetica. Por seu turno, Michel Serres dedi-
O Amor é um deus demasiado poderoso. Ó Rei, cou a Orfeu as suas reflexões sobre a música (curso em Paris I, 1983-1984).
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Marie-France Castarêde
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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
S. a de Deus é
era o e o Verbo estava em
teologia atribuí um
da Santíssima com
aquele que exprime o pensamento de Deus: é a sua Palavra. a
Voz de Deus que a transmite. Essa voz é evocada pelos
evangelistas: «E do céu fazia-se ouvir uma voz: "Este é o meu «Vou dizer-vos qual é o que todos os vedas procla-
Filho bem-amado, em quem pus toda a minha complacência"» mam, o fim a que conduzem todas as austeridades e que
(Mateus, XIII - 17, João, I, 11). todos os homens que levam uma vida de continência ambi-
A tradição bíblica privilegia a voz e a audição: Deus torna- cionam: é "Aum". Esta sílaba é o brâmane. Esta sílaba é o
-se presente por intermédio da voz - porque a voz é o mais Altíssimo. Quem conhecer esta sílaba consegue tudo o que
espiritual dos órgãos físicos. Em grego, há uma só palavra deseja. Ela é o melhor apoio e o mais sublime. Quem tiver
(nvEUfJ.O:) para designar o vento e o espírito: este apoio será glorificado no mundo de Brama.» (1 2 )
«0 vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz mas não Assim, desde sempre, o iogue pratica o ioga, disciplina
sabes de onde vem nem para onde vai.» ascética que se destina a preparar a união com Deus. O iogue
atinge a concentração absoluta pronunciando mentalmente fórmu-
Quem quer que tenha nascido do Espírito é conhecido pela las ou mantras, «processo que consiste em cantar certas sílabas
sua voz. O ouvido é, por excelência, o órgão do conhecimento de uma forma particular, a fim de se conseguir a fusão da exis-
de Deus. É com a voz de Deus que se inaugura o mundo e a tência empírica com a existência transcendental» ( 13 ). De facto,
sua história. o mantra é divino: é a própria divindade, a forma material de
Deus. Há um que é essencial e que resume todos os outros: é a
sílaba sagrada «Aum», formada por uma gutural, uma labial e
Os ritos uma cacuminal, que são os três pontos limite das possibilidades
dos órgãos de articulação. Esta sílaba inclui num único som to-
É a partir destas cosmogonias - de que relatámos apenas das as outras possibilidades. No ioga, o som converte-se num dos
alguns elementos significativos - que se instituem os ritos reli- instrumentos mais eficazes da realização do transcendente. Toda-
giosos, onde «Os fenômenos sonoros desempenham um papel via, o som articulado não é senão uma forma muito particular e
fundamental e essencial» C1). Até onde se pode remontar na his- limitada dos fenômenos sonoros. O som inarticulado é um esta-
tória, a voz e a música estiveram sempre estreitamente associa- do sonoro mais abstracto e mais universal.
das não só a esses ritos, mas também à magia. Os hinduístas acreditam que, se um mantra for repetido uma
Na Índia, a história da criação e a representação do universo centena ou um milhar de vezes, ou mais ainda, e se o adorador
são indispensáveis para a compreensão dos ritos e da sua sim- fizer um esforço para se identificar com o adorado, o poder da
bologia, porque os sacerdotes, ao exercerem o culto, imitam a divindade virá em seu auxílio (1 4). Assim, o iogue medita sobre
acção dos deuses. Quando estes emissários do criador ainda
viviam à face da terra, ensinavam os homens a cantar e a to-
(12) Katha Upanishad, !, 2, 15-17.
(1 3 ) Hari ÜIJI Tat Sat, prefácio a Le nom naturel de Dieu Om et les
C1) Danielou (A.), «La nature du sacré», Encyclopédie des musiques sa- mantras, Paris, Editions Jacques Bersez, 1982, p. 7.
crées, Paris, Labergerie, 1968, p. 39. (1 4 ) Os ortodoxos russos têm a mesma crença.
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Marie-France Castarede
da Cidade. A iniciação à arte dos sons é um faz de cantos suaves ... Para a arte dos sons era a arte encanta-
só da instrução artística e mas também da curava e era transformadora. O can-
moral. Os poetas e os filósofos a mus1ca com ... u •. u"J"'"- to participava nos mistérios solares, nos mistérios de
mo; os legisladores dedicam-lhe a sua atenção; dir-se-ia que não Delfos em honra de Apolo, e nos que celebravam a luz do dia.
há ninguém que não revele interesse por ela. Segundo Nietzsche, Quanto à família dos Eumólpidas - os bons cantores - , era tão
«a música grega autêntica é essencialmente uma música vo- estimada que teve o privilégio dos mistérios de Elêusis, que exal-
cal» (1 9), e considera que entre a poesia e a música existe uma tavam a religião ateniense, misturando os cultos órficos, dio-
ligação estreita e muito forte: nisíacos e agrários. Segundo uma velha lenda ática, os Pelasgos,
nos dias de festa, cantavam e dançavam ao pé da Acrópole, no
«Os gregos só tomavam conhecimento de um poema atra- mesmo local onde muito mais tarde multidões imensas se apinha-
vés do canto ... O canto do coro só se distinguia do solo pelo '1/am durante os concursos musicais organizados por ocasião das
número de vozes e os instrumentos que acompanhavam eram os grandes solenidades religiosas e das representações dramáticas.
únicos que podiam recorrer a uma polifonia muito restrita.» (2°) Quanto à tradição judaico-cristã, sabemos que ela inclui o
canto dos salmos ao longo de toda a história bíblica. Aliás, des-
Portanto, no amor que os gregos manifestavam pela música, de os primeiros séculos da nossa era que os cantos cristãos se
o primeiro lugar devia ser dado à voz humana, o mais nobre dos inspiraram nas melodias entoadas nas sinagogas judias. S. Pau-
instrumentos. A melodia vocal, tanto individual como coral, cons- lo, nas suas epístolas, exortava os cristãos a elevar a alma até
tituía o seu aspecto fundamental. Como reunia, ao mesmo tempo, Deus com hinos e cânticos espirituais. Até ao Edito de Milão
a palavra e o som, era o melhor meio de expressão de uma arte (313), os cristãos perseguidos não podiam incluir cantos nas suas
em que a poesia estava intimamente associada à música. Na An- cerimônias, mas desde que reconquistaram a liberdade, a arte
tiguidade toda a gente cantava, com naturalidade mas com pouca vocal foi praticada em toda a parte.
técnica (2 1). As expressões vocais estavam contidas numa tessitura Por fim, entre os judeus existe o culto do <<nome». O segundo
média: os homens cantavam com voz de barítono, as mulheres, dos dez sefirós da cabala é consagrado à voz:
com voz de mezzo soprano. No período clássico, as mulheres só
raramente podiam participar em execuções musicais públicas. Em «A palavra é sopro, o sopro é pensamento»,
Esparta, onde as mulheres gozavam de uma liberdade maior do que
em outras cidades gregas, havia coros femininos; todavia, em Ate- ao passo que a inteligência só figura no terceiro sefiró. Até à
nas, só os coros de homens e de crianças rivalizavam entre si e época moderna, o canto litúrgico e religioso dos judeus é de
os músicos gregos só tinham em conta as. vozes masculinas. essência popular, ou seja, é transmitido pela tradição oral. A for-
O grego da Antiguidade frequentava o Olimpo. Segundo Ho- ma musical mais corrente é a da antífona e do responso. O haz-
mero (2 2), foram os deuses que ensinaram o canto aos homens e zan é o chantre profissional da sinagoga. O uso da recitação
foram os Frígios que tiveram a honra de propagar esse presente cantada das orações é confirmado pelas recomendações, feitas às
divino. Esculápio, o deus da medicina, rodeava os seus doentes pessoas dotadas de uma bela voz, para assegurarem a função de
chantre. A estrutura modal característica do canto hebraico na sua
origem volta a encontrar-se no canto da sinagoga: é um canto
(1 9) Nietzsche (F.), La naissance de la tragédie, Paris, Gallimard, 1982, muito ritmado, muito expressivo.
pp. 206 e 208. Assim, a cantilação bíblica, bem como a do Carão, dos ve-
(2°) lbid., p. 208.
(2') Quando Aristóteles afirma a inferioridade técnica da voz humana em das, dos Kalâm, identifica-se, pelo contributo sonoro, com a es-
relação aos instrumentos, refere-se a vozes incultas, as únicas que ele ouviu. sência divina contida na palavra.
(22) Odisseia, capítulo 7, versículo 34.
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Marie-France Castarêde A Voz e
do canto colectivo na
~".""'"'""'" catedrais
Se as mitologias e os ritos do mas sobretudo do e para citar apenas algumas
deram desde sempre a ao som e à voz, há centros musicais patrocinados por essas naves de pedra.
um domínio muito particular e muito mais recente que deve agora e mosteiros Saint-Benoit, Saint-Odile, Murbach, Reichenau-
reter a nossa atenção: a música europeia, nomeadamente vocal, convertiam-se em verdadeiros conservatórios de música e de can-
fenómeno único no seu género. Se se fala do de to litúrgico.
de Colónia ou de Chartres, também se poderá citar os nomes de A partir do século X, aumenta o número dos documentos re-
maravilhas arquitectónicas que não se situam na Europa: o forte ferentes à escola de canto de Notre-Dame de Paris; conhece-se
de Agra, a mesquita azul de Istambul, o templo de Angkor Vat o nome do cantor Adelelme, que, entre 992 e 1040, foi encarre-
ou de Bàràbudur, a cidade imperial de Pequim, etc. Na pintura gado de reger a ordem dos cânticos e de vigiar os meninos do
e na escultura também existem obras que se podem comparar. No coro. Ao lado da escola de canto da catedral, florescia a Schola
entanto, as grandes obras vocais europeias, e as partituras que as Palatina ou Escola do Palácio. Os alunos da Schola Palatina
acompanham (2 3), não têm equivalente em nenhuma outra civili- participavam nos ofícios da Capela Real.
zação, e será através delas que evocaremos a aliança, infinitamen- Paralelamente à difusão do canto religioso, os trovadores,
te renovada, entre a música e a fala. As ligações da voz com as jograis e minnesinger, que foram os primeiros teóricos do amor
mitologias e o sagrado vão alterar-se progressivamente. A música cortês, cultivavam a lírica profana e difundiam, de Norte a Sul,
vocal europeia cantará também as paixões humanas, como já o de Leste a Oeste, a canção. Em todos os países, inúmeros can-
faziam os coros das tragédias gregas. Para esta viagem musi- tos rústicos eram transmitidos por tradição oral através do tem-
cal, que será porém rápida, partiremos da Idade Média, época em po e do espaço, obras anónimas do génio popular que, reunidas,
que os cantos religiosos e profanos se desenvolvem em simultâ- são um tesouro artístico de cada cultura.
neo. Houve três grandes artistas (entre outros) que, a partir do fim
Primitivamente, o culto cristão só admitia a arte vocal; por da Idade Média, se tomaram famosos no canto, tanto religioso
conseguinte, a par do estudo das letras (2 4 ), fomentava-se o estudo como profano: Guillaume de Machaut, músico e poeta, que, em
do canto. Carlos Magno, por seu turno, impôs o canto gregoria- 1364, deu em Reims o primeiro exemplo do quarteto vocal mis-
no, assim denominado em honra do papa Gregório I (S. Gregório to, com a sua missa, denominada Messe de Notre-Dame, Jean de
Magno- 590-604) (2 5). No Império do Ocidente, multiplicaram- Ockeghem, Mestre de Capela na Corte de França, famoso pela
-se as escolas copiadas da Schola romana. As escolas de Aix-la- arte requintada do contraponto e do cânone, e, por fim, Josquin
-Chapelle, Metz, Rheinau e Saint-Gall, nomeadamente, rivaliza- Des Prés, que respeitará a continuidade de uma estética gótica,
ram em zelo para se converterem nos centros mais esplendorosos e simultaneamente, procurará a emoção da alma, anunciando uma
viragem decisiva na história da música vocal.
(2 3 ) A grande originalidade da música europeia reside no facto de perten-
A partir do primeiro quartel do século XV, quatro grandes
cer a uma tradição escrita, desde os neumas do canto gregoriano. Hoje em dia, capelas musicais disputavam entre si a proeminência e os canto-
a música aleatória é a única que volta a estar ligada às tradições não escritas. res célebres: a capela do papa, a capela do rei de França, a ca-
(2 4) Na Universidade da Idade Média ensina-se o grupo das quatro artes pela do rei de Inglaterra e a capela dos duques da Borgonha, cujo
liberais, de carácter matemático (aritmética, astronomia, geometria, música), exemplo virá a ser seguido pelo duque da Baviera que, em 1560,
designado por Quadrivium, a que se juntava o trivium (gramática, retórica,
dialéctica).
chama Orlande de Lassus para a sua corte.
(2 5) Gregório Magno contribui para fixar por escrito o cantochão, cuja re- Por outro lado, Lutero, ao adaptar a forma do cântico popu-
dacção definitiva se concluirá no século IX; o cantochão é uma música vocal lar na celebração dos ofícios do culto reformado, deve ser incluí-
ritual e monódica, herdada da liturgia católica romana. do no número dos apóstolos mais zelosos do canto coral. Calvino,
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O sonoro e a voz irrigam as mitologias antigas, inspiram os No canto, Schopenhauer exalta o som em detrimento do sen-
músicos e não estão totalmente ausentes do pensamento tido, descobrindo nas vozes uma simbologia do universo:
especulativo dos filósofos. Será interessante notar que o facto de
se privilegiar, ou não, a voz ajuda a demarcar aqueles que in- <<As quatro vozes de qualquer harmonia, isto é, o baixo,
cluem na sua reflexão a presença, o sensível, a aventura signi- o tenor, o contralto e o soprano, ou tom fundamental, ter-
ficante do sujeito humano e os que teimam em renunciar a ceira, quinta e oitava, correspondem aos quatro degraus da
qualquer filosofia do sentido e exaltam a escrita em detrimento escala dos seres, ou seja, ao reino animal e ao homem.» (41 )
da fala (como fez Derrida com a gramatologia). Paralelamente à
história da música vocal, que constitui um prolongamento do Para ele, a voz alta é a imagem do pensamento e da vonta-
universo mítico na Europa, a filosofia, quando inclui na sua refle- de no seu mais elevado grau de objectivação. Na maioria dos
xão a voz e o canto, revela os laços que existem entre o racio- casos, o soprano é o responsável pela melodia e, por isso, a voz
nalismo e a arte, a inteligência e o sensível, a lógica e a estética. alta mostra ser o representante da consciência levada até ao seu
Para ilustrar o que afirmamos, escolhemos quatro pensadores extremo, ao cume da escala dos seres. É que a melodia é o co-
- Schopenhauer, Alain, Heidegger e Michel Serres - escolha ração da música:
essa que tentaremos justificar.
O primeiro, Schopenhauer (3 8) (1788-1860), surge como char- «É por este umco meio que a muszca, sem nunca nos
neira entre o kantismo e a filosofia contemporânea: a sua obra é causar um sofrimento real, não deixa de nos encantar mes-
a fonte não apenas da filosofia de Nietzsche e dos libretos de mo nos acordes mais dolorosos, e temos prazer em ouvir as
Wagner, mas também do pessimismo de Heidegger. Schopen- melodias, incluindo as mais dolentes, contar-nos na sua lin-
hauer lera os Upanishad e compreendera a profundidade das guagem a história secreta da nossa vontade, das suas agi-
místicas orientais que buscam o ser. Por isso, deixou-nos a sua tações e dos seus desejos, com os atrasos, os obstáculos, os
teoria da arte como contemplação, em que privilegia a música e tormentos que os contrariam.» (42 )
a voz:
Alain (1868-1951), por seu lado, não é um filósofo na acep-
«A música fala do ser porque há uma analogia muito ção tradicional do termo, mas um moralista ou um ensaísta.
íntima entre ela e o mundo das ideias.» (3 9 ) Mestre e pedagogo de renome, a sua obra é uma colectânea de
máximas e conceitos tão acessíveis quão profundos. Através da
Considerada como expressão do mundo, a música é uma lin- arte da música e do canto, descobre e recomenda uma concep-
guagem universal: ção de vida centrada na vontade e no autodomínio. A sustenta-
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«A língua nasce na emoção do encontro,
as palavras nascem como não se espera.
Aprendi mais contigo do que em todos os li-
vros de filosofia, contigo, que me deste o meu
corpo e a quem ofereço as últimas palavras
deste livro, como humilde reposição.»
A Vlva voz
Sabe-se que Ferdinand de Saussure (') fez uma distinção ní-
tida entre a língua e a fala: a língua teria a ver com o sistema
abstracto, a estrutura, e a fala teria a ver com a realidade
observável, individual, do acontecimento, e com as suas inéditas
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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
da os e os
impessoal. por isso que se tem de abrir um domínio de refle-
xão, o domínio da psicolinguística (2), em que o é reco-
nhecido como autor da sua fala.
A fala, transmitida por uma voz, é sempre subjectiva. C~m . «E;n~ora. os termos "papá" e sejam palavras
ela deixam de ter importâ ncia as unidades descontínuas e dis- mfantan o, aJu~tam-se às características da evolução da lin-
cretas da língua, e passa a ter-se em conta a frase, que equivale g~age_~ na cnança e esse ajustamento, que é fundam ental,
ao fraseado na música. A fala é, ao mesmo tempo, símbolo dos nao. e mfirmad o nem pela entrada desses termos na língua
estados de espírito e desejo de gerar um sentido: a voz é a .uni- naczonal, nem pela sua difusão a nível internacional.» (5)
dade do som e do sentido na fala. A linguística estrutural mte-
ressa-se pelo sistema da língua, ao passo que a voz toma a. ins~rir No período .da palração, as consoantes doces são as que apa-
a linguag em na vida. O acto de fala é um acto de comumcaça~. recem ~om mais fre.quê~cia e exprime m o estado de satisfação
Falar é falar a outrem. O significado lógico é um círculo est:el- do beb~. Na palatah zaçao dos sons, a língua retoma a posição
to no quadro mais lato das expressões significantes (mel~d1as, ~e sucçao, como o adulto faz espontaneamente no babytalk e na
hnguag em amorosa.
entoações, mímicas, gestos), que, por seu .lado, servem ~e Amt~r
mediárias em relação ao círculo muito mais amplo das v1venc1as Chega.-~e a~sim, sob o ponto de vista da psicofonética (6), a
emocionais e intencionais. Assim, a linguagem remete duplamente ~ma classificaçao dos sons: por um lado, os sons doces e 0 ero-
para um télos lógico e para .uma origem,. ~~ seja, p~ra as estru- tls~o oral: L, M, I, ~· sons. que estão ligados à sucção. A nasal
turas pré-linguísticas do viv1do que poss1bl11tam a lmguagem. labial - M - esta associa da ao conceit o de mãe. Para R.
A voz é, ao mesmo tempo, o que faz reinar o sujeito no acto ?reenso n, no seu artigo «About the sound mm ... » C), 0 som mm
de fala porque esse sujeito, longe de ser u_ma categoria extr.alin- e ac_ompanhado por uma sensação que evoca o prazer da comi-
guística, menciona-se a si mesmo na medida em que nomeia as da hga~o a? do contacto da boca com o seio. E por isso que,
coisas: e!ll ~mtas l:_ng~as, se volta ~ enAcontrar esse som na palavra que
significa «mae». mother em mgles, mutter em alemão madre em
<<Apropriando-me dos sinais vazios da linguagem, aplico- espanhol e em italiano, j.tcr:cg em grego, mater em 'latim ama
em albanês, ummu em assírio e ima em hebraico. '
-os a mim mesmo e a situações concretas no mundo»;
Po.r outro lado, temos os sons duros e as energias pulsion ais
e o que faz reinar o corpo; a intencionalidade do sujeito é de tipo agressiVas:
corporal:
<<A voz é o meio-te rmo entre o corpo e a linguagem.» (3) (~) R. Jakobson (cf. . E~sais de. linguistique générale, Paris, Éditions de
.
~mwt, 1963? cap._ ~11) d!S!I~gue seis funções linguísticas: denotativa, expres-
O gesto vocal implica o corpo todo, facto 9ue é bem senti~o siva, conotativa, fatJca, poetJca e meta-linguística.
no canto, domínio onde se desenvolve essencmlmente a funçao CS) Jakobson (R.), Langage enfantin et aphasie, Paris, Éditions de Minuit,
1969, p. 129.
~) Parte ?a linguística que se interessa pelas sensações motoras das ex-
(2) Anzieu (D.), <<Üur une psycholi nguistiq ue psychanalytique>>, in pressoes emotivas.
Psychanalyse et langage, Paris, Dunod, 1981, PP: 1-24.. C) Greenson (R.), «About the sound mm ... », in The Psychanalytic Qua-
(3) Rosolato (G.), La relation d'inconnu, Paris, Galhmard, 1974, p. 31. terly, 23, 1954, pp. 234-239.
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Marie-F rance Castarêd e A Voz e os Seus Sortilégi os
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus
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!
(2 6 Citad? por ~oal (A.) e Pécheux (M. G.), <<Le développe ment des
(21) De Boysson-B ardies (B.), «Les bébés babillent-ils dans leur langue perceptwns>>, zn Hurtlg (M.) e Rondal (J. A.), lntroduction à la psychologie
matemelle?>>, La Recherche 129, Janeiro de 1982, p. 103. de l' enfant, Bruxelas, Mardaga, pp. 313-368.
(22) lbid., p. 104. (2 7) Experiência citada, ibid., p. 327.
(23) Bower (T. G. R.), Le développement psychologique de la premzere ., (28) Citado, ibid., p. 327.
enfance Bruxelas, Mardaga, p. 176. (:~) Feijoo (J.), «Le fretus>>, in L'aube des sens, Paris, Stock, 1981,
. . p. 201.
(24), Liebermann (P.), Intonation, perception and language, Cambndge , MJt ( ) Querleu (D.) e Renard (X.), «Les perception s auditives du foetus
Press, 1967. humain>>, Médecine et hygiene, 39, 1981, pp. 3102-3110.
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A Voz e os Seus
Marie-France Castarede
a
de e o lobo, e mensagens sonoras a
ela se situa numa band a de que é muito mais equilibrante e Lv.Hu> •Lu.u
(80% ), com
Não só mais de três quartos dos fetos observados
respo ndem posit ivam ente à audiç ão da frase ia nascer
sete meses de vida, sujeitos _ É de recordar que, em 1553, para que a criança que mau hu-
ram
musical, mas tamb ém os recém-nascidos, que estive nao fosse «rabugenta», ou seja, não estivesse semp
re de
ao volta rem a
a esse estímulo sonoro in utero, se acalmavam manti - mor, uma dama da corte de Navarra tocava todas as
manhãs uma
olhos quand o os e
ouvi-la quando choravam, ou abrem os
oriza ção ária mu~ical. O resul~do não foi frustrante, ~arqu aquel e que' mais
que houv e uma mem
nham fechados, o que signi fica 1 tarde ve10 a ser Hennque IV nunca perde u a sua jovial idade . Note-
muito precoce dessa sequência musical (3 ). •-se que, segundo as crônicas da época , a mãe, na altura do nasci-
ais pro-
Por outro lado, os inúmeros trabalhos sobre os anim mento, estava a cantar «Not6 re-Dame du Bout du Pont
secourez-
rno. No ho-
vam a exist ência da marc a sono ra do grito mate er e -moi à l'heu re qu'il est» (3 ). Quando Jeanne d' Albre
t' deixo u de
mas De Casp
mem, as experiências são em menor número, três ~antar para dar à luz, Henrique II d' Albret, rei
de Nava rra, «con-
idos com meno s de
Fifer (3 2) demonstraram que há recém-nasc ha. tmuou as palavras do cântico e ainda não as tinha
acabado quan-
uma voz femin ina estran
dias que distinguem a voz da mãe de -nasc i- do a filha deu à luz o príncipe que hoje reina em França» ...
revel ar que os mesm os recém
De Casper chega mesmo a duran - . Assim, a au?ição pré-natal abre camin ho a exper iências de-
histór ia que lhes foi lida pela mãe que a au-
dos preferem ouvir uma mas h~a_:las, mas estlmulant es. Isso demo nstra à evidê ncia
pela mãe,
te a sua vida fetal a uma história igualmente lida diçao desem penh a um pape l capit al no desen volvi
ment o da
nasci ment o. Assim se confi rmam as exper iências mais desde a sua vida
após o seu criança, porque, graças a ela, o bebê estabelece
ram bebés de doze ho-
antigas de Condon e Sander (3 ), que filma
3
a. A visão é a moda li-
sincr onia total com a estrutu- fetal um primeiro laço com o que o rodei
ras a dois dias que se moviam em dade sensorial mais estudada no bebé. Contu do, os traba lhos dos
(excl uindo outro s ruído s).
ra particular da voz huma na expe~imentali~tas, ~onfi rmados, noutras perspectivas, pela mi-
mãe ou de
Pode r-se-á pergu ntar se, para além da voz da tologia, pela filoso fia (3 7
) e pelas modificações recentes da teoria
uma importân-
quem os rodeia (3 ), há ruídos intensos que têm
4
as provaram psicanalíti,ca ~
38
), de~o nstr am que o espaço sonoro é o primeiro
cia nociva para o feto: os psicólogos experimen talist s e as mí-
no feto se provo cam stress espaço psiqmco: mais precocemente do que os gesto que o ro-
que esses ruídos só provocam stress mi.cas, «nota-se que o bebê realiza feed- back com o
exper iênci a efect uada numa ma- C9).
na mãe. Em contrapartida, uma mo po- dem: esses feed- back são de natureza audiofónica»
r que o ambi ente sonor o mate
ternidade tenta demonstra
deria ser decisivo para o bebê in utero:
(3 ) Marie-Louise Aucher, cantora, fundadora da
5 Association Française de
futuras mães da matern idade de Pithiviers. Cf
Psychophome, manda cantar as .
«Les matem ités chantantes», in L'Aub e des sens, op. cit., p. 185.
6
sa: "Nous té-Dam e déu cap déu pour Adyad at-me ad
C' ) <<Canção beame
1
(' ) Feijoo (J.), op. cit., pp. 193-209. g: newboms
-me nesta hora], canção
aquest hore" INossa Senh_?ra,do Fim da Po.nte, ajudai que tem um oratório
2
(' ) De Casper (A. J.) e Fifer (W. P.), «Üf human bondin popula r, cançao de. devoça o a Vrrgem do fim da ponte,
Scienc e, 208, 1980, pp. 1175-1176. et Paris Albin-Michel
prefer theirs mothers'voices», do outro lado do no ... >>, Cazaux (Y.), Jeanne d'Albr , ,
( ) Condon (W. S.) e Sande
33 r (L. M.), «Neonate movement is synchronized 1973, pp. 146-147.
,
with adult speech : interactional partici pation and language acquisition», Science, ( ) Ver capítulo II.
37
Aliás, o que aconteceria se a mãe do bebê não falasse com ele, wlth adult speech: interactional participation and language acquisition» Science
183, 1974, pp. 99-101. ' '
se ninguém falasse com ele? Conta-se que o Faraó Psamético, que- (~') Condon (W. S.) «Speech makes babies move>>, in R. Lewin (E. D.),
op. clt.
( ) .Wolff (P. H.), «The natural history of crying and other
44 vocalisations
( ) Mehler (J.) e colaborador es, <<La reconnaissan ce de la
40 voix maternelle .
vol.
lll early mfancy>>, in B. M. Foss (E. D.), Determinant s of infant behaviour,
par !e nourrisson>>, La Recherche, 70, Setembro de 1976. 4, Londres, Methuen, 1969.
( ) Carpenter (G.), <<Mother's face and the newborn>>, in Lewin
41 (E. D.), 45
( ) lbid.
Child alive, Londres, Temple Smith, 1975.
83
82
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios
84 85
A Voz e os Seus
Marie-France Castarede
tendência para reproduzir a melodia da língua dos adultos (5 6 ): to young children>>, in Snow (C. E.) e Ferguson (C. A.) Talking children
Cambridge University Press, 1977, pp. 63-68. ' '
. C' 9 ). Laver (J.), The phonetic description of voice quality, Cambridge
Umvemty Press, 1980, p. 47.
CS 2) Anzieu (D.), op. cit., p. 170. ( ) Papousek (M. e H.), «Musical elements in the infant's vocalizations:
60
CS 3 ) Dolto (F.), Lorsque l'enfant paraft, Paris, Le Seuil, 1977, p. 25.
their significan~e for communication, cognition and creativity>>, in Lipsitt (L.
CS 4) Bouvet (D.), La paro/e de l' enfant sourd, Paris, PUF, 1982.
P.), Advances zn Infancy research, Ablex Publishing corporation Norwood
5
(' ) Diatkine (R.), Prefácio, op. cit., p. 11. New Jersey, 1981, vol. I, pp. 163-224. ' '
CS 6) Cf. as experiências anteriormente relatadas sobre o palrar das crianças.
87
86
Marie-France Castarede
88 89
Marie-France Castarêde
me~te dif~ndida foi posta em causa por Joyce Me Dougall em Théâtres du je,
seria uma ponte que a mãe lançaria ao filho para o fazer passar
Pans, G_alhm~d, 1982, onde a autora traduz com mais exactidão essa expressão
da sua "língua" própria, que ela compreende, para a língua dos por «mae mats ou menos adequada>>; a mãe é «suficiente, mais nada>>, escre-
outros, por quem poderá então ser compreendido. Assim, a lín- ve Joyce Me Dougall, P':ll'a destacar a pequena diferença de sentido. Cf. p. 43.
gua materna, pelo intercâmbio de línguas que possibilita, destrói
67
( ) O camnho de lmha e a mãe.
68
( ) Diatkine (R.), <<Le problême de l'affectivité>>, in Apprendre à
lire,
(Actes du Symposium sur la lecture), La Tour de Pleiz, Ed. Delta , 1974, pp.
136-142.
( ) Lebovici (S.), Le nourrisson, la mêre et le psychanaliste, Paris,
64 Le 69
( ) Brousselle (A.), <<La musique: un jeu de la bobine vicieux et subli-
Centurion, 1983, p. 246. me>>, Revue Française de Psychanalyse, 5-6, 1979, p. 943.
90 91
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
ao mesmo
ve «uma no
com as fenômeno da assimilação das musicais a três grupos de
facto, as vocalizações criança a duas esquemas» Os esquemas pertencem aos registos do corpo, da
distintas que são transpostas para dois domínios diferentes da ressonância emocional e do espaço sonoro.
cultura; por um lado, os processos de conhecimento do real, que Os primeiros - chamados «esquemas de tensão e de descon-
vão desde a primeira denominação concreta e gestual aos tracção» - coincidem largamente com a esfera psicomotora da
símbolos verbais e abstractos, libertos dos constrangimentos da actividade representativa: actividade gestual e corporal, o mais
percepção sensorial e das actividades motoras - é a fala, ~o perto possível das forças do inconsciente. Piaget demonstrou que
mesmo tempo utilitária, sinalizadora, abstracta, que con~uz as a função simbólica mergulha nos esquemas da actividade senso-
operações lógicas do pensam~n~o; por ou~o lado, a e~pr~ssao das ~ial-motora: de facto, a expressão «gesto vocal» deve interpretar-
emoções e dos estados de espmto, que vm desde o pnmerro ~a~to -'se literalmente, isto é, há um movimento espontâneo do corpo
espontâneo da criança até às formas mais elevadas da mus1~a que acompanha a voz, movimento que se refreia porque não se
vocal em que a fala reencontra as fontes do sagr~do e da ma?ta· integra nos hábitos culturais, mas que os coreutas ditirâmbicos
O primeiro domínio é o da adaptação à reahdade, da objeC~ gregos executavam provavelmente sem qualquer pudor. Da
tividade da razão da consciência, do pensamento. O segundo e mesma forma, quando se ouve música num ambiente de concen-
o domí~io do jog~, da arte, da subjectividade, do inconsciente e tração, sente-se o impacte corporal que ela provoca, como se
do corpo ... tivéssemos de nos conter para não dançar ... Tal facto é magis-
tralmente revelado pelo maestro, cuja função é justamente impri-
mir uma dinâmica corporal à interpretação musical. Os seus
Os esquemas musicais gestos guiam e modelam a execução sonora. Todas as emoções
passam pelo corpo e no corpo, que exprime o que é gerado pelo
Assim, a vida íntima, antes de ser mediatizada pelas palavra~, psiquismo; no significado musical, o corpo e a afectividade es-
exprime-se através dos «esquema.s ~fectivos.» C0), de que a mu- tão estreitamente ligados.
sica constitui uma das transpos1çoes sublimadas. O esquema O segundo grupo de esquemas tem a ver com a distinção dos
afectivo inclui não só o mecanismo de assimilação, que transfor- humores: humores positivos e negativos. Na música, há vários
ma o real de acordo com as necessidades do eu, mas também o afectos que vão surgindo ao longo de uma mesma obra musical,
da acomodação, que remete para modelos exteriores. o que é evocado pelo enunciado dos movimentos: por exemplo,
Partindo desta noção, Michel Imberty C1) lança as bases de allegro, andante ou adagio, presto, podem traduzir-se por alegria,
uma nova semântica musical que, na nossa opinião, poderia as- entusiasmo, depois melancolia, meditação calma ou atormentada,
sociar-se às descobertas evocadas anteriormente sobre a primei- e, por fim, triunfo, alegria. Actualmente, a composição musical
ra língua dos bebés. A partir das associações verbais de ouvintes convida-nos a uma distinção mais instrutiva: os vários humores
evocados pela música - alegria, dor, angústia, satisfação, ple-
nitude- podem referir-se quer a uma continuidade do Eu (caso
C0) Frances (R.), La perce!!tion_ de ~a _mus~que,_ ~aris, Vrin (1958), P·. 342. em que se falará de música integradora) quer a um Eu fragmenta-
o esquema é uma representaçao pstcologtca_ stmphftcada, que serve de mter- do, estilhaçado, disperso (caso em que se falará de música desin-
mediário entre a imagem concreta e o conceito abst~acto. Tanto :p~a o_ esque- tegradora).
ma afectivo como para o esquema mental, os mecantsmos de asstmtlaçao e de
acomodação regem as relações com o real exterior. , .
C') Imberty (M.), Entendre la musique, Paris, Dunod, 1979, e Les ecntures
du temps, Paris, Dunod, 1981. C2) Imberty (M.), Les écritures du temps, op. cit., p. 4.
92 93
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
94 95
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
nunca
«E de Swann ter a polissemia,
sar: a pequena frase da sonata constitui uma prova da expres-
vir!" todas as recordações do mantel r
apazx·' onada por e ze, e que ate' esse
invisíveis nas profundezas do seu ser, iludidas p~r aque e
brusco lampejo do tempo do amor qu~ lhes parec za ter re- e a voz materna
vzeram canta_ r-lhe r;e:-
gressado, despertaram e, de repente,
tnfor tumo a de
didam ente, sem qualq uer .comp aixã~ pelo se~
7 . Depois de termos evocado «a peque na frase da sonat o
a comu nicaçã
presente, os refrões esqueczdos da fellczdade.» ( ) Vinteuil», decidimos concl uir este capítu lo sobre
recherche
vocal entre a mãe e o filho com as páginas de A la
«Encontrar uma frase musical é sempre reencontrá-la»,
?u du temps perdu dedicadas ao fascínio da voz femin ina. Mareei
desejo e da nostal g1a, lizaçõ es mais demo ns-
seja, saboreá-la no incessante vaivem do Proust pressentiu, muito antes das forma
e ~o sonor o (8 1):
da presença e da ausência, da perda e ~o ~eencon~ro, _porqu da v1da
trativas dos psicólogos, a primazia desse envól ucro
das essas oscilações remet em para as pnme rras oscila çoes
da criança... . · · 1 ' «Porque as verdades que a inteligência descobre direc-
na '. e algo
Como a mus1c a é essen cialm ente afectl va e 1rracw tamente nos interstícios do mundo da luz total possuem
texto, o s~u slg- a verda de
polissémica. Mesmo quando se mistura com o de menos profundo, de menos necessário do que
at1vo ou numa
nificado nunca é, contr ariam ente à linguagem, denot que a vida nos comu nicou contra a nossa vonta de
lexical. É por isso que um poem a ou. u~ texto pode presta r-se a
impressão, material porqu e entrou em nós através dos
sen-
osiçõe s mus1c a1s (1 8
ou melho r, _nunc a to podem os fazer surgir .» (82)
uma infinidade de transp );
tidos, mas cujo espíri
r ou nome ar com precis ão não só o conte udo da
é possível defini
que ela
música, mas també m o esque ma afectivo exacto ~ara O tempo reencontrado é a recordação das impressões
e da
sentm~ entos con- origin al.
remete. «A música não é obrigada a optar e~tre es-
primeira de todas, da mais significativa e mais
comp oe com temps
traditórios· sem se importar com a altern ativa, Desde o início do primeiro livro de A la recherche du
ses senti~entos um estad o de espíri to único , um estad o de Maree i Prous t se dedic a a
perdu - O lado de Swann - , que
e indefi nível> ~ C 9
~, como x:os recor- descrever a voz da mãe do narrad or:
espírito ambivalente e sempr
O». ~s
da Jankélévitch com a noção de «espresszvo .mexpresslV es
sim se explica o pluralismo dos gosto~ e a vm;1edade das
reacço
«... atenta a banir da sua voz toda a pequenez,
toda a
~uas ca- vaga,
por parte de quem ouve .. Contudo, seJa~ q~ms for~m as afectação que pudesse impedir a recepção da pujante
nao, pro- que
racterísticas socioculturms, as obras mus1cms, vocms ou fornecia toda a ternura natural, toda a ampla doçur a
mora l...») exigia m àquel as
(«essa bondade, essa distinção
as para a sua voz e que, por as-
Gallimard, 1968,
frases que pareciam escrit
C7) Proust (M.), A la recherche du temps perdu, Paris,
. · d
tomo I, p. 345. m~s~c~ os por
Cs) Por exemplo, os mesmos poema s de Verlam e foram Imberty (M.), Entendre la musique, op. cit., p. 5.
80
( )
uma mult1phC1dade de 81
, cf. «L'env eloppe sonore du soi»,
Debussy e Fauré; os textos das missas são obJecto de ( ) Termo retirad o de D. Anzieu
le Revue de Psycha nalyse, 13, 1976, p. 162.
. Le Seuil , 1983 , p. 95 · Nouvel
música s.
(19) Jankélévitch (V.), La musique et l'ineffable, Pans,
82
( ) Proust (M.), Le terns retrouv
é, op. cit., tomo lll, pp. 878-879.
96 97
A Voz e os Seus Sortilégios
Marie-France Castarede
ela vai ler-lhe «um verdadeiro romance», de
sim dizer, cabiam inteiramente no ~eorge Sand. Não será possível pensar que nessa impressão,
dade. Para as atacar no tom o acento o gosto de
simultaneamente sonora e literária, que se
cordial que lhes preexiste e que as mas que as
escrever de Mareei Proust e que a necessidade da sua obra tem
vras não indicam; graças a ele, à passagem toda
a '!er com a necessidade de manter o «laço» com uma mãe que,
a crueza nos tempos dos verbos, dava ao imperfeito do con- ahas, em A la recherche du temps perdu não morre?
juntivo e ao pretérito perfeito a doçura que há na bondade, Só muito mais tardiamente, no terceiro livro, é que a voz
a melancolia que há na ternura, encaminhava a frase que volta a ser evocada, por ocasião de uma conversa telefônica com
acabava para a frase que ia começar, ora acelerando, ora a av~ do narrador. Em A la recherche du temps perdu, a mãe e
abrandando a marcha das sílabas para as fazer entrar, em- a avo de Marcel Proust- Jeanne Proust e Adele Weil - fo-
bora as suas quantidades fossem diferentes, num ritn;o. uni- ram «objecto de uma fusão que atribui à segunda certos traços
forme, insuflava àquela prosa tão comum uma especre de da primeira» (86 ).
83
vida sentimental contínua.» ( ) _ Assim, Proust continua nestas páginas a descrever a perturba-
ç_a? profunda que. provoca nele a voz feminina, agora separada
E o narrador prossegue: flSlcamente pela distância que prefigura o adeus definitivo e irre-
vogável de Uf!la separaçã_o total, neste caso, a morte, embora, para
«Os meus remorsos tinham-se acalmado, entregava-me à
revelar o seu mtenso sofnmento, opte por imaginar a morte da avó:
doçura daquela noite em que tinha a minha mãe junto de
mim.» (84) «E mal a nossa chamada retiniu, na noite cheia de apa-
rições em que só os nossos ouvidos estão despertos, um ruí-
Neste mundo dos sons, a que Proust atribui a maior impor- do leve - um ruído abstracto - o ruído da distância
tância, e mesmo a proeminência ( ), a voz materna desen:penha
85
suprimida - e a voz do ente querido fala connosco.
o papel de «espelho sonoro», acalmando, pela sua e~t~açao m~ ... Essa voz tão próxima é uma presença tão real - na se-
lodiosa e terna, a angústia da criança que, na escundao da noi- paração efectiva! Mas é também antecipação de uma sepa-
te, receia perder o objecto do seu amor. ração eterna! Muitas vezes, escutando apenas, sem ver
Provavelme nte, este texto fornece-nos uma das chaves da aquela que me falava de tão longe, pareceu-me que aquela
criação literária proustiana, porque esta descr~ção tão subtil da voz clamava das profundezas de onde não se volta a subir
voz materna está ligada à famosa cena do de1tar em Combray. e senti a ansiedade que um dia haveria de oprimir-me, quan~
Recordemos o episódio: Swann veio jantar,.? narrador senAte q':le do uma voz voltasse assim (sozinha, e já não ligada a um
a mãe não irá ao seu quarto dar-lhe um belJO e tenta faze-la_ rr, corpo que eu nunca mais voltaria a ver) a murmurar ao meu
enviando-lhe um bilhete «escrito» por intermédio de Franç01se. ouvido palavras que gostaria de beijar ao passarem em lá-
Essa tentativa fracassa até ao momento em que o pai, preparan- bios para sermpre convertidos em pÓ.» ( )
87
99
98
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
e concreta
horas gra- escuro,
a morte- o humano chamar-me. Es-
é resumido pela voz, que se converte da tremecia como, muito no tinha
. . estremecido outrora, num dia em que, era eu a per-
comunicação entre os seres.
Em seguida, Proust evoca a voz quenda, deshgada do corpo dera no meio de uma multidão, angústia menor por não
e da visão como se através dela tivesse nas mãos o ~ o voltar a encontrá-la do que por sentir que ela me procura-
fim da exi~tência humana: subjugado na comunicação telefómca v~, por sentir que ela pensava que eu a procurava; angús-
pelo despojamento de uma imp:ess~o exch~sivamente sonora, tw bastante idêntica à que sentiria no dia em que se fala
Marcel Proust descobre, no que e hoJe em d1a totalmente. bana- àqu~les que já não podem responder e que gostaríamos que
lizado pela vida quotidiana, a matéria de uma experiência per- o~vzssem tudo o que não lhes dissemos, e a certeza de que
turbadora. Através desse diálogo vocal - o último - , fecha-se nao sofremos. Parecia-me que era já uma sombra querida
suscita o regresso à origem. O sonoro con- que eu acabava de deixar perder-se nas sombras e sozinho
0 círculo: o último
verte-se em viagem às fontes da encarnação, com a ternura do diante do telefone, continuava a repetir em vão: ,;Avó, avó",
primeiro amor que a morte arrebatou: como Orfeu, depois de ficar só, repete o nome da morta.» (88 )
«Mas a sua própria voz, ouvia-a hoje pela primeira v:z· Proust imagina a morte da avó do narrador porque a morte
E como essa voz me parecia mudada nas suas proporçoes da_m~e é ~nsuportável. Aliás, só quatro anos após a morte da sua
porque era um todo e me chegava assim sozinha e sem o propn~ mae, em 1905 (Proust tem, então, trinta anos) é que co-
acompanhamento dos traços do rosto, descobri quanto .ess~ meçara a escrever a sua obra, que, por um mecanismo de dene-
voz era doce ... Era doce, mas também era triste, em pnme~ gação literária, lhe permitirá ocultar essa insuportável verdade: o
ro lugar devido à sua própria doçura, quase decantad~, mazs laço é restaurado e mantido na ficção romanesca.
do que poucas vozes humanas jamais o dev.e~ te; srdo, de Em La Prisonniere, Proust, por intermédio do narrador, volta
toda a dureza, de todos os elementos de reszstencza aos ou- à conversa telefônica e à magia das vozes. As «vozes de mulhe-
tros, de todo o egoísmo!... . r~s~>, reunidas numa mesma evocação, não serão as réplicas, in-
Seria aliás unicamente a voz que, por estar sozmha, me fmltamente variadas, da voz única e primordial da mãe, já que
dava ess~ imp;essão nova que me torturava? Não; esse iso-
lamento da voz era mais como um símbolo, uma evocação, «OS verdadeiros paraísos são os paraísos que se perdera?» (89)
um efeito directo de um outro isol~mento, o da mi~ha avó, «Acabava de ser infinitamente sensível à sua voz (a voz
pela primeira vez separada de mzm... O que eu ttnha sob de Andrée), pois nunca tinha notado que era tão diferente
aquela pequena campana junto ao meu ou.vido taf!Lbém era, das outras. Então, lembrei-me de mais outras vozes, sobre-
liberta das pressões opostas que a cada dza lhe tznham ser- tudo vozes de mulheres, umas arrastadas devido à precisão
vido de contrapeso, e por isso mesmo i~resistível, ?e~tu;,bar: de uma pergunta e à atenção do espírito, outras ofegantes,
do todo o meu ser, a nossa ternura reczproca ... Gntez: Avo, e até entrecortadas, pela vaga lírica do que contam; lembrei-
avó", e gostaria de a beijar; mas só tinha junto de :nim -~e, uma a uma, das vozes das raparigas que tinha conhe-
aquela voz fantasma tão impalpável como o que talvez vzesse ctdo em Balbec, depois lembrei-me de Gilberte, da minha
visitar-me' quando a minha avó morresse . ."F ala c.omi?o" ,:
mas o que então aconteceu, deixando-me amda ~azs so, f~~
que, de repente, deixei de ouvir aquela. voz:_ A mt~ha a~o Ja (
88
89
) lbid., pp. 134-136.
não me ouvia, já não estava em comumcaçao comzgo, tmha- ( ) Proust (M.), Le temps retrouvé, op. cit., tomo m, p. 870.
100 101
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
(9o) Proust (M.), La Prisonniere, op. cit., tomo III, pp. 101-102. (93) Proust (M.), A l' ombre des jeunes filies en fleurs op. cit tomo 1 pp
440-441. ' ., ' .
(9') Ibid., pp. 256-257. 94
( ) Proust (M.), Le côté de Guermantes, op. cit., tomo II, p. 48.
(92) Ibid., p. 258.
102 103
Marie-France Castarêde
A lição de
104
«0 meu ouvido ávido de ouvir
As notas de ouro da sua terna voz,
Todo o meu ser e todo o meu amor
Aclamam o venturoso dia
Em que, único sonho e único cuidado,
A minha noiva regressará!»
A relação psicológica
Em La Leçon de chant, de Watteau, um guitarrista afina o
seu instrumento sentado num muro baixo que serve de pano de
fundo. A companheira, ligeiramente inclinada, ergue os olhos para
ele com um gracioso movimento do pescoço. A sua pose é lân-
guida. Folheia uma partitura e parece esperar pelo sinal dele.
O vestido, amplo e decotado, é elegante, tal como o barrete ver-
melho de veludo do músico. Imagina-se que vão comungar na
107
Marie-France Castarede
108 109
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
· - d · O
as suas vocahzaço es, a omma'-las ' .a afiná-las,
. E
a como
· 0 com a voz
também deve estar deste universo de
r altamente cultivado e soflst1cado. ste JOg d .. sensações criado pela correcta pedagogia do canto, para não fa-
um pa1ra . se espera, a qumu lar dele de uma forma aproximativa e vaga.
inicia-se JUnto de u_m . qul~,. neste domí-
d , io técmco e pslco oglCO. Na aprendizagem há duas nio, existem falsas certezas (9), largamente mantidas por alguns
esse omm ' t-ao ligadas indissoluvelmente: a técnica, que se professores, que receiam pôr-se em causa. Quando as sensações
vertentes que es ) 't ·
articula a partir de dados fisiológicos (sopro , ~ m{~o~ (campas-
(6) que
são comunicadas correctamente por alguém que as possui e as
so) musicais (leitura das notas) e a cor:du~a p~lCO ogica ' domina, o aluno, em vez de se limitar a reproduzir por osmose,
det~rmina e condicion a os progressos tecmcos. vai descobrindo progressiv amente a forma exacta como essas
sensações e a sua necessária coordenação (audição, respiração,
<<Na minha opinião, as dificuldades es.!enci~is ~u~ as per) articulação, projecção vocal) se gravam no seu corpo. No início,
soas sentem para descobrir a sua voz .sao pstcologtcas.» o aluno só pode cantar bem na presença do seu professor ... Todos
o dizem: alguns (estamos a pensar numa cantora profission al
m rofessor que se quer imitar, muito famosa), se estão longe, telefonam para redescobrirem no
Aprende-se a cantar com u. P . f'
f or ele simpatia e con Iança. Este aspecto outro lado do fio a sensação adequada, por imitação à distância!
porque se sente es lma p ' . timidade da relação peda-
é fundamental: f daAda .a C~t~=~:
gógica, a tra.ns. ere~cla
:e::Ositiva logo de início. Esse
rimeiros tempos, se opera de uma
Só muito progressivamente é que cada um vai adquirindo a possi-
bilidade de interiorizar essa sensação e a falculdade de a repetir
na ausência do professor. Assim se pode ver até que ponto é sub-
processo ~e Imltaçao qu.e, ,~?t ~ muito instrutivo. Há um mund~ til e impalpável o que essa aprendizagem requer. Os «trabalhos
forma mals ou me.nos, l~a 1 ' . ulatórias e auditivas que nos e de casa» não passam por nenhuma receita precisa, não há qual-
de sensações respiraton as, artlc 1 só se pode ir descobrindo quer mediatização, nem da linguagem falada, nem da linguagem
comunic.ado, mundo em queooé a ~~oa arte do canto é, ao mesmo
escrita ou instrumental: os instrumentistas têm as suas escalas e
progressiVamente. O paradox q ões naturais de descontracção
tempo, tão natural (regresso ! sensaç - os seus exercícios, mas o máximo que o aluno de canto pode le-
delicadas de audição) var consigo, recorrendo aos progressos da técnica, é uma cassete,
. -
na respuaçao , n a articulaçao ' sensaçoes têm de estar tecnicamente vestígio de uma lição viva, que tentará imitar em casa, sem qual-
e tão sofisticada (tod?s os bprocessosresultado fiável e estável).
· d e se qmser o ter um . d quer garantia de fidelidade no início. Quando a comunica ção
domma os,. s . m recital particularmente conseguid o e entre o professor e o aluno for já suficientement9 precisa, este
Quando assistimos a u d um grande cantor, ficamos sempre ad- poderá reproduzir sozinho o que tiver aprendido. E assim que, a
u~a grande cantora. ~u e m ue desempenham o seu papel: pouco e pouco, a sua autonomia vai sendo conquistada, o que
muados com a facilidade co q
.t bem que essa aparente facll T dade tirando os
ora, sabe-se mu: o. ,
dotes indispensavels, e sempre ru
'
f to de um trabalho assíduo e
lhe vai permitir cultivar a sua voz e deixá-la exprimir-se livre-
mente.
tenaz. A aprendizagem do canto é uma iniciação no mistério das
primeiras relações entre mãe e filho, antes da instauração da lin-
guagem. Um bom professor de canto só o será para um ou outro
d icológica como sendo distin- aluno, porque, para além das qualidades técnicas e da cultura mu-
(6) Daniel Lagache decreveu a (~c: ~t)» J~e é objectivamente descritível,
ta, por um lado, do compo~ame~tot e ,v~f~a' que implica um processo muito
e, por outro lado, da relaçao pslCO erapeu , (9) A fisiologia respiratória presta-se a mal-entendidos por vezes grossei-
particular. voix Paris Le Seuil, 1977, p. 9. ros (papel exacto do diafragma, por exemplo, ou dos músculos abdominais)
C) Rondeleux (L.-J), Trouver s~ 1\co ~mpliando-lhe o sentido, mas porque se trata de processos corporais difíceis de descrever e de controlar.
(s) Recorremos aqm ao !ermo ps!cana/ 1 , de canto parece-nos justificar A forma como se deve regular o sopro e colocar a voz dá azo a recomenda-
o que está em jogo na relaçao com o pro essor ções contraditórias por parte dos professores de canto.
esse recurso.
110 111
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tre os musicólogos (23 ). Para ilustrar esta ~~'"'"'''""''"'· te, também se considera que um bom orador é que possui
tores: Charles Panzéra, para quem vai a sua pn~tere11C1a. uma torácica muito ampla, um pescoço
presonifica a arte do genocanto, e Dietrich uma voz de «stentor» (2 6 ). Os professores de ginástica insistiram
personifica a arte do fenocanto: durante anos na inspiração e na expiração torácicas superiores,
exagerando a tomada de ar torácica durante a inspiração e os mo-
<<Ao nível da estrutura (semântica e lírica), tudo é res- vimentos de contracção dos músculos torácicos e abdominais
peitado; e contudo não há nada que seduza, não há nada que durante a expiração. Estas recomendações não estão de acordo
faça sentir prazer; ... neste caso, é a alma que acompanha com os mecanismos da respiração profunda e natural. No canto,
o canto, não é o corpo.» (2 4) onde é preciso redescobrir esses mecanismos, a respiração costa-
-abdominal deixa o tórax descontraído e distendido, sem qualquer
E a propósito de Charles Panzéra: movimento muscular intempestivo das costelas, dos ombros, do
peito ou do ventre: as impulsões são discretas. Muitas mulheres,
<<0 grão é o corpo na voz que canta ... » (2 5 ) nomeadamente, por uma questão de vaidade, encolhem a barri-
ga (2 7), quando a respiração natural deve permitir a execução dos
Esta distinção parece-nos pertinente, embora não estejamos de movimentos alternados de descontracção e de firmeza. Um bom
acordo com a escolha dos artistas, ou melhor, queremos defender exemplo da oposição entre a respiração abdominal e torácica e
aqui. o barítono alemão Dietrich Fischer-Diskau (ainda que ele não da sua ligação respectiva com o prazer e a angústia (ou a agita-
precise, dada a sua fama internacional e o seu imenso talento musi- ção) é o movimento de terror, oposto ao de alívio: no primeiro
cal). Na nossa opinião, Roland Barthes deixou-se arrastar para um caso, as pessoas erguem o tórax, contraindo os músculos do pes-
julgame~to rápido pela .necessidade imperiosa de dar um exemplo coço; no segundo caso, descontraem-se num suspiro consolado.
que apmasse a sua teona. Vamos por partes ... Há cantores que re- O controlo da respiração natural é a estrada real do som, e a
velam um elevado grau de cultura e de requinte: Elisabeth Schwaz- economia do sopro - a arte do grande cantor - provém de uma
kopf poderia ser citada como o equivalente feminino de Dietrich respiração calma, profunda, exaustiva, que se opõe à excitação
Fischer-Diskau. Noutros, o que surge em primeiro plano é a sua angustiada (bloqueios) ou à energia forçada (atitude voluntarista).
natu~eza, ~ais selvagem, mais sensual e mais instintiva: poderemos Nesta mesma perspectiva da respiração calma e profunda há
refenr Mana Callas como testemunho exemplar desses artistas. No que abordar um problema técnico do belo canto: o ataque. O que
entanto, seria falacioso pensar que nestes enormes artistas não exis- é vivamente desaconselhado, criticado, vilipendiado, é o ataque
te, em graus diferentes, uma harmoniosa mistura de força instintiva brusco, o «golpe de glote» (2 8). Os cantores praticam regularmen-
e de controlo. A capacidade que têm de emocionar quem os ouve te certos vocalizos para abolir esse movimento, em muitos casos
passa obirgatoriamente pela conquista dessa unidade, embora possa involuntário, que confere ao ataque o seu carácter rude. Sob este
haver um dos aspectos que prevalece sobre outro, segundo os casos. ponto de vista, o ataque é um termo antinômico daquilo que, des-
No Ocidente, sobretudo há alguns decénios, a educação tendia de sempre, foi designado como ideal na arte vocal. Tanto no can-
a privilegiar a respiração torácica superior. Nas imagens colecti- to como na música instrumental, o ataque designa o início do som,
vamente aceites, o desportista ou o atleta continua a ser aquele
que enche bem os pulmões, que dilata o tronco. Inconscientemen-
(26 ) Estentor, personagem da Ilíada, <<de voz de bronze», tinha uma voz
tão potente como cinquenta guerreiros juntos.
(2 3) Barthes (R.), «Le grain de voix», in Musique en jeu 9 Paris Le Seuil (2 7) As cintas de <<bom porte>> eram usadas pelas meninas modelo da con-
1972, pp. 57-63. , , ' ' dessa de Ségur.
(24) Ibid., p. 59. (2 8) Nem sempre no caso da ópera, onde há certos papéis ou passagens
25
( ) Ibid., p. 62. cantadas que necessitam justamente de violência e dureza.
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como escreve Ivan E somos levados a referir uma outra característica vocal que
com a ternura e diminui na os do canto procuram dar aos seus alunos: a espes-
agressivas (46 ). Por isso, as características belo canto legato sura, característica que, à primeira vista, parece desconcertante
são também as que os bebés preferem. Os psicolinguistas e os porque a voz falada esforça-se, sobretudo quando expõe, expli-
psicofonéticos revelam-nos a nítida predilecção dos bebés por ca ou profere uma conferência, por ser distinta, argumentativa e
uma fala melodiosa. O ideal do cantor é redescobrir, para poder convincente; ora, a disposição interior a que o aluno é convida-
comunicar com o seu público e «encantá-lo», a qualidade da voz do quando canta é muito diferente. Elisabet Schwarzkopf fazia
da mãe quando, presente na sua continuidade de bondade, tran- disso o seu leitmotiv nas suas aulas em Tours:
quiliza o filho com uma voz harmoniosa e tema.
Sob este ponto de vista, será necessário opor, como faz «Não se preocupem com a luminosidade, com a força,
Roland Barthes, a articulação à pronúncia: dizia ela aos seus alunos, preocupem-se com a sonoridade ...
A luminosidade da voz não é como um laser que mata ... Ima-
«A articulação é o simulacro e a inimiga da pronúncia; ginem que têm uns braços roliços e que querem abraçar ...
deve-se pronunciar, não articular; porque a articulação é a Nunca sejam duros ... Procurem o som dentro de vós ... O som
negação do legato; a articulação pretende dar a cada con- deve ser espesso em vós, no interior de vós ... não demasia-
soante a mesma intensidade sonora, quando, num texto mu- do luminoso ... mais cheio.» (48 )
sical, uma consoante nunca é a mesma: cada sílaba, longe
de ter saído de um código olímpico dos fonemas considera- Essa voz que acaricia e embala - será preciso voltar a
do definitivo, deve encaixar-se no sentido geral da frase. sublinhá-lo? - tem afinidades com a voz original dos princípios
Articular é sobrecarregar o sentido de uma claridade para- da vida, aquela que proporciona segurança e calor.
sita, inútil mas nem por isso luxuosa. E essa claridade não
é inocente; arrasta o cantor para uma arte, perfeitamente
ideológica, da expressividade, da dramatização: a linha me- A projecção vocal
lódica esvai-se em estilhaços de sentido, em suspiros semân-
ticos, em efeitos de histeria. Pelo contrário, a pronúncia Last but not least, a projecção vocal é outra recomendação
mantém a coalescência perfeita da linha de sentido (a fra- capital da lição de canto. O que importa é comunicar ao Outro
se) e da linha da música (o fraseado). Nas artes da articula- o que exprimimos. O movimento respiratório começa por ser uma
ção, a língua, mal compreendida como um teatro, uma troca: recebemos ar e retribuímos com o nosso sopro. O que a
encenação do sentido um tanto kitsch, irrompe na música e correcta pedagogia do canto nos ensina é a colocar a voz de
perturba-a de uma forma inoportuna, intempestiva: a língua forma a que não seja dura, agreste, ou metálica, mesmo em de-
coloca-se à frente, é o importuno, o chato da música; na arte trimento da luminosidade. O que encanta o outro e provoca a sua
da pronúncia, pelo contrário (a de Panzera) é a música que disponibilidade e a sua aceitação, é escutar uma voz aérea, uma
vem até à língua e redescobre o que nela há de musical, de voz que plana, densa e calorosa, procurando a ressonância recí-
apaixonado.» (47 ) proca, sem a forçar .ou constranger. A voz não se deve apoiar na
parte anterior da boca, mas atrás e em cima, em direcção ao véu
do palatino. Se assim for, a voz expande-se em cúpula e em
(
47
) Barthes (R.), L'obvíe et l'obtus, Paris, Le Seuil, 1982, p. 250. de interpretação.
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!Ylarie-France Castarêde A Voz e os Seus
Freud e a música
Como se sabe, Freud afirmava ser «ganz unmusikalisch»,
totalmente não músico, «mas tratava-se certamente de uma de-
negação porque, segundo o testemunho de Eissler (1), possuía um
bom sentido musical».
Quando Freud evoca a música vocal (não fala da música
instrumental), refere-se sobretudo ao libreto. De facto, revela a
protecção contra o extravasamento emocional, por aparição sono-
(') Eissler (K. R.), citado por Cai'n (J. e A.), Psychanalyse et musique,
Paris, Les Belles Lettres, 1982, p. 108.
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ra, que, para a racionalidade e a análise. Freud hora a seja o o totalmente músico" po-
sempre gostou de realçar o poder de deria ser que, por motivos que só a ele
exemplo, o poder manifestado por tende a evitar ou a essa
onde, servindo-se do seu cinzel, supera «os vestígios de uma
emoção que se extingue» (2). Em Freud, há seguramente um po- Para além da voz materna, Freud também deve ter ouvido a
tencial demasiado intenso ou demasiado contraditório de afectos de Nannie, que cantava canções de embalar na sua língua, o
que são despertados pela música: o auditivo recordava-lhe, em checo. Ora, como observa Didier Anzieu, Freud compara o in-
primeiro lugar, a voz materna, calorosa e presente, que devia ter consciente a uma língua estrangeira (5). E também foi sensível a
envolto num banho sonoro protector «esse primogénito preferi- uma outra voz familiar: a voz de Emmaline, a avó materna, evo-
do», numa relação de que o pai, nitidamente mais velho, tinha cada por Martin Freud:
sido mais ou menos excluído. Essa jovem mãe «muito música»,
como alguém a descreveu, devia ser ainda mais sedutora quan- «Aos sábados, quando ela vzvw connosco, ouvíamo-la
do cantava melodias ou canções de embalar. No entanto, o sen- cantar orações judaicas, com uma vozinha firme, mas melo-
timento oceânico sempre inspirou desconfiança a Freud, que, em diosa.» (6)
Mal-Estar na Civilização, chegou mesmo a declarar:
Como refere Jones, Freud acabará por esquecer o checo e por
«Em mim próprio, é impossível descobrir tal sentimento ... » recalcar não só a voz materna mas também a voz da avó, que
associava às salmodias religiosas C). A voz envolve, acaricia, em-
E acrescentou: bala; é sempre efracção do corpo ... O bebé, antes de ver o rosto
da mãe, ouve-lhe a voz: umas semanas mais tarde, a vista virá
«E depois, é difícil tratar cientificamente dos sentimen- introduzir a distância.
tos.» (') Retomando uma classificação de Charcot, Freud considera-se,
isso sim, aquilo que define não como um auditivo, mas como um
Ora, a música, mais do que todas as outras artes, implica a «visual»:
possibilidade desse regresso ao seio matemo, essa entrega regres-
siva a um paraíso perdido que não possui referências espaciais ... «Todas as minhas recordações de infância são unicamente
Em Psychanalyse et musique, Jacques e Anne Ca'in afirmam o de carácter visual; são cenas elaboradas plasticamente.» (8)
seguinte:
Todas as suas recordações e também uma boa parte dos seus
«Será nesta música natural, cujo paradigma perfeito é a sonhos. O sonho é, em primeiro lugar, uma transcrição visual do
canção de embalar, e no fundo sonoro da fala com um acom-
panhamento não codificado, que reside o fascínio compulsivo, 4
( ) Cai:n (J. e A.), op. cit., p. 127.
ou o seu inverso fóbico, em torno do qual cada pessoa irá C) Anzieu (D.), L'auto-analyse de Freud, Paris, PUF, 1975, tomo 1, p. 39.
depois estruturar o seu interesse pela música? Neste sentido, 6
( ) Freud (M.), Freud mon pêre, Paris, Denoel, 1975.
"o totalmente não músico" ou, o que no fundo é idêntico em- C) Pàra Freud, o sonoro só seria interessante se fosse verbal. A mãe tinha-
-o ensinado a ler e a escrever em alemão depois de terem emigrado para Viena,
enquanto a primeira infância em Freiberg tinha sido marcada pelo ídixe, o checo
(2) Freud (S.), Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Gallimard, 1976, ' e o canto, objectos de recalcamento. O recalcado voltou a surgir no interesse pelo
p. 31. libreto das obras vocais, compromisso entre o verbal escrito e a música.
e) Freud (S.), «Malaise dans la civilisation>>, Revue Française de
8
( ) Freud (S.), Psychopathologie de la vie quotidienne, Paris, Payot, 1967,
p. 55.
Psychanalyse, tomo 34, Janeiro de 1970, p. 10.
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é de um corpo e de um pen-
durante a "''"'~"ua um ser único. revela o
que a harmonizado ou
sonoras, há de coisas que se ou ambíguo; ser mais da cabeça, do cora-
"representantes de palavras".» (' 1) ção ... ou do corpo todo; pode ser baça, quando já não pode trans-
mitir qualquer emoção.
A voz, discurso vivo, de gritos em gorjeios, de em Por isso, quando a voz é reduzida a uma «imagem sonora»
vocalizos, transformar-se-á em fala. Nos primeiros tempos do (eco), deixa de remeter para o desejo de outrem:
processo primário, o laço vocal com a mãe é o suporte sonoro
das imagens de satisfação e a criança inicia-se nos fonemas, re- «É devido a essa falta de referência à alteridade que o
produzindo vocalmente, e de uma forma lúdica, as experiências discurso sem palavras e os olhos sem olhar da criança
gratificantes: psicótica são tão difíceis de suportar.» (3 4)
«É assim que a "castração oral", ao separar os lábios Há o «silêncio de morte», que evita o pedido que faz viver.
do seio, permite descobrir os prazeres da comunicação. A es- Há a voz do esquizofrênico que se protege da voz da mãe,
te respeito, é impressionante constatar que a criança, inicial- intrusiva e «mau» objecto. Em Le shizo et les Zangues (3 5 ), Louis
mente capaz de pronunciar todos os fonemas de todas as Wolfson afirma que não suporta ouvi-la: cada palavra que ela
línguas do mundo, se vê rapidamente na quase impossibili- pronuncia o magoa, penetra nele e ecoa intrusivamente. Mal a
dade de pronunciar os que não pertencem à sua língua mãe se aproxima, ele memoriza uma frase .de uma língua estra-
materna.» (3 2 ) nha. Como escreve Gilles Deleuze no seu prefácio:
Sem a mãe, a criança não poderia reconhecer, nomear ou «A mãe pretende fazer vibrar o ouvido do seu filho em
descobrir os sons. É a fala da mãe que introduz no corpo da uníssono com as suas próprias cordas vocais: "a sua voz
criança a sua capacidade de memorizar, de unificar as percepções muito alta e estridente, e talvez também triunfal" ... "aquele
sensoriais, permitindo-lhe o prolongamento temporal da memó- tom de triunfo que ela tinha ao pensar que inundava o seu
ria, e, mais tarde, da reminiscência (3 3 ). filho esquizofrénico com palavras inglesas" (3 6 )... "parecen-
Por conseguinte, é pela voz e pelo ouvido que o homem do tão cheia de uma espécie de alegria macabra por aquela
adquire o seu estatuto de sujeito: progressivamente, passa a di- boa oportunidade de injectar, em certo sentido, as palavras
zer «eu» a um «tu». Escutar alguém é ouvir a sua voz, tanto nas que lhe saíam da boca nos ouvidos do seu filho, do seu único
conversas como na psicanálise. Mais profundamente, escutar é filho ou, como ela lhe dizia de vez em quando, da única coisa
deixar ecoar em si, no silêncio, a fala do outro. Isso significa que que possuía, parecendo tão feliz por fazer vibrar o tímpano
se é tão sensível à voz como ao conteúdo da mensagem, porque dessa única coisa possuída, e por conseguinte os ossículos
é por ela que se revela o não-dito, o sentido profundo, o indizí- do ouvido médio dessa tal coisa, que era o seu filho, em
vel, o inconsciente ... A voz é singular porque, ao contrário da uníssono quase total com as suas cordas vocais e apesar de
ele próprio também possuir cordas vocais.» 7 ) e
(3°) Talvez seja este o fundamento ontogenético do discurso musical.
(3 1) Gibello (B.), «Fantasmes, langage, nature>>, in Psychanalyse et langage,
4
(' ) Vasse (D.), op. cit., p. 91.
Paris, Dunod, 1977, p. 36. (3 5) Paris, Gallimard, 1978.
(3 2) lbid., p. 39. (3 6 ) Neste caso, língua materna.
(' ) Deleuze (G.), prefácio a Wolfson (L.), op. cit., p. 15.
7
( ) Seria este o fundamento da memória musical?
33
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38
( ) Deleuze (G.), Logique du sens, Paris, Éditions de Minuit, 1973, p. 267.
( ) Jakobson (R.), Essais de linguistique générale, Paris, Éditions de
40
9
(' )Gori (R.), Le corps et le signe dans l' acte de parole, Paris, Dunod,
1978, p. 9. Minuit, 1973, p. 217.
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na união
do encantamento, de que encon-
lJPl"rt"'rtorrn
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(5 6) Green (A.), Un a:il en trop, le complexe d' Oedipe dans la tragédie, C9) Grunberger (B.), Le narcissisme, Paris, Payot, 1971, p. 28.
op. cit., p. 26. ( Verlaine, no seu «Rêve familier>>, revela a sua predilecção pelo so~o
60
)
(5 7 ) Rosolato (G.), «Le narcissisme>>, op. cit., p. 16. ro e reconhece a mulher amada pelo nome e pela voz: o olhar e a cabeleira
(5 8) Freud (S.), «Malaise dans la civilisation>>, op. cit., p. 17. Não seria são relegados para segundo plano.
mais correcto dizer <<pela mãe>>? Mas sabe-se que Freud não ousava confessá- 61
( ) Op. cit.
-lo, tal como não podia «fruir>> a música ... 62
( ) lbid.' p. 203.
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família! des névrosés» (1909), in Névrose, psychose et perversion, trad. J. La- espera em vão na solidão da montanha.
planche, Paris, PUF, 1973, como prefácio ao livro de Otto Rank (1909), Le ( ) Freud (S.), Essais de Psychanalyse, Paris, Payot, 1967, pp. 15-20.
68
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«de objecto de André através deles emoções, estéticas claro mas que podem ser
que o explicita a para ele quase tão importantes como emoções pessoais e íntimas:
Tristão, !solda, Violetta, Mimi, Otelo, Desdêmona (e a lista po-
<<Assim, as estruturas da fantasia uma tendência deria ser continuada indefinidamente ... ) são seres que conhece-
dupla. Para o objecto, apoiam o desejo e para mos, cujos sentimentos e afectos partilhámos:
a formação daquilo que tem por missão concretizá-lo: sonho,
sintoma ou actividade sexual, com os meios postos à dispo- «São seres a que se deve aplicar a categoria que Win-
sição da descarga e segundo as vias que lhe são abertas. nicott designa por objectos ou fenómenos transicionais: isto
Para a procura de uma unidade subjectiva idealizante, mar- é, que são e que não são.» C3 )
cada pela renúncia a uma satisfação que implica uma des-
carga completa (por a fruição estética estar sujeita à inibição O ser de ficção é transicional, porque não é objecto sexual
de objectivo da pulsão ), e em que, em contrapartida, se acei- 'real; também não pertence ao domínio da fantasia pessoal, por-
ta a construção narcisista do outro. Neste sentido, os objectos que a identificação é colectiva, partilhada:
da criação artística mereceriam ser designados por trans-
narcisistas, isto é, geradores de uma comunicação entre os «A força de uma pessoa como Maria Callas é fazer com
narcisismos do produtor e do consumidor da obra.» C1) que um dos possíveis desses seres de ficção seja defendido
com uma convicção tão extrema que, durante um certo tem-
O que se verifica na tragédia e no teatro verifica-se ainda po, parece ser o único possível... Creio que Maria Callas
mais com os heróis da ópera. O que os distingue é que, na ópe- devia sentir uma dor imensa e ter possibilidades de converter,
ra, a voz está indissoluvelmente ligada à música (sobretudo nas de fazer alguma coisa dessa dor» (1 4), ou seja, comunicá-la ...
árias e, em menor grau, nos recitativos), o que, sob o nosso ponto
de vista, reforça ainda mais a possibilidade identificatória. A iden- A identificação transnarcisista é necessária à vida social; per-
tificação com objectos transnarcisistas permite que o homem te- mite o aumento das relações humanas, a formação de unidades
nha várias vidas: mais vastas do que a família ou o fechamento do indivíduo que
se recolhe em si mesmo; neste sentido, as manifestações colec-
«No domínio da ficção, encontramos a pluralidade das tivas artísticas - vocais, musicais, teatrais - são verdadeiramen-
vidas de que necessitamos. Morremos como o herói com o te civilizadoras:
qual nos identificámos: contudo, sobrevivemos-lhe e estamos
prontos a morrer de novo com outro herói, continuando «Como já sabemos há muito tempo, a arte proporciona-
igualmente sãos e salvos.» (1 2 ) -nos satisfações substitutivas, que compensam as mais anti-
gas renúncias culturais, aquelas que continuam a ser senti-
Tanto para o espectador como para o criador, os heróis são das muito profundamente, e por isso não há nada que possa
duplos, são, ao mesmo tempo, projecções do Eu e do Ideal do reconciliar tão bem o homem com os sacrifícios que fez em
Eu: o compositor de ópera cria seres de ficção. Vendo-os viver nome da civilização. Por outro lado, as obras de arte exal-
em palco, o espectador vai poder identificar-se com eles, viver tam os sentimentos de identificação, de que cada grupo so-
cial tanto necessita, dando-nos a oportunidade de sentir em
C') Green (A.), Un ceil en trop, op. cit., p. 36. C') Green (A.), <<Maria Callas: un mystere>>, Lyrica, 38, Novembro de
(
72
Freud (S.), (1915), <<Considérations actuelles sur la guerre et sur la
) 1977, p. 32.
mort>>, Essais de Psychanalyse, op. cit., p. 256. C4) Ibid., p. 74.
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(1 5) Freud (S.), L'avenir d'une illusion, Paris, PUF, 1971. condessa Madeleine, hesita entre dois apaixonados, o poeta Olivier e o músico
(1 6 ) Roheim (G.), Origine et fonctions de la culture, Paris, Gallimard, 1972, Flamand. Olhando-se ao espelho, apercebe-se da sua incapacidade de fazer a
p. 120. escolha que marcaria o final da ópera. Todavia, Richard Strauss responde por
(1 7) Capriccio, ópera sobre a ópera, é composta a partir da peça de um ela, dando-nos uma esplêndida peroração musical que exalta a voz feminina.
autor do século xvm, Casti, Prima le parole, dopo la musica. A heroína, a (1 8 ) Rosolato (G.), <<La voix: entre corps e langage», op. cit., p. 39.
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A suavidade, a ternura, a doçura de certos cantos - a can- Há inúmeros exemplos musicais que ilustram esse fascínio da
ção de embalar («wiegenlied», em por . de voz, evocador do amor da mãe e do amor partilhado dos apai-
há inúmeros equivalentes nos lieder e nas melo~ms --:- evocam xonados. Cada pessoa tem o seu florilégio: Christian David es-
0 tom e as inflexões da voz materna. Os lmgmstas e os colheu o Lettera amorosa de Claudio Monteverdi (82 ); quanto a
psicofonéticos mostraram as relações que existem entre os sons nós, os lieder Wiegenleid, Morgen ou Winterveihe de Richard
melífluos e o erotismo oral: Strauss (83 ), Mondnacht de Schumann (84) ou Du bist die Ruh de
Schubert (85 ) evocam sempre essa felicidade.
<<A reaparição do sussurro t:rno, do jogo .gl?tal na fala Roland Barthes dá a um dos capítulos de Fragmentos de um
do amoroso evocam os subterraneos pre-genztats - oral e discurso amoroso o título de «Na calma amante dos teus braços»,
narcisista - do amor. A voz acariciadora começa por ga- baseado na Chanson triste de Duparc sobre um poema de Jean
rantir ao outro que não existem quaisquer intenções ,a?res- Lahor. Para ele, esta melodia evoca o abraço:
sivas, depois embala-o, encanta-o mediante uma especze de
hipnose materna, para depois o conduzir para as pr?funde- «Para o sujeito, o gesto do abraço amoroso parece rea-
zas de uma união total, que restaura o mesmo parmso per- lizar, durante algum tempo, o sonho da união total com o
dido que a criança redescobre no seio da mãe.» (1 9) ser amado ... É o momento das histórias contadas, o momen-
to da voz, que vem fixar-me, siderar-me, é o regresso à mãe ...
Como se sabe, Ferenczi interpretou o acto sexual com? u~a Neste incesto reconduzido, tudo fica suspenso: o tempo, a
profunda regressão, uma tentativa de restauração d~ ~armoma pr~ lei, o interdito: nada se esgota, nada se quer: todos os de-
-natal da união com a mãe. O prazer da voz esta hgado ao pn- sejos são abolidos, porque parecem definitivamente satisfei-
meiro' objecto desejado e amado, que mais tarde será evocado no tos.» (86 )
acto amoroso:
Reencontra-se aqui todo o poder da voz materna, que permite
«0 coito permite o regresso real - embora apenas par- a fusão narcisista erotizada, sem o interdito inelutavelmente li-
cial- ao útero materno.» (80 ) gado à união sexual incestuosa.
No oposto deste impulso oral em que a voz é fonte de pra-
Na regularidade da voz amorosa ---:- tão musical ~orno o zer, porque o bom objecto foi íntrojectado, encontra-se o que está
babytalk - há o desejo de se consegmr essa ha~moma, essa associado ao mau objecto: a voz é projectada, expectorada, vo-
felicidade de reencontrar a unidade dos sexos. No d1scurso ~~o mitada, cuspida, que corresponde a uma voz materna não «sufi-
roso como sublinhou Christian David, o investimento narclSlsta cientemente boa», seja ela discordante, brusca ou fria ... Na sua
e o investimento objectal estão ligados:
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Marie-France Castarede
um novo estado de coisas, como se eles co~soantes oc l uswas, ao mesmo tempo sonoras e surdas, endu-
mam uma ondem à glotalização das consoantes"
próprios fossem alimentos venenos os ruidoso s e excreme ntos reCimentos que corresp
Iv~n Fo1_1agy (9
2
) nota que a base impulsiva da fonação se tor-
enlatados.» (88 )
na mms ev1~ent~ n_os estados regressivos de emoção violenta.
Mostra, a_ eqmvalenCia vocal das duas fases descritas por Abraham
Há um artigo de S. Ferenczi ( ), onde se fala da voz e da
89 a pr~poslto da fase anal: durante a primeira fase, chamada de ex-
pulsao, ?~scarrega-se a cólera, a agressividade: deita-se cá para
analidade, que tem por título «0 silêncio é de ouro». Ferenczi
fo~a a b1hs, o _veneno, tal como acontece com as dejecções ver-
descreve um paciente obsessivo que, durante as sessões, se mostra bms de Antomn Artaud:
em geral muito inibido, que sofre de prisão de ventre, e que se
revelou muito prolixo durante uma sessão, o que correspondera «Os poetas surrealistas não cantam, berram,
ao facto de, nesse dia, ter tido fezes abundantes. Não falar cons-
ba!em, assoam-se, espirram, tossem, urinam nos seus versos,
titui uma economia; falar muito, com uma voz apressada que não neles, com uma das suas salivações,
investe nenhuma palavra, é uma outra imagem da analidade: re- peldam-se_ e
q~ando n_ao roncam os seus sonhos, estertores de uma ago-
tenção ou defecação.". Nós próprios tivemos um paciente que, ma semplterna. (93)»
durante vários meses, «defecava» palavras umas a seguir às ou-
tras, com uma voz monocórdica, resistindo com essa torrente
. No, número de Traverses dedicado à voz, Florence de Mere-
excretória a uma relação demasiado perigosa para ele. dieu da-nos uma análise do trágico dos textos de Artaud:
«Freud ensinou-me que existem certas relações entre a pala-
vra e o erotismo anal», escreve S. Ferenczi (
90
), passand o em se-
cujas particul aridade s de _ «As pa~a.vras vão ser deformadas, marteladas, esmagadas,
guida a relatar o caso de um gago
fantasia s erótico- anais, por deslo- vao s~r. utilizadas num :entido encantatório, mágico, como
elocução podiam remeter para
matena ts concretos e nao como conceitos. A voz redescobre
cação da líbido do anal para o fonético. Depois, relata o caso de
a sua função orgânica: operação de dessublimação da voz. o.
um outro paciente:
Essa voz que se co,mJ?raz nos gritos, no sangue, na anarquia,
desemboca como umco possível no grito ... E os últimos tex-
«Um doente (um histérico) revela dois sintomas, ao mes-
tos de _Artaud fo_ram feitos para serem lidos em voz alta,
mo tempo e com a mesma intensidade: um espasmo glótico escandtdos, cusptdos, gritados.» (94)
e um espasmo do esfíncter anal. Se está de bom humor, a
(9 1) Ibid., p. 255.
(
87
Wolfson (L.), Le schizo et Zes Zangues, op. cit.
) (
92
) Fonagy (I.), La vive voix, op. cit.
( ) Deleuze (G.), Logique du sens, op. cit.,
Paris, p. 118.
88
165
164
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
166 167
Marie-France Castarede
168 169
Marie-France Castarede
('o4) Freud (S.), «Le Moi et !e Ça>>, Essais de psychanalyse, op. cit.,
p. 226.
('os) Anzieu (D.), «L'enve loppe sonore du Soi>>, Narcisses, Nouvelle
Revue _ C08)
de Psychanalyse, op. cit., p. 173. Rondeleux (L. J.), <<Les voix, les registres et la sexualité>> in Esprit
(' 06) Anzieu (D.), Le corps et l'll!uvre, Paris, Gallimard, 1981, 7 8, J~lho-Agosto de 1980, p. 49; o autor pergunta
P: 123. se não existirão grupos
(' 07) A voz do rapaz também é designada por <<sob-voz>> ou <<balxo- c~ltur~Js em que as mulheres falem tão alto como
so?- os homens. De momento
voz>>, na terminologia do século xvu; cf. Raugel (F.), Le chant chorai, nao ha qualquer estudo que permita afirmá-lo.
Par1s, '
PUF, 1966, p. 80. C09) Rondeleux (L. J.), Trouver sa voix, op. cit.
170 171
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
cortante, seco,
cegamente ao que existe
pido, mais e é por isso que na voz estamos com-
evoca o ,,.,Ju'~"-' pletamente nus. Estamo s nus para o outro: só o outro, e
apenas ao ouvir a nossa voz, pode fazer o da
cais tem a ver com a
destas componentes a nossa alma. Só na voz é que estamos nus; porque o corpo
!idade. Por conseguinte, o jogo ou o nu não implica uma nudez total, uma nudez reveladora: se
encantamento, deve a sua energia psíquic a conside rável a é certo que as atitudes e os gestos nos denunciam, só o fa-
uma boa síntese do impulso letal e dos impulsos sexuais, e zem parcialmente, porque também nos ocultam; as atitudes
sobretudo ao investimento genital do movimento melódico. e os gestos vestem-nos.» C12 )
Esta hipótese está mais de acordo com as nossas observa-
ções; de facto, as emoções que derivam do impulso genital A voz fala de nós, do nosso sexo e da nossa psique: é tota-
- o amor, a doçura, a ternura, o desejo insatisfeito, a co- lidade psicossexual.
queteria - são as que se distinguem pelo seu carácter meló-
dico e pela sua riqueza tonal.» C10
)
('
10
)Fonagy (I.), La vive voix, op. cit., p. 146.
11
(' ) Roland Mancini contava-nos que tinha observado fenômenos amoro-
sos extraordinários entre certas cantoras e os seus «fãs»; o apaixonado perdi-
do por uma «diva» seguia-a nas suas deslocações, tremia de el?oção ao _ouvi-~a
mu~
cantar, etc., sem que isso implicasse uma relação íntima postenor. Havena
to a dizer sobre o poder de atracção do cantor, poder que se exerce e atra1,
al-
fora da relação sexual propriamente dita, o que é muito conveniente para
guns ... (
112
) Bianciotti (H.), La voiz et la nudité, inédito.
172 173
Capitulo VI
As formas culturais do canto
«0 Ninette! onde estão, bela musa adorada,
As melodias de amor, encanto e terror
Que adejavam à noite nessa boca inspirada
Como um aroma leve sobre o pilriteiro em flor?
Onde vibra agora essa voz magoada,
Essa harpa viva presa ao teu coração?»
O canto religioso
O canto desempenhou um papel fundamental nas relações
entre o homem e o sagrado: o homem, desarmado perante os
mistérios do universo, procura ligar-se ao poderoso, ao desconhe-
177
Marie-France Castarêde
cido, ao através do seu canto: invoca- mas trata-se de uma que remete para uma
ções ... A música vocal esteve associada aos cultos e às
preces, desde os cantos védicos à da passan-
do pelo Nô e pelo apelo do Muezzin. O cantor procura «ligar-
-se» ao Altíssimo («religião» vem do latim religare, que significa A ópera: castrati e divas
«ligar»). Dirigindo-se a Deus, o homem quer-se desencamado,
místico, como S. Francisco na ópera de Messiaen. Liberta das referências religiosas, a ópera foi-se convertendo
O processo de idealização, que se verifica nas manifestações progressivamente em teatro das paixões humanas. O cantor foi,
musiciais, conduz a essa invocação do sagrado. Na religião ju- desde sempre, o «porta-voz» de uma sociedade, reflectindo as
daico-cristã, Deus é o protótipo dessa figura idealizada, e sabe- suas aspirações, os seus desejos e as suas fantasias. Durante o
-se que Ele é muitas vezes personificado pela sua voz: é a sua pt)ríodo barroco, a ópera foi o palco onde uma sociedade tenta-
voz que Moisés escuta na sarça ardente, através do chofar, cor- véi superar ou transgredir a maldição da diferenciação sexual, e
no de carneiro, reconhecível pelos seus sons «crus, medonhos, talvez tenha sido por isso que Orfeu, evocador da ambiguidade,
plangentes, cavos e prolongados» ('). Qualquer voz cantada, fora surgiu como o primeiro herói de ópera (3). Os castrati, que can-
do seu uso imanente, teria relação com Deus, isto é, com a voz tavam os papéis mais masculinos do Pantéon greco-latino (Zeus,
paterna, porque todas as figuras divinas, representadas ou não, Hércules, Aquiles ... ), aliavam um timbre feminino a um poder
têm o pai como símbolo. Qualquer transmissão espiritual é vocal viril. Mantendo por muito tempo uma aparência e um rosto
decalcada do sistema patrilinear da ordem do simbólico. Deus é infantis, transgrediam a segunda maldição do homem: o envelhe-
uma forma do Eu Ideal, se não do Ideal do Eu. cimento. A sociedade do século XVII e do século XVIII assistiu
No canto religioso, a figura do Pai é a figura da glória e do no palco ao espectáculo da recusa dessas duas leis humanas - a
poder (Gloria, Te Deum, A Criação), ou a da bondade e do per- diferença dos sexos e das gerações - , não só na sua componente
dão (Salmos, Motetes, Requiem): a própria expressão do Deus te- aristocrática, os teatros de corte, mas também nas cerimónias fes-
mível e justiceiro no «Dies Irae» do Requiem de Verdi vai-se tivas populares: carnavais, festas rituais, em que artistas e intér-
progressivamente enternecendo, até à última súplica do «Libera pretes recorriam à mesma ambiguidade (como é o caso da
me», feita quase num sussurro ... Através de toda a música religiosa, personagem Arlequim, na Commedia dell' Arte). A ópera cumpria
verifica-se essa distância entre o homem, implorante do mundo da assim uma função mítica, inspirada no modelo dos deuses anti-
terra, e o Altíssimo, presença inatingível do mundo do Céu. Por gos, onde estes não tinham um sexo definido porque estavam
isso, o que reina nessa música é a idealização, tranquilizadora para isentos das obrigações humanas. O castrato sopranista Caffarelli
o nosso narcisismo, geradora de paz e de consolo, à margem dos (1710-1783), famoso no mundo inteiro, podia soltar num só so-
tumultos e dos sofrimentos dos conflitos humanos. Quanto à Vir- pro cadências de catorze compassos em semicolcheias. Essa ex-
gem Maria, Imaculada Conceição, abençoada entre todas, é a Mãe traordinária capacidade torácica era considerada como um
ideal. A sua pureza protege das angústias pulsionais e ela é virtuosismo invulgar. Quanto a Carlo Broschi, conhecido por
invocada como uma figura perfeita de ternura e de amor. Farinelli (1705-1782), o poder da sua voz foi o único remédio
A música vocal religiosa conduz-nos a um referente paterno para a neurastenia de Filipe V de Espanha, que o manteve du-
idealizado: Deus Pai. Existe triangulação, com a figura da Vir- rante vinte e cinco anos na sua corte e o tomou rico.
C) Reik (T.), Ritual, citado por Rosolato (G.), Essais sur le symbolique, (2) Cf. Grunberger (B.), Le narcissisme, op. cit., p. 203.
op. cit., p. 293. O trabalho de Reik sobre o chofar é igualmente citado por (3) Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, personificava a bissexuali-
J. e A. Ca1n em Psychanalyse et Musique, op. cit., p. 119. dade divina.
178 179
Marie-France f~ Voz e os Seus
4
( ) Todas estas informações médicas foram fornecidas pelo professor
Sauvage, otorrinolaringologista, e pelo doutor Vincent, endocrinologista, que C) Fernandez (D.), Porporino ou les mysteres de Naples, Paris, Grasset,
encontrámos durante uma mesa-redonda sobre os castrati, realizada em Limoges 1974, p. 221.
( ) femandez (D.), La Rose des Tudors, Paris, Julliard, 1986, p. 13.
6
a 8 de Fevereiro de 1983, por iniciativa de Christian Gaumy, musicólogo. Acon-
selhamos a leitura do3 dois artigos, da autoria de Gaumy, publicados nos nú- C) Eliade (M.), Méphistopéles et l' androgyne, Paris, Gallimard, 1962, p. 133.
meros 76 e 77 de Opéra International (Dezembro de 1984 e Janeiro de 1985). (B) A erecção é um fenómeno independente da função endócrina.
180 181
Marie-France Castarede
conjugal, embora não procriassem, e que o seu estado não os pre- a unidade do masculino e do
dispunha de um modo especial para a para a terra.» (1 2)
No entanto, não são só os castrati
sexual clássica; toda a ópera barroca inverte os papéis: Através destes exemplos, não é o pênis como órgão sexual
masculino que é promovido a modelo desejado, é o masculino
«Monteverdi, em Veneza, e Alessandro Scarlatti, em Ná- que tenta a todo o custo unir-se ao feminino:
poles, dão vozes de soprano a imperadores, dão vozes de
tenor a mulheres, dão a jovens apaixonados vozes mais agu- «0 ideal hermafrodita provém do ideal fusional que une
das do que às suas damas. Em La Calisto de Francesco a criança ao seio materno.» (1 3 )
Cavalli (9) (o sucessor de Monteverdi em Veneza), o mesmo
actor canta com voz de baixo quando é Júpiter e canta com A ilusão bissexual baseia-se na relação primordial, no desejo
voz de falsete quando se disfarça de Diana, para seduzir uma sempre vivo de anular a separação e negar a alteridade dolorosa.
jovem ninfa que sente uma paixão sáfica pela deusa.» (1°) Através de duas novelas, Sarrasine (1830) (' 4) e Séraphitus-
-Séraphita (1835), incluídas em Études philosophiques, Balzac
Este interesse pelos castrati também permitia a criação de um retoma o tema swedenborguiano do andrógino como imagem do
clima irreal e divino nas igrejas. Nas catedrais e nos colégios ser perfeito, angélico: em Sarrasine, «a Zambinella» é um
ingleses, as escolas de canto, pelo menos a partir do século XV, castrato italiano por quem as mulheres se apaixonam loucamen-
eram constituídas apenas por homens, «all male cast»; as vozes te ... O exemplo dos castrati, e toda a nostalgia que a eles conti-
superiores eram confiadas a rapazes dos oito aos catorze anos, e nua associada, atenua a posição freudiana do primado fálico.
as vozes de contralto, a jovens adultos, ao lado de tenores e de Continua a poder falar-se de bissexualidade, mas essa bissexua-
baixos: lidade não está ligada a uma preponderância da anatomia mas-
culina, mas a uma posição perversa de negação da diferença dos
«As vozes de tiple (rapazes com voz de soprano) são sexos. Os homens podem sonhar com a bissexualidade a partir
vozes de cabeça, colocadas muito alto, o mais longe possí- do modelo feminino, embriológica e imaginariamente primeiro,
vel do peito, do sexo, do resto do corpo: vozes desencarna- modelo cuja voz tentam captar, mesmo à custa de uma mutila-
das, mas de uma sexualidade intensa, como um acto de amor, ção física (' 5).
desse amor físico e místico cuja verdadeira dimensão não é Claro que a procura do andrógino não é de sentido único,
o prazer, pobre pausa roubada ao tempo, mas o deserto, o mesmo se a história dos castrati coloca em primeiro plano a pro-
vazio interior, a morte, o êxtase, a eternidade.» ( 11 ) cura da feminilidade por parte dos homens. Com efeito, a partir
de 1833, Rossini tentou substituir os castrati, em vias de desa-
«Misogenia?», interroga-se Dominique Femandez: parição, por primma donne de voz grave. As heroínas do Barbei-
ro de Sevilha, de A Italiana em Argel e de Cinderela, na versão
«De facto, o que se pretende é desenvolver nos homens original, são contraltos. Como afirma Dominique Femandez:
o lado feminino da sua natureza. É esse o objectivo dessas
escolas de canto: superar a distinção entre os homens e as
2
(1 ) Op. cit., p. 17.
3
(' ) McDougall (J.), «L'idéal hermaphrodite et ses avatars>>, Bisexualité et
(9) Francesco Cavalli (1602-1676) deixou-nos, entre outras, as óperas se- différence des sexes, Nouvelle Revue de Psychanalyse, 7, Primavera de 1973,
guintes: La Calisto (1651) e Ercole amante (1662). p. 264.
(1°) Femandez (D.), op. cit., p. 15. (' ) Anotada por Roland Barthes em S-Z, Paris, Le Seuil, 1976.
4
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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
6
(' ) Femandez (D.), op. cit., p. 9.
(' 7 )Cecilia e Lucia Cinna em Lucia Silla (Mozart); Adamante em
Idomeneu (Mozart); Cherubini em Le nozze di Figaro (Mozart); Sextus e 8
(' ) Femandez (D.), op. cit., p. 12.
Annius em La Clemenza di Tito; Enrico em Elisabetta, Regina D' Inghilterra (1 9 ) Barthes (R.), L'obvie et l'obtus, Paris, Le Seuil, 1982, p. 254.
(Rossini); Jemmy em Gulherme Tell (Rossini); Isolier em Le Comte Ory (2°) É interessante classificar as vozes, mas por vezes uma voz pode as-
(Rossini); Arsaces em Semíramis (Rossini); Pippo em La gazza ladra (Rossini); sumir diferentes papéis (Maria Callas cantou a Carmen, a Tosca e Lucia de
Malcolm Groem em La donna de! lago (Rossini); Stephano em Romeu e Julieta Lammermoor e perfez, portanto, três tipos de tessituras). Também há ligeiras
(Gounod); Siebel em Fausto (Gounod). No início do século XX, surge outro diferenças de cor e de timbre que impedem uma classificação rígida e só po-
travesti famoso: Octavian, em O Cavaleiro da Rosa (R. Strauss). dem ser definidas em função dos diferentes papéis do repertório.
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A Voz e os Seus
a cla:ssifica·çao
metade do
G'-'fóUa,UU
vocal. do famoso
cantores que tentam redescobrir os cowvalJtcv"
castrati desaparecidos, um
sica pop também revela a :saiJu<:tuc
sexual: David Bowie, Alice
nada», os Pink Floyd, Klaus Nomi ... Mutilavam-se rapazes para os converter em castrati, e dava-
Evoquemos, para terminar, uma das canto:as. desta -se-lhes em troca dinheiro, honrarias e fama. Quem escolhia esse
época e que tanto nos perturba ao assumir a outra amb1gmdade: destino não eram eles, eram as famílias, por ambição, e os prín-
a contralto Katheleen Ferrier. O timbre da sua voz é raro e cipes, por capricho e por mero divertimento. Para os gran~es
Katheleen Ferrier emociona-nos porque o utiliza com uma inten- deste mundo - homens - , isso não passava de uma tentativa
sidade e uma pureza perturbantes. O poeta Yves Bonnefoy pres- para reduzir o medo da mãe fálica, opondo-lhe uma espécie de
ta-lhe homenagem: monstro biológico cuja voz, se não o sexo, cobria, pela sua po-
tência e o seu duplo registo, a tessitura, simultânea e indivisível-
«Celebro a voz tingida de cinzento mente, masculina e feminina: neste caso, a voz é o equivalente
Que hesita na lonjura do canto perdido desse poder narcisista «fálico».
Como se para além de toda a forma pura Quando o direito e os costumes reprovaram formalmente a
Vibrasse um outro canto, o único absoluto.» (3°) prática da castração nas crianças, pondo fim ao reinado dos
castrati, surgiram as divas, outras figuras da Mãe original, com
toda a sua magnificência e os seus poderes:
Se as divas («deusas» em italiano) sucederam aos castrati,
que interpretação se poderá dar desta história? O sonho dos cas- «A representação da Mãe é a de um ser omnipotente,
trati, por intermédio de príncipes, mec~nas ~.mestres d~ capela, que tem ao mesmo tempo o poder de criar a vida, a possi-
foi seguramente tomar real a androgema m1t1ca, apropnando-se bilidade de alimentar e o poder fático do homem. Esta crença
da voz feminina, voz que se convertia não só no equivalente do no falicismo da mulher persiste durante basta;zte tempo por-
pênis mutilado mas, e mais ainda, no poder fálico mágico e se- que protege da angústia da castração ... E desse apego
dutor da mãe original. e dessa admiração que provém a veneração pela Deusa-
As lendárias filhas das águas, ornadas de uma esplêndida -Mãe.» (3 2 )
cabeleira, tinham cabeça e busto de mulher e cauda de peixe.
Acima de tudo e tal como as sereias da Antiguidade, possuíam Através do canto e da ópera, os homens continuaram a criar
uma voz que e;feitiçava. A Lorelei enfeitiçava os barqueiros do fantasmaticamente essa Mãe Omnipoten,te, arranjando proces-
Reno e atraía-os com os seus cantos, fazendo-os naufragar con- sos, por vezes cruéis, de a domesticar. E famosa a história da
tra os rochedos: célebre Malibran, perseguida por um pai impiedoso que a entre-
gava ao fascínio das multidões, impondo-lhe ao mesmo tempo
o seu jugo, particularmente despótico e humilhante. Em L' opéra
(29) Cf. o artigo de Vermeil (J.), «Les nouveaux castrats», Diapason, n.o
28, Julho-Agosto de 1983, pp. 32-35. . .
(' 0 ) Bonnefoy (Y.), Poemes, <<A la voix de Katheleen Ferner», Pans,
(3 1) Marbeau-Cleirens (B.), !magos maternelles chez les hommes, These de
Mercure de France, 1978, p. 137. doctorat d'État, Paris, V, Junho de 1983, p. 239.
2
(' ) Marbeau-Cleirens, op. cit., p. 708.
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Marie-France Castan2de A Voz e os Seus
«Como uma mulher solitária, perdida num mundo de ho- «A reivindicação da bissexualidade real é recusa da di-
mens em que os homens pedem às mulheres para cantarem ferença sexual na medida em que esta implica a falta do
e os fascinarem com a sua beleza, para serem sublimes e os outro sexo.» (37)
fazerem chorar, mesmo que isso as conduza à morte. Um
mundo em que os homens - Pigmaleões que queimam as Retomando o mesmo tema, André Green responde-lhe, reve-
suas Galateias para satisfazerem o seu prazer - constroem, lando o laço indissolúvel que existe entre a indiferenciação se-
moldam, decidem, ordenam, dispõem. Um mundo em que a xual e a morte:
mulher tem de se apagar - adoram-na, não adoram? - e
servir.» (3 4) «Houve quem dissesse que a "invenção" da sexualidade
e da morte eram solidárias. De facto, se não houver diferen-
Foi por ter assumido mais do que outras a sua encarnação ciação sexual, a cisão infinitamente repetida do mesmo or-
quase «divina» que Maria Callas foi também vítima da incom- ganismo desenha uma figura de imortalidade. Todavia, num
preensão e da solidão. sentido totalmente diferente, também se pode afirmar que,
Elisaberth Schwarzkopf negociou melhor o poder da sua voz, quando o indivíduo morre, há uma parte dele que terá
num registo mais culto e menos selvagem (menos «fálico») do sobrevivivo, no património que por ele é transmitido à sua
que Maria Callas. Como se quisesse desculpar-se desse poder que descendência. Se por acaso essa descendência se tiver liga-
possuía, nunca deixou de realçar o «trabalho» (é uma forma de do à descendência de um parceiro do outro sexo, continua
o humanizar) ou o papel do marido (Walter Legge) de quem fala a haver algo dele que se transmite a um novo ser. Imortali-
com uma admiração e uma fidelidade que são a sua forma de dade relativa, portanto, mas que não deixa de ser imortali-
amar e de granjear os favores do mundo dos homens (3 5). dade, pelo menos no espaço de uma geração.» (3 8)
A voz é uma aposta «fálica»: depois dos castrati, as divas
encarnam a fantasia da Mãe Omnipotente, fantasia que os homens Por outro lado, como nós próprios já afirmámos:
sempre pediram às mulheres, e mesmo aos castrati, para expiar.
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus
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Marie-France Castarêde
A Voz e os Seus Sortilégios
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Marie-France Castarede
uma de com se
se reencontra, que nos falta e que vol-
o ser mundo do canto é o mundo amora-
«Não há "família" um indivíduo o indivíduo tem na um
unisexo, digamos, na medida em queA . _ umco ser mas uma de figuras. As figuras não
amor - 0 amor-paixão, o amor-romant1co - nao faz '""'<H""~·~ são personagens, são pequenos quadros, e cada um deles é fei-
de sexos nem de papéis sociais.» (49 ) Reencontramos altemadamente, de uma recordação, de uma paisagem, de um
que, seg~ndo a lenda narrada por Pausâni.as, _de~cobre.,o seu passeio, de um humor, de qualquer coisa que seja o início de uma
reflexo numa fonte e nele reconhece a sua 1r~.a gemea Ja ~a~e ferida, de uma saudade, de uma felicidade.» (5 3) Portanto, o lied,
cida· a bissexualidade está contida no narc1s1smo ... NarclSls- o_u, melhor ainda, o ciclo de lieder CS 4), seria uma viagem narci-
mo ~ortífero para o herói da lenda, narcisismo feliz para o can- s~sta.
e 9) Ibid., p. 254.
53
( )
4
lbid., p. 257.
Refiro-me a Die Schone Müllerin ou a Winterreise, de Schubert, a
CS 0 ) Ibid., p. 255. . . .. . (' )
CS') Widmung (op. 25, n. 0 1, sobre um poema de Fne~nch Ruckert ma~- Amours du Poete ou a La Vie et l'Amour d'une Femme, de Schumann.
gura o ciclo Die alten lieben lieder, come.çado em Fevere1ro de 1~40. e dedl- 5
(' ) Schumann (1840), Frauenliebe und leben, op. 42, sobre poemas de
cado a Clara Wieck. Clara recebeu este c1clo como presente de nupCias. Adalbert von Chamisso.
6
CS 2 ) Barthes (R.), op. cit., p. 256. (' ) Schumann (1840), Dichterliebe, op. 48.
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Marie-Fr ance Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios
que
1><u-tu<tU'- ' no mais íntimo do h_om~m.
temas predilectos do lied alemao e a
do adeus e do regresso. Foi o que a --·--''M''~ No seu livro Le Gisêle Brelet mostra que
Schumann: a música é a escrita da vida interior:
«Schum ann é de facto o músico da intimida de solitária, A música é uma especul ação sobre o tempo, insepar ável
da alma apaixon ada e fechada , que fala consigo _ em de uma experiê ncia do tempo vivido.» (60 )
suma, da criança que só tem ligação ~~m_ a mae_... uma
música ao mesmo tempo dispersa e umtana ,. contm~ar:z:_ente A voz desempenha um papel eminente, porque é ela que cria
refugia da na sombra luminos a da mãe (na mmha opzm~o, o a melodia:
lied, abunda nte em Schuma nn, é a express ão dessa umdade '
198
199
Marie-Fran ce Castarede
a «Voz-eco» da mãe a "'-'l!C>«Ieav
transcreve, que tempo transicio-
. eco os contornos de um
conta a dos seus da con- e os impulsos da morte. Esse
nal entre os unpulsos da
tinuidade existencial. o bebê da angústia da ausência e
O que se passa hoje com a voz, na música da separação. Depois, a criança, pouco a pouco, vai construindo
O Sprechgesang introduziu os ritmos da a ~ua autonomia psíq~üca com o sentimento da sua própria conti-
música, a meio caminho entre o canto e a fala. nutdade. e do se~ devrr pessoal, que implica a aceitação da morte.
e Berg, os compositores foram ainda mais longe. Stockhausen A~s1m:. no polo oposto da experiência feliz do espelho sonoro
liberta-se da linguagem falada e trabalha ao nível do infraverbal. e da hgaça? com ~ ~ãe, pode haver medo e angústia, desestru-
A relação som-sentido altera-se porque as palavras são tratadas turantes, a Impossibilidade de tecer um sentimento de continui-
como elementos acústicos. Os gestos vocais são expressivos sem dade através do caos sonoro, que obrigam o sujeito à clivagem:
necessitarem da fala: a voz converte-se em movimentos do cor-
po, o mais perto possível do inconsciente. Há cantores que se «A clivag~m separa, de~trói os laços: é o que opõe a arte
exercitam no sintetizador: a voz perde o seu natural e divaga no
A
corresponde à fase H'-'''"''""" <<As relações entre mãe e são as únicas capazes de
fase animista da história da num~miaa,ae, dar à mãe uma satisfação porque são as relações
benefício da identificação edipiana que ,..,.,.,.,."'""'"'"'1 "'· à uuuJ.LI.rw:,, mais perfeitas de ambivalên-
tífica isto é ao estado de maturidade, cia.» (14) cs)
cia à 'procur~ do prazer e pela subordinação da escolha objecto
0
exterior às conveniências e às exigências da realidade» C ). Esta novidade de tom não é alheia à morte de Amalia (1930),
Comentando Freud, Sarah Kofman revela que, para ele, a obra cuja figura só tinha podido ser redescoberta, até então, na evo-
de arte estaria mais ao serviço dos impulsos da morte do que de cação de Catarina, a mãe do bastardo Leonardo da Vinci (1 6). Na
Eros: nossa opinião, a concepção da arte em Freud sofreu desse afas-
tamento quase fóbico em relação à mãe, objecto de um amor
«0 jogo da arte é um jogo da morte, que implica sempre tanto mais perigoso quando mais perfeito. Na sua declaração li-
a morte na vida, como força de subtracção e de inibição.» C)
1
minar ao Moisés de Miguel Ângelo, Freud afirma que só pode
apreciar a arte apoiando-se na razão e na análise. Não é possí-
Além disso em Freud, a veneração do artista, pai da sua vel, diz ele, apreciar sem compreender. Exceptuando os estudos
obra, é um fenÓmeno marginal que tem a ver com o génio, he- sobre Leonardo da Vinci e sobre o Moisés de Miguel Ângelo (a
rói isolado que nos confunde pela sua excepção: escultura e a pintura são artes visuais moldadas no sonho), Freud
interessou-se sobretudo pela literatura, preferência que ficamos a
«0 método de satisfação pela arte pressupõe a posse de conhecer nomeadamente através da sua correspondência C7). As-
disposições especiais e de dons que estão longe de ser co- sim, Freud terá ficado sempre ligado à metafísica da representa-
muns num grau que possibilite uma realização.» C2 ) ção. Compreende-se que não tenha podido aproximar-se da arte
musical, experiência do sonoro sem pontos de referência preci-
Neste contexto, a cultura, inspirada pelos grandes criadores, sos, em que o conteúdo significativo não é evidentemente
é uma máscara que se destina a encobrir a dureza da necessida-
de. Freud inscreveu a sua teoria_ da arte na linha da sua desco- 73
( ) Na sua polêmica com Romain Rolland sobre o «sentimento oceâni-
berta central do complexo de Edipo, mas, ao fazê-lo, ocultou co>>, Freud opõe-lhe «a necessidade de protecção pelo pai>>, a mais forte das
totalmente uma dimensão da criatividade cultural, ligada ao pólo necessidade infantis ... (Malaise dans la civilisation, op. cit., p. 17).
maternal e feminino do indivíduo. Ele próprio deixou passar C4) Freud (S.), «La Féminité», Nouvelles Conférences sur la Psychanalyse,
muito tempo antes de abordar serenamente. o «co_ntinente ne~r~» Paris, Gallimard, 1971, p. 175.
da feminilidade. Resistiu enquanto lhe f01 posslVel ao fascm10 C5) Já em 1917, Freud tinha dito de si mesmo: «Quando se foi, sem a
menor dúvida, o filho predilecto de sua mãe, conserva-se durante toda a vida
extremo que sentia pela sua querida mãe, viúva ~os sess~nta anos esse sentimento de conquista, essa certeza do sucesso que, na realidade, rara-
de um marido muito mais velho, e que morreu trmta e cmco anos mente acaba por não o provocar.>> Freud (S.), «Un souvenir d'enfance de
mais tarde, quando Freud, jfi doente, tinha seten~~ e q~atro anos, Goethe>>, Essais de Psychanalyse Appliquée, Paris, Gallimard, 1976, p. 161.
mãe de tipo «jocastiano», como a de Proust. Abas, so em 1932, C6 ) Foi em 1909 que Freud escreveu Un souvenir d' enfance de Léonard
de Vinci, e foi em 1914 que escreveu Pour introduire le narcissisme, que tem
muitas ligações com o primeiro texto. Estas associações foram-nos sugeridas
C0 ) lbid., p. 106. por L Barande, Le maternel singulier, Paris, Aubier-Montaigne, 1977.
77
C1) Kofman (S.), op. cit., p. 175. ( ) Kofman (S.); op. cit., p. 11.
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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
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A Voz e os Seus
Marie-France Castarede
O trabalho da voz como tem um
do que nunca o espaço
éo se verifica nas extremas do
de si mesmo e da comunicação com
Theater No entanto, a em contrapartida, é por vezes ne-
siva do mundo da inteligibilidade e da ciência '"'-'HVlv
cessário partir dessas expressões brutas e arcaicas para superar as
toma Winnicott tão contemporâneo. Na história da a inibições e caminhar para uma integração mais autênt~ca d~s
linguagem começou por ocupar o lugar do dado, e depois a ciên-
potencialidades vocais: o trabalho da voz ~~seado na v1braç~o
cia ocupou o lugar da linguagem. O sensível foi destronado em
harmônica é sempre considerado como aux1har da estruturaçao
proveito do conhecimento. Já é altura de regressar, porque ele é
psicológica.
o paraíso que perdemos (86 ). A voz vem do corpo, isto é, do que
Com efeito, o canto detecta e revela a angústia: modula-a,
há de sensível em nós. A viva voz é o contrário da letra morta
prolonga-a, atrasando o momento do desenlace. Pelo controlo qu_e
e dos estereotipas. É por isso que a nossa pesquisa se inscreve
permite, o afecto é controlado. Este aspecto. do canto - ~ubh-
nesse regresso do sensível, que é também o regresso do jogo e
11'l.JlÇão e assunção do grito - , nota-se perfeltamen~e na cel~b~e
da infância, o que de mais pessoal e mais irredutível existe em
«Aria do Salgueiro», no IV acto do Otelo de VerdL Neste ulti-
cada um de nós.
mo acto, Desdêmona, agitada por sombrios pressentimentos, faz
a sua toilette nocturna, cantando «Piangea cantando»; mesmo
antes de mandar embora a sua aia Emília, diz-lhe: «Buona notte»,
e, após dois acordes da orquestra, Desdêmona solta ~~ formi-
«Se a pintura é a sublimação do olhar e se a escultura é a
dável grito em lá sustenido agudo, no auge da sua angustia: <<A~!
sublimação do tacto, a ópera é a sublimação do grito. Do grito,
Emitia addio». A longa preparação cantada para a morte permi-
de todos os gritos, de prazer e de dor.» (87 ) No entanto, há gri-
te o diálogo com o Outro compassivo, a recordação dos tempos
tos sem som: a evocação do sentido e da comunicação desvane-
felizes (Desdêmona pede a Emilia que, depois da sua morte, lhe
ce-se na sideração do corpo, como, demonstra o quadro de
vista o traje do dia do seu casamento), a evocaç,ão da Mãe e da
Edward Munch, O Grito (1893) (88 ). A beira-mar, numa espécie
sua própria aia Barbara (a quem é dedicada a «Aria_ do Salguei-
de molhe, cuja perspectiva se inclina bruscamente para o espec-
ro», que ela própria, amante infeliz, cantava), e fmalmente, a
tador numa aceleração inquietante, vê-se um ser despojado de in-
invocação da Virgem Maria, Mãe qa Humanidade (o «A v e Ma-
dividualidade, de olhos dilatados de terror, boca aberta num grito
ria» segue-se imediatamente à «Aria do Salgueiro», quando
(título do quadro), mãos coladas aos ouvidos, como para não
Desdêmona fica só). É para um rico ritual psicológico que o
ouvir uma qualquer ameaça. De facto, na linha de perspectiva,
canto nos convida nas proximidades da morte, cuja brutalidade
nada na natureza exprime segurança: o mar ondula, agitado, o céu
retarda e que torna mais humana e pungente. No exemplo de
é vermelho, raiado de sangue. Tudo dá a impressão de um uni-
Otelo, há uma inadequação entre o momento em que Desdêmona
verso que perdeu a estabilidade e a coerência. Na cena lírica, o
tenta reter Emília com o seu grito - quando nenhuma ameça
grito, que tanto se assemelha ao horror mudo, converte-se em
visível paira sobre ela - e o da chegada efectiva do marido, que
vocalizos: o canto sofisticado toma a angústia tolerável, acultura-
veio para a matar: é a voz que suspende o instante do desenlace
-a e atenua-a ... Na ópera, a voz é como um desregramento pon-
e o antecipa fantasmaticamente; todavia, na intimidade do grito
derado, uma paixão domesticada, um afecto controlado ...
da mulher, aquém da linguagem e do sentido real do aconte-
86
(8 9) O Roy Hart Theater é uma companhia dramática e, simultaneamente,
( Serres (M.), Les cinq sens, op. cit., obra que é uma ode ao sensível.
) um centro de pesquisa, ensino e animação cultural, baseado num trabalho apro-
87
( ) Green (A.), entrevista, Lyrica, n. 0 38, Novembro de 1977, p. 35. fundado da voz sob todos os seus aspectos. Falaremos dele mais adiante, a
88
( ) O quadro é, de facto, o resultado de várias telas anteriores, pintadas propósito das terapias vocais.
em 1882 e 1884.
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Marie-France Castarede
A Voz e os Seus
se revela é o afecto puro. da
neste é bem visível a distância que
animaL
Segundo os antropólogos (9°), na nossa cultura não ceri-
Para a a esse de conhecer e de
monial em tomo da morte. Já não há ou embeleza-
compreender:
mento da morte, morte por amor ou morte excesso. A morte
já só intervém como avatar, como um na segurança.
«A ópera é a mus1ca realizada sob a sua
Ora, a cena lírica permite-nos justamente redescobrir essas mor-
mais elevada, mais completa, mais total; reencontra-se nela
tes rituais, provocadas pela violência do desejo, do ciúme, do
o que a humanidade durante tanto tempo pediu aos mitos:
ódio, e ter acesso a outras culturas mais ricas do que a nossa sob
explicações ou expressões totais que se situem simultanea-
o ponto de vista das festas e dos mitos. A violência interior é mente em vários níveis.» (93)
assim representada e exorcizada, revelando-nos a função catártica
do teatro, tão apreciada por Aristóteles.
O cantor foi, desde sempre, o «porta-voz» de uma socieda-
O canto ajuda-nos a sentir e a assumir- por intermédio dos
de. Dos castrati Caffarelli e Broschi às divas Isabelle Colbran
heróis - as emoções e os afectos que estão associados aos gran-
des momentos da vida humana:
!"i~libran, Pasta, a história do canto está re~heada de grande~
mte~retes que passaram à posteridade. Mais próximos de nós,
Enn~o Caruso.' Fédor Chaliapine, Kirsten Flagstad e Katheleen
«0 teatro lírico continua a ser um grande meio, totalmen-
Ferner, para citar apenas alguns, deixaram uma recordação ines-
te contemporâneo, de comunicar emoções profundas. De fac-
quecível cujo rasto ainda guardamos em nós.
to, o interesse crescente que as novas gerações sentem, em
A homenagem internacional prestada a Maria Callas para
primeiro lugar, pela música, e depois, pela Ópera, é uma
celebrar o sexagésimo aniversário do seu nascimento (2 de De-
espécie de reacção contra todas essas pesquisas hiperintelec-
zembro de 1923) e difundido por satélite do Théâtre National de
tuais qur:; caracterizam uma grande parte da arte contempo-
l' Opéra de Paris, do teatro La Scala de Milão da Ópera Lírica
rânea. E uma reivindicação do "sentimento" na arte, essa
de Chicago, do Royal Opera Covent Garden de 'Londres mostrou
arte que, para existir, necessita não só da inteligência mas
a amplitude da sua fama e o seu estatuto na memória ~olectiva.
também do coração, de criar relações de amor que a alimen-
Porqu~, o cantor, tal como o actor de renome, desempenha
tem.» (9 1)
um papel Importante na sociedade. Falámos sobretudo do cantor
lírico, mas também poderíamos falar - num registo diferente e
Neste sentido, o canto cultiva a distância, o afastamento, a
num outro repertório :- do de variedades, consagrado pelo seu
margem, a passagem ... Compreende-se que Lévi-Strauss tenha
!alen~o: O cantor funciOna como um bálsamo, por intermédio da
comparado a música, e nomeadamente a ópera de Wagner, com
Identificação: permite-nos ampliar a nossa experiência humana de
os mitos que, segundo ele, são lições de boa distância:
acordo com as dimensões dos heróis que ele encama.
«No seio da cultura, o canto difere da língua falada tal . S~gundo Freud e_ Winn.icott, a arte é um substituto do jogo
mfantll. O que se opoe ao JOgo não é a seriedade, é a realidade:
como a cultura difere da natureza; cantado ou não, o dis-
os desejos e as fantasias são satisfeitos alucinatoriamente como
no sonho. Pela capacidade de identificação que suscita, o' cantor
(9°) Refiro-me a Luis-Vincent Thomas, entrevistado por Le Monde a 4 de
Dezembro de 1983.
(9 Entrevista de Giorgio Strehler a Hector Bianciotti para o Nouvel Obser-
1
)
c::) L~v~-Strauss (C.), Le Cr~ et le Cuit, Paris, Plon, 1964, p. 37.
vateur, n. 723, 23 de Outubro de 1978.
0 ( ) Lev1-Strauss (C.), entrevistas televisionadas, <<Une approche de Lévi-
-Strauss>>, TF1, 20-22 de Junho de 1977.
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios
arrasta-nos para um sonho, individual e colectivo A tal a sexualidade nunca é apenas também é
como a magia, serve de intermediário entre a realidade e o ima- so o cantor - para além técnica e da beleza da voz -
ginário: profundidade da sua humana. Uma bela
voz, que não seja animada por uma vida interior, nunca
«Como realidade aceite convencionalmente, na qual, gra- nos tocará completamente. Os cantores ou as cantoras doam-nos
ças à ilusão estética, há símbolos e formações substitutivas a sua riqueza pessoal através da sua própria visão do mundo e
que podem gerar afectos reais, a arte constrói um da vida. Musset exaltava La Malibran:
intermediário entre a realidade que frustra os desejos e o
mundo da imaginação que satisfaz os desejos, uma região «É essa voz do coração, a única que ao coração chega,
onde as tendências para a omnipotência da humanidade pri- Que nenhuma outra, depois de ti, voltará a dar-nos.» (98)
mitiva se mantêm ainda com toda a sua força.» (95 )
Stendhal escrevia acerca de Pasta:
Para que o cantor cumpra essa função de magia e de sonho,
a voz tem de ser bela. No canto, a beleza da voz tem a ver com «Nenhuma das suas qualidades parecia extraordinária,
o domínio sexual: diz-se que um homem tem «um belo órgão» ... mas apenas, e simplesmente, quando ela cantava, o canto
Quanto à voz da mulher, as metáforas conduzem-nos a uma evo- saía do coração.» (9 9 )
cação mais metafísica do que carnal: prima donna, assoluta,
diva ... (96) - Trata-se mais do fascínio pela Deusa Mãe, primo A propósito de Berma, em quem elogia, como num grande
amore - «Casta diva», como é invocada na ópera Norma, de violinista, a «superioridade de alma», Proust escreve:
Bellini - cuja voz é o primeiro atributo que o homem, desde a
sua vida fetal, conhece. A beleza está ligada às características «Assim, tanto nas frases do dramaturgo moderno como
sexuais secundárias (a laringe, é uma delas), o que provoca ape- ~os versos de Racine, a Berma sabia introduzir as amplas
nas o prazer preliminar (97 ). E por isso que a emoção suscitada zmagens de dor, de nobreza, de paixão, que eram as suas
pela voz está sempre ligada à sexualidade: a voz da mulher, as- obras-primas, e em que era reconhecida como, nos retratos
sociada à mãe, a voz do homem, associada ao pai, dão-nos as que pintou a partir de modelos diferentes, se reconhece um
figuras entrecruzadas dos nossos desejos infantis ... Todavia, como pintor.» (1°0 )
-Jean Rémy: Callas, une vie; C. Dupêchez, D. Femandez: L'univers des voix: 98
( ) Musset (A. de), <<Stances à la Malibran>> (1836), Poésies completes
lçs divas; A. Tubeuf: Le chant retrouvé ou l' histoire de sept divas; S. Segalini: '
Paris, Gallimard, 1980, p. 325.
Album dedicado a Elisabeth Schwarzkopf.
(97 ) O prazer preliminar, ligado ao sistema pré-consciente, permite o se- (99) Stendhal, Vie de Rossini, citado por Clément (C.), Miroirs du sujet,
Paris, UGE, 1975, p. 284.
gundo prazer, o prazer sexual propriamente dito, devido à desaparição do
recalcamento. (1°0) Proust (M.), Le côté de Guermantes, op. cit., tomo II, p. 52.
214 215
A voz no tratamento psicanalítico
e a do canto
«Para mim, jogar é uma actividade evidente
que deve surgir durante a análise dos adul-
tos e quando se trabalha com as crianças.
Essa actividade manifesta-se, por exemplo, na
escolha das palavras, nas inflexões da voz e
sobretudo no sentido de humor.»
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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus
e
associativo
Sentimo-nos mais próximos de Winnicott nesta da se baseiam no ouvido e na escuta: escuta de si mes-
psicanálise através da voz. A voz é «transicional» no em mo e comunicação auditiva com o outro. no canto intimista
que define muito exactamente a área do jogo. Se Winnicott não como no tratamento psicanalítico, cada pessoa revela e expõe a
aprecia o «mind game» («tinha uma certa aversão à inteligência sua vida interior, conta-a a si mesmo para que o outro a ouça, a
e a esse jogo do espírito a que, reconheçamo-lo, o pensamento compreenda e lhe devolva o sentido, partilhado num clima de
analítico contemporâneo se dedica com demasiada facilidade C ), confiança. O inefável é sempre tangencial à experiência do can-
1
recomenda mais ainda o «playing», a acção de jogar, do que pro- to, e no tratamento psicanalítico as palavras tentam traduzir o
priamente o «play», o jogo: iridizível... O canto mantém-se no domínio da voz-música e do
narcisismo feliz dos primeiros tempos da vida, ao passo que o
«Para mim, jogar é uma actividade evidente que deve tratamento psicanalítico nos arrasta para as exigências do social
surgir durante a análise dos adultos e quando se trabalha por intermédio do código da linguagem. Freud, que era um vi-
com as crianças. Essa actividade manifesta-se, por exemplo, sual, inventou a escuta psicanalítica que, na sua opinião, devia
pela escolha das palavras, pelas inflexões da voz e sobretu- ser depurada do sensível afectivo. matemo e apoiada no legal
do pelo sentido de humor.» (1 2) paterno, mas o tratamento psicanalítico também é jogo de vozes,
como mostrámos. Se a vista é acima de tudo o sentido da inte-
E um pouco mais adiante: ligência, do conhecimento científico, da objectividade e do espa-
ço, o ouvido é acima de tudo o sentido da vida interior da
«0 jogo é que é universal e corresponde à saúde ... O consciência, da expressividade e do tempo. '
jogo pode ser uma forma de comunicação em psicoterapia Aliás, o canto e a psicanálise inscrevem-se numa experiên-
e, para concluir, direi que a psicanálise se desenvolveu como cia particular do tempo. Ambos nos arrancam momentaneamen-
uma forma muito especializada de jogo posta ao serviço da te ao tempo convencional, tempo do quotidiano e do social.
comunicação consigo mesmo e com os outros ... O que é na- ~t~a~és do canto e da. psicanálise, reencontramos o tempo da
tural é jogar, e a psicanálise é um fenómeno muito sofisti- mtumdade, o tempo pnvado da nossa relação profunda connos-
cado do século XX.» (1 3 ) co mesmos e com o outro. Provavelmente acedemos à <<nossa
vida, a verdadeira vida, a vida finalmente descoberta e revelada
Sendo assim, Winnicott talvez admitisse a definição da psi- a única vida realmente vivida ... », como é, para Proust, o temp~
canálise como «Um jogo a duas vozes» ... de A la recherche du temps perdu (1 4 ). O canto e a psicanálise
abrem o caminho a esse tempo da vida vivida de que fala
Bergson, opondo-o ao tempo espacializado. Esses momentos de
atenção à vida interior são limitados e balizados, mas, pela sua
sucessão, geram o movimento de uma vida mais pessoal e mais
(' ) Gori (R.), Le corps et le signe dans l' acte de paro/e, Paris, Dunod,
0
rica, ligada ao imaginário e unida à infância.
1978, pp. 10-12 e 226.
(") Khan (M.), Prefácio a La consultation thérapeutique et l' enfant de
Mais ainda, a experiência do canto e a da psicanálise permi-
Winnicott, Paris, Gallimard, 1972, p. XXV.
(' ) Winnicott (D.), leu et réalité, Paris, Gallimard, 1975, pp. 58 e 60.
2
4
( ) Ibid., pp. 58 e 60.
13
(' ) Proust (M.), Le temps retrouvé, tomo m, p. 895.
224 225
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
226 227
Marie-Fra nce Castari!de
«Não se o nosso
do que os místicos desejaram e
creio que talvez não seja supérfluo, numa época em
psicanálise continua por vezes a ser e a ser prati-
cada em certos países como uma actividad e demasiad o hu-
mana de conforto interior e de adaptaçã o, lembrar o sentido
e o objectivo da sua técnica, que é aproximar-se cada vez A voz na
mais do nada a partir do qual podemos laboriosamente re-
fazer-nos e, ao mesmo tempo e na medida das nossas for-
ças, refazer o mundo.» (1 8)
228
«Não há pássaro que tenha coragem para cantar
numa sebe de perguntas.»
R. Char
231
Marie-France Castarêde
vezes nitidamente femininas>>, tomando difícil definir o sexo do assassino. Umversrty Press, 1980, p. 15.
232 233
Marie-France Castarede
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Marie-France Castari?.de A Voz e os Seus
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus
(1°) Idem, op. cit., p. 48. (1 2) Ferenczi (S.), 1915, CEuvres completes, tomo 2, p. 169.
( 11 ) Moses (P. J.), op. cit., pp. 50-51. (1 3 ) Ibid., p. 170.
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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus
«Observo ansiosamente
lesa o
que esse a mais
defeito para continuar a ser a «sua filhinha» ... As nomeei Hitler. As vocais orador
vozes demasiado agudas de certas mulheres são bem reveladoras ir aumentando lentamente e manifestam-se por ""'''".:'""
da sua dificuldade em aceitar uma verdadeira maturidade sexuaL gritos agudos, por certas sílabas entrecortadas e como "la-
Inversamente, Marie-Claude Pfauwadel recebeu no seu con- dradas", ao passo que o seu discurso se refugia nas sonori-
sultório mulheres de voz muito grave, «vozes demasiado roucas», dades mais baixas, duramente apoiadas, para descobrir o
que elas mantinham para darem uma imagem viril, activa e em- timbre necessário.» (1 6 )
preendedora delas mesmas ... Havia uma cantora que referia, en-
tre outras coisas, que tinha forçado a voz de tal maneira que o Esse tipo de voz caracteriza-se por ataques muito duros, com
seu registo passou a ser mais baixo. Depois de lhe terem sido inúmeros «golpes de glote». ,Por outro lado, há a voz contida,
extraídos vários polipos e quistos, e de se ter submetido a uma fria, metálica, monocórdica. E uma vo'? cortante, seca e provoca
reeducação, readquiriu uma soberba voz de soprano. «calafrios». Revela um ódio contido. E a voz do obcecado, me-
Quanto à voz da histérica, é uma voz artificial e teatral: ticuloso, minucioso, que analisa e disseca, como um laser.
Para além das componentes agressivas, sob uma ou outra
«A histérica hipermodula, caindo no maneirismo e as forma, há ainda o ritmo e a periodicidade do débito. Sabe-se
suas palavras soam muitas vezes a falso porque as variações que a voz de Hitler era hiper-ritmada, apoiada num «staccato»
de altura nem sempre estão associadas ao sentido.» (1 4) constante. A acentuação também é uma marca da cólera e do
ódio:
São igualmente conhecidas as perturbações da gaguez, nomea-
damente através do segundo dos cinco casos apresentados por «A interpretação psicanalítica sugere que uma atitude
Breuer e Freud em Études sur l' hystérie (1 5 ): o caso de Emmy agressiva acentuará, seja em que língua for, a estrutura
von N. refere-se a manifestações anormais da emoção e a rítmica da frase, reforçará os acentos, fará diminuir o ca-
fantasmática oral predomina na transferência e na contratransfe- rácter melódico, simplificará o esquema melódico, reduzirá
rência. Na nossa própria experiência clínica, notámos muitas a duração das vogais e prolongará a das consoantes
vezes que a gaguez estava ligada a situações de má definição da oclusivas, introduzirá pausas frequentes e muitas vezes irre-
personalidade na infância, e em que a reacção de inibição espas- gulares.» C7)
módica representava uma agressividade camuflada.
Se analisarmos a problemática anal do ponto de vista vocal, Se notamos de imediato certas vozes, reveladoras de uma
com as subfases descritas por Kare Abraham, poder-se-á distin- explosão de cólera ou de um ódio contido, também ficamos sur-
guir dois tipos muito diferentes: por um lado, a voz agressiva, preendidos quando ouvimos algumas que não são portadoras de
dura, explosiva, esténica, que corresponde à primeira fase de nenhuma «estenia». A expressão de uma certa dose de agressi-
expulsão anal. A cólera é subjacente a essa voz; ninguém pro- vidade é um facto normal: é essa agressividade que confere a
curava perceber as intenções de Hitler, o que se escutava eram cada voz o seu tónus, o seu poder, que concorre para a expressão
as promessas da sua voz:
(1 6 ) Doutor A. Wicart, L' orateur, 1935. Citado por Riviere (J. L.), «Leva-
(1 4 ) Pfauwadel (M.-C.), op. cit., p. 51. gue de l'air>>, Traverses, n. 0 20, 1980, pp. 21-23.
(1 5) Freud (S.) e Breuer (J.), (1895), Étude sur l' hystérie, Paris, PUF, 1967. (1 7 ) Fonagy (L), La vive voix, op. cit., p. 151.
240 241
Marie-France Castarede A Voz e os Seus
o outro é sempre seis anos, que só tinha voz durante uma dezena de dias de nove
sensível e a que vai em nove meses ...
anal, se estiver integrada no Tanto no caso como no o médico foniatra
tribui para dar à voz o seu necessano não conseguiu os seus pacientes a referir os conflitos psí-
pessoal. quicos subjacentes à perda da voz. No primeiro caso, a descon-
O erotismo oral está implicado na pronúncia de certas vogais tracção poderia ter sido o prelúdio de uma psicoterapia. Estes
e consoantes. No palrar, as vogais e as consoantes doces são as exemplos colocam a questão da consulta de um foniatra, que os
que aparecem com mais frequência. Na idade adulta, nota-se por doentes procuram porque os protege de uma abordagem psico-
vezes vozes melosas, açucaradas, cantantes, «puras», agudas, lógica mais profunda, que lhes mete medo.
vozes infantis, em que se poderiam detectar fixações orais. i Para além destes casos, que fazem suspeitar de uma afonia
Se a comunicação é a base da vida humana, a neurose ma- qe tipo histérico, há uma irritabilidade neurótica que pode mani-
nifesta-se sempre por dificuldades no domínio da transmissão das festar-se por fadiga da voz, acentuações indistintas, respiração
mens~gens aos outros. Por conseguinte, está ~uito_ associada à irregular, mais frequente e mesmo arquejante. A voz de um dos
voz. E por isso que o aparelho vocal, numa s1tuaçao de neuro- nossos pacientes, que se sentia constrangido pela sessão de psi-
se, revela sinais de falta de controlo: entoação incerta, altura não canálise que, para ele, era uma espécie de sodomização, enfra-
constante continuidade tonal alterada ... A ansiedade, quando se quecia por vezes durante a sessão, e o seu discurso, interrompido
toma de~asiado forte, pode provocar afonia e mesmo mutismo. por numerosos «gatos» na garganta, tornava-se dificilmente audí-
Uma mulher de trinta e cinco anos, casada há quinze anos e vel. Se um frenesim de palavras pode ser neurótico, também o
sem filhos (1 8), funcionária da Segurança Social, vai a uma pode ser o silêncio constrangido de certos pacientes. Por outro
consulta por causa de uma afonia cuja aparição remonta há seis lado, as perturbações da linguagem e da, elocução, na criança e
meses atrás e que só cede ligeiramente à noite. O exame das cor- no adulto, podem repercutir-se na voz. E costume dizer-se que
das vocais é normal. Inicia-se uma descontracção: passados uns a disfonia é, para a voz, o que a gaguez é para a palavra. Sendo
meses, nota-se uma melhoria, mas entretanto começa a ter cri- assim, a disfonia espasmódica pode ocorrer devido à perda de um
ses agudas de vaginismo, de que a paciente fala com muitas re- objecto que foi alvo de um superinvestimento. A dor do luto não
ticências. Muito reservada acerca da sua própria história, conta pôde ser expressa e o soluço abafado passa para a voz, como
que se lembra da mãe como de um ser muito frio e muito distan- aconteceu a uma mulher hiperactiva, de cerca de cinquenta anos,
te. Descontrai-se com muita dificuldade e progride pouco, quan- que confia:«Não me deixaram chorar.» Um geólogo de trinta e
do é convocada pelo médico dos serviços, que pede o diagnóstico quatro anos também vem à consulta por causa de uma disfonia
de um especialista. O otorrinolaril!gologista declara: «A afonia espasmódica provocada por uma mud~mça de vida radical, que o
cura-se com um par de estalos.» E então que ela vai consultar fez passar de uma ilha do Oceano Indico para um ministério
um psiquiatra que faz sessões de hipnose, mas sem qualquer re- parisiense: após uma descontracção que durou dois anos, pôde
sultado. Consegue mais seis meses de baixa. Uns anos mais tarde, submeter-se a uma reeducação foniatricamente apropriada.
conta que intentou e ganhou um processo contra a Segurança
Social. Depois de ter dado livre curso à sua agressividade, sente-
-se melhor e mudou de vida. Também nos foi relatado um ou- Em França, foi no domínio da psiquiatria, e nomeadamente
tro caso de afonia, referente a uma mulher solteira, de trinta e da psicose, que se fizeram, até hoje, os estudos mais sérios so-
bre a voz:
( 18 ) Caso que nos foi relatado por Marie-Claude Pfauwadel, foniatra, a «Tentar elucidar concordâncias entre patologias mentais
quem agradecemos. e patologias vocais ... a questão não é de hoje ... É colocada
242 243
Marie-France Castarede
PineL» à
essencialmente alterações de ritmo da
Para além de citar Kahl- ção do débito verbal (diminuição das pausas e duração das pa-
baum, Kraepelin, Bleuler, entre os psiquiatras do início do sé- lavras), durante as fases maníacas, e abrandamento, durante as
culo XX que se interessaram pela voz. No «OS factos são fases depressivas:
repertoriados, descritos sem consistência sensorial, como porme-
nores suplementares» (2°). «0 discurso do deprimido é lento, monótono, com pou-
Só na segunda metade do século XX é que se começará a cas variações do fundamental; a intensidade é fraca.» (2 3 )
estudar de uma forma sistemática as perturbações da linguagem
nos alienados. Mas também há estudos recentes, incidindo em crianças dislá-
Nos países anglo-saxões, Addington (1968), Uldall (1960), licas (2 4), que nos elucidam acerca das modificações da voz:
Brown e os seus colaboradores (1973-197 4, estes, utilizando a
«escala semântica» de Osgood, 1954) tentaram descobrir traços «Uma voz dislálica específica e patológica caracteriza-
de personalidade através da voz; Moses, em 1954, já tentava -se pelos traços pertinentes seguintes: débito irregular, inter-
fazê-lo, como referimos anteriormente a propósito não só das ferências vocais, golpes de glote, timbre pausado, pastoso,
neuroses, mas também da esquizofrenia. rouco, gutural, abafado, soprado e dispneico.» (25)
A análise de Moses, recorrendo à «escuta criativa», posta em
prática com um júri de várias pessoas, punha em evidência os A análise metafórica da voz da criança dislálica põe em evi-
traços seguintes da análise vocal do esquizofrênico: predominân- dência o seu sofrimento, o seu mal-estar, a sua angústia, por
cia do ritmo sobre a melodia, registos separados (voz de cabeça vezes mesmo a sua cólera e a sua agressividade. A sua voz as-
ou voz de peito), ausência total de <<pathos» (2 1), diminuição da semelha-se à voz da criança autista: demasiado aguda, atonal,
ressonância nasal, melodia sem qualquer relação com o conteú- aritmica, inexpressiva, modulação pobre, nasalações frequentes,
do, voz eivada de maneirismo, acentuações não apropriadas. variações extremas de intensidade.
Estas conclusões parecem ser confirmadas pelo estudo mais Simetricamente, também se pode descobrir defeitos patogê-
recente de C. Chevrier-Muller, que se baseia em métodos esta- nicos na voz da mãe do autista: a discordância (intervém a con-
tísticos e refere as seguintes características da voz dos esquizo- tratempo porque não pode reagir adequadamente ao que o bebê
frênicos: retraimento afectivo, expresso pela diminuição da sente), a brusquidão (a voz exprime-se por mudanças de tom que
quantidade de melodia (extinção da linguagem afectiva), menor não garantem ao bebê uma coerência interior satisfatória por parte
variabilidade de altura da voz (falsas variações melódicas, mo- da mãe), a impessoalidade (a voz não informa o bebê acerca do
que a mãe sente ou acerca do que ele próprio sente: é uma voz
9
«no vazio» ... ), o paradoxo (o tom da voz pode estar em desa-
(' ) Sevestre (P.), Chevrie-Muller (C.), Seguier (N.) e Spira (A.), <<Altéra-
t~on de la voix dans les schizophrénies et les psychoses maniaco-dépressives>>,
Evolution Psychiatrique, tomo 45, n. 2, 1980, p. 281.
0
(2°) lbid., p. 284. (2 2) Chevrie-Muller (C.) e colaboradores, op. cit., pp. 292-293.
(2') O <<pathos» da voz exprime a relação entre o sujeito e ele próprio, e (2 3 ) Pfauwadel (M.-C.), op. cit., p. 51.
entre ele e a sociedade. Uma palavra carregada de pathos estabelece uma re- (2 4) A dislalia designa as perturbações de articulação, sem que haja qual-
lação verdadeira. O excesso de pathos corresponde ao maneirismo, ao ênfase, quer lesão orgãnica.
á megalomania. Uma voz sem pathos dá ao discurso uma impressão de au- (2 5) Vida! (M. M.), Étude phonologique, prosodique et phono-stylistique de
sência de comunicação. la dyslalie, tese de terceiro ciclo, Universidade de Paris III, 1981, pp. 154-156.
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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios
cardo total com a lógica do discurso: o bebê recebe apenas men- De acordo com as características enumeradas
sagens que não é capaz de Pfauwadel a voz da criança surda é uma voz Tem
Foi Moses, seguido actualmente por quem tornou uma altura porque o funcionamento da não está
possível o diagnóstico das entidades nosológicas e p~i- em causa; só a surdez muito profunda é que pode provocar per-
coses) por intermédio do comportamento vocal. A «escuta cna- turbações do fundamental. A intensidade é demasiado _forte o~
tiva» permite classificar o que, à partida, só dependia da intuição demasiado fraca, nunca bem controlada. Quanto ao timbre, .e
e da perspicácia auditiva e clínica. velado, rouco, toldado, e sobretudo muito nasalado. A melodm
é, na maioria dos casos, monótona. Os pontos de articulação pos-
teriores, necessários para se pronunciar certas c?nsoantes, sã~
Sem abordarmos demoradamente o problema da voz da criança difíceis de alcançar porque o controlo, que na cnança surda so
surda, achamos conveniente insistir nas suas particularidades. pode ser visual, não é fácil. .
A surdez não está ligada a uma dificuldade psicológica, mas a um · Na maioria dos casos, a voz das cnanças ou dos adultos que
défice sensorial que provoca inevitavelmente perturbações afectivas. ficaram surdos, ou naqueles cuja audição diminui com a idade, mo-
Quando é congênita e total, constitui um obstáculo considerável difica-se: revela uma intensidade mais forte e é menos modulada.
para a aprendizagem da linguagem por parte da criança. Todavia, Notemos por fim que o carácter melódico da voz e a sua cor-
a criança surda não perdeu a capacidade de emitir sons nos pri- recta intensidade dependem muito do meio ambiente, que é o que
meiros meses de vida - vocalizos, lalações - , capacidade inata regula as inflexões vocais com todas as subtilezas possíveis.
que todas as crianças possuem. Esses sons não têm valor signifi-
cante, constituem um jogo. Após esse curto período (de três a sete
meses, aproximadamente), se a criança surda continua a estar pri- A terapêutica
vada de estímulos sonoros, torna-se realmente muda. No entanto,
é essencial que o bebê surdo, que não ouve as suas lalações, possa Falar da voz, é falar de um dos modos fundamentais de ex-
reconhecer que a mãe fica satisfeita ao ouvi-lo emitir sons. Por- pressão do ser. Por isso, «as disfonias» (2 8 ) funcionais têm sem-
que é preciso não restringir a questão e considerar que o handicap pre a ver com problemas psicológicos, seja de que importância
mais importante não é só ter graves dificuldades na aprendizagem forem (a este respeito, só a integração desses problemas numa en-
da linguagem, mas sentir um enorme embaraço no plano da comu- tidade nosológica precisa permite percebê-los). Por isso, só. se
nicação em geraL Toda esta pesquisa demonstrou a importância das deve acreditar nas terapias especificamente «vocais» na med1da
primeiras comunicações vocais, através do babytalk, por exemplo, em que têm em conta a personalidade como um todo, em q~e a
que é Il}Uito diferente da linguagem constituída de um modo defi- voz está implicada. Todavia, também é verdade que, em mmtos
nitivo. E essa apetência comunicativa que pode vir a faltar à crian- casos, a consulta de um foniatra permite que o indivíduo, numa
ça surda se, por azar, as pessoas que o rodeiam não souberam primeira fase, focalize o seu pedido em tomo de uma reeduca-
atenuar o handicap e estabelecer outras modalidades de relação. ção, e numa segunda fase, resolva o seu problema vocal. com uma
A criança surda não é como a criança cega, que é vista, embora terapia de tipo comportamental, como pode ser praticada por
não veja; a criança surda não só não ouve, como também não é foniatras com alguma experiência de escuta psicológica, ou se
ouvida. Vive num mundo de que não possui o código, porque a abra a um outro tipo de responsabilização muito mais global, com
linguagem é realmente a característica humana fundamental. Por os riscos de recusa e de resistência que infalivelmente sobrevêm.
isso, a linguagem dos sinais pode ser, para ela, um prelúdio fun-
damental à apropriação da palavra oral (2 6 ).
( 27 ) Pfauwadel (M.-C.), Respirer, parler, chanter, op. cit._, p. 122.
(2 8) Nome genérico das perturbações da fonação, de ongem central ou
(2 6 ) Bouvet (D.), La parole de l' enfant sourd, Paris, PUF, 1982. periférica.
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus
Cantar
Se todo o corpo está esse
O foniatra deve sempre fazer um físico é uma de estimular a sua
completo. Depois de se ter que não existe ~~··-·,,·- 1-'""u"'"'""'' de harmonizar as
problema orgânico, 9 balanço foniátrico vai determinar a or!enta- ção, expressão, descontracção) para uma ao mesmo
ção da reeducação. E nessa reeducação que vão melu- tempo, física e mental. Todas as técnicas de concentração vin-
tavelmente, os problemas psicológicos subjacentes. A reeducação das do Extremo-Oriente se baseiam nesse domínio do corpo. No
praticada pelos foniatras implica, na maioria dos casos, uma for- canto, há ainda a acrescentar a esse domínio a felicidade da ex-
ma de psicoterapia, isto é, a descontracção, preparação indispen- pressão e da comunicação.
sável para os exercícios respiratórios. Se as dificuldades são O repertório vocal é extremamente variado e extenso. Falá-
pouco significativas, este tipo de reeducação será suficiente. wos sobretudo do canto clássico, mas poderíamos ter alargado o
Se o bloqueio é mais profundo, o foniatra pode propor uma nosso discurso a outras categorias de expressão vocal: canções
terapia de tipo comportamental, com dessensibilização sistemáti- de variedades, canções folclóricas, blues, expressão cênica ... (3 1)
ca. Trata-se de detectar a ou as actividades vocais que geram os De todas as técnicas psicovocais que começam a desenvol-
problemas mais graves e revelar os conflitos que lhes estão as- ver-se escolhemos três, que apresentam aspectos diferentes da
sociados: «Já não tenho medo da minha turma», descobre uma procura da expressão vocal, e em seguida falaremos de duas téc-
professora, que foi a uma consulta para aprender a poupar a gar- nicas terapêuticas já codificadas: o grito primai e a bio-energia.
ganta, porque, ao fim do dia, estava quase sem voz (29 ).
A reeducação também pode conduzir a modificações psico-
lógicas: «Sabe o que é que fiz hoje?», pergunta um dia, encan- O canto de Yva
tada, uma paciente. «Disse "merda" à minha mãe!» Sempre que
tinha de lhe telefonar ficava afónica ... (3°). E os exemplos pode- Antes de nos fazer cantar uma nota que seja, Yva Barthélémy
riam multiplicar-se. preconiza uma ginástica completa, dado que o seu princípio é que
As dificuldades vocais exprimem uma sintomatologia que só se pode desenvolver as possibilidades vocais, sem cansar o
pode encobrir um mal-estar psicológico mais profundo. O fonia- aparelho vocal propriamente dito, mobilizando (pela estimulação e
tra, nos casos em que a estrutura neurótica é mais marcada, po- pela descontracção) toda a musculatura anexa. Yva Barthélémy faz
derá encaminhar os seus pacientes para o psicanalista. trabalhar a postura da nuca, os músculos da língua, do palato, do
pescoço, a respiração casto-abdominal... Praticado após estes exer-
cícios, o canto tem repercussões profundas sobre o estado geral:
As terapias vocazs
«É uma ginástica que toca pontos essenciais: o diafrag-
Há já muito tempo que se fala de ergoterapia, de arte-tera- ma, o plexo solar, a laringe, os músculos do maxilar infe-
pia, de musico-terapia ... A terapia psicovocal poderia figurar le- rior, que estão muitas vezes contraídos, a nuca ... » (3 2 )
gitimamente na longa lista das abordagens terapêuticas e tem
vantagens bastante evidentes. Depois desta preparação física, o cantor pode exprimir-se, e
Todas as pessoas têm uma voz e podem desenvolvê-la. Can- com possibilidades reforçadas. O trabalho da voz pode desenvol-
tar é um acto perfeitamente natural; todos os bebês palram, voca- ver-se, com todas as consequências psicológicas que daí derivam.
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Conclusão
A música voz
ou a voz no coração da música
« ... A própria música (é) o mistério supremo
das ciências do homem, o mistério com que elas
se confrontam, e que pode explicar o seu pro-
gresso.»
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus
Sensíveis ao canto da voz, descobrimos a sua <!H<:!U'-·" ' ' ' " ' uoo- A pouco e pouco, a voz materna
da com a música (1). Claro que, além do canto, a voz a nesse
falada, a voz do homem da rua, banal, a voz da mãe, mãe com Muito antes dos ,H,,H,HL·CUJ
do pater familias e dos seus filhos, a voz do apaixonado, do pro- as inflexões da voz que constituem a língua materna
fessor, do político, do advogado, do actor. .. em suma,. t?~a~ as do sentido linguísitico, geram um sentido emocional.
que veiculam a linguagem, nos seus aspectos utlht,a:ws, Como afirma Michel Serres:
conceptuais, psicológicos e artísticos. No entanto, ~ntogenetlca e
filogeneticamente, a voz, antes de se converter em In:gu~gem, era <<A música, oriunda de todas as Musas, não pode ser con-
«expressão», como no caso do bebé e das suas pnme1ras rela- fundida com uma arte; é a soma de todas as artes. E nenhu-
ções com a mãe, e entre os primitivos, _de acordo com_o que as ma delas tem êxito, se não tiver música; a música guarda
investigações dos paleontólogos nos ensmam: a expressao modu- cada uma delas e fá-la existir. Ela própria, sem ela própria,
lada ou cantada é a primeira forma de comunicação. não é senão notas, cálculo insípido.
Instrumento fundamentalmente musical, a voz libertou o som, A poesia não voa, ou pior, fica de joelhos, sem ela; e a
arrancando-o às coisas; o homem gera a música através da sua arquitectura não é senão pedras, a estátua é matéria e a prosa
voz. Muito antes de «falarem» com os que os rodeiam, o homem é ruído (1); a eloquência, privada de ritmo e da curva incli-
primitivo e o bebé descobriram a expressão voc~l, a músic_a -~a nada pela evocação melodiosa cai no absurdo e no tédio.» (3)
voz, para se dirigir a eles. A voz, como emanaçao da senslbth-
dade humana, passa a ser o primeiro instrumento da arte. «No Se Ulisses, recorrendo a artifícios, fracassa, Orfeu, com a sua
princípio era o canto», disse Michel Serres. A música emana da lira de nove cordas, consegue fascinar as sereias. Com a lira de
voz; apoia-se no primeiro órgão dos sentidos, através do qual o Apolo, de sete cordas, a música era apenas uma arte. Quando a
mundo nos é dado: o ouvido. lira passa a ter nove cordas, graças a Orfeu, passa a haver tantas
No babytalk, a mãe altera musicalmente a sua linguagem e o cordas como musas. A música toma-se a arte de todas as musas,
que o bebé começa por ouvir, antes de qualquer outra _coisa, é essa o conjunto das Belas-Artes, a linguagem que as musas falam entre
música materna, a que responde com os seus vocahzos e o seu si, o contrato social das musas. Todas as artes devem ser música.
palrar. A voz da mãe é música; a música é a voz da mã~. O, s?m Na música há coexistência entre a música vocal e a música
musical encontra-se, desde a origem, preso numa rede s1mbohca. instrumental. Tradicionalmente, os instrumentos, nas músicas pri-
A voz materna serve de intermediária entre, por um lado, o mun- mitivas, nascem do ritmo e da dança. Todavia, o gesto vocal é
do do corpo e do afecto, e, por outro lado, o mun?o do pens~ o gesto propriamente musical. Já Rousseau escrevia:
mento e da representação; é graças a ela que a cnança pode rr
escapando progressivamente ao impac_te t~aumático da sedu_ção «Parece que a música foi uma das primeiras artes ... É
original, verdadeira efracção nos pnme1ros tempos de v1da. muito provável que a música vocal tenha sido descoberta
antes da música instrumental, se é que entre os antigos houve
C) Etimologicamente, a palavra «música>> remete para as Musas. _A filologia uma música verdadeiramente instrumental, isto é, feita uni-
admite que musica vem de musa, em latim <<ária», .«~anção» que denva por _seu camente para os instrumentos.» (4)
lado do grego f-!.OVaa, na origem f-!.OVna que significa <<dotado de um sentido,
de um significado» ... Assim, a palavra <<música» tem laços de parent~sco com _a
família da raiz indo-europeia <<men>>, que designa os mov!ll1entos do espmto e, mrus (2) A bela sonoridade de um texto é a garantia da qualidade do estilo,
em geral, o próprio homem, medida de todas as coisas. Por conseguin~e, a mú- como Flaubert verificava por si mesmo, através do seu <<gueuloir>>.
sica está directamente ligada ao canto e, simultaneamente, ao homem, CUJO mundo (3) Serres (M.), Les cinq sens, Paris, Grasset, 1985, p. 129.
organiza, graças à Harmonia que reina sobre a Discórdia, pólo negativo e entrópico 4
( ) Rousseau (J.-J.), (1967), Dictionnaire de la musique, citado pelo
(cf. J. Bril, A cordes et à cris, Paris, Clancier-Guénaud, 1980, pp. 91-94). Dictionnaire Robert, 1972, vol. 4, entrada Musique, p. 553.
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«É o gesto vocal que confere o seu conteúdo mais pro- Por outro lado, descobre-se que a originalidade da música
fundo à música: é o próprio ideal da técnica instrumen- primitiva reside precisamente no movimento vocal. No Nô, temos
tal.» (S) a sua continuidade pura: a melodia desenvolve-se sem se fixar
em graus definidos e as relações sonoras permanecem indetermi-
Nos antigos tratados de cravo, flauta ou violino, o canto é ~adas, p~rque não há qualquer escala que imponha limites ao
considerado como modelo de interpretação. No período barroco, Impulso livre da voz. A música indiana e a música árabe-islâmica
na Europa, os instrumentos musicais tentavam imitar a voz: sob ta,mbém dão essa imagem da continuidade musical primitiva, atra-
este ponto de vista, o instrumento mais belo era a viola da ves das «passagens» estreitas e apertadas, leves nuances e quar-
gamba. De facto, todos os instrumentos obedecem ao fraseado, ~os de tom. A melodia musical imita a continuidade vocal, que
esse ritmo original da voz: e um canto espontâneo. Mais tarde, competirá aos instrumentos,
r~presentant~s da harmonia, fixar os intervalos, sujeitando-os ao
«A expressão é sempre uma imitação do canto, e o gran- ngor das le1s da harmonia. A melodia é a linguagem da emo-
de artista reconhece que na música tudo é canto, mesma a ção, e a harmonia é a linguagem do pensamento musical. A har-
aérea leveza de um traço, que só é leve pela própria suavi- monia é escrita; a melodia é voz. Quando ouvimos música,
dade do seu fraseado ... A voz, gesto subtil e delicado, emo- acompanhamos o canto com a nossa voz, porque cada pessoa
ciona porque é nela que vêm traduzir-se todas as actividades reconhece nesse canto a linguagem da emoção e do afecto. A li-
do ser.» (6) ~ha melódica remete para a voz da mãe, que fixou para o seu
filho o modelo de entoação da doçura e da ternura.
Outra distinção clássica na música: a melodia e a harmonia. Se a harmonia é objecto da inteligência e obedece a leis
Também neste caso, e sem querermos retomar os termos da dis- imutáveis, a melodia é um livre impulso que comunica aos sons
cussão que opôs Rameau a Rousseau (?), a proeminência perten- as suas inflexões íntimas. A melodia da «pequena frase da so-
ce à melodia, isto é, ao gesto vocal: n~ta ~de _Yinteuil» permite a Proust o acesso ao campo das remi-
mscencms ... Permite-nos cantar a música e recriá-la para nós
«A melodia é o facto primeiro e geral», mesmos, unindo-a à nossa vida interior:
escreve Nietzsche ( 8). Gilles Deleuze diz algo semelhante, ao afir- <<A música só se ouve graças à voz que a profere inte-
mar: riormente.» Co)
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus
(12) Imberty (M.); L' acquisition des structures tonales chez l' enfant, Pa-
ris, Klincksieck, 1969. .
(1 3) Subversão que atinge a pintura, o teatro, a poesia, o romance ...
e) Citado por P.-M. Menger, Le paradoxe du musicien, Paris, Flamma-
rion, 1983, p. 218.
(14) Devemos-lhe, nomeadamente, a música de West Side Story. 18
( ) Adorno (T. W.), Quasi una fantasia, Paris, Gallimard, 1982,
p. 284.
(15) Bernstein (L.), La question sans réponse, Paris, Laffont, 1982, ~· 39. (1 9) lbid., p. 278.
(1 6) Roederer (J. G.), Introduction to the physics and psychophystcs of (2°) Adorno (T. W.), Philosophie de la nouvelle musique, Paris, Gallimard,
rnusic (2." ed.), Nova Iorque, Springer, 1975. 1962, p. 83.
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«Entramos no mundo da incomunicabilidade, da mãe A melodia materna só encanta quando é «melodiosa»; a sua
muda perante o desejo e o desespero do seu bebé, de canais natureza muda, se se inspira nos ruídos: rouquidões, asperezas,
sem ondas para que um barco possa circular, das respos- discordâncias vocais, tom monocórdico, ausência de entoação ...
tas ausentes a perguntas que só puderam ficar por formu- Na música, como na vida, a melodia é que é fenômeno transi-
lar.» (2 2 ) cional, como para a criança pequena: faz parte do espaço que
representa «a transição da criança que passa do estado de união
Gilles Deleuze continua a fazer a comparação entre a música com a mãe para o estado em que está em relação com ela, como
e a pintura, a partir da voz e do rosto da mãe, quando escreve: algo exterior e separado» (2 5 ). o que a criança faz com o objec-
to transicional é dominar o tempo. O objecto atravessa, sem qual-
<<A música é em primeiro lugar uma desterritorialização quer dano, o tempo do seu amor e do seu ódio, da sua recordação
da voz, que se vai tornando cada vez menos uma linguagem, e da sua espera: resiste ao tempo, como a música. A música, toda
tal como a pintura é uma desterritorialização do rosto.» (2 3 ) a música, é apenas reparação (2 6): Neste sentido, constitui o apo-
geu do destino do objecto transicional. O espaço sonoro é ilu-
A música de alguns compositores contemporâneos não dá a são, mas ilusão necessária.
entender que o «espelho sonoro» da melodia materna não funcio- É através da melodia que a música se torna «passagem». Nu-
nou, e que, através da sua obra, só traduzem a impossível comu- ma carta, escrita em 25 de Outubro de 1855 a Mathilde Wesen-
nicação vocal, primeira e primordial? ... Seria essa a mensagem donck, Wagner - o músico da melodia contínua - escreve:
de rangidos que nos é parcialmente transmitida pela ~úsica ?o
nosso tempo, onde há jogos acústicos infinitamente subtls e sofls- «Gostaria de chamar "arte da passagem" à arte mais
ticados, que nos transportam, mais ou menos, ao mundo dos fina e mais profunda, porque toda a trama da minha arte é
ruídos. Luciano Berio explica assim essa integração do ruído na composta por essas passagens.» (2 7 )
música:
(2 4 ) Entrevista de Luciano Berio, Le Monde de la musique, n. 0 81 bis, Pa-
(2 1) lbid., p. 85. ris, Setembro de 1985, pp. 103-104.
( 22 ) Anzieu (D.), «La peau, la mere et le miroir dans les tableaux de (25 ) Winnicott (D.), leu et réalité, f. 26.
Francis Bacon>>, Le corps de l' a;uvre, Paris, Gallimard, 1981, p. 336. (2 6 ) No sentido k1einiano do termo.
27
(23) Deleuze (G.), Mille plateaux, op. cit., p. 371. ( ) Citado por G. Brelet, Le temps musical, op. cit., tomo 2, p. 622.
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dramático Alto
4.
Ai da A ida G. Verdi
Turandot Turandot G. Puccini
Tosca Tosca G. Puccini Polinesso Ariodante C. F. Haendel
!solda Tristão e !solda R. Wagner Eustazio Rinaldo C. F. Haendel
Elisabeth Tannhauser R. Wagner Goffredo Rinaldo C. F. Haendel
Senta O Navio Fantasma R. Wagner Oberon Sonho de uma noite
de verão B. Britten
5. Soprano spinto (mesmos papéis que em 4., mas com uma outra
cor, nomeadamente uma voz tema) .2. Tenor ligeiro
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6. Barítono
7. Barítono Verdi
8. Barítono baixo
9. Baixo cantante
274
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277
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COLECÇÃO DIRIGIDA
POR BELMIRO GUIMARÃES
Mozart Reencontrado
Alain Gueullette
Música e Descolonização
Leonardo Acosta
Ao Sabor da Música
António Cartaxo