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E-

Índice

Introdução ... ... ... .. .. .. ... ... .. .. ..... .. .. .. .. ... .. ... .. .. .. ..... .. .. ... ... ... .. .. .... .... .. .. . 11

CAPÍTULO I: NAS ORIGENS DA VOZ E DO CANTO...... .................. ............ 13


A filogénese .. ... .......... .. .... ..... ... .. ...... ..... .. .. .. ... .. ...... ... ... .. ... .... ... .. ... .. 16
A fisiologia da voz.......................................................................... 24

CAPÍTULO li: A voz: MITOS, HISTÓRIA E FILOSOFIA .................. ......... .


31
Os mitos ........................................................................................ .. 34
A VOZ E OS SEUS SORTILÉGIOS Os ritos ........................................................................................... . 44
Título original: La voix et ses sor:tileges A música vocal europeia .............................................................. .. 52
Autora: Marie-France Castarede Voz e filosofia ................................................................................ . 60
Capa: Design gráfico de José Serrão
Ilustração da capa: Gustav Klimt, Friso de Beethoven (1902),
<<Coro dos Anjos do Paraíso» (po~enor) CAPÍTULO UI: A MÃE E A CRIANÇA .................. .................. ................ .
69
Tradução: Maria Jorge Vilar Figueiredo A viva voz ...................................................................................... . 71
© 1991 Société d'Édition Les Belles Lettres O reconhecimento da voz materna e as primeiras vocalizações .. ..
Direitos de tradução para Portugal 78
e países da África de expressão portuguesa reservados Os esquemas musicais ................................................................... . 92
por Editorial Caminho, SA, Lisboa- 1998 Proust e a voz materna ................................................................... . 97
Tiragem: 1500 exem~lares ""
Impressão e acabamento: Tipografia Lousanense, L. CAPÍTULO IV: A LIÇÃO DE CANTO .................. .................. ................. ..
Data de impressão: Fevereiro de 1998 105
Depósito legal n." 119 995/98 A relação psicológica ................................................................... .. 107
ISBN 972-21-1174-4 A descontracção ............................................................................ . 113
O legato ......................................................................................... . 124
www .editorial-caminho .pt
A projecção vocal ......................................................................... .. 127

7
Marie-France Castarede

] 31
CAPÍTU LOV: pARA UMA ABORDAGEM PSICAN ALÍTICA DA VOZ
133
Freud e a música.............................................................................
139
Voz entre corpo e
.. .. .. ... 148
Voz, espaço transic ional . ... ... . ... . ... . .... .. . .. .. .... .. .. .. .. . .. .. .. ... .. . .. ..
smo.... ........... ........... ........... ........... ........... ........... ....... 150
Voz e narcisi
dade... ........... ........... ........... ........... ........... ........... ...... 161
Voz e sexuali
17 5
CAPÍTU LO VI: As FORMAS CULTURAIS DO CANTO ........... ........... ........... .
O canto religio so ............................................................................
177 Aux voix cheres qui se sont tues
179
A ópera: castrati e divas .................................................................
...... 194
O lied ........................................................................................ Mon rêve familier
porâne o .. .. .. .. .. .. .. .. .... ..... .. .. .. .. .. .. .... .. .. .. .. .. .... .. .. .. ... .. 199
O canto contem
O canto como actividade cultural e o papel da cultura na econom
ia Je, fais souven~ ce rêve étrange et pénétrant
psíquic a . . .. .. .. .. .. . . .. .. .. .. .. ... . .. .. ... .. .. ... . .. ... .. .. .. ... .. . .. . .. .. . .. ... .. . .. .. ... . 202 D un~ f~mme mconnue; et ~ue j 'aime et qui m' aime,
Et qm n, est,_ chaque fms, m tout à fait la même
N1 tout a fmt une autre, et m'aime et me comprend.
CAPÍTU LO A VOZ NO TRATAMENTO PSICAN ALÍTICO
VII:
........... ........... ... 217 Car elle me comprend, et mon creur, transparent
E A EXPERIÊ NCIA DO CANTO ........... ........... ...........
A voz, «meio de comun icação » no tratam ento psicana lítico..
....... 219 Pour elle seule, hélas! cesse d'être un probleme
. .. .. .. . . .. .. . . . . .. . . .. . .. .. . . . . . . .. . .. .. . . . . . . . . .. .. . . . .. . . . .. . . . . ... ... 225 Pour elle seule, et les moiteurs de mon front blême
Canto e psican álise Elle seule les sait rafraichir, en pleura11t. '
229 Est-elle brune, blonde ou rousse? - Je l'ignore.
CAPÍTU LO VIII: A VOZ NA ESSÊNCIA DA PERSONALIDADE .. .. .. ...... .. .. .. .. ..
Patolo gia mental da voz............................................................
...... 231 Son nom? Je me souviens qu'il est doux et sonore
........... ........... ........... ........... . 247 Comme ceux des aimés que la Vie exila.
A terapêutica......................................
foniatr ia ........... ........... ........... ........... .. 248
Uma aborda gem médica: a Son regard est pareil au regard des statues
... .. .... . 248
As terapias vocais ... .. .. . .. ... .. ... . .. .. .. ... .. .. .. ... .. .. .. .. ... .. ... .. ... .. .. . .. E~. pour. sa voix, lointaine, et calme, et gra~e, elle a
(métod o de Yva Barthé lémy) ........... ........... ........... 249 L mflexwn des voix cheres qui se sont tues
O canto tónico
ge), da
A sintoni a ou o canto das forças primor diais (Henri Chédor
........... ......... 250 Paul Verlaine
escola do Roy Hart Theate r ........... ...................... (Poêmes saturniens: Mela11cholia)
mal de viver (Rolan d
A análise da melodi a de cada um: o canto do
.. ... . . .. ... .. . . . .. . . . .. .. . .. . .. .. .. .. . . .. 251
Magna bosco) . ... .. .. .. .. .. ... . .. .. .. ... ... ...
251
O grito primal .. .. .. .. .. .. .. .. .. ...... .. .. ...... .. .. .. .. .... .............. .... .. .. .. ...........
...... 253
A bioene rgia .............................................................................

CORAÇÃO DA MÚSICA ....... 257


CoNcLu sÃo: A MúsicA DA voz ou A voz NO

Anexo: Exemp los de árias de óperas e sua relação


271
com a classif icação das vozes ..................................................

........... ........... ....... 275


BIBLIO GRAFIA ........... ........... ........... ........... ...........

8
Introdução

Para o filho do homem, o acesso ao mundo é acesso à voz:


é o grito primário ou palavra de vida ... A sua voz só se extin-
guirá quando soltar o último suspiro: último suspiro ou silêncio
de morte... A sede de ar que faz gritar o moribundo é a mesma
que fez gritar o recém-nascido: entre estes dois gritos de ser, há
o tempo da vida, o percurso de uma consciência, a trama de um
destino. Fazer ouvir a sua voz, palrar, falar, cantar, rir ou cho-
rar, é viver como sujeito no mundo dos homens.
Mas o homem não se limita a falar: também ouve. A voz é
emitida para ser ouvida e estabelece de imediato uma relação de
alteridade e de reconhecimento, porque as inflexões e as modu-
lações da voz fazem vibrar a caixa de ressonância do nosso cor-
po de uma forma única e específica. Mais ainda, a voz revela não
só como o Outro fala, mas também de onde fala; está sempre
associada a um qualificativo (metálica, doce, seca, sedutora, sua-
ve, desabrida, neutra) ou a um lugar (diz-se que é uma voz de
cabeça, do nariz, das entranhas, do coração ... ). As nossas entoa-
ções exprimem a nossa concepção de vida: «Diz-me como falas
e dir-te-ei quem és ... »

11
Marie-France Castarede

para o
tarde para a perceber e que, por ameaça, a voz
, que não sabe se a a rece-
é também enigma para o corpo
be ou se liberta dela.
s e
Impõe um percurso iniciático, remetendo para as origen
da vida, da
atingindo o último. Huma na e subjectiva, é o eco
nasce r para o mun-
nossa vida, da nossa maneira particular de
do, de nele estar presente, e de o deixar. Capítulo I
que a
Eu própr ia fui-me apercebendo progressivamente de
voz é essenciaL Criou -me nos tempo s remot os do meu
nosta
passa
lgia
do
da
Nas origens da voz e do canto
primordial, agarro u-me à existê ncia com a aguda
iores, e mais
melodia materna, prelúdio a todas as ligações poster
ana-
tardiamente fascinou-me na escuta subtil do jogo de vozes
lítico e na belez a das obras music ais.
A mi-
Foi o amor à voz que me incitou à prática do canto.
sta amad ora (1), que durou uma dezen a
nha experiência de corali o
o praze r intens o de me sentir conci liada com
de anos, deu-me
de cantar,
meu próprio corpo, que participa plenamente no acto
no e no canto a
conciliada com os outros no canto em unísso
menti stas da orque stra,
várias vozes (2), conciliada com os instru
do maest ro unific ador. Expe-
que cantam connosco sob a batuta
e com o
riência única do entendimento com um outro fraterno
os todos juntos , enqua nto dura o conce rto, a
público, para criarm
nidad e.
ilusão mome ntâne a e feliz de uma verdadeira comu ta,
O canto e a música convidam a uma comunicação perfei
sentir felize s, porqu e sim-
tomad a real pela partitura. Fazem-nos
huma-
bolizam a harmonia, sonho sempre frágil das sociedades
o por Fellin i nas suas duas alego rias
nas, como é demo nstrad
cinematográficas, Ensai o de orque stra e O navio ...
r-
Passeio, convite à viage m ... poderia ser esse o nosso percu
canto , tal como a
so em tomo do canto da voz. Todavia, esse
s de se ter esgota do a ta-
música, só se ouve no silêncio, depoi
garelice das palavras ...
Maniban, Abril de 1987
Barenboi:m sob a
(') Nos coros da orquestra de Paris, criados por Daniel
tutela de M. Guy e dirigidos por A. Oldham .
o resto do seu nai-
(2) Cada coralista partilha a mesma linha melódica com
caso, os sopran os) e afina com a linha melódi ca dos outros nai-
pe (no meu
pes (contraltos, tenores, baixos) .

12
«É por isso que as primeiras línguas foram cantantes e
apaixonadas e só depois passaram a ser simples e
metódicas ... »

J.-J. Rousseau, Ensaio sobre a Origem das Línguas

Um fenómeno humano tão complexo como é «a voz» pode


ser abordado sob vários pontos de vista. Pela nossa parte, parti-
remos do mais natural, do seu carácter corpóreo e evocaremos
sucintamente a sua fisiologia, para a distinguirmos na sua especi-
ficidade dos sons emitidos pelas outras espécies animais. Depois
de revermos noções de acústica que a definem cientificamente,
analisá-la-emas no capítulo seguinte sob um ponto de vista histó-
rico e como fenómeno cultural, porque a voz ocupa um lugar pre-
dominante nas cosmogonias, nos mitos e nas religiões, dado que
a sua ligação à música e à arte do canto não cessou de evoluir,
desde as origens do homem até às nossas sociedades moder-
nas.

15
A Voz e os Seus
Marie-France Castart?de

O mesmo será dizer que nos limitaremos a analisar murmura, pia,


cialmente esse longo percurso características '"''"'"H'-'H"'"
assinalar. gralha, papeia, trina... Nas
pareceu, porém, complexos, emitidos
distinguir os gritos dos cantos, sinais
em geral pelo macho , durant e o períod o do cio.
Entre as aves mais evoluí das, só os óscine s (pássaros canto-
A filogénese . Cada espéci e tem as suas próprias vocali-
res) possue m cantos
~ações, vocalizações essas que, durante os meses da reprod
ução,
Entre os peixes, tal como acontece com o bebé no, ventre da atrair as fêmea s para o
mãe, a audição faz-se pela pressão do meio líquido. E nos
ver- 1rão desem penha r divers as funções:
var territó rios, criar model os que
tebrados nos mamíferos - e no mais evoluí do de todos eles, a acasalamento, formar e conser
ões líquida s se vai s~rão depois imitados pelos jovens. A maioria das aves
possui
cria do homem - que o aparel ho das vibraç
d1alectos mas, para uma mesm a espéci e, o tempo , a duraçã o das
transformar em aparelho de recepção das vibrações aéreas. Como os de um
a vibração aérea possibilitou uma diversificação infinita na
cria- árias, das sílabas e dos trilos são praticamente idêntic
co~trá rio ~as canto para outro e quase se poderia dizer que é possív el identi-
ção e no reconhecimento dos sons, os _peixes, ao, ficar a melodia de cada grupo.
aves, dos mamíferos e dos homens, sao surdos as 1mpre ssoes
tonais. A percepção tonal, tal como a cor para o órgão óptico
, é Nas aves, o órgão vocal que equivale à nossa laringe chama-
uma aquisição relativament e recent e da vida. A escala musica l (na -se sirínge. A siringe modula os sons com uma velocidade muito
, a
África e no Extremo Oriente, existem «línguas de tons», que
se superior às capacidades da audição humana; em contrapartida
com um franja das sequências audíveis é mais estreit a.
caracterizam pela utilização de diferenças melódicas
objectivo semântico, para se distinguir uma palavra de uma
ou- As aves cantam em duo: um macho e uma fêmea, constituin-
te.
tra) é uma escala de qualidade tonal; esta descob erta está asso- do um mesmo casal, cantam em simultâneo ou alternadamen
a fêmea é por vezes tão perfeit a
ciada à descoberta dos timbres, que parecem depender da força A sincronização entre o macho e
que parece um canto emitid o por um único indivíd uo. Os duetos
e do número dos harmônicos existentes em cada som.
É por isso que não se pode separar o desenvolvimento do cantados ao mesmo tempo ou alternados servem, entre outras
ouvido do desenvolvimento da voz. No homem, o ouvido adap- coisas, para identificar o parceiro e, por conseguinte, para asse-
tou-se ao reconhecimento distinto das diferentes modalidades
do gurar a estabilidade do casal.
som vocal, tal como aparecem na lingua gem, mas, nos outros E durante os quatro primeiros meses de vida que os tentilhões
Um
mamíferos e nas aves, desempenha um papel análogo. Serve
para ouvem e memorizam os cantos que irão ter no seu repertório.
e imped e-os de aprend er esses cantos .
os seres vivos reconhecerem a voz dos· outros seres vivos e as isolamento acústico precoc
neces- fase, a ave memo riza model os e, numa segun da
suas expressões: por isso, os seres totalm ente surdos são Numa primeira
sariamente mudos. Contudo, o ouvido não se limita a ter
um fase, cria o seu repertório, imitando-os. Esta segunda fase exige
papel de receptor dos sons: está também destin ado a gerar e a que a ave possa ouvir. Se entretanto ficar surda, nunca mais
sonori dades que ele poderá cantará.
controlar, no ser vivo, uma fonte de
utilizar para se exprimir: o músico sabe que o cantor só pode A ave escolhe para modelos os cantos da sua espécie. No
, o
controlar o seu canto através do seu ouvido. A voz de um
ser entanto, se por acaso for criada por }.lm pai de outra classe
ouve e qualqu er me- canto que adapta rá será o desse pai. E o laço social que orienta
humano só contém as frequê ncias que ele
a
lhoria da sua audição provocará uma melhoria da sua qualid
ade a ave para o modelo a imitar. E, se os ovos de uma ave cantor
s que nascer em
vocal. forem chocados por aves não cantoras, os filhote
não cantarão.
No entanto, muito antes do canto dos homens, houve o can-
to das aves. Para evocar esse canto, os literatos criaram um flori- Notemos, com Lévi-Strauss, que as «aves cantoras» consti-

16 17
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

tuem uma excepção singular da natureza porque o seu canto é espectros harmônicos regulares. Estes são compostos por um som
mais do domínio da cultura, dado servir para se e designado por «fundamental» e por múltiplos desse som, chama-
comunicarem: dos «harmônicos». Quando se analisam, parecem ser formados
por traços paralelos e equidistantes, como se enviassem a ener-
«Não há dúvida de que o homem não é o único produ- gia sonora através de carris. São assim os sons da voz, pelo
tor de sons musicais já que partilha esse privilégio com as menos nas vogais faladas e cantadas. Em contrapartida, os sons
aves ... A tonalidade musical- tanto entre as aves como dos chimpanzés são formados por harmônicos que são equidis-
entre os homens - é uma moda da sociedade ... Os sons tantes durante demasiado pouco tempo para serem ouvidos como
musicais são do domínio da cultura.» (') tal, ou demasiado misturados a ruídos.
Durante séculos, os homens tentaram em vão fazer falar os
Olivier Messiaen vai mais longe ao afirmar que há muitas macacos. Estes, que parecem porém ser inteligentes, ficavam
aves que não são só virtuoses, são também artistas, nomeadamen- indiferentes, nem sequer se mostravam interessados em repetir
te pelos seus cantos territoriais (2). como papagaios, até ao dia em que se percebeu que, se não fa-
Se subirmos na escala animal e virmos o que se passa com lavam, talvez fosse apenas porque o seu órgão vocal não lho
os mamíferos, e entre eles com os primatas, depararemos com permitia. Pelo contrário, uma linguagem como a dos surdos-
uma categoria de macacos que apaixonou uma geração inteira de -mudos convilha-lhes bem mais, como demonstrou o filme de-
investigadores: os chimpanzés. Fisiologicamente, o homem, tal dicado a Kokko, o gorila que fala.
como os grandes macacos e muitos mamíferos, forja os sons Aliás, se os nossos antepassados puderam inventar a lingua-
vocais na garganta (3) porque tem o poder de comprimir a tra- gem, foi porque o homem possui uma musculatura e um conjunto
queia, tubo constituído por anéis cartilaginosos que une os de nervos e de músculos muito rico ao nível das faces, dos lá-
brônquios à garganta. Se introduzirmos ar nesse tubo e o com- bios e da língua, o que lhe proporciona uma melhor precisão ar-
primirmos grosseiramente em vários sítios, obteremos uns sons ticular:
sussurrados ou todo o tipo de pigarros, gritos e grunhidos. Para
se obter um som harmónico puro, tem de se comprimir a gar- «0 que falta ao chimpanzé não é a aptidão cerebral, é
ganta num único ponto, o que o ser humano faz normalmente a aptidão glótica», escreve Edgar Morin (4).
devido à sua capacidade de unir (entre 1 e 8 milímetros) as cor-
das vocais, pequenos músculos situados na laringe, e apenas elas. Inversamente, foi graças às suas capacidades vocais que os
Assim, o gesto vocal que permite a emissão dos sons harmônicos, nossos grandes antepassados pré-hominídeos se tomaram homens:
vogais ou canto, exige um controlo extremamente preciso da podiam emitir com precisão, por um lado, certos ruídos, que
musculatura que reveste a parte superior da traqueia. depois vieram a ser as consoantes, e, por outro lado, sons har-
Parece que os grandes macacos têm ao nível da garganta a mônicos, que depois vieram a ser as vogais e o canto. Ao mes-
mesma imprecisão que revelam no controlo dos lábios ou da lín- mo tempo que o seu poder vocal, descobriram a articulação da
gua. Só podem comprimir a sua musculatura traqueal de uma linguagem: a dupla diferenciação entre as vogais, por um lado,
forma grosseira; só podem emitir sons de tipo grunhido ou uivo e, por outro, entre as vogais e as consoantes. Neste aspecto, a
que, embora sejam muito diversos, não são sons que possuam forma recurvada do tubo entre a laringe e os lábios (tubo que,
no macaco, é direito) desempenhou um papel importante.

(') Lévi-Strauss (C.), Le cru et le cuit, Paris, Plon, 1964, nota p. 27.
(2) Samuel (C.), Entretiens avec O. Messiaen, Paris, Belfond, 1958.
( ) Morin (E.), Le paragime perdu: la nature humaine, Paris, Le Seuil,
4
(3) Muitos dos dados fisiológicos foram extraídos de L. J. Rondeleux, in
Le privilege des sons harmoniques, inédito. 1973, p. 53.

18 19
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

os paleontólog os se Homo Erectus. Lieberman fez si-


linguagem, formulam hipóteses - sempre a partir do vocal reconstituíd o
ir evoluindo à medida que as descobertas vão sendo do H omo e os resultados dessas simulações demonstram
Recentemente, uma equipa de investigadores americanos levou a que o desenvolvimento insuficiente da faringe teria impedido o
efeito estudos muito desenvolvidos acerca da hipotética lingu,agem homem primitivo de modular as variações rápidas de pronúncia
do Homo Erectus, que apareceu no paleolítico inferior, em Africa que caracterizam o homem moderno. O homem pré-históric o
e em Java. O aparelho vocal do Homo Erectus tinha algumas devia comunicar verbalmente de uma forma muito mais lenta do
características em comum com o aparelho vocal do recém-nas- que o homem actual C/10 da nossa velocidade). Por outro lado,
cido actual. Assim, tal como no bebé a laringe estava situada a sua reduzida esperança de vida explicaria o facto de o proces-
mais acima na garganta, o que reduzia o volume da faringe e o so de crescimento do cérebro (volume do cérebro do Homo
3
distinguia do homem adulto moderno: a língua era relativamen- Erectus: 750 cm3 contra uma média de 1400 cm para os cére-
te desenvolvida (embora fosse menos espessa do que a do ho- bros actuais) ter sido tão lento. No fim do primeiro ano, o cére-
mem de hoje), mas estava quase toda enrolada na boca (ao passo bro de um bebé actual atinge os 750 cm3 . O cérebro do Homo
que, no homem adulto contemporâneo, se curva para o canto Erectus devia atingir esse volume passados seis anos:
direito da garganta), o que não permitia que o Homo Erectus
pudesse fazer variar o volume da sua faringe, ao contrário do que «Quando atingia a idade da reprodução, o Homo Erectus
acontece connosco. Este sistema acústico de uma só cavidade (o Ja só dispunha de sete anos de experiências culturais ... O
homem moderno possui duas: a boca e a faringe) reduzia a pa- estudo dos fósseis conhecidos desses homens demonstra a sua
lavra do Homo Erectus a uma forma de linguagem lenta e rudi- reduzida esperança de vida. Assim, um período de cinco anos
mentar. Da mesma forma, durante as primeiras seis semanas, a deve ter constituído uma fracção importante da vida de nu-
língua do bebé permanece quase na totalidade imóvel dentro da merosos indivíduos. Esse curto período de participação so-
cavidade bucal e a laringe está situada na extremidade superior cial completa teria limitado o conteúdo e a complexidade da
da garganta; só quando começa a palrar, por volta dos três me- herança cultural global susceptível de ser transmitida a cada
ses, altura em que a base da língua e a laringe já começaram a geração.» (6 )
descer para a garganta, fazendo assim aumentar o volume da
faringe, é que o bebé fica apto a emitir os sons falados que o Na sequência destes estudos sobre a linguagem do Homo
irão distinguir do seu antepassado antropóide. Erectus, Yves Coppens sugeriu a hipótese de uma espécie huma-
Por outro lado, a constituição do cérebro também explica as na anterior já falante: o Ho_mo Habilis, nascido há cerca de
diferenças que existem entre os primatas infra-humanos e o Homo 2 200 000 anos, no leste da Africa, na região do Quénia, verda-
Erectus. A codificação dos sons faz-se por intermédio do córtex deira estepe que fazia dessa região um meio descoberto eviden-
cerebral: área de Broca, área de Wernicke, feixe longitudinal temente perigoso, teria desenvolvido progressivamente o que é
superior (rede de ligações entre os órgãos sensoriais). Ora, nos apanágio do humano: a consciência reflexiva, a vida social, a
antropóides, esse feixe longitudinal é muito mais reduzido. De emoção, a linguagem:
facto, nesses animais, os sinais são encaminhados para uma ou-
tra parte do cérebro, mais arcaica: o neuraxe ou sistema límbico. «0 meio agreste a que o homem se encontra exposto
Entre as respostas suscitadas pelo neuraxe encontram-se os sinais
vocais, os gritos de dor ou de prazer. A sua estimulação no ho-
mem provoca gritos, sons não articulados. (') Citado por Brown (D. M.), Les premiers hommes, ed. Time Life
A forma da primeira linguagem humana deve ter dependido Intemational, 1980, p. 108.
do grau simultâneo de progressão do aparelho vocal e das liga- ( ) Krantz, citado por Brown, ibid., p. 110.
6

20 21
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

obriga-o a adaptar um estão ligados são


to; a sociedade fecha-se, a mãe e o na estrutura mão
por muito mais tempo, a caça nrf!aJezna-s e a voz mantêm-se estreitamente solidárias.» (9)
mida é partilhada, recorre-se a
viver, para proteger a prole, para preservar a espécie ... Por outro lado, sabe-se que «OS mais antigos grafismos
a maioria dos autores, é mais fácil falar de linguagem a conhecidos são a expressão nua de valores rítmicos» (1°), «lin-
propósito da forma humana seguinte, o Homo Erectus guagem mitográfica» como lhe chama Leroi-Gourhan, que con-
(1 500 000 anos) ... Um longo contacto com o Homo Habilis sidera tal facto como uma confirmação de que a expressão
leva-me a pensar ... que escolheria de bom grado esta espé- musical - ritmo e emoção - surgiu na alvorada da humanida-
cie, esta época e esta região para situar a aparição da re- de, antes das codificações da linguagem:
flexão e a aparição da linguagem.» C)
«No homem, as referências da sensibilidade estética têm
O que nos ensinam todas estas suposições? origem na sensibilidade visceral e muscular profunda, na sen-
A filogénese parece aliar-se à ontogénese, já que se pode sibilidade dérmica, nos sentidos olfacto-gustativos, auditivos
supor que o primeiro homem falante se parece, pela configura- e visuais, e por fim, na imagem intelectual, reflexo simbóli-
ção do cérebro, com o do bebé actual no seu primeiro ano de co do conjunto dos tecidos de sensibilidade.» ( 11 )
vida. Só progressivamente é que ele se foi empenhando na pro-
dução de vibrações harmónicas cada vez mais sofisticadas que o Neste sentido, «a ligação da arte e da religião é emocio-
distinguiam dos antropóides e, tal como o bebé, privilegiou a lin- nal» ( 12).
guagem das emoções muito antes da expressão das ideias e dos Para este eminente paleontólogo, «a linguagem parece não ser
conceitos. Isto é confirmado pela importância do neuraxe, cérebro adequada à expressão das manifestações estéticas. O maravilhoso
arcaico, já que cérebro se foi tomando cada vez mais complexo. da poesia é gerar um equívoco entre o rito e as palavras que ele
O canto, no que o aproxima do corpo e da expressão emocio- transporta e, no canto, as palavras são muito menos inteligíveis
nal, transporta-nos não só aos primeiros tempos da humanidade, porque o canto é mais realmente música, como se a função vo-
mas também aos primeiros tempos de vida do bebé actual. cal se inclinasse ora para a servidão da expressão intelectual ora
Entre as aves cantoras, o canto - muito sofisticado para uma para outra coisa em que a inteligência, na acepção de faculdade
espécie que apareceu há duzentos milhões de anos (o Homo de compreender, não intervém» (' 3 ). E continua mais adiante:
Erectus data apenas de há 1 milhão e meio de anos) - está li-
gado a um aparelho vocal bastante elaborado mas sem comple- «Há quase a certeza de que os paleantropos cantavam,
xificação simultânea do cérebro, ao passo que, no homem, esses mas que figurações estariam subentendidas nos seus exercícios
dois aperfeiçoamentos estão indissoluvelmente ligados. vocais? Tudo parece indicar que seriam mais a expressão de
Aliás, o aperfeiçoamento do cérebro também é determinado sentimentos do que a formulação de ideias complexas.» (' 4)
pela postura vertical e pela libertação da mão:

«Há possibilidade de linguagem a partir do momento em 8


( ) Leroi-Gourhan (A.), Le geste et la parole, Paris, A. Michel, vol. 1, p. 163.
que a pré-história produz utensílios, porque os utensílios e (9) lbid., vol. 1, p. 298.
(1°) lbid., vol. I, p. 270.
(1 1) lbid., vol. 11, p. 83.
(1 2) lbid., vol. I, p. 270.
13
( ) lbid., vol. 11, p. 86.
C) Coppens (Y.), Le Singe, l'Afrique et l'Homme, Paris, Fayard, 1984, pp.
118-120. (1 4) lbid., vol. 11, p. 212.

22 23
Marie-France Castarede Voz e os Seus Sortilégios

que tende a manter as cordas vocais em con-


tacto uma com a outra
-uma força que tenta afastar as
«Não se começa por começa-se por sentir ... estão unidas (pressão subglótica);
A origem das línguas não fica a dever-se às ne- - uma força de reposição que tende a fechar as cordas vo-
cessidades dos homens ... Donde pode então cais quando elas estão afastadas e o ar passa entre elas: é o
gem? Das necessidades morais, das paixões. As paixões efeito «retro-respiratório» de Bernouilli.
aproximam os homens, que a necessidade de tentar viver
obriga a fugir uns dos outros. Não foi a fome, nem a sede, O melhor rendimento sonoro corresponde ao melhor rendi-
mas o amor, o ódio, a compaixão, a cólera que lhes arran- mento mecânico (a menor quantidade possível de ar para cada
caram as primeiras vozes ... É por isso que as primeiras lín- tipo de som), isto é, ao ritmo que terá o maior período de fe-
guas foram cantantes e apaixonadas e só depois passaram chamento glótico. E como uma maior duração desse fechamento
a ser simples e metódicas.» C5 ) é facilitada por uma pressão menor, compreende-se por que é
que, entre dois sons que têm a mesma intensidade e a mesma
altura, o que for sujeito à mais fraca pressão do ar será o que
A fisiologia da voz terá a cor sonora, chamada timbre, mais rica.
Quanto aos registos (' 6 ), poderemos dizer que há dois regis-
No que respeita ao aparelho vocal do homem moderno, o ar tos principais, correspondentes a modelos vibratórios nitidamen-
expelido pelos pulmões no momento da expiraçã~ passa pela. tra- te diferentes: a «voz de peito», também chamada «mecanismo
queia, atravessa primeiro a laringe e depois a cav1dade da farmge pesado» (heavy mecanism) e a «voz de falsete» ou «mecanismo
e sai pela boca, entre os dentes e os lábios, ou pelo nariz, se o leve» (light mecanism).
véu palatino está na horizontal. Em todos os níveis do seu tra- Entre estes dois registos, observa-se um modo vibratório in-
jecto, um estreitamento ou um fechamento temporário da passa- termédio que recorre a elementos de cada um dos mecanismos
gem é suficiente para produzir um ruído (consoantes). Para que supracitados: é a «voz mista». Nas extremidades da escala tonal
a voz se ouça, o som tem de ser impelido por uma onda sonora situam-se dois tipos vibratórios particulares: o «strohbass», no
regularmente mantida: ao nível da laringe, deve formar-se uma extremo grave, e o «sibilo», no extremo agudo. Na mulher, o
vibração periódica. Essa vibração é devida ao poder que o ho- registo mais utilizado é «a voz de cabeça», embora a voz de peito
mem possui de unir as cordas vocais durante a expiração e de também exista. A voz de cabeça assemelha-se, sob o ponto de
produzir uma série de aberturas-fechamentos que geram variações vista do mecanismo vibratório, à voz de falsete no homem. No
de pressão no interior da corrente aérea. Se se fecha e se abre a homem, o registo mais utilizado é a «voz de peito», embora tam-
«torneira» glótica 220 vezes por segundo, produz-se um som com bém haja passagem para a «voz de falsete», nos agudos. A no-
uma frequência de 220 hertz, ou seja, o som que os franceses ção de registo vocal corresponde a uma realidade indiscutível no
designam por Lá2. plano fisiológico. O verdadeiro problema é descobrir a «voz
A vibração laríngea pode ser considerada como o resultado mista», que mistura em diferentes graus as características dos dois
de três forças mecânicas: mecanismos fundamentais, conseguindo um ajustamento dinâmico
entre os registos extremos.

( ) Rousseau (J. J.) (1867), Essai sur l' origine des Zangues, Paris, Aubier,
15 6
(' ) Conjunto de sons que beneficiam do mesmo regime sonoro e fisioló-
1973, pp. 95-96. gico.

24 25
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

A voz acompanha-nos através de todas as idades da vida: é harmônica entre as frequências próprias dos ressoadores e o
em recém-nascidos que temos a voz mais (mais alta e mais dos laríngeos, ou seja, a frequência do ''-'-L''-'"-U''-'"Ul'l·
cristalina). Durante os três primeiros anos, baixa não só Se essa relação não existe, a vibração laríngea é difícil e exige um
por motivos fisiológicos (abaixamento da laringe) mas tan:bém esforço muscular maior. Se se consegue estabelecer essa relação,
por motivos psicológicos, já que a criança a modela a parhr da a vibração laríngea é fácil e requer pouco esforço muscular.
voz dos que a rodeiam. Em seguida, esse «abaixamento» atenua- Na voz falada, o vibrador laríngeo fornece apenas a energia
-se (1 7 ) para recomeçar bruscamente na época da puberdade, ~ de acústica necessária. Pelo contrário, na voz cantada, que precisa
uma forma muito mais acentuada no rapaz do que na rapanga. de ter uma tonalidade precisa, a laringe desempenha um papel
Depois desse abaixamento brusco na altura da puberdade, a essencial porque é dela que depende a frequência. Nesse caso,
voz passa a baixar mais lentamente: a voz dos adolescentes que as cavidades de ressonância têm de se adaptar ao máximo para
mudaram de voz é geralmente mais alta, mais clara do que a do facilitar a emissão laríngea, o que exige certas modificações dos
adulto jovem; a do homem ou da mulher, na idade madura, é 'modelos articulatórios normalmente utilizados na voz falada (de-
muitas vezes um pouco mais grave e mais baça do que a do formação acústica das vogais e das consoantes, designada por
adulto jovem. Segue-se um longo período de estabilidade, exc~pto «abafamento» dos sons). A voz é mais baça e a vogal aberta
para a mulher, cuja voz, após a menopausa, se torna em mmtos transformou-se na vogal fechada, anterior ou posterior, acustica-
casos mais grave. . mente mais próxima:
A virilidade da mulher revela-se no outono da sua v1da, ao
passo que a feminilidade do homem se manifesta na sua primavera. «0 fenómeno do abafamento do som equivale a uma mu-
No final da existência, a falta de forças e de fôlego faz com que dança de mecanismo laríngeo (diminuição do registo) e, si-
a voz, por vezes, se torne roufenha e passe para o registo agudo. multaneamente, a uma modificação da forma e do volume
dos ressoadores.» (1 8)

Sob o ponto de vista da anatomia, chama-se «ressoadores» às No canto, a colocação da língua é importante. Deve respei-
cavidades que o som laríngeo atravessa antes de atingir o ar li- tar a posição articulatória de cada vogal e manter-se na parte
vre: faringe, cavidade bucal e, para certos sons, nasofaringe e anterior da boca, com a ponta em contacto com os incisivos in-
fossas nasais. feriores. Quanto ao véu palatino, deve formar uma espécie de
Na realidade, a dimensão e a forma dos ressoadores podem arco por cima da base da língua. A impressão de «garganta di-
variar em proporções consideráveis porque dependem de órgãos latada» (gola aperta, em italiano) que os cantores procuram está
móveis: maxilar, língua, músculos da faringe, laringe, véu pala- associada a essa posição particular. Do mesmo modo, os maxi-
tino, lábios. De facto, existem duas cavidades de ressonância lares inferiores descem para aumentar a cavidade bucal. Quanto
- a faringe e a cavidade bucal - com uma frequência própria. aos lábios, se estiverem ligeiramente estendidos («tubagem» que
É possível enumerar dez timbres vocálicos fundamentais que ca- estreita a origem do som), o som será mais cheio, mais grave;
racterizam as vogais; as consoantes são ruídos acrescidos. se, pelo contrário, estão puxados para trás, a voz será mais
O vibrador laríngeo situa-se no fundo das cavidades de resso- límpida e também mais estridente.
nância, que exercem sobre ele uma importante acção de retorno. Além disso, «a utilização das diferentes partes do aparelho
É desejável, sobretudo na voz cantada, conseguir criar uma rela- vocal faz-se por intermédio do sistema nervoso que funciona

(1 7 ) Dos sete anos á puberdade, o registo fundamental vai passar de (' 8 ) Comut (G.), La voix, Paris, PUF, Collection «Que sais-je?>>, 1983,
300 Hz para 250 Hz, na rapariga, e de 270 Hz para 180 Hz, no rapaz. p. 73.

26 27
A Voz e os Seus Sortilégios
Marie-France Castarede
A do som na voz falada muda constan-
como um anel cibernético '-'VlLHIJ>'-'llcv" por me-
motor e do a temente, acordo com a entoação, também
do de uma linha propriame nte musical.
definidas no há um outro do encéfalo di- quando se aproxima
rectamente implicado na voz: o Os estados afectivos graças às variações melódicas que cada pessoa pode
e as emoções desempen ham um papel important e na fonação, melhor as suas emoções: essas variações dependem, portanto, do
moduland o a tonalidade , o timbre e a intensidad e da voz. O dien- estado afectivo do locutor.
céfalo serve de transmissor em direcção:

- ao córtex: a emoção é sentida e transforma-se numa ex- 2) A intensidade


periência emocional;
- ao corpo: a expressão corporal da emoção traduz-se no- A intensidade de um som define-se em decibéis. Todavia, a
meadamente em alterações da respiração e da voz. intensidade ouvida é bastante diferente da intensidade física por-
que o ouvido é muito mais sensível aos sons ou harmônicas
Os estados afectivos têm efeitos estimulantes (alegria, surpre- agudas. Esta intensidade pode variar em proporções consideráveis,
sa, cólera), ou efeitos depressivos (compaixão, dor, ansiedade) desde a voz murmurada até ao grito inaudível. Tal como acon-
sobre a voz. As intenções expressivas voluntárias, como no can- tece com a frequência, pode detectar-se uma «intensidade média
to, provocam efeitos semelhantes, mas menos duradouros. usual», que corresponde à voz falada. Esta intensidade difere de
Sob o ponto de vista da física, a voz, que constitui o supor- um indivíduo para outro e servirá para definir certas caracterís-
te acústico da fala, pode ser analisada segundo três parâmetros: ticas não só anatomo-fisiológicas, mas também psicológicas (dado
frequência, intensidade, timbre. que a intensidade tem a ver com a capacidade de afirmação pes-
soal e a tenuidade tem a ver com a timidez ou com a depres-
são). Além disso, a .intensidade varia constantemente enquanto se
1) A frequência fala, graças aos acentos articulatórios e de entoação.

Chama-se altura ou frequência de um som ao múmero de


variações por segundo ou hertz. A frequência é dada pela altura 3) O timbre
do som fundamental ou pela distância entre duas linhas harmô-
nicas, o que equivale a dizer que só os sons harmônicos ou quase «0 timbre da voz, tal como é analisado ao sair da boca,
harmônicos possuem uma altura nitidamente definida. resulta da transform ação e da modelação do som laríngeo
2
Na voz falada, a altura tonal oscila em volta de uma frequên- pelas cavidades de ressonância.» (2 )
cia média, chamada «fundamental normal da fala». Esta tonalida-
de média é diferente se se tratar de uma criança (entre mP e lá1),
3 O «timbre vocálico», repartido em dez timbres fundamen-
de uma mulher (soF e ré ) (2°), ou de um homem
3 (soP e rél) (2 ). tais, permite identificar as diversas vogais, seja qual for o locutor.
O «timbre extravocálico» varia em função da pessoa e depende
mais do som laríngeo inicial do que das particularidades do ca-
(1 9) lbid., p. 38.
(2°) C. Dinville observa que a classificação da voz falada deve ser a mes-
nal vocal. O timbre é um dos factores da voz mais difíceis de
ma da voz cantada. Para um soprano, o fundamental normal da voz situa-se ser estudado cientificamente. Não há qualquer dúvida de que é
perto do re, para um meio-soprano, perto do si , e para um contralto, perto
2

do soF. Cf. La voix chantée, Paris, Masson, 1982, p. 9.


(2 1) Números citados por G. Comut, op. cit., p. 41, rectificados, no que (2 2) Comut (G.), op. cit., p. 43.
se refere à criança, por C. Dinville.

28 29
Marie-France Castarede

uma emanação da personalidade profunda do indivíduo.


para além das características vocais de base estão ligadas à
morfologia do aparelho vocal e dependem de factores hereditá-
rios), a voz depende sobretudo da personalidade, tal como se foi
forjando ao longo da vida, e em particular, como demonstrare-
mos neste estudo, a partir dos hábitos vocais que remontam aos
primeiros meses de vida.
Capítulo li
A Voz: Mitos, História e Filosofia

30
«Sobre o que passa e se vai,
com mais grandeza e mais liberdade
o teu canto inaugural paira e persiste,
ó deus da lira!
À face da terra, só o canto
exalta e santifica.»

R. M. Rilke, Sonetos a Orfeu


Se o homem da pré-história começou por adaptar uma lingua-
gem emocional, constituída por acentos, permitindo assim que a
sua personalidade profunda se exprimisse, é interessante constatar
que as cosmogonias mais antigas fazem efectivamente do homem
um ser de essência sonora. Aliás, os mitos mais primitivos (i), des-
crevem a criação do mundo como sendo a expiração de um som.

(I) Scheneider (M.), «Musique, mythologie, riteS>>, Histoire de la musique,


vol. I, Paris, Gallimard, 1981. Idem, <<Le symbole sonore dans la musique
religieuse ou magique non européenne», Encyclopédie des musiques sacrées,
Paris, Labergerie, 1968.

33
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios

os deuses fazem, "'~-w~, '" através do reei-


(3)
0 som, ou a palavra de Deus com o sop~o vital,
era considerada como o primeiro e único element~ propnamen~e Esta ideia da génese do mundo deve ser muito antiga, por-
criador. Sempre que a gênese do mundo é descnta com pr~c~­ que se propagou amplamente e não implicava a preexistência de
são há um elemento acústico que intervém no momento declSl- um instrumento de trabalho mais ou menos aperfeiçoado. Pelo
vo 'da acção. No instante preciso em que um deus manifesta a contrário, muitas das civilizações tecnicamente mais evoluídas
sua vontade de se gerar ou de gerar outro deus, de criar o céu e apresentam-nos o criador como sendo um oleiro, um carpinteiro
a terra ou o homem emite um som. Expira, suspira, fala, canta, ou um escultor (veja-se a importância do utensílio para o homem
grita, uiva, tosse, e~pectora, arqueja, vomita, ou to~a um instr.u- pré-histórico).
mento musical. Em outros casos, recorre a um objecto matenal . Se o criador é um cântico, é evidente que o mundo por ele
que simboliza a voz criadora. A fonte de que o mundo provém criado é puramente acústico. O Châdojya Upanishad diz-nos que
é sempre acústica: o ritmo Gâyatri é «tudo o que existe». Os ritos védicos provam
que esses sons e esses ritmos particulares constituem a essência
«0 abismo primordial, a bocarra escancarada, a c~ve;­ dos deuses invocados e dos seres criados por eles. A natureza
na cantante, o singing ou supernatural ground dos esquur:os, destes seres é sonora: a forma da sua existência é fornecida pela
a fenda no rochedo dos Upanisha~ ou o Tao ,dos a~tzg~s sua voz ou pelo nome que ostentam. Quando se afirma que os
chineses, de onde o mundo emana como uma arvore , sao deuses «produzem» e «fecundam» por intermédio da boca, e que
imagens do espaço vazio ou do não-ser, de ~nde se _ergue. o se «alimentam» e «concebem» pelo ouvido, o que se pretende
sopro quase imperceptível do criador ... O abzsmo pnmordz,al simbolicamente dizer é que, durante a primeiro fase da criação,
é pois "um fundo de ressonância:' e .o som que ~ele provem todos os actos são de natureza acústica. O canto simboliza a
deve ser considerado como a pnmezra força crwdora, per- emissão de uma semente que parte da boca de um deus para ir
sonificada, na maior parte das mitologias, pelos deuses can- fecundar o seu próprio ouvido. Começando por se cantar a eles
tores.» (2) mesmos, os deus~s realizam a partogénese característica dos iní-
cios da criação. E assim que Toth, o deus egípcio da música, da
O hinduísmo é a mais antiga religião organizada e tudo leva dança e da escrita, e Rá, o deus do Sol, se fecundam a si mes-
a crer que, durante séculos, exerceu uma influência indirecta mos pelo seu riso ou pelo seu grito luminoso.
sobre o Ocidente. O seu objectivo é conseguir a união com Deus, A partir dos vários documentos que se referem ao princípio
o espírito eterno, a que os Hindus dão o nome de ~râmane, «O do mundo, somos levados a distinguir um deus encarregado da
Grande Silencioso», nome que não se deve confundir com o d~ execução de um outro deus omnipotente , que nunca intervém
Deus Brama, que é apenas uma manifestação do Brâmane. Fm directamente na acção. Limita-se a ter apenas a ideia e a «enun-
da «boca» do Brâmane, Deus criador de quatro cabeças, for- ciar», com uma voz quase imperceptível, um deus inferior que
ça mágica, palavra sagrada, hino, que saíram os pr~meiros, ~eu­ ele encarrega da realização. Antes de ser fala, o verbo é pensa-
ses. Estes imortais são cânticos. Prajâpati, o deus cnador ved1co, mento. Por exemplo, na América, o deus do trovão ou «Grande
ele próprio saído de um sopro sonoro, é um cântico de lo~vor. Uivador» executa a criação às ordens do grande Manitu. A iden-
Os seus membros, e até o seu trono, são compostos por hmos: tificação com o trovão é segurament e muito antiga porque se
encontra na mitologia de povos tão primitivos como os Califor-

(2) Schneider (M.), <<Musique, mythologie, rites>>, op. cit., p. 133. (') Catapatha Upanishad, citado por Schneider (M.), ibid., p. 133.

34 35
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

Aranda da os os deuses. O
e também na ou um mas é por
no no Níger e entre os Massai do da música que os homens os deuses e é
e da Tanzânia. Nas cosmogonias africanas, as teorias afinada» que o mágico consegue despertar os que ani-
propagaram-se tão amplamente como no é a partir do mam os objectos e identificar-se com eles. Como cada espírito
trovão, de um instrumento de música, de um sopro violento ou é uma melodia determinada, o timbre da sua voz e o motivo
de uma forte expectoração que a criação tem início. característico do seu canto serão os elementos principais da com-
Entre os egípcios, o deus Toth cria o mundo batendo com as posição em que o mágico aprisionará esse espírito. Um bom
mãos e soltando sete gargalhadas. Dessas gargalhadas nascem sete mágico tem de ser um bom cantor.
deuses: As cosmogonias antigas orientais permitem o acesso a uma
concepção da simbologia sonora a que os Ocidentais estão pou-
«Riu mais seis vezes e a cada gargalhada nascem seres co habituados e que ajuda a compreender melhor os fenómenos
e fenômenos novos ... Proferiu as três notas musicais I A O! vocais e musicais. O ritmo antecede o significado, ideia que vai
Então, o deus que é o senhor de tudo nasceu do eco desses de encontro às descobertas dos paleontólogos (5). Há uma plura-
sons.» (4) lidade potencial (pré-lógica e pré-figurativa) do símbolo sonoro
que permite remeter todos os fenómenos para infra-estruturas
Na cosmogonia chinesa, há um exército de ferreiros e de rítmicas: o denominador comum por excelência é o símbolo. Nes-
tocadores de tambor que povoa a montanha mítica. Outras tradi- te sentido, pode dizer-se que a música é a língua universaL De
ções referem que os primeiros cantos e os primeiros instrum~n­ facto, a música situa-se a um nível em que as representações con-
tos de música emanaram dos oito ventos ou das vozes dos mto cretas e os conceitos ainda não conseguem exprimir-se. A fór-
antepassados. No início, só havia sons que, a pouco e pouco, se mula dos mitos da criação fala-nos dessa primazia:
foram transformando em matéria, graças às obras e às viagens
circulares dos deuses. O som emitido a leste, para criar o espa- «No início, Deus criou o fluxo indiferenciado do tempo:
ço e a Primavera, era alegre. O grito criador da Primavera é a flutuando no tempo como verbo, confere-lhe um ritmo sono-
essência sonora do sol matinal, da aurora e da terra jovem. O Lá ro cheio de sentidos, mas sem um significado verbalmente
é o primeiro som de um sistema cósmico dominado pela ideia definível e sem uma forma concreta imaginável.» (6)
do ritmo das estações.
Como o homem nasceu do som, a sua essência será para Reencontramos um eco desta concepção do mundo em
sempre sonora e a sua natureza íntima caracterizar-se-á por dois Schopenhauer, em Richard Wagner, em místicos como S. João
cantos. O primeiro, o «som fundamental», protoplasma da sua da Cruz, ou em poetas como Novalis. As informilções mais preci-
força vital, antecede o primeiro grito do recém-nascido que, se- sas sobre esta doutrina foram-nos legadas pela India, que parece
gundo uma crença muito corrente, atrai a alma ao corpo e de- ter sido a sua grande inspiradora.
termina o nome íntimo do indivíduo. Todavia, para cada ser Actualmente, Georges Dumézil observa que «não deixa de ser
também se distingue uma «canção individual», melodia que ex- importante descobrir uma concepção da voz e da fala que é
prime o ritmo da sua personalidade própria. comum a vários povos indo-europeus» C). Com efeito, «num hino
A voz é o homem; o canto é a alma ou o veículo da alma.
O músico de canto luminoso é o mortal que mais se parece com
CS) Leroi-Gourhan, anteriormente citado.
6
( ) Schneider (M.), Encyclapédie des musiques sacrées, ap. cit., p. 58.
( 4) Schneider (M.), ap. cit., p. 143. C) Dumézil (G.), Apallan sanare, Paris, Gallimard, 1982, p. 7.

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Marie-France Castarede A Voz e os Seus

uma abstração isto é, voz e Pã concebeu a flauta de de canto tão mavioso como
taneamente a modos de o do rouxinol na Primavera. As Musas não tocavam nenhum
com a estrutura das três No hino a mas tinham vozes maravilhosas.
Apolo de Delos, é o próprio deus que ao nasce~ e:cpõe ou m,a~i­ Orfeu foi o mortal que melhor conseguiu igualar os deuses
festa os seus meios de acção, num quadro que d1sstmula a anahse e o que deu de facto a música ao mundo dos homens. De as-
da deusa indiana com originalidades motivadas pela diferença dos cendência prestigiosa, pertencia à família de Apolo, já que sua
lugares e dos tempos. No primeiro nível estão expressões diver- mãe era Calíope, a musa «da bela voz», rainha da poesia e da
sas das funções religiosas da voz. No segundo, em ambos os ca- eloquência. Orfeu herdou esse dom da música que a Trácia, país
sos, o roncar do arco ocupa o lugar da voz humana. No terce.iro, onde cresceu, ainda iria desenvolver, porque os Trácios eram, tal
no hino védico, a fala, na sua forma mais banal, pela comumca- como os Frígios, o povo mais músico da Grécia. Quando Orfeu
ção e a cooperação que possibilita, diz-se alimentadora e fonte cantava ou tocava, o seu poder era imenso e nada nem ninguém
de prosperidade, o que também significa, em Delas, o símbolo lhe podia resistir:
do outro, ilustrado pelos ritos e pelas lendas da ilha» (8).
Nesta análise é bem evidente a perspectiva religiosa anterior- «Nos bosques profundos e tranquilos das montanhas da
mente descrita: a voz é um aspecto fundamental da comunica- Trácia,
ção entre os homens e os deuses. Há ~~diadores q.ue podem Orfeu, com a sua lira melodiosa, arrastava as árvores,
ajudar os homens nessa relação com o d1vmo, essencialmente o E as feras do deserto vinham deitar-se a seus pés.»
brâmane e o rai, ou seja, o oficiante e o «vidente». Na guerra
contra o ímpio, o bárbaro ou o infiel, a deusa Vac reconhece Orfeu exercia o seu fascínio sobre tudo o que era animado
como seu o que se ouve, isto é, o concerto dos ruídos, dos cla- ou inanimado: os rochedos, as colinas seguiam-no e os rios al-
mores, das injúrias, dos apelos, dos gemidos. Vac desempenha teravam o seu curso.
também a terceira função, a da fala que circula entre os homens Sabe-se que participou na famosa expedição do Tosão de
para os intercâmbios que formam o espírito. Ouro. Com Jasão, navegou no Argos e rumou para a Cólquida.
Assim, «os Indianos védicos e os Gregos do início do pri- Quando os Argonautas estavam cansados ou quando o manejo
meiro milênio antes de Jesus Cristo recebiam dos seus antepas- dos remos lhes era particularmente penoso, Orfeu tangia a sua lira
sados uma mesma doutrina da voz humana, deduzida, como de nove cordas (acrescentou duas cordas à lira de Apolo, que só
muitas das suas concepções, da ideologia das três funções» (9). tinha sete ... ): logo se reanimavam e com um único impulso os
Por outro lado, Georges Dumézil demonstra que os primei- remos fendiam o mar, ao ritmo da melodia. Ou ainda, quando
ros instrumentos, o arco e sobretudo a lira, atributo de Apolo e, alguma disputa surgia, tirava do seu instrumento sons tão melo-
em seguida, de Orfeu, estão associados aos órgãos da voz. diosos, tão tranquilizadores, que os mais violentos se acalmavam
Na mitologia grega, os deuses também foram os primeiros e esqueciam a sua fúria. Graças a ele, os Argonautas foram sal-
músicos. Atena não era dotada para essa arte, mas foi ela quem vos das Sereias cujo canto mágico ouviram um dia, à tona das
inventou a flauta, embora nunca a tocasse. Hermes inventou a lira águas. As Sereias eram demônios marinhos, metade mulheres,
e doou-a depois a Apolo, que retirava dela sons tão melodiosos, metade pássaros; músicas notáveis, uma tocava lira, outra toca-
quando tocava no Olimpo, que os deuses ficavam extasiados. Para va flauta e a terceira cantava. Com a sua música atraíam os
si próprio, Hermes fabricou a flauta de pastor, cuja música fas- marinheiros para a ilha onde moravam, e devoravam-nos. Ulisses
tinha dado ordem para o atarem a um mastro e os seus compa-
nheiros tinham metido cera nos ouvidos para transporem a peri-
( 8) Dumézil (G.), Apollon sonore, op. cit., p. 11. gosa passagem sem cederem ao fascínio do seu canto melodioso
9
( ) Ibid., p. 52. e mágico. Os Argonautas, porém, sucumbiram ao encanto e,

38 39
A Voz e os Seus
Marie-France Castarede

alheios a deses-
de e viraram
onde estavam as Mas tocou
uma melodia tão clara e tão vibrante que o som das vo- Por volta a tecer para a doce
O véu da vida saído cedo do tear.
zes sedutoras e fatais: a nau seguiu o seu rumo e ps ventos le-
Vê bem, peço-te tão pouco,
varam-no para longe daquele perigoso lugar. A chegada a
Cólquida, Orfeu adormeceu com o seu canto a que guar- Só peço que ma emprestes e não que ma dês;
dava o bosque de Ares e a árvore de onde Jasão retirou o To- Ao acabar o curso dos seus anos na terra
Será tua para sempre.» '
são de Ouro.
No regresso à Trácia, Orfeu desposou uma naiade, Eurídice,
que amou apaixonada mente, mas a sua felicidade foi breve. Encantado com a sua voz, ninguém podia recusar-lhe fosse
o que fosse:
Quando Eurídice passeava com as suas aias por uma planície,
uma víbora mordeu-a num pé e ela morreu. Orfeu, louco de dor,
«Fez correr lágrimas de ferro
dirigiu-se ao reino dos mortos para tentar arrancá-la de lá. Pen-
Pelas faces de Plutão
sava:
E o inferno concedeu o que o Amor implorava.»
«Com o meu canto
Encantarei a filha de Deméter, O que nos importa não é contar o final da história, demasiado
Encantarei o Soberano das Sombras; co.nhe~;do para ser aqui repetido, mas esclarecer o sentido do
Comoverei os seus corações com a minha melodia m1to ( ) qu,e _ilustra as nossas palavras: a voz e o seu prolonga-
E para longe do Hades levarei Eurídice.» mento, a mustca, encarnadas por Orfeu, são mediadoras; garantem
P~~sager:s: p~ssagem na floresta hostil, porque as feras se recon-
Ousou fazer o que nenhum mortal tinha alguma vez feito para ciliam nao so c?m Orfe~ mas também umas com as outras; pas-
salvar o seu amor: descer aos infernos. Quando lá chegou, fez sagem das sere1as, vencidas no seu apetite devorador; passagem
ecoar a sua lira e, nesse instante, tudo se imobilizou, fascinado: dos v~ntos e d~ mar, porque a natureza se acalmou; passagem
o cão Cérbero afrouxou a sua vigilância; a roda de Íxion deixou do remo dos VIvos para o reino dos mortos, porque os guar-
de girar; Sísifo apoiou-se à sua pedra; Tântalo esqueceu-se da sua das, Caronte e Cérbero, ficam enfeitiçados. Graças à música da
sede; pela primeira vez, os rostos das Fúrias, deusas do terror, sua vo~, Orfeu v~r:ce todos os obstáculos: não conseguirá dar de
cobriram-se de lágrimas. O senhor do Hades e a sua rainha apro- novo v1da a Eund1ce, obra materna que fracassa no último ins-
tante ...
ximaram-se para ouvir melhor. Orfeu cantou:
. Outro mit~), outra exemplificação da primazia do sonoro é o
«Ó deuses que governais o mundo da sombra e do silêncio, mito de Narc:so .lig~do ao mito da ninfa Eco. Esta, que não ti-
Todos os que nasceram da mulher virão um dia até vós. nha a, a.scen~enci~ Ilustre de Orfeu, embora fosse protegida de
Toda a beleza descerá um dia ao vosso reino. Artem1sm, fm castigada, devido ao fascínio da sua voz, por Hera,
Detemo-nos por um instante à face da terra
Depois pertencemo-vos para sempre. . (1°) Notamos a importância deste mito em inúmeros artistas românticos·
Mas aquela que procuro veio até vós demasiado cedo; m~s recentemente, o f}~ósofo, ~arcuse considerou-o como a contrapartida d~
Antes de o rebento florir foi colhido. n;~to de Pr~n;eteu_, herm ar9uet1po do, princípio de rendimento; Orfeu é 0 he-
Tentei em vão suportar a minha perda; roJ do dom1n10 nao repressivo da estetica. Por seu turno, Michel Serres dedi-
O Amor é um deus demasiado poderoso. Ó Rei, cou a Orfeu as suas reflexões sobre a música (curso em Paris I, 1983-1984).

40 41
Marie-France Castarêde

de que tentava Note-se que o mito de Orfeu se na


Eco falava tanto e tão bem onde se na iconografia. Na arte cristã ,..,.,..,,.,.., 1' "
rou na fuga dos apaixonados e não a bologia da do universo é evocada representação
bre Eco vítima da fúria de foi condenada a do herói, que também pode ser ,considerado como uma prefigu-
só volta~ a servir-se da voz para repetir o que lhe era dito: ração do rei David e de Cristo. E a analogia do canto miraculoso
de Orfeu e do poder espiritual de Cristo que permite a sobrevi-
«Terás sempre a última palavra, mas nunca mais serás vência do mito na cristandade primitiva. De facto, o próprio
a primeira a falar, disse-lhe Hera.» Cristo, como razão celeste, é o instrumento harmonioso, melo-
dioso e santo da sabedoria de Deus Pai, tal como foi ensinado
O castigo foi muito mais cruel porque Eco ficou impos~ibi­ pelos Padres da Igreja.
litada de revelar o seu amor a Narciso, que ela amava apaixo- . Graças a esta continuidade, Cristo será representado pela fi-
nadamente, como aliás todas as ninfas. Condenada à ecolalia, gura de Orfeu tocando um alaúde de sete cordas (ou seja, uma
alheia à sua própria fala porque só podia repetir ~ f~la do Ou- cítara, uma lira ou uma harpa), na parede das catacumbas roma-
tro travou um diálogo com Narciso sem poder expmmr-lhe o seu nas dos primeiros tempos da cristandade. Orfeu será uma figura
a~or com a intensidade ardente de um pedido pessoal. Ele cha- particularmente conhecida na Idade Média. Na Bíblia, algumas
mava os seus companheiros: «Há algum de vós por aqui?» e ela linhas do Livro de Isaías autorizam-nos a estabelecer um para-
respondeu: «Aqui... aqui.» Estava ainda oculta pelas árvores; ele lelo com Jesus, quando, prevendo a vinda do Messias, evoca
não podia vê-la e gritou: «Vem!», a palavra que .ela sempre an- assim a paz que este fará reinar na terra:
siara dizer. Ela repetiu alegremente «Vem», aproximando-se, mas
ele afastou-se dela, humilhando-a: «Prefiro morrer, mas não te «0 lobo habitará com o cordeiro,
dou poder sobre mim.» Humildemente~ num tom su~:ic~te, Eco A pantera deitar-se-á com o cabrito,
só pôde dizer: «te dou poder sobre m1m», mas el~ Ja tmha p~r­ O novilho, o leão e a ovelha viverão juntos,
tido. Frustrada no seu amor, conta-se que se refugwu na sohdao e um menino pequeno os conduzirá ... »
de uma gruta onde se deixou morrer: da sua pessoa evanescente
já só emanavam queixumes. . (Isaías, li, 6)
A história entrecruzada de Eco e de Narc1so demonstra que
a relação de alteridade é consubstanciai à vida. Hera tiro~ a voz Por outro lado, na Bíblia, o relato sacerdotal da Gênese ini-
a Eco e só lhe deixou o espelho da voz do Outro; a partrr desse cia-nos na omnipotência da palavra divina. É dela que emana a
momento, o corpo que deixa de ser habitado por uma voz en- criação do mundo: «Deus disse que se fizesse luz, e a luz fez-
fraquece e morre. Porque é o indivíduo que mantém o corpo e -se ... » Veio a noite, e depois o dia, e Deus «disse» todos os dias,
o faz existir. O pedido de amor só pode emanar de um «eu» que até ao fim do quinto dia. «Então, Deus disse: Façamos o homem
se dirige a um «tu». à nossa imagem e semelhança.» Assim, a criação é um acto da
Também Narciso não responderá ao amor fatal de Eco, que liberdade divina traduzida em palavras e transmitida pela voz.
não pôde dirigir-se a ele com a sua própria voz. Após uma ca- Depois, quando Deus se revela a Moisés por intermédio da
çada, parou numa nascente para .matar a sede, e viu na água uma Sarça ardente, diz: «Eu sou aquele que sou» e profere o seu
imagem tão bela que se apaixonou. Votado como Ec.o ao nome, composto por quatro letras hebraicas ou «tetragrama sa-
solipsismo, concretizou a previsão ?e Tiré~ias e sucumbm ao grado»: Yahvé, mas, por respeito pelo Altíssimo, ninguém pode
fascínio do seu reflexo, em que se ahenou ate morrer. Sem qual- pronunciá-lo, tal como ninguém pode ver o seu rosto: «Ninguém
quer referência à alteridade, o discurso de Eco não tem palavras pode ver Deus sem morrer.»
e os olhos de Narciso não têm olhar. No Novo Testamento, no início do Evangelho segundo

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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

S. a de Deus é
era o e o Verbo estava em
teologia atribuí um
da Santíssima com
aquele que exprime o pensamento de Deus: é a sua Palavra. a
Voz de Deus que a transmite. Essa voz é evocada pelos
evangelistas: «E do céu fazia-se ouvir uma voz: "Este é o meu «Vou dizer-vos qual é o que todos os vedas procla-
Filho bem-amado, em quem pus toda a minha complacência"» mam, o fim a que conduzem todas as austeridades e que
(Mateus, XIII - 17, João, I, 11). todos os homens que levam uma vida de continência ambi-
A tradição bíblica privilegia a voz e a audição: Deus torna- cionam: é "Aum". Esta sílaba é o brâmane. Esta sílaba é o
-se presente por intermédio da voz - porque a voz é o mais Altíssimo. Quem conhecer esta sílaba consegue tudo o que
espiritual dos órgãos físicos. Em grego, há uma só palavra deseja. Ela é o melhor apoio e o mais sublime. Quem tiver
(nvEUfJ.O:) para designar o vento e o espírito: este apoio será glorificado no mundo de Brama.» (1 2 )

«0 vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz mas não Assim, desde sempre, o iogue pratica o ioga, disciplina
sabes de onde vem nem para onde vai.» ascética que se destina a preparar a união com Deus. O iogue
atinge a concentração absoluta pronunciando mentalmente fórmu-
Quem quer que tenha nascido do Espírito é conhecido pela las ou mantras, «processo que consiste em cantar certas sílabas
sua voz. O ouvido é, por excelência, o órgão do conhecimento de uma forma particular, a fim de se conseguir a fusão da exis-
de Deus. É com a voz de Deus que se inaugura o mundo e a tência empírica com a existência transcendental» ( 13 ). De facto,
sua história. o mantra é divino: é a própria divindade, a forma material de
Deus. Há um que é essencial e que resume todos os outros: é a
sílaba sagrada «Aum», formada por uma gutural, uma labial e
Os ritos uma cacuminal, que são os três pontos limite das possibilidades
dos órgãos de articulação. Esta sílaba inclui num único som to-
É a partir destas cosmogonias - de que relatámos apenas das as outras possibilidades. No ioga, o som converte-se num dos
alguns elementos significativos - que se instituem os ritos reli- instrumentos mais eficazes da realização do transcendente. Toda-
giosos, onde «Os fenômenos sonoros desempenham um papel via, o som articulado não é senão uma forma muito particular e
fundamental e essencial» C1). Até onde se pode remontar na his- limitada dos fenômenos sonoros. O som inarticulado é um esta-
tória, a voz e a música estiveram sempre estreitamente associa- do sonoro mais abstracto e mais universal.
das não só a esses ritos, mas também à magia. Os hinduístas acreditam que, se um mantra for repetido uma
Na Índia, a história da criação e a representação do universo centena ou um milhar de vezes, ou mais ainda, e se o adorador
são indispensáveis para a compreensão dos ritos e da sua sim- fizer um esforço para se identificar com o adorado, o poder da
bologia, porque os sacerdotes, ao exercerem o culto, imitam a divindade virá em seu auxílio (1 4). Assim, o iogue medita sobre
acção dos deuses. Quando estes emissários do criador ainda
viviam à face da terra, ensinavam os homens a cantar e a to-
(12) Katha Upanishad, !, 2, 15-17.
(1 3 ) Hari ÜIJI Tat Sat, prefácio a Le nom naturel de Dieu Om et les
C1) Danielou (A.), «La nature du sacré», Encyclopédie des musiques sa- mantras, Paris, Editions Jacques Bersez, 1982, p. 7.
crées, Paris, Labergerie, 1968, p. 39. (1 4 ) Os ortodoxos russos têm a mesma crença.

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Marie-France Castarede A Voz e os Seus

deixou foi sobretudo uma doutrina ética. No Li-Chi


seus consegue sobre as boas maneiras e as diz-se os sons cla-
dição védica da criação, o sílaba ""''"""'" ros e distintos representam o céu e que os sons e poten-
é a formulação mais substancial possível da essência dos seres. tes representam a terra. Esta muito cara aos antigos
O Chândogya diz que o mundo foi criado por essa sílaba santa, Chineses, é retomada por Szu-Ma Ts'ien (145-86 a.C.), grande
que constitui a essência do sâman (canto) e do sopro. Como esse astrólogo na corte dos Han, que, nas suas memórias históricas,
primeiro apelo se efectua como uma passagem do tempo sono- não se cansa de repetir que a grande música gera a mesma har-
ro, atribui-se-lhe o valor do primeiro sacrifício. Embora o pró- monia que o céu e a terra.
prio brâmane se situe (de uma forma inaudível) para além do O músico, tal como é concebido no Li-Chi, é um sábio que
tempo, não deixa de ser o ponto de partid 1 e a origem de todos çonhece as origens profundas da vida:
os seres encarnados. O brâmane revela a vontade cósmica de
sacrifício através do som que, mal nasce, se esgota e morre. Por «Quando o coração, afectado pelos objectos, se emocio-
isso, cantar é repetir esse primeiro modelo sacrificial graças a np, dá uma forma às suas emoções por intermédio do som.
uma oferenda do tempo qualificado por um ritmo sonoro. As E dos sons que nasce a música: a sua origem está no cora-
cosmogonias védicas, hindus e persas relatam-nos que, já nos ção do homem. Por isso, quando o coração sente tristeza, o
tempos míticos, os deuses e os demônios, conhecendo o poder som que emite é contraído e vai enfraquecendo. Quando o
dessa oblação, lutaram encamiçadamente pela posse dessa força. coração sente prazer, o som que emite é solto; quando o
O símbolo sonoro tem uma origem humana: é uma ponte que se coração sente alegria, o som que emite é elevado e flui li-
tenta criar entre o mundo objectivo e o mundo das representa- vremente. Se o coração sente cólera, o som que emite é rude
ções. Graças a ele, procura-se atingir o som primordial: assim, a e violento; se o coração sente respeito, o som que emite é
oferenda do sopro vital confunde-se com o sacrifício cósmico. franco e modesto. Se o coração sente amor, o som que emi-
A fórmula cantada e ouvida equivale a um empobrecimento e a te é harmonioso e terno.» (1 6)
um enriquecimento. Por essa troca, que permite que o cantor ouça
a sua voz e avalie o eco que ela provoca, o homem reconhece- O canto budista japonês (1 7) é o shô-myô, cantochão de que
-se. Por outro lado, pode penetrar no mundo, ouvindo a voz da é difícil dar uma definição unívoca, dado o grande número de
natureza. O lugar de Brâmane é o ouvido (' 5). O homem deve seitas existentes. A palavra shô-myô deriva do sânscrito saba-
adaptar-se, de corpo e alma, à natureza do som. Então, a pronún- vidya, doutrina da voz. Os dois caracteres chineses utilizados para
cia da sílaba «Aum» pode conferir ao cantor a santa faculdade a escrever significam literalmente «voz radiosa». A sua estrutura
de reconstituir o mundo. Na tradição védica, p músico ocupa uma melódica obedece aos princípios de todos os cantochões. Nos
posição de primeiro plano na vida social. E o representante de shô-myô de meditação, a voz comprime-se artificialmente.
Agni, do primeiro chantre dos deuses ou da estrela da manhã na O cantor ambiciona produzir um som muito longo e sem flutua-
terra. ções, ligeiramente nasalado. A técnica dos rasgados no final dos
Na China, as três obras mais importantes sobre as cerimônias períodos exige inúmeros exercícios. Os bonzos engolem estranha-
são os «três rituais»: I-Li, Chou-Li e Li-Chi (colectânea dos ri- mente o som: parece que querem mergulhar bem no centro das
tos), compilações que surgiram vários séculos depois de Confúcio águas primordiais e regressar à vibração inicial. Nas subidas, a
(551-480 a.C.). Tradicionalmente, Confúcio foi considerado como
o criador dos ritos e das cerimônias, mas, de facto, o que ele
(1 6) Schneider (M.), Musique, mythologie, rites, op. cit., p. 211.
(1 7 ) A introdução oficial do budismo no Japão ocorreu durante o reinado
(1 5) Aitareya brahma, 11, 40. do imperador Kimmei (540-571 d.C.).

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Marie-France Castarede A Voz e os Seus

voz abre-se bruscamente e um volume é ela que nr<HU)(''-1

nas a voz toma-se abafada. Para Moisés terá uu<HJluuv


respiração é essenciaL Perante belas vozes, citando o
graças a essa técnica, a voz de metal ou de co e domava os animais e os espíritos diabólicos graças à sua
aguentar, durante um minuto, uma única nota e sem impressionante voz. A cantilação do Corão, principal forma de
tremuras. Há ainda a notar, na seita Zen (vinda da China no melodia religiosa, dá uma grande margem de liberdade ao intér-
século XIII), a importância do umbigo ou plexo que prete, o que explica a variedade das formas melódicas.
é o centro do corpo; é aí que reside a fonte da voz, que é o fruto Quanto à música de mesquita na Turquia, é uma música
das entranhas. Para o japonês, só é merecedor de estima quem vocal. Compreende os cantos de tradição oral e as obras vocais
atingiu a maturidade interior e fala com voz vinda de baixo, voz escritas por compositores turcos. A música das confrarias é di-
do ventre- hara-goe - , rejeitando a voz vinda de cima, voz ferente: no taksim turco, a melodia vai-se afastando progressiva-
de cabeça, voz descentrada do imaturo. No Nô, drama lírico de mente do som inicial, elevando-se e desenvolvendo-se a diferentes
carácter religioso e tradicional, a voz expande-se numa continui- níveis, para regressar, por fim, ao ponto de partida: é a imagem
dade vocal pura e livre: tudo leva a crer que a estrutura do seu sonora do movimento íntimo do homem a caminho do Uno.
canto tem semelhanças com a estrutura da salmodia budista. Quanto ao dikhr (' 8) das confrarias sufistas, pronunciado como
Na devoção islâmica, no seu aspecto individual ou colectivo, o «Aum» dos Hindus na concentração mental, é repetido tantas
a salmodia corânica ocupa um lugar importante, quer quanto ao vezes quantas as exigidas pelo mestre. Para os derviches, a prá-
efeito que provoca em quem a ouve e em quem a recita quer tica da música é um meio de atingir o êxtase.
como testemunho sonoro de uma tradição secular. Há o canto Na Sibéria e na Mongólia, o xamane é um mágico e o seu
religioso (tabir) e o canto profano (ghinâ), muito diferente pelo canto faz surgir e viver o mundo imaginário do invisível. Sem
seu carácter frívolo e sensual. Dizia-se que Maomé, quando re- o canto, o imaginário seria inconcebível. O canto é também um
cebia a revelação, modulava a salmodia lentamente e com uma meio de comungar com a assistência. Ao longo de uma vida
voz maravilhosa, mas não existe qualquer partitura. A sua única ascética, os xamanes vão adquirindo conhecimentos sobre o canto
via de transmissão foi e continua a ser a tradição oral, como dos objectos.
acontece em toda a parte, à excepção da Europa. Quanto à música vocal em África, ela é, segundo a opinião
A salmodia corânica é, por natureza, monocórdica. Foi pos- do seu especialista francês, Gilbert Rouget, de uma tal varieda-
sível distinguir trinta variedades de vozes, mas só algumas são de que é difícil sintetizá-la. No entanto, sabe-se que a música das
compatíveis com ela (voz pura, meiga e tensa, voz débil, conti- religiões africanas, intensa e lenta, acompanha os ritos funerários,
da, quase inaudível, voz fluida, que sai sem esforço, etc.). Assim, os exorcismos e as curas. Os seus ritmos repetidos servem para
o canto religioso não pode; como acontece com o profano, ser conjurar uma natureza hostil. Nos negro spirituals, há marcas
objecto de qualquer grafia. E transmitido oralmente de um xeique dessa magia, ao passo que os gospels reflectiriam a vida quoti-
para outro. Das cinco obrigações do muçulmano (confissão da fé, diana.
oração, jejum, esmola obrigatória, peregrinação), a oração é aque- Na Grécia, durante longos séculos, a música acompanhou a
la que o reclama mais vezes: cinco vezes por dia, individualmente vida do povo. Há poucos episódios da vida civil, militar, religio-
ou colectivamente, se puder ir à mesquita. O adhan (ezan, em sa ou intelectual que não estejam ligados ao canto e aos sons.
turco), cantado pelo mouadhin (muezzin, em turco), lembra-lhe A instrução musical, que o cidadão recebe desde a infância, tor-
que tem de cumprir esse ritual. O apelo à oração não possui uma na-o capaz de participar activamente nas manifestações artísticas
melodia fixa: originalmente, o adhan reduzia-se a um grito so-
noro, lançado por uma voz potente.
Uma bela voz é o veículo que transmite ao coração do fiel 8
(' ) Litanias de Alá.

48 49
Marie-France Castarede

da Cidade. A iniciação à arte dos sons é um faz de cantos suaves ... Para a arte dos sons era a arte encanta-
só da instrução artística e mas também da curava e era transformadora. O can-
moral. Os poetas e os filósofos a mus1ca com ... u •. u"J"'"- to participava nos mistérios solares, nos mistérios de
mo; os legisladores dedicam-lhe a sua atenção; dir-se-ia que não Delfos em honra de Apolo, e nos que celebravam a luz do dia.
há ninguém que não revele interesse por ela. Segundo Nietzsche, Quanto à família dos Eumólpidas - os bons cantores - , era tão
«a música grega autêntica é essencialmente uma música vo- estimada que teve o privilégio dos mistérios de Elêusis, que exal-
cal» (1 9), e considera que entre a poesia e a música existe uma tavam a religião ateniense, misturando os cultos órficos, dio-
ligação estreita e muito forte: nisíacos e agrários. Segundo uma velha lenda ática, os Pelasgos,
nos dias de festa, cantavam e dançavam ao pé da Acrópole, no
«Os gregos só tomavam conhecimento de um poema atra- mesmo local onde muito mais tarde multidões imensas se apinha-
vés do canto ... O canto do coro só se distinguia do solo pelo '1/am durante os concursos musicais organizados por ocasião das
número de vozes e os instrumentos que acompanhavam eram os grandes solenidades religiosas e das representações dramáticas.
únicos que podiam recorrer a uma polifonia muito restrita.» (2°) Quanto à tradição judaico-cristã, sabemos que ela inclui o
canto dos salmos ao longo de toda a história bíblica. Aliás, des-
Portanto, no amor que os gregos manifestavam pela música, de os primeiros séculos da nossa era que os cantos cristãos se
o primeiro lugar devia ser dado à voz humana, o mais nobre dos inspiraram nas melodias entoadas nas sinagogas judias. S. Pau-
instrumentos. A melodia vocal, tanto individual como coral, cons- lo, nas suas epístolas, exortava os cristãos a elevar a alma até
tituía o seu aspecto fundamental. Como reunia, ao mesmo tempo, Deus com hinos e cânticos espirituais. Até ao Edito de Milão
a palavra e o som, era o melhor meio de expressão de uma arte (313), os cristãos perseguidos não podiam incluir cantos nas suas
em que a poesia estava intimamente associada à música. Na An- cerimônias, mas desde que reconquistaram a liberdade, a arte
tiguidade toda a gente cantava, com naturalidade mas com pouca vocal foi praticada em toda a parte.
técnica (2 1). As expressões vocais estavam contidas numa tessitura Por fim, entre os judeus existe o culto do <<nome». O segundo
média: os homens cantavam com voz de barítono, as mulheres, dos dez sefirós da cabala é consagrado à voz:
com voz de mezzo soprano. No período clássico, as mulheres só
raramente podiam participar em execuções musicais públicas. Em «A palavra é sopro, o sopro é pensamento»,
Esparta, onde as mulheres gozavam de uma liberdade maior do que
em outras cidades gregas, havia coros femininos; todavia, em Ate- ao passo que a inteligência só figura no terceiro sefiró. Até à
nas, só os coros de homens e de crianças rivalizavam entre si e época moderna, o canto litúrgico e religioso dos judeus é de
os músicos gregos só tinham em conta as. vozes masculinas. essência popular, ou seja, é transmitido pela tradição oral. A for-
O grego da Antiguidade frequentava o Olimpo. Segundo Ho- ma musical mais corrente é a da antífona e do responso. O haz-
mero (2 2), foram os deuses que ensinaram o canto aos homens e zan é o chantre profissional da sinagoga. O uso da recitação
foram os Frígios que tiveram a honra de propagar esse presente cantada das orações é confirmado pelas recomendações, feitas às
divino. Esculápio, o deus da medicina, rodeava os seus doentes pessoas dotadas de uma bela voz, para assegurarem a função de
chantre. A estrutura modal característica do canto hebraico na sua
origem volta a encontrar-se no canto da sinagoga: é um canto
(1 9) Nietzsche (F.), La naissance de la tragédie, Paris, Gallimard, 1982, muito ritmado, muito expressivo.
pp. 206 e 208. Assim, a cantilação bíblica, bem como a do Carão, dos ve-
(2°) lbid., p. 208.
(2') Quando Aristóteles afirma a inferioridade técnica da voz humana em das, dos Kalâm, identifica-se, pelo contributo sonoro, com a es-
relação aos instrumentos, refere-se a vozes incultas, as únicas que ele ouviu. sência divina contida na palavra.
(22) Odisseia, capítulo 7, versículo 34.

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Marie-France Castarêde A Voz e

do canto colectivo na
~".""'"'""'" catedrais
Se as mitologias e os ritos do mas sobretudo do e para citar apenas algumas
deram desde sempre a ao som e à voz, há centros musicais patrocinados por essas naves de pedra.
um domínio muito particular e muito mais recente que deve agora e mosteiros Saint-Benoit, Saint-Odile, Murbach, Reichenau-
reter a nossa atenção: a música europeia, nomeadamente vocal, convertiam-se em verdadeiros conservatórios de música e de can-
fenómeno único no seu género. Se se fala do de to litúrgico.
de Colónia ou de Chartres, também se poderá citar os nomes de A partir do século X, aumenta o número dos documentos re-
maravilhas arquitectónicas que não se situam na Europa: o forte ferentes à escola de canto de Notre-Dame de Paris; conhece-se
de Agra, a mesquita azul de Istambul, o templo de Angkor Vat o nome do cantor Adelelme, que, entre 992 e 1040, foi encarre-
ou de Bàràbudur, a cidade imperial de Pequim, etc. Na pintura gado de reger a ordem dos cânticos e de vigiar os meninos do
e na escultura também existem obras que se podem comparar. No coro. Ao lado da escola de canto da catedral, florescia a Schola
entanto, as grandes obras vocais europeias, e as partituras que as Palatina ou Escola do Palácio. Os alunos da Schola Palatina
acompanham (2 3), não têm equivalente em nenhuma outra civili- participavam nos ofícios da Capela Real.
zação, e será através delas que evocaremos a aliança, infinitamen- Paralelamente à difusão do canto religioso, os trovadores,
te renovada, entre a música e a fala. As ligações da voz com as jograis e minnesinger, que foram os primeiros teóricos do amor
mitologias e o sagrado vão alterar-se progressivamente. A música cortês, cultivavam a lírica profana e difundiam, de Norte a Sul,
vocal europeia cantará também as paixões humanas, como já o de Leste a Oeste, a canção. Em todos os países, inúmeros can-
faziam os coros das tragédias gregas. Para esta viagem musi- tos rústicos eram transmitidos por tradição oral através do tem-
cal, que será porém rápida, partiremos da Idade Média, época em po e do espaço, obras anónimas do génio popular que, reunidas,
que os cantos religiosos e profanos se desenvolvem em simultâ- são um tesouro artístico de cada cultura.
neo. Houve três grandes artistas (entre outros) que, a partir do fim
Primitivamente, o culto cristão só admitia a arte vocal; por da Idade Média, se tomaram famosos no canto, tanto religioso
conseguinte, a par do estudo das letras (2 4 ), fomentava-se o estudo como profano: Guillaume de Machaut, músico e poeta, que, em
do canto. Carlos Magno, por seu turno, impôs o canto gregoria- 1364, deu em Reims o primeiro exemplo do quarteto vocal mis-
no, assim denominado em honra do papa Gregório I (S. Gregório to, com a sua missa, denominada Messe de Notre-Dame, Jean de
Magno- 590-604) (2 5). No Império do Ocidente, multiplicaram- Ockeghem, Mestre de Capela na Corte de França, famoso pela
-se as escolas copiadas da Schola romana. As escolas de Aix-la- arte requintada do contraponto e do cânone, e, por fim, Josquin
-Chapelle, Metz, Rheinau e Saint-Gall, nomeadamente, rivaliza- Des Prés, que respeitará a continuidade de uma estética gótica,
ram em zelo para se converterem nos centros mais esplendorosos e simultaneamente, procurará a emoção da alma, anunciando uma
viragem decisiva na história da música vocal.
(2 3 ) A grande originalidade da música europeia reside no facto de perten-
A partir do primeiro quartel do século XV, quatro grandes
cer a uma tradição escrita, desde os neumas do canto gregoriano. Hoje em dia, capelas musicais disputavam entre si a proeminência e os canto-
a música aleatória é a única que volta a estar ligada às tradições não escritas. res célebres: a capela do papa, a capela do rei de França, a ca-
(2 4) Na Universidade da Idade Média ensina-se o grupo das quatro artes pela do rei de Inglaterra e a capela dos duques da Borgonha, cujo
liberais, de carácter matemático (aritmética, astronomia, geometria, música), exemplo virá a ser seguido pelo duque da Baviera que, em 1560,
designado por Quadrivium, a que se juntava o trivium (gramática, retórica,
dialéctica).
chama Orlande de Lassus para a sua corte.
(2 5) Gregório Magno contribui para fixar por escrito o cantochão, cuja re- Por outro lado, Lutero, ao adaptar a forma do cântico popu-
dacção definitiva se concluirá no século IX; o cantochão é uma música vocal lar na celebração dos ofícios do culto reformado, deve ser incluí-
ritual e monódica, herdada da liturgia católica romana. do no número dos apóstolos mais zelosos do canto coral. Calvino,

52 53
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

por seu turno, reconheceu como e H.UUvJlV"V

e para comover e o menta. à e às artes em geral que vai ser a


invocar e louvar a Deus com um zelo mais veemente e mms missão de preservar os valores do sensível, distinguindo-os dos
ardente» (2 6 ). O canto dos salmos na igreja foi o que valores
levou à criação de um repertório admirável no culto da Igreja
Reformada. A Contra-Reforma também revelará grande interesse «Quando o mito morre, a muszca torna-se mítica tal
pela música coral. Nos países europeus, os colégios de Jesuítas como as obras de arte, quando a religião morre, deixa:rz de
converter-se-ão em centros de cultura para o canto religioso. Em ser apenas belas e passam a ser sagradas.» (2 8)
França, o século XVI foi igualmente uma época privilegiada para
o desenvolvimento do canto coral laico: na cidade e nos caste- Assim, a partir de finais do século XVI, a música passará a
los floresciam os divertimentos musicais, os quartetos vocais, que ser a expressão sensível da condição humana.
reflectiam os laços estreitos que existiam entre a música e a · No seio da música vocal, a fala e a música mantêm entre si
poesia. uma relação dialéctica que o linguista Nicolas Ruwet soube des-
Mas por que é que, após a Idade Média e o Renascimento, crever muito bem; a música vocal unifica, numa temporalidade
se verificou, na Europa, uma separação entre o universo mítico única, dois sistemas muito diferentes: a linguagem, que isola,
e as referências científicas? Lévi-Strauss faz coincidir essa sepa- distingue, denomina, e a música, que exprime a vida íntima, sem
ração, por um lado, com a aparição do racionalismo, e por outro poder nomeá-la:
lado, com o nascimento da grande forma musical, desenvolvida
por Frescobaldi, primeiro, e depois por Bach. Trata-se de um «Por conseguinte, é fácil perceber o que há de sedutor
facto específico do Ocidente, que não existe nem nas tradições numa actividade que, combinando-as numa fusão íntima, por
do Extremo-Oriente, nem nas do Médio-Oriente. No século XVII, intermédio do seu órgão comum, a voz, visa dar a ilusão de
assiste-se à morte do pensamento mítico e à sua substituição pela que a fenda que existe no coração de uma, será colmatada
música, que é, aliás, o referente imaginário da obra de Lévi- pela outra, e vice-versa.» (2 9 )
-Strauss dedicada aos mitos porque, tal como eles, a música «re-
para» (2 7). A partir de então, em Florença, «é pela primazia e pela
Os mitos começam muitas vezes por relatos de mutilações omnipotência da voz que, se exprimem as experiências afectivas
que vão sendo progressivamente restauradas. Melhor ainda, os e emocionais da época. E a voz que reconduz a linguagem e a
mitos reparam porque correspondem a uma necessidade de ex- música à expressividade da fala: esta toma-se a grande media-
plicação e de compreensão totais, o que também se verifica na dora entre os sentimentos e o intelecto, une o corpo ao espírito
música. Tanto os mitos como a música garantem a integridade nessa espécie de linguagem universal que são a melodia entoativa
do objecto e anulam o tempo porque não lhe sofrem os efeitos, e o ritmo ... Pela primeira vez na história da música ocidental, a
geram-no e contêm-no. expressão deixa de estar contida num sistema rígido de simbo-
Por conseguinte, no século XVII, dá-se uma ruptura entre o lismo convencional, visa uma intenção de sentido que ultrapassa
mundo da inteligência e dos conceitos - consubstanciado na a literalidade do texto poético e dos sinais musicais dispersos na
ciência e no espírito científico - e o mundo da sensibilidade, polifonia abstracta, substituindo-os pelo dinamismo puro da me-
lodia. Pela primeira vez na história da música ocidental, a tem-
(2 6 ) Citado por Raugel (F.), Le chant chorai, Paris, PUF, 1986, p. 16.
(21) Esta expressão deve ser interpretada na acepção do mecanismo de re-
paração definido por Mélanie Klein, ou seja, a restauração de um objeto está- (2 8) Lévi-Strauss (C.), L'Homme nu, Paris, Plon, 1971, p. 584.
vel e bom. (2 9 ) Ruwet (N.), Langage, musique, poésie, Paris, Le Seuil, 1972, p. 68.

54 55
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

au1J.aucv da t::hlJ!c:;oe> decididamente na linha musicaL de '"'"'"un..-uu.,


mano da vida e nas suas a sucessão das árias
na eternidade da contemplação inesperadas nas aria da capo (3 2 )) e dos
gundo plano» (3°). mas, para além dessa geometria relativa do libreto e
Depois, surge Monteverdi (1567-1643) e o seu da composição, faz com que a música atinja o máximo da sua
primeiro drama lírico per musica), que é o novo sím- intensidade expressiva, que submerge muitas vezes a palavra. As
bolo do poder emotivo da música, capaz de vencer a vontade dos personagens revelam-se sobretudo pela sua caracterização musi-
deuses. Com a sua lira, Orfeu encanta Caronte, passa sem entra- cal, que passa a ser-lhes mais íntima do que aquilo que dizem.
ves para a barca e vai ao encontro de Eurídice. A música vocal, que continua a ser circular nas óperas de
Em Monteverdi, encontram-se em germe todas as formas da Mozart, vai tender gradualmente, passando por cima de Spontini
ópera moderna, com o dilema entre a estrutura própria da fala e ~ de Cherubini, para a linearidade. Berlioz (1803-1869) será um
a da música: no recitativo, é a música que se submete à pala- marco decisivo nessa evolução, nomeadamente com a Danação
vra; nas árias, o texto desdobra-se numa semântica musical que de Fausto, onde se nota uma progressão da música. No entanto,
o ultrapassa. será Wagner (1813-1883) quem consagrará definitivamente a
A partir do início do século XVII, a música conquista a sua nova forma da melodia contínua. Nas suas primeiras óperas com
autonomia significante em relação ao texto, ao mesmo tempo que leitmotiv, Rienzi e O Navio Fantasma, o princípio ainda não está
vai adquirir um sistema sintáctico estrito que ain~a não pos~uía totalmente adquirido, mas, a partir de Tristão e !solda, a ópera
no Renascimento. A estrutura de todo o desenvolvimento musical wagneriana desenvolve-se como um canto ininterrupto, donde a
passa a estar contida no percurso tonal; tónica-dominante-tónica enorme influência que, há um século, ele exerceu na ópera eu-
ou tónica-subdominante-tónica. Cria-se uma certa independência ropeia, a par de Verdi e de Mussorgski.
entre o texto e a música, porque a ordem tonal passa a ser um Por outro lado, a música instrumental, como acontece nos
sistema significante, já largamente conceptualizado devido ao quartetos, toma-se um equivalente da fala, sem as palavras: os
conhecimento das regras da modulação harmônica. instrumentos de cordas são as quatro vozes do canto (dois violinos:
Rameau (1683-1764) será o eminente teórico francês da har- soprano, mezzo soprano; alto: tenor; violoncelo: baixo). O roman-
e
monia I) COm a elaboração de uma racionalidade geométrica do tismo musical mima a efusão e o diálogo; o seu tempo é o da
pensamento musical, representada por diferentes tipos de reci_ta- consciência subjectiva que se exprime a urna ou a várias vozes ...
tivos e de árias. O seu contemporâneo alemão, Johann Sebastlan No lied romântico alemão, há uma reconciliação ideal entre
Bach (1685-1750), não será um teórico, mas na sua obra vocal, a fala e a música, que em nada cedem uma à outra: este equilí-
abundante e rica, explorará todas as possibilidades das relações brio único verifica-se, por exemplo, nos lieder de Schumann
entre a fala e a música. O poder da música culmina nas «árias» (1810-1856). Nicolas Ruwet, em Langage, musique et poésie (3 3 ),
(Paixões, Missas), em que a voz desenvolve a frase musical. Em faz uma análise dos Dichterliebe (3 4) de Schumann sobre poemas
certos corais, essa frase interrompe as palavras, o que altera a de Reine:
linearidade da sintaxe, mas os grandes coros atingem por vezes
uma intensidade muito pitoresca cuja monumentalidade nunca foi <<A relação entre o poema de Heine e a música de Schu-
superada.
É com Mozart (1756-1791) que a expressividade vocal vai
('") O travessão, colocado na sequência do couplet, indica que é necessá-
rio voltar ao início.
33
( ) Ruwet (N.), op. cit.
(' 0) Imberty (M.), Les écritures du temps, Paris, Dunod, 1981, pp. 176 e 179. (3 4) O ciclo Os Amores do Poeta, opus 48 (1840), é constituído por 17
(' 1) 1722: Traité de l'harmonie. poemas incluídos em lntermezzo, de Heine.

56 57
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

mann é todas as estruturas da e sobretudo a W e bem - criador da


mã e do sistema século XIX. Só música serial - têm em comum a de descobrir uma
estrutural em linguística e em nova coerência sonora, uma nova ordem. formalismo que re-
atingir as estruturas mais subtis - ao velam é uma reacção contra o expressionismo da época român-
estilístico - é que será possível determinar essas relações tica. A música regressaria à contemplação do jogo arquitectónico
de uma forma precisa.» (' 5 ) das formas sonoras, tal como na escrita em cânone. Noutros
compositores, como Ohana, Stockhausen ou Berio, a fala desem-
Para Schumann, não há fusão entre a fala e a música, que penha um papel particular: é um arsenal de sons, sem referência
evoluem paralelamente. As melodias de Debussy sobre poemas a uma inteligibilidade precisa. Stockhausen trabalha com os ele-
de Pierre Louyis, As canções de Bilitis (1898), para citar apenas mentos fonéticos da língua, como em Stimmung (1968), obtendo
uma obra entre muitas outras, são também notáveis: há um tra- uma espécie de glossolália, linguagem infantil muito semelhante
tamento linear do texto, com uma atenção extrema à prosódia, ·ao palrar, de conotação regressiva. O inconsciente deixa de ser
que o piano comenta, sem que haja qualquer confusão ou redun- modelado pela linguagem: o «id» fala... C7 )
dância. Em Pelléas et Mélisande (1902), obra que dá uma pers- Em Syllabaire pour Phedre, Ohana põe de parte o discurso
pectiva mais dramática, tudo se torna intensamente expressivo, cartesiano para se dedicar a uma experiência de fonética,
porque a linha melódica está muito próxima da prosódia. dissociando vogais e consoantes ... Por yezes, há frases inteligí-
O Sprechgesang levará ainda mais longe a exploração de veis que emergem desse caos sonoro. E uma música extraordi-
Debussy ... A mutação ocorrida no século XX, mutação que foi nária, com ruídos da natureza, coros que raramente cantam em
tema de análise por parte de musicólogos, filósofos, antropólogos, uníssono, notas dissonantes, sussurros, sopros ... em suma, um
etc., foi a ruptura com o sistema tonal iniciada pela escola de tratamento da voz bastante brutal, embora requintado.
Viena (Schônberg, Webern, Berg). Iríamos ser remetidos, como Luciano Berío é um dos compositores contemporâneos que
aconteceu na Idade Média no domínio da música, para uma ou- mais se interessou pelas relações entre a música e a voz. Para
tra forma de cerebralidade e de intelectualidade sonoras? ele, a relação «Som-sentido» é totalmente arbitrária. Há necessi-
Se certos compositores, como Francis Poulenc, continuam a dade de palavras como elementos acústicos, e tenta redescobrir
associar a música à fala de uma forma tradicional, outros, como a língua primitiva, a língua sonora, a língua dos nossos antepas-
Arnold Schônberg, com Pierrot lunar (1912), abrem caminhos to- sados remotos, ao mesmo tempo cantante e apaixonada. Em Evoy,
talmente novos. Etimologicamente, Sprechgesang significa «canto uma mulher canta a morte do filho: os seus gestos vocais, sem
falado», mas é muito difícil precisar como é que a voz falada se que a palavra seja significante, são muito expressivos.
liga à voz cantada. Segundo Schõnberg, No fim desta rápida passagem pela música vocal europeia,
que visava referenciar as múltiplas tentativas de união dialéctica
«Nenhum dos poemas se destina a ser cantado ... , devem, isso entre a música e a fala, há que notar que o princípio de atrac-
sim, ser falados sem uma altura de som fixa.» 6) e ção nunca é o conceito, mas o sentimento. O verbo, para se ar-
rancar ao peso do prosaico ou à abstracção do especulativo puro,
Portanto, o que importa é conseguir a modulação da própria tenta descer à origem expressiva da linguagem (como acontece
fala, não na sua função prosaica, mas na sua função de decla- na poesia). Por outro lado, a música ambiciona unir-se à fala; por
mação lírica, como acontece, por exemplo, no Nô japonês.

(3 7) Abreviatura muitas vezes utilizada na terminologia de Lacan para de-


(3 5 ) Ruwet (N.), op. cit., p. 55. signar a força do inconsciente que se exerce na linguagem: <<Portanto, não se
(3 6 ) Texto de uma carta de 23 de Julho de 1949, citada por Leibowitz, in fala ao sujeito. O Id fala dele e é aí que ele é apreendido.>> Lacan (J.),
SchOnberg, Paris, Le Seuil, p. 87. <<Position de l'inconscient>>, in Ecrits, Paris, Le Seuil, 1966.

58 59
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

é Sempre CC>,>CiHAaHU'-'LHI.- «Os


te se situa a um passo o que
o núcleo das coisas ... Os conceitos
tos são os universalia post rem, a música revela os univer-
Voz e salia ante rem e a realidade fornece os universalia in re.» (40 )

O sonoro e a voz irrigam as mitologias antigas, inspiram os No canto, Schopenhauer exalta o som em detrimento do sen-
músicos e não estão totalmente ausentes do pensamento tido, descobrindo nas vozes uma simbologia do universo:
especulativo dos filósofos. Será interessante notar que o facto de
se privilegiar, ou não, a voz ajuda a demarcar aqueles que in- <<As quatro vozes de qualquer harmonia, isto é, o baixo,
cluem na sua reflexão a presença, o sensível, a aventura signi- o tenor, o contralto e o soprano, ou tom fundamental, ter-
ficante do sujeito humano e os que teimam em renunciar a ceira, quinta e oitava, correspondem aos quatro degraus da
qualquer filosofia do sentido e exaltam a escrita em detrimento escala dos seres, ou seja, ao reino animal e ao homem.» (41 )
da fala (como fez Derrida com a gramatologia). Paralelamente à
história da música vocal, que constitui um prolongamento do Para ele, a voz alta é a imagem do pensamento e da vonta-
universo mítico na Europa, a filosofia, quando inclui na sua refle- de no seu mais elevado grau de objectivação. Na maioria dos
xão a voz e o canto, revela os laços que existem entre o racio- casos, o soprano é o responsável pela melodia e, por isso, a voz
nalismo e a arte, a inteligência e o sensível, a lógica e a estética. alta mostra ser o representante da consciência levada até ao seu
Para ilustrar o que afirmamos, escolhemos quatro pensadores extremo, ao cume da escala dos seres. É que a melodia é o co-
- Schopenhauer, Alain, Heidegger e Michel Serres - escolha ração da música:
essa que tentaremos justificar.
O primeiro, Schopenhauer (3 8) (1788-1860), surge como char- «É por este umco meio que a muszca, sem nunca nos
neira entre o kantismo e a filosofia contemporânea: a sua obra é causar um sofrimento real, não deixa de nos encantar mes-
a fonte não apenas da filosofia de Nietzsche e dos libretos de mo nos acordes mais dolorosos, e temos prazer em ouvir as
Wagner, mas também do pessimismo de Heidegger. Schopen- melodias, incluindo as mais dolentes, contar-nos na sua lin-
hauer lera os Upanishad e compreendera a profundidade das guagem a história secreta da nossa vontade, das suas agi-
místicas orientais que buscam o ser. Por isso, deixou-nos a sua tações e dos seus desejos, com os atrasos, os obstáculos, os
teoria da arte como contemplação, em que privilegia a música e tormentos que os contrariam.» (42 )
a voz:
Alain (1868-1951), por seu lado, não é um filósofo na acep-
«A música fala do ser porque há uma analogia muito ção tradicional do termo, mas um moralista ou um ensaísta.
íntima entre ela e o mundo das ideias.» (3 9 ) Mestre e pedagogo de renome, a sua obra é uma colectânea de
máximas e conceitos tão acessíveis quão profundos. Através da
Considerada como expressão do mundo, a música é uma lin- arte da música e do canto, descobre e recomenda uma concep-
guagem universal: ção de vida centrada na vontade e no autodomínio. A sustenta-

( 38 ) De todos os filósofos, de quem aliás Freud desconfiava, Schopenhauer


40
foi aquele que o inspirou de uma forma mais constante e mais segura. ( ) lbid., p. 336.
41
(3 9) Schopenhauer (A.), Le monde comme volonté et comme représentation, ( ) lbid., Suplemento cap. XXXIX, p. 1189.
42
Paris, PUF, 1966, p. 369. ( ) Ibid., Suplemento cap. XXXIX, p. 1193.

60 61
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

Muitas vezes, no levados cólera ou rrrl-


da frase '-'aJtaa.ua onde aflora a
gem do domínio: erguemos a voz e depois deixamos que ela volte a assu-
o seu tom grave:
«É certo que o sinal humano do da saúde, da
alegria humana, consiste sempre numa sequência de sons «Mas o que é característico da melodia, como se pode
sustidos e bem distintos. A perfeição do canto consiste sem- ouvir em Mozart e em Beethoven, é que escapa a esse cons-
pre em passar de um mesmo som fraco para o forte sem o trangimento da natureza, não cede à cólera, não espera pelo
alterar, porque isso é o sinal mais perfeito do domínio de si cansaço, rege a sua linguagem pelo funcionamento sucessi-
próprio.» (43 ) vo de todas as cordas possíveis, de forma a conduzir ao igual
repouso de todas elas ... Isso permite traçar uma variedade
Alain, tal como Confúcio e Schopenhauer, foca a especifici- infindável de gestos afectivos, diferentes pela sua amplitude,
dade das notas altas em relação às notas baixas: pela sua duração, mas sempre mais ou menos regidos por
uma lei de compensação não obrigatória que exprime o do-
«Houve quem troçasse das metáforas, que dizem que os mínio de si.» (47)
sons, à medida que vão subindo, nos elevam: também se pode
troçar de uma doutrina que coloca o céu dos eleitos por cima O belo canto, como Alain o entende, é uma escola de sere-
das nossas cabeças, mas a metáfora, como muitas vezes nidade, não por implicar uma concepção desencamada ou etérea
acontece, é adequada por outros motivos, porque é evidente do ser humano, mas por tender para a integração feliz dos vá-
que o cantor não consegue percorrer sem qualquer acidente rios sentimentos ou afectos: neste caso, a reflexão ética precede
uma frase que sobe sem nela introduzir todo o seu pensamen- o sentido e o objectivo das terapias vocais.
to e sem rejeitar também a vaidade e o medo, o que 44o apro- A voz, na música, é uma evocação das nossas emoções, mas
xima do céu dos eleitos, sem qualquer metáfora.» ( ) disciplinada numa trajectória temporal sublimada, que atinge a
essência do mundo:
Alain mostra-se sensível, através da voz, ao eco carnal da
emoção, dominada na música: - «0 que é característico da muszca é que nela a voz é
apenas voz, testemunho das nossas mudanças íntimas e dos
«A voz exprime primeiramente o invisível, o íntimo, o nossos afectos sem palavras. É por isso que a música, num
45
sentimento. O som é irmão da alma, como diz Hegel ( ) ••• certo sentido, tem um poder descritivo nulo, e, noutro senti-
A arte vocal pura ... só descreve as vicissitudes da emo- do, tem um prodigioso poder evocativo. Gritos e soluções, é
ção total... O som é de vontade (46 )... Supera a natureza ... a história de uma vida, e a história de um dia... O exame
O canto é uma luta contra o grito.» das recordações e o adeus às recordações, é o próprio equi-
líbrio da vida ... Assim, a natureza das coisas está presente
O filósofo alia-se aqui ao pedagogo do canto que sabe qual e é sentida como tal na música, embora não esteja represen-
é o meio-termo, difícil de atingir, que representa o equilíbrio tada ... Portanto, a música é cósmica.» (48)
entre a intensidade do afecto e o controlo graduado do som.
Por outro lado, é em Heidegger (1889-1976) que se descobre
(43) Alain, Les Arts et les Dieux, Paris, Gallimard, p. 294.
( ) lbid., p. 309.
44
( ) lbid., p. 509.
47
(45) Citado por Alain, lbid., p. 505.
(''") lbid., p. 513.
( 46 ) Ibid., pp. 506 e 508.

62 63
lv!arie-France Castarede A Voz e os Seus

•v~·v"'"''"''"' da instrumento é a voz.


mundo do «falar»
intercomunicação entre os homens. Mas homem
pertence ao antes de utilizar o «falar» como instrumen-
to de comunicação. Ao demonstrar que é totalmente impossível Heidegger encaminha-nos também para a fala através da ter-
reduzir a linguagem poética à linguagem do quotidiano ou dos ra, não no sentido do território romântico, mas do enraizamento
conceitos, o canto é a expressão privilegiada do dizer do mun- cósmico:
do. Em Caminhos que não levam a lado algum, Heidegger ex-
põe a sua concepção do canto, que é precisamente ligação com «0 corpo e a boca pertencem ao rio e ao crescer da
o ser e com o sagrado. Deve-se escutar o filósofo como um poeta terra, no seio do qual nós, mortais, crescemos, e a partir do
do divino: qual recebemos a solidez de um alicerce. Se perdermos a
terra, também perdemos certamente o alicerce. Houve quem
«Cantar, dizer expressamente a existência mundial, dizer chamasse à fala a "casa do ser". A fala é a casa do ser:
a partir da salvação da sensação total e pura, e dizer apenas na medida em que é dita, é a melodia da apropriação.» (5 1)
isso é pertencer ao recinto da própria existência. Esse recinto
é, como permanência da língua, o próprio ser. Cantar o Assim, através de Heidegger, como a linguagem revela o ser,
canto é estar presente no próprio presente, existir... Difícil o canto conduz ao seu apogeu o «dizer» poético do mundo.
é o canto, porque cantar já não deve ser ambição, mas exis- Michel Serres, por seu turno, foca a primazia da Voz-Músi-
tência... O dizer do cantor exprime o total intacto da exis- ca sobre a Linguagem-Sentido. A sua cosmogonia, que remete
tência mundial, que se estabelece invisivelmente no espaço para todas as grandes descobertas científicas dos últimos anos
íntimo do coração. O canto nem sequer procura o que há a transporta-no~ à noise (5 2) primordial. Quando fala da criação d~
dizer. Cantar é pertencer totalmente à percepção pura. Can- mundo, considera-a como emergência de uma multiplicidade rui-
tar é ser aceite no rasto do vento da média inaudita da na- dosa, como mar cinzento, caos nauseabundo. Se os Budistas evo-
tureza plena. O canto é ele próprio; "um vento".» (49 ) cavam as águas primordiais, Michel Serres imagina a imensidade
do mar ruidoso, e não silencioso como Brama. No início, havia
Estamos muito próximos do mistério do mundo. O canto, arte o caos, o ruído, o múltiplo. Do ruído saiu a música, como um
suprema, é o que nos transporta ao limiar do divino. Em fluxo, uma onda, uma redundância, um sentido ... A música é a
Heidegger, a fala, é muito mais do que o veículo anódino da repetição, o reversível, por oposição ao caos e à ausência de
linguagem da vida quotidiana; tal como na primeira função da sen~ido. Há a confusão, a multiplicidade que de repente se or-
deusa indiana Vac, é desdobramento do sagrado no homem: gamza. Antes da vaga do sentido, há o ruído negro, a caverna
ruid?sa ... ~ã~ há ruído sem espaço, e não há espaço sem ruído.
«0 falar no estado puro é o poema ... A canção é canta- A VIsta nao e o modelo do conhecimento, como se pensou no
da, não por acréscimo, mas porque só quando se canta é que Ocidente durante muito tempo: porque nem sempre se vê. O ou-
a canção começa a ser canção. O poeta da canção é o can- vido é que é o modelo do conhecimento: mesmo quando se está
tor. A poesia é cantochão... O cantochão (der gesang) é a
colectânea onde o dizer se reúne em canto ... A canção can-
(5°) Heidegger (M.), Acheminement vers la parole, Paris, Gallimard, 1976,
pp. 18, 166, 179 e 214.
51
( ) Heidegger (M.), lbid., pp. 191 e 255.
49 52
( ) Heidegger (M.), Chemins qui ne menent nulle part, Paris, Gallimard, ( ) Serres (M.), <<Esta palavra significava, em francês arcaico, barulho al-
1962, pp. 258 e 260. voroço e disputa>>, Genese, Paris, Grasset, 1981. '

64 65
Marie-France Castarede

o um a que cada um deveria obedecer.


~.,a,,v~vu''" dos inícios é a melhor e a mais concisa para se definir
«0 eco volta a dizer a voz ... » Para uma o contrato de o de a abadia
perceptível, tem de ser redun~a;lt.e. , o eco, ~fopag~-se o mes- de Théleme de Rabelais ... Se, para Michel Serres, a música é a
mo ... A música nasceu. «No illlClO e o canto.» (- ) Ass1m se com- língua universal, a prova é que ela não possui um original. Se
preende a importância da música para este filósofo: houvesse um original na música, as pessoas disputá-lo-iam. Se-
ria mais de um país do que de outro; seria um objecto, uma
<<A música previne qualquer enunciado, porque a ling~a_­ mercadoria, uma parada ... Em vez de separar, a música une; é o
gem e os conceitos aninham-se ao irromper o fluxo acustl- deus social. Quer seja instrumental, quer seja vocal, reúne as
co, isto é, surgem depois.» (5 4) diferenças num todo harmonioso.
. A atitude de Derrida é completamente diferente. Fenomenó-
Se o ouvido é o sentido primordial, é com o corpo que se logo na tradição husserliana, na sua obra Voz e fenómeno inter-
ouve. Ouve-se com o corpo, que implica o ruído de fundo, o roga-se acerca da especifici dade da exp_eriência vocal. A voz
ruído subliminar... . , ouve-se a ela própria e necessariamente. E a auto-afecção audio-
A música corresponde aos universais antes do sent1do. _Lm- fónica que toma cúmplices a voz e a idealidade, garantindo as-
gua ecuménica, favorece a comunicação 6p5ima, porque ev,lta o sim a transcendência da voz:
ódio, parasita fundamen tal de todos os dmlogos. E tamben; a
técnica que melhor pe_rmite lutar ,contra a rr:orte, porque reune «0 fonema surge como a idealidade dominada do fenó-
todas as formas de cnar o reverstvel: temp1, compassos ... Faz meno.» (5 6 )
flamejar o presente: assim, ajuda a viver, porque luta contra o
tempo que passa. . , A experiência vocal possui uma autonomia que prescinde da
Sob este ponto de v1sta, o coro e o_ mo_:lelo de, qualquer so- exterioridade do mundo, e não requer «a intervenção de qualquer
ciedade porque gera a melhor com~mcaç~o p~sslVel entre os superfície de exposição mundana» ... Privilégio fonocentrista em
homens: é o nasciment o do acordo, e a reallzaçao de um grupo, relação à escrita, na linha dos filósofos da Antiguidade, e sobre-
de uma comunidade: tudo de Aristóteles, que vai ser reforçado por Hegel e chegará
até Heidegger. Todavia, Derrida mostra até que ponto se deve
«0 coro vocal é o modelo reduzido mais satisfatório que desconfiar do fonocentrismo, indissociável da tradição ocidental,
possuímos do contrato social ... todas as sociedades estão ela própria inseparável de uma metafísica da presença.
estruturadas como a música vocal coral.» (5 5) Há que conceber a «gramatologia» como uma destruição do
signo em prol do sinal, que define a linguagem como «um jogo
O grupo - familiar, social, político - é u~ ens~jo _inelutá- formal de diferenças». A relação significante-significado desapare-
vel de rivalidade, de conflito, de dissensão, de d1vergenc1as: mal ce porque o sentido só pode brotar da oposição dos significantes:
se está em grupo, deixa-se de se sa~~r deci~ir ... P~rq~ê? Porque
não há partitura. Idealmente, a pohtlca sena a cnaçao de uma «Que o significado seja originária e essencialmente (e
não apenas para um espírito acabado e criado) sinal, que
esteja sempre numa posição de significante é a proposta
(5') Ibid., p. 221. . .
(54) Serres (M.), Esthétiques. Sur Carpaccw, cttado por Charles (D. ) , L e aparentemente inocente em que o metafísico do fogos, da
Temps de la voix, Paris, Delarge, 1978, p. 153.
(55) Serres (M.), Comment l' entendez-vous?, emissão com C. Maupomé,
France-musique, 28 de Março de 1981. CS 6) Derrida (J.), Voix et phénomene, Paris, PUF, 1967, p. 87.

66 67
Marie-Fra nce Castarede

presença e da escrita a sua

Note-se que há linguistas que consideram a ape-


nas como um sistema diferencial de signos, concepçã o que nos
parece discutível, porque a linguage m também é fala, ou
intendon alidade significante e mensagem dirigida a um destina-
tário. É por isso que, na linguística, nos interessamos mais pela
função «som» mais do que pela função «sentido», e sobretudo
pela língua dos bebés, correntemente designada por «palrar». A mãe e a

C7) Derrida (J.), De la grammatologie, Paris, Éditions de Minuit, 1967,


p. 108.

68
«A língua nasce na emoção do encontro,
as palavras nascem como não se espera.
Aprendi mais contigo do que em todos os li-
vros de filosofia, contigo, que me deste o meu
corpo e a quem ofereço as últimas palavras
deste livro, como humilde reposição.»

M. Serres, Os cinco sentidos

A Vlva voz
Sabe-se que Ferdinand de Saussure (') fez uma distinção ní-
tida entre a língua e a fala: a língua teria a ver com o sistema
abstracto, a estrutura, e a fala teria a ver com a realidade
observável, individual, do acontecimento, e com as suas inéditas

C) Saussure (F. de) (1857-1913), <<Cours de linguistique générale à Geneve,


1906-1911».

71
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

da os e os
impessoal. por isso que se tem de abrir um domínio de refle-
xão, o domínio da psicolinguística (2), em que o é reco-
nhecido como autor da sua fala.
A fala, transmitida por uma voz, é sempre subjectiva. C~m . «E;n~ora. os termos "papá" e sejam palavras
ela deixam de ter importâ ncia as unidades descontínuas e dis- mfantan o, aJu~tam-se às características da evolução da lin-
cretas da língua, e passa a ter-se em conta a frase, que equivale g~age_~ na cnança e esse ajustamento, que é fundam ental,
ao fraseado na música. A fala é, ao mesmo tempo, símbolo dos nao. e mfirmad o nem pela entrada desses termos na língua
estados de espírito e desejo de gerar um sentido: a voz é a .uni- naczonal, nem pela sua difusão a nível internacional.» (5)
dade do som e do sentido na fala. A linguística estrutural mte-
ressa-se pelo sistema da língua, ao passo que a voz toma a. ins~rir No período .da palração, as consoantes doces são as que apa-
a linguag em na vida. O acto de fala é um acto de comumcaça~. recem ~om mais fre.quê~cia e exprime m o estado de satisfação
Falar é falar a outrem. O significado lógico é um círculo est:el- do beb~. Na palatah zaçao dos sons, a língua retoma a posição
to no quadro mais lato das expressões significantes (mel~d1as, ~e sucçao, como o adulto faz espontaneamente no babytalk e na
hnguag em amorosa.
entoações, mímicas, gestos), que, por seu .lado, servem ~e Amt~r­
mediárias em relação ao círculo muito mais amplo das v1venc1as Chega.-~e a~sim, sob o ponto de vista da psicofonética (6), a
emocionais e intencionais. Assim, a linguagem remete duplamente ~ma classificaçao dos sons: por um lado, os sons doces e 0 ero-
para um télos lógico e para .uma origem,. ~~ seja, p~ra as estru- tls~o oral: L, M, I, ~· sons. que estão ligados à sucção. A nasal
turas pré-linguísticas do viv1do que poss1bl11tam a lmguagem. labial - M - esta associa da ao conceit o de mãe. Para R.
A voz é, ao mesmo tempo, o que faz reinar o sujeito no acto ?reenso n, no seu artigo «About the sound mm ... » C), 0 som mm
de fala porque esse sujeito, longe de ser u_ma categoria extr.alin- e ac_ompanhado por uma sensação que evoca o prazer da comi-
guística, menciona-se a si mesmo na medida em que nomeia as da hga~o a? do contacto da boca com o seio. E por isso que,
coisas: e!ll ~mtas l:_ng~as, se volta ~ enAcontrar esse som na palavra que
significa «mae». mother em mgles, mutter em alemão madre em
<<Apropriando-me dos sinais vazios da linguagem, aplico- espanhol e em italiano, j.tcr:cg em grego, mater em 'latim ama
em albanês, ummu em assírio e ima em hebraico. '
-os a mim mesmo e a situações concretas no mundo»;
Po.r outro lado, temos os sons duros e as energias pulsion ais
e o que faz reinar o corpo; a intencionalidade do sujeito é de tipo agressiVas:
corporal:

<<A voz é o meio-te rmo entre o corpo e a linguagem.» (3) (~) R. Jakobson (cf. . E~sais de. linguistique générale, Paris, Éditions de
.
~mwt, 1963? cap._ ~11) d!S!I~gue seis funções linguísticas: denotativa, expres-
O gesto vocal implica o corpo todo, facto 9ue é bem senti~o siva, conotativa, fatJca, poetJca e meta-linguística.
no canto, domínio onde se desenvolve essencmlmente a funçao CS) Jakobson (R.), Langage enfantin et aphasie, Paris, Éditions de Minuit,
1969, p. 129.
~) Parte ?a linguística que se interessa pelas sensações motoras das ex-
(2) Anzieu (D.), <<Üur une psycholi nguistiq ue psychanalytique>>, in pressoes emotivas.
Psychanalyse et langage, Paris, Dunod, 1981, PP: 1-24.. C) Greenson (R.), «About the sound mm ... », in The Psychanalytic Qua-
(3) Rosolato (G.), La relation d'inconnu, Paris, Galhmard, 1974, p. 31. terly, 23, 1954, pp. 234-239.

72 73
Marie-F rance Castarêd e A Voz e os Seus Sortilégi os

«De com as Estas reflexões transportam-nos à de uma


ca das consoantes, existe uma que «talvez consista, como é sugerido ontogénese da
(tensas) e as v"''"''L'""'"'"' numa sequência de movimentos mais ou menos
mais ou menos coordenados, e acompanhados por emissões vo-
· l tem 0 mesmo sentido. cais que reduze m momen taneam ente a tensão psíquic a» (1 1).
A dure~a do R apàca categorias nitidamente distintas, Ivan
Para alem des_tas ll:as mostra ue seria errado atermo-nos a Aliás, «a desarticulação da frase na linguagem emotiv a de cer-
Fonagy, em La ~~v~ vod~x, t entreq os sons e o seu equivalente tos adultos tem uma relação de contra-simetria com a evolução
uma correspondencm lrec a que se observa no início da aprendizagem da linguagem» (1 2).
pulsional: Confro ntamos esta hipóte se com a hipóte se formul ada pelo
palentólogo André Leroi-Gourhan, que afirma que a expressão
, . sicoló ica dos sons da linguagem deve ser musical - ritmo e emoção - surgiu na alvorada da humanida-
<<A analise p g l
completada e superada pe a a~aTse l
do conjunto estruturado, de, antes das codificações da linguagem.
rítmico e melódico da fala.» ( ) A revolução saussuriana gerou igualmente uma corrente anti-
-intele ctualis ta, que consid era a língua como profun damen te
, ma valorização de uma sílaba, pode
0 acel!to,_ gue e u . , icos· o acento vigoroso é umre':es-
smal
afectiva e subjectiva. André Green (1 3) nota que esta tendência
tir-se de slgmflcados pslcolog, . . a voz cantada provoca prazer, teve seguimento e que uma parte dos linguistas actuais reconhe-
de cólera, de ódio. Pelo contran o, ce a natureza passional de qualquer enunciação. Paralelamente a
e mesmo «encantamento»: uma primeira codificação gramatical e linguística, Ivan Fonagy
observa que existe uma segunda codificação, expressiva e pré-lin-
e se distingue pela regularidade da guística:
<<A voz cantada, q~ , , z tonal relativamen-
'd.
sua curva me lo zca - zstod e, por um nzve
'laba
te constante no intervalo e ur;ta sr lO - provoca uma sen- «Portanto, o estilo vocal é uma forma particularmente
sação particularmente agradavel.» ( ) engenhosa de reunir num único segmento vocal duas men-
sagens fundamentalmente diferentes, que representam duas
. . dor e terno evoca a união que fases de evolução semióticas separadas por centenas de mi-
O discurso amoroso,, acancl~· d da cri;nça embala da pela
nos transpo rta ao parmso per 1 o lhares de anos.» (1 4)
mãe. na música como na fala, há uma
Ivan Fonagy observa. que, d al (a vogal é um som bar- A propós ito da lingua gem infantil, Roman Jakobs on inte-
predominância da melodla e a vog lado e uma predominân- ressou -se muito pelo palrar, que cria uma série espant osa de
mónico) l_"la expressão do amo~~ P(:
~~nsoa~te é um ruído)_ na
cia do ntmo e da. c~msoan or outro lado. A alegria combma-
sonoridades. No auge desse período, a criança é capaz de pro-
duzir todos os sons imagináveis; não seriam as músicas o equi-
expressão da ~gr~sslVldade, p de uma e da outra. Todavia, se a valente cultural de todo esse palrar infantil? Como ele próprio
ria as caracte nstlcas sonora s, refere:
- d legria se mantem organ izada , embora irregul ar, a
expressao a a, .f t -se por uma anarquia tota1.
expressão da colera mam es a
(1 1) lbid., p. 149.
2
(' ) Fonagy (I.), «Les langages dans le langage», in Langages, Paris,
Les
Belles Lettres, 1984, p. 309.
(B) Fonagy (L), La vive voix, Paris, Payot, 1983, p. 89. (1 3 ) Green (A.), <<Le Iangage dans la psychanalyse», in Langage
s, Paris,
e) Ibid., P· 1o6. Les Belles Lettres, 1984, p. 129.
4
('O) Jbid., p. 117. (1 ) Fonagy (I.), op. cit., p. 322.

74
75
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

social vai-se tornando cada vez mais


só nos momentos dos
rios e do por ser
e
para as manifestaçõe s do
substituir esse "delírio 5
de Preyer - ainda assente no biológico.» (1 ) a
. O que Roman Jakobson realça de uma forma notável é
a
Roman Jakobson conta que dois famosos poetas checos, os d1fer~nça que existe, para a crianç a, entre a língua do palrar,
su.a h~gua,. e _a qu~ ela tem de adquirir, a língua do adulto
lín- ; da
irmãos Karl e Joseph Capek, falavam um com o outro numa só dispõe passiv ament e.
. . pnn:erra, d1spoe achvam ente; da segund a,
gua particular, até à puberdade.
Emst Cassirer, por seu lado, sublmha 1gualmente: A lmg~a,gem precede a criança, que tem de se ir apropr iando
e
dela, hipotese que levou os psicolinguistas a insistir recentement
entre a mãe e o bebé e a sublin har
«Não existe uma lingua gem infant il em geral, cada ha comunicação pré-verbal
criança fala a sua própr ia língua e durante muito tempo que o papel deste é mais activo do que se pensava.
mantém-se obstinadamente agarrada a essa língua. Contudo, .. As lí~guas primitivas poder-se-iam comparar às fases ini-
são
nesse aparente individualismo, o sentido do todo está vivo_ e CiaiS d~ lmguagem infantil. Após um período de sons que
ira fase começ a
age. A actividade egocêntrica da fala, como pura expressao uma ffilstu~a. de_consoantes e de vogais, a prime
por uma dtstmçao e uma delimitação nítida entre umas e outras:
de si mesmo, vai sendo cada vez mais substituída pelo dese-
jo de se ser compreendido,6 e, através desse desejo, pelo de-
«0 devir .da lin~uagem_ infantil, a dissolução da lingua
-
sejo de universalidade.» (1 )
gem da afasta, a smcro ma e a diacronia das línguas do
É assim que, segundo Roman Jakobson, s~ instala «a ~uste­ mundo revelam um conjunto de leis comuns de solidarieda-
de.» (1 9)
uma
ridade fonemática dos primeiros patamares da linguagem: ha
transfo rma ?s "s?ns selvag ens" do pal-
espécie de deflação que
rar em valores linguís ticos» (1 7
). Mms adiant e, escrev e: Hoje em dia, as ideias de Roman Jakobson têm de ser inter-
pretadas ~ luz .dos resultados das últimas investigações sobre 0
<<A criança selecciona os sons e só os converte em sons ~alrar. Nao extste qualquer descontinuidade entre o palrar e a
linguagem: P?r. <:_utras ~alavras, o bebé palra na sua própria
lín-
do discurso se remetem para a linguagem no sentido restrito es bioló-
do termo, isto é, para os "signos linguísticos a~~itrários" de gua. Se a aqms1çao da lmguagem obedece a predisposiçõ
Saussure. Por conseguinte, essa selecção esta tnseparavel- ~jcas (hipótese de Noam Chomsky, segundo o qual o ser humano .
ha-
mente ligada à natureza semiótica da linguagem; trata-se de Ja nasce con: tend~nci~s .inatas para a linguagem czo)), tem de
ver ui? ambt~n~e l11_1gmst~co que active. Bénéd icte de Boyss on-
um problema meramente linguístico, porque os_ sons s? são as
considerados sob o ponto de vista da sua funçao de Slgnos. -B~rdies decidiU «mvesttgar se, a par das activações de ordem
Pelo contrário, a questão dos sons pré-linguísticos do pal- umversal, ocorrem activações de ordem local, que caracterizem
rar revela ser de natureza essencialmente fonética, essencial-
mente articulatória ... À medida que a criança vai crescendo, 8
(' )Jbid., pp. 31-32.
9
(' )Ibid., p. 69.
(2. Hoje e~ dia, fala-se d~ «det~ctor fonético»: a percepção
p. 27. .
0
das crianças
(1 5) Jakobson (R.), Langage enfantin et aphasie, op. cit., )
de dms. me~es e
des objets», nte análoga a do adulto, ou seja, categor ia!, e essas
(1 6 ) Cassirer (E.), <<Le lal).gage et la conscience du monde totalme
Segui (J.), L' aube
Essais sur le langage, Paris, Editions de Minuit, 1969. categonas sa~ as mesmas que se constata ram no adulto. Cf.
des sens, Paris, Stock, 1981, p. 246.
(' ) Jakobson (R.), op. cit., p. 28.
7

76 77
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

as estruturas da materna ). Na e o início do mês siste-


experimental sobre o p~lrar de , de ma olfactivo, gustativo, auditivo
sinos (língua árabe), chmeses (lmgua cantonesa . ~m e visual. Walker (2 6) grava os ruídos no útero introduzindo mi-
-Kong: língua tonal) e franceses, de~onstrou que o_s Jmze~ , núscu~os microfon es junto da cabeça do bebé. As gravaçõe
s
tos reconhecem o palrar de um bebe da sua comumdade lmgms- recolhidas demonstram a existência de um ruído muito forte e
tica: permanente: trata-se de um ruído regular, muito rápido, que
pro':'ém dos. batimentos cardíacos da mãe (2 7 ), que são portanto
«Portanto, no palrar, é patente a existência de ordens ouvidos mmto antes do nascimento, o que não deixará de ter
.
locais, a par das ord ens umversaz. (22) consequências posteriores: Salk (2 8) nota que, após o nascimen-
s.»
~o, as mães. apoiam o bebé no seu lado esquerdo (quer se-
A idade dos bebés não é indiferente; Bower d~monstra q_ue Jam esquerdmas quer sejam destras). Assim, o bebé ouve melhor
as vocalizações revelam duas fases ?e ~esenv?lv1mento mmto as pulsações da mãe, o que provoca um efeito tranquilizador.
distintas: por um lado, dura~t.e os pnmei_TOS seis mes~s, ?S b~­ Sabe-se há menos tempo que, a partir dos cinco meses e
bés desenvolvem um repertono de vocahzos onde estao mclu~­ meio, já há reacções fetais cardíacas e motrizes (2 9). Aos sete me-
dos os sons de todas as línguas humanas; por outro lado, nos seis ses de desenvolvimento uterino, o feto ouve e responde com mo-
meses seguintes, o bebé já só produz sons pertencentes à comu- vimentos a estímulos externos quando estes são suficientemente
nidade linguística em que está inserido (2 3). ,
intensos para abafar os ruídos inerentes às actividades cárdio-
Na mesma ordem de ideias, notou-se que os bebes que .fo- vasculares e digestivas da mãe. Por outro lado, os ruídos exte-
ram educados essencialmente pelo pai têm alturas de voz dife- riores são filtrados: só podem penetrar se forem de frequências
rentes das que se observam em c~anças que f~ram edu_cadas p~la baixas, inferiores nos primeiros tempos a 300 hertz, e depois a
mãe (24). As emissões sonoras circundantes m~u:nci~m m~nto 1.200 hertz. As sequências intra-amnióticas de Querleu C0 ) con-
cedo 0 palrar do bebé, que se auto-rege pela audiÇao. ~ por tss~ firmam que a voz sobressai do ruído de fundo intra-uterino: a
que a voz da m~e, ou~ida_ des?e o J?eríodo de gestaçao, se va1 criança recebe por transmissão óssea a parte mais baixa do es-
revestir de uma 1mportane1a pnmordml. pectro da voz materna (parte que comportaria a frequência fun-
damental da voz). Essa voz não só poderia ser ouvida mas
também reconhecida entre outras, graças à percepção do riÍmo e
O reconhecimento da voz materna e as primeiras da entoação (em contrapartida, o timbre é muito alterado pelas
vocalizações condições intra-amnióticas).
Assim, a partir deste período, verificar-se-ia uma excelente
Desde as últimas descobertas sobre as percepções que se sabe transmissão do canto e da música. Jean Feijoo relatou uma ex-
que a criança ouve durante ~ sua vida. f~taL O essenc_ial das es-
truturas dos órgãos dos sent1dos constltm-se entre o fmal do se-
25
( ) Referimo- nos à idade concepcion al.

!
(2 6 Citad? por ~oal (A.) e Pécheux (M. G.), <<Le développe ment des
(21) De Boysson-B ardies (B.), «Les bébés babillent-ils dans leur langue perceptwns>>, zn Hurtlg (M.) e Rondal (J. A.), lntroduction à la psychologie
matemelle?>>, La Recherche 129, Janeiro de 1982, p. 103. de l' enfant, Bruxelas, Mardaga, pp. 313-368.
(22) lbid., p. 104. (2 7) Experiência citada, ibid., p. 327.
(23) Bower (T. G. R.), Le développement psychologique de la premzere ., (28) Citado, ibid., p. 327.
enfance Bruxelas, Mardaga, p. 176. (:~) Feijoo (J.), «Le fretus>>, in L'aube des sens, Paris, Stock, 1981,
. . p. 201.
(24), Liebermann (P.), Intonation, perception and language, Cambndge , MJt ( ) Querleu (D.) e Renard (X.), «Les perception s auditives du foetus
Press, 1967. humain>>, Médecine et hygiene, 39, 1981, pp. 3102-3110.

78 79
A Voz e os Seus
Marie-France Castarede

a
de e o lobo, e mensagens sonoras a
ela se situa numa band a de que é muito mais equilibrante e Lv.Hu> •Lu.u
(80% ), com
Não só mais de três quartos dos fetos observados
respo ndem posit ivam ente à audiç ão da frase ia nascer
sete meses de vida, sujeitos _ É de recordar que, em 1553, para que a criança que mau hu-
ram
musical, mas tamb ém os recém-nascidos, que estive nao fosse «rabugenta», ou seja, não estivesse semp
re de
ao volta rem a
a esse estímulo sonoro in utero, se acalmavam manti - mor, uma dama da corte de Navarra tocava todas as
manhãs uma
olhos quand o os e
ouvi-la quando choravam, ou abrem os
oriza ção ária mu~ical. O resul~do não foi frustrante, ~arqu aquel e que' mais
que houv e uma mem
nham fechados, o que signi fica 1 tarde ve10 a ser Hennque IV nunca perde u a sua jovial idade . Note-
muito precoce dessa sequência musical (3 ). •-se que, segundo as crônicas da época , a mãe, na altura do nasci-
ais pro-
Por outro lado, os inúmeros trabalhos sobre os anim mento, estava a cantar «Not6 re-Dame du Bout du Pont
secourez-
rno. No ho-
vam a exist ência da marc a sono ra do grito mate er e -moi à l'heu re qu'il est» (3 ). Quando Jeanne d' Albre
t' deixo u de
mas De Casp
mem, as experiências são em menor número, três ~antar para dar à luz, Henrique II d' Albret, rei
de Nava rra, «con-
idos com meno s de
Fifer (3 2) demonstraram que há recém-nasc ha. tmuou as palavras do cântico e ainda não as tinha
acabado quan-
uma voz femin ina estran
dias que distinguem a voz da mãe de -nasc i- do a filha deu à luz o príncipe que hoje reina em França» ...
revel ar que os mesm os recém
De Casper chega mesmo a duran - . Assim, a au?ição pré-natal abre camin ho a exper iências de-
histór ia que lhes foi lida pela mãe que a au-
dos preferem ouvir uma mas h~a_:las, mas estlmulant es. Isso demo nstra à evidê ncia
pela mãe,
te a sua vida fetal a uma história igualmente lida diçao desem penh a um pape l capit al no desen volvi
ment o da
nasci ment o. Assim se confi rmam as exper iências mais desde a sua vida
após o seu criança, porque, graças a ela, o bebê estabelece
ram bebés de doze ho-
antigas de Condon e Sander (3 ), que filma
3
a. A visão é a moda li-
sincr onia total com a estrutu- fetal um primeiro laço com o que o rodei
ras a dois dias que se moviam em dade sensorial mais estudada no bebé. Contu do, os traba lhos dos
(excl uindo outro s ruído s).
ra particular da voz huma na expe~imentali~tas, ~onfi rmados, noutras perspectivas, pela mi-
mãe ou de
Pode r-se-á pergu ntar se, para além da voz da tologia, pela filoso fia (3 7
) e pelas modificações recentes da teoria
uma importân-
quem os rodeia (3 ), há ruídos intensos que têm
4
as provaram psicanalíti,ca ~
38
), de~o nstr am que o espaço sonoro é o primeiro
cia nociva para o feto: os psicólogos experimen talist s e as mí-
no feto se provo cam stress espaço psiqmco: mais precocemente do que os gesto que o ro-
que esses ruídos só provocam stress mi.cas, «nota-se que o bebê realiza feed- back com o
exper iênci a efect uada numa ma- C9).
na mãe. Em contrapartida, uma mo po- dem: esses feed- back são de natureza audiofónica»
r que o ambi ente sonor o mate
ternidade tenta demonstra
deria ser decisivo para o bebê in utero:
(3 ) Marie-Louise Aucher, cantora, fundadora da
5 Association Française de
futuras mães da matern idade de Pithiviers. Cf
Psychophome, manda cantar as .
«Les matem ités chantantes», in L'Aub e des sens, op. cit., p. 185.
6
sa: "Nous té-Dam e déu cap déu pour Adyad at-me ad
C' ) <<Canção beame
1
(' ) Feijoo (J.), op. cit., pp. 193-209. g: newboms
-me nesta hora], canção
aquest hore" INossa Senh_?ra,do Fim da Po.nte, ajudai que tem um oratório
2
(' ) De Casper (A. J.) e Fifer (W. P.), «Üf human bondin popula r, cançao de. devoça o a Vrrgem do fim da ponte,
Scienc e, 208, 1980, pp. 1175-1176. et Paris Albin-Michel
prefer theirs mothers'voices», do outro lado do no ... >>, Cazaux (Y.), Jeanne d'Albr , ,
( ) Condon (W. S.) e Sande
33 r (L. M.), «Neonate movement is synchronized 1973, pp. 146-147.
,
with adult speech : interactional partici pation and language acquisition», Science, ( ) Ver capítulo II.
37

183, 1974, pp. 99-101. 8


(' ) Anzie u (D.), <<L'envelopp
e sonore du Soi», Nouve lle Revue de
(' ) O feto pode também estar
4 condicionado à voz do pai: após o nasci- Paris, Gallim ard, 1976.
Psychanalyse, 13,
mento, a repetiç ão pelo pai de uma série pré-determinada de palavras acalma (' ) lbid., p. 169.
9

o bebê que chora.


81
80
A Voz e os Seus
Marie-France Castarede
rendo saber a língua que um recém-nascido falaria esrJortta-
A partir da segunda semana, a voz da mãe faz cessar os mandou encerrar dois bebês, sem qualquer contacto
gritos do bebê muito melhor do que outro som com-
campainha s, gongo) ou do que a presença visu- vocal, numa caverna onde nada mais lhes faltava: ficou surpreen-
plexo (matraca,
humano. Através de um processo de habituação e do dido por sa~e.r que eles tinham pronunciado a palavra bécos, o que
al do rosto
ley~u os sab1~s ?~ época. a concluir que a língua original era o
estudo das respostas de sucção, Mehler ( ) constata que o bebê
40
fngw .. Esta h1stona, trazida do Egipto por Heródoto, inspirou
(de quatro a seis semanas de idade) aumenta a sua actividade
Fredenco II ~a Prússia. As amas não podiam falar às crianças, por-
(suga durante mais tempo e com maior intensidade) para ouvir
qu~ ele quena saber se elas falariam o hebraico, que era a língua
a voz da mãe do que para ouvir a voz de uma estranha (mesmo
mais a~tlga, o grego, o latim ou o árabe, ou então a língua dos
se essa pessoa se dirigir afectuosamente a ele). Este resultado seus pms ... Mas foi em vão, porque morreram todas ...
prova que essa voz foi identificada pela criança e que possui para
ele um valor positivo inegável. Todavia, estes mesmos investi- . . ~e tiver u!ll ambi~nte s~noro adequado, o bebê vai responder,
· Isto e, comumcar mUito rapidamente. A «sincronia interaccional»
gadores demonstram que esse reconhecimento só se manifesta se
rev~lada. por Con?on e S~nder ( ), demonstra que, a partir do pri~
42
a mãe falar ao filho de uma forma habitual. De facto, se lê um melro dm, o bebe reage a voz e «dança» em harmonia com ela.
texto da direita para a esquerda, e portanto sem entoação, o bebê
Um d.os au~res, c.ondon _( ), n?ta que, se ele não se entregou a
43
não parece distinguir a voz da mãe da voz de uma estranha e de- este ntual tao subtll, a mae que1xa-se depois por ele não se ani-
pressa se desinteressa por esse tipo de estímulo. As diferentes en- nhar no seu colo. Portanto, o bebê comunica muito antes de se
toações parecem desempenhar um papel essencial, porque é a servir das palavras.
partir delas que a criança pode identificar a voz materna quando
. Nas primeiras produções vocais do bebé, os psicólogos dis-
a mãe não está presente no seu campo visual.
tm~ue~ entr~ o que começa por ser manifestações de desconforto
Outra experiência com bebês de duas semanas, levada a cabo
(pnme1ro gnto ao nascer), sem qualquer valor intencional e o
por Carpenter (41 ), revela que estes reconhecem a mãe porque que vai servir em seguida de pedido de atenção. P. H. Wolff (44)
olham muito mais para ela do que para a estranha. Além disso, descreve quatro gritos ou choros no bebê com menos de três
conhecem a voz que ela emite, porque, quando a voz e o rosto
semanas: gritos de fome, gritos de cólera, gritos de dor, gritos
não condizem, voltam a cabeça para evitar olhar aquele rosto de
de resposta à frustração, que são meros reflexos biológicos. No
onde sai uma voz incongruente (gaze aversion), o que constitui
entant~, a partir da terceira semana, o mesmo autor distingue
mais uma prova da supremacia que a voz tem sobre o rosto no
outro tlpo de choros, «os choros de manha», que são um apelo:
reconhecimento da mãe, durante os primeiros tempos de vida.
Durante a terceira semana, a voz humana, sobretudo femini-
«Uma mãe responderá aos choros de manha de uma for-
na, provoca mais sorrisos do que o som de um sino ou o baru-
ma ou de outra, de acordo com o seu estilo pessoal e a sua
lho de uma corrente. Em contrapartida, os aspectos visuais da disposição de momento.» (45 )
pessoa não parecem desempenhar nenhum papel: ver o rosto não
acrescenta nada ao efeito da voz. Só passadas seis semanas é que
o rosto, como estímulo que provoca o sorriso, supera a voz ... .e 2
) Condon (W. S.) e Sander (L. W.), «Neonate movement is synchronized

Aliás, o que aconteceria se a mãe do bebê não falasse com ele, wlth adult speech: interactional participation and language acquisition» Science
183, 1974, pp. 99-101. ' '
se ninguém falasse com ele? Conta-se que o Faraó Psamético, que- (~') Condon (W. S.) «Speech makes babies move>>, in R. Lewin (E. D.),
op. clt.
( ) .Wolff (P. H.), «The natural history of crying and other
44 vocalisations
( ) Mehler (J.) e colaborador es, <<La reconnaissan ce de la
40 voix maternelle .
vol.
lll early mfancy>>, in B. M. Foss (E. D.), Determinant s of infant behaviour,
par !e nourrisson>>, La Recherche, 70, Setembro de 1976. 4, Londres, Methuen, 1969.
( ) Carpenter (G.), <<Mother's face and the newborn>>, in Lewin
41 (E. D.), 45
( ) lbid.
Child alive, Londres, Temple Smith, 1975.

83
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Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

O que é interessante é que as que são muito se vai estabelecendo 1-''-'JF.'""'"'


diferentes dos têm e quase ao mesmo um que o ouvido u"""'~'""' para os mais
valor de pedido de atenção. o cantar afinado se elaboram: cantar
Por volta da oitava semana, o desenvolve-se de uma desafinado seria uma desgraça, um fracasso da sinergia audio-
forma considerável. W olff observa que se verifica «uma fonatória dos princípios da vida.
dade significativamente mais elevada de vocalizações quando a Seria esta a fase da linguagem egocêntrica, linguagem de que
outra pessoa fala do que quando está em silêncio» (46 ). Essas vo- se poderia encontrar equivalentes culturais nas concreções sono-
calizações não são cópias dos sons adultos, «mas como a crian- ras de Antonin Artaud, que tenta destruir a linguagem conven-
ça dispõe de vários sons distintos que praticou de uma forma cional na anarquia total, ou na glossolalia, muito apreciada pelo
circular, pode-se demonstrar que se esforça por imitar os sons que Pastor Pfister: Oskar Pfister, cuja fidelidade a Freud, como ami-
ouve ... Nessa fase, parece legítimo falar de imitação vocal, não go e como cientista, se exprimiu através de uma prolongada
no sentido de cópia directa, mas de uma «acomodação» activa correspondência (1909-1938), interessava-se muito por este fenó-
das estruturas sonoras que estão já à disposição da criança» (47 ). meno, que considerava como uma regressão a estados infantis.
Todavia, se durante essa fase (até por volta dos nove meses), Ao regressar aos afectos da criança, a vocalização sem sentido
os bebês utilizam sons com o objectivo de comunicar, esses sons transforma-se num discurso coerente, cujo sentido deve ser des-
continuam em grande parte a ser pessoais. Bower (48 ) conta que coberto pela exegese psicanalítica. Para Freud, isso não passa de
certos bebês que vivem em instituições desenvolvem interacções um romance «terrivelmente divertido».
verbais que são incompreensíveis para os adultos. Inventam uma Não menos instrutiva é a análise que, entre 1895 e 1898,
linguagem privada para comunicarem com os seus vizinhos de Ferdinand de Saussure fez de uma jovem medium e glossolálica,
berço. Os gêmeos também desenvolvem linguagens próprias que designada pelo pseudónimo de mademoiselle Hélene Smith pelo
não partilham com os pais, como aconteceu com os irmãos psicólogo genebrino Théodore Floumouy (5°). A rapariga falava
checos de que fala Jakobson (49 ). não só marciano, mas também uma língua que parecia ser
Para o bebê, essas emissões vocais podem ser um pretexto sânscrito (que ela ignorava), língua de que Saussure era especia-
para ter sensações agradáveis, cenestésicas ou cínestésicas, ao lista. Com efeito, mais do que uma língua codificada, o
nível do diafragma, dos pulmões, da laringe, da faringe, do pa- glossolálico «repete» fonações infantis, ou seja, os inícios do
lato, da língua, dos dentes, dos lábios, pela expulsão ou pela «falar», a fim de criar um palco para futuras operações propria-
retenção de uma coluna de ar. Dão-lhe, por fim, a possibilidade mente linguísticas:
de exercitar as suas percepções auditivas e de desenvolver uma
sinergia subtil entre os movimentos fonatórios e a sua imagem «Enquanto a língua não tem princzpw nem fim, o falar
sonora, prazeres que são precisamente os do cantor. Aliás, é neste entrega à voz, às suas perturbações, aos seus júbilos, o pa-
período de aprendizagem que o esquema vocal (análogo do es- thos do tempo, isto é, os riscos dos inícios, dos regressos à
ausência de sentido original, das quedas e das defecções.» (5 1)
46
( lbid.
)
(
47
lbid.
) Entre os oito e os onze meses, os vocalizos sofrem um abran-
( ) Bower (T. G. R.), Le développement psychologique de la premiere en-
48
damento. Os psicolinguistas demonstram que é nessa altura que
fance, Bruxelas, Mardaga, 1978.
( 49 ) Quando eu era criança, gostava de falar <<javanais>> (') com os meus
amigos, e o mais depressa possível, para não ser compreendida pelos adultos. (5°) Floumoy (T.), Des Indes à la planete Mars. Étude sur un cas de
somnambulisme avec glossolalie, Paris, Alcan et Geneve, 3." ed., 1900.
(') Tipo de linguagem que consiste na introdução da sílaba va após as consoantes de uma pa- (5 1) Certeau (M. de), «L'utopie vocale: glossolalies>>, Traverses, 20, 1980,
lavra, e da sílaba <IV após as vogais. (N. da T.) p. 36.

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A Voz e os Seus
Marie-France Castarede

O bebé só observa-se que a melodia da fala dos adultos se


o palrar se estrutura a partir da mães do mundo
seu ao palrar do bebé (5 7).
produz sons próprios da comunidade a sua própria versão
de acordo com a sua
«Analisa mais os foto-comportamentos de outrem do que da li.ngu~g.em do bebé, mas há aspectos que são comuns: sinta-
os seus.» (5 2) xe s1mp~lfl~~da, expressões muito curtas, muitos sons desprovi-
?o;; ~e s1gmflcado e certas transformações que têm características
1dent1cas em todas as línguas.
Reduzindo o leque dos sons àqueles que é capaz de ouvir, o
Gamica (5 ) isolou seis características prosódicas que perten-
8
bebé passa também a ser capaz de tratar com mais facilidade
aqueles que requerem a sua atenção: as sequências, as cadeias cem ao babytalk materno: a mãe fala com um timbre de voz mais
sonoras que constituem as palavras da sua língua. Também está elevado do que o normal; o esquema entoativo das suas frases
mais apto a integrar esses sons para ele próprio produzir palavras. comporta muitas vezes uma elevação da voz no final da emis-
Durante muito tempo, os psicólogos acharam que a aquisição são, ,~esmo quando não se trata de frases interrogativas; a curva
da linguagem era um facto natural. Só muito recentemente é que melod1ca apresenta mais variações do que na expressão normal,
foram descobertos pré-requisitos necessários, donde a importân- e tem por vezes um aspecto ligeiramente cantante· observam-se
cia que hoje é reconhecida às comunicações pré-verbais. A voz s~quências sussurradas; a acentuação é amplificada; por fim, o
da mãe ou de quem a substitui, ouvida pelo bebé, e os vocalizos ntmo da palavra abranda. Outra característica ainda: as mães
que este emite para lhe responder, são o cerne desses intercâm- falam como se a sua cavidade vocal tivesse as mesmas dimen-
sões da do bebé, isto é, com uma voz palatal (59).
bios. Desde que o mundo é mundo que os adultos falam à volta
do berço de um bebé acabado de nascer, mas só há pouco tem- Estas características são completadas pelas observações de
~· e H. Pa~ousek ( ), para quem as características do babytalk
60
po é que se descobriu a importância desse babytalk.
sao as segumtes:
O babytalk é a língua do bebé, mas é também o «falar bebé»
que os adultos empregam para se dirigirem a ele. Os primeiros
cuidados que a mãe presta ao seu filho são acompanhados por 1. ~ estrut_ura, a sintaxe, são mais simples, muitas vezes re-
essa voz. Françoise Dolto insiste muito na necessidade de se falar petl?as e nt?ladas, prolongadas com pausas intersegmentais.
ao bebé desde o seu nascimento, porque «tudo o que é falado Ass1m, a cnança apercebe-se da regularidade e os modelos
se torna humano» (5 3 ). René Diatkine, no seu prefácio ao livro repetidos (cf. música) tornam-se-lhe familiares.
4
La parole de l' enfant sourd, de Danielle Bouvet (5 ), nota essa 2. Há figuras predominantes: acentuação, ritmo, contornos de
«curiosa actividade lúdica que é a linguagem dos adultos em vol- entoação, intervalos harmônicos fundamentais, por vezes com
sabem que ele não compreepde o que lhe alterações dramáticas de intensidade.
ta de um bebé. Todos
dizem, mas falam-lhe com a maior sinceridade ... E um discurso
inútil, para os bastidores, de que a criança se vai apropriar, mistu- CS ) Ferguson (C. A.), «Baby talk in six languages>>, in Gumperz (J.) e
7
5
rando-o aos seus próprios jogos de linguagem» (5 ). Já se tinha Hymes (D.), The ethnography of communication, 66, 1964, pp. 103-104.
concluído que as sequências do palrar da criança revelavam uma CS ) Garmca (0. K.), <<Some prosodiques and paralinguistic features speech
8

tendência para reproduzir a melodia da língua dos adultos (5 6 ): to young children>>, in Snow (C. E.) e Ferguson (C. A.) Talking children
Cambridge University Press, 1977, pp. 63-68. ' '
. C' 9 ). Laver (J.), The phonetic description of voice quality, Cambridge
Umvemty Press, 1980, p. 47.
CS 2) Anzieu (D.), op. cit., p. 170. ( ) Papousek (M. e H.), «Musical elements in the infant's vocalizations:
60
CS 3 ) Dolto (F.), Lorsque l'enfant paraft, Paris, Le Seuil, 1977, p. 25.
their significan~e for communication, cognition and creativity>>, in Lipsitt (L.
CS 4) Bouvet (D.), La paro/e de l' enfant sourd, Paris, PUF, 1982.
P.), Advances zn Infancy research, Ablex Publishing corporation Norwood
5
(' ) Diatkine (R.), Prefácio, op. cit., p. 11. New Jersey, 1981, vol. I, pp. 163-224. ' '
CS 6) Cf. as experiências anteriormente relatadas sobre o palrar das crianças.

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Marie-France Castarede

um tanto vAU"''~"'·'-''-' leve movimento


quer graças ao staccato e ao um Ao mes-
UHJlLUJH0 de do mo tempo, dá a sua do seu filho:
e ao decrescendo, que acalmam e as repetições pnJD(JrC:IOJnmn
embalar são, claro está, deste segundo tipo). preendido. tarde, essas repetições também servirão para
4. Os pais adaptam-se aos vocalizos e às mímicas da crian- facilitar a denominação. O seu papel primordial nas primeiras
ça. Os «areu ... areu ... » são familiares a todo~ os que falam comunicações evoca a repetição do motivo musical, figura essen-
com os bebês. Assim, a criança tem a oportumdade de apren- cial das músicas do mundo inteiro.
der que o seu comportamento vocal pode provocar entre os O babytalk é um pseudo-diálogo porque não se articula em
que a rodeiam respostas totalmente análogas. tomo de um intercâmbio verbal determinado mas, na nossa opi-
5. Estas actividades vocais em eco são uma fonte de prazer, nião, desempenha um papel muito importante. Muito antes da
como acontece na troca dos sorrisos. Há uma criatividade e linguagem e das suas denominações, o babytalk constitui a comu-
um divertimento recíprocos que são interacções, e todos os nicação primordial, a comunicação que permite que uma mãe
que participam nelas sentem um prazer partilhado numa diga ao seu filho que se sente bem com ele e que sente prazer
atmosfera de jogo e de alegria. D. Stern chega mesmo a des- com ele na «troca». A voz é o mediador desse entendimento
cobrir que o modelo de vocalização mais comum durante o original e fundador. Pensamos que essa linguagem é de uma
jogo é aquele em que a mãe e a criança deixam de respon- grande importância para o sentimento intuitivo de parentesco. Se
der um ao outro alternadamente, passando a vocalizar em os babytalks têm características comuns, também têm particula-
uníssono (61 ): é a prefiguração do «coro» ... ridades ligadas à voz dos pais, que é sempre singular. Quem
nunca reparou nas semelhanças de voz que existem numa mes-
Como os elementos do babytalk, dadas as suas característi- ma família, ou mais precisamente ainda, entre as filhas e a mãe,
cas acústicas, são muito parecidos com os elementos musicais (62 ), os filhos e o pai? O telefone é o instrumento ideal para esses
esta experiência constitui a prefiguração do prazer que a música equívocos ... Sabe-se que os sotaques regionais delimitam territó-
gera na idade adulta. Não só o babytalk é musical, mas também, rios geográficos; também se sabe que há maneiras de falar que
no mundo inteiro, incluindo as nossas sociedades altamente caracterizam diferenças sociais: os trabalhos de Trudgill (1974),
tecnicizadas, as mães cantam para os seus filhos. Nas canções de em Inglaterra, demonstram que a expressão falada da classe tra-
embalar e nas cantigas infantis, a melodia é simples, os sons são balhadora é diferente da da classe média, que também se expri-
repetitivos e rítmicos. me de uma forma diferente da classe de estatuto social mais
Houve muitos autores que destacaram a característica notá- elevado. Da mesma forma, há vozes «familiares» cuja semelhança
vel da repetição, tanto no discurso materno (repetição literal e de entoação tem sem dúvida origem no babytalk original com os
semântica) como nas canções infantis: Gleason (63 ) associa este pais porque, se a mãe tem a exclusividade dos primeiros diálo-
fenómeno ao do feed-back: a mãe repete-se até receber a resposta gos, o pai rapidamente começa a «ter» voz ...
Graças às sonoridades da linguagem materna, a criança repro-
duz o que ouve: incorpora a palavra do outro, de quem «bebe»
( 61 ) Stem (D.), Mere-Enfant: les premiêres relations, Bruxelas, Mardaga, as sonoridades verbais, como lhe bebe o leite. Essa corporeidade
1981, p. 30. sonora da linguagem é geradora de um enorme prazer para a
( 62 ) Gleason (J. Berko), «Talking to children: some notes on feedback», criança quando consegue, emitindo sons, recriar qualquer coisa
in Snow (C. E.) e Ferguson (C. A.), op. cit., pp. 199-205. da mãe e identificar-se com ela: este jogo, transposto para o
( 63 ) Fala-se nomeadamente de <<prato-ritmos>> ou de «modelos naturais rít-
micoS>>, que estão na base dos ritmos da linguagem adulta em inúmeras lín- campo sonoro é tipicamente um fenómeno transicional, segundo
guas e na música clássica. a definição de Winnicott, como desenvolveremos mais adiante.

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Marie-France Castarêde

A voz do bebé, em interacção com a da encaminhando este para a que é


sim com um peso emocional às suas comum a (65 )
cias e aos seus primeiros laços. «ocupar o seu Até aprender definitivamente a língua, a criança faz uma lon-
Mais tarde, ouvir-se será redescobrir- numa
se pes- ga viagem que a conduz de um estado de subjectividade total
soal de si mesmo e exprimir-se, expressão que supera largamente para um estado de objectividade, onde descobre o mundo real e
o conteúdo da linguagem e mesmo a intenção consciente. Sabe- o nomeia. No início, a mãe «suficientemente boa» (66 ) responde
-se até que ponto as nossas palavras, na sua realidade física, po- de uma forma quase perfeita ao seu filho, permitindo-lhe viver
dem trair as nossas emoções e os nossos sentimentos profundos: um estado feliz de fusão em que ignora os seus limites e expe-
o lapso não é só de língua, é também de voz ... Da mesma for- rimenta um sentimento gratificante de omnipotência. Depois, a
ma, aquilo a que se chama «sagacidade» na percepção, infra e criança «beneficiará» da experiência de uma falta e terá de ne-
extraverbal, de outrem estribar-se-ia na subtileza adquirida nos gociar a sua angústia face à alternativa demasiado contrastada da
primeiros diálogos da criança com o que a rodeia. presença e da ausência, graças, nomeadamente, aos vocalizos e
Através do babytalk, a mãe regride com o seu filho a um ver- ao palrar, que a irão progressivamente conduzindo à denomina-
dadeiro estado de graça: aliás, será por acaso que os apaixona- ção oral: «Um carrinho de linha não é uma mãe, e de tanto se
dos adoptam essa linguagem, quando vivem momentos felizes de confundir um com o outro, correr-se-ia o risco de viver uma si-
intimidade e de comunhão? A criança recebe um «banho de lin- tuação tão desagradável como a do início. É por isso que há
guagem», o que cria uma relação ao mesmo tempo fusional e de outro sistema de oposição e de separação que se desenvolve pa-
alteridade (Wínnicott dirá que o fenômeno transicional se situa ralelamente, permitindo que a criança as diferencie (67) perfeita-
a meio caminho entre o erotismo oral e a relação de objecto). mente, embor~ atribuindo-lhes uma espécie de qualidade afectiva
A mãe, mais do que ensinar a língua, tenta comunicar pela comparável. E nesse momento que a linguagem se inicia: a de-
sua voz. Através da comunicação infraverbal, que passa também l}Ominação desempenha um papel extremamente importante» (6s).
pelos olhares, pelas mímicas, pelos gestos, pelas posturas, a crian- E essa a vantagem que ela tem em relação ao objecto transicio-
ça tem acesso à fala: «a linguagem da mãe é extraverbal e ver- nal. O acesso à denominação não significa que a criança não
bal. As suas palavras corresponde m a sentimentos, emoções, conserve uma grande parte da sua actividade psicológica no jogo
contradições» (64). Todavia, para chegar à linguagem, a criança da área transicional (a música é uma certa forma de jogar com
deve ser aceite na sua própria maneira de se dizer e de comuni- todos os intermediários da ausência e da presença: a espera, o
car, que nada tem a ver com a língua que é falada à sua volta. desejo, a tensão, o repouso, etc.; aliás, houve um psicanalista que
Só se apropria da palavra que é comum a todos se primeiro foi lhe chamou «jogo do carrinho de linha vicioso e sublime» (69)),
aceite na sua própria voz. Para poder enfrentar a separação, deve
ter tido a possibilidade de viver uma continuidade nas suas pri-
meiras relações; por isso, a linguagem instala-se mais dificilmente
65
( Bouvet (D.), op. cit., p. 125.
)

Esta expressão traduzida de Winnicott («good enough mother>>) e larga-


66
naqueles que viveram demasiadas rupturas: «A língua materna ( )

me~te dif~ndida foi posta em causa por Joyce Me Dougall em Théâtres du je,
seria uma ponte que a mãe lançaria ao filho para o fazer passar
Pans, G_alhm~d, 1982, onde a autora traduz com mais exactidão essa expressão
da sua "língua" própria, que ela compreende, para a língua dos por «mae mats ou menos adequada>>; a mãe é «suficiente, mais nada>>, escre-
outros, por quem poderá então ser compreendido. Assim, a lín- ve Joyce Me Dougall, P':ll'a destacar a pequena diferença de sentido. Cf. p. 43.
gua materna, pelo intercâmbio de línguas que possibilita, destrói
67
( ) O camnho de lmha e a mãe.
68
( ) Diatkine (R.), <<Le problême de l'affectivité>>, in Apprendre à
lire,
(Actes du Symposium sur la lecture), La Tour de Pleiz, Ed. Delta , 1974, pp.
136-142.
( ) Lebovici (S.), Le nourrisson, la mêre et le psychanaliste, Paris,
64 Le 69
( ) Brousselle (A.), <<La musique: un jeu de la bobine vicieux et subli-
Centurion, 1983, p. 246. me>>, Revue Française de Psychanalyse, 5-6, 1979, p. 943.

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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

ao mesmo
ve «uma no
com as fenômeno da assimilação das musicais a três grupos de
facto, as vocalizações criança a duas esquemas» Os esquemas pertencem aos registos do corpo, da
distintas que são transpostas para dois domínios diferentes da ressonância emocional e do espaço sonoro.
cultura; por um lado, os processos de conhecimento do real, que Os primeiros - chamados «esquemas de tensão e de descon-
vão desde a primeira denominação concreta e gestual aos tracção» - coincidem largamente com a esfera psicomotora da
símbolos verbais e abstractos, libertos dos constrangimentos da actividade representativa: actividade gestual e corporal, o mais
percepção sensorial e das actividades motoras - é a fala, ~o perto possível das forças do inconsciente. Piaget demonstrou que
mesmo tempo utilitária, sinalizadora, abstracta, que con~uz as a função simbólica mergulha nos esquemas da actividade senso-
operações lógicas do pensam~n~o; por ou~o lado, a e~pr~ssao das ~ial-motora: de facto, a expressão «gesto vocal» deve interpretar-
emoções e dos estados de espmto, que vm desde o pnmerro ~a~to -'se literalmente, isto é, há um movimento espontâneo do corpo
espontâneo da criança até às formas mais elevadas da mus1~a que acompanha a voz, movimento que se refreia porque não se
vocal em que a fala reencontra as fontes do sagr~do e da ma?ta· integra nos hábitos culturais, mas que os coreutas ditirâmbicos
O primeiro domínio é o da adaptação à reahdade, da objeC~ gregos executavam provavelmente sem qualquer pudor. Da
tividade da razão da consciência, do pensamento. O segundo e mesma forma, quando se ouve música num ambiente de concen-
o domí~io do jog~, da arte, da subjectividade, do inconsciente e tração, sente-se o impacte corporal que ela provoca, como se
do corpo ... tivéssemos de nos conter para não dançar ... Tal facto é magis-
tralmente revelado pelo maestro, cuja função é justamente impri-
mir uma dinâmica corporal à interpretação musical. Os seus
Os esquemas musicais gestos guiam e modelam a execução sonora. Todas as emoções
passam pelo corpo e no corpo, que exprime o que é gerado pelo
Assim, a vida íntima, antes de ser mediatizada pelas palavra~, psiquismo; no significado musical, o corpo e a afectividade es-
exprime-se através dos «esquema.s ~fectivos.» C0), de que a mu- tão estreitamente ligados.
sica constitui uma das transpos1çoes sublimadas. O esquema O segundo grupo de esquemas tem a ver com a distinção dos
afectivo inclui não só o mecanismo de assimilação, que transfor- humores: humores positivos e negativos. Na música, há vários
ma o real de acordo com as necessidades do eu, mas também o afectos que vão surgindo ao longo de uma mesma obra musical,
da acomodação, que remete para modelos exteriores. o que é evocado pelo enunciado dos movimentos: por exemplo,
Partindo desta noção, Michel Imberty C1) lança as bases de allegro, andante ou adagio, presto, podem traduzir-se por alegria,
uma nova semântica musical que, na nossa opinião, poderia as- entusiasmo, depois melancolia, meditação calma ou atormentada,
sociar-se às descobertas evocadas anteriormente sobre a primei- e, por fim, triunfo, alegria. Actualmente, a composição musical
ra língua dos bebés. A partir das associações verbais de ouvintes convida-nos a uma distinção mais instrutiva: os vários humores
evocados pela música - alegria, dor, angústia, satisfação, ple-
nitude- podem referir-se quer a uma continuidade do Eu (caso
C0) Frances (R.), La perce!!tion_ de ~a _mus~que,_ ~aris, Vrin (1958), P·. 342. em que se falará de música integradora) quer a um Eu fragmenta-
o esquema é uma representaçao pstcologtca_ stmphftcada, que serve de mter- do, estilhaçado, disperso (caso em que se falará de música desin-
mediário entre a imagem concreta e o conceito abst~acto. Tanto :p~a o_ esque- tegradora).
ma afectivo como para o esquema mental, os mecantsmos de asstmtlaçao e de
acomodação regem as relações com o real exterior. , .
C') Imberty (M.), Entendre la musique, Paris, Dunod, 1979, e Les ecntures
du temps, Paris, Dunod, 1981. C2) Imberty (M.), Les écritures du temps, op. cit., p. 4.

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Marie-France Castarede A Voz e os Seus

Quando os vários movimentos de uma de um concer- . essa entoação. A


clássica ou romântica se sucedem . a res1gnação e a constataçã o implicam a entoação mu-
to ou de uma sinfonia na
no interior de uma obra que começa, e termina na conti- sical . . ao passo que o contentamento, a exclamação
nuidade da sua evolução, o ouvinte sente que se trata de uma e a surpresa 1mphcam a entoação musical ascendente:
composição que se conclui e em que o tormento, expresso ou sus-
citado, se resolve como um dia que termina em paz depois das «Quando o entonema é descendente, implica uma men-
tensões, ou como a vida, que supera os sofrimentos inevitáveis num sagem fechada, que não requer qualquer complemento ou
final sereno: trata-se de uma música integradora, testemunho de resoluf~O, e portanto ausência de espera e de tensão; pelo
uma concepção do homem para a qual o destino humano tem um contrano, quando o entonema é ascendente, implica uma
sentido. Em certos aspectos da música contemporânea, essa conti- mensage_m aberta, e sobretudo exclamativa e admirativa, que
nuidade musical passa despercebida: os movimentos musicais en- pressupoe uma certa tensão psicológica (15).»
cadeiam-se, para quem ouve, sem um fio director, sem que se
possa descobrir neles uma sucessão que aponte para um sentido , ~or consegui~te, a imitação entoativa da fala é perceptível na
ou para uma trajectória. Falar-se-á de música desintegradora, tes- mus1ca c~n~ada, mde~endentemente de qualquer educação musi-
temunho de uma concepção da subjectividade humana desfeita, cal. A mus1ca vocal e a que está mais próxima da sensibilidade
fragmentada, sem qualquer poder sobre a sua história. humana, porque o efeito da melodia faz-se sentir tanto entre os
Quanto aos esquemas que caracterizam o espaço sonoro, com- ouvintes como entre os músicos, ao passo que efeito da har-d
portam não só «as variações (aumento e diminuição) do volume monia só é significativo para estes.
sonoro, as sobreposições ou as sucessões de planos sonoros que Assim, os impulsos da nossa sensibilidade .podem exprimir-
vão do grave até ao agudo, mas também a gestual melódica» (1 ).
3
-se na música aquém das palavras: é possível observar efeitos de
Já falámos destes esquemas a propósito do bebé, em quem o equivalências através das diferentes épocas, como se existissem
staccato ou o crescendo de intensidade no babytalk mobilizav am universais, is~o é, códigos, expressivos. Há ideias - como, por
o estado de vigília e que o ritardando e o decrescendo incita- exempl~, «pnmaver a», «passara», «mulher» - que são traduzi-
vam à calma e ao sono. das musicalmente com o mesmo tipo de melisma ou de arabesco:
No caso da música vocal, há uma possibilidade suplementar
de interpretação: «0 refrão é o conteúdo propriamente musical, o bloco de
conteúdo próprio da música. O motivo do refrão pode ser a
«Na medida em que a voz é, para o homem, sobretudo angústia, o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a mar-
o órgão da fala, mal ela intervém na música, a linguagem cha, o território ... , mas o refrão, esse, é o conteúdo da mú-
como tal está presente, e isso mesmo se o canto se converte sica.» C6 )
em puros melismas, mesmo se o texto se torna totalmente in-
compreensível.» (1 4) A melodia é o refrão que acalma a criança à noite; a melo-
d~a é a ária que a criança cantarola para se apropriar da entoa-
De facto, o ouvinte que não compreende as palavras - por çao da voz materna, repetindo-a ou variando-a; a melodia é a
não conhecer a língua - é como o bebé que também não a possibilidade de o amador de música redescobrir «a sua peque-
conhece; no entanto, tanto um como o outro são sensíveis ao que
é transmitido por uma expressividade sem palavras ... C4) Ruwet (N.), Langage, musique, poésie, op. cit., p. 52.
C56) lmberty (M.), Entendre la musique, op. cit., p. 143.
C} Deleuze (G.) e Guattari (F.), <<De la ritoumelle>> in Mille plateaux
Paris, Editions de Minuit, 1980, p. 368. ' '
(
73
) Imberty (M.), Les écritures du temps, op. cit., p. 5.

94 95
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

nunca
«E de Swann ter a polissemia,
sar: a pequena frase da sonata constitui uma prova da expres-
vir!" todas as recordações do mantel r
apazx·' onada por e ze, e que ate' esse
invisíveis nas profundezas do seu ser, iludidas p~r aque e
brusco lampejo do tempo do amor qu~ lhes parec za ter re- e a voz materna
vzeram canta_ r-lhe r;e:-
gressado, despertaram e, de repente,
tnfor tumo a de
didam ente, sem qualq uer .comp aixã~ pelo se~
7 . Depois de termos evocado «a peque na frase da sonat o
a comu nicaçã
presente, os refrões esqueczdos da fellczdade.» ( ) Vinteuil», decidimos concl uir este capítu lo sobre
recherche
vocal entre a mãe e o filho com as páginas de A la
«Encontrar uma frase musical é sempre reencontrá-la»,
?u du temps perdu dedicadas ao fascínio da voz femin ina. Mareei
desejo e da nostal g1a, lizaçõ es mais demo ns-
seja, saboreá-la no incessante vaivem do Proust pressentiu, muito antes das forma
e ~o­ sonor o (8 1):
da presença e da ausência, da perda e ~o ~eencon~ro, _porqu da v1da
trativas dos psicólogos, a primazia desse envól ucro
das essas oscilações remet em para as pnme rras oscila çoes
da criança... . · · 1 ' «Porque as verdades que a inteligência descobre direc-
na '. e algo
Como a mus1c a é essen cialm ente afectl va e 1rracw tamente nos interstícios do mundo da luz total possuem
texto, o s~u slg- a verda de
polissémica. Mesmo quando se mistura com o de menos profundo, de menos necessário do que
at1vo ou numa
nificado nunca é, contr ariam ente à linguagem, denot que a vida nos comu nicou contra a nossa vonta de
lexical. É por isso que um poem a ou. u~ texto pode presta r-se a
impressão, material porqu e entrou em nós através dos
sen-
osiçõe s mus1c a1s (1 8
ou melho r, _nunc a to podem os fazer surgir .» (82)
uma infinidade de transp );
tidos, mas cujo espíri
r ou nome ar com precis ão não só o conte udo da
é possível defini
que ela
música, mas també m o esque ma afectivo exacto ~ara O tempo reencontrado é a recordação das impressões
e da
sentm~ entos con- origin al.
remete. «A música não é obrigada a optar e~tre es-
primeira de todas, da mais significativa e mais
comp oe com temps
traditórios· sem se importar com a altern ativa, Desde o início do primeiro livro de A la recherche du
ses senti~entos um estad o de espíri to único , um estad o de Maree i Prous t se dedic a a
perdu - O lado de Swann - , que
e indefi nível> ~ C 9
~, como x:os recor- descrever a voz da mãe do narrad or:
espírito ambivalente e sempr
O». ~s­
da Jankélévitch com a noção de «espresszvo .mexpresslV es
sim se explica o pluralismo dos gosto~ e a vm;1edade das
reacço
«... atenta a banir da sua voz toda a pequenez,
toda a
~uas ca- vaga,
por parte de quem ouve .. Contudo, seJa~ q~ms for~m as afectação que pudesse impedir a recepção da pujante
nao, pro- que
racterísticas socioculturms, as obras mus1cms, vocms ou fornecia toda a ternura natural, toda a ampla doçur a
mora l...») exigia m àquel as
(«essa bondade, essa distinção
as para a sua voz e que, por as-
Gallimard, 1968,
frases que pareciam escrit
C7) Proust (M.), A la recherche du temps perdu, Paris,
. · d
tomo I, p. 345. m~s~c~ os por
Cs) Por exemplo, os mesmos poema s de Verlam e foram Imberty (M.), Entendre la musique, op. cit., p. 5.
80
( )
uma mult1phC1dade de 81
, cf. «L'env eloppe sonore du soi»,
Debussy e Fauré; os textos das missas são obJecto de ( ) Termo retirad o de D. Anzieu
le Revue de Psycha nalyse, 13, 1976, p. 162.
. Le Seuil , 1983 , p. 95 · Nouvel
música s.
(19) Jankélévitch (V.), La musique et l'ineffable, Pans,
82
( ) Proust (M.), Le terns retrouv
é, op. cit., tomo lll, pp. 878-879.

96 97
A Voz e os Seus Sortilégios
Marie-France Castarede
ela vai ler-lhe «um verdadeiro romance», de
sim dizer, cabiam inteiramente no ~eorge Sand. Não será possível pensar que nessa impressão,
dade. Para as atacar no tom o acento o gosto de
simultaneamente sonora e literária, que se
cordial que lhes preexiste e que as mas que as
escrever de Mareei Proust e que a necessidade da sua obra tem
vras não indicam; graças a ele, à passagem toda
a '!er com a necessidade de manter o «laço» com uma mãe que,
a crueza nos tempos dos verbos, dava ao imperfeito do con- ahas, em A la recherche du temps perdu não morre?
juntivo e ao pretérito perfeito a doçura que há na bondade, Só muito mais tardiamente, no terceiro livro, é que a voz
a melancolia que há na ternura, encaminhava a frase que volta a ser evocada, por ocasião de uma conversa telefônica com
acabava para a frase que ia começar, ora acelerando, ora a av~ do narrador. Em A la recherche du temps perdu, a mãe e
abrandando a marcha das sílabas para as fazer entrar, em- a avo de Marcel Proust- Jeanne Proust e Adele Weil - fo-
bora as suas quantidades fossem diferentes, num ritn;o. uni- ram «objecto de uma fusão que atribui à segunda certos traços
forme, insuflava àquela prosa tão comum uma especre de da primeira» (86 ).
83
vida sentimental contínua.» ( ) _ Assim, Proust continua nestas páginas a descrever a perturba-
ç_a? profunda que. provoca nele a voz feminina, agora separada
E o narrador prossegue: flSlcamente pela distância que prefigura o adeus definitivo e irre-
vogável de Uf!la separaçã_o total, neste caso, a morte, embora, para
«Os meus remorsos tinham-se acalmado, entregava-me à
revelar o seu mtenso sofnmento, opte por imaginar a morte da avó:
doçura daquela noite em que tinha a minha mãe junto de
mim.» (84) «E mal a nossa chamada retiniu, na noite cheia de apa-
rições em que só os nossos ouvidos estão despertos, um ruí-
Neste mundo dos sons, a que Proust atribui a maior impor- do leve - um ruído abstracto - o ruído da distância
tância, e mesmo a proeminência ( ), a voz materna desen:penha
85
suprimida - e a voz do ente querido fala connosco.
o papel de «espelho sonoro», acalmando, pela sua e~t~açao m~­ ... Essa voz tão próxima é uma presença tão real - na se-
lodiosa e terna, a angústia da criança que, na escundao da noi- paração efectiva! Mas é também antecipação de uma sepa-
te, receia perder o objecto do seu amor. ração eterna! Muitas vezes, escutando apenas, sem ver
Provavelme nte, este texto fornece-nos uma das chaves da aquela que me falava de tão longe, pareceu-me que aquela
criação literária proustiana, porque esta descr~ção tão subtil da voz clamava das profundezas de onde não se volta a subir
voz materna está ligada à famosa cena do de1tar em Combray. e senti a ansiedade que um dia haveria de oprimir-me, quan~
Recordemos o episódio: Swann veio jantar,.? narrador senAte q':le do uma voz voltasse assim (sozinha, e já não ligada a um
a mãe não irá ao seu quarto dar-lhe um belJO e tenta faze-la_ rr, corpo que eu nunca mais voltaria a ver) a murmurar ao meu
enviando-lhe um bilhete «escrito» por intermédio de Franç01se. ouvido palavras que gostaria de beijar ao passarem em lá-
Essa tentativa fracassa até ao momento em que o pai, preparan- bios para sermpre convertidos em pÓ.» ( )
87

do-se para se ir deitar, se enternece com a desolação ~o filho e


permite que a mãe fique junte dele: com a sua voz tao amada, A voz, evanescente e impalpável, revela o carácter quase
sagrado da vida (como é confirmado pelos mitos), ao passo que
(83) Proust (M.), Du côté de chez Swann, op. cit., tomo I, pp. 42-43.
(84) Proust (M.), Ibid., op. cit., p. 43. . . . . .
(85) Michel Mathieu nota que, sobretudo em A p~monetra, ? _mconse1ente (' ) Sigaux (G.), «Le narrateur et sa famille», in Proust, Paris,
6 Hachette,
de Proust só é sensível ao ouvido, e que Proust confirma na mustca uma teo- 1972, p. 40.
ria implícita da predominância dest~ ~entid? sobre a ~ista. Cf. «Une improbable ( ) Proust (M.), Le côté de Guermantes, op. cit., tomo 1!, pp. 133-134.
87
esthétique», in Psychanalyse du geme createur, Parts, Dunod, 1974, p. 148.

99
98
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

e concreta
horas gra- escuro,
a morte- o humano chamar-me. Es-
é resumido pela voz, que se converte da tremecia como, muito no tinha
. . estremecido outrora, num dia em que, era eu a per-
comunicação entre os seres.
Em seguida, Proust evoca a voz quenda, deshgada do corpo dera no meio de uma multidão, angústia menor por não
e da visão como se através dela tivesse nas mãos o ~ o voltar a encontrá-la do que por sentir que ela me procura-
fim da exi~tência humana: subjugado na comunicação telefómca v~, por sentir que ela pensava que eu a procurava; angús-
pelo despojamento de uma imp:ess~o exch~sivamente sonora, tw bastante idêntica à que sentiria no dia em que se fala
Marcel Proust descobre, no que e hoJe em d1a totalmente. bana- àqu~les que já não podem responder e que gostaríamos que
lizado pela vida quotidiana, a matéria de uma experiência per- o~vzssem tudo o que não lhes dissemos, e a certeza de que
turbadora. Através desse diálogo vocal - o último - , fecha-se nao sofremos. Parecia-me que era já uma sombra querida
suscita o regresso à origem. O sonoro con- que eu acabava de deixar perder-se nas sombras e sozinho
0 círculo: o último
verte-se em viagem às fontes da encarnação, com a ternura do diante do telefone, continuava a repetir em vão: ,;Avó, avó",
primeiro amor que a morte arrebatou: como Orfeu, depois de ficar só, repete o nome da morta.» (88 )

«Mas a sua própria voz, ouvia-a hoje pela primeira v:z· Proust imagina a morte da avó do narrador porque a morte
E como essa voz me parecia mudada nas suas proporçoes da_m~e é ~nsuportável. Aliás, só quatro anos após a morte da sua
porque era um todo e me chegava assim sozinha e sem o propn~ mae, em 1905 (Proust tem, então, trinta anos) é que co-
acompanhamento dos traços do rosto, descobri quanto .ess~ meçara a escrever a sua obra, que, por um mecanismo de dene-
voz era doce ... Era doce, mas também era triste, em pnme~­ gação literária, lhe permitirá ocultar essa insuportável verdade: o
ro lugar devido à sua própria doçura, quase decantad~, mazs laço é restaurado e mantido na ficção romanesca.
do que poucas vozes humanas jamais o dev.e~ te; srdo, de Em La Prisonniere, Proust, por intermédio do narrador, volta
toda a dureza, de todos os elementos de reszstencza aos ou- à conversa telefônica e à magia das vozes. As «vozes de mulhe-
tros, de todo o egoísmo!... . r~s~>, reunidas numa mesma evocação, não serão as réplicas, in-
Seria aliás unicamente a voz que, por estar sozmha, me fmltamente variadas, da voz única e primordial da mãe, já que
dava ess~ imp;essão nova que me torturava? Não; esse iso-
lamento da voz era mais como um símbolo, uma evocação, «OS verdadeiros paraísos são os paraísos que se perdera?» (89)
um efeito directo de um outro isol~mento, o da mi~ha avó, «Acabava de ser infinitamente sensível à sua voz (a voz
pela primeira vez separada de mzm... O que eu ttnha sob de Andrée), pois nunca tinha notado que era tão diferente
aquela pequena campana junto ao meu ou.vido taf!Lbém era, das outras. Então, lembrei-me de mais outras vozes, sobre-
liberta das pressões opostas que a cada dza lhe tznham ser- tudo vozes de mulheres, umas arrastadas devido à precisão
vido de contrapeso, e por isso mesmo i~resistível, ?e~tu;,bar:­ de uma pergunta e à atenção do espírito, outras ofegantes,
do todo o meu ser, a nossa ternura reczproca ... Gntez: Avo, e até entrecortadas, pela vaga lírica do que contam; lembrei-
avó", e gostaria de a beijar; mas só tinha junto de :nim -~e, uma a uma, das vozes das raparigas que tinha conhe-
aquela voz fantasma tão impalpável como o que talvez vzesse ctdo em Balbec, depois lembrei-me de Gilberte, da minha
visitar-me' quando a minha avó morresse . ."F ala c.omi?o" ,:
mas o que então aconteceu, deixando-me amda ~azs so, f~~
que, de repente, deixei de ouvir aquela. voz:_ A mt~ha a~o Ja (
88
89
) lbid., pp. 134-136.
não me ouvia, já não estava em comumcaçao comzgo, tmha- ( ) Proust (M.), Le temps retrouvé, op. cit., tomo m, p. 870.

100 101
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

de Madame de Amor de Proust pelo canto da voz na música e pela voz no


diferentes, a cada teatro, encarnadas por duas actrizes muito célebres na sua
uma delas um instrumento e só pen- ca, Sarah Bernhardt e Réjane, reunidas em A la rP''~'~"''r'"'~"
sava no ~agro concerto que os três ou , anjos mus1c~s t~mps perdu na figura inesquecível da Berma, que ele quer ou-
dos pintores antigos devem dar no parazso, quando. vza vir em peças que lhe são familiares:
erguer-se para Deus, às dezenas, às cen3enas, aos mzlha-
res, a harmoniosa e multisonante saudaçao de todas as vo- . «A Berma em Andromaque, em Les Caprices de Ma-
nanne, em F edra, era daquelas coisas famosas que a minha
zes.» (9°) imaginação tanto tinha desejado ... Sentiria o mesmo encanta-
É no seu apego à voz materna que se enraizará o amor de mento [ .. .], se alguma vez ouvisse a Berma recitar os versos:
Proust pela música. Não há grande d~fere~ça, entre o realce dado "On dit qu' un prompt départ vous éloigne de nous
a uma e à outra: a «entoação» de V mteml e Seigneur, etc."
Conhecia-os pela simples reprodução a preto e branco
«uma entoação única a que se elevam, e_ a que ';e!vessan: que ~eles fornecem as edições impressas; mas o meu coração
sem querer esses grandes canto~esA qu.e ~ao os ~uszcos o:z- palpitava. quando eu pensava, como se pensa na realização
ginais e que é uma prova da extstenCla zrreduttvelmente m- de uma vzagem, que os iria ver por fim imersos efectivamente
dividual da alma ... Esse canto, tão diferente do canto dos na atmosfera e na luminosidade da voz dourada.» (9 3)
outros tão idêntico a todos os seus, onde é que Vinteuil o
teria ~prendido, ouvido? É por isso que cada artista par~ce , <? narrador compara a Berma com Gilberte, figuras intermu-
como que o cidadão de uma pátria desconhecida, esquectda taveis e evocadoras da mesma mulher primitivamente amada.
dele próprio, diferente daquela donde virá, rumando a ter- A voz não é apenas uma atracção artística, é também um reve-
ra, outro grande artista ... , os músicos não se r;cordam des- lador de alma:
sa pátria perdida, mas cada um deles mantem-se sempre
inconscientemente em uníssono com ela.» (9 1) «A voz da Berma, em que já não subsistia um único resto
de matéria inerte e refractária ao espírito ... tinha sido deli-
Não será a tal pátria materna, encarnada no canto da voz com cadamente amaciada nas suas mínimas células como o ins-
que a criança deseja fundir-se? trum.ento de um grande violinista em quem se deseja, quando
se dtz que tem um belo som, elogiar não uma particularida-
«Perguntava a mim próprio se a Música não se.ria o de física, mas uma superioridade da alma.» (9 4)
exemplo único do que poderia ter sido - se não ttvesse
havido a invenção da linguagem, a formação das palavras, Esta evoc~ção de P.roust. não se fica apenas a dever ao pra-
a análise das ideias- a comunicação das almas.» (92) ~er q_ue nos ~a. I~us~a. hteranamente uma verdade psicológica que
e. hoJe er:: ~la c1ent!flcamente reconhecida: a origem da nostal-
Poderá haver uma transposição literária mais ideal daquilo gia e do JUbilo, sentidos quando se está em contacto com o canto
que anteriormente concluímos? e com a música, deve ser procurada na voz materna, cuja audi-

(9o) Proust (M.), La Prisonniere, op. cit., tomo III, pp. 101-102. (93) Proust (M.), A l' ombre des jeunes filies en fleurs op. cit tomo 1 pp
440-441. ' ., ' .
(9') Ibid., pp. 256-257. 94
( ) Proust (M.), Le côté de Guermantes, op. cit., tomo II, p. 48.
(92) Ibid., p. 258.

102 103
Marie-France Castarêde

de uma presença reconfortante e


de e de abandono. A u~->~V''"""'
voz, e de sentimental contí-
nua», ao mesmo tempo o sonoro para que
a criança crie a sua própria continuidade, o da doçura ter-
na na língua falada, do refrão musical e do legato no canto.

A lição de

104
«0 meu ouvido ávido de ouvir
As notas de ouro da sua terna voz,
Todo o meu ser e todo o meu amor
Aclamam o venturoso dia
Em que, único sonho e único cuidado,
A minha noiva regressará!»

Paul Verlaine, La Bonne Chanson

A relação psicológica
Em La Leçon de chant, de Watteau, um guitarrista afina o
seu instrumento sentado num muro baixo que serve de pano de
fundo. A companheira, ligeiramente inclinada, ergue os olhos para
ele com um gracioso movimento do pescoço. A sua pose é lân-
guida. Folheia uma partitura e parece esperar pelo sinal dele.
O vestido, amplo e decotado, é elegante, tal como o barrete ver-
melho de veludo do músico. Imagina-se que vão comungar na

107
Marie-France Castarede

música porq ue ternura do olhar. Como se


musicais de W atteau a e vão cantar
verifica na maio r íntim a em
ao ar porque nele união
cena
ca é muita s vezes a que esta visão tão idílica é a lição de canto
entre a música, a natureza e o amor. A músi do nosso i~aginá­
intermediária do encontro galante, sob a form a de due tos- qua- c.laro está, mas sempre perfilada no horizonte
seu quadro, Watt eau
se sempre canto e instrumento - como em
Gamme no, como um~ obra de arte. Através do
mediada pelo
mostra-se sensiVe! ~uma relação
em La Leço n de ~m amor osa nasce nte,
onde o instrumento é uma guita rra, mais fun-
canto. A nossa. Vlsa~ pesso
flaut a trave ssa: Estes tltu- al refer e-se a uma perm uta
tiorba, ou em L' acco rd parfa it, uma criança
_ou CUJa con~m;na­ a: prim o amor e, tal é o amor da
los evoc am a aliança amorosa, cujo despert~ damental e mms antig
de ambos os sexos. pela ~igura materna. A esper
d~ no femmmo, ança de regres-
ção são assinalados pelo canto, sempre persomflca
~ar a e~se amor. pnmo~dial está associada às nem: Céu, Éden,
scuhn o. imag ens de todos
acompanhado pelo instrumento, sempre no 11_1a
São «musicais» as obras de Watt eau, mmt as veze s compara- os _Parmsos perdido~, seja como for que se desig
um de nós 0 de-
das às de Mo zart - embo ra este nada soub esse do pinto r, já es- Ol.Impo, ':Valhalla, 1dade do ouro ... Há em cada
feliz de comuni-
quecido na época de Cosi fan tutte_ ou de Don Giov ~nni - , ~u seJ<: m~xtmguível de regressar a esse mom ento
banid os.
aneo . «Mu- a mágo a e o desac ordo foram
mais justa ment e com as de Coup enn, seu conte mpor caçao tdeal, de onde
Para ? na~ador de A la ~echerche du temps materna cuja
respo nde «aos co- perdu, lição
a
sica de câmara» escreverá André Malraux, que voz
de canto e a leitura de Françors le Chmapi pela
bres de Rubens.» (2) essa prosa tã~ vul-
A nossa imag em de La Leço n de chant é uma
cena mais ternura natur~l ~ gran~e doçu ra insuflavam a
(3) ... O que o es-
infantil, próxima da inocência e dos prim eiros paraí s~s. Como em g~r «uma ~sp~cie de _Yida sentiment al contí
ta:
nua»
s~ mas a difer ença das cnto r sentm e enun cmdo pelo psica nalis
perso nagen
Watt eau, tem tamb ém duas
a, ou melhor, uma
gerações é flagrante: um adulto e uma cna~ç marc ada
mãe e o seu filho. A mulh er está sentada, mdol
entemente; tem «A experiência de uma comunhão sincrética
parti lhad os com
um porte nobre, mas na curva arredonda da do~ seus braços há pelo _banho de palavras e feita de prazeres
indis pens ável para a
ternura. Incli na levem ente a cabe ça para a cnan ça, que tenta a :rzae (ou com quem a substitui) é pe-
cnan ça ter ~ce~s? à comuni~ação
abraç a. Emb ora haja bele~a medi atiza da prim eiro
subir-lhe para os joelh os e que ela s.» (4)
o rosto. Nas covi- depors pelos signo s lingu ístico
na sua atitude, o que mais atrai a atenção é los gestos szmbollcos e
, que ganha forma
nhas das faces desenha-se o sorriso da alma experiência tão
no riso da boca. Em seguida, distingue-se a luz do olhar, por- (\ lição de canto é uma revivescência dessa harmoniosa-
ar o mais
que os olhos é que refle ctem a qualidade do sorri so e exprimem particular. Cantar bem será conseguir retom
as disposições
o fundo de ternu ra de que esse sorri so eman a. Não tem as so- me?~e possí_v~l essa_ comunicação_: na nossa opini ão,
lógicas
estetlcas ex1g1d~s s~o. a transposição
rugas porqu e expri me a paz. das dispo siçõe s psico
brancelhas franzidas, a testa não tem nhão.
vel comu
que se ~e!erem a felicidade
a ~ encar acol~ da, evoca as dessa prim ordia l e inefá
A espe ssa cabeleira loura , entra nçad
, A hç_ao d~ canto ~ u~a tentativa para a
rapa nga ou rapaz; ressuscitar, porque
mulheres de Botticelli. Finalmente, a cnan ça, demo ns- va da relaç ão pré-l ingu ística entre a
seu rosto subs tituti
os seus contornos são mais esbatidos, mas o e .uma sltua çao
der a «jogar» com
tra que acredita na vida e na doçu~~ das ~oisa tual que car-
s: .com o rosto cnan ça e a mãe (5). Aprender a cantar é apren
espm
erguido para a mãe, pede-lhe um beiJO, ma1s
r, p. 43.
(~) Pro~st (M.), Du côté de chez Swann , op. cit., tomo
( 5 ) Anzteu (D.), Psyc~a ~a.lys e et langa._ge, op. cit., p. 4.
pode sofrer contestação· nes-
(I) Uma obra de Watte au em três t~m por.
tema a música. ( ) Trata-se de um rac10nmo por analogia que fecundo e heurístico:
que a analog ia é um proce sso
L'intemporel, Paris, Galhmard, 1979, p. 1.
(2) Malraux (A.), te caso, parece u-nos

108 109
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

· - d · O
as suas vocahzaço es, a omma'-las ' .a afiná-las,
. E
a como
· 0 com a voz
também deve estar deste universo de
r altamente cultivado e soflst1cado. ste JOg d .. sensações criado pela correcta pedagogia do canto, para não fa-
um pa1ra . se espera, a qumu lar dele de uma forma aproximativa e vaga.
inicia-se JUnto de u_m . qul~,. neste domí-
d , io técmco e pslco oglCO. Na aprendizagem há duas nio, existem falsas certezas (9), largamente mantidas por alguns
esse omm ' t-ao ligadas indissoluvelmente: a técnica, que se professores, que receiam pôr-se em causa. Quando as sensações
vertentes que es ) 't ·
articula a partir de dados fisiológicos (sopro , ~ m{~o~ (campas-
(6) que
são comunicadas correctamente por alguém que as possui e as
so) musicais (leitura das notas) e a cor:du~a p~lCO ogica ' domina, o aluno, em vez de se limitar a reproduzir por osmose,
det~rmina e condicion a os progressos tecmcos. vai descobrindo progressiv amente a forma exacta como essas
sensações e a sua necessária coordenação (audição, respiração,
<<Na minha opinião, as dificuldades es.!enci~is ~u~ as per) articulação, projecção vocal) se gravam no seu corpo. No início,
soas sentem para descobrir a sua voz .sao pstcologtcas.» o aluno só pode cantar bem na presença do seu professor ... Todos
o dizem: alguns (estamos a pensar numa cantora profission al
m rofessor que se quer imitar, muito famosa), se estão longe, telefonam para redescobrirem no
Aprende-se a cantar com u. P . f'
f or ele simpatia e con Iança. Este aspecto outro lado do fio a sensação adequada, por imitação à distância!
porque se sente es lma p ' . timidade da relação peda-
é fundamental: f daAda .a C~t~=~:
gógica, a tra.ns. ere~cla
:e::Ositiva logo de início. Esse
rimeiros tempos, se opera de uma
Só muito progressivamente é que cada um vai adquirindo a possi-
bilidade de interiorizar essa sensação e a falculdade de a repetir
na ausência do professor. Assim se pode ver até que ponto é sub-
processo ~e Imltaçao qu.e, ,~?t ~ muito instrutivo. Há um mund~ til e impalpável o que essa aprendizagem requer. Os «trabalhos
forma mals ou me.nos, l~a 1 ' . ulatórias e auditivas que nos e de casa» não passam por nenhuma receita precisa, não há qual-
de sensações respiraton as, artlc 1 só se pode ir descobrindo quer mediatização, nem da linguagem falada, nem da linguagem
comunic.ado, mundo em queooé a ~~oa arte do canto é, ao mesmo
escrita ou instrumental: os instrumentistas têm as suas escalas e
progressiVamente. O paradox q ões naturais de descontracção
tempo, tão natural (regresso ! sensaç - os seus exercícios, mas o máximo que o aluno de canto pode le-
delicadas de audição) var consigo, recorrendo aos progressos da técnica, é uma cassete,
. -
na respuaçao , n a articulaçao ' sensaçoes têm de estar tecnicamente vestígio de uma lição viva, que tentará imitar em casa, sem qual-
e tão sofisticada (tod?s os bprocessosresultado fiável e estável).
· d e se qmser o ter um . d quer garantia de fidelidade no início. Quando a comunica ção
domma os,. s . m recital particularmente conseguid o e entre o professor e o aluno for já suficientement9 precisa, este
Quando assistimos a u d um grande cantor, ficamos sempre ad- poderá reproduzir sozinho o que tiver aprendido. E assim que, a
u~a grande cantora. ~u e m ue desempenham o seu papel: pouco e pouco, a sua autonomia vai sendo conquistada, o que
muados com a facilidade co q
.t bem que essa aparente facll T dade tirando os
ora, sabe-se mu: o. ,
dotes indispensavels, e sempre ru
'
f to de um trabalho assíduo e
lhe vai permitir cultivar a sua voz e deixá-la exprimir-se livre-
mente.
tenaz. A aprendizagem do canto é uma iniciação no mistério das
primeiras relações entre mãe e filho, antes da instauração da lin-
guagem. Um bom professor de canto só o será para um ou outro
d icológica como sendo distin- aluno, porque, para além das qualidades técnicas e da cultura mu-
(6) Daniel Lagache decreveu a (~c: ~t)» J~e é objectivamente descritível,
ta, por um lado, do compo~ame~tot e ,v~f~a' que implica um processo muito
e, por outro lado, da relaçao pslCO erapeu , (9) A fisiologia respiratória presta-se a mal-entendidos por vezes grossei-
particular. voix Paris Le Seuil, 1977, p. 9. ros (papel exacto do diafragma, por exemplo, ou dos músculos abdominais)
C) Rondeleux (L.-J), Trouver s~ 1\co ~mpliando-lhe o sentido, mas porque se trata de processos corporais difíceis de descrever e de controlar.
(s) Recorremos aqm ao !ermo ps!cana/ 1 , de canto parece-nos justificar A forma como se deve regular o sopro e colocar a voz dá azo a recomenda-
o que está em jogo na relaçao com o pro essor ções contraditórias por parte dos professores de canto.
esse recurso.

110 111
A Voz e os Seus
Marie-France Castarede

fessor e do aluno intervêm como de um entendi-


sical deverá ser de criar uma atmosfera de
(1°) mento dual erotizado
confiança com esse aluno,
ne- A a contrario é fácil de fazer: basta falar aos
recíproca, tal como a criança, nos alunos para se perceber que se trata de uma afei-
sores seus
cessita de uma mãe «suficientemente boa» para ir saindo aos
poucos dos seus solilóquios e ir-se iniciando nos balbucios da ção muito particular e muito profunda, com as transferências mais
comunicação. ou menos apaixonadas que lhe estão inelutavelmente associadas.
Por isso, ao longo das lições, cada professor deverá, à sua Cada professor tem mais ou menos consciência da sua «contra-
maneira, encorajar o aluno, reconfortando-o e felicitando-o com transferência» e controla-a de uma forma desigual... Esse controlo
oportunidade e discernimento, dado que o apoio amigável, ala- reside na sua capacidade de aceitar cada aluno com as suas carac-
vanca indispensável para progressos futuros, deverá ser uma cons- terísticas próprias, de o ajudar a desenvolver e a assumir as suas
tante de cada lição. O bom professor é justamente aquele que reivindicações de independência, e mesmo a sua partida. O ne-
sabe dosear a ajuda afectuosa, fomentando a tomada de consciên- gativo surge em força se o professor sente um desejo imperioso
cia e a autonomia progressiva do aluno, o que também evoca um e patológico de se ligar ao aluno, seja por que preço for; surge
certo modelo materno ... Visão optimista, claro, mas o que se igualmente nas relações dos professores entre eles e na rivalida-
procura na lição de canto é este tipo de ligação, com exclusão de que os opõe aos seus émulos respectivos.
das outras componentes, porque há uma idealização da relação De facto, um aluno lúcido sabe que tem de manter o mes-
pedagógica que tende a excluir dela, progressivamente, o ódio, mo professor enquanto a relação com ele for positiva, tanto téc-
o sadismo, a rivalidade, isto é, o negativo da relação com o outro. nica como psicologicamente, mas que tem de evitar a estagnação
Nunca se terá pensado na clivagem, que tantas vezes se cria, e, para progredir, terá de procurar algures um benefício diferen-
sobretudo no meio dos instrumentistas, entre o professor, aureo- te e complementar. Cada pessoa tem uma voz, a sua voz; o pro-
lado de todo o prestígio e objecto de todo o amor, e o infeliz fessor só pode ajudá-la a encontrar essa voz e, em seguida, o seu
ensaiador, que obriga a trabalhar numa aridez constrangedora e canto particular e profundo. Quanto ao que é preconizado ao
que é objecto de todos os sarcasmos? aluno na lição de canto, há certas recomendações que remetem
Aliás, se por acaso a ambivalência que surge deixa de ser para disposições psicológicas que são as disposições do bebé nos
tolerável e tolerada, dá-se uma ruptura; ou cria-se uma relação seus momentos de prazer.
pedagóg ica perversa , que vai prejudic ar o resultado vocal (a
idealização funciona no vazio, sem qualquer ligação com a rea-
lidade musical), o que por vezes conduz a um «fechamento» re-
A descontracção
laciona!, sob o signo de uma ou outra das compone ntes da
ligação materna. A descontracção psicológica ( 13 ), algo que é banal, mas fun-
Se voltarmos por um instante à imagem pictórica da lição de damental e difícil de conseguir, é a palavra-chave de toda a pe-
canto, compreender-se-á melhor por que é que a relação amoro-
sa que descobrimos nessa imagem está aquém1 da triangulação,
dado ser da categoria do «materno singular» C ): o sexo do pro- (l 2) Por isso, a nossa opinião mantém-se válida no caso de se tratar, por
exemplo, da relação entre um aluno masculino e um professor do mesmo sexo:
a relação de tipo homossexual é um substituto identificatório defensivo em re-
C0 ) Este termo foi empregue por Daniel Stern durante o 2.° Congresso lação à relação com uma mulher, simbolicamente mais próxima da relação in-
cestuosa com a mãe.
Mundial de Psiquiatria do Bebé, efectuado em Cannes, em 1983: <<transmodal
attunemen t».
C') O que queremos dizer é que canto, cujos mecanismos se assemelham
C1) Expressão de I. Barande, cf. Le maternel singulier, Paris, Aubier- aos da voz falada, exige uma tonicidade muscular importante: o desgate físico
-Montaigne, 1977. que é exigido ao cantor - sobretudo em caso de esforço vocal prolongado

113
112
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios

ua;"-VJ~H!do canto. A nossa e do seu controlo mas


HHvHf'oVHV.<U dos seus exa-
baraçar-nos de tudo o que em nós constitui geras neuróticos.
sarnento racional, lógico, discursivo, para nos
entregarmos a uma apreensão diferente do que passa pela
abertura, pela confiança, pelo jogo, pelo prazer, pelo amor a si Quanto ao sopro e à respiração, o seu controlo e a sua eco-
mesmo e ao outro. O aluno de canto é convidado a proceder a nomia são as condições próprias do belo canto. Na respiração
uma autêntica (1 4) «regressão» psíquica. Evoquemos estados psi- costa-abdominal, a única que é preconizada pelos foniatras e
cológicos suscitados pela lição de canto, amplamente corrobora- pelos professores competentes (1 6 ), o movimento inspiratório as-
dos e verificados pela experiência de muitos cantores. No início socia sem qualquer ruptura de ritmo um abaixamento diafragmá-
da aprendizagem do canto, no momento em que começam os tico com uma descontracção abdominal e um movimento de
exercícios, quando se pede ao aluno para se descontrair e brin- ,afastamento costal que provoca uma dilatação de toda a caixa
car com os vocalizos, há imagens que afluem e que vêm da in- torácica, sobretudo ao nível das costelas inferiores.
fância, imagens sempre associadas a recordações felizes de Este tipo de inspiração permite que os pulmões se encham
liberdade e de jogo. Essas recordações não remetem para situa- da forma mais eficaz possível; facilita o funcionamento do dia-
ções relacionais, remetem para instantes em que a expansão ale- fragma e revela-se extremamente interessante do ponto de vista
gre e livr~ do Eu conduzia a uma abertura espontânea ao mundo fonatório porque possibilita a elevação progressiva do diafragma
exterior. E esta a definição da atitude que se espera do cantor, e portanto o controlo da chegada de ar às cordas vocais, deixando
como testemunham as recomendações do pedagogo. As reticên- ao mesmo tempo os músculos do pescoço e dos ombros libertos
cias que a maioria dos indivíduos opõe à descontracção, resis- de qualquer tensão. Esse controlo efectua-se da forma seguinte:
tências inconscientes, provêm do facto de lhe ser impossível os abdominais moderam o seu impulso expirador, continuando a
conseguir perder o controlo de si mesmo e regressar a um es- opor uma certa resistência à elevação do diafragma, o que con-
tado de disponibilidade confiante. O controlo intelectual, com fere força e precisão ao movimento global. Esta forma de respi-
tudo o que nele existe de voluntário, enérgico, vigoroso, rigoroso rar tem uma grande vantagem funcional porque permite que a
- poder-se-ia falar aqui do controlo anal do pensamento (1 5) laringe desempenhe o seu papel de vibrador com o máximo de
pode ser contrária às exigências do canto. Poderemos dizer mais flexibilidade e liberdade; ao mesmo tempo, garante uma chega-
precisamente que o abuso do controlo intelectual, o seu hiperin- da de ar adaptável, poderosa e precisa, reunindo assim todas as
vestimento, a sua função de contra-investimento, a sua acentua- condições para um funcionamento vocal óptimo.
ção sintomática ou a sua utilização «perversa» são o oposto da Do ponto de vista psicológico, a nossa preferência pelo modo
conduta que se espera do cantor. Foi por isso que fizemos a ex- respiratório costa-abdominal (1 7) provém do facto de ele estabe-
periência: a primeira condição para cantar bem não é abdicar da lecer e manter viva, operante, uma espécie de comunicação en-
tre a parte superior e a parte inferior do corpo que, em muitos
casos, como se pode observar em inúmeras pessoas, coexistem
(ópera, oratório, recital) - é considerável. Portanto, não nos referimos ape-
sem uma continuidade reaL Tem-se a impressão de que há uma
nas ao aspecto psicológico: a descontracção a que nos referimos não é, evi- barreira intransponível que separa, ao nível da cintura, a parte in-
dentemente, muscular, mas mental.
(1 4) Empregamos o termo <<regressão>> na acepção tópica e temporal (o can-
tor é convidado a regredir para a zona do pré-consciente e para um estado
infantil de relação com a mãe). (1 6 ) Comut (G.), La mécanique respiratoire dans la parole et dans le
(1 5) A teoria do investimento anal do esfincter glótico tem o mesmo ponto chant, Paris, PUF, 1959. Dinville (C.), La voix chantée, op. cit.
de vista. Depois de se ter adquirido o controlo anal, a fonação passa a ser um subs- (1 7 ) Com exclusão dos outros dois processos respiratórios mais utilizados,
tituto da actividade esfincteriana. Cf. Fonagy (L), La vive voix, op. cit., p. 91. o torácico superior ou abdominal estrito.

114 115
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

não se limita ao volume dos


tronco, desde os
cular "uHliJ''-'"'a

«Há uma energia que atravessa o nosso corpo e nele


«Os músicos, tal como os artistas que se ~>Ynr''"''9"" subjaz durante toda a emissão ... No gesto vocal, participa o
vés do seu corpo - actores e dançarinos - ueve.nu.r::rn corpo todo e não apenas os órgãos vocais: sente-se uma
sua respiração, que se situa entre o consciente e o subcons- pulsão, uma tensão ao nível do diafragma e das regiões si-
ciente, entre a parte inferior e a parte superior do corpo, tuadas por baixo dele (músculos abdominais) e por cima dele
entre o físico e o espiritual... Se a respiração está mal colo- (caixa torácica). Se os apelos se vão tornando cada vez mais
cada ou inibida, perturba o metabolismo, paralisa o movi- enérgicos, sentem-se os músculos das coxas, das pernas e
mento, bloqueia a relação entre a parte inferior e a parte mesmo os das plantas dos pés, contra o solo. Mal essa or-
superior do corpo e impede, portanto, uma comunicação real dem de emissão sonora cessa, a corrente de energia desa-
com a riqueza criativa do nosso inconsciente.» C8) parece.» (2°)
Assim, o canto baseia-se no controlo do sopro e do seu rit- Há uma outra imagem que nos é sugerida por um defensor
mo melódico. Todavia, não convém esquecer que, no início, o da técnica napolitana (2 1), que baseia os seus princípios, à ima-
modelo da respiração é o do bebê nos períodos de repouso: res- gem do Vesúvio cuja força terrível sai das entranhas, na concep-
piração costa-abdominal, suave, contínua, livre, que vai subindo, ção Zen do Hara:
sem patamares nem obstáculos. Neste aspecto, estamos totalmente
de acordo com o que Dominique Hoppenot afirma: «Tal como na abordagem Zen do Hara, a origem da voz
situa-se no centro geométrico e vital do corpo do cantor. A
«Tal como as batidas do coração, o ciclo respiratório é voz é de facto o fruto das suas entranhas: cantar do ventre,
uma manifestação inconsciente da vida ... Infelizmente, pare- cantar de baixo. Em termos de oficio, é a base da descida
ce que perdemos, sem saber, a espontaneidade de uma res- do som. O som está bem lá em baixo, isto é, vai buscar-se
piração totalmente normal que devia ser a dos nossos à raiz das forças vitais do cantor, ao seu plexo, aos seus
antepassados remotos e que observamos normalmente nos abdominais, às suas tripas.» (2 2)
bebés, nos animais e durante o sono ... Convém esclarecer
desde já que a descontracção e a respiração são absoluta- É o que Roland Barthes exprime, à sua maneira, ao distin-
mente indissociáveis.» (1 9) guir o genocanto do fenocanto, num artigo muito conhecido en-

Esse movimento deve processar-se, como acontece nos bebês,


do ventre para a cabeça. Os professores do canto são unânimes (2°) Pierlot (J.), Le chant: le libre geste vocal, Paris, Danoel, 1983, p. 21.
em descrever essa coluna de ar, que abarca o corpo todo e vai (2 1) Nápoles exerceu sempre uma grande influência sobre o canto de ópe-
subindo até à laringe, como centro da emissão da voz. A respi- ra; muitos cantores, como Caruso, nasceram ou viveram nesta cidade. O falar
napolitano, tal como o canto, vem de baixo; é preciso «vomitare la voce>>.
Voltamos a encontrar aqui as exigências do canto budista japonês, evocadas
no capítulo 11.
(1 8) Hoppenot (D.), Le violon intérieur, Paris, Van de Velde, 1981, p. 165. (2 2) Bourlet (D.), Le Vlac, approche napolitaine du chant lyrique, Paris,
(1 9) Ibid., p. 164. Van de Velde, 1978, p. 44.

116 117
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

tre os musicólogos (23 ). Para ilustrar esta ~~'"'"'''""''"'· te, também se considera que um bom orador é que possui
tores: Charles Panzéra, para quem vai a sua pn~tere11C1a. uma torácica muito ampla, um pescoço
presonifica a arte do genocanto, e Dietrich uma voz de «stentor» (2 6 ). Os professores de ginástica insistiram
personifica a arte do fenocanto: durante anos na inspiração e na expiração torácicas superiores,
exagerando a tomada de ar torácica durante a inspiração e os mo-
<<Ao nível da estrutura (semântica e lírica), tudo é res- vimentos de contracção dos músculos torácicos e abdominais
peitado; e contudo não há nada que seduza, não há nada que durante a expiração. Estas recomendações não estão de acordo
faça sentir prazer; ... neste caso, é a alma que acompanha com os mecanismos da respiração profunda e natural. No canto,
o canto, não é o corpo.» (2 4) onde é preciso redescobrir esses mecanismos, a respiração costa-
-abdominal deixa o tórax descontraído e distendido, sem qualquer
E a propósito de Charles Panzéra: movimento muscular intempestivo das costelas, dos ombros, do
peito ou do ventre: as impulsões são discretas. Muitas mulheres,
<<0 grão é o corpo na voz que canta ... » (2 5 ) nomeadamente, por uma questão de vaidade, encolhem a barri-
ga (2 7), quando a respiração natural deve permitir a execução dos
Esta distinção parece-nos pertinente, embora não estejamos de movimentos alternados de descontracção e de firmeza. Um bom
acordo com a escolha dos artistas, ou melhor, queremos defender exemplo da oposição entre a respiração abdominal e torácica e
aqui. o barítono alemão Dietrich Fischer-Diskau (ainda que ele não da sua ligação respectiva com o prazer e a angústia (ou a agita-
precise, dada a sua fama internacional e o seu imenso talento musi- ção) é o movimento de terror, oposto ao de alívio: no primeiro
cal). Na nossa opinião, Roland Barthes deixou-se arrastar para um caso, as pessoas erguem o tórax, contraindo os músculos do pes-
julgame~to rápido pela .necessidade imperiosa de dar um exemplo coço; no segundo caso, descontraem-se num suspiro consolado.
que apmasse a sua teona. Vamos por partes ... Há cantores que re- O controlo da respiração natural é a estrada real do som, e a
velam um elevado grau de cultura e de requinte: Elisabeth Schwaz- economia do sopro - a arte do grande cantor - provém de uma
kopf poderia ser citada como o equivalente feminino de Dietrich respiração calma, profunda, exaustiva, que se opõe à excitação
Fischer-Diskau. Noutros, o que surge em primeiro plano é a sua angustiada (bloqueios) ou à energia forçada (atitude voluntarista).
natu~eza, ~ais selvagem, mais sensual e mais instintiva: poderemos Nesta mesma perspectiva da respiração calma e profunda há
refenr Mana Callas como testemunho exemplar desses artistas. No que abordar um problema técnico do belo canto: o ataque. O que
entanto, seria falacioso pensar que nestes enormes artistas não exis- é vivamente desaconselhado, criticado, vilipendiado, é o ataque
te, em graus diferentes, uma harmoniosa mistura de força instintiva brusco, o «golpe de glote» (2 8). Os cantores praticam regularmen-
e de controlo. A capacidade que têm de emocionar quem os ouve te certos vocalizos para abolir esse movimento, em muitos casos
passa obirgatoriamente pela conquista dessa unidade, embora possa involuntário, que confere ao ataque o seu carácter rude. Sob este
haver um dos aspectos que prevalece sobre outro, segundo os casos. ponto de vista, o ataque é um termo antinômico daquilo que, des-
No Ocidente, sobretudo há alguns decénios, a educação tendia de sempre, foi designado como ideal na arte vocal. Tanto no can-
a privilegiar a respiração torácica superior. Nas imagens colecti- to como na música instrumental, o ataque designa o início do som,
vamente aceites, o desportista ou o atleta continua a ser aquele
que enche bem os pulmões, que dilata o tronco. Inconscientemen-
(26 ) Estentor, personagem da Ilíada, <<de voz de bronze», tinha uma voz
tão potente como cinquenta guerreiros juntos.
(2 3) Barthes (R.), «Le grain de voix», in Musique en jeu 9 Paris Le Seuil (2 7) As cintas de <<bom porte>> eram usadas pelas meninas modelo da con-
1972, pp. 57-63. , , ' ' dessa de Ségur.
(24) Ibid., p. 59. (2 8) Nem sempre no caso da ópera, onde há certos papéis ou passagens
25
( ) Ibid., p. 62. cantadas que necessitam justamente de violência e dureza.

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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

na boca ou sob os dedos do 'nt.~>rrn·pj'" ainda e mais de acordo com o que


V~.U~'CUvUV de violência e dureza que, no stabelecerr1os como regra para o belo canto:
canto, remete para atitudes f-""-''"''"'<v.r.'''"" que devem ser banidas:
«Os golpes de glote são nos
«0 erro mais grave de muitos cantores é atacarem as estados de desconforto dos
notas com o peito ou com a garganta ... ; para que um ata-
que seja autêntico e puro, deve-se tentar conscienciosamen- Da mesma forma, a língua, na articulação da linguagem fa-
te abrir não só a parte anterior da garganta, mas também lada, tem uma actividade enérgica que se desenvolve em toda a
a parte posterior.» (2 9) cavidade palatal. No canto, embora mude permanentemente de
lugar, de acordo com os fonemas pronunciados como na fala, a
«0 golpe de garganta, golpe de peito, tal como é designado língua deve manter-se o mais possível apoiada na raiz dos den-
por Garcia (3°) (que, bem entendido, o condena) tem semelhan- tes no maxilar inferior, como acontece nos bebês. Assim, não
ças com o que se passa quando se tenta expulsar um corpo es- impedirá a passagem do sopro (3 4 ).
tranho ou uma poeira da garganta, ou quando se tosse.» (3 1) Se a arte do canto, nos seus aspectos melódicos, parece fa-
Ora, o que é que a psicofonética nos ensina? A glote, pri- zer-nos regressar ao estado do bebê feliz que gorjeia e vocaliza,
meiro nível na gênese das mensagens vocais, é o órgão das compreende-se bem que esse tipo de ataque glótico, condenado
emoções não articuladas: pelos professores, está directamente relacionado com os estados
de mal-estar e desconforto do mesmo bebê:
<<Nas emoções, a glote- como órgão totalizador dos mo-
vimentos corporais expressivos - reproduz os momentos es- «Nos recém-nascidos, o mal-estar, o desconforto expri-
senciais de certas actividades ancestrais. (3 2)» mem-se pela ausência das estruturas melódicas, pelas emis-
sões vocais abruptas, fragmentadas (bruchstücke) e pela
frequência das oclusivas laríngeas, seguidas de uma única
(2 9) Caruso: On the art of singing (Sobre a arte do canto). Esta citação é vogal.» (3 5)
extraída da obra de J. e B. Oott, La pédagogie de la voix et les techniques
européens du chant, lssy-les-Moulineaux, EPA, 1981, pp. 192-193.
0
(' ) O espanhol Garcia (Manuel Vicente) fez uma carreira de cantor em Es- O sorriso é o segundo sintoma da descontracção. Desde que
panha, Itália e França, e instalou-se em Paris onde, antes de 1820, foi professor iniciamos as nossas lições de canto, foi-nos sempre repetido que
do tenor francês Nourrit, e em seguida das suas duas filhas: a Malibran (cantora
muito apreciada por Rossini e por Musset) e Pauline Viardot-Garcia, que per- era preciso «sorrir». Claro que, fisiologicamente, como observa
petuará o ensino de seu pai num método de canto publicado em 1875. Se a Mali- C. Dinville (3 6), a atitude de tensão sorridente permite um ligei-
bran morreu prematuramente numa queda de cavalo e deixou uma memória curta, ro movimento dos lábios no sentido transversal, uma mobiliza-
mas imortal, em Stances à la Malibran de Musset, a irmã fez uma longa carrei- ção das faces e do véu do palatino, o que facilita a nitidez do
ra e foi muito apreciada devido às suas «três tessituras» (como Maria Callas),
como é confirmado pelos relatos de George Sand, Hector Berlioz e Théophile
timbre e a precisão da articulação.
Gautier. Em 1855, Manuel Patricia Garcia, filho de Manuel Vicente, inventou
o laringoscópio (espécie de espelho fixado na extremidade de uma haste de metal
que reflectia as cordas vocais da entrada da laringe) e, a partir de 1847, escreve (3 3 ) lbid., p. 90.
um Traité complet de l' art du chant. Marchesi, cantora de origem alemã, e Jenny (3 4 ) Jessye Norrnan, que tivemos a oportunidade de ver muitas vezes em
Lind, cantora sueca que Chopin conheceu no fim da sua vida, foram suas alunas. concertos públicos ou privados, tem uma boca enorme; quando canta, a sua
1
(' ) Arger (J.), lnitiation à l' art du chant, Paris, Flammarion, 1924 (cita- língua apoia-se contra os dentes de baixo.
da por J. e B. Oott, ibid., p. 193). (3 5) Lallen, p. 242, citado por Fonagy (1.), op. cit., p. 90.
(3 2) Fonagy (1.), La vive voix, op. cit., p. 49. (3 6) Dinville (C.), op. cit., p. 44.

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Marie-France CastariMe A Voz e os Seus Sortilégios

Consideramos essencial a H-"-v'""'' tudes tem a


também implica a '-'"''"'vuu energia em muito precisas e bem em que a
franza as sobrancelhas»), a subida das covinhas da face vontade desempenha um papel importante. No canto, tal como
tudo azul»), em suma, a expressão amigável do rosto. acontece no ioga do som (3 9), o corpo é percorrido pela energia,
estas recomendações são dadas por um professor que não só sorri pelo sopro da vida: desempenha um papel de mediador, de cai-
mas também aceita o nosso sorriso, o psicólogo faz logo certas xa de ressonância, passagem. Se comprimirmos a garganta, ob-
associações ... acabando por sugerir algumas evidências. O que se teremos sons semelhantes a resmungos, estertores, gritos ...
verifica são esquemas de imitação e de comunicação que não Reencontrar a vibração harmônica significa aprender a descom-
deixam de evocar a união do bebê com a mãe, quando o sorriso primir a garganta, a não procurar a força ... As cordas vocais não
recíproco e indefinidamente transmitido de um rosto para o ou- ~abricam o som. Como a roda do moinho, mantêm-se quase pas-
tro exprime a felicidade e a harmonia: sivas: não agem, deixam que algo as faça agir. Como as velas
do barco, limitam-se a esticar-se, e, sob a acção do sopro, vibram
«Quando os traços do rosto estão crispados devido ao sobre si próprias. No trabalho da voz, a garganta mantém-se aber-
descontentamento interior, o resto do corpo acompanha esse ta («gola aperta», em italiano), descontraída, como um grande
pendor nefasto. Não há nada melhor do que o esboço de um tubo livremente aberto. «Sente-se» a acção do sopro ao nível do
sorriso para descontrair o corpo todo e gerar um estado de ventre, dos rins, e a acção vibratória na cabeça, por vezes no
espírito positivo» (3 7), confirma Dominique Hoppenot. peito, mas nada se deve sentir ao nível da laringe. A voz humana
é passagem, não é actividade da garganta, é passividade. A quie-
Há muito tempo que se conhecem as afinidades que existem tude, estado psicológico do cantor, assemelha-se muito ao esta-
entre os instrumentos de cordas e a voz; ora, «O violino produz do de espírito do místico.
o som com as vibrações do corpo. Se o violinista estiver tenso, Tal atitude exige, ao mesmo tempo, liberdade e concentração.
se não se entregar realmente, bloqueia o som. Se estiver total- Não é ela que nos permite sentir a disponibilidade confiante do
mente liberto, descontraído, confiante, amante e generoso, o vio- bebê e, simultaneamente, a abertura do crente que, rendido e
lino tocará melhor» (3 8). humilde, se aproxima do divino? O canto foi sempre uma via
Parece-nos que estas afirmações podem ser totalmente trans- privilegiada de ligação com a natureza e o sagrado:
postas para o cantor. O sorriso que lhe ilumina o rosto passa a
ser o equivalente simbólico de um estado de prazer e de confian- «A música é um ioga e o canto (coral) é uma via que
ça, evocando os primeiros tempos da intimidade feliz com a mãe. conduz aqueles que o praticam para uma melhoria física,
Na idade adulta, o sorriso assinalará o acolhimento amável e mental e espiritual. Os cantos são porções do Grande Ser,
benevolente do outro e a procura do contacto: esta atitude profun- revestidos de uma forma sonora.» (40 )
da é a atitude do cantor, e deve ser sempre natural e não imposta.
A tranquilidade que o cantor deve sentir também deve asse- Na nossa opinião, o momento de interiorização a que o alu-
melhar-se à tranquilidade do bebê. Essa tranquilidade tem muito no é convidado durante a lição de canto é impressionante. Em
em comum com a descontracção: o cantor deve assumir uma certos casos, a lição é bastante curta (meia hora), e o professor
atitude mental e corporal muito diferente da que assume na vida
normal. Uma grande parte das nossas condutas e das nossas ati-
(3 9 ) O ioga do som, como o seu nome indica, centra-se na pronúncia li-
vre e repetida de mantras que são escolhidos em função das partes do corpo
(3 7) Hoppenot (D.), op. cit., p. 150. que é suposto descontraírem. ,
( ) Geoffray (C.), Texte de César Geoffray, Paris, Editions à Creur Joie,
40
(3 8 ) Entrevista de Rony Rogoff, Le monde de la musique, Setembro de
1982. p. 373.

122 123
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

está muito e é muito solicitado. O que se


é uma com a vida O que
desembaraçarmo-nos o mais das
do nervosismo, dos das
po do relógio, tempo social, tempo do
trangimento, da disciplina, e redescobrir o A grande cantora, e actualmente professora, Elisabeth
tempo da vida privada, do ser, do jogo, da infância. Todos os Schwarzkopf, insiste no legato:
professores de canto falam do imaginário do cantor. Provavel-
mente querem referir-se ao estado de livre associação, de descon- «0 legato é a arte do tenuto, do fraseado, é a arte
tracção psicológica e mental, ao estado dos sonhos de olhos de passar de uma nota para outra sem qualquer ruptu-
abertos, ligados a essa zona do pré-consciente de que Freud ( )
41 ra.» (43)
fala na sua primeira tópica. Durante o estado de vigília, o can-
tor - ao contrário do sonhador - não pode ter acesso aos con- Por seu lado, Gisele Brelet, filósofa e música, escreve:
teúdos psicológicos inconscientes, mas mantém-se ligado a
lembranças não actualizadas, que evoca mal a música o convida «0 fraseado, ritmo da voz, é também o ritmo da melodia
a isso. que a voz irá ouvir. A melodia traduz em sons a curva tem-
A interiorização, tal como a definimos, ou seja, como uma poral do gesto vocal. Todos os instrumentos obedecem ao
disponibilidade de nós mesmos para o surgimento do pré-cons- fraseado, que é o ritmo original da voz; e, seja em que ins-
ciente, está próxima da meditação, se nos referirmos, numa ou- trumento for, o ideal do canto expressivo e mesmo das se-
tra perspectiva, à atitude mística - por exemplo, à do iogue que quências de notas tocadas numa cadência rápida é imitar,
invoca o divino, repetindo mantras. como a melodia, a vida temporal da voz ... O modelo dos ins-
trumentos de cordas e de sopro é manifestamente a voz hu-
mana.» (44 )
O legato
É graças ao legato que o cantor se adapta às curvas e às
Um segundo elemento fundamental da pedagogia do belo volutas da melodia. Ora, essa voz cantada, que se distingue pelo
canto é o legato («ligado», em italiano). De uma certa forma, o controlo do sopro, provoca uma sensação particularmente agra-
controlo que o cantor pretende adquirir tem por finalidade o dável:
legato. «Chi non lega, non canta» é um velho ditado italiano que
significa: «0 carácter melódico, a elevada regularidade da curva
melódica, está estreitamente ligada à expressão das emoções
«Quem não liga, não canta.» ternas»,

O barítono Faure, entre outros, dá-nos a sua concepção de


legato:
( 42 ) Faure (J.-P.), La voix et le chant, Paris, Heugel, 1886, citado por Oott
(
41
O pré-consciente contém os pensamentos latentes representados em pa-
) (L e B.), op. cit., p. 372.
lavras, tudo o que pode surgir no nosso espírito quando sonhamos de olhos ( 43 ) Afirmações proferidas em Tours (Junho de 1981) durante um curso
abertos ... No que nos diz respeito, quando falamos do «imaginário>> do can- de interpretação.
( ) Brelet (G.), L'interprétation créatrice, Paris, PUF, 1951, p. 236.
44
tor, referimo-nos a essa zona psíquica do pré-consciente.

124 125
Marie-France Castarede

como escreve Ivan E somos levados a referir uma outra característica vocal que
com a ternura e diminui na os do canto procuram dar aos seus alunos: a espes-
agressivas (46 ). Por isso, as características belo canto legato sura, característica que, à primeira vista, parece desconcertante
são também as que os bebés preferem. Os psicolinguistas e os porque a voz falada esforça-se, sobretudo quando expõe, expli-
psicofonéticos revelam-nos a nítida predilecção dos bebés por ca ou profere uma conferência, por ser distinta, argumentativa e
uma fala melodiosa. O ideal do cantor é redescobrir, para poder convincente; ora, a disposição interior a que o aluno é convida-
comunicar com o seu público e «encantá-lo», a qualidade da voz do quando canta é muito diferente. Elisabet Schwarzkopf fazia
da mãe quando, presente na sua continuidade de bondade, tran- disso o seu leitmotiv nas suas aulas em Tours:
quiliza o filho com uma voz harmoniosa e tema.
Sob este ponto de vista, será necessário opor, como faz «Não se preocupem com a luminosidade, com a força,
Roland Barthes, a articulação à pronúncia: dizia ela aos seus alunos, preocupem-se com a sonoridade ...
A luminosidade da voz não é como um laser que mata ... Ima-
«A articulação é o simulacro e a inimiga da pronúncia; ginem que têm uns braços roliços e que querem abraçar ...
deve-se pronunciar, não articular; porque a articulação é a Nunca sejam duros ... Procurem o som dentro de vós ... O som
negação do legato; a articulação pretende dar a cada con- deve ser espesso em vós, no interior de vós ... não demasia-
soante a mesma intensidade sonora, quando, num texto mu- do luminoso ... mais cheio.» (48 )
sical, uma consoante nunca é a mesma: cada sílaba, longe
de ter saído de um código olímpico dos fonemas considera- Essa voz que acaricia e embala - será preciso voltar a
do definitivo, deve encaixar-se no sentido geral da frase. sublinhá-lo? - tem afinidades com a voz original dos princípios
Articular é sobrecarregar o sentido de uma claridade para- da vida, aquela que proporciona segurança e calor.
sita, inútil mas nem por isso luxuosa. E essa claridade não
é inocente; arrasta o cantor para uma arte, perfeitamente
ideológica, da expressividade, da dramatização: a linha me- A projecção vocal
lódica esvai-se em estilhaços de sentido, em suspiros semân-
ticos, em efeitos de histeria. Pelo contrário, a pronúncia Last but not least, a projecção vocal é outra recomendação
mantém a coalescência perfeita da linha de sentido (a fra- capital da lição de canto. O que importa é comunicar ao Outro
se) e da linha da música (o fraseado). Nas artes da articula- o que exprimimos. O movimento respiratório começa por ser uma
ção, a língua, mal compreendida como um teatro, uma troca: recebemos ar e retribuímos com o nosso sopro. O que a
encenação do sentido um tanto kitsch, irrompe na música e correcta pedagogia do canto nos ensina é a colocar a voz de
perturba-a de uma forma inoportuna, intempestiva: a língua forma a que não seja dura, agreste, ou metálica, mesmo em de-
coloca-se à frente, é o importuno, o chato da música; na arte trimento da luminosidade. O que encanta o outro e provoca a sua
da pronúncia, pelo contrário (a de Panzera) é a música que disponibilidade e a sua aceitação, é escutar uma voz aérea, uma
vem até à língua e redescobre o que nela há de musical, de voz que plana, densa e calorosa, procurando a ressonância recí-
apaixonado.» (47 ) proca, sem a forçar .ou constranger. A voz não se deve apoiar na
parte anterior da boca, mas atrás e em cima, em direcção ao véu
do palatino. Se assim for, a voz expande-se em cúpula e em

( 45 ) Fonagy (L), op. cit., p. 117.


46
( ) lbíd., p. 311. ( ) Afirmações proferidas em Tours (Junho de 1981) durante um curso
48

(
47
) Barthes (R.), L'obvíe et l'obtus, Paris, Le Seuil, 1982, p. 250. de interpretação.

126 127
!Ylarie-France Castarêde A Voz e os Seus

""''"V'""" de acordo com certas metáforas muito


de canto. Não cantamos nós: cantamos para o a
outro; exprimimos qualquer coisa a se canta, seria aquele
esse alguém é o público - , uma un.">"'-'1'.'''"· Não será também o que mais A música
Em conclusão, é preciso notar que não há uma peda- moderna- ou melhor, uma certa forma de música moderna-
gogia do canto, há várias, através das épocas, dos povos e das pôs decididamente de parte este tipo de canto. Será de pergun-
culturas (49 ). Os elementos que acabámos de referir são conside- tar se esta ou aquela música do nosso tempo, que destrói o ideal
rados como sendo constitutivos do belo canto, tal como hoje em do canto legato, melodioso, não romperá também com uma cer-
dia é possível defini-lo na Europa. Pensamos que não haveria ta simbologia materna, ruptura que é igualmente expressa num
qualquer desacordo acerca de nenhum destes aspectos entre juízes certo tipo de pintura moderna, em que o sujeito humano já não
de diferentes nacionalidades europeias: notamos igualmente que surge intacto, mas dilacerado, estilhaçado, fragmentado.
há amplas convergências com a pedagogia mais moderna dos ins- Na nossa opinião, a cultura da voz deve integrar o que a ex-
trumentos de corda. Os aspectos psicológicos, ou melhor, psicoa- pressão vocal comporta de inconsciente, de bárbaro e de auto-
fectivos que desenvolvemos não são exaustivos, mas não era mático em actos voluntários, capazes de a transformar num
nossa intenção insistir de uma forma demasiado pormenorizada instrumento de entendimento, compreensão e intercâmbio. O can-
na fisiologia da respiração, domínio dos foniatras, que a conhe- to, domínio tão idealizado como a música, tem uma função ar-
cem melhor do que ninguém (5°). tística e psicológica, como demonstraremos mais adiante à luz
As características do belo canto, tal como o evocámos, dedu- dos conceitos psicanalíticos, dissociado das incitações mortíferas
zem-se de todas as regras, empíricas ou ponderadas, que estru- do canto guerreiro, nacionalista ou ideológico.
turaram a música europeia, desde o canto gregoriano até aos
nossos dias. São expostas de uma forma exemplar nas melodias
e nos lieder, que constituem o repertório mais familiar do can-
tor solista durante um recital, que, aliás, continua a ser a situa-
ção que melhor se presta à comunicação íntima do artista com
o público: num recital, o cantor entrega-se totalmente, sem o
auxílio da acção dramática, do libreto, dos trajos, da iluminação,
da encenação... As características do belo canto que evocáp10s
aplicam-se perfeitamente a esta forma de expressão (5 1). Na Ope-
ra, as árias são moduladas em função dos imperativos da parti-
tura e da acção: a veemência, a cólera, a agressividade, a rudeza
podem ser obrigatórias, tal como a ternura, a suavidade ou a
doçura. A variedade dos papéis exige acentuações e entoações
totalmente diferentes e a mesma cantora pode interpretar perso-
nagens tão diferentes como Tosca, Traviata, Lady Macbeth,
!solda, Dalila, Medeia, Norma: Maria Callas interpretou mais de

( ) Oott (J. e B.), op. cit.


49

eo) Cf. Comut (G.) e Dinville (C.), op. cit.


e') Cf. o clima <<matemO>> do lied, tal como o evocaremos mais adiante.
128 129
Capítulo V
Para uma abordagem psicanalítica da voz
«É pela voz que a consciência se abre ao
inconsciente, e que o homem se abre a si
próprio e ao outro.»

D. Vasse, L'ombilic et la voix

Freud e a música
Como se sabe, Freud afirmava ser «ganz unmusikalisch»,
totalmente não músico, «mas tratava-se certamente de uma de-
negação porque, segundo o testemunho de Eissler (1), possuía um
bom sentido musical».
Quando Freud evoca a música vocal (não fala da música
instrumental), refere-se sobretudo ao libreto. De facto, revela a
protecção contra o extravasamento emocional, por aparição sono-

(') Eissler (K. R.), citado por Cai'n (J. e A.), Psychanalyse et musique,
Paris, Les Belles Lettres, 1982, p. 108.

133
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

ra, que, para a racionalidade e a análise. Freud hora a seja o o totalmente músico" po-
sempre gostou de realçar o poder de deria ser que, por motivos que só a ele
exemplo, o poder manifestado por tende a evitar ou a essa
onde, servindo-se do seu cinzel, supera «os vestígios de uma
emoção que se extingue» (2). Em Freud, há seguramente um po- Para além da voz materna, Freud também deve ter ouvido a
tencial demasiado intenso ou demasiado contraditório de afectos de Nannie, que cantava canções de embalar na sua língua, o
que são despertados pela música: o auditivo recordava-lhe, em checo. Ora, como observa Didier Anzieu, Freud compara o in-
primeiro lugar, a voz materna, calorosa e presente, que devia ter consciente a uma língua estrangeira (5). E também foi sensível a
envolto num banho sonoro protector «esse primogénito preferi- uma outra voz familiar: a voz de Emmaline, a avó materna, evo-
do», numa relação de que o pai, nitidamente mais velho, tinha cada por Martin Freud:
sido mais ou menos excluído. Essa jovem mãe «muito música»,
como alguém a descreveu, devia ser ainda mais sedutora quan- «Aos sábados, quando ela vzvw connosco, ouvíamo-la
do cantava melodias ou canções de embalar. No entanto, o sen- cantar orações judaicas, com uma vozinha firme, mas melo-
timento oceânico sempre inspirou desconfiança a Freud, que, em diosa.» (6)
Mal-Estar na Civilização, chegou mesmo a declarar:
Como refere Jones, Freud acabará por esquecer o checo e por
«Em mim próprio, é impossível descobrir tal sentimento ... » recalcar não só a voz materna mas também a voz da avó, que
associava às salmodias religiosas C). A voz envolve, acaricia, em-
E acrescentou: bala; é sempre efracção do corpo ... O bebé, antes de ver o rosto
da mãe, ouve-lhe a voz: umas semanas mais tarde, a vista virá
«E depois, é difícil tratar cientificamente dos sentimen- introduzir a distância.
tos.» (') Retomando uma classificação de Charcot, Freud considera-se,
isso sim, aquilo que define não como um auditivo, mas como um
Ora, a música, mais do que todas as outras artes, implica a «visual»:
possibilidade desse regresso ao seio matemo, essa entrega regres-
siva a um paraíso perdido que não possui referências espaciais ... «Todas as minhas recordações de infância são unicamente
Em Psychanalyse et musique, Jacques e Anne Ca'in afirmam o de carácter visual; são cenas elaboradas plasticamente.» (8)
seguinte:
Todas as suas recordações e também uma boa parte dos seus
«Será nesta música natural, cujo paradigma perfeito é a sonhos. O sonho é, em primeiro lugar, uma transcrição visual do
canção de embalar, e no fundo sonoro da fala com um acom-
panhamento não codificado, que reside o fascínio compulsivo, 4
( ) Cai:n (J. e A.), op. cit., p. 127.
ou o seu inverso fóbico, em torno do qual cada pessoa irá C) Anzieu (D.), L'auto-analyse de Freud, Paris, PUF, 1975, tomo 1, p. 39.
depois estruturar o seu interesse pela música? Neste sentido, 6
( ) Freud (M.), Freud mon pêre, Paris, Denoel, 1975.

"o totalmente não músico" ou, o que no fundo é idêntico em- C) Pàra Freud, o sonoro só seria interessante se fosse verbal. A mãe tinha-
-o ensinado a ler e a escrever em alemão depois de terem emigrado para Viena,
enquanto a primeira infância em Freiberg tinha sido marcada pelo ídixe, o checo
(2) Freud (S.), Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Gallimard, 1976, ' e o canto, objectos de recalcamento. O recalcado voltou a surgir no interesse pelo
p. 31. libreto das obras vocais, compromisso entre o verbal escrito e a música.
e) Freud (S.), «Malaise dans la civilisation>>, Revue Française de
8
( ) Freud (S.), Psychopathologie de la vie quotidienne, Paris, Payot, 1967,
p. 55.
Psychanalyse, tomo 34, Janeiro de 1970, p. 10.

134 135
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

mesmo que '-"11"'"'" ou sons. Além


em muitos dos sonhos do é
'"u.auu'"'''u" mantido à distância: para
anteriores assim um
«Terra entrevista apenas de teórico cientifico como VU•UtUVrepre-
voada sobre Roma (cujo anagrama sentar um apelo materno, cujo sensível só 0 podia desviar
É proibido aproximarmo-nos desse objecto ou que ele dos seus objectivos "espirituais".» (' 1)
se aproxime e correr o risco de um contacto físico, um to-
que recíproco: só podemos vê-lo ao longe.» (9) A voz e a música estão próximas do puro afecto, isto é, do
não representável. Através da psicanálise - a sua obra - , Freud
Didier Anzieu demonstra que, em Freud, este tipo de sonho pão deixou de acreditar na capacidade da consciência e da razão
revela uma dificuldade particular: para controlar o inconsciente e o pulsional, tal como o cavaleiro
que doma a sua montada:
<<A dificuldade que a criança tem de se defender do seu
próprio desejo incestuoso em relação à mãe, e depois em .. «Onde existia o. Isso, deve surgir o Eu», o que pode sig-
relação às mulheres que a substituem, é acentuado pelo pe- mücar: «Onde hav1a o afecto e o inconsciente, devem sur-
rigo que ela sente de encontrar nelas não só uma resposta gir a representação e o consciente» ...
positiva, mas sobretudo uma tal solicitação amorosa que o
seu próprio desejo deixe de poder ser refreado.» (' 0 ) A música é do domínio da mãe e a psicanálise é do domí-
nio do pai: a psicanálise gera a subordinação do sensível ao in-
Por outro lado, para Freud, o olhar converte-se em função de telectual, a predominância da paternidade, feita de cultura e de
conhecimento e de elaboração científica. Guy Rosolato explica as linguagem, sobre a maternidade, feita de natureza e de sentimen-
ligações que existem entre o visual e o auditivo: to.
Como conclusão, gostaríamos de ilustrar estas oposições re-
«0 visual permite mantermo-nos a meio caminho entre correndo à figura e à obra de Nietzsche, contemporâneas das de
um auditivo pertencente ao pai e à lei, e o auditivo que se- Freud. No seu livro, Freud et Nietzsche (' 2 ), Paul-Laurent Assoun
ria apenas fixação no sensível materno, sensível em que tam- destaca ao mesmo tempo as afinidades e as incompatibilidades
bém pode participar o visual, numa relação primária. Isso que caracterizam os seus destinos e as suas obras e refere a sua
explica por que é que o visual da observação, racional, cien- «estranha contemporaneidade». Nietzsche é doze anos mais ve-
tifico, que tem por objecto a natureza como substituição da lho do que Freud; viveu muito cedo o seu período de fecundidade
mãe, e que contribui para o controlo das paixões, dado não criadora, ao passo que a obra de Freud só será construída na
ceder ao sentimento oceânico nem ao sentimento de estranhe- segunda metade da sua vida. Nietzsche mergulha na demência no
za, exclui o auditivo. É possível esboçar uma dialéctica: à momento em que Freud descobre a psicanálise; morre em 1900,
relação materna, dominada pelo sensível afectivo, auditivo e ano em que Freud publica A Interpretação dos Sonhos. Freud
também visual, sucede uma prevalência da distância e ape- confessa o prazer que teria tido em estudar Nietzsche, prazer que
recusou a si próprio para não ser estorvado nas suas próprias

(9) Anzieu (D.), «Vers une mátapsychologie de la création>>, Psychanalyse


du génie créateur, Paris, Dunod, 1974, p. 24. C') Rosolato
2
(G.), in Cai:n et al., Psychanalyse et musique, op. cit., p. 158.
C0) Anzieu (D.), op. cit., p. 24. (' ) Assoun (P.-L), Freud et Nietzsche, Paris, PUF, 1980.

136 137
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

elaborações, e considera que a o ler é muito os seus comentadores não se mos-


significativa porque a como, na nossa traram pelos problemas da voz e da audição
opinião, ouvir música. , . . . editores da Standard Edition nem sequer incluem estes termos no
Thomas Mann, ao as tematlcas freudiana e metzs- seu índice). Paralelamente aos trabalhos dos psicólogos
chiana, revela que ambos se int~ress~ram_ pel? ~~ciona~; Freud, experimentalistas, que se desenvolveram consideravelmente nes-
para o converter em objecto de mvestlgaç.ao c1ent1flca~ N1e~zsche, tes últimos anos em torno dos fenômenos audiofonatórios do bebé
para preconizar o seu regresso. Freud afirma ser racwnahsta: (depois de se terem interessado sobretudo pelos fenômenos da
visão), parece que os meios psicanalíticos se vão dedicando mais
«Que o intelecto - o espírito científico, a razão ----:: pos- a estas questões. Como recorda Alain Mijolla, na sua «introdu-
sa, um dia, ser ditador da vida psíquica dos humanos! E esse ção» à obra Psychanalyse et musique, os analistas, à excepção
o nosso voto mais ardente.» ( 13 ) çle Théodor Reik, escreveram pouco e mediocremente sobre este
assunto, «COmo Se estivessem desprovidos das muletas da SUa
Nietzsche, por seu lado, deixou-se invadir pela irrupção das tranquilizadora identificação a Freud ... » (1 6).
forças inconscientes, sendo por isso ~m músico, um poeta, um Agora que a vida cultural revela um aumento de interesse
visionário, um místico. Em contrapartida, faltaram-lhe as. defesas pela música, tentemos analisar uma das suas fontes mais funda-
neuróticas que preservaram Freud, expond.o-se de~asm~o a? mentais: a voz. Como definir uma abordagem psicanalítica da
inconsciente, o que, a pouco e pouco, o fm conduzmdo a psi- voz?
cose (1 4 ). .
O contraste entre o culto da música, inseparável do metzs-
chianismo e a insensibilidade à música, característica do intelec- Voz entre corpo e linguagem
tualismo 'freudiano (1 5 ) é impressionante. Freud mantém-s.e
dependente da metafísica da representação. Comparando os do1s Entre o instante em que o ser humano nasce e o instante em
génios, Paul-Laurent Assoun destaca. a presença do mo~elo pa- que morre, percorre-se o espaço de uma vida, a trajectória de uma
terno em Freud, ao passo que, em N1etzsche, o modelo e essen- voz que grita, vocaliza, até se transformar em linguagem, carac-
cialmente materno. Em Freud, o respeito da Lei passa pelo terística da espécie humana, voz que acompanha e gere os sen-
respeito do Pai; em Nietzsche, a Lei só se revela como figura timentos por intermédio de um sopro, que cessará com a morte.
da doença-moralidade, que veio perturbar a ordem da natureza e Segundo os cientistas, nesse último instante, o aparelho auditivo
da inocência primitiva. . é o último a deixar de funcionar, o que ocorre algumas horas,
Se Freud manteve relações complexas e amb1valentes com o ou talvez alguns dias, depois daquilo que se designa por «morte
funcional» 7).e
A voz é o laço ténue, não palpável, não visível, entre a não-
(13) Freud (S.), Nouvelles conférences sur la psychanalyse, Paris, Gallimard,
-vida antes do nascimento e a não-vida após a morte. Como
1971, pp. 226-227.
(14) Louiss Corman, no seu livro ,N_ietzsch~, psycholo_gue_ d.es projondeurs Denis V asse afirma, em L' ombilic et la voix (1 8), o umbigo é o
(Paris, PUF, 1982), explica que o d~lmo_ d~ N1etzsc~e nao e s1~tom~ ~e uma local onde o corpo se fecha, mal se solta o primeiro grito; a voz
paralisia geral e inclina-se para o d1agnost1co de ps1cose esqulZofremca. Cf.
Nota B, p. 410, op. cit. , . .
cs) Poder-se-ia acrescentar: e tambem do mtelect~ahsmo de LaAca~··· Guy
(1 6) Mijolla (A. de), «En guise d'ouverture>>, Psychanalyse et musique, op.
Rosolato nota que, para Lacan, a música não é um obJecto de referenc:a: :<No
cit., p. 9.
índice de Ecrits, que comporta mais de trezentos no~es de autores: 1!-ao figu-
ra um único músico ... Não me lembro de o ter ouv1do falar de mus1ca.>> Cf.
, (1 7) Relatado por Porte (J.), Encyclopédie des musiques sacrées, Paris,
Editions Labergerie, p. 12.
«La haine de la musique>>, op. cit., Psychanalyse et musique, pp. 158-159.
(1 8) V asse (D.), L' ombilic et la voix, Paris, Le Seuil, 1974.

138 139
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

é o que permite que o corpo para se


convertendo progressivamente em
Efectivamente, não há nada que ao corpo
do que o grito. É o que nos aproxima dos com os quais
partilhamos esse modo de expressão: poder-se-ia perfeitamente «Quando falamos de origem, encontramos o grito: a
defini-lo como «selvagem», opondo-o, por exemplo, a «civiliza- criança que nasce ... O grito é essa voz cheia, a explosão na
do» ou «culto» ... Toda a gente sabe que pode gritar, mas nem rejeição, o arcaico a que se chamará de regressão.» (2 1)
sempre se consegue. Basta observar as dificuldades encontradas
nas terapias de «bio-energia» quando se pede aos participantes Tanto o grito do recém-nascido como todos os outros gritos
para gritarem, ao mesmo tempo que batem em colchões com uma são, ao mesmo tempo, emitidos e ouvidos. Mal um bebé solta
raqueta: há muitos que se esganiçam, asfixiam ou ficam sem fô- um !Srit?, as p~ssoas que o rodeiam interpretam-no como sendo
9
lego ... O grito fica «preso» na parte posterior da garganta (1 ). a pnmerra mamfestação vital da criança. Deixa de ser apenas um
O grito é uma voz inarticulada, e isso, que é comum ao ho- acto corporal, próprio do sujeito, e é recuperado por quem o
mem e ao animal, opõe-o de imediato à linguagem, que recorre à rodeia, que o vai transformar em apelo, em meio de comunica-
articulação dos sons - isto é, sob um ponto de vista fisiológico, ção (2 2); depressa se converte em pedido:
à utilização de um outro nível orgânico, o da zona faringo-buco-
-nasal - e, sob um ponto de vista psicomotor, a uma aprendiza- «Conhece-se o destino excepcional a que está votada esta
gem prévia. O grito também é sinônimo de violência, poder e reprodução da descarga motriz verbal: na medida em que
energm: uma mãe "suficientemente boa" reage a ela de uma forma
pertinente, o bebé descobre que dispõe de um meio podero-
«0 grito prefigura a potência da voz ... É o maior ruído so para realizar os seus desejos. A linguagem falada é uma
que o corpo pode produzir "naturalmente". Será uma forma elaboração ulterior deste grito, de que conserva sempre uma
de se impor, ou pelo menos, de atrair a atenção.» (1°) parte da eficácia mágica, e mesmo, em certos casos, a fala
continuará a ser o meio privilegiado de satisfação quase
O grito voluntário não gera grandes problemas na idade adul- alucinatória do desejo.» (2 3 )
ta: as pessoas sabem porque o emitem, visto inscrever-se em ac-
tividades codificadas, providas de um sentido para nós e para os O grito é também a expressão de um sentimento: surpresa,
outros. O grito involuntário é muito diferente: por vezes, escapa alegria, triunfo, fúria, cólera, dor ... A lista poderia continuar, mas
totalmente ao controlo do indivíduo que, não o podendo impe- encontrar-se-ia sempre uma emoção forte, demasiado forte para
dir, assiste como espectador impotente a esse fenômeno que pro- ser contida, dominada: o grito é a descarga dessa emoção. Claro
vém dele. Por vezes, ao senti-lo chegar, pode mesmo retê-lo que essa emoção pode exprimir-se de outras formas, todas elas
devido à acção da sua vontade: é um grito reprimido ... Há cer- físicas, como o rubor, as lágrimas, as palpitações cardíacas, mas
tas terapias que tentam provocar os gritos originais que se man- parece que o grito representa o seu paroxismo. Na literatura
têm recalcados durante demasiado tempo. Prolongamentos psicanalítica, o termo «emoção» corresponde ao termo «afecto»:
sonoros do corpo, esses gritos podem identificar-se com o «mau
(2 1) Rosolato (G.), «La voix», Essais sur le symbolique, Paris, Gallimard,
(1 ) Informações recolhidas por uma das minhas alunas, Agnes Wullems,
9 1969, p. 292.
2
Seminário sobre a voz, Paris V, 1981. (2 ) Sabe-se que provoca a afluência da secreção do leite ao seio matemo.
3
(2°) Rbsolato (G.), «La voix; entre corps et langage>>, La relation d'in- . (2 ) Gibello (B.), «Fantasmes, langage, nature», in Psychanalyse et langage,
connu, Paris, Gallimard, 1970, p. 34. Pans, Dunod, 1977, p. 44.

140 141
Marie-France Castarêde

estado afectivo, penoso ou


un.mnor ou o investimento da
que se apresenta como
como tonalidade geral. Segundo todos os tlnl/"""v" se Em de uma Científica, Freud insiste na
exprimem nos dois registos do a1.+:ecto e da (24) origem pulsional da linguagem e na sua fixação corporal:
Assim, o afecto é do domínio do corpo, isto é, do domínio «A experiência demonstra que a primeira via a seguir é
do inconsciente, da representação de coisas: a que conduz a uma modificação interna (manifestações emo-
tivas, gritos, inervações musculares) ... O organismo humano,
«0 afecto é a carne do significante e o significante da nas suas fases precoces, é incapaz de provocar essa acção
carne.» (25) especifica, que só pode ser realizada com uma ajuda exte-
rior e no momento em que a atenção de uma pessoa infor-
O grito seria a sua assimptota porque é a descarga motriz que mada se centra no estado da criança. Esta alertou-a, graças
corresponde à sua expressão mais forte. . . . a uma descarga que se produz na via das mudanças inter-
Se o grito é a primeira expressão afectr":a.' a voz vm substt- nas (pelos gritos da criança, por exemplo). Assim, a via de
tuí-lo introduzindo fenómenos sonoros especificamente humanos, descarga passa a ter uma função secundária de extrema im-
comd as vibrações harmónicas. A voz é uma mediadora entre o portância: a função da compreensão mútua. A impotência
corpo e a linguagem: original do ser humano converte-se assim na origem primeira
de todos os motivos morais.» (2 8)
«A voz tanto invoca a fala que liga o sujeito à linguagem,
na ressonância do discurso, como o corpo biológico, cujas Um pouco mais adiante, Freud escreve:
articulações múltiplas têm por função emiti-la ou recebê-la,
fazê-la soar... Assim interpretada, a voz situa-se entre o orgâ- «Convém ter em conta o desenvolvimento biológico des-
nico e a organização, entre o corpo biológico e o corpo da tas importantes associações verbais ... Esta via passa a ter
língua ou, se se preferir, o corpo social.» (2 6) uma função secundária, deve atrair a atenção de uma pes-
soa pronta a ajudar (que é normalmente o objecto deseja-
A voz emitida também é para ser ouvida. O corpo a corpo do) para as necessidades e o desamparo da criança. Por este
com a mãe, tangível no grito, vai ser mediatizado pela voz do meio, que vai integrar-se na acção especifica, o entendimento
bebê e pela voz da mãe, convertendo-se num encontro de cora- com outrem está assegurado.» (2 9)
ções. . .
A voz é mediação, não apenas entre o corpo do suJeito e a Assim, a voz, suporte da fala, serviria de transição entre a
sua língua, mas também entre a sua voz e a voz do _?Utro. Encar~ representação de coisas, do domínio do inconsciente e do corpo,
na num «discurso vivo», para retomar a expressao de Andre e a representação de palavras, do domínio do pré-consciente-cons-
Green. A fala transmitida pela voz é diferente do pensamento, ciente e da linguagem:
porque resulta de uma descarga motriz. Falar de viva voz ao
outro é descarregar-se: «0 "representante de coisas", desde que as pessoas que
rodeiam a criança falem e lhe falem, compreenderá os ves-
(24) Lap!anche (J. ) e Pontalis (J. B.), Vocabulaire de la psychanalyse, Pa-
ris, PUF, 1967, p. 11.
(2 5) Green (A.), Le discours vivant, Paris, PUF, 1973, p. 239.
e7
) Green (A.), Le discours vivant, op. cit., p. 239:
es) Freud (S.), La naissance de la psychanalyse, Paris, PUF, 1969, p. 336.
(26 ) Vasse (D.), op. cit., p. 21. 29
( ) lbid., p. 376.

142 143
Marie-France Castari!de A Voz e os Seus Sortilégios

é de um corpo e de um pen-
durante a "''"'~"ua um ser único. revela o
que a harmonizado ou
sonoras, há de coisas que se ou ambíguo; ser mais da cabeça, do cora-
"representantes de palavras".» (' 1) ção ... ou do corpo todo; pode ser baça, quando já não pode trans-
mitir qualquer emoção.
A voz, discurso vivo, de gritos em gorjeios, de em Por isso, quando a voz é reduzida a uma «imagem sonora»
vocalizos, transformar-se-á em fala. Nos primeiros tempos do (eco), deixa de remeter para o desejo de outrem:
processo primário, o laço vocal com a mãe é o suporte sonoro
das imagens de satisfação e a criança inicia-se nos fonemas, re- «É devido a essa falta de referência à alteridade que o
produzindo vocalmente, e de uma forma lúdica, as experiências discurso sem palavras e os olhos sem olhar da criança
gratificantes: psicótica são tão difíceis de suportar.» (3 4)

«É assim que a "castração oral", ao separar os lábios Há o «silêncio de morte», que evita o pedido que faz viver.
do seio, permite descobrir os prazeres da comunicação. A es- Há a voz do esquizofrênico que se protege da voz da mãe,
te respeito, é impressionante constatar que a criança, inicial- intrusiva e «mau» objecto. Em Le shizo et les Zangues (3 5 ), Louis
mente capaz de pronunciar todos os fonemas de todas as Wolfson afirma que não suporta ouvi-la: cada palavra que ela
línguas do mundo, se vê rapidamente na quase impossibili- pronuncia o magoa, penetra nele e ecoa intrusivamente. Mal a
dade de pronunciar os que não pertencem à sua língua mãe se aproxima, ele memoriza uma frase .de uma língua estra-
materna.» (3 2 ) nha. Como escreve Gilles Deleuze no seu prefácio:

Sem a mãe, a criança não poderia reconhecer, nomear ou «A mãe pretende fazer vibrar o ouvido do seu filho em
descobrir os sons. É a fala da mãe que introduz no corpo da uníssono com as suas próprias cordas vocais: "a sua voz
criança a sua capacidade de memorizar, de unificar as percepções muito alta e estridente, e talvez também triunfal" ... "aquele
sensoriais, permitindo-lhe o prolongamento temporal da memó- tom de triunfo que ela tinha ao pensar que inundava o seu
ria, e, mais tarde, da reminiscência (3 3 ). filho esquizofrénico com palavras inglesas" (3 6 )... "parecen-
Por conseguinte, é pela voz e pelo ouvido que o homem do tão cheia de uma espécie de alegria macabra por aquela
adquire o seu estatuto de sujeito: progressivamente, passa a di- boa oportunidade de injectar, em certo sentido, as palavras
zer «eu» a um «tu». Escutar alguém é ouvir a sua voz, tanto nas que lhe saíam da boca nos ouvidos do seu filho, do seu único
conversas como na psicanálise. Mais profundamente, escutar é filho ou, como ela lhe dizia de vez em quando, da única coisa
deixar ecoar em si, no silêncio, a fala do outro. Isso significa que que possuía, parecendo tão feliz por fazer vibrar o tímpano
se é tão sensível à voz como ao conteúdo da mensagem, porque dessa única coisa possuída, e por conseguinte os ossículos
é por ela que se revela o não-dito, o sentido profundo, o indizí- do ouvido médio dessa tal coisa, que era o seu filho, em
vel, o inconsciente ... A voz é singular porque, ao contrário da uníssono quase total com as suas cordas vocais e apesar de
ele próprio também possuir cordas vocais.» 7 ) e
(3°) Talvez seja este o fundamento ontogenético do discurso musical.
(3 1) Gibello (B.), «Fantasmes, langage, nature>>, in Psychanalyse et langage,
4
(' ) Vasse (D.), op. cit., p. 91.
Paris, Dunod, 1977, p. 36. (3 5) Paris, Gallimard, 1978.
(3 2) lbid., p. 39. (3 6 ) Neste caso, língua materna.
(' ) Deleuze (G.), prefácio a Wolfson (L.), op. cit., p. 15.
7
( ) Seria este o fundamento da memória musical?
33

144 145
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

A relação de alteridade é assim ··-.,.,-·~-, a mãe procura a tomam-se sem sentido


ecolalia: Louis W olfson só pode para conver- voam, «à margem do assunto», como se costuma
ter as palavras inglesas em palavras o seu objecti- dizer em linguagem familiar ... A voz já não pretende entrar em
vo é neutralizar a sua língua materna. comunicação com o outro, mas mantê-lo à distância. Neste caso,
O corpo do esquizofrénico é um corpo esburacado, sem o acto de fala serve para evacuar e recalcar as emoções corporais.
«envólucro sonoro» na acepção que lhe é dada por Didier Azoun. Encontramos aqui as duas funções da linguagem de que fala
Se a mãe não permitiu que a criança fizesse do seu corpo um Roman Jakobson: por um lado, a função «fática», que tende a
receptor das sonoridades onde possa ir, a pouco e pouco, rece- estabelecer, prolongar ou manter a comunicação, «a atrair a aten-
bendo significados coerentes, a palavra perde o seu sentido e fica ção do interlocutor ou a garantir que essa atenção não se per-
enredada no corporal; é um puro afecto, e o sujeito não pode de» (40 ); o prazer de comunicar vence a necessidade de emitir ou
exprimir-se como pessoa. A palavra é invadida pelo impulso: o receber informação: é no canto que esta função conhece a sua
corpo deixa de ser esse envólucro que contém, que dá um su- mais elevada expressão estética. No babytalk, no canto ou no dis-
porte a uma voz, enunciando alguma coisa acerca de si: curso amoroso, a permuta dos sons converte-se numa ligação fun-
damental com o outro, através do fascínio da voz. Por outro lado,
«0 que garante a primeira etapa de uma formação da lin- temos a função «metalinguística», que é a do código; neste caso,
guagem é o bom objecto da posição depressiva ... porque é ele o investimento da linguagem, como sinal arbitrário, sinal social,
que extrai uma voz de todos os ruídos das profundezas.» (3 8) é predominante. Há discursos abstractos e teóricos que aborrecem
e não dizem nada: por detrás das palavras, não se sente o ser de
Assim, a observação clínica do acto de fala, transmitida pela carne que se exprime.
voz, põe em evidência fenómenos antagónicos: Devido, nomeadamente, a um excesso sonoro (mãe de Louis
W olfson) ou a um excesso de sentido (mãe fria, intelectual, abs-
«Vê-se o discurso oscilar, ora para o lado do corpo ora tracta, higiénica), o laço matemo das crianças psicóticas não pôde
para o lado do código. Quando o discurso oscila para o lado garantir a distância conveniente e criar o envólucro sonoro ade-
do corpo, é vivido como um prolongamento desse corpo. quado. Um dos objectivos da terapia analítica é ajudar os pacien-
Nesse caso, a palavra é a figuração de uma parte do corpo tes a situar o seu discurso entre o corpo e o código, a meio
ou de uma experiência corporal. No caso contrário, em que caminho entre as duas funções, fática e metalinguística, da lin-
o acto de fala utiliza plenamente a vertente objectiva, formal guagem. As sessões de análise de um dos nossos pacientes, que
e ordinal da linguagem, o discurso individualiza-se no sig- sofrera muito com uma gaguez precoce e que continuava a sen-
no. Deixa de ser um discurso-símbolo e passa a ser um dis- tir grandes dificuldades em se exprimir, caracterizaram-se durante
curso-signo. Neste caso, o corpo perde-se e aliena-se no vários anos por incertezas constantes, numa confusão vocal de
signo, o discurso deixa de ser o símbolo dos nossos desejos que ele não tinha consciência:
e passa a ser esse envólucro esvaziado de qualquer fantasia
e de qualquer conteúdo corporal.» (3 9) «Não sei se vou poder dizer ... Não sei como dizer ... É es-
tranho, não consigo encontrar as palavras ... »
Nesta segunda alternativa do discurso-signo, a fala toma-se
demasiado objectivante: contra-investe o desejo e a experiência O afecto não passava através do código da linguagem.

38
( ) Deleuze (G.), Logique du sens, Paris, Éditions de Minuit, 1973, p. 267.
( ) Jakobson (R.), Essais de linguistique générale, Paris, Éditions de
40
9
(' )Gori (R.), Le corps et le signe dans l' acte de parole, Paris, Dunod,
1978, p. 9. Minuit, 1973, p. 217.

146 147
Marie-France Castarêde Voz e os Seus

Pelo um outro um tom sempre acelere ou abrande o


fixo e rígido, que só muito se ia tomando ma- que é salto: salta
leável tanto nas inflexões voz como nos movimentos do cor- no caos, e mesmo nPsrn>Pn1nl
po. Teve de partir para o estrangeiro por motivos 1-J!IJ.u"""vu•u._, Há sempre uma sonoridade
e voltámos a vê-lo numa das suas passagens por então o canto de Orfeu.» (42)
dia vai retomar as suas consultas de psicoterapia, mas começou
a frequentar, na América, sessões de «expressão corporal»! ... No entanto, se a voz cantada é de facto um fenômeno tran-
sicional, o que será, sob este ponto de vista, a voz falada? Roland
Gori, comentando Winnicott, observa que a fala só pode manter
Voz, espaço transicional a sua qualidade transicional (deve recuperá-la na psicoterapia) se
1;1ão cair no formalismo da linguagem ou na ausência de sentido
«Introduzi os termos "objectos transicionais" e "fenômenos dos movimentos corporais:
transicionais" para designar a área intermédia de experiência que
se situa entre o polegar e o urso de pêlo, entre o erotismo oral «0 símbolo - e em particular a fala - só pode advir
e a verdadeira relação de objecto, entre a actividade criadora no espaço livre que existe entre o corpo e o código, a sub-
primária e a projecção do que já foi introjectado, entre a igno- jectividade e a objectividade.» (43)
rância primária da dívida e o reconhecimento dessa dívida.
«Partindo desta definição, o galrear do recém-nascido, a for- No seu artigo «Da comunicação e da não comunicação»,
ma como a criança mais crescida retoma, na altura de adormecer, Winnicott distingue três formas de comunicação:
o seu repertório de canções e de melodias, são comportamen-
tos que intervêm na área intermédia como fenômenos transicio- «Se as circunstâncias são o mais favoráveis possível, ope-
nais.» (41 ) ra-se o desenvolvimento e a criança passa a dispor de três
Logo após a sua definição, Winnicott refere-se aos fenôme- formas de comunicação: uma comunicação que nunca deixa-
nos vocais. Segundo ele, os vocalizos, como jogo primordial do rá de ser silenciosa, uma comunicação que é explícita, indi-
bebé, fariam parte do espaço transicional, com o seu prolonga- recta, e fonte de prazer, e essa terceira forma intermédia que
mento cultural na voz cantada. A lição de canto, como demons- passa do jogo para a vida cultural, seja ela qual for.» (44)
trámos, é o recreio desse espaço, com as lalações convertidas em
notas de música vocalizadas. A voz cantada corresponde à terceira forma de comunicação,
Gilles Deleuze designa um desses fenômenos pelo bonito ao passo que a voz falada corresponde àquela que Winnicott
termo «refrão»: designa por «indirecta».
O que especifica o fenômeno transicional não é o objecto,
«Uma criança no escuro, vencida pelo medo, tranquili- mas uma qualidade de investimento, representado por um espaço
za-se cantarolando. Caminha, pára, de acordo com a sua livre entre o interior e o exterior. A voz, ao contrário da lingua-
canção. Perdida, abriga-se como pode ou orienta-se o me-
lhor possível com a sua canção. Esta é como o esboço de
um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio e') Deleuze (G.), «De la ritoumelle>>, Mille Plateaux, Paris, Éditions de
do caos. Pode acontecer que a criança salte enquanto can- Minuit, 1980, p. 382.
43
( ) Gori (R.), <<Entre cri et langage: l'acte de parole>>, Psychanalyse et
langage, Paris, Dunod, 1977, p. 71.
44
( ) Winnicott (D.), <<De la communication et de la non communicatíon>>,
(
41
) Winnicott (D.), leu et réalité, Paris, Gallimard, 1975, pp. 8-9. Processus de maturation chez l' enfant, Paris, Payot, 1970, p. 162.

148 149
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

gem, corresponde à definição do "h'"'"''" um suporte somático e


concretiza um estado de da vida. Com efeito, o
como demonstraremos mais adiante, entre a mente se toma apelo a que a mãe responde, vai adquirindo a
narcisismo; a regulação progressiva da voz falada, que de pouco e pouco uma função significante: é aí que se detectam os
vocalizos passa a linguagem, confere-lhe um carácter específico: primeiros esboços do narcisismo. Se a mãe souber dar respostas
ao contrário da franja de lã, da ponta do cobertor ou de uma adequadas, instaura-se um narcisismo feliz; em caso contrário,
melodia, a linguagem, transmitida pela voz, toma-se social. Con- instaura-se um narcisismo patológico, que corresponde a uma
tudo, a voz, pelas suas modulações, inflexões e entoações, reve- perda de investimento objectal, gerando um processo letal, com
la que a linguagem continua a ser, apesar da sua estrutura o seu corolário de depressão, projecção ou clivagem ...
linguística, um fenómeno transicional: o que faz um orador ta- Depois do grito, a voz. Se a permuta, o babytalk entre a mãe
lentoso senão convencer, seduzir pela sua voz, até fazer esque- e o bebé conduzem à compreensão mútua, a criança vocalizará
cer o conteúdo da sua mensagem para a reduzir ao seu próprio e galreará, sentindo com isso um prazer narcisista. Se a voz da
poder de fascinar? mãe for instrusiva, discordante, rouca ou impessoal, o bebé re-
A voz permite que a linguagem fique retida no corpo do trair-se-á, defender-se-á, ou tentará aprender uma língua diferente
sujeito sem se alienar: inversamente, garante à linguagem o seu da língua materna, como aconteceu com Louis W olfson. Quan-
peso como matéria, sem o qual se converteria apenas em código do Winnicott fala da «capacidade de estar só» (46), mostra bem
vazio. Neste sentido, é transicional, <<jirst-not-me possession». que a criança pode isolar-se na presença da mãe, e mais ainda
se a introjectou como bom objecto, com a sua voz e a ternura
das suas palavras. Assim se toma capaz dessa «relação com o eu»
Voz e narcisismo (ego-relatedness) que é a base do narcisismo.
Na arte, o retraimento libidinal permite o acesso às vias da
Depois de ter reconhecido toda a importância do narcisismo criação; o recital de um cantor ou de uma cantora, se forem ar-
e das suas implicações (45 ), Freud refaz a sua teoria em prol do tistas famosos, parece-nos ser a expressão mais sublime do nar-
instinto da morte. Entre os seus continuadores, Mélanie Klein co- cisismo vocal. Inevitavelmente, o público sente-se satisfeito,
loca-o de novo em primeiro plano, revelando o seu carácter ori- restaurado: é o que se pode chamar uma «comunicação trans-
ginário, enquanto Winnicott cria o precioso conceito de «objecto narcisista», noção criada por André Green (47 ), que demonstra que
transicional», cujas ligações com o narcisismo são estreitas, em- os objectos da criação artística estabelecem uma comunicação en-
bora ele não as tenha definido expressamente. tre o nascisismo do produtor e o narcisismo do consumidor da
A questão do narcisismo é complexa: para uns, é uma fase, obra, tal como desenvolveremos mais adiante, a propósito da
para outros, um estado, para outros ainda, uma estrutura, e, por ópera e do desdobramento.
fim, para outros, uma instância, ou melhor, um pólo de investi- Estas reflexões colocam de novo o problema da distinção
mento. entre narcisismo primário e secundário. Classicamente, fala-se de
Para nós, a voz refere-se a três linhas de força do narcisismo: narcisismo secundário quando há um retomo ao eu. Todavia,
o retraimento libidinal, a idealização e o desdobramento. antes do reconhecimento visual, existiria uma «identidade primá-
Em primeiro lugar, o retraimento libidinal, com o seu coro-
lário, o investimento de si mesmo: o retraimento libidinal, para
46
( ) Winnicott (D.), <<La capacité d'être seul>>, De la pédiatrie à la
psychanalyse, Paris, Payot, 1969.
45
( ) Freud (S.), «Pour introduire !e narcissisme», La vie sexuelle, Paris,
e 7
) Green (A.), Un oeil en trop: le complexe d' Oedipe dans la tragédie,

PUF, 1970. Paris, Editions de Minuit, 1969, p. 36.

150 151
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

na união
do encantamento, de que encon-
lJPl"rt"'rtorrn

rio precoce, no fascínio da música.»


sias do regresso origem, ao
simbolizando a beatitude do feto in utero. O «em harmonia» é uma finalidade para que podem tender
as artes do sonoro, como a poesia, o canto e a música. Na me-
dida em que evoca a intensa satisfação de uma relação ligada a
urna felicidade primordial, confere-lhes um elevado valor narci-
A segunda linha de força do narcisismo, ligada à voz, é a sista, caracterizado pela idealização.
idealização: Quanto aos objectivos pulsionais, o «prazer» narcisista, pela
sua importância, impede que se oponha o narcisismo aos impul-
«A experiência mais importante para que a idealização sos (5 2 ). Esse «prazer» é o cerne do prazer estético:
comece a agir é o domínio, por parte da fantasia, da ausên-
cia e do objecto perdido.» (49 ) «Creio que todo o prazer preliminar e o prazer pessoal
gerado pela obra do poeta provêm da libertação das tensões
Quanto ao Eu, a exigência de poder e de perfeição encama- das nossas almas. E talvez acabem mesmo por ter, para nós,
-se no Eu IdeaL Este, realçado por alguns psicanalistas (5°) na se- esta consequência, que não é pequena: o poeta (5 3 ) coloca-
quência das formulações sucessivas de Freud a propósito do ideal -nos na situação de sentir prazer com as nossas próprias fan-
do Eu, é o substituto da perfeição narcisista dos primeiros tem- tasias, sem qualquer censura ou vergonha.» (5 4)
pos de vida. Está separado do Eu por um desvio, uma fenda, que
se tenta sempre colmatar. A procura de uma relação fusional com Há fruição porque o desejo está disfarçado e voltamos a en-
um objecto idealizado é uma forma de restaurar esse paraíso contrar-nos numa situação de infância, próxima do paraíso nar-
perdido: cisista em que satisfazíamos os nossos desejos, brincando.
Quando a criança brinca, constrói um mundo que está de acor-
<<A voz é a oportunidade de uma experiência primordial do com os seus desejos, mundo em que acredita, embora o dis-
de harmonia corporal quando se consegue adequar a sua tinga da realidade objectiva: Paul Fedem falou de um «eu
produção à sua audição. É provável que isso só seja conse- ego-cósmico».
guido quando a criança compreende não só que existe uma A relação entre a arte e o narcisismo é fundamental: o in-
diferença entre a sua voz e a voz da sua mãe mas que tam- vestimento (5 5 ) narcisista caracteriza tanto o psiquismo do artista
bém existem traços comuns e a capacidade de falarem em como o do amador de arte. O êxtase musical, por exemplo duran-
uníssono. Esta possibilidade de "em harmonia", mesmo que te concertos excepcionais ou mesmo durante uma audição de mú-
seja apenas alcançada por certos traços sonoros, um timbre,
uma altura, uma melodia, pode vir a ser a imagem da fu-
(5 1) Rosolaro (G.), «La voix: entre corps et langage>>, op. cit., p. 38.
CS 2) Grunberger (B.), Le narcissisme, Paris, Payot, 1971.
(''") Citado por Rosolato (G.), <<Le narcissisme», Nouvelle Revue de Psycha- CS 3 ) É evidente que se poderia dizer a mesma coisa a propósito do músico.
nalyse, 13, 1976, p. 13. (' ) Freud (S.), «La création Jittéraire et !e rêve éveillé>>, Essais de
4

( ) Rosolato (G.), lbid., p. 14.


49
psychanalyse appliquée, Paris, Gallimard, 1976, p. 81.
CS 0) Lagache (D.), «La psychanalyse et la structure de la personnalité», in CS 5) Quando utilizamos este termo, associamo-lo ao de «Jíbido do eU>> que
La Psychanalyse, Paris, PUF, 1966, vol. 6, pp. 5-54, e Numberg (H.), Principes Freud opõe à <<libido de objectO>> («Pour introduire !e narcissisme>>, 1914,), op.
de Psychanalyse, Paris, PUF, 1957. cit.

152 153
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

sica a sós, mostra que se à margem dos oh- no de estado


jectos exteriores e do nas musicais colec- de de todas as variantes do narci-
tivas (música clássica, música pop ou
coisa, mas, nesse caso, são vários a sentir: neste caso, talvez se
devesse falar de êxtase transnarcisista, na acepção utilizada por Pensamos que o estado de elação - que este autor descreve
André Green (5 6 ). Esse prazer é regressivo, mas não é patogénico, como característico dos inícios da cura analítica - e que o leva,
porque é momentâneo e está associado a Eros: pelo contrário, o como a outros, a definir esse período como uma verdadeira «lua
prazer a que conduzem certas drogas torna-se, após um breve de mel» - é essencialmente devido ao espelho sonoro narcisis-
momento de elação, mortífero, porque associado ao sentimento ta que as vozes do analista e do analisado proporcionam. Que-
irremediável da perda do objecto (dado a droga não ser mais do remos com isto dizer que, mesmo se o analista fala pouco,
que um ersatz destruidor desse objecto), facto que se revela irre- ~obretudo no início, parece-nos somos mais sensíveis à sua voz
versível. A música é um objecto simbólico que proporciona feli- do que ao conteúdo das suas palavras. Escolhemos o nosso ana-
cidade a quem foi capaz de integrar o «bom seio» num momento lista devido, entre outras coisas, à sua voz por termos reconhe-
de introjecção conseguida; a droga é um ersatz de que tem, com- cido, no seio de um alusiva gestalt, entoações familiares. No
pulsiva e freneticamente, necessidade quem não foi capaz de le- início da cura, esperávamos pelo que nos era, parcimoniosa mas
var solidamente a efeito, dentro de si mesmo, essa interiorização. preciosamente, dado: a inflexão suave e calma de uma voz (60 ).
No êxtase, a vida e a morte são promovidas a figuras míticas, Para nós, essa voz está no centro desse fenômeno de elação,
nas duas extremidades da trajectória humana: narcisismo de vida, como penhor sonoro da compreensão mútua e do entendimento,
narcisismo de morte. A ópera Tristão e /solda revela bem essa tal como se verificava no babytalk originário. Só depois, à me-
oposição: dida que a relação transferencial se for conflitualizando, é que a
voz será substituída pela fala e pela interpretação.
<<Assim os objectivos do narcisismo primário, o estado de Quanto ao objecto, os pais idealizados e a criança idealiza-
beatitude e de equilíbrio absoluto, unem o fim à origem: é da estão no centro das relações e das identificações narcisistas.
a própria organização do mito, cuja fórmula g~ral é a do Bela Grunberger ( 61 ) descreveu uma posição narcisista não
eterno retomo, que pode provir do complexo de Edipo, retor- edipiana:
no ao ventre materno, para anular qualquer separação.» (5 7)
«Não se trata de amar um dos pais e detestar o outro,
Com o êxtase, estamos próximos do «sentimento oceânico» mas de se ser amado pelos dois pais ao mesmo tempo,
que, segundo Freud, corresponde ao «restabelecimento do narcisis- de uma forma narcisista absoluta, fusional, e não confli-
mo ilimitado» que satisfaz a procura de uma «protecção por parte tual. » ( 62 )
do pai» (5 8 ). A voz e a música conduzem-nos muitas vezes a isso.
Outra noção muito próxima é a de «elação», segundo uma O concerto, ao pôr em acção a mãe-mus1ca, o pai-maestro,
expressão de Bela Grunberger: os filhos-cantores, músicos, e, por ricochete, ouvintes, reconsti-

(5 6) Green (A.), Un a:il en trop, le complexe d' Oedipe dans la tragédie, C9) Grunberger (B.), Le narcissisme, Paris, Payot, 1971, p. 28.
op. cit., p. 26. ( Verlaine, no seu «Rêve familier>>, revela a sua predilecção pelo so~o­
60
)
(5 7 ) Rosolato (G.), «Le narcissisme>>, op. cit., p. 16. ro e reconhece a mulher amada pelo nome e pela voz: o olhar e a cabeleira
(5 8) Freud (S.), «Malaise dans la civilisation>>, op. cit., p. 17. Não seria são relegados para segundo plano.
mais correcto dizer <<pela mãe>>? Mas sabe-se que Freud não ousava confessá- 61
( ) Op. cit.
-lo, tal como não podia «fruir>> a música ... 62
( ) lbid.' p. 203.

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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios

escuta-se. Assim se dá o desdobramento narcisista da voz: há


do certas acerca das se costuma dizer que se ouvem
No seu filme Fellini demonstrou que falar, vaidosos, na maioria dos casos ... ; outras, pelo
se o maestro-pai deixa de ser capaz de unificar sob a sua batuta contrário, não gostam do som da sua voz no gravador. No iní-
os íntrumentos-filhos, gera-se a rivalidade e a cacofonia instala- cio da vida, há um «espelho sonoro» que se vai instalando pro-
-se: o clarinete quer tocar mais alto do que a flauta; o tempo do gressivamente entre a criança e a mãe: esta molda o seu babytalk
oboé alonga-se e deixa de se unir ao das cordas. Basta um grão a partir do do bebê, num movimento de instauração narcisista.
de areia para a máquina emperrar, ou melhor, basta um Narciso Esse eco não evoca a ninfa do mesmo nome (67 ), que se conso-
vaidoso e reivindicativo para que a harmonia sonora desapareça. me e morre; é um eco vivo, vindo de outrem, ou melhor, é uma
Em breve temos o ódio, a confusão e o caos. harmonia, um uníssono. Pelas variações da voz, é possível va-
Bela Grunberger associa esta posição a uma fantasia primiti- riar os estímulos, os sons do objecto ausente, e portanto simular
va, que designa por «tríade narcisista» ou «fantasia do menino a sua presença, ou melhor, chamá-lo.
divino» (64 ). Esta fantasia assemelha-se àquilo a que Freud cha- Para nós, o galrear do bebê na ausência da mãe seria um
ma o «romance familiar», em que a criança imagina um par equivalente do <ifort-dp», jogo visual descrito por Freud em Para
parental que, para ela, é narcisicamente mais gratificante do que além do Princípio de Prazer (68 ) a propósito do seu neto Heinz,
os seus pais reais, e opõe-se à fantasia de cena primitiva em que de dezoito meses. Pela reprodução do jogo vocal com a mãe, a
a situação de rivalidade sexual provoca na criança o sentimento criança domina o afecto doloroso da separação e recria o laço que
de estar excluída do par parental (65 ). a une a ela. O canto - e nomeadamente, o lied - seria a trans-
Numa primeira fase, dita assexual, a criança imagina pais posição culta e sofisticada dessas primeiras lalações e, por isso,
mais diferenciados; numa segunda fase, após a diferenciação se- constitui uma reparação (69 ) do primeiro laço existencial, sempre
xual dos pais, a imagem que se destaca é a do pai (pater semper ameaçado de dissolução ou de morte.
incertus est, ao passo que a mãe é certissima ... ). O «duplo» não é apenas pensado como «eco», mas também
como Eu Ideal, instância psíquica essencialmente narcisista, em
que a relação intersubjectiva é imaginária e dual. O duplo pode
Se, por vezes, se trata dos pais, também se pode tratar do significar «todas as eventualidades não realizadas do nosso des-
próprio sujeito: o narcisismo associa-se a um processo de des- tino de que a imaginação não quer desistir, todas as aspirações
dobramento, evidenciado por Otto Rank (66 ), que observamos a do eu que não puderam cumprir-se devido a circunstâncias ex-
propósito da voz. teriores, e todas as decisões reprimidas da vontade que geraram
Antes de ver a sua imagem especular no espelho, o sujeito a ilusão do livre arbítrio» (1°). o lied é a forma do canto que re-
mete para este tipo de funcionamento mental.
Se o lied remete para o Eu Ideal, a ópera remete para o Ideal
( ) No plano religioso, e já não artístico, encontrar-se-iam equivalentes nas
63
do Eu, através dos «seres de ficção». Graças à identificação
cerimônias de culto em que o padre-Pai faz comungar os seus filhos sob a
égide da Nossa Mãe a Santa Igreja: os cânticos e a música reforçam esse sen- transnarcisista, podemos ser os heróis que não somos na vida real.
timento de filiação e de união transnarcisista.
64
( ) lbid., p. 343.
( ) Freud escreveu um artigo fundamental sobre este tema: <<Le roman ( ) A ninfa Eco chama Narciso, que não lhe responde: Eco lamenta-se e
65 67

família! des névrosés» (1909), in Névrose, psychose et perversion, trad. J. La- espera em vão na solidão da montanha.
planche, Paris, PUF, 1973, como prefácio ao livro de Otto Rank (1909), Le ( ) Freud (S.), Essais de Psychanalyse, Paris, Payot, 1967, pp. 15-20.
68

mythe de la naissance du héros, Paris, Payot, 1983. ( ) Na acepção kleiniana do termo.


69

( ) Rank (0.), cap. 5, «Le reflet, symbole de marcissisme>>, Don Juan et


66
C0 ) Freud (S.), <<L'inquiétante étrangeté>>, Essais de Psychanalyse Appli-
le double, Paris, Payot, 1983. quée, op. cit., p. 187.

156 157
Marie-France Castarêde

«de objecto de André através deles emoções, estéticas claro mas que podem ser
que o explicita a para ele quase tão importantes como emoções pessoais e íntimas:
Tristão, !solda, Violetta, Mimi, Otelo, Desdêmona (e a lista po-
<<Assim, as estruturas da fantasia uma tendência deria ser continuada indefinidamente ... ) são seres que conhece-
dupla. Para o objecto, apoiam o desejo e para mos, cujos sentimentos e afectos partilhámos:
a formação daquilo que tem por missão concretizá-lo: sonho,
sintoma ou actividade sexual, com os meios postos à dispo- «São seres a que se deve aplicar a categoria que Win-
sição da descarga e segundo as vias que lhe são abertas. nicott designa por objectos ou fenómenos transicionais: isto
Para a procura de uma unidade subjectiva idealizante, mar- é, que são e que não são.» C3 )
cada pela renúncia a uma satisfação que implica uma des-
carga completa (por a fruição estética estar sujeita à inibição O ser de ficção é transicional, porque não é objecto sexual
de objectivo da pulsão ), e em que, em contrapartida, se acei- 'real; também não pertence ao domínio da fantasia pessoal, por-
ta a construção narcisista do outro. Neste sentido, os objectos que a identificação é colectiva, partilhada:
da criação artística mereceriam ser designados por trans-
narcisistas, isto é, geradores de uma comunicação entre os «A força de uma pessoa como Maria Callas é fazer com
narcisismos do produtor e do consumidor da obra.» C1) que um dos possíveis desses seres de ficção seja defendido
com uma convicção tão extrema que, durante um certo tem-
O que se verifica na tragédia e no teatro verifica-se ainda po, parece ser o único possível... Creio que Maria Callas
mais com os heróis da ópera. O que os distingue é que, na ópe- devia sentir uma dor imensa e ter possibilidades de converter,
ra, a voz está indissoluvelmente ligada à música (sobretudo nas de fazer alguma coisa dessa dor» (1 4), ou seja, comunicá-la ...
árias e, em menor grau, nos recitativos), o que, sob o nosso ponto
de vista, reforça ainda mais a possibilidade identificatória. A iden- A identificação transnarcisista é necessária à vida social; per-
tificação com objectos transnarcisistas permite que o homem te- mite o aumento das relações humanas, a formação de unidades
nha várias vidas: mais vastas do que a família ou o fechamento do indivíduo que
se recolhe em si mesmo; neste sentido, as manifestações colec-
«No domínio da ficção, encontramos a pluralidade das tivas artísticas - vocais, musicais, teatrais - são verdadeiramen-
vidas de que necessitamos. Morremos como o herói com o te civilizadoras:
qual nos identificámos: contudo, sobrevivemos-lhe e estamos
prontos a morrer de novo com outro herói, continuando «Como já sabemos há muito tempo, a arte proporciona-
igualmente sãos e salvos.» (1 2 ) -nos satisfações substitutivas, que compensam as mais anti-
gas renúncias culturais, aquelas que continuam a ser senti-
Tanto para o espectador como para o criador, os heróis são das muito profundamente, e por isso não há nada que possa
duplos, são, ao mesmo tempo, projecções do Eu e do Ideal do reconciliar tão bem o homem com os sacrifícios que fez em
Eu: o compositor de ópera cria seres de ficção. Vendo-os viver nome da civilização. Por outro lado, as obras de arte exal-
em palco, o espectador vai poder identificar-se com eles, viver tam os sentimentos de identificação, de que cada grupo so-
cial tanto necessita, dando-nos a oportunidade de sentir em

C') Green (A.), Un ceil en trop, op. cit., p. 36. C') Green (A.), <<Maria Callas: un mystere>>, Lyrica, 38, Novembro de
(
72
Freud (S.), (1915), <<Considérations actuelles sur la guerre et sur la
) 1977, p. 32.
mort>>, Essais de Psychanalyse, op. cit., p. 256. C4) Ibid., p. 74.

158 159
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

do texto do que a '"U"'i""'


baseadas são
de-
lH!vHtvl.UI.OJlH\C

os seus ideais.» C5 ) signado por «teatro de é mais intelectual. Na arte da ora-


tória, a prosa de Bossuet é mais musical do que dos políticos dos
Assim, a ópera remete para a instância do Ideal do ins- nossos dias, obrigados pelos meios de comunicação social a um
tância que resulta da convergência do e da iden- discurso mais próximo do debate de ideias do que da eloquência.
tificação com os pais edipianos. Graças aos «seres de ficção»,
deixamos de estar na realidade da nossa vida única e passa-
mos a estar no infinito dos possíveis. Esses «seres de ficção» Voz e sexualidade
são objectos culturais, que se situam, segundo a definição
de Geza Roheim, entre a líbido narcisista e a líbido objec- Guy Rosolato demonstra que a voz pode ser definida nos
tal C6 ). mesmos termos que o impulso freudiano:
Através da ópera, sentimo-nos ligados a uma família de se-
res que nos são propostos pelas suas características históricas e <<A voz tem uma origem corporal, orgânica e de excita-
psicológicas e em quem podemos, simultaneamente, projectar-nos: ção, uma força, um campo, um objectivo, de prazer, ligado
seres intermediários entre. a realidade e a fantasia são o nosso eu a uma tensão que é preciso reduzir, um objecto, para atin-
«desdobrado» e com eles temos a cesso a uma identificação gir um receptor, assegurar uma comunicação. Pode-se con-
transnarcisista. Não sendo objectos sexuais reais nem meros pro- siderar a voz, e por conseguinte a música, como uma
dutos do nosso imaginário, fazem com que a unicidade da nos- metáfora do impulso em geral - o impulso sem outro repre-
sa vida seja transcendida. «Eu sou os outros ... Qualquer homem sentante a não ser a própria música.» (1 8)
é todos os homens», diz Borges.
O desdobramento e a restauração narcisista que se lhe Em relação à defmição de Freud, que distingue dois registos do
segue estão ainda mais implicados na arte musical vocal impulso, o afecto e a representação, a voz está próxima do afec-
(lied, ópera, oratória, etc.) do que em outras artes do sonoro, to. Se o acto da fala os associa intimamente, o afecto está asso-
como a poesia, o teatro ou a eloquência. O canto é a forma ar- ciado à voz e a representação está associada à palavra. A partir deste
tística em que o afecto-corpo mais prevalece sobre a palavra- ponto de partida teórico, passamos a expor as ligações entre a
-código. Entre os músicos e no interior das formas musicais, essa voz, como metáfora pulsional, e as diferentes fases da sexualidade.
predominância não é uniforme. Nos recitativos de Mozart, a Indirectamente, foi da primeira fase - a oralidade - que
música tem menos importância do que nas árias. Em Schumann, mais falámos, ao estudar as características das primeiras relações
a música extravaza do texto mas, em Debussy, a prosódia inspi- entre a mãe e o filho através dos vocalizos. O galrear e as lala-
ra muitas vezes a música. Foi precisamente esta questão da proe- ções do bebé estão ligadas ao impulso oral e apoiam-se na função
minência relativa da música e da palavra que inspirou Richard alimentar: são «prazeres de boca» e estão associados ao erotis-
Strauss na sua última ópera Capriccio C7). No teatro e na poesia, mo oral propriamente dito, simultaneamente auto e alo-erótico.

(1 5) Freud (S.), L'avenir d'une illusion, Paris, PUF, 1971. condessa Madeleine, hesita entre dois apaixonados, o poeta Olivier e o músico
(1 6 ) Roheim (G.), Origine et fonctions de la culture, Paris, Gallimard, 1972, Flamand. Olhando-se ao espelho, apercebe-se da sua incapacidade de fazer a
p. 120. escolha que marcaria o final da ópera. Todavia, Richard Strauss responde por
(1 7) Capriccio, ópera sobre a ópera, é composta a partir da peça de um ela, dando-nos uma esplêndida peroração musical que exalta a voz feminina.
autor do século xvm, Casti, Prima le parole, dopo la musica. A heroína, a (1 8 ) Rosolato (G.), <<La voix: entre corps e langage», op. cit., p. 39.

160 161
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

A suavidade, a ternura, a doçura de certos cantos - a can- Há inúmeros exemplos musicais que ilustram esse fascínio da
ção de embalar («wiegenlied», em por . de voz, evocador do amor da mãe e do amor partilhado dos apai-
há inúmeros equivalentes nos lieder e nas melo~ms --:- evocam xonados. Cada pessoa tem o seu florilégio: Christian David es-
0 tom e as inflexões da voz materna. Os lmgmstas e os colheu o Lettera amorosa de Claudio Monteverdi (82 ); quanto a
psicofonéticos mostraram as relações que existem entre os sons nós, os lieder Wiegenleid, Morgen ou Winterveihe de Richard
melífluos e o erotismo oral: Strauss (83 ), Mondnacht de Schumann (84) ou Du bist die Ruh de
Schubert (85 ) evocam sempre essa felicidade.
<<A reaparição do sussurro t:rno, do jogo .gl?tal na fala Roland Barthes dá a um dos capítulos de Fragmentos de um
do amoroso evocam os subterraneos pre-genztats - oral e discurso amoroso o título de «Na calma amante dos teus braços»,
narcisista - do amor. A voz acariciadora começa por ga- baseado na Chanson triste de Duparc sobre um poema de Jean
rantir ao outro que não existem quaisquer intenções ,a?res- Lahor. Para ele, esta melodia evoca o abraço:
sivas, depois embala-o, encanta-o mediante uma especze de
hipnose materna, para depois o conduzir para as pr?funde- «Para o sujeito, o gesto do abraço amoroso parece rea-
zas de uma união total, que restaura o mesmo parmso per- lizar, durante algum tempo, o sonho da união total com o
dido que a criança redescobre no seio da mãe.» (1 9) ser amado ... É o momento das histórias contadas, o momen-
to da voz, que vem fixar-me, siderar-me, é o regresso à mãe ...
Como se sabe, Ferenczi interpretou o acto sexual com? u~a Neste incesto reconduzido, tudo fica suspenso: o tempo, a
profunda regressão, uma tentativa de restauração d~ ~armoma pr~­ lei, o interdito: nada se esgota, nada se quer: todos os de-
-natal da união com a mãe. O prazer da voz esta hgado ao pn- sejos são abolidos, porque parecem definitivamente satisfei-
meiro' objecto desejado e amado, que mais tarde será evocado no tos.» (86 )
acto amoroso:
Reencontra-se aqui todo o poder da voz materna, que permite
«0 coito permite o regresso real - embora apenas par- a fusão narcisista erotizada, sem o interdito inelutavelmente li-
cial- ao útero materno.» (80 ) gado à união sexual incestuosa.
No oposto deste impulso oral em que a voz é fonte de pra-
Na regularidade da voz amorosa ---:- tão musical ~orno o zer, porque o bom objecto foi íntrojectado, encontra-se o que está
babytalk - há o desejo de se consegmr essa ha~moma, essa associado ao mau objecto: a voz é projectada, expectorada, vo-
felicidade de reencontrar a unidade dos sexos. No d1scurso ~~o­ mitada, cuspida, que corresponde a uma voz materna não «sufi-
roso como sublinhou Christian David, o investimento narclSlsta cientemente boa», seja ela discordante, brusca ou fria ... Na sua
e o investimento objectal estão ligados:

«Considero que o discurso amoros? gera ,uma .satis[ação (


82
lbid., p. 145.
)
83
narcisista indubitável, que vem assoctar-se a sattsfaçao do ( Wiegenlied, op. 41, n. 0 1; Morgen, op. 27, n. 0 4 para violino e voz;
)

Winterveihe, op. 48, n. 0 4, de Richard Strauss; cantados por Elisabetn


desejo sexual.» (81 ) Schwarzkopf (His master' s voice, 1969).
84
( ) Op. 39, n. 0 5, sobre um poema de Joseph von Eichendoorff (ciclo do
liederkreis, op. 39).
85
( ) Op. 59, n. 0 3, sobre um poema de Rückert. «Por um lied como este,
C9) Fonagy (I.), La vive voix, op. cit., p. 119. . . . vale a pena ser cantora>>, declara Gundula Janovitz, uma das grandes intérpre-
(8o) Ferenczi (S.), «Thalassa>>, Psychanalyse des ongmes de la vze sexuelle, tes dos lieder de Schubert.
Paris, Payot, 1962. 86
( ) Barthes (R.), Fragments d'un discours amoureux, Paris, Le Seuil, 1977,
(BI) David (C.), L'état arnoureux, Paris, Payot, 1971, p. 63. p. 121.

162 163
Marie-France Castarede

Louis W olfson sons


considera como ruídos corpo
o que Gilles Deleuze ,.,v,u~-<u'"'"
um de
COm (JUIUU<UU I:U;.) E~t~ anal do esfíncter glótico conduz-nos de
d~
no corpo, for- novo a mterpre tação
. de certas
1JII11tP»n nmPTnP

um novo estado de coisas, como se eles co~soantes oc l uswas, ao mesmo tempo sonoras e surdas, endu-
mam uma ondem à glotalização das consoantes"
próprios fossem alimentos venenos os ruidoso s e excreme ntos reCimentos que corresp
Iv~n Fo1_1agy (9
2
) nota que a base impulsiva da fonação se tor-
enlatados.» (88 )
na mms ev1~ent~ n_os estados regressivos de emoção violenta.
Mostra, a_ eqmvalenCia vocal das duas fases descritas por Abraham
Há um artigo de S. Ferenczi ( ), onde se fala da voz e da
89 a pr~poslto da fase anal: durante a primeira fase, chamada de ex-
pulsao, ?~scarrega-se a cólera, a agressividade: deita-se cá para
analidade, que tem por título «0 silêncio é de ouro». Ferenczi
fo~a a b1hs, o _veneno, tal como acontece com as dejecções ver-
descreve um paciente obsessivo que, durante as sessões, se mostra bms de Antomn Artaud:
em geral muito inibido, que sofre de prisão de ventre, e que se
revelou muito prolixo durante uma sessão, o que correspondera «Os poetas surrealistas não cantam, berram,
ao facto de, nesse dia, ter tido fezes abundantes. Não falar cons-
ba!em, assoam-se, espirram, tossem, urinam nos seus versos,
titui uma economia; falar muito, com uma voz apressada que não neles, com uma das suas salivações,
investe nenhuma palavra, é uma outra imagem da analidade: re- peldam-se_ e
q~ando n_ao roncam os seus sonhos, estertores de uma ago-
tenção ou defecação.". Nós próprios tivemos um paciente que, ma semplterna. (93)»
durante vários meses, «defecava» palavras umas a seguir às ou-
tras, com uma voz monocórdica, resistindo com essa torrente
. No, número de Traverses dedicado à voz, Florence de Mere-
excretória a uma relação demasiado perigosa para ele. dieu da-nos uma análise do trágico dos textos de Artaud:
«Freud ensinou-me que existem certas relações entre a pala-
vra e o erotismo anal», escreve S. Ferenczi (
90
), passand o em se-
cujas particul aridade s de _ «As pa~a.vras vão ser deformadas, marteladas, esmagadas,
guida a relatar o caso de um gago
fantasia s erótico- anais, por deslo- vao s~r. utilizadas num :entido encantatório, mágico, como
elocução podiam remeter para
matena ts concretos e nao como conceitos. A voz redescobre
cação da líbido do anal para o fonético. Depois, relata o caso de
a sua função orgânica: operação de dessublimação da voz. o.
um outro paciente:
Essa voz que se co,mJ?raz nos gritos, no sangue, na anarquia,
desemboca como umco possível no grito ... E os últimos tex-
«Um doente (um histérico) revela dois sintomas, ao mes-
tos de _Artaud fo_ram feitos para serem lidos em voz alta,
mo tempo e com a mesma intensidade: um espasmo glótico escandtdos, cusptdos, gritados.» (94)
e um espasmo do esfíncter anal. Se está de bom humor, a

(9 1) Ibid., p. 255.
(
87
Wolfson (L.), Le schizo et Zes Zangues, op. cit.
) (
92
) Fonagy (I.), La vive voix, op. cit.
( ) Deleuze (G.), Logique du sens, op. cit.,
Paris, p. 118.
88

( ) Ferenczi (S.), (1916), <<Le silence est d'or»,


89 in CEuvres Completes, Pa- c::) Arymd (A.), TeZ que!, 14, Outono de 1963, p. 75.
( ) Meredwu (F. de), <<La pensée émet des signes, !e corps émet des sons »,
ris, Payot, 1974, tomo 2, pp. 255-256. Traverses, 20, 1980, p. 50.
(9°) Ibid., p. 255.

165
164
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

Compreende-se que a Neste caso, o sexual junta-se ao como Freud


escreve:

«0 sexual, que constitui o fundo da licenciosidade,


«0 próprio corpo convertia-se em lugar . r~jei- não se limita ao que distingue os sexos, estende-se, além disso,
ção, aquém das palavras, num movimento q_ue assumza zrr:- ao que é comum aos dois sexos e igualmente objecto de vergo-
sistivelmente a figura da analidade expulszva ..: A exp~lsao nha, isto é, ao excremencial em todos os seus domínios. Ora,
anal encarrega-se da eliminação não só dos dejectos allmen- é precisamente aí que reside a extensão infantil do "sexual"
tares não utilizados, mas também dos que provêm do cata- na época da infância; na representação infantil, existe de certa
bolismo corporal. Neste sentido, o excremento passa a ser a forma uma cloaca em que o sexual e o excremencial se distin-
própria imagem da morte, na eliminação P.o! ft:agmen~os da guem mais ou menos. Em todo o lado, no domínio da psicolo-
podridão do corpo, ilustrando uma expenencza parczal ~a gia das neuroses, o sexual implica ainda o excremencial e
perda. Se o excremento concretiza a morte, e se Deus o~ez~ continua a ser interpretado no seu sentido arcaico, infantil.» (9 7)
a morte, compreende-se por que é que, para Artaud, a hzsto-
ria de Deus é "ultrajosamente fecal" (O teatro ~~ c_:ueldade). Se «O silêncio é de ouro» para um certo paciente obsessional,
A centragem no corpo é dominc:da pela reJ:zçao de tudo também há «vozes de ouro»: a voz das «divas», que o coleccio-
0 que poderia distrair da sua realzzaçao. P~r zsso: a expul- nador melómano guarda na sua discoteca, como um objecto de
são anal estará no primeiro plano, com as znversoes de va- valor, equivalente simbólico das fezes:
lores que lhe estão associadas.» (95 )
«Se compararmos a voz aos objectos ditos "parciais",
Pelo contrário, durante a segunda fase, chamada de retenção, aos seios, ao excremento, ao pénis, constata-se que a fanta-
0 ódio é dominado, a cólera é contida, a voz estrangula-se; a sia relativa à sua dinâmica pulsional é marcada por isso ...
contenção conduz à fúria recalcada. A voz é neutra: os af~ct.os Nota-se o seu teor vocal, perceptível numa necessidade im-
mantêm-se recalcados. Sob a calma aparente, sente-se o od10. periosa de consumo musical, a sua componente anal, quan-
Nesta perspectiva, há certos silênci~s dos an~lisados que são mais do se converte em objecto de valor, "voz de ouro" ou mera
explícitos do que as suas expressoes verbah~~das:.. colecção para o discófilo.» (9 8)
Outro exempo da analidade sonora: a utlhza~ao de palavras
obscenas. Segundo Freud, retomado por Ferencz1, durante o de-
senvolvimento ontogenético, o aparelho psíquico passa de cen- A propósito da fase fálica, Freud afirmou que só existe um
tro de reacção alucinatório-motriz para órgão do pensamento: único órgão para os dois sexos:
«As palavras obscenas possuem características que, numa «Para os dois sexos, só há um único órgão genital, o
fase mais primitiva do desenvolvimento psíquico, ecam co- órgão masculino, que desempenha um papel. Portanto, não
muns a todas as palavras ... As palavras obscenas sao pala- há um primado genital, o que há é um primado do falo.» (99)
vras que traduzem bem o objecto nomeado, o órgão ou as
funções sexuais na sua realidade material.» (96 )
97
( ) Freud (S.), Le mot d' esprit et ses rapports avec l' inconscient, Paris,
Gallimard, 1969, p. 144.
(95) Rosolato (G.), «L'expulsion>>, La relation d'inconnu, op. cit., pp. 131 (9 8) Rosolato (G.), La voix: entre corps et langage, op. cit., p. 95.
e 133. (9 9) Freud (S.) (1923), <<L'organisation génitale infantile>>, La vie sexuelle,
e6) Ferenczi (S.), (1910), Mots obscenes, Paris, Payot, 1968, tomo 1, p. 1129. Paris, PUF, 1970, p. 114.

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Marie-France Castarede

Mais em 1 escreverá: Na fase a toma consciência da das


vozes - voz do da mãe - , mas continua a ser ela
ou vocalmente indiferenciada até à pu-
. . em ~ue a mudança de voz ao rapaz a
sua v.erdaderra Identidade sexual vocal, nitidamente distinta da da
rapa~1ga. Portanto, sob este ponto de vista, a fase fálica é, para
Há psicanalistas que, ao contrário de notaram que «a a cna~ça, a fase da indiferenciação, e a ambiguidade que a ca-
inveja do pénis» não era assimétrica: os homens também podiam ractenza tende mais para o lado da feminilidade.
invejar os seios e a vagina das mulheres, ou seja, simbolicamente, . Também é a fase em que o erotismo uretral começa a expan-
a sua capacidade de transportar as crianças, de as pôr no mundo \ilr-se. Para Freud, o erotismo uretral é alheio à diferença dos
e de as alimentar com a sua própria substância. Karen Horney, ~exos,. mas aponta o caminho ao desenvolvimento genital. Na
Mélanie Klein e Bruno Bettelheim (1° 1) demonstraram a força da sexualidade adult~, há um prazer da emissão, que é um prazer
inveja masculina, realçada por Didier Anzou: da descarga. Assn:n, na fase fálica, a voz, tanto para o rapaz
como para a _rapanga, ~stá emin~ntemente ligada a esse prazer.
«Se a ausência do pênis provoca a decepção puramente A voz que sm da boca e um eqmvalente da omnipotência fálica,
feminina, o sofrimento especificamente masculino tem a ver encarnada, em certos aspectos, pelos cantores.
com a descoberta, por parte do rapaz, da sua incapacidade
de transportar crianças no seu ventre e de as pôr no mun-
do.» eoz) Se a fase edipiana tem a importância que Freud lhe atribuiu
sabe-se que funciona para os dois sexos no registo fantasmático'
Nesta controvérsia, a voz oferece-nos um terreno privilegiado em consequên~ia não só da renúncia aos desejos incestuosos qu~
para se repensar a questão da bissexualidade e da diferença dos estruturam a diferença das gerações, mas também em consequên-
sexos. Antes da puberdade, as vozes da rapariga e do rapaz são cia da impotência sexual da criança ainda imatura.
parecidas: não é a voz da rapariga que imita a do rapaz, é o con- A voz refle~te esse estado de imaturidade: o rapaz identifi-
trário. A embriogénese sexual surge como uma diferenciação a ca-s_e com o pai e: vocalmente, continua a ser uma criança. To-
partir de uma bissexualidade potencial inicial. Contudo, «as expe- dav~a, se a matunda~e sexual vocal se atinge na fase genital,
riências de castração precoce do embrião masculino conduzem a decide-se antes, precisamente durante a travessia do conflito
uma morfologia interna feminina» (1 03 ). Como a masculinização é, edipiana e a saída desse conflito. A marca sexual da voz tem a
biologicamente, um fenômeno activo e a feminilidade é um fenô- ver com a problemática identificatória e reencontrar-se-á mais
meno passivo, será interessante constatar que a evolução da voz tarde na identidade sexual vocal, mais ou menos afirmada con-
da infância confirma os dados embriológicos: a virilização da voz forme os casos. '
é um fenômeno activo que ocorre sob a influência da puberdade. Com e~eito.' a vocalidade está ligada à evolução da sexuali-
dade. A pnme1ra voz que o feto ouve é uma voz de mulher, a
voz da mãe, como já sublinhámos largamente. Claro que essa
C00 ) Freud (S.) (1933), <<Le féminité>>, Nouvelles Conférences sur la voz, numa diferenciação sexual progressiva - que, como é real-
psychanalyse, Paris, Gallimard, 1971, p. 155. çado_ por Mélanie ~lein, intervém muito antes da fase edipiana
C01 ) Bettelheim (B.), Les blessures symboliques, Paris, Gallimard, 1971. classicamente .descnta por Freud - vai ser distinguida pela crian-
(1°2) Anzieu (D.), <<La structure nécessairement narcissique de l'reuvre>>,
Bulletin de Psychologie, n.o 336, Julho-Agosto de 1978, pp. 613-614. ~a ~a ~oz mais g.rave do outro, do estranho, o pai, o «terceiro»,
(1° 3 ) Kreisler (L.), <<Les intersexuels avec ambigui:té génitale>>, La mshtmdor da Le1: à fase organizadora do «rosto do estranho»
Psychiatrie de l'Enfant, 13, 1, 1970, p. 7. descrita por René Spitz no plano visual, poderia corresponder:

168 169
Marie-France Castarede

no plano «a voz do tomar-se um pouco mais grave; em


edipiano propriamente dito é um retomar dessa a aumenta muito e, como é normal na o alonga-
ca com identificação ao ~ento ~ordas fá-las vibrar mais lentamente e,
do mesmo sexo. emi-
Em O Eu e o Id, emite com de trr sons mars graves. Nas nossas culturas, a diferença média entre
a
uma origem acústica do Supereu: a~ vozes de homen s e as vozes de mulher es é de
cerca de uma
mtava e, se se pedir a um grupo misto para cantar em uníssono,
«Dado o papel que atribuímos aos vestígios verbais in- as mulheres cantam espontaneamente uma oitava mais alto do que
conscientes que existem no Eu, poder- se-á pergun tar se o os homens eos).
Supereu, quando é inconsciente, não é constituído por esses . Assim, para que o sujeito se estruture, tem de afirmar a sua
/ . s ou por
vesttgw qua l quer cozsa
. ana'l oga.» (104) d1fere:qça sexual, renunciando ao que lhe falta, ou seja, ao outro
s~x?. E esse. o sentido daquilo que se design a por castraç
ão sim-
Didier Anzieu retoma esta ideia, completando-a: bohca. O pnmad o «fál.ico» de Freud não é indispensável para se
compreender este movimento. A voz sexualiza-se sob o efeito da
«0 Supereu sádico arcaico começa a adquirir um carác- puberdad~, ~as ~ ~dentificação psicológica é mais decisiv
a do que
ter regulador do pensam ento e da conduta com a aprendi- a evoluçao bwlog1ca (voz efemin ada num homem voz de meni-
zagem da primei ra articulação da linguagem.» (1° 5) na ou, yelo. ~ontrário, masculina numa mulher). '
A Identificação vocal sexuada está associada a um sem-nú-
No seu livro Le corps de l' ceuvre, vai ainda mais longe ao mer_o de, nuances possíveis, que correspondem às histórias indivi-
revelar que o Supere u «acústico», redefinido por um ramo da dua~s ~ as. marcas q~e ?elas deixaram as personagens
importantes
ego-psychology nos Estados Unidos, ao basear-se na submissão da mfanc1a, re?onst1tmdas de acordo com a fantasia própria de
às regras do código linguístico, converte-se em instância regula- cada um. No secu~o XX, graças à redefinição dos papéis psicos-
dora e não apenas sádica (1° 6). s9Ciais,. as fr~nte1ras entre a femini lidade e a mascu linidad e
Assim, na infância, as vozes agudas estão ligadas no nosso sao mmto mms flexíveis: compe te a cada um encont rar 0 seu
espírito à mulher, à feminilidade, e as vozes graves, ao ~ornem, lugar adequado, isto é, a sua voz. A cultura do canto pode aJ·u-
à virilidade. Só com a mudan ça de voz, na puberdade, e que a dar co9).
voz do rapaz «soprano» ou «contralto», de acordo com as dis- Assim, a voz ~á:nos ~ma boa imagem da bissexualidade que
tinções específicas da voz feminina (1°7) vai sofrer uma alteração, cada p~ssoa pos~m a partida e que, progressivamente, de acordo
mudar de «registo», passar do feminino para o masculino, passan- ~~m o JOg~ s~btll das .diferenciações e das identificações
sexuais,
do a incluir-se nas definições masculinas de tenor, barítono ou Ira conduzrr a sexualidade vocal sempre original e singular de
baixo. cada um.
Na puberdade, a laringe, carácter sexual secundário (tal como Co~ o obser~a Ivan Fonagy , o proces so vocal
é investi do
os pêlos), aumen ta ligeiramente nas mulheres e a sua voz pode p~los d1~erentes Impulsos parciais, sob o primad
o da identifica-
çao gemtal sexual:

('o4) Freud (S.), «Le Moi et !e Ça>>, Essais de psychanalyse, op. cit.,
p. 226.
('os) Anzieu (D.), «L'enve loppe sonore du Soi>>, Narcisses, Nouvelle
Revue _ C08)
de Psychanalyse, op. cit., p. 173. Rondeleux (L. J.), <<Les voix, les registres et la sexualité>> in Esprit
(' 06) Anzieu (D.), Le corps et l'll!uvre, Paris, Gallimard, 1981, 7 8, J~lho-Agosto de 1980, p. 49; o autor pergunta
P: 123. se não existirão grupos
(' 07) A voz do rapaz também é designada por <<sob-voz>> ou <<balxo- c~ltur~Js em que as mulheres falem tão alto como
so?- os homens. De momento
voz>>, na terminologia do século xvu; cf. Raugel (F.), Le chant chorai, nao ha qualquer estudo que permita afirmá-lo.
Par1s, '
PUF, 1966, p. 80. C09) Rondeleux (L. J.), Trouver sa voix, op. cit.

170 171
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

cortante, seco,
cegamente ao que existe
pido, mais e é por isso que na voz estamos com-
evoca o ,,.,Ju'~"-' pletamente nus. Estamo s nus para o outro: só o outro, e
apenas ao ouvir a nossa voz, pode fazer o da
cais tem a ver com a
destas componentes a nossa alma. Só na voz é que estamos nus; porque o corpo
!idade. Por conseguinte, o jogo ou o nu não implica uma nudez total, uma nudez reveladora: se
encantamento, deve a sua energia psíquic a conside rável a é certo que as atitudes e os gestos nos denunciam, só o fa-
uma boa síntese do impulso letal e dos impulsos sexuais, e zem parcialmente, porque também nos ocultam; as atitudes
sobretudo ao investimento genital do movimento melódico. e os gestos vestem-nos.» C12 )
Esta hipótese está mais de acordo com as nossas observa-
ções; de facto, as emoções que derivam do impulso genital A voz fala de nós, do nosso sexo e da nossa psique: é tota-
- o amor, a doçura, a ternura, o desejo insatisfeito, a co- lidade psicossexual.
queteria - são as que se distinguem pelo seu carácter meló-
dico e pela sua riqueza tonal.» C10
)

Se a voz é uma das características que resumem a sedução,


é por ser «sexuada» num contexto identificatório que a toma
portadora de todo um passado infantil: sob este ponto de vista,
é normal que ela constitua um «apelo» ao outro, nessa mensa-
gem amorosa que evoca o canto que o pássaro macho dirige à
fêmea da mesma espécie ... Podemos apaixonar-nos por uma voz
(as cantoras e os cantores possuem um fascínio sexual podero-
so) ( 111 ) e isso não significa que se vai atrás de uma ilusão por-
que a voz é o ser na sua totalidade, com os seus diferentes
humores, inflexões, emoções, mas também na sua intimidade
oculta, com o seu fundo próprio. Hector Bianciotti facultou-nos
o texto escrito de uma comunicação sobre «A voz e a nudez»:

('
10
)Fonagy (I.), La vive voix, op. cit., p. 146.
11
(' ) Roland Mancini contava-nos que tinha observado fenômenos amoro-
sos extraordinários entre certas cantoras e os seus «fãs»; o apaixonado perdi-
do por uma «diva» seguia-a nas suas deslocações, tremia de el?oção ao _ouvi-~a
mu~­
cantar, etc., sem que isso implicasse uma relação íntima postenor. Havena
to a dizer sobre o poder de atracção do cantor, poder que se exerce e atra1,
al-
fora da relação sexual propriamente dita, o que é muito conveniente para
guns ... (
112
) Bianciotti (H.), La voiz et la nudité, inédito.

172 173
Capitulo VI
As formas culturais do canto
«0 Ninette! onde estão, bela musa adorada,
As melodias de amor, encanto e terror
Que adejavam à noite nessa boca inspirada
Como um aroma leve sobre o pilriteiro em flor?
Onde vibra agora essa voz magoada,
Essa harpa viva presa ao teu coração?»

A. de Musset, Stances à la Malibran

A voz, espaço transicional entre o corpo e a linguagem, que


tem a ver, ao mesmo tempo, com o narcisismo e a sexualidade,
conduz-nos ou faz-nos regressar ao canto: falemos agora do canto
da voz, sob os seus diferentes aspectos, associando-os a particu-
laridades psicológicas.

O canto religioso
O canto desempenhou um papel fundamental nas relações
entre o homem e o sagrado: o homem, desarmado perante os
mistérios do universo, procura ligar-se ao poderoso, ao desconhe-

177
Marie-France Castarêde

cido, ao através do seu canto: invoca- mas trata-se de uma que remete para uma
ções ... A música vocal esteve associada aos cultos e às
preces, desde os cantos védicos à da passan-
do pelo Nô e pelo apelo do Muezzin. O cantor procura «ligar-
-se» ao Altíssimo («religião» vem do latim religare, que significa A ópera: castrati e divas
«ligar»). Dirigindo-se a Deus, o homem quer-se desencamado,
místico, como S. Francisco na ópera de Messiaen. Liberta das referências religiosas, a ópera foi-se convertendo
O processo de idealização, que se verifica nas manifestações progressivamente em teatro das paixões humanas. O cantor foi,
musiciais, conduz a essa invocação do sagrado. Na religião ju- desde sempre, o «porta-voz» de uma sociedade, reflectindo as
daico-cristã, Deus é o protótipo dessa figura idealizada, e sabe- suas aspirações, os seus desejos e as suas fantasias. Durante o
-se que Ele é muitas vezes personificado pela sua voz: é a sua pt)ríodo barroco, a ópera foi o palco onde uma sociedade tenta-
voz que Moisés escuta na sarça ardente, através do chofar, cor- véi superar ou transgredir a maldição da diferenciação sexual, e
no de carneiro, reconhecível pelos seus sons «crus, medonhos, talvez tenha sido por isso que Orfeu, evocador da ambiguidade,
plangentes, cavos e prolongados» ('). Qualquer voz cantada, fora surgiu como o primeiro herói de ópera (3). Os castrati, que can-
do seu uso imanente, teria relação com Deus, isto é, com a voz tavam os papéis mais masculinos do Pantéon greco-latino (Zeus,
paterna, porque todas as figuras divinas, representadas ou não, Hércules, Aquiles ... ), aliavam um timbre feminino a um poder
têm o pai como símbolo. Qualquer transmissão espiritual é vocal viril. Mantendo por muito tempo uma aparência e um rosto
decalcada do sistema patrilinear da ordem do simbólico. Deus é infantis, transgrediam a segunda maldição do homem: o envelhe-
uma forma do Eu Ideal, se não do Ideal do Eu. cimento. A sociedade do século XVII e do século XVIII assistiu
No canto religioso, a figura do Pai é a figura da glória e do no palco ao espectáculo da recusa dessas duas leis humanas - a
poder (Gloria, Te Deum, A Criação), ou a da bondade e do per- diferença dos sexos e das gerações - , não só na sua componente
dão (Salmos, Motetes, Requiem): a própria expressão do Deus te- aristocrática, os teatros de corte, mas também nas cerimónias fes-
mível e justiceiro no «Dies Irae» do Requiem de Verdi vai-se tivas populares: carnavais, festas rituais, em que artistas e intér-
progressivamente enternecendo, até à última súplica do «Libera pretes recorriam à mesma ambiguidade (como é o caso da
me», feita quase num sussurro ... Através de toda a música religiosa, personagem Arlequim, na Commedia dell' Arte). A ópera cumpria
verifica-se essa distância entre o homem, implorante do mundo da assim uma função mítica, inspirada no modelo dos deuses anti-
terra, e o Altíssimo, presença inatingível do mundo do Céu. Por gos, onde estes não tinham um sexo definido porque estavam
isso, o que reina nessa música é a idealização, tranquilizadora para isentos das obrigações humanas. O castrato sopranista Caffarelli
o nosso narcisismo, geradora de paz e de consolo, à margem dos (1710-1783), famoso no mundo inteiro, podia soltar num só so-
tumultos e dos sofrimentos dos conflitos humanos. Quanto à Vir- pro cadências de catorze compassos em semicolcheias. Essa ex-
gem Maria, Imaculada Conceição, abençoada entre todas, é a Mãe traordinária capacidade torácica era considerada como um
ideal. A sua pureza protege das angústias pulsionais e ela é virtuosismo invulgar. Quanto a Carlo Broschi, conhecido por
invocada como uma figura perfeita de ternura e de amor. Farinelli (1705-1782), o poder da sua voz foi o único remédio
A música vocal religiosa conduz-nos a um referente paterno para a neurastenia de Filipe V de Espanha, que o manteve du-
idealizado: Deus Pai. Existe triangulação, com a figura da Vir- rante vinte e cinco anos na sua corte e o tomou rico.

C) Reik (T.), Ritual, citado por Rosolato (G.), Essais sur le symbolique, (2) Cf. Grunberger (B.), Le narcissisme, op. cit., p. 203.
op. cit., p. 293. O trabalho de Reik sobre o chofar é igualmente citado por (3) Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, personificava a bissexuali-
J. e A. Ca1n em Psychanalyse et Musique, op. cit., p. 119. dade divina.

178 179
Marie-France f~ Voz e os Seus

Mas donde é que


não se admitia que as
não eram aceites na '--ai-''-'Jla
via seis na cap~la de de Lassus.
Indochina e da India, introduzidos pelos .....,yu.uuuw"'"
de e Córdoba, os castrati acompanharam a Segundo se pensa, a castração era entre os seis e
liturgia moçárabe, espanhola e romana. os dez anos. O castrato continuava a crescer, mas não tinha
O que é um castrato? Segundo o dicionário castrato los e ficava mais encorpado. Trabalhava a voz e sabe-se
é «um cantor que foi castrado na infância para conservar uma voz que estudava canto e música durante oito ou dez anos, mais de
de soprano». Esta definição não é totalmente exacta porque hou- dez horas por dia, sem qualquer interrupção na altura da mudança
ve sempre dois tipos de castrati: os sopranos e os contraltos, que da voz, como acontece inevitavelmente a todos os cantores, ho-
se diferenciavam mais pelo timbre do que pela extensão da voz. mens e mulheres.
Sob o ponto de vista médico, o castrato era um jovem que pos- A ópera, que começava a desenvolver-se, revelou grande
suía as características sexuais masculinas, mas que, antes da pu- apreço por essas vozes estranhas e quase assexuadas que eram
berdade e da mudança de voz, tinha sido submetido a uma capazes de encarnar papéis masculinos ou femininos. Foi um
operação para lhe serem tirados os testículos e, por consequência, castrato, Giovanni Gualberti, qué representou pela primeira vez
eliminada a secreção de testosterona. Em geral, é sob a acção da o papel de Orfeu na ópera de Monteverdi (1607), e foi outro
testosterona ou hormona masculina que o adolescente adquire os castrato que encarnou a personagem de Nero na primeira re-
sinais exteriores da virilidade: os ossos, os músculos, a pele, os presentação de A Coroação de Popeia (1642). Dominique Fer-
pêlos e a voz mudam. Se há algo que contraria a influência dessa nandez observa com uma certa tristeza (a sua obra, La Rose des
hormona, a laringe não se desenvolve naturalmente e toma-se hí- Tudors, revela uma grande nostalgia) que, no século XVII e no
brida, nem totalmente infantil, nem totalmente feminina, nem, claro século XVIII, «OS compositores que confiavam a castrati os pa-
está, totalmente masculina ... A laringe mantém-se junto das cavi- péis de César, Alexandre, Aquiles ou Hércules sabiam muito bem
dades de ressonância, junto da caixa craniana, isto é, não desce, que o verdadeiro herói tem algo de divino e que a divindade não
como é normal, o que provoca um timbre mais rico em harmôni- conhece qualquer distinção de idade ou de sexo» (6).
cos, um vibrato fácil, uma grande tessitura. Nos castrati, as cor- Os deuses transcendem a diferença dos sexos:
das vocais, que se alongam nos homens por ocasião da puberdade,
mantinham a mesma dimensão das cordas vocais femininas (4). «A bissexualidade universal é uma consequência neces-
Graças a uma laringe que reúne idealmente as vantagens da sária da ideia da bissexualidade divina»,
laringe da criança, da mulher e do homem, o castrato tinha uma
voz irreal, ambígua: o mito do andrógino tomava corpo. O Prín- como afirma Mircea Eliade C). Seja como for, os castrati foram
cipe de Sansevero declarava a Porporino: adulados, não só devido à sua forma de cantar, mas também pela
sua pessoa e houve homens e mulheres de condição que os tor-
naram seus amantes (8). Conta-se que alguns tinham uma vida

4
( ) Todas estas informações médicas foram fornecidas pelo professor
Sauvage, otorrinolaringologista, e pelo doutor Vincent, endocrinologista, que C) Fernandez (D.), Porporino ou les mysteres de Naples, Paris, Grasset,
encontrámos durante uma mesa-redonda sobre os castrati, realizada em Limoges 1974, p. 221.
( ) femandez (D.), La Rose des Tudors, Paris, Julliard, 1986, p. 13.
6
a 8 de Fevereiro de 1983, por iniciativa de Christian Gaumy, musicólogo. Acon-
selhamos a leitura do3 dois artigos, da autoria de Gaumy, publicados nos nú- C) Eliade (M.), Méphistopéles et l' androgyne, Paris, Gallimard, 1962, p. 133.
meros 76 e 77 de Opéra International (Dezembro de 1984 e Janeiro de 1985). (B) A erecção é um fenómeno independente da função endócrina.

180 181
Marie-France Castarede

conjugal, embora não procriassem, e que o seu estado não os pre- a unidade do masculino e do
dispunha de um modo especial para a para a terra.» (1 2)
No entanto, não são só os castrati
sexual clássica; toda a ópera barroca inverte os papéis: Através destes exemplos, não é o pênis como órgão sexual
masculino que é promovido a modelo desejado, é o masculino
«Monteverdi, em Veneza, e Alessandro Scarlatti, em Ná- que tenta a todo o custo unir-se ao feminino:
poles, dão vozes de soprano a imperadores, dão vozes de
tenor a mulheres, dão a jovens apaixonados vozes mais agu- «0 ideal hermafrodita provém do ideal fusional que une
das do que às suas damas. Em La Calisto de Francesco a criança ao seio materno.» (1 3 )
Cavalli (9) (o sucessor de Monteverdi em Veneza), o mesmo
actor canta com voz de baixo quando é Júpiter e canta com A ilusão bissexual baseia-se na relação primordial, no desejo
voz de falsete quando se disfarça de Diana, para seduzir uma sempre vivo de anular a separação e negar a alteridade dolorosa.
jovem ninfa que sente uma paixão sáfica pela deusa.» (1°) Através de duas novelas, Sarrasine (1830) (' 4) e Séraphitus-
-Séraphita (1835), incluídas em Études philosophiques, Balzac
Este interesse pelos castrati também permitia a criação de um retoma o tema swedenborguiano do andrógino como imagem do
clima irreal e divino nas igrejas. Nas catedrais e nos colégios ser perfeito, angélico: em Sarrasine, «a Zambinella» é um
ingleses, as escolas de canto, pelo menos a partir do século XV, castrato italiano por quem as mulheres se apaixonam loucamen-
eram constituídas apenas por homens, «all male cast»; as vozes te ... O exemplo dos castrati, e toda a nostalgia que a eles conti-
superiores eram confiadas a rapazes dos oito aos catorze anos, e nua associada, atenua a posição freudiana do primado fálico.
as vozes de contralto, a jovens adultos, ao lado de tenores e de Continua a poder falar-se de bissexualidade, mas essa bissexua-
baixos: lidade não está ligada a uma preponderância da anatomia mas-
culina, mas a uma posição perversa de negação da diferença dos
«As vozes de tiple (rapazes com voz de soprano) são sexos. Os homens podem sonhar com a bissexualidade a partir
vozes de cabeça, colocadas muito alto, o mais longe possí- do modelo feminino, embriológica e imaginariamente primeiro,
vel do peito, do sexo, do resto do corpo: vozes desencarna- modelo cuja voz tentam captar, mesmo à custa de uma mutila-
das, mas de uma sexualidade intensa, como um acto de amor, ção física (' 5).
desse amor físico e místico cuja verdadeira dimensão não é Claro que a procura do andrógino não é de sentido único,
o prazer, pobre pausa roubada ao tempo, mas o deserto, o mesmo se a história dos castrati coloca em primeiro plano a pro-
vazio interior, a morte, o êxtase, a eternidade.» ( 11 ) cura da feminilidade por parte dos homens. Com efeito, a partir
de 1833, Rossini tentou substituir os castrati, em vias de desa-
«Misogenia?», interroga-se Dominique Femandez: parição, por primma donne de voz grave. As heroínas do Barbei-
ro de Sevilha, de A Italiana em Argel e de Cinderela, na versão
«De facto, o que se pretende é desenvolver nos homens original, são contraltos. Como afirma Dominique Femandez:
o lado feminino da sua natureza. É esse o objectivo dessas
escolas de canto: superar a distinção entre os homens e as
2
(1 ) Op. cit., p. 17.
3
(' ) McDougall (J.), «L'idéal hermaphrodite et ses avatars>>, Bisexualité et
(9) Francesco Cavalli (1602-1676) deixou-nos, entre outras, as óperas se- différence des sexes, Nouvelle Revue de Psychanalyse, 7, Primavera de 1973,
guintes: La Calisto (1651) e Ercole amante (1662). p. 264.
(1°) Femandez (D.), op. cit., p. 15. (' ) Anotada por Roland Barthes em S-Z, Paris, Le Seuil, 1976.
4

C1) Ibid, pp. 17 e 36. 5


(' ) Segundo as crónicas da época, 10% das crianças castradas morriam.

182 183
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

os eram e Bellini nP~nr;nr·pr,om.


'"''"''flf./us a renunciar à sua coubesse às de
cultivar a sua voz o era
manter a divina do sexo No entanto, os
contraltos femininos não deixavam de ser vozes A música vocal passa então a apontar as limitações biológi-
passo que os castrati não ostentavam a marca cas e sobretudo psicosexuais da espécie humana, em vez de exal-
sexos.» (1 6) tar a indeterminação, como acontecera nos séculos anteriores.
Assim, é na época do romantismo que se verifica a aparição de
Proibidos em França pelos enciclopedistas devido à monstruo- uma outra moral e de uma outra estética: Wagner e Verdi con-
sidade da sua mutilação, os castrati ainda tiveram tempo para tribuíram grandemente para dar à voz a sua especificidade sexual.
inspirar Gluck, Mozart e Rossini. Todavia, com as conquistas A voz canta a alegria ou a dor de um indivíduo que tem um
sociais, um teatro popular, refractário a essas personagens (que torpo sexuado: o castrato, como demonstrámos, cantava indife-
grassavam sobretudo nas igrejas), levou estes compositores, em rentemente a mulher, o imperador ou o deus ... Com Wagner e
finais do século XVIII, a caracterizar as personagens, estabelecen- Verdi, os registos afirmam-se: o tenor, viril, de voz poderosa e
do tipos de vozes. Assim, a ópera vai descobrir o encanto mas- retumbante, que alterna com os seus homólogos, mais viris ain-
culino da voz de tenor e o encanto feminino da voz de soprano. da, o barítono verdiano e o baixo, encarnam papéis distintos dos
Isabelle Colbran, a mulher de Rossini, é capaz de vocalizar des- papéis femininos, também eles fortemente caracterizados nos re-
de o lá grave até ao ré grave. Mais conhecida por nós, a gistos de «soprano», de «meio-soprano» ou de contralto, incluin-
Malibran, a sua irmã Pauline Viardot-Garcia e a Pasta (tão apre- do todos os intermediários e todas as nuances possíveis:
ciada por Stendhal) continuam a ser os modelos das grandes
sopranos dramáticas. Aos castrati sucedem as divas ... Este perío- «Na nossa sociedade ocidental, através dos quatro
do de transição - o período do bel canto - conserva ainda uma registos vocais da ópera, é Édipo que triunfa: no baixo, no
parte do desejo mítico da época barroca e da sua ambiguidade contralto, no soprano e no tenor está presente toda a família,
sexual (cf. os travestis de Mozart, Rossini e Gounod (1 7 )). o pai, a mãe, a filha e o filho, simbolicamente projectados,
Trata-se de um período que está também associado à apari- sejam quais forem os meandros do episódio e as substitui-
ção do contralto feminino, como já referimos, e ao apogeu do ções de papéis.» (1 9 )
«tenor lírico», de tessitura muito aguda.
Em 1833, Rossini renuncia praticamente à composição. Nes- Por intermédio dos «seres de ficção», a ópera remete para o
se mesmo ano, Verdi e Wagner têm vinte anos: Ideal do Eu, instância pós-edipiana.
Passamos a referir as classificações vocais, cuja elaboração
data do século XIX (2°):

6
(' ) Femandez (D.), op. cit., p. 9.
(' 7 )Cecilia e Lucia Cinna em Lucia Silla (Mozart); Adamante em
Idomeneu (Mozart); Cherubini em Le nozze di Figaro (Mozart); Sextus e 8
(' ) Femandez (D.), op. cit., p. 12.
Annius em La Clemenza di Tito; Enrico em Elisabetta, Regina D' Inghilterra (1 9 ) Barthes (R.), L'obvie et l'obtus, Paris, Le Seuil, 1982, p. 254.
(Rossini); Jemmy em Gulherme Tell (Rossini); Isolier em Le Comte Ory (2°) É interessante classificar as vozes, mas por vezes uma voz pode as-
(Rossini); Arsaces em Semíramis (Rossini); Pippo em La gazza ladra (Rossini); sumir diferentes papéis (Maria Callas cantou a Carmen, a Tosca e Lucia de
Malcolm Groem em La donna de! lago (Rossini); Stephano em Romeu e Julieta Lammermoor e perfez, portanto, três tipos de tessituras). Também há ligeiras
(Gounod); Siebel em Fausto (Gounod). No início do século XX, surge outro diferenças de cor e de timbre que impedem uma classificação rígida e só po-
travesti famoso: Octavian, em O Cavaleiro da Rosa (R. Strauss). dem ser definidas em função dos diferentes papéis do repertório.

184 185
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

a. Do mais agudo para o mais grave: 4. Tenor dramático \~'AU'"""'


Max Jon
1. Soprano ligeiro, impropriamente denominado de 5. Barítono martin (Jacques Jansen).
coloratura (2 1) (Mado Robin, 6. Barítono (Gabriel Bacquier, Dietrich Fischer-Diskau).
Rita Streich). 7. Barítono Verdi (Tito Gobbi, Ruggero Raimondi).
2. Soprano de meio-carácter (Janine Micheau, Barbara 8. Barítono baixo (Mareei Journet, Nicolas Ghiaurov,
Hendricks). Kurt Moll, José van Dam) (2 6 ).
3. Soprano lírico (Elisabeth Schwarzkopf, Irmgard See- 9. Baixo lírico (Fedor Chaliapine, Hans Hotter, Ivan
fried, Kiri te Kanawa, Mirela Freni, Gundula Janowitz). Petrov, Boris Christoff) (2 7).
4. Soprano dramático (Kirsten Flagstad, Régine Crespin,
Birgit Nilsson).
5. Soprano spinto (Renata Tebaldi, Montessat Caballé):
o spinto é um soprano com agudos tensos e dramáti- A classificação das vozes pretende não só manter diferenças
cos. (22 ) muito subtis, mas também retirar à voz tudo o que nela havia de
6. Mezzo-soprano (Christa Ludwig, Frédérica von Stade, errância e de transgressão, na época dos castrati. Nota-se um
Shirley Verett, Jessye Norman, Janet Baker). desejo de atribuir territórios muito precisos: assim, desaparece a
7. Mezzo-soprano de coloratura (Teresa Berganza, Ma- ambivalência do século anterior, quando o prazer da audição
gali Damonte, Lucia Valentini-Terrani). provinha da perturbação gerada pela indistinção.
8. Mezzo-soprano Dugazon (Jane Berbié): o mezzo-so- O tenor canta com voz mista (voz de peito e voz de cabeça
prano Dugazon (do nome de uma cantora famosa) é misturadas) e proclama a sua virilidade, tal como o soprano canta
um mezzo-soprano que canta papéis de travestis. (23 ) a sua feminilidade. A voz torna-se homogénea; cada um dos
9. Contralto (Kathleen Ferrier, Hélene Bouvier, Maria sexos cultiva a sua «tessitura»:
Anderson).
«0 trapalho da voz assemelha-se a uma espécie de te-
b. Vozes masculinas. Do mais agudo para o mais grave: celagem. E como se, no início, houvesse dois fios totalmente
diferentes: o grave, duro e rfgido, o agudo, leve e delicado.
1. Contratenor (Alfred Deller, René Jacobs, James A partir desses dois fios, tece-se o medium, registo original,
Bowman) (2 4 ). que exclui a voz de peito pura e a voz de cabeça pura, e que
2. Tenor ligeiro (Luigi Alva). se fabrica a partir de certos elementos pertencentes aos dois
3. Tenor lírico (Enrico Caruso, Georges Thill, Jussi registos fundamentais. Depois, tecer-se-á o fio agudo, mais
Bjõrling, Léopold Simoneau, Georges Jouatte, José ou menos transformado, do registo mais elevado para o
Luccioni, Alfredo Kraus, Placido Domingo, Luciano menos elevado, e só depois se tecerá o fio grave, do registo
Pavarotti) (25 ). menos elevado para o mais elevado, de forma a unificar-se
a totalidade vocal.» (2 8)

(2 1) A coloratura designa o virtuosismo, seja em que registo for.


(2 2 ) Em a.3., a.4. e a.5. a tessitura é a mesma.
(23) Idem, para a.6., a.7. e a.8. (2 6 ) Não há limites precisos entre o barítono e o baixo.
(2 4) Mesmo registo que o do contralto. (") A nossa lista, que está longe de ser exaustiva, pretende apenas dar al-
(2 5) «Heldentenor>> designa o tenor wagneriano, ao passo que a expressão guns exemplos, a que acrescentamos, em anexo, referências a árias de ópera.
«tenor dramático>> se aplica a outros compositores, por exemplo, a Verdi. (2 8) Rondeleux (L. J.), op. cit., p. 155.

186 187
A Voz e os Seus

a cla:ssifica·çao
metade do
G'-'fóUa,UU

vocal. do famoso
cantores que tentam redescobrir os cowvalJtcv"
castrati desaparecidos, um
sica pop também revela a :saiJu<:tuc
sexual: David Bowie, Alice
nada», os Pink Floyd, Klaus Nomi ... Mutilavam-se rapazes para os converter em castrati, e dava-
Evoquemos, para terminar, uma das canto:as. desta -se-lhes em troca dinheiro, honrarias e fama. Quem escolhia esse
época e que tanto nos perturba ao assumir a outra amb1gmdade: destino não eram eles, eram as famílias, por ambição, e os prín-
a contralto Katheleen Ferrier. O timbre da sua voz é raro e cipes, por capricho e por mero divertimento. Para os gran~es
Katheleen Ferrier emociona-nos porque o utiliza com uma inten- deste mundo - homens - , isso não passava de uma tentativa
sidade e uma pureza perturbantes. O poeta Yves Bonnefoy pres- para reduzir o medo da mãe fálica, opondo-lhe uma espécie de
ta-lhe homenagem: monstro biológico cuja voz, se não o sexo, cobria, pela sua po-
tência e o seu duplo registo, a tessitura, simultânea e indivisível-
«Celebro a voz tingida de cinzento mente, masculina e feminina: neste caso, a voz é o equivalente
Que hesita na lonjura do canto perdido desse poder narcisista «fálico».
Como se para além de toda a forma pura Quando o direito e os costumes reprovaram formalmente a
Vibrasse um outro canto, o único absoluto.» (3°) prática da castração nas crianças, pondo fim ao reinado dos
castrati, surgiram as divas, outras figuras da Mãe original, com
toda a sua magnificência e os seus poderes:
Se as divas («deusas» em italiano) sucederam aos castrati,
que interpretação se poderá dar desta história? O sonho dos cas- «A representação da Mãe é a de um ser omnipotente,
trati, por intermédio de príncipes, mec~nas ~.mestres d~ capela, que tem ao mesmo tempo o poder de criar a vida, a possi-
foi seguramente tomar real a androgema m1t1ca, apropnando-se bilidade de alimentar e o poder fático do homem. Esta crença
da voz feminina, voz que se convertia não só no equivalente do no falicismo da mulher persiste durante basta;zte tempo por-
pênis mutilado mas, e mais ainda, no poder fálico mágico e se- que protege da angústia da castração ... E desse apego
dutor da mãe original. e dessa admiração que provém a veneração pela Deusa-
As lendárias filhas das águas, ornadas de uma esplêndida -Mãe.» (3 2 )
cabeleira, tinham cabeça e busto de mulher e cauda de peixe.
Acima de tudo e tal como as sereias da Antiguidade, possuíam Através do canto e da ópera, os homens continuaram a criar
uma voz que e;feitiçava. A Lorelei enfeitiçava os barqueiros do fantasmaticamente essa Mãe Omnipoten,te, arranjando proces-
Reno e atraía-os com os seus cantos, fazendo-os naufragar con- sos, por vezes cruéis, de a domesticar. E famosa a história da
tra os rochedos: célebre Malibran, perseguida por um pai impiedoso que a entre-
gava ao fascínio das multidões, impondo-lhe ao mesmo tempo
o seu jugo, particularmente despótico e humilhante. Em L' opéra
(29) Cf. o artigo de Vermeil (J.), «Les nouveaux castrats», Diapason, n.o
28, Julho-Agosto de 1983, pp. 32-35. . .
(' 0 ) Bonnefoy (Y.), Poemes, <<A la voix de Katheleen Ferner», Pans,
(3 1) Marbeau-Cleirens (B.), !magos maternelles chez les hommes, These de
Mercure de France, 1978, p. 137. doctorat d'État, Paris, V, Junho de 1983, p. 239.
2
(' ) Marbeau-Cleirens, op. cit., p. 708.

188 189
Marie-France Castan2de A Voz e os Seus

Catherine Clément também de- XX irá provocar, inexoravelmen-


ou la défaite des femmes
monstra que os homens, únicos e libre- novos outras divas?
tos até aos nossos dias, gostam de tocar e de em cena as suas romance de Aragon, La mise à mort (3 6), após
fantasias com divas fálicas (Turandot, Tosca, Carmen, Me- o não menos profético poema musicado por Jean Ferrat («La
deia, Lulu, Norma, Erda, A Rainha da Noite ... ) para melhor as femme est l' avenir de l' Homme»), a cantora- Ingeborg d'Usher
domarem e reduzirem, pelo abandono, pelo crime ou pela mor- - fica ilesa: quem é destruído é o homem, reflexo disperso, es-
te ... tilhaçado, que tem acesso a uma verdade masculina recalcada por
Maria Callas, muito próxima de nós, foi a encarnação viva séculos de «falocentrismo» e de domínio das mulheres.
de uma diva admirada e adorada, que subjugava os homens com
o poder mágico da sua voz, mas que também foi rejeitada e aban-
donada por eles: Freud aponta os riscos da bissexualidade:

«Como uma mulher solitária, perdida num mundo de ho- «A reivindicação da bissexualidade real é recusa da di-
mens em que os homens pedem às mulheres para cantarem ferença sexual na medida em que esta implica a falta do
e os fascinarem com a sua beleza, para serem sublimes e os outro sexo.» (37)
fazerem chorar, mesmo que isso as conduza à morte. Um
mundo em que os homens - Pigmaleões que queimam as Retomando o mesmo tema, André Green responde-lhe, reve-
suas Galateias para satisfazerem o seu prazer - constroem, lando o laço indissolúvel que existe entre a indiferenciação se-
moldam, decidem, ordenam, dispõem. Um mundo em que a xual e a morte:
mulher tem de se apagar - adoram-na, não adoram? - e
servir.» (3 4) «Houve quem dissesse que a "invenção" da sexualidade
e da morte eram solidárias. De facto, se não houver diferen-
Foi por ter assumido mais do que outras a sua encarnação ciação sexual, a cisão infinitamente repetida do mesmo or-
quase «divina» que Maria Callas foi também vítima da incom- ganismo desenha uma figura de imortalidade. Todavia, num
preensão e da solidão. sentido totalmente diferente, também se pode afirmar que,
Elisaberth Schwarzkopf negociou melhor o poder da sua voz, quando o indivíduo morre, há uma parte dele que terá
num registo mais culto e menos selvagem (menos «fálico») do sobrevivivo, no património que por ele é transmitido à sua
que Maria Callas. Como se quisesse desculpar-se desse poder que descendência. Se por acaso essa descendência se tiver liga-
possuía, nunca deixou de realçar o «trabalho» (é uma forma de do à descendência de um parceiro do outro sexo, continua
o humanizar) ou o papel do marido (Walter Legge) de quem fala a haver algo dele que se transmite a um novo ser. Imortali-
com uma admiração e uma fidelidade que são a sua forma de dade relativa, portanto, mas que não deixa de ser imortali-
amar e de granjear os favores do mundo dos homens (3 5). dade, pelo menos no espaço de uma geração.» (3 8)
A voz é uma aposta «fálica»: depois dos castrati, as divas
encarnam a fantasia da Mãe Omnipotente, fantasia que os homens Por outro lado, como nós próprios já afirmámos:
sempre pediram às mulheres, e mesmo aos castrati, para expiar.

(3 6) Paris, Gallimard, 1973.


(3 3) Clément (C.), L' opéra ou la défaite des femmes, Paris, Grasset, 1979.
) Freud (S.), Malaise dans la civilisation, PUF, 1971, p. 58.
37
(
(3 4) Rémy (P. J.), Callas, une vie, Paris, Ramsay, 1978, p. 14.
(3 8) Green (A.), Narcissisme de vie, narcissisme de mort, Paris, Éditions
C5) O livro que ela lhe dedica intitula-se La voix de mon maítre, Belfond, de Minuit, 1983, p. 239.
1983.

190 191
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

«A voz seria o meio e as divas - Y"PYWP'OPn

para se fálica - falta-nos


irrealizável entre os e voz feminina: de
se a homossexualidade perversa é, nas suas duas
donde o extremo fascínio dos ouvintes que, por dos ou narcisista fálica, a voz feminina desempenhar
castrati, viviam esse sonho da perfeição e da fusão dos sexos: um papel importante nestas duas problemáticas. normal cons-
tatar a presença de inúmeros homossexuais entre o público de
«A fantasia do género neutro encontra-se com o mito es- óperas, recitais ou festivais de música. Se a voz é uma aposta
tudado por Marie Delcourt (40 ). Ao ser completo: união do fálica - objecto fétiche - , os homossexuais querem tranquili-
espírito Pai e da Natureza materna, junta-se o símbolo da zar-se acerca da sua própria integridade fálica, submetendo-se ao
Fénix, andrógina, autogeradora, imortal ... A totalidade está encanto mágico das cantoras: o falicismo feminino serve para
salva, a falta é negada; não é na positividade de uma com- negar a angústia da castração; não há qualquer dúvida de que a
plementaridade realizada que se anula a diferença sexual em cantora-diva permite que o homossexual viva, sem correr o ris-
que Hermes e Afrodite passam a ser apenas um, é no movi- co da penetração (ou seja, sem os riscos da «vagina dentada»),
mento ainda mais radical de uma negatividade em que o uma relação fusional e narcisista com a Mãe Omnipotente e ben-
nada se encarna e em que o desejo se satisfaz como morte feitora:
do desejo e como triunfo sobre a morte do desejo.» (41 )
«No seio da ordem musical, perturbado por uma voz de
O regresso ao divino, encarnado pelos castrati, pelos teno- mulher que lhe dá prazer, e com a qual sente um prazer real,
res que cantam em falsete, ou pelas divas não será igualmente o homossexual não praticará um acto de "normalidade" que
mortífero? A homossexualidade perversa (ao contrário da homos- em nada altera a sua verdadeira identidade sexual, na me-
sexualidade neurótica) está associada ao narcisismo, na sua com- dida em que esse acto se mantém puro tal é a magnificência
ponente negativa: «0 impulso da morte trabalha em silêncio», imaterial? (44)
escreve Freud; é oculto pela voz, mas trata-se de um «engodo»,
como demonstra a novela de Balzac, Sarrasine. Quanto a Rophée, Também se poderia evocar a problemática das mulheres que,
«O novo castrato», descoberto em Limoges, confessa que não ao escutarem a voz das «divas», saboreiam esse retomo fantas-
deseja a ninguém que viva a terrível infância que ele próprio mático à mãe - mas, ao contrário dos homossexuais masculinos,
viveu (42 ). Os pedopsiquiatras confirmam que há uma «ilusão do a relação dessas mulheres com a voz feminina está muitas vezes
hermafroditismo que é um conceito mais mítico do que real. Na ligada a uma homossexualidade mais latente do que perversa.
nossa experiência, a psicossexualidade ambígua situou-se sempre Se muito se diz acerca da voz das cantoras, o que se passa-
numa personalidade perturbada; a incerteza quanto ao sexo não rá com as vozes masculinas e o seu poder de atracção? Pensa-
pode deixar de ter efeitos graves no equilíbrio de um indivíduo ... mos que as grandes vozes masculinas, imensamente admiradas
Pertencer a um sexo é um dos núcleos mais firmes da coesão da (poder-se-á citar, entre outras, as de Caruso, Chaliapine, Melchis-
nossa pessoa (43 ). sédec, Georges Thill, ou mais próximo de nós, as de Placido
Domingo, Pavarotti, Raimondi, Vickers ... ) não têm o mesmo
e9) Castarêde (M.-F.), citada por Vermeil (J.), «Les nouveaux castrats»,
Diapason, 285, Julho-Agosto de 1983, p. 35.
( 40 ) Delcourt (M.), Hermaphrodithe, Paris, PUF, 1958. (
43
Kreisler (L.), <<Les intersexuels avec arnbiguHé génitale», p. 119.
)
( 41 ) Green (A.), Ibid., p. 220. 44
Saint-Jalmes (Y.), <<L'opéra et les homosexuels», Opéra International,
e 2 ) Vermeil (J.), <<Les
nouveaux castrats>>, op. cit., p. 35.
( )
n. 16, Março de 1979, p. 18.
0

192 193
Marie-France Castarêde
A Voz e os Seus Sortilégios

de sedução que as das suas um outro fora do quo-


é o primeiro objecto de amor do _ do tempo social das ocupações: o tempo pri-
rapaz - , e é devido a essa '-'"""'"''"''-'H'-'"' vado das pulsaçoes secretas da alma ...
poder fantasmático é incomparavelmente mais do que A palavra lied é uma palavra alemã que designa a canção po-
o davoz masculina. Esta, que começa por ser a imagem acústi- pular, _a romanza, a balada ... No domínio da música, o lied é a
ca do Supereu, só mais tarde é que virá a ser portadora de uma
melod1~ _:rocal _c?mposta a p~rtir de um texto. O lied representa
atracção sexual específica e intensa: para o rapaz, num movimen- a. perfe1ça? estetlca do narc1s1smo na música. Quando falamos em
to edipiano invertido, e para a rapariga, num apego edipiano lled, refenmo-nos de facto à música germânica (alemã e austría-
positivo que a afastará do objecto matemo. ca) e :os seus maiores compositores: Mozart, Beethoven, Schu-
e
bert ( ), Mendelssohn, Schumann 7), Brahms, Mahler, Wolf,
Straus_s ... Claro que não nos esquecemos de todos os outros
O lied melod1stas 9~e _exi_stem, ou existiram, na Europa, russos, ingle-
ses, espanh01s, Italianos ... mas não é nossa intenção elaborar um
Segundo Barthes, foi o lied que substituiu a arte hermafro- catálogo musicológico.
dita dos castrati: A França deu-nos alguns grandes melodistas (Fauré, Debussy,
Duparc, Ravel, Poulenc ... ) mas, como sublinha Roland Bar-
«Há um facto histórico que talvez não seja insignifican- thes:
te; é justamente quando os castrati desaparecem da Europa
musical que o lied romântico aparece e começa de imediato «0 sentido histórico da melodia francesa é uma certa
a salientar-se: à criatura publicamente castrada sucede um cultura da língua francesa. Sabe-se que a poesia romântica
indivíduo humano complexo, cuja castração imaginária vai
do nosso país ~ ma!s or~tória do que textual; todavia, o que
ser interiorizada.» (45 ) a nossa _POesla nao pode fazer sozinha, fê-lo por vezes
a melodra com ela; trabalhou a língua através do poe-
O poder da orquestra é substituído pelo do piano; a visuali- ma.» (48)
zação grandiosa que se procura obter na ópera fica reduzida a um
palco sem cenário. A gestualidade dramática passa a ser apenas
O lie~ alem~o. também esteve intimamente ligado à sua lín-
a gestualidade de um corpo, desprovido de traje e de artifício, g~a, por 1~termed10 dos poetas românticos, e talvez tenha atin-
que se limita a estar imóveL. Achamos que não há nada mais gido o mais elevado grau. de perfeição da aliança entre a música
emocionante do que esse despojamento extremo em que o can- e a V?~· mas o seu sent1do histórico situa-se mais no domínio
tor se revela. O lied está ligado à visão romântica da singulari- d_a mus1ca (com_ Sch~I?-a,n~, por exemplo), conseguindo o narci-
dade humana que se narra e nos transmite a expressão mais
s~s~o vo~al mm~ ongmano e encarnando o seu equivalente es-
secreta da sua vida interior: os desejos insatisfeitos, as saudades tetlco mms perfeito.
nostálgtcas, o exílio da terra natal, a cumplicidade com a natu- A voz humana é o lugar privilegiado do duplo sonoro do
reza ... E o fluir do tempo da vida e das paixões que a magia da unísso_no e da diferença, do mesmo e do outro. O lied esq~ece
voz transmite, exprimindo-o numa totalidade fechada e recolhi- a partilha das vozes (soprano, alto, barítono, baixo); não dá im-
da, totalidade que é convertida em obra de arte pela sua beleza:
a música vive-se em nós, através dela, escutamo-nos a nós pró-
46
. ( ) Durante a sua curta vida (morreu aos 31 anos), Schubert escreveu 650
lzeder.
47
( 45 ) Barthes (R.), L' obvie et l' obtus, op. cit., p. 234. ( ) Schumann escreveu 250.
48
( ) Barthes (R.), L' obvie et l' obtus, op. cit., p. 242.

194
195
Marie-France Castarede

uma de com se
se reencontra, que nos falta e que vol-
o ser mundo do canto é o mundo amora-
«Não há "família" um indivíduo o indivíduo tem na um
unisexo, digamos, na medida em queA . _ umco ser mas uma de figuras. As figuras não
amor - 0 amor-paixão, o amor-romant1co - nao faz '""'<H""~·~ são personagens, são pequenos quadros, e cada um deles é fei-
de sexos nem de papéis sociais.» (49 ) Reencontramos altemadamente, de uma recordação, de uma paisagem, de um
que, seg~ndo a lenda narrada por Pausâni.as, _de~cobre.,o seu passeio, de um humor, de qualquer coisa que seja o início de uma
reflexo numa fonte e nele reconhece a sua 1r~.a gemea Ja ~a~e­ ferida, de uma saudade, de uma felicidade.» (5 3) Portanto, o lied,
cida· a bissexualidade está contida no narc1s1smo ... NarclSls- o_u, melhor ainda, o ciclo de lieder CS 4), seria uma viagem narci-
mo ~ortífero para o herói da lenda, narcisismo feliz para o can- s~sta.

tor. Quem, melhor do que Schumann, sabe convidar-nos a essas


0 lied romântico exprime-se através de um corp? um.f.1cad_o, viagens interiores? O ciclo de Frauenliebe und leben (5 5) atrai ir-
reunido, andrógino, que é o corpo do cantor. O que Importa nao resistivelmente as cantoras que se preparam para um recital, tal
é 0 timbre sexual, é a tessitura, isto é, o espaço dos sons em que como os Dichterliebe (" 6 ) atraem os cantores. Os poemas (oito)
cada um pode exprimir-se melhor e congregar a su~ V?Z n? ce~­ de Von Chamisso não são as criações mais prestigiosas do poe-
tro do seu corpo, «porque cantar, na acepção romantlca e frmr ta de O homem que vendeu a sua sombra ao diabo, caracteri-
fantasmaticamente do meu corpo unificado» (5°), espelho sonoro zat;n-se até por ~m clima um tanto ingênuo e reaccionário que
que não é apenas reflexo... . . . ') hoje nos faz sornr. Contudo, pode-se apostar que não houve can-
Por que é que o canto emana de um na~clSl,s~o fehz. Por- tora - profissional ou amadora- que tenha abordado este ci-
que é comunicação, mensagem, apelo, de~1c~tona (con:o, por clo sem ~ encantan:ento que implica a modéstia e o respeito por
exemplo, o belíssimo lied de Schumann mtltulado Wzdmung uma partitura sublime. A convenção dos poemas desvanece-se
e
«Dedicatória» I)): perante a beleza musical, belo exemplo da superioridade deslum-
brante da música que, neste caso, reina como soberana. E não
«0 espaço do lied é afectivo, quase n~o socializad~; o há qualquer dúvida de que estes oito lieder nos falam melhor e
seu espaço verdadeiro de escuta, é, se asszm se pode d1zer, mais intensamente do despertar do amor, da cegueira inquieta da
o interior da cabeça, da minha cabeça: ouvindo-o, canto o paix.ão, da promessa de fidelidade, da alegria das núpcias, da ma-
lied comigo mesmo, para mim mesmo. Dirijo-me a mim mes- ternidade e do luto do amado do que longos tratados ou digres-
mo a uma imagem: imagem do ser amado, na qual me per- sões sobre os mesmos temas.
co,' e que reflecte a minha própria imagem, abandonada.» (52) ~o lied, solilóquio cantado, constituído por uma voz que fala
consigo mesma, há a presença introjectada da mãe, que criou o
Narciso esse não ama: fica preso na armadilha de uma ima- narcisismo feliz. Representa igualmente a saudade do regresso ao
gem que s~ des~eaça porque ele não busca nela senão ele pró- objecto primordial feminino, a esse estado fusional fora do tem-

e 9) Ibid., p. 254.
53
( )
4
lbid., p. 257.
Refiro-me a Die Schone Müllerin ou a Winterreise, de Schubert, a
CS 0 ) Ibid., p. 255. . . .. . (' )
CS') Widmung (op. 25, n. 0 1, sobre um poema de Fne~nch Ruckert ma~- Amours du Poete ou a La Vie et l'Amour d'une Femme, de Schumann.
gura o ciclo Die alten lieben lieder, come.çado em Fevere1ro de 1~40. e dedl- 5
(' ) Schumann (1840), Frauenliebe und leben, op. 42, sobre poemas de
cado a Clara Wieck. Clara recebeu este c1clo como presente de nupCias. Adalbert von Chamisso.
6
CS 2 ) Barthes (R.), op. cit., p. 256. (' ) Schumann (1840), Dichterliebe, op. 48.

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Marie-Fr ance Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios

que
1><u-tu<tU'- ' no mais íntimo do h_om~m.
temas predilectos do lied alemao e a
do adeus e do regresso. Foi o que a --·--''M''~ No seu livro Le Gisêle Brelet mostra que
Schumann: a música é a escrita da vida interior:
«Schum ann é de facto o músico da intimida de solitária, A música é uma especul ação sobre o tempo, insepar ável
da alma apaixon ada e fechada , que fala consigo _ em de uma experiê ncia do tempo vivido.» (60 )
suma, da criança que só tem ligação ~~m_ a mae_... uma
música ao mesmo tempo dispersa e umtana ,. contm~ar:z:_ente A voz desempenha um papel eminente, porque é ela que cria
refugia da na sombra luminos a da mãe (na mmha opzm~o, o a melodia:
lied, abunda nte em Schuma nn, é a express ão dessa umdade '

materna .» (5 7 ) «A melodia é o canto profund o e o tempo solitário vivi-


do por uma consciê ncia, que se debruça sobre si própria e
Gille Deleuze exprime o mesmo, embora de outra forma: se ouve viver.» (61 )
«Donde o afecto próprio do natal, tal como é ~ntendido Nesta mesma linha de pensamento, mas integrando nela os
no lied de se estar sempre perdido , ou de se ter szdo ~een­ ensinamentos da teoria psicanalítica, Michel Imberty, retomando
contrad o ou de se tender para a pátria desconh eczda ... o parentesco entre o mito e a música referido por Lévi-Strauss,
O lied é, 'ao mesmo tempo, o territóri o, o territór io p~rdido, escreve:
a terra conduto ra... O território... entreab re-se e dezxa ~e r
0 Amigo, a amada, mas a Amada já e~t~ r;torta, e o Amzgo O tempo musical , organiz ado pelo estilo, é um tempo
é incerto, inquieta nte. Através do terrzton o, tudo se passa mítico onde circulam os sonhos de eternid ade do homem,
como num lied, entre o Um-Só da alma e. o [}_m-Tudo da onde, pela interven ção da elabora ção secundá ria conscie n-
terra, (5 8) figuras narcisistas do duplo e do mqmetante ... te, a represe ntação afasta a carga afectiva insupor tável da
morte.» (62 )
Assim, o lied permite-nos redescobrir todas as. vi_:tu~lidade~
do Eu Ideal herdeiro do narcisismo perdido da mfanc1a. Esta Através da música vocal religiosa, da ópera e do lied, des-
aquém do Édipo, próximo da ?~ssexualidade original. Evo~a um cobrimos, modelada pelo génio do compositor, uma representa-
narcisis mo feliz porque se d1nge sempre ao outr?, aspirando ção da experiência pessoal e colectiva do tempo da vida.
redescobri-lo na sua plenitude; por vezes, o outro e lo~va?o no A música vocal religiosa introduz-nos numa visão espiritual
amor e na gratidão, outras vezes é lamentado na ausenCia, no da existência, referida a uma transcendência que confere sentido
sofrimento ou na saudade. Exist.e no futur? o~ no pa~sado, mas, ao destino humano. A ópera, por intermédio das vozes, exprime
graças a ele, a solidão foi exorcizada. O Zled e a replica cultural uma concepção da socieda de e do seu devir e mostra-nos, ao
do objecto transicional sonoro. longo das tradições e dos séculos, a organização fantasiada da
diferenciação dos sexos e das gerações. O lied, mais íntimo,

(5 9) Paris, PUF, 2 vols., 1949.


CS7) Barthes (R.)«Aimer Schumann», L'obvie et l'obtus, op. cit., PP· 259 60
( ) Ibid., tomo I, p. 35.
e 263. 61
( ) Ibid., tomo I, p. 126.
css) Deleuze (G.), Mille plateaux, op. cit., pp. 410, 419-420. 62
( ) Imberty (M.), <<Le temps (musical) retrouvé>>
, Esprit, n.o 3, 1985, p. 83.

198
199
Marie-Fran ce Castarede
a «Voz-eco» da mãe a "'-'l!C>«Ieav
transcreve, que tempo transicio-
. eco os contornos de um
conta a dos seus da con- e os impulsos da morte. Esse
nal entre os unpulsos da
tinuidade existencial. o bebê da angústia da ausência e
O que se passa hoje com a voz, na música da separação. Depois, a criança, pouco a pouco, vai construindo
O Sprechgesang introduziu os ritmos da a ~ua autonomia psíq~üca com o sentimento da sua própria conti-
música, a meio caminho entre o canto e a fala. nutdade. e do se~ devrr pessoal, que implica a aceitação da morte.
e Berg, os compositores foram ainda mais longe. Stockhausen A~s1m:. no polo oposto da experiência feliz do espelho sonoro
liberta-se da linguagem falada e trabalha ao nível do infraverbal. e da hgaça? com ~ ~ãe, pode haver medo e angústia, desestru-
A relação som-sentido altera-se porque as palavras são tratadas turantes, a Impossibilidade de tecer um sentimento de continui-
como elementos acústicos. Os gestos vocais são expressivos sem dade através do caos sonoro, que obrigam o sujeito à clivagem:
necessitarem da fala: a voz converte-se em movimentos do cor-
po, o mais perto possível do inconsciente. Há cantores que se «A clivag~m separa, de~trói os laços: é o que opõe a arte
exercitam no sintetizador: a voz perde o seu natural e divaga no
A

de Debussy a arte romantlca ... A ausência de ligação equi-


espaço ambíguo do desdobramento, da reprodução e da sobrepo- vale a uma recusa do próprio sentimento de vida vivida a
sição. Assim, o solista deixa de ter controlo sobre o seu gesto uma defesa contra a angústia da destruição e da morte.» (63)
vocal, que também deixa de ser totalmente a sua voz. Indo ain-
da mais longe nas novidades tecnológicas, a voz surge no com- Cro~ologica.mente, Debussy é o primeiro dos músicos con-
putador: no terminal do IRCAM, há um programa de canto. temporan eos; m.augura um período musical dominado por
Através destes tratamentos da voz, assistimos à destruição, à T~a~atos pr~d~mma, quando, na época da música clássica e da
fragmentação do sujeito vocal. Psicanaliticamente falando, trata- mustca romantt_c~, quem dominaya ~ra Eros. Michel Imberty re-
-se de uma regressão para a fase anterior à constituição do eu: conhece,. na :nus1ca n:odema, tres figuras do impulso da morte:
os ruídos e os sons heterogêneos seriam os ecos reverberados das a fo~mahzaç~o, o obJecto sonoro, o aleatório. A música serial
partes projectadas pela clivagem do eu. Com o computador, a estana associada à primeira figura, a música electra-acústica à
máquina substitui o indivíduo. Encontrar-se-iam equivalentes des- segunda, e a música de Cage, à terceira. '
sa perda do sentido do gesto vocal e da sua continuidade tem- No entanto, segundo parece, de há dez anos para cá nota-se
poral (a melodia, em muitos casos, desaparec eu) em outros uma mudança estética e psicológica:
domínios artísticos: a pintura, o teatro, a literatura, caracteriza-
dos pela ausência do sujeito. A voz, em certas pesquisas, incli- ~<Para além de um abandono progressivo do aleatório e
na-se para o lado do inconsciente, do bárbaro, do automático ou da zndeterminaf~O, é sobr~tudo a importância readquirida
da sofisticação tecnológica e deixa de ser sinal de comunicação, pela vo~ na muszca de hoje que constitui o fenômeno mais
de compreensão e de intercâmbio. zmp~esswnante. Não que as obras que põem a voz em cena
Claro que, no início da vida, o espaço sonoro do bebê não se e~teJC:'!l ausentes da produção dos anos anteriores, mas o
reduz à voz melodiosa da mãe. O seu «envólucro sonoro» começa szgnifzcado de uma escrita vocal renovada revela que se
por ser um envólucro «esburacado»: ruídos medonhos, gritos de começa a ter em conta uma experiência temporal diferente
cólera, de fome, de desamparo, se o bebê fica por muito tempo Essa esc;ita é, aliás, acompanhada por um regresso em for~
entregue à sua solidão, voz da mãe, que pode ser desagradável, ça d~q':!zlo a que s.e poderia chamar o "semantismo", por
dura ou simplesmente distante. O Eu arcaico é um Eu atemporal. oposzçao ao formalzsmo: a obra volta a exprimir-se, é outra
Muito progressivamente, desde que o meio ambiente seja de
boa qualidade e as «permutas» se façam de uma forma positiva, (
63
) Imberty (M.), op. cit., p. 87.
a criança vai tendo acesso a um sentimento sempre precário, mas
201
200
Marie-France Castarêde
A Voz e os Seus
vez quer emocionar e comunicar. Não
quer de que é possível associar esta . de sejam elas é um dos acessos
mais seguros aos domínios da Provocar esse é
restauração dos laços para além
p~~ti~ar uma acção o mais possível da é
Assim, a voz voltaria a trazer o humano para a música: d1r1~1r-s~ a alguém,. despertar e justificar nesse alguém o desejo
de ilummar a su~ VIda, de descobrir por ele mesmo um signifi-
«Passamos a referir-nos ao segredo dessa paixão inata cado para ~ q~e e, ou para o que ama, e encontrar pelas vias que
pela voz humana que vive em todos os grandes músicos, que lhe sao propnas as regras da permuta e da comunicação com
outrem.
não procuram nela uma muleta conceptual para a sua mú-
sica, nem uma forma de satisfazer um qualquer imperialis- Por isso nos referimos a uma visão winnicottiana:
mo estético, mas muito simplesmente essa presença humana
que é o sentido do sentido. O centro vivo de toda a expres- . «É por isso que, no final da sua vida, Winnicott se de-
são é o homem, é pelo canto e no seu canto que cria a ter- dzcou cada vez mais a descobrir como é que a cultura, com
ra, portanto é sempre ele quem exprime o sentido, mesmo se t~do ,o. seu vocabulário de símbolos e as suas actividades
esse sentido vem de mais fundo do que ele e é a sua voz que s~mbohcas, pode ajudar o indivíduo a encontrar-se e a rea-
é o medium estético universal.» (65 ) lzzar-se. Gr~ças a~ ~onceito de objecto transicional, o pen-
sament~ pszcc:nalztzco .J?ôde tentar reavaliar o papel da
cultura. contnbuto posztzvo e construtivo na vivência huma-
O canto como actividade cultural na, e não apenas causa de "mal-estar".» (67)
e o papel da cultura na economia psíquica
De facto: em Fr~ud, o problema da ~rte está ligado ao pro-
Chegados a esta altura do nosso trabalho, será de realçar o blema do pa1, ou seJa, ao complexo de Edipo:
papel, que consideramos primordial, das actividades artísticas e
culturais na economia psíquica. E não se trata apenas de uma «A arte, como conjunto dos fenómenos culturais é uma
reaccão a esse complexo.» (6s) '
abordagem dos objectos de arte: pinturas, esculturas, monumen-
tos, textos literários, composições musicais ... Na nossa opinião,
o desenvolvimento cultural não poderá limitar-se a um aumento Em Totem e Tabou, Freud explica-se claramente:
da difusão: essa abordagem privilegia sempre a obra acabada e
favorece uma relação que tem mais a ver com o espectáculo do «f!oderia port~nto terminar e resu_mir esta rápida pesqui-
que com a participação. Para que o indivíduo se aproprie da obra ~a~ ~zzendo qT:t~ _e no complexo de Edipo que se situam os
(peças, quadros, livros, óperas), ela tem de se inserir no espaço zmczos da relzgzao, da moral, da sociedade e da arte e isso
psíquico onde se cria a sua relação com a realidade, tem de se e:n total conformidade com os dados da psicanálise, q~e con-
integrar na «área intçrmediária de experiência». A criatividade é szdera esse complexo como o núcleo central de todas as neu-
«algo de universal. E inerente ao facto de se viver ... A criativi- roses, tanto quanto conseguimos até hoje penetrar na sua
natureza.» ( 69)
dade que temos em vista é a que permite que o indivíduo se
aproxime da realidade exterior» (66 ). Neste sentido, a iniciação às

) ~han (M. M. R.), Prefácio a Winnicott (D. W.), La consultation


67
64
( ) lbid., pp. 98-99. , (
thera~ euttque et l' enfant, Paris, Gallimard, 1972, p. XXII.
(
65
) Court (R.), Le musical, Paris, Klincksieck, 1976. 8 Kofman (S.), L'enfance de l'art, Paris, Payot, 1975, p. 34.
C)
(
66
) Winnicott (D. W.), leu et réalité, op. cit., p. 95.
( ) Freud (S.), Totem et Tabou, Paris, Payot, 1983, p. 179.
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203
Voz e os Seus Sortilégios
Marie-France Castarede

mt.enJre:ta<;ao da arte está associada sua teo-


narcisismo. O assassínio do Pai
nrrlnt"P'-<:t> com uma

corresponde à fase H'-'''"''""" <<As relações entre mãe e são as únicas capazes de
fase animista da história da num~miaa,ae, dar à mãe uma satisfação porque são as relações
benefício da identificação edipiana que ,..,.,.,.,."'""'"'"'1 "'· à uuuJ.LI.rw:,, mais perfeitas de ambivalên-
tífica isto é ao estado de maturidade, cia.» (14) cs)
cia à 'procur~ do prazer e pela subordinação da escolha objecto
0
exterior às conveniências e às exigências da realidade» C ). Esta novidade de tom não é alheia à morte de Amalia (1930),
Comentando Freud, Sarah Kofman revela que, para ele, a obra cuja figura só tinha podido ser redescoberta, até então, na evo-
de arte estaria mais ao serviço dos impulsos da morte do que de cação de Catarina, a mãe do bastardo Leonardo da Vinci (1 6). Na
Eros: nossa opinião, a concepção da arte em Freud sofreu desse afas-
tamento quase fóbico em relação à mãe, objecto de um amor
«0 jogo da arte é um jogo da morte, que implica sempre tanto mais perigoso quando mais perfeito. Na sua declaração li-
a morte na vida, como força de subtracção e de inibição.» C)
1
minar ao Moisés de Miguel Ângelo, Freud afirma que só pode
apreciar a arte apoiando-se na razão e na análise. Não é possí-
Além disso em Freud, a veneração do artista, pai da sua vel, diz ele, apreciar sem compreender. Exceptuando os estudos
obra, é um fenÓmeno marginal que tem a ver com o génio, he- sobre Leonardo da Vinci e sobre o Moisés de Miguel Ângelo (a
rói isolado que nos confunde pela sua excepção: escultura e a pintura são artes visuais moldadas no sonho), Freud
interessou-se sobretudo pela literatura, preferência que ficamos a
«0 método de satisfação pela arte pressupõe a posse de conhecer nomeadamente através da sua correspondência C7). As-
disposições especiais e de dons que estão longe de ser co- sim, Freud terá ficado sempre ligado à metafísica da representa-
muns num grau que possibilite uma realização.» C2 ) ção. Compreende-se que não tenha podido aproximar-se da arte
musical, experiência do sonoro sem pontos de referência preci-
Neste contexto, a cultura, inspirada pelos grandes criadores, sos, em que o conteúdo significativo não é evidentemente
é uma máscara que se destina a encobrir a dureza da necessida-
de. Freud inscreveu a sua teoria_ da arte na linha da sua desco- 73
( ) Na sua polêmica com Romain Rolland sobre o «sentimento oceâni-
berta central do complexo de Edipo, mas, ao fazê-lo, ocultou co>>, Freud opõe-lhe «a necessidade de protecção pelo pai>>, a mais forte das
totalmente uma dimensão da criatividade cultural, ligada ao pólo necessidade infantis ... (Malaise dans la civilisation, op. cit., p. 17).
maternal e feminino do indivíduo. Ele próprio deixou passar C4) Freud (S.), «La Féminité», Nouvelles Conférences sur la Psychanalyse,
muito tempo antes de abordar serenamente. o «co_ntinente ne~r~» Paris, Gallimard, 1971, p. 175.
da feminilidade. Resistiu enquanto lhe f01 posslVel ao fascm10 C5) Já em 1917, Freud tinha dito de si mesmo: «Quando se foi, sem a
menor dúvida, o filho predilecto de sua mãe, conserva-se durante toda a vida
extremo que sentia pela sua querida mãe, viúva ~os sess~nta anos esse sentimento de conquista, essa certeza do sucesso que, na realidade, rara-
de um marido muito mais velho, e que morreu trmta e cmco anos mente acaba por não o provocar.>> Freud (S.), «Un souvenir d'enfance de
mais tarde, quando Freud, jfi doente, tinha seten~~ e q~atro anos, Goethe>>, Essais de Psychanalyse Appliquée, Paris, Gallimard, 1976, p. 161.
mãe de tipo «jocastiano», como a de Proust. Abas, so em 1932, C6 ) Foi em 1909 que Freud escreveu Un souvenir d' enfance de Léonard
de Vinci, e foi em 1914 que escreveu Pour introduire le narcissisme, que tem
muitas ligações com o primeiro texto. Estas associações foram-nos sugeridas
C0 ) lbid., p. 106. por L Barande, Le maternel singulier, Paris, Aubier-Montaigne, 1977.
77
C1) Kofman (S.), op. cit., p. 175. ( ) Kofman (S.); op. cit., p. 11.

C2 ) Freud (S.), Malaise dans la civilisation, op. cit., p. 23.


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204
Marie-France Castan!de
A Voz e os Seus
como acontece numa nrcJdtlcão
nem como nas artes
noro institui e alimenta o à
na sua às necessidades seu
no seu surgimento opaco, na sua imersão no ~~·,-n;,,.""" que
tivo e no sentido, sem uma imagem ele tenha a ilusão de que o que cria existe de facto.» (80)
com
dade, não há qualque r imagem de um som. Em , a
concepção da proeminência da representação sobre o afecto e o A cultura não tem o mesmo estatuto em Winnicott e em
Freud: para Winnicott, não gira em tomo do complexo de Édipo
garante da interpretação da arte. . . e da culpabilidade, nem em tomo dos gênios criadores isolados
Também se compreende por que é que, em Wmmcott, a teo-
ria da arte e da cultura são mais satisfatÓr'aS, quando se trata de e reverenciados, figuras de heróis iconoclastas.
explicar os fenómenos vocais e musicais. Wi~nicott ~u~ca. des- Freud e Winnicott têm aspectos em comum na teoria da cul-
confiou, como Freud, das suas posições passivas. Re1ymd1c.ava tura: para ambos, ela é ilusão e jogo. Para Freud, essa ilusão é
para si próprio essa parte de feminilidade C8) que l~e fol pre~l~Sa menos perigosa do que outras (ideológicas ou religiosas), mas o
para elaborar as suas teorias sobre a cultura: o O~Jecto transiclO- homem «científico» e maduro deveria ser capaz de renunciar a
nal pode ser considerado como o modelo ~o obJeCto cultural .e ela (tal como ao «sentimento oceânico», ligado à nostalgia da
os fenómenos transicionais podem ser considerados como a pn- fusão com a mãe). O narcisismo é essencialmente força de mor-
meira forma das manifestações que caracterizam a vida cultural te; denunciá-lo é agir em benefício de Eros: para Freud, o artis-
do adulto. A actividade cultural não está englob~da no Mal- ta pratica simbolicamente o incesto ao negar o papel do pai na
-estar na Civilização; permite que cada pessoa defma um espa- cena primitiva; quer-se auto-suficiente, criador de si mesmo,
ço de jogo, um campo de experiência: doando a sua obra à mãe (atitude próxima da homossexualidade).
Em contrapartida, para Winnicott, a actividade cultural é tam-
«playing, experiencing, fantasying» ... bém uma ilusão e um jogo, mas é benéfica e permite a realiza-
ção de cada um. Além disso, não é exclusiva do artista de gênio,
Estes particípios substantivados mostram que ~ cultu:_a é um grande homem e herói, substituto e assassino do pai. Diz respeito
movimento pessoal de apropriação e d~ expressao e r:_ao, uma a todos os homens, a «cada um de nós, bebê, criança, adolescen-
relação de fascínio com a obra .e. o gém~. A cultura nao e, u~ te, adulto ou velho» (81 ), desde que as suas condições de vida não
ornamento, um luxo ou um lemtlvo; se e de f~cto um. r~fugw sejam demasiado alienantes.
contra a dureza da existência, também é necessana e gratificante: Ao reelaborar a teoria do narcisismo, André Green permite-
-nos compreender melhor o que há de diferente entre a posição
«Só se pode falar de um homem, tendo em conta a de Winnicott e a de Freud. De facto, considera que o narcisis-
acumulação das suas experiências culturais.» C9 ) mo primário se encaminha para duas direcções: para o narcisis-
mo primário absoluto, em que a excitação tende para o zero
Ora, estas possibilidades criativas estão directamente ligadas (narcisismo negativo ou de morte) e para a escolha de objecto,
para o Outro (narcisismo positivo ou narcisismo de vida) (82 ).
à qualidade da relação maternal:
Na permuta com a mãe, Winnicott mostra o papel de espe-
lho desempenhado pelo rosto da mãe, papel a que acrescentamos
Cs) Para Winnicott, a criatividade deriva da transmi~s~o de um el~mento o de espelho sonoro. Para criar os seus objectos subjectivos, isto
feminino matemo: aquilo a que chama o elemento femmmo p~ro esta as_so-
ciado ao seio (ou à mãe), no sentido em que o bebé se .toma o se10 (ou a mae),
80
em que o objecto é o sujeito, in leu et réalité, op. clt., p. 111. ( ) lbid., p. 25.
81
(19) Ibid., p. 137. ( ) Green (A.), Narcissisme de vie, narcissisme de mort, op. cit., pp. 56-57.
82
( ) lbid.

206
207
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

a deve ouvir-se e ver-se nesse espe- mente certo e essa "-·"''u'u.u


antes de ouvir e de ver a mãe. com o siste em muitas tais como c.u.vuu'"''"'"'"
a
leva-nos o de a e de sociais
conceito de área
emoções que, mesmo sem serem estritame nte racio-
da «intersecção» na relação mãe-filho. A separação da fase cos; são
nais, fazem aumenta r a e a variedad e da nossa
união da criança com a mãe gera uma distância que é o espaço
potencial onde se efectua a experiência culturaL existência.» (84)
O canto e a música ajustam-se perfeitamente a esta
ção. São «objectos-armadilhas», onde se desenvolvem ao mesmo Todas as actividades artísticas apelam para a sublimação, mas
tempo o narcisismo individual e o narcisismo colectivo: trata-se existe uma hierarquia das artes, em função da qualidade e da pre-
de uma comunic ação que é a melhor possível e que é também c~cidade do narcisismo que está implicado. Não há dúvida de que
feliz, porque ilusória, evitando qualquer conflitualização edipiana. as mais próximas da esfera materna e dos primeiríssimos esbo-
Assim, volta a surgir a ideia de que a sublimação está estreita- ços do narcisismo primário seriam as artes do sonoro, e com-
mente dependente da dimensão narcisista do Eu. preende-se por que é que Freud e a sua teoria se revelam menos
Geza Roheim, em Origine et fonction de la culture, propõe aptos para as explicar. Freud centrou-se genialmente na proble-
a noção de objecto intermediário: mática paterna, uma forma criativa de resolver o seu próprio
conflito edipiano e subtrair- se à atracção materna; Winnicott,
«0 objecto cultural, ou a sublimação, situa-se entre a po- depois de Mélanie Klein, detectou melhor a relação pré-edipiana
sição narcisista e a posição objectal erótica; é um ponto de com a mãe e realçou a fecundidade criadora da área de ilusão,
83
estabilização na oscilação da líbido.» ( ) espaço de jogo em que cada criança se inicia naquilo que mais
tarde virá a ser a sua relação pessoal com a cultura. Responden-
Assim é mais fácil compree nder por que é que os fenôme- do a Mal-estar na Civilização, Winnico tt propõe essa realização
nos vocais são sublimados mas não dessexualizados (devido à positiva e construtiva, para a qual cada ser humano deve desco-
participação evidente do corpo): a líbido refluiria do objecto para brir a sua própria via ... Para Mélanie Klein, a sublimação tam-
o corpo reinvestido pela líbido narcisista. bém seria o triunfo dos impulsos de vida sobre os impulsos de
A música cantada seria esse objecto simbólico, a meio cami- morte. Da mesma forma, Geza Roheim escreve:
nho entre a posição narcisista e a posição objectal, objecto sim-
bólico que, segundo as teorias kleinianas, deve ser identificado «A civilização é um produto do Eros ... Depois de ter
com o bom objecto. aprendido a aceitar os substitutos, Eros só fica meio satis-
Graças à concretização imaginária do desejo, presente tanto feito. Não renuncia ao desejo de reconquistar o original,
na música cantada como no sonho, o objecto é negado sem qual- mas, ao mesmo tempo, continua à procura de novos substi-
quer dano, porque continua a satisfaze r narcisica mente o Eu tutos.» (85 )
omnipotente. Pela junção da sublimação e da idealização, o mau,
o odiado, é projectado para o exterior: Freud inventou a psicanálise num mundo que, tal como ele,
acreditava que a ideologia científica era o ponto extremo da evo-
<<A idealização é a base da confiança nas boas qualida- lução das sociedades humanas; hoje em dia, essa crença foi alvo
des dos objectos e em si mesmo, e anuncia boas relações de de revisões penosas que deveriam levar-nos a desenvolver mais
objecto. A relação com um bom objecto comporta normal-
(
84
) Segal (H.), lntroduction à l' ceuvre de Mélanie Klein, Paris, PUF, 1980,
p. 31.
(
83
) Roheim (G.), Origine et fonction de la culture, op. cit., p. 120. (
85
) Roheim (G.), op. cit., p. 151.

208 209
A Voz e os Seus
Marie-France Castarede
O trabalho da voz como tem um
do que nunca o espaço
éo se verifica nas extremas do
de si mesmo e da comunicação com
Theater No entanto, a em contrapartida, é por vezes ne-
siva do mundo da inteligibilidade e da ciência '"'-'HVlv
cessário partir dessas expressões brutas e arcaicas para superar as
toma Winnicott tão contemporâneo. Na história da a inibições e caminhar para uma integração mais autênt~ca d~s
linguagem começou por ocupar o lugar do dado, e depois a ciên-
potencialidades vocais: o trabalho da voz ~~seado na v1braç~o
cia ocupou o lugar da linguagem. O sensível foi destronado em
harmônica é sempre considerado como aux1har da estruturaçao
proveito do conhecimento. Já é altura de regressar, porque ele é
psicológica.
o paraíso que perdemos (86 ). A voz vem do corpo, isto é, do que
Com efeito, o canto detecta e revela a angústia: modula-a,
há de sensível em nós. A viva voz é o contrário da letra morta
prolonga-a, atrasando o momento do desenlace. Pelo controlo qu_e
e dos estereotipas. É por isso que a nossa pesquisa se inscreve
permite, o afecto é controlado. Este aspecto. do canto - ~ubh-
nesse regresso do sensível, que é também o regresso do jogo e
11'l.JlÇão e assunção do grito - , nota-se perfeltamen~e na cel~b~e
da infância, o que de mais pessoal e mais irredutível existe em
«Aria do Salgueiro», no IV acto do Otelo de VerdL Neste ulti-
cada um de nós.
mo acto, Desdêmona, agitada por sombrios pressentimentos, faz
a sua toilette nocturna, cantando «Piangea cantando»; mesmo
antes de mandar embora a sua aia Emília, diz-lhe: «Buona notte»,
e, após dois acordes da orquestra, Desdêmona solta ~~ formi-
«Se a pintura é a sublimação do olhar e se a escultura é a
dável grito em lá sustenido agudo, no auge da sua angustia: <<A~!
sublimação do tacto, a ópera é a sublimação do grito. Do grito,
Emitia addio». A longa preparação cantada para a morte permi-
de todos os gritos, de prazer e de dor.» (87 ) No entanto, há gri-
te o diálogo com o Outro compassivo, a recordação dos tempos
tos sem som: a evocação do sentido e da comunicação desvane-
felizes (Desdêmona pede a Emilia que, depois da sua morte, lhe
ce-se na sideração do corpo, como, demonstra o quadro de
vista o traje do dia do seu casamento), a evocaç,ão da Mãe e da
Edward Munch, O Grito (1893) (88 ). A beira-mar, numa espécie
sua própria aia Barbara (a quem é dedicada a «Aria_ do Salguei-
de molhe, cuja perspectiva se inclina bruscamente para o espec-
ro», que ela própria, amante infeliz, cantava), e fmalmente, a
tador numa aceleração inquietante, vê-se um ser despojado de in-
invocação da Virgem Maria, Mãe qa Humanidade (o «A v e Ma-
dividualidade, de olhos dilatados de terror, boca aberta num grito
ria» segue-se imediatamente à «Aria do Salgueiro», quando
(título do quadro), mãos coladas aos ouvidos, como para não
Desdêmona fica só). É para um rico ritual psicológico que o
ouvir uma qualquer ameaça. De facto, na linha de perspectiva,
canto nos convida nas proximidades da morte, cuja brutalidade
nada na natureza exprime segurança: o mar ondula, agitado, o céu
retarda e que torna mais humana e pungente. No exemplo de
é vermelho, raiado de sangue. Tudo dá a impressão de um uni-
Otelo, há uma inadequação entre o momento em que Desdêmona
verso que perdeu a estabilidade e a coerência. Na cena lírica, o
tenta reter Emília com o seu grito - quando nenhuma ameça
grito, que tanto se assemelha ao horror mudo, converte-se em
visível paira sobre ela - e o da chegada efectiva do marido, que
vocalizos: o canto sofisticado toma a angústia tolerável, acultura-
veio para a matar: é a voz que suspende o instante do desenlace
-a e atenua-a ... Na ópera, a voz é como um desregramento pon-
e o antecipa fantasmaticamente; todavia, na intimidade do grito
derado, uma paixão domesticada, um afecto controlado ...
da mulher, aquém da linguagem e do sentido real do aconte-

86
(8 9) O Roy Hart Theater é uma companhia dramática e, simultaneamente,
( Serres (M.), Les cinq sens, op. cit., obra que é uma ode ao sensível.
) um centro de pesquisa, ensino e animação cultural, baseado num trabalho apro-
87
( ) Green (A.), entrevista, Lyrica, n. 0 38, Novembro de 1977, p. 35. fundado da voz sob todos os seus aspectos. Falaremos dele mais adiante, a
88
( ) O quadro é, de facto, o resultado de várias telas anteriores, pintadas propósito das terapias vocais.
em 1882 e 1884.

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210
Marie-France Castarede
A Voz e os Seus
se revela é o afecto puro. da
neste é bem visível a distância que
animaL
Segundo os antropólogos (9°), na nossa cultura não ceri-
Para a a esse de conhecer e de
monial em tomo da morte. Já não há ou embeleza-
compreender:
mento da morte, morte por amor ou morte excesso. A morte
já só intervém como avatar, como um na segurança.
«A ópera é a mus1ca realizada sob a sua
Ora, a cena lírica permite-nos justamente redescobrir essas mor-
mais elevada, mais completa, mais total; reencontra-se nela
tes rituais, provocadas pela violência do desejo, do ciúme, do
o que a humanidade durante tanto tempo pediu aos mitos:
ódio, e ter acesso a outras culturas mais ricas do que a nossa sob
explicações ou expressões totais que se situem simultanea-
o ponto de vista das festas e dos mitos. A violência interior é mente em vários níveis.» (93)
assim representada e exorcizada, revelando-nos a função catártica
do teatro, tão apreciada por Aristóteles.
O cantor foi, desde sempre, o «porta-voz» de uma socieda-
O canto ajuda-nos a sentir e a assumir- por intermédio dos
de. Dos castrati Caffarelli e Broschi às divas Isabelle Colbran
heróis - as emoções e os afectos que estão associados aos gran-
des momentos da vida humana:
!"i~libran, Pasta, a história do canto está re~heada de grande~
mte~retes que passaram à posteridade. Mais próximos de nós,
Enn~o Caruso.' Fédor Chaliapine, Kirsten Flagstad e Katheleen
«0 teatro lírico continua a ser um grande meio, totalmen-
Ferner, para citar apenas alguns, deixaram uma recordação ines-
te contemporâneo, de comunicar emoções profundas. De fac-
quecível cujo rasto ainda guardamos em nós.
to, o interesse crescente que as novas gerações sentem, em
A homenagem internacional prestada a Maria Callas para
primeiro lugar, pela música, e depois, pela Ópera, é uma
celebrar o sexagésimo aniversário do seu nascimento (2 de De-
espécie de reacção contra todas essas pesquisas hiperintelec-
zembro de 1923) e difundido por satélite do Théâtre National de
tuais qur:; caracterizam uma grande parte da arte contempo-
l' Opéra de Paris, do teatro La Scala de Milão da Ópera Lírica
rânea. E uma reivindicação do "sentimento" na arte, essa
de Chicago, do Royal Opera Covent Garden de 'Londres mostrou
arte que, para existir, necessita não só da inteligência mas
a amplitude da sua fama e o seu estatuto na memória ~olectiva.
também do coração, de criar relações de amor que a alimen-
Porqu~, o cantor, tal como o actor de renome, desempenha
tem.» (9 1)
um papel Importante na sociedade. Falámos sobretudo do cantor
lírico, mas também poderíamos falar - num registo diferente e
Neste sentido, o canto cultiva a distância, o afastamento, a
num outro repertório :- do de variedades, consagrado pelo seu
margem, a passagem ... Compreende-se que Lévi-Strauss tenha
!alen~o: O cantor funciOna como um bálsamo, por intermédio da
comparado a música, e nomeadamente a ópera de Wagner, com
Identificação: permite-nos ampliar a nossa experiência humana de
os mitos que, segundo ele, são lições de boa distância:
acordo com as dimensões dos heróis que ele encama.
«No seio da cultura, o canto difere da língua falada tal . S~gundo Freud e_ Winn.icott, a arte é um substituto do jogo
mfantll. O que se opoe ao JOgo não é a seriedade, é a realidade:
como a cultura difere da natureza; cantado ou não, o dis-
os desejos e as fantasias são satisfeitos alucinatoriamente como
no sonho. Pela capacidade de identificação que suscita, o' cantor
(9°) Refiro-me a Luis-Vincent Thomas, entrevistado por Le Monde a 4 de
Dezembro de 1983.
(9 Entrevista de Giorgio Strehler a Hector Bianciotti para o Nouvel Obser-
1
)
c::) L~v~-Strauss (C.), Le Cr~ et le Cuit, Paris, Plon, 1964, p. 37.
vateur, n. 723, 23 de Outubro de 1978.
0 ( ) Lev1-Strauss (C.), entrevistas televisionadas, <<Une approche de Lévi-
-Strauss>>, TF1, 20-22 de Junho de 1977.

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Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

arrasta-nos para um sonho, individual e colectivo A tal a sexualidade nunca é apenas também é
como a magia, serve de intermediário entre a realidade e o ima- so o cantor - para além técnica e da beleza da voz -
ginário: profundidade da sua humana. Uma bela
voz, que não seja animada por uma vida interior, nunca
«Como realidade aceite convencionalmente, na qual, gra- nos tocará completamente. Os cantores ou as cantoras doam-nos
ças à ilusão estética, há símbolos e formações substitutivas a sua riqueza pessoal através da sua própria visão do mundo e
que podem gerar afectos reais, a arte constrói um da vida. Musset exaltava La Malibran:
intermediário entre a realidade que frustra os desejos e o
mundo da imaginação que satisfaz os desejos, uma região «É essa voz do coração, a única que ao coração chega,
onde as tendências para a omnipotência da humanidade pri- Que nenhuma outra, depois de ti, voltará a dar-nos.» (98)
mitiva se mantêm ainda com toda a sua força.» (95 )
Stendhal escrevia acerca de Pasta:
Para que o cantor cumpra essa função de magia e de sonho,
a voz tem de ser bela. No canto, a beleza da voz tem a ver com «Nenhuma das suas qualidades parecia extraordinária,
o domínio sexual: diz-se que um homem tem «um belo órgão» ... mas apenas, e simplesmente, quando ela cantava, o canto
Quanto à voz da mulher, as metáforas conduzem-nos a uma evo- saía do coração.» (9 9 )
cação mais metafísica do que carnal: prima donna, assoluta,
diva ... (96) - Trata-se mais do fascínio pela Deusa Mãe, primo A propósito de Berma, em quem elogia, como num grande
amore - «Casta diva», como é invocada na ópera Norma, de violinista, a «superioridade de alma», Proust escreve:
Bellini - cuja voz é o primeiro atributo que o homem, desde a
sua vida fetal, conhece. A beleza está ligada às características «Assim, tanto nas frases do dramaturgo moderno como
sexuais secundárias (a laringe, é uma delas), o que provoca ape- ~os versos de Racine, a Berma sabia introduzir as amplas
nas o prazer preliminar (97 ). E por isso que a emoção suscitada zmagens de dor, de nobreza, de paixão, que eram as suas
pela voz está sempre ligada à sexualidade: a voz da mulher, as- obras-primas, e em que era reconhecida como, nos retratos
sociada à mãe, a voz do homem, associada ao pai, dão-nos as que pintou a partir de modelos diferentes, se reconhece um
figuras entrecruzadas dos nossos desejos infantis ... Todavia, como pintor.» (1°0 )

(94) Para que essa passagem ocorra, as fantasias inconscientes do artista


têm de ser controladas pelos processos secundários postos em acção pela arte
vocal: técnica vocal, obrigatoriedade do compasso e dos tempi, respeito por to-
das as exigências da partitura, obediência às regras do «belo canto>> em vigor
na sociedade.
( ) Freud (S.), L'intérêt de la psychanalyse, Standard Edition, London,
95

Hogarth Press, 1953-1966, XIII, p. 188.


( ) Há inúmeras obras dedicadas às cantoras e escritas por homens: Pierre-
96

-Jean Rémy: Callas, une vie; C. Dupêchez, D. Femandez: L'univers des voix: 98
( ) Musset (A. de), <<Stances à la Malibran>> (1836), Poésies completes
lçs divas; A. Tubeuf: Le chant retrouvé ou l' histoire de sept divas; S. Segalini: '
Paris, Gallimard, 1980, p. 325.
Album dedicado a Elisabeth Schwarzkopf.
(97 ) O prazer preliminar, ligado ao sistema pré-consciente, permite o se- (99) Stendhal, Vie de Rossini, citado por Clément (C.), Miroirs du sujet,
Paris, UGE, 1975, p. 284.
gundo prazer, o prazer sexual propriamente dito, devido à desaparição do
recalcamento. (1°0) Proust (M.), Le côté de Guermantes, op. cit., tomo II, p. 52.

214 215
A voz no tratamento psicanalítico
e a do canto
«Para mim, jogar é uma actividade evidente
que deve surgir durante a análise dos adul-
tos e quando se trabalha com as crianças.
Essa actividade manifesta-se, por exemplo, na
escolha das palavras, nas inflexões da voz e
sobretudo no sentido de humor.»

D. Winnicott, Jeu et réalité

A voz, «meio de comunicação»


no tratamento psicanalítico
Como já tivemos ocasião de referir, a voz suscitou pouco in-
teresse entre os psicanalistas. No entanto, está no centro do pro-
cesso analítico, porque é_ o canal mínimo por onde passa o
máximo de comunicação. E exactamente aquilo que permite que
o analista e o analisado comuniquem: não se vêem, não se to-
cam, não se cheiram, ouvem-se apenas ... Quando se fala de tra-

219
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios

~-'0"'"U.HU.H0V há uma músi-


tamento
dade da como recolhido
gras fundamentais ... Fala-se sobretudo de
que momento, sob que forma. uma à outra ...
-se, recorre-se a palavras eruditas. como se
fiava do «sentir» e alguns dos seus sucessores - A voz do analista:
vezes, essa caraterística... «no início da sua
qualquer analista faz consultas durante as quais acaba mais por «Há qualquer coisa de afectivo em alguém que nos ouve,
seguir o doente do que por antecedê-lo, e isso um tanto às ce- ao passo que nós não sabemos o que dizemos, vaticinamos,
gas; essas consultas são, porém, eficazes, e por vezes mesmo como aliás toda a gente faz. Mas sabemos que vaticinamos
excelentes» (1). Sacha Nacht afirmou, e na nossa opinião de uma C) ... Comunicar é tangencial à verdade. A minha experiên-
forrna sublime, que o psicanalista contava mais pelo que era que cia com outrem é manter-me permanentemente, por força do
pelo que dizia: lugar que ocupo, tangencial à sua verdade, o que faz com
que essa verdade se revele.» (4)
«Inconscientemente, o doente apercebe-se com a maior
exactidão da verdadeira qualidade da atitude profunda do - A voz do analisado:
psicanalista em relação a ele.» (2)
«Ouvir alguém é ouvir a sua voz. Ouvir a voz de outro
O doente apercebe-se dessa qualidade justamente através da é ouvir no silêncio de si mesmo uma palavra que vem de
voz do psicanalista porque, muito lá no fundo, a voz é o ser. outro lugar qualquer ... Ouvir alguém é captar, no fundo si-
O conteúdo do que o analista diz é sem dúvida menos impor- lencioso de si mesmo, as modificações mais subtis expressas
tante, sobretudo no início, que a maneira de dizer, a entoação, a no espaço aéreo pela actividade mais íntima do outro. Dei-
inflexão, a adequação da voz. Um dos meus pacientes, a braços xar soar a palavra de um outro implica necessariamente a
com uma problemática invasora de mãe fálica e violenta, liber- suspensão de qualquer raciocínio ...
ta-se progressivamente: Ouvir alguém, ouvir a sua voz, exige da parte de quem
ouve uma atenção ... que não se crispe nem sobre a impres-
<<A medida que as minhas fantasias iam desfilando, pen- são da voz, nem sobre a expressão do discurso. O que se
sava na sua voz suave e amiga ... » ouve então é justamente o que o sujeito que fala não diz: a
trama inconsciente que associa o seu corpo, como lugar, ao
Se, na maioria dos casos, as palavras do analista são aguar- seu discurso: trama activa que reactualiza na fala do sujei-
dadas pelo paciente com avidez e impaciência, é também para to a totalidade da sua história.» (5)
ouvir a voz daquele ou daquela que as profere. O que seria um
tratamento por «escrito», com tempo para redigir as interpreta- Se a mensagem do analista passa pela sua voz, o mesmo se
ções, elaborá-las, graduá-las, depurá-las ... Faltar-lhe-ia o calor, a passa com o analisado:
vida, a autenticidade da comunicação, tudo o que a boa música,

(3) Penso no «playing>> de Winnicott. A psicanálise seria como um


(') Grunberger (B.), «Le narcissisme>>, op. cit., p. 55. <<squiggle>> sonoro ...
( ) Dolto (F.), Entretiens avec Françoise Dolto, Psychanalyse et foi.
4
(2) Nacht (S.), «Guérir avec Freud in La Psychanalyse>>, La Nef, n. 0 41,
1967, p. 173. (') Vasse (D.), L'ombilic et la voix, Paris, Le Seuil, 1974, pp. 183-185.

220 221
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

o discurso do analisado extravaza do "-'Irrn'rtn excitam-nos e a com-


associações mais ou menos livres. A voz é uma comunicação de inconsciente a incons-
de sentido na escuta do escuta com ciente, isto é, um corpo a corpo mediado pelas vozes ... :
o paciente se identifica ... Uma perspectiva mais
talvez permitisse atribuir ao obcecado a prioridade seu «A pouco e pouco, perfilar-se-ão melodias, sequências e
texto, e, nesse caso, que muro se ergueria!, e atribuir ao rupturas, que só revelarão o seu significado pleno no final
histérico a proeminência da sua voz.» (6 ) do percurso, por vezes quando ocorrem variações. Estes as-
pectos têm uma grande importância na formação da nossa
O paciente exige, pelo menos, ser não só sentido e aceite na audição, na nossa conversão em melómanos da prosa fala-
sua voz, mas também compreendido nas suas palavras. A crian- da, na informação da nossa sensibilidade, na instruição das
ça pequena começa por ter mais necessidade de ser sentida do nossas suspeitas, na graduação das nossas certezas ... A re-
que «interpretada», porque não fala ... No entanto, essa permuta ceptividade do analista aos efeitos de voz, inerentes à lingua-
é primordial; nos primeiros tempos, passa apenas pela melodia gem falada, é exaltada e amplificada porque é "flutuante",
e pela entoação e não pelas palavras: «A instauração de uma não inflectida pelas preocupações do diálogo, da réplica, da
primeira relação satisfatória com a mãe depende do contacto competição, da delicadeza ... As entoações são mímicas, pos-
estreito estabelecido entre o inconsciente da mãe e o da criança. turas vocais de uma grande subtileza ... O tom gera uma mú-
Essa relação é a base da experiência vivida mais completa que sica que, mais imperativamente do que os conteúdos, pode
existe - a experiência de se ser compreendido - e está essen- salvar a análise da contratransferência do declive escorre-
cialmente ligada à fase pré-verbal. Por mais gratificante que possa gadio dos recalcamentos.» (8)
ser na vida o facto de exprimirmos os nossos pensamentos e os
nossos sentimentos a alguém que nos demonstra a sua simpatia, A voz e os afectos referem-se prioritariamente à relação com
continua a haver um desejo por satisfazer: o desejo de sermos a mãe, relação primordial e indizível. A fala e a palavra marcam,
compreendidos sem termos necessidade de recorrer à palavra, com o surgimento da linguagem, um afastamento da relação com
desejo que representa, em última análise, a saudade da primeirís- a mãe e anunciam a relação de «distância», designada por inte-
sima relação com a mãe.» C) Estas reflexões de Mélanie Klein, lectual, com o pai. Em seguida, a interpretação, transmitida pela
com as quais estamos totalmente de acordo, defendem a reabili- voz, poderá ser melhor entendida através da conflitualização da
tação do elemento propriamente vocal do tratamento, ligado in- transferência edipiana.
dubitavelmente à função materna do analista. Rolando Gori compreendeu perfeitamente esta posição para-
No analisado, a qualidade dinâmica da voz e o seu timbre doxal da análise (9):
graduam a melodia. A curva melódica revela de imediato o es-
tado depressivo ou melancólico. No interior e no decurso da re- «0 discurso analítico está duplamente associado a uma
lação, o analisado tem sempre problemas de voz e de timbre, da experiência corporal indizível e à sua comunicação social ...
rouquidão à quebra de voz, da gaguez à eructação, do sussurro Por isso, para que a interpretação psicanalítica facilite a
ao tom monocórdico, da sideração ao ênfase, etc. Essas inflexões criação psicanalítica, é preciso que ela própria seja uma
de voz, isto é, do corpo, comovem-nos (do latim movere: mover), criação, isto é, que flutue, se elabore e funcione entre o
corpo e a linguagem, entre a subjectividade do desejo e a

( ) Barande (I.), <<Le vu et l'entendu dans la cure>>, Revue Française de


6
(8) Barande (L), «Le contre-transfert est informé par la vocalisation>>, Revue
Psychanalyse, tomo XXXII, n. 0 1, p. 83. Française de Psychanalyse, tomo XL, Maio-Junho de 1976, pp. 541 e 544.
9
C) M. Klein, Envie et gratitude, Paris, Gallimard, 1963, p. 122. ( ) Embora a «VOZ>> raramente seja evocada como tal.

222 223
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

e
associativo

Sentimo-nos mais próximos de Winnicott nesta da se baseiam no ouvido e na escuta: escuta de si mes-
psicanálise através da voz. A voz é «transicional» no em mo e comunicação auditiva com o outro. no canto intimista
que define muito exactamente a área do jogo. Se Winnicott não como no tratamento psicanalítico, cada pessoa revela e expõe a
aprecia o «mind game» («tinha uma certa aversão à inteligência sua vida interior, conta-a a si mesmo para que o outro a ouça, a
e a esse jogo do espírito a que, reconheçamo-lo, o pensamento compreenda e lhe devolva o sentido, partilhado num clima de
analítico contemporâneo se dedica com demasiada facilidade C ), confiança. O inefável é sempre tangencial à experiência do can-
1

recomenda mais ainda o «playing», a acção de jogar, do que pro- to, e no tratamento psicanalítico as palavras tentam traduzir o
priamente o «play», o jogo: iridizível... O canto mantém-se no domínio da voz-música e do
narcisismo feliz dos primeiros tempos da vida, ao passo que o
«Para mim, jogar é uma actividade evidente que deve tratamento psicanalítico nos arrasta para as exigências do social
surgir durante a análise dos adultos e quando se trabalha por intermédio do código da linguagem. Freud, que era um vi-
com as crianças. Essa actividade manifesta-se, por exemplo, sual, inventou a escuta psicanalítica que, na sua opinião, devia
pela escolha das palavras, pelas inflexões da voz e sobretu- ser depurada do sensível afectivo. matemo e apoiada no legal
do pelo sentido de humor.» (1 2) paterno, mas o tratamento psicanalítico também é jogo de vozes,
como mostrámos. Se a vista é acima de tudo o sentido da inte-
E um pouco mais adiante: ligência, do conhecimento científico, da objectividade e do espa-
ço, o ouvido é acima de tudo o sentido da vida interior da
«0 jogo é que é universal e corresponde à saúde ... O consciência, da expressividade e do tempo. '
jogo pode ser uma forma de comunicação em psicoterapia Aliás, o canto e a psicanálise inscrevem-se numa experiên-
e, para concluir, direi que a psicanálise se desenvolveu como cia particular do tempo. Ambos nos arrancam momentaneamen-
uma forma muito especializada de jogo posta ao serviço da te ao tempo convencional, tempo do quotidiano e do social.
comunicação consigo mesmo e com os outros ... O que é na- ~t~a~és do canto e da. psicanálise, reencontramos o tempo da
tural é jogar, e a psicanálise é um fenómeno muito sofisti- mtumdade, o tempo pnvado da nossa relação profunda connos-
cado do século XX.» (1 3 ) co mesmos e com o outro. Provavelmente acedemos à <<nossa
vida, a verdadeira vida, a vida finalmente descoberta e revelada
Sendo assim, Winnicott talvez admitisse a definição da psi- a única vida realmente vivida ... », como é, para Proust, o temp~
canálise como «Um jogo a duas vozes» ... de A la recherche du temps perdu (1 4 ). O canto e a psicanálise
abrem o caminho a esse tempo da vida vivida de que fala
Bergson, opondo-o ao tempo espacializado. Esses momentos de
atenção à vida interior são limitados e balizados, mas, pela sua
sucessão, geram o movimento de uma vida mais pessoal e mais
(' ) Gori (R.), Le corps et le signe dans l' acte de paro/e, Paris, Dunod,
0
rica, ligada ao imaginário e unida à infância.
1978, pp. 10-12 e 226.
(") Khan (M.), Prefácio a La consultation thérapeutique et l' enfant de
Mais ainda, a experiência do canto e a da psicanálise permi-
Winnicott, Paris, Gallimard, 1972, p. XXV.
(' ) Winnicott (D.), leu et réalité, Paris, Gallimard, 1975, pp. 58 e 60.
2
4
( ) Ibid., pp. 58 e 60.
13
(' ) Proust (M.), Le temps retrouvé, tomo m, p. 895.

224 225
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

te um ordenamento do musical de que obscuramente


"v,na,:;cJtu se sentia
tico C5 ) é o da compreender e de melhor a amar: o tal como
pera e da saudade, da a mus1ca, faz a ligação entre a memória e a espera. Da mesma
ordenar o tempo é tomar '"'v''"'"~~'-''''"'"' forma, a sequência dos movimentos musicais rPru·P·CPM a dinâ-
cológica e vencer os seus aspectos passivos num mica vital.
controlado: No tratamento psicanalítico, a repetição, inevitável e necessá-
ria, também deve ser abertura e progressão. O tratamento arran-
«0 verdadeiro trajecto laborioso, aquele que, para o ca-nos à compulsão que nos aprisiona e dá de novo um sentido
homem, serve de referência para todos os outros trajectos, aos nossos actos; substitui o tempo perdido e patológico da fi-
é a sua própria vida, com as suas esperanças e as suas de- xação e da regressão pelo tempo reencontrado do impulso vital.
cepções, as suas provações e os seus êxitos, as suas esperas Tanto na análise como no canto, Eros deve vencer Thanatos: por
e as suas realizações. A música C6) oferece-lhe, ao mesmo detrás das palavras do cantor e do analisado, deve haver a vida
tempo, a imagem e o esquema desse trajecto, mas sob a e o jogo; se não, a sequência de sons é insignificante, insípida,
forma de um modelo reduzido que não imita apenas, tam- redundante, e mesmo mortífera ...
bém acelera as peripécias e condensa-as num lapso de tem- Para que a psicanálise e o canto sejam vivos, devem ter por
po que a memória pode captar co~o um todo. e que, além base o afecto. Um tratamento psicanalítico sem afecto converte-
disso, quando se trata das obras-pnmas que a vzda raramen_- -se em discurso vazio e oco; da mesma forma, um canto, privado
te sabe fazer, as encaminha para uma conclusão conseguz- de emoção, é um artifício técnico, seco e sem alma ... O afecto
da.» (1 7 ) deve existir na linguagem e aceder, como Freud o desejava, à
representação de palavra. No canto, a emoção está integrada
Por seu turno, a psicanálise representa a reconciliação possí- no fraseado e é apurada pelo controlo do pensamento musical.
vel de um destino conseguida graças ao sentido: os nossos de- O canto é um percurso que vai do arcaico do grito para o legato
sejos e os nossos sofrimentos são exumados p~ra :~rem harmonioso do discurso musical, dando assim início à estrutura-
retomados pela consciência e melhor integrados na traJectona d.a ção psíquica a que a psicanálise também se dedica, percorrendo
nossa vida. Neste sentido, consideramos que a invenção da psi- o caminho que vai do inconsciente para o consciente. Ambos se
canálise está ligada ao movimento do romantismo e à assunção situam a meio caminho entre o corpo e o código (código musi-
da história subjectiva do desejo humano. cal ou código linguístico), no meio termo da oscilação. Todavia,
Tanto no canto como na psicanálise, o que importa é sair do o canto mantém-se mais próximo do narcisismo, enquanto a psi-
tempo patológico da angústia, da depressão ou d~ desmembra- canálise tem a ver com o socius.
mento, e, por isso, todas as repetições devem ser Impulso e ?e- Tanto o canto como a psicanálise dão grande importância ao
vir. A repetição está no coração da música, mas nunca é redlta: silêncio. Somos invadidos pelo ruído e estamos sujeitos a ele; o
é memória. A recordação está integrada na progressão da obra; ruído dispersa, ao passo que o silêncio reúne. Só algumas
não volta a fixar-se na imobilidade ou na regressão compulsiva; experiências privilegiadas nos conduzem ao silêncio unificador.
é reconquista do passado em dírecção ao futuro; o tema que se O canto só pode nascer do silêncio e do recolhimento e conduz
repete e que era esperado dá-nos a alegria de reencontrar essa inelutavelmente a esse silêncio e a esse recolhimento. Escutemos
a beleza do silêncio, após o canto ... Numa psicanálise conse-
guida, os silêncios deixam de ser embaraço ou bloqueamento:
C5) O canto romântico, ao contrário do canto clássico ?,u ~ontem??râneo, tornam-se momentos fecundos, reencontros consigo e com o
é aquele que mais justifica uma aproximação com a expenenCia anahtlca.
C6) Vocal ou instrumental. outro. Há um silêncio que é narcisismo de vida, oposto ao da
C7) Lévi-Strauss (C.), L' homme nu, Paris, Plon, 1971, p. 589. morte ...

226 227
Marie-Fra nce Castari!de

O canto é uma ascese. Faz-nos


que a também se nrrvnr.~

«Não se o nosso
do que os místicos desejaram e
creio que talvez não seja supérfluo, numa época em
psicanálise continua por vezes a ser e a ser prati-
cada em certos países como uma actividad e demasiad o hu-
mana de conforto interior e de adaptaçã o, lembrar o sentido
e o objectivo da sua técnica, que é aproximar-se cada vez A voz na
mais do nada a partir do qual podemos laboriosamente re-
fazer-nos e, ao mesmo tempo e na medida das nossas for-
ças, refazer o mundo.» (1 8)

Por fim, tanto o canto como o tratamento psicanalítico con-


vidam a comunicar. Como referimos, o canto é sempre mensa-
gem, apelo, dedicató ria: é o contrário do solipsism o, porque
nunca cantamos para nós, cantamos sempre para o outro, mes-
mo que ele esteja ausente ou já não exista ... A psicanálise tam-
bém tem por objectivo aceder ao outro, pela desalienação que
pretende obter: impede que se veja nesse outro apenas a projec-
ção das nossas fantasias pessoais e permite- nos aceitar a sua
verd§lde, na dimensão reconhecida da sua insuperável alteridade.
E por tudo isto que estas duas experiências se baseiam numa
concepção da vida humana que revela inúmeras semelhanças. Ac-
tualmente, a aversão que, em certos casos, se revela pela psica-
nálise em prol das novas terapias está associada a uma atracção
mais intensa do instante, do presente imediato, do prazer instan-
tâneo, em detrimento do tempo da história vivida e do sentido
do devir humano. Da mesma forma, o canto contemporâneo con-
fronta-nos com uma melodia desunida e fragmen tada em que
deixamos totalmente de reconhecer a subjectividade romântica, tal
como foi por nós evocada.

C8) Pasche (F.), A partir de Freud, Paris, Payot, 1969, p. 205.

228
«Não há pássaro que tenha coragem para cantar
numa sebe de perguntas.»

R. Char

Patologia mental da voz


Se a voz é de facto a expressão profunda da pessoa, a pato-
logia mental também deve exprimir-se através das suas irregula-
ridades. Hoje em dia apoiamo-no s em trabalhos ainda pouco
numerosos, mas é de prever que o intenso desenvolvimento das
técnicas acústicas e dos processos de gravação e de análise sonora
abra um vasto campo para as descobertas e os estudos futuros.
Em primeiro lugar, quais são as irregularidades menores da
voz? Tal como a normalidade não consiste num imobilismo rí-
gido (as personalidades rígidas ou demasiado conformistas são
sempre suspeitas ... ), a voz considerada normal possui inflexões
que exprimem os humores e os afectos que marcam o decurso
de um dia e de uma vida.

231
Marie-France Castarêde

tem a sua voz,


tão seguro como as
colher-se uma amostra dessa voz
vai de e cinco a setenta ""'~'-"''"''"
desse comprimento, as características da voz como amostra do
resto do discurso são válidas para um julgamento.» Essa amos- «Em muitos casos, a expressão vocal e verbal contradi-
tra vocal pode ser um elemento por exemplo, nos in- zem-se e, quando isso se verifica, a voz é capaz revelar
quéritos policiais ('). a verdade acerca do locutor.» (2)
Essa voz, que é nossa, pode estar sujeita a flutuações, a va-
riações que traem o corpo e os afectos: jovial, doe~, seca, metá- . Sem atingir. as distorsões mais extremas, que provocam na
lica, furiosa, sedutora, neutra, emocionada ... E o meio de Cnanç~ patologias graves, cada pessoa sente diariamente que o
comunicação que tem o poder de matizar infinitamente os nos- texto hteral da mensagem do locutor é matizado modulado e
sos sentimentos. Trai-nos quando, embora tentemos dominar e mesmo ligeiramente desmentido pelo seu tom de' voz. Pesso~l­
controlar as nossas emoções, deixa escapar o essencial: quem é mente; tentamos po! vezes isolar momentaneamente a audição do
sensível saberá detectar, por detrás do discurso proferido, o ocul- conte~do da aud1çao da voz, para sermos sensíveis, durante al-
to, por detrás do dito, o não-dito ... gu?s. mstantes, apenas à voz: assim, deixamos de captar o
Ter uma voz <<normal» é poder exprimir toda a gama dos anodmo da conversa e captamos o mais profundo do ser.
afectos e dos sentimentos. É nesse «teclado» subtil que nos com- Já Moses afirmava que «os poetas avaliam melhor os
pete «tocar», por exemplo, quando cantamos. Na vida corrente, ind~tectáve.i~ p:od~tos da laringe do que os cientistas» C). Com
também exprimimos, propositada ou involuntariamente, tudo o efeito, a c1encw amda não desenvolveu um método totalmen-
que sentimos, para o comunicarmos a outrem. Quanto mais uma te aceitável de análise da voz. Mais recentemente J ohn
personalidade se revela unânime e harmoniosa no que diz, mais Laver t~~ta caracterizar um «setting» neutro, isto é, defidir uma
a sua voz traduzirá o que ela deseja exprimir; pelo contrário, se voz «b~si~a», ~m. 11_10d~ neutro de fonação, a partir do qual as
essa personalidade estiver sujeita a conflitos graves e angustian- caractenstJcas md1V1dums pudessem ser detectadas e classifica-
tes, a voz será o veículo de todas essas distorsões íntimas. Tal das (4).
como Freud falava de «acto falhado», em que a atenção conscien- Os filósofos, os foneticistas e os físicos examinaram o pro-
te é submergida pela motivação inconsciente (mas, nesse caso, blema da voz, mas até agora poucos elementos foram codifica-
tratava-se de lapsus linguae, isto é, de «palavras» incongruentes dos para a voz poder ser estudada como chave da personalidade.
ou inadequadas), também seria necessário falar de «lapsos vo- Contudo, a origem desta última palavra prova que há muito tem-
cais», isto é, de actos linguísticos em que a voz, exprimindo o po que se pressente a existência de relações muito estreitas:
inconsciente, denuncia a intenção consciente. O exemplo mais persona, palavra latina, designa o orifício bucal da máscara utili-
radical é o da comunicação paradoxal, denominada «double zada pelos actores (per-sona: o som da voz passava através des-
blind», característica das mensagens totalmente contraditórias que, se orifício).
Osgood estabeleceu uma escala de fiabilidade, que Marie-

(') Peritos em foniatria ouviram oitenta e sete gravações para tentarem


identificar a pessoa que fazia os telefonemas anônimos no caso Grégory (morte (2) Moses (P. J.), The voice of neuroses, New York, Grune and Stratton,
por afogamento, no dia 16 de Outubro de 1984, de uma criança de 5 anos, 1954, p. 5.
Grégory Villemin, na região de Epinal), tarefa delicada tanto mais que a voz n4
Ibid., p. 7.
ou as vozes que se ouviam eram <<disfarçadas, roucas, masculinizadas, ou por . ( ) .Laver (J.), The phonetic description of voice quality, Cambridge

vezes nitidamente femininas>>, tomando difícil definir o sexo do assassino. Umversrty Press, 1980, p. 15.

232 233
Marie-France Castarede

comenta na sua obra e que rer,rodu:lmios Idealista - Realista 75


da voz: Sociável - Associai 75
-Medro so 75
ESCALA DE ÜSGOOD (ESCALA DE FIABILIDADE) Rico- Pobre 75
OUVIDO POR UM GRUPO Sincero - Mentiroso 75
Magro - Gordo 74
Traço característico Fiabilídade Servil ou não 73
Homem - Mulher 94 Doente - Saudável 72
Jovem - Velho 93 Criminoso - Bom cidadão 69
Entusia sta- Apático 91 Honesto - Desonesto 66
Activo - Preguiçoso 90 Extrovertido - Introvertido 64
Belo- Feio 90
Cooperativo ou não cooperativo 89 Há certos items que não deixam de nos surpreender. Com
Emotivo - Impávido 89 efeito, a escala foi estabelecida e confirmada pelo estudo da voz
Falador - Taciturno 89 a partir de grupos de juízes ingénuos (pessoas que não conhe-
Inteligente - Idiota 88 cem e que não viram os sujeitos da experiência), grupos de cin-
Interessante ou não interessante 87 co a sete pessoas, que se deixam influenciar mais pelas suas
Maduro - Imaturo 87 «sensações» de audição da voz do que pela sua opinião ponde-
Delicado - Indelicado 86 rada. Quanto aos items (Belo-Feio, Alto-Pequeno, Rico-Pobre),
Educado - Grosseiro 86 pensamos que se deve interpretá-los não de uma forma primá-
Convincente ou não convincente 86 ria, mas como factores de confiança pessoal, maneira de ver que
Bem adapta do- Neurótico 85 também não deveria ser exclusiva, porque a confiança em si pró-
Sensível - Insensível 83 prio é muito mais complexa do que essas características exterio-
. res. Seja como for, o desenvolvimento destes trabalhos poderá
Com sentido de humor ou sem sentido de humor 83
Jovial - Melancólico 82 criar, nos próximos anos, possibilidades cada vez mais aperfei-
Bondoso - Cruel 82 çoadas de análise da personalidade pela voz. Se a escrita, como
Romântico ou não romântico 82 traço, nos define, a voz também nos caracteriza como marca so-
Alto- Baixo 81 nora de nós mesmos. Há objectivos sociais - tais como a iden-
Sofisticado - Ingénuo 81 tificação vocal nos inquéritos policiais - que poderiam contribuir
Activo - Passivo 81 para o desenvolvimento destes estudos.
Orgulhoso - Modesto 81 Julgamos ter chegado o momento de evocar uma dificuldade
Ordenado - Desordenado 80 que se insere nas irregularidades menos graves da voz: a desafi-
Cuidadoso ou não 79 nação. Na nossa opinião, cantar desafinado é ter assimilado mal
Artista ou não 79 o «esquema corporal vocal» (6), expressão que confirma parcial-
Voluntarioso - Vekidos o 76 mente a noção de «esquema corporal»: segundo a experiência de
professores de canto e de foniatras, a afinação vocal está asso-
s Pfauwade l (M.-C.), Respirer, parler, chanter,_ Paris,
()
~di:ions Le
1981 181-183. A referência da escala propnamente dlta. Osgood
mm;)u~ Sebe~l?(T. A.), Psycholing uistics: a_ survey of _the_ory ar:d ;esfarc?h 6
( ) Comut (G.), La voix, p. 39: «Qualquer indivíduo
que fale e que cante
pr~bÚms, Baltimore, 1954. Esta escala semântlca de avallaçao vana e a . têm sensações que provêm das diferentes regiões do corpo e que são solicita-

234 235
Marie-France Castari?.de A Voz e os Seus

ciada a uma melhor do corpo. É por isso de harmo-


que a muito. No dl:ten~n<;as e das seme-
ma1s que o «Cantar afinado» de voz entre a e a mãe.
meiras entre a mãe e o filho. Se o professora de canto conta-nos que um actor de uns qua-
ro antecede o espelho visual, é porque a mãe é renta anos foi ter com ela para aprender a cantar afinado. Con-
bebé através da sua voz, antes de ser reconhecida pelo seu rosto: fessa-lhe os complexos da infância, quando o aconselhavam a
é com a mãe que o bebé, por exemplo, com o babytalk, vai criar calar-se: «Cala-te, cantas desafinado e incomodas as outras pes-
rapidamente a sua escala de sons e regular as suas. entoações. N~s soas.» Após quatro meses de aulas semanais, memoriza sequên-
canções de embalar e nos cantos, essa escala va1 ter de ser afi- cias musicais - coisa de que era incapaz - e reprodu-las
nada para percorrer intervalos fixos - escala de tons - que vol- afinadamente. A sua voz grave, dura e monocórdica, encheu-se
tarão a encontrar-se nas partituras de músicas vocais e que de nuances e adquiriu novos timbres, e as irmãs, que vivem na
culminarão nas subtilezas ainda mais sofisticadas da música província, já não o reconhecem ao telefone. Transformação es-
atonal... No início, pensamos que o bebé, «naturalmente músico», pectacular que passa também por uma intensa transferência: o
aperfeiçoa com a mãe a sua audição e a sua imitação: professor de canto é a boa mãe que encoraja e restabelece uma
comunicação vocal satisfatória.
«A imitação vocal é a trave-mestra da elaboração da
voz.» C)
Também é possível descrever um patamar de dificuldades
Se um adulto não canta afinado, é, muito provavelmente, vocais que estariam ligadas à travessia das diferentes fases da
porque a relação com a mãe na comunicação vocal e no esbo- sexualidade:
ço de controlo do aparelho fono-respiratório não foi satisfató-
ria. <<A voz do neurótico caracteriza-se por regressões e fi-
Aliás, este tipo de dificuldades pode muito bem transmitir- xações em etapas anteriores do desenvolvimento.» (8)
-se de uma geração para outra. Uma das minhas amigas, foniatra,
que cantava desafinado quando lhe nasceu o primeiro filho, re- Além disso, como a laringe é um órgão sexual secundário,
fere que esse filho é menos ágil fisicamente e menos afinado do o seu investimento é um indício para conflitos neuróticos de
que o irmão, nascido uns anos mais tarde, quando ela própria já natureza sexual.
tinha readquirido a afinação vocal e um maior desembaraço fí- É na fase do complexo de Édipo que a voz se constitui como
sico. Segundo afirmam os foniatras, o facto de se cantar desafi- pertencendo a uma personalidade sexuada, que evolui para a fase
nado não provém de um problema vocal ou de um problema genital e pode integrar todas as características vocais das fases
auditivo: a culpa deve ser imputada à falta de controlo da evo- anteriores. De acordo com inquéritos feitos, sabe-se que as vo-
cação sonora, isto é, da representação interna do som. O ama- zes sexualmente sedutoras são vozes graves:
durecimento cibernético não foi feito em boas condições. Pelo Segundo Tuomi e Fischer:

«Uma voz sedutora num homem é uma voz ligeiramente


das aquando da emissão do som. Há ainda a acrescentar a essa sensaçõ~s rouca, grave e mesmo baixa.
percepções auditivas, e por vezes visuais, e dados afectivos que. são comum-
cactos pelo cérebro visceral. Este esquema corporal vocal, que existe em todas
Uma voz sedutora numa mulher é uma voz velada, leve-
as pessoas em estado mais ou menos rudimentar, desenvolve-se quando se es-
tuda canto.>>
C) Pfauwadel (M.-C.), Respirer, parler, chanter, op. cit., p. 21. (8) Moses (P. J.), op. cit., p. 15.

236 237
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

das cordas vocais na Ferenczi relata o caso de um de vinte e anos


grave e rico em que tinha duas vozes: uma voz de soprano e uma voz de baríto-
um actor ou uma a no relativamente normal:
voz para baixam o tom de um ou dois
tons, pronunciam mais devagar as palavras, que, na «Depressa me apercebi de que o doente só utilizava a voz
podem ser pronunciadas duas vezes mais devagar.» (9) de barítono quando estava séria e objectivamente concentra-
do num assunto: no entanto, quando queria, durante o pro-
Outro inquérito, feito a cantores do sexo masculino alemães, cesso de transferência, provocar inconscientemente o meu
demostrou que existe uma relação directa ~~ntre a gr~vidade da interesse ou agradar-me, isto é, quando o efeito das suas
voz, a actividade sexual, a relação testosterona-estradwl e a fre- palavras o preocupava mais do que o seu conteúdo, come-
quência do acne (1°). . . çava a falar com a sua voz feminina. Como só raramente
Estes elementos de inquéritos confirmam a 1dem de que o conseguia libertar-se do seu desejo de agradar, a voz femi-
registo grave das vozes - masculinas e femininas - ~stá a~so­ nina era a sua "voz habitual". Mas não era uma voz de
ciado ao factor sexual da voz, o que corrobora as mms antigas soprano normal, era uma espécie de voz de falsete, de que
tradições. As mulheres frustradas, essas, têm uma voz enfadonha muito se orgulhava. Podia mudar o registo quando queria,
e agressiva... . mas sentia-se mais à vontade no registo mais elevado.» (1 2)
Quanto a Moses, reactualiza, numa outra persp.ectlva, as te~­
rias de Fliess sobre os laços existentes entre o nanz e a sexuah- Um pouco mais adiante, Ferenczi relata um outro caso, bas-
dade, porque mostra que as secreções do nariz acompanham a tante semelhante. Um jovem de dezassete anos também possuía
actividade sexual e influenciam por isso a voz: dois timbres de voz: uma voz de falsete ligeiramente rouca, que
era a que utilizava habitualmente, e uma voz de baixo, muito
«A voz de uma pessoa ascética é literalmente seca ... (ao cava, cheia e sonora. Era evidente que era a sua voz normal.
passo que) a expressão de intimidade no amor revela uma Todavia, quando o filho a utilizava, a mãe dizia-lhe:
participação nítida da ressonância nasal.» C1)
«Não posso suportar essa voz, tens de perder o hábito
O belo canto implica sempre que a voz, sobretudo nos agu- de falar assim.» (1 3 )
dos suba através do ressoador nasal, francamente dilatado, até
aos ' ressoadores de cabeça. Segundo Ferenczi, o que se verificava nestes dois casos era
Depois de ter falado das característica da voz bem s.exua~~· uma fixação incestuosa inconsciente na mãe.
vejamos quais são as dificuldades vocais ligadas a uma Identlfl- A foniatra Marie-Claude Pfauwadel teve também a amabili-
cação sexual má ou incerta: as vozes ambíguas. dades de nos relatar o seguinte caso: uma mulher de vinte e sete
A «voz de falsete» (voz de cabeça nos homens) é uma fixa- anos, assistente na Faculdade de Direito, foi consultá-la por causa
ção da voz masculina numa fase que antecede a mudança da voz. de um ciciar bastante grave. Só muito tardiamente é que decidira
Se o rapaz se fixa na mãe, na altura da puberdade (em vez de proceder a uma reeducação, embora esse defeito de elocução se
se voltar para um objecto feminino não incestuoso), a sua voz revelasse muito embaraçoso na sua profissão. Só tinha ido à
ficará eivada de infantilismo. consulta a partir do momento em que, ao tratar de uma sobrinha

( 9 ) Citado por Pfauwadel (M.-C.), op. cit., p. 48.

(1°) Idem, op. cit., p. 48. (1 2) Ferenczi (S.), 1915, CEuvres completes, tomo 2, p. 169.
( 11 ) Moses (P. J.), op. cit., pp. 50-51. (1 3 ) Ibid., p. 170.

238 239
Marie-France Castarêde A Voz e os Seus

«Observo ansiosamente
lesa o
que esse a mais
defeito para continuar a ser a «sua filhinha» ... As nomeei Hitler. As vocais orador
vozes demasiado agudas de certas mulheres são bem reveladoras ir aumentando lentamente e manifestam-se por ""'''".:'""
da sua dificuldade em aceitar uma verdadeira maturidade sexuaL gritos agudos, por certas sílabas entrecortadas e como "la-
Inversamente, Marie-Claude Pfauwadel recebeu no seu con- dradas", ao passo que o seu discurso se refugia nas sonori-
sultório mulheres de voz muito grave, «vozes demasiado roucas», dades mais baixas, duramente apoiadas, para descobrir o
que elas mantinham para darem uma imagem viril, activa e em- timbre necessário.» (1 6 )
preendedora delas mesmas ... Havia uma cantora que referia, en-
tre outras coisas, que tinha forçado a voz de tal maneira que o Esse tipo de voz caracteriza-se por ataques muito duros, com
seu registo passou a ser mais baixo. Depois de lhe terem sido inúmeros «golpes de glote». ,Por outro lado, há a voz contida,
extraídos vários polipos e quistos, e de se ter submetido a uma fria, metálica, monocórdica. E uma vo'? cortante, seca e provoca
reeducação, readquiriu uma soberba voz de soprano. «calafrios». Revela um ódio contido. E a voz do obcecado, me-
Quanto à voz da histérica, é uma voz artificial e teatral: ticuloso, minucioso, que analisa e disseca, como um laser.
Para além das componentes agressivas, sob uma ou outra
«A histérica hipermodula, caindo no maneirismo e as forma, há ainda o ritmo e a periodicidade do débito. Sabe-se
suas palavras soam muitas vezes a falso porque as variações que a voz de Hitler era hiper-ritmada, apoiada num «staccato»
de altura nem sempre estão associadas ao sentido.» (1 4) constante. A acentuação também é uma marca da cólera e do
ódio:
São igualmente conhecidas as perturbações da gaguez, nomea-
damente através do segundo dos cinco casos apresentados por «A interpretação psicanalítica sugere que uma atitude
Breuer e Freud em Études sur l' hystérie (1 5 ): o caso de Emmy agressiva acentuará, seja em que língua for, a estrutura
von N. refere-se a manifestações anormais da emoção e a rítmica da frase, reforçará os acentos, fará diminuir o ca-
fantasmática oral predomina na transferência e na contratransfe- rácter melódico, simplificará o esquema melódico, reduzirá
rência. Na nossa própria experiência clínica, notámos muitas a duração das vogais e prolongará a das consoantes
vezes que a gaguez estava ligada a situações de má definição da oclusivas, introduzirá pausas frequentes e muitas vezes irre-
personalidade na infância, e em que a reacção de inibição espas- gulares.» C7)
módica representava uma agressividade camuflada.
Se analisarmos a problemática anal do ponto de vista vocal, Se notamos de imediato certas vozes, reveladoras de uma
com as subfases descritas por Kare Abraham, poder-se-á distin- explosão de cólera ou de um ódio contido, também ficamos sur-
guir dois tipos muito diferentes: por um lado, a voz agressiva, preendidos quando ouvimos algumas que não são portadoras de
dura, explosiva, esténica, que corresponde à primeira fase de nenhuma «estenia». A expressão de uma certa dose de agressi-
expulsão anal. A cólera é subjacente a essa voz; ninguém pro- vidade é um facto normal: é essa agressividade que confere a
curava perceber as intenções de Hitler, o que se escutava eram cada voz o seu tónus, o seu poder, que concorre para a expressão
as promessas da sua voz:

(1 6 ) Doutor A. Wicart, L' orateur, 1935. Citado por Riviere (J. L.), «Leva-
(1 4 ) Pfauwadel (M.-C.), op. cit., p. 51. gue de l'air>>, Traverses, n. 0 20, 1980, pp. 21-23.
(1 5) Freud (S.) e Breuer (J.), (1895), Étude sur l' hystérie, Paris, PUF, 1967. (1 7 ) Fonagy (L), La vive voix, op. cit., p. 151.

240 241
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

o outro é sempre seis anos, que só tinha voz durante uma dezena de dias de nove
sensível e a que vai em nove meses ...
anal, se estiver integrada no Tanto no caso como no o médico foniatra
tribui para dar à voz o seu necessano não conseguiu os seus pacientes a referir os conflitos psí-
pessoal. quicos subjacentes à perda da voz. No primeiro caso, a descon-
O erotismo oral está implicado na pronúncia de certas vogais tracção poderia ter sido o prelúdio de uma psicoterapia. Estes
e consoantes. No palrar, as vogais e as consoantes doces são as exemplos colocam a questão da consulta de um foniatra, que os
que aparecem com mais frequência. Na idade adulta, nota-se por doentes procuram porque os protege de uma abordagem psico-
vezes vozes melosas, açucaradas, cantantes, «puras», agudas, lógica mais profunda, que lhes mete medo.
vozes infantis, em que se poderiam detectar fixações orais. i Para além destes casos, que fazem suspeitar de uma afonia
Se a comunicação é a base da vida humana, a neurose ma- qe tipo histérico, há uma irritabilidade neurótica que pode mani-
nifesta-se sempre por dificuldades no domínio da transmissão das festar-se por fadiga da voz, acentuações indistintas, respiração
mens~gens aos outros. Por conseguinte, está ~uito_ associada à irregular, mais frequente e mesmo arquejante. A voz de um dos
voz. E por isso que o aparelho vocal, numa s1tuaçao de neuro- nossos pacientes, que se sentia constrangido pela sessão de psi-
se, revela sinais de falta de controlo: entoação incerta, altura não canálise que, para ele, era uma espécie de sodomização, enfra-
constante continuidade tonal alterada ... A ansiedade, quando se quecia por vezes durante a sessão, e o seu discurso, interrompido
toma de~asiado forte, pode provocar afonia e mesmo mutismo. por numerosos «gatos» na garganta, tornava-se dificilmente audí-
Uma mulher de trinta e cinco anos, casada há quinze anos e vel. Se um frenesim de palavras pode ser neurótico, também o
sem filhos (1 8), funcionária da Segurança Social, vai a uma pode ser o silêncio constrangido de certos pacientes. Por outro
consulta por causa de uma afonia cuja aparição remonta há seis lado, as perturbações da linguagem e da, elocução, na criança e
meses atrás e que só cede ligeiramente à noite. O exame das cor- no adulto, podem repercutir-se na voz. E costume dizer-se que
das vocais é normal. Inicia-se uma descontracção: passados uns a disfonia é, para a voz, o que a gaguez é para a palavra. Sendo
meses, nota-se uma melhoria, mas entretanto começa a ter cri- assim, a disfonia espasmódica pode ocorrer devido à perda de um
ses agudas de vaginismo, de que a paciente fala com muitas re- objecto que foi alvo de um superinvestimento. A dor do luto não
ticências. Muito reservada acerca da sua própria história, conta pôde ser expressa e o soluço abafado passa para a voz, como
que se lembra da mãe como de um ser muito frio e muito distan- aconteceu a uma mulher hiperactiva, de cerca de cinquenta anos,
te. Descontrai-se com muita dificuldade e progride pouco, quan- que confia:«Não me deixaram chorar.» Um geólogo de trinta e
do é convocada pelo médico dos serviços, que pede o diagnóstico quatro anos também vem à consulta por causa de uma disfonia
de um especialista. O otorrinolaril!gologista declara: «A afonia espasmódica provocada por uma mud~mça de vida radical, que o
cura-se com um par de estalos.» E então que ela vai consultar fez passar de uma ilha do Oceano Indico para um ministério
um psiquiatra que faz sessões de hipnose, mas sem qualquer re- parisiense: após uma descontracção que durou dois anos, pôde
sultado. Consegue mais seis meses de baixa. Uns anos mais tarde, submeter-se a uma reeducação foniatricamente apropriada.
conta que intentou e ganhou um processo contra a Segurança
Social. Depois de ter dado livre curso à sua agressividade, sente-
-se melhor e mudou de vida. Também nos foi relatado um ou- Em França, foi no domínio da psiquiatria, e nomeadamente
tro caso de afonia, referente a uma mulher solteira, de trinta e da psicose, que se fizeram, até hoje, os estudos mais sérios so-
bre a voz:

( 18 ) Caso que nos foi relatado por Marie-Claude Pfauwadel, foniatra, a «Tentar elucidar concordâncias entre patologias mentais
quem agradecemos. e patologias vocais ... a questão não é de hoje ... É colocada

242 243
Marie-France Castarede

PineL» à
essencialmente alterações de ritmo da
Para além de citar Kahl- ção do débito verbal (diminuição das pausas e duração das pa-
baum, Kraepelin, Bleuler, entre os psiquiatras do início do sé- lavras), durante as fases maníacas, e abrandamento, durante as
culo XX que se interessaram pela voz. No «OS factos são fases depressivas:
repertoriados, descritos sem consistência sensorial, como porme-
nores suplementares» (2°). «0 discurso do deprimido é lento, monótono, com pou-
Só na segunda metade do século XX é que se começará a cas variações do fundamental; a intensidade é fraca.» (2 3 )
estudar de uma forma sistemática as perturbações da linguagem
nos alienados. Mas também há estudos recentes, incidindo em crianças dislá-
Nos países anglo-saxões, Addington (1968), Uldall (1960), licas (2 4), que nos elucidam acerca das modificações da voz:
Brown e os seus colaboradores (1973-197 4, estes, utilizando a
«escala semântica» de Osgood, 1954) tentaram descobrir traços «Uma voz dislálica específica e patológica caracteriza-
de personalidade através da voz; Moses, em 1954, já tentava -se pelos traços pertinentes seguintes: débito irregular, inter-
fazê-lo, como referimos anteriormente a propósito não só das ferências vocais, golpes de glote, timbre pausado, pastoso,
neuroses, mas também da esquizofrenia. rouco, gutural, abafado, soprado e dispneico.» (25)
A análise de Moses, recorrendo à «escuta criativa», posta em
prática com um júri de várias pessoas, punha em evidência os A análise metafórica da voz da criança dislálica põe em evi-
traços seguintes da análise vocal do esquizofrênico: predominân- dência o seu sofrimento, o seu mal-estar, a sua angústia, por
cia do ritmo sobre a melodia, registos separados (voz de cabeça vezes mesmo a sua cólera e a sua agressividade. A sua voz as-
ou voz de peito), ausência total de <<pathos» (2 1), diminuição da semelha-se à voz da criança autista: demasiado aguda, atonal,
ressonância nasal, melodia sem qualquer relação com o conteú- aritmica, inexpressiva, modulação pobre, nasalações frequentes,
do, voz eivada de maneirismo, acentuações não apropriadas. variações extremas de intensidade.
Estas conclusões parecem ser confirmadas pelo estudo mais Simetricamente, também se pode descobrir defeitos patogê-
recente de C. Chevrier-Muller, que se baseia em métodos esta- nicos na voz da mãe do autista: a discordância (intervém a con-
tísticos e refere as seguintes características da voz dos esquizo- tratempo porque não pode reagir adequadamente ao que o bebê
frênicos: retraimento afectivo, expresso pela diminuição da sente), a brusquidão (a voz exprime-se por mudanças de tom que
quantidade de melodia (extinção da linguagem afectiva), menor não garantem ao bebê uma coerência interior satisfatória por parte
variabilidade de altura da voz (falsas variações melódicas, mo- da mãe), a impessoalidade (a voz não informa o bebê acerca do
que a mãe sente ou acerca do que ele próprio sente: é uma voz
9
«no vazio» ... ), o paradoxo (o tom da voz pode estar em desa-
(' ) Sevestre (P.), Chevrie-Muller (C.), Seguier (N.) e Spira (A.), <<Altéra-
t~on de la voix dans les schizophrénies et les psychoses maniaco-dépressives>>,
Evolution Psychiatrique, tomo 45, n. 2, 1980, p. 281.
0

(2°) lbid., p. 284. (2 2) Chevrie-Muller (C.) e colaboradores, op. cit., pp. 292-293.
(2') O <<pathos» da voz exprime a relação entre o sujeito e ele próprio, e (2 3 ) Pfauwadel (M.-C.), op. cit., p. 51.
entre ele e a sociedade. Uma palavra carregada de pathos estabelece uma re- (2 4) A dislalia designa as perturbações de articulação, sem que haja qual-
lação verdadeira. O excesso de pathos corresponde ao maneirismo, ao ênfase, quer lesão orgãnica.
á megalomania. Uma voz sem pathos dá ao discurso uma impressão de au- (2 5) Vida! (M. M.), Étude phonologique, prosodique et phono-stylistique de
sência de comunicação. la dyslalie, tese de terceiro ciclo, Universidade de Paris III, 1981, pp. 154-156.

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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios

cardo total com a lógica do discurso: o bebê recebe apenas men- De acordo com as características enumeradas
sagens que não é capaz de Pfauwadel a voz da criança surda é uma voz Tem
Foi Moses, seguido actualmente por quem tornou uma altura porque o funcionamento da não está
possível o diagnóstico das entidades nosológicas e p~i- em causa; só a surdez muito profunda é que pode provocar per-
coses) por intermédio do comportamento vocal. A «escuta cna- turbações do fundamental. A intensidade é demasiado _forte o~
tiva» permite classificar o que, à partida, só dependia da intuição demasiado fraca, nunca bem controlada. Quanto ao timbre, .e
e da perspicácia auditiva e clínica. velado, rouco, toldado, e sobretudo muito nasalado. A melodm
é, na maioria dos casos, monótona. Os pontos de articulação pos-
teriores, necessários para se pronunciar certas c?nsoantes, sã~
Sem abordarmos demoradamente o problema da voz da criança difíceis de alcançar porque o controlo, que na cnança surda so
surda, achamos conveniente insistir nas suas particularidades. pode ser visual, não é fácil. .
A surdez não está ligada a uma dificuldade psicológica, mas a um · Na maioria dos casos, a voz das cnanças ou dos adultos que
défice sensorial que provoca inevitavelmente perturbações afectivas. ficaram surdos, ou naqueles cuja audição diminui com a idade, mo-
Quando é congênita e total, constitui um obstáculo considerável difica-se: revela uma intensidade mais forte e é menos modulada.
para a aprendizagem da linguagem por parte da criança. Todavia, Notemos por fim que o carácter melódico da voz e a sua cor-
a criança surda não perdeu a capacidade de emitir sons nos pri- recta intensidade dependem muito do meio ambiente, que é o que
meiros meses de vida - vocalizos, lalações - , capacidade inata regula as inflexões vocais com todas as subtilezas possíveis.
que todas as crianças possuem. Esses sons não têm valor signifi-
cante, constituem um jogo. Após esse curto período (de três a sete
meses, aproximadamente), se a criança surda continua a estar pri- A terapêutica
vada de estímulos sonoros, torna-se realmente muda. No entanto,
é essencial que o bebê surdo, que não ouve as suas lalações, possa Falar da voz, é falar de um dos modos fundamentais de ex-
reconhecer que a mãe fica satisfeita ao ouvi-lo emitir sons. Por- pressão do ser. Por isso, «as disfonias» (2 8 ) funcionais têm sem-
que é preciso não restringir a questão e considerar que o handicap pre a ver com problemas psicológicos, seja de que importância
mais importante não é só ter graves dificuldades na aprendizagem forem (a este respeito, só a integração desses problemas numa en-
da linguagem, mas sentir um enorme embaraço no plano da comu- tidade nosológica precisa permite percebê-los). Por isso, só. se
nicação em geraL Toda esta pesquisa demonstrou a importância das deve acreditar nas terapias especificamente «vocais» na med1da
primeiras comunicações vocais, através do babytalk, por exemplo, em que têm em conta a personalidade como um todo, em q~e a
que é Il}Uito diferente da linguagem constituída de um modo defi- voz está implicada. Todavia, também é verdade que, em mmtos
nitivo. E essa apetência comunicativa que pode vir a faltar à crian- casos, a consulta de um foniatra permite que o indivíduo, numa
ça surda se, por azar, as pessoas que o rodeiam não souberam primeira fase, focalize o seu pedido em tomo de uma reeduca-
atenuar o handicap e estabelecer outras modalidades de relação. ção, e numa segunda fase, resolva o seu problema vocal. com uma
A criança surda não é como a criança cega, que é vista, embora terapia de tipo comportamental, como pode ser praticada por
não veja; a criança surda não só não ouve, como também não é foniatras com alguma experiência de escuta psicológica, ou se
ouvida. Vive num mundo de que não possui o código, porque a abra a um outro tipo de responsabilização muito mais global, com
linguagem é realmente a característica humana fundamental. Por os riscos de recusa e de resistência que infalivelmente sobrevêm.
isso, a linguagem dos sinais pode ser, para ela, um prelúdio fun-
damental à apropriação da palavra oral (2 6 ).
( 27 ) Pfauwadel (M.-C.), Respirer, parler, chanter, op. cit._, p. 122.
(2 8) Nome genérico das perturbações da fonação, de ongem central ou
(2 6 ) Bouvet (D.), La parole de l' enfant sourd, Paris, PUF, 1982. periférica.

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Marie-France Castarede A Voz e os Seus

Cantar
Se todo o corpo está esse
O foniatra deve sempre fazer um físico é uma de estimular a sua
completo. Depois de se ter que não existe ~~··-·,,·- 1-'""u"'"'""'' de harmonizar as
problema orgânico, 9 balanço foniátrico vai determinar a or!enta- ção, expressão, descontracção) para uma ao mesmo
ção da reeducação. E nessa reeducação que vão melu- tempo, física e mental. Todas as técnicas de concentração vin-
tavelmente, os problemas psicológicos subjacentes. A reeducação das do Extremo-Oriente se baseiam nesse domínio do corpo. No
praticada pelos foniatras implica, na maioria dos casos, uma for- canto, há ainda a acrescentar a esse domínio a felicidade da ex-
ma de psicoterapia, isto é, a descontracção, preparação indispen- pressão e da comunicação.
sável para os exercícios respiratórios. Se as dificuldades são O repertório vocal é extremamente variado e extenso. Falá-
pouco significativas, este tipo de reeducação será suficiente. wos sobretudo do canto clássico, mas poderíamos ter alargado o
Se o bloqueio é mais profundo, o foniatra pode propor uma nosso discurso a outras categorias de expressão vocal: canções
terapia de tipo comportamental, com dessensibilização sistemáti- de variedades, canções folclóricas, blues, expressão cênica ... (3 1)
ca. Trata-se de detectar a ou as actividades vocais que geram os De todas as técnicas psicovocais que começam a desenvol-
problemas mais graves e revelar os conflitos que lhes estão as- ver-se escolhemos três, que apresentam aspectos diferentes da
sociados: «Já não tenho medo da minha turma», descobre uma procura da expressão vocal, e em seguida falaremos de duas téc-
professora, que foi a uma consulta para aprender a poupar a gar- nicas terapêuticas já codificadas: o grito primai e a bio-energia.
ganta, porque, ao fim do dia, estava quase sem voz (29 ).
A reeducação também pode conduzir a modificações psico-
lógicas: «Sabe o que é que fiz hoje?», pergunta um dia, encan- O canto de Yva
tada, uma paciente. «Disse "merda" à minha mãe!» Sempre que
tinha de lhe telefonar ficava afónica ... (3°). E os exemplos pode- Antes de nos fazer cantar uma nota que seja, Yva Barthélémy
riam multiplicar-se. preconiza uma ginástica completa, dado que o seu princípio é que
As dificuldades vocais exprimem uma sintomatologia que só se pode desenvolver as possibilidades vocais, sem cansar o
pode encobrir um mal-estar psicológico mais profundo. O fonia- aparelho vocal propriamente dito, mobilizando (pela estimulação e
tra, nos casos em que a estrutura neurótica é mais marcada, po- pela descontracção) toda a musculatura anexa. Yva Barthélémy faz
derá encaminhar os seus pacientes para o psicanalista. trabalhar a postura da nuca, os músculos da língua, do palato, do
pescoço, a respiração casto-abdominal... Praticado após estes exer-
cícios, o canto tem repercussões profundas sobre o estado geral:
As terapias vocazs
«É uma ginástica que toca pontos essenciais: o diafrag-
Há já muito tempo que se fala de ergoterapia, de arte-tera- ma, o plexo solar, a laringe, os músculos do maxilar infe-
pia, de musico-terapia ... A terapia psicovocal poderia figurar le- rior, que estão muitas vezes contraídos, a nuca ... » (3 2 )
gitimamente na longa lista das abordagens terapêuticas e tem
vantagens bastante evidentes. Depois desta preparação física, o cantor pode exprimir-se, e
Todas as pessoas têm uma voz e podem desenvolvê-la. Can- com possibilidades reforçadas. O trabalho da voz pode desenvol-
tar é um acto perfeitamente natural; todos os bebês palram, voca- ver-se, com todas as consequências psicológicas que daí derivam.

(' 9 ) Caso que me foi relatado por Marie-Claude Pfauwadel. e1


) Terapia emocional pelo texto, criada em 1959, por Émile Dars.
eo) Idem. C2) Afirmações anotadas nas aulas que tive com Yva Barthélémy.

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Marie-France Castarede A Voz e os Seus

do o rosto, o gesto são


de repente, esquecem-se e a voz sai.
O projecto desta escola de técnica psicovocal é levar cada chamo atávicos, como os apelos ao longe, aos es-
pessoa a utilizar todas as suas possibilidades vocais. A voz deve tão directamente ligados ao inconsciente, evocam de imediato
poder percorrer a gama imensa de todas as emoções, porque há a floresta, o universo primitivo, tal como eram ... e libertam
emoções que ocultamos desde a infância. O trabalho da voz é um instantaneamente ... Cantar é dominar as suas emoções. O ser
trabalho de libertação das energias afectivas e sexuais, que pas- humano fê-lo desde a noite dos tempos. Muito provavelmen-
sa nomeadamente pela superação da clivagem, demasiado rígida, te, mesmo antes de falar: quando se exprime muito intensa-
masculino-feminino. mente, muito sinceramente um sentimento, as entoações, por
Há uma exploração da voz grave para as mulheres, e tam- si sós, tornam-se musicais.» (35)
bém da voz aguda para os homens, que deve ir para além do que
culturalmente é atribuído a cada um dos sexos no domínio da
voz. Todas as pessoas têm dois registos, o grave e o agudo, a A análise da melodia de cada um:
voz de peito e a voz de cabeça, de acordo com as regiões do o canto do mal de viver (Roland Magnabosco)
corpo que fazem vibrar por ressonância. As crianças utilizam
naturalmente os dois registos. Se as mulheres desenvolverem a De inspiração mais terapêutica do que vocal, o método de
sua voz, podem adquirir um tom muito grave; da mesma forma, Roland Magnabosco baseia-se nos trabalhos de Moses. A voz tem
os homens podem atingir registos muito agudos na sua «voz de seis características que permitem um diagnóstico: o timbre, a me-
falsete». No entanto, como os papéis vocais estão fixados pelas lodia, o ritmo, a intensidade, a respiração, os ruídos para-vocais ...
convenções sociais, os homens recusam a sua voz de cabeça, e Após uma fase de explor§lção diagnóstica, passa-se ao trabalho
as mulheres recalcam o seu registo viril: vocal propriamente dito. E nesse momento que o paciente pode
resolver com o terapeuta um conflito ou uma dificuldade do
«Se a extensão do médio é muito individual, a zona de passado que se exprime através da voz, trabalho vocal que é
cruzamento média dos registo é a mesma, em valor absolu- substituído por um trabalho analítico sobre as imagens e as re-
to, para os dois sexos.» (3 3 ) cordações que voltam a surgir nessa ocasião. O objectivo desta
terapia psicovocal é reestruturar a voz e fazê-la readquirir a sua
Este trabalho sobre toda a extensão da voz permite detectar coerência e a sua maleabilidade.
certos bloqueios. Uma mulher de quarenta anos falava com uma Há duas formas de psicoterapia, mais codificadas e mais
voz pura, muito aguda, de rapariga. Pouco a pouco, foi conhecidas, que dão muita importância à expressão vocal:
readquirindo uma voz madura, de verdadeira mulher:

«Deixei de ter a minha voz de rapariguinha. Quero ter O grito primaZ


uma voz que corresponda ao que sou realmente.» (3 4)
Arthur Janov, no início do seu livro intitulado Le cri primaZ
Henri Chédorge completa assim o seu ensino: conta como esse grito «brotou», por acaso, na sua carreira de
terapeuta e modificou a sua evolução:

C3) Entrevista de Henri Chédorge.


14
(- ) Afirmação de uma mulher jovem, após um estágio. C5) Entrevista de Henri Chédorge.

250 251
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

Para começar por


decurso da recordá-lo. libertar-se desse
tes ... Um sofrimento ...
de um O tom de todo o livro de Janov é o de que julga ter
são de ,o,.rnun descoberto o remédio milagroso para a neurose. Para além dos
exemplos espectaculares, encontram-se poucas explicações teóri-
cas: «As técnicas respiratórias primais podem ser qualificadas
como carreiras que conduzem ao inconsciente», afirma Janov.
Dir-se-ia que, para ele, o inconsciente é um reservatório de so-
A partir deste acontecimento, que o emocionou profundamen- frimento arcaico e a terapia consiste em levar o indivíduo a vol-
te, Janov procurou utilizar a expressão desse grito para curar os tar a viver e a sentir esse sofrimento, para se libertar dele.
seus pacientes. De facto, pensa que existe uma ligação directa · De facto, a crítica que se pode fazer a esta terapia é a de que
entre o modo de respirar de um indivíduo e o seu mal-estar psí- nem sempre tem em conta determinados factores. O «sofrimen-
quico: são as tensões que obrigam o indivíduo a conter a respira- to primal» pode inserir-se em funcionamentos psicológicos mui-
ção, espécie de círculo vicioso porque o hábito de respirar «mal» to variados: neurose, estrutura borderline, psicose. Estas formas
cria, por seu turno, tensões e mantém o mal-estar psicossomático de funcionamento mental confrontam-nos com angústias muito di-
do indivíduo. Daí a ideia de que, modificando a forma de respi- ferentes; a catarse do grito primai pode permitir, é certo, a liber-
rar, é possível alterar o estado psíquico do paciente. Através de tação dos traumas recalcados, mas também pode ter um efeito
uma técnica de respiração profunda, pode-se erguer «a tampa da desestruturante sobre organizações psicológicas de tipo pré-
repressão» e provocar a libertação de uma força explosiva: -psicótico ou psicótico.
Estas terapias de grupo - que funcionam em estágios resi-
«Quando a respiração se torna mais ampla e mais pro- denciais de alguns dias - nem sempre permitem que se tenha
funda, o observador sente que o momento crucial surgirá daí suficientemente em conta a história pessoal de cada um (incon-
a segundos, ou a minutos. O estômago do paciente começa veniente que é comum a todas as terapias de grupo, embora, por
a tremer, o peito palpita, a cabeça volta-se para um lado e outro lado, cada um se sinta encorajado pelos outros), ou que se
para o outro, o paciente encolhe e estende as pernas, perde acompanhe o caso após o estágio (inconveniente comum aos
o fôlego e, em geral, parece estar a ser impelido para os estágios terapêuticos pontuais, atenuado por outros métodos «de
últimos refúgios da sua fuga desvairada perante o sofrimen- longo curso»).
to. De repente, no meio de uma grande convulsão, tudo pa-
rece indicar que a ligação se estabelece; é então que jorra
o grito primai. .. Os doentes dizem que, nesse momento, se A bioenergia
sentem frescos, lavados e puros ... O grito tem vários efeitos
secundários. Os doentes que nunca ousaram "abrir o bico" Para Lowen, o grito ocupa um lugar menos central do que
acerca da sua vida familiar sentem-se bruscamente domina- para Janov: é uma modalidade de expressão como muitas outras.
dos por um sentimento de poder. O grito, por si só, parece Todavia, na carreira de Lowen, o grito também foi uma espécie
ser uma experiência libertadora.» C7) de revelação, como ele próprio descreve no seu livro La bio-
-énergie: «A minha primeira sessão de terapia com Reich foi uma
experiência que nunca mais esquecerei.» Reich começa por lhe
C6) Janov (A.), Le cri primaZ, Paris, Flammarion, 1977, pp. 11 e 13. chamar a atenção para o facto de ele respirar muito pouco:
(3 7 ) lbid., p. 136.

252 253
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

a Descobrir a sua voz ou é uma aventura com-


ao mas exaltante. Cantar permite-nos desenvolver
alterava. Continuava a mas complementares. Em primeiro lugar, o
Passado um momento, canto facilita a expressão corporal, graças à respiração, que se tor-
beça para trás e abra muito os olhos." Fiz o que ele me na mais completa e mais natural, e à descontracção indispensável,
dizia e ... um uivo saiu-me da garganta ... Curiosamente, o que nos liberta, pelo menos momentaneamente, dos nervosismos
uivo não me perturbou. Não me sentia ligado a ele emocio- e das tensões que constituem o preço a pagar inevitavelmente
nalmente. Não sentia nenhum medo. Após um momento pas- pela modernização das sociedades urbanas; a descontracção não
sado a respirar, Reich pede-me para inclinar de novo a é apenas física, é também psicológica: favorece a expressão do
cabeça para trás e abrir muito os olhos. O uivo voltou a nosso imaginário e da nossa fantasia, longe das coerências lógi-
sair-me da garganta. Hesito em dizer que uivava, porque não cas da nossa vida racional. Reencontramos esse espírito de jogo
tinha a impressão de estar a uivar. Esse uivo era qualquer que é o nosso húmus mais profundo e de onde jorra a nossa
coisa que me acontecia.» (3 8 ) vitalidade. O canto ajuda a tomar visível o rasto do que consti-
tuiu a nossa experiência c,le vida: as nossas memórias e as nossas
Lowen é mais explícito do que Janov quanto às suas técni- impressões de infância. E memória do corpo e da sensibilidade.
cas e à sua justificação: Neste sentido, as dificuldades de cantar estarão directamente li-
gadas às vicissitudes do desenvolvimento afectivo e aos bloqueios
«Se alguém quiser readquirir todo o potencial expressi- psicológicos.
vo de si mesmo, é importante poder voltar a utilizar total- Todavia, o canto não possibilita apenas a expressão corporal
mente a sua voz, em todos os seus registos ... Portanto, é e psicológica: possibilita também a expressão espiritual. Cantan-
necessário incidir especificamente na emissão dos sons, para do, podemos não só fazer reviver as nossas emoções e os nos-
eliminar as tensões que existem em torno do aparelho vocal ... sos sentimentos, mas também o nosso desejo de invocação e de
As tensões que interferem com a respiração, e muito em es- apelo ao sagrado que, através da arte, sempre deu um sentido à
pecial as da região do diafragma, vão reflectir-se numa de- aventura humana.
formação qualquer da qualidade da voz. Por exemplo, em Por fim, esse enriquecimento pessoal e espiritual do canto só
caso de angústia grave, ocorrem espasmos ao nível do dia- tem uma finalidade: a permuta e a partilha. Temos de nos reen-
fragma e a voz fica trémula. As cordas vocais não estão, em contrar para podermos cantar bem na autenticidade do nosso ser
geral, sujeitas a tensões crónicas, mas podem ser afectadas profundo, mas o objectivo do canto é a comunicação com o ou-
por uma tensão violenta e enrouquecer. As tensões, bastan- tro. O canto é uma abertura confiante e amante a um outro fra-
te frequentes, do pescoço e da musculatura da garganta afec- terno. Acham que é idílico? Mas é essa a própria essência do
tam a ressonância da voz, o que provoca uma voz cavernosa, canto, quando é capaz de adquirir a dimensão radiosa do sorriso
ou uma voz de cabeça. A voz natural é uma combinação da alma (4°).
desses diferentes tons, que pode variar e depende da emo-
ção exposta. Essa combinação representa uma voz equilibra-
da.» C9 )
( ) Ao escrever estas linhas, pensávamos no canto melódico, como des-
40

coberta e desenvolvimento da vibração harmônica, porque contribui para a es-


truturação psíquica e para o desenvolvimento pessoal, o que, na nossa opinião,
(' ) Lowen (A.), La bio-énergie, Paris, Éditions Tchou, 1981, p. 12. não acontece com certas formas de expressões vocais da música contemporâ-
8

(3 9 ) Ibid., p. 242. nea ...

254 255
Conclusão
A música voz
ou a voz no coração da música
« ... A própria música (é) o mistério supremo
das ciências do homem, o mistério com que elas
se confrontam, e que pode explicar o seu pro-
gresso.»

C. Lévi-Strauss, Le cru et le cuit

A voz foi o nosso objecto ao longo de todas estas páginas:


objecto impalpável, inalcançável, que não pode ser possuído nem
demarcado, que transpõe limites e fronteiras, e resiste a classifi-
cações e a conceptualizações ...
Não tem nada a ver com o discurso, dado situar-se mais no
domínio da arte e do inefável que no domínio da ciência, que
não seria capaz de lhe esgotar o sentido. Os cantores que dão a
voz ao mundo devem estar prontos para o sacrifício, porque o
dom da voz é também a sua perda: não é verdade que anda sem-
pre em fuga? Ouvi-la é sempre recordá-la; precedê-la na espera
é também recear não poder ouvi-la.

259
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

Sensíveis ao canto da voz, descobrimos a sua <!H<:!U'-·" ' ' ' " ' uoo- A pouco e pouco, a voz materna
da com a música (1). Claro que, além do canto, a voz a nesse
falada, a voz do homem da rua, banal, a voz da mãe, mãe com Muito antes dos ,H,,H,HL·CUJ
do pater familias e dos seus filhos, a voz do apaixonado, do pro- as inflexões da voz que constituem a língua materna
fessor, do político, do advogado, do actor. .. em suma,. t?~a~ as do sentido linguísitico, geram um sentido emocional.
que veiculam a linguagem, nos seus aspectos utlht,a:ws, Como afirma Michel Serres:
conceptuais, psicológicos e artísticos. No entanto, ~ntogenetlca e
filogeneticamente, a voz, antes de se converter em In:gu~gem, era <<A música, oriunda de todas as Musas, não pode ser con-
«expressão», como no caso do bebé e das suas pnme1ras rela- fundida com uma arte; é a soma de todas as artes. E nenhu-
ções com a mãe, e entre os primitivos, _de acordo com_o que as ma delas tem êxito, se não tiver música; a música guarda
investigações dos paleontólogos nos ensmam: a expressao modu- cada uma delas e fá-la existir. Ela própria, sem ela própria,
lada ou cantada é a primeira forma de comunicação. não é senão notas, cálculo insípido.
Instrumento fundamentalmente musical, a voz libertou o som, A poesia não voa, ou pior, fica de joelhos, sem ela; e a
arrancando-o às coisas; o homem gera a música através da sua arquitectura não é senão pedras, a estátua é matéria e a prosa
voz. Muito antes de «falarem» com os que os rodeiam, o homem é ruído (1); a eloquência, privada de ritmo e da curva incli-
primitivo e o bebé descobriram a expressão voc~l, a músic_a -~a nada pela evocação melodiosa cai no absurdo e no tédio.» (3)
voz, para se dirigir a eles. A voz, como emanaçao da senslbth-
dade humana, passa a ser o primeiro instrumento da arte. «No Se Ulisses, recorrendo a artifícios, fracassa, Orfeu, com a sua
princípio era o canto», disse Michel Serres. A música emana da lira de nove cordas, consegue fascinar as sereias. Com a lira de
voz; apoia-se no primeiro órgão dos sentidos, através do qual o Apolo, de sete cordas, a música era apenas uma arte. Quando a
mundo nos é dado: o ouvido. lira passa a ter nove cordas, graças a Orfeu, passa a haver tantas
No babytalk, a mãe altera musicalmente a sua linguagem e o cordas como musas. A música toma-se a arte de todas as musas,
que o bebé começa por ouvir, antes de qualquer outra _coisa, é essa o conjunto das Belas-Artes, a linguagem que as musas falam entre
música materna, a que responde com os seus vocahzos e o seu si, o contrato social das musas. Todas as artes devem ser música.
palrar. A voz da mãe é música; a música é a voz da mã~. O, s?m Na música há coexistência entre a música vocal e a música
musical encontra-se, desde a origem, preso numa rede s1mbohca. instrumental. Tradicionalmente, os instrumentos, nas músicas pri-
A voz materna serve de intermediária entre, por um lado, o mun- mitivas, nascem do ritmo e da dança. Todavia, o gesto vocal é
do do corpo e do afecto, e, por outro lado, o mun?o do pens~­ o gesto propriamente musical. Já Rousseau escrevia:
mento e da representação; é graças a ela que a cnança pode rr
escapando progressivamente ao impac_te t~aumático da sedu_ção «Parece que a música foi uma das primeiras artes ... É
original, verdadeira efracção nos pnme1ros tempos de v1da. muito provável que a música vocal tenha sido descoberta
antes da música instrumental, se é que entre os antigos houve
C) Etimologicamente, a palavra «música>> remete para as Musas. _A filologia uma música verdadeiramente instrumental, isto é, feita uni-
admite que musica vem de musa, em latim <<ária», .«~anção» que denva por _seu camente para os instrumentos.» (4)
lado do grego f-!.OVaa, na origem f-!.OVna que significa <<dotado de um sentido,
de um significado» ... Assim, a palavra <<música» tem laços de parent~sco com _a
família da raiz indo-europeia <<men>>, que designa os mov!ll1entos do espmto e, mrus (2) A bela sonoridade de um texto é a garantia da qualidade do estilo,
em geral, o próprio homem, medida de todas as coisas. Por conseguin~e, a mú- como Flaubert verificava por si mesmo, através do seu <<gueuloir>>.
sica está directamente ligada ao canto e, simultaneamente, ao homem, CUJO mundo (3) Serres (M.), Les cinq sens, Paris, Grasset, 1985, p. 129.
organiza, graças à Harmonia que reina sobre a Discórdia, pólo negativo e entrópico 4
( ) Rousseau (J.-J.), (1967), Dictionnaire de la musique, citado pelo
(cf. J. Bril, A cordes et à cris, Paris, Clancier-Guénaud, 1980, pp. 91-94). Dictionnaire Robert, 1972, vol. 4, entrada Musique, p. 553.

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Marie-France Castarêde A Voz e os Seus Sortilégios

O gesto vocal escapa visível do «0 refrão, esse, é o conteúdo da


corpo; só se traduz em em lugar, uma desterritorialização

«É o gesto vocal que confere o seu conteúdo mais pro- Por outro lado, descobre-se que a originalidade da música
fundo à música: é o próprio ideal da técnica instrumen- primitiva reside precisamente no movimento vocal. No Nô, temos
tal.» (S) a sua continuidade pura: a melodia desenvolve-se sem se fixar
em graus definidos e as relações sonoras permanecem indetermi-
Nos antigos tratados de cravo, flauta ou violino, o canto é ~adas, p~rque não há qualquer escala que imponha limites ao
considerado como modelo de interpretação. No período barroco, Impulso livre da voz. A música indiana e a música árabe-islâmica
na Europa, os instrumentos musicais tentavam imitar a voz: sob ta,mbém dão essa imagem da continuidade musical primitiva, atra-
este ponto de vista, o instrumento mais belo era a viola da ves das «passagens» estreitas e apertadas, leves nuances e quar-
gamba. De facto, todos os instrumentos obedecem ao fraseado, ~os de tom. A melodia musical imita a continuidade vocal, que
esse ritmo original da voz: e um canto espontâneo. Mais tarde, competirá aos instrumentos,
r~presentant~s da harmonia, fixar os intervalos, sujeitando-os ao
«A expressão é sempre uma imitação do canto, e o gran- ngor das le1s da harmonia. A melodia é a linguagem da emo-
de artista reconhece que na música tudo é canto, mesma a ção, e a harmonia é a linguagem do pensamento musical. A har-
aérea leveza de um traço, que só é leve pela própria suavi- monia é escrita; a melodia é voz. Quando ouvimos música,
dade do seu fraseado ... A voz, gesto subtil e delicado, emo- acompanhamos o canto com a nossa voz, porque cada pessoa
ciona porque é nela que vêm traduzir-se todas as actividades reconhece nesse canto a linguagem da emoção e do afecto. A li-
do ser.» (6) ~ha melódica remete para a voz da mãe, que fixou para o seu
filho o modelo de entoação da doçura e da ternura.
Outra distinção clássica na música: a melodia e a harmonia. Se a harmonia é objecto da inteligência e obedece a leis
Também neste caso, e sem querermos retomar os termos da dis- imutáveis, a melodia é um livre impulso que comunica aos sons
cussão que opôs Rameau a Rousseau (?), a proeminência perten- as suas inflexões íntimas. A melodia da «pequena frase da so-
ce à melodia, isto é, ao gesto vocal: n~ta ~de _Yinteuil» permite a Proust o acesso ao campo das remi-
mscencms ... Permite-nos cantar a música e recriá-la para nós
«A melodia é o facto primeiro e geral», mesmos, unindo-a à nossa vida interior:

escreve Nietzsche ( 8). Gilles Deleuze diz algo semelhante, ao afir- <<A música só se ouve graças à voz que a profere inte-
mar: riormente.» Co)

Neste sentido, a melodia contém e resume a própria essên-


cia da música:
CS) Brelet (G.), L'interprétation créatrice, Paris, PUF, 1951, tomo I, p. 236.
6
( ) Ibid., pp. 238-239.
C) Aparentemente, Rarneau e Rousseau estão de acordo acerca das rela- <<A melodia é o modelo da obra musical.» (1 1)
ções existentes entre a música e a língua: no seu Code de musique pratique,
Rarneau declara o seguinte: «Pode afirmar-se que a música, considerada ape-
nas nas diferentes inflexões da voz e pondo o gesto de parte, dev_e ter sido a
nossa primeira linguagem.>> (Citado por C. Kintzler, prefácio a Ecrits sur la (9) Deleuze (G.), Mille plateaux, op. cit., pp. 368 e 371.
0
musique de J.-J. Rousseau, Paris, Stock, 1979, p. xxv.) (' ) Brelet (G.), op. cit., tomo r, p. 242.
( ) Nietzsche (F.), La naissance de la tragédie, Paris, Gallirnard, 1982, p. 47. C'') Brelet (G.), Le temps musical, tomo r, Paris, PUF, 1949, p. 167.
8

262 263
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

A este conhecidos devido à sua obra


enorme interrogação gerada o declara a Pierre-Mich el
e os debates que ela provoca colocam, entre outras
blema da relatividade cultural do gosto sabe-se o ou- ~~ o ~
vido se habitua muito cedo a um certo de música. todos os pontos de habituais do ouvinte, de
de Imberty C2) revelam que há uma parte muito grande de e?~ca­ o que era fácil de reconhecer, fácil de recordar; havia que
ção musical na atracção que. s~ sente ~or um~ o_u outra ~_us1ca, criar uma música amnésica, impossível de ser memorizada,
ou inversamente, na sua reJelçao. Se ha um publico que e msen- cantada, introduzida no corpo, fosse como fosse, rítmica ou
sí;el à música contemporânea, será por falta de iniciação precoce? melodicamente.» (' 7)
No entanto, para além da questão da educação mus1.cal e d~
banho de sonoridades significativas de uma cultura ambiente, ha As alterações musicais dizem respeito não só ao estilo ou ao
a subversão (1 3 ) própria de certas formas de música mode~a. i::onteúdo das obras, mas também à língua que elas falam. Claude
o músico Leonard Bemstein, compositor ( 14) e maestro, exphca Lévi-Strauss, Nicolas Ruwet e Theodor Adorno interrogam-se: as
que existe uma estru~ura to~al uni~ersal ord~nada ?aturalme~te, músicas não tonais continuarão a possuir as características estru-
uma «gramática mus1cal umversal mata», analoga a .«competen- turais de uma linguagem cujo objectivo é a comunicação? Se
cia gramatical inata» descrita por Chomsky para a lmguagem: Theodor Adorno, pelo seu lado, contesta a hipótese de um fun-
damento natural da tonalidade (' 8), não deixa de destacar o afas-
<<A origem comum de toda a música - quer se tr~te de tamento do sujeito:
música folk, pop, sinfónica, modal, tonal, atonal, polrtonal,
microtonal, bem ou mal temperada, de música de um passa- «Esta música (a nova música) só conserva a imagem de
do remoto ou de um futuro iminente -portanto , de toda a uma humanidade através da imagem - não figurativa - da
música, é o fenómeno universal da série harmónica.» ( 15) desumanização.» (' 9 )
Esta ideia resurge nas teorias recentes so?re a perc~~ção da A desumanização da música moderna atinge precisamente a
altura dos sons e as propriedades físicas do s1stema aud1t1vo hu- melodia, facto que Adorno explica:
mano (' 6).
De facto o dodecafonismo e a criação electroacústica destruí- <<A verdaderia qualidade de uma melodia avalia-se na
ram aquilo que, no sistema tonal, fav?recia a per~epção ~usi­ medida em que consigamos transpor para o tempo a relação
cal: as afinidades naturais com certos mtervalos (mtava, qm~ta, quase espacial dos intervalos. A técnica dodecafónica, por
quarta ... ), as afinidades funcionais da escala temperada (tómca, exemplo, destrói essa relação em profundidade.» (2°)
dominante, sensível...) que se encontram nos acordes e nas r~­
soluções cadenciais. Um compositor contemporâneo, dos mais E mais adiante, afirma:

(12) Imberty (M.); L' acquisition des structures tonales chez l' enfant, Pa-
ris, Klincksieck, 1969. .
(1 3) Subversão que atinge a pintura, o teatro, a poesia, o romance ...
e) Citado por P.-M. Menger, Le paradoxe du musicien, Paris, Flamma-
rion, 1983, p. 218.
(14) Devemos-lhe, nomeadamente, a música de West Side Story. 18
( ) Adorno (T. W.), Quasi una fantasia, Paris, Gallimard, 1982,
p. 284.
(15) Bernstein (L.), La question sans réponse, Paris, Laffont, 1982, ~· 39. (1 9) lbid., p. 278.
(1 6) Roederer (J. G.), Introduction to the physics and psychophystcs of (2°) Adorno (T. W.), Philosophie de la nouvelle musique, Paris, Gallimard,
rnusic (2." ed.), Nova Iorque, Springer, 1975. 1962, p. 83.

264 265
Marie-France Castarede A Voz e os Seus Sortilégios

degenera em mera «Em a minha música tende para uma utilização da


da a não ter a menor voz em que deixa de haver entre peno-
sobre essa construção. Converte-se dessa espé- dicas, entre notas cantadas, que o ouvido pode reconhecer,
cie de progresso técnico de que o está cheio.» (2 1) e ruído. Há uma continuidade entre essas notas e esse ruído,
como acontece, aliás, na língua falada. A voz cantada, tra-
Assim, há certas formas de música moderna que seriam tes- dicional, sempre impediu que o ruído participasse na concep-
temunhas, como acontece na pintura, da invasão tecnológica das ção musical: na música clássica e romântica, só existe como
nossas sociedades, da conversão do tempo contínuo da subjecti- anedota, quando se pega num tambor para evocar os mili-
vidade num tempo retalhado, fragmentado, estilhaçado. O indi- tares, por exemplo; não está inserido na música, está a mais,
víduo e o sentido da vida deixam de existir. O espelho visual da é uma coisa estranha. Foi sobretudo no início deste século
mãe não funcionou, como nota Didier Anzieu a propósito dos que a música absorveu o ruído de uma forma orgânica, pro-
quadros do pintor Francis Bacon: funda, lógica.» (2 4)

«Entramos no mundo da incomunicabilidade, da mãe A melodia materna só encanta quando é «melodiosa»; a sua
muda perante o desejo e o desespero do seu bebé, de canais natureza muda, se se inspira nos ruídos: rouquidões, asperezas,
sem ondas para que um barco possa circular, das respos- discordâncias vocais, tom monocórdico, ausência de entoação ...
tas ausentes a perguntas que só puderam ficar por formu- Na música, como na vida, a melodia é que é fenômeno transi-
lar.» (2 2 ) cional, como para a criança pequena: faz parte do espaço que
representa «a transição da criança que passa do estado de união
Gilles Deleuze continua a fazer a comparação entre a música com a mãe para o estado em que está em relação com ela, como
e a pintura, a partir da voz e do rosto da mãe, quando escreve: algo exterior e separado» (2 5 ). o que a criança faz com o objec-
to transicional é dominar o tempo. O objecto atravessa, sem qual-
<<A música é em primeiro lugar uma desterritorialização quer dano, o tempo do seu amor e do seu ódio, da sua recordação
da voz, que se vai tornando cada vez menos uma linguagem, e da sua espera: resiste ao tempo, como a música. A música, toda
tal como a pintura é uma desterritorialização do rosto.» (2 3 ) a música, é apenas reparação (2 6): Neste sentido, constitui o apo-
geu do destino do objecto transicional. O espaço sonoro é ilu-
A música de alguns compositores contemporâneos não dá a são, mas ilusão necessária.
entender que o «espelho sonoro» da melodia materna não funcio- É através da melodia que a música se torna «passagem». Nu-
nou, e que, através da sua obra, só traduzem a impossível comu- ma carta, escrita em 25 de Outubro de 1855 a Mathilde Wesen-
nicação vocal, primeira e primordial? ... Seria essa a mensagem donck, Wagner - o músico da melodia contínua - escreve:
de rangidos que nos é parcialmente transmitida pela ~úsica ?o
nosso tempo, onde há jogos acústicos infinitamente subtls e sofls- «Gostaria de chamar "arte da passagem" à arte mais
ticados, que nos transportam, mais ou menos, ao mundo dos fina e mais profunda, porque toda a trama da minha arte é
ruídos. Luciano Berio explica assim essa integração do ruído na composta por essas passagens.» (2 7 )
música:
(2 4 ) Entrevista de Luciano Berio, Le Monde de la musique, n. 0 81 bis, Pa-
(2 1) lbid., p. 85. ris, Setembro de 1985, pp. 103-104.
( 22 ) Anzieu (D.), «La peau, la mere et le miroir dans les tableaux de (25 ) Winnicott (D.), leu et réalité, f. 26.
Francis Bacon>>, Le corps de l' a;uvre, Paris, Gallimard, 1981, p. 336. (2 6 ) No sentido k1einiano do termo.
27
(23) Deleuze (G.), Mille plateaux, op. cit., p. 371. ( ) Citado por G. Brelet, Le temps musical, op. cit., tomo 2, p. 622.

266 267
Marie-France Castarede

para quem a é o de da sua


ao
observa: não
"-"A'""u, «original»:
de um músico qualquer. certo
como se música e a ""'''n""" peito pela anotada pelo compos itor é garante
sem do fideli-
para o desmentir. De dade às suas intenções, mas o criador, por mais genial que seja,
uma como outra são para o não pode prescind ir do intérprete que dá vida à sua música.
Através do tempo musical, que é o tempo do intérprete e o
Como o mito e o objecto transici onal, a mus1ca permite da melodia que nasce, esvoaça e morre, tocamos o nosso tempo,
efectuar passagens e controlar o tempo, sem ~~tura nem separa- para o vivermos, sem a ameaça da morte. A melodia restrutura-
ção demasia do dolorosa. Numa outra obra, Lev1-Strauss escreve: -lhe o impulso. E por isso que uma música sem melodia nos pri-
va dessa profund a satisfação:
«Mito codificado em sons em vez de palavras, a obra mu-
sical fornece uma grelha de descodificação, uma matriz de <<A arte clássica e romântica procuraram esse domínio do
relações que filtra e organiza a experiência vivida, substitui- tempo ... A arte musical contemporânea já não é domínio, é
-a e dá a ilusão benfazeja de que é possível superar contra- denegação do tempo.» (3 2)
dições e resolver dificuldades.» 9 ) e
O tempo da nossa vida é irreversível; a música, pelo contrá-
A melodia na música, o refrão e os vocalizos do bebé man- rio, constró i de várias maneira s algo de reversív el. O prazer
têm-se ligados à imagem materna, porque tendem a transportar- musical existe porque nos faz esquecer do tempo do relógio e do
-nos para uma espécie de imortalidade feliz que é o equivalente quotidiano, para nos fazer ter acesso a uma espécie de eternidade:
da felicidade primord ial antes da separação, «de tal forma que,
ouvindo a música e enquant o ouvimo s, ascendemos a uma es- «A música não será uma espécie de temporalidade encan-
pécie de imortal idade» C0 ). Por seu lado, Guy Rosolato escreve: tada? Uma saudade idealizada, tranquilizada, purgada de
toda a quietude precisa? Porque, embora seja temporal, a
«Pode afirmar-se que a voz materna é o primeiro rr:ode- música também é o nosso protesto contra o irreversível, um
lo de um prazer auditivo e que as raízes e a nostalg w da meio de revivermos o mesmo no outro. Na música, como
música provêm de uma atmosfera original.» C1) dizíamos, repetição não é redita.» (33 )
A melodia conheci da e que se volta a ouvir é mais bela que O inimigo da satisfação duradoura é a finitude. Dos mitos de
na primeir a vez, porque provoca mais ainda em nós a recorda- Orfeu e de Narciso aos romanc es de Proust, a felicidade esteve
ção e a espera, momen tos que tecem a nossa vida psíquic a pro- sempre associada à reconqu ista do tempo. A recordação é a úni-
funda tal como acontece com o fenómeno transicional. Posse de ca coisa que dá alegria sem a angústia gerada pela efemeridade
qualq~er coisa que não sou eu, a melodia dev,e ser «r~c~iada do da alegria. A música ajuda-nos a sentir essa alegria, pela liga-
interior» por quem só pode saboreá -la ou toca-la, ass1mllando-.a ção subtil que estabelece entre a recorda ção e a espera, dentro
ao seu próprio vivido. Aliás, na pintura, na escultura, na arqm- de uma forma sonora perfeita e susceptível de ser infinitamente
reproduzida.
(2 8) Lévi-Strauss (C.), Le cru et le cuit, op. cit., p. 24.
(2 9) Lévi-Strauss (C.), L' homme nu, op. cit., pp. 589-590. 2
(' ) Imberty (M.), Sémantique psycholo gique
de la musique, Tese de Dou-
C0) Lévi-Strauss (C.), Le cru et le cuit, op. cit., p. 24. toramento, Universidade de Paris-X, 1978, p. 546.
C1) Rosolato (M.), La relation d'inconnu, op. cit., p. 37. C ) Jankélévitch (V.), La musique et l'ineffable, op. cit., p. 123.
3

268 269
Marie-France Castarêde

A música é a «miragem feliz de um não à


aprovação e ao ao desejo e à em que se pressen-
te uma promessa, o anúncio de um regresso, o fim da existência
separada» (3 4). Mas não poderia nascer antes de terem desapare-
cido o mundo exterior e o espaço, tal como no começo da vida
ou quando a morte se aproxima. O silêncio, de que ela nasce e
a que regressa, é mais ligação do que ruptura:

«0 silêncio materno é o início e o fim, ou seja, silêncio


original de que toda a música deriva e, ao mesmo tempo,
silêncio terminal, a que toda a música regressa, como os rios Exemplos de árias de ópera
regressam ao mar depois de terem completado o ciclo cós- e sua relação com a classificação das vozes
mico.» (35 )

1. Soprano ligeiro impropriam ente chamado «de coloratura» e6)


Philine Mignon A. Thomas
A rainha
da Noite A Flauta Encantada W. A. Mozart
Lakmé Lakmé L. Delibes
Sophie O Cavaleiro da Rosa R. Strauss
2. Soprano de meio-carácter
Lei1a Os Pescadores de Pérolas G. Bizet
Eurídice Orfeu C. W. Glück
Suzanne As Bodas de Fígaro W. A. Mozart
3. Soprano lírico

A Condessa As Bodas de Fígaro W. A. Mozart


Marguerite Fausto C. F. Gounod
(3 4) Sallenave (D.), Les portes de Gubbio, Paris, Hachette, )980, p. 60.
Mimi La Boheme G. Puccini
(3 5 ) Jankélévitch (V.), Debussy et le mystere, Neuchâtel, Editions de la
Baconniere, 1949, p. 131.
(36) A coloratura designa o virtuosismo, seja em que registo for.

270
271
Marie-France Castarede A Voz e os Seus

dramático Alto
4.

Ai da A ida G. Verdi
Turandot Turandot G. Puccini
Tosca Tosca G. Puccini Polinesso Ariodante C. F. Haendel
!solda Tristão e !solda R. Wagner Eustazio Rinaldo C. F. Haendel
Elisabeth Tannhauser R. Wagner Goffredo Rinaldo C. F. Haendel
Senta O Navio Fantasma R. Wagner Oberon Sonho de uma noite
de verão B. Britten
5. Soprano spinto (mesmos papéis que em 4., mas com uma outra
cor, nomeadamente uma voz tema) .2. Tenor ligeiro

Elsa Lohengrin R. Wagner Geraldo Lakmé L. Delibes


Georges Brown A Dama Branca F. A. Boi:eldieu
6. Mezzo-soprano Némorino O Elixir de Amor G. Donizetti

Dalila Sansão e Dalila C. St Saens 3. Tenor lírico


Marguerite A Danação de Fausto H. Berlioz
Charlotte Werther J. Massenet Don Ottavio Don Giovanni W. A. Mozart
Carmen Carmen G. Bizet Ferrando Cosi fan tutte W. A. Mozart
Dido Dido e Eneias H. Purcell Des Grieux Manon J. Massenet
Rodolfo La Boheme G. Puccini
7. Mezzo-soprano de coloratura Romeu Romeu e Julieta C. F. Gounod

Rosina O Barbeiro de Sevilha G. A. Rossini 4. Tenor heróico ou dramático


Angelina Cinderela G. A. Rossini
Tristão Tristão e !solda R. Wagner
8. Mezzo-soprano Dugazon (do nome da cantora Rosalie Dugazon) Parsifal Parsifal R. Wagner
Otello (3 7) Otello G. Verdi
Mignon Mignon A. Thomas Sansão Sansão e Dalila C. St Saens
Radamés A ida G. Verdi
9. Contralto
5. Barítono martin
Orfeu Orfeu C. W. Glück
Er da A Tetralogia R. Wagner Marouf Marouf H. Rabaud
Paixões e Cantatas J. S. Bach Pelleas Pelleas et Mélisande C. Debussy
Danilo A Viúva Alegre F. Lehar

('7) Ortografia italiana.

272 273
Marie-France Castarede

6. Barítono

O Conde As Bodas de Fígaro W. A. Mozart


Don Giovanni Don Giovanni W. A. Mozart
Don Pizzaro Fidélio L. van Beethoven

7. Barítono Verdi

Rigoletto Rigoletto G. Verdi Bibliografia


Giorgio Germont La Traviata G. Verdi
lago Otello G. Verdi

8. Barítono baixo

Gumemanz Parsifal R. Wagner


Ramphis Ai da G. Verdi
Filipe II Don Carlos G. Verdi
Boris Boris Godounov M. P. Mussorgski
Mefistófeles A Danação de Fausto H. Berlioz

9. Baixo cantante

Sarastro A Flauta Mágica W. A. Mozart


O Comendador Don Giovanni W. A. Mozart
Hunding A Valquíria R. Wagner

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António Victorino D' Almeida

A Ópera Italiana no Século XIX de Rossini a Puccini


Daniele Pistone

Mozart Reencontrado
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Rock e Indústria. História e Política da Indústria Musical


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Revoluções Musicais. A Música depois de 1945


Dominique Bosseur e Jean-Yves Bosseur

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