Вы находитесь на странице: 1из 72

Guia Afetivo

do
Aglomerado da Serra
Projeto Circuito SERRA: transitando na quebrada
Novembro de 2018
Instagram: @projetocircuitoserra
Facebook: https://www.facebook.com/circuitoserra/
E-mail: projetocircuitoserra@gmail.com
Youtube: Projeto Circuito Serra

Projeto gráfico: Marcos Vinicius


Ilustrações: Marcos Vinícius e Nina Lopes
Agradecimentos:
Álida A. Alves Leal, Rafael Almeida pelas revisões, Carol Lopes,
Fábio Diniz, Floricena Estevam, Izolina Gomes, Marizete Gomes,
Fernanda Angélica, Nego Bento, Sheyla Bacelar, Maria Clara de
Jesus, Leilane Núbia Nonato, Hérlen Romão, Erica Lucas, Rafael
Freire, Marquim D’Morais, Rogério Rego, Simone Moura, He-
berte Almeida e Pai Valdir pelas histórias compartilhadas, Filipe
de Jesus, Joyce Mathias, Samara Villa e Cleiton Silva do Projeto
UBUNTU, e João Victor pela ida aos encontros formativos.

Realização:
Observatório da Juventude da UFMG
Balaio Vermelho
Apoio:
Cáritas Brasileira
Ministério Público de Minas Gerais
Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG
Programa Diálogos Comunitários
Promotoras Populares de Defesa Comunitária
Tiragem: 100 exemplares
SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO..................................................................................4

2. OS GRUPOS ENVOLVIDOS..............................................................11
.
3. ONDE VOCÊ MORA: NA SERRA OU NO SERRA?......................23

4. AFINAL, O QUE É O AGLOMERADO DA SERRA?.....................24

5. COMO ESTÁ ORGANIZADA ESTA PUBLICAÇÃO?..................27

6. “AGLOMERÔ – Cartografias Afetivas do Aglomerado da Serra”...28

7. O PROJETO CIRCUITO SERRA.......................................................62


7.1: OBJETIVOS DO PROJETO.............................................................62
7.2: COMO SURGIU?...............................................................................63
7.3: OS ENCONTROS FORMATIVOS..................................................64
7.4: DOS ENCONTROS, ALGUMAS INFORMAÇÕES.....................65
7.5: DOS ENCONTROS, REGISTROS E REFLEXÕES.......................66

8. “PARA NÃO ACABAR...”.....................................................................69


Apresentação

Com quantas histórias se faz um lugar?

Chimamanda Adichie é uma escritora nigeriana que, aos 19 anos,


deixou seu país na África rumo aos Estados Unidos. Durante um
discurso1 em uma Conferência realizada neste novo território,
ela falava sobre os perigos de uma história única, termo criado
por ela para se referir à construção de estereótipos de pessoas e/
ou lugares, que invisibilizam muitas histórias, distorcem mui-
tas identidades e as neutralizam em algumas poucas narrativas.

Em suas palavras, Chimamanda trata de uma única fonte de in-


fluência, de uma única forma de se contar histórias, de se con-
siderar como verdadeira a primeira e única informação so-
bre algum aspecto. Quantas vezes o Aglomerado da Serra foi
alvo dessas “histórias únicas”? “Como elas são construídas?”

1 Assista o discurso completo de Chimamanda aqui: https://goo.gl/LkQw7q


Foi, dentre outros aspectos, por entender a necessidade de se discu-
tir sobre esse processo de exclusão, que gira em torno de uma leitura
única das favelas como espaço da carência e da falta, como locais
onde operam a criminalidade e a violência, que o projeto “Circuito
SERRA: transitando na quebrada” resolveu questionar algumas his-
tórias que são contadas sobre Aglomerado da Serra e, depois disto,
buscou construir e contar outras histórias, as quais, na maior par-
te das vezes, a gente nem sabe que existe. Nesta publicação, temos
histórias de moradoras/es, ex-moradoras/es e trabalhadoras/es do
Aglomerado que, a partir de suas experiências e memórias afetivas,
compartilham conosco um pouco do que é este território, tecido
por múltiplas histórias. Temos, também, fragmentos de um projeto
realizado no Aglomerado, o “Circuito SERRA: transitando na que-
brada”, que buscou desenvolver ações no Aglomerado da Serra, lo-
calizado na região Centro-Sul de Belo Horizonte/MG, visando con-
tribuir para integrar as vilas e as manifestações artístico-culturais
do território.

Através deste material, esperamos contribuir para que as pessoas, as


políticas públicas e as mídias, que sobre nós constroem e expressam
suas representações e discursos, também possam nos compreender
a partir de nossos laços de sociabilidade, de nossas produções ar-
tísticas e culturais, que dão sentido aos espaços transformando-o
em nosso território, bem como possam entender que as favelas são
reflexos da histórica desigualdade social no país que, em nosso caso,
está segregada em uma parte da capital das Minas Gerais, em sua
periferia. Somos Belo Horizonte também, não um lugar à parte da
cidade.
Professoras/es, educadoras/es, enfermeiras/os, médicos/as, aten-
dentes, agentes de saúde, psicólogas/os, assistentes sociais, bibliote-
cárias/os, entre outros/as profissionais: esse material foi produzido
por muitas e muitos de nós, pensando na prática de muitos e mui-
tas de vocês. Esperamos que, de alguma maneira, ele sirva de apoio
para suas propostas de trabalhos no Aglomerado da Serra.

Boa leitura!
Construíram
esse
Projeto
Equipe

Álida Angélica Alves Leal Cristiane Pereira


Apoio pedagógico Coordenação e Produção
Cultural.

Montívia Luísa Nonato


Produção Audiovisual. Coordenação, Pesquisa, Produção e
Comunicação.
Marcos Vinicius de Souza Bispo Matheus Lucas Maciel
Ilustrações, Design Gráfico, Produção cultural e Comunicação.
Comunicação.

Patrícia Prudencini Nina Lopes


Coordenação e Comunicação. Produção Audiovisual
Thais Kas Valéria Amorim do Carmo
Fotografia e Comunicação. Fotografias
Grupos

CAPOEIRA ORIGEM
https://www.facebook.com/CapoeiraOri-
gemBH/

O grupo Capoeira Origem existe há aproximadamente 20


anos. O grupo oferece aulas de capoeira, em todas as suas ver-
tentes, para crianças, adolescentes e adultos, moradores ou
não do Aglomerado da Serra. Nota-se a aposta na capoeira
como instrumento de socialização, saúde, lazer e possibilida-
de de profissionalização. O projeto possui vários núcleos den-
tro do Aglomerado da Serra e atua em parceria com escolas,
creches e espaços alternativos.
O projeto surgiu com o Mestre Bambino, irmão mais velho
dos Mestres Vagalume e Pretinho, que iniciou na capoeira em
1986. Em 1998, Vagalume e Pretinho começaram com ofici-
nas voluntárias no espaço da Creche Dona Quita Tolentino,
na Vila Cafezal, pois acreditavam na transformação que a
capoeira propunha juntamente com os projetos culturais no
Aglomerado. Atualmente, o projeto luta por um espaço cul-
tural independente, na Praça do Cardoso, que será a sede das
atividades do Origem e um importante espaço de lazer para a
comunidade.

Participantes: André Guilherme Gonçalves Evangelis-


ta,Yasmim Faria Belo, Emerson Vieira, Liliane Pinheiro.
CIA DOS ANJOS
@cia_dos_anjos_dancas_urbanas

É um grupo cultural referência em danças urbanas, que


desenvolve trabalhos por meio de diversas modalidades
da danças. Surgiu em dezembro de 1999 a partir de uma
reunião de amigos/as que estavam inseridos/as numa
igreja e tinham o desejo de serem reconhecidos como
dançarinos da/na/pela comunidade.
O grupo foi pioneiro no Aglomerado da Serra e se tor-
nou uma referência do break. Sua inspiração estava em
videoclipes e filmes. Além disso, tinham como exem-
plos os dançarinos dos bailes em suas famílias. Uma das
grandes influências na época foi o grupo “Guerreiros da
Madrugada”.
Este grupo se destaca, também, por ter sido o primeiro
grupo a ocupar o espaço do Espaço Criança Esperança
de Belo Horizonte, tendo contribuído com o resgate da
cultura hip-hop no Aglomerado da Serra. Representa o
Aglomerado da Serra em apresentações realizadas den-
tro e fora do município. Atualmente, o grupo ocupa o
espaço do Centro Cultural Vila Marçola durante dois
dias da semana.

Participantes: Wallison Culu, Josie Gonçalves Costa


de souza, Lucas Arcanjo Gonçalves de Souza, Fernanda
Batista Silverio, Carlos Augusto Ferreira.
LÁ DA FAVELINHA
@ladafavelinha

O Centro Cultural Lá da Favelinha é um ponto de resis-


tência, criatividade e empreendedorismo importante para
a cidade de Belo Horizonte. Localizado no Aglomerado da
Serra, mais precisamente no Novo São Lucas, tudo começou
quando Kdu dos Anjos, morador do Aglomerado, iniciou
uma oficina de MCs para jovens que moravam na sua comu-
nidade. O projeto cresceu e não parou mais. Com bibliote-
ca, inúmeras aulas, grupos de atividades artísticas diversas,
gerenciamento de carreiras de artistas locais, realização de
eventos diversos, tanto na comunidade como fora dela, além
de colaboradores diversos, o centro cultural transborda com
iniciativas que abrangem toda a cidade.
(Adaptado de artigo disponível em: http://institutoamado.
org/favelinha/, Acesso em: 28 nov. 2018)

Participantes: Teffy Angel, Luiz Eduardo Soares, Ludmi-


la Silva de Oliveira,Vinicius Morais .
BANDA DESAJUSTADOS

É uma banda formada por membros de uma Igreja de uma


mesa igreja. A banda realiza atividades de cunho religioso,
especialmente no âmbito musical, dentro do Aglomerado da
Serra.

Participantes: Jaconias de Paula Junior, Marcos Xavier Al-


meida, Joel Diniz.

GRUPO DE ARTES DA COMUNIDADE


EVANGÉLICA DA SERRA

É um grupo de artes religioso, da Comunidade Evangélica da


Serra e realiza atividades dentro da igreja por meio da dança,
música e artes cênicas.

Participantes: Ronaldo Batista Junior, Iane de Paula Ar-


rais, Agnelo Marcilio Tadeu, Rogério Alves mendes, Ronan
Marcilio Tadeu da Silva.
GRUPO IDENTIDADE
@grupoidentidadeoficial

O Grupo Identidade é um coletivo cultural de jovens do Aglo-


merado da Serra de danças urbanas e artes cênicas, que tem
como objetivo fomentar as culturas das favelas, nas quais se in-
serem todos/as os/as integrantes do grupo. Além disso, criam
espetáculos com a intenção de apresentar outras perspectivas
e olhares para as periferias, pautando questões ligadas à iden-
tidade e às variadas desigualdades sociais, raciais, de gênero,
entre outras. Dentre os espetáculos já construídos pelo grupo
ao longo de seis anos, destacam-se: “Poesia por um corpo de-
sonesto”, “Dialéticas das ausências” e “Abre caminho!”.

Participantes: Pablo Xavier Rocha, Thais Cristina Pereira


de Paula, Rafael Rosa da Silva, Rian Filipe Braz Silva, Welleton
Carlos, Tiphany Gomes, Stephany Pinheiro.
PROJETO ITAMAR
@projeto_itamar_tkd

É um projeto social sem fins lucrativos que existe no


Aglomerado da Serra desde 2005.Tem esse nome devi-
do à pessoa fundadora do projeto, o Itamar, e também
por ter ficado popularmente conhecido desta forma pe-
los moradores da região.
O projeto trabalha com crianças, adolescentes e jovens
da comunidade o esporte como um importante com-
ponente educativo. Também trabalha questões como a
disciplina e a linguagem. Para isto, o projeto se baseia
em oficinas de tae-kwon-do, um esporte oriental cujos
comandos são ditos em coreano. Além do espaço para
treinamento, a associação possui computadores com
acesso à internet, que foram disponibilizados pela PRO-
DABEL, uma biblioteca comunitária e também se dis-
ponibilizam para a cessão de espaço destinado a outras
atividades.

Participantes: Laudilene Fernanda Benevides, Gra-


ziele Amaral da Silva, Itamar José da Silva, Filipe Ro-
drigues Teixeira, Eduarda Vitoria Sales, Andreza Neves,
Mateus de Jesus Dias, Pedro Henrique, Jonathan Gla-
dystom, João Victor Benevides.
MORRO ENCENA
@morroencena

É um grupo de teatro composto majoritariamente por


mulheres e pessoas negras. Possui três grandes eixos que
orientam sua atuação: as discussões sobre gênero, direi-
tos humanos e valorização das culturas das periferias.
Além disso, o Morro Encena tem como objetivo demo-
cratizar o Teatro e as linguagens artísticas, trazendo a
perspectiva de um Teatro Favela.

O grupo já realizou importantes intervenções no Aglo-


merado da Serra e em outras quebradas, como, por
exemplo, um espetáculo de sensibilização sobre a remo-
ção de famílias do Programa Vila Viva. Este espetáculo
teve como objetivo contribuir para as reflexões sobre a
importância da criação da Praça do Cardoso e a Ave-
nida Jefferson Coelho da Silva, além da construção de
apartamentos com o Vila Viva.

Participantes: Hérlen Romão, Sandra Sawilza, Érica


Lucas, Beatriz Alvarega, Andresa Romão Delmondes,
Thamara Selva, Simone Silva, Leticia Maria.
MOVIMENTO SEU VIZINHO
@oblocoseuvizinho

O Movimento Seu Vizinho (MSV) teve início em novem-


bro de 2014, no Aglomerado da Serra, como um Bloco de
Carnaval: o Bloco Seu Vizinho. Em agosto de 2015, reali-
zou sua primeira Oficina de Percussão e não parou mais.
Em seus quase quatro anos de história, desenvolveu outras
oficinas, realizou eventos e ampliou o campo de atuação e
seu impacto social, tornando-se, em 2018, uma Escola De
Artes Periférica e Livre, com foco em música e produção
cultural. O MSV mobiliza pessoas em prol de uma trans-
formação social por meio da arte, da cultura, do conhe-
cimento, da economia local e da cidadania, bem como a
mistura entre o morro e o asfalto, uma vez que acredita que
todo mundo é vizinho, independentemente de onde veio
ou de onde mora.

Participantes: Paulo Vitor Ribeiro, Claudio Barroso,


Marina Dutra, Matheus Lobo.
SPYCE DANCE
@spycedance

É um grupo de dança contemporânea que se baseia em


artistas da música pop, como Anitta e Pabllo Vittar, para
construírem coreografias e performances.
Conta com a participação de jovens que trazem, em suas
coreografias, importantes reflexões sobre as representa-
ções de gênero nas letras e nas danças.
O grupo tem sua formação muito recente, tendo inicia-
do em julho de 2017. Surgiu a partir de um convite do
dançarino Culu, da Cia dos Anjos, que as/os convidou
para uma apresentação num evento cultural no Aglo-
merado da Serra. Após isso, o grupo foi convidado para
outras apresentações, como no desfile de carnaval Bloco
Seu Vizinho e no Espaço DuMorro, dando continuida-
de às suas ações a partir de então.

Participantes: Lucas Rios, Lorrane Mery, Kethlin Lo-


rena da Silva, Kecely Lorraine, Lorena Tauane Martins
de Passos, Laisla Silva.
BREAKING NA QUEBRADA

Breaking na Quebrada é uma oficina de dança que existe des-


de 2015 por meio do Programa Fica Vivo!, no Aglomerado da
Serra. A iniciativa da oficina surgiu com um dos integrantes
do grupo Amplos Crew, que teve o desejo de desenvolver um
trabalho social na comunidade para a promoção da cultura hip
hop.
O Amplos Crew é um grupo independente que existe desde
2008, formado por alguns integrantes do grupo “Guerreiros
da Madrugada”, que na época estava vinculado a uma igreja no
Aglomerado da Serra.

Participantes: Daniel Francisco de Freitas, Ericson Fer-


reira da Silva, Talita Costa da Silva, Rian Dias Santos, Emily
Lima, Julia Thamires, Elias Tadeu de Oliveira Costa, Gutha
Rodrigues, Paulo Cesar Xavier Bispo Rocha, Pablo Eduardo
Dias Araújo, Diego Ribeiro Guimarães, Hellen Patricia Santos
Araujo, Hechelen Cristina, Bryan Santos.
PASSISTAS DANCY
@passistasdancy

Passistas Dancy é um grupo de dança que surgiu no Aglome-


rado da Serra, criado por jovens admiradores/as da cultura
do Funk. Além do Funk, o grupo agrega em seus trabalhos o
Passinho Foda, House, Dance Hall, Vogue, Afro House, Axé,
entre outros.
“Passistas” remete ao passinho de funk e “Dancy” é um nome
que os grupos usam há muitos anos para se referir às danças
de montagens de músicas, muito usado em Belo Horizonte.
No dia 16 de janeiro de 2015, o grupo foi criado e, desde en-
tão, vem ocupando importantes espaços na cidade com o pas-
sinho.

Participantes: Victor Guilherme, Johnathan Gomes, Pedro


Assis, Jennifer Gomes, Christopher Rodrigues.
Constroem o Aglomerado

Floricena Estevam, Rogério Rego, Júnia


Morais, Carol Lopes, Fábio Diniz, Izoli-
na Gomes, Marizete Gomes, Fernanda
Angélica, Nego Bento, Sheyla Bacelar,
Maria Clara de Jesus, Leilane Núbia
Nonato, Hérlen Romão, Erica Lucas, Ra-
fael Freire, Marquim D’Morais, Simone
Moura, Heberte Almeida e Pai Valdir.
ONDE VOCÊ MORA::
NA SERRA OU NO SERRA? ?
Quando alguém pergunta “Onde você mora?”, muitos/as morado-
res/as do Aglomerado da Serra dizem “Na Serra”, “No Serra” ou,
para esconder um pouco a vergonha de morar na periferia, alguns
dizem “moro ali no bairro Serra, perto do São Lucas/ Santa Efigê-
nia” – bairros um pouco mais valorizados na cidade. Por que mui-
tas/os de nós, durante muito tempo, carregamos a culpa de morar
na favela? Por que demoramos para nos identificar com nosso local
de moradia? Quem contribui para que esses espaços sejam vistos
como péssimos locais para serem habitados?

Aqui, entendemos que morar no Serra envolve a questão de se mo-


rar no bairro Serra, o qual, para muita/os de nós, é um local de pas-
sagem, seja para ir ao trabalho ou para ir à escola. Também vemos
nitidamente as diferenças desses dois espaços que, mesmo tão pró-
ximos, apresentam grandes barreiras sociais.

Morar na Serra, por sua vez, está ligado à favela, à quebrada. Com-
preendemos ser esta uma construção social que muitos demoram
para aceitar, uma vez que carrega consigo uma série de estereótipos,
infelizmente ainda muito naturalizados em nosso país. Entende-
mos que estamos nesse constante movimento de leitura e aceitação
de nossos territórios. Neste sentido, não podemos perder de vista
como eles surgiram, como são socialmente representados e o que
as instituições públicas tem feito para diminuir as desigualdades no
acesso a serviços básicos, como saúde, educação, transporte públi-
co e lazer, entre tantos outros aspectos, ligados aos nossos direitos
como cidadãs/os.

23
Morar no Serra e morar na Serra, portanto, envolve diferentes for-
mas de sermos e estarmos no e como os diferentes territórios. En-
volve o fato de nos conhecermos e nos reconhecermos, aqui ou aco-
lá, nos entremeios de diferentes identidades. Afinal, e você, onde
mora? No Serra ou na Serra?

,
AFINAL, O QUE É AGLOMERADO DA SERRA? ?
O Aglomerado da Serra é o maior conjunto de vilas da capital mi-
neira e o 2° maior conjunto de favelas da América Latina. Encontra-
-se localizado nas encostas da Serra do Curral, região Centro-Sul de
Belo Horizonte e faz limite com bairros como: Mangabeiras, Paraí-
so, Santa Efigênia e São Lucas.

É formado pelas vilas: Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora


de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Santana do Cafezal, Novo São
Lucas, Fazendinha e Marçola. São vilas que, ao longo da história,
também ganharam outros nomes, como Arara, Pau Comeu, Caixa
d’água, Del Rey, Café, Favelinha e muitos outros.

24
Não se sabe ao certo a população real do Aglomerado, mas, segundo
dados da Prefeitura de Belo Horizonte, estima-se que há aproxima-
damente 50 mil moradores/as na região. Também não se sabe muito
bem sobre o início da ocupação do terreno, mas o bairro Serra foi
planejado desde a construção de Belo Horizonte com o nome de
“Chácaras da Serra” e teve certo crescimento nos anos de 1910. As-
sim, acreditamos que o Aglomerado da Serra existe há mais de 100
anos!

O Aglomerado foi formado a partir da migração e da ocupação do


espaço por pessoas vindas do interior do estado com a expectativa
de uma vida melhor, isto devido às representações trazidas junto
com a construção da capital mineira.

Existem no Aglomerado algumas creches, escolas, centros de saúde,


centros culturais, praças, campo de futebol e inúmeras organiza-
ções sem fins lucrativos que trabalham com crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos. Por mais que existam inúmeros serviços
destinados aos/as moradores/as do Aglomerado, muitos não fun-
cionam na sua totalidade e nem sempre tem o acesso facilitado para
a população local. Assim, existe o serviço, porém, quase não se tra-
balha na perspectiva de sua permanência e, por isso, muitas/os não
acessam tais serviços, seja por talvez não os conhecer, seja por ter de
enfrentar muitos obstáculos para que se concretize o seu uso.

25
Para alguns, isso quer dizer que não temos cultura, que não gosta-
mos de ir aos eventos culturais, mas nunca pensam que “não gostar”
de ocupar certos espaços também nos é ensinado. Que tal refletir
e se perguntar: “Por que essas pessoas não acessam esses espaços?
Por que elas parecem não gostar disso?” ou “O que eu tenho feito
na minha prática no Aglomerado para possibilitar que essas pessoas
usem tais equipamentos?” ou “Eu realmente conheço o Aglomerado
a ponto de inferir certas respostas?” Meu trabalho funciona em rede
e envolve a participação de outras pessoas, principalmente aquelas
que vivem esta realidade?” “Será que esses espaços estão falando as
linguagens do morro? Eles pensaram essas políticas junto conosco?”
“Em que medida estamos fazendo PARA e não COM estas pessoas?
Por que não construir junto com eles e elas as regras para o uso do
espaço?”

Pensamos que talvez essas perguntas possam suscitar reflexões para


que diferentes práticas realizadas no Aglomerado da Serra sejam
avaliadas. Esperamos que esta iniciativa contribua para que você,
leitor/a, conheça histórias, coletivos, grupos artísticos e culturais
do Aglomerado. Estamos certos de que essas informações pode-
rão contribuir para a formação da cidadania plena do/a morador/a,
do/a trabalhador/a e do cidadão do Aglomerado.

26
COMO ESTÁ ORGANIZADA ESTA PUBLICAÇÃO? ?
Este guia está organizado em três partes. Na primeira parte, con-
vidamos moradoras e moradores para escrever algumas de suas
memórias sobre o Aglomerado, não no sentido de esgotá-las, nem
delimitá-las, mas de trazê-las à luz para que possam inspirar a plu-
ralização das histórias que circulam sobre nossa quebrada. A partir
deste material, pretendemos contribuir para uma cartografia afetiva
1
do Aglomerado da Serra. As pessoas, nesta edição, escrevem so-
bre becos, ruas, eventos, espaços públicos e, principalmente, sobre
as transformações ocorridas nesses espaços ao longo dos anos. São
mães, pais, tios, tias, avós, avôs, primos e primas, alunos de escolas
públicas, funcionários públicos, educadora/es sociais, professora/
es, estagiárias/os, que construíram suas singularidades a partir da
diversidade presente no Aglomerado.

Na segunda parte, trazemos reflexões sobre o Projeto Circuito


SERRA: transitando na quebrada, que proporcionou encontros de
muitas trocas e muito afeto entre muitas pessoas que vivem e ex-
perimentam o Aglomerado da Serra. Também promoveu a nossa
circulação por vários equipamentos do Aglomerado, desconhecidos
por inúmeros participantes dos encontros.

1 Essas cartografias buscam as questões mais afetivas que não vão fazer
parte de mapas oficiais. São outras possibilidades de olhar o mundo. Para nós,
assim como para Marie Bordas, “estamos falando de uma questão de identida-
de!” Ver mais em: https://goo.gl/jGyPvV

27
“Aglomerô - Histórias Afetivas
do
Aglomerado da Serra”

“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O


que eu vejo é o beco.” (MANUEL BANDEIRA, 1996)

Ver o beco, ver as pessoas no beco, ver a vida no beco! O convite que
Manuel Bandeira nos faz é o de observar e compreender o mundo
a partir das pessoas, a partir de indivíduos num determinado espa-
ço. Nossa intenção, aqui, é contar um fato de tal forma que vocês,
que não estiveram neste lugar e não presenciaram a cena, possam
se aproximar, de alguma maneira, do significado daquilo que está
sendo narrado. Parte das histórias foram escritas por seus autores
e suas autoras. Outra parte foi narrada e gravada por moradores
da Serra, sendo posteriormente transcrita e transcriada, de forma
cuidadosa, por membros do projeto Circuito Serra, fazendo a pas-
sagem da oralidade à escrita a fim de adequar o texto aos objetivos
do material aqui apresentado.

Ao ler cada uma das histórias, se achar necessário, volte. Veja no-
vamente e se permita lançar um novo olhar sobre essas realidades,
construindo outras cartografias a partir de pessoas que aqui moram
e/ou trabalham.

Além de despertar sentidos poéticos, pretendemos também permi-


tir a localização de serviços, equipamentos culturais, ruas, palavras,
gírias, brincadeiras e muitos outros aspectos característicos desse
espaço. Nosso desejo é o de que essas leituras lhe permitam ver e
sentir algumas sutilezas do cotidiano que, por vezes, podem passar
despercebidas por nossos olhares apressados. Vá com calma e apre-
cie o caminho. Bom passeio!
28
Historias
Muita água na cabeça e muita história pra contar…

Izolina Gomes

Meu nome é Izolina Gomes. Tenho 76 anos. Sofri demais na minha


vida! Quando eu mudei de Teófilo Otoni pra cá, morei num barracão-
zinho de tábua e sofri muito pra poder construir isso aqui... Depois, a
dona Benvinda, mãe do Pretinho, me emprestou um barracãozinho
dela. Depois eu construí nele junto com a minha irmã. Fiquei com ela
muito tempo. Depois eu saí de lá e voltei pro meu barracãozinho de
tábua. Sofri para consertá-lo e, depois, o vendi e fui para onde moro
hoje, que também sofri demais pra construir. Carreguei pedra na ca-
beça, carreguei brita, areia. Nesse tempo, eu era mais nova. Carreguei
tudo, tudo na cabeça. Agora, eu tenho essa casona, graças a Deus! Tra-
balhei para cuidar dos meus filhos e hoje, graças a Deus, eles estão aí.
Um tem 55 anos e a outra tem 53 anos. Sofri muito para cuidar deles.
Depois vieram meus netos.Tenho netos maravilhosos. Gosto demais!
Trabalhei fazendo faxina para os outros, isso tudo pra cuidar dos meus fi-
lhos. Tinha que levar para consultar lá no bairro São Pedro, lá no Hospital
da Baleia, lá no Hospital Evangélico. Mas hoje em dia está perigoso, né?
Eu quero viver bastante tempo ainda e, graças a Deus, estou bem.
Quero viver muito ainda! Estou com minha família toda criada...A
gente tem muita coisa pra poder falar, mas não dá pra falar tudo, né?
Meus vizinhos eram o seu Zé Catulino, Seu Otávio, Liezer, Dona Bra-
silina, Seu adão, Seu Osvaldo, são as famílias tradicionais daqui... Seu
Jambrão, dono da mercearia, também é gente bem antiga. Gente, que eu
não dou conta nem de falar. Se continuo, fico até amanhã cedo falando...

* Esta entrevista foi gravada e, depois, foi transcrita e transcriada.

30
Comunidade Rap Serra (A Posse)

José Carlos Lucas, também


conhecido como Nego Bento

No final dos anos 80, no Aglomerado da Serra, na efervescência do


Rap Nacional no Brasil – onde já se destacavam no cenário musical
grandes influências como Pepeu, Thaíde, GOG e Racionais MC’s –,
surgiu uma ideia entre jovens rappers da comunidade: montar um
grupo ligado ao Hip Hop. Éramos 05 jovens - MC Cadillac, MC de
Ouro, Pacheco, MC Buda e eu, MC3, que na época ganhei o apelido
por ser o terceiro MC da Rua Nossa Senhora de Fátima.
Foi nessa época que surgiu a comunidade Rap Serra, talvez uma das
primeiras posses de Hip Hop de BH. Nosso objetivo era difundir a
cultura Hip Hop na cidade.
O desafio foi lançado. Além do Rap, decidimos trazer outros ele-
mentos do Hip-hop para um espaço de construção coletiva. Na rua
Nossa Senhora de Fátima, conseguimos um espaço em uma creche
comunitária, que hoje não existe mais, pois virou uma Avenida. Foi
ali que tudo começou…
Na época, o que mandava nesse espaço era o Estilo livre, no qual os
MC’s faziam rimas improvisadas falando do cotidiano. Também ha-
via o Rap de cunho político e protestante, no qual eram feitas críti-
cas sociais principalmente contra a violência policial que acontecia
com muita frequência na região.

31
Na minha opinião, o primeiro dançarino de break dance, que trou-
xe a dança pra esse espaço,é um Mestre dessa Arte até nos dias de
hoje: Rodrigo DiFa, que na época era apelidado de “Difunto”. Já
quase apanhamos da mãe dele por causa disso, porque ela odiava
que chamassem ele de Difunto. Esse dançarino de extremo talento,
junto com MC Cadillac, levou a dança até nós e assim nos tornamos
BBoys (Dançarinos de Break Dance).
Como a Cultura Hip Hop é constituída por quatro elementos – Rap,
Break, Grafite e DJ - ,ainda faltavam os dois últimos elementos para
formarmos o grupo. Primeiramente, conseguimos um DJ pra se
juntar a nós, o DJ Ratinho, que alguns anos depois se tornou DJ do
meu primeiro Grupo de rap, chamado Cultura Rap, formado atra-
vés desses encontros.
O grafite era o último elemento que faltava. Ele chegou até nós atra-
vés do Projeto Guernica, no qual conheci a Fernanda, uma das pes-
soas mais iluminadas que já tive contato até hoje. Ela é uma Arte
educadora que, com certeza, mudou as nossas vidas.
Anos depois,nosso espaço de encontro, que era uma creche comu-
nitária,foi demolida para a construção da avenida. Mas o sonho ain-
da não acabou... Ainda somos resistência e acredito que a cultura
tem um poder transformador.
A Comunidade Rap Serra ainda vive e permanecerá viva em minha
memória, assim como todas aquelas pessoas que fizeram parte do
grupo. Hoje, algumas dessas pessoas não estão mais entre nós, mas
deixaram a missão de continuação desse ideal. A cultura Hip Hop
resiste. Comunidade Rap Serra: presente!

32
Beco Estrela Dalva
Maria Clara

Quando eu penso no beco, eu só consigo me lembrar de bons mo-


mentos, daquelas lembranças que deixam o coração quentinho,
sabe?
Desde que me entendo por gente, comemoramos qualquer data fes-
tiva. Uma memória boa que tenho é da Copa de 2004. Estávamos
empolgados demais com a Copa!Enfeitamos o beco com bandeiro-
las, bandeira; pintamos e organizamos tudo. Cada morador prepa-
rou um prato e levou. Espalhamos cadeiras, colocamos um telão,
tudo pronto pro grande dia! Tínhamos uma vizinha que, infeliz-
mente, não está mais entre nós. Ela tinha as unhas enormes e pintou
com as cores da bandeira. Confesso que ninguém queria sentar do
lado dela, pois cada momento de aflição era um beliscão diferente.
(Obs.: ela fazia o melhor estrogonofe da vida!!!)
O beco marcou muito a minha infância. Cresci rodeada de gente
do bem, que contribuiu muito para a minha formação enquanto ser
humano. Lembro-me também de que toda vez que íamos lavar o
beco, sempre acabava em guerra de balão d’água. Ou então quando
íamos lavar o meu quintal, que jogávamos água com detergente no
chão de cerâmica e escorregávamos.
A minha casa era a última do beco. Meu pai fez uma micropiscina
e era a nossa alegria. Uma piscina feita de ardósia em que todas as
pessoas saiam raladas. Levava os amigos e ficávamos o dia todo na
piscina, escorregando no chão.

33
As meninas do beco e eu sempre fomos muito amigas. Temos, até
hoje, um grupo no WhatsApp, no qual ficamos lembrando de his-
tórias e momentos que compartilhamos. Lembro também de ficar
pulando elástico até altas horas da noite ou quando juntava todo
mundo e ia assistir novela na casa da Dona Maria.
Sem dúvidas, a melhor parte da vida aconteceu ali no beco, junto às
ESTRELAS DO DALVA.
Cria do beco e da rua

Sheyla Santana Bacelar

Sou cria do beco Nossa Senhora das Graças, da Rua da Água e das
vielas onde deixei os meus maiores segredos e os meus maiores
tombos. Nessa minha casa de tijolo e piso de cimento, foi passada
a maior educação do mundo: fui criada por duas mulheres pretas,
minha mãe e minha avó, que estudaram até a quarta série. Ninguém
pode roubar os ensinamentos que elas me deram: o banho de er-
vas, a lata d’água na cabeça e a comida feita no fogão à lenha.
Nessa rua, deixei vários tampões dos meus dedões, brinquei de bo-
linha de gude, queimada, pega-pega e esconde-esconde. Também
não posso me esquecer de outras mulheres que fizeram parte da
minha trajetória: amamentei na minha mãe de leite, “Liane”; ia até
o Bar da “Zinha” para ganhar banana, ocupava o pé de manga da
“Duzangela” e chupei muitos “chup-chup” da dona “Maria”, além de
ouvir os conselhos e os xingos da “Elizete”, sentada no meio fio.
Lá, que não tinha asfalto e nem saneamento básico, tinha as brin-
cadeiras, as amizades e os vizinhos, que quando passávamos mal ou
não tínhamos nada para “rangar” em casa, nos ajudavam e dividiam
a comida, a casa e os remédios. Nesse Aglomerado, fui criada e rece-
bi uma herança cultural que hoje respeito e valorizo. Valorizo quem
ali esteve, está e estará construindo e fortalecendo essa história. Daí
veio meu reconhecimento por diversas fontes de saberes, das diver-
sidades das palavras, das gírias e da quebrada.

35
Aprendi na rua da água, e no beco, a maior lição que não esqueço
de forma alguma: a simplicidade de aprender com o próximo, com
as trocas de ideias, com o ato de admirar um pôr-do-sol, com as
parcerias e o sentar no passeio num fim de tarde. Mas nem sempre
a vida é romântica. Nossa sociedade, cada vez mais egoísta, exige
de nós uma reflexão cada vez maior. Contudo, acredito que, com
sensibilidade e simplicidade para trocar e sentir as coisas consegui-
ríamos, talvez, mudar nosso mundo.

Capoeira, música e Cafezal...

Marquim D’Morais

Quando tinha uns 9-10 anos, eu brincava muito na rua.


Na casa da Dona Nadir, aqui no Cafezal, sempre tinha uma galera
reunida assistindo fitas de capoeira e até fazendo roda na sala da
casa dela. Sempre ficávamos uns 6 a 10 moleques bicando essa gale-
ra, hora e outra enchendo o saco pela janela. E de tanto essa muleca-
dinha encher o saco, os filhos da dona Nadir (Bambino/Vagalume/
Pretinho), coordenados pelo irmão mais velho, Bambino, iniciaram
um trabalho de capoeira que está completando 20 anos.

36
Neste mesmo lugar, porém no andar de cima – com a mesma turma
da capoeira –, rolavam os ensaios da banda Kayajahma (que ainda
está na ativa) e eu, já um pouco mais de casa e já praticante de ca-
poeira, próximo da galera, acompanhava esse movimento também,
que me instigou muito para esse lance com a música. Inclusive, che-
guei a integrar a banda nos anos de 2001/2002/2003. Foi minha pri-
meira experiência atuando na música.
Posso dizer que este lugar e este ambiente foram de suma impor-
tância pra minha formação artística/cidadã/social. Foi na capoeira
que criei minhas primeiras composições, foi no Kayajahma minha
primeira experiência como músico e foi a “Tia Nadir” a primeira
pessoa no Aglomerado da Serra que vi realizando ações sociais, an-
tes mesmo de toda essa história toda começar. A vó Rita, mãe da tia
Nadir, era do congado – movimento do qual também participei um
pouco na minha infância.
Acho que tenho uma relação tão forte com essa família porque,
além de serem responsáveis por minha raiz cravada na capoeira, es-
tiveram presentes em quase todos os ambientes que frequentei por
muitos anos, seja na infância, na adolescência e até mesmo na fase
adulta. Na igreja católica, no congado, na música, na capoeira, no
campinho, eles estavam lá. Eles acabaram passando a fazer parte da
minha vida e posso dizer até que da família – já que família não diz
sobre conta sanguínea.

37
“Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim, ensinamen-
to da favela foi muito bom pra mim!”

Floricena Estevam Carneiro da Silva

Olá! Meu nome é Floricena Estevam Carneiro da Silva, também co-


nhecida como Cena ou como Flor. Aqui estou para cumprir uma
missão quase impossível: escrever sobre minha vida escolar aqui na
Comunidade da Serra. Isto pressupõe uma escrita sobre, no míni-
mo, a experiência de quatro décadas na Educação, que se realiza na,
da e para a Comunidade.
Disseram-me assim: - “pode ir escrevendo, pensando e tal… É bem
simples mesmo, não tem muito mistério não. Vai sentindo o que seu
coração disser, pois é muito importante que a gente externalize aqui-
lo que a gente acha que é importante que outras pessoas leiam sobre
a gente, né?! Que narrativas você gostaria que fundassem o Aglome-
rado?”. Logo me encantei e me enganei com a proposta. Imagina dar
conta disso tudo! Pequeno detalhe: imaginei a tese da minha vida,
mas logo me alertaram: “são só duas páginas”. Então, vamos lá, né?
Bora escrever senão vou ficando mais ainda sem papel.
Sou Serráquea de nascença. Meu nascimento aconteceu no Hospi-
tal Evangélico, em 1976. Sou filha de um aposentado e de uma do-
méstica. Minha mãe, pouco depois do parto, precisou trabalhar. Sua
renda era a única da casa, pois meu pai não morava conosco e não
havia auxílio maternidade para quem trabalhava na casa dos outros.

38
Não sei com que idade, mas bem criança, antes dos 5 anos, minha
mãe conseguiu uma vaga para mim em uma creche então localizada
rua Bandoneon. Tenho poucas lembranças dessa escola. Lembro do
pátio central e de que, no meu último dia de aula, a diretora ficou no
meio do pátio nos entregando os diplomas, um modelo vendido à
época, com desenhos nas bordas, uma mensagem padrão no centro
e um espaço para colocar nosso nome de formanda, com uma letra
toda bordada. Imagina só o que eu, Floricena Estevam Carneiro da
Silva, fiz na hora em que ela me chamou na mesa e perguntou o meu
nome. Só estávamos nós duas naquele espaço e eu, tendo com um
nome desses e considerando que ela não me conhecia, não pensei
duas vezes e respondi prontamente: Floricena Jerônimo Gregório!
Este era o sobrenome dos meus vizinhos, que eu achava lindo, in-
clusive quando eles ficavam atrás de mim, me chamando de car-
neirinha e fazendo béééééé. Saí de lá muito feliz com a primeira
de muitas das traquinagens que me lembro em minha vida escolar.
Estava chovendo na ocasião e me lembrei que não poderia chegar
em casa com aquele diploma ou teria muito que explicar. Rasguei,
joguei na enxurrada e segui feliz e contente para minha casa.
Fiquei nessa creche até os seis anos, quando fui estudar na Esco-
la Municipal Senador Levindo Coelho, onde fiz do pré-primário à
quarta série.

39
. Que período de estudos maravilhoso! Tenho muitas lembranças
boas dessa época: dos amigos, da escola, do frio que fazia, já que
a escola é ao lado do Parque Mangabeiras, da diretora parada na
portaria e barrando quem não estivesse com o uniforme completo –
geralmente com camisa sem escudo da escola ou de conga, porém,
sem a meia branca. Sobre esta época, minha maior lembrança, a
melhor de todas, é a de que todo ano minha mãe fazia minha festa
de aniversário na minha sala. Tinha bolo com glacê de clara de ovo,
Ki-Suco e pastel frito. Lembro de ter reclamado com minha mãe
que minha única tristeza era ter nascido em outubro. Eu pergunta-
va: porque não me fez nascer antes, em abril como minha irmã, ou
em junho como meus irmãos? Assim, não teria que esperar um ano
inteiro para fazer aniversário...
Aos onze anos, fui para a Escola Estadual Professor Pedro Aleixo,
onde estudei da quinta série até a conclusão do ensino médio. Que
horror e que delícia essa época da vida e dos estudos! Primeiro, o
horror de uma escola muito distante de casa, com um monte de
gente que eu não conhecia e de uma outra estrutura e organização
de trabalho, com um tanto de professoras/es entrando e saindo da
sala toda hora, de ficar esperando e não aparecer professor/a, de
uma agitação sem fim. Tomei bomba na quinta e na sexta séries.
Achei ruim, mas não muito. Lembro que minha mãe só me dizia: -
“perdeu um ano”. Lembro que uma dessas bombas foi em Ciências.
O professor me disse que eu só passaria na recuperação. Não fui
fazer a prova por pirraça!

40
De lá, tenho lembranças de discussões, problemas e inúmeras si-
tuações que vivi. Foi lá que me apaixonei pela matemática, graças
à professora Suzaninha; lá entendi, com a professora de Educação
Física, que não havia bondade nenhuma na doação proposta para a
escola por um vizinho, que queria um pedaço da nossa quadra para
aumentar seu jardim. Nesta escola, também entendi que nós, fave-
lados que estudávamos em uma escola no bairro Mangabeiras, um
dos mais valorizados da cidade, éramos a parte fraca dessa relação e
que, se ficássemos calados e omissos, seriamos facilmente expulsos
de lá. Lá conheci e me apaixonei por Drummond, com seu José, sua
quadrilha e seu homem de ferro. Foi lá que fiz amigos e amigas com
quem compartilho até hoje momentos de vida. São companheiras
de trabalho, comadres, afilhados. É sempre um déjà vu quando lá
vou, a cada dois anos, para votar. Sempre vejo uma outra escola,
com outras salas, outros acessos, outra organização, mas também
vejo a minha escola, onde passei uma década de minha vida escolar.
Após terminar o ensino médio, fiquei 5 anos sem estudar, traba-
lhando, pois não tinha opção. No entanto, queria muito voltar a es-
tudar, porque sempre fui apaixonada por escola e sentia muita falta
dos amigos, do ambiente, das professoras. Voltei. Fiz vestibular para
pedagogia e passei. Fui estudar na Faculdade de Educação da Uni-
versidade do Estado de Minas Gerais (FaE/UEMG). Foi uma época
difícil: pouco dinheiro, sem trabalhar, mãe da Izabella, que ainda
era bebê. No entanto, eu sabia o que queria e onde queria chegar.
Tinha que dar certo.

41
Lá, conversei com autoras/es e professoras/es que me deram espe-
rança, mas também tive contato com outras pessoas, que me con-
taram que muito do que estava posto para nós era assim há muito
tempo e que a mudança demorava, quando acontecia. No entanto, o
que me manteve firme foi compreender que, em sua maioria, aque-
las pessoas concordavam que a educação é um dos mais importan-
tes caminhos, se não o mais importante, como considero hoje, para
que haja transformações na nossa vida em sociedade.
Lá, refleti sobre uma das grandes maldades que vivemos na Educa-
ção brasileira, na condição de estudantes de escolas públicas: sequer
nos deixam tentar. Sofremos amiúde e paulatinamente pressões
para nem tentarmos uma vaga nas Universidades, principalmente
as públicas. Desde a educação primária, tudo que dizem e fazem é
no sentido de desqualificar a escola pública, as professoras, os es-
tudantes. Tudo que fazem é nos levarem a acreditar que não temos
boa formação, que temos os piores professores, que somos os pio-
res estudantes. Que a educação pública, principalmente da e para a
favela, é um quase nada oferecido a um quase ninguém. Penso que
devo um pedido de desculpas a esse sistema, por não ter acreditado
nele, por ter acreditado em mim, em minhas professoras e profes-
sores, nas escolas onde estudei, por ter feito e passado no primeiro
vestibular no qual me inscrevi. Não satisfeita, fui fazer mestrado,
também na FaE/UEMG, na área da Educação. Pesquisei o traba-
lho das mulheres aqui da Comunidade, nas obras do Programa Vila
Viva. Mais um grande aprendizado que essa Comunidade me pro-
porcionou.

42
Conheci e refleti sobre o trabalho e a exploração a que muitas mu-
lheres estão expostas. Quanto menor a formação escolar, maior a
exploração. O caminho, então, qual é? Educação! Durante o mes-
trado, fiz concurso para professora da Rede Municipal de Belo Ho-
rizonte. Fui chamada e assumi ainda com o mestrado em curso.
Escolhi trabalhar na Escola Municipal Professor Edson Pisani, que
fica aqui na rua Nossa Senhora de Fátima, literalmente no meu
quintal. Em meu terceiro ano na escola, entrei para a direção e estou
até hoje, há seis anos. Desse lugar de diretora, pude confirmar mi-
nhas suspeitas. Vivo na prática o compromisso das professoras com
seu trabalho, sua dedicação, o quanto querem o melhor para nossos
estudantes. É muito interessante como a educação é contagiante e
como os funcionários das escolas também se tornam comprometi-
dos com esse trabalho de educar. É interessante perceber que, para
as crianças, todas e todos na escola são educadores. Isto é expli-
citado quando, muitas vezes, se referem a funcionários da escola
como professores. Nessa lida com os estudantes, estou me forjando
diariamente professora, enquanto também me forjam diariamente
uma pessoa melhor.
Ser professora e diretora de uma escola aqui no Aglomerado só me
fez confirmar a importância da educação escolar para nossa Comu-
nidade. Isto me faz querer, cada vez mais, que nosso povo venha
para a educação, serem professoras e professores das escolas daqui.
Queria escrever sobre muitas coisas mais, afinal, sou declaradamen-
te apaixonada pela educação. Sinto que não cumpri minha missão,
afinal, queria contar todos os casos dessas quatro décadas de educa-
ção que vivi por aqui.

43
Poderia fazer-lhes rir e chorar com algumas histórias mais recen-
tes, como: a reclamação da estudante de 80 anos que queria passar
de ano, mas não aceitava trocar de professora, nem de sala, nem se
formar; as cartinhas; a fuga; o remédio para pescoço quebrado; o
dia dos pintos; o menino que queria ir para a direção; o menino que
só queria brincar de tubarão…Contudo, vou ficando por aqui, nes-
tas pouco mais de duas páginas repletas das dores e delícias de ser
quem já fui e quem eu sou: Serráquea, Floricena Estevam Carneiro
da Silva, Floricena Jerônimo Gregório, Professora, Cena, Flor!

Aglomerado Serra

Rogério Rego

O surgimento e crescimento das favelas é um fenômeno relaciona-


do diretamente com as modificações dos grandes centros urbanos
ocorridas na época da Revolução Industrial, quando houve o sur-
gimento de ambientes precários e insalubres em todas as grandes
cidades, provocando a expulsão de várias pessoas para as perife-
rias.
Atualmente, existem várias tentativas de transformar as favelas em
espaços o mais parecido possível com os bairros da cidade formal,
melhorando as condições desses lugares com intervenções públi-
cas, a fim de minimizar os efeitos do crescimento desordenado
proporcionados por este tipo de aglomeração urbana.
Por isso, o poder público interferiu na região do Aglomerado Serra
através de programas como o “Vila Viva”. Segundo a Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte, os recursos totalizaram em torno de
R$ 143 milhões...
44
O Programa Vila Viva veio como uma proposta de melhorar as con-
dições de vida dos moradores e mudar a fisionomia do local. As in-
tervenções de saneamento, a remoção de famílias de áreas de risco,
a reestruturação do sistema viário, a implantação de parques e equi-
pamentos para esporte e lazer, a construção de unidades habitacio-
nais e a urbanização de becos pretendiam elevar a qualidade de vida
dos moradores das vilas, isto através de ações de promoção social
e desenvolvimento comunitário, educação sanitária e ambiental,
acompanhamento de remoções e reassentamentos de famílias, bem
como a criação de alternativas de geração de trabalho e renda na
comunidade. Após essas intervenções, seria iniciada a tramitação
documental para a regularização fundiária da área, com a emissão
das escrituras aos moradores
Entretanto, essas políticas públicas sociais, que deveriam ser res-
ponsáveis pela facilitação aos direitos sociais pela população local,
sofrem limitações, tanto financeiras quanto políticas. E, talvez por
isso, sejam tão pouco efetivas, deixando de contemplar o sentimen-
to identitário do ser humano.
Como exemplo, dentre várias outras famílias, a minha foi removida
contrariada e sem nenhum acompanhamento, conforme prometi-
do pelo programa. Meus pais, Zé Maria e D. Zuleine, reclamam até
hoje: “aqui não podemos nem sair de casa! Lá na Serra era diferen-
te!” (E ainda dizem por aí que nossa favela é violenta). Lá se foram
mais de trinta anos de construção de laços afetivos, especialmente
de amizade com vizinhos. Nesse sentido, fico pensando: qual de-
veria ser o valor indenizatório de uma identidade? De uma história
construída com amigos? De sentimentos?

45
Assim, mais uma vez, o poder público deixou de cumprir o seu pa-
pel. Neste processo, apenas realizou as etapas de interesse econô-
mico, deixando de lado o interesse social dos moradores do Aglo-
merado Serra. A falta de uma diretriz para solucionar os problemas
que atingem prioritariamente os excluídos financeiramente ou até
mesmo dificuldades na operacionalização e na colocação em práti-
ca das políticas públicas definidas anteriormente são, muitas vezes,
indicadas como justificativas para estampar as capas ou os cantos de
jornais. E nós, como ficamos?

A musicalidade da Vila Cafezal e a Circulação


no Território

Júnia Morais

Sou Júnia e moro no Beco Semifusa desde meu nascimento, há 30


anos. Não sabe o que é uma Semifusa? Pois é, eu também não sabia
e isso me despertou desde cedo a curiosidade de procurar que
bendito nome era esse, já que ninguém conseguia localizar tal beco
por causa do nome.

46
Uma vez, quando inaugurado o Espaço Criança Esperança, o Le-
one - SpectroBione, que é artista do Aglomerado –, foi me dar um
recado em casa sobre a matrícula no Criança Esperança, e, quando
achou o beco, disse: “Nossa! Perguntei todo mundo onde era o beco
Semifusa e o último falou: ‘Cê quer que te fusa?’”, numa brincadeira
pelo nome tão estranho.
No dicionário, encontrei o seguinte: substantivo feminino MÚSICA
- 1. figura de ritmo que tem a metade do valor de tempo de uma
fusa ou a sexagésima quarta parte de uma semibreve. Bom, só en-
tendi que tinha a ver com música (risos)!
A partir daí, notei que todas as ruas no meu entorno tem a ver com
música: Ritmo, Acorde, Serenata, Musical, Bandolim, Guitarra, To-
nalidade, Regência, entre outras. Percebi que a Vila Santana do Ca-
fezal tem musicalidade em suas entranhas. Uma vez, me disseram
que um músico deu o nome para as ruas. Nunca soube ao certo a
origem dos nomes. Se você souber, me diga! Pode me procurar no
Beco Semifusa. No Cafezal, temos um território extenso, diverso e
cheio de gente linda. Há anos, quando era adolescente, frequentava
os bailes funk que aconteciam principalmente perto do Beco Semi-
fusa, na praça da Lira. O Faverock, na Rua Dr. Alípio Goulart, ia
pra ver principalmente um grupo do aglomerado chamado Pêlos
de Cachorro, atualmente, Pelos. Passava os fins de semana na praça
de Esportes do Cafezal, que estava recém inaugurada. Circulava por
todo o território em busca de algo legal para fazer. Atualmente, sou
Assistente Social. Continuo procurando algo legal pra fazer. Ainda
frequento bailes funk, pagode, samba e tudo que puder aproveitar,
na “quebrada”.

47
Boas opções para se divertir e comer uma comida gostosa são o
Barrankus Petisco, Betinho Bar e Restaurante (Antigo Zé Pretinho),
Espeto Bar, Bar da Laje, Bar da Madrinha, Massas Dias, Pizzaria
Farol da Serra, Bar do Queixada, dentre outros.
Às vezes, vivemos conflitos que poderiam ser evitados. Se o poder
público tratasse a periferia com a mesma atenção que trata dos bair-
ros nobres... Somos sobreviventes! Somos sementes! E seremos nós
por nós, sempre!

“NO BAILE DO DCE ENCONTREI O MEU AMOR...”

Hérlen Romão

“Eu só quero ser feliz, andar tranquilamente na favela onde nasci,


e poder me orgulhar, e ter a consciência que pobre tem seu lugar”
(Cidinho e Doca)

Quem poderia imaginar que foi em baile funk que descobri o que é
ser militante? Foi lá que descobri que as letras, que agitavam o salão,
também nos fazem refletir e agir...
Quem poderia dizer que, naquele momento, tão jovem, só preocu-
pada em estar com a beca esperta para agitar a noite, aprenderia nas
madrugadas quais eram meus sofrimentos sociais...
Era mágico descer a Pouso Alto com várias amigas, retocar o batom,
pois o baile era entrada franca para as meninas, e então brilhar. Era
só estar em dia com a maquiagem, cabelinho molhado e o pé quente
para riscar todo o salão e, lógico, estar com olho esperto, pois o boy
poderia estar naquele cantinho, beeem escondidinho...

48
Não sabíamos o que significava DCE... Também não interessava. Na
verdade, a informação que não podia faltar era se, para a mulhera-
da, na semana que vem seria entrada franca. Também era importan-
te ficar ligada para a hora da lenta, pois era a oportunidade de ficar
bem próximo do bofe sensação, jogando aquele charme para não ter
jeito e ele te chamar para a lentona. Mas, atenção! Não podia dei-
xar ele, na hora deste momento agarradinho, descer a mão. Ah, isso
não! No mais, era muito importante checar se ele sabia chegar, pois
boy magia no DCE era o cara que nos fazia viajar com palavras...
Aaaah! Como era bom sentir-se única, a mais bela, saber que, du-
rante aquela semana inteira, aquelas palavras foram ensaiadas para
nos encantar.
Muito maneiro era ver o baile inteiro fazendo a mesma coreogra-
fia. Uma alegria que contagiava, arrepiava! Os gritos de guerra não
eram para saldar time de futebol, mas sim, sua quebrada. E a guerra
era quem sabia meter um melhor passinho de improviso. Quem o
fazia, esse sim, tornava-se ídolo!
Muito massa, também, era não ter medo de subir para casa, pois era
uma geral subindo os morros, cantando e dançando. O baile saía do
salão e nos acompanhava pelas ruas da favela.
As cores das roupas eram vibrantes: amarelas, vermelhas, rosa cho-
que... Os cabelos eram ouriçados ou molhados, com muito creme e/
ou colado nas costas. Ombreiras para aumentar a elegância e tênis
All Star para se firmar “pé de valsa”. Mas não tinha nada mais valio-
so que sábado à noite, pois sábado à noite TUDO PODIA MUDAR,
como diz a música! Eu, por exemplo, foi levando um passinho que
ouvi a seguinte proposta: “posso dar um beijo na sua covinha?” Dei-
xei. Segunda proposta: “posso dar um beijo na sua outra covinha?”
Hummm... Gatinho, então deixei. Por fim: “posso dar um beijo en-
tre as duas covinhas?” E foi assim que entrei no baile solteira e saí
casada...

49
Raízes mutáveis

Carol Lopes Roots Ativa


/ Aglomerado da Serra

Feita de alquimias, variações do lidar, conversar, o saber do plantar,


colher... é assim que a vida nos mostra na teoria, mas lá, a prática é
outra!
Acordamos cedo como qualquer outro trabalhador: cheirinho do
café com um bolo de fubá, damos graças pelo alimento.
Tarefas distribuídas: uns irão adubar, outros abrir massa, fazer o
pastel de ricota e também tomate seco e orégano.
Telefone toca: - Mais uma feira?! Ah sim, estamos confirmados!Saí-
mos pra mais um dia ganhar.
É saudável, acessível e diferente, curioso ao perguntar: - “que bom-
bom é esse sem açúcar?” - É o sete grãos cacau e mel.

Dá rima até mais tardar...


Em cada canto, uma história contando história, conhecendo men-
tes, gerando gosto. Crianças sorriem ao aprenderem a plantar, um
bem que elas não sabem que irão levar pra vida toda: o plantar afe-
tos com sua família, o plantar responsabilidade em seu trabalho, o
plantar de cuidados com elas mesmas...
A experimentação te abre portas, não apenas pra você, mas no sig-
nificado do que é coletivo, o ensinar a conviver, diferenciar.
Se transformar sem perder a essência, repassamos, seguindo cami-
nho, guardando cada informação “na malinha de mão do coração”,
como dizia Liniker.

#PoesiaEmLinhasTortas

50
Rua Serenata /Praça da Lira/Beco do Amor

Patrícia Prudencini

Dizem os anfitriões que meu tio batizou algumas ruas do Cafe-


zal com nome de música. Conhecido como Dufim, nunca tivemos
contato diário, somente alguns encontros quando eu era bem mais
nova, especialmente quando recebia alguns convites para me deli-
ciar com seus pães caseiros. Não sei ao certo se é um fato, porém,
independente da origem dos nomes, sei que aquelas ruas guardam
muitas memórias, sendo que algumas delas vou agora lhes contar.
A rua Serenata tem início próximo ao Demacol e termina próximo
à Rua Binário. É considerada a rua principal por ser mais larga.
Nela, passa o microônibus 103. Cortada quase em seu final pela
Praça da Lira (sem memória de sua origem), ela era o ponto de
encontro de jovens, todos entre 11 e 14 anos, já na fase de paquera.
Todos se reuniam para flertar (kkkkkkk) e, claro, bagunçar muito.
Naquela época, quase não deixávamos os vizinhos dormirem. Qua-
se toda semana, ganhávamos um castigo por causa das reclama-
ções. Era comum descermos a Rua Serenata para nos reunirmos na
Praça da Lira. Ali era um lugar de nos reunirmos, principalmente
para cobiçar os garotos mais populares, que se reuniam no flipera-
ma da Praça da Lira. No entanto, os encontros não acabavam ali.
Íamos para outras ruas e becos do Cafezal. Tínhamos até um lugar
secreto (rsrsrs)! Era um desafio nos escondermos de nossos pais,
pois todos se conheciam e também nos conheciam muito bem.
Sendo assim, nos refugiávamos no local preferido daquela época,
hoje mais conhecido como beco Tamborim, amorosamente bati-
zado em 1993 pela galera como BECO DO AMOR (rsrsrs), pois
todos os casais se encontravam lá. Assim, em meio às brincadeiras
de criança, conheci meu marido e outras amigas também conhece-
ram seus maridos. Foi por entre ruas, praças e becos que a sinfonia
da nossa juventude foi composta. Quanta lembrança boa!

51
Lembranças muito boas da Rua Falcão!*

Fernanda Angélica Ferreira

Meu nome é Fernanda Angélica Ferreira e tenho 40 anos de Falcão.


Uma lembrança boa que tenho daqui era quando tinha o bar do
falecido Seu Zé Catulino, aqui perto de casa. Todo dia de manhã,
ele me chamava pra tomar café. Eu era bem pequenininha. Isto co-
meçou a acontecer logo que saí do hospital, quando eu tinha me
queimado e tudo mais...
Todo mundo me ajudava e ajudava a minha mãe a me olhar. Ele
mesmo cuidava de muito de mim. Todo ano, ele ia pra Aparecida
do Norte e trazia uns presentes pra mim. Ele me chamava de minha
macaquinha... Era assim que ele me chamava, um apelido muito
carinhoso que colocou em mim.
Das histórias boas que lembro da minha infância, todas sempre são
com ele, o Seu Zé Catulino. Pra mim, a referência aqui da Falcão,
que é onde eu moro, sempre vai ser o Zé Catulino, que sempre vai
estar no meu coração... Também lembro da dona Dalva, que me
salvou, que me colocou nos braços dela e correu pro hospital... E
agradeço ao médico, né? Ele falou que eu não podia ter filhos... E
eu tenho porte, né? Cheia de filhos! Tenho filhos demais! Graças a
Deus! Cinco filhos! Deus me contemplou e me abençoou. Sobre o
médico que falou que eu não podia ter filho, eu queria encontrá-lo
pra falar e mostrar pra ele os meus cinco filhos e a minha neta. Gra-
ças a Deus!

52
Ainda sobre a rua Falção, tenho boas lembranças, mas também te-
nho lembranças ruins. Mas a maioria é coisa boa! Graças a Deus!
Essa Falcão. Quem sai daqui acaba voltando pra cá de novo. Não
tem como não voltar! Uma história boa daqui são os meus vizinhos,
são todos bons. O que precisar aqui eles me ajudam. A minha in-
fância aqui nessa Falcão, graças a Deus, foi de verdade. Eu tive in-
fância de verdade! Brinquei muito! Se eu falar que eu não brinquei,
estou mentindo. Aqui nessa Falcão, a gente brincava de rouba-ban-
deira, Pegador de esconder. Ô coisa maravilhosa! A gente começava
a brincar às seis horas da tarde e só terminava duas horas da manhã
e, mesmo assim, a mãe já estava com o chicote no braço pra pegar
a gente de coro. Melhor ainda era cair no poço. Que maravilha! Na
hora em que eu falava assim: “Pera”, eu já falava com as meninas
com os olhos meio abertos pra eu ver o meu pegue, pra eu dar um
beijinho. Naquilo ali a gente ia lá e lascava um beijão. A gente brin-
cava disso atrás da casa da Dona Izolina e do falecido Nado, da dona
Tina. Agora, ali no campo bola de ouro, eu já era mais moça e a
gente ia ali pros Miamis, aquelas músicas dos Miamis, “Sping love”.
Bom demais! Ô época boa! Estamos tentando manter essa cultura
do morro, mas está difícil de manter. Foi uma época muito satisfa-
tória pra mim!

*Esta entrevista foi gravada e, depois, foi transcrita e transcriada.

53
Ôh, Serra!

Fábio Diniz, ou Fábio da Serra

Oh, Serra, Serra querida! Quanta vivência fluíste de ti; histórias de


um povo alegre, cheio de prosa, gente humilde e amiga. São tantas
histórias que, se fosse contar, daria um livro... há... há... há... livro
nada, uma grande enciclopédia de saberes. Mineiro do interior que
aqui chegou e logo se instalou, mas tem baiano, capixaba, nordestino,
ah... sei lá, aqui no Serrão cabe todo mundo, né? Deixa pra lá, melhor
eu parar de poetizar e falar um cadim de mim.
Pra ser sincero, que saudades eu tenho da Serra da minha infância.
Não que a atual seja ruim, nada disso, mas as lembranças são de um
tempo que nem asfalto tinha. É isso mesmo, as ruas eram de terra,
algumas de cascalho, outras calçadas de pedras, e tinha também as
esburacadas, mas as que eu mais gostava eram as de terra mesmo.
Ali, meu amigo, a brincadeira de finca rolava solta e o campinho do
cafezal, a famosa terrinha... Nossa! Quanto talento aquela garotada
tinha com a bola!
Se você descesse a rua Regência, um pouco abaixo do número 93 –
que era onde eu morava, casa da minha mãe, Dona Nega – ali havia
um grande pasto, que abrigava um lindo gramado com coqueiros e
tudo mais. Chamávamos aquele espaço de “graminha”. Ali era onde
dávamos uns xangôs, uns saltos mortais e até ensaiávamos uns golpes
de Karatê e Kung Fu (rsrsrs). A inspiração vinha dos filmes da épo-
ca. Além do mais, tinha meu vizinho Wilson, que também praticava
artes Marciais e era fera no chaco. Descendo um pouco mais até o
final da Mem de Sá, tinha o canão, que vazava água dia e noite e nos
proporcionava uma bela ducha refrescante.

54
Muitas são minhas alegrias ao rememorar estas histórias, mas o que
me orgulho de verdade é de ter feito parte da primeira geração de
alunos da E.E. Efigênio Sales. Eu amava cuidar da horta escolar do
Seu João!
Além disto, nessa época, as brincadeiras de rua rolavam sempre.
Rouba-Bandeira, Pique-Esconde, Queimada, Bolinha de Gude, en-
tre outras que quase não se vê mais. O que eu mais gostava era da
casinha de madeira que eu mesmo fiz no pé de abacate do quintal
da minha avó/mainha Lindaura. Isso mesmo! Quase todas as casas
tinham quintais com várias plantações e meu avô gostava muito de
plantar. Tinha bananeira, pé de cana, abacateiro, mangueira, limo-
eiro, até pé de café e corante (urucum), ceis acreditam? E por falar
no meu avô, quer dizer, painho, né?, que era como ele gostava de ser
chamado, o Seu Tião era um dos puxadores da Folia de Reis da Igre-
ja Católica do Cafezal. Ele era muito dedicado às tradições católicas.
Eita nós! É história pra mais de metro, sô! E se achava que era só
isso, tem muito mais, viu!? Quem não se lembra de como a antena
da Del Rey iluminava, coloria e encantava toda a cidade com as lu-
zes que a decoravam no Natal? Era uma variação de cores e projeção
que arrancavam sorrisos de tão bonito que era.

55
Cafezal!

Heberte Almeida

O Aglomerado da Serra compreende sete vilas e milhares de


pessoas, casas, becos e cachorros vadios. São infindáveis ruas es-
treitas, campinhos e quadras de futebol, botecos, vendinhas, igrejas,
mirantes, pagodes, bailes funks. Tem também um terreiro aqui e
outro ali, mais e mais igrejas, lixo acumulado nas caçambas e nas
ruas aos domingos, biqueiras, grupos culturais, o estigma da violên-
cia, comerciantes que vem de fora e fazem fortuna, churrasquinhos
em várias esquinas, muita gente trabalhadora, remoções compulsó-
rias de famílias, salões de beleza, negritude linda, muita gente preta,
gente branca tem também e toda a sorte de empreendimentos, lega-
lizados ou não...
Toda esta dinâmica social e esta diversidade de lugares e
pessoas foi, durante muito tempo, resumida em uma única palavra,
que corresponde a uma localidade específica: Cafezal. Isso se deve,
em grande medida, a uma cobertura preguiçosa e preconceituosa
dos tradicionais veículos midiáticos de Belo Horizonte a respeito do
“Serrão”. Sou morador da Vila Nossa Senhora da Conceição e, por
um longo período, foi difícil entender qual era o nome da região
em que eu resido. Várias correspondências chegavam com o ende-
reço “Cafezal”. O famoso posto de saúde do “Café” está a uns 200
metros da casa e localiza-se em uma rua paralela a Doutor Camilo
Nogueira, que eu poderia chamar de minha rua. Na verdade, moro
no Beco Dona Cota, mas aprendi, quando criança, a dizer assim:
“meu endereço é Rua Doutor Camilo, Beco Dona Cota, 35”. Hoje, os
infindáveis boletos vêm com a localização correta da vila e não te-
nho nenhuma dúvida e sequer o menor constrangimento em dizer
para as pessoas que moro na Vila Conceição e que minha residência
é num beco.

56
Tenho um carinho imenso pelo Cafezal, embora não more lá. Suas
ruas e becos com nomes de instrumentos e elementos musicais é
muito, muito maravilhoso mesmo. Imagina morar no beco Cava-
quinho esquina com os becos Banjo e Tamborim!? Que coisa in-
crível não seria o entroncamento Guitarra, Baixo e Bateria, não é?
Sair correndo pela Ritmo, subir o Sustenido, cantar umas músicas
na janela da preta mais linda da Serenata, pegar o amarelinho para
descer na Regência e curtir um rap no Centro Cultural Lá da Fave-
linha, e depois tomar uma cerveja na Dinâmica e, ao fim da noite,
descansar na Harmonia. Isto é totalmente possível no Cafezal!
Realmente esta vila ocupa bastante meu imaginário. Tem
pessoas e histórias incríveis neste lugar. Essa é a terra dos famige-
rados irmãos “Graúdo e Miúdo”. De acordo com o instituto de pes-
quisas inexatas e estórias Data Tambor, a maioria dos estudantes
de violão que participou de uma oficina de música que coordenei
durante uma década no Aglomerado da Serra é dessa região. Nesse
lugar, já fui muitas vezes ao encontro de pessoas queridas e a várias
festas sensacionais ao som de pagode, de Amado Batista e Michael
Jackson, saboreando o mais distinto churrasco de linguiça (sempre
que eu chegava na casa de um casal de amigos só sobrava essa igua-
ria pra mim). Foram tantas vezes que até já perdi a conta!
Para mim, o nome de rua mais bonito do Serrão é “Flor de
Maio”, entretanto, ela não se localiza no Cafezal. O Centro Cultural
mais lindo da comunidade e da cidade, também não está no Cafezal.
O campo de futebol mais emblemático e lendário da nossa quebra-
da está numa vila, que não é o Cafezal. Ou seja, o Aglomerado da
Serra não é o Cafezal. Contudo, no glorioso “Café” estão presentes
muitos afetos e memórias minhas, compondo um mosaico de pes-
soas, casas, histórias e lutas que representam o meu lugar.

57
Pedra Verde

Simone Moura

Pedra Verde é o nome da rua onde moro desde que nasci. Esta rua
foi palco de inúmeras das minhas histórias e também cenário para
minhas vagas memórias dos tempos de criança. Dela tenho a lem-
brança de quando menina, entre os meus cinco e oito anos, carregar
na cabeça uma lata redonda, daquela antiga de doce de leite Itambé.
No entanto, seu conteúdo não era o doce, era a água que carregava
por quilômetros entre a Bica da Terceira Água, na Vila Fazendinha
e minha casa, na Vila Fátima, onde enchia junto com a minha mãe:
caixa, tambores e bacias. Eram várias viagens. Isso quando eu não
resolvia escorregar no meio do caminho e deixar a pequena lata cair,
pois a trilha era de terra enlameada, que se tornava uma verdadei-
ra esparrela para as desavisadas. Daí, quando isso acontecia, não
adiantava chorar. Voltava para fila formada principalmente por mu-
lheres e aguardava, quietinha, por pelo menos uma hora até encher
novamente a lata.
Bom, eu disse quietinha pois normalmente quem deixava a lata cair
era alvo da gozação das demais por dias e mais dias. Ninguém que-
ria ser a próxima vítima, né? Então, na subida dos barrancos lama-
centos, firmava as canelas e o tronco, e se preciso fosse, gemia para
me munir de uma força que vinha deste som. “Só pode”, eu pensa-
va. Na verdade, só fui aprender sobre isso com o tempo: sobre essa
força que é interior, mas é também anterior. Essa força é a que vem
de nossas ancestrais, que abriram, no fio da enxada ou mesmo no
caminhar, as trilhas pelas quais passaríamos e fincaríamos nossos
pés para não deslizarmos ladeira abaixo.
Pedra Verde é uma dessas ruas abertas por mulheres. Antes beco,
depois viela e hoje rua. Um caminho que foi se alargando para que
outras passassem.

58
O último ou o único terreiro do Aglomerado da Serra?

Visita ao Terreiro do Pai Valdir

O terreiro do pai Valdir fica na Favelinha, no Novo São Lucas, pró-


ximo a um rio e entre muitas árvores. Lá, vivem muitas galinhas,
cigarras, cachorros e gatos... Todos os sábados, há encontros e o ter-
reiro recebe muitos convidados para celebração de seus rituais.
Pai Valdir nos contou que este terreiro não está registrado por al-
guns receios que eles vivem cotidianamente.
O mundo, segundo algumas palavras do Pai Valdir, é muito hipócri-
ta, pois perdemos muito tempo vendo o que há de ruim nas pessoas
e temos o hábito de querer sempre expulsar isso delas. Para ele, essa
hipocrisia explica porque outras religiões insistem em não respeitar
o candomblé. “Passam muito mais tempo falando de diabo do que
de Deus. Deus é Olorum, é Oxalá. Deus é um só, mas com vários
nomes.”
O terreiro é aberto. Qualquer pessoa pode entrar, basta empurrar o
portão. Além disso, é também um projeto social, pois ajuda a rapa-
ziada que está envolvida com “coisa errada”. É uma ajuda de forma
direta, pois esses jovens veem neles uma possibilidade de acolhida.
Pai Valdir deixou um recado superimportante para quem não co-
nhece o candomblé: “o candomblé não obriga ninguém a nada,
pregamos o bem! Existem vários caminhos e você é quem escolhe.
Aqui, neste terreiro, nesse território, somos resistência!”

*Visitamos o terreiro e conversamos com o Pai Valdir. A entrevista


foi anotada em uma caderneta de campo

59
Lá no Cafezal, Serra

Leilane Nubia Nonato


Uma das minhas melhores lembranças no Aglomerado é de uma


vila que se chama Cafezal. Quando eu era pequena, minha mãe
e minhas irmãs saíam cedo para seus afazeres: escola e trabalho.
Como eu era muito nova para ficar sozinha, minha mãe me man-
dava para casa da minha avó, que morava no Cafezal e eu na Vila
Nossa Senhora da Conceição (Caixa D’água).
Eu, que morava na Vila Nossa Senhora da Conceição (Caixa D’água),
ouvia várias histórias sobre lá. Quando descia o morro, costumava
imaginar como era antes: em que lugar ficava o café, como era ter
só mato por ali...
Quando eu chegava na casa da minha avó, ficava assistindo dese-
nho. Lá pelas 9 horas da manhã, ela me pedia ajuda para ensiná-la
a fazer o dever de casa. Dona Geni, mais de 60 anos e sempre cor-
rendo atrás dos estudos. Eu ficava super feliz em contribuir para a
formação da minha avó. Uma pena que eu ensinava tudo errado pra
ela e, mais tarde, minha tia sempre tinha que corrigir as atividades.
O mais legal era que, mesmo eu não sabendo, minha avó me pedia
ajuda todos os dias. Quantas lembranças boas... Ô saudade daquele
Cafezal!

60
Favela!
Rafael Freire

Favela! Mais conhecida como Serra.


Da janela eu vejo uma linda cinderela!
Em meio às drogas, vejo
jovens se perdendo em segundos...
Por favor, “meu Deus”,
Tire eles desse mundo!

Com tijolos vou montando o meu castelo...


E aquela criança com sorriso amarelo...
banguelo...magrelo...de chinelo...sincero...
Espero...refrigero... O que mais quero:
crianças, mudança, esperança que dança..
Que lança amor assim se alcança.

No balanço, ela cresce, ela avança ...


“Mas que nunca se perca
seu olhar de criança” !
Um jovem sonhador...já sei que sou!
um poeta amador...
que assim se transformou”!

61
O PROJETO

“Circuito SERRA: transitando na Quebrada” foi um projeto que vi-


sou o desenvolvimento de uma ação no Aglomerado da Serra capaz
de contribuir para integrar as vilas e as manifestações artísticas e
culturais do Aglomerado da Serra. Foram planejados e desenvolvi-
dos encontros nos quais os diversos participantes de grupos artísti-
cos e culturais puderam refletir sobre suas realidades e experiências
e, também, a partir do conhecimento de outros grupos culturais,
fomentou a valorização e a identificação com as diversas práticas
presentes na comunidade.

Uma das intenções do projeto era a de colaborar para dar visibilida-


de, bem como promover a circulação das pessoas pelo Aglomerado,
constituindo-se como um momento de trânsito e de trocas de ex-
periências que possibilitassem a todos/as lançarem um olhar mais
atento para seu local de moradia.

OBJETIVOS DO PROJETO:

- Mapear, de forma colaborativa e participativa, locais, expressões


culturais e afetivas junto aos grupos artísticos-culturais no/do Aglo-
merado da Serra.
- Contribuir para que os/as jovens possam olhar para suas realidades
de forma mais crítica a partir das oficinas, principalmente a de foto-
grafia.
- Colaborar, através de um material audiovisual, para a valorização e
uma possível ressignificação do território e as manifestações artísticas
e culturais do Aglomerado da Serra.

62
- Contribuir para a efetivação do direito à cultura e ao lazer dos/as
moradores/as
e fortalecer a identidade dos grupos culturais por meio do estímulo
às atividades culturais nas vilas que compõem o aglomerado.

- Dar visibilidade, por meio do registro audiovisual e a produção


do Guia Cultural, às diversas atividades culturais realizadas pelos
11 grupos nas vilas para os/as jovens, educadores/as, professores/as,
estudantes, artistas, produtores/as e grupos culturais do Aglomera-
do do Serra.

COMO SURGIU?

O projeto consistiu em uma iniciativa de três moradoras do Aglo-


merado da Serra e nasceu a partir do Curso de Promotoras Popula-
res de Defesa Comunitária, uma parceria do Ministério Público e da
Cáritas Brasileira, através do Programa “Diálogos Comunitários”,
sendo aprovado por meio do edital interno como uma proposta de
formação continuada do curso.

Em seguida, o projeto foi vinculado ao Observatório da Juventude,


um programa de ensino, pesquisa e extensão da Faculdade de Edu-
cação da UFMG, no qual uma das integrantes atua como bolsista de
extensão no âmbito das Ações Afirmativas.

Ademais, o projeto também foi aprovado por meio do edital das


Chamadas da PRAE (Pró-Reitora de Assuntos Estudantis da
UFMG), de Apoio à Projetos Estudantis, o qual permitiu a realiza-
ção de registros audiovisuais ao longo da execução do projeto.

63
OS ENCONTROS FORMATIVOS

Realizamos dez encontros formativos nos quais os diversos jovens


e adultos, ligados a grupos e coletivos, puderam refletir sobre suas
realidades e experiências e para que, a partir das trocas com outros
grupos culturais, pudessem valorizar e se identificar com as inúme-
ras práticas presentes nesta comunidade.

Em cada encontro, dois/duas convidados/as, internos e/ou externos/


as, mediavam as discussões. Tivemos a preferência para que sempre
estivesse presente, dentre os/as mediadores/as, alguém do Aglome-
rado e alguém de fora. Todas as oficinas aconteceram em diferentes
espaços do território, como escolas, centros culturais e associações.
Fizemos, de fato, um movimento no sentido de um Circuito, cum-
prindo um de nossos objetivos de (re)conhecer o território.

Os encontros aconteceram entre maio e setembro de 2018 em va-


riados equipamentos do Aglomerado, os quais foram escolhidos
coletivamente com base na consulta a cada participante do projeto,
ligados a 11 diferentes grupos e coletivos que foram mobilizados
para tal participação.

Dentre esses grupos, cuja marca é a diversidade, foi possível ver


desfilar diante de nossos olhos o teatro, as danças urbanas, diver-
sos estilos musicais, artes marciais, como o tae-kwon-do e capoeira,
grupos de religiosos, bem como diversos gêneros, identidades ra-
ciais, orientações sexuais com as quais os/as participantes se identi-
ficaram, pertenciam e/ou estavam vinculados.

64
DOS ENCONTROS, ALGUMAS INFORMAÇÕES...

1) Acolhida aos grupos


26 de maio, no Centro Cultural Vila Marçola

2) Grupos e projetos do Aglomerado da Serra: quem somos nós?


7 de julho, na Escola Municipal Professor Edson Pisani

3) Aglomerado da Serra: nosso território, nossas memórias, nossas


histórias e nossas identidades.
Convidados/as: Reni Cândido e Simone Moura
14 de julho, no Centro Cultural Vila Fátima

4) Aglomerado da Serra: uso e ocupação do território e mobilidade


urbana
Convidados/as: Fábio Diniz e Tarifa Zero (Ana Carolina, Mario
Correa, Leticia Birchal, Cléssio Mendes, Annie Oliedo, André Ve-
loso).
28 de julho, na UMEI Capivari

5) Uma cartografia dos espaços educativos do Aglomerado da Serra


Convidados/as: Melina Wuladesin’wu e Bim Oyoko
4 de agosto, no Espaço do Projeto Itamar

6) Aglomerado da Serra: políticas e políticos


Convidadas: Júnia Morais e Andréia de Jesus
11 de agosto, no Espaço do Projeto Itamar

7) Identidade e raça no Aglomerado da Serra


Convidados/as: Sheyla Santana Bacelar e Rodrigo Ednilson de Jesus
1 de setembro, na Escola Estadual José Mendes Júnior

65
8) Questões de gênero no Aglomerado da Serra
Convidadas: Luciana Cezário e Grupo de Teatro Morro Encena
(Hérlen Romão, Andresa Romão, Beatriz Alvarenga, Erica Lucas,
Thamara Selva, Sandra Sawilza)
8 de setembro, na UMEI Capivari

9) Aglomerado da Serra: discutindo a criminalização e resistência


das culturas de periferia
Convidados/as: Maíra Neiva e Pedro Lucas (Peoo Black),
15 de setembro, na Escola Estadual Professor Pedro Aleixo, no II
Sarau UBUNTU

10) Edital para captação de recursos para grupos e projetos: que


bicho é esse?
Convidados/as: Carol Abreu e Rômulo Silva
22 de setembro, no Espaço Instituto BH Futuro

DOS ENCONTROS, REGISTROS E REFLEXÕES...

Encontros são importantes espaços e tempos de reflexão, discussão


e aprendizado. Por isso, nós, do Circuito Serra, fizemos questão de
organizar nossos incríveis encontros em forma de um guia e com os
melhores momentos de cada encontro no YouTube.
Durante dez meses de 2018, esse projeto consolidou-se como um
importante espaço de trocas, com a realização de oficinas formati-
vas, rodas de conversa, entre outras atividades desenvolvidas em es-
paços diversos, junto a grupos artísticos e culturais do Aglomerado
da Serra. Entendemos que os grupos estão envolvidos em inúmeras
atividades e isto inviabilizou a presença contínua de muitos/as de-
las/es nos nossos encontros.
66
Neste sentido, destacamos a dificuldade e o desafio de se criar um
processo formativo com grupos culturais e sociais que estão inseri-
dos em outras ações. Há que se destacar, contudo, o notável esforço
dos grupos para que um ou mais de seus componentes estivessem
presentes nos encontros, o que permitiu, em vários momentos, re-
presentações desses diferentes coletivos artísticos nas atividades
propostas.

Este também foi um projeto que envolveu e reconheceu variadas


formas de participação com a presença de moradores, ex-morado-
res e não moradores do Aglomerado, que também participaram do
projeto e trouxeram suas contribuições. Entendemos que a forma
de participação e vínculo com o território não se limita a um CEP.
Território é identidade e afeto, é estar junto e misturado, é pensar e
se expressar sobre aquilo que nos une e nos conecta a este chão que
nos acolhe.

Destacamos também que, durante a execução deste projeto, fomos


convidados/as para atividades em universidades, escolas, audiências
públicas e para contribuir com ações dos grupos que trabalham no
Aglomerado da Serra, caso do Programa Mediação de Conflitos, da
SESP - Secretaria de Estado de Segurança Pública de Minas Gerais.

Durante nossas idas às escolas e universidades, em especial, ressal-


tamos nosso compromisso com outras leituras sobre o Aglomerado
da Serra, no sentido de contribuir para o engajamento de todas as
pessoas com assuntos relacionados às periferias. Dessas ações, tive-
mos resultados positivos com a presença dessas pessoas no encon-
tro final do Projeto e com potencialidade em suas formações.
Além disso, ressaltamos a importância de se continuar fomentando
a rede que tece os grupos artísticos e culturais do Aglomerado da
Serra. Ao longo dos encontros, percebemos que muitos desafios ex-
perienciados pelos grupos são comuns a todos. Assim, destacamos
que esse projeto não está no fim e sim no começo dessas conexões
que não terão fim.

67
Sendo assim, destacamos que esse projeto não se encerra aqui.
Estamos apenas no começo dessas tessituras, em um processo de
descoberta coletiva dos laços que nos unem. Sou porque somos
Aglomerado da Serra! Continuamos transitando por aqui, na nossa
quebrada, pois, como canta Marquim D’Morais, “o alto do Morro é
o melhor lugar para estar, porque aqui é o mais perto do céu que eu
consigo chegar, pisando em terra firme”. Gratidão!
PARA NÃO ACABAR...

“Neste infindável 2018


que assombrosamente prenuncia 64,
quando máscaras, moldes e morais
caem e saem dos seus frágeis retratos
Quando, em nome de Deus, da família e do cidadão do bem,
trocam humanidades por capital.
Em meio a este caos,
nasce Soberbo, Resistente, Pulsante e Luzente o Circuito da Serra,
do povo da Serra, pro povo da Serra.
E a história deste Circuito precisa ser contada,
precisa ser poemada.
Também, o que esperar de três mulheres potências?
Luisa tão pulsante,
Kika tão certeira e
Patrícia tão zelosa e atenta?
É óbvio que esta junção é vulcânica e daí são expelidas lavas visce-
rais, orgânicas, contagiantes.
E o produto?
Ah! O produto circula, circunda, circuita. E como num curto, o Cir-
cuito, na sua diversidade de formação, composição, geração e atua-
ção, ginga, permeia, serpenteia entre corpos, danças, lutas, teatros,
músicas, performances e poesias.
Este Circuito que, num tom ideal,
traz palavras-vivas que ecoam alto e
encurtam distâncias,
que são ditas, ouvidas, debatidas, refletidas, comungadas e reparti-
das.
E a cada palestra, palestrante,
tema, discurso e trocas,
estas palavras se fortalecem, se unem, se envolvem e ressignificam.
E se tornam alimento necessário à nossa “foto-síntese”.
A gente não tá falando à toa.
E assim, sem falsa modéstia e envaidecido,
o Circuito vem se historicizando, provocando encontros,
despertando re(descobertas), re(conhecimentos) e re(pertencimen-
tos).
E com Vida, nos convida a sair da nossa luta silenciosa
para uma luta maior e mais humana
para a formação de uma sociedade mais justa, onde o Amor seja
ensinado e
a Fé seja considerada princípio vital.
Por fim, creio que o Circuito Serra será ainda mais vivo nas próxi-
mas edições,
quando sua beleza nos será novamente servida,
quando sua luz/sol nos será novamente aquecimento.
Quando sua poesia novamente nos fortalecerá.
Luisa, Kika e Patrícia, a gente não tá falando à toa.
Vivas e vidas ao Circuito.”

Erica, Grupo de Teatro Morro Encena

Вам также может понравиться