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13/01/2019 “VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS - O CASO DO RIO DE ...

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Luiz Antonio Machado da Silva

“VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS -


O CASO DO RIO DE JANEIRO ATUAL

DOSSIÊ
Luiz Antonio Machado da Silva*

O artigo propõe uma descrição empírica da produção da linguagem da violência urbana


(entendida como uma prática organizada, uma gramática) e das respectivas implicações sobre
a ordem pública. Dois conjuntos de questões são abordados e relacionados: a) as relações entre
violência urbana, rotinas e organização das relações sociais na cidade; b) o impacto da mudan-
ça no debate a respeito das políticas relativas à ordem pública sobre as formas atuais da
criminalização e segregação territorial da pobreza, discutindo o estatuto das favelas como
dispositivo exemplar desse processo. O texto pretende preservar as particularidades locais
segundo as quais essas duas ordens de questões se apresentam como experiências vividas, de
modo que o foco central de atenção é o caso singular do Rio de Janeiro.
PALAVRAS- CHAVE: violência urbana, sociabilidade violenta, ordem pública, atividade policial,
favela, segregação urbana, criminalização da pobreza, rotina.

APRESENTAÇÃO as bibliográficas e exemplificações que não sejam


imprescindíveis, e abuso das notas de rodapé.
Este texto é uma tomada de posição pessoal A orientação geral que adoto neste artigo pode
que não se propõe como análise distante e fria, ser apresentada como um contraponto ao título de
mas também não se constitui em uma simples es- recente texto jornalístico de Soares (2009): Refundar
peculação. Nele, apresento algumas interpretações aspolícias. Meu interesse não é uma análise crítica
derivadas de uma recente pesquisa coletiva que daspolíciasesuaorganizaçãojurídico-institucional.
coordenei1 (Machado da Silva, 2008) e de muitos Focalizoasimplicaçõesdaexpansãodacriminalidade
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anos de trabalho em favelas. Tenho escrito vários violenta sobre a sociabilidade urbana. Isso, é claro,
outros textos sobre o tema, porém, para não can- envolve comentários sobre a atividade policial, mas
sar o leitor, menciono apenas esse livro como a eles não estão no centro de meu argumento. Para-
base a partir da qual desenvolvo o argumento que fraseando o texto citado, estarei sugerindo a neces-
se segue. Com a finalidade de deixar o mais claro sidade de uma “refundação” da sociedade, mais do
possível os pontos que, no meu entender, mere- que das polícias.
cem ser explicitados e discutidos, evito referênci- Inúmeras pesquisas indicam, para além de
todas as dificuldades de mensuração do fenôme-
no, que a quantidade de crimes violentos pratica-
* Doutor em Sociologia. Professor titular do Instituto
Universitário de pesquisas do Rio de Janeiro da Univer- dos nas grandes cidades brasileiras vem crescen-
sidade Cândido Mendes e professor associado ao Insti-
tuto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Fe- do significativamente nas últimas décadas. Entre-
deral do Rio de janeiro.
Rua da Matriz, 82. Cep: 22260-100. Botafogo - Rio de tanto, apesar de se tratar de um fenômeno de esca-
Janeiro, RJ - Brasil. lmachado@iuperj.br la nacional, a fim de não cair em generalizações
1
Agradeço a contribuição dos participantes-autores: Már-
cia Pereira Leite, Luis Carlos Fridman, Jussara Freire, apressadas, no presente texto focalizo especifica-
Juliana Farias, Lia de Mattos Rocha, Wânia Mesquita e
Pedro Paulo Oliveira. Os erros do presente artigo, é evi- mente o Rio de Janeiro. Tomo essa cidade como
dente, são de minha inteira responsabilidade. um caso singular, mas “bom para pensar” (Geertz,

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1989) o conjunto das grandes cidades brasileiras. sileiras e algumas de suas consequências, toman-
O crescimento de episódios de violência e do, repito, o Rio de Janeiro como caso particular.
seu desborde para áreas antes razoavelmente pro- A conclusão mais geral é que, por uma espécie de
tegidas, que vêm se acumulando há décadas, trans- efeito boomerang, o próprio enquadramento do
formou-o em um dos principais problemas da agen- debate é um dos elementos que reproduz o proble-
da pública, construído a partir da identificação de ma que se quer resolver. Entretanto, o centro do
ameaças reiteradas à integridade pessoal e argumento focaliza, em particular, um dos mais
patrimonial que passou a dominar as preocupa- perversos efeitos desse enquadramento – a
ções de amplas camadas da população carioca. criminalizaçãodaspopulaçõesresidentesnos“ter-
Adiante farei um breve comentário sobre a história ritórios da pobreza”, aqui representados pelas fa-
e a substância desse debate. No momento, basta velas. A ironia é que elas são chamadas de “comu-
indicar que um amplo e variado conjunto de con- nidades” pela polícia, pela população da cidade e
dutas (nenhuma delas, em sua materialidade, “no- pelos próprios moradores.
vas”), envolvendo direta ou indiretamente a força A expansão da violência urbana parece es-
física, foi reunido e ressignificado no plano práti- tar umbilicalmente ligada à economia internacio-
co-discursivo, gerando um campo de debate arti- nal da droga, em particular da cocaína, que se acres-
culado pelapolissêmicarepresentação de violên- centou à secular cadeia produtiva, muito mais
cia urbana. Em torno desse novo tópico se vem modesta, da maconha. O tráfico em pontos fixos,3
produzindo uma ampla e acalorada discussão a ao mesmo tempo em que, sendo ilegal, não pode
respeito de variadas propostas de políticas de se- prescindir do recurso à violência privada, confere
gurança, sempre visando a recuperar a ordem pú- uma base estável que permite a reprodução conti-
blica, percebida como ameaçada – ou mesmo des- nuada dessa forma de “capitalismo aventureiro”,
feita, nas posturas mais radicais que insistem na para usar a expressão de Max Weber. Por isso,
existência de um “caos urbano” – pelos atores de- muitas outras atividades criminais, violentas ou
finidos como responsáveis pela violênciaurbana.2 não, que raramente têm capacidade de se reprodu-
Nesse quadro, nada mais natural que o foco zir sem interrupção, tendem, direta ou indireta-
das atenções esteja dirigido aos aparelhos polici- mente, a gravitar em torno dele.
ais, com forte ênfase em sua função de controle A histórica segregação espacial, que
social, entendida de maneira restrita à dimensão corresponde a uma espécie de ecologia da desigual-
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coercitiva de repressão ao crime violento. Propo- dade social,4 favoreceu a que essa ponta do tráfico
nho-me a realizar aqui uma descriçãocrítica desse internacional, relacionada ao comércio a retalho
modo de construção coletiva do problema da ex- para o consumo final, tivesse um de seus canais
pansão do crime violento nas grandes cidades bra- concentrado nas favelas, entre outras “periferias”.

2
É evidente que me refiro a um complexo prático-
3
Grillo (2008) distingue com clareza o funcionamento do
discursivo que combina o sentimento difuso de medo, tráfico “na pista” e “nas bocas” (em geral situadas nas
uma (errônea) percepção de “ausência do Estado” e de- favelas). Este está territorializado e tende a se localizar
mandas de mais repressão, cujo resultado mais geral é a nos territórios da pobreza; o outro não se territorializa,
criminalização da pobreza. A construção dessa perspec- organizando-se em torno de uma “rede de circuitos” que
tiva tem sido objeto de uma crítica sociológica apaixona- pode cobrir várias cidades, inclusive no exterior. O pri-
da, em cujo epicentro – ao menos na sociologia brasileira meiro é ostensivo, o outro clandestino (Cf. também
– está a noção de formação de um “Estado Penal”, cujo Rafael, 1998.)
autor mais citado é Löic Wacquant (a leitura de Foucault 4
Não cabe, no espaço deste texto, detalhar e demonstrar
por Agamben, a partir da recuperação da categoria de empiricamente essa afirmativa sobre a segregação das
homo sacer, também tem estado presente, porém com áreas de favela. Posso apenas indicar que ela ocorre por
menor intensidade). Neste trabalho, proponho uma abor- meio da conjugação de diferentes processos, econômi-
dagem menos generalizadora e mais situada, enfatizando cos, políticos, jurídicos, sociais, simbólicos, etc., sobre
práticas sociais de atores competentes, constrangidos os quais há ampla literatura. Eles produzem um imagi-
por contextos cognitivos e morais cujos repertórios pos- nário dualizado sobre a cidade, que provoca, entre ou-
síveis não são ilimitados. (Inspiro-me no modelo da “so- tros resultados, um tratamento diferenciado das popu-
ciologia moral” francesa – Boltanski. e Chiapello, 1999, lações faveladas por parte do conjunto das agências pú-
Boltanski e Thévenot, 1991, Boltanski, 1990 – sem, en- blicas e (ou) privadas que, direta ou indiretamente, efe-
tretanto, filiar-me a ela.) tuam as atividades de controle social (cf. Valladares, 2005).

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Isso redefiniu a imagem pública desses territórios institucionais que combinam controle e proteção
e afetou profundamente o entendimento coletivo social ser muito mais frágil nos “territórios da po-
de seu lugar na organização urbana. breza” do que nas demais regiões da cidade (servi-
Introduzir essa questão na reflexão não é ços públicos deficientes, subalternidade política
trivial, de modo que é necessário qualificar como relacionada a uma incorporação social que ocorreu
está sendo aqui entendida a relação empírica entre pela via do clientelismo, longa tradição de
as favelas e o consumo final de drogas ilícitas.5 De informalidade do trabalho, etc.). É desnecessário
início, um alerta: o fato de que os “territórios da acrescentar que essa observação nada tem a ver com
pobreza”, de uma maneira geral, tendem a ser, as constantes referências à “ausência do Estado”.
mundo afora (cf., por exemplo, Venkatesh, 2000), Assim é que, por sua involuntária aproxi-
mais intensamente afetados pela violência policial mação prático-discursiva com o tráfico, o lugar das
e criminal associada ao comércio de drogas, não favelas na organização socioterritorial da cidade,
indica nenhuma dependência causal das disposi- que sempre foi um dos problemas centrais de sua
ções morais ou da conduta do conjunto dos mora- integração social, retorna de maneira renovada à
dores. Primeiro, porque as linhas de comando da cena pública.
cadeia produtiva estão fora dessas áreas e do pró- Esse é o quadro em que se desenvolve o pre-
prio território nacional. Segundo, porque é sabido sente trabalho. O ensaio está dividido em seções.
que a localização física do varejo está muito longe Após esta introdução, faço um pequeno resumo do
de restringir-se a esses espaços urbanos mais enquadramento analítico do problema e um breve
desfavorecidos, que respondem apenas pela mai- comentário sobre o seu desenvolvimento histórico
or visibilidade desse tipo de atividade. Finalmen- no caso específico do Rio de Janeiro. Em seguida,
te, porque tanto a estratégia locacional quanto o desenvolvo uma hipótese sobre o papel da organi-
pessoal nela ocupado dependem do tipo de droga zação institucionaldaatividade repressivarealiza-
transacionada. da pela polícia. Para terminar, a última seção discu-
Essas ressalvas, entretanto, não devem obs- te a relação, tal como está posta na atualidade, entre
curecer o reconhecimento de que, nas últimas dé- as favelas e a violência, e apresento algumas ideias
cadas, as favelas têm sido uma espécie de base de finais, que não chegam a ser propriamente conclu-
operações do crime violento relacionado ao con- sões. Para as questões aqui tratadas, simplesmente
sumo final de maconha e cocaína (e, mais recente- não há conclusões definitivas.

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mente, de crack), nem de que essas redes de vare-
jo exercem força centrípeta sobre outras práticas
ilícitas violentas. Como já disse, isso é facilmente O PROBLEMA
percebido pelo conjunto da população, residente
ou não, devido à própria massividade da violên- Pressupostos e enquadramento analítico
cia do tráfico e de sua repressão. Por sua vez, o
estabelecimento de “bocas” nas favelas deriva do É no debate público, em suas diversas are-
fato de o funcionamento dos sistemas político- nas, que se constrói uma compreensão comparti-
5
O comércio a retalho da maconha sempre foi moralmen- lhada (mas não homogênea nem unívoca) a respei-
te tolerado entre os segmentos inferiores, gozando de to da natureza e do funcionamento de setores da
uma semilegitimidade local. Essa aceitação de uma ativi-
dade juridicamente ilícita foi ainda mais ampla no caso vida social que aparecem como relevantes. É claro
do jogo do bicho, facilitada por suas relações com as
escolas de samba (Chinelli; Machado da Silva, 1997). A que isso inclui, além da dimensão estritamente
cocaína, porém, é moralmente repudiada, inclusive pe-
los próprios traficantes, que justificam seu uso por ra- cognitiva, as avaliações morais dos atores envolvi-
zões “medicinais” (para manterem-se acordados por toda dos sobre como eles mesmos e os demais devem
a madrugada). A aproximação entre o tráfico e as escolas
de samba, que parece estar se intensificando, também é agir. Dito de outra maneira, o enquadramento cole-
muito criticada, ao contrário do que ocorria com a liga-
ção das escolas com o jogo do bicho. tivo de um problema deriva de e corresponde à

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produção de uma linguagem (uma “gramática”) Estou convencido de que se deve considerar
prática, que constitui a referência comum nas com seriedade e em seus próprios termos o que é
circunstâncias e permite um amplo, mas não infi- discutido como violência urbana, sem traduzi-la
nito repertório de variações possíveis. para os quadros de entendimento convencionais.
A violênciaurbana é o centro de uma gra- Nessa direção, minha hipótese, em uma apresenta-
mática que produz uma compreensão prático-mo- ção minimalista, é que a “sociabilidade violenta” é
ral de boa parte da vida cotidiana nas grandes ci- uma forma de vida singular e muito complicada
dades. Ninguém precisa definir a expressão, por- para ser apreendida segundo os modelos disponí-
que ela é a referência que confere sentido às ativi- veis. Nela, a força física, com ou sem instrumentos
dades e ao debate coletivo. Nesse sentido, a vio- e tecnologias que a potencializam, deixa de ser um
lência urbana articula um complexo de práticas meio de ação regulado por fins que se deseja atin-
que constituem boa parte do conflito social nas gir, para se transformar em um princípiodecoorde-
cidades brasileiras. Nesse sentido, é inadequado nação (um “regime de ação”) das práticas. Em ou-
negar seu caráter factual, apresentando-a como sim- tras palavras, no limite, a violência se libera da
ples “paranoia”, ficção engendrada pela mídia ou regulação simbólica, isto é, de sua subordinação às
algo assim, como acontece em parte da literatura. restrições e condicionamentos representados pelos
Mas o que a violênciaurbana discute? Mi- fins materiais ou ideais a que, sob outras circuns-
nha hipótese é que ela associa o uso de meios vio- tâncias, serviria como meio para sua obtenção. Ela
lentos à noção leiga de crime (a qual tem relação, se torna um fim em si mesma, inseparável de sua
mas não pode ser reduzida ao crime como figura função instrumental como recurso para a ação. Em
do direito penal), enfatizando o quanto essa com- suma, como, aliás, sugere o próprio sentido do ter-
binação ameaça permanentemente, e não apenas mo “princípio”, ela é sua própria explicação e se
eventualmente, a integridade física e patrimonial autorregula. Como a atualidade urbana brasileira
das pessoas. Entretanto, não se trata de mero sinô- parece demonstrar, isso não cancela o prossegui-
nimo de crime violento, que não passa de simples mento de práticas coordenadas, nem a reprodução
coleção de práticas violentas desviantes, intermi- de conjuntos de atores ligados por compartilharem
tentes, intersticiais e sempre referidas à ordem o mesmo princípio, todos ajustando suas práticas a
dominante. Minha hipótese é que a linguagem da avaliações de hierarquias de força, ainda que essas
violência urbana problematiza uma ordem social avaliações sejam sempre tópicas, instáveis e tempo-
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específica ou, em outras palavras, reconhece um rárias.7 Para fechar este ponto, reitero que, ao me-
padrão de sociabilidade que venho chamando de nos no Rio de Janeiro, os “portadores” da “sociabi-
“sociabilidade violenta” e cujos contornos há algum lidade violenta” são, tipicamente (mas não exclusi-
tempo procuro apreender. Assim, ela é o referente vamente), os bandos de traficantes responsáveis
significado pela violência urbana. A relação pelo funcionamento das “bocas” tendencialmente
indissociável entre violência urbana e “sociabilida- localizadas nos “territórios dapobreza”.
de violenta”, que vem se construindo e consolidan- Não resta dúvida de que as implicações teó-
do nas últimas décadas, vista à distância talvez con- ricas e filosóficas dessa questão são imensas, mas
tenha boa dose de exagero na percepção do perigo não creio que essa dificuldade deva impedir ou
envolvido, mas é preciso admitir que a violência retardar seu tratamento. Estou convencido de que
urbana, como um conjunto de práticas que identi- é necessário compreender, em seus próprios ter-
ficam uma ordem social, não é uma fantasia. 6
vida singular. Nesse sentido, em sua dimensão cognitiva,
6
As diferentes perspectivas a partir das quais a ciência a noção leiga de violência urbana seria até mesmo mais
social vem abordando o tema da ordem pública não le- “realista” do que as análises acadêmicas.
vam em consideração justamente o que me parece crucial 7
Práticas coordenadas pela força, evidentemente, apre-
no debate cotidiano: que está constituído um padrão de sentam um nível muito reduzido de regulação simbólica
sociabilidade, distinto do simples aumento quantitativo e produção de sentido, o que é um desafio para a própria
das condutas violentas e expressão de uma forma de noção de “social”.

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mos, o núcleo duro da forma de vida e da ordem dúvidas cada vez mais intensas quanto à continui-
social correspondente, captadas pela violência ur- dade das rotinas estimulam expectativas e deman-
bana, aspecto que considero decisivo na questão das de isolamento, afastamento e evitação do Ou-
da segurança pública. tro, que seria o responsável pelo perigo de inter-
Passo agora a uma especulação que também rupção no fluxo das atividades diárias.
não posso desenvolver neste texto, sobre a relação Em outras palavras, a ameaça representada
entre a linguagem da violência urbana e a forma pelo perigo e a desconfiança das “classes perigosas”,
atual dos conflitos de classe.8 Tais conflitos, uma até um passado relativamente recente, concentrava a
vez que variam no tempo e no espaço, são os res- atenção sobre as vicissitudes da reprodução da do-
ponsáveis pelas variações nas modalidades da minaçãodeclasseorganizadapelasinstituiçõesesta-
integração social, pois constituem o elemento dinâ- tais de regulação do conflito social, cujo epicentro
mico que, nas formações capitalistas, define o Ou- era a possibilidade de uma revolução. Entretanto, a
tro e estrutura as relações com ele. Tradicionalmen- partir do debate que produz a violência urbana, des-
te, tais relações são dotadas de “profundidade”, isto loca-seereduz-seofocoparaasinteraçõesinterpessoais,
é, articulam-se em um constante movimento de ida com as disputas se concentrando na possibilidade
e volta entre generalização e institucionalização de interrupção, pela força, da continuidade das roti-
eentre particularização e personalização, que nas. As “classes perigosas” reaparecem, assim, en-
Giddens (1991) denominou de “desencaixe-encai- carnadas no “vizinho diferente”, com o perigo e a
xe”. Minha hipótese é que, com a emergência da desconfiança envolvidos na relação com o Outro sen-
“sociabilidade violenta” e sua apreensão pela vio- do definidos no imediatismo da ameaça à integrida-
lência urbana, ao menos no Rio de Janeiro esse de física e patrimonial de cada um, que são os pres-
padrão secular de sociabilidade perdeu a profundi- supostos da continuidade regular das atividades ro-
dade e “achatou-se”, dificultando a produção das tineiras. A consequência de tudo isso é que o tema
mediaçõescaracterísticasdaquelemovimento.Cada da ordem e da integração social torna-se quase uma
vez mais as relações com o Outro são vividas e pen- obsessão, mas, ao mesmo tempo, o esforço de orga-
sadas estritamente no nível dos contatos nização dasociabilidade reduz-se atentativas de iso-
interpessoais que ocorrem durante o exercício das lamento e a uma construção restrita da alteridade,
rotinas cotidianas. Essas interações, por sua vez, que,nolimite,nãopassademeravariaçãoentreiguais.
passam a ser evitadas ao máximo, uma vez que é Os efeitos sobre a questão da segurança

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nelas que estaria contido o perigo de interrupção da pública, como é fácil de compreender, são explosi-
simples repetição regular das atividades ordinárias. vos. Antes de qualquer coisa, porém, é preciso
Dessa forma, é no plano interpessoal que as rela- considerar que, embora afetem toda a população,
ções com o Outro se convertem em tema de descon- eles não são homogêneos. Nos territórios da po-
fiança, medo e insegurança.9 Em consequência, as breza, háumainapelávelcontiguidade espacialcom
8
Em meados dos anos 1980, a partir de Offe (1985), ini- a “sociabilidade violenta”, gerando condições de
ciou-se uma discussão sobre em que medida o trabalho
continuava ou não a ser a “categoria sociológica chave”, vida críticas para a população moradora. As cama-
isto é, o conceito central da ciência social. Atualmente, das abastadas dispõem de mais recursos (materi-
aquele texto é apenas parte da história da disciplina,
embora a relevância analítica do conceito continue sen- ais e simbólicos) para autoisolar-se, além de já vi-
do um divisor de águas entre os paradigmas vigentes.
Não pretendo retomar essa questão. De minha parte, verem em regiões física e socialmente mais afasta-
não duvido da validade do conceito de classe na atuali-
dade das formações sociais ocidentais. Meu ponto é ape- das dos “portadores” da “sociabilidade violenta”.
nas analisar o efeito da violência criminal e policial sobre Na pesquisa que o grupo que coordeno realiza no
a sua forma, no que diz respeito a certas esferas das
práticas no Brasil urbano.
9
Seria possível descrever essa mudança como uma passa- ruptura das rotinas cotidianas mais imediatas, e não da
gem da imagem das “classes perigosas” (Chevalier, 1984) estrutura social como um todo. O fantasma pode ser o
para a de “inimigo próximo” (Bauman, 2000, 2001). No mesmo – a luta de classes –, mas sua roupagem (junto
primeiro caso, a metáfora liga-se ao perigo de subversão com o modo de lidar com essa nova forma) muda signi-
político-econômica e de status; no segundo, ao perigo de ficativamente.

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momento, começamos a explorar a ideia de umaurbana, que tematiza os sentimentos difusos de


“sociabilidade fortaleza”, sugerida por Luis insegurança que pesam sobre as expectativas de
d d h d l d C ld íf d dá
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Fridman a partir do conhecido livro de Caldeira prosseguimento pacífico das rotinas diárias e ge-
(2000) sobre os condomínios em São Paulo: ela ram a mentalidade de “segurança apesar dos ou-
seria uma resposta reativa, uma das variantes pos-tros”, no lugar da “segurança com os outros”, para
síveis da gramática daviolência urbana. usar as conhecidas expressões de Bauman (2001,
Esse exemplo envolve um caso de transfor- 2000) na sua interpretação do “inimigo próximo”.
mação da mencionada barreira visando ao isola- Os processos que produzem essas transfor-
mento do Outro em produto econômico ligado àmações gerais não são homogêneos. Eles têm par-
atividade empresarial, em que a função repressivaticularidades locais que devem ser consideradas,
de polícia está privatizada e remetida ao mercado.uma vez que afetam os repertórios disponíveis no
No entanto, ele é parte de um processo mais geral debate público sobre as formas de controle social
que envolve adelegaçãodas camadas mais abasta- e, em particular, sobre a compreensão da natureza
das ao conjunto dos aparelhos de repressão (aí da atividade policial.
incluídos, como acabo de dizer, os aparelhos pri-
vados, não-estatais) para afastar o Outro.
Todos esses pontos serão retomados adian- A produção daviolência urbana. O caso do Rio
te. Aqui, basta fechar o comentário reiterando quede Janeiro11
venho sugerindo, como hipótese de trabalho, que
houve uma profunda mudança na experiência da Esse quadro parece ser produto da conflu-
vida nas grandes cidades. A linguagem dos direi-ência de um amplo e complexo conjunto de
tos submerge ou se ressignifica pelo impacto da macroprocessos de longo prazo, alguns de escala
demanda aos aparelhos policiais de garantias ime-global (penso, por exemplo, na variedade de modu-
diatas e a qualquer preço de proteção pessoal e lações do individualismo contemporâneo, uma das
patrimonial, que não são mais compreendidas porquais seria a própria “sociabilidade violenta”). Em
meio da noção de direitos civis. 10
termos mais concretos, porém, relacionados aos
Em resumo, a partir do reconhecimento de conflitos que geram a agenda pública, pode-se dizer
uma “sociabilidade violenta”, a linguagem dos di- que as mudanças até aqui descritas constituem o
reitos deixou de articular de maneira unívoca o desdobramento imprevisto de certas medidas toma-
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conflito social (e os medos a ele associados), pas-das ainda durante o governo militar e da reação a
sando a competir com a linguagem daviolência elas, que foi parte da luta pela redemocratização.
10
Tenho insistido na demanda pela proteção a qualquer Vejamos, brevemente, esse ponto.
preço das rotinas diárias, sob a forma de um processo de
autoisolamento que restringe a sociabilidade. Sua Começo por recordar que, até a ditadura
contraface, porém, sobre a qual faço menos carga para
não perder o foco do argumento, é uma crescente indife- militar, o controle rotineiro das atividades típicas
rença quanto à vida institucional como um todo. Questi- do lumpenproletariado urbano – contravenções,
ona-se não apenas a eficiência, mas a própria integridade
das instituições estatais como responsáveis, em última crimes contra a pessoa e o patrimônio, prostitui-
instância, pela organização e manutenção de regras de
convivência que têm sido cada vez menos seguidas. As ção, varejo de mercadorias contrabandeadas, co-
ideias (errôneas, mas isso não importa aqui) de “ausência
do Estado” não podem ser separadas da indiferença para mércio de drogas ilícitas (quase exclusivamente
com seu funcionamento, pois, afinal de contas, é o “Bra- maconha), etc. –, era uma questão socialmente
sil real” que importa nessa perspectiva. Essa indiferença,
se, de um lado, favorece as críticas a respeito da ineficácia periférica e submersa, que despertava pouca aten-
da atividade policial, por outro, reforça a mencionada de-
legação que garante a autonomia que os aparatos de re- ção pública, cujo controle sempre foi delegado ao
pressão recebem, pois o “Brasil formal” seria apenas uma
ficção. É claro que estamos diante de uma inconsistência
11
Partes desta seção constituem uma versão muito modifi-
lógica, pois a prática policial costumeira é vista, ao mesmo cada de Machado da Silva, Leite e Fridman (2005). A lite-
tempo, como problema e como solução, porém isso, mais ratura sobre os governos Brizola, de que falarei adiante, já
uma vez, não vem ao caso. É claro, também, que essas é significativa, mas uma análise detalhada não é intenção
questões poderiam ser tratadas sob outra ótica, a da deste artigo. Para a discussão que farei, é particularmente
disjunção entre Estado e sociedade. relevante o livro de Buarque de Hollanda (2005).

288

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arbítrio da autoridade policial. Esse estado de coi- acabaram favorecendo a visibilidade altamente
sas apenas era quebrado nas raras ocasiões em quepolitizada das funções repressivas de rotina; c) o
algum episódio mais espetacular saía das últimas fato de que a truculência característica das ativida-
páginas dedicadas aos acontecimentos policiais e des policiais passou a atingir também membros
chegava às manchetes da grande imprensa “séria” das camadas médias. Foi por esse caminho que o
(das publicações que cobriam regularmente esses crime comum violento entrou na consideração
acontecimentos dizia-se, com desprezo e desinte- pública e se tornou um problema a galvanizar as
resse, que “torcendo, sai sangue”). De passagem,atenções.12
note-se que isso explica boa parte do bem docu- A reorganização da atividade repressiva a

mentado caráter truculento da atividade repressi- partir da Lei de Segurança Nacional trouxe à tona
va (Bretas, 1988). as péssimas condições de vida nos presídios.
Com o advento dos governos militares, a Embora nunca tivessem sido segredo, só naquele
d l d l l b d d b
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13/01/2019 “VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS - O CASO DO RIO DE ...
ideologia da segurança nacional progressivamentemomento elas se tornaram objeto de intenso deba-
destacou, politizou e trouxe para o escrutínio pú- te, estimulado pelas notícias de tortura que se
blico o tema do controle social. Como, no espaçoavolumaram com o enfraquecimento do poder dos
deste trabalho, não é possível entrar em detalhesmilitares e com a presença, nas cadeias, de mem-
sobre essa transformação crucial, apenas mencio- bros menos desprovidos de recursos materiais,
no dois de seus marcos. O primeiro deles é a sociais e simbólicos do que os que costumavam
militarização da polícia, que desloca o eixo de suafrequentá-las.
atuação repressiva, fazendo-o passar das ativida- Não é de estranhar, portanto, que a questão
des rotineiras de combate ao crime comum para das formas legítimas e ilegítimas de manutenção
questões definidas como relativas à segurança do da ordem social, como tópico específico de deba-
Estado. Com isso, produziram-se as condições, se te, entre na consideração pública e se torne parte
não propriamente formais, ao menos oficiosas, para integrante da campanha pela redemocratização,
que se explicitasse a autonomia dos aparelhos embora em um primeiro momento de forma um
policiais em relação às restrições legais, os quaistanto diluída pela ampla coalizão interclassista que
acabaram perdendo o pouco que tinham de convergia na crítica ao “entulho autoritário”. Nes-
enraizamento e legitimação popular. se nível de generalidade, essa crítica acabava por
A segunda medida que marca o destaque e aproximar a legislação de exceção que regia a re-

CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010


politização do tema da ordem pública está relaciona-pressão policial de outra discussão, a que girava
da ao teor da Lei de Segurança Nacional. Como rea- em torno do corporativismo da legislação traba-
ção aos assaltos a banco e sequestros protagonizadoslhista e sindical.
pelos grupos ligados à luta armada, essa lei desfez
as fronteiras judiciais entre o crime comum e o 12 Data da época o surgimento da Falange Vermelha, que se
crime político. Acresce que, ainda que não hou- propunha a organizar politicamente os presos comuns, a
partir de uma ideologia de denúncia de tratamento ilícito
vesse essa intenção, talvez ela tenha sido a primei- Note-se que essecopiada
e de autodefesa dos presos políticos (Coelho, 2005).
fato ainda marca a grande distância en-
ra medida estritamente repressiva a alcançar em tre as disputas da época e a emergência da “sociabilidade
violenta”, uma de cujas características principais é justa-
particular as camadas médias, de onde provinha mente não gerar ideologia nem doutrina justificadora. Por
outro lado, ressalte-se também que é nesse momento,
boa parte dos militantes da luta armada que foram mediante sua politização, que a violência criminal come-
o motivo da elaboração da lei. ça a sair dos interstícios da ordem social, de modo que
esse pode ser considerado o marco zero das questões que
Essa é a matriz do atual “problema da segu- discuto aqui. Quanto à violência policial, que parece des-
dobrar-se na constituição das milícias de hoje (também
rança pública”: a) o deslocamento do controle so- simbolicamente organizadas e justificadas, porém segun-
cial rotineiro para as questões da segurança do do o modelo das máfias, cuja atividade típica é a cobrança
de proteção), tenho pouco a dizer neste texto, porque
Estado; b) a militarização e o reforço da autonomia minha atividade de pesquisa não as cobre o suficiente.
(Sobre a atualidade das milícias, cf. Souza Alves,2008;
de funcionamento dos aparelhos policiais, que Cano; Ioot, 2008; Mesquita, 2008.)

289

“VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS...

Como se verá adiante, a clara dissociação en- tado do Rio de Janeiro. É desnecessário lembrar
tre essas duas questões – a proteção do trabalho e a que Brizola sempre foi profundamente ligado à
manutenção da ordem – ocorreu durante a vitoriosaprimeira versão do desenvolvimentismo – o
campanha de Leonel Brizola ao governo do estado trabalhismo getulista –, tendo sido essa a base de
(1983-1986). Antes, porém, deve-se notar que, à épo-toda a sua trajetória pessoal, tanto do prestígio e
ca, os fundamentos materiais da linguagem dos di- importância política quanto da perseguição e opo-
reitos já vinham se esgotando devido à crise que en-sição que enfrentou.
cerrou o “milagre brasileiro”, central na formulação Como era de se esperar, sua campanha foi
da chave econômica da superação da pobreza e da marcada pela ênfase nos grandes temas nacionais,
proteção do trabalho que marcou o “consenso formulados segundo a gramática dos direitos do-
desenvolvimentista”, característico do longo perío- minante à época, na mesma linha que o tornou
do de crescimento acelerado, tanto em sua versão um grande líder de apelo popular. Uma vez eleito,
“popular” quanto “militar”.13 Creio ser plausível afir- entretanto, como governador de estado, ele não
mar que a década de 1970 corresponde a um agitadodispunha de recursos institucionais de poder que
período de desmonte e inversão da ideologia lhe permitissem interferir diretamente na política
desenvolvimentista, cujas possibilidades de realiza- econômica nacional e em seu ordenamento jurídi-
ção concreta mobilizavam as esperanças de segmen-co. Assim, adotou várias outras medidas a seu al-
tos cada vez mais restritos da população urbana. cance, que procuravam contemplar os interesses
Em resumo, o debate político em torno dode sua base social, sendo mais conhecida a que

processo produtivo e da desigualdade econômica tentava reorientar toda a estrutura estadual de edu-
foi abafado, de um lado, pela paralisação do cres-cação, cuja pedra de toque são os famosos CIEPs,
cimento e, de outro, pela generalização do movi-projetados por Oscar Niemeyer. Mas lançou tam-
di d M b f bé l d l l d
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13/01/2019 “VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS - O CASO DO RIO DE ...
mento contra a ditadura. Mas reapareceu sob a for-bém outros programas, alguns deles voltados para
ma de remoção do “entulho autoritário”, não maisa questão fundiária e habitacional das favelas.
em uma formulação econômico-produtivista dos Além disso, ainda como parte das respos-
direitos, e sim como uma discussão de teor políti- tas a seus eleitores, Brizola procurou tomar medi-
co-institucional sobre o reordenamento jurídico das das de defesa dos direitos dos presos. Vale repetir
relações trabalhistas e sindicais. 14 que as péssimas condições carcerárias, tradicionais
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010 Esse foi o quadro em que ocorreu a primei- no Brasil, que se tornaram uma questão pública
ra eleição de Leonel Brizola para o governo do es- ainda na ditadura, pelas razões já esboçadas, ajus-
tavam-se às preocupações de um governo que se
13
O viés econômico do desenvolvimentismo, articulado
como disputa em torno dos direitos sociais, parece con- queria popular e voltado para a defesa dos direitos
tinuar a ser a tendência amplamente dominante. Entre- humanos. Ao lado da intervenção sobre a política
tanto, no presente, sua atuação vem se dando com sinal
invertido, aplicado contra a linguagem dos direitos, ape- carcerária, o governador adotou o respeito aos di-
sar dos esforços de setores da esquerda (certos segmen-
tos dos partidos organizados, alguns formadores de opi- reitos civis como premissa da atuação policial na
nião com presença na mídia, bolsões de pesquisadores
na academia, etc.). Eles vêm tentando reintroduzir uma atividade de controle social nas favelas, bairros
crítica mais direta às políticas econômicas vigentes, de
modo a fazer retornar o foco para a expansão do empre- populares e periferias. Nessa linha, proibiu as
go, a proteção do trabalho, etc., como formas de evitar a operações massivas das forças policiais nos mor-
vulnerabilização social (Castel, 1995).
14
Mesmo não sendo esse o objeto do presente trabalho, é ros da cidade, que então começavam a se tornar
interessante reiterar as ambiguidades envolvidas na for- corriqueiras e exorbitavam do recurso à violência,
ma de apreensão da pobreza durante essas transforma-
ções. Se, a partir do “consenso desenvolvimentista”, aterrorizando os moradores. É de se ressaltar que
por um lado, ela se politiza, deixando de ser compreendi-
da na chave da carência e da necessidade material, para tal proibição foi resultado de um acordo do gover-
reaparecer na linguagem dos direitos humanos, por ou-
tro, focada no debate sobre o ordenamento jurídico das nador com as lideranças locais, como medida ex-
relações de trabalho, a própria noção de direitos huma- plícita de proteção da integridade física dos mora-
nos se contrai, voltando a concentrar-se na redução de
carências materiais. dores dessas áreas contra a violência policial. Em

290

Luiz Antonio Machado da Silva

resumo, importa sublinhar que as limitações do Resumindo, a atuação de Brizola polarizou o


cargo levaram Brizola a deslocar o foco de sua atu-debate em torno das condições de possibilidade do
ação, dos direitos sociais para os direitos civis. prosseguimento pacífico das rotinas cotidianas, o
Tudo indica que essa orientação expressava que se tornou uma questão crucial nas disputas
um duplo movimento. Por um lado, ajustava-se a político-partidárias, saindo da semiobscuridade se-
um momento histórico e a uma posição institucionalcular em que estivera mergulhado e tornando-se um
que não favoreciam propostas de mudança na po- tópico do mercado político.15 No momento inicial,
lítica econômica, sobretudo no que se refere à pro-as discussões tematizavam a ideologia da segurança
teção do trabalho. Por outro, (re)construía a basenacional, o autoritarismo, a violência estatal e a au-
de apoio ao governo com uma bandeira de luta tonomia dos aparelhos policiais. Na primeira meta-
alternativa, mas não incompatível com a orienta-de da década de 1980, o mesmo problema conti-
ção igualitária e includente, de inquestionável apelonuou a mobilizar a atenção, alterando-se, porém, a
popular, que Brizola quis tornar sua marca. natureza de seu enquadramento. O foco continuou
Posicionando-se a favor de um tratamento dignoa ser o controle do lumpenproletariado, mas, ago-
aos presos comuns e aos moradores de favelas e ra, sob outras condições, não sendo mais possível
bairros pobres e periféricos, ele e seu grupo políti-fazer retroagir as soluções à “naturalidade” anteri-
co justificavam sua posição de defensores “dos que or que as situava como um assunto não discutido,
não têm voz”. espécie de “segredo público”. Profundas transfor-
Assim é que o apelo direto às massas, mações nas atividades criminais ocorreram, cujo
indissociável de sua imagem pública, que provinha motivo mais imediato foi a já mencionada entrada
do trabalhismo e constituiu a força e a fraqueza deda cocaína no varejo das drogas ilícitas, aproxi-
toda a sua trajetória, marcou a atuação de Leonel mando, de um lado, o pequeno criminoso de uma
Brizola no governo do estado. Sua figura, por si só,poderosa cadeia produtiva subterrânea que, por
já seria condimento suficiente para polarizar a re- falta de proteção institucional, precisa da violên-
cepção de suas ideias e programas. Mas essas dire-cia privada para reproduzir-se16 e, de outro, au-
trizes, polêmicas em si mesmas, foram adotadas emmentando o retorno financeiro da corrupção poli-
um momento que já seria fortemente radicalizado,cial associada à secular autonomia operacional e
mesmo sem esse ingrediente adicional. consolidada durante a ditadura, segundo um pro-
À mesma época, o fim da luta armada e a
Maio/Ago. 2010

15
Tem havido uma certa oscilação quanto aos resultados
abertura abrandavam a repressão política e recom- eleitorais entre os dois polos – repressão a qualquer cus-
punham os privilégios que sempre salvaguarda- to ou controle democrático da atividade policial – desse
ram as camadas médias dos efeitos mais duros da debate, com prevalência da alternativa mais “dura”. En-
tretanto, o detalhamento desta questão não cabe no es-
i id d li i l l d d i paço deste ensaio
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CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, M


atividade policial, levando-as a retomar o desinte- 16paço deste ensaio.
Este é um ponto que tem sido interpretado como “orga-
resse pelos bastidores da repressão ao crime. Para- nização” da criminalidade em grupos e facções via de
lelamente, já há algum tempo, elas vinham se res- regra pensados como “empresas” e “cartéis” sem reco-
nhecimento (nem, portanto, proteção ou regulação) le-
sentindo da expansão do crime violento (comum, gal, com uma estrutura interna familística, baseada na
lealdade e na honra pessoal. Não disponho de informa-
não político), que não mais se concentrava nos ções seguras quanto a outros níveis da cadeia produtiva.
Porém no que diz respeito à participação do crime na
espaços urbanos periféricos. Adicionava-se a isso ponta final do varejo, que afeta mais diretamente as
o medo e a insegurança experimentados pelas pró- dificuldades no prosseguimento das rotinas diárias, con-
sidero plausível insistir em que, de fato, há uma certa
prias camadas populares, ainda mais afetadas pela organicidade em seu funcionamento – como de resto
em qualquer prática recorrente –, mas ela não pode ser
criminalidade violenta, na medida em que, nos pensada segundo nenhum modelo estruturado de “em-
presa” (como nas repetidas menções às máfias, exércitos,
territórios da pobreza, sobretudo nas favelas maio- etc.). Venho sugerindo que se trata, antes, de uma coor-
res e mais centrais, os criminosos começavam a denação difusa entre atores individuais muito frouxa-
mente agregados, em relação aos quais é difícil identificar
sair da clandestinidade, passando a circular, ar- interesses e objetivos doutrinariamente formulados e
compartilhados, além de um aqui-e-agora muito limita-
mados, pelas ruas internas. do, ou seja, que se trata da “sociabilidade violenta”.

291

“VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS...

cesso que Misse (1997) chamou de “produção dedevido à proximidade física, lida como fonte de
mercadorias políticas”. contágio moral, com o pequeno segmento do
A desconfiança, o medo e a insegurança que lumpenproletariado envolvido com o crime vio-
esta nova situação provocava apenas reiteravam aslento, cujas atividades adquiriam nova feição e
demandas difusas e generalizadas por aumento dapassavam a assustar a população da cidade. Dessa
repressão. Naquele momento, elas se concretiza-forma, a atuação de Brizola teve significativo im-
vam no endurecimento em relação a presos, crimi-pacto na configuração dos conflitos de classe, ao
nosos e suspeitos em geral.17 A tomada de posição redefinir a disputa simbólica em torno da ordem
de Brizola a favor dos direitos civis adotava direção social e, portanto, o debate a respeito da segurança
contrária a estas expectativas de aprofundamento pública. Por outro lado, essa transformação aca-
do controle social nas favelas (que inclusive volta-bou por abrir espaço para a gramática da violência
vam a contemplar sua remoção, “solução” que pa-urbana, muito diferente das posições do governa-
recia sepultada com a redemocratização e a crise dodor e de seu grupo político (paradoxalmente, o
Banco Nacional de Habitação). Por tudo isso, for- sucesso parece ter sido um dos principais respon-
mou-se a opinião de que Brizola havia escolhidosáveis por seu ocaso político).
governar a favor do lumpensinato e contra o res- Em síntese, na primeira metade da década
tante da cidade. de 1980, a radicalização dos termos da competição
Assim é que, à medida que os episódios de político-eleitoral consolidou o enquadramento do
violência física cresciam no Rio de Janeiro em debate em torno do controle do crime violento,
frequência, intensidade e, sobretudo, em exposi-desnaturalizando, explicitando e trazendo para a
ção na mídia, expressando o novo formato do cri- disputa o tradicional recurso à coerção e à violên-
me violento apreendido a partir das metáforas dacia física que sempre caracterizou o disciplinamento
guerra (Leite, 2001) e da “cidade partida” (Ventu- das camadas populares. Isso ocorreu em um mo-
ra, 1994), esse tema passou a dominar os debates, mento desobrepolitização da experiência históri-
as propostas de intervenção e as escolhas eleito- ca, com forte ênfase no quadro jurídico-institucional
rais subsequentes. e intensa disputa político-partidária. Polarizaram-
Com as ressalvas que toda generalização se, assim, as tomadas de posição que criticavam a
desse tipo merece, creio ser possível afirmar queviolência ilegítima, mas institucionalizada, caracte-
na primeira metade da década de 1980 armaram-rística da prática policial, e as que criticavam a vio-
CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010

se os termos da disputa que dá origem ao debatelência contida na prática criminal, propondo uma
atual sobre o problema da segurança pública. forma militarizada e excludente de tratar essas ques-
Brizola teve o mérito de, ajustando-se à situação,tões.18 Como resposta às orientações dos brizolistas,
tornar concreta a questão dos direitos humanos tornava-se doutrinariamente racionalizada e publi-
então em curso, ao propor-se como porta-voz dascamente explicitada a experiência de ameaça à con-
camadas populares. Isso ocorreu justamente no tinuidade das rotinas vivenciadas por amplas ca-
momento em que elas começavam a ser criminalizadas madas da população, segundo uma ótica que abafa-
va a disputa sobre a ampliação dos direitos civis
17
A radicalidade da transformação da linguagem e a pola-
rização que separa essas duas tomadas de posição domi- característica do período de redemocratização. En-
nantes podem ser avaliadas na frase emblemática de um
editorial do segundo diário mais lido da cidade, dez anos colhia-se o debate sobre a expansão da cidadania,
após o primeiro governo Brizola: “Não há como invocar
‘direitos humanos’ quando eles só beneficiam homici-
despolitizando-o e reduzindo-o a uma simples
das e drogados” (Jornal do Brasil, “A guerra da lei”, 09 18
maio 1995). Mas é claro que, na prática, essa perspectiva Como parte desses últimos argumentos, até hoje são
não está sozinha: embora sempre minoritária e com comuns as menções a “baixas de ambos os lados”, so-
menos presença na cena pública a crítica aos excessos bretudo mas não exclusivamente quando se trata de
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13/01/2019 “VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS - O CASO DO RIO DE ...
menos presença na cena pública, a crítica aos excessos bretudo, mas não exclusivamente, quando se trata de

CADERNO C
da atividade repressiva, à corrupção e à brutalidade poli- justificar a violência policial. Mas brandi-las já é uma
cial tem estado atuante, disputando espaço com a muito clara alusão à metáfora da guerra e uma desqualificação
maior visibilidade e impacto social da crueldade e arro- da vulnerabilidade das camadas populares, aproximan-
gância dos criminosos. do-as do mundo do crime.

292

Luiz Antonio Machado da Silva

questão de eficiência dos aparatos de repressão naço. Em decorrência, convergem para os aparelhos
garantia da ordem social, pensada como isolamen-policiais demandas de recomposição de uma or-
to e evitação dos contatos interclasses, utopia dedem social tida como ameaçada. Cresce o clamor
um inviável cordão sanitário. 19
O núcleo do con- por uma ação “dura” – isto é, ilegal –, de modo que
flito social passou a concentrar-se na relação entrea única possibilidade de evitar a contaminação mo-
a espiral de violência policial e criminal e as inter-ral de todo o sistema, preservando os aspectos
rupções nas rotinas cotidianas, constituindo-se, institucionalizados do conflito social, é deixar a
assim, um círculo vicioso que, como venho insis- “dureza” da repressão ao arbítrio da polícia. Esse é
tindo, se expressa no parviolência urbanae “so- o segredo, praticado mas não tematizado, da para-
ciabilidade violenta”. doxal convivência entre dois processos que, na apa-
Nesse sentido, ao menos no que diz respei- rência, deveriam ser incompatíveis: a democratiza-
to ao Rio de Janeiro, a prática eleitoral que concre-ção e a expansão da violência criminal e policial. O
tizou o processo de redemocratização produziu dispositivo fundamental que faz a mediação entre
como subproduto a emergência da perspectiva de estes opostos é a delegação, por parte de grandes
combate ao crime comum violento a partir da gra-parcelas da sociedade, para que as corporações po-
mática daviolência urbana, e não mais na lingua- liciais tomem decisões, segundo critérios próprios,
gem dos direitos que apenas começara a assomar. sobre a extensão do uso da força e a definição dos
Desafiados pelo conjunto de medidas adotadas por inimigos a combater, reais ou imaginários.
um grupo político altamente polêmico, que se Estamos, assim, diante das variações do re-
posicionava ao lado dos contingentes considera-pertório daviolência urbana.Elas, além das toma-
dos responsáveis pelaviolência urbana, amplas das de posição polares que acabo de indicar, in-
parcelas da população passaram a explicitar enfa- cluem as argumentações que defendem uma espé-
ticamente seus sentimentos de ameaça à segurança cie de domesticação da atividade policial, propon-
pessoal e suas expectativas de mais repressão. do uma “reforma intelectual e moral” das
Convém lembrar que essa disputa ocorria corporações policiais, para usar a conhecida ex-
em um contexto que combinava a retração na par-pressão de Gramsci, a realizar-se por intermédio
ticipação política ativa, natural em situações de de uma intervenção de natureza técnico-adminis-
normalização democrática, com os efeitos da trativa ou jurídica, ao lado da punição dos res-
globalização, que abriam a possibilidade de duvi- ponsáveis pelas recorrentes chacinas e assassina-
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010

dar da capacidade de intervenção dos Estados na- tos de pessoas comuns, criminosos ou policiais.
cionais. Esse pano de fundo ajuda a explicar a O foco nos excessos e deficiências (aí incluída a
simplificação e o reducionismo de uma linguagemcorrupção) da atuação das instituições policiais –
que restringe o tratamento dos problemas (no caso,cujos agentes ultrapassam sistematicamente sua
a manutenção da ordem pública) a uma guerra con-função constitucional de uso da “força comedida”
tra atividades que perturbam o prosseguimento (Brodeur, 2004) – ignora que eles são fruto de uma
rotineiro da vida social. E que atribui a culpa a umperspectiva coletivamente construída sobre o que
segmento – os moradores dos territórios da pobre-seria desejável em termos de manutenção da or-
za e, mais especificamente, os favelados –, o qual, dem pública (a gramática daviolência urbana). Ou
a partir de sua criminalização, torna-se o tipo idealseja, nesse caso, tenta-se retornar à linguagem dos
do Outro que precisa ser afastado a qualquer pre- direitos, vista como decorrência do aprimoramen-
to técnico-administrativo ou jurídico, deslocando
19
De passagem, note-se que a impossibilidade de uma
perfeita realização desse isolamento está na base da críti- seu sentido para um plano que despolitiza a abor-
ca à ineficácia da atividade policial (a corrupção, o
despreparo dos agentes, etc.), desqualificando intelectu-
dagem e a torna um esforço cujo resultado prático
al e moralmente os policiais. Isso justifica a tentativa de tem se mostrado inócuo.
distanciar-se de suas práticas e reforça a autonomia das
corporações. Incluem-se nessa mesma perspectiva os inú-

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“VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS...

meros “projetos sociais” – educacionais, esporti-formada explicitamente em política pública de se-


vos, culturais, etc. –, públicos, privados ou mis- gurança, no atual governo Sérgio Cabral, muito
tos, que se dedicam a assistir diferentes clientelas embora a “guerra aos criminosos”, que essa orien-
de extração popular, a maior parte sediada nas fa- tação põe a cargo das polícias, nada tenha a ver
velas da cidade. Ressalvadas as exceções de pra-com questões de soberania nacional. 21

xe, a filosofia dessa modalidade de intervenção, Por menos representativos que sejam os
que em si mesma já aponta para profundas altera- governos no Brasil de hoje, deve-se admitir que
ções na estrutura institucional e na qualidade daessa linha oficial de atuação não pode deixar de
esfera pública, acaba sendo uma versão edulcorada contar com o aval de parcela significativa da popu-
do discurso que defende a repressão a todo custo. lação da cidade. Isso reitera, no âmbito imediato
Propõe-se levar a cidadania às diferentes clientelasdas práticas sociais, o que venho comentando a
(via de regra jovens), moradoras nas favelas e peri-respeito da delegação aos aparelhos policiais da
ferias, integrando-as à cidade. Entretanto, indepen- proteção, a qualquer preço, da continuidade das
dentemente das intenções, quase todas essas inici-rotinas pessoais, com quase nenhuma supervisão
ativas visam a proteger o público-alvo da “seduçãojurídica e política sobre as atividades dessas insti-
do crime” (Katz, 1988).20 Na medida em que as dife- tuições.22 Abre-se, portanto, espaço para que a
rentes formas de promoção social são propostas corporação policial interprete com ampla liberda-
como meios de inibir o desabrochar de potenciais de sua função social e como ela deve ser exercida.
criminosos, reiteram-se, de maneira mais branda, É fora de dúvida que isso tem resultado em
as expectativas de aprofundamento da repressão. corrupção e violência tão generalizadas, que quase
podem ser consideradas constitutivas da própria
atuação institucional. Minha hipótese é que esse
SOBRE A POLÍCIA não é um problema interno da Polícia Militar, da
Polícia Civil ou de qualquer outro aparato repres-
Insisto que a questão da segurança e da or-sivo. É fato que tais corporações estão cada vez
dem pública tem sido enquadrada de forma cadamais autonomizadas, orientando sua atuação de
vez mais estritamente limitada à preservação da forma independente, segundo os conflitos entre
continuidade das rotinas pessoais por meio do 21 A truculência das declarações do governador não foi
afastamento do Outro. As demandas de controle bem recebida, de modo que ele tem amainado a violência
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010

do discurso. Recentemente, o governo estadual criou


social não visam propriamente a regular as rela- um novo programa, inspirado nas ideias de circulação
internacional reunidas sob o rótulo de “polícia de proxi-
ções entre pessoas, grupos e categorias sociais – midade”, denominado de “Unidades de Polícia Pacifica-
dora” (UPPs), que, ao menos no nível retórico, se propõe
antes, o que se pede é o bloqueio dessas relações.como forma menos violenta de combate ao tráfico e às
Segurança econfinamento(forçado, no caso dos milícias e como um simples elemento de um projeto
mais amplo da inclusão social. Mas trata-se de um pro-
moradores dos territórios da pobreza, ou deseja- grama novo, cuja avaliação sistemática está por ser feita.
De qualquer maneira, é claro que o pressuposto de uma
do, no das camadas mais abastadas da popula- “guerra” permanece, pois uma polícia “pacificadora” só
faz sentido onde não há paz. Para um esboço ainda mui-
ção), ou seja, repressão pura e simples, tendem a to preliminar de análise das possíveis consequências da
se tornar sinônimos. atuação das UPPs, cf. Machado da Silva (2010). Versão
expandida do mesmo texto pode ser encontrada em:
Creio que essa hipótese vale para cidades http://observatoriodasmetropoles.net/index.php?
option=com_content&view=article&id=1293&catid=
do mundo inteiro. Mas limito-me a explorá-la no 34&Itemid=88&lang=pt)
caso específico do Rio de Janeiro atual, onde a 22
No limite, isso implica tratar a polícia como se fosse um
exército (Brodeur, 2004), diferenciando “civis” e “milita-
“metáfora da guerra” seguiu uma trajetória singu- res”: esses últimos cuidam da guerra ao inimigo (no caso,
o Outro), os primeiros de seus afazeres “normais”. Claro
lar relativamente longa, até concretizar-se, trans- que esse arranjo depende de acontecimentos que confir-
mem o bom andamento da “guerra”. Como esse raramen-
20
Baseado no modelo de Wacquant (2001a, 2001b) sobre te é o caso, os “civis” passam a criticar a eficiência e a
a passagem do Estado social para o Estado penal, Bode moral dos “militares” e surgem esforços para aperfeiçoar a
de Moraes (2008) chega a mencionar a “policialização máquina de guerra. Mais do que detalhar essa lógica, aqui
das políticas sociais”. interessa analisar a prática policial nela assentada.

294

Luiz Antonio Machado da Silva

suas diversas cliques internas, que, por sua vez, se. Minha intenção não é desqualificar a reflexão
seguem critérios e umethos próprios Entretanto contemporânea sobre as profundas reformas que
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seguem critérios e umethos próprios. Entretanto, contemporânea sobre as profundas reformas que
é necessário reconhecer que este estado de coisas precisam ser realizadas para tornar eficiente e de-
é consequência, e não causa, do modo pelo qual mocrático o funcionamento dos aparelhos polici-
se processa o debate em torno da segurança públi-ais e, por extensão, de todo o sistema de adminis-
ca. Como venho sugerindo, as disputas articula- tração da justiça. Ela é relevante e se debruça so-
das pela linguagem adotada nas práticas das pes-bre prementes questões reais. Meu comentário é
soas e grupos definem diferentes modalidades de de outra natureza: diz respeito à inviabilidade de
integração social. Processada na linguagem da vio- programas de reforma institucional na ausência de
lência urbana, a questão sobre como deve se orga- um maciço engajamento social que me parece im-
nizar o controle social – que, em última instância, provável no curto prazo.
se resolve nas políticas de segurança adotadas, Esse é um aspecto paradoxal do processo
propostas e criticadas – tem implicado uma inten-de democratização vivido atualmente nas cidades
sa dessolidarização, que é a face mais profunda ebrasileiras. Os avanços em várias dimensões de
menos visível da criminalização da pobreza e sua nossa estrutura institucional – medidas de redu-
segregação territorial. Isso significa pôr em discus-ção das desigualdades econômicas, integração po-
são a possibilidade de que a baixa eficácia da prá- lítica, expansão da esfera pública e aumento da
tica policial – e do conjunto do sistema de admi-transparência institucional, etc. – são conhecidos
nistração da justiça, embora essa ampliação do foco e dispensam exemplos. Ao mesmo tempo, e com
de análise não possa ser desenvolvida aqui –, novelocidade alarmante, a violência física, policial e
que diz respeito ao controle do crime violento, criminal, se multiplica.
precisa ser aproximada de forma ampla e não pode Mais como especulação inicial do que como
ser revertidaapenaspela via técnico-administrati- hipótese explicativa, talvez seja o caso de desfazer
va ou jurídica. essa antinomia sugerindo que a violência física é
Nesse sentido, creio que as várias propos- um elemento fundante de nossa formação social e,
tas em curso de “reforma intelectual e moral” dapor isso mesmo, pouco reconhecido e apenas in-
polícia tenderão a ser absorvidas e neutralizadasdiretamente combatido. Ela tem sido acondição
(como tem sido o caso até o presente momento) subjacente do aprofundamento de nossa integração
pelos aparelhos policiais, enquanto não estiverem sociocultural e político-econômica, responsável

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sustentadas pela adesão ativa do conjunto da soci-pela prática de uma sociabilidade sempre baseada
edade. Considero que isso somente será possívelna segregação através da força e da desqualificação
se combinado com uma “reforma intelectual e simbólica de algum grupo – variável no tempo e
moral” da própria sociedade.23 Devo esclarecer que no espaço – definido como Outro. 24

estou longe de advogar o imobilismo diante da gra- No Brasil, a violência policial tem se mos-
vidade dos problemas. Apenas chamo a atenção trado acondiçãode possibilidadedo conflito regu-
contra o que me parece reducionismo e excesso delado e institucionalizado no Estado. O dispositivo
voluntarismo da perspectiva crítica dominante eque opera essa conciliação estrutural (violência +
aponto para a necessidade de ampliação da análi- conflito, cf. nota 24) tem sido a reprodução do
23
Em resumo, a indiferença e a evitação social explicam, aparelho repressivo como uma burocracia pré-
em parte, porque a prática policial permanece pré-mo- moderna, que garante o isolamento de algum seg-
derna. As polícias talvez sejam as únicas instituições
brasileiras que não se modernizaram. As corporações 24
Neste sentido, afasto-me das interpretações que tematizam
constituem uma cultura própria, autoritária, autônoma a violência física por oposição ao conflito regulado, a
e pouco racionalizada, que depende, em grande medida, partir da ideia de que a primeira implica o rompimento
das decisões pessoais dos agentes e dos conflitos inter- do laço social, enquanto o segundo permite a continui-
nos entre seus diferentes grupos. Mudanças formais, se dade da disputa. (Cf., por exemplo, Wieviorka (2005),
não acompanhadas de forte pressão externa, continua- um livro excelente, mas cuja tese central, muito ligada
rão a ser absorvidas e anuladas, como tem sido o caso até ao imaginário republicano europeu, não me parece facil-
o presente. mente aplicável ao caso de que estou tratando).

295

“VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS...

mento social. Até o passado recente, os grupos do da Silva, 2002).25 Mas os atributos que com-
postos à margem, baseados na expectativa de umapõem o conteúdo do que é definido como proble-
integração futura, sempre reconheceram essa con-ma tem se modificado significativamente. Nos pri-
dição, sem que a tenham aceitado plenamente, de meiros momentos, ele esteve construído como uma
modo que se mantiveram valorativamente orienta-questão de somenos importância, cuja solução foi
dos para o próprio sistema que os segregava. Esse deixada a cargo da oferta de habitações populares
parece-me o segredo de nossa integração urbana e,pela iniciativa privada, mediante superficiais estí-
talvez mesmo, nacional. A novidade das últimas mulos do governo. Porém rapidamente foi perce-
décadas é que um pequeno segmento desse contin- bida a inocuidade desse modelo de controle, e as

gente (os portadores da “sociabilidade violenta”, cujafavelas passaram a ser objeto de políticas governa-
formação e modo de atuação variam segundo as di- mentais mais específicas. No começo dessa nova
ferentes cidades do país) parece ter assumido posi-fase os programas de intervenção se pautavam por
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ferentes cidades do país) parece ter assumido posifase, os programas de intervenção se pautavam por
tiva e ativamente o estatuto que lhe é atribuído, cons-uma postura autoritária que visava a diferentes
tituindo uma forma de vida própria e fechando o “soluções” administrativas (variou a ênfase nos
círculo de ferro daviolência urbana. aspectos habitacionais, sanitários, etc.), todas vol-
tadas para a erradicação definitiva das favelas, com
quase nenhuma consideração a respeito do desti-
PARA FINALIZAR. FAVELAS, POLÍCIA E no de seus moradores.
“SOCIABILIDADE VIOLENTA” Na medida em que o processo de favelização
se avolumou, acompanhando a modernização da
A progressão das questões anteriormente sociedade brasileira, o debate em torno do “pro-
esquematizadas carregava uma superposição cada vezblema das favelas” tomou outro rumo e adquiriu
mais clara entre o “problema da segurança pública” e novas dimensões. Pouco a pouco, modificou-se o
o “problema das favelas”. A relação é, sem dúvida, peso sociopolítico dos favelados: de mero objeto
secular e se perde em um passado longínquo (Zaluar; inerte de intervenções unilaterais, eles começaram
Alvito, 1998). Nesse nível de generalidade, pode-se a se organizar e a se tornar agentes relevantes nas
dizer que o medo gerado pelo conflito social semprearenas públicas. Paralelamente, generalizava-se o
foi decorrência de uma compreensão que desqualifica
o conjunto da classe trabalhadora, concebendo-a a 25 É claro que, embora habitadas pelas camadas subalter-
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010

nas, elas nunca foram o espaço exclusivo de concentra-


partir de um enquadramento que tem por base seu ção dessas camadas, que sempre estiveram distribuídas
também pelas áreas que, para simplificar, venho deno-
segmento, definido como moralmente degradado minando genericamente de territórios da pobreza.
(Chevalier, 1984). Entretanto, os repertórios que cons- Tampouco apresentam a homogeneidade interna que
lhes atribui a perspectiva dominante, o que, aliás, seria
tituem o conflito e constroem concretamente essa vi- impossível, dado o vertiginoso crescimento que as le-
vou a corresponder, na atualidade, a cerca de 15% da
são do Outro são variáveis. população carioca, vivendo em 750 a 800 localidades, a
Tais observações são importantes para com- depender das definições operacionais adotadas. Tudo isso
está exaustivamente demonstrado pela literatura espe-
preender a produção e o sentido das políticas de cializada: há vários tipos de áreas de concentração das
camadas subalternas, além do que as favelas são dife-
segurança, uma de cujas consequências é definir renciadas (internamente e entre elas) por qualquer crité-
rio, socioeconômico, cultural, político, moral, etc.
o lugar das favelas na organização urbana, seus (Valladares, 2005). Mas o reconhecimento desse fato
efeitos sobre a vida dos moradores, bem como as tem se restringido à pesquisa acadêmica. Apesar de to-
dos os esforços, pouco interfere no debate ordinário,
possibilidades e restrições que condicionam sua nas políticas governamentais e na própria autoimagem
dos moradores dessas áreas. Ao menos no Rio de Janei-
ação coletiva. ro, as favelas e seus habitantes sempre desempenharam
o papel de uma espécie de “tipo-ideal (porque é uma
Desde o seu surgimento, as favelas sempre construção simbólica e não um grupo) concretizado (por-
foram vistas como um problema a dificultar uma que não é mera referência conceptual)” dos problemas
urbanos do momento. É essa flexibilidade polissêmica
integração social homogênea, espécie de quisto que para encarnar o Outro da cidade que permite à favela
constituir-se como um dispositivo central e permanen-
ameaçava a organização social da cidade (Macha- te da prática urbana carioca.

296

Luiz Antonio Machado da Silva

reconhecimento de que erradicar as favelas torna- acabou por consolidar a polarização entre duas
va-se inviável, devido à escala do problema e à alternativas tidas como inconciliáveis: “remoção”
previsível resistência de um contingente que já não versus “urbanização”.26
mais podia ser inteiramente desconsiderado em Como se vê, durante todo o longo período
suas preferências. considerado – a existência de favelas é centenária –
Nessa trajetória, interessa aqui ressaltar que, elas sempre foram enquadradas como um proble-
a questão das favelas, na origem um tema restrito ama habitacional e urbanístico. Representavam um
simples medidas administrativas, se politizou. perigo político de intensidade variável para a or-
Com a guerra fria e o fim da ditadura getulista, dem social dominante, enfocado na dimensão
constituiu-se uma nova compreensão da qual re-socioterritorial, espécie de debate sobre a reprodu-
sultaram tentativas, não mais de soluções definiti-ção ou transformação da “ecologia” carioca. O exem-
vas, mas de um “controle negociado” (Machado plo mais extremo dessa perspectiva é a lapidar pa-
da Silva, 2002), contingente e dependente das va- lavra de ordem da Igreja Católica, que resumia o
riações na composição das forças políticas. Mes-sentido das propostas de promoção social que pa-
mo na subalternidade, o apoio ativo dos morado-trocinava: “é preciso subir o morro antes que ele
res de favelas passou a ser disputado pelos dois desça”. Essa mesma compreensão era reproduzida
grandes atores políticos formadores de opinião do pela oposição de esquerda, embora com o sinal tro-
pós-guerra, a Igreja Católica e o Partido Comunis- cado – elaesperavaque o morro descesse.
ta, ao mesmo tempo em que ocorria um amplo pro- Esse quadro sofre uma profunda transfor-

cesso de incorporação socioeconômica aberto pelomação quando as favelas passam a ser tematizadas
acelerado crescimento econômico. Esse contexto na linguagem daviolência urbana. Nesse momen-
favoreceu as reivindicações dos moradores que to o perigo imputado a elas deixa de ser uma ques-
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favoreceu as reivindicações dos moradores, que to, o perigo imputado a elas deixa de ser uma ques
se organizavam cada vez mais no quadro de tão urbanística, relacionada ao fortalecimento de
radicalização que precedeu o golpe de 1964. uma categoria social em franco processo de incor-
Com o advento do regime militar, as lide- poração socioeconômica e política. As favelas pas-
ranças foram perseguidas, desarticulando-se as saram a ser vistas – pouco importa o quão errônea
organizações faveladas e desmontando-se, pari possa ser essa compreensão – como o valhacouto
passu, o debate sobre a “reforma urbana” (basica- de criminosos que interrompem, real ou potenci-
mente melhoramentos urbanísticos e regularização almente, as rotinas que constituem a vida ordiná-

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fundiária), no qual elas se engajavam, parte de umria na cidade. Em resumo, como efeito da consoli-
movimento mais amplo denominado de “reformasdação daviolência urbana,modificaram-se profun-
de base”, que procurava articular o conjunto dasdamente os conteúdos que, na perspectiva domi-
reivindicações populares no pré-64. Elas foram nante, definem as favelas como um problema ur-
temporariamente varridas da disputa, substituídasbano. Sem qualquer intervenção de sua parte que
por uma nova proposta unilateral de tratamento justificasse essa revisão, os moradores foram
da questão habitacional. Mais uma vez, era visadacriminalizados justamente quando pareciam bem
a erradicação das favelas, porém agora cuidandosucedidos no esforço de participar do debate pú-
do destino da população residente – o assenta- blico. A opressão do regime militar, aparentemen-
mento dos moradores em áreas periféricas, ondete superada com a redemocratização, foi substituí-
seriam construídos grandes conjuntos residenciais 26
Todo o processo que tornou a remoção a política oficial
populares pelo Banco Nacional de Habitação. Al- dos governos militares (em especial, mas não apenas,
em seu primeiro momento) envolveu enorme tensão e
gumas favelas foram, de fato, removidas, com vio- dura repressão aos favelados e seus aliados. Mas o im-
lência proporcional à resistência dos moradores. pacto quantitativo de sua implementação mostrou-se
bastante limitado, o que pode ser uma boa medida da
Foi derrotada a política de urbanização que consti- (in)capacidade de imposição unilateral de sua política
habitacional pelos governos militares, apesar da ansie-
tuía o centro da proposta de reforma urbana, o que dade e sofrimento generalizado que provocou.

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“VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS...

da pela desconfiança e pelo medo generalizados,bora nunca tenha sido abandonado, permanecia
derivados de sua suposta adesão à “sociabilidade adormecido. Ressalte-se que essa não é uma sim-
violenta”. Criminalizados e desqualificados como ples hipótese em discussão, mero espectro a ron-
cidadãos de bem, os moradores sofrem um proces- dar a vida dos favelados – já tem havido remoções
so de silenciamento pelo qual se lhes dificulta a concretizadas e circulam listas de favelas cuja re-
participação no debate público, justificando a moção no curto prazo é proposta por diferentes
truculência policial e a mencionada “policialização órgãos de governo.
das políticas sociais”.27 Em sua particularidade, esse é um exemplo
A superposição do “problema da seguran- concreto do processo de dessolidarização, associado
ça” com o “problema das favelas”, ao gerar deman-ao achatamento do conflito social no Rio de Janeiro
das de isolamento a ser implementado pela repres-de hoje. Retorno, assim, à tomada de posição menci-
são policial, acaba por concentrar o foco da políti- onada no início deste ensaio: sem a “refundação da
ca de segurança sobre os espaços físicos, mais dosociedade”, não é viável a “refundação da polícia”.
que sobre as práticas das categorias sociais que os Consequência de uma delegação dos grupos res-
ocupam. A barreira posta a cargo da atividade po- ponsáveis pela opinião dominante, a prática poli-
licial se dirige não tanto a grupos sociais específi- cial só poderá ser concretamente modificada, pro-
cos quanto ao controle e segregação territorial deduzindo-se uma efetiva “refundação” na mesma
áreas urbanas tidas como perigosas. Fecha-se, as- proporção em que essa delegação for progressiva-
sim, o círculo de ferro que redesenha o espaço da mente sendo cassada.
cidade, na formulação dominante, a partir da rela-
ção entre violência urbanae “sociabilidade vio-
(Recebido para publicação em julho de 2009)
lenta”: de um lado, os bandos ligados ao varejo (Aceito em agosto de 2010)
fixo de drogas, situados nas áreas de favela; de
outro, as organizações policiais impondo (por de-
legação, como venho repetindo) a redefinição das REFERÊNCIAS
favelas como “complexos” territoriais a serem mi-
litarmente combatidos e confinados. BAUMAN, Zigmunt. Em busca da política . Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar Editor, 2000.
Assim é que importantes mudanças na for-
______. Modernidade líquida . Rio de Janeiro: Jorge Zahar
ma do conflito responsável pela integração social Editor, 2001.
aio/Ago. 2010

produziram um vasto conjunto de dispositivos, BODÊ DE MORAES, Pedro. Juventude, medo e violência.
em função do qual práticas diversas, orientadas In: MERCER, V.; GEDIEL, J.A. (Org.) Violência, paixão e
discursos: o avesso dos silêncios. Porto Alegre: CMC Edi-
por disputas nem sempre coincidentes acabam tor, 2008.
https://www.redalyc.org/html/3476/347632181006/ 14/17
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por disputas nem sempre coincidentes, acabam

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por aliar a autonomia dos aparelhos responsáveis BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme
compétences . Paris: Métaillé, 1990.
pela segurança pública ao isolamento territorial e ______; CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit du capitalisme .
ao silenciamento de áreas da cidade já penalizadasParis: Gallimard, 1999.
pela presença da “sociabilidade violenta”. Um dos______; THÉVENOT, Laurent. De la justification. Les
économies de grandeur . Paris: Gallimard, 1991,
resultados é a volta ao tema da remoção que, em-BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas – povo e polícia
na cidade do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Arquivo Na-
27
É claro que, nessas condições – internamente, as difi- cional, 1988.
culdades derivadas da contiguidade física com a “socia- BRODEUR, Jean-Paul. Por uma sociologia da força públi-
bilidade violenta”, externamente a desconfiança genera- ca: considerações sobre a força policial e militar. Caderno
lizada –, fica prejudicado o desenvolvimento de uma CRH: Centro de Recursos Humanos da UFBA, Salvador,
ação coletiva de base dotada de organicidade, seja na v.17, n.42, 2004.
forma de demandas espontâneas sem um quadro diri-
gente definido, seja na forma de condutas articuladas BUARQUE DE HOLANDA, Cristina. Polícia e direitos hu-
por uma identidade firmemente estabelecida. Em uma manos: politica de segurança pública no primeiro gover-
situação como essa, só um milagre poderia produzir uma no Brizola. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
ação coletiva audível, densa e politicamente forte capaz
de fazer retornar a linguagem dos direitos no desenvol- CALDEIRA, Teresa Pires do Rio.Cidade de muros: crime, segrega-
vimento do conflito social (Machado da Silva, 2008). ção e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.

298

Luiz Antonio Machado da Silva

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“VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA PÚBLICA E FAVELAS...

“URBAN VIOLENCE”, PUBLIC SAFETY AND “VIOLENCE URBAINE”, SÉCURITÉ PUBLIQUE ET


SLUMS - the case of Rio de Janeiro today FAVELAS – le cas de Rio de Janeiro actuellement

Luiz Antonio Machado da Silva Luiz Antonio Machado da Silva

This paper presents an empirical description L’article présente une description empirique
of the language production of urban violence de la production du langage de laviolence urbaine (en
(understood as an organizedpractice, a grammar) and tant que pratique organisée, une grammaire) et de ses
its implications on public policy. Two sets of issues are respectives implications sur l’ordre public. Deux séri-
discussed and related to: a) the relationship between es de questions sont abordées et mises en relation: a)
urban violence, routines and organization of social les liens entre la violence urbaine , les routines et
relations in the city, b) the impact of change in the l’organisation des relations sociales dans la ville; b)
debate about the policies regarding public order on l’impact du changement dans le débat concernant les
the current forms of criminality and territorial politiques reliées à l’ordre public concernant les for-
segregation of poverty, discussing the status of slums as mes actuelles de la criminalisation et de la ségrégation
an exemplary device of this process. The text aims to territoriale de la pauvreté qui discute le statut des fa-
preserve local peculiarities according to which these velas comme dispositif exemplaire de ce processus.
two types of questions present themselves as lived Le texte a l’intention de préserver les particularités
experiences, so that the main focus of attention is the locales selon lesquelles ces deux types de questions se
singular case of Rio de Janeiro. présentent comme des expériences vécues de telle
manière que le centre des attentions porte sur le cas
particulier de Rio de Janeiro.

KEYWORDS: urban violence, violent sociability, public MOTS-CLÉS: violence urbaine, sociabilité violente, ordre
order, police activity, slum, urban segregation, the public, activité policière, favela, ségrégation urbaine,
criminalization of poverty, routine. criminalisation de la pauvreté, routine.
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010

Luiz Antonio Machado da Silva – Doutor em Sociologia pela Rutgers - The State University of New
Jersey (1979), realizou pós-doutorado no Instituto de Ciências Sociais da universidade de Lisboa (2006-
2007). Professor titular do Instituto Universitário de pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cân-
dido Mendes. Professor associado ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de janeiro. Membro do INCT/Observatório das Metrópoles e líder do grupo de pesquisa “territórios
da pobreza: segregação social, vida cotidiana e direitos humanos” (IUPERF/UCAM). Tem experiência na
área de Sociologia, publicando principalmente sobre os temas da favela, sociabilidade, informalidade,
cidadania e violência. Seu último livro é a coletânea “Vida sob cerco - violência e rotina nas favelas do
Rio de Janeiro” (Faperj/Nova Fronteira, 2008) com resultados de pesquisa coletiva que coordenou.

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