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Textos Básicos de
Filosofia do Direito
De Platão a Frederick Schauer
Copyright © 2015, Danilo Marcondes e Noel Struchiner
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10 Textos básicos de filosofia do direito
sempre visto que as sociedades que as estabelecem mudam? Para a filosofia, isso
seria um irremediável sinal de imperfeição. Daí a necessidade de buscar uma outra
fonte para as leis, um ideal de justiça que não se reduzisse a convenções sociais, tal
como na República de Platão. A razão, ou melhor, a racionalidade seria esse princí-
pio, na medida em que para filósofos como Platão a razão humana e a racionalidade
do cosmo deveriam compartilhar princípios comuns.
Muitos autores na Antiguidade e na Idade Média, notadamente Aristóteles e,
em parte, por influência dele, são Tomás de Aquino, tentaram conciliar os dois con-
ceitos, ressaltando a diferença entre leis mais básicas – como princípios fundamen-
tais que parecem ser derivados da racionalidade da natureza humana, ou mesmo de
valores comuns a todos os homens – e leis que variam segundo a época, historica-
mente portanto, e conforme a sociedade. Essas leis convencionais caracterizariam o
direito positivo, mas na base delas haveria princípios mais fundamentais que seriam,
assim, naturais.
As grandes transformações políticas e econômicas pelas quais o mundo euro-
peu passou a partir do século XV, no contexto do Renascimento, e que inauguraram
o processo de formação da Modernidade, trouxeram à cena novamente, em algu-
mas regiões da Europa, esse debate sobre que tipos de lei e de forma de governo
deveriam regular a sociedade. A queda da monarquia absoluta em alguns países (In-
glaterra, com a Revolução Gloriosa em 1688, França com a Revolução Francesa em
1789), assim como o movimento de independência dos Estados Unidos, em 1776,
levou a mudanças profundas na maneira de se conceber o direito. Por exemplo, a
Declaração de Independência dos Estados Unidos evoca a “lei da natureza” como
base para legitimar o rompimento com a Coroa britânica. Esses processos políticos
sofreram grande influência dos pensadores da época e de sua discussão sobre legiti-
midade, justiça, ordem social.
Além disso, movimentos como a Reforma Protestante, em seus vários desdo-
bramentos, levantaram também a questão da liberdade religiosa. As guerras civis na
Europa e o colonialismo, por sua vez, mostraram a necessidade de se discutir o rela-
cionamento entre os países, e deram os primeiros passos em direção à formulação
de um direito internacional, o ius inter gentes de Grotius.
A filosofia do direito que encontramos na Modernidade, desde seu início no
século XVI até o Iluminismo do século XVIII, e incluindo ainda sua crítica, no século
XIX, reflete as características desse contexto. A questão da tolerância e da liberdade
religiosa torna-se uma referência fundamental em um mundo em mudança, com a
consequente formação de sociedades pluralistas. A necessidade de um novo pacto
em uma sociedade em que a monarquia absoluta entrou em declínio leva a teorias
do contrato social entre indivíduos dotados de direitos naturais, das quais Rousseau
foi um dos mentores. Por outro lado, a necessidade de encontrar um novo mode-
lo para a sociedade abre caminho para propostas de direitos políticos como a de
Apresentação 11
Montesquieu, com a independência dos três poderes, que traz de volta ao debate a
importância do equilíbrio na sociedade, encontrada já no mundo grego.
Os pontos de partida dessa discussão foram as teorias sobre a natureza dos in-
divíduos que compõem a sociedade e estabelecem esse pacto entre si. Haveria uma
racionalidade inerente ao ser humano, que serviria de fundamento para esse grande
acordo? Na visão de Kant e do Iluminismo em geral, a sociedade deveria atingir
a sua maioridade permitindo esse progresso também no campo do direito, como
teria ocorrido no campo das ciências; a sociedade deveria ser composta por indiví-
duos emancipados, e portanto deveria dar-lhes condições para essa emancipação.
O direito participaria desse processo oferecendo um sistema de leis fundamentadas
racionalmente, e a contribuição da filosofia do direito seria o exame e a discussão
dessa fundamentação racional. O direito positivo deveria ser ele próprio o resultado
da aplicação da razão à lei natural, concretizando-a em diferentes circunstâncias so-
ciais e históricas.
Depois de Kant a filosofia do direito foi ficando cada vez mais técnica, especia-
lizada e compartimentalizada. A obra de John Austin The Province of Jurispruden-
ce Determined, de 1832, caminhou nessa direção, demarcando o que poderia ser
propriamente considerado o objeto de estudo do direito e indicando quais aborda-
gens metodológicas poderiam ser invocadas pelos filósofos do direito. Na esteira de
Bentham, Austin indicou que filósofos do direito poderiam adotar uma abordagem
analítica ou crítica (normativa) em relação ao direito. Caberia à filosofia analítica a
compreensão do conceito de direito e sua diferenciação de outros conceitos afins:
a contribuição de Austin aqui consistiu não só em explicar o direito em termos de
comandos do soberano, mas em esclarecer o próprio conceito de comando e a no-
ção de soberano em termos mais claros. Por outro lado, caberia à filosofia crítica
(normativa) do direito realizar a sua avaliação moral, sugerindo reformas no direito
existente, e Austin fez isso a partir de sua teoria moral favorita, o utilitarismo.
O mais importante é que sua postura de que a pergunta sobre o que é o direito
não se confunde com a pergunta sobre o mérito ou demérito do direito influenciou
uma nova geração de positivistas, que endossaram explicitamente duas teses canô-
nicas do positivismo: a dos fatos sociais e a da separação entre direito e moral. Para
a primeira tese, o direito pode ser explicado e identificado por meio de fatos sociais,
e para a segunda, um sistema injusto de normas ainda assim pode ser classificado
como direito. A concepção analítica de Austin sobre o direito reinou soberana até a
chegada de H.L.A. Hart, no século XX.
Um dos mais importantes filósofos contemporâneos do direito, Hart concorda-
va com o positivismo de Austin e sua divisão da filosofia do direito com um braço
analítico e outro normativo, mas ao mesmo tempo foi um severo crítico de sua con-
cepção específica do direito como um conjunto de comandos do soberano, colocan-
do em seu lugar a explicação do direito em termos da união entre regras primárias
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ser instrumentais para levarmos adiante esses debates, mostrando a relevância des-
ses pensadores não só como autores clássicos, mas como instigadores que nos con-
vidam a refletir sobre questões ainda fundamentais na sociedade contemporânea.
Gostaríamos de agradecer a ajuda de Fábio Perin Shecaira e Lucas Miotto, que
leram e comentaram as primeiras versões dos capítulos sobre os autores contempo-
râneos, oferecendo críticas e sugestões valiosas. Também gostaríamos de agradecer
ao CNPq e à Faperj pelo constante apoio às nossas pesquisas.
O s A utores
SÓFOCLES
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16 Textos básicos de filosofia do direito
ANTÍGONA
As leis da tradição × as leis da cidade
Antígona foi escrita e apresentada pela primeira vez em Atenas em 442 a.C.,
tendo ganhado o primeiro prêmio no concurso do famoso festival dramático
em honra do deus Dioniso. A peça dá sequência a Édipo Rei e Édipo em Colo-
no. Antígona é filha do incesto inconsciente entre Édipo e sua mãe Jocasta, e
carrega esse fardo e, de certa forma, a maldição da família.
Nessa tragédia, Sófocles formula a questão geral, fundamental no con-
texto da democracia grega, que tinha então apenas cerca de 50 anos, sobre
qual lei deve predominar: a lei dos homens (nomos), social, portanto conven-
cional, ou a lei divina, ou da natureza (physis) – questão discutida também
nesse período pelos sofistas. De fato, Antígona é considerada uma das pri-
meiras formulações do debate sobre o confronto entre o direito natural e o
direito positivo.
A maioria dos intérpretes considera Sófocles favorável à lei natural ou
divina, e portanto à tradição, mas veremos que a situação é bem mais com-
plexa e a preocupação do autor pode ser interpretada como uma crítica à
instabilidade política e moral de Atenas então. Pode-se inclusive considerar
Creonte (irmão de Jocasta e herdeiro do trono de Tebas, após a queda de
Édipo) como uma referência a Péricles, governante de Atenas à época, que
esteve no poder por trinta anos e era visto por muitos como um tirano,
embora tenha sido sempre reeleito segundo as normas então em vigor da
democracia ateniense.
Antígona confronta seu tio, o rei Creonte, opondo-se ao decreto dele,
ou edito (o termo usado é kerygma, que mais tarde será inclusive empregado
em relação à proclamação do Evangelho), proibindo o funeral de Polinice,
irmão de Antígona que havia se levantado em armas contra Tebas. Essa puni-
ção – deixar o cadáver exposto aos cães e abutres – era considerada extrema
na sociedade grega, e Creonte pretende que ela seja exemplar, já que Polini-
ce é visto como um traidor de sua própria pátria. Pode-se interpretar Creonte,
portanto, como um defensor da polis. Antígona representa, em oposição, a
lealdade à família, ao clã, o predomínio do vínculo consanguíneo e, nesse
sentido, da tradição. Para Creonte, Antígona coloca seus laços familiares aci-
ma do interesse da cidade. Pode-se considerar que nem Creonte, nem An-
tígona tem razão em um sentido absoluto e que ambos são vítimas da hybris,
a arrogância que os impede de deliberar, ver as razões um do outro e chegar
a um entendimento, presas como são de fortes emoções. Quando Creonte,
diante do apelo de Hêmon (seu filho e noivo de Antígona), resolve perdoá-la,
Sófocles 17
Guarda
Dirigindo-se a Antígona
Tu, então, que baixas o rosto para o chão,
confirmas a autoria desse feito, ou negas?
Antígona
Fui eu a autora; digo e nunca negaria.
Creonte
Dirigindo-se ao Guarda.
Já podes ir na direção que te aprouver, 505
aliviado e livre de suspeita grave.
18 Textos básicos de filosofia do direito
Antígona
Sabia. Como ignoraria? Era notório.
Creonte
E te atreveste a desobedecer às leis? 510
Antígona
Mas Zeus não foi o arauto delas para mim,
nem essas leis são as ditadas entre os homens
pela Justiça, companheira de morada
dos deuses infernais; e não me pareceu
que tuas determinações tivessem força 515
para impor aos mortais até a obrigação
de transgredir normas divinas, não escritas,
inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,
é desde os tempos mais remotos que elas vigem,
sem que ninguém possa dizer quando surgiram. 520
E não seria por temer homem algum,
nem o mais arrogante, que me arriscaria
a ser punida pelos deuses por violá-las.
Eu já saiba que teria de morrer
(e como não?) antes até de o proclamares 525
…
Creonte
Dirigindo-se ao CORO.
Ela já se atrevera, antes, a insolências
ao transgredir as leis apregoadas; hoje, 550
pela segunda vez revela-se insolente:
ufana-se do feito e mostra-se exultante!
Pois homem não serei – ela será o homem! –
se esta vitória lhe couber sem punição!
Sófocles 19
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