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Religare 10 (1), 21-36 , março de 2013

O PENSAMENTO INSUPORTÁVEL DE EMILE CIORAN

THE THINKING OF EMILE CIORAN UNBEARABLE

João Mauricio Brás


Investigador CLEPUL (Faculdade de Letras de Lisboa)

______________________________________________________________________

Resumo: Cioran é um pensador incontornável do século XX. Pela originalidade do seu pensamento mas
também pela recuperação de uma lição antiga. Pensar e viver são inseparáveis. O filósofo funcionário é
um pensador estéril. Vive-se e pensa-se sobre o que se vive, e esse pensar retorna à vida, como
experiência e promessa de sabedoria. Este é um filósofo existencial, não existencialista, que retoma as
antigas lições gregas, um cínico do século XX que não foi incorporado pela máquina trituradora do
cânone Ocidental, democrático e neoliberal. Pertence a uma corrente marginal da filosofia que não faz
parte da versão oficial, mas não é por isso menos importante, e situa-se entre todos aqueles que colocam
reservas em relação à legitimidade da existência humana, e que vão de Theognis e Diógenes até
Nietzsche.

Palavras chave: Cioran, Pensamento, existência humana

Abstract: Cioran is an inescapable thinker of the 20th century. For originality of this thought but also by
retrieving an ancient lesson. Thinking and living are inseparable. The philosopher-employee is a sterile
thinker. Living and thinking about the existence, so that this knowledge returns to life, as an experience
and promise of wisdom. This is an existential philosopher, not a Existentialist, which resumes the ancient
Greek Philosophy lessons. This is a cynic of the 20th century, it was not incorporated by the shredder of
the Western Canon, liberal and democratic. Belongs to a marginal current of philosophy, incompatible
with official version, but that's not less important. Cioran lies between all those who place reservations
about the legitimacy of human existence, in a lineage that goes from Theognis and Diogenes to Nietzsche.

Key-words: Cioran, thinking, human existence

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Ler as obras de um filósofo, não duvida se não se trataria de uma


é um ato passivo, mas um diálogo, tanto provocação ou partida, se não estaria a
mais fecundo, quanto nos transforma e inventar um filósofo inexistente.
perturba. Emile Cioran foi um homem Atualmente a adjetivação da sua obra e
livre e lúcido como não sabemos e não pensamento está porventura esgotada,
conseguimos ou mesmo não podemos faltará ainda algo mais, debate-lo e para
ser. A descoberta generalizada deste os mais ousados praticá-lo. Na verdade
autor começa na década de oitenta do não é possível lê-lo sem praticar uma
século XX. Fernando Savater foi e é um certa militância ou optar pelo desdém e
dos seus principais divulgadores, a sua desvalorização, ou na pior das
tese de doutoramento 1 é sobre o hipóteses, fazer de Cioran uma moda,
pensamento de Cioran, o que na época e citar umas passagens da sua obra e ter
na academia espanhola suscitou a umas frases sempre à mão. Não há
contudo autor mais sério. Não se trata
1
Fernando Savater. Ensayo sobre Cioran, de uma seriedade enfatuada e estéril, de
Ed.Espasa Calpe, Madrid, 1992. uma técnica, de uma doutrina ou jargão

21
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sobre uma área ou domínio do sobre o homem, propostas e atitudes


conhecimento. perante a vida e modos de conceber a
Neste texto apresento de modo existência. Este é um pensamento único
sumário algumas linhas significativas no panorama filosófico contemporâneo.
do pensamento de Cioran e Trata-se de um pensador inatual, não
possibilidades de leitura assim como o pertence a escolas ou modas, recusou
meu encontro com o seu pensamento e quase sempre prémios e honrarias para
obra que é, julgo eu, um itinerário do que não interferissem na sua vida
desespero à lucidez. privada, esta não se distinguia da vida
Pessoalmente encontrei um dia pública. A sua vida é o exemplo, não
ao acaso a obra Histoire et Utopie de em sentido apologético, mas como
Cioran, perdida numa modesta feira do inevitabilidade de uma obra que só pode
livro de uma escola. Por curiosidade ser ato do pensamento. Será
folheei algumas páginas e nessa tarde e precisamente a sua indiferença em
noite não larguei o meu interlocutor. relação aos modos de reconhecimento e
Tinha 21 anos, acabava a licenciatura servidão da contemporaneidade
em Filosofia, ainda estava apaixonado Ocidental, a sua voz tão antiga e tão
assim como só a ingenuidade e energia nova a lhe conferirem um estatuto quase
descontrolada dos anos novos mítico, ao que ele foi simplesmente
permitem. O efeito da leitura foi indiferente.
paradoxal, li toda a sua obra de seguida, As características do seu
entre um amor novo pela filosofia e a pensamento surgem como um aparente
ajuda na confirmação que eram anacronismo. Que interesse tem uma
justificadas muitas das minhas obra no fim do século XX e início do
suspeitas. A filosofia é um modo de ver, século XXI que questiona o que somos,
mas também e principalmente uma se dedica ao essencial e ao que mais
atitude, um comprometimento entre o importa? Termos que aterrorizariam
que se pensa e o que se faz e diz, mas qualquer filósofo do presente, quer pela
transformara-se numa profissão e numa imensidão da empresa, quer pela falta
técnica, os filósofos são meros de meios e descrença em a abordar?
funcionários, «O filósofo Ocidental é Cioran fala da existência e da sabedoria,
alguém que foi concebido. Quando renova antigas propostas de
pensamos nos grandes sistemas (por conhecimento, fala-nos do sentido da
exemplo) alemães, nada têm a ver com vida, dos lugares fundamentais da
a vida…série de hipóteses que depois existência humana, mas com um sentido
originaram construções fantásticas, mas negativo e duro, onde não há soluções
isso não surgiu em absoluto da vida e ou respostas benignas nem definitivas,
tão-pouco se elaborou em função da ocupa-se dos processos e fios que tecem
vida» 2 a universidade, na maior parte e sustentam a existência, infligindo em
dos casos, é o sintoma da morte da permanência lições de perplexidade.
filosofia. Se inicialmente o talento Um filósofo analítico poderia
literário, poético e estilístico dessa obra perguntar, espremidas essas afirmações,
me seduziu, também me magoou, o que sobra? Respondo, tudo, tudo para
porque essa musicalidade encantatória começar. O tipo de empreendimento
tinha sempre presente uma visão dura que Cioran leva a cabo, desafia de modo
sobre o nosso modo de estar e ser. claro os limites da própria linguagem,
O que se espera de um filósofo? os andaimes do nosso mundo, pois uma
Uma visão do mundo, uma conceção dimensão fundamental do mundo
humano escapa à linguagem. A
2
Cioran, O., Conversaciones, Tusquets inevitabilidade dos limites da linguagem
Editores, Barcelona, 1996, p.63.

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como limites do nosso mundo, é um Esta é um questionamento intransigente


dogma, e como dogma assenta também do ato de existir que pretende desvendar
numa profissão de fé. os signos da servidão e da ignorância
Quem tem a coragem e a loucura para a eles podermos renunciar. Este é
de propor na época do homem um pensamento marginal e só
unidimensional, do funcionário, do falsamente classificável. A margem não
consumidor, do hallow men e das é só ditada porque quem está no centro
receitas light e hedonistas, uma obra e detém os pergaminhos da legitimação,
onde tão importante como o modo de mas também pela periferia que não
ver e a expressão do mesmo é afirmação reconhece essa legitimidade, nem quem
de um peculiar modo de existir e atitude a confere. Cioran é um filósofo rebelde
perante a vida. e indomesticável. «Eu não tenho uma
Deverá esta obra apenas profissão nem obrigações, posso falar
funcionar pela adesão emocional que em meu nome, sou independente e não
suscita, ou pelo modo mais fecundo de tenho doutrina a ensinar. Quando
nos tocar pelas intuições suscitadas? escrevo, não penso no livro futuro.
Não nos afastamos do trabalho sério dos Escrevo para mim. E essa
conceitos e dos fundamentos? Erro irresponsabilidade resultou ser – devo
básico, a intuição, a emoção, a dizê-lo – a minha sorte. Não dependo de
identificação, são apenas uma primeira nada e a esse respeito ao menos sou
etapa, de um outro trabalho, mais livre. Parece-me que, quando refletimos
profundo, porque mais amplo sobre o sobre um problema, deveríamos fazê-lo
funcionamento e questionamento dos independentemente da nossa profissão,
conceitos e dos fundamentos, onde uma mantermo-nos por completo à margem.
lágrima tem mais poder expressivo e Eu não sou de modo algum um
pregnância que um conceito. É neste percursor, mas em suma …uma
contexto que é possível compreender marginal talvez»3.
Cioran, e não como anacronismo, A sua lição de filósofo antigo,
delírio ou desfasamento. A essência do não pretende ter razão ou mudar o
real é lida à luz de uma outra linguagem mundo mas provocar uma
com um poder metafórico que o homem transformação interior e exterior. A
contemporâneo esclarecido e iluminado transformação visa o acesso a um outro
pela estrutura razão e pelo cálculo, tipo e consciência. Nesta aceção viver é
perdeu, e desse modo perdeu também a uma arte, através do exercício de um
fecundidade do que é profundo. O real é saber que não é estranho à vida.
lido através da mudança como Proposta invulgar à nossa época,
diabolismo da mudança, de uma incompatível com os modos de
dialética de forças subterrâneas, conhecer vigentes e instituídos, mas que
demoníacas, que engendram e destroem transmite a insatisfação necessária para
formas, uma dinâmica demente porque despertar a indispensável interrogação.
submetida há lógica do irreparável. Cioran é um caso paradigmático,
A Inatualidade do seu autor marginal, não perverte a aceção
pensamento está relacionada com esse antiga de filosofia como arte de viver e
carácter tão novo e antigo da sua voz, a transformação do nosso modo de
intemporalidade dos seus temas / compreender, querer e desejar. Rejeita a
obsessões e respostas, presente na busca especulativa ou acumulação de
tematização do homem e avaliação da um saber separado do existir, baseado
existência de um núcleo do seu não na vida mas em teorias sobre a vida,
pensamento, através do estudo de si
próprio e da observação dos homens.
3
Cioran, Conversaciones,p.199.

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onde esta se tem que adequar à teoria. pensamento, tem como consequência
Encontramos na sua obra uma visão fulcral, uma filosofia prática. Aceder a
sobre o Homem, síntese em que este universo é dialogar com um pensar
escutamos a serenidade contemplativa para despertar e uma busca incansável
dos antigos e o desespero destrutivo de de clarividência.
alguns contemporâneos, num diálogo Na perspetiva do pensador
entre Ocidente e Oriente, santos e inatual, o papel do filósofo é o de
hereges, malditos e ascetas, sábios, sempre, as perguntas permanecem e
fracassados, ilustres e anónimos. estão estabelecidas de há muito, mas as
Importa uma declaração de respostas nunca estão suficientemente
interesses, Cioran para mim é mestre, estabelecidas. Filosofar é retomar um
epíteto que certamente rejeitaria, porque percurso e uma atitude, um modo de
não é o discípulo que escolhe o mestre, estar. A filosofia não é uma técnica
e Cioran não se quis mestre de ninguém, linguística ou argumentativa, nem
mas tão só da vida. apenas um conjunto de ferramentas
A filosofia confunde-se com o concetuais para interpretar o mundo.
ato de viver, é caminho e tarefa de Mas não se procure em Cioran um
despertar e exortação a uma prática sábio, ou um qualquer pseudo-guru que
transformadora «Chegamos a um ponto ensina a viver, à maneira de milhares de
da história em que é necessário, creio, manuais de psicologias e filosofias
ampliar a noção de filosofia. Quem é o light.
filósofo4? O primeiro que chegue roído Cioran nada ensina, o seu
por interrogação essenciais e contente percurso é individual, único e
por estar atormentado por um destino intransmissível, o saber genuino é
tão notável» 5 . A filosofia é um saber apropriação e vivência, só cada um o
que culmina num registo sapiencial pode descobrir e experimentar.
enquanto arte de viver e ver claro e Podemos sim, com ele dialogar, para
trabalho de depurar a vida dos seus nos confrontar, com o nosso modo de
signos de servidão; o filósofo é aquele viver e ver. Esse confronto servirá para
que ama a sabedoria, ou seja, aquele destruir ou reforçar as nossas posições,
que se esforça para fazer coincidir o seu teorias e investigações, e ou destruímos
agir com o seu pensamento e este com o o que era fraco ou fortalecemos o que
seu ser mais profundo, «Odeio a era forte. Se é apenas mais uma
sabedoria desses homens a quem as perspetiva, não deixa de servir como um
verdades não afetam, que não sofrem detonador de uma outra posição perante
por causa dos seus nervos, da sua carne a existência. Obriga a interpelarmos as
e do seu sangue. Só amo as verdades posições onde nos acomodámos.
vitais, as verdades orgânicas saídas da Indagar as conquistas do nosso modo de
nossa inquietude» 6 . Assim, este estar e de ser, das nossas seguranças e
referências, serve principalmente num
plano particular e geral, para enfrentar o
4 que somos, o que pensamentos que
O epíteto de Filósofo em Cioran é controverso,
ele mesmo não se reconhecia como tal, mas o somos e o que queremos.
que está em causa é um tipo de filósofo e de Trata-se, o que confere
filosofia caracterizados como exercício estranheza há sua obra, de uma
intelectual desligados da vida, ao contrário clarividência nefasta, porque nos coloca
daquele que vive como pensa e tem o seu lugar
face a face com o que somos, mas não
na rua e não na cátedra.
5
Fernando Savater, Ensayo Sobre Cioran, p.18. queremos ou não aceitamos reconhecer.
6
Cioran, O.p.79. A maior parte das citações que
surgem no texto são retiradas de Cioran, Utilizaremos a abreviatura O sempre que nos
Oeuvres, Éditions Gallimard, Paris, 1995. referimos a Oeuvres.

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Não é uma visão decadentista, e o Para Cioran, existir, viver e


pessimismo de facto, tem que ser saber articulam-se numa meditação
explicado, porque se trata de procurar a sobre o que somos e permitem uma
reconciliação do homem com o horror separação entre o acessório e o
da vida e a dor da existência, e os essencial. Cioran é um filósofo do
modos iludidos que geramos para a essencial – saber como viver? -. O
suportar, «Eu sonho um Eluêsis de essencial designa o original e
corações desenganados, um Mistério primordial, a posição invariável perante
próximo, sem deuses e sem a veemência os problemas últimos e as experiências
das ilusões»7. capitais, ao contrário da história que
Não se trata de uma filosofia da apenas mudaria o rosto das
cultura, comum naquele tipo de interrogações e das soluções. As
pensamento em que o que se diz e o seu questões e problemas fundamentais são
contrário é sempre legítimo e sempre os mesmos (a dor, o sofrimento,
defensável. Não é a cultura ou a a infelicidade conhecem apenas
civilização que estão decadentes, desde mudanças qualificativas) «Uma vez que
o início que são apodrecimento e nos sentimos morrer de solidão, de
decadência, não é o homem que está em desespero ou de amor, as outras
crise, o homem é catastrófico e ridículo emoções mais não fazem que prolongar
«Eu não sou amigo do homem e não esse séquito sombrio. A sensação de já
estou absolutamente orgulhoso de ser não poder viver depois de tais vertigens
um homem. E mais: ter confiança no resulta igualmente de uma compunção
homem representa um perigo interior…Aqueles que vivem sem se
ameaçador, a crença no homem é uma preocuparem com o essencial estão
grande necessidade, uma loucura. Eu salvos desde o início: pois salvam-se do
sou uma pessoa que no fundo despreza, quê, quando não conhecem o menor
poderíamos dizer, o homem. Desde perigo?»10.
logo, tenho ainda muitos bons amigos, As objeções de Cioran sobre
mas, se penso no homem em geral, considerar-se um filósofo referem-se
chego sempre à mesma conclusão: a de apenas a uma conceção dominante de
que talvez teria sido melhor que não filosofia e filósofo, «Para ter um lugar
tivesse existido nunca. Podia-se honroso na filosofia, há que ser
prescindir – por assim dizer – comediante, respeitar o jogo das ideias e
perfeitamente do homem»8. O homem, excitar-se com falsos problemas. Em
como o humanismo, são invenções sem nenhum caso, o homem tal como ele é,
sentido, «Esquecer o homem, e até a deve ser tarefa vossa» 11 . Como já
ideia que o encarna, deveria formar o vimos, é um filósofo, na aceção original
preâmbulo de toda a terapêutica. A da palavra, aquele que vive e pensa
saúde vem do ser, não dos seres, pois sobre o que vive, retornando esse
nada se cura pelo contato com os seus pensamento sobre o próprio modo de
males»9. A história não está em perigo, viver. A entrada tímida do seu
a história é o desastre, o conhecimento pensamento na universidade é mais que
prova a nossa falibilidade, assenta na compreensível, digamos mesmo que em
fabricação de ilusões, tal como a filosofia, nem devia ser admitido.
consciência (Somos aquilo que Cioran constitui ainda um desafio e uma
devíamos deixar de ser). descoberta, embora não adotado
institucionalmente e de modo
consensual, alcançou um lugar de
7
Cioran, O., p.540.
8 10
Cioran. Conversaciones, p.18. Cioran, O., p.23.
9 11
Cioran, O.,p.1077. Cioran, O.,p.639.

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reconhecimento, mas continua a suscitar nos afirmarmos. O saber, depois de ter


estranheza, pela vida, pela atitude e pelo irritado e estimulado o nosso apetite de
que despoleta a sua obra, saber como poder, conduzir-nos-á inexoravelmente
suportar a vida e procurar um saber para à perda»15.
a vida. Sabemos que a filosofia está
A sua condição de apátrida não é condenada ao trabalho do pensamento e
apenas geográfica ou identitária. Não se da ideia (o que é algo diferente de uma
insere nas duas grandes tradições filosofia enclausurada num universo
filosóficas contemporâneas, quer na verbal e transformada num mero deleite
filosofia continental, de matriz francesa intelectual ou num romance sobre a vida
e alemã, quer na filosofia anglo- e simples literatura ou nas antípodas,
americana. Aprofundar essa distinção como filosofia demasiado técnica e
requer uma tese, que não cabe neste fascinada com as suas criações
espaço, nem o questionamento das linguisticas) sobre o que somos e
virtualidades e defeitos de cada uma fazemos. A filosofia originária tem uma
destas tradições, que também implicam dimensão dramática que a
várias escolas, correntes e doutrinas. contemporaneidade quis perder.
Importa destacar que pensadores como Ocupar-se do que mais importa, do
Cioran, não se situam em nenhuma essencial, - a vida –e das respectivas
destas tradições, são pensadores questões irresolúveis, o que não quer
singulares e únicos. A sua filiação, dizer, inúteis ou dispensáveis, porque
refere-a em carta a Savater, «todos apontam caminhos.
aqueles, de Théognis a Beckett, que Cioran propõe uma outra
revelaram duvidas sobre a legitimidade abordagem sobre a vida humana, o
da existência» 12 tradição do papel da consciência e do
pensamento Ocidental, mas não só, são conhecimento, mas num grau de
comuns as referências a Nagarjuna, interrogação e profundidade onde o
Çandrakirti e Shantiveva da escola mundo e os seus problemas já não
Madhyamika «…depois da qual mais merecem sequer o nosso desprezo,
nada há a dizer» 13 e todos aqueles porque assumimos por completo a nossa
sempre geraram confronto e desprezo condição. A vida torna-se um exercício
pelo pensar instituído e vigente. de estilo, através do ofício formulado de
Diógenes o cínico é a sua figura tutelar, relatar e testemunhar as suas moradas,
«Foi o único que nos revelou o rosto convulsões e paradoxos. Esse itinerário
repugnante do homem…o maior parte das experiências pessoais e chega
conhecedor dos homens» 14 . Esta a constatações universais que se
tradição não é simplesmente refletem novamente na vida, como guia
caracterizado pela suspeita ou de orientação prática. O seu percurso, é
desconstrução, constitui sim, a feito não de convicção, certezas e
superação de uma lacuna na verdades, mas de desistências e
inteligibilidade sobre o nosso modo de abdicações, preocupado mais em negar
estar e responde à necessidade de um e dissolver que em afirmar. Trata-se de
saber desiludido e desencantado acerca um inventário do nosso
das supostas virtualidades e finalidades descontentamento, repulsa perante o
da existência, «Nascemos para existir, que no homem aparentemente triunfou,
não para conhecer; para ser, não para que se quer substituídos por um viver
sem ilusões, que traduz em atos os
12
Fernando Savater, Ensayo sobre Cioran – pensamentos, e as atitudes são erigidas
carta prefácio de Cioran, p.17.
13
Cioran, Conversaciones, p.56.
14 15
Cioran. O.,p.639. Cioran, O., 1008.

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a método. «Somente quanto se tem um menos profundo. A primeira


mínimo de ilusões é possível abordagem, a comum e vigente,
empreender algo, de contrário não é caracteriza-se por ser esquemática,
possível, nem uma amizade tão- analítica, eliminadora da contradição e
pouco» 16 . O conflito permanente do paradoxo, procura a objetividade, o
consigo, com deus e com o mundo é mundo definitivo das formas, os
inconcebível com as formas e métodos conceitos, as categorias e as formas,
de conhecer e viver vigentes. O seu expressa-se numa vida pobre e segura
domínio é inexpressável através de mas iludida. A segunda atitude nasce da
qualquer sistema ou teoria que não profundidade do nosso ser, é paradoxal,
tenha sempre presente a insuficiência da repleta de tensões e estados de ânimo.
palavra e do pensamento, «Como Esta zona só é acessível através de um
podemos consagrar-nos à filosofia tipo de pensamento visceral e vital. O
abstrata a partir do momento em que outro tipo de pensamento é impessoal,
sentimos em nós um desenvolvimento abstrato e estéril, vive num mundo
de um drama complexo no qual se pleonástico, «Prefiro mil vezes uma
amalgamam um pressentimento erótico existência dramática, atormentada pelo
com uma inquietude metafísica seu destino e submetida aos suplícios
torturadora, o medo da morte com uma das chamas mais ardentes, à existência
aspiração à ingenuidade, a renúncia do homem abstrato, atormentado por
total com o heroísmo paradoxal, o questões menos abstratas e que só
desespero com o orgulho, a premonição afetam superficialmente. Desprezo a
da loucura com o desejo do anonimato, ausência de risco, da loucura e da
o grito como o silêncio, o entusiasmo paixão. Que fecundo, pelo contrário, é
com o nada?»17. Esta é uma exigência um pensamento vivo e apaixonado,
outra, radical, de expressar o mundo, a irrigado pelo lirismo. Que dramático e
vida, o real e o sentido. O seu método interessante resulta um processo
estabelece uma via negativa em relação mediante o qual os espíritos em
à via que nos habituámos, ou seja, primeiro que tudo atormentados por
contrária à descrição do mundo que problemas puramente intelectuais e
assimilamos desde o nascimento aos impessoais, espíritos objetivos até ao
bancos da escola. É através das quedas, esquecimento de si, são, uma vez
dos momentos graves e dos abismos que surpreendidos pela enfermidade e o
se acede ao essencial e não de maneira sofrimento, fatalmente obrigados a
racional, sistemática, discursiva e refletir sobre a sua subjetividade e sobre
argumentativa. as experiências que devem afrontar!»19.
De modo esquemático podemos Sucede que a uma zona teórica,
distinguir no seu pensamento a há uma outra, pré-teórica, que é
referências a dois tipos de homem, esquecida ou escotomizada, e essa é a
concreto e ideal, um plano racional e sua base. A zona pré-teórica, é aquela
outro orgânico 18 , inseparáveis de dois onde o existir é fruto das expressões
tipos de atitude distintas, o atormentado orgânicas, vitais, e nos confrontamos
e o abstrato. Quanto mais conceptual com os nossos abismos e momentos
essenciais e capitais. Esta zona que
16
Cioran. Conversaciones, p.229. encontra a sua fecundidade no vivido e
17
Cioran, O., p.31. no paradoxo, caracteriza-se pelas
18
A sua conceção é vitalista e orgânica e
permitem uma aprendizagem, que só pode ser o
experiências-chave, as verdades vivas,
percurso de uma vida, para enfrentar as grandes os nossos desequilíbrios, patologias e
deceções. Ora, evitar grandes deceções implica
grandes desistências, das quais é árduo abdicar.
19
Cioran, O., pp.44-45.

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enfermidades, as antinomias e Estamos perante um pensar às


contradições interiores e da própria avessas de alguém que se intitulava um
vida. Esta zona só é expressável através marginal metafísico e se dedicou a ser
do sangue, dos gritos, das lágrimas, da mestre da vida, da sua própria vida. A
metáfora, da alegoria, do símbolo e da sua obra paradoxal, visa apreender o
fisiologia. «É o uso dos conceitos que carácter contraditório da existência.
nos faz donos dos nossos Este pensador da dissolução e da
temores…Batizando as coisas e os negação tem a pretensão de meditar
sucessos, iludimos o inexplicável» . A sobre o essencial, o primordial e
contradição e o paradoxo são princípios original de existir, e fazer coincidir o
mais realistas que qualquer princípio nosso modo de estar e ser.
lógico ou estritamente racional. Encontramos neste autor
É nesta zona que se encontra as marginal alguns pilares da filosofia.
“verdades essenciais”, que são as Uma Antropologia, uma ideia acerca do
“verdades vitais”. É neste plano que se homem, da sua natureza, condição e
alcançam as realidades capitais, as destino. Uma Ontologia e Metafísica,
revelações metafísicas dos últimos indagação sobre o ser por oposição ao
instantes e as visões que podem unir à não ser e aos modos de ser, uma via
essência do real «às visões das sapiencial acerca da legitimidade da
realidades essenciais, as quais vos nossa existência, «Deveria a existência
fazem viver como se tivésseis deixado existir? Ou tem ela uma causa
de viver» 20 . Os receios do homem puramente imanente? O ser não é mais
“abstrato” e racional” impedem o que ser? Porque não admitir um triunfo
acesso à totalidade da vida e escamoteia final do não ser, porque não admitir que
esta dimensão. a existência se dirige face ao nada, e o
A zona teórica torna a vida ser face ao não ser? Acaso não constitui
suportável sob um véu de falsidade ou este último a única realidade absoluta?
seja, gera uma perspectiva unilateral Este é o paradoxo tamanho do
sobre o que somos. Valoriza-se os mundo» 21 . A sua Antropologia,
produtos como o trabalho, a Ontologia, Ética e sabedoria, tem
inteligência, a objetividade e o esforço, aceções específicas e singulares, que só
justificados também através de mitos podem ser esclarecidas a partir do seu
que se afirmam como não o sendo, é o itinerário pessoal que vai do desespero
caso da razão, do poder das palavras, ao desengano e deste à lucidez,
dos conceitos, da lógica, da «Assediado entre a violência e o
racionalidade, da moral, das teorias, do desengano, assemelho-me a um
conhecimento intelectual e sistemático. terrorista que, tendo saído de caso com
Estes produtos são veiculados pela a ideia de perpetrar um crime, se tivesse
filosofia e pela ciência dominantes. detido no caminho para consultar o
Se Cioran é exímio no domínio Eclesiastes ou o Epicteto» 22 . O seu
do estilo (de escrita e de vida), na pensamento, aforístico, de textos curtos,
palavra certeira e intuição fulminante, o condensados, trabalhados como
lugar central do seu pensamento é diamantes, onde conta principalmente o
ocupado pelas experiências capitais, o resultado e efeito final, constituem, uma
alcançar de um ponto de vista ciência do desengano acerca do homem,
estritamente subjetivo mas ciência na aceção de conhecimento, o
universalizável, as experiências únicas que Fernando Pessoa, designava como a
que são de todos os humanos. pavorosa ciência do ver. Esta coloca a
21
Cioran, O., p.53-54.
20 22
Cioran, O., p.633. Cioran. O., p.1356.

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descoberto o mundo de ficções, nosso modo de ser, são lugares do seu


aparências e ilusões, por vezes pensamento.
necessárias, que encobrem a nossa Este iconoclasta das nossas
verdadeira natureza. O que é constante “verdades eternas” foi intencionalmente
no seu pensamento encontra-se numa no panorama filosófico, um solitário e
promessa de lucidez e arte de viver um marginal em relação ao pensamento
arrancadas às categorias do desencanto e à vida convencional e submissa, fez
e da desilusão acerca da vida. A sua do nada e do exílio, tanto metafísico
filosofia vivida e oral põe em causa as como físico, a sua pátria. É um marginal
formas usuais e correntes de sabedoria, metafisico por que se ocupa da natureza
e está nas antípodas da filosofia e da condição humana, do ser, da vida,
oficial.«Existem formas de sabedoria e do tempo, da história, do conhecimento,
de libertação que não podemos nem da consciência e da ação, mas sobre o
apreender por dentro, nem transformar registo do que permanece, sobre o signo
na nossa substância quotidiana, nem do insolúvel e do irreparável. Se é um
mesmo encerrar numa teoria. A metafisico, é, porque procura o que
libertação, se realmente a quisermos permanece, para além do que está
com efeito, deverá proceder de nós: não tocado pela caducidade, e continua para
devemos procura-la algures, num além dos limites das palavras e das
sistema já feito ou numa qualquer ideias, «Tendo abandonado a realidade
doutrina oriental. É todavia o que pela ideia, a ideia pela ideologia, o
frequentemente acontece com muito homem desligou na direção de um
espirito ávido, como costuma dizer-se, universo derivado, de um mundo de
de absoluto. Mas a sua sabedoria é subprodutos, em que a ficção adquire as
contrafação, a sua libertação um virtudes de um dado primordial» 24 . A
logro…Acuso…todos os que se valem sua procura interminável porque
de verdades incompatíveis com a sua impossível de uma clarividência
natureza. Um certo número considera a absoluta, obriga a um despertar, que é
Índia fácil, imaginando ter decifrado também físico. A sua insónia
todos os seus segredos, quando nada a permanente corrói a conceção de
isso os dispõe, nem o caráter, nem a existência, que se apresenta como
formação nem as inquietações. Que delírio construtivo e decomposição.
proliferação de falsos ídolos «libertos», A sua escola é a de insónia e da
contemplando-nos do alto da sua vertigem, aprendizagens que por mais
salvação»23 apetrechados que nos encontremos, só
Um epíteto que Cioran não podem fazer solitariamente, o saber
desdenharia, é que ele é o cínico adquirido na alma e na carne. Era ele
Diógenes no século XX, mas ainda que dizia das prostitutas, serem
assim Emile Mihai Cioran. A atividade academias ambulantes. Em relação ao
de deambular pela terra, olhar os essencial só há conhecimento a partir do
homens com as suas misérias e ilusões, individual e do subjetivo, tanto mais
os fogachos de grandeza e a imunda importante quanto mais importante,
fragilidade, como nos dizia quanto é passível de ser universalizável
Shakespeare, ter sempre presente a e trans-épocal.
maldição que também é olhar e pensar, O pensamento de Cioran
fazer da vida concreta a matéria do alicerçar-se numa outra gramática e
pensamento, procurar um modo de estar semântica do mundo. Reconhece não
apaziguado que é aprofundamento do ser possível dizer o que é, alcançar um

23 24
Cioran, O.,p.823. Cioran, O., p.998.

29
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saber, mas apresenta um não saber, chave interpretativa para uma linha
dizer o que não é. A sua filosofia geral do pensamento sobre a tipologia
procura e sabe da loucura dessa tarefa da presença humana a partir um
que é tentar apreender a existência conjunto de temas coerentes e
humana na sua estrutura essencial. Ora, harmónicos entre si.
apreender o essencial, significa não Mas atenção, não encontramos
adotar uma postura unilateral por mais um sistema, mas um conjunto de
sofisticada ou aparentemente rigorosa e atitudes, um pensamento em ação e um
esclarecida. A vida é animada por uma conjunto de temas que são obsessões. O
tensão paradoxal que ganha em filão do seu pensamento brota do que só
acutilância compreensiva se entendida individual e intensamente se pode
como regida pelo dualismo, mas que é descobrir, e pela profundidade que toca,
um dualismo adjetivado como alcança os lugares fundamentais da
venenoso; vida/ pensamento, experiência humana. Essas
ato/pensamento, ato/realidade, exterior / experiências, que só podem ser
interior, subjetivo/objetivo, subjetivas, universalizam-se, centram-se
prática/teoria, subjetivo/universal, no que é marcante para todos os homens
instante/tempo, tempo / eternidade, em todas as épocas, o constitutivo, o
ser/não ser. que é comum e fundante em todos os
Após a leitura da sua obra, homens. Viver é cumprir a nossa
sepultei umas linhas sobre Cioran e a condição e natureza, cumpri-las e
Filosofia, num texto para uma revista, assumi-las, e não mistifica-las. A nossa
depois cometi uma imprudência existência não possui um sentido ou
voluntária, ao publicar um livro25 sobre finalidade mas agimos como se tivesse,
o seu pensamento, a partir de um «Tudo é possível e nada o é; tudo é
trabalho académico. Entre a fidelidade permitido e nada o é. Qualquer que seja
ao filósofo e a necessidade de sobre ele a direção que tomemos, não será melhor
dialogar, a escolha foi fácil. Exerci a que as demais. Realizemos algo ou
minha liberdade e despudor. A nada, criemos ou não, é tudo o mesmo,
admiração, e somos humanos, não como vem dar ao mesmo gritar ou calar.
dispensa a traição. Difícil seria não Pode-se encontrar uma justificação para
abordar e partilhar o que não nos deixa tudo como nenhuma. Tudo é por sua
indiferentes e incomoda. vez real e irreal, lógico e absurdo,
Apresento duas perspetivas glorioso e anódino. Nada vale mais que
possíveis para uma leitura estruturada nada, tal como nenhuma ideia é melhor
de um pensamento que não é que outra» 26 O nosso mundo ou
sistemático mas que expõe uma realidade é uma mistificação, como tal,
profunda coerência temática e uma um logro que fingimos ser verdadeiro.
visão de fundo unitária. Primeiro, A vida seria irracional e submetida às
importa fazer uma ressalva, pois uma “leis” cósmicas e biológicas. As
das características principais do religiões, as leis, as normas, os valores e
pensamento de Cioran é o seu caráter a teorias são ilusões, e por detrás das
antissistemático. Fornecerei uma ilusões nada há. O que há são
possível leitura da obra e apresento uma estratégias de sobrevivência, delírios
criadores do nosso verbo.
25 Destacamos na sua obra uma
O pensamento insuportável de Emile Cioran.
antropologia negativa, mostra o que não
Um itinerário do desespero à lucidez. Campo
das Letras, Porto/Portugal, 2006. Não se trata de somos, «Ao contrário de todos os outros
uma publicidade ao livro, ele encontra-se
esgotado, a editora faliu, e não se vislumbra nos
26
próximos tempos, eventual reedição. Cioran. O., p.95/96.

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seres, que têm o seu lugar na natureza, o indissociável da penetração na estrutura


homem é um ser divagante, perdido na do agir e simultaneamente vincula uma
vida e insólito na criação…Cada um proposta de vida da qual se extraem
sofre em si essa unidade de desastre que ensinamentos.
é o fenómeno humano»27 . A noção de Na resposta sobre o que é o
homem e do caminho seguido é crucial, homem? Encontramos uma
«O homem é um falhado sem dúvida, antropologia e ontologia negativa, a
mas um falhado magistral» 28 . Uma questão do sentido e do destino, a
ontologia negativa, a negatividade da importância do suicídio, a
nossa constituição, «Nascemos para especificidade do nosso modo de ser
existir, não para conhecer, para ser, não como modos de descomposição, a
para nos afirmarmos. O saber, depois de tragédia do conhecimento, a consciência
irritado e estimulado o nosso apetite de como fatalidade, o agir que nos torna
poder, conduzir-nos-á há lamentáveis, o artificio da palavra, a
inexoravelmente à nossa perda» 29 . O história como anomalia e a utopia como
negativo tem a aceção de nocivo, fascínio do impossível, a inexistência do
imperfeição e menoridade, progresso e o fim da história, o estado
características que não queremos e original e a queda, o homem e o tempo,
fingimos não ser, mas somos. Essa é a a superação do tempo.
nossa grandeza e o nosso ridículo. Ser A terceira radica na constatação
homem, é um erro, uma fissura no ser. que a conceção Ciorânica de existência
A existência tem que se observada sobre implica uma proposta de viver, uma
a perspetiva do erro, do engano e da orientação do pensar e uma exigência de
ilusão. Na verdade, vivemos, mas não ser. Procura um modo de vida que
sabemos porque aqui estamos e o que realize a identidade entre a estrutura
fazemos. essencial do ser humano e um agir
No livro que publiquei sobre compatível com a estrutura autêntica do
Cioran destaco três grandes linhas de nosso ser. A opção pelo essencial é
leitura da obra. Na primeira, pretendeu- exortação a uma prática transformadora,
se aceder à génese e matriz do seu que bem pode ser, um saber da nossa
pensamento, às marcas que o impotência e do irrisório da nossa
singularizam, o seu “método” e condição e da fragilidade das nossas
discurso, traduzidos numa atitude e conquistas.
modo de estar e ser perante a existência. Uma outra chave para a leitura
Nestes situam-se a patologia e a do seu pensamento tem ressonâncias
enfermidade, um pensar orgânico e uma Gregas e Medievais, mas
fisiologia das ideias, as experiências e o particularmente têm um vasto
significado do desenraizamento, as desenvolvimento em autores gnósticos,
atitudes como expressões de um pensar e sabemos da predileção de Cioran pelo
radical, o temperamento como método, gnosticismo, ele mesmo um gnóstico
a opção precisa por um estilo como laico. Utilizaremos como chave possível
modo de vida, a unidade inseparável e provocatória, para uma distinção da
entre viver e pensar, a necessidade da mundividência de Cioran, uma
escrita como terapêutica. afirmação que surge no extrato de
A segunda incide sobre um tema Theodatus, mestre gnóstico de
nuclear da sua obra, a nossa natureza, Clemente de Alexandria, «Gnosis sobre
condição e essência. Este tema é o que erámos e no que nos tornámos;
onde estávamos e onde viemos parar;
27
Cioran, O., p.63-64. para onde nos dirigimos e onde somos
28
Cioran, O.,p.1080. redimidos, o que é a geração e o que é a
29
Cioran, O., p.57-59.

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regeneração» 30 , Saber quem nós absoluto e a eternidade, que mais não


erámos? Onde estivemos? Para onde a são que as leis e ritmos do cosmos e da
queda nos arrastou?. natureza. O nosso estado primordial e
Estas questões e respostas condição original encontram-se nesse
parecem desatualizadas ou superadas, viver o mais próximo da nossa natureza,
porque carentes de respostas definitivas não negá-la nem deformá-la. «É a
ou de uma teoria comprovável, tal não imagem de um mundo estático, onde a
deixa que constituam o fundo de identidade não para de se contemplar a
grandes interrogações humanas. Quem si própria e onde reina o eterno
somos? qual o sentido da nossa ação e presente, tempo comum a todas as
vida? são a matriz do pensar filosófico, visões paradisíacas, tempo forjado por
e não é possível nem desejável posição à própria ideia do tempo»31
desperdiçar séculos de uma tradição A crítica ao humanismo, de
nem a fecundidade conceptual dos autores como John Gray32, assenta sobre
grandes metafísicos e filósofos. Os essa grande mistificação Ocidental, a
grandes metafísicos não são só invenção do conceito de homem e
construtores modernos dos grandes excelência das nossas propriedades
sistemas, mas também aqueles que “humanas” que mascaram uma
perante o espanto e o terror pensavam dimensão constitutiva do que somos,
sub specie aeternitatis a natureza animalesca e letal. O grande embuste,
humana. Nesta aceção, Cioran, com consiste nas representações que o
uma obra aforística, aparentemente homem forja acerca da sua excelência.
subjetiva e estritamente pessoal, reaviva O ser identifica-se com as forças
e recoloca a grande metafísica do ser e incontroláveis da natureza e do cosmos,
do não ser. Quando referimos antigos a irracionalidade dos seus ritmos, a sua
gregos e medievais, não podemos dialética “diabólica”, imparável. Para
esquecer que muita filosofia medieval Cioran, o ser, é o que é, foi e será, neste
envolve em conceitos religiosos, plano não é a afirmação, mas o nada e o
problemáticas anteriores da filosofia vazio que triunfam assim como a
Grega. exuberância e irracionalidade da vida,
Utilizamos o parágrafo de as leis da natureza e do cosmos, que
Theodotus pra estabelecer uma divisão tudo anulam e devoram
que permitem ler etapas cruciais do indiferentemente, «…o naa é primordial
pensamento de Cioran. (onde, no fundo, tudo é nada)…muitas
Onde estivemos e quem nós flores sorrirão ainda ao sol quando já
erámos? não encontrarmos nenhum rasto das
Se o homem é um interlúdio, nossas ideias» 33 . A ciência e a razão,
entre um antes e um depois, um são armaduras frágeis e tão equivocadas
acidente da matéria, um nada de ser, como a crença ou a religião. O ser,
uma modo de não ser. O ser não paradoxalmente, é o que não é, onde
significa algo de divino, mas o que é não há sentido, finalidade, projeto ou
original e primordial, com o qual se
identificam características como o 31
Cioran. O.,p.1025-1026.
32
Filósofo Politico Britânico, refiram-se a título
de exemplo as obras, Enlightenment's Wake:
30
Theodatus foi mestre gnóstico de Clemente de Politics and Culture at the Close of the Modern
Alexandria. Essa passagem encontra-se nos Age, 1995, False Dawn: The Delusions of
extratos de Theodatus mas também no Global Capitalism, 1998, Straw Dogs:Thoughts
Stromatos de Clemente de Alexandria que on Humans and Other Animals, 2002, Black
contem os ensinamentos do seu meste. Esta Mass:Apocalyptic Religion and the Death of
fórmula está também presente em Ireneu em Utopia, 2007.
33
Adversus Haeresis, I,II, 4. Cioran. O, p.172.

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realização. A identificação com essas objetividade, é inútil. Sabemos contudo


características significa quietude, como o próprio pensamento científico,
homogeneidade e indistinção. A sede de colocou em causa a ideia de rigor e
nos distinguirmos e afirmarmos, não objetividade, e como há zonas da
aceitarmos as “regras” naturais do existência humana que escapam a
irreparável, do irrevogável e do qualquer apreensão científica.
insolúvel, são a nossa perda, a luta Obviamente, a opção, não é o vale tudo,
condenada à derrota. «Todos estes ou a mais delirante especulação ou
milhões de anos em que o universo deriva literária. Sabemos como Cioran
passou sem nós não provocam um valorizava no conceito, acima de tudo, o
sentimento de vazio e incompreensão seu potencial expressivo e de apreensão.
mais perturbador que o nosso Um conceito vale pelo seu potencial
desaparecimento. Desde o não começo interpretativo, pela capacidade
do nada até ao primeiro homem, a metafórica, pelo que sugere e induz.
consciência não se ressentiu como um Acredita Cioran literalmente não
vazio nem o homem como uma na sua metafisica? Ele acredita na
necessidade. Absolutamente nada fecundidade deste tipo de conceitos, do
preparou a aparição do homem. O que sugerem e permitem, com sabe que
universo podia ter desaparecido sem qualquer outro conceito ou de outro
saber nada dele mesmo»34. registo disciplinar não garantem mais
A vontade humana, o querer, se evidência ou rigor. A cientificidade é
têm uma dimensão grandiosa, este é por também uma crença. Por exemplo, na
sua vez, substancialmente patético. O afirmação que o homem é um ser caído,
homem é resultado de uma fratura ou a queda não tem que ser efetiva ou
cisão na ordem da unidade, somos a literal, mas simbólica, nessa aceção o
negação do que foi, é e será. homem é na ordem natural, uma
Uma segundo etapa, aquilo em aberração, um desvio, e o mais
que nos tornámos. apropriado é designá-lo de heresia.
O homem resulta dessa Cioran falava-nos do potencial
singularização, diferenciação funesta da interpretativo do mito do pecado
unidade e tentação de existir. O tema da original, «Tendo substituído os mitos e
unidade / singularização35 é um capítulo os símbolos pelos conceitos, cremo-nos
determinante da metafisica e ontologia mais avançados; mas esses mitos e esses
Ocidental, e estabelece numa das suas símbolos não exprimem menos que os
vertentes a conotação da individuação nossos conceitos. A Árvore da Vida, a
com a multiplicidade, a fragmentação, a Serpente, Eva e o Paraíso, significam
corrupção e o devir. tanto como: a vida, o conhecimento, a
Poderíamos objetar sobre a Tentação e o Inconsciente. As figuras
inadequação e anacronismo da concretas do bem e do mal da mitologia
utilização desses conceitos, mas esse é o vão tão longe quanto o bem e o mal da
registo do “espírito do tempo”. Uma ética» 36 , não é um acontecimento
ressalva, um conceito que não tenha as histórico, mas compreendemo-nos
características de “científico”, não melhor nesse plano metafórico, «Como
ofereça as possibilidades de rigor e toda a grande teoria, a da Queda explica
tudo e não explica nada, e tão
34
dificilmente resulta servirmo-nos dessa
Cioran. O.,p.242.
35 ideia como não o fazer. Portanto, se a
A dicotomia unidade /diferenciação está
sempre presente, a singularização é um modo queda é imputável a uma falta como é a
nefasto de afirmação. A nostalgia da unidade e a
afirmação como modalidade da cisão, adquire
36
contornos ontológicos. Cioran, O., p.706.

33
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uma fatalidade, a um to de ordem moral Cioran procede a uma autópsia


como a um principio metafísico, ela implacável do nosso modo de ser, o eu,
explica, ao menos me parte, os nossos é ambição e querer ser, a razão é
extravio, os nossos atoladouros, as sinónimo de impotência, a consciência é
nossas buscas infrutuosas, a terrível a marca da nossa fatalidade, o espírito
singularidade dos seres, o papel significa a perda de vitalidade, o
perturbador de animal desprotegido e conhecimento é a marca da nossa
inventivo que se deparou ao homem. E tragédia e inferioridade biológica. Os
ainda que esta teoria comporte mitos principais que invocamos para
numerosos pontos duvidosos, existe no agir, são a história, farsa sangrenta e
entanto um cuja importância não se símbolo da nossa anomalia. Esta não
pode duvidar: a que faz remontar à possui qualquer finalidade ou
origem a nossa decadência a separação racionalidade, o tempo marca a nossa
do todo» 37 . O pecado, a traição, dependência do momento e do
significam o desvio de uma ordem acontecimento, é o nosso principal
natural, a falta é a nossa insuficiência drama, a desenrolar no palco que é a
constitutiva, a nossa limitação e história, Depois de ter desbaratado a
carência. Afirmamo-nos como eternidade verdadeira, o homem cai no
negatividade, que é agitação, ou seja tempo, onde não conseguiu, senão
atividade. prosperar, pelo menos, viver: o que é
Para onde a queda nos facto é que ele se acomodou. O
arrastou? processo desta queda e deste
Responde também Cioran, acomodamento tem o nome de
séculos depois. Caímos no tempo. história»38. A ação é a concretização da
Pretendemos ser tudo, não somos quase nossa incompletude e carência,
nada, somos o que não desejamos ser, exposição do nosso frenesim, e revolta
aspiramos a ser o que não somos, contra as leis da natureza. O progresso é
queremos ser um outro, daquilo que o exemplo dos nossos falsos absolutos,
somos. E veja-se o cardápio da nossa do mito do aperfeiçoamento indefinido
“excelência”; curiosidade, inveja, poder, e da mentira do sentido. Ao progresso
vontade, satisfação, desejo, juntam-se outros mitos fundamentais,
insubmissão, rebelião, ódio, ambição, como o futuro, a novidade, a realização,
ressentimento e agressividade. Eis os a cultura e a civilização. Marcas
traços principais da nossa afirmação: a utópicas da nossa desnaturalização e
megalomania, falhada magistral, decadência intrínseca. A nostalgia, o
precariedade, imperfeição, debilidades, sofrimento e a dor, são as provas da
aflição e insuficiência. nossa inadequação a este modo de não
As nossas características ser, e como está presente um outro
principais são modos de decomposição, modo de estar basilar. Contudo
O homem é uma menoridade de ser, a reconhece essa vitalidade que
aventura da nossa presença é um impulsiona a agir e o fracasso de a ela
conjunto de peripécias. O problema não ceder «Não tive a sabedoria de ter
está tanto no nosso modo de afirmação, inexplorado as minhas virtualidades,
mas em não reconhecermos nele, o que como os verdadeiros sábios que admiro,
verdadeiramente somos, como as
consequências das nossas dimensões. 38
Cioran, O, p. 1031. Atemática do tempo é
fundamental em Cioran, distingue a queda no
tempo, da queda do tempo, uma antes do tempo
37
Cioran, Ejercicios de Admiracion y Otros e um depois, uma eternidade verdadeira e uma
Textos, Tusquets editores, Barcelona, 1992, eternidade falsa. Veja a obra, La Chute dans le
p.23. Temps.

34
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os que não fizeram nada,


deliberadamente nada com a sua vida»39

39
Cioran, Conversaciones, p.178.

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