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Oração, Jejum e Esmola

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Oração, Jejum e Esmola


Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho

Transcrição não revisada ou corrigida pelo professor.

Boa noite. Esta é mais uma aula sobre o tema “Oração, Jejum e Esmola” (digo
que é mais uma aula porque já dei a mesma aula outras vezes, não porque se trate de
uma série). Naturalmente, cada um desses elementos da religião – a oração, o jejum
e a esmola – exigiria uma ou várias aulas. São temas que podem ser tratados
amplamente. Há muito o que se discutir acerca de cada um desses elementos. É
impossível explicar exaustivamente do que eles são numa única aula. Então,
geralmente é escolhido um ou outro aspecto de cada um desses elementos da religião
e tentamos explicar a importância daquele elemento a partir daquele aspecto. Pode
acontecer de falarmos uma coisa numa aula e, noutra aula, ressaltarmos outro
aspecto.

A primeira coisa a fazer é lembrar por que, de todas as práticas da religião,


enfatizamos esse ternário. É fácil notar que esse ternário foi enfatizado pelos Santos
Padres, e o princípio para essa ênfase está no Evangelho de Mateus: no Capítulo 6
de Mateus, no meio do Sermão da Montanha, o Cristo destaca essas três obras como
especiais, diferentes de outras; essas são as três obras que Ele menciona
explicitamente como as que devem ser feitas em segredo ou com discrição. Ele fala
primeiro da esmola, depois da oração – o contexto no qual Ele ensina o Pai Nosso –,
e por último do jejum. Das três, Ele fala a mesma coisa: devem ser feitas de maneira
discreta, de maneira a não chamar a atenção dos outros, indicando que são três
atividades que se referem quase diretamente à relação do homem com Deus. Em
certo sentido, não dizem respeito aos outros: você não precisa fazê-las diante dos
outros, não precisa justificá-las diante dos outros. São obras que estão diretamente
ligadas à relação do indivíduo com Deus.

Podemos estender esse ponto amplamente e perguntar “Por que três obras em
particular, e não quatro, cinco, seis? Ou só duas, ou uma?”. Pode-se fazer uma
correlação entre esta passagem do Evangelho que destaca essas três obras e a
passagem da Primeira Epístola de São João, em que ele fala que tudo o que há no
mundo é três coisas: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida. E acrescenta: “Tudo isso é do mundo e não é do Pai. Não é a isso
que o homem deve entregar sua vida”. Ele está falando que se uma pessoa não tiver
uma disciplina de oração, jejum e esmola, a sua vida será entregue à essas outras três
coisas, e que a vida de oração, jejum e esmola existe para, em certo sentido, resgatar
o conjunto da sua vida e reorientá-lo para Deus.

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Oração, Jejum e Esmola

Como isso acontece? A alma é feita de desejo, de inclinação. Viver é passar


por experiências satisfatórias ou insatisfatórias. Nas experiências satisfatórias,
tendemos a repousar, naturalmente; elas são um fim de repouso para a alma, porque
a alma é feita de desejo. As experiências insatisfatórias, ao contrário, inclinam a
alma ao movimento, a sair de onde ela está para mudar sua condição. Viver para o
ser humano, e para os animais também, é alternar estados de repouso e de inclinação
a mudar, alternar estados de repouso e mudança. Quando passamos por uma
experiência satisfatória e repousamos nela, a maior parte das pessoas adultas e
normais sabe que aquela experiência satisfatória não durará para sempre. Mesmo
sem levar em consideração o fato da morte – “Um dia eu vou morrer, e aquela
sensação satisfatória, que certamente envolvia um cenário físico, vai desaparecer,
não vai estar diante de mim” –, eu sei que toda experiência neste mundo tem um
limite de duração temporal: a uma experiência se sucederá outra. O sujeito descansa
agora, amanhã vai estar cansado, vai ter que trabalhar e descansar de novo, e assim
por diante. Nenhuma experiência se estende indefinidamente, nem a experiência
insatisfatória, nem a experiência satisfatória. Todo mundo sabe disso e ninguém
espera, racionalmente, que uma experiência satisfatória se estenda indefinidamente.
Mas dizer que ninguém espera isso racionalmente de uma situação não significa que
não haja algo em nós capaz de nutrir essa expectativa. Se por um lado somos
dotados de inteligência racional, por outro não somos completamente feitos de
inteligência racional. Isso significa que toda alternância de experiências satisfatórias
e insatisfatórias na nossa alma deixa um fundo de expectativa. É natural que haja em
nós uma expectativa de que a vida pode mudar de uma experiência satisfatória para
outra experiência satisfatória, para outra mais satisfatória, para outra um pouco
menos, mas ainda assim de tipo satisfatório. É fácil, diante dessa alternância de
experiências, a imaginação bem discreta ou sutilmente, conceber essa possibilidade
de a vida tornar-se uma sucessão de experiências satisfatórias. Olhando para si
próprio, é quase tangível para o sujeito perceber que essa expectativa existe bem no
fundo da sua alma. Ela não existe no plano da atividade racional; quando você pensa
sobre a vida, você sabe que a vida vai ser uma sucessão ou alternância de
experiências satisfatórias e insatisfatórias. Mas se você olhar lá no fundo, lá
embaixo, há algo dentro de você que diz “É, mas seria melhor se ela fosse uma
sucessão de experiências satisfatórias. Seria melhor se tudo fosse satisfatório”.

Embora no seu conteúdo material direto essa expectativa seja pura ilusão, você
pode fazer uma transposição analógica, uma transposição simbólica e falar “Essa
expectativa de satisfação é razoável no Paraíso, mas não é razoável na Terra. É
razoável no Céu, mas não na Terra”. Em certo sentido, o que o sujeito faz com isso é
pegar a base passiva mais elementar da alma, que é onde está sediada essa
expectativa, e apontá-la para uma direção que se abre para você na parte mais alta da
alma – na parte que é capaz de conceber um Absoluto, uma imortalidade, um Céu,
um Deus, um Inferno –, e falar “Essa expectativa pode ser atendida naquela
dimensão ali”. Dá para perceber que essas duas coisas estão em planos diferentes na
sua alma? Na verdade, esse é um dos pontos que me faz achar estranho quando as
pessoas falam “As pessoas acreditam em Deus ou na religião como uma projeção
dos seus temores e dos seus desejos”. Eu acho isso tremendamente estranho, porque
normalmente existe uma grande descontinuidade entre as crenças religiosas de uma
pessoa e suas esperanças e desejos e temores. Se a religião fosse uma transposição,
digamos, psicológica das esperanças e temores, a maior parte das pessoas religiosas
seria extremamente boa na prática de sua religião. E a verdade é que as melhores

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pessoas que têm religião enfrentam uma batalha constante entre uma dimensão e
outra da alma, quer dizer, a dimensão de sua crença consciente, racional e
deliberada, e a do seu desejo de satisfação ou medo de frustração mais básico, mais
primitivo, mais imediato. Pelo contrário, o esforço na vida de religião é o sujeito
criar uma ponte entre uma coisa e outra; é o sujeito criar uma ponte entre a sua
crença universal, entre sua fé e o desejo que ele tem agora de violar um
mandamento, ou o medo que ele tem agora de cumprir um mandamento e ter uma
desvantagem ou enfrentar um problema por causa disso. Normalmente, essas duas
coisas não estão diretamente ligadas.

Um dos aspectos dessas três obras (oração, o jejum e a esmola) é justamente o


sujeito romper com o estado habitual de expectativa nas coisas terrestres. Veja bem,
quando se fala da expectativa de satisfação, naturalmente se fala da expectativa
gerada pelas experiências satisfatórias terrestres, e ela, portanto, se volta
naturalmente para as experiências terrestres. Às vezes, acontecem coisas
desagradáveis e pensamos “Puxa vida, como seria legal se só acontecessem coisas
agradáveis”. Imediatamente espantamos esse pensamento como mera superstição,
mera fantasia. Mas algo em nós continua desejando esse estado de satisfação
permanente. Isso significa que há algo em nós que, a cada situação que estivermos
testemunhando no mundo, está procurando ali a oportunidade de satisfação. E, no
entanto, sabemos que nem toda situação oferece uma possibilidade de satisfação;
algumas situações são simplesmente insatisfatórias. Sabemos que o mundo terrestre
é feito de dualidade, de experiências agradáveis e experiências desagradáveis, de
experiências satisfatórias e experiências insatisfatórias, e, no entanto, não
conseguimos eliminar esse fundo de expectativa.

Oração, jejum e esmola são atos nos quais o sujeito deliberadamente se separa
do mundo – “Não vai haver satisfação, a satisfação está em outro lugar” – e depois
volta para o mundo com um olhar diferente. São exercícios para o sujeito habituar a
alma a esperar sua felicidade de uma dimensão não terrena.

Há dois tipos de valor nesses exercícios. Existe primeiro um valor que é


potencial, e que vai valer para você no momento da morte ou depois da morte; esse
valor potencial é que foi prescrito por Deus. Deus ensinou a fazer assim, os santos
fizeram assim, e, portanto, fazer isso é uma conformidade objetiva a uma mensagem
divina, e eu faço isso com uma intenção de agradar a Deus e de lembrar que minha
pátria não é desse mundo. Ao fazer uma coisa assim, ela terá um valor objetivo; esse
valor objetivo poderá ser resgatado – e o será – na morte. Muitas pessoas levantam a
objeção “Eu rezo e rezo, jejuo e jejuo, dou esmola e dou esmola, e não acontece
nada. Não mudei em nada, continuei o mesmo!”. Bem, dependendo de como fizer
essas coisas, você só poderá resgatar o valor delas na morte. Por quê? Porque isso
foi uma ruptura simbólica com o estado habitual da alma humana; não foi uma
ruptura efetiva. Foi uma ruptura virtual: você representou uma atividade espiritual
com a intenção de alcançá-la, mas não existe condição real de você obter este
resultado agora. Outras vezes, não. Também há uma outra escala de valor da oração,
do jejum e da esmola que é a escala da efetividade, quer dizer, existem exercícios
espirituais que, uma vez feitos, você obtêm o resultado na hora, ou em pouco tempo
depois. E então é possível medir o progresso espiritual do sujeito pelos resultados
que ele está obtendo nessas atividades. O importante é o sujeito saber que, se o ato
foi feito em conformidade com o modelo tradicional e com a intenção de satisfazer a

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Oração, Jejum e Esmola

Deus – isto é, foi feito com sinceridade –, o resultado será obtido mais cedo ou mais
tarde, nesta vida ou na outra. Mas será obtido. Se o sujeito quiser obter um resultado
antes da morte, então não basta que ele simplesmente faça isso, que ele
simplesmente se exercite nessas atividades. É preciso que ele as compreenda,
compreenda o que as torna eficazes ou ineficazes, e compreenda quais são os
obstáculos na sua mente e na sua vida que o impedem de obter esses resultados
agora.

Imagine dois soldados num campo de batalha seguindo a estratégia


determinada pelos oficiais. Vamos supor que a estratégia seja boa. Ora, um soldado
lá está repetindo “Vou seguir exatamente as instruções que me foram dadas”, e um
outro compreendeu a intenção das instruções e as vai adaptando no curso da batalha,
de acordo com o cenário presente. Os dois estão fazendo uma coisa boa, mas um
está fazendo melhor que o outro e já está obtendo algum resultado. Aquele que está
analisando o cenário e analisando as ordens e as compreende, evidentemente já está
vendo algo do progresso da batalha naquele momento. Ele testemunha o progresso
da batalha no seu próprio desenrolar, enquanto o outro não sabe: “Estou esperando.
Quando a batalha terminar, vou saber se a estratégia era boa ou não”. Essa é uma
boa comparação, porque a vida espiritual é realmente uma batalha, é realmente um
esforço contínuo de impedir o progresso de certas forças. Em certo sentido, o ser
humano é a última fronteira entre o mundo do espírito e o mundo da matéria. Ele é
então o guardião da muralha, que é a fronteira. Ele tem que estar a cada hora
lutando, porque, se parar de lutar, ele vai passar para o lado da matéria e perder o
espírito.

Atenção: quando falamos do “lado da matéria”, não se deve pensar – sempre


que entramos em assuntos de religião ou vida espiritual – “Ah, mas isso é
gnosticismo, você está falando que a matéria é ruim!”. Não, não estou falando que a
matéria é ruim; estou falando que o mundo da matéria é ambíguo. Nem tudo que
parece bom é bom, nem tudo o que parece mau é mau. É ambíguo. O mundo da
matéria não é de leitura simples. Se o fosse, ninguém precisaria de nenhum tipo de
educação moral ou espiritual. Se tudo o que o sujeito sentisse que é bom fosse bom,
e tudo o que sentisse que é mau fosse mau, ninguém cometeria nenhum erro jamais.
É evidente que cometemos erros porque lemos as situações de maneira errônea. Nós
interpretamos errado o que estamos sentindo e o que estamos vendo. Isso significa
que todos somos profundamente incompetentes? Não. Significa que o objeto é
ambíguo, que o objeto não tem um valor fixo e permanente que possa ser entendido
de maneira clara. As coisas não têm sempre o mesmo valor.

Um exemplo tirado do jejum: o sujeito faz jejum. Naquele dia, ele não comeu.
Mas comer é um negócio muito bom. Se fizermos uma leitura geral do valor,
veremos que o alimento é bom e o veneno é ruim. Não há dúvida. Mas toda vez em
que eu como, não estou apenas satisfazendo uma necessidade fisiológica e outra
estética – ingerindo nutrientes e saboreando algo agradável –, embora, geralmente,
isto esteja acontecendo. Eu estou, cada vez em que como, reiterando ou reforçando
na minha mente também uma relação com esse mundo. Todo dia eu como, todo dia
eu como: todo dia eu estou lembrando que faço parte desse mundo, porque o
alimento existe nesse mundo. Então o sujeito, de vez em quando, jejua para lembrar
que ele só está nesse mundo, mas ele não faz parte dele. Essa prática é,
simplesmente, quebrar um hábito mental.

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Oração, Jejum e Esmola

Essa é uma dimensão desses três exercícios. Todos eles contribuem para o
sujeito quebrar uma relação habitual com este mundo. Em certo sentido, servem para
o sujeito lembrar que não é parte disto, que não foi feito para ser parte disto, e que
ser parte disto aqui é só um treinamento para outra coisa. Isso vale para o jejum,
para a esmola, e para a oração. Na verdade, se você observar, essa dimensão de
quebrar o hábito da relação com este mundo corresponde à primeira objeção que as
pessoas fazem a essas atividades: “Por que eu vou dar esmola se eu preciso do
dinheiro? Se o dinheiro é meu, para quê dá-lo se posso fazer um bom uso para
mim?” ou “O mendigo vai fazer um mau uso do dinheiro” ou “Por que vou fazer
jejum, se isso não importa? O que importa é o espírito. E comer é bom, é uma coisa
natural” ou “Para quê vou rezar, se Deus já sabe tudo?”. Primeiro, você vai fazer
para quebrar os hábitos da sua mente de achar que só porque algo tem um valor
aparente constante quer dizer que tenha um valor absolutamente fixo. É verdade que,
regular e normalmente, o alimento é um bem. O problema é quando você, depois de
dez dias comendo todos dias, se acostumou com isso pensando “Caramba, comer é
bom, comida é bom”, e daí conclui que este mundo é bom, porque tudo isso depende
deste mundo. A verdade é que, sob certo aspecto, este mundo é mau para você,
porque um dia ele vai embora, e você vai ter que continuar vivendo, de um jeito ou
de outro. Você então precisa quebrar, habitualmente, a relação de familiaridade com
ele. E essas três coisas – tanto a oração, quanto o jejum e a esmola – têm esse
primeiro aspecto: rompem o fluxo habitual da vida como pura relação sensória com
este mundo. Em certo sentido, no caso da oração, é quase o inverso. As pessoas
pensam “Deus já sabe tudo. O que eu vou falar com Ele?”. Deus já sabe tudo, é
verdade, mas você não está o tempo todo consciente de que Deus sabe tudo. Se você
estivesse o tempo todo consciente de que Deus sabe tudo, se você parasse e pensasse
“Há um cara olhando pela janela”, você não faria metade das coisas que você faz.
Pois bem, Deus não precisa de janela. Falar que “Deus sabe tudo” não significa que
você está cônscio dessa presença o tempo todo, e a oração é um ato deliberado de
tomar consciência da presença divina. É uma ruptura com o estado habitual de
inconsciência.

Por que existem esses três exercícios? Porque a relação do homem com este
mundo – “este mundo” entendido como a consciência habitual que eu tenho dele,
como conjunto de experiências, logo não se trata de um juízo ontológico –, a relação
habitual do homem com este mundo é só um lado da moeda da existência humana. É
claro, o homem tem que encontrar um encaixe entre si mesmo e o mundo, senão ele
não sobrevive. Mas ele também tem que lembrar, de tempos em tempos, que esse
encaixe é um arranjo provisório e sempre terá algo de insatisfatório. Ele não pode se
entregar ao mundo completamente. Então, oração, jejum e esmola são, exatamente,
as atividades do homem na fronteira.

Digamos que a vida é feita de duas metades. Uma metade é a pura interação do
homem com o mundo, o homem puramente exterior; é a vida entendida como uma
sequência de interações com o mundo. Outra coisa é a vida puramente interior, a
vida contemplativa; a relação do homem com a Verdade, com a Bondade, com a
Beleza, e com Deus, que é a fonte de todas essas coisas. E uma terceira coisa é a
transição ou a conexão que o sujeito faz entre uma coisa e outra. A primeira parte –
a pura interação com este mundo –, nós temos em comum com os animais. A
segunda parte – a vida puramente contemplativa –, nós compartilhamos com os
anjos. A terceira parte é a única que é caracteristicamente nossa: como eu “costuro”

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Oração, Jejum e Esmola

a minha vida exterior com o meu testemunho do que é infinito? Como eu combino
uma coisa com outra? Como eu faço, em primeiro lugar, da vida exterior um
instrumento que favoreça a vida interior e, em segundo lugar, como eu projeto a vida
interior na vida exterior? A vida característica do homem é a capacidade de transitar
da vida animal para a vida angélica, e da vida angélica para a vida animal. Fazer da
vida animal uma preparação ou orientação para a vida angélica, e da vida angélica
um princípio de fecundação da vida animal. Não é característico do homem nem a
vida dos anjos nem a vida dos animais. É característico dele a capacidade de
participar das duas e de criar uma ligação entre as duas. E é disso que os santos
estavam falando quando eles falavam (vocês talvez já tenham percebido isso nos
escritos dos santos) que “Você não deve ficar procurando experiências
contemplativas. Não é a experiência contemplativa que é a sua santidade”. Eles não
estavam falando que contemplação não favorece a santidade. Eles estavam falando
que essa vida angélica, a vida da contemplação, não é o domínio próprio da vida
humana. O domínio próprio da vida humana é juntar essas duas vidas. E oração,
jejum e esmola são, justamente, exercícios para isso. São instrumentos para você se
exercitar nesse hábito.

Por que são exercícios? O sujeito diz “Está bem então, vou jejuar na sexta-
feira”. Ótimo, é perfeita a intenção do sujeito de pensar por que ele deve jejuar, por
que é importante ele, ter domínio sobre o corpo e também participar dos sofrimentos
do Cristo, que Se entregou por ele na sexta-feira, além de inúmeras outras intenções
que ele pode estabelecer. Só que em cada sexta-feira que o sujeito jejuar, ele vai
sentir coisas diferentes. Por quê? É simples: o mundo terrestre, ou o mundo da vida
animal, é o mundo da diversidade, o mundo da multiplicidade. Então, num dia você
vai jejuar, se sente bem e pensa “Nossa, que legal, estou oferecendo isso a Deus, que
maravilhoso!”. Noutro dia, você vai jejuar e seu estômago está roncando tanto que
você só pensa “Caramba, para quê tudo isso?”. Por isso é que se chama um exercício
espiritual. Você estabeleceu uma intenção; você vai jejuar por quê? Porque você
pensou em Deus, você pensou que Deus ensinou a fazer isso. A decisão de jejuar
tem como ponto de partida a participação que você teve na vida dos anjos, a
consciência que você tem do que é Deus, do que Ele quer de você, do que é
importante você fazer para Ele, e assim por diante. Agora que você está jejuando, a
cada dia a sua relação com a contemplação continua a mesma, mas a sua situação
temporal, a sua situação animal, é diversificada em cada ato de jejum. E, em cada
um deles, você cria uma oportunidade para que se apresente um desafio: “Há uma
relação aqui entre os meus motivos para jejuar, quer dizer, as razões que eu tenho na
minha inteligência para jejuar e os motivos que eu tenho agora para não jejuar –
concretos, sensíveis, imediatos. Eu tenho que rearranjar as coisas para combiná-los
de maneira harmoniosa”. É nesse sentido que a vida espiritual é uma batalha. Você
tem uma ideia derivada de suas convicções espirituais, e ao jejuar, enfrenta um
cenário concreto de desejos, frustrações, relações e acontecimentos naquele
momento que, ou vai levá-lo a novas intuições sobre as vantagens e benefícios
espirituais do jejum – ou outra coisa; você pode colher algum fruto do jejum naquele
dia –, ou você pode, pelo contrário, enfrentar uma série de situações insatisfatórias e
questionar a validade do seu jejum. É assim: eu posso ou resolver verdadeiramente
essa dicotomia de um jeito adequado, ou eu posso ter a impressão de que eu resolvi,
mas eu só inventei uma doideira na minha cabeça; ou eu posso não resolver e
desistir de jejuar; ou, se eu não desistir de jejuar, cometer um erro em relação ao
cenário – como falar “Está bem, eu posso jejuar, mas no dia em que jejuar eu me

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Oração, Jejum e Esmola

esconderei, para as pessoas não verem que eu jejuei, ou para as pessoas não me
oferecerem comida, que vai me tentar”, ou qualquer coisa assim.

Você ter feito o jejum, porque foi um ensinamento de Deus, segundo a forma
tradicional e com a intenção de satisfazer a Deus, é ótimo, e você já ganhou o
resultado para o outro mundo. Mas a cada vez que fizer isso, você vai se ver diante
de uma situação de conflito, aparece a oportunidade de haver um conflito. Um dia
que você jejue é: “Poxa vida, acho que vou ficar doente se eu jejuar hoje”. Outro dia,
alguém chega e pergunta “Por que você está jejuando?” e você não sabe explicar
direito, não sabe direito exatamente o porquê, ou, pelo menos, não sabe explicar para
essa pessoa. Em cada uma dessas vezes, você terá que reanalisar, recombinar as suas
crenças com a situação concreta e a situação concreta com suas crenças. Esse é que é
o palco de batalha; “Se eu acertar aqui, se eu fizer uma combinação entre a situação
concreta e a intenção espiritual dessa ação adequada, eu vou obter um fruto nessa
vida”. Se você não fizer, se você errar, considere que você é o soldado que morreu
no campo de batalha, mas que também será honrado no dia da vitória. Não é uma
perda completa, é uma perda temporal – “Puxa vida, não obtive um fruto espiritual
agora, mas no dia da vitória...” Saibam que, para as pessoas que têm religião assim,
o dia da morte será o dia da vitória, e você será honrado também. Deus não vai falar
“Poxa vida, você foi o primeiro cara que morreu no campo de batalha. Você não
serviu para nada”. Não é assim que nós tratamos os nossos soldados que morrem no
campo de batalha; Deus vai tratá-los melhor ainda. Essa comparação também é
importante para lembrar uma passagem, quando Cristo fala da oração: “Vocês que
são maus, se teus filhos te pedem um pão, vocês não darão uma pedra. Imaginem
Deus, que é bom”. Então nós, que somos maus, honramos nossos soldados que
tombam em campo de batalha; imaginem Deus, que é bom: vai honrar ainda mais.
Mas teria sido mais divertido ou mais interessante se você tivesse sobrevivido à
batalha e obtido alguma vitória, ainda que temporária, aqui mesmo.

Isso vale para o jejum, para a oração e para a esmola. Cada situação concreta
será diferente e envolverá um refazer, em que o sujeito terá que ligar a situação
concreta às suas convicções mais profundas, àquilo que resulta, em última análise,
das suas experiências contemplativas, que podem ter sido experiências
contemplativas explícitas ou não. Mas se o sujeito já tiver fé na religião, já estiver
acreditando em Deus, já estiver rezando, jejuando e dando esmola, então alguma
coisa acerca desse negócio de Deus ele já terá entendido. E esse entendimento ele
terá que reviver no cenário concreto de cada exercício espiritual. Talvez não
aconteça nada de relevante na maior parte dos dias – na verdade, é até comum isso.
Na maior parte das vezes em que você reza, não acontece nada de excepcional: você
simplesmente está rezando. Você nem está muito devoto, nem está muito distraído;
está no meio do caminho. E, para você, aparece aquilo como só uma oração
mediana. Não importa, pois trata-se de um exercício. Os exercícios são assim: se,
por exemplo, você estiver aprendendo a tocar piano, o professor lhe ensina um
exercício – “Agora faça aqui cem vezes o exercício na minha frente” –, e ele não
vai, a cada uma das cem vezes, corrigir você. Ele vai esperar você fazer umas vinte
vezes para ver se o erro foi só um acidente ou se você está errando mesmo,
sistematicamente. Depois de umas vinte vezes, ele dirá que você está fazendo errado
daquela maneira. Dirá para você corrigir. E para fazer mais oitenta vezes, para ele
ver. Você espera algumas; Deus também. Você vai rezar, jejuar, dar esmola, Ele não
vai em toda a oportunidade chegar e falar “Você tem que se corrigir assim”, porque

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Oração, Jejum e Esmola

isso seria um pouco tirânico, e Deus não tem essa tendência. Seria improdutivo
também. O sujeito não aprende nada assim, se você corrigi-lo em cada detalhe, em
cada ato; você tem que esperá-lo – “Faça umas dez vezes e vamos ver o quanto você
progride” – e depois de dez, vinte vezes, você corrige. As pessoas pensam “Mas eu
rezo muitas vezes, e só de vez em quando acontece alguma coisa”. É lógico, é
evidente. Nas outras vezes, Deus está dando a oportunidade de você fazer o
exercício para ver se dá certo, se você faz direito, se você assimila o exercício.

É normal que não seja em cada ocasião em que você se dedica a um exercício
desses que você se veja claramente diante de uma situação de conflito ou que você
realmente seja transposto do seu cenário habitual mundano para um cenário de pura
contemplatividade. De vez em quando acontece uma coisa, de vez em quando,
acontece outra. O sujeito reza cem vezes e numas duas vezes ele será levado a um
estado de devoção e de contemplação; numa meia dúzia de vezes, ele será levado a
uma situação mental no meio da oração em que dirá “Eu tenho que reavaliar porque
eu estou fazendo isso” ou “Eu tenho que vencer essa distração” ou “Hoje eu tenho
que fazer isso independentemente de estar muito cansado”. Não é em toda ocasião
que vai acontecer isso, mas só em algumas. Vida espiritual é o sujeito conseguir
fazer a ligação entre essas duas vidas ou essas duas dimensões da vida humana. Vida
espiritual não é o próprio exercício de oração, jejum e esmola; estes são seus
instrumentos. Vida espiritual é como pescar: você joga a linha, faz tudo direitinho,
mas não sabe se o peixe vai morder ou não. Você não pode dar uma ordem ao peixe:
“Morda! Agora!” Não funciona assim. “O espírito sopra onde quer, e tu ouves a sua
voz, mas não sabes de onde vem ou para onde vai”; vida espiritual é criar um
cenário favorável para ele soprar. O espírito sopra onde quer, e você fecha todas as
janelas, bota uma borracha nas frestas – bom, você não está ajudando. É claro que
ele pode soprar lá, mas pense bem: se você estiver tentando impedir o vento de
soprar lá no lugar, para ele soprar ali, ele vai ter que arrebentar alguma coisa. E é
assim o que acontece com a vida humana. Se o sujeito disser “Vou levar uma vida
totalmente dissipada e distraída, não existe esse negócio de oração, jejum e esmola”.
Está bem, meu filho, o espírito pode soprar aí, mas geralmente ele vai ter que
derrubar alguma coisa no caminho. Não vai ser tão agradável para você. Então não
se trata de você poder decidir se o espírito vai soprar no lugar ou não, mas você pode
realmente decidir qual será o efeito sobre você quando ele soprar. E os exercícios
espirituais existem justamente para criar uma alma “bem ventilada”, com as janelas
abertas, nas posições corretas, para que, quando o vento soprar, ele seja uma brisa
suave e agradável.

Isso fica bastante explícito no Capítulo 6 de Mateus, quando o Cristo fala


dessas três atividades. Ele passa uma notinha sobre cada uma dessas coisas. Por
exemplo, sobre a esmola Ele diz “Não veja a tua mão esquerda o que faz a mão
direita”. Sobre o jejum, Ele fala para você não manifestar tristeza (a coisa mais
comum do mundo é as pessoas fazerem jejum e ficarem com aquela cara de doente
para você). E quando Ele fala da oração, Ele ensina uma oração específica, o Pai
Nosso. (Já demos uma aula sobre o Pai Nosso, e acho que ela está disponível no site,
mas não tenho certeza.)

Mas vamos tratar do jejum e da esmola primeiro, porque as notas são mais
breves. “Não veja a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita”: O simbolismo aí
é mais ou menos claro. Santo Agostinho, ao examinar essa passagem, compara-a a

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Oração, Jejum e Esmola

quando ele fala do olho direito e do olho esquerdo: a mão direita é a mão que faz
boas obras, e a mão esquerda é a mão que faz más obras. Num outro contexto, a mão
direita é a que faz boas obras ligadas a Deus, voltadas para Deus, e a esquerda, a que
faz obras voltadas para o mundo, não necessariamente boas ou más. Mas, de
qualquer jeito, há uma hierarquia aqui entre a direita e a esquerda. O que Ele quer
dizer com, no caso da esmola, “não veja com a mão esquerda o que faz a tua mão
direita”? Quando você vai dar esmola, qual seria o motivo para você não dar
esmola? O mais simples motivo é: “Puxa vida, o dinheiro é meu, eu poderia fazer
com ele o que eu quisesse. Eu poderia tirar dele uma situação satisfatória para mim”.
Eu sei que esse não é o primeiro que as pessoas admitem; o primeiro que as pessoas
falam é: “Eu não sei o que o mendigo vai fazer com o dinheiro da esmola”. Esse é o
motivo alegado, e eu até acredito que, no plano do pensamento consciente, essa pode
ser a objeção principal da pessoa. Mas não acredito que essa seja a razão
fundamental, e acho que os seres humanos não são, em geral, tão bons assim. Acho
que eles são “meio” bons, “meio” ruins; têm um pouco de bom e um pouco de ruim.
De qualquer modo, o pressuposto com “Eu não sei o que o mendigo vai fazer com o
dinheiro da esmola” é “O mendigo pode fazer alguma coisa ruim com o dinheiro da
esmola, e eu não. Eu, com o meu dinheiro, só vou fazer alguma coisa boa,
logicamente, evidentemente!”. Qual é o problema com isso? Pense bem: toda vez
que você gasta algum dinheiro, você está pensando que é bom gastar o dinheiro
naquilo, que o objeto ou serviço adquirido é melhor que o dinheiro no bolso. Você
nunca gasta dinheiro pensando “Eu estou perdendo. Gostava mais de ter o dinheiro
no bolso do que de ter o computador na minha frente, ou de ter essa comida aqui”.
Não, é óbvio que, toda vez que você gasta o dinheiro, está subentendido que você
está ganhando, que, de algum modo, em alguma dimensão de sua psique, aquilo faz
bem para você. Mas vamos pensar um pouquinho: é realmente assim? Você nunca
se arrepende de ter gastado um dinheiro? Você sempre acerta? Na hora, sempre
parece o melhor, mas nem sempre é realmente o melhor. Isso significa que você
também não sabe se o que vai fazer com o dinheiro é bom ou mau. É claro que eu
não sei o que o mendigo ou outra pessoa vai fazer com o dinheiro, isso é óbvio. O
que não é tão óbvio é que eu também não sei o que eu vou fazer com o dinheiro. Eu
não posso esperar; eu não vou guardar o dinheiro na minha conta até eu ter uma
certeza apodítica de que eu vou gastá-lo bem. Você vai morrer e o dinheiro vai estar
lá na conta. Mesmo se você viver dez vidas, você não vai adquirir essa certeza. É
evidente que essa certeza está fora da escala humana, não é humana. Na verdade, é o
seguinte: se eu mantiver o dinheiro no meu bolso e escolher o que vou comprar com
ele, eu posso escolher. Se eu der para o mendigo, eu não posso escolher mais. Mas,
em última análise, quanto ao bom ou mau uso do dinheiro, eu não sei para mim e
não sei para ele.

Em casos concretos, é claro que eu posso ter uma expectativa razoável: “Eu sei
que esta pessoa vai gastar o dinheiro de determinada maneira, e também sei que, se
eu não der o dinheiro a ela, eu vou gastá-lo de outro modo”. Não estou falando que o
ser humano não é capaz de uma avaliação razoável. Em 80% do tempo nós somos
capazes de uma avaliação razoável. Geralmente, os seres humanos não são idiotas,
não são imbecis completos. Conseguimos fazer uma avaliação razoável. Basta olhar
o dinheiro e calcular quanto é para pensar “Eu poderia fazer A, B, C e D, e prefiro
fazer A e C”. É muito fácil ter uma ideia do uso a dar ao dinheiro, e até da
moralidade ou imoralidade desse uso. É claro, você sabe que pode se arrepender
depois, mas você pode ter uma certeza razoável de qual será o seu grau de

9
Oração, Jejum e Esmola

arrependimento. Por um lado, não há certeza absoluta, nem do que você vai fazer
com o dinheiro, nem do que o mendigo vai fazer com o dinheiro. Não sou capaz de
ter uma certeza realmente absoluta do futuro e dizer que eu vou necessariamente
fazer um bom uso ou um mau uso do dinheiro, e que o mendigo também vai,
necessariamente, fazer um bom uso ou um mau uso do dinheiro. Não sei qual uso
será feito. Eu terei que esperar para contar a história depois e ver. Mas se eu não
posso ter certeza absoluta – no mesmo sentido de que tenho certeza absoluta, por
exemplo, de que o ser é e o não ser não é –, eu posso ter uma expectativa razoável.
A expectativa razoável é um critério suficiente para a interação com as coisas
terrestres. Se agir sempre e sistematicamente de maneira razoável, você geralmente
se dará bem. Mas um problema de agir sempre e sistematicamente de maneira
razoável é acabar atribuindo à expectativa razoável um valor supersticioso de certeza
absoluta. Um dos “cortes” da esmola é justamente esse. É razoável que geralmente
eu decida o que fazer com o meu dinheiro e que eu frua dele, mas é razoável que, de
vez em quando, eu rompa com esse hábito, para não levar excessivamente a sério o
domínio que tenho sobre as coisas.

Em última análise, se você fizer sempre o razoável, geralmente se dará bem no


uso do dinheiro, mas o efeito prático disso será dar a impressão de que você é
melhor do que os outros. Porque, em última análise, não há uma certeza absoluta de
que você vai fazer um bom uso do dinheiro e também não há uma certeza absoluta
de que o outro não vai fazer um uso melhor. Isso significa que não importa o motivo
pelo qual você nega a esmola: ele sempre vai deixar esse “nózinho” ruim, ele sempre
vai fechar uma porta para o espírito. O sujeito fala “Não vou dar esmola porque não
é razoável; porque esse mendigo aqui eu vejo que é um bêbado; aquele outro eu vejo
que é louco; este terceiro eu vejo que é mau; este outro aqui eu não sei, tem uma
cara estranha; daquele outro ali eu não vou chegar perto, porque tenho medo de que
ele vá me assaltar”, e assim por diante. É uma gama toda de motivos razoáveis para
você não dar uma esmola, e podem ser perfeitamente razoáveis, mas vão reforçar em
você a confiança instintiva que você tem em si mesmo e a desconfiança instintiva
que você tem dos outros animais. Isso vai formar um nó, mas não na sua
inteligência, pois o problema aqui não é um problema de avaliação intelectual, não é
um problema de razoabilidade do ato; o problema aqui é um problema de motivação
interior. Os argumentos das pessoas que não dão esmola são geralmente razoáveis,
não estão na escala do irrazoável. Não são, por exemplo, como o argumento da
pessoa que rouba, argumentos pouco razoáveis. Se você analisar cuidadosamente,
você verá que não existe razoabilidade nesse ato; existe aí uma injustiça que não tem
como ser resolvida, um ato que não se pode aceitar. Mas quando você nega uma
esmola, sempre é possível achar uma explicação razoável. Se não fosse assim, dar
esmola seria o décimo-primeiro Mandamento. Não é um Mandamento, porque
sempre pode ser razoável o sujeito não dar esmola. O problema é se ele fizer isso
sistemática ou habitualmente.

Tentem se observar. Provavelmente, vocês são pessoas que já têm religião e já


estão há algum tempo dando esmola. Isso deve ser verdadeiro para, pelo menos,
alguns de vocês. (...) Observe que em você, antes desse hábito, existia uma
disposição em relação ao próximo, em certo sentido, “coagulada”; existia um
coágulo interno na mente. Existia algo em você que era incapaz de ver o próximo
como um igual, que era realmente incapaz de ver o mendigo como um igual. Isso é
assim porque o ser humano, como falamos, é uma fronteira entre o mundo do

10
Oração, Jejum e Esmola

espírito e o mundo da matéria. Ele não pertence exclusivamente a nenhum dos dois.
Isso significa que tudo aquilo que sempre é razoável, do ponto de vista da matéria,
pode gerar no ser humano uma disposição que é contrária ao mundo do espírito.
Contrária em que sentido? O ser humano é capaz de entender o outro como uma
subjetividade em pleno direito, ou seja: eu sei que vocês são seres humanos tanto
quanto eu e que os seus sofrimentos são em vocês tão sofrimentos quanto os meus
sofrimentos são sofrimentos em mim. Eu sei disso, mas não sinto isso
habitualmente. Se você sentir uma dor de dente na sua casa, eu acordarei aqui no
meio da noite com dor de dente e falando “Ah, o Sandro está com dor de dente!”?
Não. Normalmente, isso não acontece. Normalmente, o Sandro está com dor de
dente lá na sua casa, e eu não estou nem aí, aqui. Não percebi ter acontecido nada!
Mas sei que, quando você sente dor de dente, ela dói em você como quando eu sinto
dor de dente e dói em mim. Perceberam que são duas experiências? Uma é a
experiência intelectiva de “eu sei que os outros são subjetividades tanto quanto eu.
Estão sujeitos às mesmas experiências satisfatórias e insatisfatórias que eu”. Sei
disso o tempo todo. Sei disso acerca de todos os seres sencientes. Mas eu sinto
apenas os meus próprios sofrimentos; os do outro, só sinto se ele estiver bem perto e
se ele o indicar claramente, porque se ele estiver com dor e estiver sorrindo, não
sentirei nada.

Imagine que você decidiu que sempre dará esmola. Ao dar esmola
regularmente, o que acontece é que, de certo modo, você começa a perceber melhor
o sofrimento do outro. Passa a ser quase espontâneo para você perceber “Caramba, o
mendigo está com fome. Ele está com frio, ele estava triste. E agora ele ficou
contente”. Isso flui mais naturalmente em você. Isso é o que se chama um efeito
espiritual. A palavra “espírito” significa “ar”. Qual a característica do ar? A
característica do ar é a sua capacidade de penetrar as outras coisas; é difícil reter o
ar, ele normalmente atravessa as coisas e circula de um lado para o outro. Quando,
então, o sujeito dá esmola regularmente, acontece uma transmutação espiritual na
sua alma. Uma transmutação espiritual consiste no seguinte: aquilo que era uma
consciência abstrata e intelectual passa a fluir naturalmente na minha consciência,
no testemunho sensorial imediato daquela situação.

Veja bem, as diferenças sensíveis entre um sujeito que não está num estado
miserável e o sujeito que está num estado miserável são muito grandes. Vocês já
devem ter notado a diferença entre a situação do mendigo na rua e a sua própria.
Notar isso é muito fácil (geralmente, começa com o olfato; você percebe uma grande
diferença olfativa). O que não é tão imediato é a identidade entre você e ele. Já me
aconteceu várias vezes de, conversando com pessoas que não estavam habituadas
com esse negócio de esmola – embora fossem até pessoas religiosas ou, pelo menos,
acreditassem em Deus, mas que não estão acostumadas com isso –, chegar a um
ponto da argumentação em que me falam “Mas você está querendo dizer que eu sou
igual a esse cara que está ferrado?” – “Hm...é! Não estou querendo dizer isso. Isso é
um fato! Você pertence à mesma espécie, está sujeito às mesmas condições
cósmicas. É óbvio que você é igual a ele em vários aspectos”. Isso é óbvio, mas
estava enterrado no fundo da inteligência do sujeito e não fluía na sua psique.
Porque essa fluência do que é uma consciência puramente intelectual para “Agora
essa minha experiência vital imediata sensorial participa dela e recorda dela” é o que
se chama de dom espiritual, essa capacidade de a inteligência fluir na sua
experiência e, de a sua experiência traduzir, ou ser transparente, ou ser aberta para

11
Oração, Jejum e Esmola

ela.

Isso é uma auto-observação muito sutil. Por isso eu digo “Você quer entender
esse negócio de oração, jejum e esmola? Primeiro trate da esmola”. Relembre-se da
sensação que você tinha olhando os outros: psicologicamente, você verá que havia
algo em você que estava fechado à ideia de que o outro é uma subjetividade em
pleno direito. E quando você criou este hábito da esmola, esse coágulo começou a se
dissolver. Quando ele começou a se dissolver, começou a aparecer em você uma
coisa que se chama misericórdia. Misericórdia é a capacidade de trazer a miséria do
outro para o seu coração, de senti-la aqui, como se ela fosse a sua miséria. Isso não
afeta somente os mendigos para os quais você deu esmola. Isso muda a sua relação
com todos os seres sencientes em torno de você. Você se torna mais capaz de
empatia até com a sua própria esposa ou marido. Porque, mesmo para com esses,
existe algo em nós que está fechado e que não os vê como plena subjetividade. Não
sei como são os casamentos dos outros, mas no meu há momentos em que somos
apenas um mero incômodo um para o outro. Há momentos em que você não vê o
outro como um indivíduo pleno, não o sente como indivíduo pleno. Saiba que isso é
um estado natural, e se você agir razoavelmente de acordo com as leis naturais o
tempo todo, você vai se ver prisioneiro desse estado, porque, para o homem, o
plenamente natural é uma interação com o sobrenatural. Acho que já mencionamos
isso: temos que entender que o homem não é uma mera sobreposição de “animal” e
“racional”. Uma vida plenamente humana é a interação dessas duas dimensões. É
óbvio que se o sujeito é um animal racional, então ele sabe que os outros seres são
subjetividades. Tudo bem, isso é o racional, mas vamos falar a sério: você não sente
o que os outros sentem. Existe uma descontinuidade entre uma dimensão e outra
nesse caso. Como resolver isso? Você não pode resolver isso, mas pode criar
oportunidades. E essas oportunidades implicam você agir de maneira irrazoável.

O que representam a “mão direita” e a “mão esquerda”? A mão direita é a mão


que age tendo em vista a vida angélica; e a mão esquerda, a mão que age tendo em
vista a nossa vida temporal, sendo que a melhor vida temporal humana implica
racionalidade, implica fazer o que é razoável. Mas, de vez em quando, você vai ter
que fazer algo irrazoável para que essas duas dimensões do seu ser interajam uma
com a outra. Isso é importante pelo seguinte motivo: um dia vamos morrer.
Certamente, um dia vamos morrer. O que significa morrer? Significa que toda essa
vida animal, razoável, que eu tinha, vai acabar. Todo mundo percebe isso e concorda
com essa parte. Não seremos transportados para um outro planeta mágico em que
tudo vai estar acontecendo igual, mas que é “mais legal”. Não é isso o que vai
acontecer. Vou dizer como vai acontecer. Se existir esse movimento de penetração
mútua, compenetração entre a sua inteligência e a sua vida animal – uma interação,
uma interpenetração que é facilitada, por exemplo, pela esmola –, e sua vida animal
participava da sua vida espiritual e a sua vida espiritual reverberava na vida animal,
até um ponto em que se tornam intrinsicamente ligadas uma à outra, [então] no
fundo da sua vida animal, passa a haver um tipo de vida espiritual também. Assim
sua vida não vai ser mais uma polaridade (aqui há o lado espiritual, que vai ser
imortal, e o lado animal, que vai morrer). Ela passa a ser mais comparável a uma
coisa em três estágios: você tem uma vida espiritual que desce até embaixo, na vida
animal, e sobe de volta para a puramente espiritual, e a vida animal está só no meio
do caminho. Quando você morrer e “sair” a vida animal, você vai olhar para baixo e
vai se reconhecer porque você estava lá também, o espiritual estava lá embaixo

12
Oração, Jejum e Esmola

também. Aí você vai morrer, e vai falar “Caramba, que legal! O que tem lá embaixo
é ótimo!” É eu, é lógico que é ótimo. Se você morrer num estado de contrariedade
entre uma coisa e outra, saiu a vida animal, você vai olhar para baixo e não tem
nada. Então a perda da vida animal vai ser pura e simplesmente uma perda –
“Caramba, perdi uma coisa!” Se existir esse círculo, essa circularidade do espírito, a
perda da vida animal é como a remoção de um véu que tinha entre o sujeito e ele
mesmo.

Quando a vida temporal ou animal do sujeito se tornar veículo das verdades


que ele conhece, do bem que ele ama, da bondade que ele ama, ele começará a
perceber o que há no fundo da realidade. A alma é tudo o que ela própria conhece, e
ela é só o que ela conhece. Se a experiência que o sujeito tinha da sua vida animal
era simplesmente esse coágulo ou esse fechamento – que é uma limitação em
relação à sua vida espiritual, em relação à sua inteligência –, a morte será
simplesmente a retirada disso. Porque isso vai acabar mesmo. Mas se ele perceber
nela um eco, ou uma reverberação, ou uma imagem, ou um instrumento da sua
própria identidade espiritual, esta permanecerá com ele depois que ele morrer – a
identidade espiritual permanecerá com ele quando ele morrer. O mesmo evento para
ele terá um significado completamente diferente.

Isso tem que ser feito. Às vezes acontece de, quando você conversar com uma
pessoa e persuadi-la, na primeira vez em que ela der esmola, ela recebe essa graça,
ela experimenta essa diferença. Normalmente, no entanto, o sujeito já estará fazendo
isso há alguns meses. Compare-se psicologicamente com como você era antes e
você vai notar que havia em você uma incapacidade de perceber o outro como
subjetividade, e que essa incapacidade agora diminuiu, e, portanto, a capacidade de
reconhecê-lo como subjetividade aumentou. Reconhecê-lo na circunstância concreta.
É assim: você vê o mendigo e ele cheira mal, e ele cheirar mal é desagradável. Com
o sujeito que habitualmente dá esmola, o que acontece? Imediatamente o mau cheiro
do outro reverbera nele como “Caramba, como é terrível cheirar mal! “Como é
terrível estar nessa condição” Ele sofre como se ele estivesse cheirando mal. Ele
sente dentro, ele não sente fora. A ele é concedido ter uma sensação, um sentimento
em conformidade com a inteligência, com o que ele já sabe: que o outro é realmente
uma subjetividade em sentido pleno.

É importante percebermos que um ser humano só pode ter uma vida espiritual
se mover o seu comportamento por princípios que são superiores à sua própria
inteligência. Se ele fizer só o que é razoável, nunca vai conseguir ter uma vida
espiritual. Ele tem que ir além do razoável. É razoável supor: Deus já saiba de tudo,
e saiba o que eu quero, saiba o que eu vou ganhar, e o que eu não vou ganhar; então
não preciso rezar nada para Ele, porque Ele já sabe tudo. Mas se mantiver essa
atitude, você vai pôr a consciência da presença divina num canto obscuro da sua
mente. E no dia em que você estiver explicitamente diante da presença divina, você
vai sofrer uma tremenda surpresa. É como duas pessoas falando mal de uma terceira,
só que a terceira está ali atrás da cortina. Quando o cara sai de trás da cortina, você
cai com a cara no chão. Então o sujeito falar “É razoável. Não tenho que pensar
aqui, que me pôr na presença de Deus, porque Ele está presente mesmo!” Está bem,
meu filho. Você vai acabar esquecendo a presença e pensar que Ele não está ali atrás
da cortina. E você vai agir como se Ele estivesse ausente.

13
Oração, Jejum e Esmola

Aluno: Professor, você poderia fazer um paralelo disso com a parábola do rico
e do mendigo Lázaro? (...) Havia um mendigo que ficava às portas de um rico, que
se vestia ricamente, e ele esperava só as migalhas que tinha, e tinha um cachorro, e
lambia as suas feridas, até que morreu o rico e ele foi para o inferno, e morreu o
mendigo e este foi para o seio de Abraão. (...) Aí o rico, estando no inferno, pediu a
Lázaro para que ele molhasse a ponta da sua língua, porque ele estava sofrendo
naquele tormento; mas Abraão falou que não dava, que havia uma barreira ali. O
rico, desesperado, pede a Abraão para avisar aos seus parentes que estão neste
mundo sobre o risco das pessoas pararem ali também. Daí ele fala “Há Moisés e os
profetas. Ouçam”.

Gugu: Sim, eles já foram avisados.

Aluno: É, eles já foram avisados por Moisés sobre esse risco. Ele fala “Se eles
têm Moisés e não o ouvem, não adianta nada você ressuscitar e ir vê-los”. Eu acho
que é mais ou menos isso.

Gugu: Está bem. Eu só não entendi [o paralelo].

Aluno: Eu entendi um paralelo. Você falou da pessoa ir à presença de Deus; eu


acho que há, mais ou menos, um paralelo aí.

Gugu: Não, eu não entendi a comparação.

Aluno: O senhor comentou que, quando nós vamos à presença [de Deus] – há
Deus ali vendo “escondido”, e nós vamos um dia aparecer na Sua presença. E, por
exemplo, essa atitude do rico em negar ali esmola e negar ajuda ao mendigo: de
repente, quando ele morreu, ficou evidente o seu estado espiritual.

Gugu: Sim, quando ele morreu, ficou evidente. O que é descrito nessa parábola
é justamente o sujeito que estava agindo de maneira razoável, não irrazoável; quer
dizer, ele não estava violando mandamentos definitivos, mas estava vivendo numa
inconsciência espiritual completa. Quando acorda depois da morte, ele percebe qual
a sua situação real. O que vai acontecer conosco é isso: este mundo é um sonho,
uma hora vamos que de acordar e então vamos descobrir onde é que realmente
estamos. Assim, este mundo pode ser para alguns um pesadelo, pode ser terrível, e,
para outros, um sonho maravilhoso, mas todo mundo vai ter que acordar dele. E
então veremos qual é a nossa situação real. Se o sujeito não se preparava para essa
mudança de cenário, dificilmente ele vai se acostumar depois. Se a presença de
Deus era um eco distante no fundo da inteligência do sujeito, bem, uma hora ela será
uma evidência imediata. Pode ser que o sujeito fosse tão bom naturalmente que,
mesmo sem estar na consciência da presença de Deus, ele estivesse agindo
totalmente em conformidade com Deus. Sei lá, pode acontecer, mas eu não contaria
com isso. O melhor é pensar “Vou me exercitar aqui em me pôr na presença de
Deus, porque um dia eu vou estar na Sua presença. Vou me acostumar a intuir o
outro como subjetividade, porque uma hora vai ser evidente para mim que todos
eram subjetividades no mesmo pé, e que eu tratei os outros com desigualdade”.

Não sei se existe uma relação direta com a parábola. O importante na parábola
era enfatizar a importância das práticas tradicionais, das instruções que já foram

14
Oração, Jejum e Esmola

dadas ao sujeito, para ele não esperar instruções sobrenaturais. É como dizer: “Meu
filho, você já tem o Evangelho, já tem a Bíblia inteira para você, já tem as vidas dos
santos, já tem tudo isso. Se com tudo isso você não consegue guiar a sua vida, não é
um anjo aparecendo para você que vai melhorar a sua condição”. Acho que é um
argumento em favor das práticas tradicionais: “Não faça tudo que dá na sua telha,
que pareça razoável. Procure referir o que você está fazendo ao que pessoas
melhores do que você fizeram. Não faça só orações espontâneas da sua cabeça, do
jeito que você pensa. Existe esta aqui que foi ensinada por Jesus Cristo, esta aqui
que foi feita pelo Anjo Gabriel, esta aqui que foi feita pelo profeta Zacarias, estas
aqui compostas por Davi. Há um monte de coisas já bem feitas, feitas por gente
muito mais competente do que você nesse negócio de falar com Deus. Tome essa
base, respeite essa base e se acostume a usar essa base para ampliar os seus meios de
ação. Não tente inventar uma língua nova se já existe a língua portuguesa, que você
já aprendeu dos seus pais e da ambiência em torno; vai ser bem mais fácil você se
comunicar com eles nessa linguagem do que inventar uma nova e convencer todo
mundo a aprender”. O sujeito que só faz oração espontânea ou que não é guiado por
parâmetros tradicionais, mas só pela sua consciência pessoal, veja bem, é evidente
que o sujeito só tem a consciência individual como seu juiz, mas ele tem que
ampará-la com instrumentos, e esses instrumentos são dados pela tradição. Parece-
me que a parábola está falando dessa diferença: uma inspiração pessoal não vai
substituir, para um sujeito, todos os ensinamentos que ele poderia receber antes, que
já foram dados previamente. E que, se o sujeito não se persuadiu com isso aqui, ele
não vai ser persuadido com um evento sobrenatural. O que é a pura verdade. O
sujeito que decidiu que não acredita em milagres, se você fizer um milagre na sua
frente, ele não vai acreditar que é milagre; ele vai pensar que foi algum acidente
cósmico, que foi charlatanice. Não adianta nada. Se ele não achava razoável a
narrativa dos milagres anteriores, um novo milagre provavelmente não vai persuadi-
lo. Uma coisa é o sujeito achar razoável e não ter certeza. Esse sujeito talvez possa
ser persuadido testemunhando um milagre diretamente. Outra coisa é o sujeito que
teimosamente se fecha para aquela possibilidade; para este, se Deus fizer o Sol
dançar na sua frente, ele vai falar que foi alucinação coletiva. Não vai adiantar nada.
Se Deus ressuscitar um morto para falar para ele, ele vai falar que não estava morto.
Essa é também uma parábola referente, digamos, ao extremo limite da soberba.

Mas o ponto que estamos tratando aqui é que para essa pessoa que se fechou
completamente, esse negócio de oração, jejum e esmola não tem muito valor. Mas e
para a pessoa que não se fechou? Ela está tentando cumprir os mandamentos, está
lendo Moisés e os profetas e tentando usá-los como base para orientar a sua vida.
Para essas pessoas,é importante perceber o quanto esses três exercícios são
importantes, e como eles rompem com o estado habitual de descontinuidade entre a
inteligência e os sentidos, a inteligência e a experiência sensível. E como eles criam
oportunidades para que a experiência sensível evidencie para o sujeito o conteúdo
intelectivo que já está na sua alma ou amplie esse conteúdo.

Aluno: O que o senhor quer dizer, então, é que essas práticas valem desde que
você esteja no contexto tradicional? Para o sujeito, por exemplo, que é meio niilista,
meio ateu, isso não adianta muito, não é?

Gugu: Não vejo como um sujeito possa fazer uso sistemático de uma invenção
puramente pessoal nessa matéria que é vida espiritual. O sujeito diz “Vou viver uma

15
Oração, Jejum e Esmola

vida espiritual, mas totalmente do meu jeito. Estou reinventado qual deve ser a
disciplina de oração, qual deve ser a de jejum...” Não sei se você vai conseguir
reinventar uma religião pessoal do nada e Deus aceitá-la como sendo uma religião
válida, ou como sendo uma religião eficaz. Acho que isso não tem muito valor. Mas
se o sujeito meio niilista, ou meio agnóstico, ou meio ateu, num momento da sua
vida, decide fazer uma oração, porque ele está muito desesperado, esta oração pode
ser eficaz até para mudar toda a sua vida – desde que ele não faça dela agora a regra
da sua vida, quer dizer: “Ah, fazer do meu jeito funciona”. O sujeito era ateu, e,
digamos, a mulher dele ficou doente, vai morrer, e ele pensa “Não, tudo menos isso!
Desta vez eu vou me ajoelhar aqui nessa capela e rezar para minha esposa
sobreviver”. A esposa então sobrevive milagrosamente, e ele fala “Caramba! Esse
negócio de Deus funciona mesmo, existe mesmo!” É, meu filho, funciona mesmo e
existe mesmo, e isso lhe deu uma oportunidade para agora você ir procurar Moisés e
os profetas, não para seguir o que dá na sua telha sempre. Não é para o sujeito
concluir desse milagre que “inventei uma nova religião!” Acho que, se tirar essa
conclusão, ele vai invalidar o resultado benéfico que teve no primeiro milagre.

Aluno: Outra pergunta: a oração como conscientização da presença de Deus.


Isso está perfeito, mas onde entra justamente esse pedaço dos pedidos que vêm com
as orações? É inegável que a tendência geral, quando as pessoas estão rezando, é de
não resistir a pedir uma série de coisas, ou agradecer por outras tantas. Onde entra
esse departamento?

Gugu: Os pedidos e os atos de graças, de gratidão, ou de louvor à Deus, todos


dependem do quanto você está cônscio da presença Dele. O valor disso está
condicionado a quem você fez presente ali, e a quanto você fez Ele presente. Se o
sujeito apenas faz um pedido automaticamente e não pensa a quem ele está pedindo,
bem, não acho que esse pedido pode ajudá-lo muito espiritualmente, mas se ele
pensa em como é Deus – “Ele criou o universo inteiro” –, e queria tanto uma coisa e
agora pode pedir a Ele, então esse pedido é benéfico, porque ele torna eficaz essa
presença para o sujeito. Então pedir, agradecer, louvar, tudo isso é excelente. Ele
mesmo falou – “Se você pedir um pão, Ele não vai lhe dar uma pedra”. Se você se
puser na Sua presença, qualquer atividade interna que mantém essa presença, seja
pedir algo, seja lamentar-se por algo triste, algo desagradável, seja agradecer por
algum benefício já concedido, seja louvá-Lo por Suas qualidades, tudo isso é
favorável. O sujeito só tem que pensar nisso: ele vai fazendo os pedidos, lembrando
a quem ele está pedindo; vai fazendo os louvores, lembrando a quem está louvando;
rende atos de gratidão, lembrando a quem está agradecendo. Esses diversos
movimentos que podem surgir na oração são instrumentos de se pôr na presença de
Deus, e assim devem ser avaliados.

Há muitas pessoas que tendem a não pedir coisas a Deus. E, no entanto, ficam
desejando-as horas e horas por dia. Bem, se você as está desejando horas e horas por
dia, se essa coisa é tão importante para você, peça a Deus! “Ah, mas é só uma coisa
mundana!” – e daí? É uma coisa proibida? É uma coisa que Deus odeia? Aproveite
esse movimento que está na sua mente e se ponha na Sua presença e pense que,
quando a coisa vier, se ela vier, ela terá um outro valor, se você a pediu. Esse é um
escrúpulo comum entre as pessoas religiosas: “Não vou ficar pedindo coisas a Deus,
não vou pedir um marido a Deus, não vou pedir dinheiro a Deus...” Por que não?
Pois Ele falou para você pedir pão quando você quiser pão, para pedir ovo quando

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Oração, Jejum e Esmola

você quiser ovo; e também não disse para “pedir só o essencial, só o pão”. E se eu
quiser um pão com ovo? Então Ele deu o exemplo do ovo também [risos]. Outra
coisa também é o sujeito aprender a se lamentar com Deus. Ora, você não se
lamenta com os seus amigos? Então se lamente com Deus também. Ponha-se na Sua
presença para reclamar da vida.

Nós devemos alimentar essas atitudes. Por isso falamos que são exercícios
espirituais. Estou alimentando os pedidos a Deus, até eu perceber claramente que há
uma contrariedade entre a pessoa de Deus e este pedido aqui, ou este jeito pelo qual
estou pedindo, este sentimento com o qual estou pedindo. Você deve ir mantendo
aquela atitude, até [perceber] “Não, isto aqui... Veja quem é que está pedindo isto
aqui. Você não tem vergonha dessa pessoa estar diante de Deus?” – “Nossa! Então
essa pessoa tem que mudar!”. Ou até chegar a um pedido em que [você perceba]
“Era isso que você queria? Você não tem vergonha de pedir isso a Deus?” Aí você
chegou a uma ocasião em que o exercício espiritual se tornou um ato de combate
espiritual. Era para isso mesmo que o exercício existia. A mesma coisa: você vai
lamentando, reclamando da vida, até você pegar o ponto em você que está se
revoltando contra Deus. “Ah, caramba, agarrei isso aqui agora!” Ou até perceber
“Agora esses meus pedidos, ou minhas lamentações, ou minhas ações de graças ou
de louvor viraram uma esfera solipsista, e não há Deus aqui, apenas os meus
sentimentos. Caramba! É isso que eu chamo de rezar?” É um exercício. Você vai
tentando uma estratégia, aquela que está aparecendo na sua mente, como “É esta que
eu tenho no momento. Pedido, lamentação, louvor, ação de graças”, até ver onde ela
não se encaixa realmente com a presença de Deus, ou que ela substitui a presença de
Deus. Então agora chegou o momento de combate espiritual. É como repetirmos um
exercício que um professor ensina, até percebermos onde nós esmos estamos
errando. Então você já entende: “Ah, agora tenho a oportunidade de superar esse
limite”.

Em princípio, na verdade, a vida toda deveria ser um constante diálogo com


Deus. Porque Deus está presente o tempo todo. Se o sujeito pensa “As coisas que eu
quero eu não peço a Deus, porque são coisas mundanas!”. Está bem, então você está
fazendo de conta que Deus não está presente, que Deus não está testemunhando seu
desejo das coisas mundanas. Ou: “Não, isto eu não falo, eu não vou falar a Deus que
estou triste com a vida, porque Deus é bom, eu sei que Ele é bom, e isto aqui deve
ser uma ilusão minha...” Mas se você está incomodado com isso, caramba, por que
você tem que “esconder” isso Dele? Você acha que Ele não sabe que você está
incomodado? Ele sabe. Você tem que tentar expor aquilo, para achar a raiz daquele
incômodo, para ver o que há de positivo nele – “Entreguei isto a Deus sinceramente,
e quero saber o que há de maligno ali”. Veja bem, a relação de todos esses
sentimentos ou de todas essas disposições em relação a Deus é ambígua, e eu tenho
que experimentar pô-las na presença de Deus para descobrir as raízes dos meus
sentimentos. E cada uma dessas atitudes, por si mesma, é válida? Ela só poderia ser,
por si mesma, válida se os seus sentimentos fossem sentimentos divinos ou
angélicos. Os meus sentimentos são partes desse mundo, como as pedras que estão
na rua. São fenômenos temporais, e, portanto, necessariamente são ambíguos em
relação à Eternidade. Pode ser que seja valioso, pode ser que esteja em
conformidade com a Eternidade, pode ser que seja contrário a ela. Como faço para
experimentar? Eu me ponho na presença de Deus e apresento a Ele; aí argumento, e
vejo: “Ah, descobri de onde está vindo esse sentimento. Não, este eu não posso

17
Oração, Jejum e Esmola

apresentar a Deus”. E aí você vai querer tirá-lo da sua vida, você não vai querer
escondê-lo de Deus, porque você já mostrou a Ele, agora é tarde demais, você sabe
que Ele sabe.

Então, em certo sentido, você alquimizou o desejo de esconder. Agora você


não quer esconder de Deus, você quer esconder de você, você quer esconder da
realidade, quer que ele não exista mais. Você o rejeitou. E isso foi uma vitória
espiritual. Então o sujeito deve usar tanto a petição, quer dizer, estar pedindo coisas;
oração de petição, bom; a oração de louvor, bom; a oração de lamentação, bom.
Todas essas são modalidades. Temos como exemplo os salmos! Em quantos salmos
ele está falando “Deus, me dê apenas a contemplação e a santidade”? Não, na maior
parte dos salmos se pede “Ah, Deus, me livra dos meus inimigos”! É claro que na
alma de uma pessoa como Davi, evidentemente sendo uma pessoa de elevada
espiritualidade, a vida temporal e a vida espiritual estavam profundamente
interligadas e tinha essas duas dimensões para ele. Mas ele estava sendo honesto
também, ele queria se livrar dos inimigos. Se ele quisesse só um negócio puramente
espiritual, ele faria, naquele salmo, uma oração puramente espiritual. Então aquilo
indica essas diversas modalidades. O sujeito algo que é um desejo temporal, é óbvio;
quando ele morrer, os seus inimigos não serão mais um problema. Não é um
problema para a Eternidade, é um problema para agora. Mas agora ele está tendo
este problema – “Vou tentar expor isto para Deus, para ver exatamente porque estou
tendo esse problema”. E se Deus não o livrar dos inimigos e o aprisionar? Aí ele faz
uma oração de lamentação: “Ai meu Deus, por que o Senhor me abandonou, por que
o Senhor me botou nessa?” Ele faz isso também! Então, o sujeito consegue se pôr na
presença divina em todos os seus estados, ele consegue ligá-los com a presença
divina. Vemos claramente que, embora esses três tipos de exercícios espirituais
sejam um combate espiritual, uma oportunidade de combate espiritual, que nos
permite nos livrar de todos os tipos de males. Existe uma afinidade entre a oração e
o combate à soberba da vida, o jejum e o combate à concupiscência da carne, e a
esmola e o combate à concupiscência dos olhos.

Veja bem, o sujeito começa a fazer pedidos na oração. E dali a pouco, pensa “E
se Deus não atender? Bom, então é melhor nem pedir”. Poxa, mas é orgulhoso
mesmo, não tem vergonha... Ele tem que pedir! “E se Deus não atender? Aí eu vou
ficar furioso, decepcionado...” – mas, ainda assim, furioso e decepcionado, você vai
ter que lamentar. Então, a lamentação está eliminando a soberba da vida. Aprender a
se pôr na presença de Deus em todos os estados é o maior exercício de humildade
que existe. O sujeito tem que aprender a se pôr na presença de Deus mesmo quando
ele queira pecar. Em todas as situações ele deve aprender a se pôr na presença de
Deus. E ir percebendo que nem sempre ele vai usar o instrumento correto no
momento correto; quer dizer, nem sempre, ao fazer um pedido, ele vai conseguir,
com isto criar uma situação em que perceba qual a relação real entre o pedinte, o
pedido e aquele a quem se pede. Nem sempre ele vai perceber isso e, portanto, ele
nem sempre vai criar uma oportunidade de superação espiritual ou de vitória
espiritual. Ele tentou, ele jogou uma isca. São exercícios. É como o professor que
está ensinando algo a alguém que não está entendendo. Se vez em quando, ele dá um
conselho: “Talvez seja essa a dificuldade que você esteja tendo. Vejamos esta
instrução aqui. Ah não, esta não adiantou. Então pode ser outra dificuldade...”
Conosco é a mesma coisa. Às vezes estou lá na oração e penso “Não estou me
pondo na presença de Deus. Será que é porque eu quero alguma coisa? Há algum

18
Oração, Jejum e Esmola

desejo na minha mente? Então vou usar o pedido aqui” ou “É porque há alguma
outra coisa que está me incomodando? Eu estou triste? Então vou colocar uma
lamentação aqui. Vou tentar... Não sei se vou acertar”.

Dessas diversas modalidades da oração, o sujeito deve tentar todas, e pensar


“Neste momento, qual a que me põe mais na presença de Deus?” Primeiro, ele
começa fazendo uma oração tradicional. E ele percebe “Não estou me pondo na
presença de Deus. Estou só repetindo aqui um som mecânico. Então vou me
observar. É porque eu quero alguma coisa? É porque eu estou cansado? É porque eu
estou preocupado com alguma outra coisa?” Então ele pensa “Vou inserir essa
intenção equivalente, para ver o que vai pegar”. E vê o que o “engata” na presença
de Deus: “Agora vou estender isto aqui para ver se é razoável me pôr na presença de
Deus assim ou não”. O sujeito não deve dizer não antes, a não ser que ele saiba que
aquilo é uma coisa que não deve pedir a Deus, e que ele não quero realmente; ele
localizou aquilo: “Isto é só um foco de desejo que, em si mesmo, é indesejável para
mim”. Então, está bem, isso você não vai pedir a Deus; peça a Deus para lhe livrar
do foco de desejo. Isso sim, o sujeito pode pedir.

Aluno: Então, nesse sentido, o pedido seria, mais do que tudo, uma chave para,
novamente, se pôr na presença da consciência divina. Mas não necessariamente com
um pedido real – como alguém que pede alguma coisa a alguém que pode não ser
atendido –, além de ser apenas essa chave de se conectar com a sua verdade daquele
momento e aí sim ter um momento de contemplação mais profunda.

Gugu: Sim, o pedido tem essas duas dimensões simultaneamente. Ele é, por
um lado, um jeito de talvez eu conseguir a coisa sem ter que fazer nada (e isso já é
bom). Por outro lado, ele é um instrumento para eu realmente conseguir me colocar
na presença de Deus e ver quem é que está se colocando na presença de Deus agora,
e na presença de que Deus eu estou me colocando agora. Então, ele tem esse duplo
valor. Tem o valor do próprio pedido, o que é útil, no mínimo, para o sujeito lembrar
a dependência que ele tem de Deus para tudo – porque ele pode conseguir, porque
pode ser que Deus conceda aquilo que o sujeito está pedindo. Mas esta não é a única
utilidade. A outra utilidade é, quando você está expondo algo diante de um outro,
um monte de coisa que você esconde de si mesmo, quando você só pensa aquela
coisa, se manifesta quando você fala dela para outro. E na verdade essa é a razão
pela qual muitas pessoas têm escrúpulos de fazer pedidos a Deus. É porque a pessoa
sabe que, no momento em que esse pedido for exposto para um outro, vai se revelar
o seu lado sujo, o seu “lado negro”. E ela não quer que isso se se revele. Não, meu
filho, vá lá e revele-o a Deus: e agora, como é que você conserta? Não aborte o
pedido. As pessoas abortam os pedidos a Deus. E falo das boas pessoas, as pessoas
de boa consciência, elas os abortam: “Não vou pedir isto, porque tem um lado
negro!” Ah, seu idiota! Você não sabia que Deus é capaz de transformar o mal em
bem? Se você fosse lá para Ele, e revelasse o seu lado negro, e se envergonhasse,
talvez Ele conseguisse limpar, separar as coisas, e lhe dar a coisa sem ter o lado
negro! Você acha que Deus é tão incompetente quanto você? Se você consegue
desembaraçar uma coisa boa de uma coisa ruim, você acha que Deus não consegue?
Se você não consegue transformar o mal em bem, você acha que Deus não
consegue? Deus consegue. Eu não sei se Ele vai querer ou não, mas Ele tem esse
poder.

19
Oração, Jejum e Esmola

É muito ruim as pessoas abortarem pedidos. Elas já antevêem “Há um aspecto


vergonhoso neste pedido, então não vou fazê-lo a Deus”. Não faça isso. Você está
querendo a coisa, vá lá e tente pedir. Até mesmo para se expor – “E agora, o que eu
faço? Como eu conserto a relação com Deus, agora que eu expus essa sujeira para
Ele?” Mas saiba que a sujeira já estava exposta para Ele. Ele já sabia o que você
tinha. Ele sonda os rins e os corações. Mas o fato de você ter exposto agora lhe dá a
oportunidade de tentar consertar as coisas. O fato de você não ter pedido não mudou
o fato de que Ele já sabia que a sujeira estava lá. Isso não acontece conosco? Às
vezes, nós já sabemos “Fulano quer tal coisa, mas vou esperá-lo pedir”. Todo mundo
já teve essa experiência. Vou esperá-lo pedir por quê? Porque eu acho que vai ser
mais favorável se ele se abrir; isso aqui vai criar uma oportunidade de melhora. Por
que com Deus seria diferente? A única diferença é que Ele já sabe tudo. E eu, na
maior parte das vezes, só sei o que as pessoas querem quando elas chegam e falam.
Mas, de vez em quando, eu sei antes de elas falarem. De vez em quando, eu,
sabendo antecipadamente, antes de a pessoa fazer o pedido, considero “Está bem,
vou lá e fazer. Porque vai ser mais legal se eu fizer antes de a pessoa pedir”. E em
outras, não: “Vou esperar a pessoa pedir, porque vai ser melhor se a pessoa pedir
primeiro”. Sob esse aspecto, Deus não é muito diferente. Geralmente, quando
achamos que é mais favorável esperar a pessoa pedir, é porque estamos julgando que
há um elemento de orgulho ali e que é bom ela vir aqui e “Beije a minha mão,
porque eu sou o bonzão”. Agora, Deus é o bonzão. Então você tem de ir lá e beijar a
mão. A diferença é que, no Seu caso, essa situação é sempre real. Ele é sempre
merecedor de um ato de louvor primeiro antes de dar alguma coisa para nós. Deus só
tem dívidas auto-assumidas para com a humanidade, dívidas que Ele mesmo
inventou.

Aluno: Nesses três haveria uma hierarquia? Por exemplo, a oração seria a
principal e as outras seriam exercícios espirituais que ajudariam mais na oração,
embora elas tenham efeito em si mesmas...

Gugu: Existe uma hierarquia, não de subordinação – não no sentido de que o


jejum existe para ajudar na oração. Não, ele existe por uma finalidade intrínseca.
Existe uma hierarquia por quê? Primeiro, a oração é a única em que basta você estar
consciente para você poder fazer, não depende de uma circunstância. Se você já
estiver passando fome, não tem jejum; você já está fazendo jejum
involuntariamente. Se não tiver ninguém pobre para você dar dinheiro, não tem
como dar esmola; e se você não tiver dinheiro, também não tem como você dar
esmola. Ou seja, depende de circunstância. Enquanto que a oração depende pura e
simplesmente de você estar consciente. Então, em princípio, ela é o único exercício
que está sempre aberto para você. Segundo, o jejum, em princípio, se volta para sua
relação com seu corpo, tem como base a relação com o corpo. É uma relação
hierárquica: você olha para baixo. A esmola é para com o próximo. E a oração é
diretamente para com Deus. Então, existe uma hierarquia aí. Mas não porque um só
serve para apoiar o outro; não, cada um deles tem um valor específico.

Normalmente, o jejum é o mais eficaz instrumento contra a concupiscência da


carne, o simples desejo, a tendência inerente de todos os seres humanos a satisfazer
seus próprios desejos não importa o quê. Geralmente, o jejum é mais eficaz para isso
do que a oração. Se você observar os cânones tradicionais de penitência, é assim:
para pecados de desejo, você dá penitência de jejum. Não dá penitência de oração –

20
Oração, Jejum e Esmola

“Que rezar o quê, filho?! Você tem que se privar de alguma coisa”. Para pecados de
ofensa ao próximo, você tem que dar penitência de misericórdia: dar esmola, cuidar
do doente, visitar o preso. Você dá, para cada tipo de pecado ou para cada tendência
viciosa do ser humano, como penitência o exercício que seja mais apropriado para
aquele tipo de vício. O que não significa que a oração não possa resolver todos. Ela
pode, realmente. Desde que o sujeito esteja realmente impossibilitado de realizar os
outros exercícios. Quer dizer, ela só os substitui em caso de necessidade. O sujeito
não tem dinheiro, ele mesmo é um mendigo na rua; bem, ele reza pelos outros. A
esmola que ele pode dar é a oração. O sujeito está doente e não pode fazer jejum?
Bem, então aceite a doença como uma privação. Esse é o jejum que você pode fazer.
Reze pedindo a Deus para ter força para se conformar àquilo. Esse é o jejum que
você pode fazer. Mas é ditado pelo limite da circunstância. Se o sujeito estiver
perfeitamente saudável, e possuir meios materiais razoáveis, então ele deve se
dedicar a todos esses três tipos de exercícios. Senão, ele estará enganando a si
mesmo.

Então, o jejum não tem como finalidade principal dar suporte à oração, embora
isso seja um dos seus efeitos também. Ele tem como finalidade principal você dizer
“não” ao seu corpo e ver o que acontece. A esmola é a mesma coisa: ela vai auxiliar
na sua oração, mas a sua finalidade principal é você dizer “sim” para o próximo
como você diz “sim” para si mesmo. E a finalidade da oração não é dar suporte ao
jejum e à esmola, embora muitas vezes ajude você pedir a Deus para ter força para
dar esmola corretamente e para jejuar, e, se você rezar com frequência, você tende a
ter sentimentos favoráveis ao jejum e à esmola. Mas a finalidade dela é você
descobrir quem Deus é e quem você é, e em que pé vocês estão um com o outro.

O importante é o sujeito perceber que vida a espiritual consiste em duas coisas.


Primeiro: testemunho da realidade, contemplação, isto é, perceber Deus, perceber o
que é a Verdade, a Bondade, e a Beleza... Segundo: é isso penetrar a sua vida como
um todo. Vida espiritual é isso. Saiba que vida animal é a satisfação das
necessidades físicas e psicológicas do ser humano. Oração, jejum e esmola, são
instrumentos de vida espiritual; são ferramentas para que as outras duas coisas
aconteçam de maneira mais eficaz. E esses instrumentos funcionam da seguinte
maneira: eles têm dois princípios de funcionamento. Um que é válido para depois da
morte, e outro que é válido para agora. Depois da morte: quando ela é meramente
intencional. “Vou rezar o Pai-nosso, porque Jesus Cristo ensinou que era uma
oração boa e eu acredito Nele”, aí você reza aquela oração. Saiba que o fruto disso
está guardado para você depois da morte. E agora: “Vou rezar isto sistematicamente
e ver o que acontece comigo enquanto eu estou rezando. E verei se consigo
transformar o que acontece comigo numa ocasião para eu descobrir melhor quem é
Deus e quem sou eu”. Então esta é a batalha de que você tira o fruto agora. Rezar a
oração porque Deus ensinou, porque você está aceitando a religião, é como assinar
um contrato. É como estabelecer: “Está bem, eu estou deste lado aqui. Estou do lado
de Deus, não estou do lado do demônio”. Mas não é entrar no palco da batalha. Não
é entrar no exército. É fazer uma declaração. Essa declaração pode ser meramente
virtual. E em muitas vezes, quando rezamos, ela é só uma declaração virtual; ou
quando fazemos jejum ou damos esmola. Mas em algumas ocasiões ela oferece uma
oportunidade de um combate real.

Isso é importante, para as pessoas lembrarem, nunca confundirem [e acharem

21
Oração, Jejum e Esmola

que] vida espiritual é algo que você pode controlar, dominar. Se o sujeito jejua
regularmente, reza muito todo dia, dá esmola [e já pensa] “Pronto, eu sou um
homem espiritual”. Vá sonhando, filho! Se fosse assim, você seria o produtor da sua
própria salvação. Não é assim; isso é instrumental. É como o sujeito que aprende
uma arte: ele não é o criador das propriedades naturais que possibilitam aquela arte;
ele está fazendo uso daquelas propriedades. A arte da salvação ou da santificação é a
mesma coisa. Você não é o possuidor dos princípios operativos da arte da salvação,
mas pode usar os instrumentos que favorecem que esses princípios operem na sua
vida.

Também é muito comum ouvir: “Eu conheço gente que reza o tempo todo, mas
é ruim!”. Não me encha o saco, que objeção mais idiota! Primeiro, você não sabe se
a pessoa reza tanto assim quanto ela aparenta rezar. Quando Cristo falou para você
fazer isso em segredo, o que Ele quis dizer também, em parte, é: isso, na verdade, é
em segredo. Só você e Deus sabem se você está rezando mesmo ou não. Você pode
ir em público e rezar em voz alta, colocar sua caixa de sabão na praça, pegar o seu
rosário e rezar em voz alta. Talvez você não esteja rezando aos olhos de Deus. É
uma atividade cujo valor só pode ser medido internamente. Segundo, eu não sei se
essa pessoa de que você está falando é má mesmo, ou se você é um idiota que não
sabe a diferença entre uma pessoa boa e uma pessoa má, porque isso também
acontece muito hoje. O fato é que oração, jejum e esmola são instrumentos para que
o sujeito tenha vida espiritual mesmo, para que a sua inteligência se abra para o que
é ilimitado e para que isto circule por todo seu ciclo vital, até o ponto em que, a cada
respiração sua, ele sinta: “Deus me deu ar!” – e em tudo, ele esteja interagindo com
Deus. Porque a verdade é que estamos interagindo com Deus o tempo todo. Vida
espiritual é simplesmente tornar essa verdade eficaz o tempo todo. E é claro que eu
não tenho o poder para isso; quem tem poder para isso é o Espírito Santo. Mas eu
tenho o poder aqui de abrir janelas sistematicamente. Ora, às vezes eu abro a janela
como mero exercício e vou obter a recompensa no futuro. Às vezes, não, eu percebo
“Alguém está tentando segurar a janela fechada aqui. Agora vou lutar e tentar abri-
la”; bom, obtive um resultado aqui e agora.

Santa Tereza é muito clara ao falar isso: “Muitas pessoas têm ilusão. Quem
acha que o Espírito Santo guia as pessoas sempre do mesmo jeito, na minha opinião
essa pessoa caminha na ilusão”. Santa Tereza era muito legal. Ela tinha a certeza
clara e absoluta dessas coisas, e falava “É evidente que isso é pura ilusão. Eu acho
que essa pessoa caminha na ilusão”. O que ela quis dizer com isso? Existem pessoas
que têm a ilusão de que vão chegar a um estado em que, na sua alma, em todos os
seus exercícios de piedade elas vão se sentir bem, e com tudo o que é mal elas vão se
sentir mal. Não vai acontecer isso, parem de sonhar! Esse não é o propósito da vida
espiritual. O propósito da vida espiritual não é transformar a terra no Paraíso ou dar
a ilusão de que a terra é o Paraíso. O propósito da vida espiritual é interligar as duas
coisas o tempo todo. Progresso na vida espiritual não é o sujeito cada vez mais
gostar de rezar. Não, agora cada vez mais ele reza, gostando ou não. E ele faz da
oração de que ele gosta um jeito de descobrir melhor como Deus é e como ele é, e da
oração de que ele não gosta, ele faz a mesma coisa.

Isso não vai gerar uma satisfação constante, mas uma paz constante, uma
certeza constante de que o sujeito está, o tempo inteiro, interagindo com a realidade
como um todo, e não com um fragmento da sua circunstância existencial. É “Paz na

22
Oração, Jejum e Esmola

terra aos homens de boa vontade”, e não “Alegria na terra aos homens de boa
vontade”. Paz na terra significa isso; significa o sujeito que se habituou com esses
exercícios de vida espiritual e aproveita as oportunidades que eles oferecem, e chega
a um estado em que tem paz. Porque ele está, o tempo todo e em todas as
circunstâncias, lidando com Deus, e Deus é a coisa mais segura que existe. Deus é o
único que você sempre sabe como é, como Ele vai agir; Ele não vai mudar de
opinião amanhã, não existe acidente que possa modificar o jeito como Ele funciona.
Paz, segurança. Deus é a única coisa segura. “Glória a Deus nas alturas e paz na
terra aos homens de boa vontade”. O sujeito, de vez em quando, da paz é lançado ao
estado de glória contemplativa. E aí sim, claro que isso é tremendamente
satisfatório. São essas duas as recompensas. Ele nunca falou “Glória a Deus nas
alturas e felicidade suprema na terra aos homens de boa vontade”. Não é bem isso
que está escrito ali, não são os termos do contrato. Nem poderia ser assim, porque
isso implicaria uma mutação do universo: o mundo das coisas teria que deixar de ser
o mundo da ambiguidade e passar a ser o mundo do absoluto. Então, às vezes,
mesmo no mais santo dos santos, a sua oração será “Puxa vida, Deus, como eu sou
um canalha que não quer rezar hoje”. E essa vai ser a sua oração sincera. E ela não é
tremendamente satisfatória, mas dá uma certa paz.

O sujeito tem que saber também isso: existem esses exercícios; mas qual é o
fruto? O fruto é paz na terra e glória nas alturas. “Paz” por quê? Lembrem que no
começo da aula falamos que a alternância de situações satisfatórias e situações
insatisfatórias gera no fundo da psique uma expectativa de que, se tudo for
satisfatório, será bom. Acontece que a única coisa real que pode corresponder a essa
ânsia é a glória nas alturas, é ir para o Céu. O Céu é a única situação real que
corresponde a essa expectativa. Quando o sujeito habitualmente interage com Deus,
ele tem paz, porque ele tem realmente a esperança: “Calma, vamos chegar lá”. Esse
núcleo de expectativa se fecha para as outras coisas que não podem gerar essa
satisfação permanente e se mantém aberto para a única coisa que pode causar isso,
que é Deus. O nosso maior problema não é existir essa expectativa, mas é dirigir
essa expectativa para aquilo que não pode satisfazê-la. Quando o sujeito realmente
descobre o que vai satisfazer e está constantemente em interação com isso, ele fica
em paz. A última razão, mais funda, mais básica, de perturbação em sua alma está
resolvida. As outras passam a ser apenas perturbações temporárias.

Observem-se nisso. Quando acontece alguma coisa insatisfatória, algo bem no


fundo, bem discreto, bem sutil, fala conosco “Que droga, o mundo não é do jeito que
estávamos imaginando!”. Havia algo em mim que esperava satisfação constante. E
havia ainda um outro lado em mim que, diante do insatisfatório, me fala “Está
vendo? Tudo é ruim mesmo! Não adianta esperar satisfação constante, pois você vai
se ferrar, porque o mundo é horrível, porque viemos da poeira cósmica e a ela
retornaremos. O mundo é apenas uma massa de átomos sem sentido”. Estar diante
da dúvida entre essas duas possibilidades e não ter certeza é a causa mais profunda
de perturbação ou insatisfação na vida do ser humano.

Falamos que a vida espiritual é um tipo de guerra, e é verdade, mas a ausência


de vida espiritual é um outro tipo de guerra. É uma guerra entre a expectativa de
satisfação constante e o medo de que não exista nada na realidade que possa
corresponder a essa expectativa. Como o esquema psicológico do homem de
satisfação e frustração não é direto – ele é indireto, como a Lua no simbolismo lunar

23
Oração, Jejum e Esmola

–, existem pessoas otimistas e pessoas pessimistas. Pessoas otimistas são aquelas


que se agarram à expectativa de que uma hora vão ter satisfação constante. Pessoas
pessimistas são as que dizem “Talvez isso aconteça, mas até agora não aconteceu.
Então, para não ter frustração, eu vou me agarrar à ideia de que nunca haverá
satisfação nenhuma, de que não existe nada no mundo que possa dar satisfação”.
Mas a verdade é que essas são apenas saídas psicológicas que não resolvem
realmente a questão. A única coisa que resolve essa questão é um convívio
permanente com Deus. O sujeito que tem um convívio permanente com Deus sabe
que há uma saída e que a porta não vai se fechar para ele, que a porta está sempre
aberta para ele. Mais uma vez lembrando: oração, jejum e esmola não vão causar
isto. Eles não são a causa da paz na terra e da glória nas alturas; eles são exercícios
para se obter essas coisas.

Se ninguém tiver alguma dúvida, isto é tudo. Eu sei que esse assunto poderia
render mais. Eu poderia dar uma aula só sobre jejum, uma aula só sobre esmola,
uma aula só sobre oração, porque cada uma dessas coisas tem inúmeras dimensões.
E detalhar, por exemplo, petições. O que pode acontecer quando você faz orações de
pedido, o que pode acontecer quando você faz orações de louvor, de gratidão, de
lamentação? O número das variáveis para essas coisas é indefinido. Então não tem
como esgotar as possibilidades aqui – “Agora eu vou lhe dar um manual completo
de tudo o que pode acontecer na oração”. Eu posso dar um manual estrutural; e se
acostume a fazer isso muito, e então você vai começar a aprender as modalidades. E
o mais importante, como disse Santa Tereza, é continuar querendo a salvação e a
santificação, e perseverando nesses exercícios não importa o quê. O único jeito de
errar completamente esse exercício é parar de fazer, é chegar à conclusão de que é
melhor parar de fazer. Esse erro não tem volta, não tem cura, é irreversível. [Se o
sujeito disser] “Eu rezei a vida toda, mas rezei errado”, não tem problema, isso tem
jeito; “Fiz jejum errado”, não tem problema, isso tem cura. “Não fiz, parei. Fiz um
tempo, achei que não deu resultado e parei”, agora isso não tem cura. Por quê?
Porque oração, jejum e esmola se referem à condição antropológica. Não é como:
“Eu fiquei estudando guitarra por dez anos, mas não teve jeito” – é porque você não
tinha nenhum talento para isso. Isso pode acontecer. O sujeito não nasceu para ser
músico. Mas você não pode dizer que ele é um membro da espécie humana e não
nasceu para ser gente. Isso não acontece.

Aluno: Professor, a Juliana Chainho acabou não podendo participar do


hangout, ela estava meio adoecida e teve que se retirar antes, mas deixou uma
pergunta aqui, que eu acho que o senhor respondeu mais ou menos durante a aula:
“Por que oração, jejum e esmola são tão relevantes assim para a salvação e não
outras atitudes quaisquer?”.

Gugu: Em princípio é porque essas três atividades são escolhidas por causa
dessas três direções focais. Uma é a relação do sujeito com seu corpo, com o seu
núcleo mais básico; é o homem olhando para baixo. Outra é o homem olhando para
o próximo, para o seu igual. Outra é o homem olhando para seu superior, que é
Deus. Esses três exercícios se dão nesses três tipos de relações hierárquicas que o ser
humano pode ter com as coisas. Numa hora você olha para coisas e elas são só
coisas: então você olha de cima para baixo, você tem que aprender a governá-las
bem. Noutra hora você olha para um igual e tem que aprender a lidar com o igual. E
noutra hora você olha para o superior e tem que aprender a lidar com o superior. Eu

24
Oração, Jejum e Esmola

diria que, em princípio, são escolhidos esses três exercícios por causa disso. Não
existe uma quarta relação possível.

Aluno: Tenho mais uma pergunta também. Eu fico me perguntando uma coisa,
um pouco banal, mas é que isso tudo é tão importante, tão crucial para a vida
humana, que eu fico me perguntando como a compreensão de um assunto como esse
– é óbvio que uma compreensão muito complexa não é para todos, mas é algo que
muitos poderiam ter – acontece num nível quase esotérico e velado, e, mesmo que
antigamente tenha sido menos, dificilmente foi uma coisa exposta com tanta clareza
assim, e é algo tão crucial. Isso sempre fica vindo à mente. Eu não sei se existe uma
explicação muito clara para isso...

Gugu: Em última análise, só Deus pode contar a história do mundo e explicar o


porquê exatamente. Mas esse mundo tem seus dias e suas noites, assim como minha
alma tem seus dias e suas noites. Na minha própria alma eu observo que, de vez em
quando, tudo isso está muito claro e estou fazendo tudo muito bem e está tudo
maravilhoso entre eu e Deus. E, de vez em quando, não. De vez em quando, tudo
isso entrava e embola e eu penso “Caramba, e agora? O que eu faço?” Se acontece
assim comigo, a sociedade não é senão uma coleção de pessoas, e não tem nenhum
status ontológico superior. Em alguma hora, vai acontecer – estatisticamente, que
seja – de, para um monte de gente, isso estar tudo embolado. Então, eu acho que é
simplesmente isso: o azar cósmico. Numa hora é assim: “Ih, deu tudo errado!”. Mas
como a providência divina está sempre presente, nessa mesma hora em que dá tudo
errado, é a hora em que todos os tratados de oração estão acessíveis para todo
mundo pela internet, e dá para dar aula dessas coisas pela internet. Deus compensa
de algum modo. Deus tornou inacessível de um jeito, Ele torna acessível de outro.
Dá para antever algo da perfeição da justiça divina, mesmo nessa circunstância;
puxa vida, aqui uma situação de tanto desequilíbrio: Deus compensa de algum
modo.

Aluno: Professor, eu tenho uma pergunta também. Para quem nasceu num
ambiente cristão, ou mais ou menos cristão, falar desses três exercícios é até comum,
nós escutamos isso. No ambiente cristão, isso é algo que está bem no centro mesmo,
é algo que é dito muito no Evangelho, na vida dos santos, e você mesmo falou há
pouco que é algo antropológico, quer dizer, que está realmente muito ligado ao ser
humano. A minha pergunta é: já que é algo tão central para o ser humano, me parece
que outras tradições religiosas de alguma forma têm que tocar nesse aspecto
também, ou mais ou menos englobar esses três exercícios. Então: essas outras
tradições religiosas, que mereçam esse nome de fato, tocam nesse aspecto, ou é fora
de contexto falar disso em outras tradições?

Gugu: Naturalmente. Pelo menos, eu nunca ouvi falar de nenhuma grande


religião – e quero dizer grande em termos históricos, que englobe civilizações
inteiras e séculos de história daquela civilização – cujas autoridades espirituais ou
cujos santos não estimulassem diretamente essas mesmas três coisas, ou três coisas
exatamente equivalentes, com outros nomes ou com outras ênfases. Como falamos,
os aspectos desses três exercícios são inúmeros. Existem inúmeras vantagens no
jejum, ou na oração, ou na esmola, e é claro que uma civilização ou outra pode
enfatizar um aspecto ou outro, mas eu não conheço nenhuma grande religião que
falasse “Não, só precisa de dois desses elementos, não precisa do terceiro”. Eu não

25
Oração, Jejum e Esmola

me lembro de nenhuma que tenha falado “Não, basta você ter a oração, ter
consciência do Absoluto, mas não precisa ter disciplina corpórea nenhuma, não
precisa rejeitar o desejo dos sentidos” ou “Basta só fazer jejum, não precisa pensar
no Absoluto”. Eu não me lembro de nenhuma, todas elas insistem nesses três
exercícios. Isso parece ser uma constante antropológica mesmo. Não é algo
exclusivo [do cristianismo]. Parece se fundar na natureza das coisas. Se você
observar o que os monges budistas fazem, o que os Sannyasa hindus fazem, o que os
sufis fazem, a vida deles é fazer esses três tipos de exercícios. Vida espiritual é você
fazer esses três tipos de exercício para obter tais tipos de resultados. Então parece
existir uma semelhança. Eu não consigo me lembrar agora de nenhuma religião que
tenha falado que uma dessas coisas seja desnecessária ou inútil ou prejudicial. Eu
me lembro de todas elas terem falado que essas coisas são necessárias e úteis. Eu
diria que são conselhos universalmente válidos.

Aluno: Gugu, você estava falando da questão de que no jejum você olha para
baixo, na esmola você olha para o próximo, e na oração você olha para Deus. E a
ascensão espiritual se dá num desenvolvimento da oração então, mais no avanço da
oração, digamos assim. Pegando as Sete Moradas, de Santa Tereza, esse
desenvolvimento seria propriamente da oração.

Gugu: Sim. Você pode pensar nessas três coisas como círculos concêntricos, a
oração sendo o mais interno deles, o mais quintessencial mesmo. Mas o sujeito
tendo meios de ação, muito provavelmente ele vai anular a sua oração se não
estender para outros domínios. O sujeito que fala “Eu rezo, rezo, rezo, mas não dou
esmola”, eu não acredito que ele tenha religião, porque Jesus Cristo falou para rezar,
dar esmola e fazer jejum. Então o sujeito tem a religião que ele inventou, e que não é
a de Jesus Cristo. Não acho que ele vai progredir muito na oração seguindo esse
método; não acho que ele vai chegar a uma oração de sétima morada, oração de
quietude, oração de recolhimento. Acho que ele não vai chegar a oração nenhuma,
porque está rezando para si mesmo, para o Deus que revelou sua religião em que não
precisa dar esmola nem fazer jejum. Que Deus é esse? O próprio sujeito. Não é o
Deus da Bíblia.

Há uma hierarquia: uma hierarquia de dignidade, uma hierarquia de


importância, e até uma hierarquia de potencial. É evidente que, de todos esses, o que
dá mais fruto espiritual é a oração, mas esse fruto vai cair num terreno estéril se o
sujeito na relação com o próximo for mesquinho, não sentir nada do sofrimento do
próximo, não controlar os próprios apetites. Eu não sei se a oração vai ajuda-lo
muito. Você tem que agir nos três planos, você existe nos três planos. Embora exista
uma hierarquia entre eles, uma coisa não substitui a outra. O que é melhor nem
sempre substitui o que não é tão bom. A melhor refeição não substitui uma camisa
quando o que você está sentindo é frio. É verdade que, das necessidades corporais, a
refeição é mais primária, mais essencial do que a camisa; existem mais
circunstâncias em que consigo viver sem camisa do que circunstâncias em que
consigo viver sem comida; na hierarquia das necessidades materiais, a comida está
acima da camisa, mas uma boa refeição não substitui a camisa quando você está com
frio. Existe uma hierarquia e é evidente que a oração é a principal, mas hoje em dia
nós falamos “A oração é a principal” e o pessoal pode pensar “Oba, não preciso
mais dar esmola, nem fazer jejum”. Está bem, mas saiba que você está inventando
sua própria religião. Eu, pessoalmente, não tenho nenhum problema com isso, mas

26
Oração, Jejum e Esmola

se você tiver a esperança de que vai chegar para Jesus Cristo e falar que cumpria a
Sua religião, quando você inventou a sua própria, Ele deve falar “Não vos conheço”.
Ele já avisou, esse é um caso que está previsto, que ele falou. Por quê? Porque você
está se pondo numa falsidade existencial. Pois você não convive apenas com Deus,
você convive com o próximo e com seu corpo também.

Aluno: Gugu, em relação, por exemplo, à esmola. Não digo substitui-la, mas,
digamos, uma caridade. Se você vive [participando de] uma causa pró-vida, ou numa
missão, em que você vai para um lugar fazer caridade, a esmola seria nesse sentido
também?

Gugu: Veja bem, inclui isso. Mas é o mesmo que dizer o seguinte: por
exemplo, a oração inclui a meditação, o estudo das coisas sagradas, a contemplação
da beleza. No entanto, Jesus Cristo não falou “A contemplação da beleza, o trabalhar
por uma boa causa e o dormir pouco, seguir uma disciplina de horários”. Não. Ele
falou oração, jejum e esmola. Deve haver um motivo para isso. É claro que podemos
perceber claramente que há uma afinidade entre a oração e o estudo das coisas
sagradas, a leitura da escritura, a meditação, o exame de consciência. Tudo isso entra
nesse mesmo capítulo aqui, está mais ou menos na mesma área, mas é evidente que,
do ponto de vista de Jesus Cristo, a obra central nesse plano é a oração; a obra
central no plano com o próximo é a esmola; e a obra central no plano do domínio
sobre o corpo é o jejum. E se é central, também é, em certo sentido, insubstituível.
Provavelmente, ela vai se tornar melhor se você lhe acrescentar outras coisas.
Realmente melhora muito a oração do sujeito se ele estudar as coisas sagradas, se ele
ler as vidas de santos, se ele fizer exame de consciência. Mas se ele fizer tudo isso e
não rezar, eu não posso garantir que ele cumpriu o que Jesus Cristo falou. Vou dizer
uma coisa a vocês: em última análise, religião é confiar em alguém, e religião cristã
é confiar em Jesus Cristo.

A mesma coisa vale para a esmola: dar esmola, alimentar os famintos, visitar
os presos, combater o aborto; tudo isso está nesse mesmo plano de caridade para
com o próximo, é verdade. São tipos de esmola, em certo sentido. Mas Ele falou
esmola. E eu pessoalmente acho que a pessoa que substitui uma coisa pela outra
corre sério risco de estar levando a sua mente mais a sério do que a palavra de Jesus
Cristo, e não sei se isso vai ajudá-lo a obter a salvação. Acho que é um hábito
desfavorável. Acho que, se o sujeito fizer isso, ele estará tendendo a substituir a fé,
que é a adesão a um ensinamento direto, por uma racionalização; não sei se isso vai
ajudar o sujeito ou não. É claro que eu posso inferir racionalmente que há outras dez
obras relacionadas a esse plano da oração. Também posso acreditar que um minuto
de contemplação vale por cem anos de oração, cem anos de oração vocal. No
entanto, Ele falou oração, e, além dissso, está na Escritura: “Nada do que Ele fazia
ou dizia era em vão”.

Então, pessoalmente, eu não acredito que uma coisa substitua a outra. Acredito
que essas outras obras todas acrescentam, ampliam, tornam mais eficaz, mas não
acredito que substituam. Pelo menos, não acredito que uma pessoa deva fazer dessa
substituição a base de sua vida. Eu também não sei, Deus é quem sonda os rins e os
corações; Ele é quem sabe se uma outra obra de caridade que a pessoa fez valeu
como esmola ou não, se uma outra obra contemplativa que o sujeito fez valeu como
oração ou não, se uma outra obra de disciplina corpórea que o sujeito fez valeu

27
Oração, Jejum e Esmola

como jejum ou não. Deus é quem sabe. Realmente eu não posso dizer com absoluta
certeza que se o sujeito substituir, ele irá para o inferno, porque não obedeceu a
Jesus Cristo – quem decide isso é Jesus Cristo. Mas eu não troco o certo pelo
duvidoso. Quer dizer, faça isso também, acrescente isso. Legal, ótimo! Mas se o
sujeito tem um desejo forte de substituir a coisa por um raciocínio que ele fez, eu
tendo a desconfiar dessa atitude, eu tendo a achar que essa atitude não é muito
favorável. Ela pode ser honesta diante de Deus e Deus é quem sabe, mas não posso
aconselhar a pessoa dizendo “Estão no mesmo plano”.

Isso pode ser porque eu seja uma pessoa de tendência literalista. Sou aquele
tipo que acha que, até prova em contrário, o mundo foi criado em seis dias, até a
prova de que isso não é literal, e é só simbólico, só simbolismo. Prove para mim que
é apenas um simbolismo e eu acreditarei; enquanto você não tiver uma prova disso,
por que não [seria assim]? Se Deus falou, eu devo acreditar. Nesse sentido, eu sou
um homem primitivo e não sofisticado. Isso é palavra minha, e não do Senhor. Eu
acho que uma coisa não substitui a outra. Acho que o sujeito deve acrescentar a
meditação, acrescentar a leitura das piedosas escrituras, do estudo das coisas
sagradas – acho que isso só vai melhorar a sua oração –, o uso de imagens sagradas,
ficar olhando para elas ao invés de ficar rezando. Mas Ele falou “Tem que rezar, tem
que fazer oração. E quando você for orar, faça assim: ‘Pai nosso que estás no
céu...’”. Acredito que nada vai substituir isso.

Aluno: Professor, dentro daquelas mensagens de Nossa Senhora de


Medjugorje, acho que, em 84, ela falou que o jejum que a Igreja Católica prescreve é
insuficiente, e recomendou o jejum tradicional de pão e água às quartas e sextas-
feiras.

Gugu: Eu recomendo vivamente esse jejum também. Vou explicar uma coisa:
esse negócio de “ser insuficiente”, por definição, é insuficiente. Se você tiver uma
disciplina de jejum a que tenha que obedecer – preste atenção –, o que Deus está
falando, e o que a Igreja está falando também, é o seguinte: se não fizer isso, você
estará acumulando pontos para ir para o Inferno; se fizer isso, você não estará
necessariamente acumulando pontos para ir para o Céu. Faça isso e mais um pouco,
então você estará acumulando pontos para ir para o céu. Tem que existir um
movimento de livre entrega na vida espiritual. Santo Tomás explica isso
amplamente, falando da diferença entre a lei e a fé. Se você quiser alcançar a plena
liberdade espiritual, terá que cumprir a lei e fazer outras coisas livremente. Se a
Igreja transformar essas outras coisas em lei, bom, agora você terá que fazer mais
coisas e outras ainda livremente. Por definição, a Igreja não pode prescrever ao
sujeito tudo o que ele tem que fazer para ele ser perfeitamente livre espiritualmente.
Ela pode prescrever tudo o que você tem que fazer para não ir para o Inferno, o
mínimo indispensável. Uma coisa é a disciplina mínima e indispensável; essa pode
ser prescrita, e tem que cumprir, é a regra. Se o sujeito cumprir a regra nas condições
que a própria regra estabelece, realmente ele não vai para o inferno. Deus não mente.
Mas também ele não vai ficar santo – ele que não venha dar uma de santo para cima
de mim só porque ele cumpre todos os Mandamentos.

Como a vida espiritual implica esse elemento de liberdade, de livre entrega –


que é uma coisa, de modo geral, esquecida –, é por isso que a Santíssima Virgem
tem que vir e lembrar “Não basta fazer o que é obrigatório: tem que fazer um pouco

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Oração, Jejum e Esmola

mais”. Que ninguém julgue isso e pense “Está vendo? A Igreja não está
mandando...” Não. Se a Igreja mandar fazer isso, essa disciplina passará a fazer
parte da lei: você vai ter que fazer isso e mais ainda. Eles estão facilitando para
você, e não dificultando, nem dando a instrução errada.

Aluno: O plano que a Igreja estabelece entre você e Deus é mais ou menos a
relação entre servo e empregado, não é? Você fazer o mínimo indispensável ali. O
ideal é que você tenha uma relação mais ou menos de marido e esposa.

Gugu: Exatamente. O cumprimento de uma lei é evidentemente uma relação


servil, seguir as regras é uma relação servil. O servo, claro, merece a sua
recompensa e vai receber o seu pagamento – mas ele que não venha se meter a achar
que é membro da família. Devemos lembrar que a Nova Aliança, a nova lei, o Novo
Testamento, é principalmente o sujeito acrescentar uma dimensão de entrega livre. A
ênfase toda do Evangelho está nesse elemento de entrega livre, de algo que não é
obrigatório. Resumindo: por definição, vida espiritual é um exercício de liberdade e
não o cumprimento de uma regra. As regras são um suporte. Imagine se a Igreja
falasse “todo mundo tem que rezar o Rosário todo dia”. Bom, todo mundo tem que
rezar o Rosário todo o dia, mas se a lei obrigasse todo mundo a rezar o Rosário todo
dia, todo mundo teria que rezar dois rosários todo dia.

Aluno: Uma última questão aqui, professor. (...) No caso dos protestantes. A
única oração tradicional que eles aceitam é o Pai Nosso. No caso deles, eu vi
algumas críticas que fazem à oração espontânea. Como eles poderiam compensar
essa ausência de orações tradicionais?

Bom, essa foi a única que Jesus Cristo mandou fazer. Eu acho que é muito
salutar a pessoa pegar a Bíblia e ver as orações que as pessoas boas da Bíblia
fizeram e tentar imitar aquilo. Acho que esses são grandes exemplos, padrões, e que
vão ajudar muito a vida pessoa. Se a pessoa reza a Ave Maria porque está lá, e foi
um anjo que rezou, não adianta a pessoa falar “Isso é idolatria” – está escrito na
Bíblia, filho! Não fui eu quem falou, foi Deus que mandou falar! O que está na
Bíblia foi o Espírito Santo que falou! O Espírito Santo reza desse jeito. Como os
Salmos, como a oração de Zacarias, como a oração de Simão, estão lá. Se você acha
que vai inventar da sua telha algo melhor, vai fundo.

Às vezes, a pessoa está aplicando uma lógica para a religião que ela não aplica
para as outras coisas da vida. Esse é o vício mais comum nas pessoas. Veja bem,
ateus inventaram que religião é uma coisa mágica e supersticiosa, e as pessoas que
têm religião hoje em dia acreditam nisso. Só que isso é invenção do inimigo.
Religião funciona mais ou menos como todas as outras coisas funcionam; ela tem
uma ordem de coerência como as outras coisas. E, é claro, quanto eu tenho uma
doença, eu posso inventar um novo tratamento que me der na telha, mas geralmente
as pessoas que fazem isso morrem.

Outra coisa: a pessoa estar fazendo isso para centrar a sua oração na pessoa de
Jesus Cristo, que é o elemento positivo que muitas vezes existe no movimento
evangélico. Não complique a sua adoração. Quem é o teu salvador? Este aqui. O que
ele está falando para você fazer? Isto aqui, você está voltado para ele. Nessa
simplificação, nessa atitude, eu vejo algumas vantagens. Ela não é completamente

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Oração, Jejum e Esmola

injustificada. Ela é, por exemplo, análoga à atitude que São Bernardo Claraval tinha
com relação a imagens na igreja. São Bernardo achava “Igreja perfeita não tem
nenhuma imagem, tem só uma cruz. O resto tudo é distração”. Bem, se uma pessoa
desse porte espiritual tem essa opinião, é porque isso é uma possibilidade humana
válida, legítima. Não vou dizer que isso era uma idiossincrasia de São Bernardo que
era contrária a Deus. Eu acho que não, eu acho que era uma atitude espiritual válida,
legítima e de que alguns seres humanos podem até precisar para ter uma vida
espiritual saudável. Então, se alguém decidir fazer isso, eu não vou ser o primeiro a
atirar uma pedra.

É verdade que muitas vezes a adoração do católico é toda confusa, por causa
dessa multiplicação, desse desdobramento da Encarnação – os santos etc... Eu sei
que tudo isso é a Encarnação, mas esse é um negócio muito místico que é difícil de
entender. Às vezes, a mente do sujeito não se ajusta; às vezes, a contemplação dele é
um fio direto. E não se trata de uma pessoa idiota, que não é capaz de compreender
essas coisas. Você está falando que São Bernardo Claraval era idiota, não era capaz
de compreender essas coisas de contemplação? Está bem, cada um com sua
opinião... Eu acho que não, que se uma pessoa dessa estatura espiritual tinha essa
atitude em relação à adoração que era mais favorável, é porque essa é uma
possibilidade humana relevante e totalmente aceitável para Deus. Se os evangélicos
fazem isso, eu não vou dizer que todos eles estão fazendo isso por erro e que só uma
minoria deles está fazendo por uma necessidade espiritual autêntica. Não, talvez a
maioria deles esteja fazendo isso por uma necessidade espiritual autêntica. Como
vou saber? Eu não sou Deus, não sei isso não.

Parece-me razoável acreditar que pode existir um grande número de pessoas


cujo coração, cujo núcleo espiritual exige uma forma de adoração mais direta e pura,
ou simples; não no sentido que damos à palavra “simples” hoje – “O fulano é
simples”, e queremos dizer que ele é burro. Simples no sentido que São Bernardo
Claraval, por exemplo, precisava em sua prática: não desdobre em muitos
elementos, não dissipe a sua atenção. Pode ser, eu não sei. Eu mal sei como funciona
a minha alma; toda vez que eu for rezar eu sei quando é favorável usar uma imagem
e quando é desfavorável usá-la? Não, eu atiro no escuro. Eu tento usar a imagem e
vejo mais ou menos como está indo, e daí penso “Eu acho que a imagem está
atrapalhando, estou pensando só no valor artístico da imagem. Então vou tirar a
imagem daqui e ficar pensando só nas palavras”. Quando faço isso com a minha
alma, eu atiro no escuro. Agora eu vou começar a falar das almas dos outros? Eu não
sei! Pode ser que uma pessoa esteja empobrecendo a sua adoração fazendo com que
não tenha imagem e seja somente o Pai Nosso; e pode ser que outra pessoa esteja
enriquecendo a sua vida espiritual fazendo isso. E eu não sei. Por quê? Porque a
oração é feita em segredo. Essa é uma variável admissível.

Aluno: O que você acha de oração, por exemplo, como os católicos mais
tradicionais defendem, em latim. O que você acha da oração numa língua que não é
sua língua-mãe?

Gugu: Acho que oração em latim para o católico é muito bom. Pelo menos, a
minha experiência com oração em latim geralmente é melhor do que com oração em
português. Eu não consigo levar a língua portuguesa tão a sério assim – acho que
ninguém fala português na frente de Deus, não acho que essa seja a língua falada na

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Oração, Jejum e Esmola

corte divina. Se isso aumenta o senso de reverência, bom, em primeiro lugar, é uma
língua tradicionalmente litúrgica, uma língua de tradição litúrgica. Não é assim:
“Vou fazer [a oração] em gaélico, porque é diferente, é uma língua estrangeira para
mim”. Se existe uma tradição litúrgica que já criou uma riqueza litúrgica, uma
riqueza artística, se um monte de santos rezou naquela língua, e se quando eu rezo
naquela língua eu aumento meu senso de reverência e minha consciência da
presença de Deus, talvez seja mais favorável rezar naquela língua mesmo. Por outro
lado, Deus entende português também.

Resumindo: o que queremos dizer é que essas coisas admitem amplas


variações de modalidade. Eu, pessoalmente, acho que a coisa começa a ficar
estranha quando um modo de interação com Deus plausível, possível e que pareça
adequado a certo tipo humano começa a virar uma posição doutrinal: “Não pode ter
imagens” ou “Deve ter imagens”. Pare com isso. Essas discussões nunca renderam
muitos frutos. Há aqui uma certa flexibilidade: o sujeito tem que entender que, em
última análise, em todos esses negócios de vida espiritual, as únicas referências
absolutas que temos são: a referência inicial, isto é, Deus falou “Reze assim”; e a
referência final: “Qual o efeito? Você ficou rezando assim por um ano, quais estão
sendo os efeitos em você? Você está conhecendo Deus melhor? Você está
conhecendo Deus pior?” Se isso não estiver melhorando, você não está fazendo
direito. Então é a semente tradicional oferecida por Deus e o “pelos frutos,
conhecereis”. No meio do caminho, há muitas variações possíveis.

E acho que especialmente para um cristão, é desfavorável o sujeito chegar com


duas pedras na mão para o cara que faz diferente. O cara está rezando uma oração
cristã, está rezando o Pai Nosso, ele só reza o Pai Nosso: eu vou atirar uma pedra na
sua cabeça? Eu não! Se o sujeito falar “Eu li o Evangelho, a vida dos santos, e agora
acho que todo mundo deve rezar plantando bananeira, olhando um hipopótamo,
falando palavras estranhas numa língua inventada”, veja bem, eu não vou atirar uma
pedra na sua cabeça, mas vou dizer que não acredito nisso. Se o sujeito me fala “Eu
prefiro rezar só o Pai Nosso, sem imagens. Eu acho que esse negócio de imagens é
confuso, tenho medo de cometer idolatria”, pode ser que ele esteja certo fazendo
isso, pode ser que esse seja o melhor jeito de ele rezar mesmo. Agora, transformar
isso em leizinha para todos os cristãos? Aí eu acho que isso está errado, acho que o
sujeito não entendeu como esse negócio de cristianismo funciona. O outro fala:
“Para mim, não, precisa ter várias imagens. E há o terço, e o ciclo dos mistérios, e a
visualização, e a Santíssima Virgem, por causa da perfeição espiritual dela...”
Também vale. Agora, [dizer] “Mas agora todo mundo tem que fazer assim”. Não sei,
filho. Essa religião aqui não funciona bem assim, ela admite uma ampla variação
interna. De maneira geral, por exemplo, sou muito favorável a imagens, mas quando
entro numa igreja e não são ícones, eu tenho vontade de sair. E se o outro fica? Não
sei, não vou julgá-lo. Talvez ele não esteja sendo afetado por aquilo. E se um outro
fala “Prefiro não usar imagem nenhuma, porque eu me confundo. Isso não é
favorável”, eu acredito também. Se não fosse possível o sujeito rezar sem imagens,
então seria idolatria mesmo, quer dizer, a imagem tem um poder mágico, e sem
imagem não seria válido.

Resumindo: acho que todas as atitudes, tanto a do evangélico quanto a do


católico ou a do ortodoxo, têm lá seu elemento de validade, mas quando elas
começam a ser defendidas ferreamente como sendo a certa, acho que você já entrou

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Oração, Jejum e Esmola

no domínio da superstição, honestamente. O sujeito fala “Eu faço assim, mas o


evangélico faz daquele jeito!” – bom, acho que você já é supersticioso, isso já é
bobagem. Você não sabe, a oração é em segredo, e tem santo que preferia não usar a
imagem. Se houvesse algumas igrejas católicas com uma estética protestante, talvez
alguns protestantes se convertessem. Já pensou naquilo como uma necessidade
espiritual humana real? Talvez os caras se convertessem.

Aluno: A ideia, por exemplo, de as igrejas católicas orientais manterem a


iconografia ali justamente para trazer os ortodoxos para dentro da igreja. Eles
poderiam fazer a mesma coisa, tirar as imagens ali para trazer os protestantes, sendo
essa também uma atitude espiritual legítima.

Gugu: Eu não vejo como seria ilegítima. Não acho isso estranho. Na verdade,
pense bem: eu rezo todas as orações que estão na Bíblia? Eu repito todas as orações
que todo mundo fez na Bíblia? Vamos procurar quais as orações que Abraão fez,
quais as que Adão fez, quais as que Moisés fez; eu repito todas estas? Não. Eu
escolhi algumas. Pai Nosso, Ave Maria, os Salmos etc. Bom, veja bem, quando o
sujeito escolheu só uma, ele não falou “Eu vou escolher só a Ave Maria”; ele
escolheu aquela que Deus mandou em pessoa – bem, eu não posso julgá-lo por isso.
Se fosse para escolher só uma, eu também escolheria essa. Não me parece que o
critério foi irrazoável. E é razoável escolher só uma? Não sei, talvez em algumas
circunstâncias seja.

Transcrição: Pedro Alvim Pena, Tomás de Carvalho, Carlos Augusto G. do Nascimento

Revisão: Rodrigo Dubal

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