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SEMINÁRIO

INTERDISCIPLINAR EM
SOCIOLOGIA E DIREITO

CEM ANOS DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS:


A Revolução de Outubro de 1917 e seu
impacto no Mundo Contemporâneo

PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO
EM SOCIOLOGIA E DIREITO
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
7 Seminário
Interdisciplinar
em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CEM ANOS DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS:


A Revolução de Outubro de 1917
e seu impacto no Mundo Contemporâneo

Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito


Universidade Federal Fluminense

Niterói
2017
EDITORA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO
Universidade Federal Fluminense
Rua Tiradentes 17, Ingá
24210-510 Niterói/RJ
+55 (21) 3674-7477
sociologia_direito@yahoo.com.br

Coordenador

NAPOLEÃO MIRANDA

Comissão Científica

EDSON ALVISI NEVES


SÉRGIO GUSTAVO DE MATTOS PAUSEIRO
ELIZABETE ROSA DE MELLO
ANA ALICE DE CARLI
JOAQUIM LEONEL DE REZENDE ALVIM
BÁRBARA GOMES LUPETTI BAPTISTA
NAPOLEÃO MIRANDA
WILSON MADEIRA FILHO
ENZO BELLO
GIULIA PAROLA
LUÍS ANTÔNIO CUNHA RIBEIRO
JAMES ARÊAS
GILVAN LUIZ HANSEN
CLODOMIRO JOSÉ BANNWART JÚNIOR
ANA MARIA MOTTA RIBEIRO
MÁRCIA BARROS FERREIRA RODRIGUES
JACQUELINE DE CASSIA PINHEIRO LIMA
ALEXANDRE SÁ BARRETTO DA PAIXÃO
MARIA ALICE NUNES COSTA
MARIA ANTONIETA LEOPOLDI
EDER FERNANDES MONICA
ADRIANA RIBEIRO RICE GEISLER
DELTON MEIRELLES
FERNANDA DUARTE
MARCUS FABIANO GONÇALVES
MÔNICA PARAGUASSU CORREIA DA SILVA
THIAGO RODRIGUES-PEREIRA
MARCELO PEREIRA DE ALMEIDA
CECILIA CABALLERO LOIS
CARLOS MAGNO SPRICIGO VENERIO

Comissão Organizadora

DANIELA JULIANO SILVA


FRANCIS NOBLAT
É de inteira responsabilidade dos autores os conceitos aqui apresentados.
Reprodução dos textos autorizada mediante citação da fonte.
APRESENTAÇÃO
“O Legado Social da Revolução Russa 100 anos depois”

Em 2017, completou-se 100 anos da Revolução Russa, um dos eventos políticos e


sociais mais importantes e significativos do Século XX. Sua carga simbólica, enquanto
movimento revolucionário que colocou, pela primeira vez na História, a classe trabalhadora no
poder possibilitando a ela promover as transformações econômicas, políticas e sociais que
promoveriam a passagem do capitalismo para o socialismo, teve imensa repercussão na história
do século passado e no imaginário das classes sociais em todo o mundo.
Nestes 100 anos, o mundo assistiu a uma nova guerra mundial, a muitas revoluções e
tentativas de revolução, ao uso da bomba atômica no Japão, a uma profunda transformação de
suas estruturas econômicas e sociais a partir da globalização e da internet, à reafirmação dos
Direitos Humanos, à luta e reafirmação das mulheres em busca de seus direitos, à luta contra o
colonialismo e à luta pela libertação nacional, em especial na África, na América Latina e na
Ásia, além de uma profunda transformação cultural que levou à valorização das diferenças
culturais entre os povos do mundo, assim como à reafirmação da diversidade como valor
intrínseco das sociedades democráticas e da cidadania.
A contribuição da Revolução Russa para todas essas transformações foi enorme,
quando mais não seja pelo estabelecimento de um exemplo histórico concreto de que, sim, é
possível aos seres humanos assumirem a responsabilidade pelo curso da História de cada
sociedade existente.
Sua influência foi profunda, por exemplo, na luta dos trabalhadores em todo o mundo,
por assegurar seus direitos e definir uma Justiça do Trabalho voltada para a defesa dos
trabalhadores na sua relação com os empresários. Ainda na esteira desta influência sobre a
história do Século XX, cabe lembrar o importante papel da então União Soviética na
delimitação dos Direitos Humanos Políticos, Sociais e Econômicos na década de 1960,
ampliando o rol dos Direitos Humanos até então centrados nos direitos individuais.
Apesar de todas as dificuldades que enfrentou e dos grandes erros de condução
política que levaram a uma ditadura burocrática, altamente repressiva sobre a sociedade, a
Revolução Russa permanece como um dos momentos históricos mais importantes e
transcendentes do Século XX. Ao colocar a Revolução Russa de 1917 como tema central do
7° Sociologia e Direito, o PPGSD homenageia a todos os trabalhadores em sua luta por um
mundo melhor, menos desigual e mais solidário.

Napoleão Miranda
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
da Universidade Federal Fluminense
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................ IX

CEM ANOS DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS: A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO


DE 1917 E SEU IMPACTO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
EL DERECHO PENAL TRAS LA REVOLUCIÓN RUSA: UN PARÉNTESIS DE 100 AÑOS
........................................................................................................................................................................ XIX
VÁZQUEZ, Virgilio Rodríguez

EMPRESA, DIREITO E SOCIEDADE


PLANOS NACIONAIS DE AÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: SUFICENTES
ANTE A ARQUITETURA DA IMPUNIDADE? ..................................................................................37
JÚLIO, Kaliandra Casati
CAMPOS, Rafael Jordan de Andrade
ROLAND, Manoela Carneiro

OS DESAFIOS EMPRESARIAIS GERADOS PELOS ELEVADOS NÍVEIS DE ENCARGOS


TRABALHISTAS NO BRASIL.................................................................................................................51
SOUZA, Mylena Devezas
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de

A (IN) VISIBILIDADE DE FUNCIONÁRIOS DA LIMPEZA NA FACULDADE DE DIREITO


DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF) E A TERCEIRIZAÇÃO COMO
QUESTÃO SOCIAL.....................................................................................................................................64
ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende
Costa, Luane Faustino

TRIBUTAÇÃO JUSTA COMO DIREITO FUNDAMENTAL


A EXTRAFISCALIDADE DA TAXA DE COLETA DE RESÍDUOS SÓLIDOS .......................78
MELLO, Elizabete Rosa de
SIMON, Laura Fonseca
VIDAL, Victor Luna

A FUNÇÃO EXTRAFISCAL DO IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS


COM A FINALIDADE DE REDUZIR A TRIBUTAÇÃO DE VEÍCULOS ELÉTRICOS NO
BRASIL............................................................................................................................................................94
MELLO, Elizabete Rosa de
SENRA, Matheus Veloso Bastos

ICMS ECOLÓGICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS.............................................................. 111


MELLO, Elizabete Rosa de
SIMON, Laura Fonseca
VIDAL, Victor Luna

O EFEITO CONFISCATÓRIO DAS MULTAS NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS E


JUDICIAIS TRIBUTÁRIOS ................................................................................................................... 127
MELLO, Elizabete Rosa de
CASTRO, Isabela Lobo Monteiro de
VILELA, Débora Carolina de Oliveira

x
MERCADO DE TRABALHO, CAMPO PROFISSIONAL E MEDIAÇÃO
DISPUTAS PROFISSIONAIS NA INTRODUÇÃO DA MEDIAÇÃO NO NÚCLEO DO IDOSO
E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DE FORTALEZA. (MINISTÉRIO PÚBLICO DO
CEARÁ) ........................................................................................................................................................ 139
ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende
ALCÂNTARA, Alexandre de Oliveira

UMA REFLEXÃO SOBRE A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA


INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO NO BRASIL.......................................................... 157
SOUZA, Carla Faria de
BRAGANÇA, Fernanda

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS
UM ENSAIO DE DIETROLOGIA JURÍDICA: O CASO DA ALDEIA IMBUHY ............... 172
BARAHONA, Henrique

ASPECTOS DE PROTEÇÃO ANIMAL, AMBIENTAL E HUMANA: ANIMAIS E


VEÍCULOS DE TRAÇÃO ....................................................................................................................... 189
CHAUFUN, Mery
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.
NOGUEIRA, Marcelo

VULNERABILIDADE SOCIAL DE MORADORES REASSENTADOS E SUA PERCEPÇÃO


DE RISCOS.................................................................................................................................................. 200
KNÖLLER, Patrícia de Vasconcellos

PROJETO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA APARENTE


CONTRADIÇÃO ENTRE A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A REFORMA AGRÁRIA
......................................................................................................................................................................... 218
SOARES, Paulo Brasil Dill
RIBEIRO, Ana Maria Motta
CÂMARA, Andreza Aparecida Franco

CAPITALISMO VERDE, DIREITO À CIDADE E LUTAS ANTICAPITALISTAS


INTERFACES ENTRE ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL: UMA ABORDAGEM TEÓRICA ANTICAPITALISTA............................236
AFONSO, Rodrigo Vilhena Herdy
NASCIMENTO, Camila Aguiar Lins do

DIREITO À TERRA: UMA ANÁLISE DA LUTA INDÍGENA CHIQUITANO ....................259


MOREIRA DA COSTA, Loyuá Ribeiro Fernandes
COUTO, Larissa de Paula

BEM VIVER E UBUNTU: MUDANÇAS DE VALORES NA BUSCA PELO


ECOSSOCIALISMO .....................................................................................................................274
LEMOS, Walter Gustavo da Silva

xi
POLÍTICA, SUBJETIVIDADE E VIDA COLETIVA: RESISTÊNCIA E
MOVIMENTOS SOCIAIS
O DIREITO ACHADO NA RUA COMO UMA PERSPECTIVA PARA A CONSTRUÇÃO DE
UM TRATADO VINCULANTE SOBRE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS................. 293
FERREIRA, Livia Fazolatto
ROLAND, Manoela Carneiro
SENRA, Laura Monteiro

RAFAEL BRAGA VIEIRA E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA NO CONTEXTO


BIOPOLÍTICO ........................................................................................................................................... 308
IGNATOWSKI, Thiago Salles
LOPES, Gilberto Santiago
PINTO, Anna Carolina Cunha

REFLEXÕES SOBREA JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO DOMÉSTICA


(HOMESCHOOLING): DISPOSITIVO, IMMUNITAS E A FORMA-DE-VIDA .................... 322
FARIAS-LARANGEIRA, Marcelo
LIMA, Andrea Peres

A CONSTRUÇÃO DA “VERDADE” E O FIM DAS ILUSÕES ACERCA DO INDIVÍDUO


......................................................................................................................................................................... 340
MONTEIRO, Mariana L.

DA BIO À TANATOPOLÍTICA: AUTOS DE RESISTÊNCIA E A SELETIVIDADE DIREITO


À VIDA.......................................................................................................................................................... 352
PINTO, Anna Carolina Cunha
SANTIAGO, Gilberto Lopes
FELDKIRCHER, Gabriela Fenske

UMA REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE E RECONHECIMENTO A PARTIR DO


PARADIGMA DA IMUNIZAÇÃO DE ROBERTO ESPOSITO .................................................. 368
PINTO, Simã Catarina de Lima

O TRABALHO ESCRAVO E O CAPITALISMO: UM PROBLEMA NA POLÍTICA


CONTEMPORÂNEA ............................................................................................................................... 381
VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras
FIGUEIRA, Hector Luiz Martins
CHAUFUN, Mery

SOBERANIA E IMIGRAÇÃO: UMA ANÁLISE BIOPOLÍTICA DO VISTO PERMANENTE


POR RAZÕES HUMANITÁRIAS CONCEDIDO AOS IMIGRANTES HAITIANOS.......... 394
BARBOSA, Fabiane Machado
SANTOS, Faria Vera Ribeiro de Almeida dos

DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E ESTADO DEMOCRÁTICO DE


DIREITO
O CERRADO BRASILEIRO E SUA INVISIBILIDADE NAS METAS DO ACORDO DE
PARIS: A OMISSÃO DO ESTADO COM O DESMATAMENTO NA “CUMEEIRA” DA
AMÉRICA DO SUL .................................................................................................................................. 416
BOLSON, Simone Hegele
MIRANDA, Napoleão

xii
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO EFETIVAÇÃO NO PROCESSO DE
ADMINISTRAÇÃO DOS CONFLITOS ESCOLARES .................................................................. 432
ESTEVES, Pâmela
GOMES, Ingrid

REGULAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO: PERCEPÇÕES DE UMA (RE)


CONFIGURAÇÃO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA FORMALIZAÇÃO DA ATIVIDADE
EMPRESARIAL......................................................................................................................................... 450
JUAREZ, Rodson

A ARMADILHA AUTORITÁRIA E O ESTADO DE EXCEÇÃO: AS LIÇÕES DE CARL


SCHMITT .................................................................................................................................................... 467
MENEZES, Wellington Fontes

DIREITO E MORAL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DAS POSSIBILIDADES DE


UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ..................................................................... 491
MONNERAT, Alice Nogueira

ENFRENTAMENTO À VIOLENCIA DOMÉSTICA: REFLEXÕES A PARTIR DA


DESOBEDIENCIA CIVIL, ÉTICA-MORAL E MEDIAÇÃO DE CONFLITOS .................... 503
PIRES, Rosely Maria da Silva
SILVA, Rosely Dias da
GOUVEA, Roberta Suzane

CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UMA CONSTRUÇÃO HORIZONTALIZADA DOS


DIREITOS HUMANOS COM APORTES NO TRANSCONSTITUCIONALISMO .............. 519
FERREIRA, Lucas Pontes

A EFETIVAÇÃO DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL EM PAUTA: A


ALIMENTAÇÃO ADEQUADA COMO DIREITO FUDNAMENTAL ..................................... 536
SOARES, Durcelania da Silva
GOMES Luciane Mara Correa
RANGEL, Tauã Lima Verdan

A DIVULGAÇÃO DAS OPERAÇÕES DA POLICIA FEDERAL: DIREITO DE ACESSO À


INFORMAÇÃO, LIBERDADE DE IMPRENSA E INTERESSE PÚBLICO ........................... 552
SANTOS, Denis Ribeiro dos

O DIREITO NA SOCIOLOGIA ............................................................................................................ 568


SANTANA, Gabriela T. M. da Hora

NARRATIVAS DE CONTRADIÇÕES DE CLASSE E RELAÇÕES DE


DOMINAÇÃO
A ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA E SEU DOPPELGÄNGER: AS TENSÕES
ENTRE HEGEMONIA CAPITALISTA E RESISTÊNCIA NESTE RECORTE DO MUNDO
DO TRABALHO ........................................................................................................................................ 578
PITA, Flávia Almeida

VIA COLONIAL E NEOLIBERALISMO: AS REFORMAS TRABALHISTAS E A


PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO ........................................................................... 597
JACINTO, Ana Letícia Domingues
RODRIGUES, Arthur Bastos

xiii
APORTES MATERIALISTAS AO ESTUDO DO PENSAMENTO JURÍDICO COMO
IDEOLOGIA: A CRÍTICA ROMÂNTICA DO CAPITALISMO E O DIREITO SOCIAL DE
CESARINO JÚNIOR ................................................................................................................................ 615
SALES, Anna Paula Almeida
PAÇO CUNHA, Elcemir
MONNERAT, Alice Nogueira

UMA REFLEXÃO SOBRE AS CATEGORIAS: CAMPESINATO E AGRICULTURA


FAMILIAR COMO PROCESSO DE LUTA ...................................................................................... 638
SOARES, Mara Magda
RIBEIRO, Ana Maria Motta
SOUZA, Maria José Andrade de

ARTE E LITERATURA EM CENÁRIOS SOCIOJURÍDICOS


O DIREITO E SUAS NECESSÁRIAS INTERAÇÕES COM A LITERATURA E A
TECNOLOGIA........................................................................................................................................... 652
SANTO, Letícia Alonso do Espírito

ORDEM E DESORDEM NA FRONTEIRA DO DESERTO: A NARRATIVA DE BREAKING


BAD E AS TRANSGRESSÕES MORAIS ........................................................................................... 664
MADEIRA FILHO, Wilson
DIAS, Fabricio de Barros Seraphim
SANTOS, Rayanne Monteiro de Andrade

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E GOVERNANÇA


A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: UM ESTUDO DOCUMENTAL ........................................ 682
CHRIZOSTIMO, Raquel Marinho
SILVINO, Zenith Rosa
SANTOS, Marcelo José

GOVERNANÇA CORPORATIVA, GOVERNANÇA PÚBLICA E ACCOUNTABILITY:


INSTRUMENTOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DE DIRETOS FUNDAMENTAIS NAS
COMPANHIAS ABERTAS..................................................................................................................... 694
DALCASTEL, Marcia Bataglin
ALONSO, Pedro Moreira

O IMPACTO DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS NA PRODUÇÃO DE POLÍTICAS


PÚBLICAS ................................................................................................................................................... 710
LOPES, Monique Rodrigues

ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS (APAC) COMO


POLÍTICA PÚBLICA ALTERNATIVA AOSISTEMA CARCERÁRIO CONVENCIONAL
......................................................................................................................................................................... 723
NUNES, Isabela Gomes
RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva

OS PAÍSES DO BRICS E O CONTEXTO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO: O


DEBATE NO ÂMBITO DA GOVERNANÇA GLOBAL................................................................ 740
RACHED, Gabriel

xiv
AS DISPUTAS DE CAPITAL SIMBÓLICO NO CAMPO JURÍDICO: AS REAÇÕES AO
NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA.................................. 751
ALÔ, Bernard dos Reis

CORRUPÇÃO E INSTITUIÇÕES ........................................................................................................ 763


BRETAS, Carlos Renan Moreira

A LEI N. 13.019/14: LIÇÕES DE “BOA” GOVERNANÇA NAS PARCERIAS COM O


TERCEIRO SETOR?................................................................................................................................ 775
SILVA, Daniela Juliano

SEXUALIDADE, DEMOCRACIA E PODER


A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES, O POLIAMOR E O RECONHECIMENTO DA UNIÃO
POLIAFETIVA PELO TABELIÃO DE NOTAS EM ESCRITURA PÚBLICA ...................... 795
BOLSON, Simone Hegele

DIÁLOGO ENTRE FEMINISMOS, DIREITO E RELIGIÃO ..................................................... 816


COLEN, Karen de Sales

ENSINO JURÍDICO, FACULDADES DE DIREITO E FORMAÇÃO


PROFISSIONAL
A ARTE DE ENSINAR DIREITO TRIBUTÁRIO ........................................................................... 832
MELLO, Elizabete Rosa de

AS UNIVERSIDADES PRIVADAS NO BRASIL: O LONGO CAMINHO ............................... 846


FIGUEIRA, Hector Luiz Martins
VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.

A CRISE NO ENSINO JURÍDICO E OS CONCURSOS PÚBLICOS ........................................ 858


COSTA, Beatriz Guimarães

ENTRE O TECNÓLOGO E O JURISTA ........................................................................................... 870


LOPES, Ricardo Ferraz Braida
MEIRELLES, Delton Ricardo Soares

AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE: RETRATOS DE UMA PESQUISA SOBRE A


INSERÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS EM UMA FACULDADE PÚBLICA DE DIREITO
......................................................................................................................................................................... 881
SANTOS, Erli Sá dos
ALMEIDA, Matheus Guarino Sant’Anna Lima de
PACHECO, Heloisa de Faria

A EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO NA COMAR UNIG ............................................................... 898


NADER, Carmen Caroline Ferreira do Carmo
RANGEL, Tauã Lima Verdan
NADER, Cristian

EM BUSCA DE UM NOVO SABER JURÍDICO: A EXPERIÊNCIA EM “PODER


JUDICIÁRIO E POLÍTICA” .................................................................................................................. 911
MACHADO, Joana de Souza
VALENTE, Mário José Bani

xv
REFLEXÕES SOBRE VOCAÇÃO E FORMAÇÃO DOCENTE NO ENSINO JURÍDICO
SUPERIOR .................................................................................................................................................. 925
FERNANDES, Cristiane de Souza
STEVANS, Felipe S. F. de Souza

SOCIOLOGIA DOS SENTIMENTOS MORAIS


MANUEL DA NÓBREGA E AS MISSÕES JESUÍTAS NOS PRIMEIROS ANOS DO
GOVERNO GERAL DO ESTADO DO BRASIL (1549-1559) ....................................................... 939
BROCCO, Pedro
GONÇALVES, Marcus Fabiano

XENOFOBIA PARA ALÉM DA MORAL.......................................................................................... 955


MONTEIRO, Tiago Leão

IMPEACHMENT NA CONVERGÊNCIA ENTRE DIREITO, MORAL E POLÍTICA À LUZ


DA TEORIA INSTITUCIONALISTA DE NEIL MACCORMICK ............................................. 970
SILVA, Anna Carolina Pinheiro da Costa

HERMENÊUTICA, PROCESSO E TEORIA DA DECISÃO


LEI OU JUSTIÇA: UMA ANÁLISE ETNOMETODOLÓGICA DOS JUIZADOS ESPECIAIS
CÍVEIS I E II DA COMARCA DE VOLTA REDONDA ................................................................ 986
MIRANDA, Napoleão
SEIXAS, Marcus Wagner de
MARCHI, Amanda Aguado

TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: ALGUNS


ARRANJOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS ........................................................................... 999
CATHARINA, Alexandre de Castro

PERÍCIAS NAS AÇÕES DE CONCESSÃO DE AUXILIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO: A


APLICABILIDADE DO PRINCÍPIODA RAZOABILIDADE NOS PROCESSOS JUDICIAIS
....................................................................................................................................................................... 1015
MARQUES, Marcilene Margarete Cavalcante
CHALFUN, Mery
BORGES, Letícia Maria de Oliveira

ENSINO JURÍDICO HOJE


O DIREITO E O ENSINO JURÍDICO SOB A PERSPECTIVA DE MICHEL MIAILLE E A
RECONFIGURAÇÃO DA CIÊNCIA JURÍDICA A PARTIR DAS OCUPAÇÕES DAS
ESCOLAS PÚBLICAS ........................................................................................................................... 1031
ABREU, Angélica Kely

PARA ALÉM DAS AULAS EXPOSITIVAS: UM REPENSAR DO ENSINO JURÍDICO A


PARTIR DO PROTAGONISMO DOS DISCENTES .................................................................... 1048
FERREIRA, Oswaldo Moreira
GOMES, Luciane Mara Correa
RANGEL, Tauã Lima Verdan

AÇÃO AFIRMATIVA, EDUCAÇÃO E JUDICIALIZAÇÃO: SILÊNCIOS E SENTIDOS


....................................................................................................................................................................... 1063
SANTOS, Erli Sá dos

xvi
ENSINO JURÍDICO NO BRASIL: A PREPARAÇÃO MULTIFUNCIONAL....................... 1074
SOUZA, Mylena Devezas.
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de

ARTE, MÍDIA E DIREITOS HUMANOS: O TEATRO, A FOTOGRAFIA, O


CINEMA E A TELEVISÃO
A VERDADE DE NIETZSCHE NA OBRA A LIBERDADE GUIANDO O POVO DE EUGENE
DELACROIX, UMA PERSPECTIVA FEMINISTA...................................................................... 1087
COELHO, Naiara

A(R)TIVISMO FEMINISTA: INTERSECÇÕES ENTRE ARTE POLÍTICA E FEMINISMO


....................................................................................................................................................................... 1098
COSTA, Maria Alice Nunes
COELHO, Naiara

INDIVÍDUO, SOCIEDADE E O CINEMA: A CONTEMPORANEIDADE, O DINHEIRO E O


MOVIMENTO NA CIDADE ................................................................................................................ 1111
RIBEIRO, Wanisy Roncone

xvii
Conferência de Abertura

CEM ANOS DE
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS:
A Revolução de Outubro de 1917 e seu impacto
no Mundo Contemporâneo
EL DERECHO PENAL TRAS LA REVOLUCIÓN RUSA:
UN PARÉNTESIS DE 100 AÑOS

VÁZQUEZ, Virgilio Rodríguez


Profesor Contratado Doctor (acreditado profesor titular) de Derecho Penal.
Universidad de Vigo.

INTRODUCCIÓN1

En general, el Derecho penal ruso, y en particular el producido tras la Revolución


Rusa, apenas ha sido objeto de estudio en los países de tradición jurídica continental. Sin
embargo, indirectamente se han producido acercamientos a través del Derecho penal alemán
de preguerra (anterior a la II Guerra Mundial).
Lo que se trata de poner de manifiesto en este trabajo es que la génesis del Derecho
penal alemán del período Nazi, de 1933 a 1945, reproduce conceptos y léxico contenidos en el
Derecho penal creado en la Revolución de Octubre de 1917.
La Revolución Rusa crea un Nuevo Derecho penal que rompe con el Derecho penal
liberal, propio del Estado de Derecho que nace con las Revoluciones liberales y que encuentra
su punto de inflexión en la Revolución Francesa del año 1789. Hay una línea de continuidad
que va desde el Derecho penal de autor, que se instala a partir del año 1919 en la Unión de
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), y que pasando por la Alemania Nazi, llega hasta
nuestros días a través del Derecho penal del enemigo, con referencias en el Derecho positivo
de muchos países occidentales.

1
El presente trabajo se inscribe en el proyecto de investigación “Responsabilidad penal de personas físicas y jurídicas en el ámbito
empresarial, económico, laboral y de los mercados (II)” (Referencia: DER2014-58546-R, Ministerio de Economía y
Competitividad), del que es investigador principal el Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Diego-Manuel Luzón Peña, Catedrático de Derecho
Penal de la Universidad de Alcalá de Henares, así como también en los proyectos de investigación “Las garantías penales como
límite y guía en la solución de problemas penales complejos: la necesidad de evitar atajos” (Referencia: DER2013-47511-R,
Ministerio de Ciencia e Innovación) y “Principios y garantías penales: sectores de riesgo” (Referencia: DER2016-76715-R,
Ministerio de Ciencia e Innovación) de los que es investigador principal el Prof. Dr. Dres. h. c. Miguel Díaz y García Conlledo,
Catedrático de Derecho Penal de la Universidad de León, y de cuyos equipos de trabajo formo parte. Este trabajo fue presentado
como ponencia de apertura del 7.º Seminário Interdisciplinar em Sociología e Direito (S&D 7), celebrado en la Faculdade de
Diereito, Universidade Federal Fluminense, Niterói (Brasil), los días 25 y 26 de octubre de 2017. Quiero expresar mi
agradecimiento al Profesor Napoleão Miranda, así como a los Profesores Edson Alvisi Neves, Gilvan Luiz Hansen, Wilson
Madeira Filho y Antón Lois Fernández Álvarez.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. EL DERECHO PENAL TRAS LA REVOLUCIÓN FRANCESA.

Las revoluciones liberales de mediados y finales del siglo XVIII que tienen lugar en
la Europa continental y en América del Norte, cuyo precedente inmediato lo podemos encontrar
en los movimientos liberales del siglo anterior en el Reino Unido, van a marcar un antes y un
después en el devenir político y social de los Estados occidentales. El punto de inflexión
generalmente reconocido de este cambio tiene fecha, nombre y apellidos: 14 de julio de 1789,
Revolución Francesa. El levantamiento popular, liderado por la burguesía, que acaba por
derrocar a la monarquía absoluta materializa en la praxis política las corrientes de pensamiento
que habían ido forjando una nueva concepción de poder, legitimidad y, en definitiva, de Estado.
Los clásicos Rousseau, Locke y Montesquieu, compendian las principales ideas que empujan
la transformación definitiva del Estado absolutista en un Estado de Derecho. El complemento
nominal “de Derecho”, que adjetiva la nueva forma de organización política de la sociedad, nos
señala ya la principal característica de esta nueva realidad. El Estado, como superestructura que
planea sobre todos los miembros de una colectividad (auto)considerada como sujeto político,
deberá estar sometida al Derecho. Por tanto, ni tan siquiera esa superestructura, que concentra
el poder, y quienes actúen en su nombre, es decir, quienes ejerzan fácticamente ese poder,
podrán hacerlo sin control, de modo autónomo, sino que se verán necesariamente sometidos al
Derecho, entendido como sistema de normas. A esto hay que añadir que esas normas las crea
el conjunto de personas, la comunidad, que decide organizarse en Estado. En este orden de
cosas, los poderes del Estado, cedidos por la sociedad en su conjunto que es quien
originariamente los ostenta, están sometidos a las normas, a la Ley, que emana, como decía, de
dicha sociedad. El principio de legalidad se configura como la piedra angular de esta nueva
forma de organización política, de manera que el poder estatal, que es un poder derivado, no
pueda hacer nada fuera de la Ley; Ley que a su vez procede de los hombres y las mujeres que
deciden, como miembros de una comunidad, otorgar la capacidad de dirigir, gestionar y
controlar, a una superestructura, denominada Estado, que lo ejercerá puntual y temporalmente
a través de personas concretas, pertenecientes a esa misma sociedad. La idea de contención del
poder que implica el principio de legalidad se ve complementada con la división de poderes
que ya se refiere a una forma determinada de organizar a las personas que van a ejercer el poder
que se atribuye al Estado. En realidad, supone una división de tareas o funciones que se
distribuyen en tres grandes bloques, ejecutivo, legislativo y judicial, que a su vez es objeto de
subdivisiones y estratificaciones en una cadena sucesiva hacia la base de la pirámide. Pero lo

xx
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

fundamental es que el poder que concentra el Estado, por delegación de la sociedad, no lo


olvidemos, se divide en esos tres bloques, con funciones (en principio) claramente
diferenciadas. De esos tres bloques el que más interesa aquí es el legislativo, pues debe ser el
canal que comunique permanentemente al sujeto político -la comunidad- con el artefacto
político -el Estado- para que las ideas sobre la organización, las relaciones sociales, la
convivencia, los negocios, etc. presentes en la comunidad puedan materializarse en leyes
reconocidas por todos y susceptibles de aplicación y, consecuentemente, necesitadas de
cumplimiento. De alguna manera, el poder legislativo, cualesquiera formas que adopte,
congreso, parlamento, senado, cámara, etc., tiene la misión de traducir el sentir social para
hacerlo inteligible frente a todos y susceptible de aplicación. Entre las competencias cedidas
por la sociedad al Estado (en concreto, al poder legislativo) está la de entrar a regular los
aspectos más conflictivos de la sociedad, aquellos comportamientos o conductas que pueden
afectar a la convivencia pacífica y, por tanto, poner en peligro la supervivencia del propio sujeto
político. En el proceso de definir qué es delito, y qué consecuencia se le atribuye, el Estado está
obligado a traducir fielmente el sentir de la sociedad, lo debe hacer a través del poder al que se
le ha atribuido específicamente esa función, el poder legislativo, y estará sometido, por tanto,
al principio de legalidad. En resumen, en el Estado de Derecho, el poder punitivo, reconocido
tradicionalmente como el “ius puniendi”, no puede ser, como acabamos de ver, por la propia
naturaleza de esta forma de organización política de la sociedad, un poder absoluto, pero
además, no puede ser ajeno a la propia sociedad, sino que debe ser ejercido atendiéndola,
vinculado a lo que ésta diga, piense o crea. Estas ideas son las que sintetiza el “principio de
legalidad”.
El principio de legalidad condiciona decisivamente la creación del Derecho penal en
un Estado de Derecho. En primer lugar, determina que no puede haber delito, es decir, una
conducta no puede ser calificada como lesiva, en última instancia para la sociedad, si no lo es a
través de una ley. Tampoco podrá contemplarse una consecuencia jurídica, en forma de pena,
para esa conducta, si no se hace mediante una ley. Por tanto, no puede haber delito ni pena si
no a través de ley (“nullum crimen, nulla poena sine lege”)2. Pero es que además, para que ese
mandato realmente se cumpla, y sea por tanto efectivo, tiene que hacerse siguiendo unas pautas,

2 Véase ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De Vicente Remesal,
Miguel Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997, 137; DE FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito penal, Parte Geral, Tomo
I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, 177; LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte General, 3.ª
ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2016, 20.

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adoptando unas formas concretas, y con rigor. Sólo habrá cumplimiento efectivo del mandato,
y el poder legislativo, en definitiva, el Estado, respetará el mandato social, si identifica y define
el delito con precisión, con claridad y con exactitud. De no ser así, es decir, de tener, cada
miembro de la sociedad, que “adivinar” para cada situación si una conducta es delito o no lo es,
no se estaría cumpliendo ese mandato. Esa definición debe hacerse con carácter previo, pues el
telos del mandato es asegurar la convivencia, algo que sólo se puede conseguir si antes de la
toma de decisiones cada persona sabe (o, al menos, puede llegar a saber) qué consecuencias
tiene su conducta (y no solo para él, sino más importante incluso, qué consecuencias tiene su
conducta para los demás, para la sociedad en la que se integra, pues ésta y no la primera es –o
debería ser- la razón de su toma de decisión). Se suele añadir que esa definición legal ha de
fijarse por escrito, para que pueda llegar con más seguridad a todos los miembros de la sociedad
o al mayor número, con un carácter permanente y estable, e incluso con mayor fuerza
vinculante, aunque éste requisito es más discutible (“Lex praevia, scripta, stricta et certa”)3.
Del principio de legalidad, así entendido, derivan dos importantes consecuencias que no hacen
otra cosa que extenderse en ideas que están contenidas en dicho principio. Primera, la que se
conoce como principio de irretroactividad de las leyes penales, segunda, la prohibición de la
analogía en contra del reo. El principio de irretroactividad nos dice que las leyes que definen
delitos e imponen penas no se pueden aplicar con carácter retroactivo, hacia atrás, a hechos que
acontecieron antes de que esas leyes entrasen en vigor y por tanto pudiesen ser conocidas y
pudiesen condicionar así el comportamiento de los ciudadanos. El principio de irretroactividad
persigue proporcionar seguridad jurídica a los ciudadanos y también eficacia jurídica a las
normas penales. Por eso se predica la prohibición de retroactividad respecto de aquéllas leyes
que crean delitos o agravan penas, pero no así de aquéllas que derogan o atenúan las penas,
pues no se estará afectando ningunas de las dos cuestiones en juego ya señaladas. Por su parte,
la prohibición de la analogía en contra del reo, relaciona la labor del poder legislativo en materia
penal con la del poder judicial, otro de los tres bloques en los que se divide el poder del Estado.
Cuando se exige, de acuerdo con el principio de legalidad, que la ley penal sea lo más precisa
y clara posible, se quiere evitar que los jueces y tribunales puedan “estirarla” a su antojo para
incluir en la descripción de delito cuantas conductas estimen oportuno. Se quiere impedir que

3Véase ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De Vicente Remesal,
Miguel Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997, 140 ss.; DE FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito penal, Parte Geral,
Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, 183 ss.; LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte
General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2016, 20.

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el poder judicial pueda utilizar la ley penal para aplicar a supuestos que sin estar reconocidos
claramente en la misma son parecidos o quizá los jueces y tribunales le encuentran un parecido,
aplicando la norma analógicamente y ampliando de esta forma el espectro de lo punible, la
esfera de lo delictivo. Esta práctica supone un claro ejercicio de arbitrariedad y una
desnaturalización del propio Estado de Derecho.
A partir del principio de legalidad se han ido desarrollando otros principios que han
acabado por configurar los límites del poder punitivo dentro del Estado de Derecho. Entre estos
límites, cabe destacar el principio de lesividad o exclusiva protección de bienes jurídicos4,
según el cual lo que el poder punitivo tiene que perseguir a través del Derecho penal es asegurar
los derechos e intereses considerados esenciales para la convivencia pacífica en sociedad. Se
trata de derechos intersubjetivos, que transciendan la mera esfera privada o contractual, y que
alcanzan una dimensión pública, colectiva o comunitaria, y sólo en tanto en cuanto se vea
afectada esta dimensión las conductas de los ciudadanos interesarán al Derecho penal. Desde
este punto de vista, el Derecho penal no tendría que ocuparse de aspectos internos o privados
de los ciudadanos, o de comportamientos que sólo afectan a su ámbito íntimo o particular pero
que para nada influyen en la convivencia social, siempre y cuando nos encontremos en el marco
de convivencia de un Estado democrático y libre. Así, cuestiones como los meros
pensamientos, la defensa de determinadas ideas, las tendencias o gustos sexuales, las creencias
religiosas, entre otras, deberían quedar fuera de toda consideración jurídicopenal. Otro principio
es el de proporcionalidad, que nos indica que las penas a imponer han de ser justas, lo que tiene
que ver más con la coherencia del sistema de penas que con la idea de justicia material, que por
los demás difícilmente se puede alcanzar a través de una herramienta como es el Derecho penal.
Así, se dice que las penas deben ser proporcionales a la gravedad del hecho realizado, que en
parte tiene que ver con la importancia del bien jurídico lesionado y con el grado de afectación
del mismo. Un principio que también se debe destacar aquí es el de culpabilidad, que exige para
la imposición de la pena que el sujeto que actúa, que ha cometido un hecho delictivo, sea libre,
es decir, sea capaz de una acción distinta a la que ha realizado. Sólo la persona libre puede
realmente ser motivado por la norma, conducir su conducta de acuerdo con la ley, y sólo ante
esa persona tiene sentido el juicio de reproche que supone el ser juzgado y el imponer una pena.
El grado de libertad estará en función de las capacidades y conocimientos individuales, de las

4Sobre el “bien jurídico”, véase DE FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora,
Coimbra, 2007, 133 ss.

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condiciones intelectivas, perceptivas del sujeto concreto, de las circunstancias en las que se
desarrolla, de parámetros culturales, y de las posibilidades reales de acción. Junto a éstos existen
otros principios en los que no me voy a detener, pues no interesan especialmente a efectos del
análisis que aquí se propone, como son el principio de subsidiariedad, intervención mínima o
ultima ratio, que tiene que ver en parte con el carácter fragmentario del Derecho penal, el de
efectividad, eficacia o idoneidad, el principio de responsabilidad subjetiva, el de
responsabilidad personal y el principio de humanidad o humanización de las penas5.
En síntesis, se puede decir que la Revolución Francesa, como máximo estandarte de
las revoluciones liberales del siglo XVIII, supone una ruptura con el Estado absolutista,
consagrando una nueva forma de organización política de la sociedad, el Estado de Derecho.
En él, el principio de legalidad constituye la piedra angular, pues todos, sociedad y Estado están
sometidos a la Ley, que emana del pueblo, de la voluntad de sujeto político colectivo, la
“sociedad”. En el ejercicio del poder punitivo por parte del Estado, a través del poder legislativo,
el principio de legalidad se concreta en tres ideas centrales: no hay delito ni pena sin ley, la ley
penal debe ser previa y debe ser precisa. Estas ideas se desarrollan encontrando reflejo en dos
postulados fundamentales: principio de irretroactividad de las leyes penales desfavorables al
reo y prohibición de la analogía en contra del reo. Sobre el principio de legalidad se construye
un entramado de principios limitadores del poder punitivo entre los que destacan el de exclusiva
protección de bienes jurídicos, el de proporcionalidad y el de culpabilidad. Todos estos
principios toman como referencia para definir el delito e imponer una pena, hechos, es decir,
comportamientos o conductas humanas que lesionan bienes esenciales para la convivencia
pacífica en sociedad, sin que sean de interés a estos efectos los meros pensamientos o
ideologías, por muy divergentes que estos puedan ser, u otros aspectos privados, íntimos,
individuales de cada uno de los ciudadanos que conforman la sociedad organizada en Estado.
La libertad individual constituye el punto de partida y sólo se verá limitada en la misma medida
en que en uso de esa libertad el ciudadano dañe a la comunidad.

5 Sobre cada uno de estos principios, en profundidad, LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte General,

3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2016, 20 ss.

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2. EL DERECHO PENAL DURANTE LA REVOLUCIÓN RUSA.

La Rusia anterior a la Revolución de 1917 trata de salir lentamente de una economía


predominantemente rural, donde la mayoría de la población se concentra en el campo, y en la
que el sistema feudal todavía sigue en vigor6. Durante finales del siglo XIX, el régimen zarista
va evolucionando hacia una sociedad más abierta, en la que se produce la abolición de la
servidumbre, así como la llegada no sin cierto retraso de la industrialización y con ello de una
clase trabajadora militante7. Los comienzos del siglo XX son realmente convulsos, por una
parte con la guerra Ruso-Japonesa y, por otra, con el estallido de la I Guerra Mundial. Es en
este escenario donde tiene lugar la Revolución Rusa con el levantamiento de febrero 1917 y la
posterior Revolución de Octubre, con la toma del Palacio de Invierno, la caída del gobierno
provisional y la subida de Lenin al poder, como jefe del gobierno8. En lo que al Derecho penal
se refiere, este primer período revolucionario, que va desde el año 1917 hasta el año 1919,
puede ser calificado de “transitorio”. Ante la precipitación de los acontecimientos y la
imposibilidad de desarrollar un corpus legislativo plenamente ajustado a los principios
revolucionarios, se mantiene irremediablemente el Código Penal (en adelante CP) zarista de
1903. Sin embargo, este Código se moldea y se va adaptando a dichos principios a través de la
publicación sucesiva de una serie de decretos que determinaron la vigencia de las leyes zaristas
en todo aquello que no fuese contrario a la conciencia socialista revolucionaria del Derecho9.
Esta es la época en la que los Soviets aglutinan progresivamente más poder, los cuadros
bolcheviques se van imponiendo hasta alcanzar un protagonismo máximo, creándose en el año
1918 la CHECA, comisión especial para la lucha contra la contrarrevolución y el sabotaje,
configurándose como un cuerpo de policía prácticamente autónomo y con una función
claramente represora10. En esta época, lo que definía el Delito era fundamentalmente el carácter
de “peligrosidad social” de una actividad, aunque no tuviese una correspondencia formal con
un delito preexistente. Además, las penas variaban en función de la clase social a la que
perteneciese el autor del hecho, siendo más graves para los defensores del zar que para los

6 FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa, 2017, 35.
7
FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa, 2017, 39 ss.
8 En detalle, FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa, 2017, 77 ss.;

ROSAS, Fernando, Guerra e Revolução na Rússia de 1917, en AA.VV, A Revolução Russa, 100 anos depois, Parsifal, Lisboa,
2017, 68.
9 BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, núm. 596, 6.

10 Sobre la CHECA, véase En detalle, FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China,

Lisboa, 2017, 138 s.

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integrantes de la clase trabajadora. Esta tendencia se ve reforzada con la promulgación el 12 de


diciembre de 1919 de los “Principios directores del Derecho penal de la República Socialista
Federativa de los Soviets de Rusia”, que constituyen el primer intento de legislar de forma
sistemática en materia penal11. Este texto, compuesto de veintisiete artículos y ocho secciones,
contenía una especie de Parte General del Derecho penal, a modo de conceptos penales
comunes que debían seguir cada una de las Repúblicas de la Federación en la redacción de sus
Códigos Penales, y que en todo caso orientaban la acción de la justicia penal mientras
estuviesen en vigor. Este Derecho penal se caracteriza por el abandono de la tipificación, con
una marcada indeterminación de las penas, lo que conducía a una evidente arbitrariedad judicial
que utilizaba como criterio interpretativo el principio de la “conciencia jurídica socialista”12.
Lo que fundamentalmente preocupa es la motivación de los hechos delictivos, especialmente
la motivación de corte político. Un tercer período es el que se inicia en el año 1922, cuando se
aprueba el primer CP “postzarista”, el 24 de mayo, entrando en vigor el 1 de junio del mismo
año. Este CP desarrolla en su Parte General los principios básicos contenidos en la norma
precedente del año 1919, por lo que perfecciona una línea de pensamiento penal que se aleja
definitivamente de los principios limitadores del ius puniendi, propios de un Estado de Derecho,
pervirtiendo el principio de legalidad y, con ello, negando las garantías inherentes al mismo13.
Lo que me interesa destacar aquí del CP 1922 son dos cosas. Por una parte, la definición de
delito, “como un acto o una omisión socialmente peligrosa que amenaza los fundamentos del
régimen soviético y el orden jurídico establecido por el poder obrero y campesino para el
período de transición hacia el comunismo”14. Se trata de una consagración del delito político y
eminentemente clasista, que paradójicamente no reconoce el derecho de igualdad, y que no
tiene como referencia el principio de exclusiva protección de bienes jurídicos, tal y como se
había entendido en el Estado liberal de Derecho. Por otra parte, se legaliza la analogía en contra

11 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1947, 54; BLAS
ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, núm. 480, 4; el mismo,
Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, núm. 596, 5; MÁRQUEZ PIÑERO,
Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986,
324.
12 ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The social science post, La

Unión Soviética y el Derecho penal, URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-sovietica-y-el-derecho-penal/,


[consultado o día 23/10/2017].
13
Sobre el CP 1922, en detalle, véase JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina,
Buenos Aires, 1947, 55 s.; BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y
Ciencias Penales, núm. 596, 6 ss. También, MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al
mismo, Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986, 326 ss.
14 A través de BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,

núm. 596, 7.

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del reo, pues se trataba de evitar que, ante la imposibilidad de prever todas las posibles formas
de comportamientos contrarrevolucionarios, los enemigos de la Revolución pudiesen
aprovecharse de lagunas legales y, de esta forma, atacar impunemente las bases del régimen.
Además, se incorpora el concepto de “estado peligroso”, entendido como conjunto de
condiciones subjetivas que autorizan a las autoridades para realizar un pronóstico acerca de la
propensión de un individuo a cometer delitos, y que justifican la aplicación de penas o medidas
de seguridad. En el año 1924 se dictan los “Principios fundamentales de la legislación penal de
la URSS y de las repúblicas federadas”, que constituyen unas directrices cuyo principal objetivo
es el establecimiento de un sistema de defensa social, del estado peligro y del principio de
analogía15. Estos principios desembocaron en la aprobación, el 22 de noviembre de 1926, del
nuevo CP, que entra en vigor el 1 de enero de 1927. En este texto se recoge la idea de estado
peligroso como elemento definitorio del delito, así “se consideran socialmente peligrosas las
acciones u omisiones dirigidas contra la Constitución del Estado soviético o que lesionan el
orden jurídico creado por el gobierno de los obreros y campesinos (…)” según señala el art. 6
CP 192616. Pierde valor la consideración objetiva del hecho, siendo lo más relevante la
peligrosidad social, dependiente no tanto del hecho como del autor. Por su parte, entre las
consecuencias jurídicopenales se recogen las “medidas de defensa social”, que tienen como fin
la protección del orden jurídico, a través de la evitación nuevos delitos por quien ya haya
cometido una infracción, el tratamiento de miembros anormales de la sociedad, así como la
adaptación del autor de un delito a las condiciones de la vida social activa, como se puede ver
en el art. 9 CP 192617. Nuevamente aparece en el art. 16 el principio de analogía en los
siguientes términos, “cuando algún acto peligroso no esté expresamente previsto en este
Código, se determinarán los principios y los límites de su responsabilidad conforme a aquellos
artículos de este Código que prevean los delitos de naturaleza más análoga”18. Este principio,
reconocido legalmente, sumado a una falta de enumeración exhaustiva de los delitos y de la

15
Sobre los “Principios fundamentales” de 1924, en profundidad, BLAS ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho penal soviético,
en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, núm. 480, 4 ss. También, JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético,
Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1947, 59.
16
A través de MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional
Autónoma de México, México, 1986, 330 s.
17
Véase MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional
Autónoma de México, México, 1986, 331 s.; también ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO
GONZÁLEZ, Gabriel, The social science post, La Unión Soviética y el Derecho penal, URL:
http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día 23/10/2017].
18 A través de MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional

Autónoma de México, México, 1986, 333.

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definición genérica de delito basada en la peligrosidad del autor que nos da el texto legal, son
la base para un amplísimo arbitrio judicial, en un sistema en el que el principio de legalidad
queda relegado al ostracismo, la referencia para calificar la infracción penal es más el autor que
el hecho, y el objeto de protección es el orden social no el bien jurídico. Además, las
consecuencias jurídicas utilizan un lenguaje claramente tendencioso, como se puede ver en el
art. 20 CP 1926, incluyendo entre las que tienen un carácter correctivo la “declaración de
enemigo de los trabajadores, con pérdida del derecho de ciudadanía de la Unión de Repúblicas
Socialistas Soviéticas, y con extrañamiento absoluto del territorio nacional”19. Se podría llegar
a hablar de un cuarto período en la evolución jurídicopenal ruso si las reformas planeadas tras
la llegada de Stalin al poder, en los años 1929 y 1930 hubiesen cristalizado, cosa que finalmente
no sucedió20. En consecuencia, el CP 1926 se mantuvo su vigencia, con sucesivas reformas,
hasta el año 1961, viéndose especialmente influenciado por la Constitución de la URSS del año
1936, en la que destacan el art. 131, que catalogaba como enemigo del pueblo a todos aquellos
que no acatasen la propiedad socialista o el art. 133 que determinaba que la traición a la patria
era el delito más grave de los crímenes21.
En resumen, podemos decir que el Derecho penal que surge con la Revolución Rusa
se aparta claramente de los principios establecidos tras la Revolución Francesa y que desde
entonces inspiraban el Derecho penal liberal. Así, se produce un abandono del principio de
legalidad que en un primer momento, tras la Revolución de febrero y octubre de 1917, ni
siquiera formalmente se respeta, pero que en todo caso, desde entonces, no se respeta
materialmente. La falta de taxatividad y precisión en la definición de los delitos, así como la
enumeración de las consecuencias jurídicas como un catálogo abierto, otorgan una absoluta

19
A través de MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional
Autónoma de México, México, 1986, 334.
20 Por una parte el proyecto Krylenko que propugnaba un CP de corte represivo. El “proyecto Krylenko” suponía abandonar por

completo la taxatividad delictiva, así como de las penas, otorgando al juzgador un catálogo entre el que deberá elegir. Una parte
del articulado se dirige expresamente a atajar las conductas de los “enemigos de la clase proletaria”, con medidas represivas de
clase, frente a otro bloque, más benévolo, destinado a la clase trabajadora y a los delitos comunes cometidos por ésta, que
contempla medidas con finalidad coactiva. Casi paralelo al anterior apareció el “proyecto Schirwindt”, que se oponía al anterior,
al diferenciar entre una Parte general y una Parte especial en la que se recogía una enumeración taxativa de los delitos, basados
además en la protección de bienes jurídicos, aunque mantenía gran parte de los principios recogidos en el CP 1926, como por
ejemplo el de analogía. Véase al respecto, JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina,
Buenos Aires, 1947, 64 ss.; MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad
Nacional Autónoma de México, México, 1986, 337 s.; ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO
GONZÁLEZ, Gabriel, The social science post, La Unión Soviética y el Derecho penal, URL:
http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día 23/10/2017].
21 Véase JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1947, 79;

ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The social science post, La
Unión Soviética y el Derecho penal, URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-sovietica-y-el-derecho-penal/,
[consultado o día 23/10/2017].

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arbitrariedad al juzgador, que se ve ampliada por el hecho de reconocerse legalmente el


principio de analogía en contra del reo. La referencia en la definición del delito no es el bien
jurídico, sino la necesidad de mantener el orden social instaurado por el Estado socialista, en
definitiva, la necesidad de proteger la dictadura del proletariado, y el hecho sólo constituye la
base del delito, en tanto en cuanto sea revelador de la peligrosidad social del autor para mantener
el orden referido. Se desarrolla un bloque de normas penales especialmente dirigidas a los
enemigos de clase y otro bloque que contemplan delitos comunes cometidos por el ciudadano
“normal”, es decir, que no pretende atentar contra el régimen, con consecuencias jurídicas
diferentes, siendo más severas las contempladas para los primeros que para los segundos. En
definitiva, podemos comprobar como el Derecho penal tras la Revolución Rusa desarrolla
claramente delitos políticos, un Derecho penal a dos velocidades, o un Derecho penal del
enemigo, en el que se ven debilitadas garantías jurídicas básicas, donde el bien jurídico cede a
favor de la protección y preservación del orden social, es decir, del sistema.

3. EL DERECHO PENAL DEL ENEMIGO EN LA REVOLUCIÓN DEL


CAPITAL

El Derecho penal del enemigo es una expresión que se ha acuñado a finales de siglo
pasado para denominar un Derecho penal y, particularmente, un Derecho procesal penal,
desarrollado en los países occidentales en los últimos tiempos, sobre todo a raíz de los atentados
de Nueva York del 11 de septiembre de 200122. Desde esta concepción, el delincuente es un
“no ciudadano”, es decir, un enemigo, frente a la generalidad de los ciudadanos, respetuosos
con el orden establecido, con el sistema de libertades y derechos dado. Se desarrolla un bloque
normativo específicamente destinado a neutralizar al “enemigo”, cueste lo que cueste. Este
bloque de normas jurídicopenales se caracteriza por un extraordinario adelantamiento de las
barreras de protección penal, incrementando la creación de delitos de peligro, preocupándose
por el delito que está por venir, endureciendo penas, y atendiendo más a las características,
condiciones y tendencias del autor del hecho que las que integran el propio hecho. Es decir, se
impone un Derecho penal de autor frente a un Derecho penal del hecho23. En este orden de

22 JAKOBS, Günther, Derecho penal del enemigo, trad. Manuel Cancio Meliá, 2.ª ed., Civitas, Madrid, 2006, passim; sobre el
Derecho penal del enemigo, LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch,
Valencia, 2016, 23.
23 Véase GÓMEZ MARTÍN, Víctor, El Derecho penal de autor: desde la visión criminológica tradicional hasta las actuales

propuestas de Derecho penal de varias velocidades, Tirant lo Blanch, Valencia, 2007, passim.

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cosas también se puede señalar la presencia en las legislaciones penales contemporáneas de


delitos de corte político o ideológico, en los que difícilmente se puede identificar el bien
jurídico, al menos en el sentido liberal del término. Todo ello acompañado de una regresiva
Política criminal en materia de garantías. A modo de ejemplo se podrían citar, en la legislación
española, los arts. 183 ter y 189 CP español24, en materia de libertad e indemnidad sexuales, en

24 Art. 183 ter CP español: “1. El que a través de internet, del teléfono o de cualquier otra tecnología de la información y la
comunicación contacte con un menor de dieciséis años y proponga concertar un encuentro con el mismo a fin de cometer
cualquiera de los delitos descritos en los artículos 183 y 189, siempre que tal propuesta se acompañe de actos materiales
encaminados al acercamiento, será castigado con la pena de uno a tres años de prisión o multa de doce a veinticuatro meses, sin
perjuicio de las penas correspondientes a los delitos en su caso cometidos. Las penas se impondrán en su mitad superior cuando
el acercamiento se obtenga mediante coacción, intimidación o engaño. 2. El que a través de internet, del teléfono o de cualquier
otra tecnología de la información y la comunicación contacte con un menor de dieciséis años y realice actos dirigidos a embaucarle
para que le facilite material pornográfico o le muestre imágenes pornográficas en las que se represente o aparezca un menor, será
castigado con una pena de prisión de seis meses a dos años”. Art. 189 CP español: 1. Será castigado con la pena de prisión de uno
a cinco años: a) El que captare o utilizare a menores de edad o a personas con discapacidad necesitadas de especial protección con
fines o en espectáculos exhibicionistas o pornográficos, tanto públicos como privados, o para elaborar cualquier clase de material
pornográfico, cualquiera que sea su soporte, o financiare cualquiera de estas actividades o se lucrare con ellas. b) El que produjere,
vendiere, distribuyere, exhibiere, ofreciere o facilitare la producción, venta, difusión o exhibición por cualquier medio de
pornografía infantil o en cuya elaboración hayan sido utilizadas personas con discapacidad necesitadas de especial protección, o
lo poseyere para estos fines, aunque el material tuviere su origen en el extranjero o fuere desconocido. A los efectos de este Título
se considera pornografía infantil o en cuya elaboración hayan sido utilizadas personas con discapacidad necesitadas de especial
protección: a) Todo material que represente de manera visual a un menor o una persona con discapacidad necesitada de especial
protección participando en una conducta sexualmente explícita, real o simulada. b) Toda representación de los órganos sexuales
de un menor o persona con discapacidad necesitada de especial protección con fines principalmente sexuales. c) Todo material
que represente de forma visual a una persona que parezca ser un menor participando en una conducta sexualmente explícita, real
o simulada, o cualquier representación de los órganos sexuales de una persona que parezca ser un menor, con fines principalmente
sexuales, salvo que la persona que parezca ser un menor resulte tener en realidad dieciocho años o más en el momento de obtenerse
las imágenes. d) Imágenes realistas de un menor participando en una conducta sexualmente explícita o imágenes realistas de los
órganos sexuales de un menor, con fines principalmente sexuales. 2. Serán castigados con la pena de prisión de cinco a nueve
años los que realicen los actos previstos en el apartado 1 de este artículo cuando concurra alguna de las circunstancias siguientes:
a) Cuando se utilice a menores de dieciséis años. b) Cuando los hechos revistan un carácter particularmente degradante o vejatorio.
c) Cuando el material pornográfico represente a menores o a personas con discapacidad necesitadas de especial protección que
sean víctimas de violencia física o sexual. d) Cuando el culpable hubiere puesto en peligro, de forma dolosa o por imprudencia
grave, la vida o salud de la víctima. e) Cuando el material pornográfico fuera de notoria importancia. f) Cuando el culpable
perteneciere a una organización o asociación, incluso de carácter transitorio, que se dedicare a la realización de tales actividades.
g) Cuando el responsable sea ascendiente, tutor, curador, guardador, maestro o cualquier otra persona encargada, de hecho, aunque
fuera provisionalmente, o de derecho, del menor o persona con discapacidad necesitada de especial protección, o se trate de
cualquier otro miembro de su familia que conviva con él o de otra persona que haya actuado abusando de su posición reconocida
de confianza o autoridad. h) Cuando concurra la agravante de reincidencia. 3. Si los hechos a que se refiere la letra a) del párrafo
primero del apartado 1 se hubieran cometido con violencia o intimidación se impondrá la pena superior en grado a las previstas
en los apartados anteriores. 4. El que asistiere a sabiendas a espectáculos exhibicionistas o pornográficos en los que participen
menores de edad o personas con discapacidad necesitadas de especial protección, será castigado con la pena de seis meses a dos
años de prisión. 5. El que para su propio uso adquiera o posea pornografía infantil o en cuya elaboración se hubieran utilizado
personas con discapacidad necesitadas de especial protección, será castigado con la pena de tres meses a un año de prisión o con
multa de seis meses a dos años. La misma pena se impondrá a quien acceda a sabiendas a pornografía infantil o en cuya
elaboración se hubieran utilizado personas con discapacidad necesitadas de especial protección, por medio de las tecnologías de
la información y la comunicación. 6. El que tuviere bajo su potestad, tutela, guarda o acogimiento a un menor de edad o una
persona con discapacidad necesitada de especial protección y que, con conocimiento de su estado de prostitución o corrupción,
no haga lo posible para impedir su continuación en tal estado, o no acuda a la autoridad competente para el mismo fin si carece
de medios para la custodia del menor o persona con discapacidad necesitada de especial protección, será castigado con la pena de
prisión de tres a seis meses o multa de seis a doce meses. 7. El Ministerio Fiscal promoverá las acciones pertinentes con objeto de
privar de la patria potestad, tutela, guarda o acogimiento familiar, en su caso, a la persona que incurra en alguna de las conductas
descritas en el apartado anterior. 8. Los jueces y tribunales ordenarán la adopción de las medidas necesarias para la retirada de las
páginas web o aplicaciones de internet que contengan o difundan pornografía infantil o en cuya elaboración se hubieran utilizado
personas con discapacidad necesitadas de especial protección o, en su caso, para bloquear el acceso a las mismas a los usuarios
de Internet que se encuentren en territorio español. Estas medidas podrán ser acordadas con carácter cautelar a petición del
Ministerio Fiscal”.

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los que atendiendo a la redacción típica resulta realmente difícil esclarecer el bien jurídico que
se pretende proteger así como el momento de consumación del delito, subjetivizando
excesivamente la conducta típica y ampliando la intervención penal hasta criminalizar
tendencias o meros pensamientos. El art. 235 CP español que en su apartado séptimo parece
castigar una conducción de vida, más que la realización de un hecho, al decir que “el hurto será
castigado con la pena de prisión de uno tres años: (…) 7.º Cuando al delinquir el culpable
hubiera sido condenado ejecutoriamente al menos por tres delitos comprendidos en este título,
siempre que sean de la misma naturaleza. No se tendrán en cuenta antecedentes cancelados o
que debieran serlo”, aproximándose a lo que se entiende por Derecho penal de autor. Por su
parte, los arts. 270 y 368 CP español25, el primero referido a delitos contra la propiedad

25
Art. 270 CP español: “1. Será castigado con la pena de prisión de seis meses a cuatro años y multa de doce a veinticuatro meses
el que, con ánimo de obtener un beneficio económico directo o indirecto y en perjuicio de tercero, reproduzca, plagie, distribuya,
comunique públicamente o de cualquier otro modo explote económicamente, en todo o en parte, una obra o prestación literaria,
artística o científica, o su transformación, interpretación o ejecución artística fijada en cualquier tipo de soporte o comunicada a
través de cualquier medio, sin la autorización de los titulares de los correspondientes derechos de propiedad intelectual o de sus
cesionarios. 2. La misma pena se impondrá a quien, en la prestación de servicios de la sociedad de la información, con ánimo de
obtener un beneficio económico directo o indirecto, y en perjuicio de tercero, facilite de modo activo y no neutral y sin limitarse
a un tratamiento meramente técnico, el acceso o la localización en internet de obras o prestaciones objeto de propiedad intelectual
sin la autorización de los titulares de los correspondientes derechos o de sus cesionarios, en particular ofreciendo listados
ordenados y clasificados de enlaces a las obras y contenidos referidos anteriormente, aunque dichos enlaces hubieran sido
facilitados inicialmente por los destinatarios de sus servicios. 3. En estos casos, el juez o tribunal ordenará la retirada de las obras
o prestaciones objeto de la infracción. Cuando a través de un portal de acceso a internet o servicio de la sociedad de la información,
se difundan exclusiva o preponderantemente los contenidos objeto de la propiedad intelectual a que se refieren los apartados
anteriores, se ordenará la interrupción de la prestación del mismo, y el juez podrá acordar cualquier medida cautelar que tenga por
objeto la protección de los derechos de propiedad intelectual. Excepcionalmente, cuando exista reiteración de las conductas y
cuando resulte una medida proporcionada, eficiente y eficaz, se podrá ordenar el bloqueo del acceso correspondiente. 4. En los
supuestos a que se refiere el apartado 1, la distribución o comercialización ambulante o meramente ocasional se castigará con una
pena de prisión de seis meses a dos años. No obstante, atendidas las características del culpable y la reducida cuantía del beneficio
económico obtenido o que se hubiera podido obtener, siempre que no concurra ninguna de las circunstancias del artículo 271, el
Juez podrá imponer la pena de multa de uno a seis meses o trabajos en beneficio de la comunidad de treinta y uno a sesenta días.
5. Serán castigados con las penas previstas en los apartados anteriores, en sus respectivos casos, quienes: a) Exporten o almacenen
intencionadamente ejemplares de las obras, producciones o ejecuciones a que se refieren los dos primeros apartados de este
artículo, incluyendo copias digitales de las mismas, sin la referida autorización, cuando estuvieran destinadas a ser reproducidas,
distribuidas o comunicadas públicamente. b) Importen intencionadamente estos productos sin dicha autorización, cuando
estuvieran destinados a ser reproducidos, distribuidos o comunicados públicamente, tanto si éstos tienen un origen lícito como
ilícito en su país de procedencia; no obstante, la importación de los referidos productos de un Estado perteneciente a la Unión
Europea no será punible cuando aquellos se hayan adquirido directamente del titular de los derechos en dicho Estado, o con su
consentimiento. c) Favorezcan o faciliten la realización de las conductas a que se refieren los apartados 1 y 2 de este artículo
eliminando o modificando, sin autorización de los titulares de los derechos de propiedad intelectual o de sus cesionarios, las
medidas tecnológicas eficaces incorporadas por éstos con la finalidad de impedir o restringir su realización. d) Con ánimo de
obtener un beneficio económico directo o indirecto, con la finalidad de facilitar a terceros el acceso a un ejemplar de una obra
literaria, artística o científica, o a su transformación, interpretación o ejecución artística, fijada en cualquier tipo de soporte o
comunicado a través de cualquier medio, y sin autorización de los titulares de los derechos de propiedad intelectual o de sus
cesionarios, eluda o facilite la elusión de las medidas tecnológicas eficaces dispuestas para evitarlo. 6. Será castigado también con
una pena de prisión de seis meses a tres años quien fabrique, importe, ponga en circulación o posea con una finalidad comercial
cualquier medio principalmente concebido, producido, adaptado o realizado para facilitar la supresión no autorizada o la
neutralización de cualquier dispositivo técnico que se haya utilizado para proteger programas de ordenador o cualquiera de las
otras obras, interpretaciones o ejecuciones en los términos previstos en los dos primeros apartados de este artículo”. Art. 368 CP
español: “Los que ejecuten actos de cultivo, elaboración o tráfico, o de otro modo promuevan, favorezcan o faciliten el consumo
ilegal de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas, o las posean con aquellos fines, serán castigados con las penas
de prisión de tres a seis años y multa del tanto al triplo del valor de la droga objeto del delito si se tratare de sustancias o productos
que causen grave daño a la salud, y de prisión de uno a tres años y multa del tanto al duplo en los demás casos. No obstante lo
dispuesto en el párrafo anterior, los tribunales podrán imponer la pena inferior en grado a las señaladas en atención a la escasa

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intelectual y el segundo a delitos de tráfico de drogas, contemplan una enumeración de posibles


conductas delictivas que suponen una excesiva ampliación de la esfera típica y que parecen
igualar acciones de autoría con otras que, en principio, se pensaría que son de mera
participación, lo que sin duda abre las puertas a la arbitrariedad judicial. Muchas de estas
características se pueden observar en los delitos de rebelión, arts. 472 ss. CP español y de
sedición, arts. 544 ss. CP español26, respecto de los cuales habría que añadir que podría
discutirse el corte político de los mismos y, por lo tanto, la posibilidad de que sean aplicados
por razones ideológicas, es decir, por divergencias de pensamiento más que por auténtica
preservación de bienes jurídicos. Algo semejante podría llegar a predicarse de los delitos de
terrorismo de los arts. 570 bis ss. CP español27.

entidad del hecho y a las circunstancias personales del culpable. No se podrá hacer uso de esta facultad si concurriere alguna de
las circunstancias a que se hace referencia en los artículos 369 bis y 370”.
26 Art. 472 CP español: “Son reos del delito de rebelión los que se alzaren violenta y públicamente para cualquiera de los fines

siguientes: 1.º Derogar, suspender o modificar total o parcialmente la Constitución. 2.º Destituir o despojar en todo o en parte de
sus prerrogativas y facultades al Rey o a la Reina, al Regente o miembros de la Regencia, u obligarles a ejecutar un acto contrario
a su voluntad. 3.º Impedir la libre celebración de elecciones para cargos públicos. 4.º Disolver las Cortes Generales, el Congreso
de los Diputados, el Senado o cualquier Asamblea Legislativa de una Comunidad Autónoma, impedir que se reúnan, deliberen o
resuelvan, arrancarles alguna resolución o sustraerles alguna de sus atribuciones o competencias. 5.º Declarar la independencia de
una parte del territorio nacional. 6.º Sustituir por otro el Gobierno de la Nación o el Consejo de Gobierno de una Comunidad
Autónoma, o usar o ejercer por sí o despojar al Gobierno o Consejo de Gobierno de una Comunidad Autónoma, o a cualquiera
de sus miembros de sus facultades, o impedirles o coartarles su libre ejercicio, u obligar a cualquiera de ellos a ejecutar actos
contrarios a su voluntad. 7.º Sustraer cualquier clase de fuerza armada a la obediencia del Gobierno”. Art. 473 CP español: “1.
Los que, induciendo a los rebeldes, hayan promovido o sostengan la rebelión, y los jefes principales de ésta, serán castigados con
la pena de prisión de quince a veinticinco años e inhabilitación absoluta por el mismo tiempo; los que ejerzan un mando subalterno,
con la de prisión de diez a quince años e inhabilitación absoluta de diez a quince años, y los meros participantes, con la de prisión
de cinco a diez años e inhabilitación especial para empleo o cargo público por tiempo de seis a diez años. 2. Si se han esgrimido
armas, o si ha habido combate entre la fuerza de su mando y los sectores leales a la autoridad legítima, o la rebelión hubiese
causado estragos en propiedades de titularidad pública o privada, cortado las comunicaciones telegráficas, telefónicas, por ondas,
ferroviarias o de otra clase, ejercido violencias graves contra las personas, exigido contribuciones o distraído los caudales públicos
de su legítima inversión, las penas de prisión serán, respectivamente, de veinticinco a treinta años para los primeros, de quince a
veinticinco años para los segundos y de diez a quince años para los últimos”. Art. 544 CP español: “Son reos de sedición los que,
sin estar comprendidos en el delito de rebelión, se alcen pública y tumultuariamente para impedir, por la fuerza o fuera de las vías
legales, la aplicación de las Leyes o a cualquier autoridad, corporación oficial o funcionario público, el legítimo ejercicio de sus
funciones o el cumplimiento de sus acuerdos, o de las resoluciones administrativas o judiciales”. Art. 545 CP español: “1. Los
que hubieren inducido, sostenido o dirigido la sedición o aparecieren en ella como sus principales autores, serán castigados con la
pena de prisión de ocho a diez años, y con la de diez a quince años, si fueran personas constituidas en autoridad. En ambos casos
se impondrá, además, la inhabilitación absoluta por el mismo tiempo. 2. Fuera de estos casos, se impondrá la pena de cuatro a
ocho años de prisión, y la de inhabilitación especial para empleo o cargo público por tiempo de cuatro a ocho años”.
27 Art. 570 bis CP español: “1. Quienes promovieren, constituyeren, organizaren, coordinaren o dirigieren una organización

criminal serán castigados con la pena de prisión de cuatro a ocho años si aquélla tuviere por finalidad u objeto la comisión de
delitos graves, y con la pena de prisión de tres a seis años en los demás casos; y quienes participaren activamente en la
organización, formaren parte de ella o cooperaren económicamente o de cualquier otro modo con la misma serán castigados con
las penas de prisión de dos a cinco años si tuviere como fin la comisión de delitos graves, y con la pena de prisión de uno a tres
años en los demás casos. A los efectos de este Código se entiende por organización criminal la agrupación formada por más de
dos personas con carácter estable o por tiempo indefinido, que de manera concertada y coordinada se repartan diversas tareas o
funciones con el fin de cometer delitos. 2. Las penas previstas en el número anterior se impondrán en su mitad superior cuando la
organización: a) esté formada por un elevado número de personas. b) disponga de armas o instrumentos peligrosos. c) disponga
de medios tecnológicos avanzados de comunicación o transporte que por sus características resulten especialmente aptos para
facilitar la ejecución de los delitos o la impunidad de los culpables. Si concurrieran dos o más de dichas circunstancias se
impondrán las penas superiores en grado. 3. Se impondrán en su mitad superior las penas respectivamente previstas en este artículo
si los delitos fueren contra la vida o la integridad de las personas, la libertad, la libertad e indemnidad sexuales o la trata de seres
humanos”.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Pues bien, la doctrina ha venido identificado tradicionalmente como antecedentes


originales de esta forma de legislar en materia penal el Derecho penal del régimen Nazi, a partir
de la llegada al poder en Alemania, en 1933, de Adolf Hitler28. Sin duda, durante el período
nacionalsocialista el desarrollo de un Derecho penal carente de las más elementales garantías y
superador de los principios limitadores del ius puniendi, encuentra reflejo en multitud de
normas, como la Ordenanza municipal para la protección del Pueblo y del Estado (1933), la
Ley contra los delincuente habituales peligrosos y medidas de seguridad y corrección (1933),
la Ley de reforma del StGB (1935), las Ordenanzas contra los sujetos nocivos para el pueblo
(1939), las Ordenanzas contra los delincuentes violentos (1941), y el Proyecto sobre los
extraños a la comunidad (1944), que finalmente no llegó a entrar en vigor. No se otorga
atención, sin embargo, a los precedentes de esta deriva en la Alemania Nazi, también
desarrollados en un régimen totalitario, y que quizá por primera vez, con seguridad en la historia
del Derecho penal moderno, perfilan conceptos que finalmente ponen en práctica, y que serán
reproducidos y perfeccionados bajo el régimen nazi y recuperados –con matices y salvando las
distancias- en la Revolución del Capital, ya avanzado el siglo XX, dominante en lo que
llevamos de siglo XXI29. Así como el Derecho penal liberal, que propugnaba como epicentro
del sistema el principio de legalidad y todas las garantías a él adheridas, nace en medio de una
Revolución a finales del siglo XVIII, es otra Revolución, a principios del siglo XX la que lo
anula y todo parece apuntar a que a comienzos del siglo XXI, puede volver a verse superado
nuevamente por otra Revolución, ésta ya silenciosa.

CONCLUSIONES.

Las revoluciones liberales marcan el nacimiento del Derecho penal propio del Estado
de Derecho. Entre ellas cabe destacar por lo que representa la Revolución Francesa de finales
del siglo XVIII. A partir de estas revoluciones el poder punitivo del Estado pasa a estar sujeto

28 ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De Vicente Remesal, Miguel
Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997, 118 s.; MUÑOZ CONDE, Francisco, Edmund Mezger y el Derecho penal de su
tiempo: los orígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo, Tirant lo Blanch, Valencia, 2000, passim.
29
Sobre esta cuestión, CHARLES, Raymond, Histoire du Droit Penale, Presses Universitaires de France, Paris, 1955, 115, señala
de modo revelador que “el fin de la primera guerra mundial abre una nueva era con el advenimiento de un totalitarismo político,
de inspiración bolchevique, fascista y nazi. (…) Mas es la legislación penal soviética la que representa el tipo de un penalismo
totalitario, del cual la aparición sobre el plano positivo constituye el fenómeno capital de la evolución del Derecho penal en el
siglo XX, por el poder de atracción de una concepción rigurosamente fundada sobre la dictadura de un proletariado identificado
con el Estado”. Traducción tomada de BLAS ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho
Penal y Ciencias Penales, núm. 480, 4.

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a límites a favor del individuo. El principio de legalidad aparece como el principio rector y de
él se deriva la prohibición de la analogía en contra del reo, como máxima indiscutible del
sistema. El bien jurídico protegido pasa a ser el referente para la construcción legal del delito y
para la interpretación doctrinal y judicial de la Ley penal. El concepto de bien jurídico se
despoja de atisbos ideologizantes o moralizantes, tratando de buscar en su definición la máxima
objetividad posible.
La Revolución Rusa se puede definir como la génesis y el ensayo de un “Nuevo
Derecho penal”. Supone una ruptura con el principio de legalidad, introduce laxitud en la
tipificación de las conductas, consagra la analogía en contra del reo, y obliga a interpretar la
Ley penal conforme a la “conciencia socialista revolucionaria”, abandonando la referencia del
bien jurídico. Esta forma de concebir y producir el Derecho penal, dominante durante todo el
período Revolucionario que situamos entre 1919 y 1938, propicia la arbitrariedad judicial. Por
otra parte, el Derecho penal del hecho es abandonado en favor del Derecho penal de autor, pues
la calificación de la conducta como delito estará en función de la peligrosidad que el delincuente
suponga para el orden social, más que por la peligrosidad que el hecho en sí represente. Se
construye un bloque normativo dirigido específicamente a los “enemigos de clase”, con tipos
penales de corte político y consecuencias jurídicas más severas que las contempladas para los
ciudadanos integrados en el sistema.
Todo lo anterior pone de manifiesto que la Revolución Rusa trae consigo la
generación de conceptos, estructuras y métodos en las Ciencias penales que luego encontrarán
eco y desarrollo en otros países occidentales, como en la Alemania Nazi a partir del año 1933.
Hoy en día, algunas de estas características impregnan legislaciones penales de muchos países
occidentales, especialmente a través de artículos en la Parte Especial, como ha quedado
expuesto supra. Por ello podemos concluir que la influencia del Derecho penal surgido a partir
de la Revolución Rusa ha tenido y sigue teniendo una influencia mayor de la que se pudiese
pensar, de ahí la necesidad de revisitarlo e investigarlo, aunque sea sólo ahora que se cumplen
cien años de aquella Revolución.

BIBLIOGRAFÍA.

BLAS ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
núm. 480.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
núm. 596.

CHARLES, Raymond, Histoire du Droit Penale, Presses Universitaires de France, Paris, 1955.

DE FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007.

FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa, 2017.

GÓMEZ MARTÍN, Víctor, El Derecho penal de autor: desde la visión criminológica tradicional hasta las actuales
propuestas de Derecho penal de varias velocidades, Tirant lo Blanch, Valencia, 2007.

JAKOBS, Günther, Derecho penal del enemigo, trad. Manuel Cancio Meliá, 2.ª ed., Civitas, Madrid, 2006.

JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1947.

LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia,
2016.

MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional
Autónoma de México, México, 1986.

MUÑOZ CONDE, Francisco, Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo: los orígenes ideológicos de la
polémica entre causalismo y finalismo, Tirant lo Blanch, Valencia, 2000.

ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The social science
post, La Unión Soviética y el Derecho penal, URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-
sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día 23/10/2017].

ROSAS, Fernando, Guerra e Revolução na Rússia de 1917, en AA.VV, A Revolução Russa, 100 anos depois,
Parsifal, Lisboa, 2017.

ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De Vicente
Remesal, Miguel Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997.

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Grupo de Trabalho 01

EMPRESA,
DIREITO E SOCIEDADE
PLANOS NACIONAIS DE AÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS:
SUFICENTES ANTE A ARQUITETURA DA IMPUNIDADE?

JÚLIO, Kaliandra Casati


Mestranda do Programa de Direito e Inovação da UFJF
CAMPOS, Rafael Jordan de Andrade
Mestrando do Programa de Relações Internacionais PUC – RJ
ROLAND, Manoela Carneiro
Professora do Programa de Mestrado em Direito e Inovação da UFJF

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar se os Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos,
documentos que têm sido elaborados pelos países, com finalidade de orientarem suas políticas de
repressão às violações de Direitos Humanos por parte das Empresas, a partir do incentivo da ONU, têm
se mostrado suficientes para evitarem violações de Direitos Humanos. Para se realizar tal análise, lança-
se um olhar sobre o contexto no qual tais Planos devem atuar, o qual é entendido por Juan Hernandéz
Zubizarreta como sendo a chamada arquitetura da impunidade, isto é, um cenário no qual as empresas
gozam de grande poder econômico e político, muitas vezes se sobrepondo aos Estados, que acabam por
depender dos investimentos destas. Em seguida procede-se uma releitura de análises realizadas sobre os
Planos Nacionais em Empresas e Direitos Humanos existentes na Europa, bem como se realiza um
estudo sobre o Plano Nacional em Empresas e Direitos Humanos da Colômbia, único país da América
Latina que já possui tal documento.

Palavras-chave. Planos Nacionais de Ação em Direitos Humanos e Empresas. Arquitetura da


Impunidade. Direitos Humanos.

ABSTRACT

The present article seeks to analyze if the National Action Plans on Business and Human Rights,
documents that have been elaborated by countries looking to guide their politics of repressing human
rights violations by companies - as of the United Nations’ encouragement - have been enough to avoid
human rights violations. To carry out this analysis one must look at the context in which those Plans
must operate, which is understood by Juan Hernandéz Zubizarreta as the so called architecture of
impunity, i.e. a scenario where companies enjoy a huge economic and political power often overriding
states, which end up depending upon the investments of the companies themselves. Subsequently, a
rereading of the analysis made about the European National Action Plans is carried out alongside a
study about Colombia’s National Plan on Business and Human Rights, the only country in Latin America
that already possess such document.

Keywords. National Action Plans on Human Rights and Business. Architecture of impunity. Human
Rights.

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INTRODUÇÃO

A preocupação a respeito das graves violações de Direitos Humanos cometidas pelas


empresas e, especialmente pelas transnacionais, emerge, no cenário internacional, na década de
1970. E, desde seu surgimento, no âmbito das Nações Unidas, propostas voluntaristas e
vinculantes têm se alternado e até mesmo rivalizado.
Atualmente, tem-se os dois tipos de iniciativa. A medida de caráter voluntarista é
representada pelo denominado “Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos”,
encarregado de divulgar e promover os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos, um conjunto de 31 princípios, os quais visam orientar os Estados na proteção dos
Direitos Humanos contra violações das Empresas, incentivar as corporações a respeitar tais
direitos e buscar maneiras de reparar as vítimas. O principal meio eleito pelo mencionado
Grupo de Trabalho, para instrumentalizar os Princípios Orientadores, trata-se do incentivo aos
países, para a elaboração de Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos.
Já a proposta de caráter vinculante surgiu como resposta do descontentamento da
sociedade civil e da academia às iniciativas meramente voluntaristas, em 2013, capitaneada
pelo Equador e pela África do Sul, através da propositura de criação de um Tratado Vinculante
sobre Direitos Humanos e Empresas. Assim, foi criado um Grupo de Trabalho
Intergovernamental para desenvolver tal Tratado, o qual atualmente encontra-se no último ano
de elaboração do rascunho do instrumento.
Estes processos, para alguns autores, como Gonzalo Beron (2016), podem ser vistos
como complementares, mas, na prática, acabam rivalizando no cenário internacional,
principalmente devido à postura dos defensores dos Princípios Orientadores, os quais,
frequentemente, argumentam pela desnecessidade do Tratado, baseados em que os Planos
Nacionais já seriam suficientes para a defesa dos Direitos Humanos.
O contexto internacional no qual se dão as iniciativas de combate aos abusos de
Direitos Humanos perpetrados pelas empresas, em especial pelas transnacionais, é nomeado
por Juan Hernandez Zubizarreta como arquitetura da impunidade. Isto, porque no atual mundo
globalizado, as empresas por muitas vezes acabam tendo um produto interno bruto (PIB) maior
do que o de muitos países, e assim, gozam de grande poder econômico e político ao pressionar
os países para que atendam suas condições e, até mesmo, criem leis que atendam a seus
interesses, sob pena de não se fixarem ou se retirarem daquele país.
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Conforme salientado em linhas anteriores, a medida de caráter voluntarista na


temática Direitos Humanos e Empresas já em vigor no âmbito da ONU é a do “Grupo de
Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos”, o qual tem incentivado, como uma de suas
políticas principais, a produção de Planos de Ação Nacionais em Empresas e Direitos Humanos
pelos países, para que estes possam, assim, instrumentalizar os Princípios Orientadores.
A produção de Planos Nacionais em Empresas e Direitos Humanos inicia-se em 2013,
na Europa, sendo este continente o que possui a maior quantidade de países com Planos. Até o
presente momento, na América Latina, apenas a Colômbia possui seu Plano de Ação Nacional
em Empresas e Direitos Humanos.
Ante o exposto, o presente trabalho pretende realizar uma investigação em torno da
seguinte pergunta de pesquisa: Os Planos Nacionais de Ação em Direitos Humanos e Empresas
são suficientes para reprimir as violações de Direitos Humanos perpetrados pelas Empresas?
Utilizar-se-á como marco teórico para a presente investigação as ideias de Juan
Hernandez Zubizarreta, em especial a ideia de arquitetura da impunidade, a qual representa o
contexto que deve ser enfrentado pelas medidas tendentes a reprimir as violações de Direitos
Humanos perpetradas pelas empresas.
A hipótese inicial com a qual se trabalhará é de que os Planos Nacionais de Ação não
são suficientes para se enfrentar o contexto da arquitetura da impunidade.
A metodologia utilizada para se realizar a presente investigação será a releitura
bibliográfica, em especial de trabalho realizado pelo HOMA – Centro de Direitos Humanos e
Empresas, no qual foram analisados os Planos de Ação em Empresas e Direitos Humanos
existentes na Europa, bem como a análise empírica do Plano de Ação Colombiano em
Empresas e Direitos Humanos.

1. EVOLUÇÃO DA TEMÁTICA DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO


ÂMBITO INTERNACIONAL

Conforme explicitado na introdução, é na década de 1970 que a preocupação com as


violações de Direitos Humanos perpetradas por empresas, em especial as transnacionais, ganha
status internacional, tornando-se palco de debates na ONU .
Desta forma, em 1973, surge na ONU o Centro das Nações Unidas sobre Corporações
Transnacionais (UNCTC, sigla em inglês), tendo por objetivo monitorar a atuação das
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transnacionais, prover informação e assessoramento e avaliar a possibilidade de um acordo


multilateral, que poderia ter a forma de um código de conduta.
Esse formato vinculante de código de conduta não foi bem visto por muitos países,
em especial aqueles que sediavam grandes empresas transnacionais. Em 1993, o Centro foi
fechado e, a partir de 1999, o então secretário geral da ONU, Koffi Annan, inicia uma ação de
caráter voluntarista, denominada Pacto Global, o qual visa incentivar boas práticas corporativas
no tocante aos Direitos Humanos, padrões trabalhistas, ambientais e anticorrupção.
Concorrentemente ao Pacto Global e tentando implantar um regramento vinculante
com relação às empresas, surge nos anos 2000, por um grupo de membros da Subcomissão de
Promoção e Proteção aos Direitos Humanos, a iniciativa de criar as chamadas “Normas sobre
a responsabilidade das empresas transnacionais e outras empresas comerciais”. Tal iniciativa
também não prosperou.
Atualmente temos, no âmbito da ONU, duas iniciativas sobre a temática Direitos
Humanos e Empresas: uma de caráter voluntarista e outra que visa a elaboração de um tratado
vinculante.
A de caráter voluntarista teve início em 2005, com a designação de John Ruggie, pelo
então secretário geral da ONU, Koffi Annan, para exercer o cargo de representante geral para
o tema “Empresas e Direitos Humanos”. Ruggie apresentou, em 2008, o chamado “Marco das
Nações Unidas para Proteger, Respeitar e Remediar” e teve seu mandato estendido por mais
três anos, a fim de que apresentasse uma forma de instrumentalizar sua proposta.
Desta maneira, em 2011, Ruggie apresenta os chamados “Princípios Orientadores
sobre Empresas e Direitos Humanos” e ocorre a criação de um grupo de trabalho denominado
“Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos”, encarregado de divulgar e promover
tais princípios, bem como visitar países para avaliar a situação relacionada aos Direitos
Humanos e às Empresas.
Tal grupo elegeu como melhor ferramenta para a instrumentalização dos Princípios
Orientadores o incentivo aos países, para que elaborem Planos Nacionais de Ação sobre
Empresas e Direitos Humanos, os quais devem se basear nos supracitados princípios.
Por outro lado, tem-se o Grupo de Trabalho Intergovernamental para desenvolver um
tratado sobre Direitos Humanos e Empresas, proposta esta capitaneada pelo Equador e pela
África do Sul, e que surge como resposta do descontentamento da sociedade civil e da academia
com as propostas de caráter meramente voluntaristas.
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2. CENÁRIO ATUAL: A ARQUITETURA DA IMPUNIDADE

A fim de realizar-se a análise desejada sobre a suficiência ou não dos Planos Nacionais
de Ação em Empresas e Direitos Humanos para reprimir as violações de Direitos Humanos
cometidas pelas empresas, especialmente as transnacionais, faz-se necessário uma análise do
cenário no qual tais Planos deverão atuar.
Este cenário é denominado por Juan Hernández Zubizarreta como sendo a arquitetura
da impunidade. Isto porque, atualmente, as empresas transnacionais gozam de grande poder
econômico e também político, muitas vezes colocando-se em posições superiores até mesmo
aos Estados nos quais desenvolvem sua atividade produtiva.
Juan Hernández Zubizarreta e Pedro Ramiro alegam que é comum que as
Companhias tenham poder econômico superior ao dos Estados. Citam como exemplos, Wal-
Mart, Shell e Exxon Móbil, que têm faturamento anual superior ao produto interno bruto (PIB)
de países como Áustria, África do Sul e Venezuela.
Devido aao grande poder econômico das empresas transnacionais, estas possuem
cada vez mais influência política sobre os países, que passam a depender dos investimentos
econômicos e, assim, se tornam reféns de pressões sobre as possibilidades de retirada do capital
de tais empresas ou de não realização de investimentos naquele país.
Ante este quadro, muitas vezes as corporações acabam por ditar aos países quais as
melhores políticas econômicas e legislações que coadunem com seus interesses, sob pena de
levarem seus fundos para outros países:

A la vez, las grandes corporaciones disponen de um innegable poder político, tanto


em relación a los estados-nación – ejerciendo su influencia, en el avance de las
contrareformas estructurales y en la eliminación de derechos sociales – como a escala
global, con su labor de lobby en las instituciones económico-financeiras
internacionales. (Zubizarreta e Ramiro, 2015,p.16).

Sendo assim, percebe-se que as empresas incentivam cada vez mais que os Estados
adotem políticas de caráter neoliberal, reduzindo e flexibilizando os direitos sociais, em especial
os direitos trabalhistas, o que favorece o interesse empresarial.
Observa-se também a existência de grande número de acordos internacionais de
caráter financeiro, os quais garantem uma série de direitos às empresas e não se preocupam
com questões ambientais, laborais, nem de Direitos Humanos. São os acordos de livre
comércio, como por exemplo, o NAFTA, que estabelecem uma série de condições favoráveis
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às transnacionais e acabam por ignorar o Direito Internacional dos Direitos Humanos, direito
este que deve ser respeitado por todo tipo de legislação internacional, por possuir caráter
obrigatório, isto é, ser hierarquicamente superior às demais normativas internacionais, por
disposição do próprio Direito Internacional, como a Convenção de Viena de Direito dos
Tratados de 1969, que dispõe em seu artigo 53 que será nulo um tratado que afeta à disposições
imperativas de Direito Internacional:

El Derecho Internacional de los Derechos Humanos – incluído el Derecho


Internacional Del Trabajo y el Derecho Internacional Ambiental – es jerárquicamente
superior a las normas de comercio e inversiones, nacionales e internacionales, por su
carácter imperativo y como obligaciones erga omnes, esto es, de toda la comunidad
internacional y para toda la comunidad internacional. (Zubizarreta e Ramiro,
2015,p.33).

Explicam ainda os autores supracitados, que compõe a chamada arquitetura da


impunidade a existência dos tribunais arbitrais. Tais tribunais, constituídos a partir de acordos
financeiros internacionais, trazem segurança às empresas, uma vez que sempre julgam os
Estados demandados pelas transnacionais e podem levar a imposições econômicas muito duras
para tais Estados:

Y es que los tribunales internacionales de arbitraje tienen uma función fundamental


en la arquitectura jurídica de la impunidad: dotar de plena seguridad jurídica las
inversiones realizadas por las multinacionales frente a los estados receptores. Así,
mientras no existem instrumentos efectivos a nível internacional para el control de
las empresas transnacionales y se deja de lado esa concepción de la seguridad jurídica
que pone el derecho internacional de los derechos humanos en el vértice de la
pirámide normativa, los laudos de los tribunales arbitrales si que dan lugar a
mecanismos coercitivos y son “sentencias” de obligado cumplimento, puesto que sus
implicaciones económicas resultan muy difíciles de sostener para los países
periféricos. (Zubizarreta e Ramiro, 2015, p.35).

Ante o exposto, pode-se perceber que as transnacionais encontram-se blindadas


devido aos tratados financeiros internacionais, às legislações nacionais de caráter neoliberal, as
quais as próprias empresas incentivam a elaboração e às cortes arbitrais, que se mostram sempre
favoráveis ao setor empresarial. Neste contexto, os direitos humanos, dentre os quais inclui-se
os direitos ambientais e os direitos laborais, são sistematicamente violados, e os instrumentos
de Direitos Internacional dos Direitos Humanos até então existentes não têm se mostrado fortes
o suficiente para impedir e reprimir tal situação.
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3. OS PLANOS NACIONAIS DE AÇÃO EM EMPRESAS E DIREITOS


HUMANOS EXISTENTES

Após avaliar-se o contexto que deve ser enfrentado pelas medidas repressoras das
violações de Direitos Humanos por parte das empresas é necessário realizar a análise dos Planos
Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos existentes, a fim de constatar-se se estes
têm se apresentado como suficientes para impedir as violações de direitos humanos por parte
das empresas ante a arquitetura da impunidade.

3.1. Diretrizes para os Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos

Conforme já explicitado anteriormente, os Planos Nacionais em Empresas e Direitos


Humanos são o principal instrumento do Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos
Humanos. Desta forma, tal grupo elaborou no ano de 2014 um Guia para orientar os países na
elaboração de seus Planos Nacionais. Tal documento foi publicado novamente com
atualizações nos anos de 2015 e 2016.
O Guia traz recomendações sobre o desenvolvimento, implementação e atualização
dos Planos Nacionais, os quais, segundo estas orientações, devem conter quatro requisitos:
serem elaborados com base nos Princípios Orientadores, refletirem a realidade de cada país
quanto às violações de Direitos Humanos por empresas, provir de processos transparentes e
inclusivos e contar com revisões e atualizações periódicas.
Dentre as orientações contidas no supracitado Guia temos que, tanto a elaboração do
Plano como sua implementação e atualização devem se dar através do diálogo dos múltiplos
atores interessados no tema. De acordo com o Guia, o processo deve incluir organizações da
sociedade civil, instituições nacionais de Direitos Humanos, sindicatos, empresas e associações,
bem como grupos de população especialmente expostos aos efeitos do abuso de Direitos
Humanos pelas empresas, como crianças, mulheres, indígenas, minorias éticas e pessoas com
deficiências. O documento estimula ainda que se possibilite a participação de afetados por
abusos de Direitos Humanos por parte de empresas ou atores legitimados que os representem.

3.2. Análise crítica dos Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos

Ante o exposto cabe realizar-se uma breve análise crítica dos Planos Nacionais de
Ação em Empresas e Direitos Humanos existentes. Para tal, lançar-se-á mão de releitura
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bibliográfica de documento produzido, em 2016, pelo HOMA – Centro de Direitos Humanos


e Empresas –, no qual foram analisados os Planos europeus existentes até então, bem como de
análise do Plano Nacional da Colômbia elaborada para fins do presente trabalho.
Em tal documento supracitado, o HOMA analisou os seis planos já publicados: Reino
Unido, Países Baixos, Dinamarca, Finlândia, Lituânia e Suécia; e dois Planos que estavam
prontos, mas pendentes de aprovação: Itália e Espanha.
De tal análise, produzida a partir de uma perspectiva crítica, pode-se verificar falhas
comuns presentes nos Planos europeus.
Primeiramente o estudo detecta que os processos falharam na questão da participação
de múltiplos atores e na publicidade dada durante a confecção dos instrumentos. Atores
fundamentais, como os atingidos por violações de Direitos Humanos por parte das empresas,
tiveram pouca ou nenhuma voz durante o processo.
Verificou-se também que tais Planos apresentaram apenas propostas genéricas, sem
previsão de controle da implementação e aplicação de tais políticas, sem formas de punibilidade
para as empresas violadoras de Direitos Humanos e sem prazos para que os Estados coloquem
em prática as políticas pensadas:

...a experiência dos Planos Nacionais já existentes mostra que estes não possuem em
seu conteúdo o potencial para um efetivo avanço no desenvolvimento de normativas
nacionais e políticas públicas de proteção aos Direitos Humanos contra violações
cometidas por empresas. Muito menos contribuem para o pleno acesso à justiça e
para que as vítimas sejam capazes de alcançar reparação pelas violações sofridas.
(HOMA, 2016, p. 33).

De acordo com o supracitado estudo realizado pelo HOMA, aponta-se que no Plano
Nacional do Reino Unido pode-se perceber que não se priorizou a participação de atores
populares, como os afetados pelas violações de direitos humanos por parte das empresas
durante o processo de elaboração do documento estatal. Também não houve circulação pública
do documento preliminar que deu origem ao Plano, ficando a circulação restrita apenas aos
atores consultados e às agências governamentais. Pode-se perceber ainda, no Plano, a utilização
de um enfoque empresarial, destacando os benefícios que as empresas podem obter ao respeitar
os Direitos Humanos.
Segundo o estudo, o documento falha ainda por não explicar como se dará a
implementação das ações propostas, bem como não deixar claro o setor governamental que será
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responsável por tal implementação. Também não se especificam prazos, o que dificulta que a
sociedade possa controlar o desenvolvimento das medidas apontadas no Plano.
Por fim, não há criação de novas obrigações para as empresas, não se aborda a
responsabilidade extraterritorial, nem mecanismos jurisdicionais de responsabilização das
empresas.
Já quanto ao Plano Nacional da Holanda, aponta o estudo que não houve nenhuma
consulta efetivamente pública e ampla e nem se deu prioridade à participação popular no
processo. O foco deste Plano são medidas de caráter voluntário, tanto para o Estado, quanto
para as empresas. Poucas medidas concretas são apontadas, bem como não se define prazo para
sua execução e não há estratégias para o monitoramento da implementação destas. Deu-se,
ainda, prioridade ao destaque das medidas já existentes no país.
A análise realizada sobre o Plano Nacional da Itália aponta que este enuncia medidas
pouco assertivas no tocante às mudanças sociais e legislativas, bem como traz uma visão de
que a solução para as violações de Direitos Humanos só será possível a partir de uma matriz
europeia:

A Itália demonstra através do seu Plano Nacional, o seu compromisso com a


perspectiva europeia. Juntamente com as políticas nacionais, ela defende que
somente uma dimensão autenticamente européia seja capaz de proteger eficazmente
os Direitos Humanos em escala global. Tal perspectiva é no mínimo curiosa, e
demonstra o ranço colonial ainda presente, que enxerga a solução para o dilema das
violações de Direitos Humanos em escala global na construção de políticas regionais
para a Europa. (HOMA, 2016, p. 17).

Da análise realizada sobre o Plano Nacional Dinamarquês pode-se perceber que este
é fruto de um processo pouco inclusivo, vez que houve a participação do Conselho para
Responsabilidade Social Corporativa, mas apenas um grupo seleto de membros deste conselho
foi consultado, bem como setores chaves da sociedade foram excluídos da consulta, como
ocorreu com o Conselho Dinamarquês dos Consumidores.
Este Plano confunde Direitos Humanos com uma perspectiva puramente de
responsabilidade social corporativa, trazendo medidas neste sentido, ao invés de políticas
protetivas dos Direitos Humanos.
O Plano prima por orientações, recomendações e encorajamentos às empresas. Não
há prazos para aplicação e desenvolvimento de estratégias nacionais de proteção aos Direitos
Humanos e nenhuma menção quanto a mecanismos de extraterritorialidade.
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Quanto à investigação realizada sobre o Plano Nacional espanhol, extrai-se que o


processo de elaboração, que foi aparentemente inclusivo e transparente, visto que ocorreram
duas rodadas de consultas públicas, incluindo diversos atores sociais, acabou por ceder às
pressões empresariais, sendo que, no documento final, excluíram-se propostas constantes do
primeiro projeto como a vedação de financiamento público a empresas violadoras de Direitos
Humanos. Esta proposta foi alterada, e passou-se a vedar o financiamento apenas àquelas
empresas que tenham sido condenadas com sentença transitada em julgado e se neguem a
cooperar com o governo espanhol nas reparação as violações. Também excluiu-se do Plano
Nacional a proposta que exigia altos padrões laborais e de proteção ambiental.
Assim, como se notou nos demais Planos, o Plano espanhol também traz propostas
vagas e imprecisas, tendo sido destacado no estudo do HOMA a imprecisão na disposição
quanto aos mecanismos a serem utilizados para responsabilização de empresas espanholas que
cometam violações em outros países. Também não foram criadas obrigações diretas para as
empresas e a ação do Estado se limita a programas de acompanhamento, incentivo e
conscientização sobre Direitos Humanos e Empresas.
No tocante ao Plano Nacional finlandês, o estudo ora analisado destaca que a
elaboração se deu por um processo envolvendo vários ministérios governamentais e duas
consultas públicas com agentes interessados. Porém não houve incentivo para que algumas
parcelas de atores interessados, como migrantes, índios e outras minorias pudessem participar
do processo. Este Plano traz prazo para o cumprimento das propostas apresentadas e também
as entidades governamentais responsáveis por determinadas ações, contudo os tópicos que
tratam de tais ações são vagos, dificultam a compreensão do que de fato o governo propõe.
Muitos dos tópicos demonstram mais o compromisso do Estado finlandês em apoiar os
Princípios Orientadores de Ruggie, do que de fato de realizar algum tipo concreto de atuação.
O Plano não traz nenhuma proposta de mecanismos de reparação das violações de Direitos
Humanos, bem como centra suas propostas em medidas de caráter voluntário.
A análise realizada pelo HOMA do Plano Nacional lituano destaca que não foi
possível encontrar informações acerca do processo que levou à elaboração de tal documento.
Quanto ao conteúdo de tal Plano, se ressalta que este está restrito a medidas de combate à
discriminação, à corrupção e ao direito de associação trabalhista. As propostas por sua vez
possuem algum grau de concretude, sendo menos vagas do que as encontradas na maioria dos
Planos, bem como se faz referência a medidas que já estão sendo implementadas. Porém, ainda
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assim, as propostas são superficiais e não há proposições quanto a mecanismos vinculantes,


que obriguem as empresas a respeitar os Direitos Humanos e sejam capazes de responsabilizá-
las em caso de violações.
Por fim, da análise realizada sobre o Plano Nacional sueco extrai-se que este foi
concebido através de consulta a vários atores interessados, incluídas empresas e ONGs.
Ocorreram também consultas populares ao texto preliminar do documento. O estudo elaborado
pelo HOMA destaca que não foi possível identificar se, em tal processo houve a participação
dos afetados por violações perpetradas pelas empresas.
Quanto ao conteúdo do Plano destaca-se que privilegiou-se as políticas relacionadas
à responsabilidade social corporativa, em detrimento dos princípios de Direitos Humanos. Há
no documento o encorajamento para que as empresas adotem as diretrizes ali contidas, mas
nenhuma medida de caráter vinculante. O documento não estabelece nenhum tipo de
responsabilidade direta para as empresas, deixando as responsabilidades a cargo do Estado, o
qual deve desenvolver programas para orientar as práticas empresariais. Os crimes cometidos
pelas empresas estão sujeitos apenas a penalidades de multa.

Este Plano Nacional aparenta ser uma vitrine da política de Responsabilidade Social
implementada pelo Estado junto das empresas, apenas elaborada para aparentar que
algo está sendo feito e para demonstrar à sociedade civil a preocupação com o tema.
Não se vê previsão de mecanismos de punibilidade ou responsabilização alguma das
empresas por suas condutas adversas em relação a Direitos Humanos, pelo contrário
as políticas propostas giram entorno da premiação das companhias que aplicam os
Princípios Orientadores e “respeitam os Direitos Humanos” (HOMA, 2016, p. 17).

No tocante ao Plano Nacional da Colômbia, cuja análise foi realizada para fins da
presente pesquisa, pode-se perceber que, de acordo com o disposto em tal documento, sua
elaboração se deu através da participação de empresas, ONGs, entidades governamentais e com
apoio da comunidade internacional. O esboço de tal Plano foi submetido à consulta em algumas
oficinas, uma nacional em Cartágena e outras regionais, nas quais houve a participação de
atores institucionais, empresas e sociedade civil. Houve também a publicação deste esboço no
site do Conselho Presidencial de Direitos Humanos e o fornecimento de e-mail para receber
opiniões sobre o tema. Não há menção da participação de afetados por violações perpetradas
pela empresas no processo de elaboração do Plano Nacional.
Pode-se destacar que consta no Plano a existência do objetivo de se harmonizar a
proteção dos Direitos Humanos com o desenvolvimento econômico, bem como se exalta, em
tal documento, o compromisso da Colômbia e das Empresas com Direitos Humanos e a
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existência, no país, de iniciativas de respeito aos Direitos Humanos há mais de uma década,
tanto por parte do Estado quanto das Empresas.
O Plano dispõe sobre a intenção de considerar as minorias e superar o passado
conflituoso do país, dizendo que, para tal é necessário o empenho dos empresários, de
organizações sociais e sindicais. Enfatiza que as empresas que operam em zonas historicamente
de conflito devem ser especialmente cuidadosas quanto a possíveis afetações de DH. Também
declara priorizar os setores que geram maior conflito social e maiores impactos em termos de
Direitos Humanos e meio ambiente, quais sejam: setor mineiro-energético, agroindústria e
infraestrutura rodoviária. Dispõe ainda que o Plano se associa com o marco “Empresas e Paz”,
que contempla um papel mais ativo das empresas nas transformações positivas, apostando na
devida diligência.
Percebe-se um marcante presença de políticas relacionadas à responsabilidade social
corporativa, como pode-se depreender do fato de “potencializar a sustentabilidade e os Direitos
Humanos como práticas competitivas empresariais” constar expressamente dos objetivos
gerais do documento.
Destaca-se, também, que o Estado é tratado como um ator que, enquanto agente
econômico, deve respeitar os Direitos Humanos e que tem o dever de apontar referências claras
às empresas do que devem ser práticas de respeito aos Direitos Humanos.
Quanto aos mecanismos de reparação em caso de violações aos Direitos Humanos
serem perpetradas, o Plano não traz nada de concreto, restringido-se a declarar que tais
mecanismos deverão existir para quando a prevenção falhar.
Assim, como observou-se da análise do HOMA dos Planos Nacionais europeus, o
Plano da Colômbia também trouxe propostas vagas e pouco concretas, focando-se em políticas
de caráter voluntarista, que muito se assemelham à responsabilidade social corporativa.

CONCLUSÕES

Ante todo o exposto, pode-se concluir que da análise dos Planos Nacionais de Ação
em Empresas e Direitos Humanos existentes percebe-se que estes por si só não são capazes de
impedir as violações de Direitos Humanos perpetradas pelas empresas, nem de oferecer
mecanismos eficazes de reparação aos afetados por estas violações.
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No cenário apresentado em linhas anteriores da arquitetura da impunidade, pode-se


extrair que dificilmente políticas de cunho nacional terão capacidade de enfrentar o grande
poder que possuem as empresas, em especial as transnacionais, as quais tem influenciado até
mesmo a produção de legislação de caráter neoliberal para lhes favorecer, em diversos países,
a partir de pressões financeiras a respeito de investirem ou manterem seus investimentos em
seus países.
Neste contexto, onde vemos Estados tornando-se cada vez mais dependentes do poder
econômico das empresas, torna-se difícil que estes produzam políticas que possam desfavorecer
os interesses de tais atores econômicos.
Face a tal poderio das empresas, percebe-se que os Planos Nacionais de Ação em
Direitos Humanos e Empresas têm se apresentado apenas como proposições de caráter
voluntarista, que não trazem nenhum tipo de obrigação direta para as empresas, nem
prescrevem punições efetivas. Mantêm sua ênfase em políticas relacionadas à responsabilidade
social corporativa, estimulando as empresas a desenvolverem boas práticas empresariais e
respeitarem os Direitos Humanos como uma boa estratégia de empreendimento.
Sendo assim, pode-se concluir que ainda que os Planos Nacionais em Empresas e
Direitos Humanos tragam em si o benefício de colocarem tal temática, tão costumeiramente
negligenciada nas agendas dos países nos quais são elaborados, estes sozinhos não têm o poder
de impedir as violações perpetradas pelas empresas nem de fornecer aos afetados remédios
efetivos. Desta forma confirma-se a hipótese de insuficiência dos Planos Nacionais para
impedirem as violações de Direitos Humanos, entendendo-se pela necessidade de que, além de
tais Planos, surjam também instrumentos vinculantes e de caráter internacional, para garantirem
de forma efetiva o respeito das empresas aos Direitos Humanos.

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OS DESAFIOS EMPRESARIAIS GERADOS PELOS ELEVADOS
NÍVEIS DE ENCARGOS TRABALHISTAS NO BRASIL

SOUZA, Mylena Devezas


Mestranda do Programa de Pós Gradução em Direito e Sociologia/UFF
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de
Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida/UVA

RESUMO

O Brasil possui um dos maiores encargos trabalhistas do mundo, encarecendo a mão de obra e trazendo
complicações para o empresário. A mudança desse cenário é esperada com a vigência da Lei da Reforma
Trabalhista Brasileira, a qual teve inspiração na legislação trabalhista espanhola, ocorrida há mais de
cinco anos, e trouxe diversas alterações benéficas para as empresas, tais como o fim do recolhimento
obrigatório do imposto sindical e a demissão em comum acordo. O objetivo desta pesquisa é verificar os
desafios empresariais enfrentados pelos elevados encargos trabalhistas e analisar se a alteração da
legislação trabalhista poderá reduzir o custo bruto da mão de obra a fim de incentivar o aumento da oferta
de empregos, conforme esperado pelo governo. Como fonte de pesquisa são utilizados estudos já
realizados sobre os percentuais referentes aos encargos trabalhistas no custo bruto da mão de obra
brasileira.

Palavras-chave. Reforma Trabalhista; Encargos Trabalhistas, Mão de obra.

ABSTRACT

Brazil has one of the highest labor costs in the world, increasing labor costs and bringing complications
to the entrepreneur. The change in this scenario is expected with the validity of the Brazilian Labor
Reform Law, which was inspired by the Spanish labor legislation, which occurred more than five years
ago, and brought various changes beneficial to companies, such as the end of mandatory tax collection
union and dismissal by mutual agreement. The objective of this research is to verify the business
challenges faced by high labor costs and to analyze whether the change in labor legislation could reduce
the gross labor cost in order to encourage the increase of the job offer, as expected by the government.
As research source is used studies already performed on the percentages referring to labor charges in
the gross cost of Brazilian labor.

Keywords. Labor Reform; Labor benefits; Labor.

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INTRODUÇÃO

A nova questão social da sociedade atual, segundo Pierre Rosanvallon (1998),


compreende o problema da baixa oferta de empregos para uma mão de obra disponível em
constante crescimento e expõe a necessidade de atuação do Estado a fim proporcionar uma
ampliação das vagas de emprego. Assim também a formação de blocos econômicos que, com
um mercado totalmente globalizado, traz desafios ao mercado de trabalho ao pretender torná-
lo o mais competitivo possível, realidade de que não discrepa o cenário brasileiro.
Um grande obstáculo no caminho para a eficiência econômico-empresarial reside nos
encargos sociais atrelados aos salários dos trabalhadores e no constante aumento da população
economicamente ativa, sem que houvesse, contudo, um crescimento proporcional da oferta de
vagas de trabalho, devido ao constante avanço tecnológico, que por diversas vezes substitui a
mão de obra humana.
Vislumbra-se, então, a existência de um cenário desfavorável àqueles que disputam
oportunidades no mercado de trabalho, em que a possibilidade de redução dos impactos
financeiros dos encargos sociais é, sob o ponto de vista dos empregadores, considerada uma
forma de atenuar o custo da produção e, ao mesmo tempo, incrementar o emprego da mão de
obra disponível nos processos produtivos. Afinal, os encargos sociais afetam significativamente
o custo do trabalho.
Com a intenção de aumentar a oferta de vagas de emprego e estimular a economia,
foi proposta a Reforma Trabalhista pelo governo brasileiro, inspirada na reforma espanhola
ocorrida na Espanha em 2012. Em âmbito nacional, a alteração da legislação trabalhista se deu
através da Lei nº 13.467/2017, que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017, trazendo
profundas alterações no modo de pactuação e nos termos das relações entre empregados e
empregadores.
Para proporcionar o aumento da oferta de emprego e a superação da moderna questão
social, as alterações na legislação trabalhista preveem novas formas de contratação e de
prestação dos serviços pelos empregados, como o teletrabalho, o trabalho intermitente e a
terceirização, ao mesmo tempo em que exonera o empresário do pagamento de alguns encargos
e custos trabalhistas, como a contribuição sindical obrigatória e as horas in itinere.
Questiona-se assim, o real peso dos encargos laborais no custo empresarial e se as
alterações legislativas promovidas são, de fato, capazes de propiciar uma redução neste custo,
viabilizando o surgimento novas oportunidades empregatícias. Para tanto, este artigo analisa

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estudos já realizados sobre o custo total do empregado na atividade empresarial, para,


posteriormente, se debruçar sobre as alterações empreendidas pela Reforma Trabalhista. Ao
comparar as informações, pretende-se compreender se a nova legislação poderá de fato reduzir
os encargos trabalhistas enfrentados pelas empresas.
Não é objeto deste estudo investigar a efetiva ampliação da oferta de trabalho e a
consequente redução do desemprego, e suas possíveis relações com a alteração legislativa
procedida, tal como ocorreu com a implementação da reforma trabalhista na Espanha, mas tão
somente avaliar os possíveis impactos financeiros das mudanças para os empresários em geral.

1. ENCARGOS TRABALHISTAS NO BRASIL

Para se entender o que são os encargos trabalhistas ou sociais, é necessário antes


definir o que é salário e diferenciá-lo dos encargos sociais. Para Vasconcelos e Volpato (2000),
o salário “corresponde ao valor da reposição da força de trabalho, tendo em vista a vigência do
seu ciclo de utilização no processo de produção” (Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 3). Ao
considerar a realidade Brasileira, no salário estariam incluídos ainda o 13º salário, as férias e
participações nos lucros, já que:

Fazem parte dos Salários todos os valores dos rendimentos monetários recebidos
pelos trabalhadores, e, por eles direta e individualmente apropriados no período
corrente, ou em algum momento e condições pré-determinados de períodos futuros.
Em outras palavras, há defasagens temporais que envolvem o pagamento dos valores
relacionados com a reposição das condições produtivas da mão de obra no processo
produtivo, vale dizer, há frações do salário que são pagas em momentos distintos do
período corrente. (Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 4).

De outro lado, os encargos são as verbas incidentes sobre a folha de pagamento sob a
forma de contribuições sociais pagas pelo empregador ao Estado, e integram o custo total do
trabalho. Os encargos, ao reverso do que ocorre com o salário, não são totalmente revertidas
em benefício do empregado e, segundo a legislação brasileira, seriam os valores pagos a título
de contribuição previdenciária, PIS/COFINS e Seguro de Acidente de Trabalho.
Fato é que além do salário contratual, é devido o pagamento de encargos sobre o
período trabalhado e sobre período não trabalhado, incluindo: Previdência Social, FGTS,
acidente de trabalho, sistema S, repouso semanal, férias, abono de férias, feriados, aviso prévio,
auxílio enfermidade, décimo terceiro salário, despesas de rescisão contratual.

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O pagamento do período não trabalhado pelas se deve ao impacto produtivo


decorrente dos períodos de ociosidade, pois é no período de descanso que o trabalhador repõe
suas energias para manter seu nível de produtividade. A remuneração do período de descanso
é, portanto, o pagamento pela reposição da capacidade de produção e pela eficiência do
funcionário no período de trabalho.
Há divergências sobre os valores devidos a titulo de encargos sociais. Isto ocorre
porque alguns autores defendem que nem todo imposto e taxas baseados na folha de pagamento
são encargos trabalhistas, mas sim taxas de financiamento de políticas públicas, de entidades
patronais e de fomento e apoio aos pequenos empreendimentos, de modo que certos valores,
apesar de envolverem os salários pagos aos trabalhadores, não dizem com a reposição da força
de trabalho, como no caso do seguro acidente de trabalho e o financiamento do sistema S
(Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 10).
Ao tratar do assunto Ulysses e Reis (2006) elaboraram a tabela abaixo a fim de se
elencar o custo total do empregado com os encargos sociais pagos no Brasil. Segundo os
mencionados autores, foi obtido o valor do custo total do trabalhador em montante
correspondente a 165,4% do salário, se considerado o salário básico como 100, o qual já está
incluído neste cálculo. Ressalta-se apenas que os autores não consideram os valores devidos a
titulo de Imposto de Renda, que incide sobre os trabalhadores, apesar de compor a folha fiscal
total incidente sobre o trabalho formal.

Fonte: Ulysses e Reis, 2006, p. 11.

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Além dos autores acima citados, Vasconcelos e Volpato (2000) elaboraram também
as seguintes tabelas, separando os valores pagos a título de custo salarial e custo não salarial, a
fim de obter o custo dos encargos sociais.

Fonte: Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 11.

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Fonte: Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 12.

Assim, ao se analisar as tabelas acima colacionadas pode-se perceber que


Vasconcelos e Volpato consideram a totalidade dos salários no valor de 126% (grupo 01) ao
passo que os encargos sociais representam o valor de 32,56% (grupo 02). Portanto, ao se
considerar o custo total do trabalho somando-se os valores anteriormente mencionados, os
encargos sociais equivalem a 25,84% do custo total.
Por fim, ao elencar os encargos, analisando aqueles que incidem diretamente sobre a
folha de pagamento nos orçamentos da construção civil, Mendes e Bastos elaboram tabelas
separadas por grupos, conforme demonstrado adiante:

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Fonte: Mendes e Bastos, 2001, pp. 12 e 14.

No segundo grupo foram considerados os valores pagos diretamente aos empregados


em dias sem prestação de serviço, e que sofrem incidência dos encargos. No terceiro grupo
(grupo C) foram consideradas as incidências dos encargos sociais sobre as verbas elencadas no
grupo A e no grupo B, de modo que chegaram a seguinte fórmula (Mendes e Bastos, 2001, p.
14):

TOTAL DO GRUPO C = GRUPO A X GRUPO B X 100


TOTAL DO GRUPO C = 0,3680 X 0,4998 X 100 = 18,39%

No quarto grupo foram considerados os encargos pagos aos empregados de forma


direta que não são onerados pelos encargos elencados no grupo A, como o deposito por rescisão
contratual, de modo que chegaram a um total de 12,48% (Mendes e Bastos, 2001, p. 16).
Assim, os autores concluem a pesquisa sobre os encargos sociais aplicados sobre o
salário horário, especificamente do setor da construção civil:

TOTAL = GRUPO A + GRUPO B + GRUPO C + GRUPO C


TOTAL = 36,80% + 49,98% + 18,39% + 12,48% = 117,65%

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Como se pode ver não há unanimidade no valor calculado a título de encargos sociais.
Fato é que não é possível definir um valor fixo de encargos sociais ou trabalhistas que incidirão
no custo trabalho, já que há variedades dependentes de cada setor e empresa, como os acordos
e convenções coletivas, as faltas, acidentes de trabalho, dentre outras variáveis que podem
alterar significativamente o cálculo da incidência dos encargos sociais sobre a folha de
pagamento.
Desse modo adotaremos como parâmetro para o artigo o custo total obtido por
Ulysses e Reis, no valor do 165,4% do salário básico, por entender, em nossa visão, que este
seria uma média dos valores obtidos pelos diversos autores.

2. ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA REFORMA TRABALHISTA

A lei nº 13.467/2017 implementou a reforma trabalhista e trouxe consigo algumas


mudanças benéficas para o empregador, tais como a possibilidade de contratação de trabalho
intermitente, a regularização do teletrabalho e o fim da cobrança sindical compulsória.
O contrato de trabalho intermitente passou a ser previsto no artigo 443 da CLT, e é
considerado aquele em que a prestação de serviços não é contínua. Apesar de ocorrer a
subordinação, a prestação de serviços é alternada com períodos de inatividade, como no caso
dos trabalhadores rurais e suas safras, ou ainda como no caso dos vendedores extras no período
do natal.
O contrato intermitente é conhecido também como “contrato zero hora”, já que o
empregado fica à disposição do empregador, sendo chamado em momentos de necessidade,
sem que haja prestação mínima de serviço mensal. Para o empregador esse tipo de contrato
possibilita a contratação do funcionário para o período necessário, sem que fique vinculado à
este pelo ano inteiro, ou ainda que a cada período de alta demanda tenha que arcar com os
custos de admissão e posterior demissão do funcionário.
Quanto à regularização do teletrabalho, a legislação incluiu um novo capítulo na
Consolidação das Leis Trabalhistas prevendo a possibilidade de contratação de funcionários
para jornada fora da dependência do empregador que não se constituam trabalho externo. Os
artigos 75-A até o artigo 75-E da CLT preveem as normas a serem aplicadas para esse tipo de
contrato.

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Entretanto, apesar de finalmente possibilitar o contrato para o teletrabalho, que cada


dia ganha mais adeptos, a regulamentação não foi de todo modo satisfatória deixando ainda
algumas lacunas em aberto, tais como a configuração de acidente de trabalho no teletrabalho.
Para o empregador o teletrabalho é uma ótima ferramenta, pois possibilita a redução de gastos
com as dependências laborais, com o pagamento de vale transporte e auxílio alimentação.
O fim da contribuição sindical compulsória não beneficia apenas o trabalhador que
deixa de ter que recolher anualmente o valor referente a um dia de trabalho ao ano, mas também
ao empregador, que até então precisava recolher anualmente uma contribuição de acordo com
o capital social da empresa. Assim, o artigo 579 da CLT, retira do empregador um elevado
custo até então obrigatório.
A reforma trabalhista trouxe ainda a supressão do direito ao recebimento de horas in
itinere, que apesar de ser um benefício a menos para o trabalhador, para o empregador reduz os
gastos com o pagamento de horas extras com seus reflexos e a consideração de tempo a
disposição do empregador no trajeto realizado para o local de emprego em transporte fornecido
pelo empregador. A supressão foi expressa no artigo 58 parágrafo 2º da CLT.
Outra alteração benéfica para o empregador veio na redação do artigo 448-A da CLT
o qual prevê a possibilidade de extinção do contrato do trabalho por acordo entre empregado e
empregador, o que acarretará no pagamento pela metade do valor devido de aviso prévio e da
indenização sobre o saldo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Esse tipo de extinção
contratual não permite o recebimento de seguro desemprego, entretanto, permite a
movimentação da conta do FGTS.
O artigo 507-B prevê a possibilidade de que empregado e empregador firmem termo
de quitação anual de obrigações trabalhistas, o qual deverá descrever as obrigações de dar e
fazer cumpridas mensalmente, e constará a quitação anual dada pelo empregado.
Por fim, a prevalência do acordado sobre o legislado passa a ser a nova regra,
conforme artigo 611-A da CLT. Assim, o acordo com o empregador sobre jornada de trabalho,
intervalo intrajornada, teletrabalho, trabalho intermitente, regime de sobreaviso,
enquadramento do grau de insalubridade, participação nos lucros, remuneração por
produtividade, dentre outros assuntos elencados no artigo, irão prevalecer sobre o legislado.
Essas alterações, portanto, beneficiam o empregador e reduzem certos custos com
salários e encargos sociais que anteriormente eram devidos a fim de tentar proporcionar um

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estímulo ao mercado e a consequente ampliação do número de ofertas de emprego como


ocorreu na Espanha, após a implementação da reforma trabalhista em 2012.
O problema é que não se traz soluções para a consequência já identificada na reforma
espanhola referente à precarização dos salários, com a redução dos direitos e valores devidos
aos empregados. De modo que, apesar de se ter reduzido a taxa de desempregado, hoje a
Espanha enfrenta um problema referente aos baixos salários oferecidos nos empregos.

3. A REDUÇÃO DOS ENCARGOS SOCIAIS NO BRASIL

Na década de 1990 iniciou-se a flexibilização trabalhista brasileira com o objetivo de


estimular o mercado.

Na segunda metade da década de 90 o governo promoveu a flexibilização da


contratação do trabalho, como banco de horas e o contrato temporário, por exemplo.
Partindo do principio de que uma legislação trabalhista mais flexível estimula a
geração de emprego, o governo esperava que tais medidas fossem reduntar em
aumento das contratações líquidas. Os resultados, no entanto, foram absolutamente
débeis, não tendo provocado nem aumento da formalização nem tampouco redução
do desemprego.
O que teria acontecido? Para alguns, não teria havido a flexibilização necessária para
afetar positivamente o emprego, mas tão-somente, o início de um ensaio que seria
requerido da legislação trabalhista para que o nível de emprego aumentasse. Pode
ser, no entanto, que o problema não seja, somente ou necessariamente, de grau de
flexibilização, mas da natureza da questão.
De fato, não parece haver consenso na literatura para países em desenvolvimento de
que a redução dos custos trabalhistas implicará, necessariamente, em aumento do
emprego e melhor desempenho da economia. (Arbache , 2003, p. 102)

Agora, com a reforma trabalhista de 2017, vivencia-se um novo período de


flexibilização da legislação trabalhista com o fomento de incentivo ao aumento da oferta de
empregos a partir da redução de encargos sociais. Para Ulysses e Reis, a redução dos encargos
sociais afetariam a informalidade e o desemprego, que poderiam ser reduzidos, conforme
narram:

Os resultados mostram que a redução da alíquota tem efeito significativo sobre o grau
de formalização do mercado de trabalho, uma vez que a proporção de trabalhadores
com carteira passa de 39,6% para 47,8% do total de ocupados. De forma simétrica,
há uma queda substancial no grau de informalidade, pois a proporção de
trabalhadores sem carteira diminui de 21,9% para 16,4% do total de ocupados.
A tabela 6 apresenta os efeitos de reduções nos encargos sobre a taxa de desemprego
agregada e por grupo de qualificação. Os efeitos são significativos, pois uma redução
de 27,5% para 10% resultaria em uma queda da taxa de desemprego agregada de
9,47% para 2,62%. Tanto os trabalhadores qualificados quanto os nãoqualificados
observam uma queda muito forte na taxa de desemprego, de aproximadamente 7 p.p.

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Ao considerar uma estrutura não competitiva para o mercado de trabalho brasileiro


– traduzida pelas curvas de salário – variações na alíquota do imposto que incide
sobre o trabalho apresentam impactos significativos sobre o emprego e o
desemprego, e não apenas sobre os salários dos trabalhadores. Embora parte do ajuste
ocorra via salários (ver tabela 7), uma parte substancial do ajuste recai sobre os
indicadores de emprego, reduzindo tanto a taxa de desemprego quanto o grau de
informalidade do mercado de trabalho. (Ulyssea e Reis, 2006, p. 16-17)

Assim, na análise desses autores, a redução dos encargos sociais seria favorável a
geração de empregos e formalização. Entretanto, para Vasconcelos e Volpato, a conclusão da
pesquisa é diversa:

Por outro lado, como já tem sido apontado em vários trabalhos, é enganosa a ideia
que afirma que os salários, ou mais precisamente, os encargos sociais criam
obstáculos para o estabelecimento de preços que tornem nossas empresas
competitivas internacionalmente, o que estaria dificultando a inserção das nossas
empresas no processo de globalização. (Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 14)

Fato é que a redução dos encargos sociais traz benefícios ao empregador que vê a
reduzida a folha de pagamento, entretanto tal redução não pode assegurar a criação de novos
postos de emprego, já que a redução do custo com a mão de obra pode viabilizar o investimento
da empresa em outras áreas, tais como avanço tecnológico ou até mesmo em aprimoramento
das instalações laborais.
Torna-se arriscado, portanto, estabelecer uma consequência específica para a redução
do custo da empresa diante do livre arbítrio do empresário, que pode usar o recurso
economizado para desenvolver outras áreas de interesse, não necessariamente criando novos
empregos como almeja o governo brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pode ver pelos diversos artigos e cálculos elaborados, os encargos sociais e
salários dos funcionários representam um alto custo para o empresário, entretanto, não há uma
concordância quanto à porcentagem que os encargos representam no total dos custos sobre os
salários.
Apesar dos diferentes posicionamentos, em quase todos há pelo menos um aumento
de cerca de 50% do valor gasto a título de encargos, baseado no salário, o que é uma elevada
porcentagem, tornando a manutenção de uma empresa com diversos empregados um elevado
custo para o empresário.

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Assim, busca-se por meio da flexibilização e da redução dos direitos sociais até então
obtidos um modo de reduzir os custos do trabalhador enfrentados pelos empresários e incentivar
não somente a manutenção da empresa no Brasil, mas também proporcionar o aumento da
oferta de vagas de emprego a fim de combater o desemprego estrutural.
Não é a primeira vez que o Brasil passa por uma flexibilização da legislação
trabalhista em busca de uma otimização do número de postos de emprego, na atual reforma
pretende-se diminuir os encargos sociais de modo a reduzir os desafios empresariais na
manutenção de quadro de funcionários.
Entretanto, Arbache (2003) defende que o mercado de trabalho realiza a incorporação
das contribuições sociais aos níveis de emprego e de salários, assim, a simples redução dos
encargos trabalhistas não geraria necessariamente o aumento da formalização e de vagas de
emprego.
A redução dos encargos sociais baseados na folha de pagamento dos funcionários
apesar de gerar uma economia para o empresário, pode vir a proporcionar o investimento em
outros segmentos da empresa, como segurança, tecnologia ou ainda infraestrutura.
O governo se arrisca ao defender que a simples implementação da reforma trabalhista
irá trazer o aumento da oferta de empregos, já que os empresários podem se utilizar da
economia para investir em outros setores além do quadro de funcionários da empresa, não
sendo, portanto certo que haverá aumento das vagas de emprego.
A flexibilização da reforma trabalhista pode proporcionar o aumento das vagas de
emprego, como ocorreu na Espanha, mas não é algo certo e preciso, já que a redução dos custos
de encargos sociais não é tão significante para o orçamento da empresa.
Para uma melhor análise do caso é necessário observar posteriormente na prática se
os itens identificados nesse artigo proporcionarão a diminuição do custo empresarial bem como
o aumento das vagas de emprego. Assim, resta, portanto, aguardar os efeitos que serão trazidos
com a implementação da reforma trabalhista.

REFERÊNCIAS

ARBACHE, Jorge Saba. Informalidade, Encargos trabalhistas e previdência social. In Base de Financiamento da
Previdência Social: alternativas e perspectivas - Brasília, MPS, 2003, p. 89 -106. Disponível em:
<http://www1.previdencia.gov.br/docs/pdf/ volume19.pdf#page=90>. Data de acesso: 30/10/2017.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BITENCOURT, Mayra Batista e TEIXEIRA, Erly Cardoso. Impactos dos encargos sociais na economia brasileira.
In Nova econ. [online]. 2008, vol.18, n.1, pp.53-86. ISSN 0103-6351. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/neco/v18n1/03.pdf>. Data de acesso: 02/10/2017.

MENDES, André Luiz. BASTOS, Patrícia Reis Leitão. Os encargos sociais nos orçamentos da construção civil. In
Revista. TCU, Brasília, v. 32, n. 89, jul/set 2001.Disponível em:
<http://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/ viewFile/883/948>. Data de acesso: 05/10/2017.

ROCHA, Wellington. Custo de mão-de-obra e encargos sociais. In Cadernos de estudos no.6 São Paulo Oct. 1992.
Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S1413-92511992000300003&script=sci_arttext>. Data
de acesso: 02/10/2017.

ROSANVALLON, Pierre. A nova questão social. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998.

VASCONCELOS, Luiz Antônio Teixeira. VOLPATO, Luiz Antônio. Salários e encargos trabalhistas ou sociais:
os custos do trabalho no processo produtivo. In VII CONGRESSO BRASILEIRO DE CUSTOS, Recife –PE,
Brasil, 02 a 04 de agosto de 2000. Disponível em: <https://anaiscbc.emnuvens.com.br/anais/article/view/3043>.
Data de acesso: 20/10/2017.

ULYSSEA, Gabriel. REIS, Maurício Cortez. Imposto sobre trabalho e seu impacto nos setores formal e informal.
IPEA: Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/1961>. Data de acesso:
31/10/2017.

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A (IN) VISIBILIDADE DE FUNCIONÁRIOS DA LIMPEZA
NA FACULDADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF)
E A TERCEIRIZAÇÃO COMO QUESTÃO SOCIAL

ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende


Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito
Costa, Luane Faustino
Estudante de graduação em Direito

RESUMO

O presente trabalho trata de uma temática estudada na interseção da sociologia do direito e psicologia do
direito: a invisibilidade social. Essa invisibilidade é um fenômeno psicossocial que afeta determinados
indivíduos, normalmente como uma consequência da discriminação. Aqueles que sofrem com o
fenômeno desaparecem aos olhos dos outros, o que faz com que sejam tratados como parte integrante
da paisagem e não como pessoas possuidoras de direitos e sentimentos. Como efeito desse fenômeno, e
outros descritos no artigo em questão, os terceirizados têm diversos direitos negligenciados ou violados.
Sendo assim, o trabalho trata da terceirização como mais uma forma de precarizar as relações de trabalho,
contribuindo diretamente para o aumento da desigualdade e para a desarticulação sindical dos
trabalhadores (que são manejados segundo os interesses de empresas mediadoras do contrato).

Palavras-chave. Invisibilidade Social. Terceirização. Precarização.

ABSTRACT

The present work deals with a thematic studied on the interseccion of sociology of law and psicology of
law: the social invisibility. This invisibility is as psychosocial phenomenon that afects certain individuals,
normally as a consequence of discrimination. Those who suffer with the phenomenon disappear in the
eyes of others, wich leads them to be treated as an integrant part of the landscape and not as a person
with rights and feelings. As an effect of this phenomenon, and others that will be described on the arcticle
in question, the outsorced has an amount of righs neglected or violated. Therefore, the arcticle treats
outsorcing as one of the many manners used to transforme work relations to a more precarious kind of
bond, contribuing directly to inequality increase and to an union disarray (as the workers are handled
by the third party company's interests).

Keywords. Social invisibility, Outsoursing. Precarious work relationship.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata de temática estudada na interseção da sociologia do direito e


psicologia do direito: a invisibilidade social. Essa invisibilidade é um fenômeno psicossocial
que afeta determinados indivíduos, normalmente como uma consequência da discriminação.
Aqueles que sofrem com o fenômeno desaparecem aos olhos dos outros, o que faz com que
sejam tratados como parte integrante da paisagem e não como pessoas possuidoras de direitos
e sentimentos. Esse fenômeno é um dos reflexos do passado exploratório do país com relação
a determinadas classes e etnias. Sendo assim, tornou-se corriqueiro ignorar a parcela da
sociedade que está à margem. Isso explica a baixa percepção do fenômeno por pessoas que não
sofrem diretamente com ele.
Pelo fato do Brasil ser marcado por uma trajetória de abusos com relação aos grupos
afetados hoje pela invisibilidade, ela será pensada através de um viés histórico e através de um
olhar socieconômico. Sendo assim, o trabalho passa pelo estabelecimento do capitalismo como
sistema econômico predominante; pela identificação do indivíduo com aquilo que ele consome
(os homens e mulheres passaram a ser valorizados por sua força de trabalho e capacidade de
consumo, sendo a última a medida do seu status social). Além disso, é importante ressaltar a
grande influência que a reificação e o fetichismo da mercadoria têm no processo de
invisibilidade. As relações sociais, devido a esses fenômenos típicos da sociedade capitalista,
tornaram-se aparentemente associais e, em geral, mediadas por coisas. Sendo assim, só aqueles
que possuem e consomem produtos específicos são indivíduos reconhecidos como parte da
sociedade; são visíveis. Todos esses aspectos serão levados para a realidade dos trabalhadores
terceirizados da UFF da área de limpeza.
Como consequência de todos os fenômenos descritos anteriormente, os terceirizados
têm diversos direitos negligenciados ou violados. Sendo assim, o trabalho trata da terceirização
como mais uma forma de precarizar as relações de trabalho, contribuindo diretamente para o
aumento da desigualdade e para a desarticulação sindical dos trabalhadores (que são manejados
segundo os interesses de empresas mediadoras do contrato). Portanto, é importante levantar a
questão da falta de uma legislação que garanta os direitos dessa categoria de empregados,
mesmo após quase um século da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
É importante esclarecer também que o artigo em questão refere-se a uma pesquisa em
andamento, que foi iniciada por um método puramente bibliográfico, que evoluirá para o
empírico no momento em que todas as questões concernentes à identidade e demanda dos

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terceirizados estiverem formuladas. Sendo assim, aqui será apresentada toda a carga teórica
obtida nos últimos meses, tratando da invisibilidade pública e a terceirização, histórica e
socialmente.
Futuramente, portanto, será realizada uma visita ao Sindicato dos Trabalhadores em
Asseio, Conservação e Limpeza Urbana de Niterói (SINTACLUNS). Com base nessas visitas,
e nos dados obtidos por meio delas, será desenvolvido um questionário que abranja suas
principais demandas. Além disso, algumas questões mais pessoais também serão abordadas na
tentativa de criar uma relação de confiança, a fim de facilitar a comunicação (já que espera-se
que muitos dos trabalhadores tenham receio de desenvolver comentários negativos sobre o
empregador).

1. A INVISIBILIDADE E O UNIFORME

De fato, um simples uniforme possui uma enorme simbologia dentro da nossa


sociedade. Ele é capaz de identificar o trabalho subalterno, de fazer com que quem o veste sofra
de um desaparecimento psicossocial, de identificar uma parcela de trabalhadores que
geralmente não possuem garantias trabalhistas, que são ignorados individualmente e como
classe. Além disso, no caso dos trabalhadores da limpeza, ainda existe um agravante no fato de
lidarem diretamente com rejeitos. Diversas pesquisas sociológicas mostram que aqueles que
trabalham com lixo são considerados homens rebaixados, apesar de desempenharem uma tarefa
essencial para o funcionamento da sociedade.
O fenômeno de invisibilidade social abarca muitos outros indivíduos que não somente
os uniformizados, como moradores de rua; e outros diversos homens pobres e vagabundos,
como diz Maria Stella Martins Bresciani em seu livro homônimo; todos eles tendo seus direitos
expropriados diariamente. Porém, neste artigo, focaremos somente nos trabalhadores
terceirizados.
Uma das publicações de maior visibilidade dentro da temática são as teses de
mestrado e doutorado do psicólogo social da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Braga
da Costa, porém também será utilizado como ferramenta de entendimento e interpretação do
fenômeno o livro Profissões Republicanas, dos organizadores Maria da Glória Bonelli e
Wellington Luiz Siqueira. Baseando-se nessa obra, será abordada a invisibilidade como
consequência da identidade construída em torno do que é ser um trabalhador terceirizado. Será,

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então, analisada a identidade enquanto um mecanismo inconsciente de apartação ou de não-


reconhecimento de uma classe de indivíduos.
O artigo trata somente dos funcionários da Faculdade de Direito da UFF. Apesar
disso, observa-se que esse fenômeno de invisibilidade pública não é uma problemática local e
que possui diversas justificativas histórias, econômicas e socioculturais para a sua existência. A
fim de chegar à raiz da questão da negligência dos direitos a esses empregados, essas origens
necessitam ser pontuadas e destrinchadas, o que faz com que o trabalho passe por áreas como
a sociologia, antropologia, psicologia e direito.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Historicamente, a flexibilização das relações de trabalho intensificou-se no Brasil,


diferentemente do ocorrido em outros países mais centrais, nos anos 90. Em direção contrária
à tendência mundial, nos anos 80 o Brasil enfrentava uma grande crise devido à dívida externa
e, com ela, o processo de redemocratização foi acelerado e o movimento sindical tornou-se
mais forte e organizado. Esses fatores fizeram com que o neoliberalismo, ideologia que vinha
sendo aplicada na política de diversos países pelo mundo afora, fosse impedida de se
desenvolver no Brasil.
Apesar da oposição inicial às tendências neoliberais, na década seguinte o país deixou
de lado, em diversos aspectos, sua recente Constituição Cidadã. Devido a uma insurgência do
pensamento conservador e ao enfrentamento de instabilidades econômicas causadas pela
recente inserção submissa do país na globalização, o pensamento neoliberal acabou por penetrar
a política brasileira na forma de uma promessa de melhora e superação dos problemas
enfrentados pelo país na época.
De maneira bastante contraditória, nos anos 2000 as medidas flexibilizantes foram
por demais expandidas, justo em um momento em que o país se encontrava com índices de
emprego e salário expressivamente melhores. Foi então que os trabalhadores passaram a
encarar situações de extrema insegurança, precaridade e rotatividade empregatícia. É
importante frisar que, apesar de identificada essa ampliação de políticas precarizantes, no
Brasil, isso sempre foi presente quando fala-se de relações de trabalho. (Krein, 2013: 27)
Tais contradições surgiram de um conflito entra a mentalidade conservadora que
prevalecia no país e uma recente constituição criada para expandir direitos e garanti-los de

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forma mais eficaz. Porém, nenhuma legislação posterior foi criada com o objetivo de
concretizar o espírito da constituição, preponderando então, na disputa entre capital e trabalho,
o capital. Vê-se, atualmente, que as mudanças na legislação trabalhista trazidas pela Lei
13.467/17 em nada reforçam o objetivo da criação de uma justiça do trabalho: proteger o
trabalhador.
Esclarecendo melhor a realidade do trabalho no Brasil, mesmo prevalecendo os
contratos por tempo indeterminado, mecanismos flexibilizadores podiam ser facilmente
aplicados, ou seja, a flexibilidade, de certa forma, incorporava tais contratos. Foi também como
forma de burlá-los que surgiu a terceirização. Essa problemática tornou-se ainda mais nefasta
com a reforma trabalhista recentemente sancionada.
Ademais, é importante lembrar que no Brasil, devido a um histórico de uso predatório
da mão de obra baseado na rotatividade e instabilidade, a incorporação de medidas de
flexibilização do trabalho, como forma de aumentar a acumulação, são um meio de precarizar
ainda mais as relações trabalhistas. Diversos são os estudiosos que insistem em salientar a
eficácia de tais medidas, usando como exemplo de triunfo o país criador destas (Japão), porém
deixando de lado todo um debate acerca do diferente passado e vivência de ambos. No Brasil,
há flexibilidade estrutural. Portanto, é completamente descabido falar em consertar os efeitos
da flexibilização com uma “inovação flexível” (Santos, 2012: 190).
Sendo assim, os mecanismos flexibilizantes implementados no Brasil não estão de
acordo com a tendência mundial. Nos países centrais, em geral conhecidos pelas amplas
garantias sociais, a flexibilização é apontada como uma forma de enfrentamento de crises. Aqui
ela amplia a possibilidade de imposição de arbitrariedades por parte dos empregadores em
acordos com o trabalhador e no momento da demissão. Com a flexibilização, o custo do
trabalho na indústria da transformação passou de 3 dólares por hora em 1980 para 1 dólar em
2003. (Santos, 2012: 233).
Essa realidade ainda é mais preocupante quando fala-se de trabalhadores de baixa
escolaridade, como os terceirizados da área da limpeza. Isso fica bastante claro quando analisa-
se dados que afirmam que o maior número de demissões sem justa causa ocorrem na faixa de
trabalhadores com menos de dois anos de serviço. Não é uma coincidência que a margem média
de tempo de trabalho de um terceirizado é de exatos dois anos, o que pode indicar que aqueles
que mais sofrem com desligamentos sem qualquer justificativa são justamente os terceirizados.

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Fica claro, portanto, que as novas formas de flexibilizar a produção reforçam a flexibilidade
estrutural do Brasil (Carelli, 2003).

Escolaridade exigida pelo cargo Total


Ensino fundamental 1.376
Ensino médio 581
Ensino superior 40
Total 1.997
Tabela 1 – Perfil de escolaridade dos terceirizados da UFF.
Fonte: UFF, 2017.

De fato, as demissões e a taxa de desemprego do país estão diretamente ligadas à


precarização consequente da terceirização. O enorme exército de reserva existente a disposição
do empregador faz com que o trabalhador se torne facilmente substituível. Sabendo disso,
submete-se cada vez mais a piores condições de emprego, já que, para o trabalhador,
permanecer nele é condição essencial para sua sobrevivência. Em uma sociedade com altas
taxas de desemprego, o trabalho precário torna-se um luxo. É uma nova forma de dominação,
tão eficiente e lucrativa quanto a escravidão, porém sem remorsos morais e religiosos (Carelli,
2003).
Esse fato torna manifesta a importância do direito do trabalho, uma vez que o
empregado sempre será o lado mais fraco do liame trabalhista. Numa sociedade onde as
relações de emprego são estruturalmente flexíveis e onde há preponderância dos interesses dos
grandes empresários, o proletário torna-se extremamente dependente do patrão. Autonomia e
equidade entre partes não existe quando se trata de uma relação de trabalho no Brasil. Sendo
assim, a proteção estatal nunca será excessiva e precauções nesse tipo de sistema nunca
deixarão de ser necessárias.
Tratemos agora das consequências práticas da terceirização sobre as condições de
trabalho daqueles submetidos a esse regime precarizante. Segundo pesquisa realizada pelo
DIEESE em 1992, levando em consideração um universo de 40 empresas, observa-se uma
drástica diminuição dos benefícios sociais, baixa nos salários, entre outros aspectos tratados na
tabela abaixo.

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Efeitos da Terceirização sobre as condições de trabalho


- Diminuição dos benefícios sociais – 72,5%
- Salários mais baixos – 67,5%
- Ausência de equipamentos de proteção/falta de segurança/insalubridade – 2,5%
- Trabalho menos qualificado – 17,5%
- Trabalho sem registro – 7,5%
- Perda de representação sindical – 5%
- Jornada mais extensa – 5%
Tabela 2 – Efeitos da terceirização.
Fonte: Carelli, 2003.

Vale a pena lembrar que esses dados são de uma pesquisa de 1992, ou seja, em
momento anterior à expansão massiva da terceirização no Brasil (anos 2000). Ainda assim, os
dados mostram o início de uma situação bastante alarmante, com perdas iniciais de direitos
sociais na casa do setenta por cento e baixas salariais na casa dos sessenta por cento.
Em um estudo sobre as consequências da terceirização, é impossível não falar do
movimento sindical. Com a chegada da política neoliberal e a flexibilização do trabalho, os
sindicatos tiveram sua força bastante diminuída. No pós-guerra, eram considerados um meio
de solucionar os problemas. A partir dos anos 1980, e ainda hoje, são considerados “o”
problema e as tentativas estão em torno de desestruturá-lo.
Primeiramente, o fato dos terceirizados permanecerem em um mesmo emprego por
pouquíssimo tempo faz com que não haja coesão entre os trabalhadores ou mesmo um
sentimento de pertencimento, ambos elementos essenciais para um movimento sindical
fecundo. Além disso, em uma mesma empresa trabalham terceirizados de diversas outras.
Sendo assim, não há mais somente um sindicato representando todos os trabalhadores de uma
mesma localidade, mas vários deles. Sem dúvidas isso também descoletiviza o trabalho através
da desunião dos terceirizados. (Carelli, 2003).
A constante realocação dos trabalhadores terceirizados, além de contribuir para a
desarticulação sindical, em muito influencia a segurança no local de trabalho. Por consequência
dessas mudanças, o empregado encontra-se constantemente desacostumado com seu local de
trabalho. Isso traz consequências por demais negativas, tanto em termos de segurança quanto
em termos de identidade do grupo. Há, portanto, não somente precarização do trabalho, mas
das relações, dos laços. Todos esses fatores tornam o ambiente de trabalho desconfortável em
diversos aspectos. Ademais, esses trabalhadores possuem maior carga de trabalho e menos dias
de descanso, o que também contribui para um aumento de acidentes (Carelli, 2003).

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A fim de ilustrar a diferença na taxa de acidentes entre trabalhadores efetivos e


terceirizados, a tabela 3 traz informações entre os anos 1998 e 2005 dos acidentes de uma
empresa petroleira.

1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005


Efetivos 4 1 4 12 3 3 3 0
Terceirizados 22 27 14 18 18 11 14 13
Total 26 28 18 30 21 14 17 13
Tabela 3 – Acidentes fatais. Efetivos e terceirizados e petroleira
Fonte: Federação Única dos Petroleiros – Petrobras
Elaboração: DIEESE

Além dos diversos direitos negados e negligenciados aos trabalhadores devido a sua
condição de terceirizados, muitos outros efeitos terríveis surgem como consequência desta. Um
deles é a exclusão. Segundo Alan Touraine, atualmente, a sociedade não mais se estrutura numa
forma de pirâmide, de modo que um indivíduo podia fazer parte do topo ou da base desta. Hoje
em dia, você está dentro ou fora. Entende-se como exclusão social o conceito trazido por
Rodrigo Carelli. Segundo ele,

deve ser entendida como a forma ou processo de discriminação ou segregação,


causada por situação ou posição existente, determinante de quebra de liame social,
dificuldade ou impossibilidade de continuação de relações sociais, que causa ruptura
na coesão social e participação efetiva em determinado ambiente social (Carelli,
2003, 202)

Sendo assim, a luta de classes sofreu uma transformação. Existem aqueles que
encontravam-se no patamar mais baixo da pirâmide social e direcionam seus esforços para uma
luta contra a exploração dos mais ricos. Porém, existem também aqueles que nem mesmo
chegaram a esse patamar. São indivíduos que não compõem a pirâmide e lutam para ao menos
serem incluídos nela, mesmo que no estrato mais explorado. É nessa situação em que
encontram-se os trabalhadores terceirizados.
De forma geral, eles são moradores de periferia que não possuem acesso aos seus
direitos ou ao consumo, tudo isso por decorrência ou funcionando como causa de sua exclusão.
O elo entre exclusão e todos os fatores citados acima é tão intrínseco que torna-se difícil
estabelecer uma relação clara de causa e consequência. Esses indivíduos, portanto, encontram-
se apartados, discriminados pela sociedade.

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De fato, em empresas terceirizadas, como já dito anteriormente, os vínculos e liames


sociais entre os trabalhadores torna-se bastante fracos e dificultados. Sem dúvidas, essa
realidade por si só já é uma das causas da existência de processos de exclusão dentro do
ambiente de trabalho. Não há reconhecimento mútuo, o que leva os tidos como inseridos a tratar
de forma diferente e exclusiva o grupo já menos favorecido pelo ambiente organizacional. Essa
situação de desigualdade de fato ou de direito faz com que as trocas sociais tornem-se
praticamente impossíveis de ocorrer (Carelli, 2003).
A segregação ocorre de forma que o espaço social de um grupo seja reduzido,
mantendo uma distância permanente entre círculos determinados. É uma forma de preservar
uma certa ordem social que mantém os incluídos confortáveis ou poucos desconfortáveis.
Nessa “ordem” formada, são conservados e delimitados espaços de convivência diferentes, há
distinção clara entre os grupos, são legitimadas as esferas de autoridade e subordinação e o
acesso aos recursos sociais é bastante diferenciado. Todos esses aspectos, descritos por Carelli
em seu livro aqui citado, são facilmente identificados no dia a dia e na convivência dos
trabalhadores da limpeza da UFF. Tal exclusão e apartação levam a um fenômeno ainda mais
problemático: a invisibilidade.
A invisibilidade pública pode ser definida como um fenômeno psicossocial sofrido
por certos indivíduos, normalmente como consequência de discriminação - seja ela racial ou
social. Eles desaparecem aos olhos de outros, o que faz com que sejam tratados como parte
integrante da paisagem e não como pessoas possuidoras de direitos e sentimentos. Por ser um
fenômeno bastante marcante na história exploratória do Brasil, a percepção de pessoas de outra
classe ou etnia para com estes indivíduos torna-se pouco apurada, já que tornou-se corriqueiro
ignorar a parcela da sociedade que está à margem (Costa, 2008).
Pensando a invisibilidade também através do viés socioeconômico, observa-se que,
com o estabelecimento do capitalismo como sistema econômico predominante, diversas
relações sociais foram modificadas por sua influência direta, principalmente a com o consumo.
As pessoas passaram a não serem mais vistas com humanidade e individualidade, mas como
cifrões, sendo tratados de forma diferenciada de acordo com a sua função social, sua posição
dentro da sociedade de consumo. Caso não tenham tanta relevância nesse sentido, tornam-se
invisíveis, o que caracteriza uma operação mental chamada Reificação. Sendo assim, observa-
se que a reificação muito influi na existência da invisibilidade (Costa, 2008).

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Ainda analisando a invisibilidade por meio de critérios socioeconômicos, pode-se


pensar a individualidade como algo moldado pelo consumo, já que você só é alguém se
consome, ou seja, só é indivíduo se faz parte da massa. Fica clara, portanto, grande influência
que a reificação e o fetichismo da mercadoria têm no processo de invisibilidade. As relações
sociais, devido a esses fenômenos típicos da sociedade capitalista, tornaram-se aparentemente
associais e, em geral, mediadas por coisas. Sendo assim, só aqueles que possuem e consomem
produtos específicos são indivíduos reconhecidos como parte da sociedade; são visíveis
(PORTO, 2006).
Trazendo o fenômeno da invisibilidade para dentro do universo dos trabalhadores
terceirizados, principalmente aqueles que lidam com dejetos e lixo, fica claro que na maioria
das sociedades, aqueles que manipulam o lixo são vistos como imundos, inferiores, por mais
que não haja outro “motivo” aparente para classificá-los dessa forma. Devido a essa visão
preconceituosa arraigada na sociedade como um todo, há uma separação entre grupos
dominantes e grupos dominados muito clara. Os mais poderosos – portanto dominantes –
consideram-se e são considerados pelos outros como humanamente superiores (ELIAS, 2000).
Como diz Nobert Elias em seu livro Os Estabelecidos e os Ousiders:

No caso de diferenciais de poder muito grandes e de uma opressão


correspondentemente acentuada, os grupos outsiders são comumente tidos como
sujos e quase inumanos (ELIAS, 2000: 29)

Apesar da diferenciação e discriminação serem muito mais veladas nas relações


trabalhistas do que nas sociedades estudadas por Elias, esse tipo de postura com certos tipos de
trabalhadores pode ser facilmente trazida para a questão do terceirizado da área da limpeza e
para as possíveis causas de sua invisibilidade.
Ainda considerando como possível causa da invisibilidade social o estabelecimento
de grupos excluídos e incluídos na maioria das sociedades, cabe incluir e analisar o fenômeno
da apartação, o apartheid social. É caracterizado pela distinção de tratamento de pessoas de
acordo com seu estrato social, ou seja, uma parcela da população é rejeitada, tendo assim acesso
dificultado até mesmo ao básico — educação, emprego, saneamento básico, saúde, etc. Ou seja,
os prejudicados pela apartação social são também aqueles que permanecem em funções
subalternas, que sofrem discriminação por sua posição social, que não veem a possibilidade da
ascensão social. Os invisíveis. Para ilustrar melhor a conexão entre o apartheid social e os
trabalhadores terceirizados:

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“Uma parte deles sobrevive na margem entre o setor moderno e a exclusão social:
são os trabalhadores de baixa renda. Estão em permanente risco de desemprego, que
os jogaria, talvez definitivamente, na miséria da exclusão” (Buarque, 1993: 37).

Outro entendimento extremamente relevante para a melhor compreensão da


invisibilidade pública de um grupo de trabalhadores é a identidade. A identidade, segundo
Dubar, é o resultado de vivências individuais e sociais. Sendo assim, são produzidas pelo
processo de socialização, sendo algo bastante mutável ao longo da vida de um indivíduo ou
grupo. É importante entender que a identidade não é algo dado, mas construído, ou seja, não se
refere necessariamente ao que o indivíduo é, mas ao que ele faz enquanto parte de um todo.
De fato, as identidades não se restringem a figura do indivíduo, como ficou claro.
Sendo assim, é perfeitamente possível que haja a formação de uma identidade profissional. Ela
pode ser traçada principalmente considerando-se quais são os comportamentos esperados de
determinado círculo de trabalhadores, não tendo isso, necessariamente, relação com a função
social do trabalho desempenhado por eles (Araújo, 2016: 150).
Ademais, a formação de identidades está diretamente ligada à exclusão – tratada
anteriormente nesse artigo –, já que surgem do jogo de poder existente nas relações de trabalho.
Ela existe, portanto, para marcar também a diferença entre determinados grupos de indivíduos
e justificar sua exclusão e invisibilização. Tal “reconhecimento incorreto” que um círculo faz
de outro, em geral, é extremamente prejudicial. Afinal, se tal visão construída torna o outro
inferior aos olhos de um grupo, ele será desprezado e reduzido a uma ideia falsa e distorcida do
que ele realmente é (Araújo, 2016: 152).
Ainda hoje, mais de 70 anos após a criação da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), não há legislação que abranja e, consequentemente, garanta os direitos dos empregados
por empresas terceirizadas. Tentativas de regulamentação como o Projeto de Lei de nº 4330,
vulgarmente conhecido como “lei da terceirização”- apresentado pelo Deputado Sandro Mabel,
PMDB/GO, em 2004, com substitutivo global do relator Artur Maia — nos mostram que os
interesses desta parcela de trabalhadores está longe de ser prioridade. Isso fica bastante claro no
fato do PL4330 ter sido amplamente criticado por, desde sua origem, tentar tornar a interação
empregado-empregador uma relação puramente comercial. Com sua aprovação, o empregador
torna-se isento de qualquer responsabilidade para com o detentor da força de trabalho. (Barros,
2015).

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De fato, paradigmas conceituais em torno da profissão podem ter muita contribuição


com a falta de garantias trabalhistas que compreendam os terceirizados. Segundo Eliot
Freidson, profissão é genericamente uma ocupação, distinguida das demais pelo
“conhecimento e competência especializados necessários para a realização de tarefas diferentes
numa divisão do trabalho”. Estes conhecimentos, formais e abstratos, são adquiridos ao longo
de uma educação de nível superior, que é pré-requisito para o exercício da profissão (Bonelli,
1998).
Devido a esse fenômeno de profissionalização, descrito e estudado por Freidson, a
exclusividade de um conhecimento e capacidade de desenvolver tarefas são um instrumento de
barganha, uma forma de negociar “privilégios” junto ao Estado a fim do profissional ter mais
controle da sua atuação (Bonelli, 1998). Nesse sentido podemos observar como os terceirizados
não encontram instrumentos de luta satisfatórios, permanecendo negligenciados e
invisibilizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, a pesquisa aqui descrita encontra-se em momento bastante inicial e em uma


etapa puramente bibliográfica, o que impede que dados representativos da realidade prática dos
terceirizados da área limpeza da UFF sejam trazidos e cruzados com todo o contexto histórico
de terceirização e com conceitos e noções de exclusão e identidade. Porém, a invisibilidade de
fato desses trabalhadores – que praticamente não são vistos por diversos alunos e professores
consultados – pode indicar a existência de uma invisibilidade social. Esses empregados
realmente não são encontrados em locais comuns aos alunos e professores? É importante
entender o motivo disso ou se a invisibilidade pública é tamanha que faz com que nosso olhos
deixem de enxergá-los.
Ademais, esse grupo é o primeiro a sofrer com qualquer instabilidade governamental
em torno de distribuição de salários. As greves de terceirizados na UFF são algo corriqueiro, o
que aponta a existência de um tratamento diferenciado e de uma negligência, por parte do
governo, na garantia de acesso a direitos. Existem, inclusive, relato informais – afinal, dados
como esse nunca serão obtidos junta à empregadora – de demissões, por parte da empresa
responsável pela terceirização do serviço da limpeza (Luso Brasileira S.A), de funcionários que
participaram de manifestações por falta de salário em 2015. Em site de sindicato do Paraná

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(SINDITEST), que realizou reportagem com os terceirizados nesse momento crítico, há citação
direta da fala de um dos funcionários entrevistados, afirmando que todos ali ficariam mal vistos
na empresa por estarem gozando de seus direitos enquanto cidadãos, ou seja, exigindo
remuneração.
Pouco se fala sobre a terceirização existente em instituições públicas e como esse
processo realmente acontece, com suas particularidades e nuances. Na Universidade Federal
Fluminense, uma das áreas com o maior número de trabalhadores terceirizados é a limpeza e
esse fato pode ter relação direta com as constantes greves, com a invisibilidade, com o
esquecimento que envolve esses indivíduos.

REFERÊNCIAS

BUARQUE, Cristovam. O que é Apartação: O Apartheid Social no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993.

ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das Relações de Poder a partir de
uma Pequena Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000 (Trad. Vera Ribeiro).

COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: retratos de uma humilhação social. São Paulo: Ed. Globo, 2004.

PORTO, Juliana. A Invisibilidade Social e a Cultura do Consumo. Artigo. PUC-Rio, 2006. Disponível em
http://www.dad.puc-rio.br/dad07/arquivos_downloads/43.pdf. Acesso em: Fevereiro de 2016.

COSTA, Fernanda Braga da. Moisés e Nilce: Retratos Biográficos de Dois Garis. Um Estudo de Psicologia a Partir
de Observação Participante e Entrevistas. Dissertação de Doutorado, USP, Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo, São Paulo: 2008.

BARROS, Magda e OLIVEIRA, Marilane. A Terceirização e seu Dinâmico Processo de Regulamentação no


Brasil: Limites e Possibilidades em Revista da ABET . Disponível em
http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/abet/article/view/25700/13876. Acesso em: Fevereiro de 2016.

BONELLI, Maria da Glória. 1998. Origem social, trajetória de vida, influências intelectuais, carreira e contribuições
sociológicas de Eliot Freidson. In: FREIDSON, Eliot. 1998. O renascimento do profissionalismo. Tradução: Celso
Mauro Paciornik. São Paulo: Edusp

KREIN, José Dari. Trabalho no Brasil: evolução recente e desafios em Revista Paranaense de Desenvolvimento.

SANTOS, Josiane Soares. “Questão social”: particularidades no Brasil São Paulo: Cortez, 2002.

CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Terceirização e intermediação da mão de obra: ruptura do sistema trabalhista,
precarização do trabalho e exclusão social. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

ARAÚJO, Dafne. Identidade e diferença: o exercício da advocacia por profissionais negros(as) na cidade de São
Paulo em: BONELLI, Maria da Glória (org.). SIQUEIRA, Wellington Luiz. (org.) Profissões republicanas:
experiências brasileiras no profissionalismo.São Paulo: Edufscar, 2016, 145-164.

BOLETIM DIEESE. O processo de terceirização e seus efeitos sobre o trabalhador no Brasil. São Paulo: DIEESE,
2003

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Grupo de Trabalho 02

TRIBUTAÇÃO JUSTA
COMO
DIREITO FUNDAMENTAL
A EXTRAFISCALIDADE
DA TAXA DE COLETA DE RESÍDUOS SÓLIDOS

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF
SIMON, Laura Fonseca
Graduanda em Direito da UFJF
VIDAL, Victor Luna
Graduando em Direito da UFJF

RESUMO

O Direito Tributário contemporâneo tem na função extrafiscal dos tributos uma ferramenta eficaz na
concretização dos direitos fundamentais. Embora a extrafiscalidade tributária e a temática ambiental
sejam elementos aparentemente distantes, a sua associação pode contribuir significativamente para a
sociedade contemporânea. Neste sentido, o presente artigo tem como escopo refletir acerca da adoção
de incentivos fiscais de forma a contribuir com o meio ambiente e, em contrapartida, reduzir a carga
tributária tão custosa ao cidadão. Para tanto, debate-se acerca da possibilidade de redução das taxas
referentes à coleta de resíduos sólidos às residências e aos estabelecimentos comerciais e industriais que
promoverem a coleta seletiva do seu lixo, destinando o mesmo ao sistema local de reciclagem.

Palavras-Chave. Extrafiscalidade. Taxa de Coleta de Resíduos Sólidos. Meio ambiente.

ABSTRACT

Contemporary Brazilian Tax Law has an extrafiscal function which is an effective tool in the realization
of fundamental rights. Although tax extrafiscalism and environmental issues are apparently distant
elements, their association can contribute significantly to contemporary society. In this sense, the
purpose of this article is to reflect on the adoption of fiscal incentives in order to contribute to the
environment and, on the other hand, reduce the tax burden that is so costly to the citizen. In order to do
so, the possibility of reducing the rates referring to the collection of solid waste from residences and
commercial and industrial establishments that promote the selective collection of their waste, for the
local recycling system, is discussed.

Keywords. Extrafiscalism. Solid Waste Collection Rate. Environment.

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INTRODUÇÃO

Sob a perspectiva do meio ambiente ecologicamente equilibrado, investiga-se a


extrafiscalidade em face da taxa de coleta de resíduos sólidos, com propósito de incentivar a
discussão acerca de políticas públicas que zelem pela efetiva preservação ambiental. Para tanto,
analisar-se-á a tributação no ordenamento jurídico brasileiro e os impactos que eventuais
incentivos fiscais e isenções podem acarretar no seio social.
O presente artigo possui três itens: primeiramente, investiga-se a fundamentação
histórica e a análise dos mecanismos extrafiscais no Brasil, descrevendo sua relação com o
conceito de Tributação Justa. Em um segundo momento, debate-se acerca dos tributos,
sobretudo no que concerne à espécie tributária taxa, sobrelevando a importância da
extrafiscalidade, notadamente com relação à taxa de coleta de resíduos sólidos. Por fim, a gestão
fiscal da taxa de coleta de resíduos sólidos é tratada na atualidade, propondo-se novos
parâmetros para a cobrança da referida exação, com o escopo de incentivar condutas de
preservação do meio ambiente.
A metodologia adotada neste artigo será bibliográfica e crítico dialética, na medida
em que não se aterá apenas a reprodução legislativa, doutrinária e jurisprudencial sobre o tema
e, sim, a uma análise crítica sobre a da possibilidade de utilização da taxa de coleta de resíduos
sólidos com finalidade extrafiscal.

1. FUNDAMENTAÇÃO HISTÓRICA E ANÁLISE DOS MECANISMOS


EXTRAFISCAIS

Contemporaneamente, a atividade arrecadatória do Estado é concebida como um


mecanismo intrínseco à realização de serviços públicos e, conforme JUSTEN FILHO (2014),
à promoção dos direitos fundamentais. Para compreender a conformação tributária nacional e
o desenvolvimento de políticas públicas em matéria ambiental, torna-se indispensável a
investigação histórica da tributação no Brasil, realçando a força dos princípios constitucionais
em vigor.
Influenciado pelo modelo europeu de tributação, notadamente o português, em
virtude do seu passado colonial e da chegada ao continente americano da realeza no século
XVII, o sistema tributário nacional passou por uma série de transformações no decorrer do
tempo, especialmente quando se tem em perspectiva a transição da condição de submissão a
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Portugal até a égide democrática atual. Especificamente com relação à experiência local, a
referida atividade estatal, embora profundamente inspirada nos moldes previamente referidos,
assumiu contornos próprios (BARROS, 2012).
Neste contexto, o período colonial brasileiro destacou-se pelo financiamento de
projetos de colonização do território e pelo enriquecimento da Coroa Portuguesa, maior
destinatária das riquezas auferidas em solo americano (BARROS, 2012).
Originalmente, o primeiro imposto a ser instituído no país relacionava-se à exploração
do pau-brasil. O pagamento deste imposto realizava-se por meio da disponibilização de parte
do produto explorado. Tal atividade era exercida pelos chamados rendeiros ou cobradores de
rendas, aos quais eram atribuídos poderes incontrastáveis, o que se ilustra pela possibilidade de
prisão dos inadimplentes (BARROS, 2012).
Com a ascensão da mineração, o sistema tributário brasileiro instituiu o quinto,
equivalente à cobrança de 20% do ouro que era levado às Casas de Fundição, pertencentes à
monarquia, e a derrama, imposto que tinha como objetivo a complementação dos débitos que
os mineradores acumulavam junto ao reino (BARROS 2012).
Ressalta-se que, neste período, não existia um critério determinado de modo a definir
a quantia de impostos que deveria ser paga. Os excessos exacionais cometidos pelos agentes
reais geravam profunda insatisfação na população da época, culminando, em associação aos
ideais libertários propagados na Revolução Francesa de 1789, no movimento revolucionário da
Inconfidência Mineira no século XVIII (BARROS, 2012).
A chegada da Coroa Portuguesa ao Brasil em 1807 trouxe consigo a estrutura
tributária originária daquela nação. Paralelamente às aberturas portuária e comercial então
empreendidas, o Rei Dom João VI contribuiu com a realização de modificações significativas
na ordem colonial. Dentre tais mudanças, destaca-se a criação do Banco do Brasil e do Tesouro
Nacional (BARROS, 2012).
A formação dessas instituições possibilitou o desenvolvimento de novos modelos
fiscais, captando recursos econômicos, especificamente no tocante aos bens imóveis
(construção e transferência de propriedade) e à importação de bens e produtos. Para sustentar a
família Real, historicamente reconhecida como perdulária, práticas arrecadatórias abusivas
tornaram-se comuns como, por exemplo, a bitributação (BARROS, 2012). Para COSTA
(2012), a bitributação traduz-se como a cobrança pelo mesmo fato gerador por mais de um ente
da Federação.
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A proclamação da República não alterou significativamente a tributação nacional.


Apenas em 1934 foi operada uma reestruturação do modelo fiscal brasileiro, por meio da
Constituição de 1934 e do Decreto n° 24.036, que reestruturou o Código Tributário Nacional.
Tais marcos normativos tiveram, dentre as suas principais características, a definição das
competências tributárias para a União, os Estados e os Municípios (BARROS, 2012).
A Constituição de 1946, por sua vez, permitiu a instituição de sistemas tributários
autônomos para cada ente federativo. Nessa esteira, assumiu posição de destaque o princípio
da capacidade contributiva, estando presente desde então em todas as constituições
supervenientes. Em virtude de contingências históricas, como o crescimento das despesas da
administração pública e o cenário de pós-guerra, percebeu-se um substancial incremento de
impostos para compensar tal volume de despesas (BARROS, 2012).
Com o processo de redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, o
legislador constituinte elegeu dentre as suas prioridades a adoção de princípios limitadores ao
poder de tributar. Tais normas consubstanciam, assim, mecanismos eficazes de proteção do
contribuinte diante da avidez estatal por receitas. Conforme assevera MACHADO (2016, p.32),
“os princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do Poder. Em face do elemento
teleológico, portanto, o intérprete, que tem consciência dessa finalidade, busca nesses princípios
a efetiva proteção do contribuinte”.
Neste contexto, outras novidades no plano jurídico brasileiro ganharam relevo a partir
da Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988. A função extrafiscal, por exemplo,
muito embora já fosse utilizada nas décadas anteriores, passou a se constituir como uma
ferramenta indispensável ao desenvolvimento de políticas públicas (BEVILACQUA, s.d.).
Historicamente, o instituto tributário em análise surge a partir das contribuições
parafiscais e das contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE), representativas
da instituição de entidades dotadas de personalidade jurídica autônoma, compondo, portanto, a
administração indireta do Estado. Diante desse panorama de descentralização administrativa,
surge a necessidade de novas receitas para fazer frente às novas despesas geradas (SILVA,
2007).
Superadas tais peculiaridades conceituais, vislumbra-se que tal instituto, de modo
diverso ao recorrente propósito meramente arrecadatório, apresenta papel capital no
desenvolvimento da atividade estatal e da sociedade. Tendo como fundamento o estímulo ou a
inibição de comportamentos, a extrafiscalidade revela-se como componente essencial na
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promoção da equidade na atividade arrecadatória estatal, fomentando, portanto, o


desenvolvimento social e o bem estar coletivo.
Neste diapasão, conclui-se que o processo de inovação da atuação estatal propugnado
pela Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), especialmente
no que tange à extrafiscalidade tributária, corresponde, dessa forma, a um mecanismo de
fomento do desenvolvimento social e do bem estar coletivo, o que pode ser constatado em
diversas facetas jurídicas.
A importância deste conceito para a contemporaneidade foi observada por Silva
(2007), o qual defendeu que o valor finalístico da extrafiscalidade incute na lei tributária, de
forma que se atenda às necessidades da economia, mas que se observe, de forma equânime, à
correção das anomalias sociais indesejadas ou mesmo o fomento de certas atividades que
consagrem os valores constitucionais.
De fato, a relevância da discussão atual quanto a tal aspecto fiscal se alicerça na
promoção de direitos preponderantemente coletivos, de forma a conferir um patamar mínimo
de cidadania aos indivíduos por meio da tutela do interesse público. Hodiernamente, esse
conceito se consubstancia, conforme JUSTEN FILHO (2014), na promoção dos valores
constitucionais.
Nessa esteira, Regina Helena Costa sustenta a importância da função supracitada ao
caracterizá-la como consistente “[...] no emprego de instrumentos tributários para o atingimento
de finalidades não arrecadatórias, mas, sim, incentivadoras ou inibitórias de comportamentos,
com vista à realização de outros valores, constitucionalmente contemplados (2009, p. 48)”.
Verifica-se, desse modo, que o seu desenvolvimento legislativo encontra apoio não
somente na necessidade de modernização da atividade administrativa estatal, mas também no
ideal imperativo das sociedades modernas pela efetivação de direitos fundamentais,
notadamente, neste caso, os direitos relativos ao contribuinte.
Neste contexto, a extrafiscalidade tributária torna-se elemento indispensável à noção
de Tributação Justa tão cara ao Estado de Direito. Realçando a perspectiva democrática
atualmente em vigor, o conceito analisado traduz-se na composição de um conjunto de
princípios e institutos que tem como escopo a defesa do cidadão em face da insaciedade do
Estado por aumentar suas arrecadações.
De fato, em meio a um extenso rol de garantias constitucionais erigidas pela
Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), o conceito de
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Tributação Justa consolida verdadeiro instrumento de exercício da cidadania, uma vez que, em
uma sociedade fundada em alicerces democráticos, não se tolera mais o emprego do dinheiro
público de forma irresponsável, ineficiente e não transparente (MELLO, 2013).
A Tributação Justa abarca, portanto, à adoção da lógica extrafiscal pelos poderes
Legislativo e Executivo, de modo a se contemplar as necessidades de caráter público e os
parâmetros constitucionais (MELLO, 2013).
Dentre os objetivos a serem tutelados pelo instituto na atualidade, a preocupação com
a proteção ambiental adquire status superior no ordenamento jurídico nacional. De fato, o
instituto tributário em análise tem correspondido a uma ferramenta indispensável na busca de
uma gestão ambiental mais eficiente.
Alçado à categoria de direito fundamental pelo constituinte de 1988, o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado corresponde, contemporaneamente, a uma necessidade
social de caráter imperativo, estando consagrado no artigo 225 da Constituição Republicana
Federativa (BRASIL, 1988). Em sua redação, fundamenta-se a tutela ecológica como um dever
para com as atuais e as futuras gerações, sendo objeto, portanto, não somente da
responsabilidade do Estado, mas também de todos os indivíduos.
A relevância da discussão quanto à proteção ambiental tem fundamento segundo
SILVA (2014), por tal direito apresentar caráter instrumental em relação ao próprio direito à
vida. Constata-se, assim, que sua relevância se dá em razão de corresponder a matéria que, se
não devidamente observada e tratada, pode conduzir à amplificação do seu potencial
catastrófico.
Em tom alarmista com relação aos riscos que as mudanças climáticas têm suscitado,
tendo em vista a crescente intervenção humana na natureza de forma invasiva e destruidora,
BECK (1986) também pondera quanto à necessidade de se repensar a vida humana em face
das transformações climáticas e ambientais atualmente experimentadas.
Partindo do conceito de sociedade de risco, vislumbra-se a existência de uma
coletividade que passa a conviver com um conjunto ilimitado de dificuldades e, principalmente,
instabilidades capazes de comprometer ou até mesmo anular os possíveis efeitos benéficos
advindos do desenvolvimento tecnológico e científico (BECK, 1986).
Com efeito, diante de episódios de devastação ambiental de repercussão global, o
conceito supracitado tem indicado uma série de riscos de proporção sem precedentes com
potencial de ameaçar a própria sobrevivência humana. Tais efeitos podem ser ainda mais
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danosos quando se tem em perspectiva o seu alcance à população mais pobre, geralmente
vulnerável e desassistida do aparato estatal (BECK, 1986).
Embora a extrafiscalidade tributária e a temática ambiental sejam elementos
aparentemente distantes, a sua associação pode contribuir significativamente para a sociedade
contemporânea. Neste sentido, a presente reflexão tem como escopo a adoção de incentivos
fiscais de forma a contribuir com o meio ambiente e, em contrapartida, reduzir a carga tributária
tão custosa ao cidadão, concretizando, portanto, o direito à Tributação Justa.
Pretende-se com este artigo sugerir ao Poder Público medidas que permitam o
aproveitamento do lixo de maneira planejada. Para tanto, propõe-se que o mecanismo da
extrafiscalidade, mediante nova regulação legal, seja aplicado de forma a conceder a redução
ou, até mesmo, a isenção das taxas referentes à coleta de resíduos sólidos às residências e aos
estabelecimentos comerciais que promoverem a coleta seletiva do seu lixo, destinando o
mesmo ao sistema local de reciclagem.
Para atingir tal intento, investigar-se-á a natureza jurídica da taxa de resíduos sólidos
comparativamente ao conceito de tributo insculpido na Constituição Federal (BRASIL, 1988)
e, posteriormente, analisar-se-á a proeminência do debate da proteção ambiental e da utilização
de ferramentas fiscais na promoção do equilíbrio ecológico. Por fim, propõem-se medidas
vinculadas ao tratamento do lixo urbano aos munícipes.

2. TRIBUTOS E TAXA DE COLETA DE RESÍDUOS SÓLIDOS

Segundo Hugo de Brito Machado (2016), o homem precisou de uma entidade com
força superior, com poder suficiente para definir regras de conduta, para construir o direito
positivo. Diante de tal necessidade, nasceu o Estado e a consequente necessidade de realizar
planejamentos por meio da atividade financeira.
No Brasil, a já elevada carga tributária tem crescido substancialmente nos últimos
anos, muito embora nem sempre o cidadão tenha as devidas contrapartidas do Estado em
investimentos sociais. Torna-se evidente, desse modo, que a forte atividade arrecadatória estatal
nem sempre se reverte em serviço público de qualidade e capaz de atender a toda a população.
Para se compreender as incongruências da realidade brasileira, devem-se investigar,
assim, as noções fundamentais pertinentes ao modelo tributário nacional.
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Partindo do conceito previsto no artigo 3º do Código Tributário Nacional, “tributo


corresponde a toda prestação pecuniária compulsória, expressa em moeda ou em meio que nela
possa exprimir, que não constitua ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade
administrativa plenamente vinculada” (BRASIL, 1966).
Tal definição se mostra extremamente útil ao presente estudo. Consubstanciado em
operação estatal plenamente vinculada, isto é, conduta eminentemente obrigatória, vislumbra-
se que a lei não concede margem de discricionariedade para o não cumprimento da obrigação
exacional. Logo, está-se diante do princípio da legalidade, um dos principais, senão o mais
importante, princípio em matéria tributária.
Fundado na imperatividade da norma jurídica, tal mandamento está previsto no inciso
II do artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Em matéria fiscal, seu parâmetro de
atuação não se limita exclusivamente ao reconhecimento do pacto social em que todos se
constituem como indivíduos sujeitos ao mesmo tratamento perante a lei, assumindo, assim,
contornos peculiares.
Tal conceito consolida, em suma, autêntico instrumento protetivo em face do poder
de polícia estatal, visto que limita a sua atuação à cobrança daqueles tributos previstos em lei e,
principalmente, dado o caráter hierárquico do ordenamento jurídico nacional, à Constituição
Federal (BRASIL, 1988), que, por sua vez, exerce verdadeiro controle sobre o plano normativo
nacional, visto que encerra os valores mais caros à sociedade.
Sendo a legalidade responsável por definir as espécies tributárias consideradas
admissíveis pelo pacto social e jurídico em vigor, seu fundamento consta na Constituição
Republicana federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), sendo a classificação fiscal a ser
observada pelo legislador ordinário em todas as esferas federativas.
Tendo em vista a materialização do Estado num pacto federativo indissolúvel,
conforme o caput do artigo 1º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o legislador
constituinte distribuiu as receitas tributárias em competências, havendo, portanto, tributos
exclusivamente devidos à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios.
No que concerne às diversas modalidades fiscais existentes, outra classificação avulta
no ordenamento jurídico. Embora parte significativa da doutrina tenha reconhecido a existência
de apenas duas ou três espécies tributárias, impostos e taxas para Geraldo Ataliba, e além das
duas primeiras espécies exacionais a contribuição de melhoria para Sacha Calmon Navarro
Coelho, Paulo de Barros Carvalho e Roque Antônio Carrazza, a Constituição Federal concebeu
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a existência de exatamente cinco categorias distintas, acrescendo às classificações anteriores os


empréstimos compulsórios e as contribuições especiais (LUCK, s.d.).
Nesta perspectiva, cumpre ressaltar que o modelo pentapartite adveio da premência
em se acrescentar outras características aos tributos para além do caráter vinculativo (ou não)
que distingue impostos e taxas. Destarte, tornaram-se presentes também os critérios da
destinação do produto da arrecadação, atribuído às contribuições de um modo geral, e da
possibilidade de devolução do tributo que foi pago, parâmetro empregado para discriminar os
empréstimos compulsórios.
O Supremo Tribunal Federal, neste sentido, já consolidou a teoria pentapartite no
sentido de que os empréstimos compulsórios são espécies tributárias autônomas, ostentando
natureza jurídica própria que as diferenciam das demais espécies tributárias (LUCK, s.d).
Em síntese, os impostos, conforme o artigo 16 do Código Tributário Nacional
(BRASIL, 1966), são tributos cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente
de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte. Nota-se, assim, que a espécie
em análise tem como intrínseca a ideia da não vinculação (MACHADO, 2016).
As contribuições de melhoria, por sua vez, são tributos vinculados que têm como fato
gerador a realização de obra pública da qual decorra uma valorização imobiliária do imóvel do
proprietário. Estão previstas nos artigo 145, inciso II, e 81, respectivamente, da Constituição
Federal (BRASIL, 1988) e do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966).
Já os empréstimos compulsórios, previstos nos artigos 148 e 15, respectivamente, da
Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988) e do CTN (BRASIL,
1966), têm como pressupostos o atendimento de despesas extraordinárias, decorrentes de
calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência e o investimento público de caráter
urgente e de relevante interesse nacional.
Estando definidas no artigo 149 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), as
contribuições sociais são caracterizadas, essencialmente, por sua destinação. Em suma, são
utilizadas para o financiamento da atuação estatal em segmento específico, seja social ou
econômico. Em regra, são de competência tributária exclusiva da União, salvaguardadas a
contribuição esculpida no art. 149-A da Constituição Federal (BRASIL, 1988), conhecida
como contribuição para o Custeio de Serviço de Iluminação Pública (COSIP), e aquela prevista
no art. 149, §1º do mesmo preceito normativo, o qual faz alusão às contribuições sociais de
custeio do regime previdenciário dos servidores públicos dos distintos Entes federativos.
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Especificamente no que concerne à taxa, tributo que merece considerável destaque no


presente artigo, tal espécie tributária, de competência comum dos Entes da Federação, tem
como fato gerador uma atividade estatal uti singuli, isto é, intrínseca ao contribuinte. Neste
diapasão, o art. 145, II da Constituição (BRASIL, 1988), assim como o art. 77 do CTN
(BRASIL, 1966), constam de expressa previsão normativa da taxa, a qual pode ter como fato
gerador o exercício regular do poder de polícia ou a prestação de serviço público específico ou
divisível, ou a colocação deste à disposição do contribuinte. Os serviços são específicos e
divisíveis se possível a mensuração da utilização de seus usuários, tendo, como exemplo, a taxa
para a obtenção de passaporte.
No mesmo sentido, Yoshiaki Ichihara afirma que o conceito de taxa “[...] tem como
característica, na materialidade de ser fato gerador a atuação estatal diretamente referida de seu
contribuinte, em forma de contraprestação de serviço” (ICHIHARA, 2009, p.84).
Resta claro do texto da Constituição Federal (BRASIL, 1988) que a atividade estatal
específica relativa ao contribuinte pode ser de duas espécies: exercício regular do poder de
polícia ou prestação de serviços ou colocação destes à disposição do contribuinte.
Quanto à taxa relativa aos serviços, vislumbra-se imediatamente o caráter
contraprestacional da mesma, seja pelo cumprimento efetivo do serviço ou pela simples
disponibilidade de prestação deste ao contribuinte, nos termos do artigo 79 do Código
Tributário Nacional (BRASIL, 1966). A competência legislativa para a instituição de taxas é
limitada aos entes da Federação e às suas autarquias. Repisa-se a especificidade e a
divisibilidade da natureza do serviço público para que a espécie tributária seja cobrada.
Ao revés, no que tange à taxa de poder de polícia, cabe salientar a disposição do art.
78 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966). Segundo MACHADO (2016), poder de
polícia é poder de Estado, a fim de defender o interesse público. Considerando que cada pessoa,
individualmente, tem interesse na preservação do bem estar geral, tem-se a espécie de taxa
relativa ao poder de polícia, abrangendo diversas searas em sua incidência, tais como taxa de
licença para publicidade ou, ainda, taxa de licença para construções.
Salienta-se que ambas as espécies de taxa podem desempenhar função extrafiscal,
sobretudo em relação ao meio ambiente, ainda que a doutrina não seja unânime acerca desta
compreensão. Embora a função precípua seja a arrecadatória, é possível estimular ou inibir
condutas que refletem no seio social. Aliás, DOMINGUES (2007) afirma que a taxa admite
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extrafiscalidade, desde que se dimensionem o volume e o custo do serviço para à cobrança


desta.
Sob tal égide, destaca-se que, especialmente no que concerne à taxa relativa aos
serviços públicos, a extrafiscalidade se mostra mais eficaz, uma vez ser possível a análise da
proporcionalidade entre serviço e conduta de um contribuinte determinado.
Neste diapasão, no próximo capítulo, discute-se a extrafiscalidade da taxa de coleta
de resíduos sólidos, conhecida como taxa de coleta de lixo. Em face do frequente debate acerca
da produção de resíduos, analisa-se como políticas públicas tributárias podem ser um
importante alicerce na preservação ambiental, inclusive, quando se trata da questão do lixo, um
dos grandes problemas da sociedade atual.

3. A EXTRAFISCALIDADE DA TAXA DE RESÍDUOS SÓLIDOS

A taxa de coleta de resíduos sólidos é devida por proprietários de imóveis edificados


beneficiados por coleta domiciliar de lixo. Tal exação não incide sobre lotes vazios, vagas de
garagem constituídas em imóveis autônomos e barracões, considerando que, nos dois últimos,
correspondam somente ao único tipo construtivo do lote.
Consoante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, considera-se legal e
constitucional a cobrança da taxa de coleta de resíduos sólidos urbanos, atendendo-se os
critérios da especificidade e da divisibilidade. Portanto, deve prevalecer sua cobrança, nos
termos da súmula vinculante do STF nº 19, “A taxa cobrada exclusivamente em razão dos
serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos
provenientes de imóveis não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal.” (BRASIL, 2009).
Nesse sentido, para instituí-la, os Municípios devem colocar o serviço de coleta de
lixo à disposição dos usuários. Porém, inúmeros entes municipais brasileiros utilizam da base
de cálculo do imposto predial e territorial urbano (IPTU) a fim de apurar o valor a ser cobrado
por esta taxa. De fato, a base de cálculo, a rigor, tem como fundamento a metragem e a
localização dos imóveis urbanos para sua cobrança.
Nessa esteira, o Supremo Tribunal de Federal (BRASIL, 2008) reconheceu a
constitucionalidade da apuração do montante devido a termos de tal taxa, desde que não se
verifique identidade integral entre a base de cálculo desta taxa com o referido imposto
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municipal, conforme entendimento consolidado no RE 576321, com julgamento em 13 de


fevereiro de 2009, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski.
Demonstra-se uma celeuma de cunho social, visto que se discute como tais requisitos
para a apuração da base de cálculo podem se adequar à noção de serviço público divisível (uti
singuli) atribuível à taxa de coleta de resíduos sólidos. Muito embora o escopo normativo seja
aquele de individualização do contribuinte, resta evidente que o funcionamento deste instituto
não particulariza o cidadão em si, uma vez que a análise da especificidade é o próprio imóvel.
Porém, nota-se que não é possível investigar a produção de lixo de cada contribuinte apenas
com fulcro em aspectos puramente objetivos do imóvel urbano.
A discussão ainda se torna mais acirrada quando se consideram as políticas ambientais
e a extrafiscalidade. Sob a égide do Estado Democrático de Direito, em que a atividade
arrecadatória não tem viés estritamente econômico, vislumbra-se o aspecto paradoxal deste tipo
de taxa. Embora o ordenamento jurídico promova tributos que zelam pela promoção dos
direitos fundamentais, ainda são vigentes tributos totalmente desvinculados dos serviços que
são devidos em contraprestação.
Conquanto a intenção que permeia a taxa da coleta de resíduos sólidos seja a
disponibilização de um serviço público essencial que permita a higidez urbana, demonstra-se
que o cálculo deste tributo deveria ter cunho particularizado. Não é razoável que a cobrança
seja generalizada, desprezando as especificidades de cada contribuinte, sobretudo, em um
Estado que promova políticas públicas ambientais, consoante o preceito fixado no art. 225 da
Constituição Federal (BRASIL, 1988).
A cobrança tributária deve atender, portanto, aos critérios da extrafiscalidade, sob
pena de institucionalizar, mais uma vez, uma sociedade segregada dos valores constitucionais.
A coletividade deve participar, portanto, da busca por um meio ambiente ecologicamente
equilibrado, sendo esta taxa um meio primordial de estimular comportamentos benéficos
quanto à coleta de lixo.
Vale ressaltar que a cobrança genérica afasta, até mesmo, a natureza uti singuli desta
espécie tributária, haja vista que a natureza da taxa, em si, exige serviços públicos específicos
e individualizados. Sem dúvidas, a particularização deve atender a critérios que permitam sua
consolidação, sobretudo, em cidades de grande porte. Não se poder permitir é a manutenção de
taxas genéricas desvinculadas da integralidade do cunho social.
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Reflete-se, portanto, acerca da adoção de incentivos fiscais de forma a contribuir com


o meio ambiente e, em contrapartida, reduzir a carga tributária tão custosa ao cidadão. Para
tanto, debate-se acerca da possibilidade de redução das taxas referentes à coleta de resíduos
sólidos às residências que produzirem menos lixo ou, ainda, promoverem a coleta seletiva do
seu lixo, destinando o mesmo ao sistema local de reciclagem, por exemplo.
Neste sentido, destaca-se o principal sistema de cobrança desta taxa nos países da
Comunidade Europeia, conhecido como PAYT (pay-as-you-throw), termo que significa
“pague pelo que se descarta”. Em face das particularidades de cada Município, a base de cálculo
da referida taxa ocorre em função do volume ou do peso dos volumes descartados, tendo como
fundamento a análise do custo da coleta, bem como a destinação final dos resíduos (CEARÁ,
2014).
Nos Estados Unidos da América, cidades que dispõem do sistema PAYT utilizam três
principais tipos de coleta: sacos com identificação, latões de tamanhos variados ou um sistema
que utilize ambas as modalidades. Os Municípios americanos que adotam tal sistema obtiveram
um decréscimo de 16% (dezesseis por cento) a 17% (dezessete por cento) na produção de
resíduos e um aumento de 5% (cinco por cento) na reciclagem (CEARÁ, 2014).
Neste diapasão, nota-se que a cobrança da taxa da coleta de resíduos sólidos na
maioria dos Municípios nacionais é desvinculada da participação do contribuinte no que tange
à produção de lixo, postura esta não consentânea com aquela dos países que buscam a melhoria
da qualidade ambiental.
Assim, devem ser considerados critérios específicos em relação a cada Município, o
que deverá ser observado em estudos técnicos específicos sobre a temática. Todavia, nota-se
que parâmetros tais como quantidade de moradores em cada domicílio, quantidade de lixo
produzido, número de habitantes da região e custo do serviço de coleta são alguns daqueles que
devem ser necessariamente considerados em qualquer análise, a fim de investigar a
possibilidade de isenção parcial ou total desta espécie tributária. A ideia é que seja desenvolvido
no Brasil um sistema similar ao PAYT, já que tal concepção é pautada na extrafiscalidade e na
efetividade da tributação.
A gestão fiscal promovida pelo Poder Público passa a ter o condão de promover
profundas alterações na coletividade. Nota-se que contemplar comportamentos sociais de modo
a se obter incentivos tributários pode produzir consequências positivas em curto prazo.
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Conclui-se que a adoção de políticas públicas em matéria ambiental tributária


corresponde a um instrumento essencial à gestão planejada da Administração Pública para,
principalmente, concretizar os direitos fundamentais.

CONCLUSÕES

Este artigo tratou do desenvolvimento da tributação nacional, intrínseca originalmente


à condição do Brasil como colônia portuguesa. Com fulcro em um viés histórico, ressaltando-
se que a grande ruptura no modelo de arrecadação no país ocorreu com o advento da
Constituição Federal de 1988.
Com escopo de promover os direitos fundamentais, considerou-se também a
extrafiscalidade como viés da gestão fiscal, sob a égide da Tributação Justa. Através desta
função, certos comportamentos sociais são incentivados, ao passo que outros são inibidos,
fomentando condutas em conformidade com os valores consagrados na Constituição
Republicana Federativa do Brasil de 1988.
No que concerne à taxa de coleta de resíduos sólidos, foram verificados critérios
genéricos para apuração do montante devido a este título. Foram, também, destacados
requisitos particulares quando na apuração do quantum devido em face de cada contribuinte,
como forma de se estimular a proteção ambiental.
Apontou-se o sistema PAYT, desenvolvido por países da Comunidade Europeia e
pelos Estados Unidos, como um dos modelos que poderia ser adotado pelos Municípios
brasileiros a fim de adequar a base de cálculo das taxas de coleta de resíduos sólidos com a
participação de cada contribuinte no que concerne à produção e à destinação de lixo,
culminando em isenções parciais para aqueles que atendam os níveis almejados pelos entes
munícipes de cada região do país.
Portanto, a tutela ambiental necessita da participação de toda coletividade para buscar
a plena efetividade. Assim, a adoção políticas públicas deve ser cumulada com incentivos à
população, já que a gestão do espaço público, para ser eficiente, exige a participação da
sociedade em sua integralidade com o objetivo de promover os direitos fundamentais.
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DE VEÍCULOS ELÉTRICOS NO BRASIL

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF
SENRA, Matheus Veloso Bastos
Graduado em Direito pela UFJF

RESUMO

Analisa-se a função extrafiscal do imposto sobre produtos industrializados (IPI) e a aplicação de sua
redução no que concerne aos veículos elétricos. Pretende-se inicialmente tratar do conceito de veículos
elétricos, depois realizar uma análise dos diversos benefícios fiscais vigentes na legislação pátria e de
outros países, além de abordar o IPI levando em consideração a aplicação de suas funções à redução
tributária. Demonstrar-se-á a importância das medidas propostas neste estudo para redução dos danos ao
meio ambiente, além da efetivação de princípios do Direito Tributário em prol da sociedade. O marco
teórico será o pós-positivismo jurídico, em razão do status normativo dado aos princípios consagrados
pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Por fim, a metodologia utilizada é a de
revisão bibliográfica além de crítico-dialética, por conter considerações acerca da aplicação da função
extrafiscal do IPI.

Palavras-chave. Imposto sobre produtos industrializados. Veículo elétrico. Meio ambiente.

ABSTRACT

The extrafiscal function of the tax on industrialized products (IPI) is analyzed and its application on
tributary reduction regarding electric vehicles. It is intended initially to deal with the addressing concept
of electric vehicles, perform an analysis of the many tax benefits in force under national law and other
states of law, in addition to address the IPI taking into account the application of its functions regarding
tax reduction. The importance of measures proposed in this article will be shown regarding the reduction
of environmental damage, as well as the effectiveness of Tax Law principles in favor of social welfare.
The theoretical framework will be legal post positivism, due to the normative status given to legal
principles set out in the Brazilian Constitution of 1988. Finally, the methodology used is bibliographical
revision, besides being critical and dialectical, as it contains considerations about the application of the
extrafiscal function of the IPI.

Keywords. Tax over industrialized products. Electric Vehicle. Environment.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A consciência ambiental e o desenvolvimento sustentável são assuntos sempre


pertinentes no mundo de hoje. E, nesse cerne, cada vez mais a indústria automobilística tem
avançado no desenvolvimento de tecnologias limpas, pois os automóveis estão entre os
principais causadores de emissões de gases poluentes que provocam desequilíbrio no meio
ambiente.
No âmbito tributário, no que concerne ao meio ambiente, existe a base
principiológica, reforçada pela doutrina, de que a nocividade de um produto dá ensejo à
aplicação de alíquotas maiores em cobrança de impostos. Isto significa tratar do princípio da
seletividade, que norteia a aplicação do imposto sobre produtos industrializados no
ordenamento brasileiro e, pode ser usado como ponto de partida para a concessão de benefícios
fiscais à produtos amigáveis ao meio ambiente.
Ainda, o IPI é um imposto dotado de função extrafiscal, ou seja, não é apenas um
meio arrecadatório de tributos, mas também um instrumento que pode ser utilizado pelo fisco
na aplicação de políticas econômicas, sociais e ambientais no Brasil.
Pela análise das atuais formas de cobrança do IPI, revela-se que os veículos elétricos,
que são dotados de tecnologia limpa, com menor emissão de poluentes e maior eficiência
energética, estão sujeitos às mesmas alíquotas de veículos nocivos ao meio ambiente, o que
onera os seus fabricantes, além de estabelecer obstáculo na sua aceitação no mercado de
automóveis do Brasil.
Será utilizado como marco teórico o pós-positivismo jurídico, por ser essa a corrente
de pensamento que permite a adoção de princípios do Direito como força normativa. Isso ocorre
em razão, sobretudo, de o presente artigo utilizar como tema central os princípios da
seletividade e da essencialidade, inerentes à função extrafiscal do IPI.
Utilizar-se-á como metodologia a revisão bibliográfica, crítico-dialética,
considerações doutrinárias, bem como crítica da forma como o fisco atualmente tributa os
veículos elétricos, expondo-se especificamente os casos de ocorrência no ordenamento jurídico
brasileiro, comparados a previsões legais de outros países.
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1. CONCEITO DE VEÍCULOS ELÉTRICOS E MEIO AMBIENTE

Hodiernamente, a preocupação com as mudanças climáticas do planeta é um dos


principais temas em pauta. Assim, os veículos automotores são grandes adversários dos
ambientalistas, em decorrência de serem um dos principais responsáveis pela queima de
combustíveis fósseis, os quais agridem o meio ambiente. Em contrapartida, percebe-se que a
indústria automobilística tem imprimido esforços para criar automóveis cada vez menos
poluentes, sobretudo com tecnologia híbrida e movidos a motores elétricos.
Nessa esteira, muitos países têm criado maneiras de tornar vantajosa a compra dos
veículos elétricos (VEs), haja vista possuírem uma maior eficiência energética, no que diz
respeito ao consumo de combustível (WITMANN, 2013).
O Instituto Nacional de Eficiência Energética (INEE) conceitua os veículos elétricos
(VEs) baseado na sua divisão em cinco categorias: os VEs movidos unicamente por baterias
recarregadas em tomadas elétricas; os VEs de tecnologia híbrida; os VEs de célula a
combustível; os VEs ligados diretamente à rede elétrica (trólebus) e os VEs de placas
fotovoltaicas.
Apesar da divisão supracitada, por serem mais comumente comercializados por
grandes montadoras de automóveis, este estudo se limitará a questionar a viabilidade da redução
tributária apenas no que toca aos VEs movidos à bateria, híbridos e de célula a
combustível(INEE).
Entende-se por VE o veículo que usa para seu deslocamento pelo menos um motor
elétrico, conforme classificação do INEE. Dessa maneira, conforme supramencionado, a
primeira categoria de VE, é o Veículo Elétrico a bateria, que é aquele movido unicamente por
baterias e possui um motor elétrico, que é recarregado na rede elétrica residencial ou outro meio,
e que se utiliza dessa energia para se movimentar. Quanto aos VEs híbridos, entende-se que são
aqueles que, além de um motor elétrico, contam também com um motor de combustão interna
(o motor comum inerente a maioria dos veículos automotores, movido a gasolina, diesel ou
outro combustível fóssil), que torna possível a recarga de suas baterias e consequentemente o
seu deslocamento. Os VEs híbridos utilizam-se separadamente ou conjuntamente de seus
motores, a depender da demanda do veículo por velocidade ou eficiência. Quanto ao
funcionamento de forma conjunta, o motor de combustão interna designa o papel de um gerador
de energia, fornecendo eletricidade para recarga das baterias que propulsionam o veículo
(IMBASCIATI, 2012). Já o VE de célula a combustível utiliza-se de um equipamento
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eletroquímico que torna possível produzir energia elétrica a partir de reações com átomos de
hidrogênio (conforme INEE). No que concerne aos VEs ligados à rede, a sua energia é
fornecida diretamente pela rede elétrica, como por exemplo os ônibus elétricos da cidade de
São Paulo (chamados de “trólebus”). Por fim, existem também os VEs solares, que se utilizam
da energia fornecida por placas fotovoltaicas, todavia sendo a sua produção reduzida, devido à
limitação do tamanho das placas que recebem energia solar (INEE).
Os VEs foram concebidos como uma alternativa aos veículos comuns, aqueles
movidos por motores que emitem gases poluentes, com o objetivo de conter a poluição em
nível global, além de proporcionar ao seu consumidor maior eficiência no uso do combustível.
Nesse sentido, observa-se que os veículos elétricos movidos unicamente por baterias, não
emitem gases poluentes, tendo em vista que seu funcionamento é puramente elétrico, não
havendo qualquer queima de combustível fóssil. Por sua vez, os veículos híbridos fazem uso
de motor à combustão para recarregar suas baterias, funcionando de maneira mais eficiente,
reduzindo queimas de combustível nocivas ao meio ambiente. No que concerne aos VEs de
célula a combustível, apesar dos mesmos produzirem uma queima gasosa para se propulsionar,
a reação química que extrai energia do hidrogênio resulta apenas em vapor d’água em seu
escapamento (INEE), que não é nocivo ao meio ambiente.
Apesar da vantagem ambiental, os VEs apresentam custo para o consumidor final
significativamente maior comparados a um automóvel comum poluente. As pesquisas de
desenvolvimento de baterias, materiais para sua fabricação e emprego de tecnologia avançada
encarecem demasiadamente a cadeia de produção dos VEs (MINASPETRO, 2015).
Além de possuírem mais tecnologia, um dos principais benefícios trazidos pelo
aumento da frota de veículos elétricos é a redução da emissão de poluentes. A concentração de
dióxido de carbono (CO2) na atmosfera vem aumentado, ano após ano, o que pode causar a
retenção de calor, que resulta no aumento da temperatura global, o que tem efeitos catastróficos
sobre ecossistemas e à vida humana (VONBUN, 2015).
Segundo dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o Brasil
emitiu 1.246.477 Gg de CO2 em 2010 (VONBUN, 2015). E ainda, em 2009, sendo signatário
do Acordo de Copenhague, o Brasil instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima
(PNMC), através da Lei nº 12.187/2009, definindo a meta de reduções de gases de efeito estufa
entre 36,1% e 38,9%.
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A partir desses números, de acordo com dados do MCTI, em 2014 (ano mais recente
da pesquisa do Ministério), o setor de energia, que é composto pela queima de combustíveis,
seja por emissões fugitivas da indústria de petróleo ou a queima de combustíveis fósseis pelos
veículos, representa 37% nas participações de emissões de gases estufa. Interessante destacar
que o setor de energia é o que mais cresce, desde que a medição da emissão de gases estufa se
iniciou em 1990, quando o setor representava aproximadamente 14% das emissões totais
(MCTI, 2014).
De acordo com a mesma fonte de dados, as emissões pela indústria petroleira
representam cerca de 4,5% do total das emissões do setor de energia, enquanto que o subsetor
de queima de combustíveis, composto pelos veículos leves e pesados de passeio e de comércio,
além de motocicletas e aeronaves representa aproximadamente 95,5% das emissões do setor
(SIRENE, 2015).
Assim, líder em emissão de poluentes, o setor de energia merece maior atenção, tendo
em vista a possibilidade de sua redução através do emprego de tecnologias cada vez menos
poluentes.
Em estimativa feita pela Confederação Nacional do Transporte, seria possível reduzir
em 10% o consumo de combustível no Brasil se essa frota fosse renovada com veículos
comuns, sendo possível uma maior redução se entre eles estivessem veículos elétricos
(FUNDEP, 2015).
Conclui-se que o aumento das vendas dos veículos elétricos poderia proporcionar
grande redução nos índices de emissão dos gases estufa, tendo em vista que hoje a frota
brasileira de automóveis é constituída quase unicamente por veículos com motores à combustão
interna. Existe grande espaço para desenvolvimento ambiental nesse cerne, necessitando-se de
uma aplicação efetiva da redução tributária na produção dos veículos elétricos, com vistas a
aumentar a sua presença na frota de automóveis, consequentemente, reduzindo-se os danos
ambientais.

2. BENEFÍCIOS FISCAIS VIGENTES PARA VEÍCULOS ELÉTRICOS NO


BRASIL E EM OUTROS PAÍSES

É relevante a análise das vantagens tributárias ligadas aos VEs no Brasil e em outros
países, sendo necessário, inicialmente, a definição de “benefício fiscal”, de acordo com a
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doutrina pertinente ao assunto, bem como um estudo sobre os principais benefícios fiscais já
existentes em prol dos veículos elétricos.
O presente estudo utiliza-se do referencial teórico pós-positivista. Esse referencial
pauta-se na teoria de que os valores devem ser resgatados, aplicando-se princípios e regras, em
conjunto com direitos fundamentais. Aliam-se o Direito e a Ética, de modo que possa
interpretar-se a legislação da maneira mais atual possível, adequando-se o sistema jurídico ao
momento social pertinente (VERONESE, 2010).
Além disso, o prisma do pós-positivismo permite que seja realizada uma análise além
do texto legal para que sejam concedidos benefícios fiscais com vistas ao desenvolvimento
ambiental. Apesar de não existir na Constituição Federal de 1988 matéria específica acerca de
“benefícios fiscais ao meio ambiente”, utilizando-se do referencial teórico do presente estudo,
encontra-se uma interdisciplinaridade entre Direito e meio ambiente, com a aplicação de
princípios constitucionais, notadamente os ditames do Estado Democrático de Direito, que se
encontram consagrados nos artigos 1º e 3º do referido dispositivo legal (VERONESE, 2010).
Independentemente de uma reanálise pós-positivista dos benefícios fiscais, estes já se
encontram previstos no ordenamento pátrio, notadamente na Constituição Federal de 1988,
onde, em seu artigo 150, §6º, prevê que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de
cálculo, entre outros, só poderá ser concedido através de lei específica, nos âmbitos Federal,
Estadual, Distrital ou Municipal (HARADA, 2011).
Cumpre salientar que existe previsão no artigo 23, inciso VI, da CRFB/88 a
competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteger o meio
ambiente e combater a poluição em qualquer das suas formas, sendo esse o objetivo principal
da concessão de benefícios fiscais aos veículos elétricos.

2.1 Benefícios fiscais aos veículos elétricos no Brasil

Uma das primeiras medidas, partindo de sete Estados brasileiros, é a isenção do


imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA) aos veículos movidos a motor
elétrico, segundo dados da Associação Brasileira dos Veículos Elétricos (ABVE).
Similarmente, outros três Estados têm alíquota diferenciada para esses veículos. A título de
exemplo, pode ser citado o Estado do Rio Grande do Sul, que, através do Decreto nº 32.144, de
30 de dezembro de 1985, atualizado pelo Decreto nº 53.340, de 06 de dezembro de 2016, dispõe
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em seu artigo 4º, inciso II, que os proprietários de veículos de força motriz elétrica estão isentos
do recolhimento do IPVA (RIO GRANDE DO SUL, 1985).
No caso do Estado de São Paulo, os VEs possuem o benefício de uma alíquota
diferenciada no recolhimento do IPVA. A Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008, ao tratar
das alíquotas desse imposto, define em seu artigo 9º, inciso III, que os veículos que utilizem
exclusivamente álcool, gás natural veicular ou eletricidade, ainda que combinados, estão
sujeitos a alíquota de 3% do imposto, enquanto que a Lei, no mesmo artigo, em seu inciso IV,
define 4% a alíquota para os demais veículos automotores (SÃO PAULO, 2008).
Observa-se que, a alíquota diferenciada, em razão do combustível do veículo,
caracteriza a função extrafiscal do IPVA (ALMEIDA, 2012), tendo em vista que ao conceder
uma alíquota menor ao veículo que polui menos, o fisco incentiva o licenciamento dos veículos
elétricos. E, dessa maneira, quanto mais veículos elétricos forem licenciados, maior será o
benefício ambiental, efetivando-se a função extrafiscal do imposto.
Quanto a políticas do governo federal, merece destaque a diretoria do Banco Nacional
do Desenvolvimento (BNDES), que definiu juros menores para a aquisição de ônibus movidos
a motores elétricos, em margens de 1% ao ano e margem de 2,5% a.a. para ônibus híbridos,
enquanto que, nos demais casos, a margem padrão é de 3,5% a.a., de acordo com dados da
ABVE.
O que se infere é que através da redução de juros para ônibus elétricos e híbridos,
enquanto são mantidas taxas de juros mais altas aos ônibus movidos por motores de combustão
interna, incentiva-se o uso dos veículos que se utilizam da tecnologia limpa.
Nesse cerne, a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX),
através de sua Resolução nº 97, de 26 de outubro de 2015, zerou a alíquota do Imposto de
Importação (II) para veículos movidos unicamente a eletricidade ou células de hidrogênio
(BRASIL, 2015), que anteriormente eram sujeitos à alíquota de 35% (BRASIL, 2011). Fica
evidenciada a vantagem em importação do VE, levando em conta apenas a benefício do
Imposto de Importação. Apesar da vantagem concedida pela CAMEX, sobre qualquer veículo
importado hoje no Brasil, ainda incidem diversos outros impostos, tais como do imposto sobre
produtos industrializados (IPI), imposto sobre circulação de mercadorias e serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), programas de integração
social e de formação do patrimônio do Servidor público (PIS), contribuição para financiamento
da seguridade social (COFINS), assim que o veículo for licenciado em território nacional.
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Percebe-se que existem no Brasil diversas medidas que desoneram os veículos


elétricos, mas que são regionais, sendo aplicáveis apenas em alguns Estados da Federação.
Apesar de pequena participação do governo Federal, não se verifica a possível aplicação da
função extrafiscal do IPI, tendo em vista que as medidas ainda se revelam insuficientes para
tornar os veículos elétricos mais acessíveis ao consumidor final.

2.2 Incentivos fiscais (tax incentives) aos veículos elétricos existentes em outros países

De acordo com Elizabete Rosa de Mello, as expressões “benefício fiscal” e “incentivo


fiscal” devem ser vistas como de significado sinônimo, já que o resultado será o mesmo, a
desoneração fiscal ou renúncia de receitas (MELLO, 2014). E, nessa esteira, intenta-se analisar
alguns incentivos fiscais concedidos ao redor do mundo, notadamente na União Europeia (UE)
e nos Estados Unidos da América (EUA), regiões onde a venda de veículos elétricos e híbridos
alcançam grandes números.
Somente na UE, em 2015, havia mais de 1milhão de veículos elétricos nas estradas,
incluindo elétricos a bateria, híbridos, híbridos plug-in e de célula a combustível, segundo a
Agência Internacional de Energia (International Energy Agency). Enquanto nos EUA, somente
no ano de 2015 foram vendidos quase 500 mil veículos elétricos, de todas as categorias, de
acordo com dados do Departamento de Energia dos EUA (U.S. Department of Energy).
Uma das razões do elevado número de vendas dos VEs na União Europeia são os
incentivos fiscais concedidos ao consumidor final, de acordo com as políticas tributárias de
cada país do continente. Segundo a Associação Europeia dos Fabricantes de Veículos (ACEA),
a adoção de medidas tributárias, com ênfase nos incentivos fiscais ajuda a criar um mercado
preparado para receber alta tecnologia, sendo de suma importância a interferência
governamental para tomar medidas iniciais que propiciem o desenvolvimento da indústria dos
veículos elétricos.
Assim sendo, Portugal, por exemplo, adota o incentivo de isentar os condutores de
veículos elétricos do chamado “Imposto Sobre Vehículos (ISV)” (PROCURADORIA
GERAL-DISTRITAL DE LISBOA, 2007), imposto que o governo Federal português cobra
sobre a propriedade de veículos, que tem o objetivo de financiar construção da infraestrutura
rodoviária do país europeu. Ainda, os veículos híbridos que tenham autonomia superior a 25
quilômetros usando somente a sua bateria, são sujeitos a somente 25% do imposto supracitado,
conforme dados da ACEA.
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Já na Alemanha, veículos elétricos são isentos da taxa anual de circulação que o país
cobra, por um período de dez anos contados do licenciamento do automóvel. Ainda, a partir de
2016, o governo alemão tem concedido bônus de 4 mil euros para veículos elétricos a bateria e
de 3 mil euros para híbridos plug-in, desde que não sejam modelos com valor venal superior a
60 mil euros (REUTERS, 2016).
Destaca-se que em 19 países europeus as taxas aplicáveis a veículos automóveis são
baseadas nas emissões de dióxido de carbono (CO2), gás que contribui com o aumento das
temperaturas globais (dados do INEE). As taxas são gradativamente menores para veículos que
emitem menos dióxido de carbono (ACEA, 2017).
Assim como os países europeus, os Estados Unidos da América (EUA) também
adotam diversas medidas que visam desonerar o licenciamento e produção dos veículos
elétricos. Merece destaque a medida do ex-presidente estadunidense Barack Obama, que,
através de sua administração, concedeu 2.4 bilhões de dólares de incentivos fiscais para o
desenvolvimento de veículos elétricos e baterias (USA TODAY, 2010). A medida consistiu
em disponibilizar 1.5 bilhões de dólares para fabricantes de automóveis que fossem sediados
nos EUA, para que pudessem produzir baterias e componentes de alta eficiência. Ainda, outros
500 milhões de dólares foram concedidos para a fabricação de motores elétricos e seus
componentes e 400 milhões de dólares investidos em infraestrutura para veículos elétricos, com
a instalação de diversos pontos de recarga, além de capacitação de técnicos para realizar
manutenção nesses automóveis, conforme dados da Iniciativa dos Carros da Califórnia, em
inglês: The California Cars Initiative.
Verifica-se que em diversos países europeus, além dos EUA, o veículo elétrico
encontra-se em constante aumento de vendas, sendo que o governo Federal de cada um desses
países adota medidas efetivas para conceder vantagens àqueles que pretendem comprar um
veículo elétrico. Como já explicitado, as medidas do governo de um país têm caráter essencial
na aceitação dos veículos elétricos, que necessitam da criação de um ambiente tributário
amigável, pelo menos inicialmente, à sua aquisição.
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3. O IPI E SUA FUNÇÃO EXTRAFISCAL APLICADA AOS VEÍCULOS


ELÉTRICOS

O principal direcionamento do presente estudo é a relação das funções do imposto


sobre produtos industrializados, sobretudo no seu aspecto extrafiscal, com a concessão de
benefícios fiscais aos veículos elétricos. Dessa maneira, faz-se necessária a conceituação desse
imposto, formas de estabelecimento da alíquota, princípios e entendimento jurisprudencial de
sua aplicação.

3.1 Conceito de IPI

Atualmente, o Decreto nº 7212/10 regulamenta a cobrança, fiscalização, arrecadação


e administração do imposto sobre produtos industrializados (IPI).
O IPI é um imposto de competência exclusiva da União, que tem como fato gerador
a industrialização de produtos. Este imposto tem função fiscal, ou seja, tem efeito arrecadatório,
mas é consagrado como instrumento de controle da política econômica, em razão sua função
extrafiscal e de suas alíquotas poderem sofrer alteração pelo Poder Executivo. Observa-se que
com essa faculdade de alteração da alíquota, o fisco pode escolher estrategicamente uma área
de desenvolvimento econômico ou social para conceder alíquotas menores ou maiores,
revelando-se assim, a maneira pela qual o imposto dota a União de grande controle na política
econômica nacional.
Dessa maneira, o presente estudo propõe a aplicação da função extrafiscal do IPI, no
controle das emissões dos gases estufa, com o fito de desonerar a produção dos veículos
elétricos pela indústria, consequentemente, beneficiando o meio ambiente e materializando a
sua seletividade em detrimento dos produtos mais nocivos à saúde.

3.2 Fixação da alíquota do IPI

As alíquotas, devem ser dimensionadas de forma a gravar menos produtos essenciais


e mais os produtos supérfluos ou nocivos. As alíquotas do IPI são estabelecidas na Tabela de
Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados, chamada de TIPI (PAULSEN, 2015).
A TIPI identifica os produtos e atribui a eles suas respectivas alíquotas, de acordo com
o critério supramencionado. A tabela tem a faculdade de atribuir alíquota zero, considerando a
essencialidade do produto (PAULSEN, 2015).
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No Capítulo 87 da TIPI de 2017, anexa ao Decreto 8950 de 2016, é tratada a matéria


pertinente aos veículos automotores. Verifica-se que o critério da tributação é o de
deslocamento volumétrico do motor do veículo, sendo que maior tributação incide sobre
veículos com motores capazes de maiores queimas de combustível fóssil. Ainda, da leitura da
TIPI, pode-se observar que as categorias de veículos são ordenadas através de seu código de
nomenclatura comum, que consiste em um sistema harmonizado de designação e de
codificação de mercadorias, chamado de “NCM”. Dessa maneira, além da ordenação pelo
“NCM”, os produtos são categorizados pela sua descrição e tipo, sendo prevista sua respectiva
alíquota do IPI, conforme a seguir:

NCM DESCRIÇÃO ALÍQUOTA (%)

Automóveis de passageiros e outros veículos automóveis


87.03
concebidos para transporte de pessoas [...].

8703.21.00 - De cilindrada não superior a 1.000 cm3 7

De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a 1.500


8703.22 13
cm3

De cilindrada superior a 1.500 cm3, mas não superior a 3.000


8703.23
cm3

Com capacidade de transporte de pessoas sentadas inferior ou


8703.23.10 25
igual a seis, incluindo o motorista

Ex 01 - De cilindrada superior a 1.500 cm³, mas não superior a


13
2.000 cm³

8703.24 - De cilindrada superior a 3.000 cm3

Com capacidade de transporte de pessoas sentadas inferior ou


8703.24.10 25
igual a seis passageiros[...]

Tabela 1 – Alíquotas de IPI em relação a veículos movidos por motor à combustão.


Fonte: BRASIL. 2016.

Observada a tributação dos veículos que se movem por motor de combustão interna,
deve ser colacionada a parte pertinente aos veículos elétricos:

NCM DESCRIÇÃO ALÍQUOTA (%)


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Outros veículos, equipados para propulsão, simultaneamente,


8703.40.00 com um motor de pistão alternativo de ignição por centelha 25
(faísca*) e um motor elétrico [...]

Ex 01 - De cilindrada não superior a 1.000 cm3 7

Ex 02 - De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a


13
2.000 cm

- Outros veículos, equipados para propulsão, simultaneamente,


8703.50.00 com um motor de pistão de ignição por compressão (diesel ou 25
semidiesel) e um motor elétrico [...]

Outros veículos, equipados [...] suscetíveis de serem carregados


8703.60.00 25
por conexão a uma fonte externa de energia elétrica

Ex 01 - De cilindrada não superior a 1.000 cm3 7

Ex 02 - De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a


13
2.000 cm3

Outros veículos, [...]suscetíveis de serem carregados por


8703.70.00 25
conexão a uma fonte externa de energia elétrica

Outros veículos, equipados unicamente com motor elétrico para


8703.80.00 25
propulsão

Tabela 2 – Alíquotas de IPI em relação aos veículos elétricos.


Fonte: BRASIL. 2016.

A partir dos dados das duas tabelas, observa-se que o legislador se utiliza de
metodologia antiga para estabelecer as alíquotas do IPI sobre os veículos. Infere-se que o
veículo elétrico, mesmo quando equipado unicamente por motor elétrico para propulsão, ou
seja, aquele que não tem qualquer emissão de gases poluentes, é sujeito à alíquota máxima
cabível aos veículos movidos por motores à combustão (25%).
As únicas alíquotas menores que 25% previstas na TIPI, são aos veículos híbridos
plug-in que, se equipados com motor à combustão de até 1000cm³ (conhecidos como 1.0) ou
de cilindrada superior a 1000cm³, mas não superior a 2000cm³, terão a mesma alíquota cabível
aos movidos unicamente por motores à combustão interna, respectivamente 7% e 13%. E,
conforme já exposto no primeiro capítulo do presente estudo, nenhum dos veículos atualmente
à disposição do consumidor no Brasil enquadram-se nessa hipótese de menor alíquota.
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Assim, infere-se que os veículos elétricos, que necessitam de menos combustível para
funcionamento e isentam o meio ambiente de poluentes são sujeitos à mesma alíquota de
veículos com cilindrada superior a 3000cm³, a maior aplicável aos veículos de passageiros.

3.3 Função Extrafiscal do IPI e meio ambiente

A função extrafiscal do IPI, tem caráter de atenuar o princípio da legalidade


juntamente com a aplicação do princípio da seletividade inerente a esse tributo, o presente
estudo intenta aplicar esse conhecimento na desoneração da produção dos veículos elétricos.
Ainda, pretende-se a introdução e análise de medidas já efetivadas pelo poder público,
de redução de IPI utilizando-se de sua função extrafiscal e de seu princípio da seletividade.
O meio ambiente atualmente tem sido um dos principais temas em pauta. Por essa
razão a aplicação da função extrafiscal do IPI também encontra fulcro nas melhorias
sustentáveis da sociedade. Ainda, de acordo com Elizabete Rosa de Mello, os benefícios fiscais
podem ser entendidos como instrumentos de educação e de proteção ao meio ambiente
(MELLO, 2014). Acredita-se que os benefícios devem agir como instrumento educativo, que
provoca no contribuinte o desejo de agir não somente em proveito próprio, mas também
baseado na coletividade (MELLO, 2014).
A concessão de benefícios fiscais como as isenções aos veículos elétricos, baseados
nos dados colacionados ao presente estudo revelam-se medidas de grande valor ao meio
ambiente, tendo em vista que o fisco não somente deixa de receber receita, mas incentiva o
desenvolvimento sustentável da nação.
Assim, a função extrafiscal do IPI revela-se como um instrumento adequado para o
Estado intervir na agenda ambiental do país, tendo em vista que o fisco pode se valer do seu
uso para gerenciamento de um determinado setor da economia, como já exposto anteriormente.
Salienta Juliana Vieira de Araújo, que o direito à manutenção do meio ambiente,
através de seu equilíbrio ecológico, encontra previsão expressa no artigo 225, caput,
explicitando que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tendo em
vista que é bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida (ARAUJO, 2014).
O mesmo dispositivo, prevê em seu §1º que incumbe ao Poder Público tomar medidas
de preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais, além de promover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas.
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Assim, com a exposição do tema, quanto maior for possível o número de veículos que
poluem menos, caso dos veículos elétricos, maior será o benefício ao meio ambiente.
Importante ser salientado, que o Poder Público possui a faculdade de alterar as alíquotas do IPI
que incidem sobre os veículos elétricos, com vistas de incentivar suas vendas.
Verifica-se a existência de previsão constitucional que impõe ao Poder Público o
dever de administração, educação e proteção do meio ambiente. Dessa maneira, a aplicação da
função extrafiscal do IPI e do princípio da seletividade poderiam ser objeto de uso para
efetivação dessa incumbência, na medida em que fossem aplicados benefícios fiscais com
objetivo de reduzir a incidência do imposto sobre os veículos elétricos.
É relevante lembrar que o Poder Executivo, em junho de 2008, reduziu o IPI dos
veículos automotores, zerando a alíquota para carros de até mil cilindradas, e reduzindo as
alíquotas para os demais, através do Decreto 6890/09 (TEIXEIRA, 2013).
O Governo tinha o objetivo de conter a crise econômica que assolou o mercado no
início de 2008. Assim, a intenção era de aquecer a economia e manter o Produto Interno Bruto
(PIB) em nível razoável, mantendo parte da receita tributária através da função fiscal do IPI,
tendo em vista que o benefício fiscal foi temporário (BRASIL, 2009).
À época, a indústria automobilística nacional enfrentava quedas de até 40% em sua
produção, gerando desemprego e diminuição do PIB. O Decreto 6890/09 provocou razoável
melhora nos índices econômicos, ainda em 2009, sendo que o Governo decidiu até postergar a
validade das isenções de IPI, em razão da venda de automóveis ter experimentado aumento
significante (TEIXEIRA, 2013).
O que se experimentou foi a aplicação da função extrafiscal do IPI, tendo em vista
que o fisco desejava aquecer a economia, através da concessão de isenção do imposto. Ainda,
observa-se a aplicação do princípio da seletividade, haja vista que segundo Ricardo Lodi
Ribeiro (RIBEIRO, 2013), o referido princípio, além de onerar os produtos nocivos ou
supérfluos e desonerar os essenciais, também pode ser usado como mecanismo que mensura a
capacidade contributiva dos tributos indiretos, considerando o poder aquisitivo do consumidor
final (RIBEIRO, 2013).
A aplicação da extrafiscalidade aqui tratada demonstra a possibilidade de que o fisco
tem de desonerar a tributação dos veículos elétricos. Atualmente, observa-se o desenvolvimento
da falta de sustentabilidade dos automóveis, além do descaso com a preservação ambiental,
razão pela qual cria-se a possibilidade da função extrafiscal do IPI ser invocada como forma de
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auxílio ao meio ambiente, através da concessão de benefícios fiscais ou alteração da alíquota


do referido imposto aplicado aos veículos elétricos.

CONCLUSÃO

Restou demonstrado através do presente estudo a existência do problema na


tributação dos veículos elétricos. Provou-se, através da exibição de tabelas, além de inúmeros
artigos e notícias, que os veículos elétricos são sujeitos às mesmas alíquotas de incidência do
IPI comparado a outros veículos que não trazem os seus benefícios.
A presença dos veículos elétricos é primordial, em tempos que eficiência energética e
redução de poluentes é tema frequente. Ainda, comparando o Brasil a outros países que já
aceitaram o veículo elétrico, percebe-se o abismo existente entre as vendas no exterior e em
território nacional. Demonstrou-se que os governos de muitos países tratam o assunto “veículo
elétrico” com muita seriedade, motivo pelo qual concedem incentivos fiscais para auxiliar na
aceitação e multiplicação desses automóveis pelas ruas.
Além disso, foi esclarecido que o atual método de tributação dos veículos elétricos
tem por base critério antigo, considerando o deslocamento volumétrico de motores, sendo que
atualmente muitos dos carros híbridos enquadram-se em regimes de cobrança do IPI destinados
a tributar veículos verdadeiramente ineficientes energicamente.
O Poder Executivo Federal deverá provocar o Poder Legislativo, por meio de proposta
de lei, para que seja realizada a revisão da TIPI, com a desoneração do IPI aos veículos elétricos,
ou que, ao menos possam as alíquotas serem reduzidas, de forma a incentivar o consumo desses
veículos, prezando o desenvolvimento sustentável do Brasil, na forma de benefícios fiscais.
Por fim, este artigo pretendeu sugerir que, através da analogia da redução do IPI, na
época da crise financeira, utilize o Poder Público sua função extrafiscal, pois a preservação
ambiental é medida necessária de ser efetivada.

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20 abr. 2017.
ICMS ECOLÓGICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF
SIMON, Laura Fonseca
Graduanda em Direito da UFJF
VIDAL, Victor Luna
Graduando em Direito da UFJF

RESUMO

Tendo como supedâneo a busca por um meio ambiente ecologicamente equilibrado, debate-se acerca de
políticas públicas que zelem por tal garantia constitucional. Com fulcro no Federalismo Fiscal, o direito
fundamental a uma Tributação Justa impõe não somente a observância de normas e procedimentos legais
tributários, como também a aplicação da receita arrecadada em prol da população. Sob a égide da
extrafiscalidade tributária ambiental, repisa-se o instituto do ICMS Ecológico, o qual se conceitua como
o critério ou conjunto de critérios ambientais a ser considerado quando do cálculo para repasse relativo
à parcela do ICMS para cada Município, consoante lei de cada Estado da Federação. Destarte, o presente
artigo tem como escopo analisar, detidamente, o instituto do ICMS Ecológico no Estado de Minas
Gerais, bem como discutir sua efetividade no que concerne à proteção ambiental em território mineiro.

Palavras-Chave. ICMS Ecológico. Estado de Minas Gerais. Extrafiscalidade.

ABSTRACT

Having as its goal the search for a balanced environment, this article debates public policies that are
supported by such constitutional guarantees. With a focus on Fiscal Federalism, the fundamental right
to Fair Taxation imposes, not only the observance of norms and legal tax procedures, but also the
application of tax revenue to benefit the population. Under the aegis of environmental tax extrafiscality,
the ICMS Ecological Institute, which is conceptualized as the criterion or set of environmental criteria
to be considered when calculating the transfer of the ICMS installment for each Municipality, according
to the law of each State of the Federation. The purpose of this article is to analyze the ICMS Ecological
Institute in the State of Minas Gerais, as well as to discuss its effectiveness regarding environmental
protection in Minas Gerais.

Keywords. Ecological ICMS. Minas Gerais State. Extrafiscality.

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INTRODUÇÃO

A tributação tem suscitado grandes discussões no contexto contemporâneo. Com


fundamento no direito fundamental a uma Tributação Justa, discute-se a função extrafiscal do
ICMS Ecológico. Com fulcro na tutela ambiental, o presente artigo tem como escopo a análise
da efetividade de tal mecanismo, especificamente aplicável ao Estado de Minas Gerais. Para
tanto, a análise do instituto parte do estudo das novas funcionalidades fiscais, advindas
especialmente da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) Posteriormente, o instituto do
ICMS Ecológico é investigado por meio da previsão da repartição de receitas tributárias,
culminando na crítica à Lei Estadual n.º 18.030/09, marco normativo fundamental no
desenvolvimento do instituto fiscal em Minas Gerais.
Este artigo possui quatro itens: num primeiro momento, investiga-se a mudança
promovida pela extrafiscalidade no panorama jurídico brasileiro e a sua relação com o conceito
de tributação justa. Em sequência, analisa-se o instituto do ICMS Ecológico sob os vieses
histórico e jurídico. Doravante, são propostas reflexões quanto ao desenvolvimento dessa
política ambiental no Estado de Minas Gerais, avaliando a sua efetividade e a sua
compatibilidade com a Constituição. E, por derradeiro, questionam-se possíveis causas da
ineficiência do instituto para alguns dos Municípios mineiros.
A metodologia adotada neste artigo será bibliográfica e crítico dialética, na medida
em que não se aterá apenas a reprodução legislativa, doutrinária e jurisprudencial e, sim, a uma
análise crítica da possibilidade de utilização do ICMS com finalidade extrafiscal.
Desse modo, são estudados os dispositivos da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (CRFB/88) e da Lei 18.030/09 de modo a verificar se esta Lei se coaduna
com o mandamento previsto no artigo 225 da CRFB/88. Ademais, são utilizados dados
estatísticos fornecidos pelo IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- e pela
Fundação João Pinheiro, fundação pública vinculada ao Estado de Minas Gerais. Por meio
destes dados, são comparados aspectos populacionais e econômicos de Municípios de
características diversas, bem como as receitas provenientes do ICMS Ecológico pertinentes a
cada um no ano de 2016 e no mês de janeiro de 2017.
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1. TRIBUTAÇÃO JUSTA E EXTRAFISCALIDADE

Tendo como fundamento a égide do Estado Democrático, modelo de organização


estatal que tem como elemento norteador a defesa dos valores mais caros à sociedade, os
tributos são apresentados não somente como manifestações do poder soberano do Estado, mas
como atividade essencial, isto é, um dever fundamental do cidadão em prol funcionamento da
própria sociedade, com base nos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do
custo/benefício ou da solidariedade (TORRES, 2005).
A partir dessa reflexão, um importante conceito pode ser extraído do estudo do Direito
Público contemporâneo: nota-se que a atividade arrecadatória do Estado corresponde a um
mecanismo intrínseco à realização de serviços públicos e, conforme JUSTEN FILHO (2014),
à promoção dos direitos humanos.
Hodiernamente, destaca-se a Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988
(BRASIL, 1988), sobretudo em face ao seu art. 3º. A justiça social e o desenvolvimento
nacional são objetivos fundamentais do estado brasileiro. Para tanto, é indiscutível que a
tributação é o meio primordial de financiamento de campanhas públicas para concretização
destes valores.
Nessa perspectiva, a extrafiscalidade revela-se como ferramenta fundamental na
promoção dos interesses coletivos por meio da atividade arrecadatória. Inserida num processo
de inovação da atuação estatal propugnado pela Constituição (BRASIL, 1988), o instituto em
comento corresponde a um mecanismo de fomento do desenvolvimento social e do bem estar
coletivo.
Como forma de atuação, a extrafiscalidade baseia-se na utilização de meios tributários
a fim de fomentar ou inibir condutas perante a população. Nesse contexto, conclui-se que a
função extrafiscal tem como objetivo a interferência no domínio econômico, de modo a buscar
um efeito diverso da simples arrecadação de recursos financeiros (MACHADO, 2016).
A importância deste conceito para a contemporaneidade foi observada por SILVA:

[...] a extrafiscalidade constitui-se na aplicação de um modelo jurídico-tributário para


a consecução de objetivos que preponderam sobre os fins simplesmente
arrecadatórios de recursos financeiros para o Estado. O valor finalístico da
extrafiscalidade que o legislador incute na lei tributária, portanto, deve atender às
necessidades na condução da economia ou correção de situações sociais indesejadas
ou mesmo possibilidade de fomento a certas atividades ou ramo de atividades de
acordo com os preceitos constitucionais (SILVA, 2007, p. 100).
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De fato, a relevância da discussão atual quanto a tal aspecto fiscal se alicerça na


promoção de direitos preponderantemente coletivos, de forma a conferir um patamar mínimo
de cidadania aos indivíduos por meio da tutela do interesse público. Hodiernamente, esse
conceito se consubstancia, conforme JUSTEN FILHO (2014), na promoção dos valores
constitucionais.
Nessa esteira, Regina Helena Costa sustenta a importância da função supracitada ao
caracterizá-la como consistente “no emprego de instrumentos tributários para o atingimento de
finalidades não arrecadatórias, mas, sim, incentivadoras ou inibitórias de comportamentos, com
vista à realização de outros valores, constitucionalmente contemplados” (2009, p. 48).
Verifica-se, desse modo, que o seu desenvolvimento legislativo encontra apoio não
somente na necessidade de modernização da atividade administrativa estatal, mas também no
imperativo das sociedades modernas pela efetivação de direitos fundamentais, notadamente,
neste caso, os direitos relativos ao contribuinte.
De fato, a relevância da discussão atual quanto a tal aspecto fiscal se alicerça na
promoção de direitos preponderantemente coletivos, de forma a conferir um patamar mínimo
de cidadania aos indivíduos por meio da tutela do interesse público. Hodiernamente, esse
conceito se consubstancia, conforme JUSTEN FILHO (2014), na promoção dos valores
constitucionais.
Neste contexto, a extrafiscalidade tributária torna-se elemento indispensável à noção
de Tributação Justa, visto que permite a arrecadação dos recursos públicos de forma equilibrada
e voltada ao interesse público. Realçando a perspectiva democrática atualmente em vigor, o
conceito analisado traduz-se na composição de um conjunto de princípios e institutos que tem
como escopo a defesa do cidadão em face da insaciedade do Estado por aumentar suas
arrecadações.
Segundo MELLO (2013), tal conceito consiste, basicamente, na forma pela qual se
pratica o ato de tributar, isto é, como os entes que dispõem de competência tributária aplicam
as técnicas de tributação, com o escopo de implementar, viabilizar e conjugar a quantidade com
a qualidade dos tributos.
Sobreleva-se, assim, a função extrafiscal dos tributos, em consequência desta
consciência recente em relação a como se aplicar a renda obtida através da arrecadação estatal.
Este direito advém, em síntese, dos valores constitucionais consagrados pela Carta Magna de
1988, notadamente a dignidade da pessoa humana.
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2. O ICMS ECOLÓGICO

Em sede do Federalismo Cooperativo, a iniciativa deste instituto legislativo tem como


princípio o incentivo à proteção ambiental, que decorre justamente da distribuição de verbas
entre os entes federativos. Inicialmente instituído no Estado do Paraná, em 1991, esta novidade
legislativa adveio de uma postura compensatória, fulcrada no princípio do protetor recebedor.
Segundo ALTMANN (2013) tal princípio tem como parâmetro a retribuição àqueles
que se empenham na melhoria da qualidade ambiental. Dessa forma, está fundamentado no
sistema de pagamento por serviços ambientais (PSA). Este conceito, por sua vez, abarca a
lógica de prestação de serviços ecossistêmicos, sinalizando, portanto, que a natureza preservada
também fornece benefícios ao homem.
Partindo de tal comportamento compensatório, o ICMS Ecológico corresponde a
critério ou conjunto de critérios ambientais a serem considerados quando do cálculo para
repasse relativo à parcela do ICMS - imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de
comunicação- para cada Município, de acordo com a observância de critérios de proteção
ambiental estabelecidos em Lei Complementar Estadual (REIS, 2011). Concretiza-se, portanto,
uma espécie de sanção premial, de baixo custo operacional, agindo na forma de reeducação
institucional (REIS, 2011).
Por meio da medida em análise, o contribuinte não é onerado frente a tal repasse.
Trata-se, em suma, de uma forma de reorganização da destinação das verbas provenientes do
ICMS, beneficiando os Municípios que priorizam a manutenção de um meio ambiente sadio.
Em um contexto de carga tributária cada vez maior, demonstra-se que a extrafiscalidade
corresponde a um dos alicerces relevantes às novas demandas sociais, sendo um dos reflexos
de uma Tributação Justa.
Nesta perspectiva, torna-se necessária a fundamentação constitucional da medida
legislativa em tela. Disposto no art. 155, inciso II, CRFB/88 (BRASIL, 1988), o ICMS é um
imposto cuja competência é dos Estados e do Distrito Federal, sendo o principal arrecadador
de fundos para os Estados e de suma importância para os Municípios. Tal tributo repercute ao
longo de toda cadeia produtiva, já que acompanha o fluxo da formação de bens e serviços.
Em busca pela efetivação da proteção ambiental, deu-se a ampliação das
características que marcam a extrafiscalidade deste imposto, o que culminou no surgimento do
ICMS Ecológico. Para tanto, o art. 158, inciso IV, CRFB/88 determina que 25% do valor
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arrecadado com o ICMS pertencem aos Municípios. Deste quantum, o parágrafo único do
mesmo artigo define que 75% deste montante serão distribuídos aos Municípios conforme o
critério do Valor Agregado Fiscal e o restante, isto é, 25%, repassados por intermédio de Lei
Complementar Estadual.
Partindo de tal premissa constitucional, o Estado do Paraná em 1991, por meio da
cooperação entre os seus Poderes Executivo e Legislativo e os respectivos Municípios, e diante
de um cenário de manifestos entraves ao desenvolvimento econômico em virtude da
necessidade de manter seus recursos hídricos e florestais em conformidade com a legislação
ambiental, promoveu uma ação conjunta para tentar solucionar, pelo menos em parte, seus
problemas em matéria ambiental, segundo dados fornecidos pelo Instituto Ambiental do Paraná
(PARANÁ, s.d.).
Sob tal égide, o ICMS Ecológico surgiu, consolidando um mecanismo de fomento ao
desenvolvimento sustentável. Por meio da referida iniciativa, a Lei Complementar Estadual nº
59, de 1º de outubro de 1991, foi instituída a política pública em análise, consagrando dois
subcritérios para a redistribuição de recursos: a existência de mananciais de abastecimento, cuja
água se destina ao abastecimento da população de outros Municípios, no valor de 50%
(cinquenta por cento), e de unidades de conservação e de outras reservas naturais similares,
também na razão de 50% (cinquenta por cento), segundo dados do IAD - Instituto Ambiental
do Paraná (PARANÁ, s.d.)
Ao longo do tempo, tal instrumento extrafiscal foi disseminado no território brasileiro,
sendo instalado, ressalvadas as suas peculiaridades, nos Estados de São Paulo, em 1993, Minas
Gerais, em 1995, Rondônia, em 1996, e Rio Grande do Sul, em 1998 (AQUINO, s.d.).
O ICMS Ecológico está em fase de discussão ou implantação nos Estados de Mato
Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia, Goiás, Pernambuco, Pará, Santa Catarina e Ceará,
conforme dados fornecidos pelo LOREIRO (s.d.). Conclui-se que o ICMS Ecológico simboliza
uma alternativa potencialmente eficaz na formulação de políticas públicas dirigidas à
biodiversidade.

3. ICMS ECOLÓGICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

A experiência do ICMS Ecológico em Minas Gerais apresenta peculiaridades que


merecem ser destacadas. Na década de 1990, busca-se promover a desconcentração de renda
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quando da repartição das verbas provenientes do ICMS entre os Municípios mineiros. Para
tentar diminuir a disparidade do produto da arrecadação entre os entes municipais, a Lei nº
12.040 de 28 de dezembro de 1995 adotou critérios de progressividade e gradualidade para o
repasse aos Municípios, de forma a destinar recursos às áreas mais pobres, considerando
segmentos, tais como, população, educação, área cultivada, patrimônio cultural, saúde, meio
ambiente, entre tantas outras searas. Inicialmente, os critérios escolhidos teriam que atender a
certas considerações, como favorecer um grande número de Municípios, com a publicidade de
dados da gestão governamental, assim como estimular o desenvolvimento de atividades, entre
outros. Por seu objetivo ímpar de justiça social, tal preceito normativo ficou conhecido como
“Lei Robin Hood”, consoante dados obtidos do Portal da Fundação João Pinheiro.
Doravante, no ano posterior a promulgação da Lei 12.040, a Lei nº 12.428 de 27 de
dezembro de 1996 modificou as disposições da originária Lei “Robin Hood”, reduzindo o peso
do Valor Agregado Fiscal destinado aos Municípios e, por conseguinte, conferiu valor mais
significativo aos demais critérios, como aqueles relativos a área geográfica, população,
população dos 50 (cinquenta) Municípios mais populosos, educação, saúde, meio ambiente,
patrimônio cultural, produção de alimentos e receita própria. Os critérios supracitados foram
mantidos pela Lei 13.803/00 até o advento da vigente Lei 18.030, a qual foi publicada em 13
de janeiro de 2009, sendo fruto de amplo debate no Poder Legislativo Estadual.
No que se refere aos fins ecológicos do vigente preceito normativo no Estado, a
distribuição da receita de acordo com o critério ambiental corresponde a exatamente 1,1% (um
inteiro e um décimo por cento) de todo o valor arrecadado de ICMS no Estado, nos termos do
art. 1º e do Anexo I, ambos da Lei 18.030/95. A partir deste valor, prevê-se a sua divisão em
três subcritérios: a) tratamento ou disposição final de lixo ou de esgoto sanitário; b) criação e
manutenção de unidades de conservação estaduais, federais, municipais e particulares e áreas
de reserva indígena; c) área de mata seca, vegetação característica da região Norte do Estado,
conforme o art. 4º da Lei 18.030/09. Tais critérios configuram, portanto, o instituto do ICMS
Ecológico em Minas Gerais.
Quanto ao primeiro subcritério acima exposto, destaca-se que este abrange parcela de
45,45% (quarenta e cinco por cento e quarenta e cinco centésimos) do montante destinado aos
Municípios, referindo-se ao tratamento ou disposição final de lixo ou de esgoto sanitário da
população urbana, com fulcro no art. 4º, I da Lei 18.030/09.
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Relativamente ao segundo subcritério, que abrange 45,45% (quarenta e cinco por


cento e quarenta e cinco centésimos) do total do valor do ICMS Ecológico, conforme o art. 4º,
II e o Anexo IV da Lei 18.030/09. Para o cálculo, o índice de Conservação considera a área da
Unidade de Conservação da Natureza e/ou área protegida, a área do município, o fator de
conservação e o fator de qualidade, que varia de 0,1 a 1 (um décimo a um inteiro). O cálculo
dessa categoria envolve os índices de qualidade, pré-definidos pelo COPAM - Conselho
Estadual de Política Ambiental- em sua Deliberação Normativa COPAM n.º 86/05, segundo
dados do Portal da Fundação João Pinheiro.
No que tange ao terceiro subcritério, 9,1% (nove por cento e um décimo) do total são
destinados às áreas de mata seca nos Municípios, de acordo com o art. 4º, III da Lei 18.030/09,
conforme dados fornecidos pelo IEF- Instituto Estadual de Florestas.
No que concerne à distribuição de receitas do ICMS no Estado mineiro, surpreende a
quantidade avassaladora de Municípios que não recebe nenhuma verba relativa aos critérios
ecológicos previstos no artigo 4º da Lei 18.030/09. Tal ocorrência se revela mais incisiva
quando são abordados os Municípios mais populosos do Estado. De acordo com a publicação
de 28 de setembro de 2016 do Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, apenas 340 Municípios
mineiros receberam parcela maior do ICMS em função da boa gestão ambiental de Unidades
de Conservação.
O Município de Juiz de Fora, por exemplo, segundo dados fornecidos pelo IBGE –
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possui 563.769 (quinhentos e sessenta e três mil,
setecentos e noventa e nove) habitantes. Ilustrativamente, no ano de 2016 arrecadou a soma
anual de R$8.840,43 (oito mil, oitocentos e quarenta reais e quarenta e três centavos), renda
esta relativa apenas a um subcritério. Ainda, no mês de janeiro de 2017, recebeu apenas
R$698,83 (seiscentos e noventa e oito reais e oitenta e três centavos) relativos ao mesmo
subcritério ambiental do ano anterior, segundo dados divulgados pela Fundação João Pinheiro.
Neste contexto, nota-se que o Município preenche apenas o subcritério unidade de conservação,
não recebendo nenhuma verba quanto aos demais critérios.
Torna-se, em princípio, preocupante o fato de o Município não receber nenhum valor
acerca dos demais parâmetros, sobretudo no que concerne ao saneamento. Em que pese assumir
posição estratégica no Estado, notadamente em virtude de sua economia, a população
juizforana não tem gozado de políticas que a consagrem como referência no aspecto ambiental,
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em comparação com as demais cidades mineiras, quando do recebimento de verba referente ao


ICMS Ecológico.
Segundo informações extraídas do portal eletrônico da Fundação João Pinheiro,
analisado o Município de Belo Horizonte, constata-se o recebimento do montante de
R$300.060,62 (trezentos mil, sessenta reais e sessenta e dois centavos) relativo ao ano de 2016,
observados os subcritérios saneamento básico e unidade de conservação. Já em janeiro de 2017,
a soma totalizou R$ 25.158,14 (vinte e cinco mil, cento e cinquenta e oito reais e catorze
centavos), valor proveniente dos mesmos subcritérios ambientais do ano anterior, tendo, em
contrapartida, uma população, segundo dados do IBGE referentes ao ano de 2016, de 2.513.451
(dois milhões, quinhentos e treze mil e quatrocentos e cinquenta e um) habitantes.
Torna-se evidente que os valores advindos do critério ambiental do mês de janeiro do
presente ano perpetuam uma média, conforme fixado no ano de 2016, de arrecadação desses
Municípios. Quando se compara tais quantias com outras arrecadadas por entes menores,
destaca-se a participação ínfima de cidades de médio e grande porte com relação à distribuição
do ICMS Ecológico.
Para ilustrar esta assertiva, destaca-se o Município de Cata Altas, situado a 120
quilômetros de Belo Horizonte, que conta com 5.274 (cinco mil duzentos e setenta e quatro)
habitantes, segundo dados do IBGE referentes ao ano de 2016. No ano passado, sua arrecadação
foi de R$ 978.245,67 (novecentos e setenta e oito mil, duzentos e quarenta e cinco reais e
sessenta e sete centavos) quando considerado o repasse do ICMS, consoante extrato da
Fundação João Pinheiro. Recebeu, portanto, valores bastante significativos, quando
comparados com Municípios consideravelmente maiores e de economia mais pujante, como
Juiz de Fora e Belo Horizonte.
Resta claro, portanto, que o propósito da Lei é contemplar Municípios que não detêm
desenvolvimento econômico substancial, necessitando, por consequência, de ajuda financeira
para o custeio administrativo.
Deve-se ressaltar, assim, que o presente estudo não tem como escopo criticar o ideal
de repartição estabelecido no Estado, mas, sim, evidenciar a limitada ou quase inexistente
promoção de campanhas públicas para tutelar o meio ambiente, especialmente pelos
Municípios maiores, vislumbrando-se verdadeiro distanciamento do gestor público dos
preceitos constitucionais de matriz ambiental.
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Com efeito, os dados obtidos nesta pesquisa mostram que os planos de gestão da
maioria dos Municípios apresentam propostas demasiadamente tímidas no que concerne ao
equilíbrio ecológico. Predomina, ainda que de maneira obsoleta, a lógica puramente econômica
da administração pública, não atendendo, desse modo, à pluralidade de carências gestadas no
seio social. Embora o debate econômico seja profícuo, ele não dispensa a adoção de uma
política efetiva dirigida ao desenvolvimento sustentável, conforme preceitua a Constituição
Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Diante deste panorama, torna-se necessária a investigação das possíveis causas
relacionadas à falta de iniciativa dos Municípios, especialmente aqueles de maior expressão
econômica e populacional, quanto à promoção de atividades para a obtenção dos recursos
provenientes do ICMS Ecológico.

4. CAUSAS SOBRE A INEFICIÊNCIA DO ICMS ECOLÓGICO MINEIRO

Em que pese o escopo da Lei, bem como o fato de suas disposições serem louváveis,
em termos práticos, sobrelevam-se algumas considerações críticas. Em princípio, deve-se
registrar que a Lei 18.030/09 dispõe de vocábulos rigorosamente técnicos que impedem a
interpretação pelo leitor que não detém conhecimentos especializados em matéria ambiental.
Nesta toada, explicita-se o conceito dos próprios subcritérios acima citados, como, v. g., os
termos “mata seca”, ou, ainda, “unidade de conservação”, os quais exigem para sua apuração
auxílio técnico.
A hermenêutica do texto legal demanda consultoria especializada sobre o assunto, o
que, na maioria dos Municípios, constitui-se como um verdadeiro obstáculo. Compromete-se,
portanto, o efetivo sentido do instituto legislativo, visto que, como mandamento direcionado à
tutela dos interesses sociais, o instrumento em perspectiva demonstra-se distante dos princípios
da transparência e da universalidade. Resta nítido que um preceito normativo deve ser claro o
suficiente para que o intérprete possa entendê-lo, de forma que se submeta às suas prescrições.
Do contrário, têm-se apenas normas que não são destinadas à população em geral, mas apenas
a uma parte restrita da população que possui conhecimento técnico especializado.
Ademais, enfatiza-se a ausência de dados e de informações acerca da temática, as
quais deveriam ser objeto de divulgação pelos entes públicos. De fato, o Estado de Minas Gerais
foi responsável pela criação de uma Fundação Pública dirigida à divulgação do repasse das
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verbas do ICMS de acordo com a Lei 12.040/09, na tentativa de consolidar o princípio da


publicidade presente no artigo 37 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Tal instituto, representado pela Fundação João Pinheiro, apresenta um portal
eletrônico relativamente claro e coeso - a qual possui como endereço eletrônico
<http://www.fjp.mg.gov.br/>. No entanto, tal assertiva não se verifica quando investigadas as
páginas virtuais dos Municípios. As experiências resultantes desta pesquisa permitiram a
visualização, de um modo geral, de sítios eletrônicos municipais defasados e de prefeituras
ainda pouco sensíveis à necessidade de divulgação de dados acerca de suas receitas.
Ressalta-se, além disso, que alguns entes têm desenvolvido políticas ambientais
preservacionistas. Tais medidas, contudo, ou não se enquadram nos parâmetros estabelecidos
pela Lei para o recebimento do ICMS Ecológico, em virtude da previsão de critérios
demasiadamente rigorosos, ou não são efetivamente contempladas pelo instituto legal,
havendo, portanto, lacunas quanto à sua abrangência.
Destarte, sobressaem dois parâmetros de discussão, quais sejam: a) os critérios legais
não têm um mínimo de pertinência com a realidade dos Municípios mineiros, gerando, dessa
forma, distorções na distribuição dos recursos citados; b) a atuação dos referidos entes ou é
ineficiente ou praticamente inexistente quando se considera a necessidade de observância dos
requisitos legais.
Nesse sentido, destaca-se a central de tratamento de resíduos de Juiz de Fora, a qual
foi inaugurada em 12 de abril de 2010. Muito embora corresponda a uma unidade tratamento
de resíduos moderna e voltada ao desenvolvimento sustentável, tendo como objetivo a adoção
de sistemas de tratamento e destinação final que façam uso de técnicas de engenharia sanitária
e ambiental, estando em conformidade, segundo dados obtidos da Fundação João Pinheiro e do
DEMLURB – Departamento de Limpeza Urbana de Juiz de Fora- com a legislação ambiental,
ela não preenche os requisitos vigentes na Lei 18.030/09. Por conseguinte, nota-se que o
Município de Juiz de Fora recebe uma parcela ínfima do ICMS Ecológico em detrimento dos
seus vultosos investimentos na seara de tratamento de lixo.
Quanto ao segundo argumento, examina-se o fundamento do desinteresse dos poderes
públicos locais quanto à adoção de políticas potencialmente captadoras de verbas. Nota-se que
os centros que recebem altos valores pelo repasse do Valor Agregado Fiscal não desempenham,
em regra, medidas ambientais nos moldes da Lei, visto que consideram que tão somente o
argumento econômico relacionado a tais iniciativas, efetuando, assim, um juízo de custo-
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benefício, que, geralmente, resulta na verificação de que os investimentos não cobrem os gastos
a serem despendidos.
Usualmente, o repasse do ICMS Ecológico não é tão significativo quando cotejado
com os gastos derivados da proteção ambiental. Todavia, em se tratando de tema tão caro à
sociedade contemporânea, seu escopo deve ser visualizado não somente sob o viés
arrecadatório, mas, também, pela urgência da efetivação do direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Desta forma, resta evidente que a análise puramente
econômica atualmente hegemônica se consubstancia em argumento de discutível plausibilidade
ante a força dos princípios constitucionais.
Nessa esteira, constata-se que, embora inicialmente a Lei Robin Hood apresentasse
um viés essencialmente compensatório, atualmente, seu propósito extrapola tais barreiras,
preconizando um bem muito maior, tal seja, a efetivação da disposição constante no artigo 225
da Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988).
Por conseguinte, o estudo da concepção de extrafiscalidade tributária e da necessidade
de se tratar da atividade estatal como promotora dos direitos fundamentais assume posição
capital. A legislação tributária não pode mais se pautar em critérios estritamente econômicos,
sob pena de mitigar todo o arcabouço constitucional proclamado pela Carta Magna de 1988.
Hodiernamente, não se vislumbra mais o ramo tributário como fornecedor apenas de divisas
para o ente estatal. É indubitável o fato de que o interesse público tenha como alicerce a
promoção, especialmente, dos direitos de terceira dimensão, isto é, aqueles de fulcro
metaindividual, tendo em vista a atual égide democrática (MENDES, 2013).
Dessa forma, parte-se da necessidade de refletir quanto à aplicação destes recursos em
prol da população. O cidadão, considerado como sujeito de direitos, torna-se o destinatário do
ideal de Tributação Justa. Por conseguinte, a gestão financeira operada pelos agentes públicos
passa a se relacionar à noção de responsabilidade na aplicação das rendas em benefício da
coletividade.
Neste diapasão, vislumbra-se uma importante discussão acerca de uma das principais
características dos impostos brasileiros, a saber, a não vinculatividade. Não obstante a maioria
da doutrina entenda pela necessidade da espécie tributária dos impostos não ser vinculada,
como assim preconizam o texto constitucional (BRASIL, 1988) e o Código Tributário Nacional
(BRASIL, 1966), deve-se ponderar quanto à compatibilidade desta configuração tributária em
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face do dever do administrador público de concretizar os direitos fundamentais previsto na


Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Não havendo, em regra, restrição quanto à destinação das receitas de impostos, torna-
se possível a valorização de alguns setores em detrimento de outros, impedindo, portanto, que
os valores consagrados constitucionalmente sejam atendidos de forma equânime. Assim, caso
a receita proveniente de tal espécie tributária fosse vinculada, possivelmente, as políticas
públicas não se baseariam apenas nos planos de governo, já que estas possuiriam caráter
cogente.
A aplicação do valor arrecadado relacionar-se com o fato gerador dos impostos
individualmente considerados, bem como com metas estabelecidas por lei. No que concerne ao
ICMS Ecológico, por exemplo, a verba que cada Município recebesse, a título de repasse deste
imposto em face dos critérios ambientais, deveria ser necessariamente investida na manutenção
e no desenvolvimento de projetos ecológicos. Logo, não haveria lacuna para a arbitrariedade
do gestor público em desenvolver ou não um planejamento ambiental, tendo em vista a
obrigatoriedade da aplicação desta renda. Resta evidente que os gastos contemplados pelo
orçamento público devem ser reanalisados, sobretudo, diante de uma sociedade que convive
diariamente com escândalos referentes à má aplicação do dinheiro público.
Neste contexto, a não observância dos critérios do ICMS Ecológico pode refletir o
descaso que muitos representantes do Poder Executivo têm para com a população. A liberdade
no orçamento público permite, quando mal empregada, o desprezo dos valores elencados no
Texto Constitucional em troca ao atendimento de necessidades efêmeras ou de cunho
eminentemente eleitoreiro. Isto não se deve simplesmente a uma incompetência do gestor
público, como também à forma de elaboração de seu plano de governo, que, a rigor, não
contempla todas as necessidades da comunidade ou não possibilita a realização de um debate
democrático para aclará-las. Questiona-se, assim, se os direitos considerados fundamentais
podem ser menosprezados ou suprimidos, ao passo que deveriam ser cotidianamente
concretizados pelo Estado soberano, tendo em vista o caráter imperativo das normas
constitucionais.
A implementação e o desenvolvimento do ICMS Ecológico correspondem a
elementos de elevado valor no ordenamento jurídico brasileiro, máxime no que tange ao seu
caráter inovador, fundado no princípio do protetor recebedor. Busca-se, em síntese, concretizar
o mandamento constitucional atinente ao direito ao meio ambiente ecologicamente correto.
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CONCLUSÕES

Este artigo analisou a efetividade do ICMS Ecológico, instituto legislativo que


objetiva a proteção ambiental, tendo como fundamento a extrafiscalidade. Para tanto, foram
estudadas as peculiaridades do instituto no Estado de Minas Gerais.
Críticas foram realizadas em relação à efetividade do ICMS Ecológico do Estado de
Minas Gerais, observados os repasses de três Municípios mineiros. Num primeiro momento,
constatou-se que uma das dificuldades advindas do instituto neste Estado decorre da imprecisão
ou da excessiva tecnicidade dos seus termos, impedindo ou dificultando a interpretação legal.
Posteriormente, reconheceu-se que uma das dificuldades se vincula à falta de
informações disponíveis acerca da temática nos endereços eletrônicos dos Municípios, embora
o site da Fundação João Pinheiro, vinculado ao Estado de Minas Gerais, apresente conteúdo
satisfatório.
Em sequência, foram identificados dois problemas relacionados aos critérios
redistributivos mineiros: ausência de um mínimo de pertinência com a realidade dos
Municípios, gerando, distorções na distribuição dos recursos citados; atuação ineficiente dos
gestores públicos ou não observância dos requisitos legais pelos mesmos.
Ademais, notou-se que a análise sob um viés puramente econômico por parte dos
gestores públicos, tendo em vista a desproporção entre investimentos públicos e
contraprestações por parte do repasse de ICMS, conduz a um cenário pouco estimulante à
realização de novos projetos ambientais.
Em que pese o instituto legal ter se pautado, originalmente, em um escopo
compensatório, hodiernamente, preconiza-se que os investimentos em políticas públicas
ambientais devem ser consolidados com fulcro nos valores constitucionais.
Por fim, tratou-se da discussão acerca da não vinculação dos impostos. Nesta esteira,
vislumbrou-se que a liberdade na aplicação do orçamento público culminou em supressão de
certos direitos fundamentais, haja vista que os planos de governo não conseguem abranger a
totalidade dos direitos elencados na Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988.
Sugere-se que as receitas advindas dos impostos devem considerar seus fatos
geradores, bem como metas estabelecidas por lei. No que concerne ao ICMS Ecológico, nota-
se que os valores advindos dos critérios ambientais quando do repasse deste imposto deveriam
ser, obrigatoriamente, reinvestidos em projetos ambientais, de forma a contribuir para um meio
ambiente sustentável.
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O EFEITO CONFISCATÓRIO DAS MULTAS
NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS
E JUDICIAIS TRIBUTÁRIOS

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Juiz de Fora
CASTRO, Isabela Lobo Monteiro de
Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora
VILELA, Débora Carolina de Oliveira
Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

O objetivo do presente trabalho é analisar e descrever os principais aspectos relacionados às multas


tributárias aplicadas nos processos administrativos e judiciais brasileiros e como adquirem caráter
confiscatório. Foi realizado um estudo sobre a indeterminação do quantum que pode ser considerado
exacerbado ao ponto de comprometer a renda e o patrimônio do contribuinte, de forma a ultrapassar os
seus limites de capacidade contributiva, bem como infringir o artigo 150, inciso IV, da Constituição
Brasileira de 1988 que veda o confisco.
Além disso, analisou-se a jurisprudência do STF em relação à porcentagem aplicada aos diversos tipos
de multas tributárias e propôs uma forma de aplicar tais multas de maneira justa e coadunada com os
direitos fundamentais.

Palavras-chave. Multas tributárias, Efeito Confiscatório, Processo Tributário.

ABSTRACT

The main goal of this article is to analyze and describe the aspects of capital importance regarding tax
fines in Brazilian courts and how they acquire a confiscatory character. Research has been carried out
to investigate the quantum that can be considered exaggerated to the point of compromising the incomes
and the assets of taxpayers, in a way that surpasses their capacity to contribute, as well as violating
article 150, subsection IV of the 1988 Brazilian Federal Constitution, that forbids confiscation.
Furthermore, court precedent from the STF (Federal Supreme Court) has been examined relating to the
percentage applied to different kinds of taxation fines and, finally a just method of imposing fines,
according to the fundamental right to fair taxation, following the principles of reasonableness and
proportionality, is proposed.

Keywords. Tax fines, Confiscatory effect, Tax Procedure.

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INTRODUÇÃO

No âmbito dos processos judiciais tributários, questão que chama atenção de juristas
e contribuintes é o exorbitante valor das multas cobradas pelo Fisco. Nota-se dívidas
aumentarem em demasiado, em alguns casos dobrando ou até mesmo triplicando e chegando a
valores absurdos.
Alguns julgados com valores de multas muito altos já foram declarados
inconstitucionais. Há décadas o STF vem avaliando a proporcionalidade das “multas
tributárias” com o intuito de alcançar a conformação entre a gravidade da conduta do devedor
inadimplente e o percentual de penalidade imposto. Todavia, ainda não houve consenso de qual
seria o limite máximo aceitável e nem mesmo qual seria o critério utilizado para cálculo de tais
sanções. Assim, o Direito Fundamental a uma Tributação Justa mostra-se por muitas vezes,
violado.
A Constituição Brasileira de 1988 (BRASIL, 1988), pautada em valores democráticos
e sociais traz em seu artigo 150, inciso IV, a proibição de que o tributo seja utilizado como
forma de confisco por parte do ente público. A cobrança exorbitante de multas no âmbito
tributário se configura, então, como enriquecimento ilícito do Estado. Nesse sentido, Rui
Barbosa Nogueira e Paulo Roberto Cabral Nogueira lecionam que “a transferência para o Fisco
do total ou de parte do patrimônio do particular sem base legal constitui a figura que se dá o
nomem juris de confisco” (BARBOSA NOGUEIRA, CABRAL NOGUEIRA, p.150).
Assim, este artigo analisa como as multas adquirem no processo judicial tributário
caráter confiscatório e delimita através da análise jurisprudencial e doutrinária parâmetros
máximos de cobranças das diferentes espécies de multas tributárias. Para tal, a estrutura do
trabalho se dividirá em quatro itens. No primeiro item serão analisadas as espécies de multas
tributárias, bem como a natureza jurídica de cada uma delas. O segundo item terá como foco o
efeito confiscatório das multas tributárias. No terceiro item será trabalhado o entendimento
jurisprudencial e o entendimento doutrinário do conceito de multa confiscatória, onde serão
analisadas jurisprudências do sistema judiciário brasileiro. Por fim, o último item trará uma
nova proposta para que as multas tributárias não adquiram caráter confiscatório.
Quanto à metodologia, este artigo não se baseará apenas em reprodução doutrinária e
jurisprudencial, mas também à análise bibliográfica e crítico dialética acerca do caráter
confiscatório das multas no processo judicial tributário.
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1. AS ESPÉCIES DE MULTAS TRIBUTÁRIAS

A análise do efeito confiscatório das multas passa, obrigatoriamente, pela


diferenciação em espécies. O Direito Tributário Brasileiro tende a classificar as multas em duas
espécies: moratórias e punitivas. As duas têm naturezas diferentes e, por tal, devem ser tratadas
de maneiras distintas.
A multa moratória é aquela advinda do atraso no pagamento do tributo pelo
contribuinte. Ela onera o atraso no cumprimento da obrigação principal da regra-matriz de
incidência tributária, o que configura infração já que conforme o artigo 113, §1º do CTN o
pagamento do tributo deverá ser realizado na forma, no prazo e nas condições estabelecidas em
lei. (MELLO, 2013, p. 85). A Lei nº 9.430, DOU de 30/12/96, assim determina:

Art. 61. Os débitos para com a União, decorrentes de tributos e contribuições


administrados pela Secretaria da Receita Federal, cujos fatos geradores ocorrerem a
partir de 1º de janeiro de 1997, não pagos nos prazos previstos na legislação
específica, serão acrescidos de multa de mora, calculada à taxa de trinta e três
centésimos por cento, por dia de atraso (grifo nosso).

Com relação à natureza jurídica da multa moratória, adota-se aqui a teoria de que tem
natureza civil, de caráter indenizatório, já que seu principal objetivo é compensar o fisco pela
intempestividade no pagamento do tributo, ou seja reparar o dano, se assemelhando muito à
multa contratual no sentido de buscar restabelecer o equilíbrio patrimonial antes prejudicado.
É justamente por sua natureza diverso que a multa moratória merece tratamento distinto da
multa punitiva, com valores máximos mais baixos (MELLO, 2013, p. 99).
A multa punitiva, por sua vez, é aquela cobrada pela Fazenda Pública em virtude de
ato ilícito por parte do contribuinte. Tem como gênese o descumprimento de obrigação
tributária acessória, determinada no artigo 113 do Código Tributário Nacional.
Quanto à natureza da multa punitiva, distintamente da multa moratória, tem natureza
tributária. Seu principal objetivo é punir o contribuinte pelo erro ou não cumprimento da
obrigação e coibi-lo a não mais praticar o ilícito. Todavia, por mais que a multa punitiva admita
tal caráter é necessário que se mantenha os limites da proporcionalidade, razoabilidade e
vedação ao confisco na estipulação de seus parâmetros de cálculo (MELLO, 2013, p. 91).
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2. EFEITO CONFISCATÓRIO DAS MULTAS

A Constituição Federal de 1998 em seu art. 150, inciso IV proibiu a utilização do


tributo “com efeito de confisco”. Desta forma, em matéria tributária podemos classificar o
tributo confiscatório como aquele que sua exigência tributária importe na absorção de parcela
significativa do patrimônio ou da renda do individuo. Nesse sentido, sustenta o Ministro Ilmar
Galvão no ADI 551/RJ, que “a desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua
consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o
patrimônio do contribuinte” (ADI 551/RJ, p.42) e sendo contrária ao disposto na Constituição
Federal (BRASIL, 1988).
A tributação não pode ter como efeito o de impedir o exercício de atividades lícitas
pelo contribuinte e nem comprometer o seu direito a uma vida digna, por isso, a aplicação do
princípio da vedação ao efeito confiscatório prima pela razoabilidade e proporcionalidade da
carga tributária.
No que se refere à razoabilidade e a proporcionalidade da carga tributária, deve-se
considerar que tais princípios são primordiais para que possa utilizar um fundamento adequado
ao se estabelecer as multas tributárias, sendo vedado ao legislador aplicar multas
desproporcionais, que acabam por afetar os direitos fundamentais assegurados
constitucionalmente. Percebe-se assim, uma nítida relação entre os princípios da razoabilidade
e proporcionalidade com a vedação da utilização de tributos com efeito confiscatório. Segundo
Sacha Calmon Navarro Coelho :

[...] o princípio do não-confisco tem sido utilizado também para fixar padrões ou
patamares de tributação tidos por suportáveis, de acordo com a cultura e as condições
de cada povo em particular, ao sabor das conjunturas mais ou menos adversas que
estejam se passando. Neste sentido, o princípio do não-confisco nos parece mais
como um princípio de razoabilidade na tributação (grifo do autor), (COELHO, 1988,
p.257).

Observa-se que o princípio do não confisco possui um conteúdo indeterminado,


motivo pelo qual deve haver verificações, em cada caso concreto, para averiguar o quanto
invasivo foi o encargo para o contribuinte. Guilherme Cezarotti defende o posicionamento
adotado por grande parte da jurisprudência:

Não só a vedação ao confisco, mas também os princípio da proporcionalidade e da


razoabilidade devem ser aplicados no exame das multas.[...] O contribuinte que
constitui o crédito tributário mediante a apresentação das declarações necessárias,
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mas deixa de recolhê-lo por qualquer razão, deve ser sancionado de forma moderada,
porque cumpriu suas obrigações acessórias regularmente. Diferente é a situação o
contribuinte que é autuado pela fiscalização tributária porque deixou de constituir
alguma obrigação tributária, situação em que poderia ser beneficiado pela ocorrência
da decadência. Neste caso específico, deve ser levado em consideração, na hora da
fixação da multa, que o benefício econômico deste contribuinte seria de 100% do
valor do tributo (CEZAROTTI, Guilherme. Aplicação de multa pelo
descumprimento de obrigações acessórias. Razoabilidade e proporcionalidade em
sua aplicação (RDDT nº 148, jan/2008).

Nesse sentido, o próximo item abordará o entendimento adotado pelo STF em relação
aos percentuais aplicados às multas confiscatórias.

3. JURISPRUDÊNCIA DO STF ACERCA DAS MULTAS CONFISCATÓRIAS

Tendo como fundamento a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), o


Supremo Tribunal Federal na ADI (Ação Direta de Constitucionalidade) n551-1/RJ declarou a
inconstitucionalidade dos §§ 2º e 3º do art. 57 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que determinava que as multas
consequentes do não recolhimento de impostos e taxas não poderiam ser inferiores a duas vezes
o seu valor e as decorrentes de sonegação não poderiam ser fixadas em menos de cinco vezes
o valor do tributo (ADI.551-1/RJ, p.40, 2008).
Segundo o Relator Ilmar Galvão a atividade estatal não pode ser onerosa, afetando a
propriedade do contribuinte e confiscando-a a título de tributação:

[...] desse modo, o valor mínimo de duas vezes o valor do tributo como consequência
do não recolhimento apresenta-se desproporcional, atentando contra o patrimônio do
contribuinte, em evidente efeito de confisco. Igual desproporção constata-se na
hipótese de sonegação, na qual a multa não pode ser inferior a cinco vezes o valor da
taxa ou imposto, afetando ainda mais o patrimônio do contribuinte.

Num momento posterior, o STF analisando a ADIn 1.075-DF admitiu a


caracterização do efeito confiscatório da multa disposta no art. 3º e parágrafo único, da Lei nº
8.846/1994. Já que previa a incidência do percentual de 300%, devido à falta de emissão de
documento fiscal, sobre o valor da operação ou do serviço prestado (ADIn 1075-DF,
p.162,1998).
No julgamento do AgRg no RExt 833.106/GO, referente a cobrança de multa
tributária, prevista em lei estadual, no percentual de 120% do valor da obrigação principal. O
tribunal de origem defendeu pela não inconstitucionalidade da previsão legal de penalidade
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pecuniária em patamar superior ao valor do próprio tributo, segundo o mesmo, não está presente
caráter confiscatório da sanção neste caso. Porém, o STF, assentou a inconstitucionalidade da
cobrança de multa tributária em percentual superior a 100% e determinou a exclusão da
penalidade excedente (AgRg no RExt 833.106/GO, p.2-4, 2014).

TRIBUTÁRIO – MULTA – VALOR SUPERIOR AO DO TRIBUTO –


CONFISCO – ARTIGO 150, INCISO IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. Surge
inconstitucional multa cujo valor é superior ao do tributo devido. Precedentes: Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 551/RJ – Pleno, relator ministro Ilmar Galvão – e
Recurso Extraordinário nº 582.461/SP – Pleno, relator ministro Gilmar Mendes,
Repercussão Geral.

Verifica-se, que as decisões do STF e de outros órgãos, não abrangem todos os casos
de multas fiscais e diante da ausência de definição constitucional do que seria confisco em
matéria tributária, cabe aos tribunais analisarem os excessos praticados, com observância dos
princípios já mencionados, quais sejam o da proporcionalidade e razoabilidade.
Ainda, no Recurso Extraordinário nº 582.461/SP o plenário do STF, decidiu pela
legitimidade da utilização da taxa SELIC como índice de atualização dos débitos tributários
pagos em atraso, bem como pelo caráter não confiscatório da multa em patamar de até 20%:

Multa moratória. Patamar de 20%. Razoabilidade. Inexistência de efeito


confiscatório. Precedentes. A aplicação da multa moratória tem o objetivo de
sancionar o contribuinte que não cumpre suas obrigações tributárias, prestigiando a
conduta daqueles que pagam em dia seus tributos aos cofres públicos. Assim, para
que a multa moratória cumpra sua função de desencorajar a elisão fiscal, de um lado
não pode ser pífia, mas, de outro, não pode ter um importe que lhe confira
característica confiscatória, inviabilizando inclusive o recolhimento de futuros
tributos. O acórdão recorrido encontra amparo na jurisprudência desta Suprema
Corte, segundo a qual não é confiscatória a multa moratória no importe de 20% (vinte
por cento) (RE 582.461/SP, 2011).

Tais posicionamentos reafirmam a desproporção entre as multas aplicadas ao crédito


tributário e aquelas aplicadas em outros ramos do direito (MELLO, 2013, p.79). Nas relações
privadas, por exemplo, na maioria das vezes, fixa-se multa moratória no percentual de 10%
sobre o valor da obrigação. Já na cobrança do crédito tributário, os percentuais arbitrados para
tais multas são superiores que 10% sobre o valor do tributo devido pelo descumprimento da
obrigação tributária principal.
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4. PROPOSTA DE MULTAS TRIBUTÁRIAS SEM CARÁTER


CONFISCATÓRIO

Após a análise das espécies de multas tributárias bem como do caráter confiscatório
que adquirem nos processos judiciais e administrativos cabe a formulação de proposta de
parâmetro para estipulação de multas em consonância com os princípios da proporcionalidade
e do não-confisco, com o intuito de garantir tanto a justiça tributária quanto a tributação justa.
Com relação às multas moratórias, por sua natureza civil parece razoável a fixação de
padrão máximo de 10% do valor do tributo. Conforme já fora mencionado, se nas relações de
direito privado esse é o percentual fixado, não se mostra razoável que sobre o crédito tributário
incida multas em percentual maior que esse pela mora no cumprimento da obrigação tributária
(MELLO, 2013).
Todavia, questão controvérsia no Direito Brasileiro é o parâmetro máximo de
cobrança da multa punitiva no processo judicial e administrativo tributário. Conforme já fora
analisado no item 3 deste artigo, essa espécie de multa ganha por muitas vezes caráter
confiscatório e atinge valores altíssimos e desarrazoados.
Com o intuito de estabelecer um parâmetro de cálculo para tais multas a tabela a seguir
traz uma proposta de adequação entre o ilícito praticado pelo contribuinte e a porcentagem de
multa punitiva que lhe será imposta:

Porcentagem da
Infração tributária
multa punitiva

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação tributária


acessória que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a 1% (Um por cento).
R$10.000,00 (Dez mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


5% (Cinco por
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a
cento).
R$50.000,00 (Cinquenta mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


10% (Dez por
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a
cento).
R$100.000,00 (Cem mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


15% (Quinze por
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a
cento).
R$500.000 (Quinhentos mil reais).
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Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


20% (Vinte por
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a
cento).
R$1.000.000 (Um milhão de reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


25% (Vinte e cinco
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja superior a R$
por cento).
1.000.000,00 (Um milhão de reais).

Tabela elaborada pelas autoras deste artigo.

Para exemplificar a aplicação dessa proposta a tabela a seguir traz alguns exemplos
hipotéticos de impostos descumpridos e das respectivas multas:

Valor da multa
Infração tributária
punitiva

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação


acessória que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$ R$20,00 (Vinte reais).
2.000,00 (Dois mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação


R$2.000,00 (Dois mil
acessória que acarrete em não pagamento de tributo no valor de
reais).
R$40.000,00 (Quarenta mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação


R$ 8.000,00 (Oito mil
acessória que acarrete em não pagamento de tributo no valor de
reais).
R$80.000,00 (Oitenta mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação R$ 45.000,00


acessória que acarrete em não pagamento de tributo no valor de (Quarenta e cinco mil
R$300.000,00 (Trezentos mil reais). reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação


R$ 140.000,00 (Cento
acessória que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$
e quarenta mil reais).
700.000,00 (Setecentos mil reais) .

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação


R$ 300.000,00
acessória que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$
(Trezentos mil reais).
1.200.000,00 (Um milhão e duzentos mil reais).

Tabela elaborada pelas autoras deste artigo.

A proposta foi trazer um percentual que aumente de acordo com o valor do tributo
que deixou de ser pago em virtude do descumprimento ou cumprimento parcial de uma
obrigação tributária acessória. Assim, à medida que aumenta o valor do tributo também
aumenta a percentual de multa punitiva que será imposta ao contribuinte.
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A proposta foi trazer um percentual que aumente de acordo com o valor do tributo
que deixou de ser pago em virtude do descumprimento ou cumprimento parcial de uma
obrigação tributária acessória. Assim, à medida que aumenta o valor do tributo também
aumenta a percentual de multa punitiva que será imposta ao contribuinte.
A tributação justa exige que o parâmetro de aplicação tanto de tributos quanto de
multas leve em consideração a realidade social do país. Desta forma, é importante analisar que
as multas que incidem sobre valores abaixo de R$ 10.000,00 (Dez mil reais), por exemplo, são
aquelas que na grande maioria das vezes serão cobradas do contribuinte comum e dos pequenos
empresários. As multas com altos valores, como aquelas que incidem sobre tributos superiores
a R$ 1.000.000, são muitas vezes cobradas de grandes empresas, que decidem praticar o ilícito
com o claro conhecimento do descumprimento da lei. Assim, o objetivo da proposta é evitar
que o contribuinte comum seja punido da mesma forma que as grandes empresas e os grandes
devedores, mas ainda assim evitando que em qualquer dos casos a multa tributária adquira
caráter confiscatório.
Neste interim, é importante distinguir dois termos frequentemente usados pela
doutrina e jurisprudência, quais sejam a tributação justa e justiça tributária. A primeira, diz
respeito à criação e majoração dos tributos. Já a segunda, relaciona-se à justiça dentro dos
processos judiciais e administrativos tributários sendo a efetiva aplicação do direito nos
diversos casos (MELLO, 2013), o que se faz imprescindível na concretude dos princípios
democráticos tratados nos itens anteriores.

CONCLUSÕES

Foram analisadas neste artigo as espécies de multas tributárias, bem como a


jurisprudência acerca da aplicação de diversos percentuais aplicados às multas tributárias nos
processos administrativos e judiciais. Observou-se que a falta de determinação do quantum
razoável para ser aplicado nas multas tributárias acaba gerando valores exacerbados, que
comprometem a renda e o patrimônio de muitos contribuintes. Além disso, observa-se que as
decisões judiciais relacionadas ao tema não abrangem todos os casos de multas fiscais o que
permite a aplicação de percentuais altíssimos que excedem em muito o valor do tributo devido.
Tais valores excessivos não estão de acordo com os princípios basilares do Estado
Democrático de Direito, visto que a tributação não pode ser utilizada como meio de impedir o
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contribuinte de exercer atividades, nem tão pouco afetar seu direito a uma vida digna. Nesse
sentido, destaca-se a importância da aplicação das multas em harmonia com os princípios da
proporcionalidade, razoabilidade e do não-confisco, que além de garantir a justiça tributária ,
permitem uma tributação justa.
Com o fim de garantir tais princípios, foi proposto nesse artigo um novo parâmetro
para estipulação do valor de multas punitivas, no sentido de evitar que as multas tributárias
aplicadas nos processos administrativos e judiciais possuam efeito confiscatório, em
discordância com a Constituição Federal de 1988.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172.htm>. Acesso em: 28 set. 2017.

________. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 27 set. 2017.

_______. Lei nº 9430. Promulgada em 27 de dezembro de 1996. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9430.htm>. Acesso em: 28 set. 2017.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 7. ed. Rio de Janeiro:
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NOGUEIRA, Ruy Barbosa; NOGUEIRA, Paulo Roberto Cabral. Direito tributário aplicado e comparado. Rio de
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . Recurso Extraordinário n. 582.461 SP. Relator Min. Gilmar Mendes.
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ISSN 2236-9651, n. 7

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TORRES, Ricardo Lobo. O Conceito Constitucional de Tributo. In: TORRES, Heleno (Coord.). Teoria Geral da
Obrigação Tributária. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros,
2005.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Grupo de Trabalho 03

MERCADO DE TRABALHO,
CAMPO PROFISSIONAL
E MEDIAÇÃO
DISPUTAS PROFISSIONAIS
NA INTRODUÇÃO DA MEDIAÇÃO
NO NÚCLEO DO IDOSO E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
DE FORTALEZA. (MINISTÉRIO PÚBLICO DO CEARÁ)

ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende


Professor Titular de Teoria do Direito doDepartamento de Direito Público,
do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)
ALCÂNTARA, Alexandre de Oliveira
Estudante de doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

O presente artigo propõe expor reflexões sobre o processo de criação do núcleo de mediação no Núcleo
do idoso e da pessoa com deficiência de Fortaleza (CE) e seu contexto de disputas profissionais. A
proposta é discutir o tema da mediação a partir da sociologia das profissões, dialogando com documentos
institucionais e dados empíricos coletados no âmbito dessa unidade do ministério público cearense no
período de 2013-2016. A proposta metodológica do trabalho é uma compreensão interdisciplinar para
pensar o instituto da mediação em um ambiente de competição profissional. São identificados conflitos
intra e interprofissionais no contexto de reformas no núcleo do idoso e da pessoa com deficiência no
momento de discussão e aprovação do núcleo de mediação. As disputas ocorrem entre os promotores de
justiça da unidade e percebe-se um ceticismo por parte de alguns promotores na adoção da mediação, e
indícios de uma tensão conflituosa entre ministério público e defensoria pública.

Palavras-chave. Ministério Público; mediação; Sociologia das Profissões.

ABSTRACT

This article proposes to present reflections on the process of creation of the nucleus of mediation in the
nucleus of the elderly and the person with disabilities in Fortaleza (CE) and its context of professional
disputes. The proposal is to discuss the topic of mediation from the sociology of the professions,
dialoguing with institutional documents and empirical data collected within the scope of this unit of the
public ministry of Ceará in the period 2013-2016. The methodological proposal of the work is an
interdisciplinary understanding to think the institute of mediation in an environment of professional
competition. Intra and interprofessional conflicts are identified in the context of reforms in the nucleus
of the elderly and the person with disability at the moment of discussion and approval of the mediation
nucleus. Disputes occur among the unit's prosecutors and there is skepticism on the part of some
promoters in the adoption of mediation, and indications of a conflicting tension between public
prosecutors and public defenders.

Keywords. Public Prosecutor; mediation; Sociology of Professions.

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INTRODUÇÃO: A DEMANDA POR DIREITOS SOCIAIS DA VELHICE E DAS


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

O tema do 7º Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito (S&D 7) é “Cem


anos de transformações sociais: a revolução de outubro de 1917 e seu impacto no mundo
contemporâneo”. Nesse século, o mundo viveu uma transformação demográfica sem
precedentes na História. Falemos um pouco do envelhecimento da população e de suas
repercussões no sistema de justiça. Segundo o IBGE1 e as Nações Unidas2, na década de vinte,
o Brasil contava com uma população de 30, 6 milhões de pessoas enquanto o planeta contava
com 1,8 bilhão de pessoas. Em 2017 esses contingentes populacionais passaram param para
207,7 milhões e 7,5 bilhão, respectivamente.
O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial, e no Brasil, a população
idosa é o grupo que apresenta as taxas mais elevadas de crescimento (CAMARANO, 2005,
2016, páginas 2-4 e 479-515). A taxa de fecundidade do país caiu de 6,16 filhos por mulher
para apenas 1,57 filhos em pouco mais de sete décadas – de 1940 para 2014. Em contrapartida,
a expectativa de vida da população aumentou 41,7 anos em pouco mais de um século. Em
1900, a expectativa de vida era de 33,7 anos, dando um salto significativo em pouco mais de
11 décadas, atingindo 75,4 anos em 20143.
Diante de tal realidade, o Estado brasileiro enfrenta graves dificuldades para atender
a demanda de polícias públicas desse segmento populacional, principalmente nos setores
previdenciário, de saúde, assistência social, segurança pública, habitação e lazer.
As Assembleias das Nações Unidas sobre o envelhecimento (1982 e 2002) foram
fundamentais para influenciar as legislações de vários países, inclusive o Brasil. Nessas
assembleias, foram elaborados planos de ação internacional para o envelhecimento, e as nações
se comprometeram a tomar uma série de medidas em defesa desse segmento populacional.
Estudos do IBGE (2012) demonstram o rápido crescimento do segmento populacional acima
de 65 anos no Brasil que em 2060 representará 26,7% da população. No início da década de
2010, o país contava com 23, 5 milhões de pessoas maiores de 60 anos.

1 Fonte: de 1920 a 2010: IBGE – Disponível em https://memoria.ibge.gov.br/sinteses-historicas/historicos-dos-censos/censos-


demograficos.html acessado em 13.09.2017.
2 Para o mundo: Fonte: de 1920 a 1940: ONU- Disponível em:
http://www.un.org/esa/population/publications/wpp2002/WPP2002_VOL_3.pdf acessado em 13.09.2017 de 1950 a 2017,
ONU- Disponível em http://www.un.org/en/development/desa/population/ acessado em 13.09.2017.
3 Brasil: uma visão geográfica e ambiental do início do século XXI (IBGE). Disponível em
https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?id=297884&view=detalhes acessado em 13.09.2017.
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No plano legislativo, a Constituição de 1988 inovou ao exigir a efetiva proteção, por


parte do Estado, da sociedade e da família, à pessoa idosa (art.230, C.F.) A velhice digna é um
direito humano fundamental, porque expressão do direito à vida com dignidade. Em termos
infraconstitucionais a Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso representam as principais
leis ordinárias de proteção da pessoa idosa. Ocorre que transcorridos quase três décadas da
redemocratização do país e de todo esse labor legislativo pró-idoso4 as políticas públicas para
o envelhecimento ainda não foram efetivadas de modo satisfatório.
Até o presente, embora a Constituição Federal, a PNI e o EI delimitem as
corresponsabilidades do amparo à pessoa idosa vulnerável entre a família, a sociedade e o
Estado, na prática, a primeira tem assumido o encargo de cuidar de seus idosos. Desse modo,
uma cuidadosa leitura dessas leis demonstra o quanto o Estado brasileiro é devedor para com
esse segmento populacional. O não atendimento dessas demandas por políticas públicas gera
uma demanda por direitos sociais perante o sistema de justiça, sendo o ministério público um
dos atores responsáveis pela efetivação desses direitos (art.74, I do E.I).
No tocante às pessoas com deficiência, a situação social não se mostra diferente, posto
que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que 6,2%
da população brasileira tem algum tipo de deficiência. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)
considerou quatro tipos de deficiências: auditiva, visual, física e intelectual. 5 Segundo o IBGE,
a população cearense com alguma deficiência chega a número superior de dois milhões de
pessoas6. O Estado brasileiro é signatário de diversas convenções, dentre as quais a Convenção
da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi homologada pela Assembleia
da ONU, em 13 de dezembro de 2006, e entrou em vigência em 3 de maio de 2008, após
ultrapassar o mínimo de vinte ratificações. A promulgação desse documento pelo Decreto n.º
6.949, de 25 de agosto de 2009, ganhou importância por ter sido a primeira convenção
internacional com equivalência de emenda à constituição, por força do artigo 5º, § 3º do texto
constitucional de 1988.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência), Lei nº 13.146 de 6 de julho de 2015, conferiu ao Ministério Público atribuições

4A Política Nacional do Idoso está vigente há 23 anos e o Estado do Idoso, há 14 anos.


5 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-08/ibge-62-da-populacao-tem-algum-tipo-de-deficiencia

acessado em 14.09.2017
6
Disponível em
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=230440&idtema=92&search=ceara|fortaleza|censo-demografico-
2010:-resultados-da-amostra-pessoas-com-deficiencia-- acessado em 14.09.2017.
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de garantidor de direitos da pessoa com deficiência. Novamente, coloca-se o Estado brasileiro


como devedor de políticas públicas para com um segmento populacional historicamente
excluído.

1. O NÚCLEO DO IDOSO E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DE FORTALEZA


(MINISTÉRIO PÚBLICO DO CEARÁ).

Cumpre inicialmente registrar da minha relação pessoal (segundo autor7) com o


objeto de estudo o que amplia a dificuldade de objetivação, embora isso não comporte nenhuma
anormalidade como pondera PAUGAM (2015, página 22).
O Núcleo de Defesa do Idoso e da Pessoa com Deficiência8 do Ministério Público na
cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará é composto por 07 (sete) Promotorias de
Justiça: 17ª, 18ª, 19ª, 20ª, 21ª, 22ª e 37ª Promotorias de Justiça Cível da Comarca de Fortaleza.
Com relação à pessoa com deficiência, a situação não é diferente, a população
cearense com alguma deficiência chega a número superior de dois milhões de pessoas, gerando
demanda por serviços públicos de saúde, educação, lazer, acessibilidade etc.
Cada uma das Promotorias é responsável pelo seguinte quantitativo de procedimentos
administrativos (2013-2016) que apuram principalmente, situações de violência contra a
pessoa idosa e pessoa com deficiência, como abandono, maus tratos, violência física,
psicológica, violência financeira etc,: a) 17ª Promotoria de Justiça: 344 procedimentos
administrativos; b) 18ª Promotoria de Justiça: 424 procedimentos administrativos; c)19ª
Promotoria de Justiça: 236 procedimentos administrativos; d) 20ª Promotoria de Justiça: 281
procedimentos administrativos; e) 21ª Promotoria de Justiça: 345 procedimentos
administrativos; f) 22ª Promotoria de Justiça: 120 procedimentos administrativos e g) 37ª
Promotoria de Justiça: 301 procedimentos administrativos. Esses números dizem respeito à
atuação extrajudicial, isto é, sem levar em consideração as ações judiciais propostas em razão
da não solução das questões pela via extrajudicial. Ademais, cada uma dessas Promotorias de
Justiça tem atribuição de intervir nas demais ações em que haja interesse público ou de
incapazes em cada uma das Varas Cíveis respectivas.

7
O segundo autor exerce a função de Promotor de Justiça em Fortaleza-Ceará. No dia 03 de outubro de 2013 foi removido da 7º
Promotoria de Justiça Criminal para a 17ª Promotoria de Justiça Cível da Comarca de Fortaleza (Núcleo do idoso e da
pessoa com deficiência).
8
Iremos usar a abreviatura NUPID (Núcleo do idoso e da pessoa com deficiência).
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Afora uma demanda decorrente da violência interpessoal, há uma demanda que


decorre de uma violência institucional, ou seja, aquela que acontece em razão da omissão ou
da deficiência dos órgãos públicos ou políticas públicas que deveriam criar um ambiente
propício ao envelhecimento e dignidade das pessoas com deficiência, como por exemplo,
podemos citar a não efetivação das alternativas de atendimento ao idoso, educação especial e
acessibilidade, matérias previstas nas respectivas legislações.
Em abril de 2013 a Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério
Público- CNMP publicou um Relatório de Inspeção realizada no Ministério Público do Ceará9
que apontava uma série de críticas à atuação das Promotorias do Núcleo do idoso e da pessoa
com deficiência de Fortaleza, em especial: a) Os procedimentos administrativos eram
instaurados independentemente de portaria; b) Não havia nos autos atos de publicização geral
de instauração dos procedimentos; c) Não havia observância à necessária prorrogação dos
prazos e/ou convolação de procedimentos preparatórios em inquéritos civis; d) O
funcionamento da Secretaria Executiva em prédio distinto do Núcleo, situação que prejudicava
o atendimento das demandas; e) A ausência de paralelismo entre a definição das atribuições e
funções dos membros do MPCE, em matérias de atuação correlatas (tutela coletiva a direitos
humanos/sociais).
Quanto a esse último item, foi observado na correição, a prevalência de
procedimentos tratando de questões envolvendo direitos individuais indisponíveis de idosos e
de pessoas com deficiência, principalmente em situação de conflitos familiares. Por outro lado,
havia poucos inquéritos civis públicos tratando de direitos coletivos dos dois grupos vulneráveis
atendidos pelo NUPID.
Dessa inspeção decorreram discussões e mesmo, um conflito entre os sete Promotores
de Justiça do NUPID em torno das críticas do Conselho Nacional do Ministério Público,
contexto em que, entre outras propostas, surgirá a ideia de criação de um núcleo de mediação
para atender conflitos envolvendo direitos individuais de pessoas idosas e com deficiência.

9
Disponível em
http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Corregedoria/inspe%C3%A7%C3%A3o/Relat%C3%B3rio_Conclusivo_MPE.CE_%C
3%BAltima_vers%C3%A3o1.pdf acessado em 15.09.2017
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2. DISPUTAS E AS MUDANÇAS IMPLEMENTAS NO NÚCLEO DO IDOSO E


DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DE FORTALEZA (MINISTÉRIO PÚBLICO
DO CEARÁ).

A nossa proposta então é abordar o contexto de criação do Núcleo de Mediação do


idoso e da pessoa com deficiência no âmbito do NUPID de Fortaleza a fim de atender a
demanda de aprimoramento apontada pela inspeção da Corregedoria do Conselho Nacional do
Ministério Público, demarcando como hipóteses de trabalho os conflitos intra e inter-
profissionais subjacentes, ou seja, os decorrentes dos embates entre os promotores de justiça
integrantes do NUPID e indícios de conflituosidade entre esses e a defensoria pública.
Tal abordagem se dará pelo olhar da sociologia das profissões, buscando pela
etnografia institucional (BONELLI, 1998; 2002) discutir essa interação entre os atores
(promotores de justiça), revelando uma tensão conflituosa entre esses profissionais quanto às
propostas de aprimoramento do NUPID feitas pelo Conselho Nacional do Ministério Público e
a constatação de uma situação conflituosa entre ministério público e a defensoria Pública.
Os dados demonstrados no trabalho decorrem de pesquisa empírica realizada pelo
segundo autor no âmbito do Ministério Público do Ceará, mas precisamente no NUPID durante
os anos de 2013 a 2016, e discutidas e analisadas com o primeiro autor, no qual foram
empregados métodos da etnografia institucional, em especial a observação participante e
análise documental para a escrita deste texto.
O trabalho e as críticas da Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério
Público causaram reações adversas do grupo de Promotores de Justiça integrantes do NUPID.
De um lado, aqueles que concordavam com as críticas e da necessidade de mudanças
administrativas e do outro, um grupo minoritário que entendia uma intromissão indevida do
Conselho Nacional do Ministério Público na instituição e que defendia a atuação profissional
até então desenvolvida:

Esse pessoal do Conselho Nacional do Ministério Público não conhece a nossa


realidade e chega aqui querendo impor uma série de mudanças sem oferecer
condições materiais e de pessoal para tal (Promotora de Justiça);

Antes de exigir uma melhor atuação dos promotores de justiça, esse pessoal deveria
arrumar um prédio melhor para nosso núcleo, que não tem condições de receber com
dignidade o público. Temos procurado fazer o melhor e temos cumprido os objetivos
de atender as pessoas idosas e com deficiência de Fortaleza (Promotor de Justiça).
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Temos que reconhecer que nosso núcleo tem um grande número de promotores de
justiça (07) em comparação com outras capitais. E o que estamos fazendo em termos
de tutela coletiva em prol da pessoa idosa e da pessoa com deficiência? Estamos
fiscalizando os abrigos de idosos de forma sistemática? Estamos acompanhando as
políticas públicas e os orçamentos destinados a essas políticas? (Promotor de Justiça)

Realmente, tem dias que me sinto enxugando gelo, pois até consigo resolver alguns
problemas pessoais dessas pessoas, mas as questões das políticas públicas? Existe
uma grande demanda de problemas pessoais individuais envolvendo violências
contra essas pessoas porque não temos políticas públicas efetivas.(Promotora de
Justiça)

Acho um absurdo o Estado pagar um excelente salário a um Promotor de Justiça para


fazer mediação familiar. Hoje é o que mais fazemos aqui no NUPID. A instituição
tem uma vocação para tratar das questões que envolvem a coletividade, as políticas
públicas... (Promotor de Justiça).

Essas falas demonstram muito bem uma situação conflituosa e de uma competição
intra-profissional entre um grupo de promotores de justiça que já estava há alguns anos no
NUPID e no próprio Ministério Público e um grupo de profissionais que havia chegado há
pouco tempo na unidade e pertencia a uma geração mais nova que entendia da necessidade de
mudanças urgentes para melhorar atuação da instituição no âmbito da tutela da pessoa idosa e
da pessoa com deficiência no município de Fortaleza. Maria da Glória Bonelli relaciona a
competição intraprofissional, com vários fatores, entre os quais uma questão de diferença
geracional:

O outro tipo de competição que movimenta o mundo do Direito refere-se às disputas


e tensões vivenciadas pelos pares no interior da profissão a que pertencem. As
distintas posições que compõem a profissão, que se apresenta estratificada em
diferentes subgrupos, pode inclusive favorecer a segmentação por gênero, etnia ou
geração, com grupos profissionais monopolizando critérios de seleção de novos
pares, introduzindo novas discriminações e multiplicando conflitos entre seus
membros. (BONELLI,1988, p.20).

Restou evidente no conflito intraprofissional entre os promotores de justiça do NIPID


a existência de duas concepções de Ministério Público ou entre dois grupos geracionais, o
primeiro que ainda não compreendeu a necessidade de uma atuação institucional focada do
âmbito da defesa de direitos coletivos, buscando a efetivação das políticas públicas, seja por
uma atuação administrativa por meio de inquéritos civis públicos, termos de ajustamento de
condutas, seja através do Poder Judiciário, propondo-se demandas por ações civis públicas etc
e o segundo grupo, que defende essa atuação. O primeiro grupo mantinha uma atuação no
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NUPID quase que exclusivamente no âmbito da tutela de direitos individuais indisponíveis,


motivo da censura por parte do Conselho Nacional do Ministério Público.
Esse choque geracional demonstra a não coesão da instituição, o conflito
intraprofissional e concepções institucionais diferentes, não se podendo falar uma identidade
coletiva da instituição, senão em uma perspectiva ideológica, a fim de manter a profissão como
uma corporação coesa, como bem esclarece Maria da Glória Bonelli:

A idéia central no conceito de competição intraprofissional opõe-se à visão da


profissão como um grupo coeso, com uma única identidade coletiva. Ele procura
mostrar esta construção como uma perspectiva ideológica, que se propõe a fortalecer
a profissão como corporação. (BONELLI,1988, p. 20).

Desse modo, o ano de 2014 foi marcado por intensas discussões e conflitos sobre os
novos rumos que deveriam ser dados ao NUPID a fim de melhorar sua atuação, ficando bem
clara a oposição dos dois grupos como acima descrito. Realmente não há como falar de “grupo
coeso”, quando se tem interpretações institucionais diferentes. O fato é que nesse ano, o grupo
que defendia mudanças no NUPID obteve duas importantes vitórias, primeiro, internamente,
onde as propostas defendidas pelo grupo foram deliberadas e aprovadas por maioria, e segundo,
perante as instâncias superiores da instituição que aprovaram as mudanças demandadas pelo
grupo majoritário do NUPID.
A primeira das mudanças se deu em maio quando o Procurador-Geral de Justiça
editou o Provimento nº10010 que instituiu no âmbito da Estrutura Organizacional do Ministério
Público do Estado do Ceará, a Secretaria Executiva das Promotorias de Justiça Cíveis atuantes
na defesa do idoso e da pessoa com deficiência. A medida deu autonomia administrativa ao
NUPID e agilizou o atendimento de idosos e pessoas com deficiência, bem como, a distribuição
dos processos administrativos.
A segunda mudança se deu no âmbito do Órgão Especial do Colégio dos
Procuradores de Justiça que através da Resolução nº18/201411, especializou12 a atuação das 07
(Promotorias de Justiça), ficando duas Promotorias de Justiça com atribuições de tutela coletiva
dos direitos da pessoa idosa (17ª e 19ª Promotorias de Justiça Cíveis), duas Promotorias de
Justiça com atribuições de tutela coletiva dos direitos da pessoa com deficiência (18ª e 20ª

10 Disponível em http://tmp.mpce.mp.br/servicos/provimentos/2014/Provimento100-2014.pdf acessado em 16.09.2017


11 Disponível em http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2015/12/Resolucao018.2014.pdf acessado em 16.09.2017
12 A distribuição das atribuições: tutela individual x tutela coletiva foram acertadas entre os próprios promotores de justiça, depois

de muitas reuniões e discussões.


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Promotorias de Justiça Cíveis) e três Promotorias de Justiça com atribuições de tutela dos
direitos individuais da pessoa idosa e da pessoa com deficiência (21ª, 22ª e 37ª Promotorias de
Justiça Cíveis)13.
Essas duas mudanças deram uma nova dinâmica ao NUPID, mas foram realizadas
com resistências, tanto no âmbito das 07 Promotorias do NUPID, bem como, com menor
intensidade, nos Órgãos superiores do Ministério Público do Ceará. A especialização das
Promotorias mudou completamente a atuação do NUPID a atendeu a uma das principais
demandas do Conselho Nacional do Ministério Público no sentido da instituição priorizar a
atuação na defesa de direitos coletivos dos idosos e pessoas com deficiência.
A última mudança no NUPID nesse contexto de conflitos intra-profissional se deu
com a criação do Núcleo de Mediação do Idoso e da Pessoa com Deficiência pelo
Provimento nº13, de 9 de fevereiro de 2017, da senhora Procuradora-Geral de Justiça em
exercício14. A descrição das mudanças anteriores foi necessária para contextualizar o
surgimento da proposta de criação de um núcleo de mediação no âmbito do NUPID. A ideia é
transferir para esse núcleo de mediação, boa parte da demanda envolvendo questões
individuais, principalmente conflitos familiares de pessoas idosas e de pessoas com deficiência.
Mais uma vez, reacende-se o conflito entre os dois grupos de promotores.

2. A QUEM INTERESSA UM NÚCLEO DE MEDIAÇÃO NO NUPID? A


PERSISTÊNCIA DOS CONFLITOS INTRA-PROFISSIONAIS E A AMEAÇA DA
DEFENSORIA PÚBLICA.

Desde a instituição da arbitragem em nosso sistema legal pela Lei nº 9.307/1996, sob
a perspectiva legal, considera-se que o Estado deixou de possuir o monopólio da jurisdição,
visto que a decisão arbitral tem o mesmo valor ontológico de uma sentença judicial, produzindo
os mesmos efeitos daquela proferida no processo judicial. Avançando nesse novo paradigma
de métodos alternativos de conflitos tivemos a aprovação da Lei de mediação (Lei nº
13.140/2015), bem como, o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) que também

13
É importante registrar que há pelo menos um Promotor de Justiça insatisfeito com a mudança por não se identificar com o
trabalho de defesa da tutela individual.
14 Disponível em http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2016/10/Provimento-n%C2%BA-013-2017-Cria-
N%C3%BAcleo-de-Media%C3%A7%C3%A3o-da-Pessoa-Idosa-e-com-Defici%C3%AAncia.pdf acessado em 16.09.2017.
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trata do instituto, inclusive estatuindo como norma fundamental do processo civil brasileiro
que:

[...] a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos


deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. (art.3º, § 3º do NCPC).

A adoção desses novos métodos de resolução de conflitos pela legislação brasileira


vem em um contexto de criticas ao Poder Judiciário depois da redemocratização do país e da
reflexão de sua função social, de sua legitimação e incapacidade para atender a uma explosão
de litigiosidade decorrente da complexidade socioeconômica e da extrema desigualdade social
da sociedade brasileira, (SANTOS et alii, 1989, página 54.).
Esse paradigma dos métodos de solução consensual dos conflitos traz uma nova
dimensão e impacto nos múltiplos saberes do fenômeno jurídico, seja no âmbito do direito
processual (reformas no interior da justiça civil tradicional), do direito comercial, direito do
consumidor, direito de família e da sociologia para administração da justiça, tendo como
unidade de análise o conflito, e não mais, a norma.
Deve ser ponderado, entretanto, que essas novas metodologias alternativas de solução
de conflitos (Alternative Dispute Resolution- ADR15), entre as quais temos a negociação, a
mediação, e a conciliação, têm recebido críticas de alguns teóricos que as vêm como um
instrumento do neoliberalismo em razão do afastamento do Estado de sua função primordial de
garantir direitos através do Poder Judiciário. Nessa direção, (NUNES, 2012, p.173) critica o
movimento “Conciliar é legal” do Supremo Tribunal Federal:

Defende-se, ainda, sempre em perspectiva ideológica socializadora, a profusão de


técnicas alternativas de resolução de conflitos (ADR- Alternative dispute resolution),
a difusão da cultura da conciliação, como o atual conciliar é legal.
Realmente, conciliar seria legal e legítimo se tal opção fosse escolhida pelas partes,
no exercício de sua autonomia privada, devido às peculiaridades de seu caso, e não
dimensionada como única hipótese de solução rápida de seu caso ou mesmo, imposta
pelo magistrado mediante a coação de futura decisão desfavorável (NUNES, 2012,
p.173)

O autor citado tem a concepção que os métodos alternativos de resolução de conflitos


estão proliferando em nosso país, não como uma decorrência das necessidades e da decisão dos

15
Essas metodologias têm se desenvolvido com êxito em países como os Estados Unidos, Inglaterra, Itália e Espanha.
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jurisdicionados, mas tão somente em razão da incapacidade do Estado Brasileiro em garantir o


acesso a uma jurisdição eficiente. No mesmo sentido, pondera Streck:

Cada vez que a crise do Judiciário se agudiza- através da inefetividade, acesso à


justiça, lentidão da máquina, etc- o establishment responde com soluções ad hoc,
como por exemplo, uma pífia reforma do processo civil, a lei dos juizados especiais
cíveis e criminais e o nefasto projeto (de poder) representado pelas súmulas
vinculantes.
Com o juizado especial criminal, instituído pela Lei 9099/95, p.ex., e nova lei da
arbitragem, o Estado sai cada vez mais das relações sociais (STRECK, 2003, página
68).

Feito esse parêntese, e registrado o contraponto, voltemos a considerar os métodos


alternativos de solução de conflitos como uma possibilidade legítima de pacificação social,
onde as pessoas tenham seus conflitos resolvidos de uma forma mais eficiente, econômica e
acessível. O novo CPC16, no artigo 165, §§2º e 3º faz a distinção entre a mediação e conciliação:

Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos,


responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo
desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a
autocomposição:
....
§ 2o O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver
vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada
a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes
conciliem.
§ 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo
anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os
interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da
comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios
mútuos.

A mediação coloca-se no elenco dos métodos que levam em consideração e trabalham


os interesses das partes, nos quais são investigadas as preocupações, as necessidades, as
percepções e vontades dos envolvidos no conflito como ponto inicial para a apuração das
questões a serem resolvidas. A mediação busca identificar os interesses por trás das posições,
enquanto a conciliação trabalha somente com as posições externadas pelas partes do conflito.
A leitura da lei aponta para a diferenciação entre mediação e conciliação em razão da
natureza do conflito. Assim, a mediação coloca-se como mais apropriada para litígios surgidos
de relações continuadas- relações de parentesco (família), de vizinhança, de sociedade
(art.165§3º, NCPC), e por sua vez, a conciliação apresenta-se mais pertinente para solução de

16
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm acessado em 16.09.2017.
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conflitos oriundos de relações descartáveis, tais como conflitos envolvendo acidentes


automobilísticos e relações de consumo (art.16523º, NCPC). Tomemos um conceito
doutrinário da mediação:

Pode-se entender por mediação o instrumento de natureza autocompositiva marcado


pela atuação, ativa ou passiva, de um terceiro neutro e imparcial, denominado
mediador, que auxilia as partes na prevenção ou solução de litígios, conflitos ou
controvérsias (GALVÃO FILHO; WEBER, 2008, página 19-20).

Realizadas essas ponderações sobre os métodos alternativos de resolução de


conflitos, em especial, sobre a mediação, resta afirmar que no contexto da discussão sobre as
mudanças no NUPID, como contextualizado e esboçado acima, surgiu a proposta de criação
de um núcleo de mediação para atender a grande demanda de conflitos familiares levadas à
instituição. É fato que muitas dos conflitos familiares envolvendo idosos e pessoas com
deficiência giram em torno do abandono, dos maus-tratos familiares, da não assunção dos
deveres de cuidado pelos familiares etc. Portanto, a mediação é perfeitamente indicada para a
resolução desses conflitos, daí a criação no começo desse ano do Núcleo de Mediação do Idoso
e da Pessoa com Deficiência.
Apesar de já criado, o Núcleo ainda não foi instalado, havendo a programação de um
curso preparatório para os mediadores voluntários que terá início no começo de outubro, a ser
ministrado na Escola Superior do Ministério Público do Ceará17. Não foi sem divergência e
conflito entre os promotores de justiça que se concretizou a criação desse núcleo. O que diziam
o grupo opositor ao núcleo? Em algum momento foi colocado o contraponto doutrinário
referido acima? (a mediação como um instrumento liberal de solução de conflito)? Não.
Vejamos algumas falas:

“Essa ideia de um núcleo de mediação é complicada porque pode esvaziar as


Promotorias de Justiça de Tutela individual, pois muitas demandas serão deslocadas
para os mediadores” (Promotora de Justiça);

17 Disponível: http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2015/12/Minist%C3%A9rio-P%C3%BAblico-Sociedade-e-
Fam%C3%ADlia-Medir-para-proteger.pdf acessado em 16.09.2017.
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“ Vejo um risco de até mesmo nosso núcleo perder Promotorias de Justiça18, já que
haverá uma redução de procedimentos em tramitação nas Promotorias de tutela
individual” (Promotora de Justiça);

“Ainda há uma questão mais grave que traz a criação desse núcleo de mediação, nós
podemos perder público para à defensoria pública. As pessoas gostam de ser
atendidas por uma autoridade, não acreditam em um simples mediador” (Promotora
de Justiça).

As falas do grupo que defendiam a criação do núcleo de mediação:

“As Promotorias de Justiça perdem muito tempo com conflitos que poderiam ser
resolvidos pela mediação, principalmente os conflitos familiares, inclusive porque
requerem mais tempo e investigação da gênese da desavença, e a mediação é um
excelente instrumento para isso” (Promotor de Justiça).

“A criação do núcleo de mediação liberará as Promotorias de |Justiça de tutela


individual para resolver e enfrentar as questões que realmente precisam de um
encaminhamento jurídico, seja administrativamente ou judicialmente para garantir
direitos individuais indisponíveis” (Promotora de Justiça).

Mais uma vez percebemos haver uma diferença das concepções institucionais em
razão do fator geracional dos profissionais. A geração mais antiga vê com desconfiança
mudanças no fazer institucional, demonstra uma insegurança em criar outra instância de
resolução de conflitos, no caso o núcleo de mediação. Há uma persistência da tensão conflituosa
em razão de visões institucionais diferentes. Maria da Glória Bonelli ao estudar instituições do
sistema de justiça paulista identifica disputas internas em torno do conteúdo da ideologia
profissional dominante:

Tal como encontrado entre os advogados e os juízes, os promotores e procuradores


enfrentam disputas internas sobre o conteúdo da ideologia profissional que
predomina no grupo (BONELLI, 2002, página 24).

Apesar da oposição desse grupo à criação do núcleo de mediação no NUPID, o


Ministério Público do Ceará conta com um Programa de Mediação Comunitária há dez anos,
regulamentado e pela Resolução nº01, de 27 de junho de 2007, do Colégio de Procuradores de
Justiça19. Segundo dados da instituição, em 2016 foram realizados 11.370 atendimentos à

18
Observamos que o Ministério Público do Ceará estuda uma reforma administrativa, podendo haver extinção, fusão ou
transformação no atual quadro das promotorias de justiça. Disponível em:
http://intranet.mpce.mp.br/asscom/destaquesresultado.asp?icodigo=5939 acessado em 16.09.2017.
19
Disponível em http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2015/12/resolucao001-2007proc.pdf acessado em 16.09.2017.
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população e o percentual de êxito nas mediações realizadas atingiu a marca de 86,77%20. Ora,
se a mediação comunitária está dando certo em vários bairros de Fortaleza, porque não daria
certo no NUPID?
O Poder Judiciário cearense também tem um trabalho significativo no campo dos
métodos alternativos de solução de conflitos. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça-
CNJ, na publicação Justiça em Números 2017 (ano-base 2016)21, apesar de o Tribunal de
Justiça do Ceará ter o pior índice de produtividade do país, a instituição ficou com a segunda
melhor posição no número de Centros Judiciários de Solução de Conflitos na Justiça Estadual,
por tribunal, contando com 112 desses centros no Estado, ficando atrás somente de São Paulo
que possui 191 centros.
Outra questão que merece uma análise na fala de um dos Promotores de Justiça que
repudiavam a ideia de criação do núcleo de mediação no NUPID é o discurso que vê a
Defensoria Pública como uma ameaça à instituição do Ministério Público. A situação
caracteriza-se como uma disputa entre instituições do sistema de justiça no mercado de
trabalho. Coloca-se o argumento da possível “fuga de clientes” do Ministério Público em razão
da criação do núcleo de mediação no NUPID e da não confiança das pessoas na figura do
mediador, personagem que não é uma “autoridade”. Maria da Glória Bonelli relaciona as
disputas inter-profissionais com a proximidade entre as profissões no sistema de justiça, no
“mundo do direito”:

Os tipos de conflitos observados nesta pesquisa apontam para a existência de maior


tensão entre aqueles que estão em posições mais próximas, reforçando a noção de
que é a proximidade nos lugares ocupados no sistema das profissões que aumenta a
disputa entre eles. É possível se detectar a distância entre as posições profissionais,
em função da forma mais amena, mais cordial ou mais externa com que os
entrevistados se referem às profissões que atuam no mundo do direito. Esta distância
é detectada principalmente na hierarquia ocupacional. O contato entre auxiliares
judiciais e juízes é espacialmente próximo, mas é socialmente distante. As questões
que provocam a manifestação de opiniões mais veementes e conflituosas são aquelas
cuja proximidade profissional as coloca em disputa, seja jurisdicionalmente, seja
negando-lhe a aceitação desejada através da contestação contínua. (BONELLI 1988,
p.13).

A análise da Professora Maria da Glória Bonelli é perfeita para a compreensão da


situação conflituosa existente entre o Ministério Público e a Defensoria Pública. Desde que a

20
Disponível em http://www.mpce.mp.br/2017/04/25/mpce-apresenta-sucesso-de-mediacoes-comunitarias-no-x-forum-de-
mediadores-e-cultura-de-paz/ acessado em 16.09.2017.
21 Disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/09/904f097f215cf19a2838166729516b79.pdf acessado em

16.09.2017.
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Lei nº 11.448/200722 deu legitimidade à Defensoria Pública para propor ação civil pública que
o embate entre as instituições é uma constante. Reclama o Ministério Público que o Estado age
mal ao atribuir atribuições idênticas a instituições diversas. Promotores de Justiça alegam que
os Defensores Públicos sofrem uma “crise de identidade” ao querer propor ações para tutelar
direitos coletivos, esquecendo-se de sua vocação constitucional que é prestar assistência
jurídica aos hipossuficientes de recursos no âmbito da defesa de direitos individuais.
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp23) propôs ação
direta de inconstitucionalidade (ADI n. 3.943/DF), perante o Supremo Tribunal Federal (STF),
questionando o dispositivo da Lei 11.448/2007 que legitima a Defensoria Pública a ajuizar
ações civis públicas, não obtendo êxito, conforme ementa da decisão do plenário da corte que
teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia24:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.


LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR
AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO
PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO
ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO À JUSTIÇA.
NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS
GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA
MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º,
INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA
DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO
RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA
PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

A leitura do acórdão demonstra claramente que na perspectiva da entidade de classe


do Ministério Público a legitimação da Defensoria Pública para propor ações civis públicas
provocou um prejuízo à instituição ministerial, dado indicador do conflito inter-profissional
entre as instituições, conflito este também demonstrado no argumento da Promotora de Justiça
que vê na criação do núcleo de mediação no NUPID uma ameaça de “fuga de clientes” do
Ministério Público para à Defensoria Pública25.

22 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11448.htm acessado em 16.09.2017.


23 A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - CONAMP, é a entidade de classe de âmbito nacional do
Ministério Público Brasileiro. Disponível em https://www.conamp.org.br/pt/ acessado em 16.09.2017.
24 Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=9058261 acessado em 17.09.2017.

25 A Defensoria Pública do Ceará dispõe de um Núcleo do Idoso e de Defesa dos Portadores de Necessidades Especiais e

Deficientes Físicos. Disponível em http://www.defensoria.ce.def.br/locais-de-atendimento/fortaleza/ acessado em 17.09.2017.


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O Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP publicou em seu site no último


dia 13 um Relatório de Pesquisa de Satisfação e Imagem do CNMP e do Ministério Público -
201726 que demonstra uma disputa pela melhor imagem pública entre as instituições do sistema
de justiça, tendo sido a Defensoria Pública mais bem avaliada em alguns pontos da pesquisa:
a) Importância da Instituição: Defensoria Pública (1ª); Ministério Público (2ª); b) Confiança na
Instituição27: Defensoria Pública (2ª); Ministério Público (3ª). Imediatamente, após o
conhecimento da pesquisa, iniciou-se uma discussão virtual entre alguns Membros do
Ministério Público sobre o conteúdo da pesquisa, bem como, alguns integrantes da Defensoria
Pública propagaram o resultado da pesquisa que demonstrou ser a sua instituição a mais
importante e confiável do sistema de justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto descrevemos o incremento no país por demandas de políticas


públicas que atendam idosos e pessoas com deficiência. O envelhecimento populacional é um
fenômeno mundial e levou organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas
(ONU) a realizar Conferências para discutir a questão com os estados-membros e elaborar
documentos afirmadores da necessidade da preparação das nações para enfrentar o desafio do
envelhecimento com dignidade. No mesmo plano dos organismos internacionais, as pessoas
com deficiência têm lutado pela afirmação de direitos. Esses movimentos favoreceram a partir
da constituição de 1988, o reconhecimento desses grupos vulneráveis e a elaboração de uma
legislação específica, como o Estatuto do Idoso e a Lei Brasileira de Inclusão.
No âmbito do sistema de justiça brasileiro foram criadas instâncias administrativas e
judiciais para atender a demanda desses grupos vulneráveis, como o Núcleo do idoso e da
pessoa com deficiência de Fortaleza (Ministério Público do Ceará). O Novo Código de
Processo Civil determina que a mediação deva ser estimula pelos atores do sistema de justiça,
entre os quais, os membros do ministério público. Assim, procuramos refletir sobre os conflitos
intra e inter-profissionais no contexto de criação do núcleo de mediação no NUPID,
procurando identificar as disputas em jogo, os interesses e visões institucionais diferentes, bem

26 Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_da_pesquisa_CNMP_V7.pdf
acessado em 17.09.2017.
27
As Forças armadas figuraram como a instituição mais confiável.
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como, o indício de disputa com a Defensoria Pública por alguns dos Promotores de Justiça do
NUPID.
O elemento determinante da disputa entre os próprios Promotores de Justiça foi o
fator geracional, sendo que a diferença de tempo na instituição e mesmo de idade é um fator
que influi na interpretação do fazer profissional e das necessidades da instituição. Por sua vez,
foi detectado claro indícios de disputa inter-profissional de alguns Promotores de Justiça com
Defensores Públicos (Defensoria Pública), quando se colocaram contrários a criação do núcleo
de mediação no NUPID com receio de “perder clientes” para essa instituição. A
“proximidade” entre assas profissões e um fato gerador de conflitos. Esses mesmos
Promotores de Justiça vêm com pessimismo e desconfiança a figura do mediador, pois segundo
uma das falas, “as pessoas querem ser atendidas por autoridades, e não por mediadores”.
A disputa inter-profissional entre Promotores de Justiça e Defensores Públicos restou
patente no plano nacional quando do episódio em que Associação Nacional dos Membros do
Ministério Público (CONAMP) propôs ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal (STF), questionando a legitimidade da Defensoria Pública a ajuizar ações civis
públicas.
O núcleo de mediação do NUPID foi instituído nesse contexto de disputas, apreensões
e incertezas, estando em fase de implantação, já se esperando outro trabalho sobre seu
funcionamento, viabilidade, conflitos e disputas para o 8º Seminário Interdisciplinar em
Sociologia e Direito.

REFERÊNCIAS

BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. In: Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 10(1): 185-214, maio de 1998. Disponível em https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/86766/89768
, acessado em 01/09/2017.

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Alexandre de Oliveira; Camarano, Ana Amélia; Giacomin, Karla Cristina; Rio de Janeiro, Ipea. 2016.
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UMA REFLEXÃO SOBRE A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO NO BRASIL

SOUZA, Carla Faria de


Doutoranda em Sociologia e Direito – PPGSD
BRAGANÇA, Fernanda
Doutoranda em Sociologia e Direito – PPGSD

RESUMO

Este artigo traz uma análise reflexiva a atuação do Poder Judiciário na institucionalização da Mediação
no Brasil, mediante a publicação da Lei 13.105 de 2015 e da Lei 13.140 de 2015. Trata da tendência em
trazer para a estrutura do Judiciário a competência em relação à formação, divulgação e desenvolvimento
da Mediação no Brasil, e traz como problemática, de uma forma reflexiva, se a atividade exercida pelo
Judiciário, que traz um modelo de Mediação Judicial, ao contrário de diversos outros países que já
utilizam a Mediação de Conflitos como forma “extrajudicial”, ou seja, a Mediação se desenvolve fora
do Judiciário.

Palavras-chave. Mediação. Administração de Conflitos. Políticas Públicas Judiciárias.

ABSTRACT

This article brings a reflexive analysis about the performance of the Judiciary in the institutionalization
of mediation in Brazil, through the publication of the rules of Law 13,140 from 2015 and 13.105 from
2015. It is the guidance of to bring the structure of the Judiciary the legitimacy in relation to training, to
spread and development of Mediation in Brazil, and in a reflexive way, if the activity exercised by the
Judiciary.

Keywords. Mediation. Conflict Management. Judicial Public Policy.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar a institucionalização da Mediação no cenário


brasileiro, o processo de positivação e o marco legal da Mediação, buscando uma reflexão
acerca da regulamentação da Mediação Judicial e da atuação do Poder Judiciário como “órgão”
competente para a formação, a regulação e o desenvolvimento da Mediação no Brasil.
A análise reflexiva – e de certa forma crítica, sobre a atuação do Judiciário de forma
tão abrangente na formação, regulação e no desenvolvimento da Mediação trazem duas
premissas que fundamentam o referido questionamento: a primeira seria as características
fundamentais do instituto da Mediação, que seria flúido, dialógico, e não se adequaria à
estrutura do Judiciário e ao processo, como estabelecido pela Lei 13.105 de 2015 e a Lei 13.140
de 2015; a segunda seria a própria natureza do “serviço judiciário” na implantação desse tipo
de política pública, e a decisão de utilizar o Judiciário como instrumento de efetivação da
Mediação.

1. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO

Quando se fala em Mediação, é preciso lembrar que os meios consensuais de


resolução de conflitos existem desde os tempos das sociedades primitivas, e antecederam,
inclusive, o surgimento da Jurisdição. No entanto, diante do monopólio judicial, percebeu-se
que, em alguns casos, a Jurisdição não seria o único e mais adequado meio de solução de
conflitos, o que levou a sociedade moderna a resgatar o interesse pelos meios consensuais e
pacificadores, e desencadeou movimentos de implementação dos mesmos, como já visitado
nos capítulos que se antecederam.
No Brasil não foi diferente, os movimentos relacionados aos meios alternativos de
solução de conflitos desembarcaram já há algum tempo e podem ser observados na tentativa de
inserir a conciliação no processo civil brasileiro, seja como uma fase na audiência de instrução
e julgamento, onde é realizada pelo magistrado; ou ainda na forma da Lei 9.099, de 1995, nos
Juizados Especiais, podendo inclusive ser realizada por leigos(NOBRE, 2015). Não foi
incorporada, entretanto, pela cultura jurídica como deveria, tornando-se apenas mais uma fase
do processo judicial.
Segundo Eleonora Coelho,
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Nesta esteira, o próprio Estado passou a incentivar a adoção de outros métodos e


procedimentos para a pacificação de conflitos, em um movimento de
descentralização, que ocorre tanto dentro como fora da estrutura judicial. No Brasil,
a primeira medida de relevância nesse sentido foi a criação dos Juizados Especiais
de Pequenas Causas (Lei nº 7.244/84), posteriormente substituídos pelos Juizados
Especiais Cíveis (Lei nº 9.099/95), Criminais (Lei nº 10.259/02) e Federais (Lei nº
10.259/01), os quais objetivavam ser um mecanismo mais adequado para solucionar
causas de valor reduzido, pois contam com um procedimento simplificado (em que
há incentivo à conciliação, privilégio da informalidade, concentração de atos etc.). A
criação dos Juizados teve grande aceitação da sociedade, o que já demonstrava o
anseio por meios mais ágeis e eficazes para solução de conflitos. Contudo, não tardou
para que tais órgãos também ficassem saturados (COELHO, 2015, p. 106).

O movimento pela institucionalização da mediação chegou ao Brasil na década de 90,


diante de uma realidade jurídica que apenas visualizava o Poder Judiciário como capaz de
solucionar conflitos. Conforme ressalta Walsir Edson Rodrigues Júnior, os operadores do
Direito se posicionavam contra a mediação, com receio de perder o controle do processo e a
clientela, o que caracterizava uma total ignorância, uma falta de informação sobre o Instituto
da Mediação (RODRIGUES, 2006).
A partir de então, tendo como exemplo o desenvolvimento em outros países1,
começou no Brasil um movimento pró-mediação que, apesar de pequeno, despertava interesse
dos profissionais que integravam o meio jurídico brasileiro.
Um marco muito importante para a desjudicialização e a uma forma de solução de
conflitos fora da estrutura do Poder Judiciário foi a publicação da Lei de Arbitragem, n. 9.307,
de 1996. A referida lei trouxe algumas polêmicas e uma aceitação controversa entre os
operadores do Direito; e, mesmo com a declaração da constitucionalidade da lei, no ano de
20012, sua aplicabilidade era muito restrita, apresentando um crescimento considerável apenas
após a primeira década da sua criação.3
No ano de 1997, foi criado o Conselho Nacional de Instituições de Mediação e
Arbitragem – CONIMA, abrindo espaço para maiores discussões sobre a mediação, e
atualmente já conta com quarenta e duas instituições associadas em todo Brasil4.

1 Principalmente pela instituição da mediação pelos vizinhos argentinos, com a Ley n. 24.573, posteriormente substituída pela
Ley n. 26.589/2010. Disponível em:
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/165000-169999/166999/norma.htm. Acesso em: 06 dez. 2015.
2 Brasil. STF. SE n. 5306. Espanha. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. 2001.

3
Segundo pesquisa realizada por Selma Ferreira Lemes, no ano de 2005, primeiro ano da pesquisa, as Câmaras de Arbitragem
do país cuidavam de 21 arbitragens sobre assuntos do dia a dia das empresas, que envolviam pouco mais de R$ 247 milhões, e,
no ano de 2013, oito anos depois, esses números cresceram expressivamente, com cerca de 147 arbitragens, que envolviam cerca
de R$ 3 bilhões. Disponível em: http://www.valor.com.br/legislacao/3407430/arbitragens-envolveram-r-3-bilhoes-em-
2013#ixzz2rb7dlZbv. Acesso em: 04 nov. 2015.
4
Disponível em: http://www.conima.org.br/inst_filia. Acesso em: 30 nov. 2015.
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A mediação começou a ser utilizada no Brasil de forma modesta, mesmo sem ter sido
contemplada com uma lei específica. No entanto o movimento pela institucionalização
começou a exigir amparo legal para o resultado eficaz do instituto na solução dos conflitos.
Desta forma, quando se falava em sua institucionalização no Brasil, o principal
objetivo era a formulação de propostas legislativas de institucionalização que buscavam regular
o seu procedimento, de forma minuciosa e exaustiva. Diante desta perspectiva, o termo
institucionalização adquire característica normativa e se afasta da noção sociológica, que estaria
ligada, de forma geral, “à organização de ideias, concepções, relações intersubjetivas e padrões
de comportamento em torno de um interesse ou finalidade socialmente reconhecidos”.5
A primeira iniciativa legislativa que tentava instituir a mediação em território nacional
foi o Projeto de Lei n. 4.827, de 1998, de autoria da Deputada Zulaie Cobra. Trazia como
principais características a instituição de um procedimento não-obrigatório, que poderia ser
instaurado no curso do processo judicial, ou até antes do processo, desde que a matéria objeto
de acordo admitisse conciliação, reconciliação, transação ou acordo de outra ordem
(BARBADO, 2004).
Em 2004, como parte do Pacote Republicano que se seguiu à Emenda Constitucional
nº 45, e que trouxe a conhecida “Reforma do Judiciário”, o governo apresentou diversos
projetos de lei modificando o Código de Processo Civil, e um novo relatório do PLC, n. 94. O
projeto inicial ficou prejudicado com a aprovação do Substitutivo (Emenda n. 1 – CCJ), que foi
enviado à Câmara e à Comissão de Constituição e Justiça. Desde então, não se deu andamento,
sendo arquivado, o que, naquele momento, frustrou a expectativa de um marco legal para a
mediação no Brasil (PINHO, 2016).
A mediação continuou a se desenvolver no cenário nacional mesmo sem uma
legislação específica, seguindo a tendência internacional de incorporação no seio social de uma
mentalidade jurídica voltada para os meios alternativos de solução de conflitos, o que levou o

5
Como será desenvolvido no decorrer do presente capítulo, e no sentido do pensamento de Michelle Tonon Barbado, “para nós,
basta a compreensão de que, no mundo jurídico, o processo de institucionalização ocorre, via de regra, às avessas. Em outras
palavras: negligencia-se o fator social necessário à legitimação do instituto a ser incorporado no ordenamento; despreza-se o
necessário debate democrático e a consagração empírica do que está prestes a vigorar por força de lei. Conforme será visto, não
parece ser esse o melhor caminho para o estímulo e desenvolvimento da mediação”. E continua, “diante dessas considerações, e
das características intrínsecas à mediação acima delineadas, notadamente o seu aspecto inovador e interdisciplinar, constata-se
que um autêntico desenvolvimento do instituto não poderá se concretizar com a mera institucionalização pelo direito positivo, isto
é, no plano estritamente jurídico legal”. BARBADO, Michelle Tonon. Reflexões sobre a institucionalização da Mediação no
Direito Positivo Brasileiro. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Brasília:
Grupos de Pesquisa, 2004. p. 206. Disponível em: http://www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-mediacao-e-negociacao-
vol3/parte-ii-doutrina-parte-especial/reflexoes-sobre-a-institucionalizacao-da-mediacao-no-direito-positivo-brasileiro. Acesso
em: 30 nov. 2015.
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Conselho Nacional de Justiça, órgão de estruturação da política judiciária nacional, a editar a


Resolução n. 125, de 2010. A Resolução veio para trazer diretrizes ao desenvolvimento da
mediação no país, e cumpriu muito bem esse papel, sendo fundamental para o desenvolvimento
do instituto nos últimos cinco anos6.
Segundo Humberto Dalla B. Pinho, a Resolução n. 125, de 2010, traz como base as
seguintes premissas:

[...] a) o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição


Federal, além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à
ordem jurídica justa;
b) nesse passo, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento
adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga
e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não
somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam
sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos
consensuais, como a mediação e a conciliação;
c) a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e
aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios;
d) a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução
e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já
implementados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de
interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças;
e) é imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o aprimoramento
das práticas já adotadas pelos tribunais;
f) a relevância e a necessidade de organizar e uniformizar os serviços de conciliação,
mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos, para lhes evitar
disparidades de orientação e práticas, bem como para assegurar a boa execução da

6 Segundo Fredie Didier, “a reprodução da consideranda cumpre bem a sua função didática, revelando com clareza a importância

deste ato normativo e os seus objetivos: “CONSIDERANDO que compete ao Conselho Nacional de Justiça o controle da atuação
administrativa e financeira do Poder Judiciário, bem como zelar pela observância do art. 37 da Constituição da República;
CONSIDERANDO que a eficiência operacional, o acesso ao sistema de Justiça e a responsabilidade social são objetivos
estratégicos do Poder Judiciário, nos termos da Resolução CNJ nº 70, de 18 de março de 2009; CONSIDERANDO que o direito
de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal além de vertente formal perante os órgãos judiciários,
implica acesso à ordem jurídica justa; CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de
tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade,
de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que
possam sê-lo mediante outros Conselho Nacional de Justiça mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais,
como a mediação e a conciliação; CONSIDERANDO a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de
incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios; CONSIDERANDO que a conciliação e a
mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em
programas já implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos
e de execução de sentenças; CONSIDERANDO ser imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o
aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais; CONSIDERANDO a relevância e a necessidade de organizar e
uniformizar os serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos, para lhes evitar
disparidades de orientação e práticas, bem como para assegurar a boa execução da política pública, respeitadas as especificidades
de cada segmento da Justiça; CONSIDERANDO que a organização dos serviços de conciliação, mediação e outros métodos
consensuais de solução de conflitos deve servir de princípio e base para a criação de Juízos de resolução alternativa de conflitos,
verdadeiros órgãos judiciais especializados na matéria; CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de
Justiça na sua 117ª Sessão Ordinária, realizada em de 23 de 2010, nos autos do procedimento do Ato 0006059-
82.2010.2.00.0000”. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e
processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 174-175.
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política pública, respeitadas as especificidades de cada segmento da Justiça(PINHO,


2016, P. 6-7).

Uma das importantes previsões da Res. 125, de 2010, foi a determinação de criação,
pelos Tribunais dos Estados de Núcleos Permanentes, de Métodos Consensuais de Solução de
Conflitos, que foi alterada em 2013, constando a obrigatoriedade de instalação dos Centros
Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) em locais com até quatro Juízos,
Juizados ou Varas cíveis, fazendárias, previdenciárias ou de família. No entanto, apesar da
obrigatoriedade estabelecida pela Resolução na criação dos CEJUSC, não foi incorporada por
todos os Tribunais(COELHO, 2015).
Outra característica abordada pela doutrina em relação às formas de solução pacífica
de conflitos no ordenamento brasileiro seria que as mesmas são quase sempre associadas ao
Poder Judiciário, que vem se esforçando para perder esse poder e para que esses métodos
continuem atrelados ao processo civil e à estrutura judiciária de forma preliminar à aceitação
da demanda.7
Desse estímulo pelo Poder Estatal, adveio a proposta de institucionalização da
mediação, com as discussões travadas a partir de 2009, quando foi convocada uma Comissão
de Juristas, presidida pelo Ministro Luiz Fux, para criação de um novo Código de Processo
Civil. As discussões traziam sempre uma grande preocupação da Comissão com os meios
alternativos de solução de conflitos, como a conciliação e a mediação.8
Após as discussões para criação do Projeto do Novo Código de Processo Civil, em
2011, foi proposto o Projeto Lei n. 517, de 2011, que possuía como objeto a regulamentação
da mediação judicial e extrajudicial, de modo “a criar um sistema afinado tanto com o futuro
CPC, bem como com a Resolução n. 125, do CNJ” (PINHO, 2016).
Assim, em 16 de março de 2015, foi publicado o Novo Código de Processo Civil
Brasileiro, a Lei 13.105, que regulamenta as diretrizes e o procedimento de mediação judicial;
e, em 29 de junho de 2015, foi publicada a Lei n. 13.140, a Lei de Mediação brasileira, que traz

7 Essa característica difere, por exemplo, da forma como foi institucionalizada a mediação na Inglaterra, uma vez que, no Brasil,
o Judiciário é o responsável por todo o procedimento de mediação judicial, inclusive por formar mediadores judiciais e se
responsabilizar pelo procedimento.
8
Na redação final do Código de Processo Civil, que foi sancionado em 16 de março de 2015 e publicado em 17 de março de
2015, fica clara a preocupação da Comissão em estabelecer diretrizes e uma regulamentação atenta à mediação como instrumento
de acesso à justiça. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Marco Legal da Mediação no
Brasil – Comentários à Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Cord. Durval Hale, Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Trícia
Navarro Xavier Cabral. São Paulo: Atlas, 2016. p. 8-9.
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os novos e tão esperados parâmetros de desenvolvimento da mediação no Brasil (PINHO,


2016).
Acreditava-se que, para a institucionalização da mediação, seria imprescindível um
marco regulatório que estabelecesse parâmetros de desenvolvimento, uma vez que a legislação
seria capaz de se adequar a sociedade, que estava imersa em um contexto social onde a regra
era judicializar.
No entanto, a criação dos marcos legais da mediação, tanto em relação ao Novo
Código de Processo Civil quanto em relação à Lei de Mediação, não pode ser considerada o
fator essencial e exclusivo de institucionalização no Brasil. Outros fatores, que não apenas a lei,
devem ser observados para que a mediação seja incorporada de forma eficaz na cultura social.
A institucionalização da mediação no ordenamento brasileiro está, em grande parte,
associada à regulamentação do instituto por meio de lei, apesar de se observar que algumas
medidas já estão sendo tomadas no sentido de estimular uma cultura voltada ao consenso, e que
estão de forma gradual sendo incorporadas pela sociedade.
Muitas foram as iniciativas legislativas que visavam regulamentar a mediação no
ordenamento jurídico. A preocupação se voltava para a sua institucionalização legal, pois,
segundo a mentalidade jurídica nacional, o instituto apenas poderia ser utilizado se houvesse
previsão legal, regulamentando quem, como, quando e onde ela poderia ser realizada. Assim,
o legislador trabalhou no sentido de regulamentá-la para que seu procedimento fosse orientado
segundo as normas legais, gerando maior credibilidade e segurança jurídica das partes
envolvidas. Assim, a publicação da Lei 13.140, de 2015, visava regulamentá-la entre
particulares e sobre a composição de conflitos no âmbito da administração pública. De outro
lado, a Lei 13.105, de 2015, o Novo Código de Processo Civil, buscava regulamentar a
mediação judicial, extremamente prestigiada pelo Poder Judiciário brasileiro.
Entre as muitas iniciativas, o legislador brasileiro se preocupou de forma particular
com a mediação judicial, realizada no seio do processo civil e vinculada, de certa forma, à
Jurisdição estatal. Um grande exemplo seria a regulamentação da mediação no Novo Código
de Processo Civil, que prevê a mediação judicial9 não como uma forma consensual de resolução
de conflitos, mas como uma fase preliminar do processo de conhecimento.
Conforme Michelle Paumgartten,

9
Apesar de regular a mediação judicial como fase do processo o artigo 175, do NCPC aduz que não se excluiriam outras formas
de conciliação e mediação extrajudiciais, que poderão ser regulamentadas por lei específica, aplicando no que couber às câmaras
privadas de conciliação e mediação os dispositivos previstos na norma processual.
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Inscrita no contexto judicial, a mediação se torna predestinada a cumprir o ritual de


padrões processuais, que instrumentalizam e compatibilizam o dogma da efetividade
da atividade jurisdicional, além de dever de funcionar direcionada à justiça
(jurisdição estatal). Jacques Faget observa que esta dinâmica conduz a mediação a
dois modos de existência paralela: (i) uma acepção não oficial que lhe confere uma
concepção mais prescritiva do que normativa, na maioria das vezes criticada, pois
gera um sentimento de insegurança por estar supostamente sujeita a equívocos,
devido a ausência de regulamentos e da supervisão de um juiz (Estado); (ii) por detrás
desta ideia, à sombra de uma existência oficial, a mediação é deslocada para outra
realidade que lhe confere uma posição de legitimidade, garantindo-lhe maior
aceitabilidade (PAUMGARTTEN, 2016).

A partir do novo enfoque do Acesso à Justiça e da necessidade de profundas


mudanças no sistema como um todo, o Novo Código de Processo Civil10, publicado em 16 de
março de 2015, utiliza como uma de suas fontes de inspiração as bases do Código de Processo
Civil Inglês, vigente há pouco mais de dez anos, que tem como forte preocupação a
incorporação dos meios consensuais de solução de conflitos, com ênfase na
mediação(REZENDE, 2013). No entanto, o modelo adotado pelo Processo Civil Inglês não
traz a hipótese de Mediação Judicial.
Desta forma, apesar de a Inglaterra integrar o sistema de tradição do Comom Law, e
o Brasil, a tradição do Civil Law11, a proposta do Novo Código de Processo Civil inspirada no
direito inglês, busca estimular e regulamentar os substitutivos da Jurisdição que devem ser
usados prioritariamente, em detrimento da solução judicializada, sendo a mediação objeto de
destaque em ambos os ordenamentos (REZENDE, 2013).
No Novo Código de Processo Civil - NCPC, assim como no Civil Procedure Rules -
CPR Inglês12, podem ser observados dispositivos que fomentam a utilização dos meios

10
Cabe considerar que a Lei 13.105, de 16 de março de 2015, ainda se encontra em período de vacatio legis, não sendo possível
a análise de sua aplicabilidade no ordenamento brasileiro. Desta forma, o que se pretende são apenas prospecções sobre sua
eficácia no Direito brasileiro.
11 “Costuma-se afirmar que o Brasil é país cujo Direito se estrutura de acordo com o paradigma do civil law, próprio da tradição

jurídica romano-germânica, difundida na Europa continental. Não parece correta essa afirmação. O sistema jurídico brasileiro tem
uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí
a consagração de uma série de garantias processuais, inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito
infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália,
basicamente). Há controle de constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo
austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo, constrói-se um sistema de valorização dos
precedentes judiciais extremamente complexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para causas repetitivas
etc.; sobre o tema ver o capítulo respectivo no v.2 deste Curso), de óbvia inspiração no Common Law. Embora tenhamos um
direito privado estruturado de acordo com o modelo romano, de cunho individualista, temos um microssistema de tutela de direitos
coletivos dos mais avançados e complexos do mundo; como se sabe, a tutela coletiva de direitos é uma marca da tradição do
common law”. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e
processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 57-58.
12 CPR 1.4. (1) The court must further the overriding objective by actively managing cases.

(2) Active case management includes –


(a) encouraging the parties to co-operate with each other in the conduct of the proceedings;
(b) identifying the issues at an early stage;
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consensuais de solução de conflitos, como o artigo 3º, §2º, do NCPC, que prevê que “O Estado
promoverá sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”; e o §3º, do mesmo artigo
dispõe que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução de consensual de conflitos
deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério
Público, inclusive no curso do processo judicial”.
A doutrina brasileira já aponta o referido dispositivo como uma diretriz que
fundamenta a utilização dos meios consensuais de solução de conflitos e, como afirma Fredie
Didier, em seu Curso de Direito Processual Civil, “pode-se inclusive, defender a atualmente a
existência de um princípio do estímulo da solução por autocomposição – obviamente para os
casos em que ela é recomendável. Trata-se de princípio que orienta toda a atividade estatal na
solução dos conflitos jurídicos” (DIDIER, 2015).

2. A MEDIAÇÃO NO BRASIL E O PODER JUDICIÁRIO

Dentro desse novo contexto social, que rompe com o hermetismo manifestado pelas
instituições judiciais, a Mediação desponta, mesmo que de forma modesta, como uma nova
forma de enxergar o Direito.
A partir de então, tendo como exemplo o desenvolvimento em outros países, começou
no Brasil um movimento pró-mediação que, apesar de pequeno, despertava interesse dos
profissionais que integravam o meio jurídico brasileiro.
Quando se falava em sua institucionalização no Brasil, o principal objetivo era a
formulação de propostas legislativas de institucionalização, que buscavam regulamentar o seu
procedimento. Diante desta perspectiva, o termo institucionalização adquire característica
normativa e se afasta da noção sociológica, que estaria ligada, de forma geral, “à organização

(c) deciding promptly which issues need full investigation and trial and accordingly disposing summarily of the others;
(d) deciding the order in which issues are to be resolved;
(e) encouraging the parties to use an alternative dispute resolution(GL)procedure if the court considers that appropriate
and facilitating the use of such procedure;(grifo nosso)
(f) helping the parties to settle the whole or part of the case;
(g) fixing timetables or otherwise controlling the progress of the case;
(h) considering whether the likely benefits of taking a particular step justify the cost of taking it;
(i) dealing with as many aspects of the case as it can on the same occasion;
(j) dealing with the case without the parties needing to attend at court;
(k) making use of technology; and
(l) giving directions to ensure that the trial of a case proceeds quickly and efficiently.
Disponível em: https://www.justice.gov.uk/courts/procedure-rules/civil/rules/part01. Acesso em: 05 nov. 2015.
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de ideias, concepções, relações intersubjetivas e padrões de comportamento em torno de um


interesse ou finalidade socialmente reconhecidos”.
A Mediação continuou a se desenvolver no cenário nacional mesmo sem uma
legislação específica, seguindo a tendência internacional de incorporação no seio social de uma
mentalidade jurídica voltada para os meios alternativos de solução de conflitos, o que levou o
Conselho Nacional de Justiça, órgão de estruturação da política judiciária nacional, a editar a
Resolução n. 125, de 2010.
Seguindo essa perspectiva, em 16 de março de 2015, foi publicado o Novo Código de
Processo Civil Brasileiro, a Lei 13.105, que regulamenta as diretrizes e o procedimento de
Mediação Judicial; e, em 29 de junho de 2015, foi publicada a Lei n. 13.140, a Lei de Mediação,
que trazia os novos e tão esperados parâmetros de desenvolvimento da Mediação no Brasil.
Acreditava-se que, para a institucionalização da mediação, seria imprescindível um marco
regulatório que estabelecesse parâmetros de desenvolvimento, uma vez que a legislação seria
capaz de se adequar a sociedade, que estava imersa em um contexto social onde a regra era
“judicializar”(PINHO e CABRAL, 2016).
A institucionalização da Mediação no ordenamento brasileiro está, em grande parte,
associada à regulamentação do instituto por meio de lei e da atuação maciça do Poder
Judiciário, como órgão de regulamentação, formação e de desenvolvimento da Mediação.
A Mediação Judicial passou a ser o grande objeto de estudo e de desenvolvimento da
Mediação no Brasil, sendo regulamentada pelo Poder Judiciário tanto pelo CNJ, pela Resolução
125/2010, que estabelece suas diretrizes como pelos Tribunais Estaduais, sendo o Poder
Judiciário responsável pela formação dos mediadores judiciais, pela estrutura dos Centros de
Mediação Judicial.
Toda estrutura de desenvolvimento da Mediação que vem sendo assumida pelo Poder
Judiciário e esta se consolidando nas estruturas do serviço judiciário, diferente de outros países
como EUA, Alemanha, Itália e Holanda e Reino Unido. Esses países trazem taxas de grande
desenvolvimento da Mediação, e apesar de alguns deles estimular de forma clara a Mediação
antes de judicializar, como por exemplo nos EUA e no Reino Unido, a Mediação não é
promovida pelo Judiciário e dentro da estrutura do Judiciário, como se observa no modelo
brasileiro de Mediação Judicial (PALO, 2014).
Deste modo, com o esforço na tentativa de incorporação da Mediação na estrutura
social a partir da histórica e habitual concentração de poder do Judiciário, a reflexão que se
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impõe, é a seguinte: seria o Poder Judiciário competente para a institucionalização da


Mediação? Ou apenas lhe foi delegada essa competência como decorrência de uma espécie de
capital simbólico e legitimaria o Judiciário na assunção de um instituto como a Mediação? Seria
o Judiciário competente mesmo quando a sua natureza estrutural adversarial afasta os próprios
fundamentos da Mediação? E a Mediação Judicial? Qual seria a intenção de se criar um modelo
de Mediação diverso daquele aplicado em outros países, que se desenvolve dentro da estrutura
judiciária, e é regulamentado pela norma processual civil como fase que precede o processo
judicial?
A intenção não é trazer respostas aos questionamentos propostos, até porque não
temos ainda tempo para chegar a quaisquer conclusões epistemologicamente seguras, mas seria
possível, no entanto definir alguns pontos importantes, e que devem ser esclarecidos.
De um lado, podemos observar o Poder Judiciário, como o detentor do campo de
poder, que exerceu durante anos o “monopólio” da solução de conflitos, e exerce ainda sobre
os jurisdicionados um poder de dependência na solução dos próprios conflitos, baseados no
processo de dominação racional-legal, onde os juristas produzem o discurso sobre o Estado, e
o campo jurídico ganha autonomia, produzindo uma competência técnica e social de dizer o
direito.
Acerca do capital jurídico e da concentração de poder, Frederico Almeida esclarece
que

A diferenciação do campo e a concentração do capital especificamente jurídicos


coloca o direito e os juristas em uma posição de protagonistas nesse processo
(Bourdieu, 2005). A adequação moderna da técnica processual do direito romano às
demandas de racionalização do Estado moderno em torno do príncipe, obra cultural
dos juristas medievais, é apontada, desde Weber (1999), como condição para o
sucesso do processo de burocratização e construção da dominação racional-legal.
Nesse processo, em que os juristas produzem o discurso sobre o Estado
(especificamente o discurso da soberania do príncipe sobre os interesses particulares
e o discurso do Estado de direito), o campo jurídico também ganha autonomia
relativa, produzindo uma espécie própria de capital simbólico – o capital jurídico –,
consistente numa competência técnica e social de se dizer o direito, que significa, em
última análise, o poder de se interpretar e afirmar a visão oficialmente justa ou
legítima da ordem social (Bourdieu, 2007a, 2007b).(ALMEIDA, 2016)

Essa legitimidade concedida pelo hábito social teria levado o Poder Judiciário a
assumir, mesmo não sendo sua função específica, mesmo não sendo característica de sua
natureza, a institucionalização da Mediação como política pública de resolução de conflitos, e
de outras políticas que não são decorrentes da sua natureza.
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O Judiciário seria, nesta visão, o único poder hábil a institucionalizar a Mediação,


competência que decorre da concentração do poder e do capital simbólico que carrega, em
detrimento dos outros poderes.
A Mediação Judicial e atuação política do Judiciário na institucionalização da
Mediação seriam, dentro dessa perspectiva, a grande solução para a efetividade da Mediação,
pois só assim, com a aplicação das leis que instituíram a Mediação essa modificação da cultura
adversarial de solução de conflitos seria possível.
Diante de perspectivas diversas sobre a atuação política do Poder Judiciário na
institucionalização da Mediação, como já mencionado, ainda não é possível chegar quaisquer
conclusões epistemologicamente seguras, ainda é necessário um amadurecimento institucional
e social acerca da Mediação no Brasil, e nesse percurso a atuação dos atores sociais que
promovem e disseminam a Mediação será fundamental.

CONCLUSÃO

O propósito maior do presente artigo é refletir se, mesmo que a consagração da


concentração de poder em relação ao Judiciário venha a coloca-lo na posição de órgão
responsável pela institucionalização da Mediação, “quando outros não poderiam fazê-lo com
tamanha credibilidade”, teria ele essa função já que a atividade desenvolvida em muito difere
das características da Mediação. A reflexão que se faz é se o Judiciário não estaria sendo
utilizado como instrumento e avocando função que não lhe seria originária.
A única conclusão que é possível chegar, e de fato não responde às reflexões
formuladas, é que a utilização do Poder Judiciário na institucionalização da Mediação encontra-
se consolidada no ordenamento jurídico brasileiro e que vem se desenvolvendo ao seu modo.
Se positivo ou negativo, ainda não é possível aferir devido à brevidade da sua prática. Mas um
aspecto é importante ressaltar, sempre que se utiliza um “garfo para tomar uma sopa, a maior
parte do conteúdo escorre e se perde”.

REFERÊNCIAS

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Grupo de Trabalho 04

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS
UM ENSAIO DE DIETROLOGIA JURÍDICA:
O CASO DA ALDEIA IMBUHY

BARAHONA, Henrique
Doutor em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF
Doutor em História pelo PPGH/UFF

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo discutir o papel da “evidência” no direito e a violência de que ela faz parte,
que ela oculta, tomando como base o exemplo da “Adeia Imbuhy”, como ficou denominada a
comunidade tradicional localizada dentro dos limites de uma unidade do Exército Brasileiro situada na
cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. A metodologia a ser utilizada para inquietar a
credibilidade das provas manejadas nas decisões judiciais do Tribunal Regional Federal da 2ª Região
sobre a comunidade e que autorizaram a remoção dos moradores da Aldeia Imbuhy é a “dietrologia”, tal
como a denomina o historiador italiano Carlo Ginzburg. Com esta ferramenta indiciária, procuraremos
formular uma proposta que seja ao mesmo tempo metodológica e de fundo, oferecendo uma nova visão
sobre o conflito sociojurídico verificado naquela localidade.

Palavras-chave. Aldeia Imbuhy, dietrologia, direito.

ABSTRACT:

This article aims at investigating the role of “evidence” in the law and its violence, which it hides, based
on the example of “Adeia Imbuhy”, as it was called the traditional community within the limits of a unit
of the Brazilian Army in the city of Niterói, in Rio de Janeiro. The methodology to be used to disturb the
credibility of the evidence handled in the judicial decisions from Tribunal Federal Regional da 2ª Região
that authorized the removal of the inhabitants of the Imbuhy Village is the “dietrology”, as the Italian
historian Carlo Ginzburg calls it. With this indiciary tool, we will try to formulate a proposal that is
methodological and substantive at the same time, showing a new vision on the socio-juridical conflict
verified in that locality.

Keywords. Aldeia Imbuhy, dietrology, law.

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A Aldeia Imbuhy é uma comunidade tradicional litorânea de Niterói, no Rio de


Janeiro, situada dentro dos limites de uma área de terras reivindicada pela União Federal. É ali
onde fica uma unidade do Exército Brasileiro, o 8º Grupo de Artilharia de Costa Motorizado.
Os moradores da Aldeia vêm sendo pouco a pouco arrancados do seu lugar, da sua terra, do seu
chão; pessoas que tiveram dolorosamente apagada a sua história, a sua memória, os seus traços,
os seus laços muito mais abrangentes do que os de simples vizinhança, vínculos muito mais
profundos e irredutíveis a simples relações jurídicas. Ali havia escola, igreja, trabalho, casas,
uma gente e seu cotidiano. “Vidas infames”, famílias inteiras que num determinado momento
caíram nas teias do poder, que foram enredados nas malhas do discurso jurídico e da sua
escrupulosa neutralidade, ficando dali para sempre registradas nas folhas dos processos
judiciais. Papéis a indicarem como as suas remoções foram legitimamente autorizadas, “autos”
que revelam como foi permitido que estas pessoas fossem expulsas das suas casas lentamente
pelos escalões militares com a chancela dos escalões do direito, uma violência por anos a fio
ficou ocultada, tornada invisível por um artifício, exatamente porque autorizada pelos homens
da lei e seu discurso privilegiado baseado objetivamente em “evidências”.
“Escrevo invadido pela angústia”, afirmou o historiador italiano Carlo Ginzburg ao
escrever o livro intitulado “El juez y el historiador”, sobre a condenação de um amigo dele,
Adriano Sofri, pelo assassinato na Itália do comissário de polícia Luigi Calabresi em 17 de maio
de 1972, em plena Guerra Fria. A acusação recaiu sobre os membros da Lotta Continua, um
grupo de militantes de esquerda em sua maioia de orientação anarquista, do qual Sofri fazia
parte. Neste livro, Ginzburg problematiza as “evidências” manejadas pelo juiz do processo
penal em que Sofri era incriminado para fundamentar a sua convicção dos fatos expressa na
sentença penal condenatória, comparando o que significa a evidência para o juiz e a evidência
para o historiador, já que ambos, segundo ele, possuem em comum a tarefa de verificação dos
fatos e da sua prova. Ginzburg, o historiador conhecido por suas análises historiográficas
conjecturais, indiciárias, provisórias, lançou mão de um mecanismo metodológico capaz de
questionar a credibilidade incontestável das “evidências” (o pleonasmo é proposital) do direito,
quer dizer, uma “dietrologia” (GINZBURG, 1993, p. 64), palavra italiana que expressa uma
desconfiança interpretativa das provas. Léxico pomposo, que impressiona, mas que quer dizer
algo muito simples. Com este mecanismo “dietrológico” de interrogação permanente sobre o
que pode estar por trás (“dietro”) da versão que se torna a única, a oficial, ele propôs uma
“antievidência” ao argumento jurídico assentado nas verdade última de uma prova, isto é, um
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descontentamento fundamental do analista com a mera superfície dos acontecimentos, os seus


textos, as suas bases documentais.
Não se trata aqui – e que isso fique bem claro – , do conceito de “evidência” oriundo
da dogmática jurídica, principalmente a norte-americana. Falo da “evidência” em seu sentido
mais profano, do grau máximo de probabilidade que uma prova ou fonte carrega consigo, sem
perder de vista, contudo, que se trata apenas de uma probabilidade. A rigor, a palavra
“evidência” sequer aparece nas decisões judiciais atinentes à Aldeia Imbuhy que analisei.
Chamam atenção frases como “A análise feita pelo juiz sentenciante se ateve aos elementos de
prova constantes dos autos”, ou “o Tribunal de origem firmou, com base nas provas dos autos,
que não teriam amparo fático e que haveria falar em esbulho possessório”, e ainda que “se torna
insuperável a prova trazida pela UNIÃO” (REsp 1.650.680-RJ). Entretanto, há uma oração
neste mesmo acórdão que melhor sintetiza a credibilidade dada a uma determinada
argumentação com base em provas que triunfam em detrimento de outras, conferindo valor de
verdade à narrativa vencedora dos fatos e legitimidade à decisão: “Tenho, pois, como
verdadeira a versão dos fatos sustentada, e que considero provada pela UNIÃO”. Ginzburg
aludia à evidentia in narratione da poesia latina, ou da enargheia grega, como uma capacidade
de representar com vivacidade determinados personagens e situações, comunicando
eficazmente uma ilusão da realidade. O que está em jogo é justamente aquilo que como no
teatro antigo era “mascarado”, ou seja, aquilo que é sempre falseado, o que é ocultado, o que é
por ela encoberto no plano das possibilidades. Pois bem, o que nos interessa na “evidência”
jurídica envolvendo as nossas “tragédias” socioambientais (LOBÃO, 2000, p. 161), falando
especificamente na Aldeia Imbuhy, é o que nela não tem nada de óbvio. Não se trata mais do
que um conceito tem de instituinte de uma determinada prática ou relação de poder através do
direito, mas justamente o que nele é desestabilizador, o que inquieta o monólogo jurídico sobre
o direito às terras da Aldeia. Por esta razão este é apenas um ensaio, ironicamente um ensaio.
Uma diatribe, talvez. O que importa é trazer à luz o tudo o que a “evidência” até agora deixou
necessariamente de fora como condição para ser, ela mesma, uma “evidência”, arrogando-se
como significante único, roubando para si todo o sentido, ao imaginar-se preenchendo todas as
lacunas, negando qualquer outra versão pretendente dos fatos e obstruindo o acesso a qualquer
outra narrativa possível. É desta forma que ela passa a produzir pessoas coisificadas,
removíveis, que podem ser abandonadas à própria sorte e jogadas pra lá e pra cá.
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Da minha parte, não sou juiz nem historiador. O meu doutoramento em História não
me confere, por si só, a alcunha de historiador, não me dá a formação de historiador que não
possuo. Mas nem por isso deixo de escrever também tomado de indignação diante da remoção
compulsória destas pessoas baseada nas “provas” dos autos ou em “evidências” que acredito
devam ser rebaixadas, destronadas, como diria M. Bakhtin. Não para colocar uma outra
“verdade” em seu lugar, mas justamente para incomodar a verdade, para desabsolutizar o lugar
dela, espaço que deve ser deixado vazio, desocupado, trazendo à tona a violência que dela
resulta. Eis aqui outra palavra que já foi dita e que precisa ser explicada fora dos cânones onde
geralmente ela se encontra: a violência. Posso até consentir que haja uma invisibilidade
“simbólica” do poder operada pelo discurso jurídico na valoração das provas, uma ficção
legitimante de uma relação de dominação, segundo teorizado por P. Bourdieu. Mas me parece
que o deslocamento forçado recente de dezenove famílias, com as suas casas sendo postas
abaixo por retroescavadeiras ainda com os seus pertences pessoais e mobiliário no interior,
vigiado de todos os lados por cães e soldados armados de fuzis, em cumprimento de uma ordem
judicial de despejo, está situada muito mais além de uma “violência simbólica” weberiana. Pelo
menos ela o será dependendo de como submetemos a prova à prova, quer dizer, de como
passamos a suspeitar da “evidência” que sustenta o olhar adormecido. Pode ser que eu esteja
equivocado, mas talvez ao se esvaziar a “evidência” de todo o conteúdo despótico de verdade
com o qual monopoliza o fato narrado, tudo isso possa ser visto como uma violência pura, cruel,
ignóbil. Aliás, o conflito socioambiental na Aldeia Imbuhy deve ser compreendido num
contexto ainda maior de remoções em marcha atualmente no Rio de Janeiro. É um caso muito
semelhante ao que ocorre na Comunidade Quilombola da Ilha da Marambaia, onde a União
Federal vem também ajuizando diversas ações judiciais de reintegração de posse em face dos
seus habitantes.
Vejamos um exemplo. Há um enunciado no mesmo acórdão do Superior Tribunal de
Justiça antes mencionado de que “A história é bem verossímil”. Para concluir, logo em seguida,
contrariamente aos moradores: “E compreensível que, no final do séc. XIX, os comandantes
militares permitissem que alguns militares e servidores civis das diversas fortalezas ali
existentes trouxessem suas famílias para residir próximo do local de trabalho”. A referência ao
século XIX é uma alusão à suposta posse da área pelo Exército Brasileiro desde 1863. Esta
“história verossímil” vem sendo repetida como um mantra em diversas ações judiciais
pesquisadas. E de tal maneira, que se chega a dizer que “resta incogitável qualquer tese de posse
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que possa inviabilizar a gestão da coisa pública” (apelação nº 0033234-40.1996.4.02.5102).


Todavia, estas mesmas ações judiciais estão repletas de certidões invisíveis expedidas pelos
Cartórios de Registros de Imóveis indicando que a área é particular, que ela está em nome de
pessoas feitas de carne e osso, além de outros documentos, como cartas, recibos e fotografias.
Como pode? Ainda que a maioria das ações relativamente à Aldeia Imbuhy seja de natureza
possessória, ou pelo menos deveria ser, este dado não é irrelevante. A origem destas fontes ou
provas menores, desprezíveis, deve ser buscada no regime de direito público sobre as terras
existente desde pelo menos 1850. Deve-se à Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850, também
chamada de “Lei de Terras”, a normatização “sobre as terras devolutas no Império, e acerca das
que são possuídas por títulos de sesmaria sem preenchimento das condições legaes, bem como
por simples títulos de posse mansa e pacífica...”.
Foi esta lei que instituiu a obrigatoriedade do registro nos arquivos paroquiais a partir
de 1850. Esta disposição da “Lei de Terras” causa uma certa estranheza a reivindicação que a
União Federal faz da área do Forte Imbuhy desde 1863. Pois ainda que seja verdade que a
unidade militar foi ali instalada naquele ano, já havia ali áreas particulares tituladas e gente
morando anteriormente nelas, gozando plenamente da proteção do Estado Imperial. Essas
pessoas sim, tiveram as suas posses transformadas em propriedade em virtude de lei. Desta
forma, não me parece “verossímil” que o Exército Brasileiro tenha chegado no local e
encontrado tudo vazio, sem ninguém morando, ou que tenha simplesmente dito “cheguei!
Agora vão todos embora”. Isto significaria simplificar demais o conflito sobre a reivindicação
de terras pelas comunidades tradicionais e o olvido dos direitos e garantias a elas conferidos
pela Constituição da República de 1988 e pelo Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007.
Mesmo assim, lembro que a já Constituição Imperial de 1824, em vigor quando editada a “Lei
de Terras”, tinha como princípio a proteção da propriedade privada daquelas pesoas em seu
artigo 179 (“A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem
por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do
Imperio...”).
A “Lei de Terras” de 1850 foi posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 1318 de
30 de Janeiro de 1854, que dispunha em seu artigo 24 que “Estão sujeitas à legitimação as
posses que se acharem em poder do primeiro occupante, não tendo outro título senão a sua
occupação”, bem como “as que, posto se achem em poder do segundo occupante, não tiverem
sido por este adquirida por titulos legitimos”. A mesma “Lei de Terras” foi posteriormente
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regulamentada pelo Regulamento de 8 de Maio de 1854, que em seu artigo 91 estabalecia que
“Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriede ou possessão, são
obrigados à fazer registrar as terras que possuírem”, o que passou a ser efetivamente feito em
seguida, dando origem à titulação particular de toda a área da Aldeia Imbuhy antes da chegada
do Exército Brasileiro no local. Por isso há nos processos esta grande quantidade de certidões
imobiliárias de áreas circunscritas na Aldeia Imbuhy registradas nos cartórios de Niterói e São
Gonçalo, já que a região de Itaipú, Piratininga e Imbuí ficava antigamente sob a competência
registral deste último município. Documentos ou “provas” abundantes que ninguém procurou
saber de onde vieram. Voltaremos a isso mais adiante. O que eu gostaria de propor é uma outra
narrativa possível, contrária à anterior, e a conclusão que desta outra narrativa resulta será, por
conseguinte, também diametralmente oposta: os moradores da Aldeia Imbuhy, muitas delas
proprietárias das terras onde viviam e trabalhavam muito antes da chegada da União Federal,
jamais tiveram a sua presença no local tolerada pelo Exército, e por isso vêm sendo
paulatinamente arrancadas de lá. A afirmação de que os moradores “convivem pacificamente
com os militares no entorno do Forte Imbuhy (ou Imbuí) há várias décadas”, que encontramos
no acórdão da apelação nº 0033242-17.1996.4.02.5102, faz de conta que não existe de fato um
sério conflito histórico sobre a ocupação do local.
A propriedade “imemorial” da União Federal sobre as terras da Aldeia deve-se ao que
ficou decidido na apelação cível nº 6.421, uma decisão muito mais repetida do que lida. Se
passarmos os olhos com vagar nas alegações finais do Procurador da República naquela ação
de manutenção de posse, ou seja, de índole possessória, José Júlio de Saboia e Silva, vamos ver
que ele próprio reconheceu em suas razões a propriedade particular das terras do “Imbuhy”
desde o século XVIII, mais precisamente, pelo menos desde 1721. E disse ainda mais: “Após
os estudos procedidos pela engenharia militar, o Governo Imperial’, por Aviso do Ministério
da Guerra de 21 de Novembro de 1862, tomou posse da Ponta do Imbuhy, para melhor construir
o Forte D. Pedro II”. Percebam que quando a posse da União Federal teve início – sem
indenização alguma aos proprietários – ela oficialmente estava reduzida à “Ponta do Imbuhy”,
na pedra também conhecida como “Ponta do Boqueirão”, não na praia ou na direção da lagoa
de Piratininga. E a discussão dentro daquele processo, por mais curioso que possa parecer hoje
em dia, era inversa ao que se discute atualmente, se esmerando o Procurador em demonstrar
que a posse então restrita à “Ponta do Imbuhy” não havia sofrido qualquer oposição aos
moradores da localidade. Ora, isso revela que sempre foi a União Federal a invasora, a
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indesejada, a estrangeira. Não foi uma posse clandestina, se tomarem por fundamento, num
apego formalista, o tal “Aviso” ministerial de 21 de novembro de 1862. Mas ela de qualquer
maneira acabou se mostrando violenta, desde o seu início, pela não indenização de quem ali
estava, tendo em vista a proteção da propriedade trazida no já mencionado artigo 179 da
Constituição do Império. Clandestinidade que se perpetua ainda atualmente, já que estão todos,
proprietários e possuidores, abrangidos pela proteção constitucional dada às comunidades
tradicionais. Foi naquela sentença que a posse da União Federal de uma pequenina parte da
região de Imbuhy e Piratininga situada apenas na Ponta do Boqueirão, encravada na pedra, por
uma ficção jurídica, se expandiu para a posse de 600 braças de terras ao seu redor, pouco
importando quem já se encontrava lá “imemorialmente”. Deve-se ao estudo de Márcia Motta a
informação de que no Almanak Laemmert de 1867, apenas quatro anos após a posse do
Governo Imperial da Ponta do Imbuhy, eram apontados dois proprietários e um Inspetor de
Quarteirão na referida localidade, cargo surgido com o Código de Processo Criminal de 1832.
Cada Quarteirão deveria ter no mínimo vinte e cinco casas ou “fogos”, o que nos dá uma noção
da provável quantidade de pessoas atingidas pela intromissão dos homens de farda na sua
comunidade. Em seguida, a fortificação na Ponta do Boqueirão ficou abandonada até 1901,
perdendo inteiramente a afetação ou destinação pública conferida pelo Aviso de 21 de
novembro de 1862. Isso demonstra também a trama das conveniências duvidosas, dos
interesses obscuros e seus critérios desiguais. Basta ver que a presença do Forte do Gragoatá
aqui bem perto de dois campi desta Universidade Federal Fluminense, não limita o tráfego de
pessoas ou veículos, moradores e alunos dentro das 600 braças ou 1.318,800 metros ao seu
redor, segundo uma anacrônica disposição que remonta a um Regulamento de 12 de fevereiro
de 1812.
Esta gente, portanto, resiste às remoções que foram iniciadas ainda no século XIX.
Nada justificaria o desmando e a violência que ali ocorre ao longo dos anos, com o
desapossamento forçado de bens particulares em virtude do agigantamento do poderio dos
militares após sucessivos períodos históricos em que a democracia fora ela própria violentada.
A começar pelos “vitoriosos” da própria Proclamação da República, quando a população
atônita, assistiu a tudo como se fosse uma parada militar. José Murilo de Carvalho tomou de
empréstimo a expressão na época utilizada por Aristides Lobo indicando que o povo ficou
“bestializado” com a quartelada que pôs fim ao Império. Nas palavras do historiador: “Os
militares tinham provado o poder que desde o início da Regência lhes fugira das mãos. Daí em
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diante julgaram-se donos e salvadores da República, com o direito de intervir assim que lhes
parecesse conveniente” (CARVALHO, 1987, p. 22). Logo em seguida houve o
aprofundamento de uma crise política com Floriano Peixoto que vitimou até mesmo a Rui
Barbosa, que havia saído em defesa das pessoas presas e desterradas pelos militares fiéis ao
“Marechal de Ferro” durante a decretação do Estado de Sítio em 1892. Os Ministros do
Supremo Tribunal Federal, ao comunicarem a Floriano que não poderiam deixar de conceder
o Habeas Corpus impetrado por Rui Barbosa em favor dos pacientes, ouviram do então
Presidente a seguinte ameaça: “Esta notícia me contraria sobremodo. Não sei amanhã, quem
dará habeas-corpus aos ministros do Supremo Tribunal...” (Apud VIANA FILHO, 1949, p.
253). O resultado foi a denegação do mandamus e o exílio do “Águia de Haya” para a
Argentina, Portugal e a Inglaterra. Se o exílio foi a resposta dada pelo “Marechal de Ferro” ao
grande jurista que era Rui Barbosa, personagem cultuado até os dias de hoje, o que se dirá de
simples pescadores e extrativistas num local que passou a ser naquele momento cobiçado para
acomodar todo o séquito de vitoriosos fiéis florianistas? O resultado disso tudo para eles foi um
exílio dentro das suas próprias casas, o desterro dentro do próprio lugar onde viviam.
Na “Planta do Imbuhy e Arredores, levantada, desenhada e impressa pelo Serviço
Geographico Militar” em 1924, foram apontadas diversas residências em torno da lagoa de
Piratininga e da praia do Imbuhy, ligadas pelo “Caminho da Lagoa”, que depois ficou chamado
de “Estrada da Fonte” (referência à “fonte da Penha”, nome dado ao poço de água potável que
abastecia os moradores na praia de mesmo nome dentro da lagoa), e que depois teve até mesmo
o seu nome apropriado pelo Exército e virou “Estrada do Forte”. Naquela documento é possível
ver a expansão da ocupação militar para além da ponta onde antes havia apenas os canhões que
ficam na Ponta do Boqueirão, a residência original dos oficiais, o cassino e o quartel. Neste
mapa é possível perceber o avanço das edificações militares em direção às dezenas de casas
dos moradores marcadas em pequenos pontos pretos situadas tanto na praia do Imbuhy como
na direção das casas que ocupavam o “Caminho da Lagoa”. Numa demonstração bruta e
deigual de poder, os hotéis de trânsito dos oficiais e suboficiais foram construídos no local exato
onde antes ficava a escola Miriam de Andrade Mello no outro extremo da praia, que funcionava
como uma espécie de centro de tradições comunitárias. E a guarita ou “guarda” que limitava a
entrada e saída de pessoas e veículos pelo antigo “Caminho da Lagoa” do lado de Piratininga,
e que originalmente ficava bem perto da praia do Imbuhy, foi esticada até chegar praticamente
na antiga Praia da Penha.
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Já naquela época havia uma pressão econômica sobre a Aldeia. Neste mesmo ano de
1924 começou a aludida disputa judicial sobre a área entre Mário Guaraná de Barros e sua
esposa e a União Federal. Quem tiver curiosidade de ler aquela primeira sentença proferida em
9 de setembro de 1932 verá que a primeira coisa que fez Mário Guaraná foi tentar vender a área
que acabara de comprar por quinze contos de réis imediatamente para o Ministério da Guerra
por quinhentos e vinte oito contos de réis! O négócio não deu certo. Todos se diziam
incrivelmente donos de tudo. Nenhum deles tinha razão. Nem Mário Guaraná e sua esposa
eram proprietários de toda a área, nem os militares detinham a posse que dizia ter. Mas quem
se saiu melhor, quer dizer, quem saiu vitoriosa na contenda judicial, como sendo a possuidora
de toda a área de servidão militar compreendida dentro das 600 braças de raio da torre do Forte
Imbuhy, ao menos naquele momento, foi a União Federal. Uma posse que, é bom repetir, ela
nunca teve. Nova investida contra os pescadores ocorreu quando foi praticamente proibida a
pesca de camarões na Lagoa de Piratininga, tornada propriedade particular pelo Decreto
Estadual nº 51 de 1943 que criou a “Companhia Itaipu”. O loteamento de toda a área lagunar
em 1947 empurrou os pescadores para a faixa mais próxima da enseada do Imbuhy, onde
abrigavam melhor os seus barcos das ondas e ventos. O loteamento foi feito num acordo entre
o incansável Mário Guaraná e a empresa Jardins Piratininga Imbuí Limitada, como se
depreende da Certidão do Livro 8-Auxiliar, fls. 008, sob o nº de ordem 02, do Cartório do 15º
Ofício de Justiça de Registro de Imóveis de Niterói. Pela descrição da propriedade da empresa
Jardins Piratininga Imbuí Limitada, ela ia “da lagoa de Piratininga e Praia de Imbuí”. Segundo
este mesmo registro, o loteamento “contará com elemento paisagístico, de grande valor, com
um bosque”; a “construção de um cais”, “um hotel moderno”, e “a sede de um clube, localizado
na ilha, que se encontra no interior da lagoa de Piratininga, no gênero do Clube dos Caiçaras
existente na lagoa Rodrigo de Freitas”. O Decreto-lei 58/37 estabelecia como condição para o
registro da área “uma relação cronológica dos títulos de domínio, desde 30 anos, com indicação
da natureza e data de cada um, e do número e data das transcrições” que jamais foi feita. Caso
houvesse sido realizado este levantamento, certamente seria verificada numa área tão extensa a
existência de dezenas de propriedades privadas antecedentes no local. No estudo feito por
Lejeune P. H. de Oliveira sobre o sistema lagunar de Piratininga e Itaipú em 1948, ele afirmava
existerem trinta e oito casas na região. Lejeune reproduzia em seus escritos o pressentimento
corrente já naquela época de que “as lindas praias atlânticas da margem oriental de Niterói;
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Piratininga e Itaipu, transforma-se-ão em futuro breve em bairros residenciais idênticos aos de


Copacabana, Ipanema e Leblon” (Apud OLIVEIRA, 1948, p. 683).
Levantar a propriedade das terras e mesmo a sua posse não interessava aos sócios da
empresa Jardins Piratininga Imbuí Limitada que investiam o seu capital na área. Seria mais fácil
remover os humildes moradores depois, fosse pela truculência, fosse através do Poder
Judiciário. A última coisa que pretendiam era chamar a atenção para a proveitosa fraude em
curso. E por isso precisavam que o Município de Niterói aprovasse tudo às pressas, sem levantar
qualquer suspeita. E também que os cartórios recém-criados não pesquisassem a origem dos
títulos aquisitivos e esquecessem os títulos preexistentes. Assim foi feito. A dificuldade era que
o Decreto-lei 58/37 previa que “o plano e planta do loteamento devem ser previamente
aprovados pela Prefeitura Municipal, ouvidas, quanto ao que lhes disser respeito, as autoridades
sanitárias e militares”. Com isso, o arranjo entre os proprietários da Jardins Piratininga Imbuí
Limitada e o município esbarrou frontalmente nos interesses do Exército Brasileiro na área
loteada, pois em sendo o memorial do loteamento aprovado pela municipalidade sem a
oposição da União Federal, a área se tornaria toda loteada, particular, e todas as ruas e as praças
públicas daquela localidade passaram a pertencer desde então ao Município de Niterói. Como
resultado, a União Federal nunca se opôs juridicamente ao aludido loteamento. A mencionada
matrícula imobiliária do loteamento dizia que “...foram publicados editais, divulgando a
pretensão da requerente para conhecimento de terceiros interessados, pelo prazo legal, durante
o qual, não havendo sido, apresentado, qualquer impugnação à inscrição requerida...”.
O problema criado para o Exército Brasileiro pelos proprietários do loteamento e os
burocratas municipais era difícil de consertar, mas não impossível. Ainda mais com o precioso
auxílio dos tabeliães. Em 02 de abril de 1951, o loteamento foi alterado, com a retirada a porção
de terras dentro da servidão militar. Para compensar esta “perda”, aumentaram, como num
passe de mágica, de 770 para 1.442 lotes, tendo a parte da praia e lagoa de Piratininga
modificada a sua denominação para loteamento Marazul. Se a área de servidão onde estava
localizada a Aldeia Imbuhy não pertencia ao loteamento, pertencia ao Exército. Foi mediante
mais este artifício que as propriedades particulares situadas na praia do Imbuí ao longo do
tempo ficaram esquecidas, como se a área pertencesse “imemorialmente” ao Exército. Com
isso, os tradicionais membros da comunidade passaram a ser considerados não mais com direito
à terra, sendo transformados todos em posseiros sem direito a nada, nem mesmo a uma
indenização. Aliás, nada disso chega a ser novidade. Os títulos de propriedade estão aos
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bocados encartados nos processos judiciais dos moradores da Aldeia Imbuhy, sem que alguém
indagasse de onde vieram. Ainda que a maioria das ações em trâmite atualmente tomem por
base a posse dos terrenos, a propriedade particular da área onde se encontram estabelecidos há
décadas daria a eles o direito de ao menos pedirem o reconhecimento da posse qualificada
através da ação de usucapião.
Esta questão possui relevância vista tabto sob o ângulo da propriedade quanto da
posse anterior da área de servidão militar que “saltou” da Ponta do Boqueirão para uma área
imensa dentro das 600 braças. Pura ficção. Tudo isso acontecia quando o próprio direito de
propriedade estava se constituindo nas discussões sobre o Código Civil em elaboração desde a
contratação de Augusto Teixeira de Freitas em 1858, debates que invadiram o século XX.
Imagino que o direito das comunidades tradicionais à terra deve passar por outros mecanismos
e o presente estudo está a demonstrar que o modelo atual encontrado nas ações judiciais é
insuficiente, para dizer o mínimo. Mas se é a propriedade vale para um, deve valer para outro.
O fato de os aldeães terem construído as suas residências em terrenos de marinha só é uma
“ilegalidade” do ponto de vista do colonialismo jurídico atual. Sob o aspecto da
heteronormatividade, é esta justamente a característica histórica que os define como uma
comunidade tradicional a ser protegida segundo a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), como tal reconhecida pelo
Parecer Técnico nº 032/2009, Referência PA 1.30.005.000137/2003-81, da 6ª Câmara de
Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Por isso falo da propriedade apenas para
provocar um curto-circuito no discurso jurídico da propriedade, colocando o dedo nas suas
feridas, nas suas incoerências, jogando o direito contra o direito, mostrando que ainda que se
entre neste pantanoso terreno patrimonialista, há no caso da Aldeia Imbuhy uma “contraprova”
a ser levada em conta, uma “contraevidência”, um “algo mais” que desestabiliza a reivindicação
da área pela União Federal. Com efeito, esta afirma nalgumas ações “ser proprietária e legítima
possuidora da área” (apelação nº 0033477-81.1996.4.02.5102). Baseia-se este acórdão numa
firma convicção: “inexistindo dúvidas de que a Aldeia do Forte Imbuhy se encontra localizada
em bem público da União”. Mas será?
Vejamos outro exemplo. Nos autos da ação de reintegração de posse nº 24.111/1959,
movida por dois proprietários e possuidores da área contra a União Federal, encontramos o
Oficio nº 498 SSS/SI da Diretoria do Patrimônio do Exército, datado de 26.11.64. Este
documento esclarecia que “a zona de servidão militar pode ser próprio nacional sujeito a
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aforamento ou de propriedade particular”, e que “quando aforado ou pertencente a terceiro o


imóvel na zona das 600 braças será desapropriado se pelo Ministério da Guerra foi emitido
parecer contrário à sua utilização por ser proprietário”. Levando em conta este documento, o
então Ministro Amarílio Benjamim, do antigo Tribunal Federal de Recursos, examinando a
matéria debatida naqueles autos, deu razão aos proprietários do terreno dentro da Aldeia
Imbuhy que foram esbulhados pelo Exército, reintegrando-os em sua posse cuja sucessão
remontava a 1889: “Nesses termos, demonstrada também a violência praticada pelo comando
do Grupamento Militar, é fora de dúvida que a ação deve ser julgada procedente”. Não sou eu,
portanto, que digo que o proceder do Exército no caso da Aldeia Imbuhy em relação aos
pescadores foi violento, mas a própria decisão transitada em julgado há décadas: “O uso da
fôrça desnatura os propósitos do Patrimônio do Exército e tornam os ocupantes da propriedade
os Autores como esbulhadores”; ou “a ilegitimidade do desapossamento daqueles que, com
legitimidade, mantinham a discutida posse efetiva”. De fato, reconhecida judicialmente a
violência perpetrada pela União Federal, outra alternativa não restaria senão a desapropriação
da área. Foi então expedido o Ofício nº 197/SSPR/1-SS1, assinado pelo Coronel Otto Denys
Gomes Porto, então Chefe do Escalão Territorial da 1ª RM, em 04/05/1982, e também a petição
dirigida ao juiz firmada em 16 /11/1982, assinada pelo Assistente Jurídico da União, o Dr.
Florinaldo J. B. Parahyba, comunicando a intenção de desapropriar o terreno litigioso. Esta
desapropriação, contudo, jamais foi levada a termo. Ao invés disso, a União federal, ajuizou
em 1996 a ação de reintegração de posse nº 033233-55.1996.4.02.5102, juntamente com outras
dezenas de ações contra os moradores da Aldeia, em face dos sucessores desses dois moradores
que ainda resistem no local, omitindo tudo isto que se disse acima, como se nada disto tivesse
acontecido. Portanto, a União Federal sabe muito bem, sempre soube, que a servidão militar
não lhe transferiu automaticamente nem a posse nem a propriedade da área onde esteja
porventura inserida. Na decisão do processo nº 1998.51.02.201069-6, ficou decidido que nem
sempre a posse é a exteriorização da propriedade, ou seja, que “algumas vezes, a posse decorre
da lei”. Sim, é verdade. Mas a própria lei estabelece critérios para tanto. A área da Aldeia
Imbuhy é particular por presunção decorrente dos títulos de propriedade registrados na forma
da Lei 6.015/1973, títulos que remontam ao século XIX, anteriores à presença militar na região,
e permanecerá particular até que todos os passos previstos em lei ou o “devido processo legal”
para a desapropriação sejam cumpridos. Mas este interesse, ainda que houvesse, não poderia
suplantar o de uma comunidade tradicional protegida por lei.
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Há também julgados entendendo que a propriedade da Aldeia Imbuhy é pública em


virtude do Decreto nº 77.890, de 22 de junho de 1976. Mas se a propriedade e a posse da área
pela União Federal era “imemorial” (apelação nº 0033477-81.1996.4.02.5102), como se diz
repetidamente nas decisões judiciais, qual seria a necessidade deste Decreto? Apenas
possibilitar o registro traslativo da propriedade? Mas o julgado nº 2001.02.01.010184-6 afirma
que o referido decreto não confere a propriedade da área à União Federal. E vai mais além,
dizendo que a posse da União não é originária, devendo ser respeitadas as situações já
consolidadas. Este Decreto nº 77.890/76 nada mais é do que um triste registro do período
ditatorial militar inaugurado em 1964, pelo qual o Presidente da República, Ernesto Geisel,
autorizou o registro em nome da União Federal da área ocupada pela “1ª Bateria do 1º Grupo
de Artilharia de Costa Motorizado e do Presídio do Exército, ocupado nos últimos vinte anos,
sem interrupção nem oposição, pelo Ministério do Exército”. Mas como, “sem interrupção nem
oposição”?
Este Decreto 77.890/76 tem como norma de regência a Lei nº 5.972, de 11 de
dezembro de 1973, estabelecendo que “O Poder Executivo promoverá o registro da propriedade
de bens imóveis da União... possuídos ou ocupados por... unidades militares, durante vinte anos,
sem interrupção nem oposição” (artigo 1º, inciso II). Diz também que deverá conter “certidão
lavrada pelo Serviço do Patrimônio da União (S.P.U.), atestando a inexistência de contestação
ou de reclamação feita administrativamente, por terceiros, quanto ao domínio e à posse do
imóvel registrando” (artigo 2º); e que “o Oficial do Registro verificará se o imóvel descrito se
acha lançado em nome de outrem” (artigo 3º). Reparem bem que o aludido Decreto fala em
terrnos “possuídos ou ocupados” pela União, ou seja, sobre a posse. No exemplo que demos
acima, a posse da União Federal foi eficazmente contestada em juízo. Logo, neste e também
em tantos outros casos, a União Federal não contava com a posse vintenária das áreas da Aldeia.
Pelo contrário, as casas dos pescadores já estavam lá vinte anos anos antes. Isso quer dizer que
quem exercia a posse eram os moradores da comunidade! Além do mais, basta uma leitura na
Certidão do Cartório do 15º Ofício para perceber que o requerimento administrativo da União
Federal não indicou o Cartório de Registros de Imóveis onde estavam pulverizados todos os
títulos de propriedade dos particulares da Aldeia Imbuhy em Niterói e São Gonçalo. Esta
manobra impediu que o Oficial do Registro de Imóveis pudesse verificar a existência da
titulação anterior da área, parecendo que não havia ninguém lá, como se aquela localidade fosse
tão deserta quanto a superfície da lua.
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Eu gostaria de sugerir ainda mais uma hipótese, também provisória, que pode estar
relacionada com o período sobre o qual exercitava o historiador Carlo Ginzburg a sua
“dietrologia”: a transferência da área particular onde havia a Unidade do Exército Brasileiro
para a União Federal foi determinada em junho de 1976 pelo Decreto nº 77.890, assinado pelo
general Sylvio Frota, então Ministro do Exército. É possível que ele tinha como finalidade o
completo fechamento das várias vias de acesso que interligavam os Fortes Imbuí, Rio Branco,
São Luiz e a Fortaleza de Santa Cruz, medida que se impunha tanto para ocultar a prisão e
tortura de presos políticos que ali se encontravam, quanto ao controle da “hierarquia” militar.
Na Fortaleza de Santa Cruz funcionava o presídio do Exército. Era preciso vigiar o interior das
unidades militares, evitando “vazamentos” do que acontecia ali dentro. Sobretudo após os
assassinatos do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro do ano anterior, e do operário
Manoel Fiel Filho, em 18 de janeiro daquele mesmo ano de 1976, ambos ocorridos dentro de
unidades militares do II Exército, em São Paulo. Quando Herzog foi assassinado, Sylvio Frota
não queria a investigação do caso por um inquérito penal militar. Pretendia preservar o
anomimato todos os envolvidos naquela barbaridade. O inquérito foi uma imposição do
presidente Ernesto Geisel. O novo episódio com Fiel Filho custou a demissão do comandante
do II Exército, o general Ednardo D’Avila Mello e poderia muito bem ter custado a do próprio
Frota. Era a cabeça dele que estava a prêmio caso não colocasse ordem na casa. No telegrama
em que participava a Ednardo ter ciência da morte do operário nas dependências do DOI-CODI,
Frota indicava a “Repetição sistemática desse fato vg pois é a terceira vez que acontece vg deve
ser apurada em rigoroso inquérito...” (Apud GASPARI, 2004, p. 222). Está claro que colocar
ordem na casa não significava de modo algum acabar com a tortura sistemática de presos-
políticos, que já contava com cerca de trezentos mortos e seis mil denúncias. O problema era o
inquérito inevitável e imprevisível, a pressão pública que crescia desde a derrota eleitoral de
1974, a repercussão dos crimes praticados pelo regime militar. Será que esta narrativa faz algum
sentido? Aqui aparece uma “fonte”, uma “prova”, ou uma “antievidência”: a tortura de
prisioneiros políticos dentro do enorme complexo formado pelas quatro unidades militares dos
Fortes Imbuí, Rio Branco, São Luiz e a Fortaleza de Santa Cruz foi registrada no depoimento
do ex-preso político Umberto Trigueiro, detido em 15 de fevereiro de 1969, feito para a
Comissão da Verdade de Niterói:

Ai eles me levaram de lá, do Terceiro Regimento de Infantaria, para o Forte Rio


Branco, ali em Jurujuba. Tinha muita gente da UFF presa lá, muita gente presa.
Muitos estudantes presos lá.
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(...)
Eu segurei essa versão. E ai eles me falaram: '- Olha, você não quer falar nada, então
nós vamos mandar você para uma delegacia de polícia no interior da Paraíba.
Enquanto isso se organiza que nós vamos levar você para outro lugar.' Ai me botaram
num jipe e me levaram lá para esse Forte São Luiz.” Segue a narrativa explicando
que, nesse Forte São Luiz, não havia basicamente nada. Conta que foi colocado numa
pequena guarita, vigiado por sentinelas que revezavam de turno, onde ficou preso por
certa de 30 dias sob constantes interrogatórios e em situação de isolamento, não
havendo conhecimento de sua prisão por conhecidos ou parentes (COMISSÃO DA
VERDADE DE NITERÓI, p. 112).

Este é um motivo possível, incofessável, ignominioso, nada republicano para a


Decreto nº 77.890/76, cuja exposição de motivos é secreta. A tortura deveria permanecer oculta
ali dentro e os moradores cada vez mais controlados; o acesso à informação e a comunicação
deles vigiada, os seus passos ali dentro guiados, as suas companhias restritas. Em 1977, foi
proibida a passagem dos moradores por Piratininga pela guarda de Piratininga, atingindo não
somente aqueles que trabalhavam fora da Aldeia Imbuhy, mas até mesmo os alunos de fora
dela que estudavam na escola Miriam de Andrade Mello, e os de dentro da comunidade que
frequentavam o Grupo Escolar Fernando Magalhães do loado de fora. No ano seguinte, foi
determinada a desocupação das casas pelos moradores no prazo de trinta dias, sob pena da
adoção das medidas judiciais “competentes e adequadas ao caso”, que acabaram, ao final, por
serem tomadas.
A militarização do território da Aldeia Imbuhy que, como se percebe, é bem recente,
prosseguiu no período da redemocratização. “Território” aqui entendido nos termos do artigo
3º, inciso II, do Decreto nº 6.040/2007, o mesmo que criou o PNPCT. Mas isso não se deu sem
a resistência dos seus moradores. Há notícias de que alguns deles tentaram forçar a
ultrapassagem pela Guarda da Lagoa em direção de Piratininga em 1994, por acharem
“absurda” a ordem do comandante que impedia-lhes o uso daquela via de acesso. Em represália,
os transgressores tiveram a suas autorizações de ingresso por aquelas canceladas e proibidos de
receberem visitantes nos finais de semana “até segunda ordem”. Com o tempo, os aldeães
tiveram limitados o ingresso em suas casas dos seus vizitantes, familiares e amigos, dos seus
veículos; foi controlada a entrada das bebidas; foram proibidos de utilizarem o telefone público,
a água da rede de abastecimento, de reformarem as suas casas, quem se casasse era obrigado a
se mudar dali etc. Corpos também militarizados, hábitos, cotidiano. Foi deles exigido pelo
comandante em deterinado momento até mesmo que cantassem o hino nacional nos dias de
solenidades e trocas de bandeira, os homens com a cabeça descoberta. Mas o final daquele ano
guardaria ainda mais uma triste surpresa: a proibição da pesca pelo comandante da unidade.
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Em mais um ato de resistência, os moradores denunciaram as arbitrariedades do comando


militar da Aldeia Imbuhy à Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara Municipal
de Niterói, então presidida pelo vereador João Batista Petersen Mendes. O Relatório desta
Comissão, de 16 de maio de 1995, e que foi aprovado na reunião do dia 23 do mesmo mês,
sugeria que “os contrangimentos e pressões sobre os moradores têm como único objetivo
desalojá-los de suas moradias, por método arbitrário, ilegal e desumano” (RELATÓRIO, s/p).
De qualquer modo, a ofensiva contra os aldeães encontrou o seu momento decisivo
no ano seguinte, com o ajuizamento contra todos eles de ações de reintegração de posse pela
União Federal. Como diria Michel Foucault, “A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra
continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder” (FOUCAULT, 2005,
p. 55). O direito, para ele, invertendo a fórmula de Clausewitz, seria a guerra continuada por
outros meios. Eu apenas acrescentaria que é a guerra continuada por outros meios com as regras
do “inimigo”. No caso, o colonialismo jurídico, o monólogo jurídico sobre o direito à terra pelas
comunidades tradicionais. Toda esta enxurrada de ações de 1996, pelo menos todas as que tive
acesso, foi instruída com a cópia do Decreto nº 77.890, de 22 de junho de 1976, uma lei que
pretendia ocultar não apenas a tortura, mas a violação de outros direitos dos moradores da
Aldeia Imbuhy, como os direitos de propriedade e de posse. É inegável que ambos fazem parte
do rol dos direitos humanos inclusive internamente e não isso é de hoje. Mas em se tratando de
hipótese de violação de tais direitos quando praticada durante a vigência de regimes políticos
autoritários, a questão ganha um tratamento especial. O Conselho de Segurança das Nações
Unidas (ONU) se posicionou em 2004 no sentido de retirar os efeitos e repudiar as autoanistias
concedidas aos “crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes de lesa-humanidade ou graves
violações dos direitos humanos”. Na data da sua edição, o Decreto nº 77.890 violava os tratados
internacionais de direitos humanos então em vigor e dos quais o Brasil fazia parte. Ele riscou o
direito de propriedade resguardado nos artigos 17.1. (“Todo ser humano tem direito à
propriedade, só ou em sociedade com outros”) e 17.2. (“Ninguém será arbitrariamente privado
de sua propriedade”) da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela
Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948. A “autoapropriação” feita, sem
indenização alguma, sem a salvaguarda da posse da área pelos seus tradicionais ocupantes,
colidiu, portanto, com uma matéria inderrogável de direitos humanos internacionais, não
resistindo ao controle de convecionalidade. O historiador Carlo Ginzburg, cotejando a tarefa do
historiador e do juiz diante das provas que manuseiam, diz que “existem erros catastróficos,
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erros inócuos, erros fecundos”. Porém, no processo judicial, este último não tem lugar. “O erro
judicial, mesmo quando revogável, se traduz sempre numa diminuição da justiça”
(GINSBURG, 1993, p. 97). E qualquer diminuição da justiça, para quem a sofre, será sempre
uma violência.

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. São
Paulo: Hucitec, 2013.

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http://www.documentosrevelados.com.br/depoimentos-torturas-denuncias-ditadura/relatorio-final-da-comissao-
da-verdade-de-niteroi, acessado em 11/9/2016, às 16:42hs.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Coleção Ditos &Escritos. Volume IV, Estratégia, poder-
saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

_____________ Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FREITAS JÚNIOR, Augusto Teixeira de. Terras e Colonização. Rio de Janeiro: B. L. Garnier – Livreiro Editor,
1882.

GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

GINZBURG, Carlo. El Juez y el Historiador. Madri: Anaya & Mario Muchnik, 1993.

LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se transformar em
uma política do ressentimento. Niterói: EdUFF, 2010.

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Uma história para não esquecer. O Forte Imbuí e a expulsão dos moradores.
Laudo histórico. 2015.

RELATÓRIO da Comissão Permanente de Direitos Humanos. Câmara Municipal de Niterói. 1995.

VIANA FILHO, Luiz. A vida de Rui Barbosa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949.
ASPECTOS DE PROTEÇÃO ANIMAL, AMBIENTAL E HUMANA:
ANIMAIS E VEÍCULOS DE TRAÇÃO

CHAUFUN, Mery
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA.
Mestre em Direito pela UNESA.
Professora da Universidade Veiga de Almeida do Curso de Direito.
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA.
Professora da Universidade Veiga de Almeida dos Cursos de Direito e Administração.
NOGUEIRA, Marcelo
Doutorando do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA,
Mestre em Psicanálise, saúde e sociedade pela Universidade Veiga de Almeida.
Professor da Universidade Veiga de Almeira do Curso de Direito.

RESUMO

A presente pesquisa trata da utilização de animais para atividades pesadas, onde se usa a força, a tração
animal para o exercício de atividades de trabalho. Os impactos causados a saúde dos animais, ao meio
ambiente, e a vida humana. A utilização dos animais possui características de crueldade, grande esforço
físico, levando os animais a exposição de doenças, lesões e diminuição da qualidade de vida. A pesquisa
objetiva verificar a legislação existente quanto ao trabalho de animais de tração, verificar as
consequências para os animais e para o meio ambiente deste tipo de trabalho e analisar as novas
possibilidades que substituam a utilização dos animais. A pesquisa demonstra-se relevante por ser um
tema de relevância social, ao meio ambiente e os animais.

Palavras- chave. Meio ambiente; trabalho animal; impactos.

ABSTRACT

The present research deals with the use of animals for heavy activities, where the force is used, the
animal traction for the exercise of work activities. The impacts caused to the health of animals, the
environment, and human life. The use of the animals has characteristics of cruelty, great physical effort,
leading the animals to expose diseases, injuries and decrease the quality of life. The objective of this
research is to verify the existing legislation regarding the work of traction animals, to verify the
consequences for the animals and the environment of this type of work and to analyze the new
possibilities that substitute the use of the animals. The research is relevant because it is a subject of
social, environmental and animal relevance.

Keywords. Environment; animal work; impacts.

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INTRODUÇÃO

A visão antropocêntrica e utilitarista em relação aos animais, a ideia de superioridade


humana gerou e continua gerando exploração e desrespeito quanto aos animais não humanos.
Destaca-se no presente artigo aspectos da utilização de cavalos, burros, mulas em
trabalho informal, ou seja, carroças e charretes em áreas urbanas.
Tal utilização iniciada séculos atrás permanece na atualidade, cabendo uma análise
sucinta da legislação pertinente, problemas e impactos gerados para os animais, para o meio
ambiente e para o homem.
O trabalho se justifica, pois inúmeras crueldades e desrespeito são cometidos contra
os animais. A atividade permanece tendo como argumentos a sobrevivência humana.
Diversos locais proíbem ou regulamentam a atividade, no entanto se observa que a
fiscalização deste “trabalho” ou da legislação é precária ou ausente, notadamente quanto ao
tratamento dos animais. Torna-se necessária uma reflexão desta forma de trabalho e
substituição por outros meios.
Os objetivos são:(i) Analisar a legislação específica; (ii) Verificar o tratamento e
Consequências para os animais e para o meio ambiente; (iii) Analisar as novas possibilidades
que substituam a utilização dos animais.
Quanto à metodologia adotou-se a análise crítica da legislação brasileira que
regulamenta ou proíbe a utilização de animais para tração e consequências desta utilização, bem
como doutrina do direito dos animais e casos concretos que refletem os abusos cometidos.
Observa-se que a legislação brasileira regulamenta a utilização de animais no trabalho
informal, no entanto, tal prática somada a falta de consciência humana e fiscalização gera grave
impacto para os animais e meio ambiente, não estando em conformidade com os entendimentos
mais contemporâneos que tratam dos animais. Além disso, alguns estados brasileiros e Estados
Estrangeiros romperam com tal prática ou pretendem romper. Existem formas alternativas,
como por exemplo; a charrete elétrica como ocorre atualmente em Paquetá.

1.ASPECTOS HISTÓRICOS

A exploração de espécies da fauna e flora brasileira não é recente, ao contrário, ocorre


desde a época da colonização, início do século XVI, período em que se observa intenso
contrabando por portugueses, franceses e holandeses. Ciclos do pau-brasil, cana de açúcar,
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gado, caça indiscriminada, animais explorados em zoológicos particulares e como fonte de


trabalho. Atos antropocêntricos que geram desrespeito por outras espécies, provocaram a
devastação do meio ambiente e extinção de diversas espécies de animais.
Cavalos, mulas, muares, burros utilizados na lavoura, pecuária, transportes em geral.
O Brasil foi sendo colonizado e desbravado com a ajuda destes seres, arando canaviais,
movendo roda de engenho, transportando mercadorias e provimentos.
Os animais aliviavam os escravos, eram utilizados em atividades pesadas, puxavam
charretes, ou como montaria para tropas, uma época que não existiam veículos ou máquinas.
Eram comuns relatos de maus tratos, desrespeito e excessos cometidos:

“A carga dos animais acostumados ao trabalho da tropa girava em torno de oito


arrobas (120 kg). Os mais fortes podiam levar até dez arrobas (150 kg). Durante a
marcha, era comum de acontecer de burros ou mulas jogarem fora a carga ou de
animais caírem paralisados porque não suportavam o peso. Era preciso, nestes casos,
que os tocadores descarregassem os animais, levantassem-nos e colocassem
novamente a carga sobre ele; só então a viagem poderia ser retomada.” (MARTINS,
2007, p. 104-5)

(...) tendo observado a entrada de uma tropa de mulas na cidade de Santo, notou que
quando os tropeiros retiravam as cangalhas dos animais, viam-se em muitos deles
feridas que iam até os ossos. Resultado de longas viagens por maus caminhos, sem
que os homens se preocupassem com os animais. E quase o mesmo martírio sofriam
as mulas nas cidades, transportando pelas ruas esburacadas , em caleças e carros
arcaicos, gordos vigários, imensas baronesas acompanhadas de pretas também
opulentas, fidalgos enormemente arredondados pelo pirão e pela inércia ou inchados
monstruosamente pela elenfatíase. (FREYRE, 2006, p.632)

Inexistia preocupação ou leis de proteção para os animais, mas apenas interesse na


colonização e exploração de riquezas, tanto da flora quanto da fauna, e se, porventura, fosse
estabelecida alguma norma, seu intuito não era de proteção ambiental, ou para o animal em si,
mas apenas de interesse econômico, exemplo disso foi a determinação de extermínio dos
muares1 em 1791, tendo como finalidade beneficiar os criadores e negociantes de cavalos. Tal
determinação foi obtida pelo governador da Capitania de Goiás.
No período posterior a colonização, os animais chamados pelo homem de tração
continuaram sendo explorados sem qualquer preocupação com seu bem estar. Comuns os maus
tratos sofridos por cavalos e burros, que puxavam carroças e charretes, impostas por seus

1
“Os Muares são produto do cruzamento de jumentos e jumentas com cavalos e éguas de diversas raças, gerando burros e mulas.
Aptidão: Animais de tração, rústicos e resistentes a terrenos acidentados e temperaturas altas. Apropriados para o trabalhos no
campo, lazer, turismo eqüestre e cavalgada”
Disponível em.<http//:www. mercadodecavalos.com.br> Acesso em 25.08.08.
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condutores, realidade que, infelizmente, ainda ocorre, tanto que talvez a primeira lei que se
tenha notícia quanto à preocupação com o animal no Brasil seja o Código de Posturas, de 06
de outubro de 1886, no município de São Paulo, que estipulava no artigo 220 a proibição do
cocheiro impor castigo exagerado ao animal conduzido.2
Posteriormente a sociedade começa a refletir sobre a questão animal e protetores
atentos e atuantes pela causa animal, abolicionistas ou em busca de melhores condições
ambientais e para os animais. Passagem interessante ocorreu em 1905 com José do Patrocínio,
abolicionista e simpatizante da causa animal.

Fala-se na organização de uma sociedade protetora dos animais. Tenho pelos animais
um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar, e que têm
conscientemente revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar depois
de brutalmente espancado por um carroceiro que atulhava a carroça com carga para
uma quadriga, e que queria que o mísero animal a arrancasse do atoleiro...”
(http://www.acordacultura.org.br/artigos/29012014/hoje-na-historia-29-de-janeiro-
1905-morria-jose-do-patrocinio-o-tigre-da-abolicao)

Entretanto, a primeira legislação mais efetiva quanto à proteção aos animais,


considerando-os individualmente e não apenas como proteção da fauna abstrata ou meio
ambiente, e regulamentando entre outros sobre os animais utilizados em tração e carga foi
promulgada no governo de Getúlio Vargas, com o Decreto 24.645 de 10 de julho de 19343.

2
Código de Posturas de 06.10.1886: “Art. 220: É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa d’água, etc,
maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Esta disposição é igualmente aplicada aos ferradores. Os infratores
sofrerão a multa de 10$, de cada vez que se der a infração.”
3
Decreto n. 24.645 de 10 de julho de 1934: estabelece medidas de proteção aos animais.
Art. 3º Consideram-se maus tratos:
I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;
II – manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de
ar ou luz;
III – obrigar animais a trabalhos excessívos ou superiores ás suas fôrças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter
esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo;
IV- (...)
V – abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se
lhe possa prover, inclusive assistência veterinária;
VI - (...)
VII – abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação;
VIII. – atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com equinos, com muares ou com asininos, sendo
somente permitido o trabalho etc conjunto a animais da mesma espécie;
IX – atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças ou com arreios
incompletos incomodas ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os molestem ou lhes perturbem o'fucionamento
do organismo;
X – utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que êste último caso somente se
aplica a localidade com ruas calçadas;
Xl – açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veiculo ou com ele, devendo o condutor desprendê-
lo do tiro para levantar-se;
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Além de considerar o animal por ele próprio, tornou contravenção penal os maus tratos aos
animais e possibilitou ao ministério público atuar em benefício dos animais em juízo.

2. DIREITO DOS ANIMAIS E 5 LIBERDADES

Ao longo da história animais foram explorados e desrespeitados, teorias que conferem


ao animal o status de coisa e o equiparam a máquinas. Não obstante, em paralelo, muitos
filósofos, cientistas e estudiosos se dedicaram a compreender o bem estar dos animais,
questionar sua natureza jurídica e buscar uma tutela mais efetiva. A sociedade se sensibiliza e
busca novas formas de convivência não baseadas na exploração, mas sim no respeito e
solidariedade.
Nasce um movimento em prol do reconhecimento do direito dos animais em esfera
nacional e internacional, cria-se o termo especismo, ou seja, a desconsideração por espécies que
não sejam a humana. Livros são lançados com teorias que incluem o animal na esfera de
consideração moral. Destaca-se o livro Libertação Animal do filósofo Peter Singer, com o
princípio da igual consideração de interesses e Jaulas Vazias do filósofo Tom Regan, incluindo
os animais como sujeitos de uma vida. A temática e reflexão sobre os animais ganha espaço.
Forma-se uma disciplina autônoma, com reflexos ambientais e para o animal individualmente
considerado, cursos de extensão, congressos abordando a questão animal, as crueldades
sofridas em suas tristes realidades cotidianas.
Forma-se um novo ramo do direito com preceitos doutrinários nos quais animais
possuem titularidade de direitos como vida, liberdade, integridade física e psíquica. Animais
como sujeitos de direito, como entes despersonalizados ou como sui generis. Animais com
direito a vida digna e um mínimo existencial. Respeito por sua natureza e essência, liberdade

XII – descer ladeiras com veículos de tração animal sem utilização das respectivas travas, cujo uso é obrigatório;
XIII – deixar de revestir com couro ou material com identica qualidade de proteção as correntes atreladas aos animais de tiro;
XIV – conduzir veículo de tração animal, dirigido por condutor sentado, sem que o mesmo tenha bola fixa e arreios apropriados,
com tesouras, pontas de guia e retranca;
XV – prender animais atraz dos veículos ou atados ás caudas de outros;
XVI – fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas continuas sem lhe
dar água e alimento;
XVIII – conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, colocados de cabeça para baixo, de mãos ou pés atados, ou de
qualquer outro modo que lhes produza sofrimento;
XX – encerrar em curral ou outros lugares animais em úmero tal que não lhes seja possível moverem-se livremente, ou deixá-los
sem Agua e alimento mais de 12 horas;
Artigo 4º Só é permitida a tração animal de veículo ou instrumento agrícolas e industriais, por animais das espécies esquina,
bovina, muar e asinina.
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para viverem com seus pares em conformidade com suas necessidades inerentes, independente
do homem ou para o proveito deste.
Em meio à elaboração de leis, preceitos doutrinários e princípios, e no que tange aos
animais utilizados para tração e carga, pode-se destacar as cinco liberdades defendidas na ideia
de bem estar animal.
Em 1965 foi elaborado o relatório Brambell (1965), através de comissão presidida
pelo veterinário Rogers Brambell e em 1967 a Comissão de Bem Estar de Animais de Produção
e em 1979 o Conselho de Bem Estar de Animais de Produção, surgindo as “cinco liberdades”
as quais deveriam ser aplicadas também aos animais ditos de tração, ou seja; liberdade
nutricional (livre de fome e sede); liberdade psicológica (livre de medo, estresse); liberdade
ambiental (local adequado para viver); liberdade sanitária (livre de dor , lesões e doenças. Com
tratamento veterinário)
Ocorre que, equinos em centros urbanos não tem as cinco liberdades respeitadas.
Concorrem com carros, caminhões, no caos do trânsito. Trabalham longas jornadas, não
descansam de forma adequada, permanecem amarrados ou em baias inadequadas nos
momentos de suposto descanso, calor, privados de convivência com os da sua espécie, ausência
de cuidados veterinários, carga excessiva, arreios de forma rústica gerando feridas e
desconforto. Abandono na velhice ou quando com problemas de saúde. É comum observar
perda de peso, lesões de pele, dores musculares e nos cascos, desidratação, degenerações
ósseas, depressão imunológica; perda de visão, entre outros problemas.

3. ASPECTOS NORMATIVOS E AMBIENTAIS

Quanto aos aspectos normativos e em âmbito federal, se destaca a Constituição da


República Federativa do Brasil de 1988 e a Lei federal n° 9605 de 1988. A CRFB\88 dedica
capítulo à proteção ao meio ambiente, considerando em seu artigo 225 o meio ambiente
ecologicamente equilibrado um direito fundamental, e, em seu parágrafo 1º, inciso VII,
proteção aos animais, bem sócio-ambiental de toda a humanidade, com imperativo moral que
demonstra preocupação ética de vedar práticas cruéis contra todos os animais, e não apenas
com o equilíbrio ecológico. Há preocupação ética, bem como reconhecimento de que estes são
seres sensíveis, passíveis de sofrimento e proteção. A lei de Crimes ambientais, com destaque
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para o artigo 32 veda qualquer ato de maus tratos, sejam os animais silvestres, aquáticos,
domésticos ou exóticos.
No âmbito do direito dos animais, pretende-se extinguir com a utilização de animais
para carroças ou tração, no entanto, O código de trânsito Brasileiro (CTB) regulamenta
“veículos de tração animal”, devendo haver registro, identificação das carroças e autorização
para os condutores. Ocorre que tais condutores não são treinados, e a preocupação acaba sendo
com o trânsito propriamente. É comum o excesso de peso, trânsito intenso e a falta de repouso,
alimentação e tratamento veterinário.
Destaca-se o apontamento de diversos problemas para os animais e ambientais em
decorrência da tração animal. Os problemas de maus tratos e crueldade a que os cavalos ficam
submetidos é evidente e pode ser observada de forma diária e continuada. Cavalos foram a
segunda maior causa (8,6%; 21/240) de denúncias de maus tratos aos animais em estudo recente
na região metropolitana de Curitiba, abaixo de cães (82,9%; 203/240) mas acima de gatos
(6,5%; 16/240). A das denúncias de maus tratos a cavalos ocorreram exatamente pelo seu uso
na tração de carroças para materiais recicláveis, sendo sujeitos a sofrimento dentro de uma
rotina de vida muito diferente do natural para a espécie.
De acordo com os dados do Grupo de Pesquisa em Cavalos Carroceiros da UFPR,
36/76 (47,4%) dos cavalos estavam magros, 58/76 (76,3%) se encontravam anêmicos
(hematócrito abaixo de 32,0%), 48/76 (63,2%) apresentaram lesões de pele, 27/76 (35,5%) com
desidratação leve, 50/76 (65,8%) com problemas de casco e 36/41 (88,0%) estavam
severamente parasitados. Ainda, estudo feito no interior paulista 08/26 (30,7%) mostrou que os
carroceiros mantinham seus animais presos aos arreios durante os intervalos, embora 16/26
(61,5%) negaram o uso do chicote nos animais, cargas excessivas de 500 a 800 kg, com jornada
de trabalho exaustiva de 8 a 13 horas por dia e sem intervalos para descanso.
Embora sejam reconhecidos e classificados pelo Art. 96 da Lei 9.603/1997 do Código
Brasileiro de Trânsito como veículos de passageiros (charrete) ou de carga (carroça) de tração
animal, a regulamentação da sua circulação local tem ficado a cargo das legislações municipais.
No entanto, leis municipais de circulação de carroceiros já foram aprovadas em várias capitais
brasileiras, como em Belo Horizonte (10.119/2011) e Curitiba (11.381/2005), sem que tenham
sido ainda hoje feitas suas respectivas regulamentações e aplicações.
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Alguns municípios regulamentam a prática, outras elaboraram leis para por fim. O
estado do Rio de Janeiro foi o primeiro estado a proibir a utilização de animais nos centros
urbanos, no entanto, abre exceção em centros turísticos.
Em âmbito internacional também já se observa a proibição ou regulamentação, por
exemplo: o Código Penal italiano: Artigo 544 tipifica como maus tratos a submissão a trabalhos
excessivos; em Israel a circulação de carroças que transportam cargas foi proibida em 2004,
por entender que as condições são inadequadas para o animal.

Cidade/País Lei ou similares Situação do veículo de tração animal


Bogotá Decreto 178/2012 Troca de carroças por veículos motorizados.
Exclusão de veículos com fins turísticos.
Israel Lei (setembro/2014) Proibido.
Entrada em vigor (março/2015) Exclusão para carruagens.
Paris Lei (junho/2016) Carros elétricos substituindo carruagens.
Multa: U$ 25.000,00
Porto Rico Ordem executiva (abril/2015) Proibido, inclusive carruagens.
Nova Iorque Projeto 0573/2014 Proibição de passeios com carruagens
puxadas por cavalos no Central Park.
Pequim Banido em 1995 Atenuar os problemas de congestionamentos
Pouca ou nenhuma fiscalização
Viena Permitido Trânsito regulamentado
Hannover Permitido Trânsito regulamentado
Londres Permitido Trânsito regulamentado
Tabela 1: Legislação sobre veículos de tração animal em diversas cidades de diferentes continentes.

Capital Lei / PL Situação do veículo de tração animal


Brasília PL 1.804/2014 Proibido em 2014.
Vedado cavalos soltos ou amarrados em vias públicas.
Multa: R$ 50,00 (resgate do veículo e outras taxas)
Belo Horizonte PL 832/2013 Redução gradativa sem data limite.
PL 900/2013 Políticas públicas para os carroceiros cadastrados.
Implantação de veículos de tração motorizados.
Florianópolis Lei 1352/2014 Proibido em 2016.
Cadastro e qualificação profissional dos carroceiros.
Curitiba PL 5.130/2015 Proíbe quando regulamentada.
Vedado cavalos soltos ou amarrados em vias públicas.
Porto Alegre Lei 10.531/2008 Proibido em 2016.
Redução gradativa e qualificação profissional alternativa
Indenização no ato de entrega da carroça.
Recife Lei 17. 918/2013 Proibido em 2013.
Carroceiros com qualificação profissional alternativa.
Multa: R$ 500,00 e animais apreendidos para adoção.
São Luís Lei 215/2010 Regulamenta o tráfego.
Proibido sem autorização e em vias de alta velocidade.
Animais em maus tratos recolhidos.
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São Paulo Lei 14.146/ 2006 Proibido em 2006.


Multa: R$ 50,00 para resgate em 5 dias mais despesas.
Reincidência resulta em perda do animal
Vitória Lei 8678/2014 Proibido.
Multa: taxas de remoção, registro e diárias do animal.
Reincidência resulta em perda do animal
Rio de Janeiro Lei 7194/2016 Proibido em 2016
Quando em maus tratos aplicar Lei 9605\98. Falta
regulamentação. Animais em maus tratos recolhidos
Tabela 2 Legislação sobre veículos de tração animal nas capitais de diversos estados brasileiros
Fonte: notícias e sites oficiais disponíveis na internet.

4.QUESTÃO AMBIENTAL E NOVAS POSSIBILIDADES

A atividade desenvolvida pelos carroceiros engloba três questões principais:


exploração ou maus tratos aos animais; atividade informal dos carroceiros em centros urbanos
e questão ambiental.
Quanto a primeira são inúmeros os casos de maus tratos e condições precárias que
estes animais são mantidos. Privados de alimentação adequada, veterinário, descanso, cargas
excessivas durante o dia todo. 4
No que tange aos carroceiros a atividade pode indicar exclusão do mercado de
trabalho formal por baixa escolaridade e falta de qualificação profissional, ou ainda falta de
opção em decorrência das condições sociais para desenvolver um negócio próprio mais
adequado. Some-se a falta de segurança e a permanência de crianças na atividade.5
Some-se a terceira problemática da atividade, a ambiental, uma vez que resíduos ou
carcaças são encontradas frequentemente em locais inadequados. É comum o abandono quando
não possuem mais condições de puxar carroças, em decorrência da idade ou doenças, ou ainda
serem abatidos para consumo de carne sem inspeção sanitária.

4
“ Um homem foi detido e indiciado por maus-tratos a animais em Luís Eduardo Magalhães, na região oeste da Bahia, após um
cavalo de propriedade dele desmaiar no meio de uma rua da cidade por não suportar puxar uma carga de madeira em uma carroça.
O dono do animal foi levado à delegacia após uma foto que mostra o animal caído no chão viralizar na internet, segundo informou
ao G1, nesta terça-feira (23), a Polícia Civil do município “.Disponível em http://g1.globo.com/bahia/noticia/cavalo-desmaia-por-
nao-suportar-carga-de-madeira-em-carroca-e-dono-e-detido-apos-foto-viralizar.ghtml>Acesso em 09\09\2017 “Um cavalo
sofreu um acidente, nesta segunda-feira (24), no bairro Cidade Santa Maria, em Montes Claros. O animal caiu de uma carroça,
depois de não ter forças para seguir. O ocorrido foi registrado pela Repórter do Web Terra que, quando chegou ao local, viu o
animal em pé e bebendo água ofertada por moradores. Segundo o dono do animal, o cavalo “caiu porque quis. A culpa não é
minha”, justificou. A população do bairro, que presenciou o momento também, disse que o dono do cavalo bateu demais nele, e
o bicho apresentava sinais de maus- tratos, fome e cansaço. Disponívelem<http://olharanimal.org/cavalo-em-carroca-cai-apos-
maus-tratos-em-montes-claros-mg/>
5
Recentemente em Minas, Montes Claros uma carroça colidiu com um ônibus, a carroça tombou sobre a criança de 11 anos que
acabou falecendo. Disponível em <http://g1.globo.com/mg/grande-minas/noticia/crianca-de-11-anos-morre-apos-colisao-entre-
carroca-e-onibus-em-montes-claros.ghtml> Acesso em 09\09\2017.
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A utilização destes animais, talvez, se justificasse no passado, em momento que


inexistiam máquinas, veículos e falta de conhecimento ou desconsideração pela senciência
animal. Na atualidade, porém, não há como continuar.
Diversas legislações reconhecem a sensibilidade animal e os protege de crueldades.
A sociedade e diversos setores públicos já se compadecem do sofrimento animal e lutam por
seu término. Novas possibilidades são oferecidas de forma a proteger os animais e também
tutelar a sobrevivência dos carroceiros, além de conscientização.
Diversos exemplos podem ser citados, como projeto carroceiros, charretes elétricas,
cavalo lata e até mesmo a utilização de bicicletas.
As escolas de Medicina Veterinária do Brasil têm se mostrado sensíveis a esta
demanda social, criando os famosos “Projetos Carroceiros”, oferecendo assistência médico-
veterinária aos cavalos e capacitação dos carroceiros, além de auxiliar os estudantes de
medicina veterinária a aprimorar suas habilidades clínico-cirúrgicas no tratamento desses
animais, complementando assim a sua formação profissional e cidadã.
Cavalo lata6, projeto em desenvolvimento no Rio Grande do Sul oferece uma nova
possibilidade aos carroceiros. Trata-se de estrutura metálica que permite aos carroceiros
levarem materiais para reciclagem nas cooperativas do município sem utilização de animais.
Pode alcançar até 25 km por hora sendo dispensável a utilização de habilitação.
Em Paquetá, os animais foram substituídos por charretes elétricas. Em 2013, um
carroceiro foi apreendido em decorrência de maus tratos a seu animal, que faleceu. Tal fato
gerou comoção, impulsionou a lei estadual no Rio de Janeiro e forte atuação da Comissão de
proteção e defesa dos animais do RJ.7 Assim, após longas conversas e negociações com os
carroceiros, alguns apoiando e outros não, os animais foram levados para local adequado e
foram substituídos por charretes elétricas. Muitos dos animais foram levados para a Ong
Santuário das Fadas.

CONCLUSÃO

Evidente os maus tratos sofridos por animais em carroças e charretes, e o crescente


inconformismo com esta prática. Não se pretende desamparar os carroceiros, mas novas

6 Disponível em <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2013/05/projeto-cavalo-de-lata-quer-reduzir-circulacao-de-
carrocas-no-rs.html> Acesso em 09\09\2017.
7
http://www.oabrj.org.br/noticia/96497-paqueta-saem-as-charretes-e-entram-carros-eletricos
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possibilidades de trabalho são oferecidas e buscadas com intuito de uma convivência respeitosa
entre humanos e não humanos. As necessidades inerentes de cada animal devem ser
respeitadas.
A sobrevivência humana não deve ocorrer através da exploração animal.
São nítidas as questões de sofrimento para o animal, questões ambientais e questões
de segurança para os seres humanos.
Não se justifica na atualidade a permanência desta atividade, o que se observa na
própria legislação que reflete os anseios da sociedade e novas perspectivas no âmbito do direito
dos animais.
Necessária uma transição gradativa para outras atividades de forma a romper com a
exploração destes animais e respeito ao meio ambiente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

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DIAS, Edna Cardozo. A defesa dos animais e as conquistas legislativas do movimento de proteção animal no Brasil.
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FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos; decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. São Paulo:
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LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. 2.ed. Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 2004

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MÓL, Samylla. Carroças Urbanas & Animais.: Uma Análise ética e jurídica. RJ: Lumen Juris, 2016.

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http://www.anda.com

http://www.planalto.com.br

http://www.mercyforanimals.org
VULNERABILIDADE SOCIAL
DE MORADORES REASSENTADOS
E SUA PERCEPÇÃO DE RISCOS

KNÖLLER, Patrícia de Vasconcellos


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
Professora da Universidade Estácio de Sá-UNESA

RESUMO

A Ocupação Machado de Assis, comunidade de baixa renda situada no bairro da Gamboa, na Cidade do
Rio de Janeiro, foi removida para o bairro de Senador Camará, em função das obras para os preparativos
dos megaeventos esportivos da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Este trabalho avalia as consequências
da remoção na vida destes moradores no tocante às vulnerabilidades sociais, riscos e perigos da sua nova
condição de moradia. O risco é abordado a partir de seu aspecto conceitual, desdobrando-se sua distinção
com o conceito de perigo. Na nova morada, os removidos se expõem a riscos e perigos distintos dos
anteriores, e a mutação da natureza do risco acarreta-lhes incerteza e receio pelo pior. Baseado em dados
empíricos obtidos em entrevistas com moradores removidos, apresenta como resultados as percepções
de risco de cada pessoa, concluindo que a amplitude do risco tem estreita conexão com a classe social
do indivíduo e que muito do que se considera risco, não ultrapassa os limites do imaginário.

Palavras-chave. Risco. Vulnerabilidade social. Perigo. Megaeventos esportivos.

ABSTRACT

The Machado de Assis occupancy, a low-income community in the Gamboa, neighborhood in the City
of Rio de Janeiro, was removed to the neighborhood of Senador Camará, as a result of the preparations
for the mega-events of the World Cup and the Olympics. This paper assesses the consequences of the
removal in the life of these residents regarding the social vulnerabilities, risks and dangers of their new
housing condition. The risk is approached from its conceptual aspect, unfolding its distinction with the
concept of danger. In their new home, the evicted residents are exposed to risks and dangers different
from the previous ones, and the mutation of the nature of the risk brings them uncertainty and fear for
the worse. Based on empirical data obtained from interviews with evicted residents, its results presents
the perceptions of each person's risk, concluding that the extent of risk has a close connection with the
social class of the individual and much of what is considered risk does not exceed the limits of the
imaginary.

Keywords. Risk. Social vulnerability. Danger. Sports mega-events.

200
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INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte de uma pesquisa empírica, base de uma dissertação de mestrado
em desenvolvimento, na qual proponho investigar para onde foram transferidos e como vivem
os moradores removidos da região portuária da Cidade do Rio de Janeiro, em função das obras
para os preparativos dos megaeventos da Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e dos Jogos
Olímpicos realizados em 2016. A partir dos dados coletados analiso aspectos da vulnerabilidade
social e a percepção que os moradores removidos tinham dos riscos envolvendo sua nova
condição.
Meu objetivo era conhecer o novo local de moradia1 para onde foram transferidos os
moradores da Ocupação Machado de Assis, um aglomerado de famílias que ocupava um prédio
abandonado no bairro da Gamboa, e ouvir suas próprias impressões acerca de uma melhora ou
piora em sua qualidade de vida: (i) se a mudança, ainda que forçada, garantia-lhes o direito à
subsistência, incluindo o acesso ao trabalho; (ii) se as condições da nova moradia eram pelo
menos iguais ou melhores do que a anterior; (iii) se houve impacto no custo de vida; (iv) se a
infraestrutura disponibilizada era satisfatória, considerando-se mais ou menos satisfeitos do que
na moradia anterior e (v) se eles se consideravam mais ou menos seguros no novo local de
moradia.
A pesquisa foi realizada numa comunidade carente que reside num Conjunto
Habitacional integrante do Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), no bairro de Senador
Camará, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Foi neste local que o poder público reassentou ex-
moradores da Ocupação Machado de Assis2, que se localizava no bairro da Gamboa, região
portuária da cidade e cujo despejo ocorreu em 2012.
No primeiro dia marcado para as entrevistas, tive acesso ao local por intermédio de
uma pessoa conhecida que reside no conjunto habitacional, em outro bloco de apartamentos
que foi inteiramente sorteado para pessoas inscritas no Programa Minha Casa, Minha Vida, o
que não era o caso das famílias removidas.

1 A propósito, muito instrutivo o material produzido pela Relatoria Especial da ONU para a moradia adequada. Disponível em:
<https://raquelrolnik.files.wordpress.com/2010/01/guia_portugues.pdf>.
2
Ocupação coletiva de 150 famílias que viviam em um prédio industrial de quatro andares desativado na Rua da Gamboa, nº 111,
desde 22/11/2008, com base no Decreto Municipal nº 26.224, de 16/02/2006, que declara o edifício como de utilidade pública
para fins de desapropriação. Disponível em: <http://ocupacaoma.blogspot.com.br/>. Acesso em 12/03/2015. Muitas famílias da
Ocupação Machado de Assis eram provenientes de outra ocupação que existia na Rua Rodrigues Alves, 143, que foi alvo de um
incêndio um mês antes de ocuparem a área da Gamboa.
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Para a população removida não foi oferecida nenhuma opção mais viável3 como, por
exemplo, um local para reassentamento mais próximo de onde residiam. Apenas como
referência, o assentamento ocorreu a cerca de 40 Km de distância do local da antiga moradia.
Uma distância que percorrida em transporte público, em via expressa, levaria mais de uma hora,
se não houvesse congestionamento de trânsito.
As entrevistas semi-estruturadas foram conduzidas em conversas informais, em que
os entrevistados podiam se expressar livremente. Com a finalidade de homogeneizar as
informações, estabeleci um curto roteiro com cinco perguntas cujo tema eu pretendia que
permeassem os discursos4. As entrevistas foram gravadas de forma discreta, usando o gravador
de um aparelho celular, e depois transcritas.
Antes de iniciar cada entrevista, esclareci o motivo da coleta de dados, e solicitei
autorização para efetuar a gravação. Foi adotado protocolo de entrevistas aderente às
determinações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, na forma da Resolução CNS
196/96, que foi utilizado com pleno consentimento dos entrevistados.
Realizei um total de dez entrevistas com moradores da comunidade, amostra
representativa de dez famílias remanescentes da antiga Ocupação. As entrevistas ocorreram em
dois dias consecutivos. A primeira delas ocorreu no próprio conjunto habitacional, e contou
com auxílio de uma pessoa conhecida que também reside em um dos blocos de apartamentos,
mas não integra o grupo de reassentados, e que ajudou a reunir os moradores que se
interessaram em participar da segunda entrevista.
O segundo encontro ocorreu no bairro de Bangu, também na Zona Oeste; sendo que
a mudança de local se deu a pedido dos próprios entrevistados, uma vez que se instalou um
ambiente de desconfiança e havia receio de represália “das lideranças comunitárias” ou de
“grupo armado” do local, que não estaria gostando do movimento de gente estranha fazendo
perguntas e observando o local.
Durante as entrevistas, principalmente nas que ocorreram in loco na área de
reassentamento, um fato que me chamou a atenção foi o temor recorrente e disseminado que

3 Dados oficiais declaram que as famílias tiveram a opção de compra assistida de imóveis na zona central ou em outras áreas da
cidade ou de serem indenizadas (Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-de-
habita%C3%A7%C3%A3o-da-prefeitura/os-casos-emblem%C3%A1ticos-do-rio-1b7f4b3f6054#.x0mpjthx8>. Acesso em
05/10/2015), entretanto, depoimentos de moradores contradizem a afirmação.
4
Vide acima.
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eles demonstravam em suas falas. Era unânime o receio que desenvolveram de uma perspectiva
muito peculiar de risco de virem a ser novamente sujeitos passivos de outra remoção forçada.
O risco de nova remoção poderia vir ou ordenada pelo poder público ou pelos
dirigentes do crime organizado. Neste caso, pela força da milícia5 ou pela truculência de algum
comando6. O temor deu a tônica na condução das entrevistas, e os moradores expuseram o risco
da forma como o percebiam a partir da situação que enfrentavam na área de reassentamento.

1. O CONTEXTO DOS REASSENTAMENTOS NA CIDADE DO RIO DE


JANEIRO

A Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro disponibiliza dados gerais sobre


reassentamentos realizados entre 2009 e 2015, contabilizando um total de 22.059 famílias
reassentadas, sendo o motivo principal para terem “saído de casa”, a alegação de sua exposição
a algum tipo de risco7, como desmoronamento de encostas, ou alagamentos ou por estarem
morando em locais de condições insalubres ou em ruínas8. O discurso oficial não utiliza a
palavra “remoção” para se referir à transferência compulsória das pessoas de seus locais de
moradia9. Prefere dizer que as pessoas “saíram de casa” por estarem em risco.
Foi a partir da preparação para os Jogos Pan-americanos de 2007 que se iniciou o
maior processo de remoções da história da cidade do Rio de Janeiro, intensificado com a
escolha da capital para sediar a Copa do Mundo de Futebol (2014) e, logo após, os Jogos
Olímpicos (2016). Durante a preparação para os dois últimos megaeventos esportivos, a

5 Termo utilizado para se referir a grupos armados paramilitares que agem sob o argumento de combater a atividade do tráfico de
drogas e criminalidade em determinado local, forçando os moradores a viverem sob suas regras de conduta; desenvolve seu modus
operandi principalmente em práticas de extorsão nos locais onde atua. Para mais informações, ver: < http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2016/01/para-nao-chamar-atencao-milicia-do-rio-muda-forma-de-assassinar-vitimas.html>. Acesso em
10/01/2017.
6 Termo utilizado para se referir às principais facções criminosas que atuam no estado do Rio de Janeiro, envolvidas no tráfico de

drogas, a saber: CV (Comando Vermelho), TC (Terceiro Comando) e ADA (Amigos dos Amigos). Disponível em:
<www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u94005.shtml>. Acesso em 10/01/2017.
7 Tal alegação, em alguns casos, como a situação dos moradores do Morro da Providência e Pedra Lisa, também na região central

da cidade, foi tecnicamente contestada através de contralaudo, comprovando que o argumento do risco, justificador para a
remoção dos moradores, era implausível e falacioso. Sobre o assunto, ver:
<https://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2011/12/relatc3b3rio-morro-da-providc3aancia_final-1.pdf>. Acesso
em 09/05/2016.
8
Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-de-habita%C3%A7%C3%A3o-da-
prefeitura/reassentamentos-s%C3%B3-em-%C3%BAltimo-caso-e-priorizando-popula%C3%A7%C3%B5es-
vulner%C3%A1veis-2cf4a6dc847b#.4tdtileza>. Acesso em 05/10/2015.
9
Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-de-habita%C3%A7%C3%A3o-da-
prefeitura/explicando-desapropria%C3%A7%C3%A3o-reassentamento-remo%C3%A7%C3%A3o-f5c86fe100e1#.8itodirfb>.
Acesso em 05/10/2015.
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Prefeitura e a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) passaram a agir nas comunidades


carentes com base em um alegado interesse público na execução de obras para implantação de
infraestrutura urbana e de equipamentos esportivos.
Ainda que a remoção da comunidade não seja reconhecida oficialmente como devida
aos megaeventos esportivos10, a comunidade removida vivia na região portuária, local
extremamente impactado pelas modificações urbanísticas com o surgimento de novas
edificações na região.
A despeito da reformulação urbanística pretendida, o pretenso plano urbanístico
manteve abandonado o decrépito edifício da Gamboa, onde habitava a comunidade removida.
Até o início de 2017, a edificação ainda permanecia em pé sem que lhe fosse conferida função
social. O fato reforça o argumento de ativistas de que se estaria procedendo a uma higienização
social da área, com a “turistificação” (KNAFOU, 2001, p. 70) daquele espaço urbano.
Este neologismo que teria sido utilizado pela primeira vez por Stephen Kanitz11 frente
à situação exposta, dispara um severo processo de exclusão social. Ao elevar os preços dos
imóveis, a consequência natural é a gentrificação (GLASS, 1964) da área, subproduto resultante
de uma política urbanística que desconsidera o habitante despossuído.
A gentrificação (GLASS, 1964) - entendida em sua concepção original como
reestruturação espacial de uma determinada área urbana, implicando o deslocamento dos
moradores de baixa renda que viviam naqueles espaços (MENDOZA, 2016, p. 699) - remeteu
os antigos moradores para mais longe de seu antigo núcleo social. No caso específico da
remoção da Ocupação Machado de Assis, o fato é que o local de reassentamento das famílias
desalojadas, ainda que distante cerca de 40 km de distância, representou a alternativa mais
viável, diante da insuficiente oferta de um aluguel social de R$ 400,00 por família, valor que
não permite alugar um imóvel no subúrbio do Rio de Janeiro, e menos ainda na sua região
central.
A proposta da Prefeitura era pagar o aluguel social até concluir a construção de
prédios residenciais na zona oeste, que abrigariam os desalojados. Havia a proposta de
indenizar a posse precária, cujo valor cobriria apenas o direito ao ressarcimento sobre os bens

10 Oficialmente, a gestão municipal reconhece apenas as intervenções realizadas na Vila Autódromo como ligadas diretamente
aos megaeventos esportivos. Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-de-
habita%C3%A7%C3%A3o-da-prefeitura/os-casos-emblem%C3A1ticos-do-rio-1b7f4b3f6054#.v0s6xbqmq>. Acesso em
05/10/2015.
11
KANITZ, Stephen. Turistificando o Brasil. In Veja, edição 1.632, ano 33, nº 3, 19 de janeiro de 2000, página 20.
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móveis possuídos pelo morador no seu antigo local de residência. Somente em última instância
é que ocorreria a compra assistida12, situação em que a Prefeitura arca com o custo de aquisição
de um novo imóvel. Mesmo nesta modalidade de benefício, a quantia sempre será insuficiente
para a aquisição de um imóvel na mesma localidade onde ocorreu a remoção. Nos dez relatos,
referente à indenização em função das remoções devido aos Jogos Olímpicos, a oferta da
Prefeitura/SMH de compra assistida foi de R$15.000,00 como valor máximo, ficando a média
das propostas em torno de R$10.000,00.
Um cenário que se mostra de acordo com Mendoza (2016, p. 716), que após uma
pesquisa de revisão bibliográfica de textos da Web of Science e SciELO no período de 2011 a
2016, concluiu que na América Latina o Estado atua como um agente promotor de gentrificação
indireta, atuando como um facilitador para as atividades do lucrativo mercado imobiliário e
suas formas de exploração de venda do solo gentrificado.

2. O CONTEXTO DO RISCO

Durante o desenrolar das narrativas dos moradores entrevistados em seus respectivos


apartamentos, todos mencionaram várias vezes a expressão “está arriscado”. A menção referia-
se à possibilidade de nova intervenção “da Prefeitura” no sentido de removê-los mais uma vez
do local que passaram a habitar, e que lhes disseram pertencer, mas do qual “ninguém ainda
viu a escritura”.
É nesse contexto que introduzo o conceito de risco, ponto central deste trabalho,
procurando conceituá-lo a partir dos fatos observados, pretendendo demonstrar que a percepção
de risco, como vista pelos moradores removidos, assume os mesmos contornos daqueles
conceitos descritos pela literatura.
A remoção dos moradores está relacionada a pelo menos três determinantes externos:
a existência de um novo plano urbanístico, a valorização imobiliária oportunista da área que
ocupavam e a necessidade de a cidade corresponder à expectativa internacional de condições
satisfatórias para sediar megaeventos esportivos.

12
À época, o teto máximo para a compra assistida era de R$ 77.000,00, conforme: <http://www.jn.pt/brasil/interior/amp/rio-de-
janeiro-eleva-indemnizacao-para-familias-que-serao-deslocadas-em-funcao-das-olimpiadas-2036866.html>. Acesso em
07/01/2017.
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Todos os determinantes externos mencionados estão presentes nas remoções de


moradores da Ocupação Machado de Assis. O que importa aqui é que cada um deles, à sua
maneira, representa diferentes probabilidades de risco.
O novo plano urbanístico foi o de maior risco e redundou de fato na remoção dos
moradores. Os outros dois, embora presentes, não influenciaram na mudança, já que o prédio
continuou no mesmo local, abandonado e sem qualquer obra que indicasse nova destinação da
área.
Nas Ciências Sociais, o conceito de risco foi disseminado por Anthony Giddens e
Ulrich Beck, que se utilizaram do conceito para compreender as sociedades contemporâneas
(GIDDENS E SUTTON, 2015, p. 97). Na visão destes autores:

Os teóricos do risco veem os riscos de hoje como qualitativamente diferentes dos


perigos externos de antigamente. (...) Os principais perigos de hoje, como
aquecimento global ou a proliferação de armas nucleares, são exemplos de risco
fabricado, criados pelos próprios seres humanos por meio de impacto de seu
conhecimento e suas tecnologias. (...)
Como o futuro das pessoas está menos estável e previsível do que no passado, todos
os tipos de decisões apresentam novos riscos para os indivíduos (2015, p.97-98).

Na situação dos moradores removidos, os riscos foram todos fabricados: o plano


urbanístico, a especulação imobiliária, a necessidade de oferecer aos visitantes uma cidade
“organizada”.
Agora, na situação em que atualmente estes moradores se encontram, outros riscos
fabricados passam a fazer parte de seu imaginário. Alguns destes podem nada mais ser que
mera realidade psicológica vinculada à imaginação, como por exemplo, o temor de que a
Prefeitura resolva desapropriar a área distante em que se encontram, uma probabilidade
reduzida. Mas outros que fazem parte deste imaginário, têm efetivamente alta probabilidade de
passar de uma realidade psicológica para a concretude de, por exemplo, uma expulsão de sua
nova moradia por ação das milícias ou tráfico que dominam o local.
Disso tudo, pode-se concluir que não há um conceito absoluto, estanque ou universal
para risco, já que ele varia de acordo com o contexto social em que é produzido. Cada um está
sujeito a riscos na vida em sociedade que, porém, dependem do extrato social em que estiver
inserido.
Passo agora a análise de outro enfoque do conceito de risco e sua diferenciação do
que venha a ser perigo. “Estou correndo risco” e “Estou em perigo” são, consequentemente,
instâncias distintas da vulnerabilidade.
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Conforme GIDDENS (1991, p. 36), “perigo e risco estão intimamente relacionados,


mas não são a mesma coisa”, de modo que o risco pressupõe o perigo, mas “não
necessariamente a consciência do perigo”. “E o perigo existe em circunstâncias de risco e é na
verdade relevante para a definição de risco” (1991, p. 40). O autor define que

Risco não é o mesmo que infortúnio ou perigo. Risco se refere a infortúnios


ativamente avaliados em relação a possibilidades futuras. A palavra só passa a ser
amplamente utilizada em sociedades orientadas para o futuro – que veem o futuro
como um território a ser conquistado ou colonizado. O conceito de risco pressupõe
uma sociedade que tenta ativamente romper com o seu passado – de fato, a
característica primordial da civilização industrial moderna. (GIDDENS, 2007, p. 33).

Então, o risco implica numa situação de indefinição em que a ideia da verossimilhança


com o plausível é importante, já que se está considerando alguma coisa no plano do virtual, que
poderia vir a ser ou ocorrer, mas que de fato tem alguma probabilidade de se tornar realidade.
Por exemplo, um eventual receio destes moradores de perderem suas casas para moradores
abastados da zona sul do Rio de Janeiro não é um risco, por carecer da possibilidade de vir a
ocorrer. Já a perda destas mesmas moradias para traficantes ou milicianos é um risco, haja vista
o interesse destes em habitações em locais recônditos, longe da exposição para as forças do
Estado.
No caso dos moradores expostos a toda sorte de traumas provenientes das situações
vividas de conflito, na luta pela autoafirmação de sua própria dignidade, a expressão “está
arriscado” representa essa ideia de verossimilhança, do que pode vir a se transformar numa
situação concreta. Trata-se, portanto, de riscos com consequências para a cidadania destas
pessoas, e que para alguém sem o mesmo “instinto de precaução” poderia nada significar ou
ser apenas uma possibilidade remota ou improvável de ocorrer.
Nas palavras de NEVES e JEOLÁS (2012, p. 1-2), uma conceituação teórica das
expressões ligadas ao risco esclarece que

[...] os enfoques dados ao termo pelo senso comum assumem configurações que não
estão diretamente vinculadas à sua expressão abstrata e conceitual, [...]. Isto revela o
caráter polifônico que tem assumido e a sua capacidade de compor metáforas em
contextos sociais diferentes. O termo risco permite a comunicabilidade sobre o
“arriscado”, “arriscoso”, “perigoso”, “inseguro”, os imponderáveis da vida cotidiana,
garantindo a interlocução mesmo em cenários de dissensão semântica e cultural13.

13
Disponível em: <periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/download/14840/8397>. Acesso em 10/12/2016.
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Não há evidências que sinalizem que os moradores devam se sentir ameaçados ou que
estejam diante de risco concreto que implique em novo deslocamento compulsório por parte
do poder público. Entretanto, como a percepção de risco não se relaciona necessariamente com
o que poderia ser considerado um risco real ou efetivo, mas está ligada à maneira como estas
pessoas idealizam a vida em situação de normalidade, a incerteza do imaginário transforma a
realidade psicológica em realidade concreta na vida destas pessoas.
O paradoxo representado pela ação estatal da remoção de pessoas14, que o Estado
justifica com o argumento de estar assegurando condição de moradia digna para a população
removida e o próprio entendimento que esta população entende por condições satisfatórias de
moradia, é algo que chama a atenção no discurso dos moradores. Há um entendimento
contraditório das partes sobre o que significa morar bem e isto se transforma em paradoxo. O
que a governabilidade entende como parâmetros indicativos de qualidade de vida frontalmente
difere do entendimento dos moradores reassentados. A contradição entre a visão estatal e a
visão da comunidade acaba por criar um ressentimento coletivo no grupo de moradores, que vê
no Estado o grande opressor de suas vidas.
A avaliação da qualidade de vida dos moradores é outro ponto de atenção. Nem de
longe se poderia dizer que no antigo local as pessoas viviam bem. Imagens das condições de
moradia na antiga Ocupação Machado de Assis15 estão disponíveis nas redes sociais. Quaisquer
que sejam os indicadores sociais utilizados para qualificar as condições de vida naquele local,
estes certamente estariam aquém do mínimo aceitável como indicativo de qualidade de vida.
Mais discrepante ainda se os marcadores sociais adotados na avaliação forem os do IBGE,
aderentes aos estabelecidos pela Comissão de Estatística das Nações Unidas16.
É preciso explicitar que não é o objetivo deste trabalho apresentar um estudo
comparativo das condições de vida com rigor censitário. A menção à qualidade de vida antes e
depois da remoção visou unicamente explicitar a percepção que os moradores tinham acerca
de exposição a riscos antes e a percepção que têm agora quando reassentados.

14 Aqui não se problematizará acerca de interesses econômicos privados que teriam influenciado a decisão política de remover as
pessoas para abrir espaço ao mercado imobiliário e atender a interesses nada nobres e fora de propósito para um Estado
Democrático de Direito.
15
A título de exemplo, ver: < http://ocupacaoma.blogspot.com.br/>. Acesso em 12/03/2015.
16
A respeito, ver:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/default_minimos.shtm>. Acesso em
10/12/2017.
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Comparando o antigo local de moradia com o novo local, tendo como referência os
níveis mínimos aceitáveis para os indicadores sociais de qualidade de moradia, observa-se uma
melhora. Pode-se dizer que com base em determinados critérios, condições de extrema pobreza
deixaram de existir. A estatística, entretanto, se torna em vão quando a percepção do envolvido
é diferente.
A melhoria estatística da qualidade de vida observada no novo local de moradia
conflita com a percepção de sete entre dez entrevistados, que preferem o antigo local de
moradia, não pelas condições físicas, mas pelo que eles denominam “qualidade de vida”.

Lá na Ocupação era melhor, era tudo perto, dava pra fazer tudo a pé, a gente entrava
e saía a hora que queria, não tinha perigo, não tinha ameaça de tiroteio. Aqui não dá
pra sair à noite, até de dia é risco, tem muita favela no entorno e a polícia pode estar
fazendo operação. É ruim pras crianças. Tem dia que não dá pra elas irem à escola.
Vai, e volta quando está tendo operação. (Marcos)17.

Aqui é o fim do mundo. Nenhum parente quer vir pra cá porque gasta muita
passagem e chega aqui não dá pra ficar saindo, porque ou não tem condução ou corre
risco de tiroteio. (Vera).

Sinto falta da amizade que tinha entre as pessoas na Ocupação. Onde todos estavam
no mesmo barco e um não queria mandar mais do que o outro. Todo mundo se
ajudava. Se um começava a criar caso todo mundo resolvia junto. Agora, aqui, é cada
um por si. (Sílvio).

A percepção dos moradores encontra respaldo em CASTEL (2005, p. 31), para quem

o ressentimento coletivo se nutre do sentimento partilhado de injustiça sofrido por


grupos sociais cujo estatuto se degrada e que se sentem privados dos benefícios que
eles tiravam de sua posição anterior. É uma frustração coletiva que se esforça por
encontrar responsáveis ou bodes expiatórios.

De fato, o que se percebe no ressentimento dos reassentados é a injustiça a que foram


submetidos. Mesmo que as condições oferecidas sejam em parte melhores, prevalecerá a
percepção de que a mudança foi para pior.
Predomina no discurso dos moradores a questão da distribuição e enfrentamento do
risco, que acaba recaindo sobre os mais pobres, que no entendimento dos afetados ocorre
devido à sua condição social desprivilegiada:

17
Os nomes aqui utilizados são todos fictícios, a pedido dos moradores entrevistados.
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Tivesse eu condições pra não precisar passar por nada do que passei até chegar aqui.
Ralando desde sempre, ‘apanhando’ muito sufoco pra ter o que dar de comer pras
crianças. E ainda tem gente que acha a maior onda eu nem ter participado de sorteio
pro apartamento, que tô levando vantagem. E quem diz nunca nem morou na rua e
ainda acha que só porque ganha mais eu não mereço estar no meu teto. Tá arriscado
querer ‘armar’ pra me tirar” (Ana).

A percepção demonstrada pela moradora encontra em BECK (2010, p. 41) a


explicação teórica sobre o porquê de o indivíduo mais pobre estar mais exposto ao risco. Para
entender este fato pode-se imaginar que o risco se distribui na forma de uma pirâmide, em cuja
base estão as classes mais despossuídas e o maior nível de exposição. Segundo ele,

A história da distribuição de riscos mostra que estes se atêm, assim como riquezas,
ao esquema de classe – mas de modo inverso: as riquezas acumulam-se em cima, os
riscos, embaixo. Assim, os riscos parecem reforçar, e não revogar, a sociedade de
classes. À insuficiência em termos de abastecimento soma-se a insuficiência em
termos de segurança e uma profusão de riscos que precisam ser evitados. Em face
disto, os ricos (em termos de renda, poder, educação) podem comprar segurança e
liberdade em relação ao risco (loc. cit.).

BECK (2010, p. 71) afirma que não se pode pressupor uma hierarquia de
racionalidade que explique a distribuição desproporcional dos riscos para os mais pobres.
Segundo o autor, o que se pode questionar é como a racionalidade de uma distribuição desigual
surge socialmente, como se passa a acreditar nela, e como esta se torna questionável. Não é a
evidência científica quem determina a distribuição de riscos: a percepção de riscos é uma
racionalidade socialmente criada.
Reforçando a ideia de que, na determinação da relevância, nem sempre a evidência
científica teria papel esclarecedor, a classificação dos riscos responde a fatores sociais e
culturais e não naturais (GUIVANT, 1998, p. 4). Deste modo, a partir da percepção social do
observador, sob influência de suas vivências, que prescindem de critérios técnico-científicos, o
observador categoriza o risco a que se submete, com base apenas na sua percepção de
sociedade.
Neste ponto, em muito contribuem Douglas e Wildavsky (1982, apud GUIVANT,
1998, p. 6) trazendo a perspectiva cultural para os riscos. Douglas posteriormente desenvolveu
uma tipologia de racionalidades (GUIVANT, 1998, p. 6), baseada em matriz grade/grupo, que
mostra como as disputas em relação à influência na percepção dos riscos não podem ser
analisadas a partir de uma oposição entre os que assumem uma posição racional e uma
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irracional, ou entre leigos e peritos, uma vez que nos conflitos sobre riscos podem ser
encontradas diversas racionalidades (p. 8).
Tornam-se evidentes nos dias atuais os riscos ligados à ação criminosa. Isto
transparece na insegurança demonstrada na fala dos entrevistados, e que se mostrou mais
significativa quando perguntados se no novo local de moradia tinham que conviver com
problemas de violência e criminalidade, e da parte de quem viriam tais ameaças.
Todas as respostas convergiram para a presença de criminalidade e muita violência
no bairro de Senador Camará como um todo, bem como em vários bairros vizinhos. Foram
muitas histórias envolvendo operações violentas e confrontos entre a Polícia Militar e
traficantes nas comunidades próximas. Não mais dentro da área do conjunto habitacional, “o
que já ocorreu bastante até uns dois anos atrás”.
Atualmente, o que se impõe dentro da área dos apartamentos é a presença da milícia,
com o oferecimento de serviços clandestinos de TV a cabo, venda de botijões de gás, segurança
e “patrulhamento” da região, além do próprio sistema “alternativo” de transporte, que acaba
por ser a primeira opção dos moradores em face da precariedade da malha de transporte público
oferecida por ali.
Ao ser lembrado por uma vizinha das condições precárias em que vivia antes,
ocupando um barraco improvisado em acomodação coletiva, um morador acrescentou:

É, tem que considerar que em matéria de conforto aqui tá muito melhor. O ruim é
começar de novo aquele problema de alguém cismar com a gente ser de área rival da
que comanda aqui e perseguir18 (Marcos).

18 Vide uma série de reportagens veiculadas na imprensa acerca da atuação de grupos do tráfico e milícia naquela
localidade:<http://bandnewsfmrio.com.br/editoriais-detalhes/traficantes-impoem-medo-aos-moradores-de-conj>. Acesso em
20/01/2017.
<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/quatro-pessoas-sao-presas-em-operacao-contra-milicias-no-rio.html>.
Acesso em 05/09/2016.
<http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/183251/Minha-Casa-Minha-vida-est%C3%A1-abandonado-em-
Camar%C3%A1.htm>. Acesso em 05/09/2016.
<http://extra.globo.com/casos-de-policia/todos-os-condominios-do-minha-casa-minha-vida-no-rio-sao-alvos-do-crime-
organizado-15663214.html>. Acesso em 10/09/2016.
<http://extra.globo.com/casos-de-policia/moradores-de-conjuntos-do-minha-casa-minha-vida-em-senador-camara-sofrem-com-
acao-simultanea-do-trafico-da-milicia-15712204.html> 20/01/2017.
<http://www.folhapolitica.org/2014/01/minha-casa-minha-vida-enfrenta.html>. Acesso em 10/09/2016.
<http://oglobo.globo.com/rio/conjuntos-da-prefeitura-em-senador-camara-viram-alvo-de-milicia-5040165>. Acesso em
10/09/2016.
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Relato que trouxe novo tópico à entrevista, o primeiro de vários outros no mesmo
sentido, é a exposição dessa população compulsoriamente removida e reassentada em local
controlado por facção criminosa rival daquela do local de origem do morador19.
Quando o próprio Estado contribui para criar um quadro de vulnerabilidade (social)
dessas pessoas, que passam a conviver com sensação de medo e ficam expostas ao risco de
agressão ou represália.
À semelhança de uma análise de Teresa Caldeira (2000) sobre estratégias, na forma
de enclaves fortificados (p. 257), como meio de proteção e reação adotadas nos condomínios
nobres na cidade de São Paulo contra o aumento da criminalidade, no caso do Rio de Janeiro
verifica-se que o uso de “estratégias” deste tipo também está presente mesmo nos condomínios
mais populares, ainda que a custos bem mais baixos do que nos condomínios de luxo, mas não
menos relevantes e sacrificados para seus moradores.
Os entrevistados foram unânimes em relatar que estão “obrigados” ao pagamento de
uma “taxa de segurança” cobrada por milicianos, de R$ 15 a 30 reais mensais, dependendo do
condomínio. Taxa que se estende também a todos que desempenham algum tipo de serviço ali,
como mototáxis, entregadores de compras, camelôs, cujo valor vai aumentando conforme o
serviço oferecido e sem contar com os “serviços extras” que os moradores são obrigados a
aderir, como o “Gato Net” e o fornecimento de botijões de gás. No caso daqueles que realizam
transporte alternativo no local essa taxa chega a R$ 450,00 por semana.
Situação que faz daqueles conjuntos habitacionais verdadeiros enclaves fortificados
que, conforme CALDEIRA (2000, p. 12), “criam um espaço que contradiz diretamente os
ideais de heterogeneidade, acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o espaço
público moderno quanto às modernas democracias”.
Com a remoção e posterior reassentamento dos moradores em área precarizada e
distante de onde viviam anteriormente, fica evidente o processo de segregação espacial a que
foram submetidos, quando se pode apontar a ocorrência de um duplo modelo de enclave
fortificado a que ficaram sujeitos na cidade.
Primeiramente, com a separação das áreas mais nobres das áreas menos nobres da
cidade e, depois, ainda se adotou um modelo dentro dessa área mais precarizada, nos
condomínios de baixa renda, em que a população tem que se submeter ao mercado de segurança

19
No entorno do complexo de conjuntos habitacionais de baixa renda em Senador Camará, que somam quase quinze mil famílias,
estão situadas as favelas de Vila Aliança, Taquaral, Rebu e Sapo, todas ocupadas por facção rival a que atua na região central da
cidade, de onde vieram os moradores reassentados.
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clandestina dominado pelas milícias que atuam no local contra a ação de criminosos de facções
rivais ou contrárias ao exercício dos direitos de cidadania dos moradores. Eles pagam a
criminosos para terem o seu direito de ir e vir resguardado de outros criminosos.
Tudo contribuindo para a existência de cercas simbólicas dentro de um “ciclo da
violência” (CALDEIRA, 2000, p.13) e medo que alimenta ainda mais o aumento do
crescimento da indústria da segurança, ainda que paralela e ilegal, mas cotidianamente a única
com a qual os moradores podem efetivamente contar.
Dos dez entrevistados, oito disseram não se sentir mais seguros ali do que em sua
antiga moradia, vivendo sob um clima de mais tensão do que enfrentavam antes, “quando a
ameaça era apenas serem expulsos pela ‘Prefeitura’, não se preocupando com tráfico ou
milícia”. Antes, a falta de dinheiro os expunha à privação de meios de subsistência, agora tendo
que enfrentar também as cobranças pelos serviços que se veem obrigados a utilizar20.
Outras queixas quase unânimes versavam sobre o abandono e o descaso da
Prefeitura/SMA em não prestar assistência à situação de deterioração dos conjuntos de
apartamentos, principalmente das áreas comuns, bastante degradadas apesar do relativo pouco
tempo de construção (o conjunto foi inaugurado em 2012), além de problemas de alagamentos
que causavam infestação de mosquitos, deficiência de iluminação e rompimento de rede de
esgoto, além de falta de água com frequência.
Reclamação feita por todos os entrevistados abarcou a questão da distância do
conjunto habitacional para seus postos de trabalho, na região central da cidade, quando alguns
relataram terem perdido o local de trabalho, formal ou informal, em decorrência do problema
de mobilidade e aumento com o custo de transporte no percurso casa-trabalho-casa. Muitos
buscaram novas frentes de trabalho em bairros mais próximos.

Tudo para esses lados é mais difícil porque é muito longe, sacrifica muito a gente.
Não tem nada perto. Fora a despesa, que aumentou bastante e está muito difícil
conseguir um trabalho, nem “bico” aparece (Suelen).

Tiraram a gente de onde facilitava pra todo mundo e não fizeram nada lá. Está
fechado. Fizeram obra gigante em tudo que é lugar lá no Centro e de que adiantou
isso pra gente? Por que não podiam reformar o prédio de onde expulsaram a gente?
Gastaram tanto dinheiro! (Marilene).

20
Pude ouvir de um síndico que o Conjunto Habitacional enfrenta muitos problemas pela alta taxa de inadimplência entre os
moradores, incluindo a taxa condominial e o pagamento de tarifas pelos serviços públicos disponibilizados, para o que
argumentam que antes de ali residirem nada pagavam.
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O último censo demográfico do IBGE demonstra que dos dezesseis milhões de


habitantes do Estado do Rio de Janeiro, quase doze milhões (74%) residem em sua região
metropolitana e cerca de 62% da população, com idade economicamente ativa entre quinze a
setenta anos, ocupam postos de trabalho na capital do estado. Se a maior parte dessa população
ocupava postos de trabalho nas áreas centrais da cidade, como o caso da zona portuária, de onde
vieram essas pessoas, exatamente onde há maior oferta de emprego, é evidente o prejuízo que
tiveram quanto à mobilidade, tanto no acesso aos bens e serviços urbanos quanto ao próprio
mercado de trabalho.

3. O RISCO DIANTE DA VULNERABILIDADE SOCIAL

Diante desses fatos, vê-se que o Estado involuntariamente aumentou os riscos das
pessoas que já se encontravam em situação de franca vulnerabilidade social, sendo esta
entendida como a associação da pessoa a situações de exposição a riscos. Vulnerabilidade social
subentende, então, a maior susceptibilidade dessas pessoas de sofrerem algum tipo particular
de agravo (ACSELRAD, 2006, p. 1).
Desta forma, o Estado, ao invés de desenvolver uma política pública de planejamento
e gestão territorial eficiente na recuperação da população já tão vitimada pela negação de
cidadania e inclusão social, atua promovendo verdadeira desqualificação social (PAUGAM,
1999, p. 68).
Esta forma de atuação estatal colabora para manter em alta os indicadores de
vulnerabilidade social, que é quantificada pelo índice de vulnerabilidade social (IVS). Este
indicador está disponível a partir de dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) no Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros21, cuja última
edição foi a de 2015. Em termos qualitativos, o indicador busca identificar porções do território
onde há a sobreposição de situações indicativas de exclusão e vulnerabilidade social, servindo
para orientar gestores públicos municipais, estaduais e federais para o desenho de políticas
públicas mais sintonizadas com as carências e necessidades.
O índice de vulnerabilidade social se refere ao acesso, à ausência ou à insuficiência
de ativos, possuindo três dimensões de marcadores – IVS Infraestrutura Urbana; IVS Capital
Humano e IVS Renda e Trabalho - que busca identificar as falhas de ofertas de bens e serviços

21
Disponível em: <http://ivs.ipea.gov.br/ivs/data/rawData/publicacao_atlas_ivs.pdf>. Acesso em 30/06/2016.
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públicos no território nacional que deveriam ser providos aos cidadãos pelo Estado, nas suas
diversas instâncias administrativas.
Conforme a citada pesquisa, a dimensão que apresenta maior evolução (positiva) no
período de 2000 a 2010 é o IVS Renda e Trabalho, que abarca indicadores de insegurança de
renda e de precariedade nas relações de trabalho, quando o país passa de um alto índice para
um médio índice. Um dos indicadores aqui informa sobre o uso do tempo das pessoas de baixa
renda, com uma atividade compulsória (deslocamento para o trabalho), que pode ser estressante
e comprometedora do seu bem-estar.
Um dado alarmante é que o município do Rio de Janeiro aparece com apenas 4,3%
na faixa de redução do índice de vulnerabilidade social. O fato vem a se constituir um problema
sobre o qual ACSELRAD (2006, p.2) entende que para interromper o “processo de
vulnerabilização de determinados grupos sociais” se fará necessário interromper os processos
que concentram os riscos do projeto desenvolvimentista sobre os mais desprotegidos”.
O que certamente demanda.

CONCLUSÕES

Conclui-se que a remoção de moradores da Ocupação Machado de Assis, que tinha


como motivação a reurbanização da área, não atingiu o objetivo urbanístico. O complexo de
moradias permanece no local, em situação precária.
Há o entendimento de que tenha ocorrido uma higienização social, ainda que a
Prefeitura do Rio de Janeiro adote o eufemismo de que os moradores removidos “saíram de
suas casas” em decorrência de riscos a que estavam expostos; não há no discurso oficial a
menção ao termo remoção.
As vias indenizatórias da Prefeitura/SMA são insuficientes para assegurar novas
condições de moradia aos removidos que lhe permitissem residir próximo a zona portuária,
local de onde foram removidos.
As remoções têm levado os moradores para longe de seu lugar de trabalho, o que
implica que muitos ficam sem meio de subsistência, pelas dificuldades decorrentes da menor
mobilidade.
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O conceito de risco é aberto, depende do contexto social e seu potencial é


inversamente proporcional ao nível social do afetado. Quanto mais pobre, mais exposto ao
risco.
É necessário distinguir risco e perigo. O risco é uma probabilidade, o perigo é uma
evidência. Quando a probabilidade do risco é extremamente reduzida, este fica desconfigurado
e passa a ocupar unicamente o imaginário do que se sente ameaçado.
As famílias desalojadas da Ocupação Machado de Assis têm a percepção de que,
apesar de terem melhores moradias, ficaram expostas a novos riscos, como o da violência. Sua
percepção de risco decorre da violência e da possibilidade de serem novamente removidas pelo
poder público.
Os processos políticos decisórios, como o que decide sobre a remoção e
reassentamento de comunidades, podem se transformar em mecanismos promotores de
injustiças e aumento de desigualdades sociais, aumentando a vulnerabilidade das populações
atingidas; quando o Estado deveria proporcionar mecanismos que protegessem essas
populações da sujeição e enfrentamento de riscos desnecessários, criando um exército de
resilientes a toda sorte de infortúnios.

REFERÊNCIAS

ACSELRAD, Henri. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. Comunicação ao II Encontro Nacional de


Produtores e Usuários de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais, FIBGE, Rio de Janeiro, 24/8/2006.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução de
Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.

CASTEL, Robert. From dangerousness to risk. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER, Peter. The
Foucault Effect: Studies in Governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. – São Paulo: Editora UNESP,
1991.

_____. Mundo em descontrole. O que a globalização está fazendo de nós. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GUIDDENS, Anthony; SUTTON, Philip W. Conceitos essenciais da Sociologia. Tradução Claudia Freire. 1. ed.
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GUIVANT, Julia S. A trajetória das análises de risco: da periferia ao centro da teoria social. Revista Brasileira de
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KNAFOU, Rémy. Turismo e território. Por uma abordagem cientifica do turismo. In: RODRIGUES, A. B. (Org.).
Turismo e Geografia: Reflexões teóricas e enfoques regionais. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
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PAUGAM, Serge. A Desqualificação Social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Educ/Cortez, 2003.
PROJETO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL:
UMA APARENTE CONTRADIÇÃO ENTRE
A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A REFORMA AGRÁRIA

SOARES, Paulo Brasil Dill


Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Ciência, Tecnologia e Inovação em
Agropecuária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Doutorando pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito /UFF. Membro do Observatório Fundiário Fluminense.
RIBEIRO, Ana Maria Motta
Professora Associada da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)/
(CPDA). Professora do Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) e Coordenadora do
Observatório Fundiário Fluminense.
CÂMARA, Andreza Aparecida Franco
Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pelo
PPGSD/UFF. Pesquisadora FAPERJ.

RESUMO

A presente proposta objetiva analisar o modelo de assentamento que está atualmente sendo instituído
pelo INCRA, denominado “Projeto de Desenvolvimento Sustentável” ou simplesmente PDS, enquanto
política agroambiental, inspirada na luta dos seringueiros e dos povos da floresta na Amazônia visando
continuar exercendo o direito ao acesso a terra e à floresta, em regime de uso sustentável, valorizando os
saberes e o modo de vida de suas experiências. Serão examinamos dois casos de assentamentos na
modalidade de PDS criados no estado do Rio de Janeiro: o PDS Sebastian Lan, localizado no Município
de Silva Jardim, no entorno da Reserva Biológica Poço das Antas (REBIO), e o PDS Osvaldo de
Oliveira, situado em Macaé, ambos em território de Mata Atlântica. A contrapelo da história de
construção dessa proposta verificam-se dois processos que merecem análise para entender
empiricamente a questão da produção política de uma suposta contradição entre preservação ambiental
e reforma agrária. No primeiro aparece o PDS através de uma politica pública impositiva do Estado, sem
consulta aos atingidos já estabelecidos na área há 20 anos. No segundo, o INCRA disponibiliza uma área
sem presença humana e só depois conduz um grupo já mobilizado para acesso a terra para os quais
apresenta o PDS como modelo fechado e as tensões começam a emergir criando novas lutas em lugar
de facilitar a emergência de uma comunidade centrada em objetivos que recebeu e sequer soube como
assumir. Pretende-se problematizar pela escuta das vozes afetadas, especificamente em relação ao
modelo de PDS imposto nessas territorialidades para entender o contraste entre interesses políticos do
Estado e os significados e interesses levantados pelo de construção coletiva dos projetos.

Palavras-chave. Reforma agrária; Projeto de Desenvolvimento Sustentável; Assentamentos Sebastião


Lan; Assentamento Osvaldo de Oliveira.

218
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ABSTRACT

The present proposal aims at analyzing the settlement model that is currently being set up by INCRA,
known as the “Sustainable Development Project” or simply PDS, as an agro-environmental policy,
inspired by the struggle of rubber tappers and forest peoples in the Amazon to continue exercising the
right to access to land and forest, in a sustainable use regime, valuing the knowledge and way of life of
their experiences. We will examine two cases of settlements in the PDS modality created in the state of
Rio de Janeiro: the PDS Sebastian Lan, located in the Municipality of Silva Jardim, near the Poço das
Antas Biological Reserve (REBIO), and the PDS Osvaldo de Oliveira, in Macaé, both in Atlantic Forest
territory. In contrast to the history of the construction of this proposal, there are two processes that merit
analysis to understand empirically the question of the political production of a supposed contradiction
between environmental preservation and agrarian reform. In the first one the PDS appears through a
public tax policy of the State, without consultation to those already established in the area 20 years ago.
In the second, INCRA provides an area with no human presence and only then leads a group already
mobilized to access land for which it presents the PDS as a closed model and tensions begin to emerge
creating new struggles rather than facilitating the emergence of a community focused on goals that he
has received and even knew how to assume. It is intended to problematize by listening to the voices
affected, specifically in relation to the PDS model imposed in these territorialities to understand the
contrast between political interests of the State and the meanings and interests raised by the collective
construction of the projects.

Keywords. Agrarian reform; Sustainable Development Project; Settlements Sebastião Lan; Osvaldo de
Oliveira Settlement.

INTRODUÇÃO

A relação do homem com a natureza e sua apropriação pode ser analisada sob a ótica
de Marx. Em “Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira, de 1842”,
Marx analisa “interesses materiais”, apesar de sua crítica à economia política ainda não ter sido
construída, já aparecem, de forma embrionária, expressões como “valor” e “mais-valor”, assim
como o problema da mercadorização da natureza, da vida e do trabalho.

Uma vez alcançado certo nível de desenvolvimento, a apropriação privada da


natureza se manifesta como supérflua e nociva. Em MARX: uma vez alcançado certo
nível de desenvolvimento, a propriedade do solo se manifesta como supérflua e
nociva (...) (MARX, [18941 1981:801).

No Brasil, após a década de 1990, a questão ambiental ganha um novo corpo sem
perder as raízes da patrimonialização da natureza, passa a ser operada por um movimento de
institucionalização. Organizações sociais, grupos técnicos e administrativos profissionalizados
reabrem o debate sobre a identidade do “movimento ambientalista”, através de instituições-
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redes que atuam, por vezes, induzindo as políticas públicas ambientais, outras servindo de
executoras dessas políticas, através de consultorias e outros mecanismos de assessoramento,
que priorizam o pragmatismo de ação em detrimento de meios democráticos e horizontais de
participação dos atores envolvidos (ACSELRAD, 2004). É a partir desse cenário que uma nova
categoria passa a constar em documentos oficiais, legislações e ações governamentais: decidir
politicamente o que é ou não “sustentável”.
Este trabalho tem como objetivo discutir o processo de sistematização de um novo
modelo de assentamento, na modalidade de Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS)1,
que visa harmonizar as políticas agrárias e ambientais, inspiradas na luta dos seringueiros e dos
povos da floresta na Amazônia, em continuar exercendo o direito ao acesso a terra e à floresta,
dando-lhe um uso sustentável, baseado na valorização dos saberes e do modo de vida
tradicionais.
Para tanto, serão examinados dois casos de assentamentos na modalidade de PDS,
criados no Estado do Rio de Janeiro, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA): o PDS Sebastian Lan, localizado no Município de Silva Jardim, e o PDS Osvaldo
de Oliveira, situado em Macaé, sob a perspectiva de um processo de construção fundado em
luta social de populações atingidas pela intervenção estatal na adoção de uma matriz
tecnológica baseada na agroecologia, revelando-se, por vezes, uma opção baseada no modelo
de “domínio gestionário-administrativo” (ACSELRAD, 2010) calcado em ações de cima para
baixo, sem a escuta das organizações de luta pela terra e dos próprios assentados.

1 CONTEXTUALIZANDO O MODELO DE PROJETO DE


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A luta dos povos da floresta Amazônica até a década de 1970 era invisibilizada no
panorama nacional e internacional. Somente após os anos de 1980, com a intensa articulação
de um movimento agrário conectado a temas ambientais, enquanto estratégia de resistência
baseada no paradigma de desenvolvimento sustentável com a participação popular ao modelo
excludente e hegemônico do nacional desenvolvimentismo observado nesse período é que
passa a ter atenção acadêmica e social (ALMEIDA, 2004).

1
Portaria INCRA/P/nº. 477, de 04 de novembro de 1999.
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Desse modo, o jogo de forças no campo de lutas da questão agroambiental,


notadamente, a partir de meados dos anos de 1980, tem resultado numa configuração política
em que a reivindicação do direito à diferença e a valorização dos modos de vida tradicionais
como alternativa para uma convivência mais harmoniosa com a natureza são levados em
consideração na formulação de políticas públicas ambientais e agrárias.
O Estado brasileiro não abandonou sua agenda desenvolvimentista para a Amazônia
na década de 1980. Contudo, os atingidos por essa agenda tiveram um protagonismo antes não
experimentado nesse locus. As populações indígenas tiveram assegurados direitos civis e a
definição de seu território tradicional a partir de um processo de regularização fundiária, com
destaque a promulgação da Lei nº. 6.001, de 19 de dezembro de 1973, abandonando o velho
assistencialismo messiânico do início do século XX. Os camponeses da floresta perderam a
invisibilidade e através de luta obtiveram o direito à posse coletiva de florestas.
Na atualidade, os desafios são outros. Além das constantes invasões às terras
delimitadas para uso extrativista e reserva indígena por grileiros e fazendeiros, nessa região os
assentados passam a lidar com os conflitos inaugurados por um Estado conservacionista.
Conforme considera Almeida os “(...) líderes seringueiros recusaram-se a permanecer isolados,
e criaram uma ponte entre as lutas que continuavam a ser travadas em escala local, como no
caso das ‘greves’ no rio Tejo, e um movimento em âmbito nacional” (ALMEIDA, 2004, p. 46).
No Brasil após o evento ECO-92 houve uma demanda crescente por políticas públicas
de conservação de florestas adequadas ao que se discutia em nível internacional sobre
desenvolvimento sustentável, acompanhado de um investimento internacional para essa
conservação particularmente na região amazônica que ainda possuía espaços naturais
preservados e uma imensa biodiversidade a se preservar também (FATHEUER, 1998).
Uma alternativa para o uso sustentável do território amazônico foi à criação do Projeto
de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que constitui um modelo de base com a gestão coletiva
e cooperativista para evitar o parcelamento da terra com titulação individual. Criado a partir das
ideias de conservação dos biomas brasileiros e da floresta amazônica, em particular, aliado à
manutenção da atividade extrativista tradicional e do apoio às populações que articulem a
produção e a comercialização e contribua para a preservação da biodiversidade, o INCRA edita,
em 04 de novembro de 1999, a Portaria nº. 477, que além de outras disposições, destina o PDS
como modalidade de interesse social e ecológico, destinada às populações que baseiam sua
subsistência no extrativismo, na agricultura familiar e em outras atividades de baixo impacto
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ambiental (art. 1º), tendo por base a sustentabilidade e a promoção de qualidade de vida para os
assentados.
Ressalta-se que as áreas destinadas aos projetos serão objeto de concessão de uso2,
em regime comunal, segundo participação popular das comunidades, podendo assumir a forma
de associação, condomínio ou cooperativa (art. 2º).
Contudo o que se verifica, ao menos nos Projetos já criados ou em via de criação no
Estado do Rio de Janeiro, é que a valorização das diferenças constitutivas das comunidades
tradicionais não aparece em instrumentos político-jurídicos relacionada à noção de patrimônio
cultural, mas uma tentativa de uniformização e nivelamento das comunidades às diretrizes
conservacionistas gerais, aliada às políticas contemporâneas de reforma agrária que visa
somente à distribuição terras, não ofertando satisfatoriamente infraestrutura e capacitação
sociotécnica às famílias assentadas.
Especificamente em relação ao modelo PDS, transposto aqui para a região sudeste e
objeto desse estudo, parece oportuno contextualizar a primeira experiência de PDS,
denominado São Salvador, instituído pela Portaria nº 11, de 19 de junho de 2001/ INCRA/Acre,
em um território no entorno da Unidade de Conservação (UC), na modalidade de Parque
Nacional da Serra do Divisor (PNSD). Este PDS possui uma área de 27.830 ha, dividida
internamente em dez comunidades, localizada no município de Mâncio Lima às margens dos
rios Moa e Azul, com capacidade para assentar 117 (cento e dezessete) famílias. A sua
localização se dá em uma região amazônica caracterizada por sua extensão de formas, vidas,
culturas. A criação de um modelo de assentamento cristalizado para essa região seria uma tarefa
inviável. Porém existem regras básicas de conduta a serem adotadas no transcorrer de um
projeto de assentamento, e estas podem ser decisivas para o seu sucesso e essas normativas
gerais, podem ser aplicadas em toda a extensão amazônica, desde que adaptadas a situações
específicas (GUERRA, 2004).

2
A Constituição Federal disciplina a distribuição dos imóveis rurais na implantação da política pública de reforma agrária em seu
artigo 189, prevendo que os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou
de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.
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2 UMA APARENTE DICOTOMIA ENTRE REFORMA AGRÁRIA E


PRESERVAÇÃO AMBIENTAL: A RELATIVIZAÇÃO ATRAVÉS DA
EXPERIÊNCIA DO PDS

O encontro do ideal ambientalista (defendido pelos novos movimentos sociais, como


por exemplo, os coletivos) com o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -,
que aqui será entendido como sendo um representante dos movimentos sociais tradicionais,
especialmente se consideradas suas práticas, ações e estrutura, pode ser representado na criação
e na consolidação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS).
O recorte abordado neste item será a atuação do MST, regional Rio de Janeiro, que
acontece em assentamentos nas áreas rurais da cidade de Macaé e de Silva Jardim, no estado
do Rio de Janeiro e ações interligadas com outros coletivos e movimentos como a Federação
dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio de Janeiro, FETAG.-RJ.
No assentamento Osvaldo de Oliveira, primeiro PDS do estado, o processo de criação
se deu com a ocupação pelo MST da fazenda Bom Jardim, no território de Macaé, localizada
no distrito Córrego do Ouro, desapropriada pelo INCRA, para fins de reforma agrária, no
modelo de PDS, no final dos anos 2000. Destaca-se tal conflito foi judicializado, em 2007, pelo
Ministério Público Federal (MPF), tendo como principal fundamento a criação do PDS e
sistematização de todas as previsões contidas nas portarias desapropriatórias e de criação do
Conselho Gestor do PDS.
O assentamento, denominado “Sebastião Lan”, foi criado no final da década de 1990
para pouco menos de meia centena de famílias em terras acusadas de grilagem da Fazenda
Sobara. (PEREIRA 2006, p. 96) O fazendeiro não recorreu à Justiça, terminou em reintegração
de posse ao INCRA e na criação do projeto de Assentamento para parte das famílias
acampadas. A área do assentamento Sebastião Lan, apesar de está no entorno da Reserva
Biológica Poço das Antas (REBIO), margeia-se do outro lado com o rio São João, e não se
confronta diretamente com a Reserva. Existiria por parte da administração da REBIO a intenção
de negociação, tendo sido criado o assentamento, de forma que as outras famílias acampadas
fossem transferidas. E o acampamento Sebastião Lan 2, contemplando 82 famílias, em uma
área de 1466 ha, criado em 21 de junho de 1997 (PEREIRA, 2006, p.52).
O PDS é um modelo de gestão ambiental da produção, que segundo DIEGUES
(1992), aproveita a ideia de desenvolvimento sustentável derivada do conceito de
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ecodesenvolvimento, proposto nos anos 1970, por Maurice Strong, como alternativa a
dicotomia “economia – ecologia”.
O Projeto de Desenvolvimento Sustentável é uma alternativa para o modelo
excludente e seletivo de produção da terra, uma vez que prioriza a construção dos processos
decisórios a partir de uma horizontalidade do Comitê Gestor e da interação com as famílias
beneficiadas equalizando com o meio ambiente. É fato que os problemas ambientais
decorrentes do modelo de exploração capitalista, denunciado pelo movimento ambientalista,
atingiram uma escala global deixando de ser uma causa particular de teóricos, pesquisadores
ou defensores da natureza para tornar-se um pleito associado a uma nova maneira de considerar
a relação entre economia, sociedade e natureza.
Anteriormente ao paradigma ambientalista, o imperativo era produzir alimentos via
modernização da lavoura. Foi possível aumentar a produção, entretanto, a fome no mundo
continuou, provando que o problema não era apenas elevar a produção e a produtividade. Ao
final, os efeitos colaterais negativos ficaram visíveis.
A estratégia modernizadora fundamentou-se na chamada Revolução Verde onde a
pesquisa e o desenvolvimento dos modernos sistemas de produção foram orientados para a
incorporação de “pacotes tecnológicos”, tidos como de aplicação universal e destinados a
maximizar o rendimento dos cultivos em situações ecológicas profundamente distintas aquelas
encontradas na agricultura tradicional. Objetivou-se com isso elevar ao máximo a capacidade
potencial dos cultivos, alterando condições ecológicas naturais para outras ideais. Um dos
recursos empregado foi o uso dos agrotóxicos buscando eliminar os competidores e predadores
naturais. Outro meio utilizado foi o fornecimento dos nutrientes necessários sob a forma de
fertilizantes sintéticos. A lógica subjacente é o controle das condições naturais por meio da
simplificação e da máxima artificialização do ambiente, de forma a adequá-lo ao genótipo0
para que esse possa efetivar todo seu potencial de rendimento (SARADÓN, 1996).
O surgimento do movimento social ambientalista resultou dos efeitos produzidos a
partir dos conflitos sociais envolvendo questões públicas que decorreram da implantação de
uma ordem mercadológica que permeia as relações públicas, o cenário internacional e as
agendas políticas, ao longo das décadas de 70 e 80. O desafio passou a ser a conjugação dos
valores ambientais com os econômicos, visando ao desenvolvimento sustentável.
Assim, diante desses conflitos entre a maximização dos lucros no sistema capitalista
do agronegócio e a alternativa proposta pelo uso racional e agroecológico da terra, apresenta-
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se a experiência desses conflitos socioambientais existentes nos Municípios de Macaé e de


Silva Jardim, a partir da judicialização desta centralidade de disputa envolvendo as categorias
preservação ambiental e desenvolvimento sustentável, explicados neste artigo.
Embora o INCRA desenvolva uma política de fiscalização e monitoramento da
evasão dos lotes da reforma agrária por parte dos contemplados nos assentamentos, esse
fenômeno é observado e estudado por especialista na temática rural. É possível analisar a
relação entre a evasão e as razões relacionadas aos processos sociais que deram origem aos
assentamentos, segundo informa Aleixo (2007, p. 21) esta categoria analítica foi proposta por
Bruno & Medeiros (1998), que sistematizaram os dados da pesquisa realizada em diversas
regiões do Brasil e dividiram em quatro tipos diferentes de processos sociais que originaram os
assentamentos estudados por diversos autores.
O Assentamento Sebastião Lan, em Silva Jardim, nos perece enquadrar-se no
primeiro tipo refere-se aos assentamentos onde o público predominante é o de posseiros e
antigos moradores da área desapropriada. Nesses casos, são trabalhadores que, num
determinado momento, passaram a ser pressionado pelo proprietário para que saíssem ou
pagassem alguma forma de renda. Dos casos que se enquadram nessa categoria, 42,8% tem
índices de evasão menores que 12,5% e em 76,5% dos casos, possuem índices de evasão
inferiores a 25%. É a categoria cuja tendência é a presença de baixos índices de evasão, embora
se observasse no Estado de Mato Grosso índices significativamente mais altos.
O Assentamento Osvaldo de Oliveira, em Macaé, se assemelha ao quarto e último
processo social, que diz respeito aos casos onde coube ao INCRA a iniciativa de constituir
assentamentos, ou seja, onde o órgão desapropriou a terra, independentemente da existência de
demanda e escolheu o público beneficiário. Os índices de evasão nesses casos são bastante
elevados, chegando a 89,3% no assentamento Sertão Bonito (BA), ou seja, de cada dez pessoas
que entraram, cerca de nove saíram. As Regiões Norte (TO, PA e RO) e Nordeste (CE e BA)
concentram tais situações (ALEIXO, 2007, p. 21).
É possível analisar a relação entre a evasão e as razões relacionadas aos processos
sociais que deram origem aos assentamentos, segundo informa Aleixo (2007, p. 21) esta
categoria analítica foi proposta por Bruno & Medeiros (1998) que sistematizaram os dados da
pesquisas realizadas em diversas regiões do Brasil e dividiram em quatro tipos diferentes de
processos sociais que originaram os assentamentos estudados por diversos autores.
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O Assentamento Sebastião Lan, em Silva Jardim, nos perece enquadrar-se no


primeiro tipo refere-se aos assentamentos onde o público predominante é o de posseiros e
antigos moradores da área desapropriada. Nesses casos, são trabalhadores que, num
determinado momento, passaram a ser pressionado pelo proprietário para que saíssem ou
pagassem alguma forma de renda. Dos casos que se enquadram nessa categoria, 42,8% tem
índices de evasão menores que 12,5% e em 76,5% dos casos, possuem índices de evasão
inferiores a 25%. É a categoria cuja tendência é a presença de baixos índices de evasão, embora
se observasse no Estado de Mato Grosso índices significativamente mais altos.
O Assentamento Osvaldo de Oliveira, em Macaé, se assemelha ao quarto e último
processo social que diz respeito aos casos onde coube ao INCRA à iniciativa de constituir
assentamentos, ou seja, onde o órgão desapropriou a terra, independentemente da existência de
demanda e escolheu o público beneficiário. Os índices de evasão nesses casos são bastante
elevados, chegando a 89,3% no assentamento Sertão Bonito (BA), ou seja, de cada dez pessoas
que entraram, cerca de nove saíram. As Regiões Norte (TO, PA e RO) e Nordeste (CE e BA)
concentram tais situações (ALEIXO, 2007, p. 21).
Os trabalhadores rurais que ocupavam, sem autorização do INCRA, lotes em áreas de
reforma agrária tiveram a oportunidade de regularizar a situação. A possibilidade foi criada com
a publicação, no Diário Oficial da União, de 31 de maio de 2012, da Instrução Normativa (IN)
nº. 71, que estabeleceu ações e medidas a serem adotadas nos casos de constatação de
irregularidades em assentamentos. A nova IN revogou a IN nº. 47, que previa a retomada dos
lotes diante da comprovação de qualquer tipo de ocupação irregular, mesmo nos casos em que
ocorresse de boa-fé, vivesse com a família e produzisse no local.
Entretanto, para a Controladoria Geral da União (CGU), ainda haviam em janeiro de
2016, 76 (setenta e seis) mil lotes ocupados irregularmente nos processos de assentamentos da
Reforma Agrária, cerca de 8% (oito por cento) do total. Assim, do total, 38mil foram usurpados
por funcionários públicos, em casos que envolvem até mesmo um delegado da Polícia Federal
e um Procurador Geral do estado do Acre. Há lotes em nome de 8.519 menores de idade, uma
prática que revela a manipulação para aumentar o tamanho da área de uma mesma família,
acima do módulo rural permitido pela lei. Não faltam casos de empresários, precisamente
7.872, que burlaram a lei de Reforma Agrária para acumular terras. E há, ainda, 271 casos de
políticos que se apropriaram indevidamente de terras que deveriam ser destinadas à Reforma
Agraria para o assentamento de famílias de sem-terras.
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3 OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS EM TERRITÓRIOS DE PDS’S NO


ESTADO DO RIO DE JANEIRO

3.1.1 PDS Osvaldo de Oliveira e a construção da territorialização

A judicialização do conflito envolvendo as famílias de assentados no PDS Osvaldo


de Oliveiro se originou com a propositura de uma Ação Civil Pública (ACP) proposta pelo
MPF, na Seção Judiciária de Macaé, em face de aproximadamente 50 (cinquenta) famílias que
ocuparam uma área degradada pela ação humana para a exploração agropecuária e que foi
desapropriada pelo INCRA.
O PDS Osvaldo de Oliveira foi instituído em uma área que possui 1.539,76 hectares
e compõem uma antiga Fazenda antes denominada de Bom Jardim, localizada no distrito de
Córrego do Ouro, pertencente ao município de Macaé, na região norte do Rio de Janeiro. A
área pertencia à empresa de rádio Campos Difusora LTDA, no Norte Fluminense, e foi
arrendada ao empresário rural José Antônio Barbosa Lemos, sócio proprietário da mesma
empresa, ex-deputado estadual e ex-prefeito de São Francisco de Itabapoana, município
também localizado na região norte do estado. Contudo, a área foi considerada improdutiva pelo
INCRA em 2006, por não cumprir a sua função social e ambiental conforme as diretrizes legais
pré-estabelecidas3.
No ano de 2010, a área foi declarada de interesse social para fins de Reforma Agrária
pelo Decreto Presidencial e o INCRA foi imitido na sua posse em 28 de fevereiro do mesmo
ano. No mês de setembro de 2010, o assentamento foi ocupado por cerca de 200 famílias
vinculadas e organizadas pelo MST. No decorrer desse período, o território foi palco de
diversos conflitos, entre os quais, quatro despejos das famílias assentadas, por determinação
judicial. O conflito mais violento ocorreu no dia 17 de novembro de 2010, quando a polícia
exigiu que os acampados retirassem seus pertences e objetos pessoais em poucos minutos antes
do despejo. Depois que as famílias saíram do local os barracos foram incendiados.

3 A mesorregião onde está localizado o PDS apresenta propriedades variadas em decorrência das características botânicas da Mata

Atlântica brasileira, a maior floresta tropical do mundo, diversificando, assim, as possibilidades de aplicação, algumas espécies
apresentavam uma densidade superior às madeiras importadas da América do Norte, o que facilitava, inclusive, o processo de
escoamento pelos rios da região até portos marítimos ou pontos de apoio na logística da atividade de extração madeireira.
Sucupira, louro, angelim vermelho e amarelo, vinhático, oiti, jequitibá, pindaíba, potumuju, jenipapo e tapinhoã, espécies
abundantes nas matas locais, eram algumas das mais utilizadas nos estaleiros (MILLER, 2000, p. 325). Essas características
levaram ao INCRA em instituir esse modelo de produção agroecológica no Estado do Rio de Janeiro. Muito embora, registra-se
uma tentativa anterior no Município de Silva Jardim, através do PDS Sebastião Lan, que será tratado no item 3.1.2.
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Posteriormente, no ano 2015 houve a tentativa de se retomar a área ocupada através


de uma ACP proposta pelo Ministério Público Federal, da Seção de Macaé. Contudo, depois
de algumas audiências públicas realizadas no Palácio Legislativo de Macaé e na Vara Federal
de Macaé, com a apresentação de contra laudos fornecidos pelo Coletivo Mariana Crioula –
Assessoria Jurídica Popular, o magistrado federal resolveu suspender os efeitos da referida
decisão e determinou a reintegração de posse ao INCRA, devendo o órgão elaborar o Plano de
Uso (PU) e cumprir outras obrigações no prazo de oito meses contados da data de publicação
do PU.
Na verdade, entre os anos de 2012 a 2014, foi elaborado o Plano de Uso do Projeto
de Desenvolvimento Sustentável Osvaldo de Oliveira pelo conselho incumbido de sua gestão.
Todavia, por entraves técnicos alegados pelo INCRA, somente em janeiro de 2017 foi
publicada a aprovação do Plano de Uso. Porém, essa delimitação territorial específica vem
sendo trabalhada, visando incorporar como público alvo de suas ações toda a comunidade
assentada no PDS para conscientizar sobre a importância da preservação do meio ambiente, e
esclarecer quaisquer dúvidas quanto à legislação ambiental necessária à viabilização do Plano
de Uso.
A vivência de campo ocorreu com visitas ao assentamento e participação de diversas
ações junto aos assentados do MST, através do grupo de alunos e professores que integram o
Tamoio Coletivo de Assessoria Popular – TaCAP. O Coletivo se constitui como um grupo de
pesquisa e extensão, voltado à prestação de Assessoria Jurídica Popular Universitária vinculado
à Universidade Federal Fluminense. O TaCAP realiza atividades de extensão e pesquisa,
promove interconexões entre a sociedade e universidade como partes indissociáveis de um
todo: a vida social. Essas atividades/projetos são definidas coletivamente e executadas por cada
Grupo de Trabalho.
Observa-se que antes das atividades serem iniciadas (somente com a presença de
todos os assentados) existe a exposição dos alimentos produzidos e colhidos na safra pelos
assentados locais, e a apresentação de cada uma das pessoas presentes fornecendo o nome
completo e a função operacional ou administrativa ocupada por aquele assentado. Somos
informados sobre a origem de cada um deles, bem como os cursos de capacitação que já
frequentaram no local ou em outros assentamentos do MST e mesmo em Instituições parceiras.
Nesses encontros, todos os assentados tem a liberdade de expressão garantida para interpelar e
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apresentar resposta à eventual arguição que lhe seja dirigida e o direito de apresentar propostas
e de votar nas matérias pautadas.

3.1.2 Vinte anos de espera! O PDS Sebastião Lan ainda aguarda sua consolidação

O Assentamento Sebastião Lan, inicialmente previsto para acolher aproximadamente


trinta famílias, em terras acusadas de grilagem da Fazenda Sobara (PEREIRA, 2007, p. 50)
passou pelo ajuizamento de processo, a priori, em benefícios dos assentados e tendo como autor
o Ministério Público Federal e o réu o INCRA, através da Ação Civil Pública nº 0001284-
36.2012.4.02.5107 (2012.51.07.001284-2). O objetivo da ação foi à condenação da autarquia
agrária a reparar os danos materiais e morais suportados pelos agricultores instalados nos
Assentamentos Sebastião Lan, São José da Boa Morte e Cambucaes, na extensão a ser
individualmente. Como se extrai dos autos, o MPF pretende que o INCRA seja condenado a
reparação dos prejuízos advindos de sua omissão em assegurar as condições básicas para a
moradia e o pleno desenvolvimento das atividades dos trabalhadores assentados.
O INCRA tinha a posse das terras desde 1977, teve as terras ocupadas por décadas. A
reintegração da posse das terras ocorreu somente ao final da década de 1990, após a ocupação
de terras pelo movimento social (PEREIRA, 2007). Parte foi destinada para o Assentamento
Sebastião Lan nas terras griladas pela Fazenda Sobara. Outra parte junto à barragem, o INCRA
não assumiu a reintegração de posse e não destinou para assentamento de famílias. Muitas
famílias após a criação do Assentamento Sebastião Lan continuaram acampadas e constituíram
o Acampamento Sebastião Lan 2, demandando assentamento para cerca de 82 famílias na gleba
norte (conhecida como brejão) (PEREIRA, p.53).
Os conflitos socioambientais não se dão apenas em relação à Reserva biológica de
Poço das Antas, pois o Assentamento Sebastião Lan é vizinho da Represa da Lagoa de
Juturnaíba e suas comportas foram abertas sem as cautelas necessárias, causando uma
inundação por negligência do Poder público, com graves prejuízos materiais e morais. E em
decorrência desse fato o assentado Mario Rogério de Souza moveu ação judicial contra a Pró-
Lagos S/A. Concessionária de Serviços Públicos de Água e Esgoto (APL1589720058190059,
no TJRJ).
O autor da ação alegou que foi assentado pelo INCRA no Assentamento Lan e que
em razão de grande densidade de chuvas na região, que acarretou aumento acima do normal na
Represa da Lagoa de Juturnaíba, foram abertas as comportas da represa de uma só vez,
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causando inundação no Assentamento Sebastião Lan. Em razão de tal fato, o autor perdeu sua
plantação e sua residência.
O Acampamento Sebastião Lan vem resistindo por vários anos, desde 1997,
aguardando a definição para assentamento definitivo nas terras do INCRA. O projeto ambiental
preservacionista tem avançado na região do Vale do São João e muitas unidades de conservação
foram criadas: a Reserva Biológica União com 3.126 hectares (em abril/1998); a APA Bacia
do Rio São João/ Mico-Leao-Dourado (em junho/2002), que abrange dos municípios de Rio
Bonito e Cachoeiras de Macacu até Barra de São João (7 municípios); e muitas Reservas
Particulares do Patrimônio Natural nas fazendas da região, num total crescente totalizando
3.026,37 hectares no ano de 2000 (em 1991 eram 63,70 hectares sob a forma de RPPN)
(PEREIRA, p. 54), conforme se verifica no mapa abaixo.
A defensoria Pública da União (DPU), em Niterói (RJ) divulgou, em seu endereço
eletrônico, que seus representantes estiveram, em 11 de julho de 2017, na localidade conhecida
como Sebastião Lan II, em Silva Jardim, no estado do Rio de Janeiro, onde participaram de
reunião com moradores e acadêmicos da Universidade Federal Fluminense, que acompanham
o processo de assentamento rural no local.
O objetivo do encontro foi ouvir as famílias de agricultores e definir os próximos
passos a serem tomados em ação civil pública (ACP) movida pela DPU contra O INCRA.
Bárbara Valle, socióloga da DPU, observou que “a visita ao assentamento foi importante para
conhecer a realidade da comunidade e finalizar o mapeamento das famílias, além de ouvir suas
demandas em relação às estratégias de atuação no processo judicial”, já que foi proposta em
2015 a Ação Civil Pública, questionando exigências que colocam em risco as atividades
agrícolas da localidade e a inobservância do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC),
firmado em 2005 entre o Ministério Público Federal, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o INCRA (DPU, 2017).
Sobre o caso, o defensor público federal, Bernard dos Reis Alô, afirmou que a
imposição de um modelo de assentamento sem prévia discussão e participação da comunidade
contraria as estratégias e as indicações de educação ambiental e oficinas previstas no TAC. Um
dos lotes visitados é inclusive considerado improdutivo por laudos apresentados pelo INCRA.
No entanto, há dez anos a mesma família cultiva a terra e produz no local mandioca, milho,
guando e laranja (DPU, 2017).
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A Assessoria de Comunicação Social do INCRA/RJ noticiou, em 25 de julho de 2017,


em seu site eletrônico, que a Superintendência Regional retomou as atividades de campo, no
PDS Sebastião Lan II. Informou que a equipe do Serviço de Meio Ambiente e Recursos
Naturais da unidade vem realizando estudos e vistorias no local a fim de apresentar uma nova
proposta de ordenamento territorial do assentamento e que os técnicos se reuniram com a
comunidade no dia 20 de julho de 2017 (INCRA, 2017). Segundo o INCRA, a proposta é
rediscutir as condicionantes do licenciamento ambiental com o INEA e com o ICMBio, que
administra reserva biológica vizinha ao assentamento.
A abertura do diálogo visava à promoção de ajustes na proposta de organização
espacial do PDS, que previa a construção de uma agrovila e a destinação das áreas baixas do
assentamento, que possuem alto risco de inundação, exclusivamente como reserva legal. A
nova proposta não prevê inviabilizar totalmente as áreas inundáveis do assentamento, que
somam quase mil hectares, mas permitir sua ocupação em termos de atividade produtiva
(INCRA, 2017).
A recente vistoria do INCRA detectou que será preciso recuperar as margens dos rios
São João e Aldeia Velha, que fazem divisa com o assentamento, e destinar aproximadamente
10% (dez por cento) da área, hoje ocupada por famílias, à reserva legal, para se chegar ao
mínimo estabelecido por lei (INCRA, 2017).
Cumpre observar que essa é a primeira atividade técnica de campo no PDS, desde a
decisão da 2ª Vara Federal de Itaboraí, em março deste ano, que suspendeu a Ação Civil Pública
movida contra o INCRA pela Defensoria Pública da União (DPU). A ação cobrava da autarquia
a revisão da proposta técnica de implantação do PDS e também das condicionantes da licença
prévia. O INCRA criticou o ajuizamento da ACP classificando-a como precipitada, uma vez
que ainda não se haviam esgotados os recursos administrativos para a mediação do conflito
com as famílias que vivem na área do PDS, que não haviam aceitado a proposta de
ordenamento territorial então apresentada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio consiste em entender a realidade contemporânea ultrapassando o modelo


clássico de análise da realidade, que no mundo moderno tem as ciências empíricas como
referência constitutiva. É necessário, sobretudo, buscar o desenvolvimento de um “pensamento
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complexo” (MORIN, 2000), que percebe o conhecimento como sistêmico e multidimensional,


que não reduz a realidade à linearidade dos fatos e acontecimentos em sentido restrito ou
midiático.
Porém são visíveis as contradições nas manifestações massivas, não apenas no Brasil,
como em vários lugares do mundo: o tom apartidário e as bandeiras mais abstratas deram força
aos movimentos num primeiro momento, mas resultaram em inúmeras dificuldades, como a
violência de alguns manifestantes e também da polícia, à medida que os protestos se
expandiram, deixando um vácuo e enfraquecendo os movimentos pela falta de lideranças e de
referenciais mais sólidos de representação política e social.
No caso do PDS Osvaldo de Oliveira, verificou-se que havia uma terra liberada para
a Reforma Agrária, mas “sem gente”, o que significa a criação de uma territorialidade somente
“após colocação dessa gente sem terra” na área. Entretanto surgiram questões e embates com o
INCRA e com o Estado, envolve questões da natureza socioambiental conflituosas. Enquanto
no caso do PDS Sebastião Lan II, a terra estava ocupada pelos membros dos movimentos
sociais há 20 (vinte) anos, no território entendido pelo INCRA enquanto área para o
zoneamento especial e transformação em PDS, com fortes determinações contrárias aos
interesses, percepções e escolhas dos atingidos. Essa área já territorializada e formada como
uma comunidade, novamente brotaram as questões conflituosas geradoras de uma reação
judicializada pelos moradores.
Conclui-se que a apropriação da bandeira ambientalistas como política pública
federal na instituição do modelo de assentamento conhecido como PDS pode ser benéfica aos
assentados. Mas resulta em um elemento determinante de insucesso quando o paradigma
extrativista amazônico é imposto sem “ouvir” ou permitir a participação da comunidade em sua
construção acarretam conflitos que desaguam no judiciário para a solução, representado, por
vezes, por uma elite econômica que encontra-se afastada da relação natureza/coletivo/modelo
de produção profere decisões que tencionam e polarizam os conflitos.
A viabilidade de qualquer projeto de assentamento da reforma agrária que pretenda
atingir o desenvolvimento sustentável deve observar as suas características específicas (sociais,
ambientais, econômicas e institucionais) e outras que são de natureza geral de qualquer
modalidade que almeja o desenvolvimento sustentável deverá ser replicada e adaptada para
outras localidades que certamente serão diferentes em diversos âmbitos. A adoção de uma
metodologia própria e aberta para assentamentos sustentáveis, de acordo com a situação de
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cada localidade, poderá servir como um ponto de partida no sentido de minimizar os problemas
previsíveis.

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Grupo de Trabalho 05

CAPITALISMO VERDE,
DIREITO À CIDADE E LUTAS
ANTICAPITALISTAS

ccxxxv
INTERFACES ENTRE ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS
E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL:
UMA ABORDAGEM TEÓRICA ANTICAPITALISTA

AFONSO, Rodrigo Vilhena Herdy


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF
NASCIMENTO, Camila Aguiar Lins do
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF

RESUMO

A criação de áreas protegidas é um consenso mundial e expoente da política de conservação da natureza,


elas existem por todo o mundo. A afetação ambiental das áreas protegidas tenta resguardar a natureza,
seus processos e a biodiversidade. Outra diretriz internacional de combate à crise ambiental consiste na
ideia de uso sustentável dos recursos naturais pelas gerações atuais sem comprometer as gerações futuras,
calcada no conceito de desenvolvimento sustentável. Entretanto o conceito não é capaz de contextualizar
o papel do modo de produção capitalista na trajetória da crise ambiental. Diante disso, este trabalho
objetiva refletir sobre a eficiência da política de criação de áreas protegidas a longo prazo a partir de uma
análise crítica do desenvolvimento sustentável. Para tanto, lançamos mão de bibliografias no marco
teórico do socioambientalismo e do marxismo, identificando-se no campo das pesquisas qualitativas
interdisciplinares. Ao final, apropriação tanto da política ambiental quanto do conceito de
desenvolvimento sustentável pelo modelo econômico capitalista.

Palavras-chave. desenvolvimento sustentável; áreas naturais protegidas; política ambiental; modo de


produção.

ABSTRACT

The creation of protected areas is a worldwide consensus and exponent of the policy of conservation of
nature, they exist all over the world. Environmental affectation of protected areas tries to protect nature,
its processes and biodiversity. Another international guideline to combat the environmental crisis is the
idea of sustainable use of natural resources by current generations without compromising future
generations, based on the concept of sustainable development. However, the concept is not capable of
contextualizing the role of the capitalist mode of production in the trajectory of the environmental crisis.
Therefore, this work aims to reflect on the efficiency of the policy of creating protected areas in the long
term based on a critical analysis of sustainable development. To this end, we have used bibliographies
in the theoretical framework of socio-environmentalism and Marxism, identifying in the field of
interdisciplinary qualitative research. In the end, appropriation of both environmental policy and the
concept of sustainable development by the capitalist economic model.

Keywords. sustainable development; protected natural areas; environmental politics; mode of


production.

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INTRODUÇÃO

A criação de áreas protegidas é um consenso mundial e expoente da política de


conservação da natureza, elas existem por todo o mundo. A afetação ambiental das áreas
protegidas tenta resguardar a natureza, seus processos e a biodiversidade. Outra diretriz
internacional de combate à crise ambiental consiste na ideia de uso sustentável dos recursos
naturais pelas gerações atuais sem comprometer as gerações futuras, calcada no conceito de
desenvolvimento sustentável. Entretanto o conceito não é capaz de contextualizar o papel do
modo de produção capitalista na trajetória da crise ambiental.
Diante disso, este trabalho objetiva refletir sobre a eficiência da política de criação de
áreas protegidas a longo prazo a partir de uma análise crítica do desenvolvimento sustentável.
Para tanto, lançamos mão de bibliografias no marco teórico do socioambientalismo e do
marxismo, identificando-se no campo das pesquisas qualitativas interdisciplinares.
Este artigo está estruturado em três partes. Na primeira parte contextualizamos a
política de criação de unidades de conservação da natureza nos âmbitos internacional e
nacional, a fim de demonstrar as influências e interseções existentes. Na segunda parte,
abordamos o conceito de desenvolvimento sustentável e apontamos suas contradições inerentes
ao modo de produção capitalista. Após, na terceira e última parte, registramos os resultados
alcançados apontando para uma apropriação tanto da política ambiental quanto do conceito de
desenvolvimento sustentável pelo modelo econômico capitalista e, também, para o fato de que
prevalece a ideologia do crescimento econômico infinito no âmbito das organizações
multilaterais como ONU, de forma que não há propostas de superação do atual modelo
econômico, mas sim uma tentativa de conciliação fisiológica deste com a natureza.

1. CONTEXTUALIZANDO A POLÍTICA DE CRIAÇÃO DE UNIDADES DE


CONSERVAÇÃO DA NATUREZA

1.1 Âmbito internacional

O pressuposto da socialização do usufruto das belezas cênicas naturais por toda a


população fundamentou a criação de áreas naturais protegidas em muitos países,
principalmente parques. A área escolhida para o Yellowstone National Park, por exemplo,
deveria ficar “reservada e separada da colonização, ocupação ou venda (...) dedicada e

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destacada para parque público (...) em benefício e desfrute do povo (...) e que toda a pessoa que
se estabeleça ou ocupe esse parque (...) será desalojada do lugar” (AMEND, 1991 apud WEY,
2003, p. 20, tradução nossa).
A partir disso, podemos depreender que o objetivo do Yellowstone era conservar
inalterado um fragmento do Novo Mundo em estado anterior a chegada do colonizador, como
símbolo da façanha da conquista colonial, mantendo a paisagem primitiva como um museu a
céu aberto, oportunizando às gerações futuras o testemunho da glória ufanista. Apesar de, na
época, ter sido considerada uma vitória dos preservacionistas por não permitir o uso direto dos
recursos naturais, nada tinha haver com proteção especificamente à natureza, mas sim com a
proteção do patrimônio histórico-cultural da colonização yankee, impedindo a apropriação
particular deste patrimônio “difuso”.
Em 1933, os parques já estavam espalhados por várias partes do mundo, mas ainda
não se tinha tentado estabelecer um conceito universal para esta área natural protegida. Para
esse fim, a Convenção para Preservação da Fauna e Flora em seu Estado Natural reuniu-se em
Londres. Considerando que aos objetivos originais dos sistemas de áreas naturais protegidas
foram sendo incorporados novos conceitos que priorizavam a conservação da biodiversidade e
dos bancos genéticos, a Convenção definiu que os parques nacionais deveriam ter as seguintes
características (WEI, 2003, pp. 22-23): controle pelo poder público; inalterabilidade dos limites;
inalienabilidade; objetivar propagação, proteção e preservação da fauna e flora e preservação
de objetos de interesse estético, geológico, pré-histórico, arqueológico e outros de interesses
científicos; benefício e desfrute do público em geral; proibição da caça, abate ou captura de
fauna e destruição ou coleta de flora, exceto sob a direção ou controle das autoridades
responsáveis; instalações de apoio aos visitantes.
Interessante observar que McCormick (1992, p. 37, apud WEI, 2003, p. 23) comenta,
sobre o fato de a maioria dos países coloniais africanos terem assinado a Convenção, que esta
definição talvez tenha levado à antipatia das populações locais para com o conceito de proteção
à vida selvagem, pois “os animais estavam sendo protegidos por razões não práticas e
desconsiderando os direitos tradicionais de caça”.
A Conferência para a Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos
Países da América, também conhecida como Convenção Panamericana, realizou-se em
Washington, 1940, com objetivo de discutir experiências e resultados da Conferência de
Londres e como forma de comprometer os países da América Latina a criarem áreas naturais

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protegidas, além de uniformizar os conceitos e os objetivos dessas áreas. Nesse contexto, a


definição de parques nacionais reforçou a definição da Conferência de 1933, com foco na
conservação da paisagem e das espécies, caracterizando-se como uma ação de difusão da
Convenção de 1933 para os países sul-americanos.
A fundação da União Internacional para a Proteção da Natureza (UIPN), em 1948,
como resultado de um congresso organizado pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em parceria com o governo francês a fim de
promover a cooperação internacional para conservação da natureza, é um marco importante na
organização de uma política ambiental internacional, sendo um fórum que engloba agências
governamentais e não-governamentais.
Diante da constatação do crescente número de plantas em extinção, iniciou-se uma
tendência de manutenção de habitats em vez de espécies específicas, o que exerceu influência
na UIPN, que passou a dar mais atenção à conservação, inclusive alterando seu nome para
União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) alguns anos mais tarde. Em 1960,
foi criada a Comissão de Parques Nacionais e Áreas Protegidas com o objetivo de monitorar
áreas naturais protegidas e orientar seu manejo e manutenção (QUINTÃO, 1983, apud WEI,
2003, p. 25). No mesmo ano, foi lançado o Red data book, mais conhecido como a lista das
espécies ameaçadas de extinção, contendo 135 espécies animais, principalmente os mamíferos
de grande porte mais populares entre o público em geral.
Em 1957 foi promulgada a Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT/ONU) sobre “a proteção e integração das populações indígenas e outras populações tribais
e semitribais” no interior dos Estados Nação, remontando a preocupação com estas minorias
étnicas suscitada pelos genocídios promovidos durante a Segunda Guerra. Esse convenção
tinha a intenção de promover o assimilacionismo e integracionismo dos povos tribais que
representassem minorias restantes dos processos coloniais dos Estados Nação às sociedades
nacionais.
A UIPN organizou a I Conferência Mundial sobre Parques Nacionais, em Seattle,
1962. Apesar dessa conferência ter ficado conhecida pela importância que deu a conservação
dos ambientes marinhos, mais nos interessa a incorporação da possibilidade de existirem
exceções ao princípio geral da não exploração dos recursos naturais estabelecido para os
parques através do zoneamento, defendido por Harroy. Para ele, essa novidade “criava a
possibilidade de proteger grandes ecossistemas sob a forma de parques nacionais, mesmo que

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algumas de suas partes fossem aproveitadas pelos homens” (FOSTER, 1973, apud AMEND e
AMEND, 1992, apud WEI, 2003, p.26).
A 10ª Assembleia Geral da UICN aconteceu em 1969 em Nova Delhi, sendo a
oportunidade de se definir um novo conceito para os parques nacionais, a partir das experiências
em andamento e das recomendações de 1962. Apesar das expectativas, a definição de parque
pouco foi alterada, se resumindo a introduzir a proteção de habitats e reforçar a lógica de
controle pelo poder público e do não uso dos recursos naturais, além da garantia de acesso
controlado aos visitantes (WEY, 2003, p. 27).
No ano anterior, 1968, havia ocorrido a Conferência Intergovernamental de
Especialistas sobre as Bases Científicas para o Uso Racional e a Conservação dos Recursos da
Biosfera, mais conhecida como Conferência da Biosfera, organizada por diversas agências das
Nações Unidas (ONU) como a UNESCO, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) em parceria com da
IUCN, com o objetivo de discutir o impacto humano sobre a biosfera, entendida como “aquela
parte do mundo em que a vida pode existir” (MCCORMICK, 1992, p. 98, apud WEY, 2003,
p.28) e convencer as nações periféricas da necessidade da conservação. Como resultado dessa
conferência, foi lançado o programa O Homem e a Biosfera, que apregoava o uso racional dos
recursos ambientais, defendendo um certo equilíbrio nas relações entre o homem e seu
ambiente na busca pelo desenvolvimento. As Reservas da Biosfera foram idealizadas para
otimizar a relação homem-natureza, constituindo-se ao mesmo tempo como mostras
representativas dos biomas do globo, exemplos de gestão harmoniosa de diferentes culturas,
laboratórios de experimentação do desenvolvimento sustentável e centros de monitoramento.
Além de ter sido a origem de um novo tipo de área natural protegida, a Conferência da Biosfera
teve como conclusões mais importantes:

(...) era preciso dar ênfase ao entendimento do caráter inter-relacionado do meio


ambiente, e que o uso e a conservação racional do meio ambiente humano e das áreas
naturais protegidas dependiam não só das questões científicas, mas sobretudo das
dimensões política, social e econômica, que estavam fora de sua esfera de ação (WEI,
2003, p. 28).

Desde a década de 1950 aconteceu um progressivo aumento no número de áreas


naturais protegidas, mas foi durante as décadas de 1970 e 1980 que houve uma impressionante
expansão do estabelecimento dessas áreas, a maioria parques e reservas biológicas nos países
periféricos. Como já comentado, muitos grupos étnicos foram desalojados para a implantação

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de áreas naturais protegidas, o que chamou a atenção da comunidade internacional para uma
série de conflitos envolvendo esses grupos.
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em
1972 e mais conhecida como Conferência de Estocolmo, foi praticamente um desdobramento
da Conferência da Biosfera, sendo a primeira ocasião em que foram discutidos os problemas
políticos, sociais e econômicos do meio ambiente global com objetivo de definir ações práticas
e a fim de estabelecer um compromisso entre Estados-Nação quanto a efetivação destas ações
corretivas. Um dos resultados mais expressivos da Conferência de Estocolmo foi a criação do
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

Talvez o maior legado da Conferência de Estocolmo tenha sido a inserção definitiva


das questões ambientais na agenda mundial e o estabelecimento do conceito de que
os problemas ambientais transcendem fronteiras, e que estavam relacionados a
questões de ordem política, econômica, social e cultural (WEY, 2003, p. 29).

Nesse mesmo ano de 1972, finalmente acontece a incorporação oficial do princípio


do zoneamento às definições de parques nacionais durante a 11ª Assembleia Geral da UICN,
em Banff, Canadá, e ratificadas pelo II Congresso Mundial de Parques Nacionais, realizado no
mesmo ano em Yellowstone, de modo que reconheceu-se que comunidades humanas com
características culturais específicas faziam parte desses ecossistemas que se desejava proteger.
Foram definidas onze zonas divididas em três grupos:

a) Zonas Naturais Protegidas:


a. zonas de proteção integral;
b. zona de manejo de recursos;
c. zona primitiva ou silvestre.
b) Zonas Antropológicas Protegidas:
a. zona de ambiente natural com culturas humanas autóctones;
b. zonas com antigas formas de cultivo;
c. zona de interesse especial.
c) Zonas Protegidas de Interesse Arqueológico ou Histórico:
a. zona de interesse arqueológico;
b. zona de interesse histórico.

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A 12ª Assembleia Geral da UICN, em 1975, em Kinshasa, no Zaire, discutiu questões


relacionadas com a expulsão de grupos étnicos e deu um passo à frente ao reforçar que o
estabelecimento de áreas naturais protegidas não trouxesse como consequência a desagregação
cultural e econômica desses grupos que não afetam a integridade ecológica da área, como
comunidades indígenas. Apesar disso, populações locais que não eram tão facilmente
identificadas como grupos étnicos continuavam como um problema ainda não muito bem
equacionado.
O programa Estratégia Mundial para a Conservação, produzido pela UICN, PNUMA
e World Wildlife Fund (WWF) em 1980, pretendia ser um programa mundial de conservação
da natureza que defendia a administração do uso humano dos recursos naturais, de modo que
pudesse produzir os maiores benefícios sustentáveis para as gerações atuais, embora mantendo
seu potencial para atender as necessidades e aspirações das gerações futuras.
Foi somente em 1982, na ocasião do III Congresso Mundial de Parques, em Bali, na
Indonésia, que surgiram preocupações mais claras com as relações homem-áreas naturais
protegidas, tendo sido reafirmado o direito das comunidades com características culturais
específicas aos seus territórios, inclusive com recomendações sobre o manejo conjunto dessas
áreas com seus habitantes originais (Diegues, 1994, apud WEY, 2003, p. 31). Em 1985, a ONU
e UICN passaram a incluir na lista de parques nacionais aqueles cujo interior existissem áreas
com povoados, contanto que permanecessem em uma zona específica e não prejudicassem a
conservação, obedecendo ao princípio do zoneamento.
A recusa por parte dos povos indígenas e tribais a uma ideia hegemônica de cultura e
civilização, vez que a ideologia assimilacionista da Convenção 107 não se traduziu em um ideal
de igualdade entre todos, pois manteve intacta a distinção entre aquele que assimilava e “o
outro” assimilado (LOBÃO, 2014), criou as condições para a construção de uma nova
convenção sobre o lugar destes povos no interior dos Estados Nação. Nesse contexto, foi
promulgada a Convenção 169 da OIT, em 1989, pautada no sentido da autonomia e
autodeterminação dos povos originários.
No IV Congresso Mundial de Parques, em Caracas, 1992, a questão das populações
residentes em áreas naturais protegidas figurou como um dos temas centrais das discussões. O
resultado foi o fortalecimento de alguns conceitos, como a importância da integração das áreas
protegidas aos planos de desenvolvimento dos diferentes países e a necessidade de se criar mais
e melhor manejadas áreas naturais protegidas, conceitos que foram posteriormente

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aprofundados durante os debates da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, que aconteceria naquele mesmo ano no Rio de Janeiro e que ficou conhecida
como Rio-92. Além disso, os direitos dos povos indígenas sobre suas terras foi ratificado,
consequência do cada vez mais presente entendimento de que o destino das áreas naturais
protegidas está ligado ao apoio e, portanto, ao destino das populações locais (UICN, 1993,
WEST e BRECHIN, 1991, apud WEY, 2003, p. 34).
Até esse momento, das categorias de áreas naturais protegidas existentes, somente os
parques naturais e as reservas da biosfera possuíam uma política internacional delineada,
entretanto essa política não era totalmente clara no caso dos parques. O ponto que continua
insatisfatoriamente explicitado é o da ocupação humana. Alguns países como Inglaterra
(DOWER, 1945, p. 44 apud HARMON, 1994, p. 34, apud WEY, 2003, p. 32), Canadá e Japão
(JICA, 1990, apud WEY, 2003, p. 32) experimentaram particularidades conceituais que
introduziram modelos alternativos de parque nacional mais permissivos ao uso e ocupação de
suas áreas pelas populações residentes, contribuindo tanto para a difusão do conceito de parques
nacionais quanto influenciando no surgimento de outras categorias de manejo (WEST e
BRECHIN, 1991, apud WEY, 2003, p. 32-33).
Na 19ª Assembleia Geral da UICN, Buenos Aires, 1994, almejou-se alcançar maior
entendimento dos conceitos das diferentes categorias de manejo, permitir maior flexibilidade à
aplicação e interpretação do sistema, menor grau de prescrição quanto a zonificação,
classificação, autoridade de manejo e propriedade das terras e definir princípios que deveriam
guiar o estabelecimento das unidades. No mesmo ano, a Comissão de Parques Nacionais e áreas
Naturais Protegidas da UICN definiu um novo sistema de categorias de áreas naturais
protegidas onde os parques eram definidos como categoria que tolerava moderadas
intervenções humanas e especialmente o uso sustentável dos recursos naturais por parte de
etnias indígenas, rompendo, assim, com o paradigma do impedimento de toda e qualquer
exploração ou ocupação (WEY, 2003, p. 44).
Embora tenham acontecido outros congressos mundiais até então, em 2016 (Havaí),
2012 (Jeju), 2008 (Barcelona), 2004 (Bangkok), 2000 (Amman) e 1996 (Montreal), não nos foi
possível realizar a análise de suas resoluções tendo em vista que o material não está disponível
no site da UICN. Apesar disso, analisando o Programa da UICN 2017-2020 aprovado no último
congresso mundial em 2016, observamos uma clara indicação na direção do desenvolvimento
sustentável, como em “La buena gobernanza de los recursos naturales es fundamental para el

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desarrollo sostenible” (UICN, 2016, p. 32) e uma tímida e inócua avaliação dos impactos
ambientais decorrentes do atual modelo de produção:

Predominio de modelos de producción y consumo no sostenibles. La economía


política actual junto con los modelos de producción y consumo en que se basa
exacerban algunos de los problemas antes mencionados. La humanidad sigue atada
a un modelo económico y social en el que el consumo es el motor del crecimiento
sin tener suficientemente en cuenta el costo total que impone a la naturaleza y, en
definitiva, a las personas (UICN, 2016, p. 34).

1.2 Âmbito nacional

Em suas notas para uma história social das áreas de proteção integral no Brasil,
Barreto Filho nos conta que desde 1658 já se falava na defesa das florestas para proteção dos
pequenos rios da Serra da Carioca. A preocupação não era para menos, vez que os habitantes
da cidade dependiam quase que exclusivamente dos rios Carioca e Maracanã para o seu
abastecimento. Porém, com a substituição das matas das encostas da Serra por extensos cafezais
por volta de 1800 e com a chegada da família real em 1808, o que provocou um imediato
aumento populacional de 25% (DRUMMOND, 1997, p. 215, apud BARRETO FILHO, 2004,
p. 54), a cidade passou a sofrer com crises de abastecimento de água.
O governo imperial, em 1817 e 1818, baixa decretos proibindo o corte de árvores
próximas aos mananciais e mandando avaliar terras de particulares para fins de desapropriação
(DRUMMOND, 1997, p. 221, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 55). Já nessa época, havia
pessoas preocupadas com a destruição dos recursos naturais no Brasil, como José Bonifácio de
Andrada e Silva, que sugeriu, em 1821, que fosse criado um setor administrativo para as matas
e bosques (VICTOR, 1975, apud WEY, 2003, p. 53), com vistas no seu potencial científico
(DIEGUES, 1994, p. 102, apud WEY, 2003, p. 53). Em 1833 e 1837, em meio a uma grave
seca, são criadas Reservas de Florestas. Em 1844, retoma-se a ideia da desapropriação visando
a recuperação florestal e, mesmo antes de concluir as desapropriações, inicia-se um programa
emergencial de plantio de árvores em terras particulares na Tijuca. Em 1856 são concluídas as
primeiras desapropriações e em 1860 são desapropriadas as nascentes necessárias para
abastecer a cidade, até que, finalmente em 1861, são criadas as Florestas da Tijuca e das
Paineiras (DRUMMOND, 1997, p. 221, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 55), podendo esta
ser considerada a primeira tentativa oficial de conservação. Vale, ainda, comentar que a
primeira proposta de criação de parques nacionais propriamente ditos foi apresentada por André

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Rebouças ainda em 1876 que, inspirado pelo modelo Yellowstone, propôs a criação dos
Parques Nacionais de Sete Quedas e da Ilha do Bananal, que não chegaram a ser criados. Mais
ou menos nessa mesma época, foram criados parques nacionais em outros países da América
Latina, como México (1876), Argentina (1903) e Chile (1907) (MOORE e ORMAZÁBAL,
1988, apud WEY, 2003, p. 53).
Importante comentar que a iniciativa de reflorestamento do maciço da Tijuca foi
apoiada e promovida pela elite citadina, que encontrava nas matas das encostas da Serra um
refúgio da cólera e da febre amarela decorrentes das condições sanitárias periclitantes na cidade
(DEAN, 1996, p. 225, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 55), devemos lembrar, em um
contexto de crise hídrica. Podemos, então, observar que esta iniciativa inédita de
reflorestamento tinha dois aspectos: manutenção de recursos naturais, no caso a água, e uso
público, sendo paisagisticamente planejado e destinado ao lazer do público em geral
(DRUMMOND, 1997, p. 228, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 55).

É assim que chegamos ao fim do século XIX com uma coleção dispersa e
desarticulada de hortos e jardins botânicos, mistos de passeios públicos, entregues às
administrações provinciais e estaduais, duas florestas e outras tantas terras públicas
na capital consideradas Reservas Florestais, sujeitas a inúmeras mudanças de
jurisdição ao longo de meio século, e uma iniciativa de reflorestamento indicativa da
crescente preocupação das elites com o desmatamento e a conservação das matas
(BARRETO FILHO, 2004, p. 55).

Assim, o Brasil chega ao século XX com uma política ambiental indefinida, contando
com uma pluralidade de categorias de áreas naturais protegidas: florestas nativas, florestas
protetoras, reservas florestais, hortos florestais, jardins botânicos, estações biológicas, estações
experimentais, postos zootécnicos, fazendas modelo etc.
Em 1911 é criada a Reserva Florestal do Acre, pensada como banco biológico no
intuito de conservar a flora e a fauna indígenas para que se pudesse apoiar em seus estoques
para reposição, na linha dos bancos genéticos ou reservatórios de germoplasma (GARCIA,
1986, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 56). As décadas subsequentes se caracterizam por
uma enorme produção legislativa e criação de instituições relacionadas à gestão dos recursos
naturais, como códigos florestal, de águas e minas, caça e pesca e o Serviço Florestal. O Código
Florestal de 1934 reconheceu as categorias parques nacionais, florestas nacionais, estaduais e
municipais e florestas protetoras, além de introduzir a noção de área reservada. Além disso, a
Constituição de 1934 introduziu na legislação brasileira a categoria de monumento público
natural.

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Sobre o Código Florestal de 1934, podemos citar duas características negativas


principais: permissão aos proprietários para homogeneizar as florestas visando maior
rendimento econômico (o que significa substituir as variadas espécies vegetais presentes em
uma propriedade por uma única espécie com maior valor econômico, como eucalipto ou pinus)
e a interpretação duvidosa do dispositivo que obrigava proprietários a manterem pelo menos
um quarto da mata, que não oferecia clareza quanto ao valor sobre o qual incidiria essa fração,
ou seja, se sobre o total da mata original ou sobre a mata existente no momento da aquisição
por cada proprietário (VICTOR, 1975, p. 27, apud WEY, 2003, p. 55).
Apesar de a primeira menção oficial à categoria parque nacional datar de 1921, o
primeiro parque nacional foi criado somente em 1937, sendo seguido por outros dois em 1939:
Parque Nacional de Itatiaia, Iguaçu e Serra dos Órgãos. A criação destes parques baseou-se na
ideia de proteger paisagens de grande beleza cênica, os monumentos naturais, quais sejam a
maciço de Itatiaia, as Cataratas do Iguaçu e o maciço da Serra dos Órgãos, bem conhecidos dos
habitantes dos grandes centros urbanos do Sudeste e Sul, onde se localizam.
Em 1948, foi aprovada pelo Congresso Nacional e ratificada (incorporada ao sistema
jurídico pátrio) em 1965, a Convenção para Proteção da Flora, Fauna e das Belezas Naturais
dos Países da América, da qual o Brasil foi signatário em 1940, em Washington, e que
estabelecia novas categorias de unidades de conservação, quais sejam parque nacional, reserva
nacional, monumento natural e reserva de região virgem (WWF, 1994, apud WEY, 2003, p.
57).
Uma segunda geração de parques veio na virada da década de 1950 e 1960,
acompanhando a marcha para o Oeste e a fundação de Brasília. Esse movimento programado
e planejado em direção a ocupação do interior do país fica aparente na criação de cinco parques
nacionais no Centro-Oeste (Araguaia, Emas, Tocantins, Brasília e Xingu) e oito em outras
regiões (Ubajara-CE, Aparados da Serra-RS/SC, Sete Quedas-PR, Caparaó-MG/ES, Sete
Cidades-PI, São Joaquim-SC, Rio de Janeiro e Monte Pascoal-BA) (BARRETO FILHO, 2004,
p. 57). Interessante notar que, como mostra Lobo (1998, apud BARRETO FILHO, 2004, p.
57), a motivação para criação do Parque Nacional de Brasília teve estreita relação com a
proteção de mananciais para o abastecimento da nova capital.
Nesta época, a presença de povos indígenas nas áreas escolhidas para a instalação de
parques, como no caso do Xingu e do Araguaia, não era vista como um problema, mas sim
como “um atrativo a mais a adicionar um toque de exotismo e autenticidade à paisagem natural

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primitiva”. Em um primeiro momento, chegou-se a propor que o Xingu fosse um “parque


indígena” de modo que preservasse uma amostra do Brasil prístino (BARRETO FILHO, 2004,
p. 58).
O projeto desenvolvimentista empreendido pelo regime civil militar nos anos
seguintes baseou-se na falsa ideia de “vazio demográfico” para promover a expansão induzida
da fronteira agrícola para a Amazônia, através de projetos de colonização oficial, e ocupar o
território nacional com projetos de desenvolvimento econômico-industrial a partir da criação
de localizações privilegiadas para a valorização de capitais privados e o crescimento de pólos
industriais, via subsídios e investimentos públicos na infra estrutura regional (BARRETO
FILHO, 2004, p. 59).
Diante da obsolescência do Código Florestal de 1934 e da devastação dos recursos
florestais, o regime baixa o Código Florestal de 1965. Neste código aparece, pela primeira vez,
a divisão conceitual entre unidades de conservação restritivas ou de uso indireto (parques
nacionais, reservas biológicas) e unidades de conservação não restritivas ou de uso direto
(florestas nacionais, florestas protetoras, florestas remanescentes, reservas florestais, parques
de caça florestais) (WEY, 2003, p. 58). Segundo Victor (1975, apud WEY, 2003, p. 56), este
novo código florestal confundia a propriedade da floresta com a propriedade da do solo,
fazendo com que toda a limitação ao uso da floresta colidisse com o direito de propriedade,
enfraquecendo bastante essas medidas.
Em 1969, quando os debates sobre os povos indígenas e tribais já encontravam-se
avançados no âmbito internacional quanto a uma migração do paradigma da integração para o
da tolerância, o Brasil incorpora com atraso uma questionada e frágil Convenção 107 da OIT
ao seu ordenamento jurídico. Sem dúvidas que os preceitos desta convenção estavam alinhados
com os projetos desenvolvimentistas e faraônicos já mencionados, mas também não há dúvidas
de que as propostas de novas categorias que surgem como forma de superar a hierarquia entre
raças, como o etnocentrismo (LÉVI-STRAUSS, 1976), a partir da próxima década, exerceram
grande influência no Brasil.
Em 1967, foi criado o Instituto Brasileiro para o Desenvolvimento Florestal (IBDF)
como autarquia do Ministério da Agricultura, com o objetivo de promover a utilização racional,
à proteção e conservação dos recursos naturais. Em 1972, foi criada a Secretaria Especial do
Meio Ambiente (SEMA), vinculada ao Ministério do Interior, também orientada para a
conservação do meio ambiente e uso racional dos recursos ambientais. Enquanto NOGUEIRA

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NETO (1991 apud WEY, 2003, p. 60) considera que a convivência entre IBDF e SEMA
constitui-se como uma “competição saudável”, relatórios da época (como o documento Brasil)
entendiam que a existência concomitante das duas instituições com atuação semelhante fazia
vigorar legalmente dois sistemas de áreas naturais protegidas distintos e paralelos sem
coordenação entre si (WEY, 2003, p. 60).
Em 1979, o IBDF propôs a I Etapa do Plano do Sistema de Unidades de Conservação
para o Brasil, estabelecendo a região amazônica como prioritária para a criação de novas
unidades de conservação. Durante esse processo, o IBDF inspirou-se nas diretrizes para o
estabelecimento de unidades de conservação desenvolvidas pela UICN no ano anterior,
deixando transparecer a influência de conceitos e diretrizes internacionais. A principal
característica desse processo foi o reforço que deu a necessidade do uso de critérios
eminentemente técnico-científicos na criação de unidades de conservação, além de prever
outras categorias como manumento nacional, santuário da vida silvestre, estrada, parque
(WEY, 2003, p. 61).
É também de 1979 o Regulamento dos Parques Nacionais Brasileiros, que introduziu
a necessidade da elaboração de planos de manejo para todos os parques nacionais, cujo o
principal objetivo é a determinação do zoneamento dos parques. Este regulamento definiu sete
zonas, quais sejam zona intangível, zona primitiva, zona de uso extensivo, zona de uso especial,
zona histórico-cultural, zona de uso intensivo e zona de recuperação, sendo que nenhuma delas
corresponde a realidade da ocupação humana no interior das unidades de conservação de
proteção integral, característica própria da então zona de ambiente natural com culturas
autóctones proposta na 11ª Assembleia Geral da UICN de 1972 ou nas zonas antropológicas
propostas por Harroy.
Até 1974, quando foi criado o Parque Nacional da Amazônia em Itaituba-PA, havia
apenas o Parque Nacional do Araguaia e as mais de dez reservas florestais “de papel”, criadas
em 1911 e 1959, mas que nunca chegaram a ser implementadas. Porém, principalmente a partir
da década de 1980, deu-se um grande impulso a criação de novas unidades de conservação de
proteção integral no país, em particular na Amazônia (GUIMARÃES, 1991, p. 166, apud
BARRETO FILHO, 2004, p. 58). Ao todo, foram criadas vinte unidades de conservação de
proteção integral entre 1979 e 1985, o que levou esse período a ficar conhecido como a década
do progresso para os parques nacionais sul-americanos (WETTERBERG et al., 1885, apud
BARRETO FILHO, 2004, p. 58). Nesse mesmo período também deu-se uma quantidade

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expressiva de medidas administrativas e jurídicas como a elaboração do Regulamento dos


Parques Nacionais do Brasil, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que instituiu o
Sistema Nacional do Meio Ambiente e o Conselho Nacional do Meio Ambiente, a
regulamentação das Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental.
Aqui precisamos apontar a aparente contradição de que o momento em que o regime
militar levou adiante as políticas hoje responsabilizadas por impactos sociais e ambientais na
região amazônica coincide justamente com aquele em que mais se avançou em termos de
medidas conservacionistas por meio da criação de unidades de conservação de proteção
integral. Essa relação é mais do que o resultado de um mero concurso favorável de
circunstâncias, devendo-se a um conjunto complexo de fatores, tais como gestão estatal
estratégica do território como instrumento e condição da via brasileira - autoritária - para a
modernidade (BECKER, 1988, 1990, 1992, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 59).
Essa relativa facilidade de se estabelecer unidades de conservação de proteção integral
nas décadas de 1970 e 1980 é comumente atribuída à astúcia política dos planejadores da
conservação conjugada ao ambiente tecnocrático do governo federal no regime militar e às
oportunidades que assim se apresentaram para se avançar nas propostas de criação de tais áreas.
Isso fez com que prevalecesse um entendimento de que a conservação da natureza era um setor
técnico e burocrático e que todo o questionamento às políticas de desenvolvimento deveriam
ser encaminhadas dentro dos marcos da técnica e da ciência. Nesse sentido:

(...) a conservação da natureza na Amazônia (...) avançou quando as circunstâncias


políticas eram favoráveis e quando um conjunto de princípios consistentes,
pretensamente científicos e taticamente selecionados, coadunaram a política de
conservação com os valores dominantes da administração tecnocrática do regime
militar (BARRETO FILHO, 2004, p. 61).

Desta forma, podemos concluir que a criação de parques nacionais, reservas


biológicas e outras unidades de conservação de proteção integral na Amazônia esteve
relacionado com uma das dimensões da via autoritária brasileira para a modernidade, em que a
politização e a manipulação do território foi fundamental no processo de modernização da
estrutura econômica do país, sem alterar sua estrutura hierárquica (BECKER, 1988, 1990,
1992, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 61).
Em 1981, a Política Nacional de Meio Ambiente traz, de forma inédita, uma definição
legal de meio ambiente, qual seja “o conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

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No mesmo ano, foi estabelecido o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) que, sob
direção do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), visava constituir-se como um
conjunto articulado de instituições, entidades, regras e práticas dos entes federados (União,
Distrito Federal, Estados e Municípios) e de fundações instituídas pelo poder público ,
responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental (USP, 1991 apud WEY, 2003,
p. 63).
Em 1982, diante da falta de categorias de manejo próprias aos objetivos nacionais da
conservação, do número excessivo de terminologias para unidades de conservação não
consensuais quanto à sua definição, da sobreposição de unidades de conservação de fins
diversos e da confusão de atribuições, foi proposta a II Etapa do Plano do Sistema de Unidades
de Conservação para o Brasil, que, além da definição de critérios técnico-científicos para a
indicação e implantação de unidades de conservação e a ênfase à proteção da biodiversidade,
buscou a criação de novas categorias de manejo. Em 1984, foram definidas as novas categorias
de manejo Reserva Ecológica e Área de Relevante Interesse Ecológico. (WEY, 2003, p. 65).
Acontece que foram sendo criadas, tanto em nível federal quanto estadual, unidades
de conservação que não correspondiam às categorias de manejo previstas nas duas Etapas de
Planos de Sistemas de Unidades de Conservação, nem às dez categorias previstas pela UICN
em 1978. Mesmo a SEMA parecia ter uma rede própria de unidades de conservação que incluia
as Estações Ecológicas e as Áreas de Proteção Ambiental, independentemente do sistema
adotado pelo IBDF (MILANO, 1990, p. 135 apud WEY, 2003, p. 66).
Em 1989, foi criado o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA) (VIANNA et al., 1994 apud WEY, 2003, p. 67) a partir da acomodação
de diferentes instituições em uma só, como o IBDF, a SEMA, a Superintendência do
Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e a Superintendência do Desenvolvimento da Borracha
(SUDHEVEA) (WEY, 2003, p. 73), com objetivo principal de unificar a política ambiental
brasileira e corrigir distorções presentes na administração de unidades de conservação
(VIANNA et al., 1994 apud WEY, 2003, p. 67), mas herdando as funções, a infra-estrutura e
os problemas dessas instituições (WEY, 2003, p. 73). Nesse mesmo ano o IBAMA e a
Fundação para a Conservação da Natureza (FUNATURA) elaboraram uma proposta de
Sistema Nacional de Unidades de Conservação, com objetivo de sistematizar conceitos,
objetivos e tipos de categoria para as unidades de conservação (WEY, 2003, p. 67).

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No contexto do processo de redemocratização e com movimentações para uma


assembleia constituinte, movimentos sociais como a União dos Povos da Floresta e
ambientalistas se uniram para garantir que suas reivindicações estivessem contempladas na
nova constituição, fazendo surgir, assim, o movimento socioambiental. Em 1992 a proposta do
IBAMA/FUNATURA de um sistema nacional de unidades de conservação é protocolado
como projeto de lei que viria a ser o atual SNUC.
As discussões e debates sobre o projeto de lei do SNUC duraram 10 anos e foram
marcadas por duas concepções distintas de relação homem natureza: a que acreditava que o
homem era inerentemente destruidor da natureza (homem x natureza) e outra, que acreditava
que algumas populações e comunidades podiam viver de maneira integrada com a natureza
(homem-natureza). Dessa forma, ambas as concepções foram contempladas na Lei do SNUC
(2000), que classificou o rol das unidades de conservação em categoria de proteção integral e
uso sustentável e, ainda, rompeu com o paradigma da expulsão compulsória, ao prever a
permanência de populações tradicionais até que seja possível o reassentamento para local com
as mesmas condições de reprodução socioculturais. Apesar de a Convenção 169 da OIT ter
sido incorporada ao ordenamento jurídico pátrio em 2004, o SNUC incorporou vários conceitos
e diretrizes desta convenção, antecipando seus efeitos jurídicos no país.

2. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?

O rompimento da barragem de rejeitos decorrentes da mineração em Mariana - MG


e a consequente tragédia ambiental ocorrida no Rio Doce, a catástrofe na usina nuclear de
Fukushima e o vazamento de radiação, a dos altos níveis de uso de agrotóxico ao
desenvolvimento de câncer, são alguns acontecimentos que colocam em perspectiva a crise
ambiental na qual a sociedade mundial está inserida.
Esses desastres possuem um ponto de interseção, são atividades que exploram
recursos naturais e os transformam em mercadorias para atender as demandas do mercado.
Assim, para caminhar na trilha do desenvolvimento econômico-social prometido pelos
programas de organismos internacionais e almejado pela periferia, é necessário extrair o
minério de ferro para confecção de diversos bens de consumo, gerar energia elétrica para o
abastecimento majoritariamente industrial e aumentar a produtividade das monoculturas

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através da utilização de agrotóxicos frente a possibilidade do desabastecimento alimentar.


Diante disso, podemos pensar que a destruição ambiental está associada ao modo de produção?
Um marco da preocupação ambiental foi em 1972, quando diante dos inegáveis sinais
da crise ambiental que colocavam em risco a existência humana e do planeta, a ONU organizou
a Primeira Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, em
Estocolmo. Como resultado dessa iniciativa, em 1987, a Comissão Mundial sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento tornou público o relatório “Nosso Futuro Comum”, também
conhecido como Relatório Brundtland, que apontou como receita para saída da crise ambiental
o desenvolvimento sustentável, definido como um desenvolvimento que fosse capaz de suprir
as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de
satisfazerem suas próprias necessidades.
Entretanto, como é possível compatibilizar a preservação do meio ambiente com o
produtivismo, o crescimento econômico ilimitado e o fomento do consumo através da
inculcação de falsas necessidades nos indivíduos, todos característicos do atual modo de
produção, frente à finitude dos recursos naturais? A fórmula desenvolvimento +
sustentabilidade = desenvolvimento sustentável é uma explícita contradição, pois desconsidera
que há limites de fontes de energia e recursos naturais necessários, níveis de poluição e
mudanças climáticas toleráveis, consistindo nos limites absolutos do sistema capitalista e não
propõe a ruptura com esse modo de produção.
A produção no capitalismo se orienta pelo crescimento econômico,
consequentemente, pela acumulação de capital. Chesnais explica, segundo Marx, a essência do
capital. De acordo com Chesnais, é através do dinheiro que se gera mais dinheiro. Disso
depreende-se que o produtivismo é essencial para o ciclo de acumulação de capital e, para tanto,
ele se sustenta na mais-valia decorrente da exploração dos trabalhadores e no estímulo ao
consumo das mercadorias produzidas. No que concerne ao enriquecimento pela mais-valia, os
empresários organizam a atividade produtiva de forma eficiente objetivando o aumento da
produtividade dos trabalhadores ao passo que tentam reduzir seus gastos com os empregados
(CHESNAIS, 2009, p. 15).
Cabe salientar que a concorrência entre as empresas no mercado gera, por sua vez,
uma concorrência entre os trabalhadores pelos postos de trabalho que existem, provocando a
submissão dos trabalhadores à lógica produtivista e causando o aprofundamento desta.
Ademais, ao mesmo tempo que os trabalhadores vêem usurpada a mais-valia de seu trabalho,

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eles são também mercado consumidor da produção capitalista contribuindo duas vezes para o
acúmulo de capital. (CHESNAIS, 2009, p. 15)
Quanto ao fomento do consumismo, é necessário o condicionamento dos assalariados
e de toda a população para que comprem. Uma vez que o processo de fabricação das
mercadorias é orientado pela produtividade, ao final da produção o mercado será inundado pela
maior quantidade de mercadorias que se foi possível fabricar e que precisam ser vendidas para
que a mais-valia inscrita nelas seja paga. O passo para o consumo consiste no convencimento
de que as mercadorias são úteis, tanto na autenticidade da utilidade do produto para atender as
necessidades do comprador, quanto no sentido de permitir a realização da mais-valia encerrada
na mercadoria. O que importa é “que las mercancías que contienen plusvalor tengan la
apariencia de “cosas útiles”, pues para el capital la “utilidad” es lo que permite obtener
ganancias (lucros) y proseguir el proceso infinito de valorización” (CHESNAIS, 2009, p. 15).
Estes mecanismos de acumulação de capital descritos acima, que são impulsionados
pela necessidade de valorização infinita e ilimitada do capital, levam simultaneamente: i) ao
excesso de acumulação de meios de produção e a consequente superprodução de mercadorias;
ii) a existência de uma situação de desemprego endémico e; iii) a um imenso desperdício de
recursos não renováveis, desperdício contínuo porque é tão inerente ao capitalismo como é a
superprodução (CHESNAIS, 2009, p. 16).
Diante disso, depreende-se que a própria racionalidade do capitalismo expõe, na
realidade, a irracionalidade social e ambiental deste sistema. Ele gera a destruição ambiental e
a desigualdade social que supostamente se busca combater através do desenvolvimento
sustentável. Embora seja evidente a associação da destruição ambiental ao desenvolvimento do
modo de produção capitalista, o relatório Brundtland não contextualiza a crise ambiental e o
conceito de desenvolvimento sustentável nesses termos.
O relatório aponta a necessidade de uma nova abordagem de crescimento econômico
tendo em vista que a finitude dos recursos naturais ameaça o desenvolvimento econômico e
social, de maneira que os países “em desenvolvimento” não poderiam manter o mesmo ritmo
de crescimento econômico dos países “desenvolvidos” (FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012.
p. 44). Assim, o desenvolvimento sustentável foi construído como um conceito capaz de aliar
meio ambiente e crescimento econômico, sem questionar a continuidade do sistema capitalista
(FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 45).

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Atualmente no mundo globalizado, a divisão internacional do trabalho ainda se


configura como nos tempos coloniais. As ex-colônias, hoje países periféricos, seguem
exportando matéria prima para os países centrais e nossas economias atreladas a exploração de
recursos naturais perpetuam a troca desigual de mercadorias e da degradação ambiental. Esse
intercâmbio desigual entre periferia e centro não pode ser ignorado na elaboração de um futuro
comum, pois a degradação ambiental, como lembra Leff (1994), “acentuou-se nas regiões
onde, historicamente, as formações sociais, sobretudo os ecossistemas tropicais, foram
explorados pelos países capitalistas industrializados” (FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012. p.
43).
É perceptível o rastro de degradação deixado pela sanha da acumulação ilimitada de
capital que gera suas riquezas a partir da transformação da natureza em mercadoria e da mais-
valia extraída dos trabalhadores e da natureza no processo de transformação dessa natureza em
mercadoria. Quando do colonialismo, a exploração dos recursos naturais das colônias permitiu
a acumulação primitiva de capital fundamental para a consolidação do modo de produção
capitalista e o consequente desenvolvimento dos países centrais, outrora metrópoles.
De fato os países periféricos não podem seguir a mesma receita de desenvolvimento
que os países centrais para avançarem no sentido da redução da desigualdade social a fim de
oferecer qualidade de vida a suas populações. A busca pela justiça social não pode perder de
vista a necessidade do meio ambiente equilibrado. Para fugir do modelo hegemônico de
desenvolvimento que nos colocou na “crise ambiental” é preciso uma “reorganização da base
civilizacional e da estrutura política, econômica social e cultural, vigente nas sociedades
instituídas no período posterior à Revolução Industrial e no marco da modernidade capitalista”
(LOUREIRO, 2006. p. 11 apud FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 44).
Na contramão da mudança necessária, o conceito hegemônico de desenvolvimento
sustentável mostra-se como ideologia que ao mesmo tempo que ignora as determinações
históricas do processo destrutivo das sociedades e da natureza, decorrentes do modo de
produção, apela à preservação da natureza, ao enfrentamento da desigualdade social e ao
comprometimento individual e coletivo da sociedade com a natureza (FREITAS, NÉLSIS e
NUNES, 2012. p. 46). Além disso, essa concepção de desenvolvimento sustentável não
questiona a relação de dominação do homem com a natureza e que consiste em fator
potencializador do processo destrutivo decorrente do modo de produção, conforme segue:

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A ideia de desenvolvimento, tal como existe na sociedade moderno-colonial, é


questionada por Porto-Gonçalves (2004), pois pressupõe a dominação da natureza.
O autor sinaliza a importância de determinadas condições jurídicas e políticas para
novas formas de dominação que não só prolonguem, mas intensifiquem os processos
anteriores de apropriação destrutiva da natureza. Ou seja, mesmo diante dos graves
problemas, são apresentadas propostas como “plante uma árvore”, “promova a coleta
seletiva do lixo” ou “desenvolva o ecoturismo” (FREITAS, NÉLSIS e NUNES,
2012. p. 46).

Marx, ao tratar da grande indústria e da agricultura, fala sobre o processo de retirada


do campesinato da terra para a implantação da agricultura mercantil e explicita a ruptura
metabólica entre sociedade e natureza, como resultado do produtivismo capitalista (LÖWY,
2014, p. 27 e 28). A noção de fratura metabólica pressupõe que “a natureza e o homem
possuiriam um metabolismo único, esta seria o corpo inorgânico desse, e, com a alienação do
próprio ser no capitalismo, ocorreria um distanciamento visceral entre ambos” (FREITAS,
NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 42).
Assim, a fratura metabólica consiste na inversão da relação Homem natureza na
medida que passa a desconsiderar o homem como parte da natureza e o coloca na posição de
senhor da mesma tendo em vista sua capacidade de transformação da natureza pelo trabalho.
Marx e Engels, na Crítica do Programa de Gotha, refutam essa tese ao sustentar que “o trabalho
não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (que são, de qualquer
forma, a riqueza real!) tanto quanto o trabalho, que não é em si nada além da expressão de uma
força natural, a força de trabalho do homem” (MARX, ENGELS, 1950, p. 128 apud LÖWY,
2014, p. 25).
Engels, no texto “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, após
mencionar alguns exemplos de atividade humana predatória sobre o meio ambiente reafirma a
condição do homem como ser intrínseco à natureza:

Os fatos nos lembram a todo instante que nós não reinamos sobre a natureza do
mesmo modo que um colonizador reina sobre um povo estrangeiro, como alguém
que está fora da natureza, mas que nós lhe pertencemos com nossa carne, nosso
sangue, nosso cérebro, que nós estamos em seu seio e que toda a nossa dominação
sobre ela reside na vantagem que levamos sobre o conjunto das outras criaturas por
conhecer suas leis e por podermos nos servir dela judiciosamente (ENGELS, 1968,
p. 181 apud LÖWY, 2014, p. 24)

Diante da tentativa do atual conceito de desenvolvimento sustentável de neutralizar a


imagem do capital perante a degradação ambiental por ele provocada, dada a forte alienação
entre homem e natureza intrínseca à fratura metabólica identificada por Marx e Engels

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(FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 47), a possibilidade de uma existência sustentável


para a humanidade só pode se dar a partir da renúncia da lógica capitalista de produção pela
produção e da acumulação de capital, de riquezas e de mercadorias como fim em si,
abandonando a ideia de crescimento infinito.

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

Podemos observar que o modelo econômico se apropriou tanto da política ambiental


quanto do conceito de desenvolvimento sustentável. No âmbito das organizações multilaterais
como ONU e suas agências, em que seus integrantes representam Estados-Nação, sociedade
civil e corporações empresariais, prevalece a ideologia do crescimento econômico infinito
porque a economia dos países está fortemente atrelada ao modelo de desenvolvimento
econômico e social que só é possível com crescimento econômico constante. Dessa forma, não
se propõe uma superação do modelo posto, mas sim uma tentativa de conciliação.
Na mesma linha, foi possível observar a influência que estes organismos multilaterais
exerceram na política de meio ambiente nacional, principalmente a partir da década de 1970,
quando ocorreu o maior número de criação de unidades de conservação de proteção integral na
Amazônia e Centro-Oeste, em parte para cumprir exigências dos financiadores internacionais
como o Banco Mundial ou acessar os fundos do PNUMA e PNUD. No Brasil, a política de
meio ambiente e a política de desenvolvimento e exploração dos recursos naturais não se
excluem ou, sequer, são antagônicas, mas, sim, são complementares no sentido de que a política
ambiental é voltada para orientar a exploração dos recursos necessários ao desenvolvimento
econômico.
Tendo em vista que o produtivismo é inerente ao modo de produção capitalista, seria
utópico acreditar que o capitalismo teria a capacidade de se auto impor os limites do seu
crescimento econômico e da acumulação de capital hoje, alterando suas características
estruturais, em respeito ao direito de gerações futuras, por exemplo.
Desde a assunção da crise ambiental, em 1972, o que observamos é o seu
agravamento. O capitalismo tem se pintado de verde sob o pretexto do desenvolvimento
sustentável e transformado em lucro a sustentabilidade através do marketing verde, mas sem
alterar de maneira significativa seus processos de produção. Assim como nas inerentes crises

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econômicas cíclicas, onde o capitalismo se reinventa para continuar lucrando, parece que a crise
ambiental tem surtido efeito semelhante.
Se as políticas de conservação da natureza não consideram a centralidade do modo de
produção capitalista para a crise ambiental, as áreas protegidas vão consistir em ilhas de
conservação que podem ganhar contorno de zonas de recursos naturais a serem exploradas
quando a natureza fora delas já tiver sido consumida e deteriorada. Uma poupança de recursos
naturais a ser utilizada no futuro, pois as áreas protegidas, apesar de reservadas, possuem valor
de mercado e enquanto os recursos naturais vão se tornando escassos fora delas, elas se
valorizam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante o exposto, podemos vislumbrar que uma das possibilidades futuras das
unidades de conservação frente o conceito de desenvolvimento sustentável hegemônico, é se
tornar reserva de mercado de recursos naturais, de modo que para se pensar política ambiental
é imprescindível contextualizar o protagonismo do modo de produção capitalista na crise
ambiental.
Sugerimos, portanto, a necessidade do aprofundamento de estudos interdisciplinares,
inclusive empíricos, capazes de identificar outras interseções entre política ambiental e
desenvolvimento sustentável e os sintomas dessa relação no atual modelo de produção, assim
como estudar e elaborar modelos alternativos.

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Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4340.htm>. Acesso em 01/09/2017.

_______. Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000 - Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição
Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9985.htm>. Acesso em 01/09/2017.

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WEY, MC de B. Unidades de Conservação: intenções e resultados. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.

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DIREITO À TERRA:
UMA ANÁLISE DA LUTA INDÍGENA CHIQUITANO

MOREIRA DA COSTA, Loyuá Ribeiro Fernandes


Mestranda em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).
COUTO, Larissa de Paula
Mestranda em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).

RESUMO

O estudo se volta para a discussão relacionada ao racismo institucional e ambiental, com enfoque em
questões indígenas brasileiras, em especial da etnia Chiquitano, localizada em Mato Grosso. A temática
demonstrará a luta indígena como potencial emancipador para alcance de construção de mecanismos
jurídicos e econômicos de proteção ambiental e de emersão de novas formas de cidadania. Para tanto, o
estudo realiza uma análise acerca de constituições latino-americanas, como Bolívia e Equador. Assim,
objetiva-se demonstrar perspectivas teóricas e práticas anticapitalistas, sob o viés decolonial. A pesquisa
qualitativa interdisciplinar, calcada na teoria crítica, articula Antropologia, História, Direito, Política,
Economia e Cultura. Isso porque o marco teórico-metodológico adotado permite demonstrar a
interconexão entre os diferentes ramos dos saberes. Conclui-se a pesquisa demonstrando alternativas ao
capitalismo verde e sua relação com a importância das lutas sociais.

Palavras-chave. Capitalismo Verde; Racismo Institucional; Racismo Ambiental; Chiquitano.

ABSTRACT

The study is related to the discussion about institutional and environmental racism, focusing on Brazilian
indigenous issues, especially on the Chiquitano ethnic group, located in Mato Grosso. The theme will
demonstrate the indigenous struggle as an emancipatory potential to reach the construction of legal and
economic mechanisms for environmental protection and the emergence of new forms of citizenship. To
do so, the study analyzes Latin American constitutions, such as Bolivia and Ecuador. Thus, it aims to
demonstrate theoretical perspectives and anti-capitalist practices, under the decolonial bias. The
qualitative interdisciplinary research, based on critical theory, articulates Anthropology, History, Law,
Politics, Economy and Culture. This is because the theoretical-methodological framework adopted
allows us to demonstrate the interconnection between the different branches of knowledge. The study
concludes by showing alternatives to green capitalism and its relation to the importance of social
struggles.

Keywords. Green Capitalism; Institutional Racism; Environmental Racism; Chiquitano.

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INTRODUÇÃO

O artigo tem como objetivo compreender a disputa de terras tradicionalmente


ocupadas pelas comunidades Chiquitano1 e sua relação com o capitalismo verde, racismo
ambiental e racismo ambiental. Para tanto, o estudo baseia-se em pesquisa empírica, utilizando
meios jurídico-processuais, pesquisa de campo e de análise de mecanismos constitucionais de
países da América Latina, como Bolívia e Equador.
A fim de trazer subsídios ao estudo, foi feito um levantamento documental nos
arquivos da FUNAI, em Cuiabá, nos anos de 2014, 2015 e 2016. No intuito de conhecer melhor
a situação em que as comunidades Chiquitano estão submetidas e de colher informações de
diferentes lideranças indígenas, realizou-se duas viagens de campo nos meses de maio e julho
de 2014 e reuniões pela internet com membros das comunidades, em agosto de 2017. Ainda
em 2014, foi realizado acompanhamento de liderança indígena da comunidade de Vila Nova
Barbecho à Delegacia Federal de Cáceres, junto ao Procurador Federal da FUNAI, para relato
de ocorrência de ameaça, bem como visita ao Ministério Público Federal, na mesma cidade,
para melhor compreensão do conflito socioambiental.
No que diz respeito às fontes orais, estas basearam-se em entrevistas semiestruturadas
por meio de formulário dialogado com indígenas das comunidades Chiquitano de Fazendinha,
Vila Nova Barbecho, Nossa Senhora Aparecida e Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs. Os
fatos apontam a possibilidade de ocorrência de violação de direitos humanos desde a década de
1970, momento em que o INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) intensificou a
distribuição de terras para instalação de fazendas.
O estudo proposto foi elaborado com a ideia de compreensão e aprofundamento no
que tange aos direitos humanos dos povos indígenas, como o direito à autodeterminação, ao
usufruto das terras que tradicionalmente ocupam, à saúde, ao trabalho digno, à igualdade na
diferença, à reprodução físico-cultural, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Pensou-
se na possibilidade de vir a servir como meio de difusão de conhecimento acerca desses direitos
aos índios, bem como de trazer ao ambiente acadêmico uma situação que é corriqueira às
diversas etnias. Também tem por escopo romper com as amarras do colonialismo que nos

1 A 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, ocorrida no Rio de Janeiro em 1953, aprovou uma convenção para uniformizar a grafia

dos nomes tribais brasileiros. Neste estudo, portanto, os “nomes tribais se escreverão com letra maiúscula, facultando-se o uso de
minúscula no seu emprego adjetival” e, ainda, “não terão flexão portuguesa do número ou gênero, quer no uso substantival, quer
no uso adjetival”. (SCHADEN, 1976, p. XII).

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rodeiam e que utilizam formas de opressão e ocultamento de identidades indígenas, levando-as


ao extermínio.
A identidade dos índios vincula-se à sua forma cultural de habitar as terras e de fazer
uso dos recursos naturais nelas existentes que não somente é fonte de subsistência, como
também de preservação do meio ambiente. A terra é a base de produção e sustentáculo da
identidade étnica, sendo uma premissa à fruição dos demais direitos. Nesse sentido, o artigo
não trata apenas de uma questão sobre conflito agrário, mas da necessidade de (r)existência
étnico-cultural dos povos indígenas ante a colonialidade de poder2 que se verifica tanto à nível
local, como regional e global.3
Ao longo da leitura, será possível perceber que a epistemologia indígena é fortemente
ligada às vontades da natureza. Essa noção de mundo entra em conflito com a de atores sociais
e governamentais que possuem concepções socioeconômicas, pautadas em leis nacionais e
internacionais, que permitem uma relação de domínio dos recursos ambientais. A exterminação
das identidades indígenas relaciona-se à degradação do meio ambiente, tratando-se, portanto,
de um estratégia político-econômica.
Dessa forma, conservar a vida, concepções identitárias, heranças de pensamentos e
sabedorias significa cultivar a alteridade e uma perspectiva de solidariedade intercultural,
alcançando uma consciência de humanidade planetária. Isso implica diálogo e salvaguarda de
direitos que garantam a diversidade cultural, condições de igualdade e dignidade. Esses direitos
estão previstos em tratados internacionais e são constitucionalmente outorgados aos membros

2 Índios e não índios encontram-se numa relação de “colonialidade de poder” (QUIJANO, 2005) que desde tempos remotos
sustenta uma suposta superioridade/inferioridade. Essa relação baseia-se em dicotomias como “cultura científica/cultura literária,
conhecimento científico/conhecimento tradicional, homem/mulher, cultura/natureza” (SANTOS, 2000, p. 739).
3
O julgamento da Petição nº 3.388, a respeito da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, instituiu como marco temporal ao direito à
terra indígena a data de promulgação da Carta Magna, ou seja: 05.10.1988. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Relator
Ministro Carlos Ayres Britto, julgado em 19.03.2009). Embora o Supremo Tribunal Federal tenha definido que o marco temporal
se aplicaria somente a esse caso, em 2015, aplicou, também, para anular a demarcação das Terras Indígenas de Guyraroka, dos
Guarani Kaiowá, e Limão Verde e Buriti, dos Terena. Não bastando, em 20.07.2017, foi emitido parecer pela Advocacia Geral
da União e assinado pelo Presidente da República, Michel Temer, com o mesmo entendimento quanto ao marco temporal. Muito
vem sendo discutido a respeito da natureza desse parecer. Uns entendem que seja apenas opinativo, não tendo força vinculante, e
até mesmo inconstitucional (nesse sentido, ver: http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=9395&action=read
Acesso em: 02.08.2017). Outros afirmam que o parecer é vinculante, o que significa que toda a administração federal deverá
incorporar elementos da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (nesse sentido,
ver http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=9393 Acesso em 02.08.2017). Outra transgressão aos direitos
indígenas ocorreu em 21.08.2017, quando o Ministério da Justiça anulou a Portaria nº 581 de 2015 que reconhecia 500 hectares
da Terra Indígena do Jaraguá, pertencente ao povo indígena Guarani, em São Paulo. Segundo a decisão, a área “foi demarcada
sem a participação do Estado de São Paulo na definição conjunta das formas de uso da área” reduzindo-a para apenas 3 hectares.
A anulação propiciará a privatização da Unidade de Conservação, Parque Estadual do Pico do Jaraguá
(https://pib.socioambiental.org/pt/noticias?id=181337&id_pov=76 Acesso em 22.08.2017). O artigo não objetiva o
aprofundamento dessas questões e etnias, trazendo-as apenas para ilustrar a problemática que assola os povos indígenas
brasileiros.

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da sociedade nacional, mostrando-se fundamentais a uma convivência justa e pacifica da


sociedade.
O caminho metodológico aporta-se na construção de um diálogo entre o saber
científico ocidental e o entendimento de que natureza e sociedade constituem-se de objetos e
fenômenos dependentes entre si e que se condicionam numa relação de troca. Como resultado,
ocorrem reações no modus vivendi circundante dos índios, ainda que condicionadas a forças
contraditoriamente articuladas, geradoras de raízes, identidades e conflitos.
Nesse sentido, o prisma epistemológico ofertado pelo Direito, que se baseia em fatos
e normas predefinidas, permite examinar positivamente quais os direitos violados e os
princípios gerais que melhor esclareçam a controvérsia. Já a base empírica do estudo, amparada
pela ótica antropológica, demostra o ponto de vista dos sujeitos e evidencia suas práticas e
saberes locais, indagando se a questão analisada tem algo a dizer sobre o universal, a fim de
compreender o etnocultural Chiquitano. Dessa forma, o estudo etnográfico permite aquilatar as
mudanças no modo de vida percebidas pelas comunidades Chiquitano.
A exploração científica desta questão conduz ao estudo e entrecruzamento de diversos
vieses epistemológicos. Implica na interface de campos do conhecimento, como direito,
história, geografia geral e regional, sociologia e antropologia, donde emerge o caráter
interdisciplinar que propicia o processo de tradução e diálogo entre saberes.
A FUNAI providenciou o reconhecimento étnico do povo Chiquitano somente no
final da década de 1990, revelando uma situação complexa e pouco estudada sob a ótica
jurídica, antropológica e histórica. Portanto, promover uma abordagem jurídica sobre os
possíveis direitos humanos violados nas comunidades Chiquitano reveste-se de caráter urgente
e prioritário para uma das mais obscuras questões do indigenismo mato-grossense na
atualidade. Certamente, uma análise do ponto de vista do direito poderá fortalecer o processo
de luta do povo indígena Chiquitano para terem suas terras tradicionais demarcadas.

1. POVO INDÍGENA CHIQUITANO: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO E AS


REPERCUSSÕES DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NO PODER
JUDICIÁRIO

O povo indígena Chiquitano origina-se de uma amálgama de etnias fusionadas nas


missões jesuíticas implantadas nos anos de 1691 a 1760. Recebeu essa designação do

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naturalista francês Alcides d’Orbigny durante sua visita à Bolívia, em 1831, como uma
atribuição genérica aos índios que habitavam a região. Nos dias de hoje, os Chiquitano ocupam
terras nos dois lados da fronteira Brasil-Bolívia, na hinterlândia das cabeceiras do rio Paraguai
com a do rio Guaporé, no Brasil, e, a Oeste, com o rio Guapay, em solo boliviano. Dados de
20084 demonstram que, em Mato Grosso, estima-se uma população de 2400 índios vivendo em
trinta e três comunidades nos municípios de Cáceres, Porto Esperidião, Pontes e Lacerda e Vila
Bela da Santíssima Trindade, formando um contínuo fronteiriço. (MOREIRA DA COSTA,
2006).5
O Tratado de Madri, firmado entre Portugal e Espanha em 1750, estimulou o
povoamento da Província de Mato Grosso com a utilização da mão de obra indígena pelos
Portugueses, sendo que a do Chiquitano era considerada especializada na produção de redes,
mantas, alimentos. Um século depois, a Lei de Terras (1850)6 e o Tratado de Ayacucho (1867)7,
intensificaram a ocupação das terras Chiquitano, tidas como devolutas pelos fazendeiros e
destacamentos militares. (MOREIRA DA COSTA, 2006).
Com o advento da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em 1891,
segunda constituição do Brasil e primeira de sistema republicano de governo, as terras
devolutas foram transferidas à competência dos governos estatais. Estes expediram títulos de
domínio de terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas que não tinham seus
territórios reconhecidos, gerando muitos conflitos agrários e socioambientais.

4 Trata-se de dado trazido por Moreira da Costa (2006) pautado em relatório elaborado por Grupo de Trabalho da FUNAI. Para
aproximar-se de uma noção mais atualizada, pesquisas documentais realizadas nesse mesmo órgão, em 2014, possibilitou-me
auferir a existência de 137 famílias somente no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, mais especificamente, na Aldeia
Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs; dados coletados nesse mesmo período apontam que Fazendinha e Acorizal possuem cerca de
384 moradores; em Vila Nova Barbecho, 90 moradores; em Santa Luzia, 130.
5
Moreira da Costa (2006) aponta a existência de trinta e uma comunidades. No entanto, em 2017, ocorreu divisão interna que
originou as comunidades Notchopro Matupama e Nautukich, de acordo com entrevista realizada virtualmente com membro
Chiquitano, totalizando trinta e três comunidades. Notchopro Matupama adveio da comunidade Central e Nautukich da Acorizal.
De acordo com Moreira da Costa (2006), são consideradas comunidades os núcleos de famílias Chiquitano, mesmo que em
algumas se observe a presença significativa de não índios.
6
Promulgada por Dom Pedro II, trata-se da primeira iniciativa brasileira no sentido de organizar a propriedade privada, que até
então não possuía nenhum documento que regulamentasse a posse de terras. Foi aprovada no mesmo ano que a Lei Eusébio de
Queirós, que previa o fim do tráfico negreiro e sinalizava a abolição da escravidão no Brasil. Em razão da preocupação de
fazendeiros e políticos latifundiários de que negros pudessem vir a se tornar donos de terras, foi estabelecido também por essa lei
que as terras só poderiam ser adquiridas por compra e venda ou doação do Estado. Portanto, não era mais permitido obter terras
por meio de posse (usucapião). Aqueles que já ocupavam algum lote recebiam o título de proprietário, mas desde que residissem
e tivessem produtividade na localidade.
7
Celebrado em La Paz, Bolívia, também conhecido como Tratado da Amizade ou Tratado Muñoz-Netto. Declarou paz entre o
Império Brasileiro e a Bolívia, bem como estabeleceu a possibilidade legal de navegação e tráfego. Assim, foram recuadas as
fronteiras bolivianas a favor do Império Brasileiro. As embarcações bolivianas passaram a ter acesso aos rios brasileiros. O
extrativismo da borracha na região tornou-se o novo projeto de vida de nordestinos que buscavam fugir da seca, o que resultou
em maior povoamento da região. Em 1898, a Comissão Demarcadora de Limites demonstrou que parte do Acre pertencia à
Bolívia. Acontece que essa divisão territorial entre os Estados-nação ocultava os verdadeiros donos das terras: os indígenas que
ali viviam.

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Na guerra do Chaco, entre a Bolívia e o Paraguai, no início do século XX, índios


Chiquitano lutaram no exército boliviano. Este foi um momento muito difícil para
sobrevivência da etnia, pois o exército boliviano obrigou homens e meninos a entrarem no
combate. Várias famílias Chiquitano fugiram da Bolívia para o Brasil, a fim de pouparem seus
filhos da guerra que os dizimou em grande parte e dispersou muitas comunidades no Brasil,
pois o exército boliviano entrava em terras na fronteira brasileira para arregimenta-los para a
guerra.
Além disso, a regularização fundiária efetuada pelo INCRA nas terras tradicionais
pertencentes aos Chiquitano, a partir de 1970, permitiu a expansão de grandes latifúndios, o
que contribuiu ao aumento das dificuldades de sobrevivência desse povo. (MOREIRA DA
COSTA, 2006; SILVA, 2004).8 Assim, comunidades Chiquitano tiveram suas terras parceladas
em diminutos lotes que, posteriormente, foram adquiridos por fazendeiros. Alguns índios, sob
coação, acabaram abandonando seu local de origem e, por não terem para onde ir, ocupam
faixas de servidão de estradas e periferias de municípios próximos. Os que resistem em suas
terras estão cercados e encapsulados por fazendeiros, confinados em pequenas áreas comunais.
Desde então, assistem aos recursos naturais necessários a sua sobrevivência físico-cultural
serem transformados em pastagens, ironicamente por sua própria força de trabalho que, muitas
vezes, é realizada de forma análoga à escravidão.9
Em decorrência desse histórico processo de esbulho, discriminação e silenciamento,
apenas quatro, das trinta e três comunidades Chiquitano, se declaram indígenas. Por isso, o
presente artigo elege, especificamente, a trajetória das comunidades Chiquitano: Fazendinha e
Acorizal (localizadas nas Glebas Casalvasco, Tarumã e Santa Rita), Vila Nova Barbecho e
Nossa Senhora Aparecida (situadas na Gleba Tarumã). Em outra conformação, também objeto
deste estudo, a Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs, composta por Chiquitano moradores

8 Durante pesquisa documental realizada na FUNAI, em 2014, foi possível auferir que, em 08.01.2013, o Ministério Público
instaurou, por meio da Portaria nº 2, Inquérito Civil Público para apurar o envolvimento do INCRA no processo de parcelamento
das terras tradicionais Chiquitano.
9 Durante pesquisa de campo, por meio de formulário dialogado, foi relatado por membros Chiquitano a forma como realizavam

os trabalhos para fazendeiros que, nos termos da Constituição Federal de 1988 e das leis infraconstitucionais, configurariam
trabalho análogo à escravidão. Isso porque, a exemplo da comunidade Vila Nova Barbecho, os índios chegavam a ficar mais de
doze horas dentro das águas de rio da região, incentivados por pinga para permanecerem com seus corpos quentes quando no
inverno. As condições da comida e o local onde se alimentavam eram impróprios. Além disso, um dos fazendeiros que chegou a
morar na região destruiu a roça da comunidade, forçando-os a comprarem alimentos produzidos em suas fazendas, bem como as
ferramentas de trabalho em mercearia próxima. No final do mês, ficavam endividados e não tinham dinheiro para receber. Após
a chegada da FUNAI, no final da década de 1990, essa situação cessou, mas não se sabe ao certo como os trabalhos são
empreendidos por aqueles que não se autodeclaram indígenas, pois preferem silenciarem-se a perderem o trabalho.

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de bairros periféricos do município de Vila Bela da Santíssima Trindade, todas elas em Mato
Grosso.
No final dos anos de 1990, o licenciamento ambiental para a construção do Gasoduto
Bolívia-Mato Grosso10 indicou a necessidade de demarcação das terras Chiquitano ao longo da
fronteira brasileira. Diante de tal condicionante, o Estado brasileiro concedeu maiores recursos
à FUNAI a fim de que promovesse a identificação e delimitação da Terra Indígena Portal do
Encantado, como pressuposto à construção de estrada que passaria pelo território indígena.11
Assim, parte da área foi reconhecida como pertencente às comunidades Acorizal e Fazendinha,
no entanto, a portaria que assim a declara foi suspensa por decisão judicial12.
Pesquisas iniciais sobre o processo histórico de esbulho das terras onde se encontram
os Chiquitano, desde a chegada do INCRA, indicam transgressão ao direito à vida. De acordo
com dados coletados, por meio de questionário esquematizado realizado em pesquisa de campo
no ano de 2014, existe a possibilidade de trabalho em condições análogas à escravidão desde o
parcelamento das terras indígenas. Isso, bem como o histórico de preconceito, degradação
ambiental, restrições à reprodução físico-cultural ocasionam fortes transformações no modo de
vida do povo indígena Chiquitano.

10
A efetivação desse projeto foi impedido por movimentos sociais bolivianos, incidente denominado “Guerra do Gás”. A
construção da estrada fazia parte do projeto de desenvolvimento do Eixo Andino (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia)
operado pela Iniciativa de Integração da Infraestrutura Sulamericana (IIRSA), que objetivava implementar interesses do Eixo
Interoceânico Central (Sudeste brasileiro, Paraguai, Bolívia, norte do Chile, sul do Peru), bem como do Eixo Perú-Brasil-Bolívia.
A IIRSA é um programa composto por 12 países da América do Sul que visa promover a “integração sul-americana” a partir da
modernização conjunta da infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações. Para isso, seria necessário a construção da
referida estrada que passaria por territórios indígenas na fronteira Brasil-Bolívia, almejando a exploração e exportação dos
recursos naturais pela Petroandina e pela Petrobrás. A construção da estrada para ligação dessas regiões, em nome do
desenvolvimento econômico, seria realizada pela empreiteira brasileira OAS, financiada pelo Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O Eixo Peru-Bolívia-Brasil permitiria a expansão do comércio destes países
com a Ásia. (SANTIAGO; BELLO, 2017). Essa política de desenvolvimento buscava uma dependência dos países centrais. No
entanto, acabou por demonstrar não a integração do Sul, mas uma interrelação de interesses de mercados globais e de subimpérios
calcados na degradação ambiental e extermínios de etnias indígenas. (SANTIAGO; BELLO, 2017).
11
A Funai é responsável por orientar e executar a demarcação de terras, nos termos da Diretoria de Proteção Territorial (DPT),
conforme disposições da Lei nº 6.001, de 19.12.1973 (Estatuto do Índio), do Decreto nº 1.775, de 08.01.1996, e do Decreto nº
7.778, de 27.07.2012, que determina as atribuições da FUNAI.
12
Depois de todo o trâmite do processo administrativo demarcatório, de competência da FUNAI, foi publicada no D.O.U. (Diário
Oficial da União) em 31.12.2010, a Portaria nº 2219/2010 do Ministério da Justiça. No entanto, esta encontra-se suspensa desde
2011. Isso porque foi concedida tutela antecipada no Processo nº 0000151-76.2011.4.01.3601, que tramita na 1ª Vara da Justiça
Federal da subseção judiciária em Cáceres, distribuído em 13.01.2011, cuja parte requerente é possuidora de fazenda na mesma
área. Após a declaração do reconhecimento da Terra Indígena (ato do Ministro da Justiça) e sua homologação (ato do Presidente
da República), não há mais possibilidade, pela via administrativa, de contestação por interessado, devendo o caso,
necessariamente, ser levado à análise do Judiciário. De acordo com o Código Civil, o prazo para que seja feita a contestação de
uma portaria que homologa uma terra indígena, bem como da declaração de posse indígena, é de 15 anos e começa a contar da
publicação da portaria. Exceto tratando-se de Mandado de Segurança impetrado pelo Estado, situação em que será de 120 dias,
nos termos do artigo 110, parágrafo único e do artigo 247, § 1º, ambos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (vide
Ação Civil Ordinária AgR 365, MT, de relatoria de Aldir Passarinho, 1987).

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Conforme relatos dos indígenas, também foram desrespeitados os direitos à


integridade física e psíquica, em razão dos maus tratos dos gerentes para submetê-los a jornadas
extensas de trabalho e em condições degradantes, bem como quando encontravam-se doentes
ou a fim de obrigá-los a realizar determinada tarefa. Após a chegada da FUNAI, no final da
década de noventa, essa situação atenuou em razão do atendimento que passou a fornecer à
etnia. No entanto, alguns fazendeiros passaram a negar trabalho àqueles que se declaram índios,
sendo que estes dependem da venda da mão de obra para sobrevivência. O histórico de
preconceito e silenciamento faz com que muitas comunidades Chiquitano neguem sua
identidade indígena, dificultando os trabalhos da FUNAI.
A comunidade Vila Nova Barbecho, localizada na Gleba Tarumã, está um longo
período privada de água. Isso porque embora o córrego São Pedro passe por ela, suas águas
banham, primeiramente, as terras da fazenda vizinha, homônima ao do rio, que utilizava o
córrego para abastecimento do gado a ela pertencente, deixando-o impróprio ao uso humano.
Em junho de 2015, o proprietário da fazenda foi multado por poluição e danos ao córrego pelo
Juizado Especial Volante Ambiental (Juvam) da Comarca de Cáceres.13 Em razão das
constantes ameaças empregadas aos índios pelo então proprietário da fazenda São Pedro, em
2006, o Ministério Público instaurou processo14 no qual foi decidido que, ainda que não tenha
demarcação definitiva das terras pela FUNAI, se construísse um poço semiartesiano. A decisão
judicial também estipulou a delimitação de uma área exclusiva de 25 hectares para a
comunidade e o acesso comum à área da fazenda para a coleta de matérias-primas para
confecção de seus artefatos e subsistência.
O acesso comum à área da fazenda é evitado pelos índios, em razão de ameaças
sofridas ao tentarem coletar de matérias primas, caçar e pescar. O material para construção do
poço ficou muito tempo parado na comunidade, já que a empresa responsável se recusa a
construí-lo em decorrência de ameaças efetuadas pela fazenda quando da tentativa de
construção. Não bastando, o material desapareceu, deixando os índios desesperançosos quanto
à possibilidade de terem água potável na comunidade. O processo, em fase de execução, ainda
não promoveu medidas para a efetiva construção do referido poço, mesmo se tratando de um

13 Conforme notícia divulgada no site oficial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso


http://www.tjmt.jus.br/noticias/40117#.WYJA5ITyvIU Acesso em: 02.08.2017.
14
Ação Civil Pública nº 0001482-69.2006.4.01.3601 que tramita na Justiça Federal da subseção judiciária de Cáceres.

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bem universal necessário à sobrevivência e dignidade. Essa situação evidencia a morosidade e


inefetividade do Poder Judiciário.
A fim de suprir a escassez de água potável, uma missão religiosa construiu um poço
semiartesiano, mas, ainda assim, insuficiente ao abastecimento das 18 famílias da
comunidade15, pois fornece pouco volume de água e não funciona em dias nublados, já que é
movido a energia solar. Em entrevista realizada virtualmente no início de agosto de 2017,
membro indígena da comunidade de Vila Nova Barbecho mencionou que a fazenda aparenta
possuir novo proprietário que desmata e implanta pasto. A utilização da água do córrego
continua sendo evitada pelos índios em razão da desconfiança de emprego de agrotóxicos na
plantação aos arredores do córrego.
Na Gleba Casalvasco, resistem diversas comunidades ao longo do rio Barbados,
dentre elas a de Nossa Senhora Aparecida, única da região que se identifica indígena, motivo
pelo qual é alvo de constantes ameaças.16 Embora a FUNAI tenha dado início ao estudo de
identificação e delimitação,17 este não pode ser concluído, pois parte significativa dos membros
da comunidade não se identificam como indígena, em decorrência do histórico de preconceito
e silenciamento.18
Muitas famílias Chiquitano dependem da venda de mão de obra e dos favores dos
fazendeiros que passaram a recusar trabalho àqueles que se autoidentificam indígena. Por isso,
muitos, com medo de não terem para onde ir ou como viver, bem como, por vezes,
envergonhados, em razão do preconceito da região para com indígenas, preferem silenciar-se.
A situação, além de dificultar os trabalhos da FUNAI, tem gerado conflitos internos que
perduram há mais de uma década.
Em Vila Bela da Santíssima Trindade, em 2014, foi possível entrevistar o indígena
Chiquitano Antônio Leite, à época líder de 137 famílias que vivem, em sua maioria, no Bairro
Aeroporto. A comunidade, chamada de Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs, que na língua
significa “espírito protetor das águas”, reivindica o retorno para suas terras tradicionais, a maior
parte localizadas na Gleba Casalvasco, mais especificamente na região de Baía Grande. Ainda

15 Dado encontrado em uma das petições da Funai no processo.


16 Denúncias encaminhadas ao Ministério Público Federal culminaram na instauração do Inquérito Civil Público, por meio da
Portaria nº 033/2012, com o fito de apurar o conflito entre Nossa Senhora Aparecida e a Fazenda São João do Guaporé, esta,
localizada dentro da referida comunidade.
17
Estudo instaurado pela Portaria nº 686/2003, publicada no D.O.U. em 16.07.2003.
18
O procedimento de demarcação de terras é composto pelas seguintes fases: fase de identificação e delimitação, fase de
demarcação física, fase da homologação e fase do registro das terras indígenas. Portanto, logo na primeira fase, identificação e
delimitação, o procedimento administrativo frustrou-se por não preencher o requisito da autoafirmação da etnia.

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no mesmo ano, em carta ao Ministério Público Federal, Antônio Leite relatou a ação de
expulsão de suas terras de ocupação tradicional, praticada por autoridades locais e fazendeiros,
bem como a prática de violência às famílias indígenas.
Os conflitos agrários perpetuados nas comunidades de Fazendinha, Acorizal, Vila
Nova Barbecho, Nossa Senhora Aparecida e Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs, entre
1970 a 2017, demonstram a vulnerabilidade que o povo indígena Chiquitano se encontra. São
anos de luta para terem suas terras tradicionais demarcadas, assolados pelos ideais do
capitalismo verde e silenciados pelas estruturas sociais e estatais.

2. CAPITALIMSO VERDE E INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS


EMANCIPADORES: EXISTEM ALTERNATIVAS?

Como o pensamento Latino-Americano entende a questão do desenvolvimento? A


temática do desenvolvimento tem sido uma constante no pensamento social latino-americano.
No século XIX, foi, em grande parte, influenciado pelo debate sobre civilização e barbárie. O
atraso no desenvolvimento econômico era explicado em razão de aspectos culturais e étnicos
da sociedade majoritariamente não europeia.
O progresso era, inclusive, uma das categorias fundamentais do pensamento das
classes médias latino-americanas, muito influenciadas pelo pensamento positivista, pois o
positivismo colocava como meta histórica da civilização o desenvolvimento da indústria,
tecnologia, ciência, cuja implantação seria o resultado da ação de uma classe industrial. Essa
era a noção de progresso da classe média, no entanto, embora seja o que tenha ocorrido na
segunda metade do século XIX, por outro lado não trouxe desenvolvimento próprio e
autônomo. (DOS SANTOS, 2015).
O problema central nos estudos direcionados à natureza das transições políticas
contemporâneas começa em definir onde começa a transição e onde termina. Especialmente
nos anos 80 do século passado, as análises das transições democráticas concentram-se na
liberalização das economias, sob a ótica neoliberal. Durante os anos 80 e 90 do século passado
e a primeira década do século atual, ocorreram fenômenos na América Latina que passaram
despercebidos pela literatura que dispunha acerca das transições. Isso porque, segundo
SANTOS (2010), se detinham à análise do início e término de uma transição, sua duração e
características totalizantes.

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Para os povos indígenas, a transição tem duração maior. Isso porque começa com a
resistência ao colonialismo e só termina com o reconhecimento da autodeterminação dos povos.
Para os movimentos afrodescendentes, a transição começa com a resistência à escravidão e o
aprofundamento do colonialismo e do capitalismo que só terá término quando findado o
colonialismo e a acumulação. Para os campesinos, a transição começa com as independências
e com a resistência perante o direito a suas terras de uso comum e as lutas perante a
concentração de terras em mãos da oligarquia. Portanto, esses movimentos demonstram que as
transições de transformação social não são curtas, somente podendo ser superadas quando da
reflexão do conceito de tempo que as permeia, pois a noção linear diz respeito a ditames da
modernidade ocidental. (SANTOS, 2010).
Portanto, a luta dos povos indígenas brasileiros encontra como obstáculo não apenas
as engrenagens do capitalismo que opera em uma sociedade atravessada pela colonialidade em
suas diversas dimensões. O racismo estrutural que está imbricado na dominação colonial
(QUIJANO, 2009) atravessa a existência das tantas etnias nacionais como mais uma forma de
manutenção do status quo que marginaliza e invisibiliza os povos originários.
É dentro desta estrutura racista que se articulam o racismo institucional e o racismo
ambiental. A nível institucional pode-se compreender que o racismo de apresenta como uma
“falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas
por causa de sua cor, cultura ou origem étnica” (GELEDÉS, 2013, p. 17), o que vem a legitimar
condutas excludentes que se dão pela insuficiência ou inadequação do tratamento conferido
institucionalmente aos indígenas.
O racismo institucional, portanto, faz parte de um “mecanismo estrutural que garante
a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados” (GELEDÉS, 2013, p. 17), operando
a nível das instituições públicas ou privadas que se configuram como engrenagens da hierarquia
racial o que, no caso em questão, se impõe na discriminação e marginalização do povo
Chiquitano.
No que se refere ao racismo ambiental, o povo Chiquitano também se apresenta como
uma parcela oprimida por um recorte sócio-espacial, já que, conforme compreende Bullard
(2005, p. 57) “o racismo é um potente fator de distribuição seletiva das pessoas no seu ambiente
físico; influencia o uso do solo, os padrões de habitação e o desenvolvimento de infra-
estrutura”. Dentro de um contexto capitalista no qual uma pequena parcela se desenvolve e

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obtém lucro através da exploração e invisibilização de outros grupos, o desvelar do racismo


ambiental se faz indispensável para uma luta que prese pela justiça social e ambiental.
Assim, o que pensar então, tratando-se dos movimentos indígenas, quando se almeja
uma transição em que o regresso ao passado ancestral, precolonial, se transforma na versão
mais capacitadora da vontade de futuro, um futuro não no sentido de ser inventado, mas
desproduzido? Como almejar demandas de utopia através da memória, de forma a sustenta-la
na realidade? Tais perguntas revelam as dificuldades da tradição crítica eurocêntrica em
entender o sentido dessas questões bem como a impossibilidade de dar-lhes respostas dentro
do marco epistemológico e ontológico ocidental.
A capacidade em ressignificar19 instrumentos ocidentais, de forma a atuarem à favor
da parcela populacional excluída, se dá por meio das lutas sociais. Nesse sentido, a refundação
do Estado deriva de um projeto de país consagrado na constituição. No caso do Equador e
Bolívia, foi consagrado o princípio do Bem-viver, resultando em direitos da natureza, entendida
segundo a cosmovisão andina da Pachamama (mãe Terra). Isso demonstra o forte aspecto da
plurinacionalidade e as lutas sociais por trás que resultaram na consolidação constitucional
desse projeto.
A plurinacionalidade implica no fim da homogeneidade institucional do Estado no
âmbito interno e externo. Exemplos de novas formulações institucionais na Bolívia:
Assembleia Legislativa Plurinacional; Tribunal Constitucional Plurinacional; Órgão Eleitoral
Plurinacional. No Equador: Corte Constitucional. Rompe-se com a noção ocidental de que
“todo Estado é de direito e todo direito advém do Estado” por meio do constitucionalismo
plurinacional que estabelece que a unidade do sistema jurídico não pressupõe sua
conformidade. A constituição do Equador define a organização do Estado como “Participação
e Organização do Poder”, estabelecendo a “participação na democracia como orientação
central. Na Bolívia, a constituição traz quatro órgãos: Legislativo, Executivo, Judicial e
Eleitoral.
Outro aspecto importante diz respeito à ressignificação da concepção de território
configurado pelo Estado-nação, de origem ocidental. Isso porque, o território nacional passa a
ser o marco geoespacial de unidade e integridade que organiza as relações entre diferentes

19
O sentido aqui utilizado com a palavra “ressignificar” está relacionado a uma atitude crítica do indivíduo em buscar alternativas
em “como não ser governado” (FOUCAULT, 2000) por princípios, em nome de princípios, em vista de objetivos, por meio de
procedimentos que demandam interesses capitalistas que atuam em detrimento de grupos sociais vulneráveis. Dessa forma, é
possível construir um pensamento e práxis críticos que atuam conjuntamente no sentido de suspeitar, recusar, limitar, medir,
transformar, escapar.

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territórios geopolíticos e geoculturais, segundo princípios constitucionais de unidade na


diversidade e da integridade com o reconhecimento de autonomias assimétricas. Isso resulta
em plurinacionalidades dentro de um mesmo país.

3. ESTADO PLURINACIONAL, DEMOCRACIA INTERCULTURAL E LUTAS


SOCIAIS

Todas as mudanças até agora mencionadas derivam da ideia de Estado plurinacional


e obrigam uma nova organização do Estado, no que se refere ao conjunto de instituições
políticas e administrativo-burocráticas de gestão pública e de planificação. Nessa trilha, a
plurinacionalidade é o reconhecimento de que a interculturalidade não resulta de um ato
voluntarista de arrependimento histórico. Trata-se de um resultado advindo de um ato político
deflagrado por grupos étnico-culturais distintos com um passado histórico de relações que,
apesar da inerente violência, abre na presente conjuntura uma janela de oportunidade para um
futuro diferente. Por essa razão, no marco da plurinacionalidade, a interculturalidade somente
se realiza como democracia intercultural20.
A plurinacionalidade é o reconhecimento de que a interculturalidade não resulta de
um ato voluntarista de arrependimento histórico. Trata-se de um resultado advindo de um ato
político deflagrado por grupos étnico-culturais distintos com um passado histórico de relações
que, apesar da inerente violência, abre na presente conjuntura uma janela de oportunidade para
um futuro diferente. Por essa razão, no marco da plurinacionalidade, a interculturalidade
somente se realiza como democracia intercultural.
A construção de uma democracia intercultural de refundação do Estado pressupõe
uma educação que: 1) legitime e valorize; 2) forme participantes para uma cultura de
convivência capaz de superar altos níveis de desconstruções e marcos; 3) prepare a classe
política convencional para a perca do controle do debate; 4) criação de um inconformismo e

20 Santos (2010) define democracia intercultural como conjunto das seguintes características: 1) a coexistência de diferentes
formas de deliberação democrática, do voto individual ao consenso, das eleições, de lutas por assumir cargos e suas
responsabilidades (a esse aspecto, Santos denomina de “demodiversidade”); 2) Diferentes critérios de representação democrática
(representação quantitativa, de origem moderna, eurocêntrica, ao lado da representação qualitativa, de origem ancestral,
indocêntrica); 3) reconhecimento de direitos coletivos dos povos, como condição do efetivo exercício dos direitos individuais
(cidadania cultural como condição de cidadania cívica); 4) reconhecimento dos novos direitos fundamentais (simultaneamente
individuais e coletivos): o direito à água, terra, alimentos, recursos naturais, biodiversidade, bosques, saberes tradicionais; 5) direito
à educação orientada a formas de sociabilidade e subjetividades baseadas na reciprocidade cultural: um membro de uma cultura
somente está disposto a conhecer a outro cultura se sente que sua própria é respaldada e isso se aplica tanto às culturas indígenas
como às não-indígenas.

271
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rebeldia; 5) que seja orientada para a criação de um novo sentido comum intercultural que
implica outras mentalidades e subjetividades.

CONCLUSÃO

O artigo não objetivou formular respostas aos empasses em que se encontram os


povos indígenas no contexto brasileiro, mas evidenciar a postura crítica necessária em como
pensar instrumentos constitucionais e sua importância enquanto ferramenta emancipadora.
Também foi abordada a postura cautelosa em não reproduzir discursos ocidentais a fim de não
potencializar relações desiguais de poder.
Partindo da realidade do povo indígena Chiquitano, o artigo demonstrou a
importância do exercício da crítica ao discurso tradicional inviável à efetivação de direitos aos
grupos sociais vulneráveis, à exemplo do direito à terra. Tratando-se de um bem de primordial
interesse do capital, a terra configura alvo de conflitos socioambientais.
Instrumentos constitucionais demonstram potencial para fortalecer lutas sociais, à
exemplo da Bolívia e do Equador que adquirem ideologias emancipadoras originárias dos
povos indígenas. Esse movimento emergente vai de encontro ao discurso racionalista técnico-
jurídico constantes na epistemologia de raiz ocidental.
Assim, mostra-se necessário viabilizar as lutas sociais e instrumentos emancipadores,
partindo de uma autocrítica e autovigilância epistemológica para compreensão dos interesses
por trás de cada demanda. Tais instrumentos não são algo dado ou conquistado, tratam-se de
ferramentas de luta para alcance de direitos que estão em constante movimento e reformulação.

REFERÊNCIAS

BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: Henri Acselrad, Selene Herculano e José
Augusto Pádua (orgs) Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.

DOS SANTOS, Theotonio. Teoria da Dependência: balanço e perspectivas. Florianópolis: Ed. Insular, 2015.

FOUCAULT, Michel. O que é a Critica? In: BIROLI, F., ALVAREZ, M.C. Michel Foucault: Historias e destino
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BEM VIVER E UBUNTU:
MUDANÇAS DE VALORES NA BUSCA PELO ECOSSOCIALISMO

LEMOS, Walter Gustavo da Silva


Doutorando em Direito pela UNESA/RJ. Professor da graduação do curso de Direito da FCR – Faculdade
Católica de Rondônia e da FARO – Faculdade de Rondônia.

RESUMO

O presente artigo objetiva proceder a abordagem sucinta de alguns problemas ambientais que servem de
pano de fundo para a demonstração de que estamos vivenciando uma crise no modo de produção
capitalista, que pauta sua atuação na produção de bens de consumo, gerando a riqueza e o lucro para
poucos em detrimento da promoção da justiça social e do uso predatório do meio ambiente, sendo
necessária a mudança de visão da produção para que se dê atenção a necessidade da sociedade,
preservando e usando de forma equilibrada a natureza. Na busca pela implementação do ecossocialismo,
é de suma importância a adoção de novos valores que possam garantir uma maior conexão do indivíduo
com sua comunidade e com a natureza, sendo que os valores que o Bem viver e Ubuntu acabam
promovendo, podem auxiliar na implementação de uma sociedade mais justa. Assim, o artigo promove
a análise destes conhecimentos utilizando-se do método de abordagem dedutivo, pelo uso do
procedimento monográfico e de uma pesquisa bibliográfica para, assim, conectar tais ideias e demonstrar
a importância de suas interações no processo de produção ecossocialista.

Palavras-chave. Ecossocialismo; Ubuntu; Bem viver.

ABSTRACT

The present article aims at succinct approaches to some environmental problems that serve as a
background for the demonstration that we are experiencing a crisis in the capitalist mode of production,
which guides its performance in the production of consumer products, generating wealth and profit for
the few at the expense of promoting social justice and the predatory use of the environment. It is
necessary to change the vision of production so that attention is taken to the need of society, but
preserving and using nature in a balanced way. In the search for the implementation of ecossocialism,
it is important to adopt new values that can guarantee a greater connection of the individual with his
community and with nature, and the values that the Well living and Ubuntu end up promoting can help
in the implementation of a society more just. Thus, the article promotes the analysis of this knowledge
using the method of deductive approach, using the monographic procedure and a bibliographical
research, to connect such ideas and demonstrate the importance of their interactions in the process of
ecossocialist production.

Keywords. Ecossocialism; Ubuntu; Well live.

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INTRODUÇÃO

Cada vez mais nosso planeta passa por intempéries, das mais distintas origens, que
causam intensos problemas a todos nós. Seja a intensificação da seca no nordeste brasileiro, na
África subsaariana ou na região entre o México e os EUA; ou na promoção de aumento dos
mares em alguns lugares do Pacífico; ou o aumento dos níveis de chuva em outros pontos do
território terrestre, como na Ásia ou na região sul do Brasil; o aumento do frio durante o inverno
em outros locais; ou o aquecimento dos mares de forma geral, entre outros problemas.
Ocorre que vivemos um período em que a natureza vem apresentando sinais de
respostas às ofensas que constantemente temos praticado contra o meio ambiente, o que vem
ocasionando estes problemas pontuais em alguns lugares do globo terrestre, em que sempre se
tenta relativizar a sua importância.
Porém, há de se perceber que é crescente a poluição que assola o mundo,
principalmente nas grandes cidades, mas que já é possível se sentir nas zonas rurais, ante o
grande impacto das suas consequências, o que deveria dar início à uma preocupação global
com a questão e seus reflexos no clima e na saúde do ser humano.
Não é possível se ver grandes ações governamentais no sentido de empreender a
defesa da natureza e o combate aos males que lhe são destinados, já que estes atos causariam
um impacto direto na ordem econômica e nos meios de produção que os Estados estão
empreendendo de forma geral.
É claro que não podemos deixar de recordar que a partir dos anos 70, iniciou-se um
período de criação de uma série de normas internacionais realizadas no intuito de demonstrar a
preocupação com o meio ambiente e a diminuição da poluição.
Assim, em 1971 a Unesco promoveu a primeira Conferência sobre o tema, chamada
de “O Homem e a Biosfera”, com o intuito de proceder a discussão sobre as mudanças
climáticas e a poluição do meio ambiente. Já em 1972, inicia-se uma Conferência das Nações
Unidas, em Estocolmo, na Suécia, para que fosse tratada a questão do meio ambiente. Durante
esta Conferência, várias foram as discussões que se tornaram basilares para o desenvolvimento
do direito ambiental internacional como vemos hoje, com a descrição do princípio do poluidor-
pagador.
Já em 1987, a Organização Mundial da Saúde divulgou o relatório intitulado “Nosso
futuro comum”, coordenado pela então ministra da Noruega Gro Brundtland, estabelecendo a

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necessidade de um ecossistema equilibrado para que a saúde dos habitantes do nosso planeta
não sofresse qualquer consequência.
Na ECO-92, é assinada a Convenção Quadro das Nações Unidas, sobre Mudanças
Climáticas, estabelecendo as condições de combate ao aquecimento global e, assim,
formulando princípios de políticas de internacionais coordenadas de mitigação de emissão de
gases de efeito estufa, baseado na responsabilidade dos Estados sobre tais ocorrências.
A partir daquele momento, grande parte da discussão internacional sobre o meio
ambiente tomou o rumo somente da discussão do aquecimento global, ficando outras pautas
menos prestigiadas, já que as soluções que foram se apresentando quase sempre tinham como
objetivo de promover a manutenção dos mesmos meios e modos de produção e de utilização
do meio ambiente. Assim, chegamos em 2017 e uma série de questões precisariam ser
amplamente discutidas, como gestão de água, matriz energética dos países, o comércio e a nossa
dependência do uso do petróleo, o uso de agrotóxicos em alguns países, o desmatamento, entre
outras questões que nos afligem, mas tais discussões não se dão, pois, para isso, seria necessário
discutir o próprio modo de produção capitalista como um todo e a necessidade de se
implementar medidas de modificação do uso dos recursos provenientes do meio ambiente.
Para a mudança destas realidades se faz necessária uma mudança de valores e do
modo de ver o meio ambiente por perspectivas que são apresentadas pelo ecossocialismo como
meio de modificar este modo de produção capitalista atual, baseado no produtivismo, onde as
pessoas são impulsionadas a consumir cada vez mais e de forma menos racional, gerando-se
necessidades de consumo que não é real.
Tal preocupação produtivista orienta os mecanismos de desenvolvimento para uma
lógica de crescimento individual pelo acesso e o consumo de bens, sendo que sistema não se
preocupa com o meio ambiente e os seus impactos na produção dos bens a serem consumidos,
o que acaba por gerar alguns dos problemas ambientais anteriormente descritos.
Assim, a resolução destes problemas ambientais passa diretamente pela necessidade
de mudança do meio de produção capitalista e dos valores que a sociedade que vivenciam tais
meios impõe, sendo necessário vivenciar um novo modo de viver com a modificação dos
valores de produção e de consumo, pautado em um novo tipo de realidade civilizatória, não
individualista, mas coletiva e preocupada com o meio ambiente, no qual essa se encontra
inserida. (Löwy, 2014)

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O ecossocialismo objetiva promover esta mudança de paradigma de modo de


produção não em uma perspectiva socialista como meio de produção, mas como a preocupação
de implementar um meio de produção que respeite o meio ambiente e a sua preservação. Este
pensar nos leva a necessidade de estabelecer novos valores e paradigmas para a sociedade,
sendo que as ideias de Bem viver, apresentadas pelo novo constitucionalismo latino-americano,
e do Ubuntu, filosofia africana de perspectiva comunitária, lançam-se no intuito de estabelecer
estas concepções voltadas a bem-estar social, pautado na atuação conjugada com a preservação
da natureza e da vida comunitária.
Assim, o presente artigo objetiva promover a análise destes institutos correlacionados,
na busca de estudar o ecossocialismo e as perspectivas das mudanças de valores que este pode
estabelecer, de forma a permitir uma melhor correlação do homem com a natureza, sendo que
se faz tal estudo por via do método de abordagem indutivo, se valendo do procedimento
monográfico e de uma pesquisa bibliográfica para examinar tais ideias e tentar demonstrar que
a prática do Ubuntu e do Bem viver podem gerar novos valores em certa sociedade, na busca
por um modo de produção mais equilibrado, socialmente responsável e sustentável no uso da
natureza.

1. OS PROBLEMAS AMBIENTAIS QUE VIVEMOS

A degradação ambiental que vivemos no cotidiano global atualmente, vem desde o


advento do surgimento das atividades agrícolas, tendo um grande avanço com o advento da
Revolução Industrial, atingindo o seu nível máximo de poluição e problemas ambientais no
atual estágio do modo de vida capitalista.
O surgimento da preocupação ambiental surgiu em paralelo a este panorama, sendo
pauta de discussões em todo o mundo sobre uma série de problemas vivenciados, porém, a
principal pauta ambiental levantada hoje é a do Aquecimento Global e das discussões mundiais
sobre as normas e tratados sobre tal tema.
Com o desenvolvimento de uma sociedade industrial e altamente voltada para o
consumo de energia e bens de consumo, patente foi a necessidade de se produzir mais e mais,
para atender a totalidade das exigências deste novo mercado. Conjuntamente com o atual
momento da economia mundial, faz-se surgir o seu outro lado: o aumento da poluição e da
concentração de gases nocivos à saúde na atmosfera, o que acabou gerando o chamado efeito

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estufa, entre outros problemas ambientais que vemos nos dias atuais. E, por efeito estufa,
entende-se a concentração de gases na atmosfera que impedem o reflexo dos raios solares,
causando a refração de tais raios de volta para a crosta terrestre e, assim, ocasionando mudanças
climáticas.
Segundo SISTER (2007), tal acontecimento decorre dos “gases que causam o efeito
estufa formando uma espécie de película entre a atmosfera e o espaço, impossibilitando a
reflexão da irradiação solar que provoca o aquecimento do globo terrestre (...)”. Tal efeito
decorre da concentração de vários gases, que se concentram na atmosfera, retendo calor e raios
solares, que retornam a atmosfera, realizando um novo aquecimento da superfície terrestre, por
via da emissão de radiação de ondas longas (infravermelhas) na atmosfera.
Este é um dos grandes problemas que hoje enfrentamos, sendo que também podemos
ver problemas de seca em alguns lugares do mundo, aumento do volume dos mares, aumento
dos níveis de chuva, o aumento do frio durante o inverno em outros locais, ou o aquecimento
dos mares de forma geral, fora os problemas das ofensas reiteradas a fauna e a flora.
Neste momento histórico, surge a necessidade de promover-se novas alternativas a
este uso exacerbado da natureza e dos recursos ambientais, posto que estas práticas têm
contribuído em muito para o agravamento dos problemas acima apresentados.
Boff versando sobre o tema, assevera que tais problemas derivam diretamente do
modo de produção capitalista e da forma de consumo que este estabelece, quando assevera que

Devastou e continua devastando inteiros ecossistemas, desflorestando grande parte


da área verde do mundo, envenenando os solos, poluindo as águas, contaminando o
ar, erodindo a biodiversidade na razão de cem mil espécies de seres vivos por ano,
segundo dados do eminente biólogo Ewdard O. Wilson, destruindo a base físico-
química que sustenta a vida e pondo em risco o futuro de nossa civilização,
suscitando a imagem tétrica de uma Terra depredada e coberta de cadáveres e
eventualmente sem nós, como espécie humana? (2015)

Ou seja, a forma que se promove o uso econômico do meio ambiente acaba por
proceder a sua devastação, já que não há um pensamento equilibrado e uso sustentável dos seus
recursos, mas um uso de acordo com as necessidades impostas pelo capital e pelo mercado, o
que faz a natureza ser cada vez mais explorada. Esta mesma ideia é descrita por Löwy (2014).
Para evitar tais problemas de destruição do meio ambiente e a escassez dos recursos
naturais, é necessária a implementação de uma nova visão econômica, que pense no uso da
natureza de forma equilibrada, na promoção do bem-estar social e na forma efetivamente
sustentável, de forma que seus recursos sejam utilizados para o que for realmente necessário.

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Isso passa efetivamente pela necessidade de normas de preservação e uso consciente


do meio ambiente, mas também da promoção de mudanças na forma de explorá-lo, já que não
é mais possível utilizá-lo a partir de um meio de produção predatório e produtivista, que se
pauta na geração de consumo a todo custo para a geração de riqueza, onde grande parte dos
recursos são retirados na natureza de forma não equilibrada e saudável.
Portanto, além de normas que impeçam a propagação destes problemas ambientais,
também se faz necessária a mudança do próprio meio de produção em que vivemos, já que a
continuidade da sua utilização acabará por promover o colapso da humanidade pelo
consumismo excessivo (BOFF, 2015).

2. O ECOSSOCIALISMO

Uma forma de pensar a mudança desta forma de exploração é a implementação de


práticas econômicas pensadas a partir do ecossocialismo, como meio de suplantar o meio de
produção capitalista e o seu meio produtivista de gerar demanda para vender consumo,
promovendo a mercantilização de tudo que possa existir, de forma a gerar lucro para aquele
que produz, não importando a que custo, humano ou ambiental, isso se dá. (SIQUEIRA, 2004)
Assim, o ecossocialismo se apresenta como uma forma de refletir de uma maneira
crítica os meios de produção, de forma a pensar uma convergência entre o pensar ecológico
com o pensar socialista e marxista, já que não é mais sustentável a manutenção da forma de
exploração da natureza do modo hoje vivenciado, sendo necessário um novo modo de
consumo, que permita ao Planeta a continuidade da vida para as próximas gerações.
Neste sentido, é que o ecossocialismo apresenta o caminho de uma revolução
ecológica. Ao definir o que é ecossocialismo, Löwy descreve que

Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que faz suas as


aquisições fundamentais do marxismo – ao mesmo tempo que o livra das suas
escórias produtivistas. Para os ecossocialistas a lógica do mercado e do lucro – assim
como a do autoritarismo burocrático de ferro e do “socialismo real” - são
incompatíveis com as exigências de preservação do meio ambiente natural. (2014, p.
44)

A partir de tal noção, podemos ver que o ecossocialismo encerra em si o pensamento


marxista com a discussão ecológica, sendo necessário suplantar o modo de produção capitalista
que acaba não só propagando a desigualdade entre os indivíduos e explorando os trabalhadores

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para a geração de riqueza, como também por proceder a utilização desregrada e nociva dos
recursos ambientais, para a produção dos bens de consumo. Montibeller Filho ao definir esta
ideia, descreve

Ecomarxismo é, em síntese, uma teorização e análise da relação contraditória


existente entre o capital e o ambiente natural, o que constitui a segunda contradição
básica do sistema. Tal inter-relação é assim denominada em razão da sua semelhança
com a relação que o capital tem com o trabalho, esta chamada de primeira
contradição e sobejamente conhecida e extensivamente analisada, sobretudo por
Marx. (2000, p. 108)

Este pensamento é, portanto, a conjugação das críticas marxistas ao capitalismo, mas


sem a manutenção do pensamento produtivista em um modo de produção socialista, já que se
acresce a necessidade de preservação do meio ambiente, de forma que este somente seja
utilizado de forma necessária e equilibrada.
Löwy descreve que o pensamento ecossocialista tem que como objetivo romper com
a ideia produtivista amplamente estabelecida no sistema capitalista, em que a produção é meio
para a geração da riqueza pelo consumo excessivo e a qualquer custo dos bens captados pela
exploração do meio ambiente, ao se manifestar que

Em ruptura com a ideologia produtivista do progresso – na sua forma capitalista e/ou


burocrática – e oposta à expansão ao infinito de um modo de produção e de consumo
destruidor da natureza, tal corrente representa uma tentativa original de articular as
ideias fundamentais do socialismo marxista com as aquisições da crítica ecológica.
(2014, p. 45)

O Manifesto Ecossocialista, no seu item 18, descreve a necessidade de mudança do


modo de desenvolvimento, já que não é possível desenvolver sem preservando os recursos
naturais, posto que o ecossocialismo é

A crítica ecossocialista da matriz produtivista-consumista dos atuais modelos de


desenvolvimento predatórios, embotantes e desumanos se dirige também à proposta
de “crescimento zero” ou do anticonsumismo monástico para o Terceiro Mundo.
Propomos, sim, um redirecionamento da produção-consumo que vise
prioritariamente a superação da miséria, tanto material como espiritual, e uma gestão
democrática dos recursos. Para os ecossocialistas, a produção não é um fim em si
mesma, mas um meio para a efetivação de uma sociedade igualitária baseada na
radicalização democrática (que combina democracia direta e representativa).

O Ecossocialismo tenta harmonizar as críticas do materialismo histórico e da ecologia,


a partir da crítica ao método de produção somada com a imposição do bem-estar ecológico

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coletivo, sendo que estabelece uma nova visão de práxis, a partir da necessidade de experiências
ecológicas comunitárias, coletivas e plurais que possam pensar o meio ambiente não como um
meio para explorar riquezas, mas como meio de convivência conjunta entre os seres.
Alexandre, ao abordar a questão em análise, descreve que tais práticas devem sair dos
limites individuais para outros limites, quando descreve que

Os ecosocialistas aceitam que existem tanto limites sociais quanto limites ecológicos
em torno do desafio do crescimento econômico. Reconhecem a necessidade do papel
das instituições democráticas de caráter descentralizado, que sejam essas instituições,
capazes de trabalhar idéias como as da auto-gestão democrática com a participação
do Estado exercendo o controle e a regulação dos interesses sociais, e a da
democratização no processo de produção de bens. Além disso, os ecosocialistas
defendem fortemente a promoção de novas atitudes no relacionamento laboral, como
divisão de tarefas e redução da jornada de trabalho que permitam trabalhos sem riscos
à saúde, mais conforto e horas de lazer. (2005, p. 173)

Portanto, se o sistema capitalista não é capaz de produzir riquezas de forma equânime


e preservar a natureza, o ecossocialismo propõe a realização de uma nova visão ao uso do meio
ambiente, com novas cosmovisões e valores que expressem a integração entre a coletividade e
o meio em que essa se relaciona, estabelecendo novas cadeias de produção e fontes de energia
renováveis e sustentáveis. (LÖWY, 2014)
Não é possível manter as formas de exploração da natureza promovidas pelo sistema
capitalista na transição para um meio de produção socialista, posto que acabaria por se substituir
os meios e não a forma de uso da natureza, já que somente por via práticas ecológicas
sustentáveis, equilibradas, comprometidas com a proteção do meio ambiente que será possível
garantir a fluência da vida em nosso Planeta, já que a manutenção dos mesmos meios de
exploração da natureza acabam por estabelecer a continuidade dos problemas ambientais
anteriormente descritos.
A atuação ecossocialista visa uma mudança de valores, de transformação social, onde
todos os indivíduos conjuntamente buscam a valoração da natureza e do trabalho, onde a
natureza deve ser vista um ambiente saudável e existente para o bem de todos, sendo que a
relação homem-meio ambiente deve ser harmoniosa e estabelecer a preocupação com a vida
do planeta.
Na Declaração Ecossocialista de Belém (2007) se diz claramente:

A humanidade enfrenta hoje uma escolha extrema: ecossocialismo ou barbárie…visa


parar e inverter o processo desastroso do aquecimento global em particular e do
ecocídio capitalista em geral, e construir uma alternativa prática e radical ao sistema

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capitalista. O Ecossocialismo situa-se em uma economia transformada, fundada nos


valores não monetários de justiça social e de equilíbrio ecológico.

A busca da aplicação do ecossocialismo representa a importância dos movimentos


sociais, a mudança de maneiras de se produzir e a visão que não dá para se reformar o que aí
está, sendo necessário mudar os valores que se inserem as sociedades e, assim, possibilitar que
as experiências de convivência solidária do Bem Viver e do Ubunto tragam concepções éticas
e sociais que possibilitem mudanças profundas na construção de uma sociedade comunitária,
solidária e ambientalmente engajada. Esta revolução passa pela tomada de consciência da
necessidade de se gerar riqueza, criar empregos, tecnologia, conhecimentos e solidariedade.
Assim, é possível ver a importância desta discussão, sendo que muito desta se passa
pela implementação de novos valores, sendo eles sociais, éticos, jurídicos, econômicos, entre
outros tipos de valorações que podemos vivenciar dentro desta experiência, sendo que o Bem
viver e o Ubuntu são importantes visões no sentido de proceder a mudança do meio de produção
capitalista para um modo de produção que se preocupe com a natureza.

3. BEM VIVER E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

Após a análise da questão pela discussão sobre o ecossocialismo, necessária é a


descrição do pensamento do Bem Viver, a partir de um pensamento comunitário pautado na
correlação do indivíduo com a sociedade em que se envolve, mas que não pode deixar de lado
os elementos naturais como meros bens sujeitos à apropriação, sendo necessária a existência de
um convívio simbiótico entre a sociedade e a natureza que se encontra ao seu redor. Tais direitos
inerentes ao Bem Viver importam na necessidade de garantir proteção à ancestralidade, ao
plurinacionalismo e direitos decorrentes da natureza, já este conceito importa na necessidade
de que a sociedade onde este se aplica deve conviver harmonicamente, compreendendo e
aceitando as suas diferenças.
As ideias de Bem Viver aparecem nas Constituições do Equador, de 2008, onde ficou
patente a utilização deste pensamento de sumak kawsay, e da Constituição boliviana, de 2009,
onde estas normas tratam da questão da relação estabelecida entre as suas sociedades e a
natureza, prezando pela atenção do bem-estar natural como meio equilibrado de
desenvolvimento, onde tais ideais buscam a implementação de um certo bem de vida, em que

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a população possa, nos termos do art. 14 da Constituição equatoriana de 2008, “viver em um


ambiente são e ecologicamente equilibrado, que garanta sustentabilidade e bem viver.”
Esta ideia se baseia na necessidade de que todos os seres possam viver
harmonicamente no meio ambiente, de forma a agir com sustentabilidade na exploração das
riquezas que a natureza nos oferece, bem como na atuação de um ideal de vida com qualidade,
equilíbrio e respeito à natureza, onde esta última passa a ser vista como um ser vivente, sendo,
então, considerada como detentora de direitos e deveres para com o restante dos seres.
Ao assim refletir, a natureza passa a ser vista não somente como uma coisa sujeita à
apropriação, mas como ente personalizado, devendo o desenvolvimento social pautar-se pela
sua adequação aos interesses gerais desta nova personalidade, que sempre buscará a
sustentabilidade como meio de progresso, garantindo a vida, o equilíbrio do meio ambiente, da
biodiversidade e dos seres que a habitam, como também parte da ancestralidade dos seres.
Seguindo com a leitura do teor do mesmo artigo anteriormente descrito da
Constituição equatoriana, há a declaração de ser “de interesse público a preservação do
ambiente, a conservação dos ecossistemas, a biodiversidade e a integridade do patrimônio
genético do país, a preservação do ano ambiental e a recuperação dos espaços naturais
prejudicados. “ (EQUADOR, 2008)
A natureza passa a ser vista não somente como coisa sujeita à apropriação, mas como
ente personalizado, devendo o desenvolvimento social pautar-se pela sua adequação aos
interesses gerais desta nova personalidade, que sempre buscará a sustentabilidade como meio
de progresso, garantindo a vida, o equilíbrio do meio ambiente e a biodiversidade. A ideia de
Bem Viver aglutina-se com a finalidade social do uso da natureza pelo povo que junto a esta se
integra, como uma necessidade de uma atuação conectada do ser humano com a natureza como
meio de progresso responsável e saudável, como um novo horizonte direcional.
A partir destas expressões, Zaffaroni (2012) descreve a ideia da Pachamama e o ser
humano, como uma interação do homem com esta natureza, a partir destes novos conceitos
constitucionais latino-americanos, onde aborda uma série de questões, inclusive a necessidade
de que o ser humano respeite os animais dentro desta atuação em Bem Viver. Dussel (2011)
também estabelece a descrição deste pensamento, não se pautando somente na conexão
natureza e sociedade, mas sobre uma perspectiva do homem latino-americano e a sua conexão
com a ancestralidade e os seus elementos culturais pautados no reconhecimento do ser e do
outro. Na mesma esteira, Boff (2000) descreve o seu ethos mundial como a necessidade de uma

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atuação conectada do ser humano com a natureza com meio de progresso responsável e
saudável.
Tal pensamento parte da busca de uma nova expressão do pensamento jurídico, um
pensamento do ‘Sul’, latino-americano, o que se relaciona diretamente com as ideias da
Epistemologia do Sul, descrita por Santos (2009), onde este descreve a necessidade do
desenvolvimento do Direito a partir de um marco latino-americano, livrando-se do pensamento
colonialista imposto pelo norte do globo terrestre, de forma a estabelecer um pensamento
descolonial.
Por tal pensamento, objetiva-se descolonizar os discursos produzidos nos mais vastos
campos do conhecimento, para que possamos trazer outras epistemologias para a conceituação
dos institutos jurídicos, principalmente trazendo ao protagonismo ideias de epistemologias do
Sul, a partir de conhecimentos descritos na realidade localizada no hemisfério sul e de suas
vivências próprias, a partir da análise do ser latino-americano, da sua ancestralidade e sua
pluriculturalidade.
A junção de tais conceitos com o direito, fica devidamente clara no art. 71 da
Constituição do Equador que descreve que “Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad
podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza.” (2008).
É patente que esta defesa não é uma questão do Estado, em representação do meio ambiente,
mas de qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade, a promoção da defesa da natureza com o
fito de fazer cumprir o que a norma garante.
Como um meio de atuação descolonial, a ideia de Bem Viver vê o ser humano como
um ser conectado com a natureza, com a sua ancestralidade e as nacionalidades ligadas a certa
sociedade, sendo que a conjunção destes fatores, num ambiente local integrado, deve se pautar
na harmonia e equilíbrio no uso do meio ambiente, buscando um desenvolvimento econômico
que não integre e preserve o seu entorno.
Abordando a questão do Bem Viver, Gudynas e Acosta acabam por promover não só
a descrição da ideia de bem viver, como também conectá-lo a necessidade de desenvolvimento
com sustentabilidade e responsabilidade social e ecológica, quando descreve ser esta “una
expresión de un conjunto de derechos, y que para asegurarlos es indispensable encarar cambios
sustanciales en las estrategias de desarrollo. (...) que tensiona el concepto de desarrollo con una
propuesta a ser construida, el buen vivir.” (2011, p. 75)

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O Bem Viver importa em aglutinar a sua finalidade social e sustentável para utilização
da natureza, já que há uma atuação conectada do ser humano com a natureza com meio de
progresso responsável e saudável, como um novo horizonte direcional para a sua promoção.
Os conceitos ora lançados objetivam a formação de uma concepção de justiça que assenhore à
dignidade do ser humano, a necessidade de respeito a natureza e a sua sustentabilidade, pela
imperatividade de que desta interação do homem com esta natureza se estabeleça uma vida em
conjunto, sendo que a partir destes novos conceitos constitucionais latino-americanos, inclusive
a necessidade de que o ser humano respeite a fauna e a flora nesta atuação em Bem Viver, a
natureza necessita de respeito e não pode ser usurpada pelo simples supérfluo e banal, mas
somente pode se apropriar desta por algo que importe em necessidade.
Mas a utilização do Bem Viver importa no ser humano se conectar diretamente com
a natureza, com a Pachamama, agindo socialmente integrado ao seu ambiente local,
conectando-se, a partir disso, na formação da sua concepção do que seja justo.
Se o Bem Viver nos traz a noção da natureza como sujeito de direitos, isso nos leva a
compreensão de que nada natural deva ser apropriado, desde que não seja para o equilíbrio do
próprio desenvolvimento sustentável deste sujeito e para a sua relação direta com as pessoas e
a sociedade ao seu entorno, já que a soma destes sujeitos formam um todo simbiótico que não
pode desenvolver senão de forma a sustentar equilibradamente a soma formada.
Sobre este tema, ARON ao falar sobre a importância do ideário de bem viver com
meio de contraposição ao individualismo da vida moderna, descreve que

Deste modo, o ser humano deixa de ser o centro do universo e passa a integrar a
natureza. A relação do indivíduo com a Pachamama passa a ser outra, a qual renuncia
o ideal eurocêntrico de desenvolvimento, provocando uma verdadeira transformação
no direito, indicando uma tendência ecocêntrica. Trata-se de uma epistemologia
própria, que reivindica a prática de novos conceitos, fundada na convivência
harmônica e interdependente do ser humano com a natureza. (2015)

Assim, o Bem Viver busca que o ser humano perceba que não é possível que “outros
seres humanos possam tratar seu semelhante com desprezo, bem como uma perspectiva
externa, na qual permite o Estado produzir uma série de ações que violam a igual dignidade,”
(SOUSA, 2013) o que também não permitiria que tal tipo de trato ocorresse em face dos
elementos naturais.

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4. UBUNTU

Um antigo pensamento ético africano, derivada das práticas dos povos zulu e xhosa,
onde se exprime a ideia de correlação entre o indivíduo e a comunidade ao qual este pertence,
sendo que Luz (2014) descreve como tal pensamento de “uma sociedade sustentada pelos
pilares do respeito e da solidariedade faz parte da essência de Ubuntu, filosofia africana que
trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras. “
O termo Ubuntu pode ser traduzida como “eu sou porque nós somos”, na
demonstração de uma consciência pessoal que é afetada quando seus semelhantes são
diminuídos, oprimidos, o que impõe a ideia de que o ser humano não é uma ilha, sendo essencial
da natureza humana agir com compaixão, partilha, respeito e empatia (LUZ, 2014).
A origem dessa práxis é descrita por alguns como associada à África Subsaariana e às
línguas bantos (grupo etnolinguístico localizado principalmente na África Subsaariana), como
a ideia de prática do respeito mútuo como conduta social básica, sendo esta máxima absorvida
pelos povos zulus no desenvolvimento de suas práticas religiosas e tradicionais.
Assim, o Ubuntu é um sistema de crenças africanas, que estabelece uma ética coletiva,
pelo desenvolvimento de um pensamento humanista espiritual que se pauta por atitudes de
altruísmo, fraternidade e colaboração entre os seres humanos, que devem se preocupar uns com
os outros.Nas práticas dos povos xhosa, há uma premissa popular que descreve “Umuntu
Ngumuntu Ngabantu”, que significa “uma pessoa é uma pessoa por causa das outras pessoas”,
que é uma ideia que se relaciona diretamente com a ideia da filosofia Ubuntu.
Para o Ubuntu, os membros de uma comunidade devem pensar na comunidade em
detrimento de suas vantagens pessoais, já que mais importante é o bem-estar do grupo, pois
para que “uma pessoa seja feliz será preciso que todas do grupo se sintam felizes. Estamos
conectados uns com os outros e essa relação estende-se aos ancestrais e aos que ainda nascerão.
“ (DOMINGUES, 2015)
Este pensamento objetiva dar a noção de integração entre os povos de certas
comunidades, de forma que se estabeleça a compreensão de unidade e humanidade. Shutte
discorre sobre isso ao dizer que

O conceito de UBUNTU tem se tornado para mim a chave para responder essas
questões. A palavra UBUNTU significa humanidade. O conceito de UBUNTU
encorpa um entendimento do que é ser humano e o que é necessário para que seres
humanos cresçam e encontrem satisfação. É um conceito ético e expressa uma visão
do que é valioso e do que vale a pena na vida. (2001, p.10-11)

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Assim, Ubuntu parte do respeito mútuo, de forma geral e irrestrita, estando


devidamente ligado ao sentimento de pertencimento da comunidade à sua terra e a sua
preservação. Gera-se com isso um pensamento filosófico africano moderno de expressão viva
de uma alternativa ecopolítica, partindo da vigilância ecológica, da dignidade humana e da
unidade como elementos agregadores destas noções de Ubuntu. (DOMINGUES, 2015)
O Ubuntu é um pensamento holístico de reconhecimento da interconectividade e
interdependência das relações humanas, a partir de diálogos inter-religiosos e tradicionais de
vários povos daquela região, que vão descrever o respeito entre os indivíduos como condição
para o desenvolvimento da comunidade, valorizando o consenso, mas também respeitando as
particularidades e a ancestralidade dos indivíduos.
O Ubuntu se presta a promover a formação de uma filosofia, uma prática ética,
humanista e humanitária, de respeito e valorização dos elementos tradicionais de religiosidade
comunitária, para o desenvolvimento de práticas públicas de fraternidade, comunhão e
reconciliação, que influenciam na religião, na política e nas condutas sociais.
Segundo o Arcebispo Desmond Tutu

Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras, não
se sente ameaçada quando outras pessoas são capazes e boas, com base em uma
autoconfiança que vem do conhecimento de que ele ou ela pertence a algo maior que
é diminuído quando outras pessoas são humilhadas ou diminuídas, quando são
torturadas ou oprimidas. (2000, p.21-22)

A partir desta ideia de abertura e disponibilidade das pessoas para com as outras se
forma uma compreensão de responsabilidade coletiva a influenciar os seus praticantes no
desenvolvimento das suas ações sociais. Shutte promovendo uma crítica a ampla utilização da
filosofia Ubuntu como meio de incluí-la e várias discussões centradas na África do Sul, mas
descreve a necessidade de que esta prática seja utilizada na compreensão da reconciliação e
construção de uma nova sociedade sul-africana.

A ética, como um ramo da filosofia, é sempre crítica. Então o que estou apresentando
é uma interpretação crítica de ambas as tradições, a africana e a europeia. Mas meu
objetivo final é mais criativo do que crítico. Eu quero criar e aplicar uma ética de
UBUNTU que seja baseada nas intuições universais genuínas dos pensamentos
europeu e africano e, assim, como as próprias intuições podem ser reconciliadas, será
possível reconciliar também os diferentes elementos de uma nova cultura sul-
africana. (2001, p.11)

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Assim, é bastante clara a importância da ideia Ubuntu para o processo pós-apartheid,


pela sua utilização nos procedimentos de busca da verdade e estabelecimento da reconciliação
e reparação dos atos de violência realizados por aqueles que promoveram a política racial
discriminatória naquele país.
No processo sul-africano se formou a Comissão da Verdade e Reconciliação, criada
pela Lei da Promoção da Unidade e Reconciliação Nacional de 1995, que objetivava o registro
dos casos de violações de Direitos humanos entre os anos de 1960 a 1994, para a promoção da
reconciliação e os demais atos necessários. A Comissão era dividida em Comitê de Violação
de Direitos Humanos, o Comitê de Anistia e o Comité de Reparações e Reabilitação.
(OLIVEIRA; CARMO, 2015)
Todos os comitês utilizaram o Ubuntu, importando na necessidade das comunidades
onde estes estavam realizando os seus trabalhos apresentarem suas reclamações, o que levava
com que os acusados pela comunidade se apresentassem e, então, seriam ouvidos e
descrevendo as suas razões das práticas realizadas, para só, então, poderem pedir perdão pelos
atos cometidos, onde, caso os ofendidos aceitassem, ocorreria a anistia para aquelas acusações
(ROSE; SSEKANDI, 2007). O pensamento sob o qual foi criada a Comissão era de uma Justiça
restaurativa e de conciliação (BATISTA; BOITEUX; HOLANDA, 2010).
Neste sentido, Pinto (2007, p.405) descreve a ideia de que o Ubuntu foi utilizado nos
procedimentos de Justiça de Transição na África do Sul, como a expressão da necessidade de
se aplicar aos trabalhos realizados a compreensão do perdão, da harmonia e solidariedade com
a implementação deste conceito, gerando um espírito coletivo de união e reconciliação entre
todos.
Isso é corroborado por outros pensadores, que avaliaram o caso da África do Sul, onde
foi descrita a nítida influência do Ubuntu no processo de reconciliação, por via da busca da
verdade, da concessão do perdão e na promoção da paz e do bem-estar social a todos, como é
descrito por Redonnet, como se vê

Na tradição do sul-africano, a reconciliação é expressa através do ubuntu, que é um


valor baseado na inquietação humanista e da partilha pela comunidade, o que
orientou a Comissão da Verdade e Reconciliação, que serviu como referência para o
objetivo nacional de reconstrução e reconciliação. J. Y. Mokgoro, juiz do Tribunal
Constitucional da África do Sul, mostrou também que este princípio filosófico
fundamental que é o ubuntu, marcou decisivamente a própria norma, já que a
Constituição de 1993 trouxe a inclusão do direito aborígene ao novo quadro
constitucional. Baseado na reconciliação, o ubuntu estava dentro do espírito buscado
nas leis. (2001, p.484)

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A aplicação do Ubuntu fica nítida, já que muitos pareciam buscar saídas para a
punição e aplicação de sanções, se para os grupos ofendidos houvesse a reconciliação, já que
tal prática transformava a sociedade sul-africana numa sociedade que buscava a unidade.
O pensamento de Shutte, bem demonstra que a função pensada pelo Ubuntu não se
afasta das aplicações institucionais, mas sim devem se aplicar a tais instituições como
representação dos elementos tradicionais da cultura sul-africana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo, procedemos uma abordagem de alguns problemas que vivenciamos
em relação ao meio ambiente, para embasar a ideia trazida de ecossocialismo, como meio de
produção equilibrado e coletivo na produção de bens que atendam a todos, mas que não se
baseia em uma atuação produtivista e sim pautada pela preservação e uso consciente dos
recursos naturais, já que o homem está inserido na natureza e não pode viver sem ela, sendo
necessária a mudança dos paradigmas do modo de produção que hoje se vivencia.
O que se vê no modo capitalista é o desenvolvimento de uma economia calçada no
individualismo, no fomento exacerbado ao consumo e na geração de lucro na produção de bens
de rápida obsolescência, o que gera uma produção constante e exploratória dos bens naturais.
Este modo de produção não é sustentável, já que usa o causando, a devastação do meio
ambiente, escassez de recurso e desaparecimento de espécie, promovendo um estado de crise
que nos leva a necessidade de mudança deste modo de produção para o ecossocialismo, pautado
na fusão do universo marxista e as questões ecológicas, onde a pauta da necessidade de
preservação que se associa a uma sociedade socialmente justa e ambientalmente equilibrada.
Assim, é necessária uma mudança de valores das sociedades que passam a aplicar o
ecossocialismo, sendo que o Bem viver e o Ubuntu são importantes visões no sentido de
proceder esta conversão de padrões para um modo de produção que se preocupe com a
natureza. O Bem viver e o Ubuntu são valores a se pensar uma sociedade que objetiva colocar
em primazia a coletividade e a sua conexão com o meio ambiente.
O Ubuntu, valor ético africano, que parte da integração do indivíduo com o seu povo,
em uma visão coletiva e não do próprio indivíduo e daquilo que se expressa no outro. Em
decorrência do espírito de união, fraternidade e humanitarismo que o Ubuntu carrega consigo,

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já que esta tradição holística importou na criação de um ambiente propício ao reconhecimento


da interconectividade e intersubjetividade entre os indivíduos.
Já o Bem viver, valor jurídico estabelecido no novo Constitucionalismo latino-
americano, prega o apreço pela vida comunitária, o respeito ao próximo e a Pachamama,
pautado em um forte sentimento de interdependência e reciprocidade entre os seres, pois
somente é possível vivenciar a plenitude da condição humana se devidamente conectada ao
meio ambiente em que estamos inseridos.
Assim, ambos valores estabelecem a formação de um discurso de mudança de
cosmovisão, para que o homem se integre à natureza e a coletividade ao seu entorno, fugindo
do caráter individual que impregna este discurso e enlaçando esta discussão em abordagens
comunitárias e inclusivistas, o que são pautas lançadas pelo ecossocialismo.

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291
Grupo de Trabalho 06

POLÍTICA, SUBJETIVIDADE
E VIDA COLETIVA:
RESISTÊNCIA E MOVIMENTOS
SOCIAIS

ccxcii
O DIREITO ACHADO NA RUA
COMO UMA PERSPECTIVA PARA A CONSTRUÇÃO
DE UM TRATADO VINCULANTE
SOBRE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

FERREIRA, Livia Fazolatto


Estudante de mestrado do Programa de Direito e Inovação da UFJF
ROLAND, Manoela Carneiro
Professora do Programa de mestrado em Direito e Inovação da UFJF
SENRA, Laura Monteiro
Estudante de mestrado do Programa de Direito e Inovação da UFJF

RESUMO

O presente artigo aborda a corrente de pensamento conhecida como “Direito Achado na Rua”, que tem
como ponto central a reflexão sobre a importância de se construir o direito para além das instituições
legalmente encarregadas de sua positivação, mas partir de uma formação plural e participativa da
sociedade. A partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema, o trabalho, de cunho exploratório, pretende
trazer essa temática para o âmbito da discussão sobre a formulação de um instrumento internacional
vinculante regulador da atuação de empresas transnacionais no tocante às violações de direitos humanos
que ocorrem em função do desempenho de suas atividades. Busca-se ressaltar a necessidade de que o
documento, que está sendo construído tanto na ONU, quanto a partir de mobilizações da sociedade civil,
seja pensado a partir de uma lógica crítica de direitos humanos, que coloca a sociedade como ator
principal no debate.

Palavras-chave. Direito Achado na Rua; Direitos Humanos e Empresas; Tratado vinculante sobre
Direitos Humanos e Empresas.

ABSTRACT

This article presents the line of thought known as “Law Found on the Street” that has as a bottom line
the reflection about the importance of building the law beyond the institutions legally in charge of its
positivation, however, from a plural and participative formation of the society. Out of a bibliographic
revision, this work, with an exploratory bias, aims to bring this subject for the discussion about the
formulation of an international binding instrument that regulates the activity of the transnational
corporations concerning human rights violations that occurs for its activities. It points that the document
which is building both in the UN and for the civil society, must be think from a critical perspective of
human rights that considers the society the central actor of the debate.

Keywords. The Law Found on the Street; Human Rights and Business; Binding-treaty on Human Rights
and Business.

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INTRODUÇÃO

O termo Direitos Humanos, entendido a partir de uma perspectiva crítica, é


considerado paradoxal, já que é encontrado em grande parte dos códigos, especialmente
ocidentais, trazendo consigo um grande simbolismo, porém, completamente destoante do que
ocorre na realidade.
O autor Costas Douzinas (2009) faz uma análise sobre esse caráter contraditório ao
mostrar que o termo combina a ideia de direito e moralidade. Sob o manto de lei, que possui
prescrições objetivas e abstratas, bem como depende do posicionamento ideológico dos
encarregados de sua elaboração, há a possibilidade de que os indivíduos busquem realizar seus
direito e, ao mesmo tempo, sofram limitações. Enquanto pretensões morais, por sua vez, pode
ser que determinado “direito” seja moralmente válido, mas não se encontre formalmente
contemplado no ordenamento jurídico. Desse modo, os direitos humanos, mesmo sendo
conferidos às pessoas por conta de sua humanidade, dependem de uma vontade política para
estarem dispostos no arcabouço legal e, muitas vezes, serem observados e respeitados.
Além disso, o autor ainda traz o argumento de que os direitos humanos são
considerados neutros e racionais, acima das políticas e prioridades estatais, acarretando em um
enfraquecimento do vínculo dos direitos com bens humanos relevantes. Segundo Douzinas:
“falar de direitos humanos tornou-se uma maneira fácil e simples de descrever complexas
situações históricas, sociais e políticas (...)” (2009), porém, faz-se fundamental entender que o
mesmo termo é usado de forma heterogênea, por diferentes atores, por vezes, até mesmo
antagônicos, e com diferentes propósitos.
Para o autor Boaventura de Sousa Santos (2013), quando se trata de direitos humanos,
é necessário entender que a hegemonia do termo como linguagem de dignidade humana
convive com a realidade perturbadora de que a maioria de população não é sujeito de direitos
humanos. Dessa forma, a busca por uma concepção contra-hegemônica, que é fundamental,
deve começar a partir da forma como eles são convencionalmente entendidos, ou seja, como
vinculados a uma matriz ocidental e liberal.
Para que essa concepção seja buscada, o autor considera necessário, além de um
trabalho teórico de construção alternativa dos direitos humanos, com o intuito de retirar do
termo a ambiguidade que garante um consenso, a ideia de construção a partir de um trabalho
dos movimentos e organizações sociais, no sentido de que haja uma representatividade

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qualitativa, em que diferentes frentes, nas quais se incluem as minorias, sejam ouvidas e
participem da construção do conceito.
O presente trabalho se estrutura em consonância com essas ideias, no sentido de
trabalhar, primeiramente, com o termo direitos humanos sob uma lente crítica, mostrando as
questões envolvidas por trás de sua utilização, bem como ressaltando a necessidade de se buscar
sua reconstrução e ressignificação, que se desprenda de um discurso vazio a serviço das esferas
dominantes de poder e assuma contornos práticos, libertários, democráticos e imbuídos de luta.
Para tratar dessa questão, foram trazidas as correntes de pensamento chamadas
“Direito Insurgente” e “Direito Achado na Rua”, sendo dado destaque à última, como
perspectivas de buscar uma construção do direito que tenha real compromisso com as
discussões que são travadas no seio da sociedade, de forma que a produção do direito seja em
conformidade com as manifestações populares e tenha um caráter verdadeiramente
democrático, plural, libertário e que abarque de forma concreta os direitos humanos, a partir do
respeito às particularidades dos sujeitos.
A partir disso, foi abordada a temática de direitos humanos e empresas, em que se
buscou fazer um breve histórico de como as discussões em torno desse tema tiveram início no
cenário mundial e passaram a ser tão relevantes no presente contexto capitalista, chegando ao
ponto de haver a necessidade de se produzir um instrumento internacional juridicamente
vinculante, que regule as práticas das transnacionais, com o intuito de coibir possíveis violações
aos direitos humanos.
A ideia central do trabalho reside em ressaltar a importância de construção do tratado
que efetivamente leve em conta e valorize as discussões sociais, conforme preceitua o “Direito
Achado na Rua”, mesmo que, nessa corrente, haja um enfoque na busca por uma alternativa de
produção do direito no âmbito do Estado. É possível, no entanto, transportar essa ideia para
esse contexto de produção do tratado sobre direitos humanos e empresas, em que há uma frente
de discussão correndo em paralelo à institucional, composta pela sociedade civil, centros
acadêmicos e demais atores engajados com o tema.
De cunho exploratório, o presente trabalho é fruto de uma revisão bibliográfica sobre
o tema de direitos humanos, encarado sob uma perspectiva crítica, com enfoque nas produções
acerca do “Direito Achado na Rua”, produzidas pelo centro de pesquisa com o mesmo nome,
da Universidade de Brasília. Além disso, abordagem da temática de direitos humanos e
empresas foi trazida a partir das discussões produzidas no âmbito do Homa – Centro de Direitos

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Humanos e Empresas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que trabalha com o tema de
direitos humanos e empresas a partir de uma perspectiva crítica e que abarque a participação de
diferentes atores na construção desse campo de conhecimento.

1. UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Uma abordagem interessante para compreender o termo Direitos Humanos é feita


pelos autores José Geraldo de Sousa Junior e Antonio Escrivão Filho (2016), no sentido de
separar a expressão e trabalhar com o sentido de cada uma das palavras de forma independente,
para que seja possível uma compreensão mais abrangente do termo.
Em relação à palavra Direito, os autores mostram que houve uma limitação, no
contexto do Estado Moderno, em seu significado, sendo considerado apenas uma “noção de
ciência das leis, composta de normas estatais dotadas de sanção e imperatividade” (SOUSA
JUNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016). Além disso, a partir da abordagem de Lyra Filho (1982),
pode-se observar que a concepção de Direito foi sintetizada basicamente nas ideologias de
jusnaturalismo e juspositivismo1, ou, diante de outra abordagem, o jurídico se resume à
dicotomia de sistemas do commom law e do civil law. De qualquer modo, essas formas
reducionistas levam em conta apenas a identificação do Direito como Lei, não reconhecendo
“como jurídicas as normatividades constituídas noutras dimensões do social, fora ou até contra
as disposições que daí emanam” (SOUSA JUNIOR; ESCRIVAO FILHO, 2016).
Já em relação ao termo Humano, percebe-se que não há um consenso, mesmo que, à
primeira vista pareça ser uma característica comum a todos. É importante observar, antes de
tudo, que a força cultural é um fator de destaque para o reducionismo do termo, já que, através
de crenças, sejam elas religiosas, políticas, científicas ou filosóficas, as respostas e concepções
de mundo diferem de indivíduo para indivíduo e de uma coletividade para outra, transmitindo
a ideia, para uns, de que o outro não se encaixa em sua concepção de Humano.
Dessa forma, seria mais plausível admitir a diversidade da conceituação do termo, já
que é temeroso tentar estabelecer um consenso para a sua definição que não termine por deixar

1
Em sua obra, “O que é direito?”, o autor Roberto Lyra Filho (1982) aborda a discussão sobre as diferenciações entre as duas das
principais ideologias presentes no campo do Direito, que são o jusnaturalismo e o positivismo. Ao trazer este último, o autor
mostra ser a sua essência a ordem estabelecida, no sentido de que as normas positivadas traduzem o alcance da justiça, sendo o
limite máximo desta, definindo padrões de conduta com a previsão de sanções individualizadas e seus meios de aplicação. Esse
ordenamento é fruto do monopólio estatal, que é povoado por classes e grupos dominantes, que produzem a estrutura da norma
com base em sua organização social e repelem todas as formas que com ela conflitam, não sendo consideradas válidas dentro do
ordenamento vigente. O Estado, nesse entendimento, seria a expressão da classe dominante.

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de lado características inerentes a determinado povo ou cultura, impondo, dessa forma, um


modelo que não abarque todas as inúmeras formas de sociedade e acabe por perpetuar um
padrão de exclusão, como é possível notar com a imposição do padrão ocidental de sociedade
aos demais povos do mundo.
Com essas colocações, percebe-se que não é tarefa fácil estabelecer um consenso
sobre o que seriam os Direitos Humanos, se eles deveriam ser considerados a partir de uma
concepção superior e abstrata cuja marca seria a universalidade, somente esperando que a razão
humana trate de entender como devam ser realizados. Por outro lado, se devem ser encarados
como algo inerente à natureza e à humanidade, tidos como completos e plenos, apenas à espera
de serem desvendados pelos sujeitos. Ou, ainda, serem os Direitos Humanos provenientes de
uma razão mística e superior, tido como uma essência divina inscrita no coração de cada ser
humano, revestida de caráter absoluto e universal (SOUSA JUNIOR; ESCRIVAO FILHO,
2016).
Além dessas concepções, é comum encontrar a compreensão do termo com base nas
disposições das normas de direito internacional, consubstanciados, por exemplo, na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948. Esse tipo de fundamentação, porém, não se mostra
adequado, na medida em que, apesar de documentos desse tipo traduzirem processos históricos
de combate a dominações e violações, há a questão da matriz civilizatória envolvida em seu
bojo, já que as nações tidas como civilizadas não levam em consideração a carga cultural dos
povos que não se encaixam nesse padrão, declarando seus direitos como universais.
Seja qual for a noção escolhida, importa verificar que essas concepções dos Direitos
Humanos os trazem como uma forma alheia à ação do homem, estando, portanto, fora de um
contexto social e histórico. Com essa descontextualização, os Direitos Humanos são utilizados
como estratégia em favor do sistema capitalista, se tornando ferramentas úteis a proporcionar
uma sensação de satisfação de direitos apenas com a mera positivação destes, gerando, dessa
forma, um efeito imobilizante e de ordem, que tem como consequência a redução da busca pela
justiça social (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016 apud LUÑO e RUBIO, 2014).
Com isso, aqueles Direitos Humanos que ainda não se encontram na esfera da
positivação e são excluídos por carência de força, especialmente econômica e política, ficam à
margem do ordenamento jurídico e, por isso, não são considerados direitos, tendo sido as lutas
para que emergissem, inclusive, criminalizadas e desqualificadas. Isso pode ser observado com
clareza na luta pelo reconhecimento dos povos indígenas, mulheres, população sem-terra, entre

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outros, negando todo o processo de surgimento e desenvolvimento destes. Nas palavras de


Sousa Júnior e Escrivão Filho:

Assim, o direito positivado assume a condição de fundamento enquanto os processos


de lutas sociais que produziram a positivação como resultado são retirados da
história. É dessa forma, portanto, que se constrói uma noção abstrata de Direitos
Humanos, identificando-os com princípios e normas jurídicas que, apesar de
previstas, não estão ao alcance de sujeitos coletivos de direito, ao passo que uma série
de direitos ainda não previstos, sequer podem ser reivindicados. (2016).

O prof. David Sánchez Rubio (2014) aborda o tema dos Direitos Humanos
ressaltando que os indivíduos concebem o termo de forma dissociada aos processos sócio-
históricos de constituição e de significação, na medida em que a busca por sua efetividade se
reveste nas políticas públicas ou nas decisões judiciais, deslegitimando outras formas de
implementação de um sistema de garantias. A isso se soma o entendimento reduzido sobre a
democracia, que é percebida como representação partidária e eleição, sendo essa herança de
despolitização na seara dos Direitos Humanos a causa de uma construção fragilizada do poder
popular, tendo em vista que, a partir da visão tecnicista imprimida ao referido termo, elimina-
se a dimensão combativa e libertadora típica de movimentos sociais que exercitam seu poder
de luta frente a contextos de dominação e exploração.
Assim, deve-se considerar que o sistema de garantia dos Direitos Humanos deve
assumir contornos concretos, não se confundindo com declarações e ideias, mas sendo
resultado de um processo de criação pela sociedade, em uma trajetória de emancipação humana.
As concepções contra-hegemônicas de Direitos Humanos surgem em contraposição a estas
teorias, pois afirmam o caráter histórico e cultural destes como processos de combate às
violações e luta pela efetivação de direitos não observados ou não previstos.

2. O DIREITO INSURGENTE E O DIREITO ACHADO NA RUA

O movimento chamado Direito Insurgente, conforme apresenta Baldéz (2010), diz


respeito às práticas insurgentes amplas contra o direito estatal por parte de alguns setores
organizados de oprimidos e de operadores do direito comprometidos diante das lutas sociais,
podendo ser entendido como manifestações e práticas jurídicas operadas no interior das
comunidades marginalizadas pelo direito positivado. Ele encontra força nas lutas concretas dos
trabalhadores frente à exploração de uma sociedade capitalista, podendo ser traduzido como o

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rompimento com o direito classista que é aplicado indistintamente, sem levar em conta qualquer
particularidade cultural, social, econômica e politica.
Esse movimento é fruto de uma mudança no contexto latino-americano na década de
60, que se encontrava em uma conjuntura política complexa caracterizada por um pensamento
além da matriz positivista, marcado pelo desenvolvimento de reflexões jurídicas críticas que
almejavam a reinserção do direito no campo político, tendo como base a crítica marxista e a
atitude militante.
O Direito Insurgente pode exercer grande influência no aparato estatal e vir a trazer
contornos permanentes, passando a fazer parte das ações legislativas, executivas e judiciárias.
Um exemplo de influência no âmbito legislativo foi o que ocorreu com a Constituição Federal
de 1988, que diante do panorama político e social da época, foi capaz de internalizar conquistas
dos movimentos sociais, como a previsão de importantes objetivos, como a erradicação da
pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades regionais e sociais, bem como os
direitos sociais à saúde, educação e função social da propriedade.
Imbuída dessa essência social, há, na carta constitucional, algumas previsões de
avanços desse fenômeno insurgente nos âmbitos do executivo, ao tratar da necessidade de
participação popular nas tomadas de decisão, e do judiciário, no tocante a atuação de seus
profissionais para além do estrito legalismo. Essa inserção é uma conquista que deve ser
festejada, pois configura um avanço no sentido de reconhecimento da necessidade de
observância desses temas de cunho social.
Deve-se ressaltar, porém, que os resultados positivos eventualmente tidos nesses
espaços não podem ser considerados vitórias finais, na medida em que, para que essas
conquistas sejam concretizadas, é fundamental a participação dos movimentos e trabalhadores
no âmbito institucional de discussões e de tomadas de decisões, evitando a dispersão, uma
tendência do Estado movido pelo capitalismo.
Essa forma de se pensar o direito está intimamente ligada a uma crítica
transformadora, concreta e coletiva, buscando desmistificar a ordem jurídico-burguesa posta e
estabelecendo condições reais de superação de conceitos tradicionais a partir de experiências
vivas, sendo, nessa seara, de fundamental importância o papel dos movimentos sociais. Dessa
forma, pode-se entender o Direito Insurgente, nas palavras de Baldéz (2010), como:

[...] ação e expressão jurídico políticas das lutas concretas da classe trabalhadora, ação
enquanto pressupõe movimento, e expressão em suas manifestações efetivas: ou na
resistência organizada à sentença injusta, ou nos conselhos populares, ou na

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elaboração interna das comunidades subalternizadas ou na sentença contra a lei


injusta, proferida pelo juiz democrata. Na verdade, sob qualquer tipificação, direito
contra a ordem burguesa. Insurgente, portanto.

Já o Direito Achado na Rua nasce a partir de uma lógica de necessidade de discussão


e formação de núcleos para a promoção de uma crítica ao pensamento jurídico com vocação
política e teórica, no contexto latino-americano. Sua formulação se inicia com estudos
desenvolvidos na década de 60 na Universidade de Brasília2, tendo como expoente o professor
Roberto Lyra Filho, no contexto da Nova Escola Jurídica Brasileira, que propunha a reflexão e
compreensão sobre a atuação jurídica de novos movimentos sociais a partir da análise de
experiências populares de criação do direito3. Essa forma de trabalho demandava uma abertura
para o diálogo entre os acadêmicos, os movimentos sociais e suas acessorias jurídicas, exigindo
elementos, como a interdisciplinaridade e interinstitucionalidade para uma compreensão mais
ampla da questão.
Com isso, o Direito Achado na Rua pode ser compreendido, nas palavras de Escrivão
Filho e Sousa Junior (2016), como; “um projeto constituído desde uma múltipla perspectiva
epistemológica, orgânica e prática, emergido assim, [...], como fruto e enunciação de uma nova
práxis para o Direito”. Dessa forma, ele é tratado como um Direito que surge transformador
dos espaços públicos, onde há a reinvenção da sociabilidade que possibilita a abertura para a
consciência de novos indivíduos para uma cultura de participação democrática e de cidadania.
Dentro desse contexto, Lyra Filho (1982) trouxe a análise do distanciamento do
direito com a realidade social, argumentando que essa lógica somente seria superada se a matriz
histórica fosse uma baliza científica para que a sociologia pudesse influenciar na definição da
práxis jurídica. É nesse sentido que o Direito Achado na Rua tem seu campo de atuação, na
medida em que busca observar o direito vigente com base nas relações de opressão e dominação

2 O Direito Achado na Rua foi apresentado, primeiramente, em uma publicação em 1987, e como curso de ensino à distância,
administrado pelo Centro de Educação a Distância (CEAD) e pelo Núcleo de Estudo para Paz (NEP), sob a coordenação do Prof.
José Geraldo de Sousa Junior. Além disso, consolidou-se como linha de pesquisa, certificada pela Plataforma Lattes de Grupos
de Pesquisa do CNPq e nos programas de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado em Direito (Faculdade de Direito da UnB) e
Direitos Humanos e Cidadania – Mestrado (CEAM – Centros de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB) e como
disciplinas da Graduação e Pós-Graduação em Direito (Faculdade de Direito da UnB), apresentando vasta bibliografia que
contribui para a formação de coletivos com a mesma denominação em várias universidades e centros de pesquisa no Brasil.
3
Dentre os objetivos, segundo Sousa Junior (2008), se destacam: 1) a determinação do espaço político em que as práticas sociais
que anunciam direitos, mesmo que os “contra legem”, se inserem; 2) desvendar a natureza jurídica do sujeito coletivo, que é apto
a auxiliar na busca de um projeto político de transformação social, além de elaborar a sua representação teórica como sujeito
coletivo de direito; 3) inserir os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e, além disso, estabelecer categorias
jurídicas inovadoras.

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que o formam e reflete sobre a possibilidade de ser ele mais digno e libertário, buscando
inspiração na interação com a sociedade organizada.
Para o referido autor (1982), a identificação entre a lei e o direito faz parte do
repertório ideológico do Estado, que almeja, diante de sua posição superior, mostrar que o poder
é satisfatório para atender o povo e que as contradições legais cessaram. Porém, ele traz o
pensamento do líder marxista Gramsci de que, através de uma visão dialética, é possível alargar
o foco do direito, abrangendo as pressões coletivas que emergem na sociedade civil. A partir
disso, ressalta que o autêntico direito global “não pode ser isolado em campos de concentração
legislativa”; se ele é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação ilegítima, por força
desta mesma suposta identidade.
A existência de várias fontes do direito, além da oficial do Estado, tendem a ser
reprimidas por práticas conservadoras, que acreditam ser o monismo jurídico o mais adequado
por ser uma mudança operada pelo Estado e pela lei. Percebe-se, dessa forma, que o termo em
tela conversa com o fenômeno do pluralismo jurídico, em que há o reconhecimento de
normatividades para além das tradicionalmente produzidas pelo Estado, estando a palavra “rua”
inserida nele com o intuito de designar os espaços de criação e realização dessa outra forma de
produção do direito.
No cenário internacional é possível notar dinâmica semelhante, como observa
Roberto Aguiar (2014), quando traz uma reflexão interessante sobre a dimensão da
internacionalização do direito, no sentido de as normas geradoras de dominação tenderem a se
uniformizar em escala mundial, passando os direitos a serem semelhantes na grande parte dos
Estados, mesmo que os Direitos Humanos sejam reconhecidos pela maioria destes. E essa ideia
é ilustrada quando empresas multinacionais instalam suas filiais em países em desenvolvimento
com o intuito de promover a exploração, sendo que para que isso ocorra, as normas que
instituem a dominação são travestidas de tratados, convenções e pactos, cujo conteúdo se traduz
em normas contrárias aos Direitos Humanos, mas necessárias, na medida em que garantem a
dominação das nações mais pobres, que, por sua vez, são dependentes dessa relação, pois tem
como fonte de riquezas a exportação de matéria-prima em seus territórios.
A partir disso, trazendo a questão para a seara dos Direitos Humanos, é importante
notar que para que eles deem frutos é necessário que eles provenham de um contexto de
contradições, de modo que eles cresçam diante de lutas sociais, concessões e conquistas. Eles

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nunca encontrarão a devida eficácia quando outorgados em textos normativos, mas quando
estes forem resultado de conquistas sociais (AGUIAR, 2014).
As normas jurídicas não podem servir para fortalecer os instrumentos de controle e
repressão do poder, restringindo os direitos daqueles que são destinatários delas por uma
minoria, senão estaremos diante de um ordenamento que não serve ao bem da maioria, sendo
legal, porém não legitimo. Diante disso, pode-se perceber que a justiça não é neutra, está sempre
comprometida, expressão de interesse de determinado grupo. O Direito Achado na Rua, dessa
forma, tem um papel importante, na medida em que reflete sobre essa fundamental participação
dos atores sociais para a conformação do direito, que deve ser entendido para além do exercício
estatal, podendo, desse modo, ser de fato aplicado e justo para os nichos marginalizados.

3. DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

3.1. Um breve histórico

A ocorrência de violações de direitos humanos por empresas, embora sempre presente


na sociedade orientada pela lógica capitalista, passou a ser um assunto que ganhou holofotes
em diversos âmbitos, como na ONU e nos movimentos sociais, a partir da década de 70. Isso
se deu principalmente a partir da ocorrência de alguns casos de violações, em que se percebeu
como as corporações, especialmente as transnacionais, exerciam um papel relevante em
escândalos de corrupção, influenciavam governos e, até mesmo, geravam efeitos sobre a
democracia dos Estados em que atuavam.
A partir da percepção de que, diante desse cenário de graves violações e impunidade,
haveria a necessidade de que as empresas passassem a ser responsabilizadas pelos danos por
elas perpetradas, logo, algumas iniciativas em torno dessa temática foram ocorrendo no âmbito
das Nações Unidas. Entre elas, destaca-se o Pacto Global, proposto pelo secretário-geral Kofi
Annan, no ano de 1999, que trouxe um conjunto de princípios voluntários sobre boas práticas
corporativas no âmbito internacional, tendo tido uma ampla aceitação pelas corporações e
stakeholders4. Essa iniciativa incorporava em sua essência a polêmica ideia de responsabilidade

4 Stakeholder significa ”público estratégico” e diz respeito à uma pessoa ou grupo que possui alguma relação de interesse com
uma empresa, negócio ou indústria, podendo ou não ter realizado investimentos neles. Alguns exemplos de stakeholder podem
ser: seus funcionários, gestores, gerentes, proprietários, fornecedores, concorrentes, ONGs, clientes, o Estado, credores, sindicatos
e diversas outras pessoas ou empresas que estejam relacionadas com uma determinada ação ou projeto.

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social corporativa, por ter o documento um caráter eminentemente voluntarista, em que as


corporações tem a poder de escolha de serem ou não signatárias, bem como por dar abertura
para que as empresas utilizem essa forma de vinculação como propaganda de boas práticas,
enquanto continuam com sua operação nociva aos direitos humanos e ao meio ambiente
(BERRÓN, 2016).
Vindo ao encontro dessa tendência voluntarista do Pacto, foram criadas, em 2003, as
“Normas sobre Responsabilidade de Corporações Transnacionais e Outras Empresas de
Negócios em Relação a Direitos Humanos”, ainda no contexto da ONU, no âmbito da
Comissão de Direitos Humanos, significando um avanço muito importante no tocante à
necessidade de impor obrigações aos Estados signatários. Porém, a ideia foi rechaçada pelos
países do Norte global por serem, em sua maioria, sede das matrizes das corporações. O
objetivo dessas normas nunca foi alcançado, mas elas serviram para levantar o debate sobre a
importância de haver um instrumento vinculante que gere obrigações para as empresas em
matéria de direitos humanos.
Outro capítulo relevante dessa temática foi a participação do professor John Ruggie,
que criou o “UN Protect, Respect and Remedy Framework”, uma importante contribuição para
o debate, que teve como base a elaboração de consultas nos mais diversos lugares ao redor do
mundo, tanto a membros da sociedade civil como as próprias empresas. Esse formato, que ainda
privilegiava a perspectiva de protagonismo do Estado enquanto principal responsável pela
proteção dos direitos humanos desembocou, em 2011, nos Princípios Orientadores sobre
Empresas e Direitos Humanos, que foi adotado por consenso no contexto do Conselho de
Direitos Humanos da ONU, seguindo no entanto, a lógica que se coaduna ao voluntarismo das
empresas no tocante à proteção de direitos humanos durante o desempenho de suas atividades.
Além disso, foi criado, ainda, um Grupo de Trabalho de Direitos Humanos e Empresas, que
teria o objetivo de orientar os Estados a desenvolverem sua política nacional de proteção de
direitos humanos em face das corporações, consubstanciadas nos chamados Planos Nacionais
de Ação, que incorporariam no âmbito interno os princípios aprovados no contexto das Nações
Unidas.
Percebe-se que a iniciativa dos princípios orientadores de Ruggie, que culminou na
perspectiva dos Planos Nacionais de Ação, embora considerada válida, no sentido de ser mais
um mecanismo que possa vir a contribuir para o enfrentamento da temática, não pode ser visto
como a ferramenta principal para lidar com o tema, em razão da roupagem que recebeu, em

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que não há um tensionamento com a para a mudança das práticas hegemônicas da relação entre
empresas e direitos humanos. Seria necessário, dessa forma, um instrumento que pudesse ser
usado em um processo complementar aos planos, mas, que atuassem nos temas que fugissem
da zona de competência desses, especialmente em relação aos aspectos internacionais ligados
ao tema. Logo, entra em cena a possibilidade de um tratado, criado no âmbito da ONU, que
tratasse também desse objeto.

3.2. Iniciativas de construção do tratado vinculante de direitos humanos e empresas

Como consequência do processo capitaneado pelo professor Ruggie, no âmbito da


ONU, houve reações da sociedade civil e da academia, em razão da lógica de “pragmatismo de
princípios” que dava o tom dos debates em torno dos Princípios Orientadores (BÉRRON,
2016). Desse modo, esses setores persistiram em buscar um instrumento que trouxesse de modo
mais contundente a ideia de responsabilização das empresas pelas violações de direitos
humanos no desempenho de suas atividades e que impusesse obrigações vinculantes em relação
às suas práticas.
Assim, no contexto de renovação do mandato do Grupo de Trabalho sobre os
Princípios Reitores, houve uma união de Estados, especialmente os do Sul Global, juntamente
com setores da sociedade civil, em torno de uma campanha pela criação de um tratado
vinculante, ficando conhecida como Aliança pelo Tratado. A proposta era a criação de um
grupo de trabalho intergovernamental que seria responsável por negociar entre os Estados a
criação de um instrumento obrigatório no âmbito internacional que trataria do tema de direitos
humanos e empresas.
Houve a proposição de uma resolução autônoma, em junho de 2014, no Conselho de
Direitos Humanos da ONU para a criação de um grupo de trabalho que se encarregaria das
discussões sobre o tratado de direitos humanos e empresas, sendo aprovada sob o título de
“Elaboração de um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre empresas
transnacionais e outra empresas com respeito aos direitos humanos”.
A partir daí, o instrumento passou a ser pensado, tanto no contexto da ONU, quanto
no âmbito das discussões da sociedade civil e academia, que buscaram propor temáticas para a
construção de um instrumento que verdadeiramente refletisse a busca por mecanismos de
coibição de práticas que possam vir a violar direitos humanos, bem como mecanismos de
reparação devidos as vítimas de casos de violações já ocorridas. Entre esses temas, estão: a

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necessidade de se responsabilizar a empresa, enquanto pessoa jurídica, pelas violações a


direitos humanos, afastando a lógica estadocêntrica que permeia esse contexto; a necessidade
de deixar clara qual vai ser o alcance de atuação do tradado, se haveria a responsabilização
somente das transnacionais ou de todas as empresas; e a questão da separação entre a
responsabilidade da pessoa jurídica e dos sócios controladores da empresa. Há, além dessas,
outras questões que tangenciam a discussões, como as discussões sobre gênero e meio
ambiente, que são temas cotados para fazer parte do instrumento.
Essas discussões eleitas para serem abarcadas no contexto do tratado vinculante são
primordiais para que o instrumento atinja seu verdadeiro objetivo, no entanto, a forma como
ele deve ser construído deve ser o foco principal da discussão, uma vez que ele deve ser produto
de uma formulação que abarque diversas frente e atores, incluindo especialmente as vítimas de
violações de direitos humanos que têm muito a contribuir para o debate sobre a questão. É nesse
aspecto que a ideia do “Direito Achado na Rua” se insere, no sentido de se promover uma
discussão do direito “de baixo para cima”, ou seja, de uma ferramenta jurídica realmente
comprometida com as lutas sociais e contenha em seu bojo de forma efetiva as construções do
que mais se beneficiarão dela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho buscou realizar uma abordagem sob uma perspectiva eminentemente


crítica acerca do conceito de direitos humanos, ressaltando as incoerências do entendimento
baseado em uma lógica ocidental e de matriz liberal. A partir disso, buscou levantar a questão
da necessidade de redefinição de sentido do termo, com vistas a torná-lo mais próximo ao que
ele propõe essencialmente, qual seja, garantir direitos aos seres humanos de forma efetiva, sem
condicionamentos e limitações e, para isso, faz-se necessária uma construção em que a maior
representatividade possa ser possível.
Com o intuito de buscar um formato que contemplasse essas ideias, foi trazida,
principalmente, a corrente a corrente de pensamento do “Direito Achado na Rua”, que busca
estudar, reunir e sistematizar iniciativas que possibilitem a construção de um aparato jurídico
que contenha efetivamente o compromisso com as discussões sociais, especialmente o que é
formado no âmbito de movimentos e frente de ação, de modo a permitir que o direito tenha um

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caráter verdadeiramente democrático, plural, libertário e que abarque de forma concreta os


direitos humanos.
Essa ideia foi trazida para a discussão de direitos humanos e empresas, com o traçado
de um contexto de evolução do tema, culminando na construção de um tratado juridicamente
vinculante, que regule as práticas das corporações frente às violações aos direitos humanos.
Com isso, o objetivo do estudo foi tentar mostrar, através da proposta pregada pelo
“Direito Achado na Rua”, a necessidade de se construir um tratado que efetivamente seja
baseado nas discussões e manifestações sociais, ainda que filtradas e sintetizadas por
movimentos ligados de forma mais aproximada ao tema, como ONGs e membros da sociedade
civil e academia. É fundamental que os que verdadeiramente sofrem com as violações
perpetradas pelas empresas, bem como os entes engajados com essa temática que realmente
almejam uma discussão mais aprofundada sobre ela, sejam atores protagonistas dessa
produção, que extrapola os limites estatais, pois, somente dessa forma, é possível se falar em
direitos humanos construídos por todos e para todos.

REFERÊNCIAS

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- Revista discente do curso de pós-graduação em direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
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julho-agosto de 2016, p. 147-158.

DOUZINAS, Costas. Que são direitos humanos? In: Projeto Revoluções. 2009.

LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. Coleção primeiros passos. Brasília: Ed. Brasiliense, 1982 e 1984.

MELUCCI, Alberto. Um objetivo para os movimentos sociais? São Paulo: Lua Nova: Revista de Cultura e Política,
1989, nº 17. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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MEYERSFELD, Bonita. A Binding Instrument On Business and Human Rights: Some Thoughts for an Effective
Next Step in International Law, Business and Human Rights. In: Homa Publica: Revista Internacional de Direitos
Humanos e Empresas, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 19 – 39, Novembro 2016. ISSN 2526-0774.

RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente na assessoria jurídica de movimentos populares no Brasil (1960-2010).
2015. 208f. Tese de conclusão do programa de pós-graduação (Doutorado) – Faculdade de Direito da
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www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br. Acesso em 17/11/2016.

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SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo:
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SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Experiências populares
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– Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

_______; ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Para um Debate Teórico-conceitual e Político sobre os Direitos
Humanos. Belo Horizonte: D`Plácido Editora, 2016.

_______ (coord.); O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015.

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RAFAEL BRAGA VIEIRA
E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
NO CONTEXTO BIOPOLÍTICO

IGNATOWSKI, Thiago Salles


Aluno de Mestrado do PPGSD/UFF
LOPES, Gilberto Santiago
Graduado em Direito pela UNISUAM
PINTO, Anna Carolina Cunha
Aluna de Mestrado do PPGSD/UFF

RESUMO

A história do sequestro dos negros e negras africanos deixou marcas que ainda hoje têm repercussões
perversas em nossa sociedade. O lugar social dado a esses indivíduos sempre foi uma posição subalterna
em que a fruição de direitos mínimos é obstaculizada pelo arranjo socioeconômico e pelo funcionamento
institucional que contribuem para sua permanente segregação. As altas taxas de violência e
encarceramento que vitimam o jovem negro no Brasil demonstram a inserção desses indivíduos em um
âmbito de exceçãoque os torna matáveis, sujeitos à violência de todo gênero. Nesse contexto, tornou-se
emblemático o caso de Rafael Braga Vieira, preso nas manifestações de 2013 no Rio de Janeiro e, depois,
em 2016, vítima de dois flagrantes forjados que o mantém encarcerado até hoje. O homo sacer de Giorgio
Agamben é figura que permite analisar,pelo prisma biopolítico, esse panorama do qual Rafael é um claro
exemplo.

Palavras chave. Rafael Braga Vieira. Biopolítica. Estado de Exceção. Homo sacer. Criminalização da
pobreza.

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INTRODUÇÃO

A expansão do neoliberalismo tem reflexos que vão muito além da dimensão


estritamente econômica. Ao seu desenvolvimento correspondem câmbios institucionais e
discursivos profundamente influenciadores das dinâmicas sociais. No bojo de tais repercussões,
encontra-se a seletividade penal,modo de operar observado na atuação das agências
criminalizadoras (BATISTA; ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR; 2003, p. 46), que serve à
administração das parcelas estruturalmente excluídas da sociedade.
Ao mesmo tempo em que se observa a retração de uma postura provedora dos
Estados,há uma expressiva valorização do sistema de justiça criminal, frequentemente tido
como solução para a insegurança vivenciada pelos indivíduos. Uma atmosfera de
ameaçafabricada e exploradamidiaticamente, apresenta como supostosinimigosos integrantes
das”classes perigosas”(WACQUANT,2007, p. 29), que, no Brasil, correspondem, em grande
medida, ao jovem negro periférico, a quem se dirige a desconfiança e a predileção enquanto
sujeito passivo da repressão estatal. Nota-se claramente um processo de “demonização”, no
qual a população excluída passa a ser também vista como degenerada, sobrepondo à imagem
do excluído a imagem do inimigo, merecedor de uma tutela violenta(WACQUANT, 2007, p.
43).Constrói-se a imagem de indivíduosperigosos,indignos ematáveis. O resultado é o
encarceramento massivo e o morticínio violento de jovens negros (INFOPEN, 2014, p. 36)
(MAPA DA VIOLÊNCIA, 2016, p. 54).
Nesse contexto, tornou-se emblemático o ‘caso Rafael Braga’, exemplo claro do
racismo institucional e da seletividade penal, intimamente relacionados à matabilidade desses
indivíduos, identificados com o que Giorgio Agamben chamou homo sacer (2014).
O presente trabalho pretende apresentar e discutir a trajetória de Rafael Braga Vieira
à luz da concepção biopolítica de Giorgio Agamben, destacando a atmosfera de exceção que
se tornou o paradigma da política atual, sobretudo no tratamento dispensado aos socialmente
desclassificados, submetidos à segregação e à eliminação sistemática.

1. A HISTÓRIA COMO ELEMENTO DE COMPREENSÃO DO CASO RAFAEL


BRAGA E DA LATENTE CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

Para entender o presente, em muitos momentos, precisamos resgatar a nossa história


na busca por compreender as raízes de algumas questões que a atravessam. Não poderia ser

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diferente ao se tratar da criminalização da pobreza que atinge prioritariamente os negros


noBrasil.O país foi o que mais recebeu indivíduos trazidos compulsoriamente da África para
terem sua mão-de-obra explorada, o que até o ano de 1888 aconteceu sob o manto da legalidade.
Desde a chegada dos primeiros africanos ao país, foram empreendidas, de variadas
formas, iniciativas com fito de desumanizar e marcar a diferença entre as vidas dos brancos e
dos negros, que sequer eram considerados humanos no período colonial. Tratados como
animais, esses indivíduos, que com seu trabalho sustentavam o padrão nababesco de vida de
seus senhores e toda a estrutura do Brasil Colônia, sequer tinham garantida alimentação
adequada. Autores como Ademar Vidal (1940), relatam que a pouca comida dada aos escravos,
cuja jornada de trabalho chegavaa 16 (dezesseis) horas em algumas fazendas, era comumente
jogada ao chão, o que resultava em disputapelo alimento, que se misturava à sujeira do chão.
A proximidade da África e a consequente facilidade para obter a mão-de-obra de
homens e mulheres sequestrados influía diretamente no tratamento que lhes era dispensado.
Esse consumo facilitado do trabalho negro contribuiu para a compreensão por parte dos grandes
proprietários da Colônia de que era vantajoso explorar essas pessoas ao máximo, no período de
sua vida útil -o que durava aproximadamente de 7 (sete) a 8 (oito) anos de trabalho - e
providenciar um novo indivíduo, quando suas forças se exaurissem. Tratar-lhes com dignidade
não parecia interessante.
Tal análise é corroborada e sintetizada por MOURA (1992, p. 21) ao afirmar que o
negro escravo no Brasil “vivia sob as formas mais violentas de controle social, num clima de
terrorismo permanente” e que só se reencontrava com “sua condição humana” ao fugir para as
matas, onde se organizavam osquilombos.
A abolição da escravatura, no ano de 1888, não significou o fim da desumanização
dos negros e negras sequestrados da África. Sua posição na sociedade brasileira sempre foi um
lugar subalterno em relação aos indivíduos brancos, algo absolutamente refletido nas relações
sociais e econômicas e no funcionamento das instituições, o que segue sendo uma permanência
histórica.
Havia no Brasil um esforço para “branquear” a população. As classes mais abastadas
da sociedade em formaçãose via diante de uma enorme população negra, “livre, cuja vida era
pouquíssimo valorizada para além da possibilidade de exploração econômica. Novos
imperativos econômicos fizeram com que a mão-de-obra negra sofresse um processo de
depreciação, bastante agravado pela facilitação para a chegada de imigrantes europeus para

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ocupar os postos de trabalho com sua mão-de-obra supostamente mais qualificada. Ao mesmo
tempo que se investia no clareamento da pele da população, buscava-se obter trabalhadores
considerados mais aptos a contribuir para o desenvolvimento do país. Com isso consolidou-se
a institucionalização de uma política que, se nãoinviabiliza a vida negra, torna-a absolutamente
dificultada e descartável, vista como menos digna de existir e, portanto, matável.
Sobre a essa substituição pelo trabalhador branco europeu, FLAUZINA (2006, p. 62)
afirma que “o imigrante europeu é, nesse sentido, o antídoto à intoxicação negra que a essa
altura já começava a sufocar as elites locais”.
A criação do crime de “vadiagem” durante o Império, antes mesmo da abolição,
aponta para o compromisso de seu sistema penal com o controle dos destinos dos negros no
Brasil. Libertos na dimensão jurídica, negros e negras se viam diante de enormes dificuldades
para inserção na sociedade. Trabalho e moradia dificilmente eram conseguidos e muitas dessas
pessoas tinham de se sujeitar a condições de vida absolutamente precárias. Os que não
permaneceram trabalhando para os antigos senhores e vagavam pelas cidades sem emprego
eram alvo do encarceramento e da violência policial. Novamente, é importante destacar o
pensamento de FLAUZINA (2006, p.61) em sua análise sobre o período: “se as bases do
controle e da inviabilização social desse contingente estavam a se sedimentar, as do extermínio
também atuavam com vigor”.
Ainda hoje, no Brasil, as desigualdades raciais são estruturantes da desigualdade
social conforme se depreende em relatórios como Situação Social da população negra por
estado, divulgado em 2014, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Desse
modo, não causa espanto que esses indivíduos permaneçam fixados nas zonas periféricas, com
renda inferiorà dos brancos, inseridos no mercado de trabalho em postos subalternos, com
níveis mais baixos de estudo e ocupando moradias precárias. Seu padrão de vida e o tratamento
que recebem por parte das instituições denotam o desvalor atribuído a suas vidas.

2 A TRAJETÓRIA DE NEGAÇÃO DE DIREITOS DE RAFAEL BRAGA

Apesar de não mais haver políticas oficiais que possuem o objetivo declarado de
inviabilizar a dignidade da vida negra, convivemos com inúmeros episódios que nos mostram
que tais práticas não ficaram no passado. A seletividade do sistema penal que superlota
presídios por todo o país com indivíduos negros majoritariamente negros (INFOPEN, 2014, p.

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36) é um exemplo sintomático doracismo institucional que confere mais direitos aos brancos
do que aos negros e negras.
Este panorama é muitíssimo bem exemplificado pelo ‘caso Rafael Braga’,
representativo de um enorme contingente de jovens negros e negras que foram selecionados
pelo Estado como merecedores da segregação pelo cárcere.
Rafael Braga Vieira nasceu no dia 31 de janeiro de 1988, no município do Rio de
Janeiro, filho de Adriana e de Reginaldo, moradores da favela da Vila Cruzeiro. Os bons ventos
que pareciam soprar trazendo a “Constituição Cidadã”,em construção naquele momento na
capital do país, não embalariam o menino. Seus primeiros 29 (vinte e nove) anos de vida seriam
prova cabal de que a promessa de uma República protetora da dignidade e promotora do bem
de todos, sem discriminação por origem ou por cor, estavam impressas em papel, mas não na
realidade de quem, como ele, havia cometido o crime de nascer negro e pobre em uma periferia
brasileira.
A hostilidade do entorno não demorou a se fazer presente na vida de Rafael, que, com
apenas 01 (um) ano de idade, mudou-se com sua mãe para Aracaju. O motivo: fugir da
miséria.Adriana tinha alguns parentes naquela cidade e a estrutura familiar era relevante para
sua subsistência e de seu primeiro filho.Aos 08 (oito) anos de idade, Rafael já engraxava sapatos
no centro de Aracaju como forma de obter algum dinheiro e ajudar com a renda da família. A
pobreza ainda marcava severamente a vida dos Braga e a adversidade, novamente, motivou a
mudança.
No início dos anos 2000, Rafael retornou ao Rio de Janeiro, onde passou a sobreviver
coletando materiais recicláveis que encontrava pelas ruas. A volta para casa na Vila Cruzeiro,
após um dia extenuante de coletas, nem sempre era possível devido ao valor do transporte
público, que para muitos representa uma proibição - não positivada, mas absolutamente efetiva
- de circular pela cidade. Não raro, Rafael passava a noitenas ruas.
Em junho de 2013, em meio às manifestações que fervilhavam em todo o país, o
jovem foi abordado por policiais em um imóvel abandonado na região da Lapa, onde se
abrigaria naquela noite. Sem qualquer participação nas manifestações, Rafael foi detido sob
suspeita de portar material explosivo.O suposto‘coquetel molotov’ encontrado em seu poder
consistia em duas garrafas plásticas contendo água sanitária e “pinho-sol”, material examinado
por peritos e considerado inapto para funcionar como arma. Apesar da prova pericial em seu
favor e da ausência de qualquer relato fático que denotasse uma ação delitiva, Rafael foi preso

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e condenado a cinco anos e dez dias-multa, em regime inicialmente fechado, pelo juiz da 32ª
Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro1.
Àsua prisão se seguiu uma mobilização de advogados populares, notadamente do
Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH, que passaram a atuar na defesa técnica
de Rafael. No ano de 2014, surgiu a Campanha pela Liberdade de Rafael Braga, organizadapor
militantes da Assembleia Popular da Cinelândia, com o objetivo de dar visibilidade a sua
história e de angariar recursos para o sustento de sua família.
No final do ano de 2015, Rafael recebeu com muita alegria a notícia de que havia
reunido as condições para a progressão de regime e,por isso, poderia ir para casa, com a
condição de usar uma tornozeleira eletrônica.
Na manhã do dia 21 de janeiro do ano de 2016, policiais militares, em operação na
Vila Cruzeiro, avistaram o jovem negro que se dirigia a uma padaria e o julgaram “suspeito”.
O dispositivo em sua perna, chamava a atenção. A tornozeleira eletrônica constitui uma marca
que serve à pronta identificação dos socialmente (des)classificados como indignos.
Rafael,abordado pelos agentes do Estado,foi imediatamente capturado e tratado como
“vagabundo”2. Instado a fornecer informações sobre o tráfico de drogas na localidade, ao que
respondeu dizendo que não tinha envolvimento com tais atividades, Rafael foi levado a um
terreno baldio, onde foi fisicamente e psicologicamente torturado, com toda sorte de agressões
e ameaças de violência sexual. Os policiais que efetuaram a prisão atribuíram ao rapaz a posse
de um saco plástico contendo 0,6 (zero virgula seis) gramas de maconha e 9,3 (nove virgula
três) gramas de cocaína, além de um sinalizador. Levado à 22ª Delegacia de Polícia, Rafael foi
indiciado e processado pelo suposto cometimento dos delitos de”tráfico de drogas” (artigo 33
da lei 11.343/06) e de “associação ao tráfico” (artigo 35 da lei 11.343/06).
Apesar do arcabouço probatório extremamente frágil, embasado em depoimentos
contraditórios dos próprios policiais que forjaram a situação de flagrante delito e do depoimento
de testemunha que presenciou a ação dos policiais, o juiz da 39ª Vara Criminal do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro condenou Rafael Braga Vieira a 11 (onze) anos e 03 (três)
meses de reclusão e ao pagamento de um mil seiscentos e oitenta e sete dias-multa3.

1Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001, em trâmite perante a 32ª Vara Criminal.

2Segundo afirmou Rafael durante o contato com seus advogados já na delegacia, era assim que os policiais militares o chamavam

durante todo o tempo em que o tiveram sob custódia.


3
Processo nº 0008566-71.2016.8.19.0001, em trâmite perante a 39ª Vara Criminal.

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No cárcere, Rafael Braga Vieira contraiu tuberculose, doença que vem alcançando
números alarmantes na vitimização de pessoas presas4 e obteve, do Superior Tribunal de
Justiça, uma medida liminar em sede de habeas corpus para receber tratamento em casa, tendo-
se em vista as péssimas condições de higiene observadas no cárcere.
A história de Rafael vem se tornando cada vez mais conhecida, amplamente noticiada
pela mídia nacional5 e por importantes veículos internacionais6.Artistas, intelectuais e pessoas
comuns têm manifestado apoio ao jovem, que aguarda o julgamento do recurso de apelação
contra a sentença que o condenou pelo suposto envolvimento com o tráfico de drogas.

3 A DECISÃO SOBERANA E A BIOLOGIZAÇÃO DA POLÍTICA

Ao falarmos da trajetória de Rafael, é patentesuainserção em um contexto de exceção


que, como afirmaGiorgio Agamben,tornou-se paradigma de governo. Sua condição de
vulnerabilidade social é determinante para a manutenção da condenação kafkiana que lhe
mantém no cárcere.
Para Agamben, não há obstáculos para a escalada do estado de exceção permanente
e a lógica da soberania está ligada a uma figura do direito romano arcaico, ohomo sacer,
investigada pelo filósofo italiano no projeto homônimo.
Na obra Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua, o autor constrói uma analogia
com essa figura dúbia(visível e invisível), e estabelece uma espécie de biologização da política
tendo como base jurídica o direito, que nessa perspectiva, inaugura o estado de exceção
(AGAMBEN, 2004, p. 13). O poder soberano, ao longo dos anos, vem alimentando a máquina
bipolar estatal segregatória e incluindo o ser vivente como mercadoria barata e dócil, sujeita ao
ostracismo da vida nua. O Estado, cada vez mais, vem tendo interesse na zoé (o simples fato de
viver), e incluindo o ser vivente em seus cálculos exclusivos. Esse é o paradigma moderno da
política contemporânea: a captura do ser vivente pelos dispositivos biopolíticos da
contemporaneidade através de um método de exceção que submete o indivíduo a toda sorte de
violências institucionais, dentre elas, o processo penal e, por conseguinte, o cárcere.

4UNIVERSO ONLINE. “Massacre silencioso”: doenças tratáveis matam mais que violência nas prisões brasileiras”,
2017.Disponível em:<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes-por-
doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm> Acesso em 20 set 2017.
5
G1. Justiça nega liberdade a Rafael Braga, 2017. Disponível em <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/justica-nega-
liberdade-a-rafael-braga-dizem-advogados.ghtml> Acesso em 20 set 2017.
6BBC. Rafael Braga: Scapegoatordangerousprotester?, 2016. Disponível em: < http://www.bbc.com/news/world-latin-america-

35578395> Acesso em 20 set 2017.

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Nesse passo, é possível perceber, de modo claro, o paralelo que se estabelece com a
história de Rafael Braga Vieira. O jovem foi denunciado pelo Ministério Público, como incurso
nas penas dos artigos 33 e 35, ambos da lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), e como
exposto,condenado a 11 (onze) anos e 03 (três) meses de prisão por ter sido supostamente
flagrado portando 0,6g de maconha; 9,3g de cocaína e um rojão.
Analisando criticamente a decisão referida, é possível notar o desvalor do indivíduo
em decorrência do racismo institucionalizado que permeia a atuação jurisdicional. O
vocabulário bélico empregado na sentença denuncia a clara institucionalização do racismo no
Poder Judiciário, premissa lógica à luz do pensamento de Agamben quando trata de que uma
das características essenciais do estado de exceção é a abolição momentânea da distinção entre
os poderes do governo (AGAMBEN, 2003, p. 19).
Essa abolição ocorre entre direito público e fato jurídico criando um ponto de
desequilíbrio entre estes e escrevendo a anomia no ordenamento jurídico. O magistrado nessa
ocasião tem o papel preponderante de elaborar um direito positivo de crise. Esse significado
imanente biopolítico aparece com clareza na decisão que condenou Rafael Braga.
No plano de construção da decisão soberana, atribui-se a ela o papel de romper com
a ordem constitucional e de mudar o curso da atividade judicial do magistrado. Em apertada
síntese, a teoria da decisão atua como limitador ao exercício do pensamento crítico, dando lugar
a um pensamento concreto, estereotipado, racista, pautado pelo medo de absolver e elegendo o
magistrado um neo-inquisidor e responsável por todas as inquietudes da coletividade. A decisão
assume uma lógica eficientista a partir de perversões inquisitoriaistrazendo à baila o
pensamento do juiz autoritário.
Na obra Estado de Exceção, Agamben critica o caráter autônomo da decisão soberana
e traça um contexto de desconstrução partindo da premissa de que uma decisão que se encontra
entre ordenamento e situação (entre direito e fato) não podem ceder ao arbítrio.

A especificação “ao mesmo tempo” não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de
suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o
paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei está fora dela mesma”, ou
então: “ eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei”
(AGAMBEN, 2003, p.22).

Em sua obra Processo Penal do Espetáculo – Ensaios sobre o poder penal a


dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira (2015), o juiz do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, Rubens Casara, tratou do funcionamento do sistema de justiça

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criminal no período pós Constituição Federal de 1988, e segundo uma pesquisa empírica
realizada no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, chegou à conclusão de que 80%
dos magistrados daquele tribunal atuam de forma a fortalecer a segurança pública do Estado.
Os atores jurídicos agem como se a decisão fosse objeto de uma resposta ao clamor público
O magistrado, nessa ocasião deixa de ser juiz, - Poder Judiciário- e assume o papel
de agente de polícia - Poder Executivo- que se personifica na figura do soberano. A decisão
soberana funcionaria como um aparelho bipolar repressivo, deixando suspenso todo o
arcabouço constitucional, podendo o julgador praticar um juízo de censura inquisitorial.
Inscreve-se então no ordenamento jurídico a possível articulação entre o estado de exceção e a
ordem jurídica (AGAMBEN, 2003, p. 54).
Agamben, sobre a decisão soberana, alerta sob o aspecto formal da norma e o discurso
de emergência no qual a teoria da decisão tem seu fundamento desestabilizando o Estado de
direito. O operador que permite ancorar o estado de exceção na ordem jurídica nesse caso passa
a criar antítese poder constituinte e poder constituído. O estado de exceção tem um diferencial
lógico da anarquia e de caos, juridicamente ainda existe uma ordem imanente mesmo ela não
sendo uma ordem jurídica (SCHMITT, 2006, p.18). A ideia da teoria da decisão, pensada em
Schmitt, é inscrever através de uma possível articulação paradoxal entre estado de exceção e
ordem jurídica, entre normas do direito e normas de realização do direito (AGAMBEN, 2003,
p. 54).

4. UM OLHAR BIOPOLÍTICO PARA A QUESTÃO

É possível compreender que a população negra, pobre e periféricavive uma realidade


bastante distinta, ainda hoje, daquela experimentada pela população branca no Brasil. Chamaa
atenção, como um traço notório dessa desigualdade, a relação de negação de direitos
empreendida em relação às pessoas negras. É esse aspecto, tão marcante na situação de Rafael
Braga, que buscamos compreender com auxílio da obra biopolítica de Michel Foucault e da
filosofia política de Giorgio Agamben, destacadamente na obra Homo Sacer – o poder
soberano e a vida nua.
Agamben (2002, p.11) pontua que Foucault ao fim de Vontade de Saber resume o
processo através do qual a vida natural passa a se incluir nos mecanismos e cálculos do poder
estatal e que a política se transforma, assim, em biopolítica. Com essa passagem para a

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biopolítica o objeto da política passa a ser vida do ser vivente. Ademais, filósofo político italiano
também ressalta a essencialidade do biopoder para o sucesso do Capitalismo, tendo em vista
que o primeiro irá moldar os indivíduos, através da disciplina, para que o último obtenha os
homens de corpos docilizados de que necessita ou, nas palavras de Erich Fromm, homens
alienados de si mesmos (2000, p.67).
Nesse sentido, ao discorrer sobre a arte de governar na contemporaneidade em
Segurança, Território e População, Foucaultafirma que é impossível para aquele que governa,
a seu bel prazer, moldar os indivíduos. Os componentes da população possuem uma natureza
que lhes é própria e que não pode, portanto, ser alterada por decreto. Desse modo, a biopolítica
compreende a necessidade de conhecer a naturalidade dos processos que compõe a população,
já que essa natureza não é impenetrável. Através da penetrabilidade da natureza, tem-se a
possibilidade de um governo influenciar esses processos por estímulos e desestímulos, o que
viabiliza que essas técnicas moldem o meio em que as pessoas estão inseridas de acordo com a
ocasião e com suas necessidades.
Compreendemos que a maneira como o destino da população negra foi selado,
especialmente, com a criminalização da desocupação produzida pela repentina inadequação do
negro ao trabalho. O medo que passa a ser disseminado e a própria construção de uma
identidade desviante que associa o negro ao estigma da ameaça ainda que nada faça nesse
sentido. Através dessas escolhas segregadoras, feitas em um momento em que deveria ser
promovida a reconciliação com nossa história, objetivando a igualdade entre os povos que aqui
se uniram, estrategicamente, optou-se pela manutenção da desigualdade. Mais do que isso:
optou-se pela manutenção da vida nua para uns. É a essa vida que podemos comparar a vivida
por Rafael.
Nessa esteira, portanto, cumpre destacar em virtude do episódio em discussão no
presente trabalho, o papel das instituições penais conforme Foucault delineia em O Nascimento
da Biopolítica ao exemplificar o cruzamento entre a veridição e a jurisidição:

A questão veridicional que está no cerne do problema da penalidade moderna, a


ponto até de embaraçar sua jurisdição, e era a questão da verdade formulada ao
criminoso: quem é você? A partir do momento em que a prática penal substitui a
questão: o que você fez? pela questão: quem é você?, a partir desse momento, vocês
vêem que a função jurisdicional do penal está se transformando ou é secundada pela
questão da veridição, ou eventualmente minada por ela.(FOUCAULT, 2008, p.48)

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Evidentemente no caso Rafael Braga a pergunta decisiva é “quem é você?” e não “o


que você fez?”. Afinal, se a própria perícia indica para a inaptidão do material portado por
Rafael como arma, não existe sentido para privação da sua liberdade após tal declaração. Como
visto, isto não só foi inútil nesse sentido como também, novamente, a pergunta “quem é
você?”foi decisiva no cenário de sua segunda prisão. Há aqui uma intersecção possível entre
essa noção apregoada por Foucault acerca do cruzamento de veridição e jurisdição com as
ideias de homo sacer e de estado de exceção pensadas por Agamben.
A figura paradigmática do homo sacer cuja vida, de acordo com Agamben (2002,
p.189) é “em muitos aspectos similares do bandido”, no que diz respeito ao banimento e a forma
como que ambos são submetidos a um processo de perda de humanidade perante os demais e
o Estado. Para essas pessoas cuja vida é pura bios7, isto é, uma vida nua e despojada de direitos
intrínsecos a todo e qualquer homem como o direito à liberdade, aqui discutido, o estado de
exceção dá-se de modo permanente em suas vidas. Nesse sentido, elucidam BARSALINI e
CARVALHO (2017,p.12) que:

Cristalizada no campo, a exceção se torna, desde os regimes totalitários do século


XX até a atualidade, a regra, desafiando as democracias contemporâneas (...). Os
totalitarismos do passado, assim com as ditaduras do presente, enlaçados entre si num
jogo originalmente violento e repetidamente beligerante de relações políticas,
econômicas, culturais e religiosas com as democracias, têm produzido,
sistematicamente, homo sacer, vidas nuas, sujeitos que podem ser radicalmente
desprezados em no limite, aniquilados, sem que tal ato seja passível de pena àqueles
que a isso tenha dado causa.

Cremos que para fins de justificar o referido desprezo àquele que, na prática, se
equipara ao homo sacer em nossa sociedade exista a necessidade de um discurso, ainda que
raso, que demonstre a “razoabilidade” de tal prática. Largamente empregada, a criminalização
da pobreza é um processo complexo, mas que, sucintamente, é tratado pela Professora Cecília
Coimbra, da Universidade Federal Fluminense, em sua exposição realizada no I Seminário
Internacional de Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de crianças e adolescentes
na América Latina hoje:

Presente entre nós até os dias de hoje, esse dispositivo vai afirmar que tão importante
quanto o que um indivíduo fez, é o que ele poderá vir a fazer. É o controle das

7Os gregos utilizavam as palavras zoé e bios para expressar o que chamamos de vida. Para eles a zoé consistia no simples fato de

viver, comum a todos os seres vivos e, por sua vez, a bios expressava uma forma de viver própria de um indivíduo ou grupo. A
simples vida natural, no entanto, apenas é considerada no mundo clássico, na polis, quando analisada sob o prisma de mera vida
reprodutiva.

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virtualidades; importante e eficaz instrumento de desqualificação e menorização que


institui certas essências, certas identidades. Afirma-se, então, que dependendo de
uma certa natureza (pobre, negro, semi-alfabetizado, morador de periferia...) poder-
se –à vir cometer atos perigosos, poder—se- à entrar para o caminho da
criminalidade. (2006, p.2)

Aindavalendo-nos das palavras de COIMBRA (2006, p.6) houve um trabalho


incessante de provar cientificamente a periculosidade das classes mais pobres. Aqueles
considerados “viciosos”, isto é, excluídos do mundo do trabalho foram associados à
delinqüência e passaram a ser vistos como um “perigo social que deve ser erradicado”
justificando-se, assim, “as medidas coercitivas, já que são criminosos em potencial”. A
criminalização da pobreza se desenha como verdadeira estratégia biopolítica que permite a
eliminação do indesejável8 em variadas formas dentro desse permanente estado de exceção
vivenciado.

CONCLUSÕES

A trajetória de Rafael Braga nos permite estabelecer o paralelo entre sua vida com
uma vida nua, matável, assim como a do homo sacer. Olhar para situação sob esse ponto de
vista permite compreender a banalização da privação de sua liberdade pelo Poder Judiciário,
em que pese a movimentação de diversos setores da sociedade em defesa da mesma.
Insta ressaltar que o perfil de Rafael é o mesmo, por exemplo, daqueles indivíduos
que mais morrem e tem suas mortes esvaziadas pelo uso do instituto dos autos de resistência:
ambos são jovens, negros, pobres e moradores das periferias. As vítimas dos autos de
resistência, assim como aqueles que superlotam os presídios provisoriamente e os que são
revistados em operações de caráter notoriamente higienista como a “Operação Verão”
contemplam esse mesmo e nítido perfil. Suas vidas e, por conseguinte, seus direitos não têm o
mesmo valor, para o Estado, do que se verifica com indivíduos oriundos das camadas mais
abastadas da sociedade.
É inaceitável que convivamos em silêncio com a captura da vida desse modo pelo
Estado e, tampouco, que consideremos razoáveis as duas condenações de Rafael. É preciso ter
a consciência de que tal situação só se dá por intermédio de uma escolha estatal de quem são

8
AGAMBEN (2004, pp. 12-13) compreende que é possível a utilização de dispositivos através dos quais mecanismos de exceção
coexistam com o Estado de Direito. Tais mecanismos terão como destinatário desde adversários políticos ou até mesmo categorias
inteiras de cidadãos que pareçam “inadequados à ordem vigente”.

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os indesejáveis, os inimigos a serem combatidos através do estado de exceção. No caso do


Brasil, resta claramente comprovado pela nossa trajetória histórica a escolha do desviante, do
indivíduo a ser eliminado seja através de sua morte, de seu encarceramento ou de sua
invisibilização social.
Nesse sentido, oportuna reflexão de BAUMAN (2004, p.108) sobre o legado do
Holocausto:

[...] demonstrar a futilidade da lei pela execução sumária de suspeitos, aprisionar sem
julgamento nem prazo de soltura, espalhar o terror que aleatória e casualmente
infligia tormentos aos montes – foi amplamente comprovado que tudo isso serve à
causa da sobrevivência e é, portanto, “racional”.

Segundo o sociólogo polonês esse legado nos mostra o nível da desumanização da


sociedade. Em que pese os diferentes contextos, também extraímos uma lição valorosa para a
nossa realidade: aceitar os absurdos que permeiam o caso aqui debatido é um reflexo dos nossos
tempos, tão fortemente marcados pela indiferença e pela dificuldade de amar ao próximo.
Precisamos abraçar a história de Rafael e nos comprometer não só com a luta por sua liberdade,
mas em deixar claro que não é da nossa natureza essa desumanização e que não existe estímulo
que seja bastante para nos fazer indiferentes.

REFERÊNCIAS

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321
REFLEXÕES SOBREA JUDICIALIZAÇÃO
DA EDUCAÇÃO DOMÉSTICA (HOMESCHOOLING):
DISPOSITIVO, IMMUNITAS E A FORMA-DE-VIDA

FARIAS-LARANGEIRA, Marcelo
Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais – Programa de Pós – Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
– Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais – Programa de Pós –
Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) – Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Professor de
Direito Empresarial e Tutela Coletiva – Universidade Salgado de Oliveira (Departamento de Ciências Jurídicas
- UNIVERSO – Campus de São Gonçalo – RJ). Advogado.
LIMA, Andrea Peres
Especialista em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Graduada
em Letras – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduanda em Direito pela UNESA
(Universidade Estácio de Sá – Campus de Niterói-RJ). Professora de Língua Inglesa da Fundação de Apoio à
Escola Técnica do Rio de Janeiro (FAETEC-RJ).

RESUMO

O presente artigo pretende analisar a educação doméstica a partir da perspectiva do pensamento


biopolítico de Foucault, Agamben e Esposito. A judicialização do tema pelo Supremo Tribunal Federal
lança luzes sobre o debate que, até então, encontrava-se em regiões de penumbra ou, de certa maneira,
eram aplicadas a casos muitos específicos. Neste sentido, a forma-de-educar proposta pela educação
domestica (homeschooling) se posiciona no campo retórico como parte de uma agenda educacional cujo
seus adeptos reivindicam um “direito de escolha”, entretanto, sem medir as eventuais consequências que
tal empreendimento pode trazer aos sujeitos-educandos. O isolamento ou a imunização a certos saberes
considerados por estes grupos como “perigosos” reacende a discussão entre a quem cabe o direito de
educar: à família ou ao Estado?

Palavras-chave. Educação doméstica, dispositivo, biopolítica

ABSTRACT

This article pretends to analyze homeschooling under the perspective of biopolitics theory developed
initially by Foucault at College de France (in the seventh decade of the 20th century). Nowadays, Italian
authors as Agamben and Esposito discuss the biopolitics issue as well. At the present, homeschooling is
in the spotlight since the debate is under judicial review by Brazilian Supreme Court. Earlier in time,
this issue was undercover somehow; in order that homeschooling was only applied in specific cases.
Therefore, homeschooling form-of-education is inserted in rhetoric field as part of an educational
agenda whose defenders claim the “right to choose” the way their children must be educated. This claim,
on the other hand, must raise an important reflection, such as the possible consequences this endeavor
may cause to learners as subjects. Isolation or immunization to certain ‘harmful’ contents learned at
school, according to these groups, has reignited debate over who has the right to educate these subjects:
Family or Government?

Keywords. Homeschooling, dispositif, biopolitics

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ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O tema da biopolítica tem sido discutido por diversos pensadores no campo da


filosofia durante o século XX. De Foucault a Agamben até Esposito, o caminho investigativo
da biopolítica se difere no aspecto metodológico com qual o dispositivo biopolítico é
compreendido; em suas distintas matizes. Tanto G. Agamben quanto R. Esposito encontram-
se inseridos na tradição do pensamento biopolítico italiano, entretanto, ambos se apresentam,
em caminhos disjuntivos para compreensão da narrativa do biopoder dos séculos XX e XXI,
especialmente no estudo da experiência extrema deste: o campo de concentração.
O esboço geral dos conceitos da biopolítica, de Foucault a Esposito, pode nos ajudar
a compreender os elementos que circundam a relação entre a educação doméstica
(homeschooling) e a immunitas. Diante deste cenário, indagamos: O que a educação doméstica
deseja conservar? Contra “o que” e “contra quem”, os arautos da educação doméstica
pretendem imunizar? E qual a relação entre a educação doméstica e o paradigma imunitário?
Pode esta forma-de-educar se constituir como um dispositivo?
A educação doméstica se apresenta como uma alternativa, como afirma M.C. Chaves
Vasconcellos (2017) diante da “crise da escola” na década de 1960 e já possui muitos
simpatizantes e adeptos1 (VASCONCELOS, 2017), inclusive, há quem afirme que a educação
doméstica ou homeschooling faz parte de um projeto liberal em curso no intuito de
descentralizar a educação; podendo conduzir as discussões sobre educação a terrenos
movediços, até então, sem precedentes.
Há muito se conhece, desde dos cursos ministrados por M. Foucault (1926-1984) na
década de 1970, a relação entre o liberalismo e a biopolítica e, é exatamente neste contexto, que
a presente análise encontra-se inserida. O que se pretende aqui é lançar luzes sobre o tema da
educação doméstica e se há eventuais relações entre homeschooling, liberalismo e biopolítica e
quais são os possíveis desdobramentos. Através do Recurso Extraordinário n. 888.815/RS, que
atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), a educação doméstica é judicializada,
assim se discute em sede constitucional, o direito de se educar. A quem este compete? “À
família ou ao Estado?
Para tanto, sob o aspecto metodológico deste trabalho, parte-se da descrição dos
discursos dos arautos desta forma-de-educar, a fim de se compreender como estes discursos se

1VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Educação na casa: perspectivas de desescolarização ou liberdade de escolha? Revista
eletrônica Pro-posições. Vol.28, número 2: Campinas Maio-Agosto 2017. ISSN 1980-6248.

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formam e, também, quais as possíveis direções que estes podem conduzir os sujeitos inscritos
no mundo da vida. A revisão bibliográfica do pensamento da biopolítica que se estende desde
Foucault até os debates atuais de Agamben (forma-de-vida) e Esposito (immunitas) podem
constituir de grande valia à compreensão dos processos de subjetivação. Nesse sentido, as
pretensões de validade linguísticas emergem como crível sintoma de uma racionalidade ainda
mais profunda.
Por fim, o objetivo desta comunicação não gravita em torno dos processos de ensino-
aprendizagem que envolvem este método de ensino. A educação doméstica (homeschooling)
se perfaz uma ferramenta de análise para se verificar a possibilidade desta forma-de-educar
constituir um dispositivo biopolítico eclipsado pela precariedade da estrutura pública de ensino.

1. PRÁTICAS, DISCURSOS E JUDICIALIZAÇÃO: A LUTA PELA FORMA-DE-


EDUCAR

O aparecimento da homeschooling ou educação doméstica ou domiciliar (ED)


apresenta-se como uma reação aos processos de precarização da educação pública e das
insuficiências dos currículos oferecidos pelos Estados e Municípios brasileiros. Determinados
segmentos da população arguem que o serviço público educacional e suas políticas pedagógicas
não atendem certas expectativas. No caso brasileiro, ocorre uma mobilização de grupos sociais
cuja compreensão jaz no direito (natural) das famílias, enquanto primeiro núcleo social do
indivíduo, a transmissão de valores e códigos de moralidade.
Não é nenhuma novidade a relação entre o discurso e a práxis; a conexão entre a
linguagem e a performance dos indivíduos no mundo da vida que, se articulam através do
trânsito destes nas instituições. A judicialização da ED apresenta-se como uma ferramenta
interessante à investigação dos movimentos cognitivos construídos no interior dos sujeitos a
partir da dimensão cultural; especialmente do discurso religioso. Não se perquiri aqui, como já
dito alhures, acerca dos métodos, dos processos de ensino-aprendizagem e dentre outras
questões que envolvem a ED, entretanto, o que está em jogo é a ED como um uma espécie de
paradigma imunitário em menor escala. Todavia é importante dizer que os desejos dos arautos
da ED não são suficientes para trazer sua constelação de valores e significado para o plano da
efetividade de direito. É mister que se engendrem mecanismos de legitimação que sejam

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capazes de emergir um certo regime de verdade, dessa forma um destes mecanismos é a


judicialização da ED. Vejamos a seguinte questão:
Atualmente, tramita no Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF), o Recurso
Extraordinário (RE) n. 888.815/RS2 cujo ponto nevrálgico é o direito de educar. Ora, a quem
cabe tal direito? O artigo 205 da Constituição brasileira de 1988 ratifica o direito da educação
como uma condição sine quae non para o exercício da cidadania, mas a parte final deste
preceito constitucional explicita que há um valor, uma preocupação com a forma de se educar:
a qualificação para o trabalho. Em outras palavras, é a preocupação do Estado em educar “o
corpo” para aderir à produção.
O “cálculo utilitário” do corpo manifesta-se como um fragmento decalcado no direito
de educar, posto que “educar” é um dever. Dessa forma, existe um “direito à educação”, um
“dever” do Estado em promovê-la. Não há um direito aberto as formas-de-educar; contrario
sensu, há uma determinada forma-de-educar. Esta certa forma-de-educar é a produção da
subjetivação adquirida através do que Foucault (2014) nomina de instituição disciplinar.
O sujeito não é um “ser” pré-fabricado, contudo, é resultante das técnicas disciplinares
que a partir de uma “média” – parâmetro de normalização – auferem-se o normal e o anormal3.
A escola comum, como instituição disciplinar, produz e reproduz, ativa e reativa
quotidianamente o retroalimentar do binômio saber-poder; cujo objetivo é a “produção dos
corpos dóceis”.
Encontra-se diante do Tribunal Constitucional a decisão sobre quem ostenta a
legitimidade de se educar e a maneira de se educar. Nos autos do processo citado, os autores do
processo judicial arguem, no primeiro momento, as insuficiências estruturais da educação
pública do município de Canelas/RS, que citamos, v.g., a instalação dos alunos em turmas
“multiseriadas” e o convívio com alunos de idade mais avançadas. Outra questão levantada
que, é digna de nota, é a discordância da autora do RE acerca do conteúdo que é ministrado
nas escolas públicas, como por exemplo o ensino da teoria da evolução biológica do biólogo C.
Darwin (1809-1882)4. A autora da ação judicial reivindica o direito de educar através da ED
em detrimento da ‘metodologia de ensino ofertada pelo Estado’. Além disso, algo que chama

2Pesquisa realizada em Outubro de 2017.

3
Sobre a disciplina e as instituições disciplinares, ver FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 42º Edição. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.
4BRASIL. República Federativa. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 888.815/RS Relator: Luís Roberto

Barroso.

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a atenção no processo judicial é que, apesar do reconhecimento do STF da repercussão geral


do debate sobre a ED acerca dos limites da liberdade de escolha sobre os meios de educar
segundo as convicções religiosas, morais, pedagógicas e políticas, no Brasil, é possível obter o
certificado de conclusão do ensino médio através do ENEM5.
Outra questão que chama a atenção são os pedidos de ingresso na ação judicial de
entes públicos e privados na qualidade de amicus curiae6; tais como Procuradorias-Gerais e
entidades ligadas ao ED no Brasil. Ao que fica claro, a judicialização do debate sobre a ED
lança luzes sobre o problema da imunização do sujeito-corpo, daquilo que é o comum – o
negativo da immunitas; entretanto, a emergência deste debate também abre frestas para um
limiar até então obscuro, ou seja, a judicialização.
Esta emerge aqui como uma possível arena, onde o problema dos regimes de verdade
desenvolvidos alhures por M. Foucault no Collège de France vem à tona e o dispositivo
imunitário que, no primeiro momento, vem transfigurado pelo discours que confina os
processos de subjetivação ao campo do privado. O paradigma imunitário não se relaciona
somente com a vida, contudo este se articula com sua conservação. Parece-nos que a ED e os
seus arautos desejam conservar algo, mas o quê?
A vida nunca se manifesta distante das relações de poder, assim como não existe um
poder externo à vida. A política não é senão a condição de possibilidade de se conservar ou,
melhor dizendo, trata-se de um possível dispositivo de conservação de uma forma-de-vida.
Cabe-nos analisar como o paradigma imunitário, o discurso e a forma-de-vida encontram-se
decalcados na ED, formando uma espécie de diagrama.

2. IMMUNITAS, DISCURSO E A FORMA-DE-VIDA COMO DIAGRAMA DA


EDUCAÇÃO DOMÉSTICA (HOMESCHOOLING)

O tema da biopolítica tem sido discutido por diversos pensadores no campo da


filosofia durante o século XX. De Foucault a Agamben até Esposito, o caminho investigativo
da biopolítica difere-se no aspecto metodológico com qual o dispositivo biopolítico é

5Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é o exame geral de admissão aos cursos de ensino superior nas universidades
brasileiras.
6
A figura do amicus curiae é regulado pelo artigo 138 do Código de Processo Civil Brasileiro “tem suas origens no direito
romano, sendo que no direito norte-americano deu-se o seu maior desenvolvimento, com fundamento na intervenção de um
terceiro desinteressado em processo em tramite com o objetivo de contribuir com o objetivo de contribuir com juízo de formação
de seu convencimento.” (ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador:
Editora JusPodivm, 2016, p. 223.

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compreendido; em suas distintas matizes. Tanto G. Agamben quanto R. Esposito encontram-


se inseridos na tradição do pensamento biopolítico italiano, entretanto, ambos apresentam
caminhos disjuntivos para compreensão da narrativa do biopoder dos séculos XX e XXI,
especialmente no estudo da experiência extrema deste: o campo de concentração.
L.A. Ribeiro (2012) pondera que a reflexão agambeniana não se propõe a seguir o
método proposto por M. Foucault, entretanto, mantém-se próxima, ao menos
metodologicamente, do autor francês7. Isso posto, é importante trazer à baila que, G. Agamben,
ao contrário de Foucault, situa a relação entre o Poder Soberano e a biopolítica na Antiguidade;
já M. Foucault detecta a partir dos dispositivos de gestão da população nos séculos XVIII e
XIX, o elemento biopolítico.
R. Esposito (2010), na obra “Bios: Biopolítica e Filosofia” se distancia de ambos –
Foucault e Agamben – e pretende empreender uma trajetória própria acerca da relação entre o
político e o biológico a partir, como próprio autor italiano afirma, das lacunas deixadas por
Foucault ao longo de suas reflexões sobre a biopolítica durante a década de 1970; na qual aponta
as obscuridades acerca da dimensão histórica do biopoder. Neste sentido indaga R. Esposito se:

A biopolítica precede, segue ou coincide temporariamente com a modernidade? Tem


uma dimensão histórica, epocal ou primeva? Também sobre esta interrogação –
decisiva posto que ligada logicamente à interpretação da nossa contemporaneidade -
a resposta de Foucault não totalmente clara no sentido que oscila entre uma atitude
continuísta e uma outra inclinada a marcar os limiares diferenciadores. (ESPOSITO,
2010, p. 24).

Para Esposito (2010), o pensador francês ao não avançar com maior profundidade na
caixa preta da biopolítica permite o estabelecer da incerteza epistemológica por não instituir
um elo entre o biopoder e a modernidade, ensejando, ipso facto, em aporias intransponíveis.
Deste modo, o autor italiano sugere como viés de superação daquela aporia enjeitada pela
tradição foucaultiana a ideia de imunização8.

7
RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. The foucaultian archaeological method in Giorgio Agamben. 25th IVR World Congress: Law
science and technology. Paper series n. 97/2012 Series B. Human Rights, Democracy; Internet/intellectual property, globalization.
Frankfurt am Main: Goethe Universität. Conference paper, August, 2012. Disponível em
<https://www.researchgate.net/publication/282117453_The_Foucaultian_Archaeological_Method_in_Giorgo_Agamben> .
DOI: 10.13140/RG.2.1.1136.6884.
8
ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 24.

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É exatamente neste ponto – a imunização9 - que se insere a análise deste


acontecimento chamado de homeschooling10 ou educação doméstica, cuja a metodologia de
ensino consiste, em apertada síntese, no isolamento do sujeito-educando pela família a fim de
ser educado conforme determinados paradigmas introjetados por seus genitores ou tutores.
Neste sentido, trata-se, de certa maneira, de uma categoria de resistência em desfavor da agenda
governamental dada voltada para uma determinada forma-de-educar.
A segunda baliza que sustenta a presente análise transitará pelo conceito da forma-de-
vida desenvolvida por G. Agamben, na 3ª Parte da obra, “Altíssima pobreza11“, onde o autor
italiano compreende o sentido da palavra forma:

(...) neste caso, ‘exemplo, ‘paradigma’, mas a lógica do exemplo não é de modo
algum simples, e não coincide com a aplicação de uma lei universal. Forma vitae
designa, neste sentido, um modo de vida que, ao aderir estreitamente a uma forma ou
modelo, de que não pode ser separado. (AGAMBEN, 2014, p.101).

Recapitulando, duas são as grades de sustentação teóricas que embasarão as eventuais


aporias que circundam a problemática da educação doméstica: o paradigma da imunização
[imunitas] em R. Esposito e a forma-de-vida presente no sistema de pensamento agambeniano.
A questão aqui depurada não passa pela análise da educação doméstica em seu sentido ôntico,
suas técnicas, metodologias e processos de aprendizagem, entretanto, trata-se de utilizá-la como
ferramenta para refletir sobre os possíveis elementos biopolíticos que esta forma-de-educar
pode apresentar em determinadas circunstâncias. O isolamento e a segregação dos sujeitos-
educandos pelas respectivas famílias podem revelar forças que habitam nas profundezas das
práticas sociais quotidianas e, de certa maneira, naturalizadas.

9Sobre o paradigma da imunização, ver ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa.
Lisboa: Edições 70, 2010.
10 Em linhas gerais, Homeschooling, also called home education, educational method situated in the home rather than in an

institution designed for that purpose. It is representative of a broad social movement of families, largely in Western societies, who
believe that the education of children is, ultimately, the right of parents rather than a government. Beginning in the late 20th
century, the homeschooling movement grew largely as a reaction against public school curricula among some groups. Tradução
livre: “‘Homeschooling’, também denominada educação doméstica, trata-se de um método educacional situado no ambiente
doméstico, ao invés de ser operacionalizada nas instituições criadas para este propósito. Representado por um considerável
movimento social de famílias, em sua maioria nas sociedades ocidentais, que acreditam que a educação da criança é, em última
análise, o direito dos pais ao contrário de ser uma tratativa ou imposição governamental. Iniciado no século XX tardio, o
movimento do ‘homeschooling’ cresceu amplamente como uma reação de alguns grupos contra o currículo das escolas
públicas.”. (BRITANNICA ACADEMIC. Disponível em http://academic-eb-
britannica.ez24.periodicos.capes.gov.br/levels/collegiate/article/homeschooling/488637
11AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: Regras monásticas e formas-de-vidas. Tradução de Selvino J. Assmann. 1ª Edição.

Coleção: Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2014.

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Entretanto, desde da emergência do modelo de Estado social, ora catalisado durante


o século XX, a educação da população emerge como uma importante agenda; tanto que chega
ao ponto de ser alçada à categoria de um direito fundamental do cidadão. O conceito de
‘cidadão’ positivado no Estado liberal pós-revolucionário na Declaração Universal dos Direitos
dos Homens e do cidadão (1791) trazia em si os ressentimentos de uma visão de mundo calcado
no privilégio e na linhagem e no desejo, ainda que não dito, do banimento da ideia de
desigualdade dos homens com fulcro na linhagem familiar.
Era no sangue que se encontrava gravado a desigualdade entre os homens que, por
sua vez, eram decididas na álea do nascer. De acordo com D. Laêrtios (2014), Platão, verbi
gratia, remetia sua descendência a Sólon e Gláucon que, de acordo com Trásilos (apud
LAÊRTIOS, 2014, p.85), a linhagem de Platão o conduzira até Poseidon12.
O que é importante dizer, a partir desta digressão, é que a ideia de desigualdade dos
homens não se constituía exclusivamente no plano político, todavia, o arquétipo aristocrático
fundado na linhagem sobreviveu até o século XVIII tardio e, de certa maneira, definia a fortuna
dos homens no acesso a forma-de-educar. As Revoluções liberais e seus ressentimentos
romperam com o paradigma do sangue e a fortuna do nascer e trouxeram para o sistema legal
o discurso da igualdade dos homens. Entretanto, o modelo liberal de Estado ou modelo negativo
prometera a mínima intervenção na dimensão privada.
Como já dito alhures, o Estado social insere a educação na agenda de Estado; alçando-
a na categoria de direito fundamental. Em outras palavras, compete neste momento ao Estado
prover a educação da população positivamente, todavia sua pretensão jaz na ampliação do
alcance das políticas educacionais sobre os cidadãos através das instituições públicas;
perfilando-se como uma espécie de antítese do Estado negativo não-intervencionista.
Tomemos o seguinte exemplo trazido por C.R. Jamil Cury (1998) sobre a
Constituição de Weimar. Segundo o Cury (1998), o artigo 143 da Constituição do Reich define
como papel das instituições públicas a educação da juventude, inclusive há no mesmo
dispositivo legal a previsão de colaboração entre os Estados e Municípios13, sendo a educação
submetida a inspeção do Reich, podendo este delegar o encargo aos Municípios.

12LAÊRTIOS, Diôgenes. Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego de Mário da Gama Kury. 2ª Edição. Brasília:

Editora UNB, 2014, p. 85.


13
CURY, Carlos Roberto Jamil. A constituição de Weimar: Um capítulo para a educação. Educ. Soc., Campinas , v. 19, n. 63, p.
83-104, Aug. 1998. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
73301998000200006&lng=en&nrm=iso . acesso em 24.09.2017.

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Por fim, outra questão digna de nota se situa no campo da obrigatoriedade educacional
da população imposta pela Constituição de Weimar que estabelece um mínimo de oito anos de
escolarização14. Outra questão importante é o número de artigos que a Constituição de Weimar
dedica à educação, conforme reporta C. R. Jamil Cury (1998):

A primeira constatação é o elevado número de artigos (nove) no capítulo referente à


educação. E mais: eles são analíticos, com uma intensidade de redação por vezes
minuciosa. A educação escolar goza da garantia constitucional. A seguir, pode-se
assinalar quatro grandes ideias que dominam o conjunto destes artigos. Primeira:
investir em educação é apostar no presente e no futuro do Reich uma vez que ela é
considerada peça estratégica no soerguimento da nação. Daí o detalhismo na própria
Constituição. Segunda: busca-se uma democratização da educação escolar, via
sistema nacional, que contemple a escola primária única, gratuita e obrigatória para
todas as classes sociais e para todos os cidadãos alemães sem quaisquer
discriminações. Terceira: a busca de um acordo mínimo em torno da questão do
ensino religioso, penosamente obtido. Criou-se, pois, uma multiplicidade
institucional de escolas públicas: umas com regime laico, outras com regime
confessional e outras com regime interconfessional. Finalmente, tem-se a presença
forte do Estado no sentido de ser ele o titular da educação escolar. Só ele tem a
capacidade jurídica de inspecionar estabelecimentos, de autorizar a abertura de
escolas privadas, de restringir a amplitude da liberdade de ensino e de interferir na
educação religiosa. (CURY, 1998, p. 83-104).

Historicamente, percebe-se que a experiência alemã considerava a educação como


elemento estratégico à própria sobrevivência do Reich e, em certo grau, definia o papel da
educação no Estado Social. É importante que se reflita, antes de adentrarmos no tema central
desta comunicação, ou seja, a educação doméstica como uma reação imunitária a forma-de-
educar própria dos Estados Sociais segundo um currículo comum a priori definido por estes.
Ora, a potência imunitária da educação doméstica se esforça em escapar “para fora”
do direito educacional estatal para seguir outro paradigma e; propor, desta maneira, uma outra
forma-de-educar “fora do Estado”. É mister que façamos neste momento o desenvolvimento
da primeira baliza desta análise que, lança luzes sobre a educação doméstica (homeschooling).
Pode este elemento se constituir um dispositivo biopolítico de imunização?
R. Esposito (2010) afirma ter encontrado no paradigma da imunização uma espécie
de chave interpretativa que teria escapado de M. Foucault segundo o qual a categoria de
“imunidade” se posiciona na encruzilhada entre as esferas do direito e da vida (ESPOSITO,

14“Art. 145: O ensino é obrigatório para todos. Para atender a esta tarefa haverá escolas nacionais com um mínimo de 8 anos
de escolaridade. Haverá também escolas complementares até que o indivíduo complete 18 anos. O ensino e o material escolar
são gratuitos tanto nas escolas nacionais quanto nas complementares.” (In: CURY, Carlos Roberto Jamil. A constituição de
Weimar: Um capítulo para a educação. Educ. Soc., Campinas, v. 19, n. 63, p. 83-104, Aug. 1998. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000200006&lng=en&nrm=iso . acesso em
24.09.2017).

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2014, p. 73). No âmbito biomédico, a imunização se refere, para R. Esposito (2010), uma
espécie de “condição de refrangibilidade, natural ou induzida, em relação a uma dada doença
por parte de um organismo vivo, em linguagem jurídico-política refere-se à isenção temporária
ou definitiva, de um sujeito em relação a determinadas obrigações, ou responsabilidades, às
quais normalmente está vinculado”15.
Para o referido autor, a noção de biopolítica em M. Foucault é de outra natureza; ou
seja, é compreender a trilha percorrida pelo autor francês a partir da genealogia nietzschiana o
qual este se anela metodologicamente, o pensamento biopolítico foucaultiano também emerge
nas entranhas deste movimento; nasce a biopolítica a partir da emergência de determinadas
forças; posto que esta não se encontra gravada na origem (Entestehung)16.
A emergência das forças, na perspectiva de Foucault, atuará, mutatis mutandi, sob a
forma de dispositivos (de segurança) na gestão (indireta) da população, visto que esta ostenta
em si uma certa espessura. Foucault olha para a história, no seu sistema de pensamento do
como uma espécie de história do “presente”; neste sentido, G. Agamben também segue nesta
direção.
A biopolítica foucaultiana se apresenta como uma emergência da Modernidade;
tornando-se a tática hegemônica do exercício do poder, entre os séculos XVIII e XIX. Em
nenhum momento, Foucault afirma que a biopolítica nasceu com o fim da soberania, entretanto,
esta emerge quando a soberania deixa de ser um conjunto de dispositivos hegemônicos de
exercício do poder17. Em R. Esposito, é na Modernidade que a biopolítica adquire seu caráter
imunitário18.

15ESPOSITO, Roberto. Op. cit., p. 74.

16
“Entestehung designa de preferência a emergência, o ponto de surgimento. Do mesmo modo que se tenta muito frequentemente
procurar a proveniência em uma continuidade em interrupção, também seria errado dar conta da emergência pelo tempo final.
Como se o olho tivesse aparecido, desde o fundo dos tempos, para a contemplação, com se o castigo tivesse sido destinado a dar
o exemplo. Esses fins, aparentemente últimos, não são nada mais que o atual episódio de uma série de submissões: o olho foi
primeiramente submetido à caça e a guerra; o castigo foi alternativamente submetido a necessidade de se vingar, de excluir o
agressor, de se libertar da vítima, de aterrorizar os outros (...) A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não
a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações. A emergência se produz sempre em um determinado
estado de forças.” (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, A genealogia e a história. Tradução de Marcelo Catan. In: Microfísica do
Poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 26ª Edição. São Paulo: Editora Graal, 2013, p. 66.
17
Neste sentido, ver. RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Notas de aula ministrada em 12.12.2016. Disciplina: Justiça Social I: A
filosofia em Roberto Esposito. Curso ministrado no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD). Universidade
Federal Fluminense (UFF), Faculdade de Direito, Niterói – RJ, 1º Semestre de 2017.
18
RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Ibidem.

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Na tradição do pensamento biopolítico italiano, aqui estão inseridos R. Esposito e G.


Agamben, a biopolítica tão antiga quanto a própria soberania19; em R. Esposito, esta se
apresenta na forma do paradigma imunitário que:

Fora da qual se devia falar da biopolítica desde o mundo antigo. Alguma vez, com
efeito, penetrou mais o poder na vida biológica do que na longa fase em que o corpo
dos escravos estava plenamente à mercê do domínio incontrolado dos seus patrões e
os prisioneiros de guerra podiam ser legitimamente passados à fio de espada pelos
vencedores? E como não conotar em termos biopolítico o poder da vida e da morte
exercido pelo pater famílias romano em relação aos próprios filhos? (...) A única
resposta que me parece plausível refere-se justamente à intrínseca conotação
imunitária destas últimas, ausente pelo contrário do mundo antigo. (ESPOSITO,
2010, p. 83)

R. Esposito (2010) não se limita a olhar o elemento biopolítico sob o viés da gestão
da população, ao exemplo de Foucault, apesar de reconhecer a originalidade das suas reflexões
sobre o tema20, entretanto, se esforça em apresentar um novo limiar; o novo horizonte de
conceitos e paradigmas no qual a biopolítica se assentaria e, deste modo, uma estrutura, até
então, oculta tanto a Foucault quanto para Hannah Arendt. O primeiro não incluiu o campo de
concentração como topos no qual a relação entre política e vida é levada ao seu extremo horror.
Quanto à segunda, em seu estudo sobre o totalitarismo não anelou os conceitos de animal
laborans e homo faber, ambos presentes n’A Condição Humana.
O esboço geral dos conceitos da biopolítica, de Foucault a Esposito, pode nos ajudar
a compreender os elementos que circundam a relação entre a educação doméstica
(homeschooling) e a immunitas nos oferece uma outra perspectiva de análise. Diante deste
cenário, indagamos: O que a educação doméstica deseja conservar? Contra “o que” e
“contra quem”, os arautos da ED pretendem imunizar? E qual é a relação entre a
educação doméstica e o paradigma imunitário? Pode esta forma-de-educar se constituir
como um dispositivo? Ora, são questões que apresentam no limiar do direito e a forma-de-vida
que passamos a comentar.

19
ESPOSITO, R. Op. cit. p. 83.
20
ESPOSITO, R. Op. cit.

332
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Um possível traço semiótico que torna possível a análise deste problema são os
discursos2122 dos defensores desta forma-de-educar. É importante sublinhar que,
metodologicamente, o que se chama de discurso aqui se apresenta como uma espécie de
ferramenta para se investigar algo que reside nas profundezas do impronunciável23; que se
pronuncia, contudo tal pronunciamento se localiza no campo do inaudível, na zona de
indiscernibilidade entre o “dentro e fora do direito”.
Sobre o discurso e sua relação com o conceito de arquivo, M. Foucault elucidou que
estes são os “discursos efetivamente pronunciados” (FOUCAULT, 2015, p. 151), entretanto,
não somente de um conjunto de acontecimentos ocorridos ao longo dos processos históricos, e
uma vez esgotados, foram relegados aos seus “porões”, muito pelo contrário, trata-se de uma
condição de possibilidade à emergência de outros discursos, ainda que revisitados. Neste
sentido, o autor francês entende o arquivo24, como:

(...) O conjunto de discursos efetivamente pronunciados; e esse conjunto é


considerado não somente como um conjunto de acontecimentos que teriam ocorrido
uma vez por todas e que permaneceriam suspensos, nos limbos ou no purgatório da
história, mas também como um conjunto que continua a funcionar, a se transformar
através da história, possibilitando o surgimento de outros discursos (FOUCAULT,
2015, p.151).

A relação entre o discurso, conforme já exposto por Foucault no último fragmento, e


os acontecimentos no mundo da vida (Lebenswelt)25 pode apontar um caminho investigativo

21Por ora, entende – se o “discurso” no sentido dado pela Teoria Social que consiste no “modo de falar e pensar sobre um
assunto, unido por princípios comuns. Seu intuito pe estruturar a compreensão e as ações das pessoas sobre determinado
assunto.” (GIDDENS, Anthony. SUTTON, Philip. Conceitos essenciais da sociologia. Tradução de Cláudia Freire. 1ª Edição.
São Paulo: Editora UNESP, 2016, p.7).
22
Sobre a relação entre o discurso, poder e os regimes de veridicção, M. Foucault ponderou que “era o discurso que pronunciava
a justiça e atribuía cada qual a sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que se ia passar,
mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim o destino.” (FOUCAULT, M. A ordem
do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 6ª edição. Coleção Leituras Filosóficas, São Paulo: Editora Loyola,
2000, p. 15).
23 “A intenção do sujeito falante, sua atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que emergiu

involuntariamente do que disse ou da quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas; de qualquer forma, trata-se de
reconstruir um outro discurso, de descobrir a palavra muda, murmuramente, inesgotável” (FOUCAULT, M. A arqueologia do
saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8ª edição (5ª tiragem). Rio de Janeiro: Editora Gen/Forense Universitária, 2016, p.
33).
24FOUCAULT, M. Entrevista com J.- J. Brochier. “Michel Foucault explica seu último livro”. Publicado na Magazine littéraine,

n. 28, abril-maio de 1969, p.23-25. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de
pensamento. Organização: Manoel Barros da Motta. 3ª edição. 2ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Gen/Forense
Universitária, 2015, p.151.
25Mundo da vida (Lebenswelt) é considerado aqui, no sentido husserliano como “o mundo histórico-cultural concreto,

sedimentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre os quais se encontra a imagem de mundo elaborada
pelas ciências. O Lebenswelt é o âmbito de nossas originárias ‘formações de sentido’, do qual nasce as ciências. (...) Segundo
Husserl, é preciso recolocar a subjetividade transcendental no centro da reflexão.” (ZILLES, Urbano. A fenomenologia

333
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ISSN 2236-9651, n. 7

que relacione a ED e o paradigma da imunização espositano, ainda que indiretamente. O


conjunto de discurso pronunciados performado por sujeitos falantes que ostentam em si as
expectativas e frustrações adquiridas nas dimensões social, cultural e até política do mundo da
vida pretendem, como finalidade última, ensejar em efeitos sobre os demais sujeitos falantes.
E. Husserl (2008) conceitua o mundo da vida como um mundo circundante vital; local
onde as subjetividades capturam e constroem seus sentidos, refutando o reducionismo radical
do mundo objetivo26. Para a fenomenologia de E. Husserl, o reducionismo do objetivo deixa
escapar:

(...) o fundamento permanente do seu trabalho mental, subjetivo, é o mundo


circundante (Lebensumwelt) vital, que constantemente é pressuposto como base,
como o terreno da atividade, sobre o qual suas perguntas e seus métodos de pensar
adquirem um sentido (HUSSERL, 2008, p. 83).

O mundo da vida forma contextos e processos de entendimento (HABERMAS, 2012,


p. 248) como é o caso dos sujeitos que desejam educar a prole, segundo determinados
mandamentos ditos tradicionais, pois compreendem que o ato de educar, devem conter certos
valores religiosos. Por esta razão, a importância da relação realizada por E. Husserl dos sujeitos
que transitam, culturalmente, no mundo da vida.
A perspectiva dos participantes em relação ao mundo da vida cotidiano27, a dimensão
sociocultural deste mundo, pode se tornar algo fundamental ao entendimento das
representações narrativas28. Para o filósofo alemão: “quando os participantes da interação,
voltados “ao mundo”, reproduzem, mediante suas realizações de entendimento, o saber
cultural do qual nutrem, eles reproduzem ao mesmo tempo sua identidade e sua pertença a
coletividades”29. J. Habermas (2012) escreve que:

O conceito “mundo da vida cotidiano, que tomamos como ponto de referência para
representações narrativas, tem de passar por uma reelaboração antes de ser utilizado
teoricamente na formulação de proposições sobre a reprodução e/ou automanutenção
de mundos da vida estruturados comunicativamente. Na perspectiva dos
participantes, o mundo da vida é dado apenas como contexto formador do horizonte
de determinada situação da ação; já o conceito cotidiano de mundo da vida,

husserliana como método radical. In: HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia, Introdução e tradução
de Urbano Zilles. Coleção Filosofia 41. 3ª Edição. Porto Alegre: Editora EdPUCRS, 2008, p. 45).
26HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia, Introdução e tradução de Urbano Zilles. Coleção Filosofia

41. 3ª Edição. Porto Alegre: Editora EdPUCRS, 2008, p. 83.


27HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: Sobre a crítica da razão funcionalista. Volume 2. Tradução de Flavio Beno

Siebeneichler. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 251.


28
HABERMAS, J. Op. cit., 2012, p. 250-251.
29
HABERMAS, J. Op. cit., 2012, p. 255.

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pressuposto na perspectiva do narrador, é utilizado para fins cognitivos.


(HABERMAS, 2012, p.251).

É neste ponto que, o discurso, a comunicação e o mundo da vida se articulam para


formar uma espécie de diagrama ou grade onde a immunitas inscrita no interior das formas-
de-vida que, de certa maneira, reforça, as reativações de determinados saberes e práticas que,
até então aparentemente se encontravam hibernadas nas profundezas do modo liberal de
governar próprio do Estado liberal. Ou seja, a antítese do modelo de educar segundo o modelo
de Estado Social e da Constituição de Weimar não emerge na dimensão jurídica ou política,
entretanto, na dimensão cultural dos participantes.
Entretanto, em que consiste tal a finalidade? Parece-nos que a questão gravita em
torno da racionalização da ação dos demais indivíduos; nos seus efeitos e repercussões no
mundo da vida. No problema em comento, a naturalização do paradigma imunitário de educar;
isolando-o das relações de co-presença30 que a escola da pluralidade e das tensões e potências
que o encontro das diversas imagens de mundo. A reivindicação dos apologistas da educação
doméstica ou domiciliar rompe com a educação pública aqui entendida em sentido lato; como
um serviço público ainda que seja exercida pela gestão privatista.
A conservação de uma forma-de-vida – a partir de um compêndio de valores
ancorados na tradição judaico-cristã – parece emergir indiretamente através da homeschooling.
Para os adeptos, esta forma-de-vida é mais que uma escolha, contudo, esta pertence ao
patrimônio jurídico-legal daqueles; oposto a prescrição legal dos modelos de Estado social,
conforme já dito aqui alhures. A homeschooling pretende colocar-se fora do direito a partir do
próprio direito em jogo binário de exclusão – inclusão.
O sentido de forma-de-vida concedido nesta elongação encontra-se inserida na
reflexão agambeniana dado na “Altíssima Pobreza”, que é parte do projeto Homo Sacer.
“Forma” no sentido agambeniano toca o sentido do “paradigma”. G. Agamben esclarece que a

Forma vitae designa, neste sentido, um modo de vida que, ao aderir estreitamente a
uma forma ou modelo, de que não pode ser separado, se constitui por isso mesmo

30Como devemos entender o termo “co-presença”? De acordo com Goffman, e também com meu emprego aqui, co-presença
está estribada nas modalidades perceptíveis e comunicativas do corpo. As condições chamadas por Goffman ‘condições plenas
de co-presença’ são encontradas sempre que os agentes “sempre estar suficientemente próximos para serem percebidos em sua
ação, seja esta qual for, incluindo sua experiência de relação com os outros e, para serem percebidos neste sentir ser percebidos.”
(GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 78-
79.

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ISSN 2236-9651, n. 7

como um exemplo (...) para que se transmitisse aos homens o exemplo de vida a ser
vivida (AGAMBEN, 2014, p. 101).

A ED traz em si decalcada em sua linguagem a forma-de-vida que se deseja alcançar;


modulada a partir da dogmática religiosa. Para tanto, retira-se, esvazia-se, do Estado o direito
de educar segundo determinados paradigmas ou eventuais cálculos de utilidade. As
insatisfações declaradas por seus arautos se transformam em elementos jurídicos inseridos no
processo judicial; naquilo que M. Foucault já chamou nos regimes de veridicção31.
As questões levantadas por Agamben (2014) ao analisar sobre os princípios
franciscanos e as regras monásticas a fim de se construir o conceito de forma-de-vida ou seja,
“uma vida que vincule tão estreitamente a sua forma a ponto de ser inseparável dela”32. A ED
quer se separar da vida do comum para enveredar-se aos caminhos da immunitas.
Ora, ED, aqui observada sob a perspectiva apresentada, propõe com uma forma-de-
educar ancorada nos fundamentos da teologia cristã, com a potência necessária para se
apresentar como um dispositivo de regulação da vida e ao mesmo tempo, um dispositivo33 de
subjetivação que inculca os sujeitos para o intolerável segundo suas liturgias e crenças. Caso a
ED seja regulamentada no Brasil, diante desta imunização da vida: Indaga-se: Quais seriam as
consequências caso este paradigma se torne a regra?
O horizonte da immunitas está se deslocando diante dos nossos olhos, seja pelo
discurso, seja pela judicialização, fato é que os traços de um diagrama formador de um
dispositivo aponta para o aberto; um campo movediço de indecibilidades; a ED emerge como
esforço de se conservar, ao exemplo das regras monásticas, uma única forma-de-vida, onde o
pluralismo ou a convivência das diversas formas não são toleráveis; prefere-se então como
alternativa sombria, imunizar.

31
Sobre os regimes de veridicção, ver FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-
1979). Aula de 17 de janeiro de 1979. p. 4São Paulo: Martins Fontes Editores. p.49.
32
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: regras monásticas e forma de vida. Tradução de Selvino J. Assmann. 1ª Edição. São
Paulo: Editora Boitempo, 2014, p. 101.
33O dispositivo é o conjunto homogêneo, linguístico e não linguístico que, inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título:

discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se
estabelece entre esses elementos. (In: AGAMBEN, Giorgio. O que é o dispositivo? O que é o contemporâneo? e outros ensaios.
Tradução de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos Editora, p. 29.

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CONCLUSÃO

Diante da presente análise pretendeu-se lançar luzes sobre um tema que a priori
encontrava-se adstrito aos círculos das discussões pedagógicas sobre metodologias de ensino
que podem ser aplicadas no processo de ensino-aprendizagem. Com a judicialização da ED ou
homeschooling ante a falta de regulamentação legal, cria-se um “vazio de direito”, abrindo-se
artérias para que outras anomias emerjam. O “direito de educar” se consolida com o surgimento
do Estado Social; gerando uma espécie de vis attractiva ao Estado em prover a educação da
população. Presente na Constituição de Weimar, o direito de educar a população foi repetido
em diversos sistemas constitucionais, inclusive no direito brasileiro.
O que chama a atenção na experiência brasileira da ED é o discurso conservador
fundado no paradigma cristão para se justificar a sua utilização, abdicando-se do sistema
público de ensino. Atualmente, a questão chega ao STF, superando o debate local ou um mero
inconformismo de uma família confessante de uma certa fé e, adquire o status constitucional
de se estabelecer como uma alternativa para se educar, podendo inclusive suprimir teorias que,
eventualmente, conflitem com as crenças teológicas.
A homeschooling, neste contexto, adquire uma potência imunitária de se isolar toda
a convivência com os demais sujeitos que não comungam com a teologia praticada. Nesta
guisa, as relações de co-presença que o ambiente escolar pode proporcionar aos sujeitos
encontra-se em xeque. Mas o que pode surgir daí? Diante do sucateamento da estrutura pública
de ensino no Brasil, que indubitavelmente ostenta seus problemas, entretanto, mesmo com
tantas condicionantes, as instituições públicas de ensino oferecem os espaços de co-presença e
a exposição a pluralidade das diversas imagens de mundo. Contrario sensu, o paradigma da ED
coloca o sujeito em ‘isolamento’, e privado da co-presença.
Mas qual o flanco que se abre ante a este estado de coisas? É difícil dizer. Quais seriam
as consequências, caso a ED se torne não só uma opção juridicamente possível, mas um
paradigma? Ou um instrumento para se imunizar o sujeito das relações de co-presença. Basta
“judicializar” o debate para que uma “verdade” seja revelada, confirmada ou, como já disse M.
Heidegger, a judicialização da ED confirma um “desvelar” da verdade? São apenas questões,
são inquietações que circundam o debate que ainda se encontra fora do alcance da sociedade
ou, como prefere J. Habermas chamar, de concernidos. Mas como dizemos são questões,
apenas questões.

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ISSN 2236-9651, n. 7

REFERENCIAS

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1ª Edição. Coleção: Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2014.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o dispositivo? O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius
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LAÊRTIOS, Diôgenes. Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego de Mário da Gama Kury. 2ª
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338
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Notas de aula ministrada em 12.12.2016. Disciplina: Justiça Social I: A filosofia
em Roberto Esposito. Curso ministrado no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD).
Universidade Federal Fluminense (UFF), Faculdade de Direito, Niterói – RJ, 1º Semestre de 2017

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VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Educação na casa: perspectivas de desescolarização ou liberdade de


escolha? Revista eletrônica Pro-posições. Vol.28, número 2: Campinas Maio-Agosto 2017. ISSN 1980-6248.

ZILLES, Urbano. A fenomenologia husserliana como método radical. In: HUSSERL, Edmund. A crise da
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339
A CONSTRUÇÃO DA “VERDADE”
E O FIM DAS ILUSÕES ACERCA DO INDIVÍDUO

MONTEIRO, Mariana L.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF (PPGSD-UFF)

RESUMO

O trabalho que ora se apresenta tem como objetivo colocar em questão o modelo de produção de
verdades construído sob o legado na modernidade filosófica, tendo como eixo de análise a percepção
individual do sujeito que as produz. Indivíduo enquanto uma entidade pronta e acabada, portador de uma
natureza fixa e imutável. Sujeito que goza de aparente privilegio sobre tudo o mais no real em razão de
uma distinta e pretensamente mais qualificada essência. Para reconstruir as condições que permitiram a
consolidação de uma narrativa que produz verdades, retomaremos a passagem o modelo da palavra
mágico-religiosa para o da palavra-diálogo, na Grécia Antiga (séculos VIII-VI), na qual se dá a afirmação
de um discurso racional, laico, em substituição ao simbólico-religioso. A emergência de um espaço
público em que o prestígio da palavra e a argumentação tornam-se dominantes, abrindo o caminho para
o estabelecimento de verdades tão inquestionáveis e dogmáticas quanto as religiosas...

Palavras-chave. Verdade, indivíduo, modernidade.

ABSTRACT

The following paper intends to enlight the truth-making model built over the modern philosophy legacy,
foccusing on the individual that leads this process. An individual as a finished entity that carries within
itself an estabilished and unchangeable essence, apparently priviledged in comparison to everything
else, due to a distinct and seemingly mode qualified nature. In order to rebuild the conditions that
allowed the setting of a narrative that creates truths, we shall retrace the passage from the magical-
religious word to the dialog-word, back in Ancient Greece (VIII-VI a.c), the milestone of the setting of
the rational speech, secular, that took over the religious-simbolic one. The rising of a public arena in
which the prestige of the words and arguments became dominants, paving the way to the stabilishment
of certain truths so certain and dogmatic as the religious ones…

Keywords. Truth, individual, modernity.

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A descrença de que haja uma verdade a ser revelada aos homens, pré-existente a eles,
remonta ao aparecimento da cidade1 e da vida social, que marcam a decadência da palavra
mágico-religiosa, entre os séculos VIII e VII, instituindo um espaço de domínio público. Dá-
se, assim, a transformação do saber esotérico, composto por dogmas impostos aos homens de
forma inquestionada, em um novo campo de sentido no qual prevalece a palavra como
instrumento de poder por excelência, diferente daquela palavra “intemporal; inseparável das
condutas e dos valores simbólicos; o privilégio de um tipo de homem excepcional2“, presa a
uma origem simbólico-religiosa. A emergência da cidade permitiu a laicização palavra,
afastando-a do ritual, da noção de justo, aproximando-a da discussão, do debate, da
argumentação e da retórica. A esse respeito, dirá Jean-Pierre Vernant:

“Historicamente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das
formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembleia e do tribunal,
abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir, ao lado de uma técnica da
persuasão, regras da demonstração e ao pôr uma lógica do verdadeiro, própria do
saber teórico, em face da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates
arriscados na prática3“.

As relações estabelecidas no contexto das diversas instituições gregas (assembleias


deliberativas, partilha do butim, jogos funerários) seguiam o modelo do espaço circular em que
cada um está em posição de igualdade com relação aos demais, ao redor do méson (centro), em
uma disposição espacial da qual derivarão as noções de publicidade e comunidade. O centro
representa o lugar do público (em oposição ao privado) e da publicidade, noções fundamentais
para a palavra-diálogo, “laicizada, complementar à ação, inscrita no tempo, provida de uma
autonomia própria e ampliada às dimensões de um grupo social”. Este grupo social foi formado
pelos guerreiros, entre os quais as relações não se davam ao nível familiar, de parentesco, mas
vinculando-se através de relações contratuais, o que será determinante para o desenvolvimento
determinadas estruturas de pensamento claramente distintas do modo de pensar que se constrói
tendo por base a palavra mágico-religiosa. A palavra dos guerreiros é laica e necessariamente
complementar à ação humana. Não transcende aos homens, ao contrário, se funda nas relações
entre eles, retirando sua força da aprovação do grupo social.

1
A pólis grega.
2
Detienne, Marcel, Os mestres da verdade na Grécia Antiga. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988, p.45.
3
Vernant, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,1992, p.35.

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A vida em sociedade propiciou aos homens a experiência de viver sob uma lei e uma
ordem igualitárias, em substituição à velha dominação inconteste do monarca, bem como a
vivência de um espaço onde se encarnaram as instituições da polis grega: o espaço político. A
nova organização do espaço urbano reflete, de modo mais estrito, os esforços de se organizar e
racionalizar o próprio mundo humano. É possível notar que este novo quadro espacial refletiu
sobre a orientação geométrica própria da astronomia grega, demonstrando clara “analogia de
estrutura, entre espaço institucional no qual se exprime o cosmos humano e o espaço físico no
qual os milésimos projetam o cosmos natural4“. Decorre disto que a Ágora materializa no plano
dos homens a organização espacial, instituindo um lugar do comum, onde todos que adentram
identificam-se como iguais, em relações de clara reciprocidade.
No tocante à importância grega para o nascimento da linguagem, dirá Pierre Vidal-
Naquet

É na história da sociedade grega, do homem grego, que devemos procurar os traços


fundamentais que explicam o abandono voluntário do mito, a passagem das
estruturas organizadoras inconscientes – quero dizer, aquelas que não sabem que são
‘lógicas’, no sentido em que nos procura mostrar (e consegue muitas vezes) Lévi
Strauss – a uma tentativa deliberada de descrever, ao mesmo tempo, o funcionamento
do Universo ( a razão dos ‘físicos’ jônicos e italianos) e o funcionamento dos grupos
humanos (a razão histórica, seja a de um Hecateu, de um Heródoto ou de um
Tucídides)5.

O prestígio da palavra e a argumentação tornam-se determinantes para o agir político,


tomando o lugar do prestígio pessoal ou religioso como fonte de validade e poder, estatuto de
verdade e poder. Já não se sustentam as versões ocultas, secretas, religiosas do real, agora são
os sábios que debaterão acerca das “verdades”. Observamos então a coroação do racionalismo
político em oposição aos antigos processos religiosos. Ainda que libertadora da potência
humana, essa nova prática das cidades excluiu o vulgo deste processo. As novas “verdades”
foram formuladas em termos desconhecidos a ele, excluindo-o. Segundo Vernant, essa
passagem da palavra mágico-religiosa para a palavra-diálogo

(...) leva o mistério para a praça pública; faz dele objeto de um exame, de um estudo,
sem deixar entretanto completamente de ser um mistério. Aos ritos de iniciação
tradicionais que proibiam o acesso às revelações interditas, a sophia e a philosophia
substituem outras provas: uma regra de vida, um caminho de ascese, uma via de
pesquisa que, ao lado das técnicas de discussão, de argumentação, ou dos novos

4Vernant, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1992, p.91.
5Naquet, Vidal Pierre, in prefácio a Detienne, Marcel, Os mestres da verdade na Grécia Antiga. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1988, p.8.

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instrumentos mentais como as matemáticas, conservam em seu lugar antigas práticas


divinatórias, exercícios espirituais de concentração, de êxtase, se separação da alma
e do corpo6

Era na Ágora que, em assembleia política, iniciada pela pronúncia do arauto “Quem
quer trazer ao centro uma opinião prudente para a sua cidade?”, os homens levavam suas
opiniões ao centro, fazendo da linguagem um instrumento e consolidando um mundo de maior
autonomia do pensamento. Embora não tivesse origem divina, tampouco se pode afirmar da
palavra-diálogo que ela seja de uso de todos. Apenas os mais talentosos, mais aptos,
privilegiados, podiam fazer uso dela, em detrimento da massa (dêmos), que não tinha direito de
falar por não ser constituída por guerreiros, membros de uma elite. A palavra torna-se o
instrumento político por excelência, permitindo aos homens exercerem dominação uns sobre
os outros.
O desenvolvimento de práticas públicas, aliado ao prestígio da palavra, resultou numa
certa identificação entre os citadinos que, por mais diferentes entre si que pudessem ser,
terminavam por se equiparar, se assemelhar na arena pública. Tal semelhança tem como efeito
a produção de certa homogeneidade, uma unidade na polis, em oposição à relação hierárquica
de domínio anterior. O social não encontra-se mais tecido sobre a autoridade soberana,
submetido a um criador de predicados excepcionais. Na cidade é a ordem que rege as relações
entre os sujeitos, limitando sua ação (poder) e estabelecendo a supremacia da lei e da ordem.
A esse processo de deslocamento da autoridade religiosa, transcendente, para a
verdade produzida no plano terreno, entre os homens que provassem seu valor publicamente,
segue-se outro efeito, não tão positivo. A exaltação do prestígio e do poder do indivíduo,
práticas marcadamente aristocráticas, aos poucos tendeu a catapultar este a um nível mais
elevado do que o desejado. Passam, assim, a ser rejeitadas práticas que estabelecem a
desigualdade entre os homens, afastando-os, criando desarmonia e cindindo a cidade, como “a
falta de comedimento, a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos
funerais, as manifestações excessivas da dor em caso de luto, um comportamento muito
ostensivo das mulheres, ou o comportamento demasiado seguro, demasiado audacioso da
juventude nobre7“. Esparta, repudiando a ostentação da riqueza, concentrava-se
exclusivamente na sua vocação guerreira, fechando-se em si mesma, rejeitando interferências

6
Idem, ibidem. Pg.41
7
Idem, ibidem, pg.45.

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estrangeiras e, assim, a circulação das ideias. Proibia o comércio, a atividade artesanal,


desvalorizava as letras e mantinha-se longe de debates intelectuais. Novamente, trata-se de um
mundo regido pela lei e ordem, em que todos aqueles que tinham treinamento militar possuíam
igual status social, não estando sob o rei numa relação de submissão.
No que se refere à dualidade sujeito/mundo, Merleau-Ponty resgatará o valor do corpo
de modo que a consciência não pode ser pensada sem este, sendo mesmo a consciência de um
corpo, não existente em abstrato. Dirá: “o meu corpo é feito da mesma carne do mundo (é um
percebido) e que, além disso, desta carne do meu corpo participa o mundo8“. Ou seja, aquele
que conhece e o mundo produzido por ele, são um só. O que percebe e o percebido são
indiscerníveis, não há sujeito sem objeto nem objeto sem sujeito. Mundo e percepção não se
separam, o percebido e aquele que percebe estão necessariamente imbricados. Se assim é, como
algo pode ser tomado como verdade em abstrato, “de saída”, independente do olhar do
observador, deslocado da realidade concreta? O verdadeiro não precede ao indivíduo na medida
em que sequer existe antes dele.
Uma vez estabelecidas as bases sobre as quais se fundará a transição do pensamento
mágico-religiosa para o pensamento e racional, podemos compreender de que forma a
modernidade se constituiu, posteriormente, em projeto de neutralização das relações, o campo
de batalha do individualismo possessivo ou das relações que se estabelecem entre os homens e
as coisas (capital, mercadorias) e não entre sujeitos. Trata-se de projeto de desconstituição das
relações recíprocas do Antigo Regime, de certo, mas também contra a lei da convivência
associativa dos homens para, assim, evitar o risco. Dentre os filósofos modernos, Hobbes foi
quem primeiro forneceu uma forma mais acabada a esse projeto, quando toma por base da sua
concepção acerca da emergência do Estado, a necessidade de se evitar “a guerra de todos contra
todos9“, garantindo maior segurança para as vidas individuais em troca da liberdade. A
sociedade assim formada, naturalmente neutraliza as possibilidades associativas entre os
homens.
A história da filosofia política (em especial a filosofia moderna) tem sido por muito
tempo um esforço para justificar a existência do Estado. No pensamento hobbesiano nota-se
uma centralidade do medo enquanto motivador para o estabelecimento de um vínculo social e

8 Merleau-Ponty, Maurice, Le visible et l,invisible, p.260, in Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004,

p.228.
9
Hobbes, Thomas. Leviatã, in Os Pensadores, ed. Abril, 1979, Rio de Janeiro, p.75.

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é sobre ele que em grande parte sua teoria repousa. Para Hobbes, os homens são iguais por
natureza – igualdade na natureza, na mortalidade, não uma igualdade jurídica, vale ressaltar.
Daí o medo disseminado da morte, a qual nos atravessa e nos constitui. Há um esforço que nos
é essencial e espontâneo de buscar tudo que é bom e se compõe com a própria vida, do mesmo
modo que há outro de fugir de tudo que é mal e nos enfraqueça, sobretudo do pior dos males, a
morte. Este é o esforço de conservação, tal qual nos apresenta Hobbes - “O direito de
natureza(...) é a liberdade que todo o homem tem de usar o seu poder, como ele entenda, na
preservação de sua natureza, isto é, da sua vida, e por conseguinte, de fazer seja o que for que,
a seu juízo e segundo sua razão, ele conceba como meio mais adequado para tanto10“. Tememos
a morte muito mais do que desejamos a vida.
Trata-se de um medo terrivelmente originário e que está ligado ao desconhecimento
do que virá, à incerteza – afinal, se há certeza do mal que virá, não há mais esperança e sim
desespero, de modo que medo e esperança andam necessariamente juntos. Esperança e medo
não se separam, quando muito experimentamos mais de um do que do outro – a esperança
jamais vence o medo. O medo é fundacional da política. A esperança nasce do conceber um
mal, juntamente com a forma de evitá-lo, ao passo que o medo que se concentra sobre um bem
e consiste em imaginar um modo de perdê-lo.
Interessa a Hobbes o homem tal como ele se apresenta, sem ilusões a seu respeito ou
sobre uma pretensa moral universal, utópica. Ele rejeita as teorias idealistas, levando-nos à
constatação de que o bom resultado das instituições não pode depender da qualidade dos
homens. É preciso trabalhar com esse homem real, sendo o medo o primeiro motor da atividade
política. Qualquer Estado, bom ou ruim, se origina do medo e, vale notar, não repousa apenas
nas bases do Estado despótico, mas mesmo nas formas legítimas e positivas. Ele está lá e se
compõe inclusive com a razão, ou seja, pode ser força produtiva. O medo não determina apenas
fuga e isolamento, mas também relação e união. É preciso que os homens se sintam
razoavelmente seguros sob a proteção da instituição estatal (temendo-a, ainda assim) com
relação àquele outro medo, o do estado de natureza. Esse medo está ligado mesmo ao
aparecimento do Estado moderno e não é exclusividade do pensamento hobbesiano, ainda que
para muitos autores essa seja uma realidade difícil de enfrentar, reconhecer.

Do que se tem medo? Da morte, foi sempre a resposta. E de todos os males que
possam simbolizá-la, antecipá-la, recordá-la aos mortais. Da morte violenta,

10
Hobbes, Thomas. Leviatã, in Os Pensadores, ed. Abril, Rio de Janeiro, 1979, p.78.

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completaria Hobbes. De todos os entes reais e imaginários que sabemos ou cremos


dotados de vida e de extermínio: da natureza desacorrentada, da cólera de Deus, da
manha do Diabo, da crueldade do tirano, da multidão enfurecida; dos cataclismos, da
peste, da fome e do fogo, da guerra e do fim do mundo. Da roda da Fortuna. Da
adversidade. Da repressão, murmuram os pequenos; da subversão, trovejam os
grandes. Do que se tem medo? Da morte inglória e infame num mundo aristocrático
e agonístico para o qual o supremo valor é a coragem nos campos de batalha. Do que
temos medo? Da morte seca e nua como um osso, sem mediação, terror no despencar
da guilhotina, no “suicídio acidental” dos calabouços, no grito abafado dos fornos
crematórios. Da morte, senhora absoluta, enfrentada pelo herói hegeliano para
descobrir que não era, afinal, a verdadeira morte, pois passou por ela e não morreu,
deixando a vitória àquele que realmente tremeu de horror diante dela – o escravo,
capaz de construir a liberdade11.

A modernidade colocou o homem no centro do pensamento, de certo, mas não há


como negar sua finitude. É a filosofia da finitude. Reconhecendo os limites da faculdade
humana, Kant especulará acerca das potências do homem e o que está para além delas, vale
dizer, o que não nos é dado conhecer. Dirá:

Quisemos, portanto, dizer: que toda nossa intuição é senão a representação de


fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal qual as instituímos,
nem que as suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos
aparecem e que se suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição
subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a constituição, todas
as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo. Todas essas
coisas enquanto fenômenos não podem existir em si mesmas, mas somente em nós.
O que há com os objetos em si e separados de toda essa receptividade da nossa
sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o
nosso modo de percebê-los, o qual nos é peculiar e não tem que concernir
necessariamente a todo ente, mas sim a todo homem. Temos a ver unicamente com
esse modo de percepção. Espaço e tempo são as suas formas puras, sensação em gera
a sua matéria. Podemos conhecer aquelas unicamente a priori, isto é, ante de toda
percepção real, e chama-se por isso intuição pura; a última, porém, é o que o nosso
conhecimento a faz chamar-se conhecimento a posteriori, isto é, intuição empírica.
Aquelas inerem à nossa sensibilidade de modo absolutamente necessário, seja de que
espécie forem nossas sensações; estas podem ser bem diversas. Mesmo se
pudéssemos elevar nossa intuição ao grau supremo de clareza, com isso não nos
aproximaríamos mais da natureza dos objetos em si mesmos. Com efeito, em todo o
caso conheceríamos inteiramente apenas o nosso modo de intuição, isto é, a nossa
sensibilidade, e esta sempre só sob as condições espaço e tempo originariamente
inerentes ao sujeito; o que possam ser os objetos em si mesmos jamais se nos tornaria
conhecido nem mesmo pelo conhecimento mais esclarecido do seu fenômeno, o qual
unicamente nos é dado.12

Para Descartes, apenas uma faculdade ou potência humana é infinita: a vontade. A


faculdade de conhecer é finita, a vontade não. Reconhece na condição humana a faculdade de
conhecer algo como “muito pequena e grandemente limitada” ao passo que a vontade figura

11
Chauí, Marilena in Os Sentidos da paixão, ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1987, p36.
12
Kant, Immanuel. Crítica da razão pura, in Os Pensadores, ed. Abril, São Paulo, 1979, pp. 49 e 50.

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como algo muito mais amplo e extenso, “se dirige e se estende infinitamente a mais coisas13“.
A filosofia moderna é, portanto, a filosofia da finitude do homem, uma filosofia da morte,
embora evidentemente não se apresente assim. Diferentemente, se estamos no campo das
relações, no terreno do acontecimento, estamos inscritos no devir, submetidos a uma dinâmica
qualquer, a processos que não cessam de acontecer e que não se cristaliza. Se há algo que se
pode afirmar daquilo que somos, algo que o homem “é”, será quando muito um algo em aberto,
constantemente sendo produzido nas relações. Trata-se de um aberto que não se agrega ao ser,
não o predica, é acontecimento. Não se refere a ele ou lhe atribui qualidades, o que há são
constantes relações, processos, acontecimentos, abertura continua para o novo.
A empresa moderna de classificar e limitar o sujeito, categorizar o real e estabelecer
essências universais, pode ser reconhecida na nossa linguagem, na qual predominam os
substantivos, nomes, indicando algo fixo, consagrando a existência de essências distintas.
Dizemos “o cão”, “o homem”, “a árvore”, por exemplo, ao invés de descrever as coisas por
aquilo que elas fazem ou acontecem (verbos). Nesse sentido, dirá Deleuze, sobre a árvore, que
ela “verdeja14“, em detrimento de dizer dela que é verde. O aberto pode ser pensado como um
sujeito, mas sujeito dinâmico, não egóico. Um aberto em que o sujeito e seu par, o objeto,
andam sempre juntos, não havendo o “eu” separado do que me rodeia, de modo que pensar a
dualidade sujeito/objeto só faz sentido quando não se consideram essas continuas relações entre
eles.
O aberto é, ele mesmo, efeito de um “com”, é sujeito num outro sentido, uma
subjetividade sem ego e que vai se apoiar pura e simplesmente na relação, no que acontece
entre coisas. É como reconhecer que há o sujeito quando se produz ali um sentido, uma relação.
Quando, por exemplo, pensamos nas duas mãos que são necessárias para produzir o som de
palmas ou na dança que só acontece no encontro, em relação, de dois corpos. Não foi a mão
direita ou a esquerda que produziu o som dos aplausos, mas o encontro das duas. Não foi o
corpo do homem ou da mulher que produziram a valsa, mas a relação dos dois.
O nascimento humano, segundo Hanna Arendt, ultrapassa o mero acontecimento
biológico, dado que o homem é capaz de cultura, o que significa dizer que a cada geração ele é
capaz de novas coisas, diferente dos animais, que repetem os mesmos atos, por instinto, sempre,

13
Descartes, René, in Os Pensadores. Ed. Abril, São Paulo, 1979, pg.118.
14
Deleuze, Gilles. Lógica do Sentido, Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p.10.

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num “curso repetitivo”. É início que se repete infinitas vezes numa “pluralidade diferencial15“,
o que revela a originalidade da vida humana face à vida animal e abre a possibilidade de agir
rompendo com os instintos. A este respeito, dirá:

...exatamente como, do ponto de vista da natureza, o movimento retilíneo do curso


da vida do homem entre o nascimento e a morte parece um peculiar desvio da regra
natural comum do movimento cíclico, assim também a ação, do ponto de vista dos
processos automáticos que parecem determinar o curso do mundo, se assemelha a
um milagre (...). O milagre que preserva o mundo, a esfera dos afazeres humanos, da
sua normal, ‘natural’, ruína é em definitivo o fato da natalidade, na qual está
ontologicamente radicada a faculdade de agir. É, por outras palavras, o nascimento
de novos homens e o novo início, a ação de que eles são capazes em virtude de terem
nascido16“.

Os processos de subjetivação são abertos, jamais produzem uma forma definitiva,


abrem sempre outros processos. Por mais que se individue, o homem não deixa de ser “larva”,
de se abrir constantemente a novas formas. A individuação física é sempre incompleta e é
justamente nesse espaço, em tal abertura, que ela se abre para a individuação biológica que, por
sua vez também incompleta, abre-se ainda para a individuação psíquica. Cada uma sucede a
outra numa cadeia de processos de individuação. Para que haja sujeito não basta a individuação
física nem só a biológica, precisa haver também a individuação psíquica a criar o “vivente
humano”. Este é mais que o vivente, há uma diferença de grau com relação ao simples vivente.
O vivente humano não deixa de ser o mero vivente, mas o sucede, o ultrapassa em grau - a
diferença não é de substância.
É justo essa abertura, esse eterno devir, que constitui o humano e mesmo o político.
Não há uma essência ou natureza humana, há sim um LIMIAR, um esforço ou uma tendência
em uma certa direção. Esse ultrapassar de um limiar qualquer que o homem ultrapassa é
definido, em termos de nascimento, quando se dá o psíquico. O homem não possui nada por
natureza, de forma inata, as faculdades do homem nascem junto com suas funções no
movimento da vida, não se separa esta daquelas. Assim, o nascimento não é um fenômeno da
vida e sim a vida um fenômeno do nascimento. A vida é fenômeno que ocorre nesses limiares
ultrapassados, esforços, durações, uma individuação continuada. Em síntese, é o que nos ensina
Gilbert Simondon ao dispor que

15
Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004, p.251.
16
Arendt, Hannah, Vita active, cit.,p.182, in, Espósito, Roberto, op.cit, p.251.

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“O indivíduo concentra em si a dinâmica que o fez nascer e perpetua a primeira


operação de uma individuação continuada: viver é perpetuar um permanente nascimento
relativo. Não basta definir o vivente como organismo. O vivente é organismo na base da
primeira individuação; mas só pode viver se for um organismo que organiza, e se organiza, ao
longo do tempo. A organização do organismo é o resultado de uma primeira individuação, que
se pode chamar absoluta; mas esta última, mais do que vida, é condição de vida; é condição
daquele nascimento perpétuo que é a vida17“.
Há clara semelhança entre o pensamento de Simondon e Spinoza, nesse aspecto. Só
é possível pensar o ser como aquilo que ele efetivamente pode ou, em outras palavras, “cada
coisa natural recebe da natureza tanto direito quanto o poder que tem de viver e agir18“. O que
chamamos direito são os fatos da vida, não é algo abstrato, e só existe enquanto inseparável da
concretude da vida. Não há sentido em submeter a vida à norma, dado que elas não se separam.
Se não há efetivação do direito (eficácia) então não há direito, haja vista que a coisa não se
separa daquilo que ela pode. Pensar o coletivo é também pensar um outro tipo de indivíduo que
conjuntamente produz certos efeitos, ou seja, concretamente, nunca em abstrato.
Potencia é produção de efeitos e, portanto, sempre e necessariamente eficaz. Só assim
podemos conceber um coletivo concreto. O sujeito coletivo é um outro tipo de indivíduo,
conjunto de sujeitos que concorrem para a produção de efeitos mas que ainda assim podem ser
pensados como UM indivíduo (a cidade, por exemplo, é um indivíduo). Pensar no coletivo
como outros tipos de individuação nos afasta dos universais, generalidades, inscrevendo-nos
num plano de imanência e da experiência.
Essa é uma compreensão agonística da vida – como conflito, batalha, guerra.
Existimos num processo da determinação de forças, ou seja, se uma força triunfa não quer dizer
que a que está submetida desapareceu. O resultado dessa luta é sempre provisório, as forças
derrotadas em algum momento podem prevalecer. Trata-se de forças múltiplas e heterogêneas,
não há igualdade entre elas. Segundo Nietzsche, são essas as forças que têm caráter originário,
e não as conservativas, como pretende Hobbes. O instinto de conservação é força orgânica da
vida (biológica) e que, assim

17 Simondon, Gilbert, L,individu et sa genèse phsyco-biologique (1964), Paris, 1995, p.77, in Espósito, Roberto, op.cit, p.255.

18 Spinoza, Baruch de, in Opera, Heidelberg 1924, vol.III (trad.it.Trattato politico, Roma-Bari, 1991, p.9), apud Espósito, Roberto.

Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004, p.261.

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Sendo, tende à repetição, hábitos, nunca brotando daí nada de novo. As forças
originárias da vida, diferentemente, quebram toda forma de hábito, repete apenas o devir numa
repetição que não significa “mais do mesmo”, já que o que se repete é a diferença.

CONSIDERAÇÕE FINAIS

Em síntese, imaginar que qualquer forma de conhecimento possa reclamar para si o


estatuto de verdade, implica necessariamente no reconhecimento de que tanto o que está para
ser conhecido, como aquele que conhece, possam ser definidos ou reconhecidos em termos de
algo que “é”. Aceitar que o mundo vive pacificamente à nossa espera de organizá-lo, existindo
independente do olhar do observador, apartado da experiência concreta do ser no mundo, do
ser “com”, quando tudo o que podemos alcançar são relações de forças em permanente
dinâmica, acontecendo em ato, num eterno devir. O sujeito que percebe não “ë”, ele “vai
sendo”. A potência da vida é de continuamente formar-se em outra coisa. É devir, não ser. A
vida projeta-se sempre para além de si mesma num permanente “haver estado”, sempre em
mudança, que quer constantemente superar sua forma e que evolui a partir de uma
superabundância, um excesso, nunca um déficit, falta. Tende, assim, a destruir e autodestruir-
se, sem que haja aí uma conotação negativa. São forças conquistadoras, que pretendem afirmar-
se, indômitas, enfim.
Ao despotencializar o homem, o projeto imunitário da modernidade acabou por negar
o próprio conteúdo vital, as potências vitais. Se algo se pode afirmar como próprio do homem,
é o expressar tudo o que ele pode - fazer, causar, produzir. Há certas forças que eventualmente
podem separá-lo daquilo que ele pode, momentaneamente, como expressões de uma vontade
negativa, mas ainda que isso possa parecer algo de destruição, de separação (daquilo que se
pode), pode representar também uma transmutação das forças, quando levadas ao limite,
fazendo surgir o novo. Não há cisão entre observador e objeto da observação, verdades prontas
à espera de serem reveladas, conhecimentos ou naturezas prévias à vida. O desejo quer se
prolongar indefinidamente, inclusive com dificuldade de se compor com as forças orgânicas.
O que antes parecia tão certo e indubitável, no momento seguinte já não é, foi atravessado por
diferentes forças e entrou em outras relações consigo próprio e com o mundo todo. Há uma
vontade que emana em nós de continuamente nos expressar e que pode eventualmente ser
contida, mas nunca extinta - desliza para algum outro lugar, a vida sempre escapa de algum

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modo. E se nem mesmo nós podemos ser definidos em termos estanques, como afirmar algo
diferente do que está para ser conhecido? Verdades? Que verdades?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Vita activa, cit., p.182, in Espósito, Roberto

CHAUÍ, Marilena. Os Sentidos da paixão, ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1987.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido, Editora da Universidade de São Paulo, 1974.

DESCARTES, René. Descartes, René, in Os Pensadores. Ed. Abril, São Paulo, 1979.

DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Antiga. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.

ESPÓSITO, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004.

HOBBES, Thomas. Leviatã, in Os Pensadores, ed. Ab, Rio de Janeiro, 1979.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, in Os Pensadores, ed. Abril, São Paulo, 1979.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l,invisible, p.260, in Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia.
Ed.70, Lisboa, 2004.

SIMONDON, Gilbert. L,individu et sa genèse phsyco-biologique (1964), Paris, 1995, p.77, in Espósito, Roberto.
Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004.

SPINOZA, Baruch de, in Opera, Heidelberg 1924, vol.III (trad.it.Trattato politico, Roma-Bari, 1991, p.9), apud
Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,1992

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DA BIO À TANATOPOLÍTICA:
AUTOS DE RESISTÊNCIA E A SELETIVIDADE DIREITO À VIDA

PINTO, Anna Carolina Cunha


Aluna de Mestrado do PPGSD/UFF
SANTIAGO, Gilberto Lopes
Graduado em Direito pela UNISUAM
FELDKIRCHER, Gabriela Fenske
Graduada em Direito pela PUC/ Rio

RESUMO

O presente trabalho analisa à luz da filosofia política, destacadamente de Michel Foucault e Giorgio
Agamben, o instituto dos autos de resistência e sua estreita relação com o que compreendemos se
caracterizar como verdadeira seletividade do direito fundamental à vida. A flexibilização e supressão do
direito em tela se mostra direcionada à uma segmento da população específico,o qual cremos possível
de equiparação à figura do homo sacer própria do Direito Romano e retomada no pensamento
agambeniano. Partindo da análise do instituto em questão e da seletividade do direito à vida é que se
demonstra, na prática, a passagem da gestão da vida (biopolítica) para, também, a gestão da morte
(tanatopolítica) pelo exercente do poder.

Palavras chave. Biopolítica. Tanatopolítica. Auto de resistência.

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INTRODUÇÃO

O instituto brasileiro dos autos de resistência é uma ferramenta que nasceu no seio da
ditadura militar através da Portaria “E”, nº 0030 de 06 de dezembro de 1974. Até hoje, seu uso
por agentes policiais se tornaram uma justificativa antidemocrática para legitimar mortes em
confronto.
Nesse trabalho nos propomos a realizar investigação sistemática e filosófica com fito
de diagnosticar uma possível redefinição na gestão estatal no tocante ao controle de vidas que
não interessam ao Estado. Em outras palavras, buscamos analisar o instituto dos autos de
resistência e sua estreita relação com o que compreendemos se caracterizar como verdadeira
seletividade do direito fundamental à vida à luz da filosofia política, com especial destaque às
contribuições de Michel Foucault e Giorgio Agamben. Nessa toada, cumpre destacar que a
flexibilização e até mesmo a supressão do direito em tela se mostra direcionada a um segmento
da população específico,o qual cremos possível de equiparação à figura do homo sacer, própria
do Direito Romano e retomada no pensamento agambeniano. Partindo da análise do instituto
em questão e da seletividade do direito à vida é que se demonstra, na prática, a passagem da
gestão da vida (biopolítica) para, também, a gestão da morte (tanatopolítica) pelo exercente do
poder.
Insta salientar que tal verificação é inserida no contexto da crescente escalada da
criminalidade e a fabricação de uma “crise” na segurança pública do Estado, na qual se faz
necessária a aparição do fenômeno da exceção.Ademais, cumpre assinalar que, em que pese a
alteração recente da nomenclatura1 empregada para o instituto em deslinde, optamos,
metodologicamente por utilizar a denominação clássica do mesmo, tendo em vista sua história
que remonta ao período militar, no qual passou a ser legalmente previsto além, é claro, do seu
uso sistemático que não pode ser abrandado pela nova designação para um instituto que, como
sabido, mantém todo seu teor, peso e letalidade à serviço de uma política de exceção dos
indesejáveis.
Importa esclarecer, ainda, que estes incidentes são registrados de forma singular pelas
polícias, tornando-os diferentes de um caso comum de homicídio tentado ou consumado por
civis. Isso porque, as mortes e/ou lesões corporais classificadas preliminarmente como autos de
resistência, assim o são, na maioria das vezes, para que as execuções sumárias sejam

1 Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/fim-do-auto-de-resistencia-e-mudanca-cosmetica-dizem-


especialistas> Acesso em 14.11.2017

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ISSN 2236-9651, n. 7

legitimadas e/ou ocultadas, isso sob um respaldo muito maior do âmbito político do que
jurídico.
Agamben,afirma que o Estado moderno que outrora se preocupava em administrar o
território, na atualidade se ocupa na administração dos corpos dóceis pensados em Foucault,
podendo reduzir a vida à mero meio de uma política exclusiva, fazendo uma correlação entre
poder político e direitos e garantias fundamentais.
Possível diagnosticar a lógica beligerante dos mecanismos de exclusão do Estado,
quando da análise de pesquisa realizada pelo Professor Michel Misse da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesse trabalho, constatou-se após a colheita dados oficiais do
Instituto de Segurança Pública (ISP/SSP-RJ) que entre 2001 e 2011 mais de 10 mil pessoas
foram mortas em confronto com a polícia no Estado do Rio de Janeiro, em casos registrados
como autos de resistência. A pesquisa conduzida por Misse também observou que diante de
todos os inquéritos instaurados para apurar autos de resistência no ano de 2005, houve um
número alarmante de arquivamentos, chegando ao percentual de 99% do total (MISSE, 2013).
Através dos dados apresentados como resultado da pesquisa de Michel Misse é
possível compreender que os autos de resistência se elevam, à luz da biopolítica, a qualidade
de dispositivo fundamental para a empreitada biopolítica estatal. Cremos que através do
instituto em discussão é implantado um novo paradigma de governo, cujos reflexos podem ser
observados na segurança pública, assegurando a matabilidade de certos indivíduos,que culmina
em sua consequência mais dramática que é a tanatopolítica.
Acenar para possíveis respostas é, como apregoa Agamben, abrir um canteiro que
demandaria anos de escavações e investigações para se aproximar do centro e localizar se
possível, a base teórica e sistemática que utiliza a gestão estatal na eliminação dos indivíduos.

1. AUTOS DE RESISTÊNCIA

O auto de resistência é um instituto comumente utilizado pelo Estado a fim de


justificar ações policiais que resultaram na morte de um ou mais civis, sob a alegação de que
os agentes estatais envolvidos, normalmente Policiais Militares, teriam agido diante de uma ou
mais causas de exclusão de ilicitude: estado de necessidade, legítima defesa, estrito
cumprimento do dever legal e/ou exercício regular do direito.

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O registro de tais homicídios ocorre por meio desta designação, ou, em face da
atualização de terminologias: “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou
“homicídio decorrente de oposição à ação policial”2.

1.1. O AUTO DE RESISTÊNCIA NOS DIAS ATUAIS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Considerando a realidade prática da cidade do Rio de Janeiro, na qual as políticas de


segurança pública adotadas são de extrema repressão e violência, não é incomum que operações
policiais (em especial em locais de maiores conflitos, como favelas e comunidades) resultem
na morte de civis praticadas por agentes do Estado.
Por certo, não se pode ignorar o risco que tais operações apresentam para os policiais.
Todavia, ainda que mediante a um cenário beligerante, é imperioso que o uso da força do Estado
seja utilizado de forma proporcional ao risco apresentado, do contrário não será legítimo e as
mortes que porventura venham a ocorrer não estarão configuradas como autos de resistência e
sim execuções sumárias.
Entretanto, em pesquisa realizada pelo professor Michel Misse, da Universidade
Federal Fluminense (UFRJ), anteriormente citada, constatou-se que o instituto dos autos de
resistência tem sido largamente utilizado mesmo em casos em que não estão configurados, de
modo a encobrir a ilicitude cometida, ou seja, as execuções sumárias praticadas. Vez que, sob
o ‘véu’ da legitimidade, as investigações não vingam, quando porventura prosperam os casos
são arquivados e nos pouquíssimos que não o são, há uma incompleta inversão de valores, os
policiais que praticaram os homicídios de modo ilegal são julgados inocentes, pois é defendida
a tese do “bandido bom, é bandido morto”.
Cabe, ainda, destacar que os autos de resistência não se limitam a casos de homicídios,
mas podem ser aplicados em hipóteses de lesão corporal.Nessas circunstâncias, o civil, vítima
da lesão corporal praticada por um agente policial, torna-se autor do fato e, portanto, réu da
ação penal, pois terá sua conduta tipificada como criminosa. Ou seja, há uma incompleta
inversão da situação, se morto estiver, será vítima de um suposto auto de resistência; estando
vivo, será réu de um processo penal.
Ou seja, o instituto leva a uma sequente impunidade, esta que é corroborada por
operadores do poder jurídico em matéria criminal (policiais, delegados, promotores, por vezes

2
Resolução conjunta nº 2, de 13 de outubro de 2015 – Conselho Superior de Polícia.

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defensores, juízes) e também pela sociedade que coaduna com o discurso do “bandido bom, é
bandido morto” (MISSE, 2013).
Resta claro, portanto, que o instituto dos autos de resistência tornou-se uma das
principais ferramentas da política de extermínio do Estado brasileiro, direcionado a um
segmento específico da população – classes e grupos sociais excluídos, os invisíveis da
sociedade – que vivem na condição de homo sacer (AGAMBEN, 2014). Logo, incontestável
a seletividade do direito à vida exercida por agentes estatais, que evidencia que, para além da
gestão da vida dessa população (biopolítica) o Estado passa a operar também com fito de
empreender, em relação à essas pessoas, consideradas indignas de vida, a gestão da morte
(tanatopolítica).
A título de exemplo, apenas no ano de 2016 o Estado do Rio de Janeiro registrou 925
homicídios provenientes de oposição à intervenção policial, sendo 463 deles registrados no
município do Rio de Janeiro. O perfil das vítimas, segundo dados do Instituto de Segurança
Pública (ISP)3, consiste em: 97% homens, 0,4% mulheres e 2,4% não fora informado o gênero;
47,6% de pardos, 29,8% de negros, 12,1% de brancos e 10,5% não fora informada a cor; 42,2%
entre 18 a 29 anos, 11,7% entre 12 a 17 anos, 8% entre 30 a 59 anos e 38,2% não fora informada
a idade. No mesmo período, 147 policiais foram mortos no Estado do Rio de Janeiro.
Em rápida análise dos dados supracitados é inquestionável a quem as políticas de
segurança pública, ou melhor, as políticas de extermínio do Estado são direcionadas: aos
marginalizados, invisíveis da sociedade, que são portadores de deveres e não de direitos, que
vivem em territórios tidos como perigosos (periferias e favelas).
Para além disso, importante observar, que os policiais que são constantemente
colocados em situação de risco, em sua maioria, advém da mesma classe social daqueles quesão
alvo de suas operações. Ou seja, assim como as vidas ceifadas por eles são consideradas
matáveis pelo Estado, as deles também o são. Isso resta claro quando analisamos que temos a
polícia que mais mata, mas também a que mais morre.
Em meio a isso tudo, a seletividade da vida e as dificuldades já mencionadas em
relação às investigações dos homicídios cometidos por agentes do Estado contra civis,
primordial mencionar que recentemente sobreveio nova legislação que, lamentavelmente,
estabelece que crimes dolosos contra a vida praticados por militares em ações que envolvam a
segurança da instituição militar ou em missões, como operações de paz e de garantia da lei e da

3
Disponível em: <http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf>. Acesso em: 14.11.2017.

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ordem, serão investigados pela corregedoria da própria corporação e julgados pela Justiça
Militar.
A Lei nº 13.461/2017, que transferiu a competência da Justiça Comum para a Justiça
Militar, é um tremendo retrocesso, pois retornamos a uma legislação pré-1996, que interfere
substancialmente na elucidação dos casos, de maneira prejudicial, diga-se de passagem, e
também dá margens para julgamentos corporativistas.
Ou seja, ao invés de avançarmos e buscarmos aprimorar nossa legislação, estamos
fazendo o caminho inverso. Se até então já tínhamos uma série de dificuldades e obstáculos
para deslindar os homicídios praticados por agentes do Estado contra civis, agora teremos um
desafio ainda maior para enfrentarmos e, parte disso, já fora constado recentemente.
Em novembro de 2017, ocorreu uma chacina no Complexo do Salgueiro, em São
Gonçalo, na qual morreram sete civis durante uma operação conjunta da Polícia Civil e do
Comando Militar do Leste (CML). E, segundo informações prestadas na Delegacia de
Homicídios de Niterói e São Gonçalo (DHNSG), por agentes da Coordenadoria de Recursos
Especiais (Core), os disparos no confronto foram realizados apenas por homens das Forças
Especiais do Exército, estes que ainda não foram ouvidos, vez que segundo a legislação em
vigor (Lei nº 13.461/2017) a Polícia Civil não tem atribuição para investigar militares. Logo, a
investigação já iniciou prejudicada, conclusão essa tida pelo Delegado Marcus Amin,
responsável pela mesma. Nas palavras dele:”— Isso atrapalha a minha investigação. Eu preciso
de todas as partes envolvidas para montar o cenário. Quando não tenho uma das peças, isso
dificulta a reconstituição do que aconteceu.”4.
Ainda sobre o caso, em momento posterior, o Comando Militar do Leste, através de
seu porta-voz, Coronel Roberto Itamar, afirmou que a equipe militar não atirou, sendo assim
não há razão, segundo ele, para instauração de um inquérito pelo Exército, mas ressalvou que
isso poderia ocorrer caso a Polícia Civil apresente indícios de envolvimento das tropas nas
mortes5.
Ou seja, duas versões foram apresentadas que não poderão ser verdadeiramente
confrontadas caso a Polícia Civil não faça a oitiva dos militares envolvidos na Operação, o que
pode não ocorrer já que a Polícia Civil não tem competência, conforme a legislação em vigor,

4
Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/dh-quer-saber-se-militares-entraram-na-mata-durante-operacao-com-
sete-mortes-22061597.html>. Acesso em: 15.11.2017
5Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/apos-chacina-com-sete-mortos-em-sao-goncalo-militares-policia-civil-

negam-autoria-dos-disparos-22066617.html>. Acesso em: 15.11.2017.

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para investigar militares. Sendo assim, como saber qual versão é a verdadeira? Como a Polícia
Civil poderá apresentar indícios do envolvimento das tropas militares sem ouvir todos os
envolvidos na Operação? Como elucidar o caso?
Em menos de um mês da Lei nº 13.461/2017 em vigor, já resta claro as graves
consequências acarretadas pela mesma, principalmente no que tange ao deslinde dos casos,
conforme o relatado acima acerca da investigação da chacina ocorrida no Complexo do
Salgueiro, em São Gonçalo/RJ.
Entretanto, é preciso pensar além, em como essa legislação vai afetar as políticas de
segurança pública, se as tornará mais repressivas e violentas, habilitando ainda mais o uso da
força policial ao patamar de massacre6, ou seja, qualificando o uso letal dos agentes do Estado
como uso legal da força (ZACCONE, 2016, p.25) e, portanto, legitimando ainda mais a
sistemática produção de mortes pelo Estado brasileiro de uma parcela específica da população,
que vive da condição de homo sacer. Ademais, necessário refletir sobre a segurança jurídica ou
a falta dela, que a nova legislação trará a sociedade.
Conforme já aludido, tivemos um grande retrocesso com a sanção da Lei nº
13.461/2017, a mesma acrescenta mais obstáculos àqueles que já existiam e não o contrário.
Infelizmente, seguimos constantemente violando e relativizando direitos basilares de parte dos
cidadão brasileiros, principalmente daqueles que vivem em condições precárias, em territórios
marginalizados, que fazem parte de uma classe social excluída composta principalmente por
negros, jovens, moradores de favelas e periferias. Ou seja, há um longo caminho pela frente e
o percurso só fez aumentar.

1.2. O AUTO DE RESISTÊNCIA EM RETROSPECTO

O instituto dos autos de resistência adveio do seio da Ditadura Militar, um dos


períodos mais obscuros da história do Brasil, que fora fortemente marcado por medidas
excepcionais, tais como, a legalização da pena de morte, da prisão perpétua e de práticas
clandestinas de tortura, extermínio e ocultação de cadáver.
Em meio ao caos o instituto foi oficialmente criado em 02 de outubro de 1969, pela
Superintendência da Polícia do então Estado da Guanabara, através da Ordem de Serviço “N”,

6
De acordo com Zaffaroni (2012, p. 358), “massacre é, antes de tudo, um homicídio múltiplo, embora na forma de prática, ou
seja, de exercício de decisão política e não de ação isolada emergente de algum segmento. Assim, não entram no conceito de
massacre os casos de assassinatos policiais isolados que não sejam resultado de uma prática sistemática”.

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nº 803 e publicada no Boletim de Serviço em 21 de novembro de 1969. Dispunha sobre a


dispensa da prisão em flagrante ou do inquérito nas circunstâncias previstas no artigo 292 do
Código de Processo Penal (VERANI, 1996, p. 33). Tendo tido seu conteúdo ampliado pela
Portaria “E”, nº 0030 de 06 de dezembro de 1974, do Secretário de Segurança Pública, que fora
publicada no Boletim de Serviço três dias depois.
Vale transcrever a Portaria “E”, nº 0030, de modo a aclarar a questão:

(...) Considerando que somente o inquérito regular poderá fornecer à Justiça os


elementos de convicção de excludente criminal em favor dos policiais que agiram no
estrito cumprimento do dever e em legítima defesa;
considerando, finalmente, que a diversidade de providências adotadas por
autoridades policiais desta Secretaria, quando diante de fatos concretos da espécie,
acarreta, por vezes, retardamentos prejudiciais à Justiça e ao serviço policial, resolve:
1. A presente portaria objetiva uniformizar o procedimento das autoridades policiais
da Secretaria de Segurança Pública nos eventos decorrentes de missões de segurança
em que o policial, no estrito cumprimento do dever e em legítima defesa, própria ou
de terceiro, tenha sido compelido ao emprego dos meios de força necessários, face à
efetiva resistência oferecida por quem se opôs à execução do ato legal.
2. Ocorrendo a morte do opositor, a autoridade determinará imediata instauração de
inquérito, para a perfeita elucidação do fato, que compreende:
a) as razões de ordem legal da diligência;
b) as figuras penais consumadas ou tentadas pelo opositor durante a resistência;
c) a apuração da legitimidade do procedimento do policial.
2.1. O inquérito poderá ser instruído com o auto de resistência, lavrado nos termos
do art. 292, do Código de Processo Penal, e, necessariamente, com o auto de exame
cadavérico e o atestado de óbito do opositor, para permitir ao Juízo apreciar e julgar
extinta a punibilidade dos delitos cometidos ao enfrentar o policial.
2.2. O inquérito deverá ficar concluído e relatado no prazo máximo de 30 dias,
cabendo à autoridade promover a remessa dos autos ao Juízo competente para
processar e julgar os crimes praticados pelo opositor.
3. Quando, apesar da resistência, o opositor houver sido dominado e preso ou logrou
evadir-se, a autoridade policial adotará as medidas adequadas estabelecidas no
Código de Processo Penal.
3.1. A apuração, no caso deste item, também deverá abranger a legitimidade da
atuação do policial.
4. Na hipótese de serem vários os opositores, em coautoria, ocorrendo a morte de
algum, sendo presos vários outros e se evadindo os demais, a autoridade deverá:
a) ordenar a lavratura do auto de prisão em flagrante para os que foram dominados e
presos;
b) promover a instrução dos autos na forma do item 2 desta portaria;
c) determinar diligências para a perfeita identificação dos que se evadiram.
4.1. Na impossibilidade de concluir, no prazo legal, as diligências aludidas na alínea
c deste item, a autoridade deverá sugerir ao Juízo competente a separação processual,
com fulcro no art. 80, do Código de Processo Penal, a fim de não retardar o início da
ação penal contra os já identificados.(VERANI, 1996, p. 35/36).

Resta evidente, pela transcrição acima, que a Portaria foi criada objetivando legitimar
a ação policial não propiciando a elucidação dos casos, vez que da abertura do inquérito policial
não há qualquer investigação, ao contrário, esta ocorre tão somente para que seja materializada

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a culpa do civil (opositor da intervenção policial), tanto nas situações em que este vem a falecer,
quanto daquelas em que sobrevive.
Ao opositor, conforme já mencionado anteriormente, é atribuída a condição de homo
sacer, de mera vida nua matável (AGAMBEN, 2014) .Sua ‘memória’ é constantemente
vilipendiada, sendo resumida à folhas policiais, adjetivada e qualificada como meliante,
traficante, bandido, delinquente, mesmo quando não possuí qualquer anotação em sua folha de
antecedentes criminais (FAC).
Entretanto, como bem asseverou Sérgio Verani, apesar da previsão legal do instituto
advir da Ditadura Militar, a conduta que leva a lavratura do auto de resistência, ou seja, do crime
doloso contra a vida praticado por agente do Estado contra civil, é uma prática adotada no Brasil
desde os tempos da escravatura (VERANI, 1996).
O autor elenca algumas ocorrências históricas, sendo especialmente marcante a do
preto Martinho, escravo do Rev. Padre Alexandre Cidreira’, datado de julho de 1882,
conforme se lê abaixo:

O escravo desobedeceu ao senhor porque passava fome e frio. Recebeu um tiro. O


senhor nada sofreu. O escravo foi preso em flagrante por tentativa de homicídio e
resistência. Foi denunciado e pronunciado. A denúncia sustenta a ‘necessidade de
severa repressão de tais atentados’. (VERANI, 1996, p. 33).

À época em que tais fatos ocorreram, o preto Martinho não tinha sua condição
humana reconhecida, vez que escravos, negros e índios não eram contemplados pelos direitos
e garantias previstos na Constituição de 1824, então vigente, ou seja, não eram sujeitos de
direito, ao contrário, eram considerados seres matáveis, viviam da condição de homo sacer.
Ocorre que passados mais de 135 anos, histórias semelhantes ao do preto Martinho
ainda são cotidianamente registradas nas delegacias brasileiras, como vimos anteriormente.
Entretanto, ao contrário da Constituição de 1824, a Constituição de 1988, atualmente em vigor,
garante no caput do art. 5º que todos são iguais perante a Lei, porém, curiosamente, atualmente
são os mesmos ‘sujeitos’ que figuram esses registros, os invisíveis da sociedade, advindos de
classes e grupos sociais excluídos: pobres, negros, moradores de favelas e periferias. Ou seja,
para eles o estado de exceção é regra, seus direitos mais basilares são constantemente
relativizados e violados.

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1.3. AUTOS DE RESISTÊNCIA À SERVIÇO DO ESTADO DE EXCEÇÃO

Por vezes, as operações em favelas causam um número de mortes demasiado


acentuado e, por conseguinte, os policiais apresentam grande número de autos de resistência
em sua ficha administrativa. Nessa perspectiva, a polícia do nosso país exibe o título de ser a
que mais mata no mundo e, também, a de que mais morre conforme dados divulgados pela
Anistia Internacional7. Comumente, os policiais alegam estar amparado pela excludente de
ilicitude, qual seja, a legítima defesa própria ou de terceiros8,porém, à luz da biopolítica, o uso
dos autos de resistência se mostra eficaz para legitimar e/ou ocultar, execuções sumárias. As
mesmas encontram fundamento no âmbito político ao invés de ocuparem o espaço de ações
pautadas de acordo com o ordenamento jurídico vigente.
Todo esse aparato de exclusão ocorre como uma cadeia de extermínio dos seres
viventes que são capturados dando ao estado de exceção um caráter extrajurídico. Como
salienta Rafael Valim: “o estado de exceção corrói por dentro, ao modo do cupim com a
madeira, o vínculo entre o mandato popular e a legitimidade da dominação política”. (VALIM,
2017, p.10)
Segundo Agamben (2003, p.12) o estado de exceção tem sua atuação em uma zona
de indeterminação, verdadeira “terra de ninguém”, entre o direito público e o fato político e
entre a ordem jurídica e a vida. Uma ambivalência que se situa entre norma e exceção,
ordenamento jurídico e sua violação, e generalizada através da “deslealdade à constituição”.
A letalidade do sistema de justiça criminal brasileiro usa de legitimidade em uma
normalidade de exceção em que as ações policiais contam com a chancela do Ministério
Público, do Poder Judiciário, de grande parte da população e da mídia. A aplicação desse
modelo de extermínio se torna regra, como foi nos campos de concentração nazista. Nesse
diapasão, Rafael Valim afirma que:

Desnecessário dizer que, nesse contexto, o Direito Penal e o direito processual Penal
sofrem um completo desvirtuamento, perdendo sua vocação garantista em prol da
mera legitimação das pretensões autoritárias do Estado. A persecução penal se torna
um jogo de cartas marcadas, com um absoluto desprezo ao direito de defesa.
(VALIM, 2017, p. 36)

7Nesse teor: https://exame.abril.com.br/brasil/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio/


8Art. 25- Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou
iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

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Assim, a cadeia segregatória pode encontrar sua construção lógica na legitimação de


um estado de exceção permanente, tornando as agências de justiça criminal, uma máquina
burocrática de eliminação, naturalizando práticas de execuções sumárias.
A questão da utilização do termo “crise” é outro aspecto relevante para entender a
mudança de paradigma do modelo de governo, que é utilizada como um recurso retórico, para
ocultar a estrutura de um modelo de Estado. Sobre o tema, Rubens Casara afirma:

O que hoje se afirma como “crise” não o é. Se a “crise” é permanente, se a “crise”


não pode passar, não é de crise que se trata, mas de uma nova realidade, uma trama
simbólica-imaginária com novos elementos que se deferenciam daqueles que
constituíram a realidade anterior, uma realidade que, hoje, existe apenas como
lembrança, embora essa lembrança possa produzir efeitos ilusórios de que aquilo que
não existe mais ainda se faz presente. (CASARA, 2017, p. 13)

Nesse sentido, cumpre destacar a crítica sobre a utilização desse critério elaborada por
Rafael Valim:

Não é só o poder executivo, por intermédio de medidas de polícia administrativa,


mas também o poder judiciário se convertem em fonte de exceção. Vê-se, portanto,
que o estado de exceção constitui uma categoria analítica decisiva para revelar a
articulação “ invisível” entre fenômenos à primeira vista desconexos, mas que, em
conjunto, compõem a chave de compreensão da sociedade contemporânea.
(VALIM, 2017, p. 36)

A”crise” consiste na verdade em um modo de governar certos indivíduos, ocultando


o real interesse do Estado, que é a criação e permanência de um estado de exceção duradouro.
Tal ideia é denominada por Rubens Casara como “Estado pós democrático” (2017, p.16). Nesse
diapasão, verifica-se que o poder judiciário no enredo da exceção se torna o principal e o mais
perigoso agente da exceção no Brasil.
Deve-se observar com fundamento na base teórica agambeniana a possível fratura no
Estado democrático de direito e a existência dos autos de resistência enquanto um dispositivo
fundamental para a empreitada biopolítica estatal, implantando um novo paradigma de governo
na segurança pública, e assegurando a matabilidade de certos indivíduos.
Forma-se neste caso, uma lógica paradoxal, que para assegurar e tutelar direitos de
certos cidadãos, o Estado naturaliza a morte de sujeitos, que nesse contexto são inimigos da
sociedade, podendo o Estado se tornar uma máquina de eliminação de vidas através de um juízo
discricionário de exceção, articulando uma lógica soberana. Compreendemos que as ações
policiais da atualidade são encaradas hoje como técnicas biopolíticas de eliminação da

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população pobre e negra do Brasil, através de sutis intervenções biopolíticas na sociedade na


esteira exclusiva do estado de exceção.

2. O HOMO SACER NA CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Giorgio Agamben retoma em sua obra biopolítica a figura arcaica do direito romano
do homo sacer. Tal indivíduo era compreendido como ser jurídico-político após a prática de
conduta delituosa, que determinava sua exclusão do direito romano e do escopo divino, ou seja,
o homo sacer sofria o afastamento total da vida religiosa e também de seus direitos, ganhando
um corpo biopolítico propriamente dito. A condição que sua nova forma de vida lhe outorgava,
impedia que ele pudesse ser legalmente morto e, tampouco, sacrificado aos deuses, apontando
para a imposição de castigo permanente pelo Estado. A vida é abandonada pelo direito e tem
sua posição política incluída pela exclusão e excluída de forma inclusiva. Por ser a vida do
homo sacer uma vida matável, seu assassinato não acarretava em nenhuma consequência
jurídica para quem a praticasse.
Na obra Homo Sacer, onde desenvolve suas ideias a partir de tal figura que dá nome
ao livro,Agamben esclarece que sua pesquisa concerne precisamente no ponto oculto de
intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico de poder. Desse modo,
a produção de um corpo biopolítico é considerada uma contribuição original do poder soberano,
o que permite afirmar que, ao colocar a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado
moderno não faz mais do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua- a
protagonista da obra que analisamos por ora, isto é, é a vida matável e insacrificável do homo
sacer. O filósofo vai além: entende que a caracterização da política moderna não se dá apenas
pela vida considerada objeto dos cálculos e previsões estatais, tampouco pela inclusão da zoé
na pólis. O que é decisivo é a noção de que, lado a lado, nesse processo através do qual a exceção
se torna a regra:

O espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem


progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e
interno, bíos e zoé direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção
(AGAMBEN, 2014, p.16).

O homem como vivente abandona a condição de objeto para alcançar a de sujeito do


poder político, não havendo mais dúvida de que o que está em jogo é a vida nua do cidadão - o
novo corpo biopolítico da humanidade. Resta evidenciado que todos os cidadãos estão

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potencialmente na condição análoga à do homo sacer. Porém, especialmente no que tange ao


direito à vida, é notória a maior propensão de alguns indivíduos a, na prática, mais do que
apresentarem mera potência, já poderem ser objeto dessa equiparação.
Como já delimitado anteriormente, existe um perfil mais propenso a compor o rol das
vítimas de homicídios classificados como auto de resistência – os homens jovens, negros e
periféricos. Não podemos considerar coincidência à luz de uma análise biopolítica que o perfil
dessas vítimas comungue com o perfil mais típico nas unidades do sistema prisional brasileiro
- conforme apontam os dados compulsados na base de dados do INFOPEN: 55% têm entre 18
e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo, de acordo com
o levantamento publicizado em dezembro de 20149.
Considerando que na vigência de um permanente estado de exceção como o que
experimentamos segundo AGAMBEN (2004, p.13) no qual verifica-se:

A instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite
a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias
inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema
político [...] o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como paradigma
de governo dominante na política contemporânea.

Através da assunção da vida pelo poder, explicitada por Michel Foucault na obra
intitulada Em Defesa da Sociedade, um dos fenômenos fundamentais do século XIX
compreendida através da análise da teoria clássica da soberania, Foucault conduz-nos, então, à
ideia de que nesse bojo teórico tinha-se por atributos fundamentais do soberano o direito de
vida e de morte de seus súditos razão pela qual “o súdito não é, de pleno direito, nem vivo nem
morto” (FOUCAULT, 2010, p.202). Através dessa dinâmica tanto a vida quanto a morte são
postas como fenômenos situados na esfera do poder político, poder exercido de maneira
desigual conforme apregoa Foucault:

Dizer que o soberano tem direito de vida e de morte significa no fundo, que ele pode
fazer morrer e deixar viver (...) o direito de vida e de morte só se exerce de uma forma
desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida
só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última análise,
o direito de matar e que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de
vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a
vida. (FOUCAULT, 2002, p. 285-286)

9 Dados disponíveis em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-


prisional/base-de-dados-infopen-csv.csvAcesso em: 14/10/2017.

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As reflexões à luz do pensamento tanto foucaultiano quanto agambeniano acerca da


eliminação física dos indivíduos indesejáveis aponta para o que desejamos demonstrar acerca
do uso desmedido do auto de resistência nas comunidades periféricas. O estado através de seus
agentes escolhe quais são os indivíduos que vão morrer, isto é, os indivíduos que serão
eliminados. Como mote para estabelecer quem deve ser eliminado CASARA (2017, p.55)
elucida que:

(...) para aqueles que não interessam à sociedade neoliberal, por não produzirem, não
prestarem serviços, não consumirem ou resistirem à racionalidade neoliberal,
reserva-se a resposta penal (e a prisão persiste como resposta penal preferencial aos
desvios) ou a eliminação física – o Brasil, por exemplo, é o país em que os policiais
mais matam e mais morrem em razão da função que exercem.

Cientes do critério, resta evidenciado que a seletividade do direito à vida empreendida


em face da juventude negra, pobre e periférica através dos agentes estatais são compreendidas
como mecanismo de manutenção do permanente estado de exceção que é potencializado
quando direcionado aos indivíduos em deslinde, cuja vida nua não deixa dúvidas da pertinência
de sua equiparação ao homo sacer do direito romano.

CONCLUSÕES

Ana Luiza Flauzina (2006, p.101) é certeira ao afirmar que o genocídio da população
negra no Brasil possui diversos ângulos e que podemos elencar, indubitavelmente, o nível de
pobreza ao qual estão expostos tais sujeitos entre eles. Em sua dissertação de mestrado, a
professora cita um trecho da obra Guerra Civil, de Luís Mir que afirma: “a pobreza é a mais
extremada e requintada arma do Estado. Mata lentamente, reduz suas vítimas a andrajos
humanos e é extremamente barata” (MIR, 2004, p. 299 apud FLAUZINA, 2006, p.103). A
pobreza, cumpre destacar, não pode ser desconsiderada como elemento manipulado pela
biopolítica e, muito menos, ser compreendida nesse contexto como causa de processos
discriminatórios que apequenam existências: a pobreza é a causa desses processos e ela é
direcionada aos negros como verdadeiro instrumento de redução das condições de vida
historicamente, não sendo correto, portanto, afirmar que tal processo é apenas influenciado pelo
capital.
O preconceito racial ainda é gritante em um país cuja história é marcada pelo encontro
de povos vindos de distintos continentes, encontro esse que resultou em mais de três séculos de

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imigração compulsória, bem como o trabalho desempenhado pelos africanos que aqui
desembarcavam na condição de escravos. Tratados de maneira desumana e assim considerados,
posteriormente à abolição da escravidão, tais indivíduos foram descartados como mão de obra
e tiveram sua existência dificultada por medidas governamentais, como a criação do crime de
vadiagem e a facilitação para a imigração de europeus para trabalharem nas lavouras de café.
Relembrar e compreender a história é fundamental na compreensão da situação aviltante de
discriminação racial que, ainda hoje, ceifa vidas negras indiscriminadamente.
A pobreza e a negritude, alvos de esteriótipos, são determinantes no momento da ação
policial que buscam invalidar ou eliminar o inimigo a ser combatido. Nesse sentido, é
fundamental compreender que a sociedade confiou à polícia uma significativa parcela do
controle social e, por conseguinte, da tomada de decisões políticas. Mais do que instrumentos
da gestão da vida, os policiais se transformam no contexto do auto de resistência sujeitos
investidos da capacidade de decidir, a exemplo de um tribunal de exceção, qual serão os
indivíduos cuja pena capital será decretada sem que lhe seja assegurada nenhuma das garantias
processuais previstas em sede constitucional além, evidentemente, do direito fundamental à
vida.
Acreditamos, pelo exposto nesse trabalho, que ainda se configure como um dos
grandes desafios brasileiros a adoção de uma política de segurança pública que equilibre os
direitos e garantias fundamentais elencados constitucionalmente com o combate a
criminalidade. Tendo em vista a constância com que se noticiam episódios envolvendo
violência policial parece-nos que a superação desse desafio siga distante da nossa realidade.
Cumpre, ainda, ressaltar que apesar da recente alteração de sua nomenclatura, o
instituto segue sendo largamente utilizado para legitimar homicídios cometidos pela polícia em
situações outras que não aquelas que configurariam o chamado “auto de resistência”. Isso é, o
utilizam para encobrir o uso arbitrário da força letal do Estado e, assim, evitar a
responsabilização pelas mortes. Nesse sentido, importante consideração feita pela ONG
HumanRightsWatch, com fito de alertar para existência de provas substanciais e críveis de que
“que muitas das pessoas mortas em supostos confrontos com policiais foram, na realidade,
vítimas de execuções extrajudiciais” no relatório O bom policial tem medo – os custos da
violência policial no Rio de Janeiro lançado em 2016.
No que concerne a direito à vida, vemos sua seletividade nascer de ações estatais, o
que aponta para. o Estado, ciente das estatísticas e conhecedor de sua população, ser conivente

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com os números expressivos de mortes dos mais vulneráveis. Ausentes quaisquer medidas com
fito de efetivamente reduzir tais índices além, é claro, do próprio desinteresse na apuração do
ocorrido resta evidenciada a conivência estatal com tais mortes. À luz da filosofia foucaultiana
e agambeniana brevemente analisada, podemos afirmar, como propomos no começo desse
trabalho, que o Estado não só deixa morrer, como escolhe quem morre. Desse modo, a condição
de homo sacer atribuída aos que prioritariamente superlotam os presídios brasileiros e que
também são prioritariamente as vítimas de homicídios praticados também pelos agentes do
Estado, resta comprovada tendo em vista a vida despojada de direitos ou existência política.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Rio de Janeiro: Saraiva,
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UMA REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE E RECONHECIMENTO
A PARTIR DO PARADIGMA DA IMUNIZAÇÃO
DE ROBERTO ESPOSITO

PINTO, Simã Catarina de Lima


Estudante de mestrado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense

RESUMO

O objetivo do presente artigo é, com base na análise do paradigma imunitário de Roberto Esposito,
refletir sobre identidade e reconhecimento de grupos sociais num contexto contemporâneo marcado por
ideais políticos modernos e ainda submetidos ao ideal do sujeito universal o qual se constitui como um
óbice para o reconhecimento e efetivação dos direitos das minorias políticas. Propõe-se, a partir disso,
uma reflexão acerca do paradigma imunitário para se compreender melhor o reconhecimento de grupos
sociais à margem da efetivação de direitos individuais. A estrutura criada a partir dos ideais imunitários
de conservação da vida reforça as discriminações vivenciadas no lugar de experiências de cidadania e
reconhecimento, razões pelas quais a reflexão parte dos conceitos acima referidos de Roberto Esposito
e passa pela identidade, reconhecimento e representação como meios de se obter uma compreensão mais
próxima acerca dessas questões tão centrais nos debates contemporâneos.

Palavras-Chave. Paradigma imunitário; identidade; reconhecimento.

ABSTRACT

The objective of the present article is, based on the analysis of the immune paradigm of Roberto Esposito,
to reflect on the identity and recognition of social groups in a contemporary context marked by modern
political ideals and still submitted to the ideal of the universal subject which constitutes an obstacle to
the recognition and enforcement of the rights of political minorities. Based on this, it is proposed to
reflect on the immune paradigm in order to better understand the recognition of social groups at the
margin of the realization of individual rights. The structure created from the immunity ideals of life
preservation reinforces the discriminations experienced in the place of experiences of citizenship and
recognition, reasons for which the reflection starts from the above concepts of Roberto Esposito and
passes through the identity, recognition and representation like means of being to gain a closer
understanding of such central issues in contemporary debates.

Keywords. Immune paradigm; identity; recognition.

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INTRODUÇÃO

O paradigma da imunização de Roberto Esposito se conduz entre dicotomias


biopolíticas. Essas dicotomias dizem respeito a, como aponta o Filósofo, “declinações
prevalecentes do paradigma da biopolítica – a afirmativa e produtiva e a negativa e mortífera”
(ESPOSITO, 2010, p. 74). Há, por assim dizer, dois polos que se contrapõem, uma vez que “ou
o poder nega a vida ou aumenta o seu desenvolvimento; ou a violenta e exclui ou a protege e
reproduz; ou a objetifica ou subjetiviza” (ESPOSITO, 2010, p. 74). Nessa passagem se encontra
a base a partir da qual o presente trabalho se direcionará para tratar da identidade e do
reconhecimento proposto.
Tratar da imunidade requer também que se adentre ao conceito de communitas que
lhe é inerente, conforme se verá, segundo o qual é o oposto e o contrário de immunitas na
medida em que enquanto este nega a vida a fim de preservá-la e conservá-la, ao privar os
indivíduos da vida em comum, da contínua abertura ao outro e ao que lhe é externo; aquele, em
oposição, evoca uma subjetividade coletiva por meio de um uma reciprocidade afetiva na qual
interesses comuns são partilhados e vividos coletivamente. A obrigação de uns em relação aos
outros é inerente a essa subjetividade partilhada e impessoal.
A imunidade pressupõe a Modernidade a qual será também refletida na medida em
que seus ideais inserem no sujeito uma nova forma de pensar e ver a si mesmo, o que gera uma
alteração em sua essência e na maneira com a qual ele passa a ver a si mesmo e os outros. O
paradoxo que há na imunidade apresenta propostas a serem aqui refletidas e uma delas é o
surgimento de grupos sociais identitários, frutos desse contexto pós-moderno.
Emerge daí a necessidade de se refletir e aprimorar o debate sobre identidade e
reconhecimento, por estes fazerem surgir questões fundamentais em torno das causas e
consequências que grupos sociais apresentam num contexto paradoxal e ao mesmo tempo
estimulante por refletir a afirmação e a negação daquilo que os constitui e que os faz aparecer.

1 A MODERNIDADE E A CONSERVAÇÃO DA VIDA PELA IMUNIZAÇÃO

O paradigma imunitário diz respeito à preservação da vida que se impõe por meio da
sujeição. A ideia de sujeição remete a uma situação na qual a submissão ou a obediência se dá
sem muita resistência ou sem resistência efetiva, concreta. O sujeito deixa de algum modo de
se opor e de resistir no intuito de que sua vida preservada. Esposito (2010, p. 74) utiliza o termo

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“conservação” ao tratar da imunização como uma “proteção negativa da vida”. Nesse sentido,
conservar o organismo de uma maneira indireta ou mediata faz com que o organismo se
submeta a uma “condição que ao mesmo tempo lhe nega, ou reduz, a força expansiva”
(ESPOSITO, 2010, p. 74), um poder que o coage e lhe é exterior, contra o qual ele não apresenta
resistência, já que lhe é introjetado parte daquilo que o ameaça. Um fragmento do inimigo,
nesse aspecto, é colocado dentro do organismo no intuito de conservá-lo.
Esposito relaciona o conceito de imunidade com o conceito de communitas, sendo
que esta seria seu oposto. Ambos os conceitos se contrapõem por serem essencialmente
contrários, já que, enquanto communitas relaciona seus membros reciprocamente numa relação
de interdependência, a imunidade ou immunitas é o seu contrário, pois nega a doação recíproca
de seus membros e os individualiza ao dispensar as obrigações existentes entre eles. As
obrigações comuns são dispensadas e os membros são liberados à sua própria individualidade.
Evoca-se com a imunidade a prevalência da identidade individual.
Como se pode verificar, um dos pressupostos iniciais para a reflexão que aqui se
propõe é a compreensão do conceito de communitas, que diz respeito ao conjunto de pessoas
unidas por um dever ou uma dívida em comum, que gera um afeto recíproco por alguma falta
que tornam os sujeitos responsáveis entre si. Ocorre aí um comprometimento espontâneo que
se dá de forma impessoal, na medida em que não se considera um coletivo de pessoas cada qual
com seus interesses individuais, mas sim o que seria seu contrário, ou seja, um coletivo de
pessoas, se assim se pode dizer, despersonalizadas por forças em comum que as
descaracterizariam como pessoas e as tornariam um coletivo de intensidades, já que essas
pessoas não estão eximidas e dispensadas de deveres entre si, mas, inversamente a isso, estão
numa espécie de dívida entre si. Por essa razão é que Esposito aponta que “o 'imune' não é
simplesmente distinto do 'comum', é seu contrário” (ESPOSITO, 2003, p. 39)
Pode-se dizer a partir disso que o paradigma imunitário, ao negar os deveres
recíprocos das obrigações da comunidade, chama para si outras obrigações que são também
contrárias a estas, por se referirem à substituição de um coletivo de forças que une pessoas por
meio de um coletivo de sujeitos de direitos; estes indivíduos se obrigam, espontaneamente, a
responsabilidades que visam manter sua proteção. A relação social que se estabelece é de
obediências contratuais por meio das quais as relações sociais são preestabelecidas e a vida
vivida é renunciada em seu próprio viver. Seria impossível, como observou Esposito (2003, p.
43), “não reconhecer o resíduo de irracionalidade que se insinua nas dobras do mais racional

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dos sistemas: a vida é conservada pressupondo seu sacrifício.” Trata-se, ainda, de um conceito
que se insere dentro do contexto da modernidade, já que esta dá lugar a esse “mecanismo
sacrificial”, na medida em que a modernidade se autolegitima, como aponta Esposito (2003, p.
43), “desligando-se de todos os laços sociais, de todo vínculo natural, de toda lei comum.”
A modernidade altera substancialmente a ideia de sujeito, o qual passa a ter uma
autonomia em duplo sentido. Nesse aspecto, como aponta Souza (1998, p. 395), o sujeito deixa
um “heteros divino” e se afirma num primeiro sentido como autoconsciente cuja auto-
afirmação se encontra na sua substância, ou seja, aquilo que concebe a si mesmo como entidade
autônoma. Num segundo sentido, a afirmação da autonomia do sujeito se refere à sua dinâmica
essencial a qual “está ligada a uma dinâmica essencial: autopreservação” (SOUZA, 1998, p.
395). A preservação de si na modernidade é “endo-determinada, determinada a partir de dentro.
Uma vez que ela é endogenamente determinada, temos, então, 'uma inversão da teleologia',
caracterizada por uma “autopreservação endo-determinada.” (SOUZA, 1998, p. 396).
Por conseguinte, a identidade e a consciência de si passam a ser aspectos fundamentais
para a compreensão do sujeito na modernidade, bem como a compreensão do sujeito em relação
a si mesmo e a correspondente premissa do desejo, a qual, de acordo com Hegel (apud Kojève,
2002), seria a base da consciência de si. A compreensão da modernidade em Hegel diz respeito
a um saber absoluto o qual decorreria não meramente de uma consciência ou de uma
capacidade contemplativa, mas, antes, de uma

Consciência de si, uma filosofia consciente de si mesma, prestando contas de si,


justificando a si própria, sabendo que é absoluta e revelando-se como tal a si mesma,
é preciso que o homem seja, no fundo de seu Ser, não apenas contemplação passiva
e positiva, mas também desejo ativo e negador (KOJÈVE, 2002, p. 162).

Pode-se dizer que em Hegel o sujeito e o saber decorrente da plena consciência que
esse sujeito tem de si mesmo é levado às últimas consequências, na medida em que este sujeito
só pode deter o saber absoluto se for além de sua capacidade contemplativa e ir além do que é,
e assim o faz ao abandonar seu eu fixo e se transformar a partir de seu próprio vazio. Por
consequência, “o homem só é o que é na medida em que ele se torna; seu Ser (Sein) verdadeiro
é devir (Werden) (...)” (KOJÈVE, 2002, p. 162). A centralização do “eu” em Hegel para
determinar o saber absoluto a partir da consciência de si reflete o ápice do sujeito consciente de
si como centro no pensamento moderno, por ultrapassar o pensamento como uma premissa da

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existência e apresentar uma premissa mais essencial que a da mera existência, isto é, o sujeito
que existe porque compreende seu próprio desejo que o caracteriza como sujeito.
Isso demonstra a relevância do pensamento de Hegel para compreender o pensamento
moderno, seu paradigma imunitário e a questão identitária que se apresenta de forma
intensificada na contemporaneidade que se dá em razão de ele indicar tanto a essência da
importância do sujeito na concepção moderna quanto o aparecimento da identidade e de sua
auto-afirmação. Ambas, nesse sentido, são características de um pensamento essencialmente
imunitário por evidenciar a pessoalidade e a individualidade presentes nas relações, além de
inaugurar uma estrutura de pensamento que altera substancialmente a subjetividade, já que
Hegel aponta uma consciência voltada para o ser que a pensa, tornando-o sujeito porque pensa
a si mesmo e o esvazia ao se projetar e ao contemplar a si mesmo, o que ressalta as
características do paradigma imunitário.
Essas características do pensamento moderno, voltadas ao sujeito e à autonomia a
partir da consciência de si, sustentam sua identidade, sua autoafirmação e autopreservação, a
communitas “é a saída para o exterior a partir do sujeito individual, seu mito é precisamente a
interiorização dessa exterioridade, a duplicação representativa de sua presença, a
essencialização de sua existência” (ESPOSITO, 2003, p. 44), o que reflete, pode-se dizer, a
ambiguidade inerente a qual os filósofos se deparam ao ter como perspectiva o munus, já que
este, como conceito objeto de reflexão, estaria já sem o elemento subjetivo. Dito de outro modo,
como tornar possível a reflexão sobre o munus num contexto cujos sujeitos são essencialmente
autoafirmativos e autopreservativos? O munus na modernidade careceria do aspecto subjetivo
que une essas identidades de maneira que elas não fossem mais compreendidas como
identidades, mas como uma única identidade, caracterizada por um vínculo afetivo decorrente
dessa subjetividade coletiva? Conforme colocou Esposito

Si la communitas es la salida al exterior a partir del sujeto individual, su mito es


precisamente la interiorización de esa exterioridad, la duplicación representativa de
su presencia, la esencialización de su existencia. Pero no hay que considerar esta
indebida superposición sólo como un 'error' subjetivo del intérprete. Ella no expresa
más que el descarte objetivamente inherente al doble fondo semântico del concepto
de munus, a la ambigüedad estructural de su forma constitutivamente ancípite.
(ESPOSITO, 2003, p. 44)

Esposito, com base no paradigma imunitário, evidencia uma substituição ou uma


relação contraditória anônima do tipo comunitário pelos “modelos privatísticos ou
individualistas” (ESPOSITO, p. 80), o que está em consonância com a modernidade e seus

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ideais iluministas que culminaram nos paradigmas relacionados ao indivíduo que passa a ser
um sujeito de direitos individuais. Esses direitos pressupõem a imunização cujo núcleo é aquilo
que não tem nada em comum ou não é comum com os outros. A imunização “pressupõe aquilo
que no entanto nega”, pois há nela uma introjeção de seu oposto, que é o conceito de
communitas. A imunidade nega aquilo que a habita invariavelmente, como uma parte
imprescindível a qual ela não pode negar, mas que mesmo assim a nega. Trata-se, se assim se
pode dizer, de um conceito que contém como parte nuclear aquilo que ele próprio nega, na
medida em que “o negativo de immunitas – ou seja a communitas – não só não desaparece do
seu âmbito de pertinência mas constitui ao mesmo tempo o seu objeto e seu motor”
(ESPOSITO, 2010, p. 82).
A intenção é imunizar a comunidade, ou seja, fazer com que ela se conserve e não se
“contamine”, que não se contagie nem tenha nada em comum com o que lhe externo ou
estranho. Ao pretender conservá-la, nega-se seu “originário horizonte de sentido”. (ESPOSITO,
2010, p. 82). A imunização é, no pensamento de Esposito (2010, p. 82), um “aparelho de defesa
sobreposto à comunidade”, por haver nela um liame que, no intuito de promover sua proteção,
coloca-a distante dela, já que a nega por conter em sua essência uma contradição que não lhe
sustenta. A comunidade, em razão disso, interioriza “a modalidade negativa de seu oposto”
(ESPOSITO, 2010, p. 82).
Esposito, ao criticar o “tempo” da biopolítica como estruturalmente moderno em
Foucault, esclarece a importância do seu caráter imunitário, uma vez que esta já seria
preexistente à modernidade por se tratar de uma política voltada para a vida e menciona que em
períodos muito anteriores à Modernidade a biopolítica já se verificava na sociedade. Já o
paradigma da imunização que decorre da biopolítica se insere especificamente na modernidade
e esta seria a razão pela qual, para Esposito, ser o paradigma imunitário e não a biopolítica uma
característica própria da modernidade, por esta estar presente desde o mundo antigo.
Isso não quer dizer, entretanto, que não tenham existido nas sociedades pré-modernas
aparelhos defensivos, mas que a razão de sua exigência era diferente da que é a modernidade e
a pós-modernidade, pois a imunização, se assim se pode dizer, seria um pressuposto de qualquer
aparelho defensivo. No entanto, “apenas a civilização moderna foi por ela constituída na sua
mais íntima essência” (ESPOSITO, 2010, p. 86), cujo aspecto mais central seria a
“autoconservação da vida” que teria, conforme uma observação do Autor, feito nascer a
modernidade, na medida em que, com o surgimento de novas tendências conservatórias que

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descaracterizaram um mundo simbólico e “natural”, uma nova tendência desponta com a


“exigência de um diferente aparelho defensivo de tipo artificial voltado a proteger um mundo
que passou a estar constitutivamente exposto ao risco” (ESPOSITO, 2010, p. 86). Isso fez com
que a conservação e desenvolvimento da vida tivessem que ser ordenados por processos
artificiais capazes de subtrair a vida aos seus riscos naturais, o que ilustra a distinção da política
moderna da que lhe precedeu. (ESPOSITO, 2010, p. 87)
A autoconservação da vida na modernidade pressupõe sempre uma proteção negativa
da vida, o que torna imune a própria vida que quer preservar, na medida em que uma de suas
características é a segurança do sujeito e a preservação de sua vida. Nesse aspecto, “ligar o
sujeito moderno ao horizonte de segurança imunitária significa reconhecer a aporia em que sua
experiência fica presa: a de procurar o refúgio da vida nas mesmas potências que impedem o
seu desenvolvimento”. (ESPOSITO, 2010, p. 88) O paradigma imunitário, portanto,
despotencializa a vida ao assegurá-la.

2 IDENTIDADE E RECONHECIMENTO E SUA RELAÇÃO COM O


PARADIGMA IMUNITÁRIO

A ideia que o sujeito passa a ter de si mesmo com o advento da Modernidade lhe dá
uma autonomia que o fundamenta e essencializa; a determinação do sujeito parte apenas dele
mesmo, tornando-o autônomo de forças externas e de um possível criador. A ressonância
moderna sobre o sujeito lhe torna essencialmente autônomo e sua subjetividade passa a se
constituir a partir de uma racionalidade cujas condições de possibilidade são apenas os
“elementos estruturais de sua própria reflexão” e de uma “orientação original de liberdade e
autonomia” (SOUZA, 1998, p. 400), características estas que apresentam ao sujeito uma nova
identidade marcadamente individualizada, consciente de si e autopreservadora, na qual o
paradigma imunitário se encontra. Nesse sentido, a immunitas, por ser o poder de conservação
da vida e, em razão disso, a proteção negativa da vida, “salva, assegura, conserva o organismo,
individual ou coletivo, a que é inerente – mas não de uma maneira direta, imediata, frontal”,
mas, contrário a isso, submete-o a “uma condição que ao mesmo tempo lhe nega, ou reduz, a
força expansiva”. (ESPOSITO, 2010, p. 74)
A immunitas e a communitas, por conseguinte, são dois paradigmas que sustentam
subjetividades diferentes, modos de pensar e agir que divergem e criam condições distintas. A

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modernidade e as subjetividades geradas no paradigma imunitário contribuem para formação e


manutenção de uma estrutura que exclui e separa, cria uma rede de afetos distinta da
communitas. A organização das sociedades passa a operar a partir de ideais individuais e
mantém à margem aqueles grupos de pessoas que não se enquadram no modelo do sujeito
neutro. Criam-se, com isso, padrões de relações que predeterminam os perfis aceitáveis que são
abrangidos pelo alcance dos direitos, o que é possível fazer à medida que formalmente são
previstos direitos e garantias individuais a todos, sem quaisquer distinções, enquanto
concretamente os grupos minoritários continuam à margem da representação, da cidadania e a
da efetividade de direitos.
Representação tem que ver com reconhecimento, o que, nas discussões atuais, não
deveria ser compreendido como uma questão externa ao debate público na medida em que o
paradigma imunitário corresponde a uma ideia de democracia liberal na qual os indivíduos que
são sujeitos de direitos individuais faz com que eles se desobriguem entre si. O caráter da
pessoalidade se fortalece e o funcionamento das sociedades passa a se guiar por um forte
aspecto privado, já que seus indivíduos têm a seu favor a garantia de direitos individuais.
Nesse aspecto, se communitas é caracterizada por um afeto que vincula e obriga os
indivíduos uns em relação aos outros de maneira que eles não se imunizem dessa obrigação e
dessa mutualidade intrínseca que inevitavelmente os une de fato, seu oposto é o que caracteriza
a distinção dos indivíduos, tornando-os imune entre eles e, portanto, enfraquecendo um
potencial emancipatório concreto.
Se por um lado o paradigma imunitário distorce o objetivo da conservação da vida em
razão de ao conservá-la, torná-la vazia de si mesma, isto é, do que se pode chamar de vida, ele
evoca também um fenômeno contemporâneo que se pauta na diferenciação de minorias
políticas que se apresentam por meio de grupos organizados em torno de causas específicas as
quais se pautam no reconhecimento de sua identidade frente a uma estrutura homogeneizante
e de princípios universais. Nesse aspecto, ao mesmo tempo que a modernidade traz consigo a
ideia de um sujeito universal em torno do qual as sociedades ocidentais modernas passam a
operar, ela traz também a oposição a esse ideal universal a partir da organização de grupos
pertencentes a minorias políticas que não se sentem representadas.
O sujeito universal se encontra distante dos indivíduos reais em seus diferentes
contextos, o que dificulta o alcance das necessidades de minorias políticas, dentre elas
mulheres, negros, homossexuais, pessoas com deficiência etc., grupos estes que possuem

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também suas diferenças internas, sendo certo que dentro de alguns desses grupos diferentes
tipos de opressões se cruzam e se comunicam, o que faz com que a representação por meio da
ideia de um sujeito universal neutro se torne ainda mais problemática e destoante da realidade,
já que este sujeito universal não coincide com os referidos grupos. Além disso, a neutralidade
guarda em si a ideia de um universalismo dos direitos humanos que se apresentam “como
postulados generalizáveis a toda a humanidade” (FLORES, 2009, p. 166), e se tornam “o
campo de batalha em que os interesses de poder se enfrentam uns aos outros para
institucionalizar 'universalmente' seus pontos de vista sobre os meios e os fins a conseguir”
(FLORES, 2009, p. 166) porque “falar de dignidade humana não implica fazê-lo a partir de um
conceito ideal ou abstrato. A dignidade humana é um fim material” (FLORES, 2009, p. 31).
Desta forma, o aparecimento de grupos de minorias políticas cujos interesses podem
ser divergentes em razão da diferenciação dessas minorias seria uma das consequências do
paradigma imunitário, na medida em que o advento da modernidade e a consequentemente
garantia de direitos individuais que se destinam a um sujeito universal e cujos efeitos não são
concretizados para aqueles sujeitos que não se enquadram na categoria neutra do sujeito de
direitos faz com que surjam grupos sociais cujos integrantes sustentam uma identidade que só
é possível por meio de uma consciência de si, o que permite a oposição a um sistema político e
jurídico que garante a efetividade de direitos apenas a indivíduos que apresentam determinadas
características. O sujeito universal, por conseguinte, é aquele que representa todas as lacunas
do Estado Moderno e seu sistema legal de garantia de direitos, pois ele intensifica a
discriminação de categorias políticas que permanecem à margem do alcance de direitos.
Se o paradigma imunitário guarda em si o seu oposto, isto é, a communitas, ao afastar
o exercício de uma política que adentre nas relações entre os indivíduos que integram a
sociedade de modo que eles se afetem mutuamente, seria equivocado dizer que a immunitas
guardaria também um aspecto do excesso de individualismo e pessoalidade ao se atribuir a ela
o surgimento de grupos sociais identitários, pois, como colocado, esses grupos, embora se
pautem no reconhecimento identitário, visam sua inclusão e um comprometimento coletivo em
busca da concretização de direitos. A contradição se dá em razão de esses grupos surgirem
como oposição à figura do sujeito universal o qual é fortalecido pela mesma modernidade que
o faz surgir. Os diversos grupos minoritários se opõem à ideia de sujeito universal no intuito de
minimizar o excesso de proteção desse sujeito neutro e de sua permanência, da conservação de
sua vida como sujeito único e permanentemente a ser preservado. Se por um lado, a imunização

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causa um distanciamento dos indivíduos – o que a distingue da communitas –, por outro lado,
causa também, por consequência da primeira, a necessidade de grupos excluídos se oporem a
lógica imunitária a qual contribui tanto para a individualidade quanto para o fortalecimento de
grupos sociais identitários.
Trata-se, por conseguinte, de um paradoxo gerado pela imunidade ao levar às últimas
consequências o distanciamento dos indivíduos a fim de lhes proteger, acaba por afastá-los uns
dos outros, rompe-se com quaisquer valores comuns e recíprocos e os substitui pela necessidade
de se conservar uma vida apartada das demais, uma vida individual, com ideais individuais e
um direito que não alcança a realidade da multiplicidade de vidas. A outra ponta do paradoxo
se encontra no surgimento dos grupos cujas características se constituem a partir da consciência
de si, no reconhecimento de sua própria identidade e de um caráter pessoal, mas que, a despeito
de elevarem essas características que seriam, a princípio, necessariamente imunitárias, dado o
caráter individual que ali existe, se opõem à manutenção do paradigma imunitário como
princípio conservador da vida do sujeito de direitos individuais.
De modo consequente, a dignidade da vida individual está vinculada à dignidade da
vida coletiva na medida em que, o que pode ser exemplificado pela relação existente entre
identidade pessoal e o desrespeito, conforme colocado por Honneth, segundo o qual “a
degradação valorativa de determinados padrões de autorrealização tem para seus portadores a
consequência de eles não poderem se referir à condução de sua vida como a algo a que caberia
um significado positivo no interior de uma coletividade” (HONNETH, 2003, p. 217-218). Isto
é, a auto-estima pessoal tem que ver com o assentimento social em seu respectivo grupo, o valor
que ela dá a si mesma com base nos valores de seu grupo, o que está relacionado com o que
Hegel já havia afirmado no sentido de que “a realidade humana nada mais é que o
reconhecimento de um homem por outro homem.” (HEGEL, apud KOJÈVE, 2002, p. 165).
No entanto, Honneth aponta que

Um sujeito só pode referir essas espécies de degradação cultural a si mesmo, como


pessoal individual, na medida em que os padrões institucionalmente ancorados de
estima social se individualizam historicamente, isto é, na medida em que se referem
de forma valorativa às capacidades individuais, em vez de propriedades coletivas; daí
essa experiência de desrespeito estar inserida também, como da privação de direitos,
num processo de modificações históricas. (HONNETH, 2003, p. 218)

Há que se verificar, ainda, que algumas críticas concernentes a políticas identitárias


ocorrem porque não se compreende que há dois tipos de injustiça e que eles advêm de uma

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mesma origem, isto é, tanto a injustiça econômica quanto a injustiça cultural ou simbólica
decorrem de um modelo que tem como base o paradigma imunitário. O reconhecimento se
insere no segundo tipo de injustiça, muito embora o desrespeito se refira também a sujeitos que
permanecem estruturalmente excluídos “da posse de determinados direitos no interior de uma
sociedade” (HONNETH, 2003, p. 216). Há, conforme coloca Fraser (2006, p. 233), um dilema
da redistribuição-reconhecimento, na medida em que “pessoas sujeitas à injustiça cultural e à
injustiça econômica necessitam de reconhecimento e redistribuição”, o que torna o dilema
difícil, já que as respectivas políticas “parecem ter com frequência objetivos mutuamente
contraditórios”. (FRASER, 2006, p. 233). As políticas de reconhecimento tendem a promover
a diferenciação do grupo, enquanto as políticas de redistribuição tendem a desestabilizá-la
(FRASER, 2006), pois a redistribuição implica uma certa homogeneidade coletiva de maneira
que não haja separação por grupos; ao contrário das políticas de reconhecimento que
demandam a valorização do grupo.
O paradigma imunitário gera, portanto, o surgimento de ambas as coletividades
mencionadas, tanto aquelas que precisam de políticas de redistribuição quanto aquelas que
precisam de reconhecimento. Entretanto, ambas podem coincidir em coletividades
“bivalentes”, em razão de seu caráter híbrido e, por isso, não são excludentes entre si, mas
complementares, embora, conforme colocado, constituam um dilema; “oprimidas ou
subordinadas, portanto, sofrem injustiças que remontam simultaneamente à economia política
e à cultura”, na medida em que “essas injustiças não são efeitos uma da outra, mas ambas
primárias e co-originais.” (FRASER, 2006, p. 233)

CONCLUSÃO

A partir do paradigma imunitário trazido por Esposito e a preservação da vida que lhe
é inerente, bem como do conceito de communitas o qual se contrapõe ao primeiro, é possível
compreender melhor as bases sobre as quais a Modernidade opera. Traça-se, com isso, os
referidos conceitos que são essencialmente opostos de modo que a imunidade diz respeito a
obrigações cujas causas remetem à necessidade de proteção da vida, por meio de obediências
contratuais cuja consequência é a renúncia da própria vida.
O paradoxo que se apresenta, a partir disso, ilustra o resíduo de irracionalidade
presente na modernidade na medida em que a vida é sacrificada no intuito de se conservá-la. O

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sacrifício se encontra na maneira pela qual o caráter privatista é evocado e levado a efeito na
modernidade; priva-se os indivíduos do que lhes é comum, mas com a subjetividade racional
da modernidade o pressuposto é já individualista porque a autonomia do indivíduo lhe confere
uma sujeição à sua autopreservação, o que altera toda sua forma de pensar e agir. E é neste
ponto que a essência da modernidade se encontra e se mantém, pela autoafirmação irrestrita do
eu.
Identidade e autoconsciência se elevam na subjetividade e centralizam a consciência
no eu, o que faz com que a imunidade se contraponha à communitas, na medida em que ambas
evocam conceitos e modos de agir não só distintos, mas essencialmente contrários. O conceito
do primeiro está em consonância com a centralidade do sujeito e seu núcleo é a afirmação da
identidade por meio de sua autoconsciência, o que se harmoniza à modernidade. No que
concerne ao conceito de communitas, pode-se dizer que ele se coloca distante dos ideais da
modernidade, por ter como base pressupostos opostos ao da imunidade, razões pelas quais a
própria reflexão do que é a communitas é obstaculizada. Nesse sentido, todas as bases do
pensamento moderno e do que deriva dele são invariavelmente pautadas pelo sujeito como
centro. Assim, a ideia de communitas, nos termos que Esposito propõe apenas subjaz ao
paradigma imunitário.
O paradigma imunitário visa, por conseguinte, maneiras privatísticas e individualistas
de existir no mundo. O sujeito de direitos individuais não se contamina com o que lhe é estranho
ou ameaçador à sua própria individualidade; sua subjetividade é pautada na sua proteção em
relação ao que lhe é externo e ele se priva do que é comum ou pode ser comum a todos. A
comunidade lhe é privada com seu consentimento, sua obediência contratual que lhe promete
a proteção e conservação de sua vida. A noção de riscos passa a ser condição para que a
imunidade opere e os riscos estão relacionados com o que pode ser comum a todos, com a
contaminação do que diz respeito a todos, ao externo e, portanto, à impessoalidade ao lidar com
o que não seria do interesse apenas de um indivíduo, mas seu contrário, isto é, lidar e se obrigar
ao que é comum; abandonar a pessoalidade e se dirigir a um campo no qual o “eu” dá lugar a
uma consciência coletiva, consciência esta que encontra dificuldade de se localizar na estrutura
moderna.
É no contemporâneo, com influência moderna, que grupos sociais politicamente
minoritários surgem como forma de autoafirmação e de oposição ao sujeito universal que é
aquele efetivamente representado, o qual, por sua vez, intensifica a discriminação e a

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marginalização de minorias políticas. Pode-se dizer que o próprio paradigma imunitário ao


mesmo tempo que traz consigo o potencial discriminatório por conter nele mesmo pressupostos
individuais, traz também o surgimento de grupos que se opõem às discriminações por meio do
reconhecimento de suas identidades e sua autoafirmação individual que se reflete nos grupos
dos quais fazem parte. Ou seja, os grupos identitários não surgem apenas como uma
reafirmação da pessoalidade intrínseca a esses grupos, como forma de intensificar a
individualidade de algumas categorias de pessoas, mas também como meio de se opor a uma
individualidade nociva cujas consequências esbarram na discriminação e na marginalização de
pessoas que não se enquadram no modelo do sujeito universal.
Diante disso, o paradoxo imunitário, ao ensejar a privação da vida coletiva por meio
do ideal de um sujeito autônomo e livre de se obrigar afetivamente a questões que dizem
respeito a interesses coletivos, apresenta uma abertura para a luta política, isto é, há um certo
retorno do que o paradigma imunitário nega, na medida em que minorias políticas lutam por
mais visibilidade, o que reflete a “abertura de processos de luta pela dignidade humana”
(FLORES, 2009, p. 21), conforme apontou Flores ao definir os direitos humanos como uma
“categoria de deveres autoimpostos nas lutas sociais pela dignidade, e não de direitos abstratos
a partir de fora” (FLORES, 2009, p. 21) das lutas e compromissos e dos direitos como processos
de luta, isto é, “o resultado sempre provisório das lutas” (FLORES, 2009, p. 28). Trata-se,
portanto, de políticas de reconhecimento as quais se caracterizam pela diferenciação de grupos
e sua valorização com base no reconhecimento de suas peculiaridades.

REFERÊNCIAS

ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, Lda., 2010.

ESPOSITO, Roberto. Communitas: Origen y destino de la comunidad. 1ª. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.

FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

FRASER. Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos
de Campo. São Paulo, n. 14/15, 2006.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003.

KOJÈVE. Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

SOUZA, José Carlos Aguiar de. A configuração estrutural do paradigma da racionalidade moderna. Síntese Nova
Fase. V. 25, n. 82, 1998.

380
O TRABALHO ESCRAVO E O CAPITALISMO:
UM PROBLEMA NA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida e Universidade Estácio de Sá.
FIGUEIRA, Hector Luiz Martins
Doutorando em Direito, Constituição e Cidadania pelo PPGD – UVA, professor da Estácio/RJ.
CHAUFUN, Mery
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Mestre em Direito pela
UNESA. Professora da Universidade Veiga de Almeida do Curso de Direito.

RESUMO

O Brasil é uma formação social e econômica complexa e comporta muitas contradições. É a décima
terceira economia do mundo (FMI, 2017), ao passo que persistem em seu território a superexploração
de trabalhadores vulneráveis em termos de educação e renda (PHILLIPS, 2012). Nesse cenário, o
trabalho escravo contemporâneo é uma de suas mais graves, injustas e persistentes problemáticas sociais.
Longe de ser um fenômeno recente, isolado e pontual, o trabalho escravo compôs parte da história
econômica brasileira, em diferentes modalidades, tais como tráfico de pessoas, servidão por dívida,
exploração de órgãos ou até mesmo sexual. A despeito da abolição da escravatura, o trabalho escravo,
resiste na atualidade. A problemática da escravidão é um dos traços marcantes no desenvolvimento da
história humana. Mais especificamente, o Estado determina um limite externo à relação de
assalariamento no Brasil, que contempla o tipo de coerção específica do capitalismo, pois independe da
coação individual do comprador da força de trabalho para se configurar. Os desafios à diminuição da
incidência de condições de trabalho análogas à escrava são colossais e incluem resistências desde os
próprios aparelhos do Estado. O presente artigo utilizará método bibliográfico através da literatura
jurídica existente

Palavras-Chave. Trabalho Escravo, Capitalismo, Mercado de Trabalho.

SUMMARY

Brazil is a complex social and economic formation and it has many contradictions. It is the thirteenth
largest economy in the world (IMF, 2017), while the overexploitation of vulnerable workers in education
and income persists on their territory (PHILLIPS, 2012). In this scenario, contemporary slave labor is
one of its most serious, unjust and persistent social problems. Far from being a recent phenomenon,
isolated and punctual, slave labor composed part of Brazilian economic history in different modalities,
such as human trafficking, debt bondage, organ exploitation or even sexual exploitation. In spite of the
abolition of slavery, slave labor resists today. The problem of slavery is one of the defining traits in the
development of human history. More specifically, the State determines an external limit to the wage
relationship in Brazil, which contemplates the specific type of coercion of capitalism, since it does not
depend on the individual coercion of the buyer of the work force to be configured. The challenges to
reducing the incidence of slave-like working conditions are colossal and include resistance from the

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ISSN 2236-9651, n. 7

state apparatuses themselves. This article will use bibliographical method through existing legal
literature

Keywords. Slave Work, Capitalism, Labor Market.

INTRODUÇÃO

Trabalho escravo ou trabalho em condição análoga à de escravo agride os direitos de


personalidade, também denominados de direitos fundamentais, violando o principal bem
jurídico a ser protegido, que é a dignidade da pessoa humana.
O critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade, segundo Sarlet
(2001), passa a ser o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de coisificar o outro.
O nosso ordenamento jurídico não possui um conceito próprio para o trabalho
escravo, sendo certo que o artigo 149 do Código Penal tipifica a conduta delituosa de reduzir
alguém a condição análoga à de escravo.
A presença de qualquer um dos seguintes elementos é suficiente para configuração de
trabalho escravo: trabalho forçado; jornada exaustiva; servidão por dívida; e condições
degradantes (MTE, 2015).
As estimativas do trabalho escravo no mundo, conforme o Walk Free Slavery Index1
(2014), dão conta de que se trata de uma situação que não pode mais ser negligenciada nos
estudos que tratam de gestão e organizações. Segundo as estimativas (WALK FREE
SLAVERY, 2014)1, são 35,8 milhões de homens, mulheres e crianças presos na escravidão
moderna, em todo o mundo, abrangendo os cinco continentes.
Como bem disse Gustavo Luís Teixeira das Chagas (2012, p. 65), a redução do ser
humano à condição análoga à de escravo perpassa pela liberdade do ser humano em sua
acepção mais essencial: a de poder ser.
A liberdade em sua essência é eivada de livre arbítrio, e, é nessa linha que foram
deliberadas as leis protecionistas no Estado brasileiro. Suprimir a liberdade do cidadão em
pleno século XXI significa podar seu próprio destino.

1Relatório elaborado pela Fundação Internacional Walk Free Slavery, “uma organização global com a missão de acabar com a
escravidão moderna em nossa geração pela mobilização de um movimento ativista global, gerando pesquisa da mais elevada
qualidade, atraindo negócios e elevando os níveis sem precedentes de capital para promover mudanças naqueles países e indústrias
que carregam a maior responsabilidade pela escravidão moderna atual” (WALK FREE SLAVERY, 2014)

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Segundo Miraglia (2011, p. 216) , a liberdade diz respeito não apenas ao direito
subjetivo de ir e vir, significando, no âmbito coletivo, a liberdade de associação e exercício da
atividade sindical obreira. Ademais, pode-se afirmar que também é possível inferir dessa
liberdade o direito de livre-arbítrio na escolha do serviço prestado e o direito de o trabalhador
encerrar a relação jurídica a qualquer tempo.
No mundo da moda nos deparamos com o trabalho escravo em diferentes matizes,
sendo necessário um questionamento sobre as possíveis políticas de erradicação e as
consequências no consumo.
“Quantos escravos trabalham para você?” é a pergunta que o aplicativo
SlaveryFootprint, da Organização Não Governamental (ONG) anglo-australiana Made in a
Free World, utiliza para instigar as pessoas a pensarem sobre o tema. O teste é composto por
onze perguntas, que incluem a aquisição de produtos de higiene, alimentação, vestuário, entre
outros, a fim de mensurar quantos escravos podem ser encontrados ao longo dessa cadeia
produtiva.
Enquanto o internauta responde às questões, são exibidas informações a respeito do
trabalho escravo no mundo e sua relação com o consumo.
Por meio da conscientização, a ONG busca fazer com que as pessoas repensem seus
hábitos de compra e, em consequência, desestimular a prática criminosa de trabalho escravo.
No Brasil, a ONG Repórter Brasil desenvolveu, em 2013, o aplicativo Moda Livre,
que avalia grandes grupos varejistas de moda e relaciona aqueles em que a produção têxtil foi
flagrada em casos de trabalho escravo.
A proposta é que o consumidor conheça a conduta das marcas antes de efetuar a
compra e, assim, se torne um agente no combate ao trabalho escravo.

1. A ESCRAVIDÃO ONTEM?

Ao criar intangibilidade sobre o fenômeno do trabalho escravo analisamos as


diferentes matizes que o trabalho adquire ao longo da história.
Iniciamos o estudo através do pensamento de Hannah Arendt que distingue a
condição humana da natureza humana como forma de entender os três aspectos envolvidos,
labor, trabalho e ação que propiciam a compreensão do tema (ARENDT, 2000).

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Ela preceitua a relevância de caracterizar os momentos históricos importantes como


forma de compreender a condição humana, a reboque de Hegel e Marx, que analisam através
da história as relações concretas entre os homens, sendo, uma delas o trabalho (ARENDT,
2000).
A condição humana é mutável, enquanto que a natureza humana não porque é
inerente ao homem.
A dignidade é um valor inerente a pessoa humana e está intimamente ligada à
respeitabilidade no grupo social. Somente a pessoa é considerada honrada quando ela tem sua
honra reconhecida e respeitada (ARENDT, 2000)
Diante disso, faz sentido compreender as duas situações nas quais Hannah Arendt
(ARENDT, 2000), refere-se quando analisa o aspecto interno, ou seja, aquilo que pensamos ou
sentimos. Sendo que há uma condição extrínseca que está ligada à cultura, à família, aos amigos
e à vida cotidiana.
Tais aspectos são roubados do trabalhador escravizado, tenha sido no passado como
no Estado Contemporâneo.
A partir de meados do século XIX, os ingleses começam a pressionar o Brasil para
que faça a abolição da escravidão. A pressão interna para a abolição da escravatura também é
forte. Em contrapartida, os donos de escravos defendem a manutenção da escravidão, mesmo
que nos moldes moderados, a fim de preservar a economia brasileira, que depende do trabalho
escravo (COSTA, 1977, p. 222.)
Como disse Emilia Viotti da Costa (COSTA, 1982, p. 9), “a escravidão marcou os
destinos da nossa sociedade. Seus traços ficaram indeléveis na herança e nos legaram a cultura
negra e as condições sociais nascidas do regime escravista”.
A escravidão pré-capitalista era considerada uma forma tradicional de trabalho,
legalizada e permitida pelo Estado.
A questão econômica sempre foi um dos traços marcantes no predomínio da
escravidão, havendo outros como a liberdade, dignidade, desigualdade e miséria. Privilegiamos
perseguir o aspecto econômico para evidenciar que tanto no mundo antigo como no mundo
contemporâneo, existem os que dominam e os que são dominados e os mecanismos de combate
a esta realidade são de difícil cumprimento.

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Finalmente, a Lei Áurea2, como é denominada, não contem mais que dois artigos e
coloca fim a uma instituição de mais de três séculos no Brasil, além de determinar que os
senhores não sejam indenizados, assim como não prevê qualquer forma de reparação aos ex-
escravos.
Vale ressaltar, que em 13 de maio de 1888, mais de noventa por cento dos escravos
já estão libertos em nosso país, seja por meio de fugas ou alforrias (ALBUQUERQUE, 2006).
Segundo Jacob Gorender: “Com toda a evidência, a Abolição não foi ‘negócio de
brancos’. Constituiu conquista revolucionária da luta autônoma dos escravos conjugada à
militância do abolicionismo urbano-popular” (GORENDER, 2011, p. 182).

2. ESCRAVIDÃO HOJE ?

A problemática central da presente pesquisa fulcra na pergunta sobre a eficácia sobre


a utilização da mão de obra escrava na indústria da moda.
Bauman (2008), ao descrever a passagem de uma sociedade de produtores para uma
sociedade de consumidores, argumenta que está em curso a transformação de uma sociedade
sólida para uma sociedade líquida, em que tudo é avaliado como mercadoria, predominando o
desapego, a troca e o eterno recomeço. A principal característica da sociedade de consumo é a
visão das pessoas em um espaço social mercantilizado no qual tudo se transforma em
mercadoria. Essa ideia é reforçada pelo ingresso no mundo virtual, que reflete o homem como
produto em redes que expõem as pessoas, de forma semelhante a mercadorias em um catálogo,
e tudo acontece de forma rápida (BAUMAN, 2008).
Dentro desta questão problema constatamos que o mundo da moda possui imagem
vinculada ao glamour, à beleza e nele há uma forte valorização do novo. No entanto, na
indústria da moda existem mazelas, entre elas, a exploração criminosa de trabalhadores, por
meio de trabalho escravo. As marcas e conceitos das grandes corporações são criteriosamente
criados, mas a produção é repassada a terceiros. Esses, por sua vez, pagam valores ínfimos por
peça produzida, obrigando trabalhadores a jornadas extenuantes a fim de produzirem muito
recebendo uma remuneração mínima para sobrevivência (REPÓRTER BRASIL, 2012).

2 A palavra áurea, que vem do latim, aurum, é uma expressão de uso simbólico que significa “feito de ouro”, “resplandecente”,
“iluminada”. A palavra áurea é usada para expressar o grau de magnitude das ações humanas e é explorada há séculos por muitos
soberanos, reis, imperadores e faraós, no ato de assinatura de seus tratados. Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
Disponível em :<http://www.priberam.pt>

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A busca por melhores condições de vida e a miséria existente em várias localidades


do nosso país favorece o aliciamento destes trabalhadores pelos “gatos”3, que disponibilizam
locais para facilitar o aliciamento, e daqueles que utilizam do trabalho escravo que são dentre
outras formas as oficinas de costura no Estado Brasileiro.
Não raro, nomes de grandes marcas e grandes varejistas da indústria da moda estão
vinculados à exploração de mão de obra escrava nessas condições (AYRES, 2012; PRADO,
R., 2011; SANTINI, 2014; VERONESE, 2014).
A justificativa de ordem social reside no fato de que, ao conhecer os argumentos
utilizados pelos consumidores de moda quanto a adquirirem ou não produtos de empresas
denunciadas por utilizar trabalho escravo contemporâneo, oferecemos à sociedade pontos para
reflexão a respeito de suas próprias escolhas.
Assim, a sociedade poderá ser estimulada a pensar se suas escolhas contribuem para
a manutenção de práticas corporativas criminosas contra aqueles que estão em condições de
desigualdade em relação aos consumidores das marcas para a qual produzem.
Há uma questão cultural muito forte em nosso país referente a escravidão, assim como
na atualidade podemos destacar o analfabetismo, exclusão social, abismo econômico que
acarreta na pobreza e desemprego. Tudo isso é somado a ausência eficaz estatal em todos os
recantos do nosso país que facilita o aliciamento de trabalhadores.
Além disso, o aspecto psicológico do escravizado e o medo da denúncia aos órgãos
competentes dificulta o flagrante e consequentemente a sua libertação.
O Estado Brasileiro tem diante dele certas expressões da questão social que são a
pobreza, exclusão social, analfabetismo, desemprego e essa realidade social beneficia a prática
da escravidão contemporânea. Tais sintomas sociais se coadunam a precarização dos direitos
do trabalho que são um dos problemas mais graves na atualidade, e, uma ausência de políticas
públicas de coibição a prática deste crime.
Existe uma questão muito forte de dependência entre o senhor que detém os meios de
produção e o escravo que possui a força de trabalho.
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um lucro
exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a violabilidade dos direitos e a
perpetuação do trabalho escravo.

3 Gato é o intermediador entre o empregado e o empregador. É a pessoa que alicia trabalhadores com promessas de excelentes
salários e condições de vida (MIRAGLIA, 2011).

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Ameaças de morte, castigos físicos, dívidas que impedem o livre exercício do ir e vir,
alojamentos sem rede de esgoto ou iluminação, sem armários ou camas, jornadas que
ultrapassam 12 horas por dia, sem alimentação ou água potável, falta de equipamentos de
proteção, promessas não cumpridas, ou seja, uma pressão psicológica tão forte e degradante
que impossibilita que o trabalhador se permita sair da condição de escravo e consequentemente
seja liberto, tornando-se um ciclo vicioso de submissão.
Pessoas, inclusive pessoas de direito, só são individualizadas por meio da
coletivização em sociedade. Sob essa premissa, uma teoria dos direitos entendida de maneira
correta vem exigir exatamente a política de reconhecimento que preserva a integridade do
indivíduo, inclusive nos contextos vitais que conformam sua identidade.” (HABERMAS, 2002,
p. 235)
Há denúncias cada dia mais frequentes que hasteiam a bandeira da responsabilidade
social, do respeito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam códigos
de conduta que contemplam missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático
de Direito e, com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos e
utilizam-se da mão de obra escrava.
É difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha crueldade e covardia tão perto
de nós. Trata-se da exploração de pessoas realizada por grifes de renome e de solidez
econômica, das quais provavelmente já adquirimos produtos. É uma escravidão impune, pois
não está visível aos olhos da sociedade. A melhor solução para combater esse crime talvez
esteja em nossas mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositando
nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria foi produzida. É
preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que exercem trabalhos análogos à
escravidão.
Quando compramos, estamos depositando nosso voto de confiança na empresa e na
forma como aquela mercadoria foi produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar
grifes que exercem trabalhos análogos à escravidão.

3. HAVERÁ ESCRAVIDÃO NO FUTURO ?

Existem consumidores que acreditam que a sociedade pode e deve promover


mudanças. Estes consumidores consideram as consequências sociais do seu ato de consumo,

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ou utilizam-se do boicote como forma de promover mudanças ou ainda privilegiam empresas


que mostram maior responsabilidade social ou ambiental (WEBSTER JR, 1975).
Observa-se uma legitimação moral que segundo Crane (2013) consiste na aceitação
mínima no campo institucional, como, por exemplo, de clientes e comunidade local propicia a
perpetuação dessa prática. Nesse sentido, os argumentos quanto ao boicote ser um caminho
para promover as mudanças, vai ao encontro da posição de Crane (2013), por ser esse uma ação
que não sustenta e não compartilha com essa prática.
O consumidor ético forja uma nova cultura do consumo, expressando sua visão social
de mundo e sua ética. Esse consumidor considera as consequências do seu consumo e assume
responsabilidade pelas questões sociais (FONTENELLE, 2007, 2010).
Nesse contexto de surgimento de figuras de consumidores socialmente responsáveis
e outras formas de pensar o consumo, como o consumo ético, verde, consciente, político, entre
outras denominações (CRAIG-LEES E HILL, 2002, MALPASS ET AL, 2007;
MICHELLETTI ET AL, 2003), que chamam a atenção para a importância do consumo como
um processo psicológico e social.
Os argumentos centram-se na ideia de que, no Brasil, o trabalho escravo
contemporâneo é uma prática ilegal e criminosa, no entanto, as empresas, para lucrarem mais,
infringem as leis, tornando-se ilegais e criminosas, porém, isso não as intimidam. Já os
consumidores que adquirem esses produtos tornam-se coniventes, incentivando que essa
prática criminosa se perpetue e se torne uma prática de gestão, legitimando-a moralmente
(CRANE, 2013).
Os consumidores que consideram a exploração escravagista atual como crime
utilizaram como dado a ilegalidade do ato, mesmo que fosse tratado como infração trabalhista,
o fato de não ser uma atitude idônea por si só faz como que parte dos consumidores considerem
como um ato ilegal.
A garantia utilizada pelos consumidores foi que pessoas não podem ser escravizadas
e que as empresas querem aumentar a margem de lucro diminuindo os custos com
trabalhadores, cometendo o crime de utilizar mão de obra escrava.
A necessidade e a reputação das marcas como motivadores de compra revelaram que
existem consumidores que procuram evitar o consumismo, procurando um comportamento
racional e responsável. Estes consumidores indicaram que se veem inseridos na cadeia
produtiva e têm consciência das consequências sociais do ato de consumir, procurando utilizar

388
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89 do seu poder de compra para promover uma mudança social, seja por meio do consumo de
produtos oriundos de empresas responsáveis ou do boicote àquelas que não possuem
comportamento compatível com a visão social dos consumidores (WEBSTER JR, 1975).
Encontrar consumidores com esse comportamento indica que existe espaço para o
consumo consciente, no entanto, esse espaço é percebido pelas organizações como importante
para o crescimento de um mercado, como criticado por Barros et al (2011), Fontenelle (2007)
e por Sampaio (2013). É por meio do consumo que as pessoas expressam seus pensamentos,
seus ideais e sua ética. O consumo consciente é uma nova cultura do consumo forjada para este
público (FONTENELLE, 2007, 2010), que assume a responsabilidade pelos crimes
organizacionais, sob a noção de que se não houvesse consumo não haveria oferta de produtos
oriundos de práticas criminosas. Quanto mais visibilidade as práticas das organizações, sejam
elas boas práticas ou nefastas, mais os consumidores poderão se posicionar e fazer escolhas
racionais, de acordo com seus ideais.
Por derradeiro, pode-se afirmar que a história do trabalho no Brasil não se iniciou com
a industrialização ou com a CLT, mas sim com o trabalho escravo, que persistiu como atividade
legal por mais de três séculos, iniciado com a exploração de mão de obra indígena e consolidado
com o tráfico negreiro e exploração do trabalho dos africanos (ROCHA; GÓIS, 2011).
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um lucro
exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a violabilidade dos direitos e a
perpetuação do trabalho escravo.
A dinâmica do processo gira em torno do capital e poder enraizado no Estado
Brasileiro, seja no aspecto comportamental, político, psicológico, regional, dentre outros.

CONCLUSÃO

A escravidão no Brasil está inserida na história do nosso país e a abolição da


escravatura não fez como que esta forma de trabalho fosse extinta. Embora em diferentes
formas constata-se que os relatos de escravidão contemporânea no Estado Brasileiro remontam
ao ano de 1971, embora somente a partir do acordo firmado no Caso José Pereira, perante a
Corte Interamericana de Direitos Humanas, é que o Brasil se tornou uma referência ao combate
ao trabalho escravo.

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A problemática inicia-se na dificuldade em estabelecer um conceito preciso para


caracterizar está temática, o que incide muitas vezes, na inviabilidade da sua concretização.
Não há ausência de legislações, nem, tampouco tratados ou convenções, mas como
cada uma utiliza um conceito e nomenclatura própria, torna a discussão mais ampla em sede
jurisdicional.
O trabalho precário e, especificamente, o trabalho escravo contemporâneo, interfere
negativamente no desenvolvimento do indivíduo, visto que viver para o trabalho atrapalha a
educação dos trabalhadores e de suas famílias, não apenas pelas possibilidades de ascensão
promovidas pela educação, mas pela mudança cultural e intelectual que a educação produz.
Aceitar que pessoas trabalhem sem garantir educação é condená-las a estas condições precárias.
A educação, por si só, pode não transformar a sociedade, mas “sem ela tampouco a sociedade
muda” (FREIRE, 2000, p.67), mas isto é pauta para uma outra discussão.
A respeito da responsabilidade do Estado, podemos relacionar a baixa educação
formal para essas pessoas escravizadas como os fatores que enraízam a escravidão
contemporânea, conforme identificados por Crane (2013): extrema pobreza, falta de educação
e conscientização.
As contribuições desta pesquisa são de natureza teórica e social. Como contribuição
teórica adentramos nas discussões sobre trabalho escravo contemporâneo, conseguimos
relacionar organizações, cultura e sociedade ao tema, mostrando a relevância do tema para a
área de Estudos Organizacionais. A contribuição social foi mostrar à sociedade e, em especial,
aos consumidores, a existência do trabalho escravo contemporâneo e a participação de cada
indivíduo no combate ou manutenção dessa prática criminosa.
Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do respeito, do
comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam códigos de conduta que
contemplam missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito e, com
isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos. Contam com público
fiel à marca e ao estilo de vida que lhe corresponde. Mascara-se, no entanto, uma realidade
cruel e pungente: uma produção barata e degradante. Pulveriza-se intensamente a cadeia
produtiva: contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se os riscos da atividade. Negocia-se a
prestação dos serviços sob o rótulo de relações estritamente comerciais. Paga-se pouco, muito
pouco: o limite necessário para garantir o lucro máximo. (CAVALCANTI, 2013).

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Somado a isso há uma cultura do medo que é instaurada para evitar denúncias sobre
a existência nos locais de trabalho escravo. Para combater a prática da escravidão
contemporânea é preciso denunciar. Através das denúncias, o Ministério Público, o Ministério
do Trabalho e a Polícia Federal iniciam um processo de investigações e de fiscalizações.
Apesar de todos os esforços resta constatada a existência em pelo século XXI de
trabalho escravo contemporâneo em nosso território nacional.
A realidade é que constatamos mais de 125 anos após a abolição da escravatura, que
o Estado Brasileiro ainda é insuficiente e ineficaz no combate ao trabalho forçado, valendo
destacar, que muitas pessoas são libertadas todos os anos no país em condições análogas à de
escravos, e, tantas outras permanecem sem a efetiva aplicação da proteção estatal.
Portanto, é difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha crueldade e covardia
tão perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realizada por grifes de renome e de solidez
econômica, das quais provavelmente já adquirimos produtos. É uma escravidão impune, pois
não está visível aos olhos da sociedade. A melhor solução para combater esse crime talvez
esteja em nossas mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositando
nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria foi produzida. É
preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que exercem trabalhos análogos à
escravidão.

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393
SOBERANIA E IMIGRAÇÃO:
UMA ANÁLISE BIOPOLÍTICA DO VISTO PERMANENTE POR
RAZÕES HUMANITÁRIAS CONCEDIDO AOS IMIGRANTES
HAITIANOS

BARBOSA, Fabiane Machado


Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense–PPGSD/UFF

SANTOS, Faria Vera Ribeiro de Almeida dos


Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense–PPGSD/UFF
Pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração institucional de Conflitos - Ineac/UFF

RESUMO

O artigo parte da perspectiva de que a sociedade se apresenta não como um dado e sim como uma
produção discursiva. Com essa racionalidade procuramos entender a que serve a não adequação dos
haitianos como refugiados e a consequente criação de um visto por razões humanitárias, que não se
estende aos demais imigrantes em situação de vulnerabilidade no Brasil. Essa análise é feita a partir do
paradigma biopolítico, que analisa a soberania como o poder que rege a vida, passando pelos corpos e
pelas mentes humanas. A análise biopolítica na filosofia de Roberto Esposito, e, por consequência seu
conceito de soberania, parte do paradigma imunitário1, que pensa o Estado como o oposto de
comunidade, tornando possível uma associação humana não comunitária. Unida a essa racionalidade
debateremos a economia dos castigos na regulamentação imigratória. O visto humanitário previsto
inicialmente na Resolução 97/2012, faz parte da estratégia de exercício de soberania do estado brasileiro
sobre suas fronteiras porosas na Amazônia. O objetivo é discutir, a partir da biopolítica e dos processos
de imunização, a política brasileira de imigração.

Palavras-chave: Imigração. Soberania. Economia dos Castigos. Imunização. Biopolítica

ABSTRACT

This article is written on the perspective that society presents itself not as a given fact but as a discursive
production. With this rationality we seek to understand to whom would serve the unsuitability of Haitians
as refugees and the consequent creation of a visa on humanitarian grounds, which is not extended to
other immigrants in a vulnerable situation in Brazil. This analysis is based on the biopolitical paradigm,
which analyzes sovereignty as the power that governs life, passing through human bodies and minds.
The biopolitical analysis in Roberto Esposito's philosophy, and consequently his concept of sovereignty,
starts from the immunization paradigm, which thinks the State as the opposite of community, making
possible a non-communal human association. The humanitarian visa, initially foreseen in Resolution
97/2012, is part of the Brazilian state sovereignty strategy exercise over its porous borders in the Amazon
region. The aim is to discuss, based on biopolitical and state immunization process, the role of political

1
ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Trad: M.Freitas da Costa. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2010.

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and economic conditions that should not be seen as an obstacle to the subject of knowledge but through
what the subject of knowledge and truth relations are made of.

Keywords: Immigration. Sovereignty. Economy of punishment.

INTRODUÇÃO

A migração é um fenômeno narrado em vários momentos históricos e constituído


pelos mais diferentes discursos. Seja voluntária ou forçada, a migração sempre passa por um
processo de justificação, que a constitui, promove ou a tenta impedir. Para Gilles Deleuze as
fronteiras dos estados nacionais vão enfrentar desafios na contemporaneidade, afirma que “a
barbárie é o quadro que se avizinha já que três quartos da população mundial são pobres demais
para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a
dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.”2
O recente fluxo migratório que conecta a Amazônia legal3 ao Caribe, iniciado por
imigrantes haitianos após o terremoto de 2010, desperta questões sobre os mecanismos de
controle das politicas públicas de imigração e das fronteiras territoriais brasileiras. Esse fluxo
gerou uma rede de comunicação e organização dos trajetos que ligam o Caribe e a África até o
Brasil, passando pela Amazônia brasileira. Dominicanos, senegaleses, congoleses entre outros,
vem usando a rota inicialmente exclusiva dos haitianos.4 A porosidade e fragilidade das
fronteiras do norte do Brasil se tornou evidente para toda comunidade internacional, gerando
uma ideia de precariedade da soberania que será analisada a partir da concepção foucaultiana
de poder.
Nesses termos, percebe-se a existência de uma estrutura de processos e condições
pelas quais as identidades humanas são construídas, tais processos podem ser identificados na
construção da categoria de refugiado, que estaria impedida de ser estendida aos haitianos, e, na
construção do instituto jurídico que os regularizou no Brasil: o visto de permanência por razões
humanitárias. O artigo parte da perspectiva de que a sociedade se apresenta não como um dado
e sim como uma produção. Com essa racionalidade, procuramos entender a que serve a não
adequação dos haitianos como refugiados e a consequente criação de um visto por razões

2 DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990).p. 228.


3 O conjunto conhecido pela denominação de Amazônia legal corresponde a área coberta pela região Norte mais o Maranhão e o
Mato Grosso. Cf. ARAGÓN, Luis E. Introdução ao estudo da migração internacional na Amazônia.
4
GRANGER, Stéphane. L’Amazonie bresilienne, nouvelle interface migratoire entre les Caraibes et l’Amerique du Sud?

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humanitárias, que não se estende aos demais imigrantes em situação de vulnerabilidade no


Brasil.

1. MIGRAÇÃO INTERNACIONAL NA AMAZONIA

A área chamada comumente de Amazônia refere-se a um território indeterminado de


morfologia diversificada que abrange inúmeros países, utiliza-se neste estudo uma definição
geográfica que leva em consideração os estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa Meio
Ambiente, População e Desenvolvimento da Amazônia – MAPAZ. O Grupo, utilizando
informações dos censos de população de cada país, elaborou um mapa da Grande Amazônia
com as divisões administrativas. No Brasil a área coberta corresponde a região Norte mais o
Maranhão e o Mato Grosso, conjunto conhecido pela denominação de Amazônia legal.5
A Grande Amazônia possui uma população oficial, apesar das dificuldades de coleta
das estatísticas, em torno de 29 milhões de pessoas. Essa população está concentrada
basicamente em dois países: Brasil com 71% e Peru com 15%. A população das três Guianas
juntas não representa sequer 5%. Todavia apenas 12% da população brasileira vive na
Amazônia. Os diferentes países possuem diferentes politicas a respeito da relação com o meio
ambiente e sua população.6
No que tange a migração internacional, até 2010, ela era marcada pela circulação de
pessoas entre as fronteiras. Segundo os estudos realizados pelos pesquisadores do grupo
MAPAZ, cerca de 50% do total de estrangeiros que residiam na Amazônia no momento do
censo nasceram nos próprios países amazônicos. Os brasileiros compõe grande parte deste
número de migrantes. Existe uma forte influência mútua entre os países amazônicos.
A Amazônia boliviana concentra principalmente migrantes brasileiros (64,43%) e
peruanos (6,68%), enquanto a Amazônia peruana recebe principalmente brasileiros (21,87%),
colombianos (20,26%) e alguns europeus e norte-americanos. A Amazônia colombiana recebe
majoritariamente peruanos (21,85%) e brasileiros (12,04%), localizados principalmente na
tríplice fronteira de Letícia/Tabatinga. As Guianas recebem muitos brasileiros, mas o Brasil
recebe poucos migrantes vindos das Guianas. Na Guiana Francesa 15,40% dos imigrantes são
do Brasil, no Suriname 17,88% são brasileiros e na Guiana o numero de brasileiros atinge

5
ARAGÓN, 2011.
6
ARAGÓN,2011.

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27,82% dos migrantes. Já a Amazônia brasileira acolhe uma diversidade grande de estrangeiros
em números ainda modestos, sendo principalmente bolivianos (15,31%) e peruanos (13,65).7
No período 1995-2000, os quatro países que mais enviavam migrantes para a
Amazônia brasileira eram fronteiriços: Peru, Bolívia, Colômbia e Paraguai. No quinquênio
2005-2010, a migração internacional na Amazônia brasileira continuava sendo
majoritariamente fronteiriça, mas com um incremento da presença de migrantes dos Estados
Unidos da América, Japão e Portugal. Estes três países, receptores de emigrantes brasileiros,
começam a assumir papel de emissor de migrantes.8
As fronteiras porosas da Amazônia brasileira, muitas vezes consideradas vulneráveis
pelo Estado, são uma preocupação constante dos governos brasileiros desde Vargas, mas as
políticas de segurança começam a se concretizar a partir dos anos 1950 com a construção das
primeiras rodovias, como a ligação de Cuiabá a Santarém. Durante o governo militar, em nome
da segurança nacional, essa política continuou com a criação da Zona Franca de Manaus e a
construção da rodovia transamazônica (que ainda não foi concluída). Foi por iniciativa do Brasil
que houve em 1978 a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônico. Desde então muitas
ações do estado brasileiro vem transformando e ampliando a capacidade de circulação e
desenvolvimento econômico na região.
Depois de 2010, um novo fluxo migratório na região chamou atenção dos Estados da
Grande Amazônia, o movimento de imigração de Haitianos para o Brasil. Os dados revelam
que o número de Haitianos que migrava para o Brasil era irrisório até o terrível terremoto que
assolou o país em 2010. Muitos fatores contribuíram para criação de uma rede que conduzia
ilegalmente esses imigrantes do Caribe até a Amazônia brasileira. Em 2011, a Secretaria de
Justiça e Direitos Humanos do estado do Acre já contava cerca de 4 mil Haitianos no Brasil,
que entraram pelas fronteiras da Amazônia em Assis Brasil, o que definitivamente marcou a
alteração do perfil regional da imigração na região.
O perfil de entrada foi se modificando a medida que o visto de permanência
humanitária passou a ser concedido, sem restrição de quantidade, direto em Porto Príncipe,
capital do Haiti. Destaca-se como pontos de entrada dos haitianos no Brasil: São Paulo e
Guarulhos- SP (37%), Tabatinga - AM (29,7%), Epitaciolândia e Brasiléia - AC, (18,1%).
Essas cidades são consideradas, pelas autoridades locais, pontos de passagem, pois salvo o caso

7
ARAGÓN, 2011.
8
JAKOB, 2015.

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de São Paulo e Guarulhos, onde 43,8% ali fixam residência, nos demais casos os imigrantes
tendem a se direcionar a outras cidades em busca de trabalho. 9
Esse fluxo gerou uma rede de comunicação e organização dos trajetos que ligam o
Caribe e a África até o Brasil, passando pela Amazônia brasileira. Dominicanos, senegaleses,
nigerianos entre outros, vem usando a rota inicialmente exclusiva dos Haitianos. Como afirmou
o secretário de Justiça do Estado do Acre, a respeito do trajeto Equador-Peru-Brasileia: “É um
sintoma de que esta rota de imigração está se internacionalizando e já chegou a África.” 10

2. A PRODUÇÃO DISCURSIVA NORMATIVA DO IMIGRANTE HAITIANO


NO BRASIL

A mobilidade humana pelo mundo é um fenômeno narrado em vários momentos


históricos e justificado pelas mais diferentes racionalidades: desde a captura de seres humanos
como mão de obra escrava a necessidade de garantir o poder real sobre determinado território.
Seja voluntário ou forçado, o deslocamento humano passa por um processo de
justificação/constituição, que o promove ou o interrompe.
Atualmente as migrações forçadas tem chamado atenção da mídia pelo volume e
principalmente pela proximidade dos grandes centros de poder do ocidente, que baseiam suas
ações de controle em paradigmas dicotômicos como: natural/social, nacional/internacional e
nacional/estrangeiro. Os Direitos Humanos que se pretendem universais, mas só alcançam os
humanos documentados dentro de um determinado território, também estão imersos na
racionalização dessas dicotomias.
Na oposição nacional/internacional, o internacional é o espaço fora da ação de um
poder soberano específico, consequentemente seria o espaço da anarquia jurídica, onde não há
um Estado responsável pela garantia de direitos humanos fundamentais. Dessa forma há
desafios enormes para estabelecer a responsabilização dos Estados pela não prestação de ajuda
a embarcações de refugiados que afundam em águas internacionais.
Todavia, quando os humanos deslocados alcançam o território de um Estado e
demandam por proteção, outra análise dicotômica entra em funcionamento, qual seja, a análise
sobre a voluntariedade ou não do deslocamento. O Estado tem obrigação de receber os

9
FERNANDES, Duval (coordenador). Projeto Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral.p.39.
10
GRANGER, 2014.

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migrantes involuntários, sob pena de responsabilização das violações de direitos a que estes
humanos pudessem ser acometidos. Logo, a migração involuntária é amparada pela proteção
normativa ligada ao discurso de defesa dos Direitos Humanos.
Por outro lado, a migração voluntária, aquela a que o sujeito se submete por exercício
de sua própria vontade, pode ser impedida pelos Estados receptores, uma vez que a recusa de
autorização de entrada ou permanência no território não acarretaria violação de Direitos
Humanos e sim a contrariedade de uma vontade que não constitui um direito. Mas quem define
o tipo de migração como voluntária ou involuntária? Que critérios são utilizados para definir a
voluntariedade ou a coação existente no fenômeno? O direito, vestido de norma, estabelece
esses critérios em âmbito nacional e internacional baseado na coação social. Aqueles que
emigram por fatores sociais, como perseguição religiosa, são considerados migrantes
involuntários. Se, emigram por conta de fenômenos naturais são considerados migrantes
voluntários. Mais uma dicotomia para definir quem tem e quem não tem acesso a direitos.
Atualmente são considerados migrantes involuntários, os deslocados internos
ameaçados por violência, os asilados, os apátridas e os refugiados. Os refugiados são obrigados
a fugir de seu país de origem por terem sido vítimas de perseguição por motivos de raça,
religião, nacionalidade, filiação a determinado grupo social ou opiniões políticas, ou ainda, por
terem sua vida, segurança ou liberdade ameaçadas em decorrência de violência generalizada,
agressão ou dominação estrangeira, ocupação externa, conflitos internos, violação massiva de
direitos humanos ou outros fatores que tenham perturbado gravemente a ordem pública,
conforme descreve o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). 11
No Brasil a o art.1º da lei 9.474/97, abrange todas as possibilidades descritas acima,
e, em seu inciso III, amplia a possibilidade de refúgio àqueles que “devido a grave e
generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para
buscar refúgio em outro país.”
A subjetividade dos termos “grave e generalizada violação de direitos humanos” é
interpretada restritivamente pelo Estado, exigindo uma ação social ou humana, específica, para
sua configuração.
Assim o migrante do semiárido do Brasil, que se desloca em busca de água para sua
subsistência, e, portanto, não está sendo perseguido, não sofre uma ação social coativa e sim os
efeitos de um fenômeno natural, seria consequentemente considerado um deslocado voluntário.

11
BARBOSA, 2007.

399
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ISSN 2236-9651, n. 7

Se acaso, a água só fosse possível de ser encontrada em outro Estado, ele não poderia ser
considerado um refugiado ao emigrar, pois seu deslocamento, o abandono de sua propriedade,
de seus amigos e familiares, a quebra de seus laços de identidade seria considerada voluntária.
Dessa forma, podemos apontar que na categoria de “exílio voluntário” se encontram
a maioria dos imigrantes transnacionais das fronteiras na Amazônia brasileira. Entre eles, o
recente fluxo que conectou a Amazônia ao Caribe, o fluxo de haitianos para o Brasil.
Muitos são os fatores que levaram os haitianos a voluntariamente deixarem seu país.
O Haiti encontra-se em uma situação de precariedade econômica, social, estrutural, política e
ambiental. O índice de desmatamento é de 98%, promovendo uma carência de fontes
energéticas entre outros problemas ambientais. A história do Haiti foi marcada por sucessivos
golpes de estado no final dos anos 1980, guerra civil em 2004 e a criação, pela Resolução 1.542
do Conselho de Segurança da ONU, da Missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti,
comandada pelo Brasil.12
Após o terremoto de 2010, que atingiu 7,3 na escala Richter, que teve como epicentro
a capital Porto Príncipe, e matou em torno de 200 mil pessoas, deixando desabrigadas 1,5
milhões, que ainda vivem em acampamentos improvisados, a situação de calamidade pública
chegou a níveis extremos. De acordo com o relatório das Nações Unidas sobre o índice de
desenvolvimento humano, o Haiti ocupa a 158ª posição entre 182 nações, 80% da população
vive abaixo da linha da pobreza e 54% na extrema pobreza, com menos de 1,25 dólares por dia,
com o desemprego atingindo 40,6% da população economicamente ativa.13
Nestas condições o fluxo de emigração no Haiti tem aumentado e um dos seus
destinos é o Brasil. A maioria dos Haitianos chegava por rotas ilegais nas fronteiras da
Amazônia brasileira, cujo trajeto, perigoso e desafiador, podia durar até três meses pela
América do Sul. Depois da entrada irregular no Brasil, os haitianos costumavam solicitar
refúgio. Mas, como já explicamos acima, o refúgio é para o migrante que sofre perseguição,
que forçosamente deixa seu país. Terremoto, destruição, miséria, falta de perspectiva não é
considerado perseguição. Portanto, o status de refugiado não poderia ser concedido aos
haitianos.
Em 2011, o número de haitianos que entraram no Brasil, pela fronteira com o Peru,
em Assis Brasil, em direção a Brasileia no Acre chamou atenção das autoridades, com

12
PACÍFICO; PINHEIRO, 2013
13
PACÍFICO; PINHEIRO,2013.

400
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ISSN 2236-9651, n. 7

manchetes do tipo: “Acre sofre com invasão de imigrantes do Haiti - Sobe para 1.400 o número
de haitianos em Brasileia”14, ou ainda, “Haitianos chegam ao Brasil com sonho de conseguir
emprego - Maioria quer enviar dinheiro para a família que ficou no Haiti - Ginásio em Brasiléia
(AC) está sendo preparado para servir de abrigo”15. Os jornais noticiavam com espanto o
grande número de haitianos que entravam no Brasil, pelas fronteiras do norte, e advertiam que
a possibilidade do Brasil tomar medidas ainda mais restritivas, nas fronteiras, fazia aumentar a
demanda pela entrada:

A chegada em massa de imigrantes nos últimos dias ocorreu depois de boatos de que
o governo brasileiro passaria a expulsar haitianos a partir do dia 31 de dezembro. Os
rumores começaram depois de reunião do Comitê Nacional para os Refugiados
(Conare), ocorrida em 16 de dezembro. A assessoria do comitê, órgão presidido pelo
Ministério da Justiça, confirmou na semana passada que o Brasil estuda medidas para
reprimir a imigração ilegal e o tráfico de pessoas pela fronteira com o Acre, mas
negou que qualquer decisão a respeito dos haitianos tenha sido tomada. De acordo
com o órgão, os haitianos não podem ser considerados refugiados, pois não são
perseguidos por motivos políticos, de raça ou religião em seu país. Por isso, a opção
pelo visto humanitário.16

A quantidade de imigrantes que entrava pela fronteira de Assis Brasil gerou uma
situação de emergência na pequena cidade de Brasileia que não tinha infraestrutura para acolher
essa população. Diante da problemática situação de transformar milhares de haitianos,
imigrantes ilegais, em delinquentes - aquele que comete delito, o noticiário anunciava um
governo brasileiro humanitário, que por não haver como enquadrá-los na situação de refugiados
ou em nem um outro tipo de visto previsto na lei, decidiu criar o visto permanente de residência
por razões humanitárias.
O Brasil fez uma escolha clara entre criminalizar a entrada desses imigrantes e torna-
los todos ilegais ou descriminalizar a ação regulamentando sua situação. A opção pela
regulamentação foi concretizada por meio da Resolução nº 97/2012 do Conselho Nacional de
Imigração (CNIg), que além de regulamentar os haitianos que já estavam em território nacional,
consiste em um mecanismo de controle, que definia que a embaixada do Brasil no Haiti
concederia cem vistos mensais para haitianos que desejassem imigrar para o Brasil, totalizando
1.200 por ano.

14
CARVALHO, Cleide Carvalho. Acre sofre com invasão de imigrantes do Haitianos.
15
ROSSETTO, Luciana. Haitianos chegam ao Brasil com sonho de conseguir emprego.
16
CARVALHO, Cleide Carvalho. Acre sofre com invasão de imigrantes do Haitianos.

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Em pesquisa sobre fatos e representações da imigração haitiana na mídia brasileira


Télémaque17 afirma que a Resolução 97/2012, é apontada como solução humanitária, que visa
tornar os haitianos menos vulneráveis às ações de atravessadores ou quadrilhas de tráfico
internacional de pessoas. É interessante observar que a vulnerabilidade dos imigrantes ilegais
bolivianos e paraguaios no Brasil nunca foi objeto de resolução especial, mesmo em face das
descobertas de trabalho análogo ao escravo em inúmeras confecções em São Paulo.18
Percebe-se que na construção do visto humanitário e da categoria refugiado, esta
última impedida de ser estendida aos Haitianos, podemos identificar uma estrutura para
investigação de processos e condições pelas quais as identidades humanas são construídas. O
imigrante haitiano no Brasil constitui um sujeito que não foi dado definitivamente, mas que se
constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela
história.19 Inicialmente imigrante ilegal, posteriormente postulante de refúgio, desqualificado
como refugiado e enquadrado como favorecido por questões humanitárias, finalmente
imigrante temporariamente legal, pelo prazo de 5 anos, que foi sendo prorrogado ao passar dos
anos.

3. TECNOLOGIA POLÍTICA DO CORPO E ECONOMIA DOS CASTIGOS

Como o sistema punitivo, a regulamentação da imigração não pode ser explicada


unicamente pela armadura jurídica da sociedade, nem por suas opções éticas fundamentais, é
preciso recoloca-las em seu campo de funcionamento, onde a proibição de entrada ou
permanência no território nacional, não é o único elemento, deve-se analisar que essas medidas
não são simplesmente mecanismos negativos que permitem reprimir, impedir ou excluir os
indesejáveis, mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas
tem o encargo de sustentar.20
A regulamentação da migração deve ser recolocada em análise a partir da perspectiva
de economia política do corpo, pois é do corpo que se trata, do corpo do migrante e de suas

17 TÉLÉMAQUE, 2012.
18 Ao término da campanha de requisitos de regularização dos estrangeiros indocumentados que, a partir da lei de Anistia
Migratória de julho de 2009, aconteceu no segundo semestre do ano 2009, mais de 41.000 estrangeiros requisitaram a
regularização de sua permanência no país.”(grifo nosso) SOUCHAUD, Sylvain. A confecção: nicho étnico ou nicho econômico
para imigração latino-americana em São Paulo? In. BAENINGER, Rosana (org). Imigração boliviana no Brasil. Campinas:
Núcleo de Estudos de População - NEPO /Unicamp/Fapesp;CNPq; Unfpa, 2012.p.75.
19
FOUCAULT,2002.
20
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.

402
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forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.21 O corpo do


imigrante está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder tem alcance
imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no
a cerimonias que não lhe são familiares, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo
está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica. Daí a
principal exigência para renovação do visto permanente por razões humanitárias ser não a
necessidade do sujeito, mas a comprovação de sua condição de trabalhador. Passemos a uma
breve análise da norma.
A redação original da Resolução normativa do CNIg nº 97/2012, publicada no Diário
Oficial da União em 13 de janeiro de 2012, dispõe sobre a concessão do visto permanente
previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti. O Brasil não
criou um novo visto de caráter humanitário para acolher e regularizar os imigrantes em situação
de risco e vulnerabilidade, o Brasil criou uma exceção dentro da regulamentação do visto
permanente para os imigrantes Haitianos e só para eles.

Art. 1º Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente previsto no


art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões humanitárias,
condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art.18 da mesma Lei,
circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro.

Quase que desnecessariamente, uma vez que o visto não se destina a nenhum outro
imigrante que esteja em situação de vulnerabilidade no Brasil, o parágrafo único da resolução
complementa a descrição da restrição aos nacionais do Haiti.

Parágrafo único. Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução


Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população
haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de
2010.

Não se trata a presente norma da positivação de um direito subjetivo do ser humano a


vida, a saúde, ao bem-estar e ao desenvolvimento. Trata-se da justificação da criação de uma
exceção jurídica que é justificada pela constituição do imigrante haitiano como único
legitimado a receber um visto por razões humanitárias. Razões humanitárias baseadas no
agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência de um terremoto
(fenômeno natural) específico, ocorrido em 12 de janeiro de 2010. Nenhum outro imigrante

21
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.

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que teve sua condição de vida agravada em decorrência de um fenômeno natural que
impossibilitasse sua vida, em seu local de origem, seria contemplado por um visto de
permanência por razões humanitárias no Brasil, mesmo sendo uma questão humanitária.
A princípio o visto disciplinado por esta Resolução Normativa, de caráter especial,
seria concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do
Brasil em Porto Príncipe e somente em Porto Príncipe. Assim os haitianos já sairiam do Haiti
com o visto e portanto não precisariam cruzar as fronteiras da Amazônia para chegar aos centros
urbanos do Brasil em busca de trabalho, poderiam entrar pelas cidades que desejassem se
estabelecer. No entanto, o parágrafo único do artigo 2º da resolução restringia o número de
vistos a serem concedidos:

Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos por ano,
correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das
demais modalidades de vistos previstas nas disposições legais do País.

A burocracia, a demora na análise dos pedidos e a restrição do número de concessões


eram obstáculos ao acesso do haitiano ao Brasil. Essa norma regulamentadora não promoveu
imediatamente a inviabilidade das rotas clandestinas e do tráfico de pessoas e precisou ser
alterada para abranger o maior número de haitianos possíveis.
A essa altura um número enorme de haitianos já estava ilegalmente em território
nacional. O artigo 2º foi então alterado, estabelecendo que o visto poderia ser concedido pelo
Ministério das Relações Exteriores e revogando a limitação quantitativa.

Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será
concedido pelo Ministério das Relações Exteriores. (Redação dada pela RN 102,
de 26/04/2013)
Parágrafo único. (Revogado pela RN 102, de 26/04/2013)

A revogação da restrição quantitativa demonstra que o estado brasileiro estava


determinado a regularizar a entrada de todos os haitianos no Brasil. A resolução não apenas
regulariza a entrada, mas regulamenta mecanismos de fiscalização e de exercício constante da
soberania na manutenção do visto.

Art. 3º Antes do término do prazo previsto no caput do art. 1º desta Resolução


Normativa, o nacional do Haiti deverá comprovar sua situação laboral para fins da
convalidação da permanência no Brasil e expedição de nova Cédula de Identidade
de Estrangeiro, conforme legislação em vigor.

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Esta atitude regularizadora veio acompanhada de mecanismos de vigilância


constante, o Brasil registra e acompanha o comportamento deste estrangeiro que pode não ter
seu visto renovado se descumprir as normas estabelecidas. Normas primordialmente baseadas
na docilização do corpo deste imigrante para o desempenho de atividades laborais que
reafirmam no corpo do imigrante a soberania estatal.
A Resolução prevê que o visto será valido por 5 anos, podendo ser renovado se o
imigrante provar sua condição trabalhista regular no Brasil. Há haitianos trabalhando em vários
estados do Brasil, mas a maioria deles ainda está trabalhando na região da Amazônia legal
principalmente em Porto Velho e Manaus.22
A previsão, do art. 3º da Resolução 97/2012, deixa clara a exigência de submissão e
adequação do imigrante ao poder local para renovação do visto que lhe foi concedido por prazo
determinado, a iminência da expulsão está presente na sua condição de beneficiado por uma
exceção jurídica e não por um direito subjetivo. Mecanismo de vigilância constante, a
renovação do visto exige a prova da sua condição trabalhista no Brasil, ou seja, a prova de que
o corpo dócil desempenha submissamente seu papel na cadeia produtiva, a prova de que a
soberania do estado se manifesta sobre o sujeito. Mas como afirma Foucault,

[...] a constituição do corpo como força de trabalho só é possível se ele está preso
num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político
cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é
ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (2007, p.25-26)

A necessidade como parte de um sistema político calculado e utilizado, no caso dos


imigrantes haitianos, antecede a sua chegada ao Brasil, mas é utilizada na sua constituição como
tal. A necessidade é fator primordial para o funcionamento das políticas de controle que se
materializam nas políticas de imigração. O controle é ampliado pela exigência de renovação do
visto que está ligada aos meios de subsistência do imigrante. Existe, portanto, forças que
constituem o sujeito desde o seu corpo, ao conjunto desses mecanismos Foucault denomina
tecnologia política do corpo. Essa tecnologia é difusa: “compõe-se muitas vezes de peças ou de
pedaços; utiliza um material e processos sem relação entre si”.23
O Estado brasileiro concede um visto com ares de privilégio ao imigrante haitiano,
pois se trata de uma exceção na ordem jurídica interna. Ele não é considerado um refugiado e

22 PACÍFICO; PINHEIRO,2013. Vide. FERNANDES, Duval (coordenador). Projeto Estudos sobre a Migração Haitiana ao
Brasil e Diálogo Bilateral.p.39.
23
FOUCAULT, 2007, p.26

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por isso detentor de direitos de ordem nacional e internacional, ele é detentor de um direito de
exceção concedido pelo Estado brasileiro, o que impõe uma serie de relações de poder difusas,
difíceis de identificar isoladamente, na tecnologia política do corpo identifica-se uma
microfísica do poder em funcionamento.
Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos
aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses
grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças.24
Observa-se na citação que não há um distanciamento de onde se exerce o poder. Nas
sociedades de controle, que substituíram as sociedades disciplinares descritas por Foucault, o
sujeito não apenas contém em si os mecanismos de controle, mas é constituído por ele e o
exerce. Esse olhar epistemológico revela que o controle está por toda a malha coletiva, como
elemento das relações.25
Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se
renuncie a oposições como natureza/sociedade, nacional/internacional, cidadão/estrangeiro,
voluntário/involuntário, verificando a quem serve este protocolo dicotômico. Luciana Mendes
Barbosa26 aponta que esta seria uma das raízes dos problemas enfrentados pelos regimes
internacionais para refugiados, no que se refere a absorção de deslocados devido a secas,
terremotos, enchentes, fenômenos ambientais, ou naturais.
A concepção de refugiados só abrange aqueles que se exilam por fatores sociais:
guerras, perseguições e não por fatores naturais, daí a que serve a dicotomia natural/humano. O
fato do ser humano ser uma espécie de animal e, portanto, dependente das condições ambientais
para sobreviver tem sido debatido pelos defensores da construção da concepção de refugiado
ambiental. Nesses termos, o imigrante haitiano no Brasil, poderia deixar de ser imigrante e
ganharia um novo status: o de refugiado ambiental. Essa concepção o definiria como um sujeito
que não teve escolha, que foi forçado a deixar seu país, que não o fez voluntariamente, mas
devido a condições insuportáveis de sobrevivência. Isso ressignifica sua identidade, o que o
desloca para novas redes de poder.
Mas para além desse debate existe ainda uma outra insegurança normativa a ser
apontada, a de que a Resolução 97/2012 possa não ser renovada, pois não só o visto foi criado

24
FOUCAULT, 2007, p.26
25
WALDELY, Aryadne Bittencourt et al. Migração como crime, êxodo como Liberdade, p.236.
26
2007

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por prazo determinado, a própria norma fundadora do direito de exceção tem prazo de validade
determinado: “ Art. 4º Esta Resolução Normativa vigorará pelo prazo de 2 (dois) anos, podendo
ser prorrogado. (Prorrogada a vigência até 30 de outubro de 2016 pela RN 117, de
12/08/2015)”.
Desde de 2012 a Resolução 97/2012 do CNIg tem sido renovada, mas esta previsão
demonstra a precariedade do direito instituído, o qual pode deixar de existir quando o Estado
brasileiro entender que a norma não é mais necessária. Necessária a quem? Qual é o bem
jurídico protegido pela norma? A vida dos imigrantes vulneráveis ou as fronteiras da
Amazônia? O direito ao bem-estar, a saúde, ao desenvolvimento dos imigrantes em situação de
risco ou a soberania do Estado brasileiro sobre suas fronteiras na Amazônia legal?
4 Soberania e IMUNIZAÇÃO
A mobilidade humana sempre encontrou desafios maiores ou menores dependendo
do território que se tentava atravessar. O estrangeiro era antes de qualquer informação o
inimigo, o invasor. O poder soberano a muito na história se reafirma com a fortificação e
ampliação das fronteiras territoriais. Estabelecer quem somos “nós” e quem são “eles” é
essencial nesse processo de constituição do poder-saber, sempre baseado em dicotomias. Para
Foucault o poder produz saber: “não há relação de poder sem a constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder”27. Assim as dicotomias são utilizadas para construir saberes que empoderam ações. A
dicotomia nacional/estrangeiro informa e constitui quem exerce poder e quem se submete a ele,
quem tem acesso a direitos e quem não tem.
A dicotomia nacional/internacional e nacional/estrangeiro, no caso da Amazônia
brasileira, em meio a um território de fronteira florestal, é bem difusa na prática. Os indígenas
que circulam nessa região seriam índios peruanos, índios colombianos ou seriam índios
brasileiros? Populações tradicionais que circulam pela floresta há centenas de anos podem ser
definidas entre nacionais e estrangeiros pela definição territorial estabelecida pelo Estado
nacional? A mineração desordenada ou o desmatamento que provocasse o deslocamento dessas
populações tradicionais de um lado a outro da fronteira colocaria toda uma comunidade de
“deslocados ambientais” sob o status de “imigrantes ilegais”?
Será que a criminalização desse movimento seria a proposta do Estado brasileiro ou
surgiriam outros “vistos humanitários” para legitimar o poder soberano que está sendo violado

27
FOUCAULT, 2007,p. 27.

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pela entrada desmedida do estrangeiro, sem autorização, em território nacional? Essa dicotomia
promove um movimento circular que recria mecanismos de reforço das fronteiras, mas que
podem gerar perda de soberania pela falta de executabilidade das medidas restritivas impostas
pelo Estado.
Como os reformadores do sistema de punição, na Europa do século XVIII, descritos
por Michel Foucault em sua obra: Vigiar e Punir28 não estavam sendo movidos pelo desejo de
humanização do sistema, mas pela economia dos castigos, desajustada da nova realidade social.
O CNIg não buscou apenas uma saída humanitária quando criou uma nova categoria de visto
e com isso reformou o sistema de entrada de estrangeiros no Brasil. O Conselho buscou a
economia dos castigos, ou seja, uma estratégia de reafirmação da soberania numa região de
fronteiras porosas de difícil manutenção pela força.
O visto permite uma vigilância penal mais atenta do corpo social. A má economia do
poder é o que se procura evitar com a Resolução 97/2012. Ela deve ser entendida como uma
estratégia para o remanejamento do poder disciplinar, de acordo com modalidades que o tornem
mais regular, mais eficaz, mais constante, ou seja, que aumente seus efeitos diminuindo o seu
custo econômico e o seu custo político.29
Para Roberto Esposito o exercício da soberania não está mais baseado unicamente na
atualização dos mecanismos de controle disciplinar, como afirmava Foucault. O foco do Estado
seria evitar o contágio com o outro e para isso é muito importante criar o outro, ou pelo menos
apontá-lo. Uma vez que as dicotomias constroem saberes e identidades, essas são usadas para
impedir que as pessoas tenham algo em comum.
A forma dicotômica como pensamos o sistema internacional dificulta, por exemplo,
a criação de mecanismos de combate a pobreza e a destruição ambiental30. O discurso que cria
e fomenta o fechamento das fronteiras oculta a dinâmica da realidade vivenciada nelas, que
muitas vezes é fluida, porosa e economicamente dinâmica.
De acordo com Esposito31, Foucault trata da passagem de um poder soberano para
um poder biopolítico, que não substitui o poder soberano, mas sim “penetra-lo, atravessa-lo,
modifica-lo.” O poder soberano de decidir sobre a morte do súdito ou deixa-lo viver foi
gradativamente se tornando o poder de fazer viver, na microfísica do poder desempenhado

28 FOUCAULT, 2007.
29
FOUCAULT, 2007.
30
BARBOSA, 2007.
31
ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia.Trad: M.Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.

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pelos mecanismos disciplinares e de controle, o poder passa a reger a vida com mais intensidade
que a morte.
A análise biopolítica em Esposito e por consequência seu conceito de soberania parte
do paradigma imunitário32, que pensa o Estado como o oposto de comunidade, tornando
possível uma associação humana não comunitária.
33
Em sua obra, Communitas: origen y destino de la comunidad , apresenta
comunidade como uma condição antes de ser um valor. Por meio da etimologia da palavra
busca entender o cum e o múnus que compõe a ideia de communitas. Sendo o cum, o entre,
aquilo que surge entre e ganha significado quando acontece e só se acontece. O cum é o nada
que existe entre, mas não é um nada sem sentido, ele é o princípio, a condição de coexistência
de singularidades, entre as quais circula indefinidamente as possibilidades de sentido, que só
existem quando acontecem.
Verifica-se que o sentido só existe em relação, portanto há uma possibilidade infinita
de sentidos. Assim o común é o que não é próprio, é o que começa onde o próprio termina,
portanto, a communitas não seria característica própria do sujeito, pois só pode surgir fora dele.
Dessa forma o comum não pode ser objeto de apropriação. Afinal, se o for, deixa de ser comum
e passa a ser próprio. Tentar reproduzir o que foi apropriado, nomeando-o de comum, destrói
qualquer possibilidade de surgimento da communitas.
A almejada homogeneização social, que teoricamente fortaleceria os vínculos
comunitários a partir do que há de semelhante em cada indivíduo, ou seja, a partir do que é
próprio de cada indivíduo, não constitui o comum. Pois este só pode existir fora do sujeito, no
que há entre ele e os outros.
A soberania contemporânea é fundamentada na imunização. Espósito descreve como,
nos termos de Hobbes, a sociedade seria fundada por indivíduos unidos e imunizados uns dos
outros, uma vez que estabelece uma relação constitutivamente aporética que a liga aos sujeitos
a que se dirige. Seus sujeitos na medida em que voluntariamente a instituíram por meio de um
contrato livre estão sujeitados a ela. Esposito apresenta Hobbes não como o filosofo do conflito,
mas da paz, da neutralização, que garante a segurança e a vida. Mas a neutralização do conflito

32
ESPOSITO, 2010, p. IX.
33
ESPOSITO, Roberto. Communitas: origen y destino de la comunidad. 1ªed. Buenos Aires: Amorrortu, 2003. p.17.

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não o elimina, o integra ao organismo imunizado como antígeno necessário à formação


permanente de anticorpos. Antígeno que de vez em quando mata para conservar a vida34.
A soberania é, portanto, o não ser em comum dos indivíduos. A forma política da sua
35
dessocialização . Para salvar-se, de forma duradoura, a vida é tornada privada, qualquer
relação externa ao fio vertical que vincula cada um ao mando soberano é cortada pela raiz.
“Soberania é o vazio artificial criado em torno de qualquer indivíduo, o negativo da relação.”36
Na formação de identidades há sempre algo arbitrário, produzido nas maquinas
sociais de produzir identidade, nos discursos que produzem saberes que empoderam ações,
como vimos no caso da construção do conceito de refugiado. Esses discursos lançam sobre nós
um tipo de abstração vinculativa, que não surge entre nós, mas a partir do que é produzido em
nós, do que nos é próprio. Essas identidades estão aí para definir sujeitos como indivíduos, a
partir de uma relação vertical com o Estado, a partir de uma relação de imunização entre eles.
Assim as relações que se manifestam não surgem entre nós, mas para nós, a partir de um
referencial que nos é introjetado e reproduzido em nós.
O imigrante haitiano, dessa forma documentado, assume um papel social definido
pelo Estado. Qualquer infração sua será considerada como sendo contra o todo do corpo social
representado pelo Estado, principalmente pela condição de privilegiado que lhe concede o visto
humanitário criado especificamente para acolhê-lo. Essa característica aumenta o poder de
controle, inclusive moral, que tem o apoio da opinião pública para punir severamente aquele
que se apresentar ingrato. “Humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus
cálculos minuciosos”. 37
A fluidez das fronteiras do norte não era um problema até 2011, a chegada dos
haitianos chamou atenção do mundo para essa característica contaminadora dos povos
amazônicos, que circulam livremente na região. Não só os haitianos, mas outros imigrantes do
Caribe e da África passaram a utilizar a rota, demostrando a dificuldade do Estado brasileiro
em exercer seu poder imunizador na região.
O exercício de poder assume a face de vigilância com a concessão do visto de
permanência por razões humanitárias. A cada infração a soberania se reafirma punindo, mas se
coloca em xeque. Assim a cada entrada irregular de estrangeiros no território nacional, o poder

34 ESPOSITO, 2010,p.92.
35
ESPOSITO, 2010,p.92.
36
Ibid.
37
FOUCAULT, 2007, p. 77.

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de imunização se enfraquecia. Podemos falar em espessura de governos, de soberania, de


tecnologias, de imunização. Essa espessura depende entre outros fatores da naturalização dos
mecanismos de imunização. Neste sentido, o poder produz um processo regulador da vida. A
soberania fomenta a imunização, por meio de mecanismos de disciplina e controle, e, a
imunização fortalece a soberania, naturalizando-a.
Da mesma forma que o desaparecimento do suplicio não se deve a humanização do
sistema simplesmente, e sim a uma mudança de estratégias punitivas que garantem o exercício
da soberania. O visto humanitário previsto na Resolução 97/2012, faz parte da estratégia de
exercício de soberania do estado brasileiro, sobre suas fronteiras da Amazônia, uma estratégia
que tem na contemporaneidade base no paradigma imunizador.
O visto humanitário previsto na Resolução 97/2012 faz parte do entendimento de que
a estratégia de controle social deve ser feita por meio da legalização e não da afirmação da
clandestinidade, que criaria mais um meio de criminalização institucional, cujo combate seria
caro a conservação da soberania na região e ineficiente na imunização dos indivíduos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a criminalização do imigrante haitiano não foi a opção do Estado brasileiro, isso
revela que o controle não se ocupa apenas de práticas diretas de repressão, mas é eficiente
enquanto se constrói em meio a relações difusas. O imigrante haitiano, dessa forma
documentado, assume o papel de cidadão. Qualquer infração sua será considerada como sendo
contra o todo do corpo social, principalmente pela condição de privilegiado que lhe concede o
visto humanitário criado especificamente para acolhê-lo. Essa característica aumenta o poder
de controle, inclusive moral, uma vez que a ação do estado brasileiro se configurou como uma
gentileza, um favor e não como uma obrigação de proteção aos Direitos Humanos.
Humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia política do corpo e a seus cálculos
minuciosos.38
Revela-se ainda que a concepção restritiva de refugiado, que exclui os deslocados por
motivos ambientais, nega aos haitianos uma rede de relações de poder que o constituiria como
um sujeito que não teve escolha, que foi forçado a deixar seu país e que, portanto, tem o direito
de aqui estar. Resultado dessa mudança seria um deslocamento de um tipo de rede de relações
de força que encara o haitiano como uma exceção no universo dos deslocados do mundo, para

38
Ibidem, p. 77

411
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outro tipo de rede; que reconheceria a existência de problemas ambientais no mundo que torna
a existência do homem impossível em certas áreas, anteriormente habitadas por ele.
A mudança da compreensão, da identidade do imigrante haitiano para o status de
refugiado ambiental resultaria num deslocamento de um tipo de rede de relações de força que
desvendaria novas agendas a serem defendidas. Traria uma profunda mudança de paradigma
nas análises internacionais acerca da proteção dos direitos humanos dos deslocados e das causas
de seu deslocamento, abandonando a ideia de movimento voluntário ou involuntário para
criação de políticas públicas e ampliando as possibilidades de responsabilização dos Estados
por fenômenos ambientais e mudanças climáticas. Daí os desafios do deslocamento do foco de
análise que cerceado pelo pensamento dicotômico migração voluntária/migração involuntária,
razões naturais/razões sociais, promovem a manutenção do haitiano como imigrante e não
como refugiado.
Afinal, com uma nova racionalidade poderíamos afirmar que crise ambiental e crise
econômica que tornem a vida impossível em determinado local poderia gerar direito subjetivo
de acesso a um novo (outro) local, o que emanaria de relações fáticas da convivência humana
e fundamentaria um suposto direito de ingresso independente do caráter nacional/estrangeiro
das populações envolvidas.
Essa visão constituiria novos tipos de refugiados pelo mundo. Pois, as práticas sociais
engendram domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos,
novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de
conhecimento.39 Assim, se os mecanismos de imunização, que conectam verticalmente os
sujeitos com o Estado, não existissem, o próprio conceito de refugiado seria desnecessário.
Analisando o poder do ponto de vista dos seus alvos, procurando seus campos de
atuação, torna-se claro que o poder não é homogêneo, nem maciço. O poder se exerce em rede,
em redes de micro poderes, que transitam pelo corpo e pelas mentes. O poder se inscreve nos
corpos, para discipliná-los e restringi-los, imunizando-os. Deste modo, positiva práticas, seu
discurso as legitima, criando racionalidades e realidades. O deslocamento do discurso cria
personagens sociais novos, com agendas novas a serem defendidas.
O visto humanitário previsto na Resolução 97/2012 do CNIg, faz parte, portanto, da
estratégia de exercício de soberania do estado brasileiro sobre suas fronteiras porosas na
Amazônia. A eficiência da citada norma reduziu a quase zero a entrada de haitianos pelas

39
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p. 8

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fronteiras do Norte. O tráfico de pessoas pelos coiotes se tornou impraticável com a ampla
concessão de vistos diretamente em Porto Príncipe e os haitianos passaram a entrar
majoritariamente pelo aeroporto de Guarulhos em São Paulo.
Assim, é preciso esclarecer o papel das condições políticas e econômicas em que
estamos todos mergulhados, pois elas “não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de
conhecimento mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por
conseguinte, as relações de verdade.”40 O importante é ter consciência dos processos em que
estamos mergulhados e participar de sua construção ou desconstrução e não apenas ser
conduzido por eles.

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______. Bios: biopolítica e filosofia, trad: M.Freitas da Costa. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2010.

40
Ibidem, p. 27

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414
Grupo de Trabalho 07

DIREITOS HUMANOS,
CIDADANIA
E ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO

cdxv
O CERRADO BRASILEIRO E SUA INVISIBILIDADE
NAS METAS DO ACORDO DE PARIS:
A OMISSÃO DO ESTADO COM O DESMATAMENTO
NA “CUMEEIRA” DA AMÉRICA DO SUL

BOLSON, Simone Hegele


Estudante de doutorado no PPGSD/UFF
MIRANDA, Napoleão
Professor e coordenador do PPGSD/UFF

RESUMO

Pretende este ensaio trazer a lume a omissão do Estado brasileiro quanto ao desmatamento do Cerrado
nas metas de redução da emissão dos gases de efeito estufa, firmadas no Acordo de Paris, através da
INDC (Contribuição Nacionalmente Pretendida). O Cerrado é um sistema biogeográfico que distribui –
como se fosse a cumeeira de uma casa – as águas de suas bacias hidrográficas, as quais alimentam a
bacia amazônica e a floresta. Conquanto essa condição especialíssima, ele vem sendo devastado nos
últimos decênios por projetos desenvolvimentistas predatórios, seja com plantações de soja (v.g. projeto
do MATOPIBA) ou com a pecuária extensiva. Embora a importância do bioma Cerrado, ele continua
“invisível”, olvidado na política pública nacional e internacional, sendo alvo de degradação que coloca
em risco sua biodiversidade, mas que, antes de tudo, coloca em risco a própria Amazônia.

Palavras-Chave. Cerrado; Acordo de Paris e INDC; Omissão do Estado.

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INTRODUÇÃO

A Amazônia, sem dúvida, é o bioma mais importante para a manutenção do equilíbrio


climático no Planeta, vez que sua devastação provocaria (provoca) a desregulação no clima,
contribuindo decisivamente para o aquecimento global e as mudanças climáticas. Além dela,
contudo, há outros biomas no Brasil que vêm sendo alvo de desmatamento, mas um, em
particular, em níveis muito maiores que o bioma amazônico: o Cerrado. Estudos divulgados
por instituições nacionais e internacionais afirmam que a devastação no Cerrado brasileiro
importa - e muito – na (des) conservação da própria Amazônia.
O “berço das águas” brasileiro e “cumeeira” da América do Sul é um sistema
biogeográfico com elementos imprescindíveis à manutenção do equilíbrio climático, seja em
razão dos seus recursos hídricos, como de sua rica biodiversidade faunítica e botânica. Essa
riqueza natural e a possibilidade de “desbravar” o sertão, desde o século XVIII, atraiu a
exploração da terra e de seus minérios por “desbravadores”. A interiorização do país e a
migração na década de 50 do século XX foi a nova face da colonização de uma área que há
séculos já era percebida como o “Eldorado” brasileiro.
Os “bandeirantes” de hoje, ao contrário dos do século XVIII, não usam de armas e
escravos para a exploração da terra, mas de um modelo de negócio que (supostamente) estaria
levando o desenvolvimento econômico à região, colocando abaixo toda e qualquer vegetação
do(s) Cerrado(s) e substituindo-a por culturas exógenas como a soja e a pecuária extensiva. O
desmatamento, assim, é utilizado na nova fronteira agrícola de forma indiscriminada.
Esse desmatamento do Cerrado coloca em risco, além dele próprio, a Amazônia. Os
dois biomas são simbióticos; um depende do outro! Se os rios do Cerrado secarem, os rios da
bacia amazônica poderão secar; sem a água do Cerrado, não há Amazônia. É como a teia da
vida, lembrando F. Capra, há uma interligação entre os biomas: uma teia da vida dos (nos)
biomas. Assim, o escopo desse ensaio é o de trazer a lume estudos sobre a importância do
Cerrado e de como sua devastação tem influência direta na Amazônia, buscando em
documentos internacionais recentes inferir a omissão do Estado brasileiro em relação ao
mesmo. Para tanto, a pesquisa realizada é a documental e bibliográfica, com utilização de
importante relatório divulgado pela ONG Mighty Earth em março de 2017.
O Cerrado é (continua) invisível nas políticas públicas nacionais e internacionais
firmadas pelo Brasil. No Acordo de Paris, em sua INDC – Contribuição Nacionalmente
Determinada - não há qualquer referência ao desmatamento nesse bioma. Tanto é assim que

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projetos desenvolvimentistas predatórios como os do MATOPIBA continuam sendo instalados


no Norte e Nordeste do país.
Para a (possível) mudança desse quadro, é necessário o comprometimento da
sociedade civil na defesa do Cerrado. Infelizmente, o governo, pelo menos, o federal encontra-
se ao lado dos “bandeirantes” do século XXI, seja apoiando a implementação de projetos
desenvolvimentistas predatórios ou ensejando projetos de leis que visam retirar direitos
socioambientais, dando ensejo a um retrocesso ecológico no Brasil.

1 O CERRADO BRASILEIRO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O BIOMA


BRASILEIRO MAIS DEVASTADO NOS ÚLTIMOS DECÊNIOS

O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, abrangendo 11 estados e o Distrito


Federal em uma área de cerca de 208 milhões de hectares. Localizado na região central do país,
faz limites com a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, a Caatinga e o Pantanal
(TERRACLASS CERRADO, 2015). Originariamente, o Cerrado cobria aproximadamente
24% do território brasileiro (cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados); considerado o
“berço das águas” brasileiro, o Cerrado abastece três das maiores bacias hidrográficas da
América do Sul (Tocantins-Araguaia, São Francisco e Paraná-Prata) e alimenta três dos
maiores aquíferos do mundo (Guarani, Bambuí e Urucuia). Milhares de veredas, nascentes e
cabeceiras que abastecem grandes rios, como o São Francisco, Parnaíba, Tocantins, Araguaia
e Rio das Mortes, já foram destruídas pelo desmatamento, agrotóxicos e pela erosão, com
graves consequências para as populações do campo e as urbanas.
Esse bioma apresenta, hoje, 3,1 % de sua área total protegida em unidades de
conservação de proteção integral e 5,5 % em unidades de conservação de uso sustentável
(TERRACLASS CERRADO, 2015, p.12-13). Enquanto o bioma Amazônia ainda mantém
cerca de 80% de sua cobertura original, 50% do Cerrado já foi convertido para outros usos nos
últimos 50 anos (BUSTAMANTE, 2015, p. 8-15). Ecologicamente, relaciona-se à savana, e há
quem afirme que o Cerrado seria configuração regionalizada desta. No Brasil, este tipo de
paisagem recebe denominações diferentes, de acordo com a região: gerais, em Minas e Bahia;
tabuleiro, na Bahia e outras áreas do Nordeste; e ainda campina (Goiás e Tocantins).
Para o antropólogo e, reconhecidamente, um dos maiores estudiosos do Cerrado,
Altair Sales Barbosa (2016),

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Nenhuma dessas designações populares reflete sua totalidade ecológica, referindo-se


apenas a uma modalidade fisionômica, às vezes, associada a uma ou outra
configuração geomorfológica. No mesmo sentido, paradigma puramente botânico
não tem sido suficiente para demonstrar a totalidade e a importância ecológica dos
cerrados, já que destaca ou enfatiza apenas parcelas fragmentadas de sua
composição.

Diferente dos outros matizes ambientais brasileiros, segundo o professor Sales


Barbosa, o Cerrado tem que ser entendido como um sistema biogeográfico (2016, p.8-13).
Sistema é um conjunto de elementos intimamente interligados, e qualquer modificação em um
desses elementos provoca alterações maiores no sistema como um todo.1 Nesse bioma, há
ambientes totalmente ensolarados, como as campinas e os campos limpos, e ambientes
sombreados:

Entre o ambiente ensolarado e o umbrófilo (sombreado), há todo um conjunto de


outros ambientes stricto sensu, como o cerradão, a vereda, as matas ciliares, todos
interdependentes. Modificou um deles, todo o sistema sofre mudança. Isso vem
sendo observado numa história evolutiva de milhões de anos. Por exemplo, nos
chapadões, onde se encontram as campinas e os campos limpos, é onde ocorre
também a recarga do aquífero, que alimenta áreas de matas situadas em terrenos
mais baixos. A cobertura vegetal do cerradão, na área plana, é que garante a
infiltração da água da chuva nas raízes das plantas. Retirada essa cobertura, a
infiltração não ocorre como deveria, e isso prejudicará em maior ou menor grau todos
os demais ambientes. O aquífero só é abastecido ali, as demais áreas são de descarga.
[...] Houve uma adaptação a um tipo específico de solo, de clima, de agente
polinizador que, se eliminado ou alterado, modifica as características dos demais
elementos envolvidos (SALES, 2016a, p.2)

O Cerrado também pode ser denominado de cerrados, já que sua região não pode ser
entendida como uma unidade zoogeográfica particularizada, pois não apresenta esta
característica; tampouco pode ser considerada uma unidade fitogeográfica, por não se tratar de
uma área uniforme em termos de paisagem vegetal – ele é tanto os chapadões como os campos
limpos – mas ela é um sistema, justamente por ser um conjunto de vários elementos que abrange
áreas planálticas, v.g. , o Planalto Central Brasileiro, com altitude média de 650 metros, clima
tropical subúmido de duas estações, solos variados e um quadro florístico e faunítico
extremamente diversificado e interdependente (SALES BARBOSA, 2013, p.2-3)

1Desde 1992, o antropólogo Altair Sales Barbosa tem sugerido a utilização do conceito biogeográfico, classificando cada grande
matriz ambiental como um sistema. Essas grandes matrizes ambientais podem ser agrupadas da forma seguinte: Sistema
Biogeográfico Amazônico; Sistema Biogeográfico Roraimo-Guianense; Sistema Biogeográfico das Caatingas; Sistema
Biogeográfico Tropical Atlântico; Sistema Biogeográfico dos Planaltos Sul-Brasileiros; Sistema Biogeográfico das Pradarias
Mistas Subtropicais, e por último o Sistema Biogeográfico do Cerrado. Em entrevista ao IHU On-line: Cerrado: o laboratório
antropológico ameaçado pela desterritorialização. Edição n. 500, 13. março. 2017.

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Sob a perspectiva histórica, o(s) Cerrado(s) exerceu papel fundamental na vida das
populações pré-históricas que iniciaram o povoamento das áreas interioranas do continente sul-
americano. Na região do(s) Cerrado(s), essas populações desenvolveram importantes processos
culturais que moldaram estilos de sociedades bem definidas, em que a economia de caça e
coleta imprimiu modelos de organização espacial e social com características peculiares. Os
processos culturais indígenas, que se seguiram a este modelo, trouxeram pouca modificação à
fisionomia sócio-cultural, e embora ocorresse o advento da agricultura incipiente, exercida nas
manchas de solo de boa fertilidade natural existentes no domínio dos cerrados, a caça e a coleta,
em particular a vegetal, ainda constituíam fatores decisivos na economia dessas sociedades
(SALES BARBOSA, 2013, p.4-5).
Esse panorama regional começou a sofrer sensíveis modificações, a partir do século
XVIII, com a colonização e as entradas e bandeiras que se embrenharam pelo interior do País,
em busca de ouro, pedras preciosas e índios escravos. Não é aleatório que os nomes de
Bartolomeu Bueno da Silva (Anhanguera) e Raposo Tavares, hoje, são denominações de ruas,
avenidas, bairros, rodovias e até cidades na região do Cerrado. Nesse contexto, e a partir dessa
data, surgiram os primeiros aglomerados urbanos e a exploração mais intensa dos recursos
minerais que começava a se incrementar, já provoca os primeiros sinais de degradação, como
ocorreu com as “vilas”, Vila Boa de Goiás (depois Goiás Velho) e Pirenópolis, em Goiás. No
apogeu desse ciclo, essas vilas eram tão ricas quanto Vila Rica (hoje Ouro Preto).
Findo o ciclo da mineração, a região do(s) Cerrado(s) permaneceu economicamente
dedicada à criação extensiva de gado e à agricultura de subsistência. Tais modelos econômicos
persistem em espaços localizados até os dias atuais, e outros modelos mais simples, baseados
no extrativismo, são adotados por populações caboclas, habitantes atuais de espaços definidos.
Somente no século XX, em um processo de interiorização, o Cerrado passou a ser atraente
economicamente e a necessidade da produção de alimentos em níveis maiores encontrou
terreno fértil naquele ecossistema.
Contudo, hoje, o que degrada o rico ecossistema do Cerrado é o que lhe trouxe,
paradoxalmente, desenvolvimento econômico a partir da década de 60: a pecuária, em um
primeiro momento, e a agricultura intensiva de cereais, como a soja e o milho. Essa nova
“corrida” às gerais e ao sertão foi fruto da expansão da agropecuária:
Entre as décadas de 1950 e 1970, a hoje reconhecida economia agropecuária instalada
no cerrado começou a tomar forma. Além da criação de infraestrutura e de um mercado

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consumidor, a introdução de alta tecnologia, apoiada em planos nacionais de desenvolvimento,


acelerou esse processo. A partir da fundação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), em 1973, foi possível fazer o melhoramento genético de plantas e animais e a
correção da fertilidade e acidez dos solos no cerrado, bem como o treinamento e a formação de
profissionais envolvidos nessas pesquisas. Junto com o desenvolvimento do transporte
rodoviário e o crescimento do mercado nacional e internacional de bens e serviços agrícolas
(entre eles, a exportação de algodão e de grãos, como soja e milho), essas transformações
atraíram populações de outras regiões para o cerrado, levando ao rápido crescimento
demográfico de algumas cidades.
Até meados da década de 70, o Cerrado das “gerais” e do “sertão” goiano e mineiro
recebeu várias levas de migrantes do Centro-Sul (principalmente gaúchos e paulistas) que ou
compraram – legalmente - áreas na região ou, infelizmente, se apropriaram através da grilagem
de terras, e que ali implantaram uma estrutura fundiária ligada à monocultura, seja da soja ou
de outro cereal. Conquanto essa nova “fronteira agrícola” tenha sido amplamente explorada,
uma nova região – no Cerrado mesmo – passou a ser alvo de cobiça, qual seja: o Oeste da
Bahia; o Sul do Maranhão e, mais recente, o Sudoeste do Pará. Nesse sentido, explicam
Ferreira; Bustamante e Fernandes:

Na década de 1980, a economia agropecuária incorporou espaços ainda mais


distantes, como o oeste da Bahia e a zona de transição com a Amazônia (no chamado
arco do desmatamento – região que marca a fronteira política e econômica entre a
Floresta amazônica e o Cerrado), ainda predominantemente caracterizada por
vegetação de cerrado. Dessa vez, os novos produtores eram, sobretudo, migrantes do
sul do país, vulgarmente chamados de “gaúchos”, que vinham com suas famílias em
busca de terras mais baratas, com bons atributos para a agricultura (em geral, relevo
plano ou pouco ondulado e clima estável, com períodos chuvosos bem definidos).
Em decorrência desse movimento, muitas cidades foram estabelecidas nessas
regiões, formando uma rede urbana que incluía tanto pequenas cidades, que davam
suporte à agricultura, quanto grandes centros urbanos, de onde os negócios eram
geridos (CIÊNCIAHOJE, 2016, p. 26)

Na década de 90, a fronteira agrícola foi expandida para quase todas as terras restantes
no Cerrado. Devido aos (ainda) preços proporcionalmente baixos das terras e com boas
condições de mecanização e melhoramento da fertilidade, essa expansão chegou à região hoje
conhecida como MATOPIBA, formada pela confluência dos limites estaduais de Maranhão,
Tocantins, Piauí e Bahia. Tal região, hoje, apresenta os maiores índices de desmatamento,
justamente em razão de uma política desenvolvimentista predatória e alheia às consequências

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socioambientais nefastas dessa opção por um tipo de desenvolvimento econômico explorador


e destrutivo.

1.1. O CERRADO COMO A CUMEEIRA DO BRASIL E DA AMÉRICA DO SUL

O Cerrado é considerado estratégico sob diferentes perspectivas que frequentemente


colidem na elaboração e condução de políticas públicas: seja na produção de alimentos e
bioenergia, na geração de recursos hídricos e biodiversidade – apresenta a maior diversidade de
plantas entre as savanas tropicais, com cerca de 12.000 espécies de plantas com flores -, e na
própria regulação climática, com estoques e fluxos significativos de carbono no solo e na
vegetação.
Os chapadões centrais do Brasil, cobertos pelo domínio fitogeográfico e
morfoclimático dos cerrados, constituem a cumeeira do Brasil e também da América do Sul,
pois distribuem significativa quantidade de água que alimenta as principais bacias hidrográficas
do continente (SALES BARBOSA, 2016, p.13).
A cumeeira é a parte mais alta de uma casa, a parte que recebe a água da chuva que
flui pelos quatro – ou mais – cantos do telhado. O Cerrado recebe e retém a água da chuva e as
distribui para todas as bacias do continente: Bacia Amazônica, do São Francisco, do Paraná e
inúmeras bacias independentes, como a do Parnaíba. Essa, inclusive, embora pequena em
relação à Amazônica, é tão complexa que carreia sedimentos do Jalapão, da Chapada das
Mangabeiras e forma o segundo maior delta das Américas, com mais de 74 ilhas, distribuindo
as areias desde o Maranhão, formando os lençóis maranhenses e piauienses (Delta do
Parnaíba) e indo até Jericoaquara, no Ceará. Tudo isso é terra levada pelo rio Parnaíba, que
nasce no aquífero Urucuia, que está na Chapada das Mangabeiras e no Jalapão (no Tocantins)
e vai dividindo o Piauí do Maranhão até chegar ao Atlântico (SALES BARBOSA, 2016, p. 13-
14).
A Bacia Amazônica, com todos os seus afluentes, tem suas nascentes, seu curso
médio, situado na região do Cerrado. Da mesma maneira os rios Paraná e São Francisco, e
praticamente todas essas águas se encontram na parte mais alta do Planalto Central brasileiro,
que é em Formosa, formando a Reserva Biológica das Águas Emendadas, com águas do São
Francisco, do Araguaia e assim sucessivamente.
Sendo o Cerrado a cumeeira, ele detém a condição de distribuidor das águas para as
maiores bacias hidrográficas do país. Essa condição especialíssima está ameaçada pelo

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desmatamento e a desenfreada exploração econômica de um bioma que desde o Ciclo do Ouro


tornou o interior do Brasil o “Eldorado” a ser atingido e sua natureza “domesticada”. Hoje, a
destruição que houve no Ciclo do Ouro está se perpetuando com o “Ciclo da Soja”, não só esse
cereal, mas principalmente, e em conjunto com o manejo da pecuária de corte.

2 A DESTRUIÇÃO DO CERRADO: O DESMATAMENTO DE EXTENSAS


ÁREAS COMO A DO PROJETO DESENVOLVIMENTISTA DO MATOPIBA

De acordo com organizações não-governamentais, como a Mighty Earth e a


Rainforest Foundation Norway, o desmatamento no Cerrado brasileiro, no período 2011-2015,
foi maior que na Floresta Amazônica. Em estudo divulgado pelas ONGs, em que foram
pesquisadas 28 localidades no Cerrado brasileiro e na Bacia Amazônica, utilizando-se de
entrevistas, resultados de satélites e drones, chegaram à conclusão que, em um período de 4
anos, mais de 567.000 hectares foram desmatados para dar lugar à produção de soja e à
pecuária, sendo que a primeira foi o principal motivo pelo qual houve o desmatamento na região
(MIGTHY EARTH, 2017, p.1-20).
Mas não só as ONGs verificaram a destruição do bioma; o próprio governo federal
divulgou, no mês de julho de 2017, um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE), cujos dados são de uma série entre 2013-2015 e corroboram o que as ONGs
e as universidades já vinham detectando: o Cerrado perdeu 9.483 quilômetros quadrados de
vegetação em 2015, um número que equivale a mais de seis cidades de São Paulo e supera em
52% a devastação na Amazônia no mesmo ano (OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2017). Outro
dado divulgado é que o Cerrado continua perdendo 1% de sua área remanescente por ano, bem
como dados do projeto MapBiomas publicados neste ano indicam que o desmatamento
acumulado no bioma neste século foi três vezes maior que o da Amazônia, proporcionalmente
ao tamanho da área de vegetação remanescente (IDEM).
Segundo dados do mesmo estudo, os dez municípios mais desmatados ficam em área
denominada MATOPIBA (Decreto 8447/2015), palco da expansão da fronteira agrícola entre
os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (o acrônimo advém das siglas dos estados).
Juntos, eles respondem por 11% dos quase 30 mil quilômetros quadrados desmatados no
Cerrado entre 2013 e 2015. Os três campeões são baianos: São Desidério (337 km2), Jaborandi

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(295 km2) e Formosa do Rio Preto (271 km2), todos municípios produtores de soja
(OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2017).
Em estudos divulgados pelas ONGs antes citadas constatou-se que entre as empresas
de soja que operam no Cerrado, a Cargill e a Bunge são as duas empresas de soja mais ligadas
ao desmatamento (MIGTHY EARTH, 2017). Ambas as empresas compram soja de
fazendeiros, que é enviada para várias partes do mundo para alimentar galinhas, porcos e vacas
mantidos em confinamento, até serem transformados em sanduíches de frango, bacon e
hambúrgueres. A Cargill é a maior empresa privada dos Estados Unidos, com faturamento de
US$ 120 bilhões, líder mundial no comércio de soja, óleo de palma, gado, algodão e outras
commodities. Já a Bunge possui a maior infraestrutura instalada no MATOPIBA, a região do
Cerrado com maior desmatamento causado pela soja. Recentemente, a Bunge ampliou ainda
mais a sua rede na região.
Denuncia a ONG que, nos 29 municípios do Cerrado onde a Bunge opera silos
comerciais foram detectados quase 50 mil hectares de desmatamento em 2015, e um total
acumulado de 567.562 hectares de 2011 a 2015, conforme o referido anteriormente. Já nos 24
municípios onde a Cargill opera silos, foram 130 mil hectares de desmatamento durante esses
mesmos cinco anos. Além disso, em 12 municípios, tanto a Cargill quanto a Bunge operam
silos. O desmatamento total dessas áreas atingiu um total de 90.129 hectares no mesmo
período. A investigação não pode afirmar que todo o desmatamento identificado foi causado
pela soja. Entretanto, essas empresas fornecem incentivos financeiros que estimulam a
destruição e não estão tomando medidas adequadas para evitar o desmatamento das regiões
onde operam.
Embora a Bunge tenha adotado uma política de proibição do desmatamento em sua
cadeia de suprimentos, não houve comunicação clara e expressa aos seus fornecedores. Já a
política da Cargill para esse assunto é reconhecidamente falha. Ao contrário dos concorrentes
com políticas de proibição de desmatamento que entram em vigor imediatamente, a Cargill deu
a si mesma o prazo até 2030 para eliminar o desmatamento de suas cadeias de suprimentos,
dando aos produtores de soja e de outras mercadorias quase 15 anos para continuar o processo
de destruição.
Em entrevistas realizadas com fazendeiros pelas ONGs, eles confirmaram que a
Cargill e a Bunge são os dois maiores clientes de soja dos locais que foram visitados na Bahia.
A Bunge adotou uma política de proibição do desmatamento em sua cadeia de suprimentos,

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mas não a comunicou claramente aos seus fornecedores. Já a política da Cargill para esse
assunto é reconhecidamente falha. Ao contrário dos concorrentes com políticas de proibição de
desmatamento que entram em vigor imediatamente, a Cargill deu a si mesma o prazo até 2030
para eliminar o desmatamento de suas cadeias de suprimentos, dando aos produtores de soja e
de outras mercadorias quase 15 anos para continuar o processo de destruição.
Independentemente disso, nenhuma das políticas da empresa parece ser suficientemente eficaz.
Recentemente também foi divulgado um relatório da ONG internacional Global
Witness apontando que mais ativistas ambientalistas haviam sido mortos no Brasil que em
qualquer outro país do mundo. A maioria dos assassinatos ocorreu nas regiões com maior
proporção de terras ocupadas por fazendas de gado e plantações de soja. Somente em 2015, 50
ambientalistas foram mortos em razão de sua militância.
Não obstante o Código Florestal brasileiro defina que a Reserva Legal deve ser de
80% em propriedades rurais localizadas em área de floresta na Amazônia Legal, 35% em
propriedades situadas em áreas de cerrado na Amazônia Legal (sendo no mínimo 20% na
propriedade e 15% na forma de compensação ambiental em outra área, porém na mesma
microbacia) e 20% nas propriedades situadas nas demais áreas do Cerrado, o que se verifica
é que o aumento indiscriminado do desmatamento nas regiões do MATOPIBA, dando ensejo
ao aumento da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera, os quais contribuem para o
aquecimento global e as mudanças climáticas.
Um dos parágrafos do Manifesto contra o desmatamento do Cerrado (2017)
recentemente divulgado é nesse sentido:

A principal causa de desmatamento no Cerrado é a expansão do agronegócio sobre


a vegetação nativa. Entre 2007 e 2014, 26% da expansão agrícola ocorreu
diretamente sobre vegetação de Cerrado. Quando considerada somente a região do
MATOPIBA – porções de Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e
Bahia –, que é a principal fronteira do desmatamento, 62% da expansão agrícola
ocorreu sobre vegetação nativa. Em relação às pastagens, análises recentes apontam
que, entre 2000 e 2016, 49% da expansão no MATOPIBA ocorreu sobre o Cerrado.
Note-se que, muitas vezes, a área desmatada para pastagem torna-se, posteriormente,
área de uso agrícola. (Grifo nosso)

São dados alarmantes divulgados por quarenta (40) ONGs que assinam o manifesto.
O esforço brasileiro à conservação da Floresta Amazônica é inegável, por que, então, não estão
em curso os mesmos esforços para a conservação do Cerrado? O reconhecimento da savana
mais biodiversa do Planeta e cumeeira da América do Sul é imprescindível à própria regulação

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do clima na Terra. A Amazônia não sobreviverá sem a água do Cerrado. Deter o desmatamento
do Cerrado é tão importante quanto deter o desmatamento da Amazônia!

3 POLÍTICA NACIONAL DE MUDANÇA CLIMÁTICA E O ACORDO DE


PARIS: A AUSÊNCIA DO CERRADO NAS METAS DO CONTROLE DO
DESMATAMENTO NA INDC NACIONAL

A Política Nacional de Mudança do Clima, instituída em 2009 por meio da Lei no


12.187, oficializou o compromisso voluntário do Brasil junto à Convenção do Clima das
Nações Unidas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) entre 36,1% e 38,9%
das emissões projetadas para 2020. O Decreto no 7.390/2010 apresentou a linha de base de
emissões de GEE para 2020 em 3,236 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Portanto, a
redução correspondente deveria ser entre 1,168 e 1,259 bilhões de toneladas de CO2
equivalente, respectivamente. Esse montante envolveria a redução de 80% da taxa anual de
desmatamento de Amazônia e 40% dos índices anuais de desmatamento do bioma Cerrado em
relação à média verificada entre os anos de 1999 a 2008 (BUSTAMANTE, 2015, p.2).
A taxa média anual de desmatamento do Cerrado foi estimada em cerca de 18 mil
quilômetros quadrados (km2) entre 1994-2002 e 14,1 mil km2 entre 2003-2008. O total das
emissões projetadas para o ano de 2020 é resultado da multiplicação, em etapas sucessivas, da
taxa de desmatamento projetada – 15,7 mil km2, pelo valor médio de emissões de CO2 por
unidade de área. Dessa forma, estabeleceu-se pela PNMC que uma taxa “aceitável” de
desmatamento no Cerrado seria a perda anual de cerca de 9,4 mil km2! Essa taxa significaria
perder cerca de 1% ao ano da área remanescente de Cerrado em 2009. Entretanto, entre 2009-
2010 quando a PNMC foi lançada a taxa de desmatamento no Cerrado já era de cerca de 6,5
km2 (7,6 mil entre 2008-2009) e assim a PNMC definiu um compromisso para o Cerrado que
já havia sido atingido antes de sua implementação. Isso indica que, já em 2009, compromissos
mais ambiciosos e robustos para a conservação e uso sustentável do Cerrado poderiam ter sido
encaminhados pela política brasileira de clima, porém não o foram. As escolhas legislativas
foram tímidas em relação às metas determinadas na lei.
Hoje a taxa média anual de desmatamento no Cerrado está em torno de 6 mil
quilômetros quadrados, ou seja, superior à perda de cobertura nativa na Amazônia em 2014
(4,8 mil quilômetros quadrados) (BUSTAMANTE, 2015). Essa taxa é um valor médio e

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regiões que hoje concentram as novas frentes do desmatamento vem perdendo vegetação nativa
a taxas maiores ocasionando um intenso processo de fragmentação que compromete
importantes funções ecológicas. Adicionalmente, o bioma concentra aproximadamente 5
milhões de hectares de áreas de vegetação, em especial nas áreas de intenso uso agropecuário,
que devem ser restauradas de acordo com o Código Florestal (sendo 1, 7 milhão de hectares de
áreas de preservação permanente, tão relevantes para a conservação dos recursos hídricos).
Se já em 2009, era preocupante ver um compromisso pouco ambicioso por parte do
governo brasileiro com relação ao desmatamento do Cerrado, seis anos depois, em 2015, na
COP- 21, o texto da contribuição brasileira para o Acordo de Paris, a denominada INDC (em
português: Contribuição Pretendida Nacionalmente Determinada), acentua essa preocupação.
O desmatamento é o maior responsável pelas elevadas emissões de gases de efeito estufa, as
quais pretendem ser prevenidas e combatidas pelo novo acordo climático,
O Acordo de Paris é um instrumento de governança climática global, firmado por 195
países, tendo entrado em vigor, após a ratificação de mais da metade dos países, em novembro
de 2016. Considerado o mais ambicioso dos acordos sobre o clima, tem como base de trabalho
as projeções sobre o câmbio climático, divulgadas pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas) em seu 5º Relatório, constituindo-se em um acordo internacional cujas
metas pretendem mitigar os efeitos das mudanças climáticas, adaptar-se às mesmas, além de
pretender estabilizar o nível das emissões dos gases de efeito estufa, visando que a temperatura
da Terra não aumente mais que 1,5 grau nos próximos decênios (VIOLA; NEVES, 2016).
A INDC brasileira traz a contribuição nacional em relação à prevenção e combate às
mudanças climáticas, tendo sido formulada com base no trabalho de negociadores. Dentre esses
negociadores há os membros da diplomacia brasileira; os técnicos do Ministério do Meio
Ambiente; os integrantes do Fórum Brasileiro sobre Mudanças Climáticas e representantes do
Legislativo federal, etc. tendo sido os responsáveis pela construção de novas metas brasileiras.

Uma das primeiras contribuições pretendidas é “a) Da mitigação Contribuição: o


Brasil pretende comprometer-se a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em
37% abaixo dos níveis de 2005, em 2025. Contribuição indicativa subsequente:
reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% abaixo dos níveis de 2005, em
2030. Tipo: meta absoluta em relação a um ano-base. Abrangência: todo o território
nacional, para o conjunto da economia, incluindo CO2, CH4, N2O,
perfluorcarbonos, hidrofluorcarbonos e SF6. Ponto de referência: 2005. Horizonte
temporal: meta para o ano de 2025; valores indicativos de 2030 apenas para
referência. Métrica: Potencial de Aquecimento Global em 100 anos (GWP-100)
usando valores do IPCC AR5. Abordagens metodológicas, inclusive para estimativa
e contabilização de emissões antrópicas de gases de efeito de estufa e, conforme
apropriado, remoções: abordagem baseada em inventário para estimativa e

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contabilização das emissões antrópicas de gases de efeito estufa e, conforme


apropriado, remoções, seguindo as diretrizes aplicáveis do IPCC”. (Grifo nosso).

O texto da INDC nem ao menos menciona o Cerrado. Há uma atroz omissão do


Estado brasileiro em relação ao desmatamento no Cerrado, senão vejamos:

i) no setor florestal e de mudança do uso da terra:


- fortalecer políticas e medidas com vistas a alcançar, na Amazônia brasileira, o
desmatamento ilegal zero até 2030 e a compensação das emissões de gases de efeito
estufa provenientes da supressão legal da vegetação até 2030. Grifo nosso.
(Ministério do Meio Ambiente, 2015).

A INDC do Brasil indica a intenção de conter o desmatamento ilegal na Amazônia


apenas em 2030 (INDC, 2015, p.3). Não há indicação de contenção do desmatamento no
Cerrado. Em realidade, postergar por mais 15 anos a contenção do desmatamento ilegal da
Amazônia já não é um bom sinal, mas não mencionar o desmatamento ilegal (ou o
desmatamento legal, eufemisticamente denominado supressão de vegetação) em outros biomas
é um péssimo sinal. Resta lembrar, também, que, ao lado Cerrado, há uma situação crítica de
desmatamento na Caatinga.
Infere-se do texto da INDC que o Brasil exige, essencialmente, uma estabilização de
suas emissões totais e deixa uma margem para um pequeno crescimento. Assim, esse
compromisso de redução da INDC até 2025 estaria garantido pela redução das emissões
oriundas de mudanças no uso da terra, sobretudo pelo combate ao desmatamento na Amazônia,
e ficaria restrito ao período após 2025 a cota adicional de mitigação em relação aos esforços já
realizados.
Adicionalmente, a INDC do Brasil (2015, p.4) indica a intenção de restaurar e
reflorestar 12 milhões de hectares de florestas até 2030. Considerando os 15 anos até 2030, tal
reflorestamento deverá ser majoritariamente com o uso de espécies exóticas em sistemas
intensivos. Mesmo considerando essas espécies de crescimento rápido, parece pouco factível
cumprir essa meta sem que já esteja em curso um conjunto objetivo de medidas para garantir
seu cumprimento.
Mais uma vez, percebe-se, aqui, a pouca relevância dada à presente situação ambiental
do Cerrado. A distribuição das áreas convertidas no bioma não é homogênea. Há áreas de
ocupação mais antiga e com menores proporções de remanescentes na porção sul do bioma,
enquanto a região norte do Cerrado concentra os últimos grandes remanescentes de vegetação

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nativa e também as novas frentes de desmatamento que avançam pelo citado projeto
desenvolvimentista predatório do MATOPIBA.
Logo, há omissão do Estado brasileiro em relação ao bioma Cerrado. Não há,
portanto, um compromisso claro acompanhado de um esforço político consistente de reduzir o
desmatamento no Cerrado e nos demais biomas de forma mais ambiciosa em relação ao fixado
em 2009 pela PNMC, nem na INDC. Aliás, essa “omissão” vai ao encontro da guinada de
retrocesso jusambiental que o governo Temer vem promovendo (inobstante já no governo
Dilma isso também se verificasse), v.g., vários projetos pretendendo subtrair direitos
socioambientais conquistados a duras penas.
Embora o governo brasileiro tenha lançado em 2010 o Plano de Prevenção e Controle
do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado)2, nos moldes do que há havia sido instituído para a
Amazônia, tendo como objetivo promover a redução contínua da taxa de desmatamento e da
degradação florestal, bem como da incidência de queimadas e incêndios florestais no Cerrado
através da integração e aperfeiçoamento das ações de monitoramento e controle de órgãos
federais (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2010), não foram obtidos resultados que
convergissem para a diminuição das taxas de desmatamento, ao revés, projetos agropecuários
- cujo exemplo maior é o do MATOPIBA – continuam sendo implantados em áreas tanto de
campina (v.g. Centro-Sul do Tocantins) como de chapadões (v.g. Oeste da Bahia)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os brasileiros - e todos os outros - devem se preocupar com o desmatamento do


Cerrado por três razões. Primeiro, a agricultura no Cerrado depende da água das
chuvas alimentadas pela vegetação nativa. Nós mostramos que a agricultura produz
umidade por transpiração e evaporação de uma forma diferente que o Cerrado
natural. E isso pode afetar a precipitação, o que é ruim para toda a agricultura que
depende das chuvas na região. Segundo, por causa da vegetação do Cerrado nativo.
Terceiro, por causa da vegetação da Amazônia. Outros estudos têm mostrado que
manter o que restou do Cerrado intacto é essencial para preservar a Amazônia.
(STEPHANIE SPERA, pesquisadora da Brown University em entrevista à revista
Época).

Esse breve ensaio trouxe à tona um tema que emergiu nas discussões jurídico-
ambientais nos últimos anos, com o recrudescimento do aquecimento global e as mudanças

2 Suas ações visam a regularização ambiental das propriedades rurais, gestão florestal sustentável e combate às queimadas,
ordenamento territorial, conservação da biodiversidade, proteção dos recursos hídricos e uso sustentável dos recursos naturais,
incentivo a atividades econômicas sustentáveis, manutenção de áreas nativas e recuperação de áreas degradadas. In: Plano de
Prevenção e Controle Desmatamento do Cerrado e Queimadas. Ministério do Meio Ambiente, Brasília, 2010.

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climáticas. Trata-se de um recorte de um estudo maior que está sendo realizado no âmbito de
um projeto de pesquisa desenvolvido no PPGSD/UFF e que relaciona a atuação do Brasil no
âmbito internacional (Acordo de Paris); a opção por um desenvolvimentismo predatório em
nível interno e as práticas – como o projeto agropecuário do MATOPIBA – implementadas
com o intuito de degradação.
A destruição do Cerrado e suas consequências é tão importante quanto a destruição
da Amazônica. O bioma ou sistema biogeo. Cerrado é indispensável à Amazônia; é a partir do
Cerrado e suas águas, que abastecem os rios amazônicos, o que torna o que é a Floresta
Amazônica – o maior regulador do clima mundial! Sem água, a floresta não consegue prestar
o mais importante serviço ecossistêmico ao Planeta.
Há uma simbiose entre esses dois biomas, um não sobrevive sem o outro! Além disso,
o Cerrado (ou os cerrados) contém uma biodiversidade tão rica que sua perda significa uma
erosão genética sem precedentes. Portanto, o desmatamento do Cerrado é devastador e
degradante, pois além de elevar per si o número das emissões de gases de efeito estufa – o que
contribui ao aquecimento global e as mudanças climáticas – também é responsável pelos
reflexos diretos na Amazônia.
Contudo, infelizmente, o Cerrado continua invisível nas metas estabelecidas pelo (e
para o) Brasil na prevenção e combate às mudanças climáticas. No Plano Nacional sobre
Mudanças Climáticas (PNMC, Lei 12.187/2013) houve o estabelecimento de metas voluntárias
quanto à diminuição das emissões dos gases de efeito estuda e, via de consequência, o combate
ao desmatamento. Mas, no acordo climático de Paris, não obstante a INDC tenha feito
referência expressão à Amazônia, o Cerrado foi olvidado. Em realidade, configura-se uma
omissão do Estado brasileiro inconcebível, dada a importância do Cerrado na própria
preservação da Amazônia.

REFERÊNCIAS

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Leopoldo, n. 500, 13 de março 2016, p. 52-56. Disponível em http://www.ihuonline.com.br Acesso em 1º. set.
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BRASIL. Lei 12.187, de dezembro de 2009. Disponível em http://www.senado.gov.br . Acesso em 20. set. 2016.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
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BUSTAMANTE, Mercedes. Política de clima negligencia o Cerrado – mais uma vez

Plano entregue à ONU não menciona o segundo maior bioma do país. Observatório do Clima on-line. Edição de
24. nov. 2015. Disponível em: http://www.observatoriodoclima.eco.br . Acesso em 2 set. 2017

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Bustamante; Geraldo Fernandes; Ricardo Bomfim Machado. Instituo Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 334, v.56,
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Desmatamento eliminou 1,9 milhão de hectares do cerrado em dois anos. Ministério Público Federal questiona
incentivos do governo ao agronegócio na região conhecida como "Matopiba". Brasil de Fato on-line, São Paulo,
28 de Julho de 2017.

FERREIRA JR., Laerte Guimarães (org.). A encruzilhada socioambiental: biodiversidade, economia e


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NOVAES, Pedro da Costa; LOBO, Fábio Carneiro; FERREIRA, Manuel Eduardo Ferreira. Pobreza,
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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Pretendida Contribuição Nacionalmente Determinada (iNDC)


para Consecução do Objetivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Ministério do
Meio Ambiente. Brasília, 2016. Disponível em: http\\www.mma.gov.br . Acesso em 21. abr. 2017.

431
A JUSTIÇA RESTAURATIVA
COMO EFETIVAÇÃO NO PROCESSO DE ADMINISTRAÇÃO
DOS CONFLITOS ESCOLARES

ESTEVES, Pâmela
Professora adjunta do Departamento de Educação da UERJ.
Pesquisadora da Puc-Rio.
GOMES, Ingrid
Mestranda em Educação pela UERJ.

RESUMO

Esse artigo busca compreender como a cultura escolar se constrói dentro de uma sociedade que aprendeu
a naturalizar/banalizar a violência. Em outras palavras, nosso interesse é investigar os tipos de conflitos
que são produzidos na escola e os procedimentos adotados diante dos casos de elevada gravidade. Com
o objetivo de facilitar o entendimento do leitor dividimos o artigo em três partes. Na primeira parte
apresentamos uma discussão sobre o cotidiano escolar no que tange a relação entre diferença e violência,
a partir da constatação da dificuldade dos estudantes em reconhecerem as diferenças que os constituem
e os casos de violência que são oriundos dessa dificuldade (ESTEVES, 2015). Em um segundo
momento, analisamos situações de judicialização dos conflitos que acontecem nas escolas do município
de São Gonçalo/RJ, caracterizadas pela atitude da escola em acionar o Conselho Tutelar, doravante (CT)
e este, por sua vez, encaminha o caso para a Delegacia de proteção à criança e ao adolescente (DPCA)
e/ou ao juizado da infância e da juventude. Por fim, na última parte, argumentamos a favor da urgência
do desenvolvimento de concepções de justiça no ambiente escolar, em especial de uma justiça
restaurativa voltada para construção de uma cultura de paz, como um instrumento de educação em
direitos humanos e uma alternativa à judicialização da educação.

Palavras-Chave. Conflito escolar; Judicialização; Justiça Restaurativa; Direitos Humanos.

ABSTRACT

This article seeks to understand how school culture is built within a society that has learned to naturalize
/ trivialize violence. In other words, our interest is to investigate the types of conflicts that are produced
in the school and the procedures adopted in cases of high gravity. In order to facilitate the understanding
of the reader we divide the article into three parts. In the first part, we present a discussion about the
school routine regarding the relation between difference and violence, based on the students' difficulty
in recognizing the differences that constitute them and the cases of violence that arise from this difficulty
(ESTEVES, 2015) . In a second moment, we analyzed situations of judicialization of the conflicts that
occur in the schools of the municipality of São Gonçalo / RJ, characterized by the attitude of the school
in triggering the Guardianship Council, henceforth (CT) and this, in turn, forwards the case to the Police
station for the protection of children and adolescents (DPCA) and / or the Juvenile Court. Finally, in the
last part, we argue in favor of the urgency of the development of conceptions of justice in the school

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ISSN 2236-9651, n. 7

environment, especially a restorative justice aimed at building a culture of peace, as an instrument of


human rights education and an alternative to judicialization education.

Keywords. School conflict; Judicialization; Restorative Justice; Human rights.

INTRODUÇÃO:

Vivemos em tempos sombrios, dizia Hannah Arendt no momento em que o


autoritarismo se tornava o modus operandi da política totalitária na Europa. Décadas mais tarde,
os países da América Latina foram vítimas dos mesmos tempos sombrios, mergulhados no
autoritarismo político anunciado nas mais diversas formas de violação aos direitos humanos.
Nos dias de hoje, temos ainda o fantasma daqueles tempos nebulosos onde a violência contra a
condição humana atingiu patamares descomunais. O totalitarismo foi desfeito e a Democracia,
a duras penas, se consolidou. Mas, todas essas transformações saudosamente positivas não
foram suficientes para desestruturar e impedir o surgimento de novas formas de tempos
sombrios.
A violência estrutural que ameaça a vida comum na sociedade brasileira nos
possibilita pensar que estamos, sim, vivendo um momento sombrio. Felizmente, o contexto
histórico não é mais de um poder político totalitário que transforma os indivíduos em sujeitos
massificados e artificializados diante da homogeneização capitalista. Contudo, a violência
social, da maneira como vem se constituindo, é uma ameaça contundente à dignidade humana,
pois motiva o medo como um sentimento constante, inviabiliza a liberdade, destrói o
sentimento de solidariedade e produz a descrença na função do Estado enquanto uma instituição
protetora da sociedade civil.
Os graves e recorrentes casos de violência social que se proliferam nas manchetes
brasileiras denotam o quão sombrio é o momento atual. Arendt (1987b) nos mostrou que a
violência é sempre instrumental, ou seja, necessita ser justificada. Logo, a grande questão é o
que está por trás desse cenário crescente de violências sociais. Para essa problemática, algumas
respostas são possíveis: (1) a crise do nosso atual modelo de Estado; (2) a crise na tradição de
valores morais/éticos que fundamentem a construção de uma sociedade justa; (3) a disputa por
poder, ressaltando que o poder é um fim em si próprio, por isso, não necessita de justificação,
mas sim de legitimidade.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Assim sendo, uma sociedade violenta é caracterizada pela construção e reconstrução


de diversas formas de disputas de poder. Dentro dessas disputas, a violência se transforma no
principal instrumento de conquista do poder, e não estamos aqui nos restringindo ao poder
político, mas sim as mais diversas relações de poder que se constroem/reconstroem formando
uma economia do poder religioso, ideológico, econômico, midiático, entre outros
(FOUCAULT, 2008). Quanto mais disputas pelo poder, mais violência. Essa equação pode ser
exemplificada no aumento das intolerâncias religiosas, quando o poder religioso é disputado
através de radicalismos. Os crescentes episódios de racismo, também, nos ajudam a
compreender a relação entre poder e violência, nos casos em que a hegemonia branca é
desafiada por etnias minoritárias. Temos, ainda, as disputas pelo poder político, agravadas pela
falência do Estado Nacional brasileiro, cuja a violência se expressa no momento em que pessoas
inocentes são mortas por “balas perdidas” em confrontos entre a polícia (poder estatal) e
traficantes (poder paralelo) nas periferias brasileiras.
E na escola? A escola é uma instituição de formação, consolidação dos valores morais
apreendidos no seio familiar e socialização das experiências do crescer, mas atualmente, vem
se transformando em uma instituição de combate à violência. Cada vez mais, a sociedade
acredita e deposita suas crenças na educação escolar como um caminho impeditivo ao
protagonismo da criminalidade. O paradoxo é que a escola é uma instituição social, o que
significa que não está imune à violência produzida pela sociedade e que por mais esforços que
sejam feitos por parte da comunidade escolar, esta não tem condições nem obrigação de assumir
a responsabilidade do Estado e reduzir a violência.
É diante desse panorama, de múltiplas e crescentes formas de violências, que esse
artigo busca compreender: Como a cultura escolar se constrói dentro de uma sociedade que
aprendeu a naturalizar/banalizar a violência? Em outras palavras, nosso interesse é investigar
os tipos de conflitos que são produzidos na escola, sem deixar de considerar a estreita relação
desses conflitos com a cultura violenta que permeia as relações sociais externas à escola. Além
de compreender a natureza e as especificidades da violência escolar, buscamos, também,
conhecer os procedimentos adotados diante dos casos de elevada gravidade.
Com o objetivo de facilitar o entendimento do leitor, dividimos o artigo em três partes.
Na primeira parte, apresentamos uma discussão sobre o cotidiano escolar no que tange a relação
entre diferença e violência, a partir da constatação da dificuldade dos/as estudantes em
reconhecerem as diferenças que os constituem e os casos de violência que são oriundos dessa

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dificuldade (ESTEVES, 2015). Em um segundo momento, analisamos situações de


judicialização dos conflitos que acontecem nas escolas do município de São Gonçalo (RJ),
caracterizadas pela atitude da escola em acionar o Conselho Tutelar, doravante (CT) e este, por
sua vez, encaminha o caso para a Delegacia de proteção à criança e ao adolescente (DPCA)
e/ou ao juizado da infância e da juventude. Por fim, na última parte, argumentamos a favor da
urgência do desenvolvimento de concepções de justiça no ambiente escolar, em especial de
uma justiça restaurativa voltada para construção de uma cultura de paz, como um instrumento
alternativo à judicialização da educação.

1. A VIOLÊNCIA ESCOLAR COMO PRODUTO DO NÃO


RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS

Charlot (2002) argumenta que a violência escolar não é uma novidade dos séculos
XX e XXI. Já no século XIX, há registros de práticas violentas em escolas secundárias,
sancionadas com prisões. Contudo, se a violência escolar não é um fenômeno radicalmente
novo, ela tem assumido novas feições. Na medida em que a violência escolar passa a ser vista
como estrutural e não mais acidental, as famílias, os/as estudantes, os/as professores/as e toda
a comunidade escolar passam a desacreditar no potencial da escola como instituição formativa,
socializadora e protetora. Na escola, a violência não se restringe a dificultar o processo de
ensino e aprendizagem, mas também contribui para um cotidiano inseguro, permeado por
medos, revoltas, injustiças das mais diversas e, fatalmente, atitudes autoritárias e punitivas.
Sposito (2001) também considera que a violência escolar não é um fenômeno novo e,
devido as suas novas roupagens, demonstra preocupação na maneira como ela vem sendo
conceituada. Buscando evitar equívocos, Sposito (2001) defende a necessidade de compreender
a violência escolar como aquela que nasce entre os muros da escola, isso significa trabalhar em
uma perspectiva stricto sensu que nos permita minimizar afirmações precipitadas baseadas em
raciocínios de causa e efeito como o binômio pobreza/violência, e possibilita compreender a
violência escolar em sua singularidade.
Há várias interpretações para o aumento da violência escolar. Explicações
macrossociais responsabilizam os altos índices de violência social, na medida que uma
sociedade que recorre à agressão como mecanismo de resolução de conflitos produz escolas
violentas. De certa forma, essa visão é compartilhada pela sociologia francesa de Bourdieu

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(1975), que compreende o sistema educacional como um instrumento de dominação do sistema


capitalista, produtor de violências simbólicas que reproduzem de maneira diferenciada a
ideologia da classe dominante.
Assim, Bourdieu (1989) considera o processo educativo uma ação coercitiva,
definindo a ação pedagógica como um ato de violência, de força. Neste ato são impostos aos
educandos sistemas de pensamento diferenciais que criam nos mesmos hábitos diferenciais, ou
seja, predisposições para agirem segundo um certo código de normas e valores que os
caracteriza como pertencentes a um certo grupo ou uma classe. Nessa perspectiva, o sistema
educacional é autoritário e dominador ao impor o habitus da classe dominante, e ao cooptar
membros isolados das classes. Esses membros, uma vez familiarizados com a axiologia da
classe dominante, defendem e impõem de maneira mais radical à classe dominada os sistemas
de pensamentos que a fazem aceitar sua sujeição à dominação.
Reconhecemos e admitimos o potencial macroestrutural da análise de Bourdieu. Mas,
defendemos nesse artigo que na virada do século XX para o século XXI, a violência escolar
não pode mais ser explicada apenas pelo viés estruturalista, pois acreditamos que os conflitos
escolares auferiram singularidades oriundas da dificuldade dos estudantes em
reconhecer/aceitar as diferenças que nos constituem como seres humanos. É fato que essa
dificuldade é representativa de uma sociedade preconceituosa, excludente e discriminatória.
Todavia, a aversão à diferença não se restringe à dominação da ideologia capitalista1. Na escola,
os conflitos são motivados por todos os tipos de diferenças, basta não corresponder ao padrão
de normalidade socialmente acordado. E o que define esse padrão? Essa é a questão. O padrão
não corresponde mais somente a questão da classe social. Atualmente, a definição do padrão é
uma questão antropológica de pertencimento cultural e identitário. São as identidades rotuladas
como diferentes que não são reconhecidas e que, na maioria das vezes, aparecem como vítimas
nos conflitos escolares. Na escola, a diferença é constantemente colocada à prova, isso porque
a escola foi pensada e construída no formato de uma instituição uniformizadora, que
historicamente pouco assimilou o reconhecimento das diferenças.

O lamentável é que a escola pode também ser um mecanismo de exclusão, dando a


alguns o acesso aos mecanismos de poder (direito, língua, história, ciência etc.) e
negligenciando a outros. A escola pode sociabilizar com ênfase no respeito à

1
Estamos argumentando que os conflitos escolares não se restringem a uma dominação de classe no sentido proletário/burguês.

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diferença, mas pode também uniformizar (uniforme, provas únicas, currículo único,
a mesma maneira de ensinar para todos). (ANDRADE, 2009, p.23).

No entanto, hoje, a diversidade cultural e identitária desafiam as tentativas


homogeneizantes que a escola ainda tenta impor. É nesse ambiente de (re)construção e
reprodução da diversidade que a violência se constitui, enquanto um comportamento de
negação e inferiorização das diferenças. Quando a diferença aparece, ela não é somente negada,
mas é também inferiorizada, naturalizada e banalizada. A escola insiste em negar as diferenças
em nome da igualdade porque compreende que o respeito ao que é de todos não pressupõe o
respeito e o reconhecimento ao que é individual e ao que é dos outros.
Resta-nos agora pensar o porquê da diferença tanto incomoda no ambiente escolar. A
modernidade prioriza a defesa da igualdade, por isso, historicamente, a diferença é vista como
um obstáculo à garantia e à aplicabilidade de direitos. Todavia, a diferença que incomoda não
é aquela que legitimou historicamente os privilégios de classe, mas sim aquela que estrutura os
preconceitos, discriminações e estereótipos. É aquela que inferioriza uma identidade, que reduz
os seres humanos e legitima exclusões. A diferença que tanto incomoda na escola é aquela que
não corresponde ao padrão moderno de indivíduo: homem, branco, heterossexual, magro,
talentoso, inteligente, proativo, etc. Os que não se enquadram nesse padrão são os diferentes,
alvos de práticas preconceituosas, intolerantes e discriminatórias.

2. O CAMINHO DA JUDICIALIZAÇÃO

Em seu sentido geral, compreendemos a judicialização como a intervenção das


instâncias judiciárias em diferentes esferas sociais na resolução de conflitos e na proteção dos
direitos individuais e coletivos.Vianna et al. (1999) trata a judicialização:

em termos de uma procedimentalização do direito e da ampliação dos instrumentos


judiciais como mais uma arena pública a propiciar a formação da opinião e o acesso
do cidadão à agenda das instituições políticas.

Considerando esse crescente cenário da judicialização das relações sociais, isto é, da


transferência de poder das instâncias políticas tradicionais para as instâncias judiciárias com o
objetivo de julgar as questões relevantes do âmbito político, social ou moral, esse fenômeno
compreende diferentes facetas, e como exemplo prático expressado no contexto brasileiro, se
apresenta casos relativos ao direito à saúde, quando há necessidade de regulamentação de

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medicamentos específicos por meio de uma ação judicial desencadeando, assim, a


judicialização da saúde.
Cumpre salientar que apesar de não ter expressado o termo judicialização,
propriamente dito, o filósofo francês, Michel Foucault, teceu conceitos que nos permitem
dialogar com questões que suscitam tal problemática, tendo em vista que os seus esforços
investigativos indicavam, desde a década de 70, a expansão das funções judiciárias por todo o
corpo social. A presença do poder regulamentador das instituições jurídicas funcionou como
um dispositivo disciplinar que atuou, e ainda atua, de forma estratégica na fabricação de
indivíduos úteis e dóceis. O Direito, na modernidade, se constituiu como um produtor de
verdades que atuam nas diferentes formas jurídicas através da normalização, submetendo os
indivíduos à obediência e definindo o normal e o anormal, o proibido e o permitido (Foucault,
1990).
É em função do normal que as normas são estabelecidas e fixadas, as verdades
construídas e a justiça acionada. Quando o Poder Judiciário aplica uma determinada lei na
sociedade, a verdade é apresentada e a justiça instituída. O justo, a partir da modernidade se
tornou a aplicação de leis, por isso a judicialização é interpretada como um procedimento
válido, capaz de solucionar situações de conflito. A lei é tão suprema que está sempre acima de
tudo e de todos de modo que, quando violada, temos a prática de um crime, e seu violador se
transforma em inimigo da sociedade, aquele que foi capaz de passar por cima da superioridade
da lei. Contudo, chamamos atenção para o processo de padronização da lei que ocorre quando
uma legislação é acionada de forma estandardizada operando como um mecanismo de
modelização capaz de tornar a lei uma referência última da vida, naturalizando o Poder Jurídico.
O ato de naturalizar a lei como verdade pode nos levar a naturalizar a punição como sinônimo
de justiça, uma vez que a punição é a extensão da não obediência à lei.
Em Vigiar e Punir (1987), Foucault desenvolveu o estudo sobre a expansão da
incidência dos corpos, dos indivíduos enclausurados, pelo poder. Nesta obra, Foucault desvela
a falsa ideia de poder expressada unicamente na concepção negativa e destrutiva. Para além de
uma lógica repressiva, de exclusão ou de omissão, Foucault nos indica um outro lado do poder
a ser pensado, o da transformação. A lei é um poder transformador e serviu de instrumento para
o domínio e controle sobre o corpo humano, por meio de técnicas próprias de vigilância e de
sanções normalizadoras, que não eram exclusivas da prisão, mas permeavam outras
instituições, como a escola. Isso porque a lei funciona como uma economia de poder na medida

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em que estorva atitudes e comportamentos não normatizados. Foi esse tipo de poder, que
fabrica o indivíduo, que Foucault delimitou como poder disciplinar, cujo os métodos “que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de
suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade (...)” (FOUCAULT, 1987,
p.139).
Nessa lógica, o controle das ações e dos comportamentos dos indivíduos segue em
voga no contexto de vigilância e de punição das instituições sociais, num movimento onde o
poder de decisão recai sobre o poder judiciário, tendo o seu modo de operação – controle,
julgamento, punição – legitimado diante das situações de gerência da vida e de subjetivação
dos indivíduos. Nesse sentido, Nascimento e Scheinvar afirmam que:

.... a intervenção do judiciário é assumida na sociedade moderna como um dever do


Estado em favor do ‘bem comum’ e ‘em benefício’ das partes sob júdice.
Independentemente dos efeitos das práticas judiciárias, estas foram produzidas
historicamente como benéficas e sempre inquestionáveis, verdadeiras (...). Para
instrumentalizar a prática judiciária, o arcabouço legal compreende normas
universais a serem aplicadas sem considerar as condições diversas que vivem os
sujeitos alvo das leis.” (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2007, p.154).

Não se trata aqui de extinguir o aparelho jurídico do mundo social, mas de


problematizar os motivos pelos quais as relações cotidianas, mais especificamente, as relações
do mundo escolar, estarem cada vez mais colonizadas pela esfera judicializante. Sabemos que,
no ambiente escolar, esse cenário é fruto de uma multiplicidade de fatores que envolvem desde
o desconhecimento por parte da comunidade escolar das legislações educacionais, em
específico o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e a omissão da escola em discutir as
diferentes concepções de justiça que se configuram no cotidiano escolar, até a presença de uma
racionalidade que delega à justiça (poder judiciário) o papel de resolução dos conflitos escolares
materializando a ideologia do império da lei. É fato que em determinados casos, que serão
expostos mais adiante, a judicialização é um instrumento necessário para a resolução de
conflitos que extrapolam o papel educacional da escola. Porém, é urgente discutir a questão da
responsabilização civil da escola diante de conflitos oriundos da dinâmica da cultura escolar.
Até porque, cabe enfatizar que todas as vezes que ocorre a judicialização dos conflitos
escolares, a justiça que é estabelecida não é construída pela comunidades escolar, mas sim por
mecanismos exteriores à escola e através da aplicação de leis que também foram fabricadas
distantes da realidade escolar. Na judicialização, o justo vem de fora. Nas palavras de Heckert
e Rocha (2012):

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Esta judicialização tem se caracterizado pela expansão da ação da justiça no território


da escola, com o aparato jurídico sendo acionado para intervir em conflitos que
emergem no chão da escola e/ou para esclarecer dúvidas, muito mais quanto aos
deveres não cumpridos do que com relação aos direitos sociais não garantidos. A
lógica judicial passa a permear o cotidiano escolar, ofertada e requisitada,
principalmente, para manter a ordem. Utilizando-se de ameaças de punição,
intensifica-se a criminalização de ações que interrogam as práticas instituídas,
forjando-se políticas do medo e do controle do suposto risco social. (Heckert; Rocha,
2012, p. 90).

Diante do exposto, no contexto escolar, o caminho para a resolução dos conflitos


escolares tem sido cada vez mais buscado em instâncias fora do âmbito escolar, de justiça ou
policiais, sendo elas: o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a delegacia, a Justiça. Inclusive,
essas próprias instâncias tem adentrado e participado das relações escolares. Como exemplos
dessa realidade, no interior dos colégios da rede municipal de São Gonçalo (RJ), guardas
municipais realizam o patrulhamento da chamada Ronda Escolar2. Enquanto que colégios da
rede estadual de São Gonçalo (RJ), contam com a participação diária de policiais militares.
Ambos os exemplos sob o respaldo de garantia de segurança da comunidade escolar e do
patrimônio público escolar.

3. A ATUAÇÃO DO CONSELHO TUTELAR

O Conselho Tutelar (CT) tem sido constantemente acionado para intervir em conflitos
escolares. Instituído em 1990, através do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), Lei
8.069/1990, o Conselho Tutelar (CT) representa um órgão permanente e autônomo, não
jurisdicional, cuja função primordial se deve a proteção integral do cumprimento dos direitos
da criança e do adolescente previstos no ECA. Com efeito, a ideia da criação do Conselho
Tutelar se pautou na desjudicialização do atendimento ao referido público, sem a necessidade
de acionar o Poder Judiciário, uma vez que o poder de representação caberia aos conselheiros
tutelares, representantes da sociedade civil elegidos através de voto popular, para atuarem com
autonomia na busca pela garantia de direitos. Em contrapartida, a lei prescrita está estritamente
vinculada com as práticas do Poder Judiciário, e quem não se enquadrar a ela, cujo horizonte
corresponde à aplicação da justiça, terá que responder pela punição. Portanto, mesmo sendo um
órgão não-jurisdicional, muitas das práticas dos sujeitos que ali atuam se revelam pautadas na

2
“Desde 1998, o Grupamento especializado de Ronda Escolar foi criado com o objetivo de atender os alunos da rede municipal
de ensino, além de manter proteção de serviços, bens e instalações nas unidades escolares municipais.” Informação extraída em:
http://www.pmsg.rj.gov.br/guardamunicipal/grupamentos.php. Acesso em: 13/06/2017.

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lógica jurídica, conforme afirmam, novamente, Nascimento e Scheinvar (2007), sobre a


juridicialização das práticas, que a:

[...] presença de modelos de atuação característicos do Poder Judiciário, que acabam


sendo adotados, mesmo em espaços que não detêm tal poder, mas que, por serem
revestidos de certa autoridade e terem como fundamento para a sua prática o termo
da lei, assumem tais formas como as adequadas para o seu exercício. Do nosso ponto
de vista, é esta a lógica que tem pautado algumas das práticas dos conselhos
tutelares.” (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2007, p. 153).

Dessa forma, o conselho tutelar (CT) é uma instituição contraditória. Sua criação
remete a tentativa de desjudicialização, nomeando a sociedade civil para auxiliar na proteção e
garantias de direitos às crianças e adolescentes, porém, o que a práxis nos mostra é um conjunto
de procedimentos regulamentadores da vida escolar que enquadram os conflitos em legislações
e normatizações construídas fora do espaço escolar, ou seja, a judicialização das relações
escolares.
O contexto desta pesquisa, ainda em fase preliminar, busca investigar as três unidades
de Conselho Tutelar do município de São Gonçalo (RJ) divididas por áreas de abrangência3,
que atendem o respectivo município em sua totalidade. Com base em entrevistas
semiestruturadas, realizadas individualmente com os/as conselheiros/as4 e com as pedagogas5
oriundos/as destas três diferentes unidades procurou-se compreender as formas de atuação e de
articulação entre os pares no cotidiano de trabalho; a relação do CT com as escolas do
município, e os seus respectivos entendimentos sobre a judicialização dos conflitos escolares
bem como os recursos utilizados diante desses casos. Consideramos que estes aspectos
poderiam expor as concepções e a realidade de trabalho dos/as conselheiros/as e de sua equipe
técnica frente às ocorrências escolares recebidas, favorecendo o entendimento empírico da
dinâmica do órgão e do tema de pesquisa.
Uma característica marcante observada foi o fato do Conselho Tutelar atuar em redes,
como menciona a conselheira C2:

Nós trabalhamos em rede, nós trabalhamos com abrigo, nós trabalhamos com
hospitais, com escolas. Então, é assim, tudo depende da rede. O conselho tutelar não
trabalha sozinho. A gente depende de outros órgãos. Nós somos garantidores de
direitos, mas não necessariamente nós vamos ser atendidos. Nós podemos
representar o órgão que não nos atende, mas às vezes a condição que o governo dá

3
O município de São Gonçalo (RJ) é composto por três unidades do CT. Cada unidade atende por localização/bairros específicos.
4
Para garantir o anonimato dos sujeitos de pesquisa, mencionaremos como C1, C2 e C3.
5
Pelo mesmo motivo do anonimato, mencionaremos como P1 e P2.

441
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não nos ajuda mesmo a gente tendo o respaldo legal que nós somos garantidores de
direito.” (C2)

Sob a ótica educacional, a ocorrência encaminhada pela escola que mais se destaca é
a FICAI (Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente), que se refere aos/às alunos/as ausentes
na escola, com sucessivo número de faltas. A escola recorre ao conselho para saber o porquê
das referidas faltas do alunado. Apesar de realizarem essa tarefa, os/as conselheiros/as afirmam,
unanimamente, que essa atribuição deveria ser acolhida pela própria escola, não cabendo ao
conselho. Este é um exemplo de ocorrência descrito pelos/as conselheiros/as em que a escola
deixa de assumir o seu papel educacional e recorre ao conselho sem a verdadeira necessidade,
deixando de solucionar questões que poderiam ser resolvidas no interior da própria instituição
escolar.
Outro exemplo ilustrativo que contribui com essa percepção é o recebimento de
ocorrências envolvendo conflitos escolares, que para os/as entrevistados/as a escola deveria
tentar realizar medidas para lidar com essas situações, pois “não é qualquer coisa que é pro
conselho”6. Em outras palavras, “a escola poderia ‘enxugar’ mais, fazer todas as tentativas
possíveis antes de vir pro conselho.”7 Os conselheiros percebem que há uma aguda ausência
de diálogo no interior das escolas para resolver essas situações, e logo buscam o CT. Nesse
sentido, a conselheira C2 afirma que:

... assim, o conselho tutelar é chamado pra isso, pra essas divergências. E, muitas das
vezes, esses conflitos na escola depende só de orientação e não de conselho tutelar.
Só que eles, em algumas situações de colégio, dependendo do colégio, eles têm medo
dos orientadores. A direção tem medo de ir pra um conflito maior, mais intenso por
causa da situação de tráfico, de ser da comunidade, e aí encaminha pro conselho. (C2)

Em contrapartida, os/as entrevistados/as alegam ocorrências graves, que chegam ao


conselho, no seu estopim. Em consonância com essa constatação, um estudo realizado por
Burgos et al. (2014) sobre a relação escola, família e Conselho Tutelar aponta que:

...essa agência representa, para a escola e a família, uma espécie de pronto-socorro


para onde são encaminhadas as situações consideradas mais graves do ponto de vista
da integridade física e intelectual da criança/adolescente. (BURGOS et al., 2014,
pg.75)

6
Fala proferida por C1.
7
Fala proferida por C1.

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Dentre os exemplos de conflitos escolares, entre os próprios/as alunos/as ou entre


aluno/a e professor/a, que chegam ao CT estão os casos relacionados com agressão física,
ameaças, indisciplina, depredação do patrimônio escolar e tráfico de drogas. Como exemplo,
um dos casos de agressão, envolvendo duas alunas, decorreu de bullying. Uma das alunas
estava munida de um canivete, que só foi descoberto pela gestão escolar após a agressão. Nas
palavras da conselheira:

... ela não aguentava mais a colega falar sobre algo no corpo dela, e aquilo foi
passando. Foi passando, até que um dia ela projetou que aquilo ia acabar. Como que
acabaria isso? Ela machucando a colega. Graças a Deus, não chegou até o
final.Alguma coleguinha contou que a professora, a coordenadora, não recordo, que
fulano estava com algo cortante na mochila. Aí, elas não podem mexer, né. E aí, ela
foi chamada na secretaria. A menina mesmo mostrou que estava. E aí, a ronda escolar
junto com a direção, mais a família vieram aqui no conselho. (C3)

Diante da exposição desse caso, a priori, a atuação do CT vem sendo de


acompanhamento das alunas, após escutá-las individualmente, bem como, os seus respectivos
responsáveis legais, após receberem a notificação. As envolvidas vêm sendo acompanhadas
por psicólogas do próprio CT, que avaliarão se o atendimento será estendido.
Concomitantemente, a gestão escolar segue neste acompanhamento. O caso citado ainda está
em andamento.
Em outras situações, além deste procedimento inicial descrito acima, em caso do/a
criança e/ou adolescente não ter mais possibilidade de permanecer com os responsáveis legais
nem com a família extensa, o CT recorre à vara da infância solicitando o acolhimento
institucional (o abrigamento).
Dentre as medidas que a escola poderia realizar para solucionar e/ou evitar o
acontecimento de certos conflitos, do ponto de vista dos/as entrevistados/as, foram à busca, a
saber: 1) pelo diálogo com o corpo discente; 2) pela aproximação com as famílias; 3) pela
aproximação com o Conselho Tutelar. Como nos indica nessa fala da conselheira C2:

Eu acho que palestras pros adolescentes é uma saída, porque quando os adolescentes
tão voltados pro conhecimento, e eles começam a perceber que eles também podem
ser punidos, eu acho que muda o quadro das escolas, porque nós já tivemos
experiências aqui de colégios, que depois que o conselho teve, fez palestras, que eles
começaram a ter conhecimentos do que eles tem, dos direitos, dos deveres, melhorou
o relacionamento entre direção e alunos. (C2)

Os casos de conflitos judicializados compartilhados, transcorrem de alguma situação


envolvendo lesão corporal. Como exemplo, o trecho do segundo discurso dito pelo/a

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conselheiro/a C2, sobre o caso de uma adolescente que tinha histórico com autoria de agressão
por domínio de território escolar. A saída encontrada era sempre a mudança de escola, sem
nunca ter oferecido qualquer oportunidade de trabalhar essa questão dentro da instituição
escolar, como é possível verificar abaixo:

E quando se trata de lesão corporal, já não cabe muito a mim, né. A gente pode até
tentar, pode. Mas aí, já se torna lesão corporal, que é crime. Então, não compete ao
conselho. Então, fica muito difícil não judicializar, mas pode parar só na delegacia
também. Mas assim, já foge da minha competência. (C1)

A mãe retirou ela de um colégio, colocou ela em outro, ela fez o mesmo
procedimento: tomar conta do colégio. E aí, ela sempre acha um alvo: um
adolescente que não aceita as regras dela, e aí ela vai e espanca. E aí, quando ela foi
fazer a ocorrência, ela viu que já tinha outro registro. E aí, que gerou um processo
criminal, porque ela levou 16 pontos. Um soco que ela deu. (C2)

Embora seja assegurado pela Constituição Federal do Brasil (1988) e pelo ECA
(1990), que todos têm direito à educação, há um escancarado descompasso com a realidade na
garantia de vaga na escola. A implementação desses aparatos se mostra frágil para
concretização plena do que se propõe. Diante disso, é paradoxal primar por uma educação
pública de qualidade com um sistema de educação excludente.
Algumas equipes do Conselho Tutelar constataram um distanciamento na relação
com as escolas, no sentido de realizarem trabalhos preventivos, e consideram este um dos
motivos que endossa o medo da comunidade escolar pelo Conselho Tutelar, “porque as pessoas
identificam o conselho tutelar como um órgão punidor”8. Não há um contato frequente para
estabelecer trocas de informações ou trabalhos estratégicos de sensibilização que fortaleçam a
difusão das prerrogativas do ECA, como um instrumento de luta e resistências pelos direitos e
deveres da infância e juventude brasileira. Scheinvar (2012) nos indica que:

O viés punitivo da escola tem encontrado aliança no conselho tutelar, cuja prática é
vivida de forma ameaçadora. A característica singular do conselho tutelar é não ser
do âmbito da justiça, mas a sua existência está diretamente vinculada a uma lei, o que
tem contribuído para que use métodos da justiça. Não que a escola não seja punitiva,
mas todos pensam que não cabe à escola julgar, condenar e punir, apesar da ênfase
na sua função de controle dos alunos – o que acaba significando a adoção de práticas
semelhantes às da justiça. Já ao conselho tutelar, proposto como um órgão de garantia
de direitos, é associada uma demanda explícita por julgamento e punição. E ele não

8
Fala proferida pela conselheira C2.

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só corresponde a tais expectativas como, com sua prática, produz tal demanda.
(SCHEINVAR, 2012, p.48).

As pedagogas entrevistadas consideram que a sua função no CT, junto à equipe


técnica, prima pela mediação dos conflitos familiares/escolares, pelo acompanhamento dos
casos, pela promoção da auto-estima do/a aluno/a, e pela conscientização/orientação dos
responsáveis legais dos seus respectivos deveres para manter os cuidados necessários da criança
e do adolescente.
Outro argumento trazido pela equipe do conselho tutelar, sobre os conflitos escolares,
sobre a raiz do problema, é o discurso da “família desestruturada”9 ou da “estrutura familiar
banalizada”, que reflete no comportamento “indisciplinado”, e no mau desenvolvimento
escolar da criança e do/da adolescente. Nesse sentido, muito similar às práticas que
caracterizam a sociedade disciplinar, expressada por Foucault, o Conselho Tutelar, além de
punidor, também se mostra como um espaço de controle do comportamento dos indivíduos
para adaptá-los à norma vigente. Portanto, parafraseando Foucault, promovem regras a serem
seguidas para a “ortopedia social”.10
O recurso da judicialização de conflitos escolares reforça expressamente a
desqualificação institucional escolar e a própria destituição da autoridade, provocando um
esvaziamento da potencialidade de autonomia que permeia a escola quando episódios de
conflitos entre pares na escola se deslocam cada vez mais do campo pedagógico para o jurídico,
mediante a ações de tecnologias de coerção, vigilância e criminalização das ações
infantojuvenis.

4. A RESTAURAÇÃO COMO ALTERNATIVA

A justiça restaurativa surgiu nos anos de 1970 como uma alternativa ao modelo de
justiça criminal prevalecente. Em oposição ao modelo de justiça baseado em leis, atribuição de
culpa, e punição, a justiça restaurativa enfatiza os danos, as necessidades e as obrigações. Ao
contrário de responsabilizar advogados e juízes para o relato do conflito e sobre a decisão
quanto ao destino dos autores, a justiça restaurativa estimula a participação ativa de vítimas,
autores e membros da comunidade na reconstituição dos fatos e na administração da justiça. O

9
Os termos, entre aspas, referem-se as próprias falas dos/as entrevistados/as.
10
Em “A Verdade e as Formas Jurídicas” (1999).

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sentido do conflito é construído a partir das perspectivas e experiências daqueles que foram
mais afetados por este: a vítima, o autor e em alguns casos os membros da sociedade.
Os defensores da justiça restaurativa acreditam que as práticas restaurativas são
capazes de enfrentar o moderno fenômeno da criminalidade e ao mesmo tempo produzir à
reintegração dos autores a sociedade. Eles argumentam que todo o dano causado por alguém
rompe o equilíbrio das relações sociais na comunidade. Esta ruptura produz várias situações
indesejáveis, parte delas diretamente perceptível como sofrimento por parte da vítima. Nessa
situação, a Justiça Restaurativa busca restabelecer as relações sociais; re-construir o equilíbrio
rompido. Para isso, entretanto, será necessário descobrir, tão exatamente quanto possível, qual
a extensão do dano produzido. Neste movimento, sabemos que a vítima foi diretamente afetada,
por isso dar-lhe a palavra e permitir que ela ocupe um papel central no processo é a melhor
maneira de saber a amplitude do dano por ela experimentado (Rolim, 2006).
Martins (2004, p.25-26) observa que;

Na justiça restaurativa os participantes têm a chance de relatar os acontecimentos a


partir do seu próprio ponto de vista e demonstrar as consequências sofridas pelo
comportamento criminoso. A partir de então procura-se reparar os danos físicos e
emocionais, minimizando os efeitos negativos futuros. As vítimas dispõem de um
fórum seguro para dizer como foram afetadas, desempenhando um papel
fundamental na decisão a respeito da melhor maneira de reparar o dano. Elas
participam do processo de construção da decisão justa. O criminoso, ao invés de se
esquivar isolando-se da comunidade, tem que confrontar as consequências do seu
comportamento e assumir a responsabilidade pelos danos causados.

Em síntese, o processo de justiça restaurativa reverte a tendência de outrificação e


distanciamento social tão presente nos processos de justiça retributiva. Por meio do mecanismo
dialógico, as categorias “nós” e “eles” são desfeitas, para dar lugar a uma categoria que engloba
a todos e que é moldada pelo entendimento conjunto do significado e reparação do conflito.
A partir da exposição dos pressupostos teóricos da justiça restaurativa fica claro que
este modelo apresenta uma estrutura conceitual substancialmente distinta da chamada justiça
tradicional ou justiça retributiva. O foco da justiça restaurativa está na vítima e na restauração
de sua vida através da reparação do dano sofrido, ao contrário, na justiça retributiva a vítima
ocupa um papel periférico, seus sentimentos e traumas recebem linguagens técnicas e genéricas
que não dão conta de expressar a realidade vivenciada. Nesse modelo a ênfase está nos
antagonismos do processo e não no diálogo e na negociação, não há indagações sobre os
motivos que levaram ao conflito ou porque as pessoas transgrediram as normas legais e morais

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de convívio social, o foco está na vingança que é oficializada pelo Estado e a punição deve ser
proporcional ao dano praticado.
As tabelas abaixo explicitam o contraste entre os modelos restaurativo e retributivo e
acentuam a mudança de paradigma que a justiça restaurativa propõe no processo de resolução
e administração de conflitos.11

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Prevenção geral e especial - foco no infrator Abordagem do crime e suas consequências -


para intimidar e punir foco nas relações entre as partes para restaurar

Pedido de desculpas, reparação, restituição,


Penalização - Penas privativas de liberdade,
prestação de serviços comunitários. Reparação
restrição de direitos, multa, estigmatização e
do trauma moral e dos prejuízos emocionais -
discriminação
restauração e inclusão

Penas desarrazoadas e desproporcionais em


regime carcerário desumano, cruel, Proporcionalidade e razoabilidade das
degradante e criminógeno - ou - penas obrigações assumidas no acordo restaurativo
alternativas ineficazes (cestas básicas)

PALAVRAS FINAIS: A JUSTIÇA ESTÁ NA RESTAURAÇÃO

A judicialização dos conflitos escolares, mesmo quando necessária, deveria assumir


uma abordagem restaurativa de justiça possibilitando a construção de uma cultura de paz no
ambiente escolar. Esse foi o objetivo da criação dos Conselhos Tutelares, direcionar a
responsabilidade pelos conflitos escolares para a sociedade civil permitindo o protagonismo
desta na proteção e garantia dos direitos às crianças e adolescentes. Todavia, quando a escola
aciona o CT para solucionar conflitos que poderiam ser administrados internamente não perde
apenas a autonomia a identidade de uma instituição formadora, mas também inviabiliza o
potencial restaurador que a situação produzir. Dito de outra maneira, numa situação de bullying
a escola teria a oportunidade de usar a ofensa como um instrumento pedagógico para trabalhar
empatia, o perdão, e a responsabilização pelos erros através da reparação da dor provocada.
Infelizmente a escola ainda busca o modelo retributivo que educa pela punição e
recorre a lei como um instrumento absoluto da verdade e da justiça. A diferença desafia a escola

11
As três tabelas foram construídas com base nos dados retirados do artigo de GOMES PINTO, Renato Sócrates. A construção
da Justiça Restaurativa no Brasil. O impacto no sistema de Justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina. 11, n. 1432, 3 jun. 2007.
Disponível em http//jus2.uol.com/doutrina/texto.asp. Último acesso em: 18/01/2010

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construindo e reconstruindo situações de conflitos que uma vez desnecessariamente


judicializadas são procedimentalizadas através de uma lógica penal julgadora que ao invés de
problematizar como os conflitos são produzidos, se concentra apenas na legalidade das práticas
que serão regulamentadas. Já a justiça restaurativa se estabelece como uma oposição à violência
quando defende a restauração da paz através da reparação do dano, quando se posiciona pelo
reconhecimento e pela valorização das diferenças, quando postula a paridade na participação
do processo de resolução do conflito e principalmente quando explicita a importância de sempre
se considerar o outro.
Uma escola justa luta para compreender seus próprios conflitos, investiga os contextos
que a violência é produzida, analisa os diferentes discursos, enfatiza a validade do diálogo na
busca pelo pedido/aceitação da desculpa. Nessa escola os estudantes são chamados a
compreender a origem de seus conflitos e de que maneira é possível aprender com os próprios
erros. Quando, e se todas essas possibilidades não forem efetivas, nesse caso, o Conselho
Tutelar deve ser acionado, mas não para enquadrar o conflito em leis previamente normatizadas
e nem tampouco para consertar a escola com a lógica retributiva do poder judiciário, mas sim
para aconselhar a equipe escolar na administração do conflito responsabilizando assim a
sociedade civil pela garantia e proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes nesses
tempos tão sombrios!

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1999.

449
REGULAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO:
PERCEPÇÕES DE UMA (RE) CONFIGURAÇÃO
DA CIDADANIA ATRAVÉS DA FORMALIZAÇÃO DA
ATIVIDADE EMPRESARIAL

JUAREZ, Rodson
Doutorando do PPGSD/UFF
Pesquisador associado ao InEAC/UFF

RESUMO

Com o objetivo de refletir sobre a formalização empresarial de pequenos negócios individuais no


formato Microempreendedor Individual (MEI) como possibilidade escolha autônoma, mesmo em
cenário regulado, considerando as implicações e as práticas que possibilitam tal ocorrência, utilizamos o
método qualitativo para compreender a percepção dos colaboradores SEBRAE, operadores do sistema
penitenciário, agentes do judiciário e de apenados. As conclusões preliminares se dão no sentido das
percepções criminológicas, que focam no sistema punitivo construído por uma sociedade, bem como
nos efeitos que tal sistema provoca na sociabilidade, com interferência na noção de cidadania e de
empreendedorismo, bem como no reconhecido na legislação que possibilita a formalização de empresas
com uma abordagem mais simples, operando no sentido da (re) construção de uma cidadania ou da
conformação de corpos para uma perspectiva moralmente ajustada e aceitável.

Palavras-Chave. Empreendedorismo. Cidadania. Regulação.

ABSTRACT

In order to reflect on the business formalization of small individual businesses in the Individual
Microentrepreneur (MEI, under Brazilian law) format as an autonomous choice possibility, even in a
regulated scenario, considering the implications and practices that allow such occurrence, we use the
qualitative method to understand the perception of SEBRAE employees, penitentiary system operators,
judicial agents and prison inmates. The preliminary conclusions are in the sense of criminological
perceptions, which focus on the punitive system constructed by a society, as well as on the effects that
such a system provokes in sociability, with interference in the notion of citizenship and entrepreneurship,
as well as not recognized in the legislation that allows the formalization of companies with a simpler
approach, operating towards (re) building a citizenship or the conformation of bodies to a morally
adjusted and acceptable perspective.

Keywords. Entrepreneurship. Citizenship. Regulation.

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INTRODUÇÃO

O cenário de mutações do capitalismo contemporâneo, considerando as


transformações no regime de acumulação e nas relações produtivas, com a terceirização de
atividades e redução do escopo dos projetos econômicos, promovendo uma regulação própria
para o movimento de pequenos negócios, rela uma tendência no comportamento social,
substituindo o fetiche do emprego pelo da busca do lucro, mesmo que em pequena escala,
oriundo de atividade empreendedora. Assim, até que ponto estaria o Estado brasileiro
oferecendo garantias para o aprimoramento desse movimento através do Simples Nacional
como regime tributário e pela lei e política de promoção do Microempreendedor Individual?
Na percepção da existência de uma lógica capitalista na formatação da dinâmica
social, surgem inquietações sobre a autonomia liberal da ética kantiana e seu referente
imperativo categórico, evidenciando a presença de uma liberdade condicionada pela
participação em uma sociedade do consumo, que prima pelo uso ostensivo de bens ou serviços
que marquem o status hierarquizado no tecido social, marcando a ação “racional” como
instrumento para alcançar uma finalidade não coletiva, mas que satisfaça intenções individuais
de pertencimento pelo consumo. Essa intenção não marca, necessariamente, integração ao
proletariado ou ao corpo produtivo através do trabalho assalariado, mas pela possibilidade de
aplicação de capital diminuto e da atividade empresarial de baia complexidade.
Este artigo representa um esforço na construção de um caminho descritivo das
representações simbólicas das causas e efeitos produzidos pela utilização da formalização
empresarial na condição de Microempreendedor Individual (MEI), inclusive por apenados para
comprovação de “ocupação lícita” e “aptidão para prover à própria subsistência mediante
trabalho honesto”, de acordo com os previstos na Lei de Execução Penal e Código Penal,
respectivamente, com a finalidade de progressão de regime da pena, principalmente do regime
semiaberto para o aberto; ou para remição da pena; ou para alcançar o livramento condicional.
Na busca por representações sociais, identificar o processo de formação da cidadania
brasileira revela uma maneira de perceber como tal cidadania pode sofrer uma análise de (re)
significação em relação ao crime; ao indivíduo que praticou atividades ilegais; ao
empreendedorismo; e ao trabalho. Pois entendemos que a cidadania é composta por dimensões
diversas, sendo o empreendedorismo passível de ser analisado como uma das características
componentes do grupo de garantias mínimas que classificam uma pessoa como cidadã, mesmo
considerando as possibilidades da existência de gradações de cidadania.

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Assim, o aparato normativo para a formalização de atividade empresarial, como


condição de conferir reconhecimento oficial da atividade, constrói o ambiente que possibilita a
transição de condições informais para formais, conformando e institucionalizando indivíduos
sob suas regras, produzindo efeitos pedagógicos sobre os procedimentos de operacionalização
da gestão empresarial. Especificamente no formato Microempreendedor Individual (MEI), que
demonstra regras menos burocráticas, mais disponíveis e flexíveis, o que acabou popularizando
a formalização de pequenos negócios.
A etnografia realizada revela um referencial simbólico na prática dos servidores e
consultores do SEBRAE, que passam a reproduzir a comunicação estratégica para a
formalização e divulgação do MEI como uma política pública de fomento à atividade
empreendedora, sob diversos enfoques de justificativa. As abordagens do tema da
formalização, dos indivíduos apenados e as reações aos desafios de orientação empresarial são
identificados e descritos, bem como a ambientação dos eventos descritos.
As conclusões são preliminares, por se tratar de pesquisa empírica em
desenvolvimento, buscando comparações em comarcas diferentes, com práticas e significados
próprios. Mas as percepções já compõem argumentos no sentido da identificação de um perfil
empreendedor sonegado na tratativa da composição da cidadania, com demonstrações de
reconfigurações de sentidos, percebendo o precariado, o desviante, o outsider e as recentes
transformações na economia brasileira como conceitos presentes na compreensão desse cenário
que conforma os corpos e suas atitudes.

1. EMPREENDEDORISMO E O MEI

O cenário de mutações do capitalismo contemporâneo, considerando as


transformações no regime de acumulação e nas relações produtivas, com a terceirização de
atividades e redução do escopo dos projetos econômicos, traços marcantes do pós-fordismo
segundo David Harvey (1992), o que acaba promovendo uma regulação própria para o
movimento de pequenos negócios, revela uma tendência no comportamento social,
substituindo o fetiche do emprego pelo da busca do lucro, mesmo que em pequena escala,
oriundo de atividade empreendedora. Assim, até que pondo estaria o Estado brasileiro
oferecendo garantias para o aprimoramento desse movimento através do Simples Nacional
como regime tributário e pela lei e política de promoção do Microempreendedor Individual?

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Na percepção da existência de uma lógica capitalista na formatação da dinâmica


social, surgem inquietações sobre a autonomia1 da vontade dos indivíduos ao buscarem a
formalização empresarial, evidenciando a presença de uma liberdade condicionada pela
participação em uma sociedade do consumo, com marcas da Modernidade Líquida conceituada
por Zygmunt Bauman (2005) quando reconhece a condição de redundância de indivíduos
“extranumerários, desnecessários, sem uso”. Quais as regras disponíveis e aplicáveis na
condição de indivíduos que “escolhem” formalizar atividade empresarial rudimentar?
O perfil já não representa mais o papel do trabalhador do período fordista, como parte
integrante de uma lógica produtivista com posicionamentos claros, compondo classes definidas
e demandando atenção específica para demandas do grupo. Mas a noção do desemprego, não
necessariamente como antônimo de emprego, mas na produção de outras buscas e significados,
que primam pelo uso ostensivo de bens ou serviços que marquem o status hierarquizado no
tecido social em posição superior (pretendida) ao lugar ocupadopelo assalariado, marcando a
ação “racional” como instrumento para alcançar uma finalidade não coletiva, mas que satisfaça
intenções individuais de pertencimento pelo consumo.
Essa intenção não marca, necessariamente, integração ao proletariado ou ao corpo
produtivo através do trabalho assalariado, mas pela aplicação de capital na medida de sua
disponibilidade e da atividade empresarial de baixa complexidade. A instituição do formato
empresarial Microempreendedor Individual (MEI) influencia de forma decisiva na
precarização das relações de trabalho na produção capitalista contemporânea no Brasil, na
medida em que o movimento de terceirizações de contratações e subcontratações de mão de
obra oriunda de empresários do formato MEI provoca a sensação de ocupação real, mas sem
vínculo empregatício, deteriorando o conjunto de garantias sociais formais a que teria direito
um funcionário em ocupação análoga dentro do escopo de um empreendimento.
Tal expectativa se dá pela observação preliminar no trabalho de campo realizado,
revelando as contratações de mão de obra na construção civil, por exemplo, como movimento
crescente de contratações de empresários no formato MEI para realização de empreitadas com
tempo predeterminado, nas quais o responsável pela realização dos serviços realiza
subcontratações empresariais para realização da obra, deixando de contratar recursos humanos,
passando a tratar seu contratado como pessoa jurídica, uma empresa formal.

1No conceito de autonomia trazido por KANT (1999), como condição de exercício da liberdade, não instrumentalizada, mas
como regulação da ação moral.

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1.1. ESCLARECIMENTO E A RACIONALIDADE DO MEI

Para Jürgen Habermas (1989), a modernidade inventou o conceito de razão prática


como faculdade objetiva, centrada na filosofia do sujeito, considerando a razão pratica em
contraste com a percepção de felicidade, caracterizada como movimento pelo individualismo.
Para o autor, a autonomia do indivíduo é representação da liberdade do homem, como sujeito
privado, mesmo que membro da sociedade civil, do Estado e do mundo, no sentido mais amplo.
Aí, uma breve confusão com a imagem de um homem geral, que deve ser dissociado do sentido
de um “eu singular”, este último com preservação da relevância de sua história de vida.
O Estado propõe políticas públicas tendo os indivíduos como sujeitos de direito
gerais, inseridos numa lógica mais ampliada que recepciona direitos específicos, dentre eles o
direito de composição e inauguração de empreendimento capitalista. Sem perder o espírito
objetivo presente nos preceitos hegelianos (HABERMAS, 1989), com a unidade da vida em
sociedade na política e na organização do Estado. São indivíduos sociais como parte de um
todo, de uma coletividade. Assim, nas sociedades modernas complexas percebe-se o perfil de
sociedade centrada no Estado, composta de indivíduos cada vez mais individualistas, com
esvaziamento do sentido de solidariedade, com pretensão de autoadministração de forma
democrática.
O poder burocrático do Estado se funde com a economia capitalista e o “homem lobo
do homem” se mostra recorrente nessa modernidade flexível na autoafirmação naturalista dos
indivíduos. E, imerso nesses sentidos, o indivíduo busca pelas escolhas racionais que sejam
funcionais para alcance de suas metas individuais, mesmo que se distancie da racionalidade
prática para orientação de suas escolhas. Mas a preferência por uma condição de liberdade
empreendedora demanda a condição de “esclarecimento” por porte do indivíduo, como “a saída
do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado” (KANT, 1985).
Essa condição de autonomia pressupõe liberdade e esclarecimento, condições nem
sempre disponíveis aos interessados em empreender formalizando suas atividades no formato
MEI, tendo em vista que as regras ficam disponíveis de forma filtrada pelos operadores do
sistema perito específico, que antecede a formalização empresarial. Advogados, analistas e
operadores do sistema de orientação àquele que pretende se inserir no movimento empresarial
formal conservam as informações específicas para realização da formalização MEI, mesmo

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que publicamente disponíveis no Portal do Empreendedor, no sítio digital da Receita Federal


do Brasil dedicado para tal.
Ainda, a avaliação da condição pós-moderna em David Harvey (1992) constrói
cenário que serve como base para compreensões sobre as mutações do capitalismo
contemporâneo e como se dão alterações no tecido social, seja pelas alterações no regime de
acumulação da produção capitalista, seja pelas novas regulações que se ajustam a tais
mudanças. Identificando uma redução no escopo dos empreendimentos capitalistas entre as
décadas iniciais do século XX e os anos que o findaram, saindo de uma lógica fordista,
centralizadora do sistema de tomada de decisões e com domínio direto dos recursos produtivos,
para um formato mais leve, descentralizado e com menores recursos individuais investidos, ou
pulverizados pela abertura de capitais da atividade empresarial na negociação de mercados
futuros.
Essa dinâmica, trazendo efeitos na composição das relações sociais, migrando as
expectativas individuais de parte da população brasileira contemporânea com foco no trabalho,
para a condição de empresário, ou “dono do próprio negócio”, sem a presença do patronato ou
das relações tradicionais que marquem classes proletária e capitalistas. Essa disseminação induz
as escolhas individuais e a ação racional, pretendida por Immanuel Kant (1999) quando tece
sua critica da razão prática, que não deve ter sua moralidade instrumentalizada para que seja
idealizada, mas a busca de uma concepção pela coletividade que se é pretendida.
Ao se perceber a busca de ganhos ou benefícios individuais daquele que age
racionalmente, percebe-se, então, o uso da razão para construção de um cenário propenso à
satisfação de necessidades próprias do individuo. Mas ainda considerando o raciocínio
kantiano, qual é tal autonomia dos indivíduos ao realizarem tal escolha pela atividade
empresarial de baixa complexidade e capitais em detrimento das relações tradicionais do
trabalho? Percebe-se, então, que a regulação da atividade empresarial formal se apresenta como
veiculo de uma vertente heterônoma de coerção social pelo fetiche do status “empresário”,
retirando, assim, a possibilidade de autonomia, liberdade ou esclarecimento dos indivíduos ao
tomarem a decisão, mesmo que de forma individual e subjetiva.
Tal perfil não parece estar perfeitamente enquadrado em nenhuma das classes de
direitos do sistema cunhado por Marshal (1967), ao analisar a construção da noção de cidadania
pela aglutinação de direitos civis, políticos e, por conseguinte, sociais. O autor busca essa
concepção para lógica dos fatos sociais e históricos da Inglaterra, sendo tal ordem de direitos

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diversa na história brasileira, e com lógicas próprias e com perfil de uma “estadania”, ou seja,
uma cidadania garantida pelo Estado e condicionada às intenções do Direito ou de suas
condições (CARVALHO, 2008).
Mais uma vez a autonomia do individuo, pretendida pela ética kantiana, se põe em
contradição. Pois o regramento da condição de cidadania, por si só, já pode demonstrar o
esvaziamento de sentido do indivíduo em produzir o sentido coletivo de suas escolhas racionais,
um condição heterônoma que limita ou normatiza a liberdade individual. Assim, a escolha pela
formalização MEI entrega uma sublógica capitalista, que representa processo de reificação do
sujeito e retirando composição da parte da dimensão da cidadania. Seria mais uma forma
conformação de corpos e (re) produção de um perfil socialmente desejado, do que o exercício
cívico de liberdade de escolhas estratégicas e agir objetivo, com foco no bem coletivo.

1.2 Atualizações sobre o MEI

Somente Microempreendedores Individuais (MEI’s) já somavam mais de 6,5 milhões


de empresas com baixos complexidade e capital investido no mês de outubro de 2016, dos
quais, quase 10% estão cadastrados para desenvolver a atividade de “comércio varejista de
artigos do vestuário e acessórios” (CNAE2 4781400). Consolidando, conforme gráfico 1 a
seguir, mais de 7,3 milhões de empresas formalizadas com opção pelo Super Simples, modelo
inaugurado pela Lei Complementar 128/2008.

2A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) tem o objetivo de padronizar os códigos de identificação das
unidades produtivas do país nos cadastros e registros da administração pública nas três esferas de governo

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8,000,000

7,000,000

6,000,000

5,000,000
Quantidade

4,000,000

3,000,000

2,000,000

1,000,000

0
31-10-2009 31-10-2010 31-10-2011 31-10-2012 31-10-2013 31-10-2014 31-10-2015 31-10-2016 31-07-2017
MEI's 24,982 648,629 1,524,107 2,562,694 3,534,243 4,527,267 5,545,935 6,540,843 7,310,314

Gráfico 1: Evolução da formalização de MEI’s no Brasil


Fonte: (Portal do Empreendedor; organizado pelo autor)

Tal comportamento manifesta a formalização de uma atividade que estava sendo


desenvolvida de forma clandestina, que passou a ser amparada pela norma brasileira, o que não
melhorou, necessariamente, a organização dos empreendimentos dessa natureza, mas tão
somente lhes garantiu registros oficiais da atividade, que continuam com baixo capital, sem
empregar funcionários na maioria dos casos, sem a necessidade de um estabelecimento físico,
entre outros quesitos tradicionais de uma empresa sob o regime de acumulação fordista, por
exemplo, ou sob as características do liberalismo clássico.
Os grandes centros urbanos do Brasil são os que mais formalizam seus indivíduos
nesse formato inaugurado pela LC 128/2008. São Paulo é o Estado com maior quantidade de
MEI’s formalizados, com 1.892.882 (quase dois milhões), representando 26% das
formalizações brasileiras, conforme o gráfico 2, a seguir. Rio de Janeiro é o segundo Estado em
números de formalizações, com 895.807 MEI’s, com um milhão a menos que São Paulo,
representando 12% das formalizações totais. O terceiro Estado, também é componente da
Região Sudeste, Minas Gerais soma 808.140 microempreendedores formalizados,
representando 11% do total brasileiro.
O maior número de formalizações está registrado no CNAE 4781400, na atividade de
“Comércio Varejista de Artigos do Vestuário e Acessórios”, com 664.528 empreendedores
formalizados em todo território brasileiro. A segunda maior ocupação está na CNAE 9602501,
“Cabeleireiros, Manicure e Pedicure”, com 559.853 formalizados para exercer a atividade de

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prestação de serviços. Assim, o comércio e os serviços relatados, somam mais um milhão e


duzentos mil formalizados, representando 16,77% dos totais das formalizações. A terceira
maior ocupação, “Lanchonetes, Casas de Chá, de Sucos e Similares”, CNAE 5611203, observa
209.343 inscritos.

RJ, 895,807, 12%

SP, 1,892,882,
MG, 808,140, 26%
11%

BA, 425,137, 6%

Gráfico 2. Distribuição das formalizações por UF


Fonte: (Portal do Empreendedor; organizado pelo autor).

Percebe-se, então, o perfil capitalista perseguido por quem formaliza atividade


empresarial precária, seja para fugir dos estigmas do proletariado tradicional e alcançar um
status diferenciado mais aceito pela moralidade do consumo, seja para encontrar alternativas à
falta de emprego resultante de políticas sociais ou mesmo do movimento pela redução do
escopo dos empreendimentos do capitalismo contemporâneo. É comum a associação do
empreendedorismo como alternativa à ocupação formal no lugar do emprego, cada vez mais
escasso na organização social da contemporaneidade.
Esse condicionamento demonstra a construção e consolidação de um movimento de
busca por condições formais de se iniciar um negócio ou formalizar atividade empresarial já
em execução. O que se busca é acesso ao crédito, condições de transacionar e contratar com
grandes empresas, ou mesmo com o poder público, bem como acesso aos serviços específicos
para empresas como abertura e manutenção de conta corrente para pessoa jurídica, alvará para
livre funcionamento e obtenção de licenças específicas para determinadas atividades.
Tal movimento estabelece um conjunto de conformações sociais que recepcionam os
interesses difusos e individuais dos cidadãos elegíveis para a formalização empresarial. Apesar
da popularização das medidas de oficialização da atividade empresarial, muitos não podem

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formalizar; ou por executarem atividades não previstas e autorizadas pela legislação para
constituição de empresa no formato MEI ou pela condição individual de vínculo anterior em
sociedade empresarial, por exemplo.
Esse movimento não se encontra dissociado de demais significados e utilidades. A
possibilidade de oficialização de atividades antes consideradas clandestinas cria uma série de
desdobramentos. Entre eles, a utilização dos documentos formais de empresário para a
progressão de regime de apenados ou obtenção de Livramento Condicional, demonstrando que
a apropriação de uma política pública por setores ou grupos sociais pode ser remodelada pelos
significados que empregam e pela utilização que propõem.

2 MEI COMO INSTRUMENTO: A FORMALIZAÇÃO DE APENADOS NO


AMAPÁ

A abordagem da descrição do evento para a formalização de apenados do Instituto de


Administração Penitenciária do Amapá (IAPEN) busca a construção de percepções
criminológicas, que focam no sistema punitivo construído por uma sociedade, bem como nos
efeitos que tal sistema provoca na sociabilidade, com interferência na noção de cidadania e de
empreendedorismo, bem como no reconhecido na legislação que possibilita a formalização de
empresas com uma abordagem mais simples, operando no sentido da (re) construção de uma
cidadania ou da conformação de corpos para uma perspectiva moralmente aceitável.
Tal uso observado no caso remete à percepção de um uso instrumentalizado para a
prática penalista da execução da pena, ou a mera tentativa de gozar de “privilégios”
convencionalmente prestados ao cidadão padrão, considerando a conformação moral ocidental
dado ao trabalhador, no caso brasileiro, especificamente, o empregado como sujeito direitos e
garantias mínimas através de ambiente para o mercado de trabalho. Tal instrumentalização
possibilita a reflexão sobre o tipo de lição vem ofertando a regulação brasileira aos indivíduo
sob suas leis, explicitando o uso da formalização não mais como política para promoção da
atividade econômica, mas um uso diverso, visando satisfação de condição legal para
recuperação de gradação da liberdade.

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2.1. A DESCRIÇÃO DO CASO

A busca por formalização com auxílio do SEBRAE é promovida por campanhas


televisivas e circulação de jingles nas transmissões radiofônicas, alcançando uma massa
relevante da população. É comum o grande movimento de interessados nas modalidades de
formalização de empresas que circulam pelos escritórios SEBRAE em diversos Estados. No
Amapá e no Rio de Janeiro não é diferente. Filas se formam. “Atendimento somente com
agendamento”, dizem técnicos e analistas SEBRAE aos clientes que buscam afoitos por um
auxílio informacional.
Sim, mesmo considerando a sociedade técnico-científico-informacional que
caracteriza a contemporaneidade para Milton Santos (1996), com a disponibilidade de
informações através de meios tecnológicos e com tempos acelerados, a busca por peritos ainda
é muito grande. Levando uma massa a receber orientações filtradas por instituições e modeladas
para atender aos interesses de uma política pública específica: formalizar o maior número de
empresários possível.
Assim, os atendimentos se tornam cada vez mais mecânicos e padronizados, mesmo
os atendentes institucionais sendo treinados para captar a demanda individualizada daquele que
busca por informações. Mas o aumento da demanda e da necessidade de ritmos acelerados de
atendimento produz esse tipo de efeito para a reificação do sujeito, que passa a representar
número para uma lógica produtivista.
Não foi diferente quando chegou um grupo demandando informações para a
formalização de MEI. Um a um, apresentaram todos os documentos necessários para a
realização do cadastro como pessoa jurídica no Portal do Empreendedor. Não demorou para
uma das funcionárias do SEBRAE, pálida, buscar por auxílio, quase um socorro. Ao tomar
conhecimento de que se tratava de uma comitiva, sob a escolta do IAPEN, que buscava
documentos formais para demonstrar ocupação lítica para a Vara de Execução Penal da
comarca.
Um prédio moderno, com instalações imponentes e atendimento especializado para
empreendedores foi o cenário para a dinâmica que se seguiu. Os apenados foram orientados
por funcionários do SEBRAE a seguirem para uma sala onde receberiam atendimento coletivo
por um especialista. Separados do salão principal de atendimento, continuaram nas orientações
para a formalização. Uns formalizaram atividades de encanador, marceneiro ou pedreiro, outros

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como lanchonetes, outros como salão de beleza, entre outras atividades empresariais. Do lado
de fora, logo na entrada principal do prédio, uma equipe operacional de agentes penitenciários,
guarneciam e garantiam a permanência dos apenados no local. Não que o comportamento dos
presos desse algum sinal de tentativa de fulga ou produção de desordem.
Ouvia-se murmurinhos nos corredores sobre o atendimento que ocorria dentro da sala
escolhida para tal. Essa demanda não era recorrente, apesar de informarem vários casos de
apenados que já haviam passado pelo atendimento SEBRAE, mas que não revelavam sua
condição para causar o espanto que estavam causando. Presos anteriores buscaram atendimento
durante gozo de algum indulto e não estavam sob a escolta de agentes. Essa diferença
movimentou os olhares e tirou pessoas de suas cadeiras confortáveis para saber do que se tratava
a presença daqueles “estranhos”.
Afinal, o público apenado não é recorrente no atendimento das agencias de orientação
e formalização. Treinamentos não são realizados para compreensão ou racionalização desses
efeitos sobre o movimento empreendedor. Pensar sobre a formalização MEI como potencial
meio para alcançar uma finalidade penalista, na execução da pena, é uma demanda colateral,
como efeito não planejado para esse uso. Os peritos, que operam o sistema perito para
formalização ou orientação, não carregam essa condição específica para diminuir os riscos dos
patos sociais em relação ao empresariado, mesmo no nível mais baixo de organização.
Esse despreparo ficou evidente na falta de protocolo procedimental para resposta a
esse quesito penal após a formalização. Os olhos e gestos desconfortáveis dos atendentes
habilitados denunciaram o estranhamento, não só das demandas apresentadas pelos apenados,
como pela própria presença dos corpos daqueles indivíduos. A percepção do “outro”, em
contraste ao cotidiano daqueles que frequentemente utilizavam aquele ambiente, evidenciava
uma classificação hierarquizada, bem marcada através da escolha de quem atenderia o apenado,
quais os procedimentos sumaríssimos e especiais eram adotados, com a finalidade de terminar
o atendimento e sem “contradizer o cliente”, como costumava lembrar uma gerente de
atendimento em relação ao trato diferenciado para demandas diferenciadas, especialmente dos
apenados.
Outros procuraram atendimento em outros lugares, ou realizaram a formalização por
conta própria, através do sítio da Receita Federal, próprio para esse autoatendimento, o mesmo
que é utilizado pelos atendentes SEBRAE, mas que apresenta vantagens em relação às
explicações de detalhes que poderiam passar despercebidos. Muitos usuários entram no Portal

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do Empreendedor para buscarem informações, preenchem um formulário eletrônico e acabam


formalizando uma empresa, sem se dar conta dos efeitos sobre suas opções.
O fato aguçou as percepções dos atendentes e da própria instituição, que buscou
confirmação das informações sobre os apenados, percebendo a possibilidade de ressocialização
através do empreendedorismo. De fato, os presos apresentaram os documentos construídos com
o auxílio do SEBRAE para a Vara competente e tiveram suas petições apresentadas pela
representação da Defensoria Pública do Estado do Amapá, alcançando ou progressão de regime
(do semiaberto para o abeto), ou Livramento Condicional. Tais documentos foram essenciais
para comprovação de ocupação lícita, uma vez que não tinham conseguido emprego com
carteira assinada, ou outro trabalho remunerado.

2.2. O SUJEITO-PRODUTO
A construção de políticas públicas através da execução da pena, bem como de seus
operadores nas variadas agências, passando pela manifestação oficial da legalidade de
determinada atividade empresarial, pode ser interpretada como uma possibilidade de controle
sobre comportamento do apenado.
Com a aplicação de intenções evidentes, a hierarquia social também se evidencia, não
somente dentro do cárcere, mas fora dele também. Esse movimento constrói condições de
desigualdade que impendem a competição social de forma livre, deixando alguns indivíduos
em desvantagens em relação a outros. Mudanças na dinâmica social alteram também as
relações dentro do cárcere, numa lógica de interação de causa e efeito, onde um interfere no
outro.
Dario Melossi e Massimo Pavarini (2010) tecem uma crítica ao sistema liberal de
prisão, pois o crescimento do crime foi dada a uma questão: as pessoas não tinham medo da
prisão, ao contrário, elas cometiam pequenos delitos para serem presas e poder ter um lugar
para comer e um lugar menos miserável para dormir. Esse agravamento da luta por
sobrevivência pôs o nível de vida da classe trabalhadora incrivelmente baixo; as massas de
pessoas mais pobres eram conduzidas ao crime no fim do século XVIII e início do século XIX.
Entre os novos métodos na administração carcerária havia um mínimo existencial
para poder prender alguém, contando que esse mínimo fosse mais baixo que o mais baixo nível
existencial do homem livre mais pobre, com a finalidade de promover uma resistência social
ao movimento pela preferência à prisão com garantias do Estado no lugar da miséria livre.
Assim, que seja em uma mínima atitude que fosse considerada criminosa ou um mínimo de

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droga ilícita, por exemplo, o indivíduo livre passaria a não desejar a condição de preso.Na
questão do trabalho carcerário, como não eram mais necessários criar pessoas para trabalhar
para o Estado, foram criados trabalhos inúteis para manter os prisioneiros ocupados nas prisões.
A noção trazida aqui é de que o desenvolvimento econômico gera pobreza, um
conjunto de indivíduos marginalizados, o que demanda políticas de controle social. Essa lógica
está permeada com a ética protestante no cenário dos Estados Unidos. Antes da independência
dos EUA, a pobreza era gerenciada coletivamente pelos mais abastados, mas depois da grande
difusão dos ideais republicanos, os norte-americanos mais pobres eram identificados como
efeitos de suas escolhas que o levaram para longe do sucesso financeiro individual, carregando
sobre si a culpa da pobreza que se encontra, como condição do pouco mérito que não lhe recai
sob os valores liberais. Eis a marginalização da condição de pobreza que demandava controle
social.
O amplo desenvolvimento econômico, associado ao aumento do encarceramento (dos
pobres) demanda soluções mais eficientes. Segundo os autores, a busca por esses sistemas mais
econômicos por parte da administração, associada ao trabalho produtivo no cárcere, provocava
tendências nos mercados, induzindo os preços das mercadorias e da mão de obra, reduzindo os
salários e controlando os preços de produtos estratégicos para a administração. Mas esse esforço
não produzia somente esse efeito mercadológico, mas transmutava homens reais em homens
ideais, em consonância com as necessidades econômicas de uma sociedade voltada para o
modelo produtivo.
Com a aplicação de intenções evidentes, a hierarquia social também se evidencia, não
somente dentro do cárcere, mas fora dele também. Esse movimento constrói condições de
desigualdade que impendem a competição social de forma livre, deixando alguns indivíduos
em desvantagens em relação a outros. Mudanças na dinâmica social alteram também as
relações dentro do cárcere, numa lógica de interação de causa e efeito, onde um interfere no
outro.
Modernidade e consumo são conceitos identificados nos tratados de Zygmunt
Bauman nos textos “modernidade líquida” (2001), “vida para o consumo: a transformação das
pessoas em mercadorias” (2008), e “vidas desperdiçadas” (2005). Para o autor, nunca houve
tanta transação em sociedades pré-modernas, com as relações fixadas em estruturas
culturalmente construídas, com sociabilidades conhecidas e previsíveis. Mas os “riscos
líquidos”, próprios da modernidade descrita por Bauman (2001), a questão dos sistemas peritos

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propõe uma resposta como diminuição das percepções desses riscos, com indivíduos passando
a exercitar a fé, não especificamente no perito, mas na perícia utilizada no sistema, passando o
indivíduo a representar seu conhecimento e posição pericial.
Não é diferente no quesito empresarial. Ao buscar a formalização de seu
empreendimento, o MEI absorve pra si uma marca de uso dentro do sistema perito, sinalizando
aos seus usuários ou clientes que podem depositar parte de sua fé, ou confiança, em operar a
modernidade através do consumo. O mínimo de riscos é ainda observado no sistema perito,
mas os menores riscos dentre as opções disponíveis, são aqueles com maior possibilidade de
ser absorvido pelos consumidores. Assim, a lógica de demonstração de conformidade com as
expectativas de um mercado transacional conforma a percepção do indivíduo que ocupa espaço
de oferta de produtos ou serviços, transformando ele próprio em um produto, uma confirmação
da tecnicidade pretendida no sistema perito.
Giddens (1991) constrói uma percepção dos elementos da modernidade, dentre eles a
desconfiança na modernidade, mas contrapondo a confiança nos sistemas peritos como critério
indispensável para a vida moderna e sua operacionalização. O autor percebe bases sólidas para
que a sociabilidade ocorra, com uma classificação pós-tradicional não centrada na tradição, mas
ainda moderna. Em Bauman (2001), essa modernidade não encontra bases sólidas, mas se
apresenta de forma líquida, que escorre entre os dedos e está em lugar algum. Assim, a natureza
impessoal da modernidade induz um alongamento do sistema de relações sociais, com base na
crença ou confiança no sistema perito e suas operações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os apontamentos encontrados até este ponto da pesquisa são no sentido de que a


lógica capitalista induz um comportamento empreendedor nos indivíduos, que fazem escolhas
que afastam da condição de empregado “com carteira assinada”, impulsionando-os a alcançar
outro status na hierarquia social, buscando a identificação como “empresários”, mas através de
empreendimentos de baixa complexidade que lhe entregam um rendimento baixo e que
aumenta pouco o capital aplicado ao negócio, sendo utilizados por empreendimentos com
maior capital através de subcontratações e terceirizações, seguindo a lógica de um regime de
acumulação flexível, inerente ao capitalismo contemporâneo.

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Percebe-se, então, o perfil capitalista perseguido por quem formaliza atividade


empresarial precária, seja para fugir dos estigmas do proletariado tradicional e alcançar um
status diferenciado, pretensamente majorado, seja para encontrar alternativas à falta de emprego
resultante de políticas sociais ou mesmo do movimento pela redução do escopo dos
empreendimentos do capitalismo contemporâneo. É comum a associação do
empreendedorismo como alternativa à ocupação formal no lugar do emprego, cada vez mais
escasso na organização social da contemporaneidade.
Pretende-se avançar nos achados de campo, identificando as estruturas de Direito
disponíveis em e como produzem um comportamento empreendedor entre seus indivíduos.
Não somente a formatação jurídico-legalista como estrutura estruturante sobre a formalização
da atividade empresarial, mas a comparação de diferentes dimensões cidadanias e qual o lugar
ocupado pelo empreendedorismo na contemporaneidade.
Mas já se pode considerar a concepção de Dario Melossi e Massimo Pavarini (2010),
no livro Cárcere e Fábrica, o cárcere desempenha um papel para domesticar o desviante para
desempenho de funções especificas para o interesse de uma sociedade produtivista. Não
somente promove a mutação antropológica, domesticando o sujeito, mas bestializando seu
corpo, maltratando-o até conseguir alcançar os objetivos da administração, pela subordinação
econômica e ética pretendida, o que se legitima pela internalização de tais aspectos. Nesse
processo punitivo, criminoso e preso são tratados da mesma forma, pois pertencem ao mesmo
grupo social, esvaziado de valor econômico e que demandam intervenção da política de
controle social.
Com a mesma lógica apresentada para labor, pode-se perceber que o movimento para
a formalização de atividades empresariais rudimentares pode estar no cerne inconsciente do
esforço social e produzir e reproduzir percepções de uma cidadania empreendedora, não mais
associada exclusivamente ao emprego formal, mas à condição de um sujeito empreendedor,
digno de gozar de status da estrutura social do consumo, gerando, fornecendo e facilitando o
consumo de outros indivíduos, principalmente satisfazendo necessidades metropolitanas, mas
também sendo agente ativo do consumo, garantindo a marca de sucesso na contemporaneidade.
Assim, a produção de um efeito sobre o sujeito não estaria na conformação de seus
corpos para o trabalho, como antes do refinamento das características da modernidade, mas
satisfazendo um perfil de regime de acumulação flexível, com regras maleáveis e dominação
dos interesses individuais sobre os coletivos. Representando uma maneira alternativa de

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construção da cidadania, seja pela apropriação dos objetivos estratégicos que instituíram o MEI,
seja pelo uso diverso com foco em benefícios não necessariamente empresarias. Ainda assim,
a percepção de autonomia não resta presente, uma vez que o regramento heterônomo que
promove ambiente para as escolhas tuteladas.

BIBLIOGRAFIA

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KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1999.

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Realidade social: preso pode progredir de regime sem comprovar trabalho. REVISTA Consultor Jurídico, mar.
2013. Acesso: 10 jul. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-mar-07/progressao-regime-nao-
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SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

466
A ARMADILHA AUTORITÁRIA E O ESTADO DE EXCEÇÃO:
AS LIÇÕES DE CARL SCHMITT

MENEZES, Wellington Fontes


Estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense (PPGSD/UFF)

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo adentrar na análise do pensamento do jurista e filósofo político
alemão, Carl Schmitt, e suas contribuições para o campo da Política e do Direito. Particularmente, duas
obras serão destacadas “Teologia Política” (1922) e “O Conceito do Político” (1932). Na natureza da
análise política de Schmitt predomina o autoritarismo como forma de manifestação máxima do soberano.
Por sinal, a soberania é um conceito essencial para o pensamento schmittiano e o qual coloca o Direito
em um plano inferior, uma vez que o soberano é quem decide sobre a aplicação material do estado de
exceção, ou seja, uma zona nebulosa entre a democracia e o absolutismo. Ademais, seu pensamento se
torna atual e merece ser analisado, na medida em que se observa uma evolução degenerada das
democracias ocidentais que fazem concessões para o fascínio do autoritarismo, caindo em uma sedutora
armadilha de difícil saída.

Palavras-Chave. Carl Schmitt; Estado de exceção; Soberania.

ABSTRACT

The present work aims at analyzing the thinking of German jurist and political philosopher, Carl
Schmitt, and his contributions to the field of Politics and Law. Particularly, two works will be highlighted
"Political Theology" (1922) and "The Concept of the Political" (1932). In the nature of Schmitt's political
analysis, authoritarianism predominates as the ultimate manifestation of the sovereign. By the way,
sovereignty is an essential concept for Schmittian thought and which places Law on a lower plane, since
the sovereign is the one who decides on the material application of the state of exception, that is, a
nebulous zone between democracy and absolutism. In addition, his thinking becomes current and
deserves to be analyzed, as one observes a degenerate evolution of the western democracies that make
concessions to the allure of authoritarianism, falling into a seductive trap of difficult exit.

Keywords. Carl Schmitt; State of exception; Sovereignty.

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INTRODUÇÃO

A Política entre os homens é uma construção dinâmica. Para além do “animal


político”, descrito por Aristóteles, compreende-se aqui a “macropolítica”, como sendo aquela
que envolve agentes governamentais, Estado, sociedade, intenso emprego de recursos materiais
e humanos; é essencialmente de uma natureza estratégica, tática e, predominantemente, movida
por um senso de dinamismo próprio dos interesses factuais e conjunturais de pessoas ou grupos
envolvidos.
A capacidade de reflexão é cada vez mais pertinente no mundo atual, diante de uma
dinâmica de fatos e informações que fomentam ideologias e uma suposta racionalidade dos
agentes econômicos marcadamente pela imposição do modelo capitalista de produção material
e psicológico. Não é possível projetar o século XXI sem entender suas bases, os seus alicerces,
seu estofamento de mundo oriundo de meados do século XIX.
Na renovação das democracias modernas que soerguem com o colapso dos últimos
impérios que ainda resistiam na Europa após a Primeira Guerra Mundial, moldaram-se novas
práticas de administração da política, com o advento da força dos Parlamentos, minimizando o
poder centralizado de um soberano. Talvez a Alemanha seja o melhor exemplo deste fato. Após
a queda do Imperador Guilherme II, em 1918 e a instauração da República de Weimar e sua
forma semipresidencialista de governo, ocorre uma divisão de poderes entre o presidente, o
chefe de Estado (Reichspräsident), o gabinete do chanceler da República (Reischkanzler) e o
parlamento (Reichstag). O modelo da República de Weimar se constitui em uma forma pouco
conhecida dos alemães e não foi por acaso tamanha instabilidade da experiência republicana, o
que culminou na restauração de um novo império, o III Reich, com Adolf Hitler no comando,
em 1933.
O próprio Carl Schmitt, autor central deste presente trabalho, um contemporâneo de
observação privilegiada, passaria a criticar este sistema de governo da República de Weimar.
O “espírito do autoritarismo” como plataforma de governabilidade permeava as formas de
entender a política, por sinal, crucial nos anos 1920 até meados dos anos 1940 e, por sua vez,
pode-se dizer que nunca deixou de estar presente direta ou indiretamente nas formas de governo
até os nossos dias.
Carl Schmitt, jurista, filósofo político e professor universitário, conquistou muita
influência na academia e intelectualidade alemã; foi um dos grandes nomes do seu tempo e
escreveu suas principais obras no período entre guerras. Sua trajetória foi motivo de muita

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controvérsia assim como a natureza do seu pensamento. Schmitt encontrou no ideário


autoritário, em consonância com a sua ojeriza pela via liberal de fazer política, um instrumento
efetivo de poder, persuasão e domínio por parte do soberano. Schmitt aderiu ao nacional-
socialismo se filiando ao partido nazista de Hitler em 1933. Seu ingresso nas fileiras nazistas se
deu mais por conveniência e oportunismo de carreira, do que propriamente por convicções ou
simpatia perante o comandante supremo dos nazistas. Ao final da guerra, ficou preso em um
campo de concentração após ter sido capturado pelos russos e Aliados, vencedores, assim como
muitos dirigentes do derrotado III Reich. Nunca foi comprovado nada sobre sua conduta de
crimes no período nazista e, por causa disso, foi absolvido no Tribunal de Nuremberg, seguindo
sua vida universitária até o falecimento, em 1985. Todavia, Schmitt nunca se retratou
publicamente e tampouco pediu algum tipo de desculpas por seu envolvimento ou engajamento
com as atrocidades nazistas.
Na análise política, não cabe situar ou demandar moralismos sem levar em contar a
dinâmica dos fatos e suas reais conjunturas e, de forma mais pragmática, não cair em análises
viesadas que criam mais névoa do que esclarecimento. Schmitt foi um pensador do seu tempo
e isto não deve ser objeto, em si, de degradação moral como muitos autores fazem em
“demonizar” os escolhidos por suas ações contextualizadas. No entanto, isto não omite o sujeito
de eventuais culpas passionais, mas o presente trabalho não tratará desta atmosfera psicológica.
Logo, Smith buscou fazer da análise teórica um subsídio para a ação política. Por sinal, teoria
política e ação política são dois campos fundamentais e, paradoxalmente, de difícil execução
de uma práxis material (teoria/ação). Possivelmente, no século XX, o grande construtor da
amálgama teoria/ação foi o teórico político russo Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido
como Lênin, o principal líder bolchevique que levou à frente a custosa e seminal Revolução
Russa de 1917, atravessando a turbulenta guerra civil russa (1917-1922), e instalando na União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) um novo paradigma de mundo e administração
do poder.
Para este trabalho, foi analisada a construção refinada de duas obras seminais do
pensamento schmittiano: “Teologia Política”, de 1922, e “O Conceito de Político”, de 1932. O
primeiro, posterior à assinatura do Tratado de Versalhes e sua aceitação pela Assembleia de
Weimar, em 1919, o qual impôs terríveis condições para a derrotada Alemanha, por parte dos
vencedores Aliados e, em partilhar, as “reparações de guerra” e a sofrer as humilhações que
foram exploradas por todos aqueles críticos da República de Weimar, desde o campo das

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esquerdas (socialdemocratas e comunistas) quanto o da direita e seus extremos. O segundo, foi


escrito no ano de ingresso de Schmitt no partido nazista e da ascensão de Hitler ao cargo de
chanceler da Alemanha e início oficial da escalada megalomaníaca do III Reich.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1. A SOBERANIA E A EXCEÇÃO EM CARL SCHMITT

No prefácio da segunda edição de “Teologia Política”, escrito em 1933, Schmitt fez


uma breve síntese do enquadramento da política frente à sua participação direta na orquestração
do Estado monárquico até a sua defesa da teologia da soberania “total”:

A “representação”, que durou do século XV até o século XIX, a monarquia do século


XVII, cujo soberano era imaginado como o Deus da filosofia barroca, o “neutro” do
século XIX, “qui règne et ne gouverne pas” (que reina e não governa) e até as ideais
do Estado dispositivo e administrativo puro “qui administre et ne gouverne pas” (que
administra e não governa), são também alguns exemplos da fecundidade do
pensamento de uma teologia política. [...] nós conhecemos o “político” como o
“total”, por isso sabemos também que a decisão, mesmo sendo algo apolítico,
representa sempre uma decisão política, independente de quem ela atinge e que
roupagens ela assume para se justificar: Isso também vale quando se quer saber se
uma determinada teologia é política ou apolítica. (SCHMITT, 1933/1996, p. 83-84)

Ainda sobre o prefácio da segunda edição de “Teologia Política”, Schmitt classifica


em três os tipos de pensamento jurídico-científico: o normativo, o princípio decisório e o
institucional:

Enquanto o pensamento normativista puro mantém-se dentro de regras impessoais e


o do principio decisório, aplica o “bom direito” da situação política corretamente
compreendida, transformando-o numa decisão pessoal, o pensamento jurídico-
institucional desdobra-se em instituições e configurações suprapessoais. E, o
normativista, em sua descaracterização, transforma o direito num mero modus
funcional de uma burocracia de Estado, e o do princípio decisório corre sempre o
perigo de perder, através da funcionalização do momento, o “ser” que repousa em
todo grande movimento político, um pensamento institucional isolado leva ao
pluralismo de um crescimento sem a soberania corporativo-feudal. Dessa maneira,
as três esferas e elementos da unidade política “Estado-movimento-povo”, podem
ser classificados tanto em suas formas salutares quanto nas descaracterizadas, nos
três tipos de pensamento jurídico. (SCHMITT, 1933/1996, p. 84, grifo do autor)

Vale salientar que as reflexões e análises de Schmitt estavam sendo calcadas na visão
da Alemanha da República de Weimar, assim segue a aplicação dessas doutrinas na pátria do
autor:

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Os assim chamados positivismo e normativismo da doutrina alemã do direito de


Estado da era guilhermínica e da República de Weimar são só um normativismo
contraditório em si, degenerado (porque em vez de fundamentado num direito natural
ou da razão, está ligado a normas de valor meramente factual), misturado a um
positivismo que era só um princípio decisório degenerado juridicamente cego,
apoiado na força normativa do “factual” e não na autêntica decisão. A mistura sem
forma, ou de forma ineficaz, não estava à altura de um problema sério de direito de
Estado e de Constituição. A última fase das ciências alemãs de direito de Estado
caracteriza-se pela falta de resposta do caso decisivo do conflito constitucional com
Bismarck na Prússia e, consequentemente, também da resposta a todos os outros
casos decisivos. Para evadir-se da decisão, o direito de Estado apregoou uma norma
que se voltou contra ele mesmo e que desde então usa como lema: “O direito de
Estado termina aqui”. (SCHMITT, 1933/1996, p. 84-85)

Ficou consagrado na literatura, o conceito-chave schmittiano sobre o “Estado de


exceção” que abre a “Teologia Política” e funciona como uma espécie de “mantra” no
pensamento do jurista alemão: “Soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção”
(SCHMITT, 1933/1996, p. 87). Tal afirmação é apenas uma introdução formal, mas é a tese
central do livro. A partir dela, Schmitt desenvolverá tal conceito ao longo de seu trabalho, dando
destaque de sobremaneira ao papel fulcral do soberano e ao conceito-chave do “Estado de
exceção”:

O fato de se entender o Estado de exceção como um conceito genérico da doutrina


de Estado, e não como qualquer situação emergencial ou Estado de sítio [...]. E o fato
também de o Estado de exceção, no sentido eminente, ser adequado para a definição
jurídica de soberania, tem uma razão sistemática lógico-jurídica. (SCHMITT,
1922/1996, p. 84)

Uma questão que merece destaque no pensamento schmittiano é que “soberania é o


ponto culminante do poder, e não o desvio do poder” (SCHMITT, 1933/1996, p. 88). Neste
sentido, Schmitt busca traçar um panorama conceitual para a exposição de suas ideias diante
da turva questão de tipificar o Estado de exceção dentro de um “estado emergencial”: “Não se
pode determinar com clareza precisa quando ocorre um caso emergencial, como também não
se pode enumerar o que pode ser feito nesses casos, quando se trata realmente de um caso
emergencial extremo que deva ser eliminado” (SCHMITT, 1922/1996, p. 87).
Diante da imprecisão do Estado de exceção, por ser um mecanismo plasmado para
além dos contratos jurídicos e constitucionais, Schmitt afirma que seu território de atuação está
além do Estado de direito:

A Constituição, no máximo, menciona quem pode tratar da questão. Se esse


tratamento não se subordinar a nenhum controle, então não se distribuirá (como na
prática da Constituição do Estado de direito) de alguma forma entre as diversas

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instâncias mutuamente restritivas e balanceadoras: assim e evidenciará claramente


quem é o soberano. Ele não só decide sobre a existência do Estado emergencial
extremo, mas também sobre o que deve ser feito para eliminá-lo. Ele se situa
externamente à ordem legal vigente, mas mesmo assim pertence a ela, pois é
competente para decidir sobre a suspensão total da Constituição. Todas as tendências
do desenvolvimento do moderno Estado de direito são no sentido de eliminar o
soberano. (SCHMITT, 1922/1996, p. 88)

Schmitt recupera as ideias de Jean Bodin1 contidas em seu volumoso e seminal


trabalho “Os seis livros da República”, em 1576, o qual se desdobra sobre o conceito de
soberania do seu tempo, ou seja, o caso material do Estado de Exceção, em outras palavras, o
“caso crítico” assinalado pelo jurista alemão:

Ele [Jean Bodin] é o início da moderna doutrina do Estado, muito menos por causa
da sua sempre citada definição (“la souveraineté est la puissance absolute et
perpétuelle d’une republique” – a soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma
República) do que pela sua doutrina dos “vraies remarques de souveraineté” (sinais
verdadeiros de soberania; cap. X do primeiro livro de A república) (SCHMITT,
1922/1996, p. 89).

Enfatizando, uma questão crucial para Schmitt é sua busca por uma legitimação de
um conceito tão crítico, polêmico e oscilante entre o objetivo e o subjetivo para a percepção do
soberano e, na mesma medida, nas pretensões dele das formas mais variadas de atrelamento ao
poder e seus limites reais de atuação. Schmitt retorna a Bodin onde analisa tais comportamentos
possíveis do soberano e seus compromissos com as corporações:

Bodin [...] diz que as promessas são compromissos porque a força do compromisso
de uma promessa repousa no direito natural. Mas, no caso emergencial, o
compromisso segundo fundamentos naturais genéricos acaba. Geralmente, diz ele,
diante das corporações ou do povo, o príncipe só é obrigado a algo na medida em
que o cumprimento da sua promessa é de interesse do povo; mas ele não permanece
ligado ao compromisso se “la necessite est urgente” (se a necessidade é urgente).
Esse é, na verdade, o fator mais marcante de sua definição, que considera a soberania
uma unidade indivisível e decide definitivamente a questão do poder do Estado.
(SCHMITT, 1922/1996, p. 89)

1
Jean Bodin (1530-1596) passou por uma formação entre os campos da Teologia, Direito e Política e escreveu em 1576 sua
primeira edição de “Os seis livros da República”, tal como afirmou LENZ (2004, p. 119): “o florentino de formação humanista,
pretendeu, a partir de leituras dos escritos antigos, mesclados à sua experiência nas atividades políticas, escrever uma orientação
para os dirigentes políticos”. Bodin tinha uma preocupação em escrever propostas para o uso na prática da política, visando à
manutenção da ordem pública. Neste quesito, pode-se encontrar semelhanças na natureza objetiva da realidade entre Bodin e
Schmitt. Desta forma, o âmago das interlocuções de Bodin dentro do campo jurídico-político consistia no diálogo entre “[...]
questões teóricas, práticas políticas, administrativas e constitucionais devidamente relacionadas à economia política” (LENZ,
2004, p. 120). Bodin sujeita a Economia ao plano da Política, uma vez que pregava que o soberano teria o controle sobre “câmbios
e moedas, pesos e medidas, tributação interna e externa” (LENZ, 2004, 129). É importante salientar que Bodin foi um homem do
seu tempo histórico e o seu livro foi escrito no seio de intensas contendas teológicas, grandes conflitos políticos e assassinatos em
meio às guerras religiosas (LENZ, 2004).

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A introdução da soberania no livro de Bodin despertou historicamente o interesse dos


analistas a respeito do papel desempenhado pelo soberano. Bodin não apenas foi o pioneiro,
mas se tornou um pensador paradigmático com relação às pertinentes questões que envolvem
o conjunto da ação/controle do poder por uma autoridade:

Hoje quase não existe uma explicação para o conceito de soberania no qual não
apareça essa citação de Bodin. Mas em nenhum lugar encontramos a citação do
trecho essencial daquele capítulo de A república. Bodin pergunta se as promessas
que o príncipe faz às corporações ou ao povo anulam sua soberania. E responde
apontando o caso em que se torna necessária a transgressão dessas promessas,
modificações ou anulações das leis, “selon l’exigence des cas, des tempos et des
personnes” (segundo a exigência de cada caso, da época, e das pessoas). Se, num
caso assim, o príncipe tiver que consultar previamente o Senado ou o povo, então ele
terá que dispensar-se de seus súditos. (SCHMITT, 1922/1996, p. 89-90)

Para a análise de Bodin, segundo Schmitt, haverá um impasse entre o desejo do


soberano e todos aqueles que não estariam com a incumbência de exercer a soberania, sem criar
conflitos ou dualidades onerosas. Sendo assim, “[...] o poder de suspender a lei vigente – em
geral ou em casos isolados – é a característica verdadeira da soberania” (SCHMITT,
1922/1996, p. 90), consequentemente, Bodin considera derivarem, a partir deste preceito, todos
os outros poderes (entre eles, entre outras atribuições, estaria a declaração de guerra e paz,
nomeação de funcionários e até mesmo o direito de induto).
Desta maneira, pode-se entender que para Bodin, a Lei seria uma espécie de
“acessório opcional” do soberano pelo qual ele poderia seguir suas normas conforme seus
desígnios subjetivos em nome dos interesses do Estado personificando a necessidade ou desejo
do próprio soberano. Havia um entendimento, na avaliação de Schmitt (1922/1996, p. 90), que
“[...] a questão da soberania era entendida como a questão de decisão sobre o caso de exceção”.
Portanto, segundo Schmitt (1922/1996, p. 90) , “[...] cada ordem baseia-se numa decisão, e o
conceito da ordem jurídica, aplicado como algo natural, também contém em si mesmo a
oposição dos dois diferentes elementos do jurídico. Até mesmo a ordem jurídica, como toda
ordem, baseia-se numa decisão e não numa norma”. Schmitt foi um pensador da “práxis
política”, ou seja, buscou simultaneamente elaborar suas análises com uma visão de
aplicabilidade no mundo material.
Sob o auspício das Constituições dos Estados Modernos, destaca-se aquela produzida
pela Alemanha que levou o nome de “Constituição da República de Weimar”. Uma Carta com
muitas inovações paradigmáticas, dentre elas um artigo exclusivo pelo qual o presidente do

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Reich poderá impor o Estado de exceção sob controle do Parlamento e, por sua vez, poderá
exigir a sua imediata suspensão conforme desejar:

Artigo 48 – Se um Land não executar as obrigações que lhe incumbem pela


Constituição ou pelas leis, o presidente do Reich pode obrigá-lo a isso com a ajuda
da força armada. No caso em que, no Reich, a segurança ou a ordem públicas, forem
sensivelmente ameaçadas para restabelecimento da segurança e da ordem públicas,
empregando se for o caso a força armada. Com esse objetivo, pode suspender no todo
ou em parte os direitos fundamentais reconhecidos nos artigos 114, 115, 117, 118,
123, 124 e 153. O Reichstag deve ser informado sem demora de todas as medidas
tomadas com respeito ao item 1 ou 2 desse artigo. A pedido do Reichstag essas
medidas são anuladas. No caso do perigo iminente, o governo de um Land pode
aplicar as medidas previstas no item 2. Elas são suspensas por solicitação do
Reichstag ou do presidente do Reich. (KLEIN, 1995, p. 93)

Schmitt busca interpretar tal artigo como uma forma de testar a legitimidade e
consistência dos Estados constituintes do Reich Alemão:

De acordo com a interpretação predominante do artigo 48, quando qualquer um dos


Estados não possuir mais nenhum poder independente para declarar o Estado de
exceção, então não será mais considerado um Estado. É no artigo 48 que está o ponto
crucial da questão, se os territórios alemães são Estados ou não. Havendo a
possibilidade de circunscrever os poderes conferidos nos casos de exceção por meio
de um controle mútuo ou de uma restrição temporal ou, finalmente, como uma
regulamentação feita pelo Estado de direito para o Estado de sítio, por meio da
enumeração dos poderes extraordinários – então a dúvida sobre a soberania recua um
pouco, mas naturalmente ainda não é afastada. (SCHMITT, 1922/1996, p. 92)

O impasse surge entre como poderia se concretizar ou materializar o estado de


exceção, abrindo espaço para elaborações particulares, interpretações equivocadas ou
ambíguas. Schmitt se preocupa em desfazer as ambiguidades que poderiam ser derivadas de
uma jurisprudência “deturpada”, ou seja, não condizentes com o ideal de soberania schmittiano:

Diante de um caso extremo, ela se sente confusa, pois nem toda atribuição
excepcional, nem toda medida ou ordem emergencial policial é um Estado de
exceção. É preciso muito mais do que isso para a atribuição de um poder em princípio
ilimitado, isto é, capaz de suspender toda a ordem vigente. Assim que essa condição
se instala, torna-se claro que o Estado continua existindo, enquanto o direito recua.
(SCHMITT, 1922/1996, p. 92)

Este é um ponto essencial na obra de Schmitt, a consideração da suspensão do Estado


de direito e de todas as suas garantias constitucionais para um estado emergencial, ou seja, o
Estado de exceção. A imposição do Estado de exceção seria então, pela lógica schmittiana, uma
medida excepcional de defesa do próprio Estado, buscando livrá-lo de quaisquer desordens ou
caos que supostamente ameaçaria a soberania do Estado e a própria figura do Soberano,

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invocando o direito à autopreservação do Estado. Nesta mesma passagem na “Teologia


Política” de Schmitt, temos uma clareza do dispositivo totalitário em seu âmago. A criação de
poderes “totais” do Estado de exceção contra tudo e contra todos aqueles que o soberano eleger
como “inimigo”. Posteriormente, será comentando outro conceito-chave schmittiano que é a
correlação “amigo/inimigo”. Doravante, fica claro aqui o descolamento do elemento político
de qualquer entrave do jurídico.
O político se torna um elemento totalizante nas análises de Schmitt, em nome da
“ordem” serão suprimidos todos os demais preceitos que regem o Estado de Direito. A vontade
do soberano se funde com a natureza de aplicação da ordem visando uma suposta eliminação
do caos. Neste sentido, Schmitt permite uma leitura na qual o jurídico, ou seja, o Estado de
Direito, é incapaz de organizar um Estado em momento de clímax, onde o “caos reinaria”.
Sendo assim, o limite da norma se posicionaria no início do caos e para impor-se diante da
desordem, o soberano invocaria o estado de exceção:

Não existe norma aplicável no caos. A ordem deve ser implantada para que a ordem
jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, o soberano é aquele
que decide, definitivamente, se esse Estado normal é realmente predominante. Todo
direito é um direito “situacional”. O soberano cria e garante a situação como um todo,
em sua totalidade. Ele detém o monopólio dessa última decisão. É nisso que reside a
essência da soberania estatal que, portanto, define-se corretamente não como um
monopólio da força ou do domínio, mas juridicamente, como um monopólio da
decisão, em que a palavra “decisão” é empregada num sentido genérico, passível de
um maior desdobramento. O caso da exceção revela com a maior clareza a essência
da autoridade estatal. Nesse caso, a decisão distingue-se da norma jurídica e
(formulando-a paradoxalmente) a autoridade prova que, para criar a justiça, ela não
precisa ter justiça. (SCHMITT, 1922/1996, p. 93)

Nesta passagem acima, pode-se perceber a natureza totalitária do arcabouço teórico


de Schmitt na sua “Teologia Política”, revelando-se de forma sedutora e convidativa para um
soberano que deseja controle máximo. O desejo do Pai da horda primeva, um pai mítico, um
elemento fundante da Psicanálise Freudiana, fomentadora da estrutura neurótica, do qual
ninguém escapa e se mostra possível mediante a configuração de proteção total de um pai
agressivo. Utilizando-se de uma analogia, o soberano se constitui como o grande pai desta
horda, o qual se torna uma figura mítica perante seus súditos e estes, por sua vez, cumpre a zelar
pela imagem do pai, reprimindo desejos em nome da ordem social (FREUD 1912-13/1996).
Schmitt faz uma crítica àqueles que não compreenderam a racionalidade política do
Estado de exceção. Entre eles, temos John Locke, Immanuel Kant e, particularmente, o

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desafeto, Hans Kelsen que, segundo Schmitt, trazem como elemento comum é não
conseguirem observar as potencialidades inatas do caso da exceção:

Para a doutrina do Estado de direito de Locke e o pensamento racional do século


XVIII, o Estado de exceção era algo incomensurável. A consciência viva do
significado do caso de exceção, predominantemente no direito natural do século
XVII, perdeu-se no século XVIII, quando passou a imperar uma ordem relativa, mais
duradoura. Para Kant, o direito emergencial não é nem mais direito. A doutrina atual
do Estado mostra o interessante jogo em que ambas as tendências, a indiferença
racionalista e o interesse pelo caso emergencial, derivadas de ideias essencialmente
opostas, estão simultânea e reciprocamente contrapostas. É compreensível, por
exemplo, que um neokantiano como Kelsen não soubesse o que fazer com o Estado
de exceção. Mas os racionalistas deveriam ver-se interessados também em saber que
a própria ordem jurídica pode prever o Estado de exceção e “suspender a si mesma”.
(SCHMITT, 1922/1996, p. 93)

Ainda prossegue a crítica de Schmitt à Kelsen, um dos seus principais rivais


intelectuais do seu tempo:

Kelsen resolve o problema do conceito de soberania simplesmente negando-o. a


conclusão de suas decisões é: “O conceito de soberania deve ser radicalmente
reprimido” [...]. Na prática, essa é a velha negação liberal diante do direito e o desdém
pela questão independente da concretização do direito. (SCHMITT, 1922/1996, p.
99)

Ademais, Schmitt fez questão de distinguir o caso da exceção dos elementos


anárquicos, sendo que o primeiro possui a racionalidade política tão cara à análise schmittiana:

Mas como unidade e a ordem sistemáticas poderiam se auto-suspender num caso


concreto é algo difícil de conceber, e continua sendo um problema jurídico de
qualquer espécie de anarquia. A tendência do Estado de direito de regulamentar
detalhadamente o Estado de exceção representa a tentativa de circunscrever o caso
no qual o direito se suspende a si mesmo. (SCHMITT, 1922/1996, p. 93)

Há uma passagem muito sintomática do fascínio de Schmitt pelo caso da


excepcionalidade política, ou seja, sua admiração indisfarçável pelas práticas que interrompem
o fluxo da continuidade normativa com seus ritos e preceitos. Schmitt é enfático ao assinalar
que prefere a excepcionalidade à norma: “A exceção é mais interessante que o caso normal. O
normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra
vive só vive da exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de uma mecânica
cristalizada na repetição” (SCHMITT, 1922/1996, p. 94).
A despeito da lei, Schmitt é muito enfático quanto à natureza do seu processo como
uma construção política e não normativa: a decisão é o que importa sobre a legislação: “O que

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importa para a realidade da vida jurídica é quem decide. Ao lado da questão do conteúdo correto
surge a questão da competência. Na oposição entre o sujeito e conteúdo da decisão e no
significado intrínseco do sujeito é que reside o problema da forma jurídica” (SCHMITT,
1922/1996, p. 108).
Entre muitas análises controversas de Schmitt à luz do século XXI, mas que ainda
resistem como expressões sedutoras em momentos de fragilidade do arcabouço democrático
de muitos Estados, tanto na sua legitimidade, quanto da sua representatividade, há a Teologia
se aproximando da Política, quase como processo de justaposição, de forma a construir um
desejo de “verdade”, conforme a visão schmittiana. Daí o título “Teologia Política” não é
apenas batismo do terceiro capítulo do livro, o qual leva mesmo nome do título, mas mais um
elemento conceitual das elaborações de Schmitt (1922/1996, p. 109): “Todos os conceitos
expressivos da moderna doutrina de Estado são conceitos teológicos secularizados. [...] Para a
jurisprudência, o Estado de exceção possui um significado análogo a do milagre para a
teologia”.
Assim, segundo uma analogia teológica da ação decisiva por parte do soberano cuja
influência se transfere na ação do Estado em sua amplitude total. A análise de Schmitt
(1922/1996, p. 110-111) tem como pressuposto teológico que: “O Estado interfere em todos os
lugares como um ‘Deus ex machina’ decidindo uma controvérsia por meio da legislação
positiva [...] [por consequência] o Estado age sob várias roupagens, mas continua sempre como
aquela mesmo pessoa invisível”.
Pode-se encontrar nessa passagem da “Teologia Política” de Schmitt, uma analogia
da “mão invisível” do mercado preconizada na alegoria de Adam Smith, na sua ideia de
mercados autorreguláveis que foi seminal nos alicerces da ideologia capitalista. Em ambas as
construções análogas, temos o misticismo de um agente onipresente, o “mercado” para Smith
e o “Estado” para Schmitt como, respectivamente, reguladores da Economia e da Política. Não
é à toa que o recurso da “onipotência” tem como característica basal, um poder divino que
circunscreve as obras de Schmitt e Smith, ainda que em ambos tem-se uma construção que se
pode eleger como teológica que rege as leis da economia de mercado para Smith e, no campo
da Política, o soberano teria poderes excepcionais para o pensamento de Schmitt. Sendo assim,
para Schmitt, a teoria política dirige o Estado e a soberania, da mesma maneira que a teologia
fez com Deus.

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A linha de articulação argumentativa e intelectual de Schmitt se espelha em alguns


dos seus influenciadores de pensamento que tinham desprezo ou mesmo eram reticentes quanto
à natureza humana e o aspecto da negatividade da condição humana2:

Naturalmente, o que ele [Juan Francisco Donosco-Cortés] diz sobre a maldade e a


crueldade dos homens é mais terrível do que tudo o que jamais uma filosofia de
Estado absolutista apresentou para justificar um regime de força. [Joseph] De Maistre
também se assustou com a maldade dos homens, e suas afirmações sobre a natureza
deles têm a força que emana de uma moral sem ilusões e das experiências
psicológicas solitárias. [Louis] Bonald também não se iludia sobre os maus instintos
fundamentais dos homens e reconhece a incorrigível “vontade de poder” tão bem
quanto qualquer psicologia moderna. (SCHMITT, 1922/1996, p. 124)

Ainda uma imagem do simbolismo da descrença na humanidade está em uma


analogia de um suposto comportamento errático dos homens e a ira divina transcrita por
Schmitt (1922/1996, p. 125) do católico Donosco-Cortes: “A humanidade é um navio que
permanece à deriva com uma tripulação revoltada, ordinária, recrutada à força, que berra e
dança, até que a ira de Deus jogue essa corja rebelde ao mar, para que o silêncio volte a reinar”.
Como ferrenho crítico da democracia parlamentar burguesa, Schmitt segue citando Donosco-
Cortes em sua crítica ao que ele considerava ser infrutífero debate em nível parlamentar. Em
uma das passagens mais contundentes da “Teologia Política” de Schmitt a respeito de sua crítica
à democracia liberal burguesa e o próprio liberalismo, encontra-se que:

A burguesia liberal quer um Deus, mas ele não deve tornar-se ativo; ela quer um
monarca, mas ele deve ser frágil; ela exige liberdade e igualdade e mesmo assim
exige que o direito de voto seja restrito às classes dos proprietários para garantir a
influência necessária da cultura e da propriedade sobre a legislação, como se cultura
e propriedade lhes dessem o direito de oprimir as pessoas pobres e incultas. A
burguesia elimina a aristocracia de sangue e de família, mas admite o domínio
vergonhoso da aristocracia do dinheiro, a forma mais tola e ordinária de aristocracia;
ela não quer a soberania do rei, nem a do povo. (SCHMITT, 1922/1996, p. 125-126)

Posto isto, Schmitt (1922/1996, p. 108) ainda finaliza de maneira inquisidora e


indignada a respeito do liberalismo burguês: “Mas afinal, o que ele quer?”. A partir desta crítica,
curiosamente Schmitt faz uma assimétrica união de conservadores como Danoso-Cortês e F. J.
Stahl e revolucionários socialistas como Karl Marx e Friedrich Engels, justificando reunião de
opostos contra o liberalismo burguês:

2 Schmitt se refere aos filósofos da contrarrevolução iluminista: o visconde Louis Bonald (1754-1849), político e escritor francês
e defendia os príncipes monárquicos e católicos; conde Joseph de Maistre (1753-1821), escritor e filósofo francês que foi contrário
à Revolução Francesa e apoiou a autoridade do rei e do papa; Juan Francisco Donosco-Cortés (1809-1853), filósofo católico e
diplomata espanhol (Schmitt, 1922/1996).

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Acontece que aqui nos deparamos com o caso raro em que, numa situação política
concreta, um erudito alemão burguês de formação hegeliana pode ser confrontado
com um católico espanhol, porque ambos – naturalmente sem influências mútuas –
constataram as mesmas inconsequências para depois, por meio de suas diversas
avaliações, assumirem uma rivalidade de bela e típica clareza. (SCHMITT,
1922/1996, p. 126)

Ainda para reafirmar seu posicionamento contra as decisões do liberalismo


parlamentar burguês, Schmitt se utilizando das premissas de Danoso-Cortês e assim descreve:

Danoso considera isso apenas um método de evitar a responsabilidade e dar uma


importância exagerada à liberdade de discurso e de imprensa, para que no final não
se precise tomar uma decisão. Assim como o liberalismo discute e transige sobre
qualquer detalhe político, ele também quer dissolver a verdade metafísica numa
discursão. Sua natureza é negociar, é a insuficiência em compasso de espera, na
esperança de que o confronto definitivo, a sangrenta batalha decisiva possa se
transformar num debate parlamentar e ser eternamente suspensa através da discussão
eterna. (SCHMITT, 1922/1996, p. 128)

Em sequência, Schmitt (1922/1996) afirma de caráter peremptório: “A ditadura é o


oposto da discussão”. Já no final de sua “Teologia Política”, Schmitt em uma façanha retórica,
conseguiu unir todos os extremos em uma só meta “antipolítica” muito mais uma construção
caricatural do seu antiliberalismo do que uma análise mais pormenorizada e contextualizada:

Hoje, nada é mais moderno do que a luta contra tudo o que é político. Magnatas
americanos, técnicos industriais, socialistas, marxistas e revolucionários anarco-
sindicalistas juntam-se ao exigir a eliminação da dominação não-objetiva da política
sobre a objetividade da vida econômica. Não devemos mais existir problemas
políticos, só tarefas-organizacionais e econômico-sociológicas. A espécie de
pensamento econômico hoje dominante pode até nem aceitar mais uma ideia política.
O Estado moderno parece realmente ter se transformado naquilo que Max Weber
previu: uma grande empresa. (SCHMITT, 1922/1996, p. 129)

A preocupação de Schmitt com uma visão “puritana” da política, ou seja, uma visão
sem contextualizar a política como uma eclosão de fatos materiais e artifícios momentâneos
entre os atores envolvidos torna-se sintomática a passagem de sua indignação pela
“desconstrução” que transitava na política de sua época em defesa de sua legitimação da
ditadura:

O político desaparece no econômico ou no técnico-organizacional e, por outro lado,


se desfaz do eterno discurso das generalidades histórico-filosóficas e culturais, que
com caracterizações estéticas degustaram uma época como clássica, romântica ou
barroca. Em ambos, a essência da ideia política, a decisão moral exigente é desviada.
(SCHMITT, 1922/1996, p. 130).

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1.2.A ESCOLHA DICOTÔMICA: AMIGO OU INIMIGO?

Pouco antes de Adolf Hitler ascender ao poder na Alemanha e implantar o regime


nazista, Schmitt lançou o clássico “O Conceito de Político”, em 1932. Para Jürgen Habermas
que analisa tal obra de Schmitt, descreve a admiração do jurista alemão por Thomas Hobbes e
simultaneamente seria um crítico dele:

“Ele [Schmitt] celebra em Hobbes o único teórico político de categoria que teria
reconhecido no domínio soberano a substância decisionista da política estatal. Mas
lamenta o teórico secular que teria recuado diante das últimas consequências
metafísicas e, contra sua vontade, tornando-se um dos ancestrais do Estado de direito
da lei positiva” (HABERMAS, 1987/2008, p. ix).

Interessante é o apontamento de Habermas a respeito da crítica de Schmitt a respeito


da escolha infeliz que Hobbes fez em sua obra ao denominar “Leviatã”, o gigante mitológico
análogo às estruturas de Estado e não ter entendido ou conhecido a “versão subversiva” judaica,
o qual o nome se remete a uma terrível imagem apontada inicialmente por Hobbes o qual teve
um efeito nocivo sobre o referido clássico da Ciência Política.
A descrença na condição humana para se auto-organizar foi compartilhada tanto por
Hobbes quanto por Schmitt, lembrando que ambos viveram em épocas de grande instabilidade
socioeconômica e efervescentes disputas políticas. Schmitt com suas principais obras nos anos
1920 e 1930, um período intenso e turbulento que gestaria a futura aventura da barbárie imposta
pelo nazismo alemão. A questão da soberania é central para a própria existência do Estado,
cuja manutenção é primordial em detrimento dos desígnios do povo nela inserido:

Da mesma forma como o Leviatã só constitui o poder que ele é, quando subjulga
Beemot, o Estado se afirma como poder soberano somente ao oprimir a resistência
revolucionária. O Estado é a guerra civil continuadamente impedida. Sua dinâmica
constitui-se na repressão da revolta, na sujeição continuada de um caos, instalado na
natureza má dos indivíduos. Estes insistem em sua autonomia e pareceriam no
sobressalto de sua emancipação, se não fossem salvos pela facticidade de um poder
que domina qualquer outro poder. (HABERMAS, 1987/2008, p. x)

O soberano, segundo Schmitt, ou seja, aquele que determina a respeito do Estado de


exceção, é uma figura “sobre-humana” politicamente, cuja capacidade encontraria no depósito
sacrossanto da “verdade” e da “justiça”, um ser acima dos outros seres:

E, uma vez que as forças subversivas sempre se apresentam em nome da verdade e


da justiça, o soberano que quer prevenir o estado de exceção há de também restringir
para si a decisão sobre a definição do que é publicamente considerado verdadeiro ou

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justo. Seu poder de decisão é a fonte de toda validade. O Estado unicamente


determina a confissão pública dos seus cidadãos. (HABERMAS, 1987/2008, p. x)

Sobre a Alemanha de Weimar, Habermas analisou a situação do pós-Primeira Guerra


e as condições materiais que pudessem justificar o estratagema schmittiano, tendo como
exemplo a ascensão do fascismo na Itália de Benito Mussolini:

Weimar surgiu como o período de declínio: os restos de um Estado concebido,


inclusive por Hobbes, já sem entusiasmo, dissolveram-se em uma apolítica “auto-
organização da sociedade”. A crise só podia ser superada através do emprego
temporário do parágrafo 48 (estado de necessidade) da Constituição de Weimar, mas
de forma duradoura apenas pelo “Estado totalitário”. Schmitt estava pensando
primeiramente em Mussolini e no fascismo italiano. Após a tomada de poder pelos
nazistas, ele foi oportunista o suficiente para dar à sua contribuição estatal aquela
pequena mudança necessária a fim, de não mais ter que conceber o decisionismo do
Führer como puramente hobbesiano, e assim como o pico soberano acima dos
“ornamentos concretos” do povo. (HABERMAS, 1987/2008, p. xi-xii)

Crítica de Habermas ao sistema de “democracia igualitária” proposta por Schmitt que


vê nele uma construção tirânica, uma espécie de “democracia autoritária” personificada na
homogeneidade performática e ética do soberano:

[...] o lance verdadeiramente problemático é dado por Carl Schmitt com a separação
entre democracia e liberalismo. Ele restringe o processo da discussão pública ao
papel da legislação parlamentar, desacoplando-o da volição democrática em geral,
como se a teoria liberal já não tivesse sempre incluído a noção de uma formação de
vontade e opinião na publicidade política. Democraticamente é a condição de
participação com igualdade de oportunidades de todos em um processo de
legitimação guiado pela via da discussão pública (adjudicada ao liberalismo) a
democracia compreendida de forma identitária. Conceitualmente, ele prepara estes
pressupostos universais de participação geral, restringi-la a um substrato
populacional etnicamente homogêneo e reduzi-la à aclamação, destituída de
argumentos, das massas incapazes. Isto se explica pelo fato de que, somente assim, é
possível imaginar uma democracia autoritária de homogeneidade cesarística e étnica,
na qual se personifica algo como “soberania”. Com isto, aliás, fornece a Carl Schmitt
o esboço de democracia que, posteriormente, seus colegas emigrados para os Estados
Unidos usarão para sua teoria do totalitarismo. (HABERMAS, 1987/2008, p. xviii-
xix)

“O conceito de Estado pressupõe o conceito de político”, assim Schmitt (1932/2008,


p. 19) abre o seu “O Conceito de Político”. Nele, o jurista alemão trabalha com a ideia da
instabilidade permanente entre as relações humanas (para além dos limites sociais, mas na
esfera do sujeito), condicionando-se na inevitabilidade de suas ações para os conflitos. Logo,
acima de tudo, Schmitt poderia assim dizer, seria um ideólogo de uma “teoria do conflito”, não
no sentido marxista, entre classes sociais, mas entre os homens que detém o poder, ou seja, uma

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teoria do conflito entre elites, que assume uma caracterização guerreira entre “amigos e
inimigos”.
Somente em 1963, no prefácio à edição deste ano, Schmitt faz uma correção ao texto
de 1932:

O texto reimpresso de 1932 tinha que ser apresentado como documento, na sua forma
original, com todas as suas falhas. A principal falha no tema reside no fato de que
vários tipos de inimigo – inimigo convencional, real ou absoluto – não são
diferenciados e separados o suficiente de maneira nítida e precisa. [...] É inexorável
acerca do problema, desempenhando esta um autêntico progresso em termos de
consciência, pois os modernos tipos e métodos de guerra forçam a refletir sobre o
fenômeno da inimizade. (SCHMITT, 1963/2008, p. 16)

Schmitt cita Jacob Burckhardt no sua “História Mundial” sobre a contradição interna
entre um tema tão apreciado pelo jurista alemão, o Estado constitucional liberal e a democracia:

Por um lado, o Estado deve ser, assim, a realização e a expressão da ideia cultural de
cada partido e, por outro, apenas a roupagem visível da vida burguesa, mas apenas
onipotente ad hoc! Ele deve poder fazer tudo que é possível, mas não deve ter a
permissão para mais nada, ou seja, não lhe é permitido defender sua forma existente
perante nenhuma crise – e, ao fim, deseja-se, sobretudo, participar novamente do
exercício de seu poder. Desta maneira, o regime estatal torna-se cada vez mais
discutível e a abrangência de poder cada vez maior. (BURCKHARDT apud
SCHMITT, 1932/2008, p. 25, grifos do autor)

Schmitt combatia o que ele considerava a “despolitização” do Estado no século XIX


para um “Estado político” no século XX, vulgata nevrálgica para a arquitetura de um “Estado
total”, denso e coercitivo, uma entidade autônoma e impositiva de “vida própria”. Os conceitos
de “amigo” e “ inimigo” são pilares basilares do seu pensamento. Assim, justifica a sua
caracterização:

A diferenciação entre amigo e inimigo tem o próprio de caracterizar o extremo grau


de intensidade de uma união ou separação, de uma associação ou desassociação,
podendo existir na teoria e na prática, sem que, simultaneamente, tenham que ser
empregadas todas aquelas diferenciações morais, estéticas, econômicas ou outras. O
inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente feio;
talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é precisamente
o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, em um sentido
especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que,
em caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser
decididos nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente,
nem através da sentença de um terceiro “não envolvido” e, destarte, “imparcial”.
(SCHMITT, 1932/2008, p. 25)

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Para Schmitt, o conflito entre amigo/inimigo não passaria por outro “intermediador”
que pudesse resolvê-lo. Logo, Schmitt poderia se dizer que era um “antimediador”, ou seja, a
natureza de um conflito somente se resolveria, tão somente, por meio das partes beligerantes.
Daí sua crítica à então Liga das Nações, como intermediadora de pesadas sanções econômicas
contra a Alemanha, a grande derrotada da Primeira Guerra Mundial.

A possibilidade de um reconhecimento e entendimento corretos e, com isso, também


o poder de voz ativa e de julgamento, está aqui dada apenas por meio da participação
e colaboração existenciais. O caso de conflito extremo só pode ser resolvido pelos
próprios envolvidos entre si: isto é, cada um deles só pode decidir ele próprio se o
caráter diferente do desconhecido significa, no existente caso concreto de conflito, a
negação do próprio tipo de existência e, por isso, se será repelido ou combatido a fim
de resguardar o tipo de vida próprio e ôntico. Na realidade psicológica, o inimigo é
facilmente tratado como mau e feio, pois toda diferenciação, na maioria das vezes,
naturalmente, a política como diferenciação e agrupamento mais forte e mais
intensos. [...] Por conseguinte, é também válido o inverso: o que é moralmente mau,
esteticamente feio ou economicamente prejudicial, não precisa ser inimigo por isso;
o que é moralmente bom, esteticamente belo e economicamente útil ainda não se
converte em amigo no sentido específico, i.e., político da palavra. (SCHMITT,
1932/2008, p. 28-29)

Schmitt segue suas conceituações a respeito da descrição do para antagônico


amigo/inimigo:

Os conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados em seu sentido concreto e


existencial, e não como metáforas ou símbolos, não misturados ou enfraquecidos por
noções econômicas, morais e outras, e menos ainda em um sentido privado-
individualista e psicologicamente como expressão de sentimentos e tendências
privadas. Não constituem antíteses normativas nem “puramente espirituais”. Em seu
típico dilema entre espírito e economia [...], o liberalismo tentou reduzir o inimigo,
pelo lado comercial, a um concorrente e pelo lado espiritual, a um adversário nas
discussões. (SCHMITT, 1932/2008, p. 29)

Merece destaque a seguinte passagem que Schmitt (1932/2008, p. 27) afirma no “O


Conceito de Político”: “Na realidade é o Estado total que não mais conhece nada absolutamente
apolítico, é ele quem tem que eliminar as despolitizações do século XIX e pôr fim, sobretudo,
ao axioma da economia livre do Estado (apolítica) e do Estado livre da economia”. O conceito
de inimigo, ou seja, quem ou o quê seria o “outro” foi tema de desdobramento teórico de
Schmitt, o qual ele procurou justificar seus conceitos com explicações que remetiam até a
Platão, buscando fazer uma distinção ontológica dos “inimigos”: “[...] um povo não poderia
fazer guerra contra si mesmo e uma ‘guerra civil’ significaria tão somente autodilaceramento,
e não a formação de um novo Estado ou mesmo de um povo”. Ademais, Schmitt caracteriza

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uma diferenciação entre inimigo do adversário, ou seja, não seria qualquer inimigo, mas um
“inimigo público”:

Assim, inimigo não é concorrente ou adversário em geral. Tampouco é inimigo o


adversário privado a quem se odeia por sentimentos de antipatia. Inimigo é apenas
um conjunto de pessoas em combate ao menos eventualmente, i.e., segundo a
possibilidade real e que se defronta com um conjunto idêntico. Inimigo é somente o
inimigo público, pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas,
especialmente a todo um povo, se torna, por isso, público. Inimigo é hostis, não
inimicus em sentido amplo; polemios, não echtros. A língua alemã, assim como em
outras línguas, não diferencia entre o “inimigo” privado e o político, de modo que se
fazem possíveis muitos equívocos. (SCHMITT, 1932/2008, p. 30, grifos do autor)

A definição da guerra por Schmitt (1932/2008, p. 35) merece destaque dentro do


campo teórico da polaridade amigo/inimigo: “A guerra é apenas a realização extrema da
inimizade”. Remetendo-se ao general polonês Carl von Clausewitz, escreveu um dos principais
clássicos de guerra de todos os tempos, Schmitt recupera o conceito nas palavras desse autor:
“A guerra nada mais é que uma continuação do trânsito político com intromissão de outros
meios”. Sendo um texto de 1932, “O Conceito de Político” parece sintomática a preocupação
pela caracterização do “inimigo” e, por sua vez, o clímax de inimizade, a guerra. Sete anos após
a escrita do texto, a Alemanha, sua terra natal, movida pelo expansionismo nazista, deflagra a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o maior conflito armado de todos os tempos.

Embora as guerras não sejam mais tão numerosas ou quotidianas como antigamente,
elas aumentaram em imponência e força total em proporções iguais ou talvez mais
intensas do que perderiam numericamente em frequência e cotidianidade. Também
hoje, o caso da guerra é um “caso crítico”, pode-se dizer que aqui, como em outros
casos, é o caso excepcional que tem um significado especialmente decisivo e
revelador do cerne das coisas, pois é no combate real que primeiramente se manifesta
a extrema consequência do agrupamento político em amigo e inimigo. É a partir desta
mais extremada possibilidade que a vida do ser humano adquire sua tensão
especificamente política. (SCHMITT, 1932/2008, p. 37)

Quem então decidiria quem seria o inimigo? Para Schmitt (1932/2008, p. 48, grifo do
autor), tal tarefa teria incumbência destinada ao Estado: “Ao Estado como unidade
essencialmente política pertence o jus belli, isto e, a real possibilidade de determinar o inimigo
no caso dado por força de decisão própria e de combatê-lo”. Ademais, reafirma a
responsabilidade do Estado a respeito de sua dimensão e presença sobre a vida do seu próprio
povo. Da mesma posição que o Estado tem para fazer a guerra, tem também de promover a
paz. Schmitt tem como pressuposto o engajamento do Estado na escolha de inimigos e critica
uma suposta falsa neutralidade daqueles que recusam esta escolha. Para ele, a questão da

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escolha é política e estaria inerente ao povo que saiba conduzir o seu próprio caminho e se
proteger e, caso contrário, sofrerá riscos: “O político não desaparecerá do mundo só porque um
povo não mais possui a força ou a vontade de se manter na esfera do político. O que
desaparecerá será tão somente um povo fraco” (Schmitt, 1932/2008, p. 57). Aqui, Schmitt já
utiliza uma linguagem mais intensa, um “inimigo” com rosto a ser “eliminado”, um “povo
fraco” como base de um pensamento totalitário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estado de exceção como práxis das democracias contemporâneas

A necessidade de reflexão sobre o atual ordenamento jurídico envolto nas


democracias contemporâneas merece atenção de todos aqueles que primam pelo respeito à
dignidade humana frente às formas manifestadas inscritas ou subjetivas de barbárie. Neste vasto
campo, o presente trabalho pretende estabelecer algumas considerações conceituais sobre o
estado de exceção como paradigma e práxis das democracias ocidentais ou ocidentalizadas.
Situação essa que não escapa do atual contexto do Estado brasileiro.
A priori, se faz necessária a distinção entre soberania e estado de exceção, a qual foi
estabelecida inicialmente por Carl Schmitt em 1922, na obra “Teologia Política”, e que define
o soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT apud
AGAMBEN, 2004, p. 11). Em seu ensaio a respeito do estado de exceção, Giorgio Agamben
delimita algumas condições que dão suporte para a compreensão do estado de exceção e sua
instauração dentro de um Estado supostamente democrático, mais particularmente, pela “força
de lei” por parte do soberano ao modo schmittiano:

O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional,


comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em
que todas as determinações jurídicas – e, antes de tudo, a própria distinção entre
público e privado – estão desativadas. Portanto, são falsas todas aquelas doutrinas
que tentam vincular diretamente o estado de exceção ao direito, o que se dá com a
teoria da necessidade como fonte jurídica originária, e com a que vê no estado de
exceção o exercício de um direito do Estado à própria defesa ou a restauração de um
originário estado pleromático do direito (os “plenos poderes”). (AGAMBEN, 2004,
p. 78-79)

A “zona de anomia” citada por Agamben (2004), ou seja, um espaço vazio do Direito
introduz aos infortúnios passíveis que vitalizam os rizomas das transgressões do estado

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democrático de direito. A força-motriz que media a natureza dos homens, em potencial, a


sociedade constituída pelos “cidadãos”, criação basilar do Ocidente moderno, onde os
ordenamentos jurídicos dariam condições igualitárias de direitos ao conjunto dos “cidadãos”,
frente às imposições de um Estado severamente coercitivo e com o pressuposto real do
monopólio da violência.
Todavia, o instrumento do estado de exceção, não é nenhuma novidade frente às
políticas dos Estados-nacionais. A teoria do estado de exceção foi inaugurada em 1921 por Carl
Schmitt em um estudo sobre a ditadura, e que se tratava inicialmente como uma “ditadura
constitucional” (AGAMBEN, 2004, p. 17). Sobre a importância de percepção do estado de
exceção no período envolvendo as duas grandes guerras mundiais, temos que:

A Primeira Guerra Mundial – e os anos seguintes – aparece, nessa perspectiva, como


o laboratório em que se experimentaram e se aperfeiçoaram os mecanismos e
dispositivos funcionais do estado de exceção como paradigma de governo. Uma das
características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção
entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra, aqui, sua tendência a
transformar-se em prática duradoura de governo. (AGAMBEN, 2004, p. 19)

Os abusos do exercício sistemático e regular do estado de exceção, segundo Agamben


(2004, p. 19), “levaria necessariamente à liquidação da democracia”. Neste sentido, a
democracia estaria em “suspensão” na vigência do estado de exceção e o qual um novo regime
se imporia levando um estado de permanente coação dos seus cidadãos. Conforme enfatiza
Agamben (2004, p. 13) o qual ele define como “guerra civil mundial”:

[...] o estado de exceção tende cada vez mais se apresentar o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória
e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de
fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se,
nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e
absolutismo. (AGAMBEN, 2004, p. 13)

O Decisionismo defendido por Schmitt recai diante de um paradoxo: ao invocar a


Política como elemento da decisão soberana, de forma autocrática, arbitrária, egóica, ao mesmo
tempo, nega a práxis da própria Política circundada diante de uma atmosfera de decisão para
além da vontade particular de um único ator político. Sendo assim, o Decisionismo recorrer
ainda, por via de sua natureza autocrática, unilateral e subjetiva, a viabilização do terror e da
violência políticas. Diante deste aspecto, temos a formação deste “paradoxo schmittiano”, o
qual defende a Política para posteriormente aniquilá-la de acordo com a vontade do soberano.

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As democracias modernas ocidentais foram cooptadas pelo mercado, o qual os


Estados, cujos governos são cada vez mais dependentes de “democracias eleitorais” com
grande aporte de capital privado para eleger seus governantes (na verdade, a luta é para quem
é o “melhor gestor” da “coisa pública” que se confunde com a “coisa privada”), não mais
trabalham para o uso-fruto dos seus cidadãos, mas ao contrário, criam-se formas autoritárias de
coerção dos mesmos para manter a lógica de dominação capitalista, pulverizando a pluralidade
e atomizando-a em diversas diferenças sob os auspícios da barbárie, uma vez que:

O fetichismo da economia converte a política em bode expiatório: a democracia


substituída por lobbies e o enfraquecimento da dimensão simbólica da Lei resultam
em indiferença política; o fim da democracia como esperança dá-se sob os auspícios
do capitalismo tardio. Este substitui a democracia da pluralidade por aquela da
“diferença”[...] fratura-se a sociedade pela via do gueto e da tribo [...], construindo
sociedades etnicamente homogêneas e, como se sabe, a pureza de sangue, de espírito
ou de conhecimento, está na origem de todas as barbáries. (MATOS, 2003, p. 48)

Sobre sua pertinência na História, o estado de exceção esteve vigente em diversas


democracias (ou países tido como outrora “democráticos”). O paradigma basilar que se pode
encontrar no período que abrangeu o final da Alemanha durante a República de Weimar e
durante todo o regime Nacional-socialista, o estado nazista, liderado por Adolf Hitler. Logo que
subiu ao poder, Hitler com auxílio das suas tropas de assalto, a SA (Sturmabteilung), em 27 de
fevereiro de 1933, forja um incêndio no palácio presidencial do Reichstag e, como planejado,
o atentado caiu sobre as costas dos comunistas à responsabilidade pelo ato. A orquestração de
Hitler teve a comoção esperada e, no dia seguinte, persuadiu o presidente alemão Paul von
Hindenburg assinar o chamado “Decreto para a proteção do povo e do Estado” e que tinha
como efeito a suspenção dos artigos da Constituição de Weimar, no que se referia às liberdades
individuais e civis (PRINTCHARD, 1976)3. A esse respeito, o estado de exceção se instaurava
na Alemanha da ascensão nazista e perdurou até o seu fim, em 1945 e se mostrou a face mais
intensa e devastadora do totalitarismo moderno:

O decreto nunca foi revogado, de modo que todo o Terceiro Reich pode ser
considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12
anos. O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração,
por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação
física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos

3 O episódio do incêndio do Reichstag ainda permanece controverso. Historiadores como Martin Kitchen defendem que foi
realizado por um ato unilateral de um militante comunista e que teve relevâncias graças à uma série de “coincidências” danosas
que permitiram Hitler explorar os fatos para seus planos pessoais de governo e impor seu ideário de medo e xenofobia social
(KITCHEN, 2013).

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que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. (AGAMBEN,
2004, p.13)

Sendo assim, é pertinente observar a inserção de um novo paradigma político imposto


sob a forma uma construção não-inscrita de um ordenamento jurídico ao sabor do soberano, ao
estilo schmittiano, alicerçando práxis de dominação no âmbito à todos os Estados ditos
democráticos: “Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente
(ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas
essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos” (AGAMBEN,
2004, p. 13).
É preciso ainda fazer uma distinção necessária entre estado de exceção e estado de
sítio, de defesa ou medida jurídica similar excepcional que é amparada dentro da lei. Por sinal,
este último está inscrito na Constituição Federal brasileira (BRASIL, 1988), nos artigos 137 a
139 como elemento de um ordenamento jurídico. Conforma aponta SERRANO (2016, p. 33),
o estado de exceção “trata-se de algo fora do direito, em que este é suspenso, prevalecendo a
decisão soberana”. É importante atentar-se sobre as circunstancias do estado de exceção que
são impostas pelo soberano e implicam o seu entendimento:

[...] a escolha da expressão “estado de exceção” implica uma tomada de posição


quanto à natureza do fenômeno que se propõe a estudar e quanto à lógica mais
adequada a sua compreensão. Se exprimem uma relação com o estado de guerra que
foi historicamente decisiva e ainda está presente, as noções de “estado de sítio” e de
“lei marcial” se revelam, entretanto, inadequadas para definir a estrutura própria do
fenômeno e necessitam, por isto, dos qualificativos “político” ou “fictício”, também
um tanto equívocos. O estado de exceção não é um direito especial (como o direito
de guerra), mas, quando suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou
seu conceito limite. (AGAMBEN, 2004, p. 15)

Ressalta-se ainda o papel do soberano schmittiano, ou seja, aquele que induz por sua
própria vontade a imposição do estado de exceção. A consolidação ou execução do estado de
exceção visa proteger os interesses subjacentes ao Estado e não seus cidadãos, ou seja, na
situação limite, estabelecer a prerrogativa de proteção do Estado frente aos seus próprios
cidadãos! Conforme salienta Agamben (2004, p. 30), a instauração por via de um estado de
exceção se configuraria em uma “democracia protegida” como regra e não mais como uma
excepcionalidade.
A instabilidade e a fragilidade das democracias contemporâneas, com forte rejeição e
desconfiança dos cidadãos, baixa participação ativa dos mesmos, além da evocação de uma

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“desnaturalização” da política do meio social e banalização do sentido de se fazer política na


sociedade (em geral, confundida com as disputas fratricidas entre partidos políticos), são
elementos que ajudam a diluir a organização política da ação da democracia participativa em
um Estado e aliando-se ainda a uma grande porosidade e aglutinação indevida entre os poderes
da República.
Conforme ressalta Matos (2003, p. 49), “onde não há política, governam a violência
e o terror”. O estado de exceção é a negação da liberdade e da democracia dentro de um Estado.
Seus cidadãos ficam reféns de um estado onde o soberano emprega leis como um arauto divino,
tal como Carl Schmitt comparava o estado de exceção na política, ao milagre na teologia. O
perigoso trade off entre liberdade e segurança é cada vez mais voltado para o segundo
pressuposto vital, com a falência da Política como mediação entre os cidadãos, prossegue assim
Matos (2003, p. 49): “o descrédito no parlamento, nas instituições políticas de representação
social, nas punição de sua violação, em sua aplicabilidade faz com que, hobbesianamente,
troque-se liberdade por segurança”.

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490
DIREITO E MORAL:
UMA DISCUSSÃO ACERCA DAS POSSIBILIDADES DE
UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

MONNERAT, Alice Nogueira


Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação
Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

O presente artigo pretende discutir as possibilidades de universalização e internacionalização dos direitos


humanos na sociedade contemporânea. Para tanto, faz-se um resgate das compreensões acerca da relação
entre direito e moral, para posteriormente, realizar uma análise da Declaração Universal dos Direitos
Humanos das Nações Unidas buscando compreender os desafios e as perspectivas inerentes a um projeto
de internacionalização dos direitos humanos. Por fim, trazemos novas perspectivas frente a possibilidade
de universalização de direitos humanos.

Palavras Chave. direitos humanos, moral, universalização.

ABSTRACT

The present article intends to discuss the possibilities of universalization and internationalization of
human rights in contemporary society. In order to do so, the understanding of the relationship between
law and morals is rediscovered, and then an analysis of the United Nations Universal Declaration of
Human Rights seeking to understand the challenges and perspectives inherent to a project of
internationalization of human rights. Finally, we bring new perspectives to the possibility of
universalization of human rights.

Keywords. human rights, moral, universalization.

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ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada em 10 de dezembro de


1948 pelas Nações Unidas, é um marco de uma era de reconstrução após as barbáries ocorridas
na Segunda Guerra Mundial (PIOZZI, 1998). Pretendemos analisar, a partir da perspectiva de
universalização de direitos apresentada por Habermas e Alexy, baseada no discurso racional,
as possibilidades de internacionalização de direitos humanos. Com apoio da bibliografia, será
feita uma análise da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DECLARAÇÃO, 1948),
tendo como abordagem principal as possibilidades de efetivação e universalização dos mesmos
enquanto normas de direito internacional.
Posteriormente, serão apresentadas proposições e perspectivas frente à possibilidade
de universalização dos direitos humanos, em busca da construção de uma nova forma de
enxergar política internacional: mais construtivas têm sido as tentativas variadas de
compatibilização entre o particularismo das culturas diversas e o que há de efetivamente
universal na ideia de direitos fundamentais, sendo essa uma complexa tarefa intelectual, afinal,
a própria noção de direitos humanos é Ocidental (ALVES, 2005, p. 11).

1. O CONCEITO DE DIREITO

Jürgen Habermas, atrela o conceito direito em direitos humanos ao jurídico, não sendo
os direitos humanos direito pré-jurídicos, moralmente puros, e sim normas legais. Há uma
diferença significativa em compreender os direitos humanos como pré-estatais ou direitos
jurídicos. Como direitos morais eles são fracos: não se pode ir a um tribunal exigir sua proteção,
podendo seu respeito ser reclamado apenas na esfera pública. Essa perspectiva remonta a
tradição liberal, em que direito humanos são direitos pré-estatais fundamentados no direito
natural ou no direito racional, sendo nesse caso, o direito e a política, apenas meios ou objetos
de sustentação dos mandamentos morais. (LOHMANN, 2013, p. 88)
Os defensores do direito natural nos dizem que existe, entre direito e moral, uma
conexão necessária, conceitual, enquanto a tradição positivista defende que o direito é
conceitualmente independente da moral, existindo apenas relações contingenciais entre os dois
fenômenos (BULYGIN, 2001, p. 41 e 42). O positivismo não nega o poder que as convicções
morais têm de influenciar os sistemas jurídicos, porém, não é essa uma relação de caráter
necessário (GAIDO, 2001, p. 17).

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ISSN 2236-9651, n. 7

Robert Alexy, por sua vez, desenvolve a ideia da natureza dupla do direito, incluindo
uma dimensão real ou fática e uma dimensão ideal ou crítica. O lado fático seria refletido em
elementos definitórios da produção formalmente adequada e da eficácia social, e o ideal na
correção moral. Para o autor, o conceito positivista de direito se baseia apenas no primeiro
ponto, a produção adequada e a eficácia social. A tese da dupla natureza tem um caráter não
positivista acrescendo a equação a correção moral. (ALEXY, 2010, p. 9)
É preciso observar dois argumentos para entender a posição de Alexy: o argumento
da injustiça - as normas e os sistemas jurídicos vão perder seu caráter jurídico quando
sobrepassarem determinados limites de injustiça - e o argumento da correção - em que, no
momento da criação de uma norma e da aplicação do direito, é formulada necessariamente uma
pretensão de correção (GAIDO, 2001, p. 19).
Para entender melhor podemos utilizar da discussão entre Alexy e Bulygin, em que
Alexy traz uma afirmação como exemplo para explicar a pretensão de correção que é
necessariamente formulada por todo ordenamento jurídico: supõe-se uma assembleia
constituinte que formula como primeiro artigo da nova constituição o seguinte “X é uma
república soberana, federal e injusta.” (tradução livre). Para Bulygin, o artigo em questão não
tem sentido enquanto ordem, afirmando que existem Constituições justas, mas tal estado não
pode ser ordenado ou prescrito, somente ações ou estados de coisas que são resultados de uma
ação podem ser conteúdo de normas. Portanto, tal enunciado pode ser interpretado como uma
declaração política, expressando a intenção do órgão constituinte, assim, teria o enunciado
sentido, apesar de deficiente. (BULYGIN, 2001, p. 46 e 47)
Alexy responde Bulyngin dizendo que a cláusula de injustiça não exprime apenas um
erro político. Nas palavra do autor:

Isso [um erro político] ela [cláusula de injustiça] é sem dúvida, embora tal fato
também não esclareça completamente o defeito. [...] Nem a incorreção convencional,
nem a moral, nem a técnica explicam a absurdidade da cláusula de injustiça. Ela
resulta, como é comum em absurdos, de uma contradição. Tal contradição que se
origina, com o ato constituinte, de uma pretensão de correção que é erigida, a qual,
nesse caso, é essencialmente uma pretensão de justiça. Pretensões incluem, como
exposto, asserções. No caso da pretensão de justiça aqui levantada, a asserção é a de
que a república é justa. (ALEXY, 2010, p. 12)

Assim, através da observação do enunciado, é possível entender que, devido a


pretensão de correção, o mesmo perde seu sentido de existir, isso porque a existência de um
ordenamento jurídico necessariamente pressupõe a intenção de justiça.

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O próprio Alexy apresenta objeções possíveis a pretensão de correção, como sendo


apenas expressão de uma ilusão, baseada em julgamentos sobre o que seria ou não moralmente
obrigatório, bom e mau, justo e injusto, o que seria subjetivo e relativo. O autor contrapõe a tais
argumentos com a teoria do discurso, que tem como suposições centrais que a provação
discursiva pode, em primeiro lugar, vir a depender de argumentos e que existe, em segundo
lugar uma relação necessária entre a aprovação universal e os conceitos de correção, sendo
assim corretas e válidas as normas que possam ser qualificadas como corretas por qualquer um
em um discurso ideal. (ALEXY, 2010, p. 20)

2. DIREITO E MORAL

Gaido (GAIDO, 2001, p. 31 e 32) afirma que, para Alexy, o jogo da argumentação é
regido pelas regras da teoria do discurso, sendo assim, depois da argumentação, é possível obter
diferentes respostas corretas como resultado, o que terá que ser feito é o sobrepesamento para
decidir qual será aplicada, havendo apenas um limite, retirado por Alexy da fórmula
radbruchiana: “o que é extremamente injusto não é direito” (tradução livre). Assim, a extrema
injustiça impossibilitaria o caráter jurídico devido a pretensão de correção: o que é
extremamente injusto não pode se incorporar ao direito por não respeitar as regras estabelecidas
que fazem possível um discurso racional.
A pretensão de correção seria, então, uma dimensão ideal e necessária que conecta o
direito com a moral universal procedimental, implicando, a pretensão de correção, uma
pretensão de justificabilidade, criando a possibilidade de apresentação de contra-argumentos
que possam levar a mudança a prática da justificação. Justificação na presença de qualquer um:
igualdade e universalidade como bases de uma ética procedimentalista a aceitação do outro
como igual e a pretensão de defender o que se afirma (GAIDO, 2001, p. 28 e 29).
Para Alexy, uma conexão entre direito e moral não traz a necessidade uma moral
objetiva compartilhada por todos que fazem direito, sendo suficiente a prática da argumentação
racional sobre o que é moralmente correto (GAIDO, 2001, p. 33).
Habermas traz a possibilidade de uma interpretação moral dos direitos humanos com
base na ideia de que o aperfeiçoamento político de uma cidadania democrática pode preparar o
caminho para um status de cidadão do mundo. Assim, uma perspectiva moral dos direitos
humanos seria necessária para que Habermas possa pretender que os direitos fundamentais

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sejam concedidos a todos os homens, o que levaria a uma fundamentação moral dos direitos
humanos, sendo o direito responsável apenas pela forma. (LOHMANN, 2013, p. 93 e 94)
Habermas defende ideia contrária a uma oralização da política mundial fundamentada
nos direitos humanos, em que a possibilidade de reagir contra violação de direitos humanos se
encontrasse em uma instável indignação moral, tornando impossível a tarefa de paz e segurança
e a produção do direito internacional. Para o autor, para que violações de direitos humanos em
âmbito mundial possam ser denunciadas judicialmente, é preciso um tribunal global de direitos
humanos que siga um processo efetivo. (LOHMANN, 2013, p. 96)
Em Faticidade e validade, Habermas pesquisou as ações e efeitos de uma justiça
constitucional: discutindo uma interpretação republicana da linguagem jurídica constitucional
desenvolve um entendimento proceduralista constitucional, em que as condições
procedimentais apoiam a suposição de que o processo democrático permite resultados
racionais. Habermas desenvolve então uma compreensão política deliberativa e constitucional
em que a teoria do discurso fundamenta um modelo de mediação entre a moral universal, a
institucionalização limitada do direito e a revisão constitucional. Para o autor, os direitos
humanos universalizados não vão atuar como normas morais, mas sim como regras formais de
procedimento da legislação e controle constitucional. Tal compreensão sofreu críticas por seu
caráter puramente formal, o que levou Habermas a enriquecer o conteúdo moral dos processos
formais: o universalismo interno se alimenta de conteúdos morais de formas de vida
transigentes, conteúdos que o direito formal não poderia criar (LOHMANN, 2013, p. 98).

3. ANÁLISE DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

A Organização das Nações Unidas foi oficialmente criada em 24 de outubro de 1945,


a partir da ratificação da Carta das Nações Unidas. Atualmente, tem como sede a cidade de
Nova York, possuindo amplos princípios, e “ao mesmo tempo, inflexíveis para atender às
demandas singulares das diferentes nações.”. A ONU representa “o reconhecimento da
autoridade de poder dos países, sem, no entanto, permitir que tal comando motive e/ou agrave
a discriminação entre os povos.”, atuando na defesa da igualdade soberana e buscando soluções
para situações enfrentadas para os mais de 190 estados-membros da Organização. (UNIC RIO
DE JANEIRO, 2011 apud MENDONÇA, VIEIRA, TARGINO, 2013, p. 81).

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, promulgada em 1948,


sinaliza a responsabilização do Estados e das organizações frente a defesa aos direitos humanos,
sejam eles de quaisquer natureza, como direito à equanimidade, direito à segurança, direito à
cidadania, direitos trabalhistas e demais direitos que sejam necessários na garantia de uma
sobrevivência digna dos seres humanos. (MENDONÇA, VIEIRA, TARGINO, 2013, p. 83).
Os direitos humanos têm como ponto de partida o ordenamento jurídico de atribuição
estatal e a sua execução nas e pelas nações que se comprometam “com a garantia e
implementação desses valores humanos”. No que diz respeito ao “processo de valoração dos
direitos humanos num plano internacional”, este se dá a partir da iniciativa de diversos países
que visem a absorção de ideais do “bem comum’’. (MENDONÇA, VIEIRA, TARGINO,
2013, p. 83).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas é, portanto,
claramente um marco na tentativa de cooperação internacional na defesa dos Direitos
Humanos. Porém, a Declaração, é produto ocidental, refletindo em seu conteúdo uma
perspectiva de direito humanos do Ocidente. Araújo (2011, p. 30), ao fazer uma análise dos
direitos humanos sob a ótica de diferentes tradições religiosas, ressalta como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos é influenciada pela tradição cristã ocidental, assim como, tal
tradição, continua a influenciar a atual doutrina dos direitos humanos. A conclusão da autora
vem no sentido da necessidade do respeito às diferenças na discussão acerca da universalidade
dos direitos humanos:

Desde a Conferência de Viena, e conforme os textos reunidos por Baldi, é possível


distinguir que, além da efetivação que os direitos humanos reclamam, é necessário
buscar mecanismos que garantam o respeito às diferenças étnicas, culturais e
religiosas. Não com o objetivo de relativizar os direitos humanos, como pretendem
alguns. Mas, sim, no intuito de aperfeiçoá-los, valorizando-os como tema dos mais
importantes na agenda internacional. (ARAÚJO, 2011, p. 30)

Outra importante contribuição trazida pela autora, diz respeito a participação de


grupos minoritários nas reuniões de prepação da Convenção de Viena, mais especificamente
as mulheres orientais que atuaram de forma ativa questionando os valores feministas da atual
concepção de direitos humanos (ALVES apud ARAÚJO, 2011, p. 32).

Embora o posicionamento defendido por estas mulheres, pareça um retrocesso aos


pressupostos inerentes à concepção dos direitos humanos vigentes no ocidente, como
alertou Habbermas (1997, p. 93), é preciso ter cuidado para não bloquear o
intercâmbio horizontal de posicionamentos espontâneos e, portanto, o uso das

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liberdades comunicativas, identificando e denunciando aquelas estruturas que fazem


com que o espectador fique passível perante o coletivo [...] (HABBERMAS apud
ARAÚJO, 2011, p. 32)

O agir comunicativo atuaria portanto na garantia de defensa de suas concepções para


essas mulheres, assim como na contramão de uma atuação colonizadora na busca pelo respeito
aos direitos humanos.
Leão (2013, p. 30), traz nossa atenção para o surgimento da Organização das Nações
Unidas, que ocorre após o término da Segunda Guerra Mundial, estando dessa forma, sob
influência dos vencedores da mesma:

Em consequência, seu Conselho de Segurança (CSONU), desde sua criação, esteve


sob influência dos ideais desses países vencedores. Ancorado nestes cinco principais
países, (Estados Unidos da América do Norte, Inglaterra, França, China e a, então,
URSS), o CSONU refletia o ideal político, social, econômico e militar de cada uma
dessas potências. (LEÃO, 2013, p. 30)

Resta claro o domínio de uma perspectiva Ocidental, centrada nos países vencedores
da Segunda Guerra Mundial, e também componentes permanentes do Conselho de Segurança
da ONU, presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na atuação da Organização
das Nações Unidas, o que nos traz questionamentos não apenas acerca das reais possibilidades
de universalização dos direitos humanos através da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, mas também dos desafios e da necessidade de novas perspectivas em busca de um
projeto universalizante.

4. UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO

Costas Douzinas (2009, p. 3), parte de uma perspectiva externa de direitos humanos,
afirmando que a sociedade capitalista do individualismo e do livre-arbítrio não possui um
“código de moral universal”, assim, o que restringe o egoísmo privado são determinações
externas: “É exatamente isso que crime, delito e direitos realizam”. É a lei que irá possibilitar
que os indivíduos façam valer seus direitos, assim como será a lei que irá limitar o exercício de
tais direitos. O autor afirma que podem os direitos humanos ser a última expressão “de um
impulso humano de resistir à dominação e opressão e para discordar da intolerância da opinião
pública” (DOUZINAS, 2009, p. 7).

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Abordar direitos humanos, de maneira perigosa, virou forma de descrever situações


históricas complexas, sociais e políticas. Em um nível global, os direitos humanos se
transformaram na única ideologia universal desde 1989, proporcionando a união de Norte e
Sul, globalizando tanto imperialistas quanto manifestantes anti-globalização: “Ao juntar lei e
moral, os direitos humanos obtém um estatuto especial devido à importância dos bens ou
atividades que eles protegem, normalmente a dignidade, liberdade e igualdade.” O que levou
Douzinas a perguntar quais seriam as fontes normativas e de argumentação possíveis de serem
usadas atualmente para formulação de direitos e promoção de um acordo sobre seus princípios?
(DOUZINAS, 2009, p. 9-11)
Reconfortante seria poder afirmar que os direitos humanos são conferidos às pessoas
simplesmente por pertencerem a raça humana. Na realidade: “os únicos direitos efetivos são
dados pelos Estados a seus cidadãos. Estrangeiros, refugiados, apátridas, os que não têm estado
ou governo para protegê-los [...] tem muito poucos direitos, quando tem” (DOUZINAS, 2009,
p. 11).
Douzinas (2009, p. 17-18) traz então o debate sobre “significado e o alcance dos
direitos humanos”, que atualmente é dominado pela contraposição entre universalistas e
relativistas. Os universalistas acreditam que os “valores culturais e as normas morais devem
passar por um teste de aplicabilidade universal e consistência lógica”, assim para o
universalista: “as decisões derivadas de condições locais são moralmente suspeitas”. Douzinas
ponta o risco de a “natureza contra-intuitiva do universalismo” levar à arrogância, passando
este a considerar apenas um “agente moral representante do universal”, podendo, dessa forma,
o universalista, se transformar em “um imperialista que promove a missão ‘civilizadora’ pela
força das armas”.
Por sua vez, os relativistas procedem da observação do “senso comum de que os
valores estão ligados ao contexto, que eles de desenvolvem dentro de histórias e tradições
particulares”, existindo opiniões dispares sobre o que é certo e errado, e não sendo possivel a
existência de valores transculturais (DOUZINAS, 2009, p. 18).
No entanto, enfrentam os relativistas uma contradição meta-ética: “negar todas as
pretensões absolutas à verdade, exceto àquela feita para o princípio do relativismo”. Ademais,
governos opressores têm adotado a posição relativista como forma de se defender contra críticas
acerca de suas práticas repressoras, transformando “normas locais e valores tradicionais em

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verdades absolutas” e as impondo sobre quem discorda “com a opressão da tradição”


(DOUZINAS, 2009, p. 19).
Ambas as abordagens, no momento em que se transformam em “essências absolutas”
e assim passam a definir “o sentido e o valor da humanidade” tendem a achar o que escapa a
elas é dispensável. As duas vão exemplificar o “impulso da metafísica contemporânea: eles
tomaram uma decisão axiomática quanto ao que constitui a essência da humanidade e seguem-
na com uma inflexível desconsideração por argumentos e tradições contrárias”. Porém, para
Douzinas, “a humanidade não tem essência”, residindo a colaboração dos direitos humanos no
“interminável processo de redefinição da humanidade e sua tentativa necessária, mas
impossível, de escapar de uma determinação externa” (DOUZINAS, 2009, p. 20).
Acerca do debate entre universalismo e relativismo, vejamos Flores (2009, p. 150):

A polêmica sobre os direitos humanos no mundo contemporâneo está centrada em


duas visões, duas racionalidades e duas práticas. Em primeiro lugar, uma visão
abstrata, vazia de conteúdos e referências com relação às circunstâncias reais das
pessoas e centrada em torno da concepção ocidental de direito e do valor da
identidade. Em segundo lugar, uma visão localista na qual prevalece o próprio, o
nosso com respeito ao dos outros e centrada em torno da ideia particular de cultura e
do valor da diferença. Cada uma dessas visões dos direitos propõe um determinado
tipo de racionalidade e uma versão de como colocá-los em prática.

Para o autor, as duas posições apresentam razões que justificam sua defesa:

O direito, visto desde sua aparente neutralidade, pretende garantir a “todos” e, não
apenas a uns frente a outros, um marco de convivência comum. A cultura, vista desde
seu aparente encerramento local, pretende garantir a sobrevivência de alguns
símbolos, de uma forma de conhecimento e de valoração que orientem a ação do
grupo para os fins preferidos por seus membros. (FLORES, 2009, p. 150)

A perturbação vem no momento em que cada perspectiva passa a se considerar


superior, desconsiderando o que é proposto pela outra visão.

O direito acima do cultural, ou vice-versa. A identidade como algo prévio à diferença,


ou vice-versa. Nem o direito, garantidor da identidade comum, é neutro; nem a
cultura, garantidora da diferença, é algo fechado. O relevante é construir uma cultura
dos direitos que acolha em seu seio a universalidade das garantias e o respeito pelo
diferente. Mas isso já supõe outra visão que assuma a complexidade do tema que
abordamos. (FLORES, 2009, p. 150)

Flores, apresenta então, uma visão complexa dos direitos humanos, que pode ser
simplificada a partir do esquema: “Visão complexa → Racionalidade de resistência → Prática

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intercultural”. Perspectiva essa que deseja superar “a polêmica entre o pretendido universalismo
dos direitos e a aparente particularidade das culturas”.

Ambas as afirmações são o produto de visões distorcidas e reducionistas da realidade.


Ambas acabam ontologizando e dogmatizando seus pontos de vista ao não relacionar
suas propostas com os contextos reais. [...] Por essa razão, a visão complexa dos
direitos aposta em nos situarmos na periferia. Só existe um centro, e o que não
coincide com ele é abandonado à marginalidade. Periferias, entretanto, existem
muitas. Na verdade tudo é periferia, se aceitamos que não há nada puro e que tudo
está relacionado. […] Ver o mundo desde a periferia, implica reconhecer que
mantemos relações que nos mantêm amarrados tanto interna quanto externamente a
tudo e a todos. A solidão do centro pressupõe a dominação e a violência. A
pluralidade das periferias nos conduz ao diálogo e à convivência. (FLORES, 2009,
p. 150-151)

Para o autor, as visões abstrata e localista têm em comum o problema do contexto,


onde, na visão abstrata, temos uma ausência total de contexto, por ela se explicar no “vazio de
um essencialismo perigoso”, mas que não se assume de tal forma e se afirma baseada em fatos
e dados reais. Enquanto para a visão localista, existe um excedente de contexto, que acaba por
sumir no “vazio que provoca a exclusão de outras perspectivas: outro essencialismo que
somente aceita o que inclui, o que incorpora e o que valora; enquanto exclui e rechaça o que
não coincide com ele”. A visão complexa defendida por Flores traz o contexto a partir de seu
conteúdo: “a incorporação dos diferentes contextos físicos e simbólicos na experiência do
mundo” (FLORES, 2009, p. 152).
Por fim, Flores (2009, p. 157) critica a utilização e aceitação de forma cega de
discursos especializados, o que é feito por ambas as visões, abstrata e localista, relagando o
conhecimento “a uma elite que define o que é o universal ou que estabelece os limites do
particular”. Defende assim, que na visão complexa, se “assume a realidade e a presença de
múltiplas vozes, todas com o mesmo direito a se expressar, a denunciar, a exigir e a lutar”,
apostando em uma “racionalidade de resistência”. Seria uma racionalidade que “não nega que
se possa chegar a uma síntese universal das diferentes opções ante os direitos e também não
descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero”. O
que não se aceita é julgar o universal “como um ponto de partida ou um campo de
desencontros”.

Nossa racionalidade de resistência conduz, então, a um universalismo de contrastes,


de entrecruzamentos, de mesclas. [...] Por isso, propomos uma prática não
universalista nem multicultural, mas sim intercultural. Toda prática cultural é, em
primeiro lugar, um sistema de superposições entrelaçadas, não meramente
sobrepostas. Esse entrecruzamento nos conduz a uma prática dos direitos que estão

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inseridos em seus contextos, vinculados aos espaços e às possibilidades de luta pela


hegemonia e em estreita conexão com outras formas culturais, de vida, de ação, etc.
Em segundo lugar, nos induz a uma prática social nômade que não procura impor
“pontos finais” ao extenso e plural conjunto de interpretações e narrações humanas.
Uma prática que nos discipline na atitude de mobilidade intelectual absolutamente
necessária em uma época de institucionalização, arregimentação e cooptação globais.
Por último, caminharíamos para uma prática social híbrida. (FLORES, 2009, p. 159-
160)

Conclui o autor sobre a necessidade da visão complexa na abordagem dos direitos


humanos no mundo contemporâneo, da necessidade de uma “racionalidade de resistência e
dessas práticas interculturais, nômades e híbridas para superar os obstáculos universalistas e
particularistas que impedem sua análise comprometida há décadas”. Ressalta que o direitos
humanos não são apenas declarações textuais, mas também produtos de uma determinada
cultura. Assim, os direitos humanos são os “meios discursivos, expressivos e normativos que
pugnam por reinserir os seres humanos no circuito de reprodução e manutenção da vida”,
permitindo a abertura de espaços de reivindicação e luta. (FLORES, 2009, 163).

CONCLUSÕES

Em outro texto seu, Costas Douzinas traz sete teses de direitos humanos, onde, aponta,
na tese número 7, a necessidade de se combinar direito à resistência e igualdade axiomática na
projeção de uma humanidade que se oponha ao individualismo universal e ao fechamento
comunitário. O autor defende que não devemos desistir do ímpeto universalizante, do que
chama de ‘cosmos que desraiga toda a polis, perturba toda filiação, contesta toda soberania e
toda hegemonia’. (DOUZINAS, 2013, tradução nossa). Nos convida a acreditar na utopia de
uma nova sociedade, onde o ser humano não seja mais escravizado e oprimido. Nossas
conclusões vêm, portanto, em sentido encaminhativo, incentivando que se amplie o debate
acerca da universalização dos direitos humanos, dentro e fora do âmbito da Organização das
Nações Unidas, a partir de uma visão complexa, que busque a construção de espaços de luta
através de uma racionalidade de resistência, tendo como horizonte utópico a garantia de direitos
humanos para todos, assim como uma nova organização societária onde seja possível a
completa emancipação do ser humano.

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502
ENFRENTAMENTO À VIOLENCIA DOMÉSTICA:
REFLEXÕES A PARTIR DA DESOBEDIENCIA CIVIL,
ÉTICA-MORAL E MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

PIRES, Rosely Maria da Silva


Estudante de doutorado do Programa de Sociologia e Direito
SILVA, Rosely Dias da
Estudante de mestrado do Programa de Justiça Administrativa
GOUVEA, Roberta Suzane
Advogada do Projeto de Extensão Fordan/UFES

RESUMO

A violência doméstica contra a mulher tem aumentado de forma alarmante, e por este motivo tem sido
alvo de estudos de todas as áreas de conhecimento. A proposta deste trabalho é discutir a complexidade
dessa temática propondo uma intervenção que seja eficiente no combate dessa violência. A metodologia
adotada é a pesquisa de referências bibliográficas atinentes ao estudo proposto. Busca-se entender a
violência doméstica dentro de uma dimensão histórica, política, cultural e ideológica, procurando pistas
e sinais da objetivação da mulher como eixo principal desse problema. Utiliza como base de discussão
a desobediência civil, a problematização entre ética e moral, e a mediação como mecanismo de
superação dos conflitos de interesses que nos permitem compreender como estes estudos são
fundamentais para a problematização e enfrentamento da violência doméstica contra a mulher.

Palavras-Chave. Violência Doméstica. Desobediência Civil. Etica-moral. Mediação.

RESUMEN

La violencia doméstica contra la mujer ha aumentado de forma alarmante, y por este motivo ha sido
objeto de estudios de todas las áreas de conocimiento. La propuesta de este trabajo es discutir la
complejidad de esta temática proponiendo una intervención que sea eficiente en el combate de esa
violencia. La metodología adoptada es la investigación de referencias bibliográficas sobre el estudio
propuesto. Se busca entender la violencia doméstica dentro de una dimensión histórica, política, cultural
e ideológica, buscando pistas y señales de la objetivación de la mujer como eje principal de ese
problema. Utiliza como base de discusión la desobediencia civil, la problematización entre ética y
moral, y la mediación como mecanismo de superación de los conflictos de intereses que nos permiten
comprender cómo estos estudios son fundamentales para la problematización y enfrentamiento de la
violencia doméstica contra la mujer.

Palabras Clave. Violencia Doméstica. Desobediencia civil. Etica-moral. Mediación.

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INTRODUÇÃO

Em 2016 os participantes de uma audiência pública da Comissão de Direitos


Humanos e Legislação Participativa (CDV), afirmavam que a redução da violência contra a
mulher não passa apenas pela aprovação de leis, ela requer um enfrentamento cultural e
educacional contra a misoginia e o machismo. Dentro dessa linha a ONU, também em 2016,
lançou a campanha do combate ao machismo na volta à escola.
Participando do Painel Justiça pela Paz em Casa, realizado em parceria do Ministério
político do Espírito Santo e a Rede Gazeta, (agosto de 2017) apresentamos como o projeto que
coordeno (FORDAN/UFES) tem enfrentando a violência, evidenciando a importância da arte
com reflexão sobre as permanência e reedições históricas do Patriarcado que imprimi a
ideologia de objetivação da mulher. Participando das pré-conferencias de Educação Municipal
e Estadual (agosto de 2016), observamos um movimento grande de lideranças religiosas, e
famílias com visões tradicionais de educação, que acolheram a “Escola sem Partido”, por
acreditarem que discutir gênero, violência domestica nas escolas seria uma forma de
doutrinação interferindo na sexualidade de seus filhos.
Ao que parece há um consenso, pelo menos aparente, de que a sociedade precisa
conversar sobre as temáticas que estão na raiz da violência contra mulher. A questão é como as
instituições como, escolas, famílias, religiões, sistema judiciário, grupos sociais organizados,
todos com valores e regras de comportamento tão diferentes e as vezes tão antagônicas
conseguem dialogar.
Para pensar conosco essa problemática buscamos um diálogo com as teorias de
desobediência civil, princípios da ética e moral e a mediação como mecanismo de superação
de conflito estudados por Hansen . A escolha deve-se ao fato de que Hansen estuda Habermas
a 18 anos. Encontramos um primeiro texto do autor datado de 1999 com o título “Aspectos
introdutórios acerca da reflexão Habermasiana sobre a política”. Os textos escolhidos se
colocam como proposta de pensar as teses citadas acima, estudadas e acrescida de intervenções
atualizadas por Hansen.
Os estudos de Hansen acrescidos da problematização da raiz da violência contra a
mulher tomam forma, neste ensaio, de uma incursão em que um pesquisador/tecelão que a
convite de (Ginzburg,1989), procura pistas, indícios e sinais que se repetem e que nos impõem
uma experiência de investigação dessa trama tecida por tantas gerações, qual seja, a violência
doméstica. Dialogar com Arendt (2009), Augusto (2015), Oliveira e Cavalcanti (2007), Pires e

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Rodrigues (2016) foram se tornando movimentos de compreensão da consistência das diversas


teia e tramas que constituem esse tapete que é a violência, tapete este trançado em várias
direções, histórica, política, cultural e ideológica.

1 DA DESOBEDIENCIA CIVIL, ÉTICA E MORAL E MEDIAÇÃO:


MECANISMO DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA

1.1. DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Pires, Campos e Rodrigues, (2015, p.1) no texto “O homem criativo intervindo na


violência” apresentam a violência como um fenômeno histórico e tão antigo quanto a
constituição da sociedade Brasileira. Os exemplos citados são a escravidão indígena e africana;
a colonização mercantilista, o coronelismo, “as oligarquias antes e depois da independência,
somados a um Estado caracterizado pelo autoritarismo burocrático, exemplos estes que
contribuíram enormemente para o aumento da violência que atravessa a história do Brasil”.
Esses momentos de exploração do povo, no entanto, foram acompanhados por movimentos de
resistências pela população escravizada e por muitas outras lutas por uma sociedade
democrática e mais humana.
Esses movimentos de resistências das populações insatisfeitas com o gerenciamento
político, econômico e cultural do Brasil poderiam ser considerados como manifestações de
desobediência civil? Optamos por buscar um diálogo com Gilvan Luiz Hansen, no intuito de
entender qual o conceito, as possibilidades/contribuição e o papel que a desobediência civil
assume neste contemporâneo permeado por conflitos de toda ordem.
Em 2004 Gilvan Luiz Hansen apresentou uma tese com o título “Facticidade e
Validade da Desobediência Civil no Estado Democrático de Direito”. Neste estudo o autor,
busca referencias principalmente em Habermas, mas vai além das teorias desse autor
dialogando com outras referências complementares, o que propicia um debate amplo e
primoroso do tema. Chama-nos atenção quando Hansen apresenta a desobediência Civil como
um ato político, indo além das discussões de Habermas.
É importante ter em mente o texto de Habermas sobre desobediência civil, de 1957,
para perceber a relevância da afirmação de Hansen (2004, p. 192) de que esse autor entende a
questão da desobediência civil como um “problema crucial na definição das normas e ações
ético-político e jurídicas das sociedades contemporâneas”. Isso porque ela se coloca no beiral

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de uma atitude que pode desembocar num “processo revolucionário de ruptura das normas
constitucionais”, ou seja, como o primeiro estágio de uma caminhada que conduzirá à violência
e ao terrorismo.
Essa análise perniciosa da desobediência civil é alimentada pela sociedade civil e
governos. Com isso é criada uma “ojeriza social” à atitudes e pessoas que se utilizam das
manifestações, pois estas são consideradas por muitos como desobediência. (HANSEN, 2004,
p. )
A desobediência civil e a resistência à autoridade são discutidas pelo autor em tela
como parte do processo de constituição da espécie humana que nunca esteve isento de conflitos
de opiniões e interesses. Moises, Spartacus e Wiliian Wallace e a Revolução Francesa foram
por ele escolhidos como exemplos de resistência à autoridade e desobediência civil.
Moises consegue tirar um povo inteiro da sua zona de conforto e estes apostam tudo,
deixam para trás uma história de sofrimento e fazem a busca por uma nova história, sem se
eximir das dores e sacrifícios que também são inerentes às mudanças, principalmente quanto
mudamos concepções de vida. Já Spartacus nos dá pistas de como os processos de mobilização
entre pessoas diferentes são fundamentais para mudar toda uma realidade de exclusão. Em
William Wallace encontramos o exemplo de como podemos possuir o poder evitando que ele
nos possua, pois este mesmo com tanta autoridade em suas mãos, abriu mão dessa e buscou
libertar aquele que era o soberano legitimo. Finalizando os exemplos, citados por Hansen
(2004), a Revolução Francesa nos ajuda a pensar como na modernidade se faz importante
modificar rumos políticos, jurídicos e culturais .
Interessa também nos atermos na análise que o autor faz de Facticidade e Validade da
Desobediência Civil, entendendo a predominância da tensão entre elas atingindo diferentes
esferas da vida humana.
O pressuposto da facticidade da desobediência civil possui as seguintes
características: “contexto de opressão ou injustiça [...] intransigência do poder constituído [...]
Descrédito no poder da autoridade [...] punição exemplar dos vencidos [...] Dramaticidade de
heroísmo [...]” (HANSEN 2004, P. 206). No entanto, não podemos extrair apenas elementos
comuns da dimensão factica da desobediência civil, mas, precisamos estabelecer validade para
a desobediência civil considerando-a como ato desenvolvido na sociedade.
Mas, além desses elementos comuns também podem ser observados no trabalho de
Hansen aquilo que legitima cada um desses movimentos, e contribui para estabelecer assim

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uma validade para a desobediência Civil. A primeira condição apresentada pelo autor sobre a
validade da desobediência civil é a exigência da “possibilidade de reflexão, de argumentação
sobre o próprio sentido da existência.” Interessa-nos em especial a fala de Hansen ao
caracterizar essa capacidade de reflexão como existência da capacidade racional. Para o autor
“ser racional implica desejo de ser melhor a cada dia, libertando-se das mazelas as quais o
homem se prende” (HANSEN, 2004, p.207- 208).
Uma segunda condição apresentada por Hansen (2004, p.207- 208-210) passa pelo
conceito de liberdade não apenas como livre arbítrio em que podemos decidir qual caminho,
que são postos como opção, mas também, como “autonomia ou possibilidade de escolher e
seguir preceitos e normas que a si mesmo o ser humano se impõe, na condição de legislador”.
Acrescenta ainda que para garantia dos direitos e tornar estáveis as conquistas surgem a
importância da ordem jurídica que se torna onipresente na sociedade a partir figura do Estado.
“[...] A desobediência civil e a resistência à autoridade injusta é legitima num Estado
democrático de direito?
Transformando a fala do autor em questionamento recorremos a um fragmento do seu
trabalho em que ele responde de uma forma incisiva esta questão

[...] a desobediência civil é um ato público, não violento, perpetrado por uma pessoa
ou grupo de pessoas no sentido de sensibilizar a maioria e chamar a atenção da
opinião pública para ações, decisões ou normas injustas que tem vigência na
sociedade. [...] A desobediência civil é, portanto, um mecanismo indispensável para
a saúde política e jurídica do Estado democrático de direito, como o é para qualquer
Estado de direito. (HANSEN, 2004, p. 214)

Finalizamos essa breve discussão sobre a desobediência civil, pensando juntamente


com Hansen, na importância desse assunto como alerta dos problemas que afligem nossa
sociedade e da necessidade de implementá-la de forma mais justa e solidária para todos e todas.
Essa reflexão é fundamental para o enfrentamento da violência doméstica numa
sociedade que naturaliza o machismo e o patriarcado afirmado e confirmado a todo tempo por
regras e normas injustas presentes inclusas em políticas públicas e ordenamentos jurídicos que
coercivamente disciplinam muitas condutas humanas violentas travestidas de paz social.
Passamos agora a discussão de Hansen sobre ética e moral como forma de entender
as condutas humanas demarcando valores culturais.

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1.2. ÉTICA E MORAL

Os textos escolhidos foram “Resolução de Conflitos no Estado Democrático de


Direito: Uma Perspectiva Habermasiana”; e “Conhecimento, Verdade e Sustentabilidade:
Perpectivas Ético-Morais em Cenários Contemporâneos”, publicados respectivamente em
2011 e 2012. Através deles, interessa-nos pensar, principalmente, a análise do autor sobre
tensão e a confusão que muitos fazem entre a ética e a morale , também, a mediação
apresentada como possibilidades de resolução de conflitos de interesses, discutidos ao seu olhar
entre pessoas físicas e jurídicas, as quais nós vislumbramos como possibilidades para toda a
sociedade.
Iniciando então, a discussão sobre ética e moral, que nos ajudará a pensarmos o
diálogo entre grupos diferentes, Hansen (2011, p.18) nos apresenta uma distinção importante
entre esses dois termos. Ética seria um “conjunto de valores e de concepções de bem viver
partilhados por uma coletividade” , e neste caso, uma coletividade tem em sua comunidade
várias éticas convivendo. O problema acontece quando um grupo não reconhece como valido
a ética do outro grupo, e assim iniciam-se os conflitos. A intolerância religiosa talvez seja um
bom exemplo para entendermos essa reflexão trazida pelo autor.
Em Vitoria - ES, o jornal A Gazeta (31/09/2017) noticiou o fato de que um pastor da
igreja Evangélica Batista pediu que uma professora retirasse a boneca colocada no quadro da
escola, afirmando que esta, por originar-se de uma religião africana, era símbolo de macumba.
A boneca Abayomi, de origem africana, foi colocada no painel da escola após a produção do
projeto, coordenado por essa professora, sobre resgate da cultura afro-brasileira. O projeto vai
ao encontro da Lei 10.639/03 que trata da obrigatoriedade do ensino da historia e cultura afro-
brasileira e africana nos currículos escolares.
Será que os valores e a concepção de bem viver do pastor da igreja Batista estão sendo
ameaçados pela ética da cultura afro-brasileira e pelas religiões de matrizes africanas,
conceituadas por ele, como macumba? A escuta de Hansen nos permite ampliar esse debate.

Neste momento é que surge o impasse, pois a partir de qual critério se pode definir
qual ética é passível de realização e qual será inviabilizada? Será pela força bélica?
Pela etnia? Pelo poderio econômico? Pela capacidade de subjugação da
alteridade?(...) e o problema é que, na maioria das vezes, não encontramos
alternativas ao estado de coisas patológico que toma conta da sociedade e das
relações interpessoais. E as saídas que nos apontam, quase sempre alicerçadas em
concepções ontológico-metafisicas de conhecimento e em absolutizações de
verdade, só engendram novos problemas, preconceitos, conflitos. O que fazer? – eis
a questão! (HANSEN, 2012, p.71).

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Em um texto que escrevi em parceria com Rodrigues intitulado “Paradigma Indiciário


como Possibilidade de Leitura Textual: A Lógica Perversa na Política” (PIRES E
RODRIGUES, 2016), problematizamos a perversidade incutida em gestos como estes do
pastor que em nome de uma religião, maltrata, humilha e ridiculariza pessoas. Tantas vezes isso
tem se repetido em casos como LGBTfobias, nas violências contra a mulher e contra a criança,
nas gordofobias, e em muitos outros tipos de intolerâncias em que pessoas chegam ao estremo
de até matarem em nome de uma “verdade”.
Se o estudo sobre a ética nos ajuda a entender como os conflitos se dão, o estudo sobre
a Moral apresentado por Hansen (2004) nos possibilita o enfrentamento a esses conflitos,
entendendo onde está a base do processo de humanização do ser humano. O conceito de moral
deve buscar se orientar a partir de perspectivas universais balizadas por regras que tenham como
referencia a justiça. É bom esclarecer que Hansen afirma que esses princípios de
universalização têm como inspirador Kant. Buscando resumir os três princípios apresentados,
e assumindo o risco do reducionismo quando optamos por esta forma de exposição de bases
teóricas tão importantes, apresentaremos abaixo fragmentos trabalhados por nós.
A primeira nos convida à reflexão se nossas atitudes podem ser referendadas como
“auto-referente positiva” ou “auto-referente negativa”.

1ª) Age de tal modo que tua ação sirva de modelo aos demais (...) Isso significa que
se pratiquei uma ação, ela será moral se todos puderem praticá-la sem que, com isso,
a sociedade seja ameaçada ou inviabilizada. Se minha ação trouxer beneficio a todos,
então ela é moral [...] (HANSEN, 2012, p. 72).

A segunda noção de moralidade inspirada em Kant, nos ajuda pensar se estamos


próximos da “idéia de dignidade humana” ou de objetivação e coisificação das pessoas.

2ª) Age de tal maneira a tratares, na tua pessoa ou de qualquer outrem, a humanidade
não somente como meio, mas sempre como fim em si mesma. (...) não podemos
aceitar que, estando “sob ordens” (subordinados) - portando, em assimetria
funcional- sejamos tratados como seres cujo status enquanto humanos é também
assimétrico (HANSEN, 2012, p. 72).

A terceira e ultima diz respeito ao papel de cada um de nós buscando sempre a


reflexão de que nossa intervenção no mundo, valida ou desconstrói decisões autoritárias,
excludentes.

3ª) Age de tal maneira que tua ação seja a de um legislador universal. A atitude de
alguém que se move moralmente implica na vigilância crítica e permanente ás

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normas e leis, de sorte que uma lei ou norma somente adquirem validade e
legitimidade á medida que puderem receber a autorização racional daqueles para as
quais se voltam. Esse prisma torna cada um dos cidadãos não apenas cumpridores
das leis, mas também legisladores (HANSEN, 2012, p. 73).

Um problema, porém se coloca como obstáculo a essa resolução de conflitos. Esses


espaços com objetivos democráticos, pensados numa dimensão interativa social de produção
de projetos tem sido relegado ao segundo plano, principalmente se voltados ao bem comum e
construído de forma coletiva. Esse esvaziamento de espaços coletivos, o uso de “medidas
baseada na força e a imposição da vontade aniquiladora”, têm sido elementos que dificultam a
condição reflexivo-argumentativa que constitui um “grande fator diferenciador e identificador
de nossa espécie com relação às demais (HANSEN, 2011, p.101)”.
Pensar uma proposta democrática de resolução de conflito numa perspectiva
democrática nos coloca diante de uma condição de pensar mecanismos positivos como os
estudados por Hansen (2011) em seu texto “A resolução de Conflitos no Estado Democrático
de Direito: uma perspectiva Habermasiana”. Neste sentido apresentaremos na sequência a
proposta do uso da mediação exposta pelo autor.

1.3. MEDIAÇÃO

A nossa opção pela mediação como mecanismo de superação de conflito se deve ao


fato de que este se apresenta como um complemento a nossa discussão. A mediação como
mecanismo de superação de conflito de interesses nos oferece pistas enfrentar os conflitos já
existentes entre comunidades diferentes.
No contemporâneo há uma sobrecarga do judiciário, visto que são levados para a
esfera do direito, problemas que podem ser resolvido entre os pares. Esse aumento da demanda
judicial tem prejuízos incalculáveis, e romper com esse paradigma nos impõe o desafio de:

Resgatar, perante a sociedade, a autocompreensão dos cidadãos acerca da


possibilidade que estes trazem em si de resolver seus próprios conflitos, sem
necessitar de alguém que, de forma coercitiva e ostensiva, diga a eles o que é o direito,
o que é o justo, o que é que eles devem crer ou esperar, o que eles querem para si
próprios (HANSEN, 2011, p. 115).

A mediação como mecanismo de superação das tensões se faz importante a ser


analisada. Ela é trabalhada pelo autor na dimensão jurídica, porém aqui queremos pensá-la
numa dimensão ampliada para todas as esferas da sociedade, família, escola, igreja.

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A mediação ao buscar a solução de conflitos, no ituito de resgatar a “qualidade das


relações abaladas”, tem como desafios

[...] a reconstrução das relações que se desgastarem ao longo do tempo por discórdia
e divergências de opiniões, refazimento de laços, fomentando e amadurecimento do
dialogo entre as partes, valorização das partes envolvidas no conflito, transformação
de pontos divergentes em um ponto comum (HANSEN, 2004, p. 115).

A base da mediação é a identificação do conflito para o resgate da relação desgastada,


o que exige “tempo, cuidado, dedicação e, muitas das vezes vigilância do mediador com relação
à sua própria conduta no processo de resgate da dignidade das partes que se efetiva durante a
mediação” (HANSEN, 2004, p. 116).
Para nós é importante a postura do mediador que evita a neutralidade, e busca a
imparcialidade, ouvindo todas as partes e aprendendo junto com os mediados.
Fazer parte de uma equipe multidisciplinar e acreditar na solução do conflito também
são pontos chaves para que a mediação seja eficiente e eficaz resolução das lides. Um cuidado
é não atuarmos a partir de experiências muitas vezes carregadas de pré-conceitos produzidos
ao longo da nossa vida e da nossa condição de sujeito histórico.
Ao apresentar aqui as preocupações do autor sobre a formação de pessoas para
atuarem como mediadores e com os parâmetros que estes usarão, retomamos a discussão sobre
a ética e a moral, apresentada acima, que se coloca como fundamental para o mediador. Hansen
(2011) trabalhou a possibilidade da mediação resgatar o valores e os procedimentos
democráticos, chamando a atenção sobre a urgência em pautar as ações em procedimentos
democráticos de forma a:

[...] não nos contradizermos e não admitirmos a contradição; [...] utilizarmos


linguagem clara e transparente nas ações e procedimentos [...] não usarmos dois
pesos e duas medidas [...] Garantirmos a ampla manifestação de todos os argumentos,
desejos, necessidades e percepção das partes [...] pautarmos as intervenções de todos
os autores [...] Reconhecermos todos os participantes do processo como
linguisticamente competente e por isso capazes de se manifestar [...] Acreditarmos
na força do diálogo e do discurso como meios de resolução de problemas [...]
confiarmos firmemente na possibilidade da construção de consensos [...] que
possamos descobrir, na pratica da mediação e da arbitragem um modo de nos
comportamos nas diversas instancias que compõe nossa existência em sociedade.
(HANSEN, 2004, p. 119)

Finalizamos a discussão sobre Desobediência Civil; princípios da ética e moral; e a


mediação como mecanismo de superação dos conflitos de interesse compreendendo que

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encontramos pistas importantes para pensar o enfrentamento às violências, principalmente


àquelas contra a mulher.
Nos pontos analisados por Hansen em seus textos sobre esses elementos fundamentais
para pensar uma sociedade com bases solidadas de democracia encontramos uma proposta de
intervenção que tem na desobediência civil uma justificativa, os objetivos nos princípios da
ética e da moral e na mediação um método alternativo de intervenção resgatando processos
democráticos de convivência social.

2. A VIOLENCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UM PROBLEMA


HISTÓRICO, POLÍTICO, CULTURAL E IDEOLÓGICO

Segundo o Forum Brasileiro de Segurança Publica, em 2016, a cada hora, 503


mulheres sofrem algum tipo de agressão física, das quais, 52% das agredidas disseram não ter
feito nada após a agressão, nem mesmo procuraram a ajuda da família, amigos e, muito menos,
a delegacia.
40% das mulheres Brasileiras afirmam terem sido assediadas, 70% ouviram
comentário desrespeitosos na rua, sendo que 19% relatam ter ocorrido no ambiente de
trabalho, e 15% no transporte público .
O DataSenado em parceria com o Observatório da mulher contra a violência,
apresenta o índice de mulheres que de 2015 a 2017 declararam ter sofrido violência. O que
significa que o índice passou de 18% para 29%.
Três temas incluídos nas perguntas feitas a essas mulheres nos pede observação: o
primeiro é relativo a percepção das mulheres sobre a violência contra elas, que aumentou 69%
considerando que 89% afirmaram ter ouvido falar mais sobre a temática no ultimo semestre; o
segundo diz respeito a vulnerabilidade, em que o percentual de mulheres que afirmaram
conhecer outras mulheres que sofreram violência saltou de 56% para 71%. Mulheres que
possuem filhos estão mais propensas a sofrerem violência, o percentual dessas violências
cometidas por um homem foi: 15% em mulheres sem filhos e 34% com filhos; a raça e o tipo
de violência também foi apresentado dentro da temática vulnerabilidade, pois das violentadas
57% eram brancas e 74% pretas ou pardas. O terceiro tema que pede observação diz respeito a
Lei Maria da Penha, embora todas tenham afirmado conhecer esta lei, 77% declaram que este
conhecimento é superficial.

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Ao analisar a pesquisa acrescento outro tema fundamental, a situação da infância.


Segundo dados do IPEA (2014), crianças e adolescentes são 70% das vitimas de
estupro, 24,1% dos agressores são pais ou padrastos e 32,2% são outras pessoas próximas (tios,
vizinhos, primos e amigos).
O Espírito Santo é o estado com maior numero de feminicídio do Brasil. Na pesquisa
sobre a realidade Brasileira sobre feminicídio, 68,8% ocorreram dentro de casa, sendo 65%
cometido por parceiros ou ex-parceiros. Cristiane Brandão (2015) professora Direito Penal da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora dessa pesquisa, afirma que a violência
contra a mulher é um sintoma de uma sociedade brasileira machista e patriarcal.
Oliveira e Cavalcanti (2007) realizaram uma pesquisa utilizando os acervos da
Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Salvador-Bahia, nesta pesquisa uma delegada
e uma doutora em história observaram que a violência contra a mulher se manifesta de diversas
formas e que esta tem sua base principal na naturalização de desigualdade entre homens e
mulheres. Perceberam que as categorias poder e violência são temáticas bases para a análise do
fortalecimento de valores históricos e culturais do patriarcado. A base do poder discutido pelas
autoras se aproxima de uma visão negativa do poder, ou seja, aquele que adestra impondo uma
“docilidade-utilidade” produzindo domínio e carregando verdades.
Buscando ampliar essa discussão sobre o poder recorremos a Arendt (2009, p. 62) que
nos convida a uma reflexão sobre a distinção entre violência e poder. Para a autora o poder é a
habilidade de buscar o assentimento para uma ação sobre o outro. Já a violência é o uso da
força, vigor e coerção para chegar o domínio de outrem. Comenta que “a diminuição do poder,
seja individual, coletivo ou institucional é sempre um fator que pode levar à violência [...] muito
da presente glorificação da violência é causada pela severa frustração da faculdade de ação do
mundo moderno” Fazendo uma escuta a contrapelo e analisando a teoria de Arendt adequada
á época que vivemos, refletimos que a violência contra a mulher é naturalizada e por isso não
reconhecida como violência. Esta, ganha contornos ainda mais perverso porque se efetiva a
partir do poder.
Oliveira e Cavalcanti (2007) analisam o patriarcado, numa perspectiva do individuo,
engendrando e naturalizando uma cultura de gênero que define papéis, funções e condutas de
homem e mulher. No que se refere ao chamado estrutural, as autoras afirmam que esta mesma
crença e valores de gênero que atua no individual é reforçada pelas instituições como justiça,
escola, família, espaços sociais, hospitais enfim nos espaços de circulação de poder.

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Em relação a dominação, esta por si só é uma violência simbólica, vez que instituída
pela adesão do dominado ao dominador e à própria dominação. Apresenta-se para
quem é atingido por seus efeitos, como uma relação “naturalizada”. Ademais, há uma
subordinação que e estabelece com parte integrante das relações entre os envolvidos
desse processo (OLIVEIRA; CAVALCANTI, 2007, p.42)

Faz parte desse processo de produção de ideologia de gênero a implementação de leis


e decretos que ao longo da história possibilitaram ao homem o entendimento de proprietário da
mulher. As Ordenações Filipinas datadas de 1830 imprimiam ao homem a função de impor
castigos corporais e até morte à mulher para que esta o obedecesse. Hoje a Lei Maria da Penha
busca corrigir esse equívoco colocando a violência cometida contra a mulher como crime e em
caso de feminicidio, a pena que para homicídio tem uma margem de 6 a 20 passa para 12 a 30
de reclusão do assassino.
Uma experiência importante, para pensar esse processo de naturalização da violência
contra a mulher, é o projeto de uma Promotora de Justiça do Ministério Publico do Mato
Grosso. Contou-nos a Drª. Lindinalva Rodrigues Dalla Costa, em uma palestra durante o V
Congresso Estadual do ES sobre a Lei Maria da Penha, que os homens que eram presos por
agressão às mulheres questionavam suas prisões afirmando que não haviam roubado nem
matado, apenas haviam batido em suas mulheres. Com base nestas afirmativas a promotora,
com sua equipe, criou o projeto “Lá em Casa quem Manda é o Respeito”, este projeto é
desenvolvido pela Secretaria de Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social, parceria
entre o Ministério Público e o Governo do Estado do MT. Ainda segundo a Drª Lindinalva,
com a implantação efetiva do projeto a reincidência dos homens por agressão ás mulheres nos
presídios quase zerou, visto que eles discutiam efetivamente a raiz da violência doméstica.
Retornamos a Arendt (2012) quando no julgamento de Adolf Eichiman, ousou ao
afirmar que o tribunal estava julgando o homem, mas esquecendo de julgar o sistema. A autora
enfatiza que Adolfo Eichiman abdicou da característica que mais define o homem como
humano.
Comenta a autora:

[...] há de ser capaz de pensar e essa capacidade de pensar permitiu que muitos
homens comuns cometessem atos cruéis [...] a manifestação do ato de pensar não é
o conhecimento, mas a habilidade de distinguir o bem do mal [...] eu tenho a
esperança de que o pensar dê forças ás pessoas para evitarem a catástrofe nesses raros
momentos na hora da verdade. (ARENDT, 2012)

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CONCLUSÃO

Conversar os autores supracitados nos aguça os sentidos e amplia nossa percepção de


várias pistas, indícios e sinais para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher.
Algumas questões foram se evidenciando e se configurando como possibilidades de uma
proposta de trabalho.
A experiência do projeto “Lá em Casa quem Manda é o Respeito”, colocando em
discussão não apenas o ato do agressor, mas toda uma ideologia histórica, política e cultural do
patriarcado que se manifesta numa sociedade machista com objetivação da mulher nos
aproxima dos estudos de Hansen sobre ética e moral. A ética enquanto valores de um grupo, de
uma coletividade precisa dar espaço à discussão da moral que se orienta em perspectivas mais
universais que buscam como referencia os valores democráticos.
Percebemos que tanto o conceito de ética, quanto o conceito de moral são
fundamentais para o enfrentamento das violências, pois propicia a busca por ampliação de
espaços de debates, com a participação de todos, não só nas deliberações mas, nas
implementações de atividades. Essas devem buscar, como evidencia Hansen (2003, p.73) “a
convivência pacifica, solidária e produtiva de diversas comunidades éticas.”
Para tanto será necessário dialogar sobre a ética de cada comunidade para o encontro
e entendimento dos princípios de universalização apresentados neste estudo. Os espaços
multiculturais, multidisciplinar, enfim, inclusivos, precisam dialogar sobre conhecimentos e
“verdades” produzidos ao longo da história e ainda muito presentes nas nossas ações cotidianas
e, na maioria das vezes, de forma inconsciente.
A pesquisa realizada na Delegacia Especial de Atendimento à mulher de Salvador-
Bahia problematizando que o sistema patriarcado fortalece a hierarquia entre homem e mulher
e com isso naturaliza a violência contra mulher, evidencia o poder como violência simbólica
efetivado na dimensão individual e institucional.
Essa pesquisa nos aponta a desobediência civil como possibilidade de enfrentamento
desse sistema histórico, político, cultural e ideológico, uma vez que concordamos Hansen
quando a refere como uma resistência à autoridades injustas. Desobedecer, nesse sentido, seria
então se contrapor às normas e decisões vigentes nos espaços sociais, na família, na escola, na
igreja enfim nas instituições, chamando a atenção também da opinião pública das injustiças
presentes nestes espaços que se afirmam democráticos.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Quanto ao mecanismo de superação de conflito, tendo como base a mediação,


acreditamos que nos ajuda a identificar, nas nossas experiências cotidianas, onde estão os pré-
conceitos existentes em nossa subjetividade e que fomos reproduzindo e recriando ao longo da
nossa condição de sujeitos históricos e sociais.
A fala de Arend colocando o pensar como enfrentamento á violência, por parte de
quem sofre e também de quem violenta, nos dá pistas importantes para a análise daquilo que
nos constitui enquanto sujeitos das nossas experiências ao longo da nossa história individual e
coletiva. Como nem sempre conseguimos ter clareza que nos tornamos cúmplice da nossa
própria dominação, a proposta da autora nos convida a uma humildade que na maioria das vezes
estamos longe de possuir.
Em nosso projeto de extensão da UFES, criado desde 2005 “Fordan: Cultura com
Enfrentamento à Violência” temos experimentado identificar em nos resquícios fortes de do
racismo, lgbtfobia, gordofobia, machismo, e outra violências, visto que a compreensão de que
esses valores excludentes nos constitui e nos ajuda romper e buscar uma moral compatível com
nossa proposta de auto-formação humana.
Ao acolhermos as mães, crianças e jovens em situação de vulnerabilidade e que
sofrem violências cotidianamente, acionamos a mediação como mecanismo de superação de
conflitos de interesse.
A equipe multidisciplinar formada por advogada, assistentes sociais, professores de
arte, professores de educação física, professores universitários da área de ciência sociais,
história, letras, psicanálise tem buscado acreditar na solução de conflitos, engajando em lutas
especificas e pontuais junto a políticas sociais, oferecendo acessos aos direitos negados a essa
população, e principalmente se colocando como ponto de resistência, fazendo a própria critica,
estudando e dialogando constantemente sobre cada violência que temos buscado ações para
combatê-la.
Os espaços de conversa usando como dispositivos a arte, dança e música também têm
se colocado como necessários e potentes para a discussão junto com os acolhidos pelo projeto,
desta complexidade histórica, política, cultural e ideológica da violência. Como Arendt temos
esperança de que pensar fortalece as pessoas..

REFERÊNCIAS

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<http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/06/08/datasenado-aponta-aumento-no-percentual-de-
mulheres-vitimas-de-violencia> Acessado em 31/09/2017.

Especialistas apóiam debate sobre violência contra mulher em escolas. Disponível em:
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CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UMA CONSTRUÇÃO
HORIZONTALIZADA DOS DIREITOS HUMANOS COM
APORTES NO TRANSCONSTITUCIONALISMO

FERREIRA, Lucas Pontes


Mestrando em Direito Constitucional – PPGDC/UFF

RESUMO

Através do conceito formulado por Marcelo Neves de transconstitucionalismo, pretende-se elencar


alguns aspectos relevantes à comparação entre os dois sistemas internacionais de proteção aos direitos
humanos, o interamericano e o europeu, abordando a categoria teórica dos direitos humanos. Assim,
primeiramente, delineia-se o fenômeno do transconstitucionalismo para, em seguida, desenvolver
algumas considerações sobre os direitos humanos, trazendo-se elementos dos sistemas internacionais de
proteção. A problemática traçada diz respeito a conjugação entre o domínio privilegiado do Estado
nacional na solução de questões constitucionais, ante os sujeitos e ordem internacional. Dessa forma,
articula-se – por meio dos direitos humanos - a discussão apontando a necessidade e importância da
construção dos significados dos casos através de uma interpretação dialógica.

Palavras-Chave. Transconstitucionalismo; Sistemas internacionais; Direitos humanos; Interpretação.

ABSTRACT

Through the concept formulated by Marcelo Neves de transconstitucionalismo, it is intended to list some
aspects relevant to the comparison between the two international systems of protection of human rights,
the Inter-American and the European, addressing the theoretical category of human rights. Thus, first,
the phenomenon of the transconstitutionalism is delineated and then develop some considerations about
human rights, bringing elements of international protection systems. The problematic traced relates to
the conjugation between the privileged domain of the national State in the solution of constitutional
questions, before the subjects and international order. Thus, through the discussion of human rights, the
discussion points out the necessity and importance of the construction of the meanings of the cases
through a dialogical interpretation.

Keywords. Transconstitutionalism; International systems; Human rights; Interpretation.

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INTRODUÇÃO

Por meio do transconstitucionalismo formulado por Marcelo Neves pretende-se


apontar alguns aspectos relevantes à comparação entre os dois sistemas internacionais de
proteção aos direitos humanos, o interamericano e o europeu. Dialoga-se com a categoria
teórica dos direitos humanos.
Para tanto, ao desenvolvimento do presente, a técnica de pesquisa adotada foi
predominantemente bibliográfica, contando com documentação jurídica, envolvendo texto
normativo; e não jurídica. Consiste em abordagem analítica, apresentada de forma descritiva e
explicativa, dividida em dois pontos.
No primeiro, delineia-se o fenômeno do transconstitucionalismo para posteriormente
desenvolver algumas considerações sobre os direitos humanos, trazendo-se elementos dos
sistemas internacionais de proteção a esses direitos – o europeu e o interamericano.
A abordagem do tema tem como problema a conjugação entre o domínio privilegiado
do Estado nacional na solução de questões constitucionais, ante os sujeitos e ordem
internacional. Assim, articula-se – por meio dos direitos humanos - a discussão apontando a
necessidade e importância da construção dos significados dos casos através de uma forma
dialógica.

1. BALIZAMENTOS ACERCA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO

Devido ao fato de se tratar de uma construção teórica, dificilmente se encontra o


significado da palavra transconstitucionalismo através da etimologia, mas entende-lo é
necessário para se captar o sentido a que se denomina. Quando se pensa “trans”, não seria
incomum vir à memória nomenclaturas como transexual, transgênero, que é algo, de certo
modo, aproveitável, nesse entendimento, haja vista que transexual pressupõe um sexo diferente
ao existente, e transgênero um gênero diferente ao existente. Em dada medida,
transconstitucional diz respeito a uma ordem constitucional diversa, porém não é apenas isso.
Se se desaglutina a palavra trânsito, sito de parado e trânsito de movimento, fluidez,
flexibilidade entre os lugares, possivelmente esse é o sentido que mais se aproxima da proposta
de Marcelo Neves ao versar sobre o transconstitucionalismo.
Marcelo da Costa Pinto Neves é professor de Direito Público da Universidade de
Brasília - UNB, possui uma reflexão sobre a função social do direito no Brasil, através de uma

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

visão sociológica e filosófica, fora membro do Conselho Nacional de Justiça – CNJ


(2009/2012), fez doutorado na Universidade de Bremen, Alemanha sob a orientação de Karl
Heinz Ladeur e Niklas Luhmann, onde publicou sua tese intitulada Verfassung und Positivität
des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation
des Falls Brasilien, na qual dialoga com conceitos tanto de Luhmann, quanto de Jürgen
Habermas.
Apesar de utilizar elementos teóricos desses autores, o professor da UNB se recusa a
aplicá-los automaticamente no Brasil, por considerar que eram autores que dialogavam com a
realidade na qual estavam inseridos e o Brasil por pertencer a um contexto diferente perderia
com um transplante teórico.
Porém, Neves (2012) também se recusa a aplicar uma teoria genuinamente brasileira
para a compreensão do fenômeno jurídico, porque entende que as teorias têm caráter universal,
então é possível dialogar com elas desde que sejam traduzidas, incorporadas de modo que
respeite as idiossincrasias que possibilitam maior compreensão do funcionamento do direito no
Brasil.
Tanto assim que alguns sociólogos tratam Marcelo como vanguardista dada essa
dupla recusa em se aplicar automaticamente teorias estrangeiras e teoria tipicamente brasileira.
Sua proposta caminha em direção à digestão de ambas. Haja vista que “o
transconstitucionalismo, muitas vezes, enfrenta ordens que não admitem os pressupostos do
constitucionalismo” – exemplo das comunidades remotas, diferentemente da
interconstitucionalidade, na qual, “supõe-se que duas ordens são orientadas a buscar soluções
para a proteção dos direitos fundamentais e a organização (limitação e controle) jurídica do
poder” (CONHECENDO, 2012, p. 415).
Por conseguinte, entende que o direito no Brasil não se dá de forma autopoiética, mas
alopoiética, que dizer, ocorre determinações externas que influenciam na formulação do
Direito, e os códigos internacionais são exemplos.
Grosso modo, o direito para Luhmann corresponde a um sistema operativamente
fechado e cognitivamente aberto. Isto é, conhece o que lhe é exterior, mas isso não interfere no
modo como se vai produzir o direito. Por isso autopoiético, que é um conceito trazido da
biologia pelos chilenos Humberto Maturana e Fagundes Varela (AMADO, 2004).
Esse pensamento de Marcelo Neves permite fazer o Brasil entrar na modernidade
central. O que, arrazoadamente, assemelha-se a ideia de soberania compartilhada, espécie de

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ISSN 2236-9651, n. 7

pluralismo pós-Estatal (HABERMAS, 2001). Ou seja, soberania com vários centros, o que é
realizado quando um país se sujeita a um tratado, podendo sofrer suas influências e sanções. O
que também, conforme Douglas Elmauer (2013), conduz a superação dos debates entre as
teorias monistas e dualistas no Direito Internacional.
Nessa medida, surge a invocação da racionalidade transversal, conceito elaborado
pelo filósofo alemão Wolfgang Welsh. Transversal porque não há um metadiscurso universal
capaz de ser referência a todos os discursos particulares, quer dizer, não há na perspectiva de
Neves um “Estado Mundial” que controlaria e centralizaria todos os ordenamentos, porém sim,
constante adequação recíproca através do diálogo.
Por isso, Marcelo Neves (2014, p. 194) adverte que esse diálogo não se dá na mesma
vertente de Habermas, para quem os conflitos argumentativos poderão levar ao consenso
racional ou à aniquilação.
Desse modo, o transconstitucionalismo trata dessa capacidade pós-moderna de em
matéria constitucional referente aos direitos humanos poder se argumentar com outros órgãos
e instituições a fim de se encontrar a melhor solução. Com o objetivo de elucidar alguns
exemplos de transconstitucionalismo, Neves (2009) elenca em sua tese 98 casos, mas que,
entretanto, devido as limitações deste trabalho não serão esmiuçadas.
Não obstante, ponto relevante em um dos casos citados diz respeito ao depositário
infiel em que o art. 5º, LXVII da CRFB/88 planteia sua permissão enquanto que o art. 7º, nº 7
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) dispõe em sentido negativo. No
entanto, com o HC 87.585/TO surgiu que o tratado internacional pode entrar com status de
emenda constitucional se versar sobre direitos humanos, passando pelo crivo do art. 5, §3º da
CRFB/88.
Nesse sentido, impõe destacar que em 1988 todos os tratados eram incorporados na
forma do art. 49, I e 84 da CRFB/88, em que o Presidente da República assina, o Congresso
Nacional aprova por meio de decreto – maioria simples – e o Presidente da República promulga
por meio de decreto presidencial, conferindo status de norma ordinária federal.
Isto, em dada medida, não agradava a doutrina. Porém, a emenda constitucional n.45
de 2004, acrescentou ao art. 5 o §3º na CRFB/88 com a redação versando que tratados que
passarem em 2 turnos em cada casa legislativa com 3/5 dos votos terão status de emenda
constitucional – norma constitucional derivada.

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Em 2007, o Presidente da República assinou a Convenção Internacional e o Protocolo


facultativo relacionado aos direitos humanos - no que tange a pessoa com deficiência. O
Congresso Nacional aprovou por meio do Dec. 186 e o Presidente da República promulgou na
forma do Dec. 6949/2004, sendo até o momento o único que possui status de norma
constitucional.
Outro ponto sinalizado por Marcelo Neves é a grande proporção em que a
jurisprudência brasileira cita outras ordens jurídicas, mas sem se deixar influenciar por elas, um
caso que pode ser mencionado é o das células tronco (ADI n. 3510). Em contrapartida, um
estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas - FGV, divulgado em abril de 2012 sobre os
recursos extraordinários, entre os anos de 2003 a 2009, constatou que 95,5% dos acórdãos
trazem obras nacionais e 34,7% estrangeiras, e não há citação à Convenção Americana
(ROSILHO, et. al., 2012, p. 18).
Contudo, nessa perspectiva de análise sobre o transconstitucionalismo, traz-se
Cançado Trindade1 em “Os Tribunais Internacionais Contemporâneos” (2013), no que tange,
grosso modo, a relação entre a interação entre o direito internacional e os tribunais. No primeiro
capítulo do livro o autor aborda os antecedentes históricos até o advento da Antiga Corte de
Haia (CPJI). Versa que em 1907 criou-se o primeiro tribunal internacional – a Corte Centro
Americana de Justiça, estabelecida pela Convenção de Washington – que tinha ampla base
jurisdicional atendendo aos Estados e aos indivíduos, estes através das reclamações
apresentadas, conforme as pretensões da II Conferência da Paz de Haia.
Em 1920, quando se estava na elaboração do Estatuto da Corte Permanente de Justiça
Internacional (CPJI), optou-se que o exercício da função jurisdicional internacional estaria
adstrito aos Estados, isso para favorecer os membros do comitê de juristas encarregado de
redigir o Estatuto da CPJI.
Cançado entende que houve avanço na ideia internacional, sendo um ponto marcante
a luta pelo reconhecimento e afirmação da personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo,
para pleitear direitos que lhes são inerentes como ser humano.

1 Antônio Augusto Cançado Trindade, jurista brasileiro nascido em Belo Horizonte/MG em 1947. Professor Emérito de Direito
Internacional da Universidade de Brasília; Professor Titular de Direito Internacional do Instituto Rio Branco (1978-2009);
Professor Honorário da Universidade de Utrecht; Honorary Fellow da Universidade de Cambridge; Ex-Presidente da Corte
Interamericana de Direitos Humanos; Juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia); Ex-Consultor Jurídico do Ministério das
Relações Exteriores (1985-1990); Membro Titular do Institut de Droit International, e do Curatorium da Academia de Direito
Internacional da Haia.

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No terceiro capítulo, o autor desenvolve que os tribunais internacionais têm sido


sensíveis às demandas dos indivíduos, buscando atender o acesso direto entre eles e suas
jurisdições. O que para Cançado Trindade significa o resgate dos indivíduos como verdadeiros
sujeitos do direito internacional dos direitos humanos. Assim como o direito internacional
público com capacidade jurídica para atuar na esfera internacional, o que traduz plenas
personalidades e capacidade jurídicas internacionais.
Nesse sentido, planteia que a Corte Europeia e Interamericana têm desenvolvido vasta
jurisprudência em relação aos direitos protegidos por ambas as convenções regionais de direitos
humanos.
Trindade destaca, em seu estudo, a relevância dos princípios gerais do direito, os quais
abarcam igualmente os princípios do próprio direito internacional, informando e conformando
tais normas, abrindo caminho a uma justiça objetiva.
Para Cançado Trindade, os princípios gerais formam o próprio substrato do
ordenamento jurídico, integrando a unidade do direito, já que direito interno e internacional em
grande parte dos países passam a caminhar juntos, tanto que no ciclo dos casos peruanos
(2007/2010 – período de violações de direitos humanos) a jurisdição internacional interveio em
prol da nacional a fim de se restaurar o Estado de Direito.
Assim, o direito internacional atribui funções internacionais também aos tribunais
nacionais por meio da expansão da personalidade e responsabilidade internacionais destes.
Com base em sua atuação profissional na magistratura internacional, o autor planteia
que os tribunais internacionais contemporâneos possuem juízes provenientes de distintos
sistemas jurídicos nacionais, culturas jurídicas e formação - caráter plural que contribui para a
construção de um direito internacional universal.
Realizado esse breve panorama impera repensar sobre os aspectos similares e díspares
entre os sistemas europeu e interamericano de direitos humanos para se compreender melhor
sobre a categoria teórica do transconstitucionalismo.

2. SISTEMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS - EUROPEU E


INTERAMERICANO: Algumas Considerações

Com o objetivo de reconstruir o mundo, vários Estados europeus juntaram forças


criando organizações internacionais, cujo desenrolar culminou na organização

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intergovernamental denominado Conselho da Europa – criado em 5 de maio de 1949. Seu


objetivo principal é a proteção dos direitos humanos, o regime democrático e o Estado de
Direito (CARVALHO, 2016, p. 165).
Importante frisar que por trás da criação desse Conselho havia interesses como negar
o comunismo soviético e fortalecer políticas liberais internas (CARVALHO, 2016, p. 166).
Nessa medida, não seria desarrazoado dizer que a internacionalização de tais direitos não surgiu
como algo vinculado as lutas e deliberações individuais, senão por um ideal abstrato de direito
humanos baseado na negação dos horrores cometidos na 2ª Guerra Mundial.
Já nas Américas o pano de fundo seriam as conferências pan-americanas que tinham
como escopo o estímulo à abertura de mercados e a formação de uma cooperação técnica, o
que possibilitou as codificações internacionais e a aproximação entre os Estados americanos.
Nesse ponto, ressalta Danielle Souza que

[...] que oito meses antes da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos
pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, vinte e um países das Américas,
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República
Dominicana, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, reunidos em
Bogotá, adotaram aquele que, de fato, deveria ser considerado como o primeiro
instrumento de relevo no campo da proteção internacional dos direitos humanos: a
Declaração Americana dos Direitos do Homem.

E, que o integra o conjunto de proteção de direitos humanos é a Declaração


Americana de Direitos e Deveres do Homem, a Carta da Organização dos Estados Americanos,
a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Protocolo de San Salvador. Juntos formam
o sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos.
O sistema europeu fora criado antes do Interamericano, conta com 46 juízes, possui
maior estrutura física e também recursos para atender aos honorários dos juízes e receber grande
quantidade de casos. Apenas emitiu duas opiniões consultivas, porém suas funções são
eminentemente contenciosas sendo mais interiorizado e conhecido pelos seus cidadãos. José
Antonio Pastor Ridruejo (2007), jurista espanhol de Direito Público, dispõe que se se perguntar
a um nacional de um país da América Central ou meridional da OEA, poucos ou ninguém
conhece a CIDH.
Embora a CIDH se sobressaia no aspecto cautelar – art. 63.2 – que não há na
Convenção de Roma, o que os autores que fazem essas comparações entre os sistemas

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praticamente planteiam é que o sistema interamericano de direitos humanos é muito


embrionário nesse aspecto.
O labor deve ser completado por mecanismos intergovernamentais com
procedimentos de assistência consultiva em matéria constitucional, esse é o ponto de encontro
entre o estudo comparativo entre os dois sistemas e o transconstitucionalismo.

2.1. ANÁLISE INTERPRETATIVA DOS DIREITOS HUMANOS

Em 1948 densificou-se o conceito de “direitos humanos”, sendo uma “Declaração”


não vinculante e não um tratado internacional (CARVALHO, 2016, p. 209). A incorporação
de direitos humanos foi implementada paulatinamente, pois “foi a partir de 1991, que a
promoção de direitos humanos foi alavancada por um fato inédito na história da organização:
pela primeira vez, todos os Estados membros efetivos (o governo de Cuba estava suspenso)
eram democracias” (CARVALHO, 2016, p. 211).
A consequência prática disso na atualidade localiza-se no campo da efetividade versus
normatividade. À proporção em que, normativamente são universalizados, consentâneo é que
se tenha um sistema que viabilize a efetividade.
Todavia,

As novas leis e programas destinados a combater a exclusão social, racismo e


sexismo dificilmente são implementados. Isso ocorre em razão da contínua
concentração de poder nas mãos da elite, corrupção e problemas institucionais do
sistema judicial no Brasil. As políticas neoliberais adotadas por todos os partidos no
poder desde o fim da ditadura militar têm reduzido ainda mais a capacidade do
Estado de implementar os programas de direitos humanos.
Diversas ONGs locais e internacionais de direitos humanos têm denunciado essa
situação e apresentado denúncias às cortes brasileiras. Contudo, tendo em vista que
a polícia e grupos de interesse poderosos estão freqüentemente envolvidos em
violações de direitos humanos, as cortes locais e o governo têm evitado consertar
essas organizações (SANTOS, 2007, p. 35-36).

Analisando como o Estado Brasileiro tem respondido a algumas demandas levadas a


CIDH, Santos (2007, p. 43-49) constata determinada deficiência ao que diz respeito à
efetividade ao acatamento das deliberações no Brasil. No caso da Guerrilha do Araguaia, p. ex.,
“o governo federal [...] tem se confrontado com uma forte resistência por parte dos militares no
tocante ao acatamento da decisão da justiça federal e à garantia do direito à memória.
Consequentemente, o governo federal tem promovido uma política de esquecimento e
impunidade”.

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Em relação ao caso Maria da Penha, o governo do Ceará resistiu para indenizar a


vítima; e no Simone Diniz, a autora dispõe que “no âmbito federal, a Secretaria Especial para
Direitos Humanos tentaram, embora sem êxito, encontrar novas maneiras de cumprir as
recomendações feitas pela CIDH. No âmbito local, o estado de São Paulo negou até mesmo a
existência da violação”.
Assim, a postulação de denúncias de ONGs e indivíduos à CIDH acaba sendo uma
estratégia política para se fomentar a mudança social pretendida e, a reformulação das normas
internacionais de direitos humanos, já que se encontram emperradas no estado nacional
(SANTOS, 2007, p. 40).
Nesse sentido, André Ramos Carvalho (2016, p. 183-185) considera que a
interpretação internacional dos direitos humanos é contramajoritária, porque as violações que
chegam ao plano internacional são aquelas que não foram reparadas mesmo após o
esgotamento dos recursos internos. Assim, na visão de Carvalho, o aspecto abstrato encontra
concretude. Isto é, o próprio plano internacional confere concretude à normatização abstrata,
quer dizer:

[...] para as minorias vulneráveis, o universalismo será mais uma palavra ao vento
caso não seja possível o acesso às instâncias internacionais, para que possam
inclusive questionar as interpretações nacionais majoritárias dos Tribunais
domésticos que tenham violado direitos humanos. Por isso, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos não aceita a teoria da margem de apreciação nacional
(CARVALHO, 2016, p. 186).

Por essa teoria da margem da apreciação – que fora formulada na antiga Comissão
Europeia de Direitos Humanos – em linhas gerais, a Corte internacional deixaria de interferir
em questões polêmicas sobre direitos humanos para que cada Estado exercesse a sua
interpretação – isto é, realizasse sua margem apreciativa sobre o caso.
O fato da Corte Interamericana não adotar essa teoria significa verdadeiro reforço à
afirmação da justiça internacional em defesa dos direitos humanos dessas minorias em contraste
às tradições nacionais majoritárias com discurso universalista. No Brasil, por meio do Dec.
Legislativo n. 89/1998, reconheceu-se a jurisdição obrigatória da CIDH. Isto permite o
questionamento às possíveis violações realizadas pelo país nessa matéria, consagrando a
interpretação internacional, haja vista que o Texto constitucional de 1988 assim garante no
artigo 4º ao dispor os princípios que regem a República em suas relações internacionais.
Não à toa, Carvalho dispõe que:

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Caso eliminássemos a interpretação internacional ingressaríamos no bizarro mundo


dos "tratados internacionais nacionais" e das "declarações universais de direitos
humanos locais". Não teríamos somente uma Convenção Europeia, mas 47
Convenções, pois cada Estado europeu membro do Conselho da Europa interpretaria
"intimidade", "tortura", "devido processo legal" etc. Destruiríamos, indiretamente, o
próprio ideal universalista, de igualdade entre todos os seres humanos, ingressando
no terreno pantanoso do relativismo (cada Estado, em virtude de sua cultura e
história, tem um parâmetro próprio de direitos) e exclusiva proteção local dos direitos
humanos do período anterior à Grande Guerra e à barbárie nazista.
Esse uso da interpretação nacional dos direitos humanos internacionais consagra o
que denomino "internacionalização ambígua ou imperfeita dos direitos humanos":
os Estados ratificam os tratados de direitos humanos, mas continuam a interpretá-los
localmente. Verdadeira pseudointernacionalização, pois a interpretação final
continua sendo nacional (CARVALHO, 2016, p. 184).

Essa questão que está intimamente relacionada à soberania e separação de poder dos
estados nacionais quanto a interpretação, também encontra normatização na Carta da
Organização dos Estados Americanos, cujo art. 1ª traz a não intervenção nos assuntos
domésticos e defesa da soberania, a saber:

Os Estados americanos consagram nesta Carta a organização internacional que vêm


desenvolvendo para conseguir uma ordem de paz e de justiça, para promover sua
solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade
territorial e sua independência. Dentro das Nações Unidas, a Organização dos
Estados Americanos constitui um organismo regional.
A Organização dos Estados Americanos não tem mais faculdades que aquelas
expressamente conferidas por esta Carta, nenhuma de cujas disposições a autoriza a
intervir em assuntos da jurisdição interna dos Estados membros.

Apesar disso, conforme já discorrido acerca do fato de se ter uma interpretação sobre
os direitos humanos no âmbito internacional, entende-se que sua garantia dialoga com o
transconstitucionalismo à proporção que se reforça a construção de métodos lógicos e
sistemáticos do direito estrangeiro e nacional pelos órgãos jurisdicionais de cúpula do Estado
(NEVES, 2009, p. 260). Logo, não se trata de uma discussão a respeito da possível sobreposição
de uma ordem a outra, justamente porque não é algo escolhido de modo randômico e, sim,
construído entre as duas ordens.
Essa perspectiva, de certo modo, insere-se também na interpretação pluralista
desenvolvida por Peter Häberle, o qual ao identificar que havia outros participantes para a
interpretação constitucional, que até então eram desconsiderados pela teoria da interpretação,
versa que esta esteve “muito vinculada a um modelo de interpretação de uma sociedade

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fechada” (2002, p. 12), na qual a interpretação fica adstrita aos juízes e aos procedimentos
formais2.
Para tanto, realiza uma viragem na teoria da interpretação constitucional oxigenando
a “sociedade fechada” ao reconhecer que não é possível restringir a quantidade de intérpretes
da Constituição, pois todos os sujeitos, assim como “todos os órgãos estatais, todas as potências
públicas, todos os cidadãos e grupos” (2002, p. 13) que vivenciam a norma acabam por
interpretá-la. Isto é, a extensa gama de sujeitos que estão ou são regulados pelo ordenamento
constitucional são seus intérpretes, por isso a intepretação não pode ser limitada aos
magistrados, pois não são apenas eles que vivem a norma.
Häberle (2002, p. 10) considera que a norma “não é uma decisão prévia, simples e
acabada”, sendo necessário, nesse sentido, conhecer os sujeitos para que o intérprete possa ser
orientado não só pela teoria, mas também pela práxis. Para isso, necessário se faz a inclusão de
cada concernido do programa normativo para que possa contribuir ao processo integrando suas
realidades através das suas interpretações. Assim, os tribunais aprenderiam3 com os
participantes e a unidade da Constituição adviria da “conjugação do processo e das funções de
diferentes intérpretes” (2002, p. 30-33).
Ressalta-se que os intérpretes não são somente aqueles envolvidos em uma relação
institucionalizada ou já estabelecida, como, por ex., as partes de uma lide jurídico processual.
A participação pluralista no processo de interpretação permite a possibilidade de “experts e
pessoas interessadas” se converterem em intérpretes do direito estatal, o que “significa que não
apenas o processo de formação, mas também o desenvolvimento posterior, revela-se pluralista”
na concepção de Häberle (2002, p. 17-18).
Entretanto, o método ou procedimento dessa interpretação precisa de determinada
clareza da teoria constitucional no que tange a “explicitar os grupos concretos de pessoas e os

2 Note-se que sentido semelhante há em Cesare Beccaria (1999) apenas no que diz respeito ao reconhecimento de que a
intepretação não pode ficar limitada aos juízes. Entretanto, nesse modelo de Häberle não se reduz a atividade do magistrado ao
mero silogismo perfeito, tampouco se atribui a intepretação apenas ao soberano – aqueles que cederam parcela de suas liberdades
para a formulação do bem comum, conforme desenvolvido por Beccaria para o contexto de sua época, ao qual se insurgira contra
as desproporções entre a aplicação da pena e o delito cometido defendendo a elaboração de leis mais objetivas e próximas dos
indivíduos para que a partir do seu envolvimento na elaboração, até os delitos pudessem ser reduzidos. Na hermenêutica de Peter
Häberle, reconhece-se todos como intérpretes, até mesmo os magistrados e legisladores (HÄBERLE, 2002, p. 24-25), cuja
interpretação de todos forma a sociedade aberta, cujo texto constitucional está conformado com a realidade.
3
O próprio Häberle destaca a diferença da sua teoria do sistema de autopoiésis de Luhmann, pois pela hermenêutica pluralista,
não obstante a existência de conflitos de consenso, os tribunais atuariam em harmonia com a qualidade dos discursos (vinculados
ao direito) da sociedade, e não apenas conhecendo suas deliberações, entendendo-os legítimos tão somente no plano formal como
em Luhmann – no qual prevalece um sistema cognitivamente aberto e operativamente fechado. Sobre Niklas Luhmann, ver:
(AMADO, 2004, 301-339).

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fatores que formam o espaço público, o tipo de realidade de que se cuida, a forma como ela
atua no tempo, as possibilidades e necessidades existentes” (HÄBERLE, 2002, p. 19). É preciso
que haja, portanto, identificação dos sujeitos bem como do contexto que estão inseridos, a fim
de viabilizar, por ex., o trabalho do Tribunal.
Privilegia-se nessa teoria da interpretação pluralista a relação entre o texto
constitucional e o contexto social. Ambos devem estar em sintonia, uma vez que “a intensidade
do controle de constitucionalidade há de variar segundo as possíveis formas de participação”
(HÄBERLE, 2002, p. 46). Nas bases dessa atuação do judiciário coordenada com a interação
social, não se retira da Corte Constitucional o dever de proteger os indivíduos que estão
excluídos do processo de interpretação4, haja vista que a soberania da constituição deve ser
resguardada e com ela a proteção aos direitos e garantias fundamentais.
Esse modelo inclusivo de interpretação se propõe ao ajustamento dos órgãos do estado
com a realidade enfrentada pelos seus participantes. Entretanto, ao contrário do que se pode
supor, essa relação dialética não é livre de tensões, uma vez que o “consenso resulta de conflitos
e compromissos entre participantes que sustentam diferentes opiniões e defendem os próprios
interesses” fazendo com que o Direito Constitucional seja “um direito de conflito e
compromisso”. (HÄBERLE, 2002, p. 51).
Por essa razão, a Corte deve resguardar os “interesses não representados ou não
representáveis” (HÄBERLE, 2002, p. 46) para que possa refinar o processo de participação dos
intérpretes, dado que a interpretação é inclusiva, ou seja, não restritiva ao Estado tampouco a
organizações sociais coletivas.
Habermas (2011, p. 150) adverte que Peter Häberle ao estender o número de
intérpretes do texto constitucional “ampliou o sentido democrático-procedimental da
participação no processo estendendo-o aos direitos a prestações sociais em geral” e a
consequência disso seria a de se sobrecarregar “o direito processual transformando-o no
substituto de uma teoria da democracia”.
A teoria do discurso habermasiana tem como cerne a liberdade de organização
individual dos sujeitos para que possam se articular e defender seus próprios interesses
(subsistemas) e, depois de alcançada determinada racionalização dos argumentos, eles atuem

4Para conformação do processo constitucional, planteia Häberle (2002, p. 46-48) que “os instrumentos de informação dos juízes
constitucionais – não apesar, mas em razão da própria vinculação à lei – devem ser ampliados e aperfeiçoados, especialmente no
que se refere às formas gradativas de participação e à possibilidade de participação no processo constitucional (especialmente nas
audiências e nas ‘intervenções’)”.

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como integrantes legitimadores das normas. Esse destaque realizado por Habermas da teoria de
Häberle vem com base na preocupação do processo constitucional vir a substituir o espaço
público de discussão.
Não obstante, as duas teorias desenvolvidas trazem o entendimento de que uma
concepção de Estado autorreferenciado5 não mais subsiste às sociedades contemporâneas6,
dada a mutabilidade das questões sociais. Desse modo, ratificam, por meio da teoria social e
hermenêutica, a preocupação do aprimoramento das vias comunicacionais para o exercício da
democracia.
Se se estende essa análise para o âmbito internacional discutindo sobre os direitos
humanos, que é um direito fundamental, a própria construção de sentido desse direito merece
ser construída a partir dos sujeitos, de suas interpretações, por isso, torna-se importante a
intermediação interpretativa da Corte Interamericana, de forma a se alargar o debate na tentativa
de se conseguir formular um sentido adequado no qual não só os indivíduos, mas também as
instituições se vejam compelidas a respeitar e acatar, uma vez que se reconhecem como parte
desse processo.
Essa horizontalidade interpretativa dos direitos humanos é trazida também por
Manuel E. Gándara Carballido (2015) e Aníbal Quijano (2000), para quem esses direitos
precisam ser reconhecidos como produto histórico das lutas dos povos em busca de sua
libertação, quer dizer, consagrá-los e esvaziar a carga utópica universalista e europeia. A
ressignificação dessa categoria teórica caminha na vertente de se conferir condições favoráveis
à redução das desigualdades sociais.
Ora, na exposição e defesa da tese do transconstitucionalismo Marcelo Neves aborda
várias questões difíceis de serem resolvidas dentro dos mecanismos jurídicos, uma vez que
precisam de outras áreas do saber para auxiliar no entendimento, e até mesmo de socorro do
sistema internacional, na tentativa de demonstrar que o diálogo interpretativo entre as ordens
nacionais e internacionais é frutífero para a construção do sentido mais adequado possível à
resolução do conflito.
Esse ponto de compreensão também é uma chave para se reformular o próprio sistema
institucional interno dos países. Tomando como base o 1º júri indígena realizado em 2015 na
comunidade Maturuca, localizada na região da Raposa Serra do Sol, no Brasil, encontram-se

5
Utiliza-se aqui a noção luhmanniana de sistema que não dialoga com o que lhe é exterior.
6
Complexas para Habermas e plural para Häberle.

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elementos para se repensar não só a categoria dos direitos humanos, mas, principalmente, a
relação entre instituições e pessoas quanto ao procedimento.
Brevemente, quanto ao caso, dois índios foram acusados por homicídio por questões
culturais, pois confessaram ter tentado matar Antônio Alvino Pereira, cortando seu pescoço,
uma vez que acreditam que ele estava possuído pela entidade do mal, denominada Canaimé.
O jurados, que eram todos indígenas pertencentes a aldeia, comungavam, portanto,
dos mesmos valores. Absolveram um e condenaram o outro a uma pequena pena por
entenderem que o contexto justificava o cometimento do delito. Ressalta-se que não se
pormenorizará neste breve texto o caso, para isso, veja-se a tese de doutorado de Thaís
Lutterback, que fora advogada de defesa no processo.
Acontece que, esse júri não fora bem aceito pelos indígenas, que o consideraram
desrespeitoso para com a sua própria cultura no tratamento da questão. Tanto que o refizeram
de acordo com seus costumes sem a interferência do direito estatal, onde se decidiu pela
condenação de ambos e de mais um terceiro que teria fomentado a briga. A punição consistiu
na expulsão da aldeia por dois anos, tendo de prestar serviços comunitários em outra aldeia,
sem poderem participar dos acontecimentos da comunidade.
Trata-se de uma questão que embora realizada dentro do constitucionalismo
envolvendo direito ao acesso à justiça, garantia de direitos fundamentais e jusdiversidade, não
admite os seus pressupostos, não só quanto ao procedimento no trato da matéria, mas também
em relação ao respeito à sua cosmovisão de ser e estar no mundo.
Embora não se tenha invocado a ordem internacional para resolução do caso, envolve
direitos humanos e diz respeito a uma espécie de pluralismo jurídico (BOAVENTURA, 1988)
que transita entre as ordens constitucionais. Caso ocorra o chamamento da CIDH e esta dê seu
parecer a respeito da questão, estaríamos diante do que denomina Marcelo Neves de
transconstitucionalismo. Porém, mesmo sem se invocar o direito internacional – ao caso-, essa
categoria de análise permite vislumbrar a importância da construção dialógica entre sujeitos e
ordens jurídicas, que através de constante adequação podem construir uma interpretação
coerente aos seus contextos.

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APONTAMENTOS FINAIS

Não se pretendeu por meio dessa abordagem afirmar a noção de que o


transconstitucionalismo como a via de emancipação do Estado. Caso assim fosse, estar-se-ia
formulando algo completamente diverso ao que se propôs Marcelo Neves ao formular o
conceito.
Por essa categoria, pretendeu-se o contrário, que é firmar o reconhecimento das
diversas ordens jurídicas envolvidas na resolução de uma questão constitucional, cujo diálogo
entre elas, articulando seus limites e possibilidades contribuem para a sua solução. Quer dizer,
a partir e com o olhar interpretativo do outro, constrói-se uma interpretação que atende a todos
os envolvidos no problema constitucional.

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535
A EFETIVAÇÃO DA SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL EM PAUTA:
A ALIMENTAÇÃO ADEQUADA
COMO DIREITO FUDNAMENTAL

SOARES, Durcelania da Silva


Mestranda em Direito pelo Centro Universitário Salesiano São Paulo. Especialista Lato Sensu em Direito pela
Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Direito pela Universidade Iguaçu.
GOMES Luciane Mara Correa
Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Ciências Jurídicas e
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora no Centro Universitário Augusto
Motta e Faculdade Mercúrio.
RANGEL, Tauã Lima Verdan
Bolsista CAPES. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo PPGSD-UFF (2013-2015).
Especialista em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penale Processo do Trabalho pelo
Centro Universitário São Camilo-ES (2014-2015).

RESUMO

É fato que alimentação e nutrição são requisitos básicos para a promoção e a proteção da saúde,
viabilizando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade
de vida e cidadania, tal como estruturação de condições sociais mais próximas das ideais. Em âmbito
internacional, a partir de 1994, com a Declaração de Roma, o direito à alimentação passou a figurar como
direito humano e pautado no trinômio disponibilidade, acessibilidade e adequação. Em relação à
disponibilidade do alimento, destaca-se que, quando requisitado por uma parte, a alimentação deve ser
obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou
por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Pressupõe-se, em relação à
disponibilidade alimentar, que o direito reclama uma alimentação natural, com o mínimo de acréscimo
de pesticidas e similares, tal como o combate aos transgênicos. No debate acerca dos alimentos
transgênicos, sobretudo sua utilização na afirmação do direito em comento, há defensores que entendem
que aqueles serviriam para subsidiar a materialização do direito em comento, porquanto seriam capazes
de colocar fim à fome, em especial nos países em que essa é extrema e alcançam índices alarmantes, tal
como poderá influenciar diretamente no barateamento dos gêneros alimentícios. Ocorre, porém, que o
direito à alimentação não deve ser encarado como sinônimo de utilização de qualquer fonte alimentar,
mas sim gêneros que sejam quantitativamente e qualitativamente detentores de condições mínimas,
residindo em tal debate o artigo proposto.

Palavras-Chave. Segurança Alimentar e Nutricional. Direito Humano à Alimentação Adequada.


Efetivação.

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ABSTRACT

It is true that food and nutrition are basic requirements for the promotion and protection of health,
enabling the full realization of growth potential and human development, quality of life and citizenship
as structuring closer to the ideal social conditions. Internationally, since 1994, with the Rome
Declaration, the right to food has been integrated as a human right and guided the trinomial availability,
accessibility and adequacy. Regarding the availability of food, it is emphasized that, when requested by
a party, the power must be obtained from natural resources, ie by producing food, the cultivation of land
and livestock, or otherwise obtain food , such as fishing, hunting or collecting. It is assumed in relation
to food availability, the law calls for a natural diet, with minimal addition of pesticides and the like, such
as the fight against transgenics. In the debate about GM foods, especially their use in law statement
under discussion, there are advocates who understand that those would serve to support the realization
of the right to comment, because they would be able to put an end to hunger, particularly in countries
where this is extreme and reach alarming rates, as can directly influence the cheapening of foodstuffs.
It happens, however, that the right to food should not be regarded as synonymous with the use of any
food source, but genres that are quantitatively and qualitatively holders of minimum conditions, living
in such a debate the proposed article.

Keywords. Food Security and Nutrition. Human Right to Adequate Food. Effectuation.

INTRODUÇÃO

Josué de Castro (2003, p. 79), sobre a fome, especificamente na região nordeste do


país, já discorreu que ela não atua apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua
carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também atua sobre seu espírito,
sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Mais que isso, há que se destacar que
nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão maciçamente e num sentido
tão nocivo quanto à fome, quando alcança os verdadeiros limites da inanição. Sobre a influência
da imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o homem,
como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das
mais desconfortantes. Jean Ziegler, em mesmo sentido, já colocou em destaque que “dolorosa
é a morte pela fome. A agonia é longa e provoca sofrimentos insuportáveis. Ela destrói
lentamente o corpo, mas também o psiquismo” (2013, p. 32).
Inexoravelmente, a questão da fome fundamenta-se em conceitos de incidência
específicos, desdobrados na fome aguda e na fome crônica. A primeira equivale à urgência de
se alimentar, a um grande apetite, e não é relevante para a discussão proposta no presente.
Doutro aspecto, a fome crônica, permanente, a que subsidiará a pesquisa apresentada, ocorre
quando a alimentação diária, habitual, não propicia ao indivíduo energia suficiente para a

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manutenção do seu organismo e para o desempenho de suas atividades cotidianas. A fome


crônica e permanente é capaz de provocar um sofrimento agudo e lancinante no corpo,
produzindo letargia e debilitando, gradualmente, as capacidades mentais e motoras. Trata-se da
marginalização social, perda da autonomia econômica e, evidentemente, desemprego crônico
pela incapacidade de executar um trabalho regular. Inevitavelmente, conduz à morte. Ao lado
disso, cuida ponderar que Oliveira et all sustentam que a fome crônica “é um fenômeno que
possui elementos socioeconômicos e culturais: insatisfeita, prolongada ou apenas parcialmente
saciada, cria vulnerabilidades e muitas vezes se traduz em importantes patologias” (2009, p.
415).
A complexidade do tema, segundo Maluf (2003, p. 53), fomenta maior discussão
quando se estabelece como pilar inicial o fato de que a alimentação humana se dá em uma
interface dinâmica entre o alimento (natureza) e o corpo (natureza humana), realizando-se
integralmente apenas quando os alimentos são transformados em gente, em cidadãos e cidadãs
saudáveis. A situação é agravada, sobretudo no território nacional, em decorrência do
antagonismo existente, pois, conforme aponta Oliveira et all (2009, p. 414), o Brasil, na
proporção que, sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, ainda convive com
uma condição social em que milhões pessoas se encontram, já que não tem plenamente
assegurado o direito humano à alimentação adequada.

1. O RECONHECIMENTO DA FOME COMO QUESTÃO HISTÓRICA


BRASILEIRA: A CONTRIBUIÇÃO DE JOSUÉ DE CASTRO

Josué de Castro (2003) vai voltar-se sobre a fome, no que toca à região do sertão
nordestino, discorrendo que ela não atua apenas sobre os corpos das vítimas da seca,
consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também atua
sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Mais que isso, há que
se destacar que nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão
maciçamente e num sentido tão nocivo quanto à fome, quando alcança os verdadeiros limites
da inanição. Sobre a influência da imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários
são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta
mental que pode parecer das mais desconfortantes. Josué de Castro explicita, ainda, que:

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A ação da fome, no homem, não se manifesta como uma sensação contínua, mas
como um fenômeno intermitente, com acessos e melhorias periódicas. No começo,
a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e,
principalmente, uma exaltação dos sentidos que se animam num elã de sensibilidade
ao serviço quase exclusivo das atividades que permitem obter alimentos e, portanto,
satisfazer o instinto mortificado da fome. Entre os sentidos, os que sofrem o máximo
de excitação são o da visão e do olfato, os que podem melhor orientar o faminto na
procura de alimentos. Neste momento, o homem se apresenta, mais do que nunca,
como um verdadeiro animal de rapina, obstinado na procura de uma presa qualquer
para acalmar sua fome [...] É a obsessão do espírito polarizado para um único desejo,
concentrado em uma única aspiração: comer (CASTRO, 2003, p. 79-80).

Seguindo o exame de o regime alimentar identificado por Josué de Castro, no sertão


do nordeste, o autor, na obra Geografia da Fome, inicia suas ponderações fazendo menção às
epidemias calamitosas da fome, típicas de tal região, e que não estão limitadas aos aspectos
discretos e toleráveis das fomes parciais, das carências específicas, encontradas em outras áreas
do território nacional. “São epidemias de fome global quantitativa e qualitativa, alcançando
com incrível violência os limites extremos da desnutrição e da inanição aguda e atingindo
indistintamente a todos, ricos e pobres, fazendeiros abastados e trabalhadores do eito, homens,
mulheres e crianças” (CASTRO, 1984, p. 165). Na região do sertão nordestino, neste primeiro
contato, a fome epidêmica é um açoite impiedoso que a todos afeta, em decorrência do terrível
flagelo da seca.
É interessante, ainda, pontuar que Josué de Castro, ao estruturar seus estudos, irá
afirmar que a população do sertão tem seu regime alimentar alicerçado no milho. “Do milho
associado a outros produtos regionais, em combinação as mais das vezes felizes, permitindo
que, fora das quadras dolorosas das secas, viva esta gente em perfeito equilíbrio alimentar, num
estado de nutrição bastante satisfatório” (CASTRO, 1984, p. 165); já no período das epidemias
da fome, o milho se apresenta como fonte de energia e vigor imprescindível para a
sobrevivência do estalar do açoite da calamidade, evitando, comumente, o aumento do
despovoamento da região. Ao lado disso, cuida reconhecer que as secas periódicas atuam como
elemento de desorganização da economia primária da região, extinguindo as fontes naturais de
vida, crestando as paisagens, arrasando as lavouras e dizimando o gado, reduzindo o sertão a
uma paisagem desértica, com seus habitantes sempre desprovidos de reservas, morrendo à
mingua de água e de alimentos. “Morrendo de fome aguda ou escapando esfomeados, aos
magotes, para outras zonas, fugindo atemorizados à morte que os dizimaria de vez na terra
devastada” (CASTRO, 1984, p. 166-167).

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Com efeito, a Geografia da Fome retrata um cenário no qual a paisagem natural do


sertão nordestino, desde a topografia, as características do solo, a fisionomia vegetal, a fauna, a
economia e a vida social daquela, tudo traz marcado, com uma nitidez inconfundível, a
influencia da falta d’água, da inconstância da água na região semidesértica. Castro vai explicitar
que “o solo arenoso, pouco espesso, quase sempre pobre em elementos nutritivos e ricos em
seixos rolados, é um produto dos extremos climáticos, dos largos períodos de exagerada
insolação e dos aguaceiros intempestivos, desagregando as rochas areníticas e acelerando todos
os processos de demolição que nelas se realizam” (1984, p. 167). Comumente, os terrenos
desnudados em certos trechos, quase sem nenhuma cobertura de solo arável recobrindo o
esqueleto das rochas vivas, que afloram em brancos serrotes escarpados, são manifestações
ofuscantes da terrível capacidade do clima: “capacidade de roer as terras do sertão nordestino,
deixando expostos os núcleos mais duros do seu esqueleto de granito e de calcário” (CASTRO,
1984, p. 167).
Apresentada a moldura cênica em que o sertanejo encontra-se inserido, faz-se
necessário rumar para o regime alimentar de tal região. Imediatamente, é oportuno consignar
que Josué de Castro, ao descrever tal figura, aponta que o sertanejo é um plantador de produtos
de sustentação para seu próprio consumo. “Um semeador, em pequena escala, de milho, feijão,
fava, mandioca, batata-doce, abóbora e maxixe, plantados nos vales mais sumosos, nos baixios,
nos terrenos de vazante, como culturas de hortas e jardins” (CASTRO, 1984, p. 180). Trata-se
da típica roça de matuto e que, na limitação e singularidade do cenário em que o sertanejo
encontra-se inserido, veio a constituir um peculiar elemento de valorização das condições de
vida regional e, nos limites permitidos, a diversificação do regime alimentar do sertanejo. Neste
quadrante, as características da alimentação sertaneja, um tanto magra e despida de qualquer
excesso de tempero, encontra harmonia com os traços naturais da terra magra dos sertões
nordestinos. “Tanto pela influência do clima semi-árido (sic), a que está submetido, como pelo
laborioso gênero de vida que exerce, necessita o sertanejo retirar de sua dieta um potencial
energético mais alto do que o suficiente para o habitante de qualquer outra área equatório-
tropical” (CASTRO, 1984, p. 191). Ao lado disso, há que se reconhecer que a ação do clima
semidesértico incide diretamente sobre o sertanejo e se faz sentir pelas características
estimulantes do ar seco, pela baixa taxa de umidade relativa que condiciona, claramente, uma
perda fácil de calor e, consequentemente, um estímulo às queimas orgânicas que regulam a
intensidade do metabolismo.

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No que toca ao seu regime alimentar, conquanto aparentemente pouco abundante,


cuida reconhecer que há um potencial energético, em especial, segundo Castro (1984), devido
às porções de milho, de batata-doce e de leite que são inseridas na dieta alimentar do sertanejo.
“É bem verdade que nem sempre obtêm estes ascéticos vaqueiros um tal teor calórico em sua
ração e mais raramente ainda dispõem de um excesso de energia alimentar que se possa
acumular sob a forma de reserva de depósito de gordura de glicogênio” (CASTRO, 1984, p.
194) e que, obviamente, seria de inestimável valor no período de seca. Com efeito, ainda na
perspectiva apresentada em Geografia da Fome, é esta parcimônia calórica, sem margens a
exageros, que faz do sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnes enxutas, sem
arredondamentos de tecidos adiposos e sem nenhuma predisposição ao artritismo, à obesidade
ao diabetes. Trata-se do atleta fisiológico descrito por Castro (1984), com o seu sistema
neuromuscular equilibrado, dotado de grande força e agilidade e com excepcional resistência,
nos momentos oportunos.
Ainda no que toca à dieta alimentar verificada nos comboios de retirantes, que em
uma tentativa desesperada de fugir do açoite da seca e da fome que estala em seus corpos,
Castro vai descrever que eles são forçados a ingerir substâncias bem pouco propícias à
alimentação, das quais os habitantes de outras zonas do país sequer ouviram falar que fossem
alimentos. “Substâncias de sabor estranho, algumas tóxicas, outras irritantes, poucas possuindo
qualidades outras além da de enganar por mais algumas horas a fome devoradora, enchendo o
saco do estômago com um pouco de celulose” (CASTRO, 1984, p. 211). Mais que isso,
esgotados os recursos naturais de alimentação, tocados pela fome, os famintos do sertão
nordestino, em uma tentativa excruciante de aplacar o flagelo que os açoita, se atiram aos
últimos recursos vegetais, comumente impróprios à alimentação, ricos apenas em celulose,
mesmo que sejam tóxicos, a exemplo de mucunã e de macambira. Nesta linha, do cardápio
extravagante do sertão faminto fazem parte uma série de iguarias bárbaras, tais como: farinha
de macambira, de xique-xique, de parreira brava, de macaúba e de mucunã; palmito de
carnaúba nova, chamado de guandu; raízes de umbuzeiro, de manjerioba, de mucunã; beijus de
catolé, de gravatá e de macambira mansa (CASTRO, 1984).
Quando o sertanejo utiliza tão extravagante cardápio é que o martírio da seca já vai
longe e que sua miséria já atingiu os limites de sua resistência orgânica. Trata-se da última etapa
de sua permanência na terra desolada, antes de se fazer retirante e descer aos magotes, em busca
doutras terras menos castigadas pela inclemência do clima. Ora, esgotadas as suas esperanças

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e reservas alimentares de toda espécie, iniciam os sertanejos o êxodo, despejados do sertão pelo
flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, tem início a terrível retirada, encontrando-se
pelas estradas poeirentas e pedregosas as intermináveis filas de retirantes, como se fossem uma
centopeia humana. Homens, mulheres e crianças, todos esqueléticos, deformados pelas
perturbações tróficas, com a pele enegrecida colada às longas ossaturas, desfibrados e fétidos
pelo efeito da autofagia. São sombrias caravanas de espectros esquálidos, esmaecidos,
caminhado centenas de léguas em busca das serras e dos brejos, das terras de promissão. “Com
os seus alforjes quase vazios, contendo quando muito um punhado de farinha, um pedaço de
rapadura; a rede e a filharada miúda grupada às costas, o sertanejo dispara através da vastidão
dos tabuleiros e chapadões descampados, disposto a todos os martírios” (CASTRO, 1984, p.
218). Sem recursos de nenhuma espécie, atravessando zonas de penúria absoluta, gastando na
farpada trilha o resto de suas energias comburidas, os retirantes acentuam no seu êxodo as
consequências terríveis da fome. Vê-los é ver, em todas as suas ferinas manifestações, o drama
fisiológico da inanição.

2. O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA) ALÇADO


AO STATUS DE DIREITO FUNDAMENTAL

É fato que alimentação e nutrição são requisitos básicos para a promoção e a proteção
da saúde, viabilizando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento
humano, com qualidade de vida e cidadania, tal como estruturação de condições sociais mais
próximas das ideais. Podestá (2011, p. 27-28) destaca que a locução segurança alimentar,
durante o período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), passou a ser empregado na
Europa, estando associado estritamente com o de segurança nacional e a capacidade de cada
país de produzir seu próprio alimento, de maneira a não ficar vulnerável a possíveis embargos,
boicotes ou cercos, em decorrência de políticas ou atuações militares. Contudo, posteriormente
à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobretudo com a constituição da Organização das
Nações Unidas (ONU), o conceito da locução supramencionada passa a se fortalecer, porquanto
compreendeu. Assim, nas recém-criadas organizações intergovernamentais, era possível
observar as primeiras tensões políticas entre os organismos que concebiam o acesso ao alimento
de qualidade como um direito humano, a exemplo da Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e Agricultura (FAO), e alguns que compreendiam que a segurança alimentar seria

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assegurada por mecanismos de mercado, tal como se verificou no Fundo Monetário


Internacional (FMI) e no Banco Mundial. Após o período supramencionado, “a segurança
alimentar foi hegemonicamente tratada como uma questão de insuficiente disponibilidade de
alimentos” (PODESTÁ, 2011, p. 28). Passam, então, a ser instituídas iniciativas de promoção
de assistência alimentar, que foram estabelecidas em especial, com fundamento nos excedentes
de produção dos países ricos.
Havia, portanto, o entendimento de que a insegurança alimentar decorria da produção
insuficiente de alimentos nos países pobres. Todavia, nas últimas décadas, a concepção
conceitual de segurança alimentar que, anteriormente, estava restrita ao abastecimento, na
quantidade apropriada, foi ampliada, passando a incorporar, também, o acesso universal aos
alimentos, o aspecto nutricional e, por conseguinte, as questões concernentes à composição, à
qualidade e ao aproveitamento biológico. Em uma perspectiva individual e na escala coletiva,
sobreditos atributos estão, de maneira expressa, consignados na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, os quais foram, posteriormente reafirmados no Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos e Sociais e incorporados à legislação nacional em 1992.
Historicamente, a inter-relação entre a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à
alimentação adequada (DHAA) começa a ser delineada a partir do entendimento existente
acerca dos direitos humanos na Declaração Universal de 1948.
Convém pontuar, ainda, que, em um cenário internacional, apenas em 1996, durante
a realização da Cúpula Mundial de Alimentação, em Roma, que chefes de estados e governos,
empenharam a sua vontade política e asseveraram, de maneira clara, sobre o direito a uma
alimentação adequada e o direito fundamental de todos a não sofrer a fome. Oportunamente, o
documento ora mencionado reconheceu que a problemática da fome e da insegurança alimentar
possui uma dimensão global e são questões que tendem a persistir e aumentar dramaticamente
em algumas regiões, a não ser que medidas urgentes sejam tomadas, notadamente em
decorrência do crescimento populacional e a pressão existente sobre os recursos naturais.
Estruturou-se, ainda, o ideário de que a pobreza é a maior causa de insegurança alimentar, logo,
apenas um desenvolvimento sustentável seria capaz de promover sua erradicação, melhorando,
por consequência, o acesso aos alimentos.
É possível frisar que a concretização dos direitos humanos, sobretudo o direito
humano à alimentação adequada (DHAA), abarca responsabilidade por parte tanto do Estado
quanto da sociedade e dos indivíduos. Assim, nas três últimas décadas, denota-se que a

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segurança alimentar e nutricional passou a ser considerada como requisito fundamental para
afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, mental e social de todo o ser humano.
A Cúpula de Roma de 1996 estabeleceu, em órbita internacional, que existe segurança
alimentar quando as pessoas têm, a todo o momento, acesso físico e econômico a alimentos
seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências
alimentares, com o objetivo de levarem uma vida ativa e sã. Afirma Podestá que “ao Estado
cabe respeitar, proteger e facilitar a ação de indivíduos e comunidades em busca da capacidade
de alimentar-se de forma digna, colaborando para que todos possam ter uma vida saudável,
ativa, participativa e de qualidade” (2011, p. 26).
Dessa maneira, nas situações em que seja inviabilizado ao indivíduo o acesso a
condições adequadas de alimentação e nutrição, tal como ocorre em desastres naturais
(enchentes, secas, etc.) ou em circunstâncias estruturais de penúria, incumbe ao Estado, sempre
que possível, em parceria com a sociedade civil, assegurar ao indivíduo a concretização desse
direito, o qual é considerado fundamental à sua sobrevivência. A atuação do Estado, em tais
situações, deve estar atrelada a medidas que objetivem prover as condições para que indivíduos,
familiares e comunidade logrem êxito em se recuperar, dentro do mais breve ínterim, a
capacidade de produzir e adquirir sua própria alimentação. “Os riscos nutricionais, de diferentes
categorias e magnitudes, permeiam todo o ciclo da vida humana, desde a concepção até a
senectude, assumindo diversas configurações epidemiológicas em função do processo
saúde/doença de cada população” (BRASIL, 2011, p. 11). Hirai (2011, p. 24) aponta que os
elementos integrativos do conceito de segurança alimentar e nutricional foram se ampliando e
passam, em razão da contemporânea visão, a extrapolar o entendimento ordinário de
alimentação como simples forma de reposição energética. Convém destacar que, no território
nacional, o novo conceito de segurança alimentar foi consolidado na I Conferência Nacional de
Segurança Alimentar, em 1994.
No cenário nacional, as ações voltadas a garantir a segurança alimentar dão em
consequência ao direito à alimentação e nutrição, ultrapassando, portanto, o setor de Saúde e
recebe o contorno intersetorial, sobretudo no que se refere à produção e ao consumo, o qual
compreende, imprescindivelmente, a capacidade aquisitiva da população e a escolha dos
alimentos que devem ser consumidos, inclusive no que tange aos fatores culturais que
interferem em tal seleção. Em tal cenário, verifica-se que o aspecto conceitual de Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN), justamente, materializa e efetiva o direito de todos ao acesso

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regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade satisfatória, de modo a não


comprometer o acesso a outras necessidades essenciais da dignidade da pessoa humana.
“Nunca é demais lembrar que o direito humano à alimentação adequada tem por pano de fundo
as práticas alimentares promotoras de saúde, atinentes à diversidade cultural e que sejam social,
econômica e ambientalmente sustentáveis” (MEDEIROS; SILVA; ARAÚJO, s.d., p. 34).
Atualmente, consoante Hirai (2011, p. 24), as atenções se voltam para as dimensões
sociais, ambientais e culturais que estão atreladas na origem dos alimentos. Ademais, a garantia
permanente de segurança alimentar e nutricional a todos os cidadãos, em decorrência da
amplitude e abrangência das questões que compreende, passa a reclamar diversos
compromissos, tais como: políticos, sociais e culturais, objetivando assegurar a oferta e o acesso
universal a alimentos de qualidade nutricional e sanitária, atentando-se para o controle da base
genética do sistema agroalimentar. O diploma legal supramencionado estabelece que a
segurança alimentar e nutricional consiste na realização na realização do direito de todos ao
acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que haja
comprometimento do acesso a outras necessidades essenciais, tendo como fundamento práticas
alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental,
cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Destaca Ribeiro (2013, p. 38) que o direito
humano à alimentação adequada não consiste simplesmente em um direito a uma ração mínima
de calorias, proteínas e outros elementos nutritivos concretos, mas se trata de um direito
inclusivo, porquanto deve conter todos os elementos nutritivos que uma pessoa reclama para
viver uma vida saudável e ativa, tal como os meios para ter acesso.
A partir da Lei Orgânica da Segurança Alimentar (LOSAN), a segurança alimentar
e nutricional passou a abranger a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio de
produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da
industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento
e da distribuição dos alimentos, compreendendo a água, bem como a geração de emprego e da
redistribuição de renda. A locução supramencionada compreende a conservação da
biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos, bem como a promoção da saúde, da
nutrição e da alimentação da população, incluindo-se os grupos populacionais específicos e
populações em situação de vulnerabilidade sociais. A LOSAN abrange, ainda, a garantia da
qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu
aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a

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diversidade étnica e racial e cultural da população. Está inserido na rubrica em análise a


produção de conhecimento e o acesso à informação, bem como a implementação de políticas
públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de
alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. A visão existente em
torno do DHAA alcança como ápice, em sede de ordenamento jurídico interno, a Emenda
Constitucional nº 64/2010 responsável por introduzir na redação do artigo 6º, o direito
fundamental em comento.

3. A TRÍADE CARACTERÍSTICA DO DHAA

Para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir uma
tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação. No que
concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por uma parte,
a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos,
o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça
ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização em mercados e
lojas. A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de obtenção por
meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica significa que
los alimentos deben estar al alcance de las personas desde el punto de vista económico”
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 03). Em relação à acessibilidade, as
pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta adequada, sem que
haja comprometimento das demais necessidades básicas. A acessibilidade física materializa-se
pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo indivíduos fisicamente
vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas.
A acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão
em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população
encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar
(SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso
suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de
políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico [...] voltado a reduzir o peso dos
gastos com alimentação” (1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o
alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades

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alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação,


gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de
sustancias nocivas, como los contaminantes de los procesos industriales o agrícolas, incluidos
los residuos de los plaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias” (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 04). Um alimento adequado, ainda, deve ser culturalmente
aceitável pela população que o consumirá, inserido em um contexto de formação do indivíduo,
não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela.

4. ALIMENTOS TRANSGÊNICOS: INCERTEZAS NO FUTURO

Nas últimas décadas, o desenvolver e o emprego dos organismos geneticamente


modificados, ou simplesmente transgênicos, em larga escala na agricultura têm se amparado
sob três principais argumentos: a preservação do meio ambiente, o aumento da produção para
combater a fome e a redução dos custos de produção. Organizações governamentais e
intergovernamentais têm planejado estratégias e protocolos para o estudo da segurança de
alimentos derivados de cultivos geneticamente modificados. É nessa linha que verificasse a
necessidade de alertar os cidadãos sobre as “verdades científicas” veiculadas nas mídias ou nos
discursos políticos sociais. Ribeiro e Marin discutem que:

Ainda hoje, pesquisas e estudos que envolvem os potenciais riscos ao consumo


humano de AGM ainda são muito restritos. No entanto, existem estudos sobre o
efeito da ingestão de soja Roundup Ready em ratos, que demonstraram em análises
ultraestruturais e imunocitoquímica, alterações em células acinares do pâncreas
(redução de fatores de "splicing" do núcleo e do nucléolo e acúmulo de grânulos de
pericromatina); em testículos (aumento do número de grânulos de pericromatina,
diminuição da densidade de poros nucleares e alargamento do retículo
endoplasmático liso das células de Sertoli), havendo a possibilidade de tais efeitos
estarem relacionados ao acúmulo de herbicida presente na soja resistente, além de
alterações em hepatócitos (modificações na forma do núcleo, aumento do número de
poros na membrana nuclear, alterações na forma arredondada do nucléolo, indicando
aumento do metabolismo) sendo potencialmente reversíveis neste último grupo de
células (RIBEIRO; MARIN, 2012, p.362).

A temática dos transgênicos cobre um conjunto de domínios e aspectos sociais,


econômicos culturais e ambientais. A grande questão que vem sendo levantada é o quão seguras
são essas tecnologias, se elas estão de acordo com o Guia Internacional para Segurança em
Biotecnologia (IGSB) aceito pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (MOSS, 2008, s.p.).
Ultimamente, os assuntos dos adeptos do princípio da precaução forçam os governos de muitos
países incluindo o Brasil, a modificar suas políticas e desistir da produção de variedades

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geneticamente modificadas. Assegura Rubens Onofre Nodari (2003) sobre o assunto, que os
testes de segurança são conduzidos caso a caso e modelados para as características específicas
das culturas modificadas e as mudanças introduzidas através da modificação genética. Todavia
o mesmo autor salienta que o maior problema na análise de risco de organismos geneticamente
modificados, é que seus efeitos não podem ser previstos na sua totalidade. Os riscos à saúde
humana incluem aqueles inesperados, alergias, toxicidade intolerância. No ambiente, as
consequências são a transferência lateral (horizontal) de genes, a poluição genética e os efeitos
prejudiciais aos organismos não alvos.
Estudos elaborados por Costa (2007) apontam que, todos os fenômenos e eventos
indesejáveis resultantes do crescimento e consumo dos organismos geneticamente modificados
podem ser classificados em três grupos de risco: alimentares, ecológicos e agrotecnológicos.
Os riscos alimentares compreendem: a) efeitos imediatos de proteínas tóxicas ou alergênicas
do OGM; b) riscos causados por efeitos pleiotrópicos das proteínas transgênicas no
metabolismo da planta; c) riscos mediados pela acumulação de herbicidas e seus metabólitos
nas variedades e espécies resistentes; d) risco de transferência horizontal das construções
transgênicas, para o genoma de bactérias simbióticas tanto de humanos quanto de animais. Os
riscos ecológicos abarcam: a) erosão da diversidade das variedades de culturas em razão da
ampla introdução de plantas GM derivadas de um grupo limitado de variedades parentais; b)
transferência não controlada de construções, especialmente daquelas que conferem resistência
a pesticidas e pragas e doenças, em razão da polinização cruzada com plantas selvagens de
ancestrais e espécies relacionadas. Os possíveis resultados são o declínio na biodiversidade das
formas selvagens do ancestral; c) risco de transferência horizontal não controlada das
construções para a microbiota da rizosfera; d) efeitos adversos na biodiversidade em razão de
proteínas transgênicas tóxicas, afetando insetos não alvos, assim como a microbiota do solo,
rompendo desta forma a cadeia trófica; e) risco de rápido desenvolvimento de resistência às
toxinas implantadas no transgênico por insetos fitófagos, bactérias, fungos e outras pragas
devido à pesada pressão seletiva; f) riscos de cepas altamente patogênicas de fitovírus
emergirem em razão da interação do vírus com a construção transgênica que é instável no
genoma dos organismos receptores e, portanto, são alvos mais prováveis para recombinação
com DNA viral.
No que compete aos riscos agrotecnológicos, é possível explicitar: a) riscos de
mudanças imprevisíveis em propriedades e características não alvo das variedades GM e em

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razão dos efeitos pleiotrópicos de um gene introduzido; b) riscos de mudanças transferidas nas
propriedades de variedade GM que deveriam emergir depois de muitas gerações em razão da
adaptação do novo gene ao genoma, com manifestação da nova propriedade pleiotrópica e as
mudanças já citadas; c) Perda da eficiência do transgênico resistente a pragas em razão do
cultivo extensivo das variedades GM por muitos anos; d) possível manipulação da produção de
sementes pelos donos da tecnologia “terminator”. Entretanto, observa-se que a preocupação
com a produção e utilização dos OGM por sua vez, e a combinação de riscos complexos e
incertos com a existência de vulnerabilidades sociais e ambientais, torna ainda mais explosiva
a necessidade da dialética entre produção-destruição inerente aos atuais modelos de
desenvolvimento econômico e tecnológicos.

CONCLUSÃO

Alimentar-se é muito mais do que a mera ingestão de alimentos. É, conforme o artigo


2º da LOSAN, a materialização de um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade
da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição
Federal, devendo o Poder Público adotar as políticas e ações que se façam necessária para
promover a segurança alimentar e nutricional da população. O ato de alimentação requer a
presença de alimentos em qualidade, em quantidade e de maneira regular, a fim de que haja
concretização do ideário de dignidade que reveste a vida humana. A reunião dos três pilares
materializa o ideário de segurança alimentar e nutricional e direito humano à alimentação
adequada. Denota-se que está se valendo da premissa de acesso de alimentos, o que é diferente
de disponibilidade de alimentos, já que esses podem estar disponíveis, mas as populações mais
pobres podem não ter acesso a eles, em decorrência da renda ou outros fatores.
Dentro de tal temática, a utilização de organismos geneticamente modificados ganha
especial destaque, sobretudo sua incorporação na temática de segurança alimentar e nutricional.
Por se tratar de uma nova tecnologia e considerando o reduzido conhecimento científico a
respeito dos riscos de OGMs, torna-se indispensável que a liberação de plantas transgênicas
para plantio e consumo, em larga escala, seja precedida de uma análise criteriosa de risco à
saúde humana e do efeito desses produtos e serviços ao meio ambiente, respaldadas em estudos
científicos, conforme prevê a legislação vigente. Assim, normas adequadas de biossegurança,
licenciamento ambiental, e mecanismos e instrumentos de monitoramento e rastreabilidade são

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necessários para assegurar que não haverá danos à saúde humana, animal e ao meio ambiente.
Também são imprescindíveis estudos de impacto socioeconômicos e culturais, daí a relevância
da análise da oportunidade e conveniência que uma nação deve fazer antes da adoção de
qualquer produto ou serviço decorrente da transgenia.

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551
A DIVULGAÇÃO DAS OPERAÇÕES DA POLICIA FEDERAL:
DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO,
LIBERDADE DE IMPRENSA E INTERESSE PÚBLICO

SANTOS, Denis Ribeiro dos


Doutorando do PPGJA/UFF

RESUMO

Discute a divulgação de notícias sobre a persecução penal e o direito de acesso à informação, diante do
direito à privacidade e o interesse social. Aborda os efeitos do interesse particular e interesse coletivo e
geral em face do acesso à informação. Discute o direito à informação face à liberdade de imprensa e o
direito de imagem. Aborda a boa fé na liberdade de imprensa sob a perspectiva da ética habermasiana.

Palavras-Chave. Persecução penal. Acesso à informação. Liberdade de imprensa. Inquérito policial.

INTRODUÇAO

A divulgação pela imprensa sobre a execução dos trabalhos das polícias (civil, federal
e militar) preocupa uma parcela da população nos dias de hoje, mas em tempos outros muitos
clamaram pela publicidade de sua prisão como forma de ser novamente encontrado.
Independentemente da divulgação da imagem, a preocupação no período da ditadura militar
era o de não ser levado na calada da noite (ou do dia) e depois nunca mais ser visto. Um exemplo
disso foi o caso de Rubens Paiva, cuja filha buscou apoio na imprensa nacional e internacional
para salvar os pais que haviam sido levados à prisão pelos militares.1

1 - Rubens Paiva foi deputado federal pelo estado de São Paulo. Com o Regime Militar, foi cassado e exilado, tendo voltado ao
Brasil clandestinamente. Foi levado de sua residência na zona sul da cidade do Rio de Janeiro e nunca mais foi visto. Sua esposa
e filha (Eliana Paiva) foram levadas para uma unidade do Exército no mesmo dia; tendo a primeira ficado 12 dias em poder dos
militares e a segunda (menor de idade na época) permanecido no calabouço por 24 horas. Eliana Paiva narra que procurou apoio
da imprensa; principalmente a imprensa internacional, para tentar a soltura de seus pais. Sua mãe retornou ao seio familiar após
doze dias na prisão, mas seu pai nunca mais foi visto. De acordo com a entrevista concedida, houve até dificuldade em provar que
o deputado cassado havia sido levado pelos servidores do regime militar; o que só foi possível através da exibição do recibo de
entrega do veículo do desaparecido, que estava no pátio do Doi-Codi do Rio de Janeiro. Entrevista disponível em:
http://oglobo.globo.com/brasil/pela-primeira-vez-filha-de-rubens-paiva-conta-que-passou-4120922. Acessado em 30.set.2014.

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Buscando dar segurança ao cidadão que é preso, o legislador constituinte de 1988


incluiu artigos que garantem o direito de comunicação com advogado e com a família. Criou,
também, a obrigatoriedade de comunicação das prisões ao Ministério Público, ao Juiz Criminal.
Nesse direito/dever de comunicação está incluída a liberdade de a imprensa divulgar os fatos,
no dizer do artigo 5º, inciso LX que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos
processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;”.
Discute-se a exposição pela imprensa das pessoas presas em operações policiais, bem
como no caso de prisão em flagrante, com o fito de preservar a imagem da pessoa, mas
contrariamente do que pensa a maioria, a submissão aos princípios da transparência e da
publicidade, previstos nos artigos 5º, inciso XXXIII e 37, ambos da Constituição Federal,
também alcança os órgão de governo responsáveis pela persecução penal.
Nesse sentido foi editada a Lei nº 12.527/2011:

dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito


Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto
no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da
Constituição Federal. (grifo do original)2

Além do direito de acesso à informação, a lei prevê a obrigatoriedade da divulgação,


o que é feito nos sítios dos órgãos públicos, isentando, em parte, dessa obrigação, apenas os
municípios com menos de 10 mil habitantes.
Assim, o acesso à informação conquistou o status de direito previsto na Carta Magna,
bem como a liberdade de expressão, nos moldes de diversos institutos internacionais, dentre os
quais aquele vigente na União Européia, que traduz a liberdade de expressão como o direito de
receber e de comunicar informações e idéias sem a ingerência da autoridade pública
(MENDEL, 2009).
Sendo a investigação policial ato do poder público da administração direta, deve
adequar-se aos mandamentos contidos na lei sob comentário, conforme exporemos em seguida.
O objetivo do presente trabalho é de apresentar argumentações, a partir da perspectiva
habermasiana sobre a divulgação dos atos da administração pública, principalmente aqueles
relacionados à persecução penal, que dão causa à demandas judiciais por reparação de danos
morais, tendo-se como base discussões sobre: esfera pública e privada para efeito de

2Artigo primeiro da Lei nº 12.527/2011, que submete aos Poderes das três esferas de governo e mais ao Ministério Publico e os
Tribunais de contas os princípios da publicidade e do acesso à informação.

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divulgação; direito de informação e liberdade de imprensa; efeitos fastos e nefastos da mídia e;


ética e moral na divulgação de fatos.
Para atingir tal objetivo traremos fragmentos históricos, sociais e filosóficos a partir
do referencial teórico habermasiana, numa tentativa de tentaremos externar nossa compreensão
ao entendimento de Sylvia Moretzshon, de que “O exercício do jornalismo é basicamente o
respeito à realidade factual”3 e, por fim, argumentar sobre efeito fasto e/ou nefasto na
divulgação dos atos praticados pelos órgãos responsáveis pela persecução penal.

1. O QUE É PÚBLICO E O QUE É PRIVADO PARA EFEITO DO DIREITO DE


INFORMAÇÃO

O direito à informação visa dar oportunidade ao indivíduo de saber sobre o que consta
a seu respeito nos arquivos da administração pública. Também visa dar conhecimento à
coletividade sobre atos da administração para possibilitar que sejam fiscalizados, em obediência
aos princípios constitucionais inscritos, principalmente, no artigo 37 da Carta Magna; quais
sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A investigação criminal, vinculada ao direito público (direito processual penal)
subordina-se ao princípio da transparência e ao princípio da publicidade. Como a sociedade é
composta por indivíduos, têm-se pessoas privadas reunidas em torno do interesse público, como
na esfera pública burguesa em que pessoas privadas que nela se relacionam entre si como
público (HABERMAS, 2003, p. 43). Essa relação ambígua faz com que o indivíduo
reivindique privacidade quando se encontra em situação da esfera pública e se vê exposto pela
imprensa, tendendo a reivindicar situação da vida privada.
Habermas (2003, p. 45) facilita o entendimento ao indicar a separação entre o setor
privado e a Esfera do Poder público, deixando a esfera pública política e a esfera pública
literária numa espécie de zona intermediária. Nesse esquema o filósofo indica que as situações
do setor privado se verificam na sociedade civil e no espaço íntimo da família; a da esfera
pública é revelada com as atividades típicas do Estado (exercício do poder de polícia), assim
como na sociedade de corte. Na zona intermediária fica a esfera pública política, a esfera pública
literária e o mercado de bens culturais que formam a chamada opinião pública.

3
Nota de aula em: UFF .dez.2013.

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Trazendo para o “mundo da vida” essas distinções verifica-se o ponto a partir do qual
deve-se preservar o indivíduo da divulgação de informações pela imprensa, pois se se levar em
consideração as informações que o Estado detém sobre pessoas (registro de nascimento,
arquivos de institutos de identificação, identificação cível, criminal, informações funcionais,
etc.) trata-se de dados da vida privada cadastráveis no serviço público – estes abrangidos pelo
interesse particular - enquanto as informações voltadas para a esfera pública são aquelas de
interesse coletivo ou geral, portanto passíveis de divulgação nos sítios dos órgãos públicos, ou
na imprensa em geral, dependendo de sua repercussão no interesse da sociedade.
É aí que se posicionam os atos da persecução penal; sobre os quais podem ser
exercidos, com menos limite, o direito de informação e a liberdade de imprensa, posto que sua
divulgação melhor atende aos interesses da coletividade.

2. INTERESSE PARTICULAR E INTERESSE COLETIVO OU GERAL4 PARA


EFEITO DE ACESSO A INFORMAÇÃO

O tipo de interesse tem ditado a ocorrência de dano ou prejuízo na vida do indivíduo


ou à sociedade. Seguindo os ensinamentos de Habermas acima expostos e comparando com o
texto de LAI (Lei de Acesso à Informação), tem-se que o interesse particular se classificaria
como sendo do setor privado; enquanto o interesse coletivo ou geral se classificaria como sendo
da Esfera do Poder Público e da esfera do poder político, tudo levando a crer que a situação
estritamente particular é de menos interesse para divulgação e conseqüentemente tem causado
menos impacto.
Carvalho (1999, p. 7) aborda o tema sob o título de Interesse Público e Interesse
Privado, mencionando Nelson Saldanha5 que equipara o interesse público à Praça e o interesse
privado ao jardim.

2.1. SETOR PRIVADO X INTERESSE PARTICULAR

O setor privado se refere à sociedade civil (setor de troca de mercadorias e os locais


de trabalho), bem como ao espaço familiar (HABERMAS,2003, p.45), enquanto que no texto

4
A Constituição Federal, no artigo 5º,inciso XXXIII trata do tema sob a denominação interesse particular e interesse coletivo e
geral; enquanto a Lei nº 12.527/2011 (LAI – Lei de Acesso à Informação) cita entidades privadas de um lado e ações de interesse
público de outro.
5
SALDANHA, Nelson. O Jardim e a Praça: Ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e Histórica.

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da LAI (Lei de Acesso à Informação)6a menção correlata está definida no artigo 4º, inciso “IV
– informação pessoal: aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável;” . É
nesse compasso que caminhou o Código Civil Brasileiro, que no seu artigo 20 protege a
imagem da pessoa natural de qualquer divulgação que não esteja devidamente autorizada, salvo
se tal publicação for do interesse da administração da justiça ou para manutenção da ordem
pública. As demais definições se adéquam ao conceito habermasiano de Esfera do Poder
Público ou esfera do poder político, correlatos à administração direta ou indireta.

2.2. ESFERA DO PODER PÚBLICO E DA ESFERA DO PODER POLÍTICO

Os termos correlatos aos conceitos habermasianos na Lei de Acesso à informação


dizem respeito aos órgãos públicos integrantes da administração direta dos três poderes, aí
incluindo os tribunais de contas e o ministério público, para Esfera do Poder Público e;
administração indireta (fundações públicas, empresas públicas, sociedade de economia mista
e demais entidades controladas direta ou indiretamente pelas três esferas de governo – União,
Estados, Distrito Federal e Municípios), estas, quase sempre, relacionadas à esfera do poder
político.
Nesse seguimento torna-se necessário a constante fiscalização do cumprimento dos
princípios constitucionais da administração pública somado ao princípio da publicidade,
acrescentando a liberdade de imprensa que, a nosso ver, melhor atende ao interesse geral e
coletivo.

2.2.1. DIREITO À INFORMAÇÃO X LIBERDADE DE IMPRENSA

As informações veiculadas em obediência aos termos da Lei de Acesso à Informação


são tímidas e colocadas, sem detalhes, para a sociedade, posto que os agentes públicos filtram
as informações e só divulgam aquilo que pensam que deve ser sabido e na medida em que
acham que deve ser sabido. É nesse espaço entre a informação filtrada e aquilo que deve ser
sabido que entra a liberdade de imprensa.
A liberdade de imprensa avança mais. Apesar do jornalista, em parte, agir com o
mesmo ânimo limitador do agente público – no sentido de publicar aquilo que pensa que deve

6
Lei nº 12.527/2011

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ser sabido – aplica a teoria de Marx7 no sentido de apropriar-se da informação disponível por
força de lei e nela incorporar determinada quantidade de trabalho de forma a transformá-la
numa mercadoria; ou seja: enquanto a informação é o produto, a matéria jornalística é a
mercadoria. A informação agregada de valor gera o conhecimento.
Verifica-se no portal da Polícia Federal – exemplo de transparência ativa - a
publicação do resumo das operações que foram deflagradas, mas o conteúdo não é suficiente
para prestar o esclarecimento que numa matéria jornalística se presta.
Daí há de surgir o questionamento se o acesso à informação - conforme cumprido
pelos órgãos públicos - está atingindo a função social vislumbrada pelo legislador, ou melhor;
como necessitam os concernidos. É sabido que quase todo o trabalho de persecução penal é
feito com utilização de meios tecnológicos (monitoramento telefônico, escuta ambiental, etc)
que permitem à descoberta de fragmentos de informações que requer dos órgãos envolvidos a
agregação de mais trabalho para que seja produzida uma informação pronta para ser acessada
e processada jornalisticamente.
Carvalho (1999, p.81/86) afirma que a expressão liberdade de imprensa é
ultrapassada, posto que o termo remete à invenção da máquina por Gutemberg. Diz que, para
os dias atuais, a expressão mais acertada é informação jornalística em função dos vários meios
e órgãos de comunicação que dispomos:

Mas a expressão não lhe presta mais, não é suficiente para designar um complexo de
relações jurídicas em que se transformou a imprensa na sociedade moderna. A sua
atividade característica – a informação de fatos – hoje é exercida por vários outros
meios ou órgãos, como a televisão, o rádio, a internet e quem sabe tantos outros que
ainda surgirão. Por isso, não é mais justificável tratar-se de imprensa este tipo de
informação responsável pela divulgação de fatos. Melhor mesmo concebê-la como
informação jornalística.8

O autor justifica o uso do termo imprensa apenas como reconhecimento romântico da


época em que a imprensa, em toda parte do mundo:

[...] lutou contra alguém ou contra um sistema, geralmente inimigos poderosíssimos


que a golpearam por todos os lados e de todos os modos. Os governantes poder ter
caído, os jornais podem ter sido fechados, os jornalistas podem ter sido fuzilados...
mas a instituição imprensa sobreviveu a tudo e tornou-se indispensável à sociedade.
Desse modo, é compreensível e até justo manter-se o termo e, se isso ocorrer aqui,

7
MARX, Karl. Manuscritos econômicos –filosóficos e outros textos escolhidos (Salário,Preço e Lucro), pag.80
8
Obra citada, p. 81/82

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credite-se também a esse tributo. Mas, por uma questão de rigor, deve-se preferir a
expressão informação jornalística.9

Verifica-se que a imprensa ainda encontra resistência. Às vezes a liberdade para


divulgação dos fatos depende de quem sejam os atores, daí resultando os efeitos da divulgação
de tema sobre a persecução penal.

3. A PERSECUÇÃO PENAL: INTERESSE E DIVULGAÇÃO

As atividades da polícia sempre chamaram atenção da imprensa, sendo que mais


comuns são aquelas notícias cotidianas apuradas nas delegacias de polícia civil ou da atividade
da polícia militar. Nos últimos 20 anos, a Polícia Federal tem chamado atenção da imprensa,
especialmente nas chamadas “Operações Policiais”, quase sempre, realizadas com utilização
de monitoramento telefônico e escuta ambiental.
Nesse sentido palestrou o magistrado Abel Gomes – Desembargador do Tribunal
Regional Federal da 2ª Região, quando do Seminário de 25 anos do Tribunal, afirmando que
nas décadas de 80 e 90 as ações da Polícia Federal e, conseqüentemente, os processos penais
que tramitavam na Justiça Federal, quase sempre, diziam respeito ao contrabando e
descaminho, falsificação de passaportes; daí não se falar em suspeitos bem posicionados
socialmente. A partir de quando as investigações descambaram para os crimes financeiros,
crimes contra a administração publica de grande monta, nas quais figuram como suspeitos
desde o operário mais simples de um aeroporto até o comandante de uma aeronave; desde o
mais humilde serventuário da justiça até o presidente do tribunal; desde o porteiro até o
presidente de uma casa legislativa, etc., o foco de atenção dos trabalhos da Polícia e Justiça
Federal passou ganhar mais espaço na mídia em geral e com isso vieram os casos de demandas
por danos morais, isso na tentativa de afastar do povo o direito a informação:

Mas logo depois o Congresso começou a promulgar as leis que alteraram essa
configuração. No rol de novas normas, Abel Gomes citou as Leis 9.034, de 1995,
que tipifica e prevê punições para o crime organizado, a 9.296, de 1996, que regula
as interceptações telefônicas, a 9.613, de 1998, sobre o crime de lavagem de dinheiro,
e, ainda, a 9.605, também de 1998, que cuida dos crimes contra o meio ambiente.
A partir daí, e da intensa atuação que a Polícia Federal começou a desenvolver
ancorada nessas normas, tornou-se possível processar e julgar os acusados de crimes
de grande poder lesivo à ordem e à economia públicas: “Notadamente, depois de
2003, verificamos uma sensível mudança de paradigma. As ações policiais, que até

9
Idem, p. 82

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ali eram quase sempre isoladas e pontuais, passaram a se constituir na forma de


forças-tarefa, de ações orquestradas em vários Estados simultaneamente, envolvendo
setores de inteligência e o uso de aparatos tecnológicos sofisticados”, afirmou.10

A partir da mudança de paradigma mencionada pelo magistrado também resultou na


mudança da clientela, como se afirmou acima. A atual clientela, quase sempre composta por
“personalidade pública”; ou seja: pessoa com destaque público, comparado ao nobre descrito
por Habermas (2003, p.26), cuja representatividade pública fica maculada com a divulgação de
sua boa ou má ação, de forma que reivindique por intimidade, privacidade e, conseqüentemente
o limite a atuação da imprensa.
Sérgio Cavalieri Filho11 ao prefaciar a obra de Carvalho (1999), afirma que a
liberdade de informação pode escudar empresas jornalísticas para que estas invadam a
intimidade alheia e divulgue fatos da vida privada, vindo até provocar decisões judiciais
conflituosas e contraditórias. E referindo-se à obra prefaciada transcreve a passagem em que o
autor afirma que a informação “é a mais poderosa arma dos tempos modernos; quem detém a
informação, tem o poder”. E conclui dizendo que o direito de informar deve sofrer certo limite
para não comprometer o bem maior que é “o principio fundamental da dignidade humana”.
É necessária a preocupação com o princípio da dignidade da pessoa humana, mas o
interesse individual, ainda que pareça violado, não deve prevalecer sobre o interesse da
sociedade, conforme a leitura que se pode fazer do artigo 93, inciso IX da Constituição Federal:

IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e


fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a
estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no
sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004)

3.1. O DIREITO DE IMAGEM X DIREITO A INFORMAÇÃO

O direito da pessoa que é indicada como suspeita de cometer determinado crime pode
ser preservado, mas o direito da sociedade em tomar conhecimento de quem são os possíveis
inimigos do Estado deve prevalecer sobre o direito individual de imagem. Para o bem da
persecução penal, o processo criminal corre em sigilo até certo ponto – até a elaboração do

10 Disponível em: http://www10.trf2.jus.br/25anos/seminario-25-anos-da-justica-federal-da-2a-regiao-questoes-penais-


controversas-a-partir-da-constituicao-de-1988/. Acessado em: 01.fev.2015.
11
Carvalho (1999) – prefácio

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relatório pela autoridade policial - não sendo possível – nem devido - ocultar da sociedade os
temas que envolvem corrupção, desvio de verbas publicas, dentre outros crimes que ameaçam
o bem-estar geral. Deixar de divulgar algumas investigações, por vezes, pode significar a
impunidade, haja vista que o poder que a imprensa tem de trazer a baila situações de injustiça.
Cabe aqui o uso da frase proferida no discurso do integrante da Comissão da Verdade da
OAB/RJ, se referindo aos desmandos da ditadura militar, mas ajustável, a nosso ver, à presente
discussão: a sociedade "precisa saber dos fatos para que eles não se repitam".12
A exposição de fatos devidamente apurados não atenta contra a dignidade da pessoa
humana, pois o indivíduo enquanto membro da sociedade também tira proveito da probidade
pública.
O que atenta contra a dignidade da pessoa humana, assim como atenta contra a
sociedade é a indevida interpretação dos elementos de prova e conseqüente desvirtuamento dos
fatos.
Nos relatórios de investigação, nas peças de denúncia e nas decisões judiciais
(sentenças e acórdãos) o compromisso deve ser com a verdade, abstendo-se o profissional que
estiver à frente da escrita, de manter-se distante de interpretações, silogismos e sofismas que
possam comprometer a imagem do investigado e que, posteriormente, a afirmação apresentada
venha a ganhar contornos diferentes e até mesmo ser refutada. Mais uma vez o compromisso
com verdade não é para com o investigado, mas para com a sociedade, pois uma mentira
contada em desfavor de um determinado cidadão pode ser contada em relação a uma infinidade
deles, o que causa a insegurança jurídica que deve ser evitada na sociedade. O mesmo deve
ocorrer na divulgação dos fatos, de forma a ficar bem claro o que é informação e o que é opinião.
Levando-se em consideração a separação entre opinião e informação, a lei nº 12.527
orienta para que se dê a informação preservando-se a originalidade da fonte, posto que a
opinião, muitas vezes desprovida de elementos fáticos, vira fruto de interpretação e com isso
poderá viciar-se até chegar ao destino que é a sociedade como um todo.
Wittgenstein (2011), num de seus fragmentos, alerta para o vício da interpretação sem
o devido cuidado, uma vez que na interpretação emprestamos formas lingüísticas cuja
profundidade tem significado para nós, mas para os destinatários pode dar entendimento
diferente:

12 Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI158606,81042-OABRJ+Campanha+pela+memoria


+e+verdade+tem+novos+projetos. Acessado em: 20 mar. 2015.

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Os problemas que nascem de uma má interpretação de nossas formas lingüísticas


têm o caráter da profundidade. São inquietações profundas; estão enraizadas tão
profundamente em nós quanto as formas de nossa linguagem, e sua importância é
tão grande como a de nossa linguagem. – Perguntemo-nos: por que sentimos uma
brincadeira gramatical como profunda? (E isto, com efeito, é a profundidade
filosófica.)

3.2. BOA FÉ NA LIBERDADE DE IMPRENSA

Habermas (2013) devolve à discussão os efeitos do princípio da publicidade, que na


imprensa burguesa serviu, que teve, de início, a função de criticar as prática secreta do Estado
e foi “refuncionalizado” para atividades outras senão a de divulgar os fatos e evitar as ações
secretas, mas como meio manipulações políticas para todo e qualquer fim, como denunciado
por Carreira Alvim (2011), quando afirma que uma operação da Polícia Federal teve o único
propósito de afastá-lo da concorrência para o cargo de Presidente do Tribunal.
Alertamos no início desse trabalho que o propósito do princípio da publicidade e
transparência trazido na Constituição Cidadã serviu para descobrir a práxis das masmorras, mas
vem, também servindo para nefastos objetivos políticos, conforme escreveu o filósofo de
Düsseldorf:

[...] o princípio da publicidade, imposto inicialmento com uma função claramente


crítica contra a práxis secreta do Estado absolutista e ancorado nos procedimentos
dos órgãos do Estado de direito, foi refuncionalizado para finalidades demonstrativas
e manipulativas. Embora apresente tecnicamente um potencial de libertação, a rede
de comunicação, tecida de forma cada vez mais densa, das mídias eletrônicas de
massa é organizada hoje de tal modo que, em vez de servir para submeter os controles
sociais e estatais por seu turno a uma formação descentralizada e discursiva da
vontade, a qual é significativamente canalizada e liberta de seus limites, controla
antes a lealdade de uma população despolitizada.”13

Portando, se não se operar os fundamentos do Código de Ética dos Jornalistas14, não


se completa a entrega da informação, pois não se chega à conclusão de onde reside a razão; se

13 Teoria e práxis, página 29


14
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: “Art. 2º Como o acesso à informação de relevante interesse público é um direito
fundamental, os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de interesse, razão por que:
I - a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação e deve ser cumprida independentemente de
sua natureza jurídica - se pública, estatal ou privada - e da linha política de seus proprietários e/ou diretores.
II - a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público;
III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade
social inerente à profissão;
IV - a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as não-governamentais, é uma obrigação social.
V - a obstrução direta ou indireta à livre divulgação da informação, a aplicação de censura e a indução à autocensura são delitos
contra a sociedade, devendo ser denunciadas à comissão de ética competente, garantido o sigilo do denunciante.” Disponível em:
http://www.fenaj.org.br/materia.php?id=1811. Acessado em 25 mar.2015.

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no argumento da acusação ou da defesa, posto que o meio termo faz aumentar a dúvida e a
desconfiança no sistema de persecução criminal
Se de um lado o acesso à informação garante um direito, a informação em si, se
precipitada, pode significar violação de direitos. Daí a necessidade de que a colheita e
divulgação das informações seja cercada pela moral e ética sob os auspícios dos imperativos
categóricos e ética habermasiana.
Com a afirmação de que “o exercício do jornalismo é basicamente o respeito à
realidade factual”15 e apresentando suas restrições ao papel da imprensa sensacionalista,
Moretzsohnn (2007) remete ao ensaio de Kant numa referência de que pode não existir essa
condenação através da mídia, mas uma possibilidade iluminista de levar o povo a pensar no
que, de fato, ocorre na esfera pública, e daí – num ato de auto libertação – tirar suas próprias
conclusões.
A liberdade de imprensa aliada ao direito à informação seria – pelo que entendemos
sobre o texto de Moretzsohnn – resultam no esclarecimento; mas não bastaria que um viesse
desacompanhado do outro em função da sujeição à menoridade que pode acompanhar a
informação, uma vez que essa é processada de acordo com o interesse da “repartição” - que
elege o que o povo pode e deve saber – enquanto a liberdade de imprensa visa dar conhecimento
que permita o indivíduo a “pensar, ou pensar que está pensando”.
A junção de ambos – liberdade de imprensa e direito à informação – forma o
esclarecimento que “é a saída do homem de sua menoridade auto-imposta, isto é da sua
incapacidade de pensar por si próprio.” (pag. 111)
Portanto, liberdade de imprensa é, no dizer de Moretzsohnn (2007), o jornalismo para
esclarecer; enquanto ao direito à informação visa cumprir o rito da lei, sem extrair do indivíduo
a manifestação que expresse opinião.
Ao tratar de jornalismo, verdade e política Moretzsohnn referencia Hanna Arendt, que
bem esclarece o atual comportamento da mídia, diante de um suposto desaparecimento da
esfera do poder público e esfera privada, para a prevalência do poder político, como se percebe,
em que se retorna à prática da época original do jornalismo, quando grandes comerciantes e
empresários custeavam as publicações. Com as publicações bem pagas pelo poder político
criam-se vínculos de amizade e de negócios que comprometem a imparcialidade da mídia

15
Anotado na aula ministrada em 02/12/2013 - UFF

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jornalística, pois não há “isenção do interesse pessoal no pensamento e no julgamento”


(ARENDT, apud Moretzsohnn – página 116)

Há uma contradição aparente na permanência desse ideal, quando atualmente um dos


valores básicos para o jornalismo – embora muito problemático – é a imparcialidade.
Mas a contradição se desfaz se percebermos que a mudança incide sobre o agente do
esclarecimento; já não mais o sujeito (que defende causas), mas o objeto (os “fatos”,
que supostamente “falam por si”). Essa concepção começa a se estabelecer em
meados do século XIX, coerente com a concepção de ciência prevalente à época e –
como veremos adiante – com os objetivos empresariais desse “negócio” que é a
produção de jornais. É o que contribui para encobrir, convenientemente, o caráter
ideológico da atividade jornalística, juntamente com a confusão a respeito do seu
papel de mediador, fundado na conceituação clássica (e idealista) de “quarto poder”,
como se a imprensa fosse uma instituição acima das contradições sociais, capaz de
falar em nome de todos, indistintamente, representando a sociedade contra os abusos
do Estado.16

Lopes Filho (2011)17 aponta que são tantos as investigações que os delegados tendem
a escolher aquelas que prometem melhor destaque ao trabalho (na mídia), deixando outras –
menos interessantes – entregues ao esquecimento. A escolha se faz por critério de mídia; ou
seja: aquilo que a mídia possa se interessar em divulgar. Cada Inquérito Policial – que é a fase
preliminar da persecução penal – é uma investigação e, na Polícia Federal, cada inquérito tem
potencialidade de vir a ser objeto de uma “operação”. Se fosse trabalhado o número de
inquéritos policiais, com a mesma desenvoltura; com a mesma aplicação de recursos
dispendidos nas “mega” operações; não se teria recursos e nem servidores suficientes. Isso
apenas na primeira fase da persecução penal. “Não sobraria pedra sobre pedra”, tal a confusão
que se verifica no tratar da coisa pública como se fosse coisa privada.
O mau uso das provas obtidas na persecução penal é um desses gargalos. É o atalho;
é o não cumprimento da lei; é o arranjo possível, pois a sutileza de que se aproveita a ação
criminosa permite a interposição de intermináveis recursos; protelatórios ou não, mas que
depois de longos anos do início da persecução penal viciada, resulta em anulação de todo o
trabalho, tendo como conseqüências a prescrição e a impunidade.

16 Op. Páginas 106/107


17
Entretanto, é fato que todas as dificuldades do IP são superadas, nos casos de maior repercussão midiática, quando então recebe
contornos de show, e seus protagonistas adquirem status de verdadeiras estrelas e astros de televisão ou cinema: alguns assumindo
o papel de vilões e de abomináveis encarnações do mal; outros, o papel de pobres e indefesas vítimas; finalmente, existem ainda
os “mocinhos” do enredo, quais sejam,, os representantes estatais envolvidos no inquérito (investigadores, delegados,
promotores), dispostos a desvendar a trama e a punir os culpados, que, a essa altura do dramático enredo, de regra, já foram pré-
julgados e punidos pela grande massa da opinião pública. LOPES FILHO, Ozéas Corrêa. Inquérito Policial: uma alternativa
democrático-discursiva para o modelo brasileiro. Dissertação. UFF/PPGSD. Niterói, 2011.

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Os emblemáticos casos em que se aproveitou, plenamente, a prova obtida com


monitoramento telefônico e escuta ambiental, foram conjugados com diligências materiais. O
monitoramento telefônico, a nosso ver, aponta para a cogitação criminosa; nem mesmo
enquadra-se no conceito de tentativa. Se fosse assim, o uso de termos pejorativos, a conversa
de sedução deveriam ser punidos como estupro, atentado violento ao pudor, etc. Se em conversa
telefônica os investigados tratam sobre entrega de valores, cabe ao investigador, no mínimo,
encontrar o valor na mão do corrompido ou do corruptor; sob pena de não existir qualquer tipo
penal, a não ser que seja punível como cogitação ou tentativa.
Estamos diante de vários casos em que se divulga a cogitação como crime cometido,
e como as provas dos autos não se sustentam; tudo passa ser uma mentira só, ou pura calunia e
conseqüente difamação.
Temos o grande problema da origem da informação. Se a investigação não se calcar
em base sólida, todo o resto da persecução penal estará comprometido.
Partindo para o lado da economia, em que se fala de valor, para distinguir o produto
da mercadoria, temos que a informação é produto para os investigadores, assim como o
relatório de investigação tende a ser produto para o ministério público, cuja denúncia tende a
ser produto para o juiz. Cabe a cada um, a partir da moral e da ética, colocar seu trabalho sobre
o produto e entregar mercadoria ao seguimento seguinte,para que a sociedade receba uma
sentença/mercadoria e assim seja atingido o objetivo social da persecução penal.
Ainda que a divulgação de fatos da investigação possa ser precipitada, no dizer de
Habermas (2001) a sociedade precisa saber dos fatos que ameaçam a probidade administrativa.
Isso não quer dizer que se possa divulgar tudo o que se entende como criminoso, pois deve
haver por parte de quem investiga, um aprofundamento da pesquisa antes que o fato se torne
público.

4. EFEITOS FASTO E NEFASTO DA LIBERDADE DE IMPRENSA

A utilidade de toda essa definição reside no efeito fasto ou nefasto que causará, após
a deflagração de uma operação policial de cumprimento de determinação judicial, fruto de
persecução penal na qual foi usado como meio de produção de provas o monitoramento
telefônico e/ou a escuta ambiental.

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O efeito fasto da divulgação dos atos de polícia é a garantia do direito à informação,


previsto na Constituição Federal e nas leis infraconstitucionais. É bom que a sociedade saiba
quem são seus inimigos, posto que a divulgação de fatos criminosos têm sido mais eficaz que
o próprio encarceramento do indivíduo. Não faz retornar ao status quo anti, mas garante o
estancamento ou diminuição do prejuízo social.
O efeito nefasto só opera sobre as pessoas inocentes e injustiçados, posto que a
antecipação da divulgação sem a devida checagem causa dano irreparável ou de difícil
reparação.
O contrapeso opera em favor da sociedade, haja vista que se permitir somente o sigilo,
se estaria avalizando para que o criminoso permanecesse impune ou, no mínimo, invisível;
assim como a divulgação, ainda que precipitada pode dar oportunidade do inocente apontar o
real culpado, ou demonstrando sua inocência, abre os olhos para que se localize o real culpado.
É fato que a imprensa tem seus pecados, mas sem seus olhos e bocas muitos crimes
caem no esquecimento e na impunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão que se chega, tomando por base os ensinamentos de habermasianos,


comparando com a práxis do mundo da vida que se tem revelado nas chamadas espalhafatosas
operações da Polícia Federal é que a divulgação pela imprensa, ainda que, em tese, provoque
uma espécie de condenação antecipada, provoca, de certa forma, um rearranjo na esfera pública,
com pouca interferência na esfera privada.
O rearranjo na esfera pública significa, a nosso ver, é revelador de que algo que não
restou efetivamente comprovado (ou provado) não estava caminhando bem. “Há algo de podre
no reino da Dinamarca”. Existia, de certa forma, vício de comportamento e postura que,
mesmo que não caracterize o crime que foi capitulado,
O texto bíblico abaixo aponta o cuidado prévio no qual a administração pública pode
se pautar, principalmente para que não tenha um poder da república que interferir no outro. A
vigília interna, sem corporativismo deve ser constante:

“Não deixe de corrigir seus filhos; a disciplina não lhes fará mal! Não morrerão se
você der uma surra neles! O castigo irá conservá-los longe do inferno.” Provérbios
23.13-14

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Essa chamada de atenção serve para as Corregedorias dos órgãos do poder público,
pois a harmonia entre os poderes pressupõe que cada poder esteja exercendo seu mister com
moral e ética, para que não ocorram episódios como o da Operação Dominó18 em que agentes
dos Três Poderes foram presos e expostos, por circunstâncias naturais da democracia, à
imprensa.

"São os homens e não as leis que precisam mudar. Quando os homens forem bons,
melhores serão as leis. Quando os homens forem sábios, as leis por desnecessárias,
deixarão de existir. Mas isto, será possível somente, quando as leis estiverem escritas
e atuantes no coração de cada um de nós." – Hermôgenes

A tolerância administrativa obriga que se “tente matar mosca com tiro de canhão”.
“Parece que exagerar é preciso” quando os comportamentos chegam à raia do absurdo.
Verifica-se a cada dia que muitas operações policiais serão necessárias para que se dê
bom rumo ao mundo, posto que, por todo lado, é notável os pequenos deslizes, que se
avolumam até se tornar insuportáveis. Na verdade o que está ocorrendo é apenas a condenação
pela imprensa; a condenação virtual, o que nos leva a indagar: A imprensa é o único tribunal?
Se hoje o principal meio de prova criminal é o monitoramento telefônico, a escuta
ambiental, o uso de imagens, fotografias, etc; e estas não forem colhidas com a devida isenção
e seriedade, colocará por terra toda a utilidade da persecução penal. Estamos a enxugar gelo;
estamos a construir castelos de areia, pois se a prova não é bem produzido todo o trabalho só
poderá provocar o susto da deflagração da operação. Passado o “susto” da divulgação dos fatos,
os casos caem no esquecimento; a persecução penal se desacelera; todos descansam em paz,
inclusive os investigados, até que surjam outros fatos que possa dar repercussão.
Hansen (notas de aula) afirma que quando se inaugura um novo escândalo, o anterior
tende a cair no esquecimento. Ontem foi o “Mensalão”, hoje o “Petrolão”; não dá tempo de se
apurar até o fim, antes do próximo capítulo.

18 A Polícia Federal desencadeou em 04 de agosto, no estado de Rondônia, a Operação Dominó, para desarticular uma
organização criminosa que agia na Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia (ALE/RO) desviando recursos públicos. O
grupo também é acusado de exercer influência indevida e promíscua sobre agentes do Poder Judiciário, Ministério Público,
Tribunal de Contas e do Poder Executivo do Estado. Na operação foram presos deputados estaduais, um procurador, o
desembargador presidente do TJ/RO, além de um juiz de direito e empresários. No total, 24 pessoas foram presas. Disponível em:
http://www.dpf.gov.br/agencia/estatisticas/2006# Dominó. Acessado em 20 mar.2015.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

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MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos: jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico.
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WITTGENSTEIN, Ludwig J.J.Investigações Filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. Editora Nova Cultural. São
Paulo, 1999.

567
O DIREITO NA SOCIOLOGIA

SANTANA, Gabriela T. M. da Hora


Estudante de Mestrado em Segurança Pública e Administração de Conflitos no Programa de Pós-Graduação de
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).

RESUMO

Através da observação do cotidiano acerca das disparidades sociais que afligem determinados grupos e
da análise de dados que expõem a relação entre a igualdade formal e a realidade socialmente desigual,
surgiu o interesse de investigar mais a fundo as perspectivas que envolvem a questão da cidadania no
Brasil. A Política brasileira e as suas instituições refletem a baixa legitimidade da agenda de segurança
pública no conceito ampliado de direitos humanos e cidadania. No presente artigo será dada ênfase à
população vulnerável socialmente através do estudo da discriminação sofrida por esse grupo e da
exposição a determinadas situações sociopolíticas e jurídicas que ocorrem por não terem acesso ao
exercício pleno da sua cidadania.

Palavras-Chave. cidadania; segurança; vulnerabilidade

ABSTRACT

Through the observation of daily life about the social disparities afflicting certain groups and the
analysis of data that expose the relationship between formal equality and socially unequal reality, the
interest arose to investigate more deeply the perspectives that involve the issue of citizenship in Brazil.
The Brazilian policy and its institutions reflect the low legitimacy of the public security agenda in the
expanded concept of human rights and citizenship. This article will emphasize the socially vulnerable
population through the study of the discrimination suffered by this group and exposure to certain socio-
political and legal situations that occur because they do not have access to the full exercise of their
citizenship.

Keywords. citizenship; safety; vulnerability

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INTRODUÇÃO

A sensação de insegurança generalizada é um problema social e, diante desta


realidade, a manutenção da ordem tornou-se pauta importante dos debates políticos. No entanto,
diversos projetos que têm como objetivo a inclusão social e a formação cidadã de pessoas
pobres, moradoras das áreas consideradas violentas e expostas a situações de risco, acabam não
indo adiante na promoção da cidadania.
O caput do art. 5º da Constituição Federal apresenta o princípio da isonomia como
uma das cláusulas pétreas em relação aos direitos e garantias individuais dos cidadãos, mas em
uma sociedade tão díspar como a nossa, acredito ser de suma importância o estudo de uma
"igualdade material", na qual se discute o tratamento diferente dado aos indivíduos para
alcançar uma igualdade nos resultados através de uma "discriminação positiva" (tratando os
diferentes na medida da sua desigualdade).
A luta por direitos à igualdade tornou possível o debate acerca da inserção social,
ainda que formal, dos grupos marginalizados nas instâncias decisórias das instituições públicas.
Contudo, as ações do Estado Brasileiro não se apresentam efetivas na garantia do
funcionamento conjunto das instituições e da sociedade.
A deterioração das relações sociais e a precarização das formas de trabalho, que
ocorreram para atender as demandas do mercado, promoveram a ascensão desse “Estado
penal”. Porém, o controle que o Estado exerce sobre os diferentes grupos sociais é distinto:
enquanto os indivíduos mais pobres sofrem com uma maior intensidade na penalização, as
classes mais abastadas têm uma punição mais branda.
Desta forma, pretendo colaborar com o estudo multidisciplinar sobre a falta de acesso
à cidadania plena e a dificuldade que gera no reconhecimento dos indivíduos destas classes
vulneráveis socioeconomicamente sobre o seu potencial enquanto sujeitos de direitos, capazes
de viver uma vida sem “problemas jurídicos” e discriminação social negativa.

1. DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICAS

Para possibilitar a análise sobre a naturalização da desigualdade que ganhou vulto no


projeto capitalista e que, consequentemente, promoveu um padrão de desenvolvimento social
desigual, é de suma importância pensar em instâncias repressivas como o Direito Penal e o seu
caráter exclusivamente coercitivo na resolução dos conflitos criminais-sociais.

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A caracterização do perfil dos presos no sistema penitenciário brasileiro como sendo:


jovens do sexo masculino com idade entre 18 e 30 anos, moradores de periferias, na sua maioria
negros, com pouca escolaridade e de baixa renda, está constantemente presente nos debates
sobre a criminalidade.
Estes dados estereotipados podem ser relacionados às desigualdades socioeconômicas
a que estes jovens estão expostos e à falta do autorreconhecimento enquanto sujeitos de direitos;
estas questões provocam a vulnerabilidade deles diante das proposições do que deveria ser a
igualdade no acesso à justiça.
O crescimento do projeto neoliberal promoveu um desvio nas funções do Estado que,
através do apelo à responsabilidade moral da sociedade, promoveu arranjos institucionais com
organizações do terceiro setor para que elas ficassem responsáveis por questões que tocam o
cerne da cidadania (como, por exemplo, a pobreza e a desigualdade) e o Estado ficou,
praticamente, limitado à organizar as subjetividades da sociedade para que o projeto capitalista
neoliberal se desenvolvesse; esta confluência é perversa por promover um deslocamento desses
assuntos da agenda pública, ao mesmo tempo que dá maior autonomia ao corpo social (através
da perspectiva liberal).1
Desta forma, na medida em que o Estado reduz sua intervenção em questões
importantes para a cidadania plena dos indivíduos e limita-se em exercer sua função coercitiva
e fim de manter a ordem social capitalista, ele contribui para uma submissão ainda maior dos
sujeitos em relação a lógica desigual neoliberal.
Essa “subordinação livre” dos indivíduos é reconhecida além desta ótica econômica
– na qual ocorre uma subsunção do trabalhador2 que não percebe a dominação sofisticada
ocultada por um ideal de liberdade autônoma –, ela está diretamente relacionada às questões
sociais e jurídicas através de uma repressão ideológica que possibilita o não reconhecimento
destes indivíduos sobre as garantias fundamentais a que têm direito e sobre as ideologias
jurídicas que corrompem e invisibilizam estes direitos.
Um conceito que trabalha a fragilidade do exercício dos direitos civis no Brasil foi
analisado pelos antropólogos Teresa Caldeira e James Holston através da “Democracia
Disjuntiva”:

1
DAGNINO, Evelina. (2004) (2005)
2
NAVES, Márcio Bilharinho. (2014)

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A violência e o desrespeito aos direitos civis constituem uma das principais


dimensões da democracia disjuntiva do Brasil. Ao denominá-la disjuntiva, James
Holston e eu (1998) chamamos atenção para seus processos contraditórios de
simultânea expansão e desrespeito aos direitos da cidadania, processos que de fato
marcam muitas democracias do mundo atual. (CALDEIRA, 2000, p. 343)

Caldeira declara, então, que a cidadania civil foi deslegitimada no Brasil e que os
direitos individuais (especialmente das classes trabalhadoras) foram reduzidos. A partir do
raciocínio categorizante de “fala do crime”, os indivíduos marginalizados
socioeconomicamente são cada vez mais segregados e expostos à uma realidade na qual o uso
da violência é legitimado sob um discurso de manter a ordem social e torna-se um dos
instrumentos de desigualdade e que serve para hierarquizar dois códigos sociais opostos.3
A concretude do universo do crime é um caráter disjuntivo da democracia brasileira
porque ele cria uma contradição entre a expansão da cidadania política e a deslegitimação da
cidadania civil.
De acordo com os dados do “Estudo Global sobre Homicídio 2013”, o Brasil é o 16º
país mais violento do mundo, com uma média de 25,2 mortes por mil habitantes, quase seis
vezes maior que a média mundial de 6,2 mortes por mil habitantes (a Organização Mundial da
Saúde considera uma epidemia de homicídios quando a taxa ultrapassa 10). A 10ª edição do
Anuário Brasileiro de Segurança Pública apresentou dados de que a taxa de mortes decorrentes
da intervenção policial no Brasil (1,6 mortes/100 mil habitantes) é maior que a taxa do país
considerado o mais violento do mundo, Honduras, que possui uma taxa de violência policial de
1,2/100 mil habitantes.4
Outro dado alarmante apresentado foi que em 2012 56 mil pessoas (aproximadamente
3% da população) foram assassinadas e, destas, 30 mil estão na faixa etária dos 15 aos 29 anos
e, desses jovens, 77% são negros. Esses assassinatos ganharam tamanha proporção que a
Anistia Internacional os usou como tema de uma campanha em novembro de 2014. A ação
“Jovem Negro Vivo” defende a preservação da vida sem preconceitos e a realização de políticas
integradas de segurança pública, educação, cultura, trabalho, etc., além de trazer também o
debate sobre a impunidade e a indiferença com a qual esses jovens são tratados na agenda
pública nacional.

3
CALDEIRA, 2000, p.138.
4
10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, p. 21.

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James Holston conceitua como “Cidadania Insurgente” a cidadania que se


desenvolveu no Brasil a partir da segregação e exclusão das camadas menos favorecidas da
sociedade.
A insurgência nas áreas periféricas do país possibilitou que estes indivíduos se
tornassem proprietários das suas moradias. Este fato, somado ao acesso aos direitos políticos e
à institucionalização dos direitos sociais (concedidos sob a ilusão dos direitos trabalhistas),
transformaram os trabalhadores pobres e moradores desses locais em novos cidadãos urbanos,
resultando em uma nova cidadania urbana, que visa combater a cidadania diferenciada5.
A “nova cidadania” é composta por uma nova esfera pública de participação que
conta com a ação de organizações mediadoras, elas buscam melhores condições no espaço
urbano, lutam por um custo de vida mais acessível para a sociedade e pelos direitos humanos,
que deveriam ser garantidos pelo Estado.
Essa questão retoma a tese de “confluência perversa”6 já que o Estado reduz sua
participação na sociedade e ela passa a ser desenvolvida por organismos do Terceiro Setor. No
entanto, o modelo democrático do Estado brasileiro – garantidor dos interesses dos cidadãos –
deveria ser capaz de administrar as diferenças sob os conceitos de igualdade material, prevendo
o acesso à Justiça e assegurando uma cidadania plena.
Mas o que percebemos, sob outra ótica, é a cidadania brasileira caracterizada pelos
privilégios legalizados e desigualdades legitimadas e sendo responsável pelo distanciamento
dos grupos sociais (enquanto algumas pessoas têm direito à lei, outros têm direito à punição
gerada pela lei), geralmente promovendo uma criminalização da pobreza.

2. PROBLEMAS DAS DESIGUALDADES NO ÂMBITO JURÍDICO

Estas desigualdades devem ser estudadas com base no descumprimento do primado


dos princípios democráticos, ou seja, pelo fato de que a lei não é completamente integrada e
harmônica com a vontade popular exposta nestas normas. Isso ocorre porque no Brasil a lei é
codificada através de hipóteses para, posteriormente, buscar sua aplicabilidade – as fontes do
direito são anteriores e independentes da manifestação concreta

5 Cidadania diferenciada: a exemplo do que ocorre no Brasil, a cidadania legitima as diferenças entre os grupos, reproduzindo-as
e gerando uma distribuição desigual de direitos a partir deste conceito.
6
DAGNINO, Evelina. (2004) (2005)

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A eficácia do Direito é encontrada na prática, mas quando a Teoria é baseada em uma


falsa igualdade no acesso aos direitos, a cidadania e a representatividade de grupos
marginalizados são disfarçados sob um aparente discurso homogêneo através do Princípio da
Isonomia.

Uma vez que o direito possui a finalidade de resolver conflitos de interesses, o


método jurídico deve ter essa serventia e deve estar subordinado à teleologia do
melhor fim do direito. O conflito que ocorre concretamente ocorre pela diversidade
social não abrangida de forma uniforme pelo direito e pelo método
jurídico. (HESPANHA, 2009. p 765)

Lembrando que os direitos fundamentais apresentam mais que um caráter moral de


proteger todos os indivíduos, mas também um forte caráter jurídico de que só são reconhecidos
como portadores de direitos aqueles que pertencem a alguma comunidade jurídica como
cidadãos; em uma sociedade complexa como a nossa, onde as relações são assimétricas, a
efetividade dos direitos fundamentais e, consequentemente, o exercício da cidadania plena é
prejudicado e se torna um dilema na construção democrática.
Quando titulares de direitos estão em situação de carência (seja econômica, social ou
cultural), a violação de direitos fundamentais é mais frequente. Esta realidade pode ser
observada também na tese já mencionada da “Democracia Disjuntiva” para demonstrar que a
ampliação dos direitos humanos não se deu por completa no Brasil. A população mais pobre é
vulnerável socialmente, uma vez que não tem seus direitos civis respeitados ao enfrentar o
despreparo dos profissionais de segurança (inclusive no âmbito da Justiça), a segregação social
e a naturalização da violência.
Os indivíduos que nutrem preconceito social veem a classe trabalhadora como um
grupo marginal que pode vir a lhe invadir de alguma forma e, por isso, justificam as ações
violentas como punição, o que enfatiza o desrespeito aos direitos civis individuais.
Durante esse debate sobre as realidades sociais distintas de grupos pertencentes a uma
mesma sociedade, é importante refletirmos sobre os contextos sociológicos dos obstáculos que
os indivíduos enfrentam no momento em que buscam seus direitos.
Em relação a esses obstáculos, trago o jurista Marcelo Neves na sua tese de que a
"Subcidadania”7 brasileira é resultado da invisibilidade dos problemas sociais sob uma aparente
igualdade cidadã.

7
NEVES, Marcelo. (2013)

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Enquanto um grupo é marcado por práticas “privilegiadas” e contam com o apoio da


burocracia estatal para não precisarem se subordinar às atividades punitivas referentes ao não
cumprimento de deveres e responsabilidades e mantêm a postura dos “sobrecidadãos” em
relação à ordem jurídica é instrumental, utilizam-na quando convêm aos seus interesses
particulares; os “subcidadãos” estão fadados a um sistema jurídico negativo. Esses indivíduos
não têm acesso aos benefícios do ordenamento jurídico, mas dependem das suas imposições.
Eles não têm condições de exercer seus direitos fundamentais, mas têm deveres e
responsabilidades a cumprir, impostos pelo poder coercitivo do Estado a cumprir.
Neves descreve que, geralmente, os “marginalizados” são inseridos no sistema
jurídico, não como detentores de direitos, mas como descumpridores dos deveres. No campo
institucional, o autor afirma que o não cumprimento dos direitos fundamentais em relação às
camadas subalternas se dá, principalmente, pelas ações violentas ilegais do Estado. 8
Diferente do "saber jurídico" (vias de manifestação e formação do direito no
ordenamento político) atribuído ao Direito, a perspectiva sociológica se importa com as normas
jurídicas que tiveram impacto social, além de se interessar por normas que não foram
obedecidas, mas que são consideradas normas de conduta.
Diante desse quadro de desigualdades generalizadas, é preciso que compreendamos
o contexto jurídico em que os grupos marginalizados estão localizados para que consigamos
entender as normas de reconhecimento que norteiam as ações deles em relação ao Direito. E,
para isso, as teorias realistas (do Direito) são importantes ao estudarem o efeito das normas
jurídicas, através da confirmação de base empírica, atribuindo ênfase maior ao reconhecimento
normativo no tecido social que às suas interpretações.
A capacidade de observação social e a constatação de comportamentos é mais
importante que o reconhecimento das leis, propriamente dito. O elenco das fontes de direito
deve ser extraído da observação das normas admitidas como jurídicas e pelo sentimento das
comunidades sobre o que é o Direito.
Diante a importância de analisarmos a facticidade do Direito – como as leis impostas
pelo Estado são reconhecidas na prática pela sociedade –, é possível reconhecermos a validade
destas normas, porque as condutas pessoais são legitimadas pelo seu reconhecimento
normativo; e o não reconhecimento destas leis, por vezes, leva ao seu descumprimento.

8
NEVES, Marcelo. (2013). p. 250.

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CONCLUSÃO

Ainda que direito positivado nas leis garanta que “todos são iguais perante a lei”,
materialmente este princípio não é aplicável e a partir da relação dos autores citados, é possível
perceber os problemas postos na realidade sociojurídica, na qual a desigualdade no acesso aos
direitos fundamentais promove ainda mais disparidade na sociedade entre os diversos grupos,
e os que estão/são vulneráveis socialmente continuam sendo cada vez mais marginalizados
devido a esse círculo vicioso – como não têm acesso aos direitos são excluídos da comunidade;
uma vez que são excluídos, permanecem não reconhecendo seus direitos.

Questões como a dificuldade em reformar as instituições de segurança, a


deslegitimação do poder judiciário e os abusos de poder dos policiais auxiliaram para
a formação de um “ciclo de violência” e este resultado se tornou um dos principais
desafios para a consolidação da democracia no Brasil. (CALDEIRA, 2000, p. 13).

Obstáculos à realização de um Estado Democrático de Direito manifestam-se


claramente no plano normativo, pois, enquanto muitos indivíduos marginalizados são inseridos
no sistema jurídico não como detentores de direitos (visto que, às vezes, nem os reconhecem
como tal), mas como descumpridores dos deveres, um grupo privilegiado utiliza a ordem
jurídica como instrumento dos seus interesses.
Desta forma, a teoria jurídica (fetichista) e a facticidade social dos direitos vão
permanecer distantes e a falta de um sistema normativo garantidor do acesso aos direitos vai
continuar promovendo a manutenção das disparidades sociais, mesmo em uma ordem
democrática (já que deveria ser realizada uma administração que assegurasse a equidade na
Justiça e Cidadania).
Enquanto o Direito tem um olhar normativo de justificar o que deveria ser aplicado a
todos, a Sociologia traz a facticidade das questões, estudando o que ocorre de fato. Faz-se,
portanto, necessário refletirmos sobre a articulação entre o saber jurídico e as ciências sociais
para que as leis sejam reconhecidas na prática.

REFERÊNCIAS

10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (edição atualizada em 18/11/2016). Disponível em:
</http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/10o-anuario-brasileiro-
de-seguranca-publica>

575
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Autor desconhecido. “Assassinato de jovens negros é tema de nova campanha da Anistia Internacional”.
Disponível em: <https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/>. Acesso em: 10/11/2014.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALDEIRA, Teresa P. R. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. 1ª edição. São
Paulo: Ed. 34 & Ed. USP, 2000.

DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência


perversa, Revista Política & Sociedade, Florianópolis, v.3, n. 5, p.139-164, Maio 2004.

_____. Políticas culturais, democracia e o projeto liberal, Revista do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 15, p.45-
65, Jan./Abril 2005.

HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação baseada nos direitos humanos. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes
e Gisele Cittadino. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 1, jan.-mar./2013.

_HESPANHA, Antônio Manuel. O caleidoscópio do Direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje.
2a ed. Coimbra: Almedina, 2009.

HOLSTON, James. Cidadania Insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. 1ª edição,


São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013.

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário,
2014 (p. 9-104).

NEVES, Marcelo. “Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil”, 3ª edição/ 2ª tiragem, São Paulo: Ed.
WMF Martins Fontes, 2013.

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Grupo de Trabalho 08

NARRATIVAS DE
CONTRADIÇÕES DE CLASSE E
RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO

dlxxvii
A ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA
E SEU DOPPELGÄNGER:
AS TENSÕES ENTRE HEGEMONIA CAPITALISTA
E RESISTÊNCIA NESTE RECORTE
DO MUNDO DO TRABALHO

PITA, Flávia Almeida


Doutoranda – PPGSD-UFF
Professora do Curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana. Integrante do Programa
Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da UEFS

RESUMO

Objetiva-se neste artigo, a partir de reflexões teóricas, circunscrever o que se denomina economia
popular e solidária, especialmente no que diz respeito às contradições e questões que a permeiam, com
ênfase no papel que ocupa no mundo do trabalho contemporâneo, no Brasil. O texto compõe um quadro
maior de apontamentos teóricos necessários a pesquisa em andamento, desenvolvida perante o PPGSD-
UFF, cujo objetivo é investigar os processos de formalização jurídica de grupos que hoje atuam na
chamada economia popular e solidária, no Brasil, tendo como pano de fundo as relações estabelecidas
entre capitalismo e Direito, e entre ambos e os arranjos econômicos e produtivos peculiares à história e
ao modo de sociabilidade brasileiros, em especial considerando o processo colonizatório.

Palavras-Chave. Economia Popular e Solidária. Capitalismo. Trabalho. Hegemonia

INTRODUÇÃO
As reflexões reunidas neste artigo visam a compor um quadro maior de apontamentos
teóricos necessários a pesquisa em andamento, desenvolvida perante o Programa de Pós-
graduação em Sociologia e Direito da Universidade Estadual Federal Fluminense. Seu título
provisório é Direito e Colonialidade do Poder: um olhar a partir do problema da formalização
jurídica de grupos de trabalho associado da economia popular e solidária no Brasil.
O título, por si, demonstra a tentativa de articulação entre diversos campos, mas que
tem como horizonte principal uma reflexão sobre o Direito na nossa específica condição de
povo que vivenciou o processo de colonização política e continua enfrentando seus
desdobramentos: qual o papel que desempenha o Direito de matriz europeia na conformação
do modo brasileiro de trabalhar e produzir?

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Sendo possível admitir que o Direito de matriz europeia mantém-se como parâmetro
acrítico no Estado burguês, empiricamente localizado na América Latina e na
contemporaneidade, a pesquisa tem como pano de fundo as relações estabelecidas entre
capitalismo e Direito, e entre ambos e os arranjos econômicos e produtivos peculiares à história
e ao modo de sociabilidade brasileiros, em especial considerando o processo colonizatório.
Pensar um cenário tão amplo, por certo, exige um enquadramento que torne viável a
empreitada. Eis porque se elegeu para a pesquisa um trecho da realidade onde se identifica uma
ponte entre um recorte do mundo do trabalho e uma determinada questão jurídica: o objetivo,
assim, é investigar os processos de formalização jurídica de grupos que hoje atuam na chamada
economia popular e solidária, no Brasil. Para isso, parte-se do marco teórico que circunda este
aspecto da realidade para recortar uma unidade de investigação empírica mais específica, dois
grupos de trabalhadoras da zona rural de Feira de Santana, município do semi-árido nordestino.
Os grupos produzem e comercializam alimentos, organizam-se de maneira associada e
participam de projetos de pesquisa participante em execução pela Incubadora de Iniciativas da
Economia Popular e Solidária da UEFS, programa do qual a pesquisadora faz parte.
Neste artigo pretende-se, por ora, no bojo do esforço teórico que pressupõe a
investigação, circunscrever o que se denomina economia popular e solidária, apresentando as
razões que justificam fazer dela o recorte pesquisado – inclusive no que diz respeito às
contradições e questões que a permeiam, desde o seu nome até o papel que ocupa no mundo
do trabalho contemporâneo. Pretende-se que estas reflexões subsidiem, assim, a análise das
específicas configurações das lutas, contradições e características da economia popular e
solidária no semi-árido baiano, considerando a unidade de investigação escolhida.
Muito embora a expressão economia solidária prevaleça no Brasil, em especial
devido à sua adoção oficial pelas políticas públicas implementadas desde o início do primeiro
governo Lula, são diversas as formas pelas quais, aqui e no resto do mundo, o conceito é
batizado: economia social, alternativa, invisível, subalterna, periférica1. Desde já se pontua a
preferência (e a adoção, a partir daqui) por economia popular e solidária, justificada pela
intenção de agregar às notas distintivas gerais da chamada Economia Solidária – “atividades
econômicas organizadas segundo princípios de cooperação, autonomia e gestão democrática”
(LAVILLE; GAIGER, 2009, p. 162) – o caráter de uma economia política dos setores

1
Uma boa retrospectiva sobre a gênese e utilização das diversas expressões, no Brasil e fora dele, em LECHAT (2002)

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populares (LIMA, 2014, p. 74). Economia popular e solidária, já se demarcando um sentido


mais específico:

[...] trata-se de uma expressão que demarca uma passagem de transição organizativa,
por vezes vinda de economia popular, bem como pela representatividade
epistemológica forjada na América Latina [...].
Atua, de maneira geral, descontratualizada, sob o protagonismo popular que se
manifesta em trabalhos familiares e coletivos, pela escolha por atividades autônomas
ou por não se adequar ao modelo mercadológico vigente ou, ainda, por opção
consciente em relação a outro modelo socioprodutivo (LIMA, 2014, p. 73).

Trata-se de arranjos econômicos alternativos cujos traços característicos centrais, não


obstante sua heterogeneidade, são a organização de coletivos de trabalhadores que têm como
pretensão atuar de forma autogestionária, fora da lógica da exploração do trabalho pelo capital.
Fazem parte do discurso envolvido nesta forma de trabalho princípios como solidariedade (em
oposição ao individualismo e competitividade das práticas hegemônicas), gestão democrática,
propriedade coletiva dos meios de produção. Estão sempre presentes entre o ideário e as
práticas, no entanto, o conflito que marca o dia-a-dia das relações individuais e coletivas, a luta
pela sobrevivência, as contradições entre a ideologia capitalista hegemônica e outros valores a
resgatar, construir ou reconstruir.
Na esteira dos três primeiros Fóruns Sociais Mundiais, ocorridos entre 2001 e 2003
em Porto Alegre, e da criação simultânea, em 2003, do Fórum Brasileiro de Economia
Solidária, da Secretaria Nacional de Economia Solidária-SENAES e do Conselho Nacional de
Economia Solidária, em 2006, a economia popular e solidária foi encampada como política
pública nos governos petistas. Produziram-se, inclusive, mapeamentos nacionais que indicaram
números muito expressivos: foram catalogados, segundo o último levantamento realizado pela
SENAES (2013)2, mais de 1.500.000 trabalhadores e trabalhadoras, em cerca de 20.000
iniciativas.
Tais números são capazes de representar um movimento de resistência da classe
trabalhadora? Podem ser interpretados como movimentos de luta contra-hegemônica? Ou
revelariam, simplesmente, um fenômeno adaptativo à crise do mundo do trabalho, servindo
como acolchoamento protetivo à expansão do capital? Trata-se apenas de uma forma
modificada de reprodução do trabalho em função dos interesses do capital? Ou lhe constituem
uma ameaça? Como interpretar as contradições que lhe caracterizam?

2O governo Temer rebaixou a SENAES a uma sub-secretaria, desde a primeira reforma ministerial implementada. Os recursos e
projetos minguaram desde então, no mesmo ritmo das políticas sociais de uma maneira geral.

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São essas as questões que se pretende explorar neste artigo. Com elas levanta-se a
hipótese de que, não obstante as experiências da economia popular e solidária integrem-se ao
processo real de reprodução do mercado global capitalista no Brasil, simultaneamente
potencializam a emergência de contradições capazes de fragilizar a reprodução das relações de
dominação, contribuindo para aprofundar as raízes de uma ainda frágil solidariedade
anticapitalista – que, qual um bebê, precisa de olhos e cuidados que se apercebam dos detalhes
e alimentem seu crescimento.

1. IMPERIALISMO AO CAPITAL-IMPERIALISMO

Não são poucas as tentativas de compreensão e explicação do grave panorama que se


configura na contemporaneidade, no que diz respeito ao modo como o capitalismo, em seu
repetitivo movimento de readaptação às resistências, expandiu-se e consolidou-se.
Globalização, mundialização, neoliberalismo, capital-imperalismo são termos que vem sendo
usados para dar conta deste contexto, cujos desafios, especialmente no que diz respeito ao
mundo do trabalho, ainda estão longe de ser compreendidos e enfrentados.
No mundo pós-guerra fria, o que já se pensou como fim da história tem, nas últimas
décadas, se apresentado como uma espinhosa volta ao começo: assiste-se a uma clara regressão
de conquistas seculares das classes trabalhadoras, associada a um quadro de desemprego e
subemprego crescente, que subjulga a força de trabalho a condições cada vez mais precarizadas,
e aponta para uma renovada onda de expropriações sociais em prol da concentração do capital,
sem que sejam poupadas, inclusive, as economias ditas centrais.
É o que Virgínia Fontes (2012) associa à expansão da base social do capital: uma
inédita expansão da disponibilidade da força de trabalho ao capital, associada a expropriações
primárias e secundárias, traduzidas no desmantelamento de direitos sociais e trabalhistas,
dilapidação do patrimônio público pela privatização crescente e apropriação privada de bens
comunais (terras, águas, subsolo, espaço, ar, conhecimento...)
Esta leitura da realidade, no entanto, exige contornos próprios considerando as
especificidades históricas e sociais concretas do caso brasileiro, especialmente tendo em vista
a sua condição periférica na ordem capitalista global e seu histórico colonial.
Aníbal Quijano (2005), em sua tentativa de entender o lugar da América Latina no
processo que ele chama de globalização neoliberal, lembra que, nela, em torno da relação

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capitalista padrão do capital-salário, gravitaram e sobreviveram diversas formas de exploração


do trabalho e controle da produção-apropriação-distribuição de produtos, todas conformadas e
voltadas para o metabolismo capitalista que se expandia a partir das nações colonizadoras3
(incluídas, por certo, as nações da Europa que, num processo de escala, subordinavam os
colonizadores ibéricos, em especial a Inglaterra, num primeiro momento e, a partir do século
XX, os Estados Unidos). Assim, o atual recrudescimento da precarização da relação de
emprego padrão, salientado a partir dos países centrais, não é exatamente uma novidade ao sul
do Equador, já que as relações de trabalho beneficiadas pelas conquistas das lutas de resistência
que dividiram espaço com as revoluções industriais sempre foram, por aqui, um privilégio para
poucos:

No entanto, se existem 200 milhões de escravos, se a servidão pessoal está de volta,


se a pequena produção mercantil é ubíqua mundialmente, já que é o elemento central
do que se denomina “economia informal”, se a reciprocidade, isto é, o intercâmbio
de trabalho e força de trabalho que não passa pelo mercado, está em processo de
reexpansão, então temos a obrigação teórica e histórica de nos perguntar se deste
modo não há algo que não havíamos vista bem nesta ideia de que o capitalismo
gerava o único padrão de classificação social e creio que a conclusão é inevitável:
esta ideia era basicamente errônea porque nunca ocorreu assim e porque, muito
provavelmente, nunca ocorrerá assim. E creio que a América Latina é um excelente
exemplo para mostrar que assim nunca foi.4 (QUIJANO, 2013, p. 151)

A compreensão do mundo do trabalho na América Latina e, de modo ainda mais


específico, no Brasil, assim, se complexifica sobremodo ao se constatar que, de forma ampliada,
por aqui conviveram e convivem diferentes relações de produção e trabalho, e suas respectivas
racionalidades. Muito embora engolfadas e subordinadas à magnética espoliação capitalista,
tais diversas ordens importam igualmente em sobrevivências e resistências em potência, em
relações simbólicas, culturais5 e subjetividades peculiares, a despeito de séculos de negação, e
de um processo incessante de apagamento de seu potencial de resistência. Relações comunais

3 Como bem exemplifica Eduardo Galeano ao descrever a dinâmica do latifúndio açucareiro na Américo colonial: “A plantação,
nascida da demanda de açúcar no ultramar, era uma empresa movida pelo afã do lucro de seu proprietário e posta a serviço do
mercado que a Europa ia articulando internacionalmente. Por sua estrutura interna, no entanto – e considerando que, em boa
medida, bastava-se a si mesma –, alguns de seus traços dominantes eram feudais. Por outro lado, utilizava mão de obra escrava.
Três idades históricas distintas – mercantilismo, feudalismo, escravatura – ajustavam-se numa só unidade econômica e social,
mas era o mercado internacional que estava no centro da constelação de poder que o sistema de plantações desde cedo integrou”
(2016, p. 92)
4 Tradução livre da Autora.

5 Nas palavras do filósofo argentino Enrique Dussel, “desde uma releitura cuidadosa e arqueológica de Marx (desde suas obras

juvenis de 1835 a 1882), indicávamos que toda cultura é um modo ou um sistema de ‘tipos de trabalho’. Não é em vão que a
‘agri-cultura’ era estritamente o ‘trabalho da terra’ – já que ‘cultura’ vem etimologicamente do latim ‘cultus’, no sentido de
consagração sagrada. A poiética material (fruto físico do trabalho) e mítica (criação simbólica) são produção cultural (um por para
fora, objetivamente, o subjetivo, ou melhor, o intersubjetivo, comunitário). Desta maneira, o econômico (sem cair no
economicismo) era resgatado” (2005, p. 8). (Tradução livre da Autora)

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de trabalho e produção típicas dos povos indígenas e das populações africanas subordinadas à
escravidão, arranjos produtivos que subvertem a propriedade privada dos meios de produção
(como as comunidades de fundo de pasto, faxinais, quebradeiras de coco babaçu, de
pescadores, arranjos produtivos familiares) e que muitas vezes traduzem relações de trabalho
não subordinado e focadas no valor de uso de seu produto: são todas experiências que
sobrevivem, (em especial fora dos grandes centros urbanos, mas também dentro deles), mas
cujo sentido anti-hegemônico resta adormecido sob grossas camadas de baixa-estima,
sobretudo centradas na ideia de raça, outro subproduto fundamental do processo colonizatório.
Trata-se de um contundente processo de ordem cultural6, de construção de uma subjetividade
fundamentada na oposição entre homem branco europeu (razão, sujeito, ciência, certeza,
competição, civilização) e todo o resto (negro, índio, mestiço, mulher, emoção, objeto,
solidariedade, saberes populares, barbárie7), a elevar exponencialmente o potencial de
subordinação e apatia da classe trabalhadora submetida à colonização.
Assim, onde o Imperialismo colonizatório fez suas marcas, o Capital-Imperialismo
(FONTES, 2012) parece encontrar um terreno ainda mais fértil, no rastro do histórico secular
de expropriações8 e da divisão internacional do trabalho. Esta peculiar condição de
semiproletarização da classe trabalhadora latinoamericana, também pontuada por Virgínia
Fontes, pode ser aproximada da leitura crítica de Aníbal Quijano, apontando para diversas
questões que estão a aguardar uma análise mais cuidadosa, especialmente considerando o
momento presente de expressiva expansão das relações sociais capitalistas. Salientando a
possibilidade de coexistência de formas produtivas diversas, ainda que sob o predomínio do
capital, e a extrema desigualdade que marca, à exceção dos primeiros países industrializados, o
processo concomitantemente de formação de uma classe capitalista e da massa de
disponibilizados para o mercado, Fontes também aponta para

6
Sua análise aparece de maneira muito precisa em outro texto do sociólogo peruano, o clássico Colonialidad y Modernidad-
Racionalidade (1992), em que Quijano apresenta, pela primeira vez, o conceito de colonialidade do poder: “Durante o mesmo
período em que se consolidava a dominação europeia se foi constituindo o complexo cultural conhecido como a racionalidade-
modernidade europeia, o qual foi estabelecido como um paradigma universal de conhecimento e de relação entre a humanidade
e o resto do mundo. Tal simultaneidade entre a colonialidade e a elaboração da racionalidade-modernidade não foi de nenhum
modo acidental, como o revela o modo mesmo em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional”.(p. 440)
(Tradução livre da Autora)
7
Para a contraposição civilização versus barbárie na compreensão dos processos históricos dos países americanos, vide Raúl
Fornet- Betancourt (1999).
8 “A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa

nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial
de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais
da acumulação primitiva.” (MARX, 2017, p. 821)

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[...] uma enorme resistência de formas tradicionais ou originárias, mesmo


submetidas aos mais diversos e brutais constrangimentos cujas populações,
incorporadas subalternamente ao mercado, mantêm, reproduzem ou reconstroem
formas de propriedade e de sociabilidade diversas da capitalista, ainda que
plenamente submersas pela dominação do capital (2012, p. 91)

Continua, então, salientando o potencial, ainda que contraditório, de resistência


presente nesta múltipla realidade, que é invibilizada pela régua niveladora da racionalidade
neoliberal:

A defesa e preservação de processos comunitários (que inclui a conservação de


línguas, costumes e tradições), a luta pela preservação de outras formas de
propriedade, defrontam-se com a permanente tendência a reduzi-las a um tipo de
propriedade uniforme e única, característica do capital, expropriando não apenas a
terra, mas todo um conjunto de práticas e conhecimentos, assim como sua própria
existência social.Muitas sociedades tradicionais ou originárias, por terem preservado
formas de trabalho cooperativo e uma base igualitária, podem propulsar lutas para
além da mera demanda de incorporação do trabalho ao capital, lutas que têm como
base de sustentação sua própria semiproletarização, uma vez que mantêm a garantia
da subsistência para além da subalternização direta ao capital. Nas condições
contemporâneas, nas quais ondas ainda mais intensas, violentas e rápidas de
expropriação se descortinam, essas lutas podem se traduzir em enfrentamento direto
ao capital, se abalarem as formas generalizadas da sujeição do trabalho e de sua
subordinação e não apenas reivindicarem sua incorporação plena enquanto
assalariados para o capital, ou ainda se limitarem a demandar uma preservação
pontual, distanciada das vicissitudes dos demais trabalhadores.(2012, p. 92)

A realidade brasileira parece desafiar, assim, uma análise que não se completa com o
que já se tem constatado genericamente acerca dos problemas enfrentados pela classe
trabalhadora no resto do mundo, desafiando esforços teóricos e críticos e aproximações
empíricas ainda mais específicas e atentas a tais peculiaridades.

2. A ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA E SEU DOPPELGÄNGER

O mundo globalizado assiste, após a breve “era de ouro” do pós-guerra, desde a


desaceleração do crescimento econômico nos anos 70, a ofensiva do capital em busca de
espaços de reprodução, no seu motocontínuo de expansão. Como de costume, o movimento
resulta em novas formas de extração de mais-valia e de subalternização, que chegam ao século
XXI contribuindo para um grave quadro de espoliação das classes trabalhadoras. A reunião de
diversos fatores – que vão desde avanços tecnológicos que dispensam mãos e as pulverizam
espacialmente, até mecanismos de instabilização das relações de trabalho, produzindo massas
disponíveis e amedrontadas de trabalhadores dispostos a vender sua força a qualquer preço –

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configura um cenário em que o capital avança como nunca em seu processo de concentração,
mas igualmente necessita de novas formas de justificar sua expansão e docilizar as
consciências.
Tais processos confirmam a aposta de Marx na centralidade assumida pelo
desemprego (exército de reserva) na explicação das dinâmicas do capitalismo9, mas vão mais
longe, pois no contínuo da globalização capitalista, e da divisão internacional do trabalho, chega
a ser possível se falar em países, ou mesmo continentes inteiros, cujos trabalhadores foram
deliberadamente excluídos dos projetos modernizadores do capitalismo:

A categoria dos desempregados, portanto, deveria ser expandida para abranger a


amplitude da população, desde os desempregados temporários, passando pelos não
mais empregáveis e permanentemente desempregados, até as pessoas que vivem nos
cortiços e outros tipos de guetos (aqueles muitas vezes descartados pelo próprio Marx
como ‘lumpemproletariado’) e, por fim, áreas, populações ou Estados inteiros
excluídos do processo capitalista global, como aqueles espaços vazios dos mapas
antigos” (ŽIŽEK, 2012, p. 14)

A violenta produção de desigualdade e expoliação, assim, depende da presença,


eficiente e simultânea, de estratégias de ocultação, sob um tapete imaginário, do lixo e mortos
produzidos. Este processo de “maquiagem” parece se valer, em especial, de mecanismos que
viram ao avesso as resistências, sugando-lhes o que representam de perigo, docilizando-as,
transformando-as em seu contrário, incorporando-as à própria lógica do mercado e do capital.
A força deste movimento amplifica-se, por certo, nos espaços em que, como o brasileiro, pelo
seu histórico de colonização, as subjetividades individuais e coletivas foram forjadas
secularmente a partir do lugar do excluído, da negativa (não branco, não civilizado, não
desenvolvido).
O filósofo italiano Roberto Esposito, ao desenvolver seu conceito de immunitas, como
força repulsiva e contraditória que opõe à communitas, na tentativa de explicar os dilemas da
modernidade, a desenha como “uma engrenagem interna d’Ela [da omunidade]: o vinco que
algum modo a separa de si mesma [...]” obrigando-a a “introjetar a modalidade negativa de seu
próprio oposto, mesmo que esse oposto siga sendo um do de ser, privativo e contrastivo, da

9 “Mas se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com

base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação capitalista, e até mesmo numa
condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence
ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de
valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento
populacional.” (MARX, 2017, p. 707)

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comunidade mesma”10 (2006, p. 83-84). Eric Santner assemelha este mecanismo ao


nascimento de um Doppelgänger (2011, p. 15), demônio de lendas germânicas capaz de
transformar-se na cópia idêntica e ao mesmo tempo maligna de suas vítimas.
Do alemão doppel (duplo, réplica, suplicata) e Gänger (aquele que anda, ambulante,
ser errante), a figura mitológica do Doppelgänger serviu muitas vezes de inspiração para a
literatura. Willian Wilson (1839), conto de Edgar Alan Poe, O Duplo (1846), de Dostoievski e
os célebres Dr. Jekyll e Mr. Hyde (O médico e o monstro,1886) do escritor escocês Roberto
Louis Stevenson, são disso exemplos. O médico e o monstro, em especial, foi inspiração para
diversas versões cinematográficas. Nos quadrinhos, talvez o mais famoso Doppelgänger
contemporâneo seja o “Incrível Hulk”, criado na década de 60 pelos americanos Stan Lee e
Jack Kirby.
Há leituras que estabelecem uma relação de inspiração entre o mito do duplo e a
estrutura psicanalítica freudiana do id, ego e superego. Vale menção ainda um ensaio de Freud,
de 1919, “Das Unheimliche” (“The uncunny”, “El sinistro”, L’inquiétante familiarité” ou “O
estranho”), onde a força do mito do “duplo” é explorada através da novela O Elixir do Diabo
(1816), do escritor romântico alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), mais um exemplo da
apropriação do mito do Doppelgänger pela literatura. No ensaio, Freud parte da etimologia da
própria palavra alemã “Unheimliche” (algo como “não-familiar” – un-não, heimliche-familiar,
amistoso, íntimo), na tentativa de compreender o sentido psicanalítico do “estranho” – “pode
ser verdade que o estranho [unheimlich] seja algo que é secretamente familiar [heimlich-
heimisch], que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho
satisfaz essa condição.” (FREUD, 1996).
A metáfora parece vir a calhar para ilustrar aquilo que se quer ressaltar: o capitalismo,
em seus esforços para suplantar as resistências, segue produzindo seus Doppelgängers – seu
oposto maligno que, afinal, é o mais eficiente assassino de seu gêmeo. É a partir dela que se
deseja pensar a economia popular e solidária no contexto que se vem até agora traçando.
Modos alternativos de viver, trabalhar e produzir convivem e sobrevivem aos avanços
do capitalismo, que, todavia, imuniza-se de seu potencial contra-hegemônico, integrando-os
paulatinamente à sua lógica. É possível catalogar diversos exemplos de experiências

10
Tradução livre da Autora.

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produtivas11 que reúnem mais ou menos características opostas aos signos da mercadoria, do
mercado, da competitividade, da racionalidade plasmada no sujeito-homem versus objeto
natureza, na valorização do tempo da vida. Muitas delas encontram guarida na expressão
economia popular e solidária, sem que dela dependa sua existência12, sendo reconhecíveis,
aliás, muito antes que para elas se criasse um nome13.
Num sentido oposto, o discurso e as práticas do que vem sendo chamado no Brasil de
economia popular e solidária também são com frequência apontadas tout court como um
produto do quadro de crise da sociedade do trabalho. Indícios relevantes o justificam: os
números oficiais apontam para um crescimento significativo das iniciativas catalogadas nos
levantamentos oficiais (associações, cooperativas e, em número significativo, grupos
informais) concomitantemente ao quadro de agudização da mencionada crise (em especial, nas
últimas três décadas); e, não menos importante, os mesmos dados demonstram um considerável
grau de precariedade das condições de trabalho neste universo, com baixas remunerações,
ausência de cobertura previdenciária e outros direitos garantidos pela legislação trabalhista.
Em detrimento dos trabalhadores formais (cuja centralidade, no caso brasileiro,
sempre foi discutível), avolumam-se as relações de trabalho que, embora reproduzam
implicitamente a subordinação da relação de emprego tradicional, não estão juridicamente
formalizadas como tal (e, portanto, alijadas das garantias legais que – cada vez mais
precariamente – estabelecem limites à exploração). Identifica-se ainda um terceiro grupo de
trabalhadores que, aparentemente sobrevivendo do trabalho “autônomo” (é o caso do MEI –
“microempreendedor individual”), subordinam-se indiretamente ao capital e ao mercado14.
Nele estaria todo um grande volume de pessoas estimuladas pela “nova razão do mundo”

11 Uma eloquente relação, representativa da multiplicidade e factualidade de tais experiências em todo mundo, pode ser encontrada

em Boaventura de Souza Santos (2005), por exemplo.


12 Sem que se desconheça, é claro, wittgensteinamente, que o mundo também se cria pela linguagem, e pode ter nela seu limite.

13 Foram diversas as vezes que a autora presenciou, em suas atividades de pesquisa e extensão junto a trabalhadores deste universo,

a surpresa ao se dar conta que, o que “o pessoal da universidade” descrevia como economia popular e solidária é “o que eu sempre
fiz, mas não sabia o nome”
14
“Uma noção ampliada de classe trabalhadora deve incluir também todos aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho
em troca de salário, incorporando, além do proletariado industrial e dos assalariados do setor de serviços, também o proletariado
rural, que vende sua força de trabalho para o capital. Incorpora o proletariado precarizado, o sub-proletariado moderno, part-time,
o novo proletariado McDonald’s, os trabalhadores terceirizados e precarizados, os trabalhadores assalariados da chamada
‘economia informal’ – que muitas vezes são indiretamente subordinados ao capital –, além dos trabalhadores desempregados,
expulsos do processo produtivo e do mercado de trabalho pela reestruturação do capital e que hipertrofiam o exército industrial
de reserva na fase de expansão do desemprego estrutural” (ANTUNES, 2005, p. 60)

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neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016) a serem “empresárias de si mesmas”, sob a nova palavra
de ordem do empreendedorismo15.
Ricardo Antunes, em seu clássico O Caracol e sua Concha (2005), faz referência a
dados (levantados em trabalho de José Alcides Figueiredo Santos), que apontavam, já em 1996,
para o recrudescimento de tal quadro, que não parece ter retrocedido desde então (à exceção da
configuração favorável, especialmente na primeira década dos governos petistas, que se tem
explicado pela peculiar valorização das commodities no mercado internacional), aprofundando-
se, ao contrário, desde a crise de 2008:

Em seu estudo meticuloso, de grande utilidade para o insuficiente mapeamento de


nossas classes sociais, Figueiredo Santos mostra, a partir dos dados da PNAD, que,
na América Latina, o traço distintito é dado pela ampliação do ‘setor informal’, pelo
crescimento dos pequenos negócios e pela feminização do mundo do trabalho.
Com a reestruturação produtiva na Brasil especialmente a partir de 1990, ‘ocorre uma
intensa redução do contingente de operários industriais, com um corte de 38,1% dos
empregos formais entre 1990 e 1997. Como já pudemos dizer em outros textos,
aumenta a heterogeneidade e fragmentação da classe trabalhadora; a subcontratação,
diz o autor, segmenta ainda mais os trabalhadores industriais, entre os ‘centrais’ e os
‘periféricos’”.(2005, p. 108).

A crítica ao papel assumido pela economia popular e solidária nas últimas décadas,
no contexto de precarização e flexibilização do trabalho acima descrito, mobiliza em especial
dois argumentos importantes. Em primeiro lugar, considerando a adoção do conceito na esteira
de políticas públicas de “inserção” produtiva, aponta-se a sua correlação direta com estratégias
para absorção e amortecimento da mão-de-obra excedente em crescimento, com efeitos
domesticadores e apaziguadores que atendem, muito mais do que enfrentam, as demandas do
capital em expansão. Observe-se, por exemplo, a crítica de Mauger (2011), que se escolhe a
propósito de demonstrar que não se trata de uma peculiaridade brasileira:

Os objetivos explícitos da integração ao mundo laboral no âmbito dos contratos


assistidos e/ou empresas alternativas (‘economia solidária’) são a formação (dentro
de uma concepção educativa tradicional) e a adaptação ao mundo do trabalho (evoca-
se ainda ‘o caráter essencial da imersão no seio da empresa’).

15 Dardot e Laval (2016) salientam como este processo deságua em uma racionalidade peculiar, a produzir uma nova subjetividade

acoplada à lógica empresarial, na qual se centra o neoliberalismo. O enevoamento da subordinação e alienação do ser humano à
exploração capitalista atinge, assim, um grau de eficiência nunca dantes visto, desenhando subjetividades ainda mais incapazes
de reagir: “Do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite articular uma definição do homem pela
maneira como ele quer ser “bem sucedido”, assim como pelo modo como deve ser “guiado”, “estimulado”, “formado”,
“empoderado” (empowered) para cumprir seus “objetivos”. Em outras palavras, a racioanlidade neoliberal produz o sujeito de
que necessita ordenando os meios de goberná-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que,
por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos.”
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 328)

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Implicitamente, trata-se aqui talvez sobretudo de atividades de substituição


destinadas à iludir (‘pseudo-formação’ e ‘empreendimentos de fachada’ que ao
mesmo tempo cumprem o de ilusionismo social e a criação de um universo de
consolação) e/ou apaziguar [...]. Um novo status aparece: nem desempregado, nem
assalariado, ‘o quase-empregado’, apresentado como uma ‘alternativa ao trabalho
assalariado’16. (MAUGER, 2011, p. 12-13)

Em segundo lugar, considerando a ênfase que as políticas públicas de economia


popular solidária e seus teóricos atribuem ao cooperativismo17, parece reeditar-se, nas
discussões em torno do tema, a antiga oposição entre o socialismo utópico e científico. Neste
sentido, por exemplo, a crítica de Henrique Wellen (2012):

Por outro lado, no caso da ‘economia solidária’, trata-se mesmo de um retrocesso na


luta da classe trabalhadora pela transformação social, visto que:[...] ao contrário de
representar a continuidade de um processo crescente de lutas dos trabalhadores (‘é
uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo’), a
tentativa de restabelecer o cooperativismo como centro da luta dos trabalhadores pelo
socialismo, nos dias de hoje, constitui um retrocesso às limitadas ações
anticapitalistas do trabalhadores na sua infância como classe social (GERMER,
2006, 201).

Se, no contexto histórico dos socialistas utópicos, em que o mercado capitalista se


apresentava ainda numa fase inicial, e, consequentemente, desprovido das
determinações da sua atual fase, investir na luta econômica contra as empresas
capitalistas já se apresentava como uma fatalidade, reapresentar tal proposta dois
séculos depois significa, no mínimo, uma postura regressiva (GERMER, 2012, p.
408-409)

16
Tradução livre da autora.
17 Há uma evidente coincidência entre os princípios que informam o movimento cooperativista (i. adesão voluntária e livre; ii.
gestão democrática; iii. participação econômica dos membros; iv.autonomia e independência; v. educação, formação e
informação; vi. intercooperação; vii. interesse pela comunidade) (OCB, s/d, on line) e as características escolhidas pela SENAES
para conceituar a Economia Solidária:
Alguns princípios são muito importantes para a economia solidária. São eles:
1. Cooperação: ao invés de competir, todos devem trabalhar de forma colaborativa, buscando os interesses e objetivos em
comum, a união dos esforços e capacidades, a propriedade coletiva e a partilha dos resultados;
2. Autogestão: as decisões nos empreendimentos são tomadas de forma coletiva, privilegiando as contribuições do grupo ao
invés de ficarem concentradas em um indivíduo. Todos devem ter voz e voto. Os apoios externos não devem substituir nem
impedir o papel dos verdadeiros sujeitos da ação, aqueles que formam os empreendimentos;
3. Ação Econômica: sem abrir mão dos outros princípios, a economia solidária é formada por iniciativas com motivação
econômica, como a produção, a comercialização, a prestação de serviços, as trocas, o crédito e o consumo;
4. Solidariedade: a preocupação com o outro está presente de várias formas na economia solidária, como na distribuição justa
dos resultados alcançados, na preocupação com o bem-estar de todos os envolvidos, nas relações com a comunidade, na
atuação em movimentos sociais e populares, na busca de um meio ambiente saudável e de um desenvolvimento
sustentável.(MTE-SENAES, 2015, on line)
Contraditoriamente, no entanto, no Brasil, a forma jurídica cooperativa, por sua complexidade e onerosidade, está muito distante
da realidade dos grupos populares de economia solidária. O último mapeamento da SENAES (2013) indica que apenas 8,8% das
iniciativas mapeadas adotam este formato.

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Também neste segundo caso o argumento do “reformismo” em oposição à efetiva


transformação é mais uma vez mobilizado pelos críticos, reforçando-se a dúvida quanto ao
potencial alternativo de tais arranjos produtivos.
A desconfiança é amparada com fartura em números e constatações que apontam, em
especial, uma perigosa imbricação entre as experiências catalogadas pela SENAES e o
fenômeno das “coopergatos”, a Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB18, o universo
das “ONGs” e do “Terceiro Setor”, da “economia criativa”, “economia de comunhão”, do
“empreendedorismo social”.
Em sua análise sobre reconfiguração da classe trabalhadora brasileira nas últimas
décadas, Virgínia Fontes identifica diversas causas para o processo de ”intensa desqualificação
da política e sua requalificação rebaixada” (2012, p. 255), com a abolição paulatina, verbal e
retórica, da luta de classes, e sua substituição por uma versão de democracia reduzida a
“capacidade gerencial de conflitos”. Relaciona entre elas o impacto da crise nos países
socialistas, a massiva adesão empresarial ao programa neoliberal, um agressivo antiestatismo
e, sobretudo, para o que interessa mais diretamente às nossas reflexões, um “processo complexo
de conversão mercantil-filantrópica da militância” (Idem, ibidem), a evidenciar o sucesso de
aparelhos privados de hegemonia, sobretudo representados pelas chamadas organizações não
governamentais (“ONG”), traduzidas na ideia de um imaginário “terceiro setor”, nem Estado,
nem mercado. Nestes termos:

Forja-se uma cultura cívica (ainda que cínica), democrática (que incita à participação
e à representação) para educar o consenso e disciplinar massas de trabalhadores, em
boa parte desprovidos de direitos associados ao trabalho, através de categorias como
“empoderamento”, “responsabilidade social”, “empresa cidadã”, “sustentabilidade”.
A “onguização” da associatividade popular prossegue, convertendo-a em espaço
privado e competitivo – com hierarquias internas fortes e, portanto, com
diferenciações burocráticas e sociais que reproduzem a gestão empresarial.
Subalternizam-se as mais incipientes formas de organização popular, direcionadas
para “gerenciamento de força de trabalho”, processo potencializado pela formatação
atual do Estado (2012, p. 296).

Desde a sua criação em 2003, a SENAES foi responsável pela inserção da “economia
solidária” no vocabulário das políticas públicas no Brasil. A partir de então, a expressão tanto

18
Tradicional longa manus das elites rurais brasileiras, como destaca Virginia Fontes (2012, p. 221-222): “Em finais do século
XX, a industrialização do campo brasileiro modificaria, enfim, a estrutura representativa das diversas frações dessa burguesia e,
sem eliminar suas antecedentes, passaria a ter como fulcro outras entidades associativas, como a Organização das Cooperativas
Brasileiras (OCB), porta-voz do agronegócio estreitamente associado aos grandes capitais multinacionais internacionais, mas
agregando em seu interior expressivas parcelas da grande burguesia agroindustrial brasileira.”

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batizou experiências reais muito anteriores, quanto estimulou a formação de cooperativas,


associações, grupos informais, proporcionou a criação de toda uma rede de entidades de
fomento, no âmbito público e privado, no contexto das universidades e de ONGs, que
produziram e vêm produzindo, com recursos públicos e privados de diversas origens, pesquisas,
material acadêmico, assessorias e experiências. A coerência de tais empreitadas é
constantemente posta à prova pelos financiadores, pela perigosa proximidade com o léxico do
empreendedorismo (os levantamentos realizados pela SENAES, por exemplo, atribuem às
iniciativas produtivas catalogadas o indistinto título de “empreendimentos econômico-
solidários”) e pela própria precariedade imposta aos técnicos e assessores. Nascia
simultaneamente, aí, aliás, um novo espaço para profissionais de formação universitária, já
impactados pela retração do mercado de trabalho.
Virgínia Fontes explicita o quanto contraditório e complexo se demonstra o cenário
em que se descortinam tais relações:

Multiplicam-se as especializações universitárias de gestores de programas privados


de cunho “social”, cuja função é disseminar padrões de gestão altamente
competitivos para educar e conter massas populares, capazes, porém, de realizar as
atividades necessárias ao novo padrão de uso da força de trabalho, supostamente sob
a forma da autoexploração traduzida pelo empreendedorismo. Este novo padrão [...].
Converte os trabalhadores em adiantadores voluntários de sua capacidade de trabalho
[...]. Muitos daqueles totalmente desprovidos de direitos precisam fornecer
previamente os “projetos” de sua eventual inserção no mercado de trabalho, ingresso
disfarçado de militantismo, porém sem direitos.
As pesquisas de mercado realizadas pelas empresas são multiplicadas pela
disseminação de milhares de “projetistas”, ou em outros termos, de trabalhadores à
busca de remuneração mercantil, pesquisando nichos de atividades, muitas vezes
gratuitamente e que, eventualmente, serão contemplados com recursos para testar tal
ou qual atividade; [...] com intermediação de tais aparelhos privados de hegemonia,
convertidos em empresas intermediadoras, principalmente para a área de saúde, mas
também sob a forma de cooperativas desprovidas de direitos (“coopergatos”). (2012,
p. 293-294)

Eis o Doppelgänger “maligno” da economia popular e solidária, mas que – sob pena
da criança seguir ralo abaixo com a água da bacia – ao mesmo tempo não permite desconhecer
e, mais que isso, exige fortalecer e preservar o seu contrário original, vítima principal de tal
“duplicação”. Ambiguidade, contradição, lutas por espaços produtivos e semânticos: vários
elementos a indiciar, enfim, a presença de gérmens de mudança, transformação em potência
em busca das fissuras que o rolo compressor do capitalismo não tem como evitar.

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3. CONTRA-ATAQUE?

Da mesma forma que a comercialização de créditos de carbono não é capaz de negar


a essencialidade da causa ambiental, as ambiguidades da causa da economia popular e
solidária – no sentido da necessária luta por uma outra forma de trabalhar que suplante aquela
em torno da qual se sustenta o capitalismo – igualmente não justificam a sua negação. A luta
contra-hegemônica, ao contrário, pode se assenhorar da estratégia do “inimigo”, desvelando o
processo de duplicação, separando o joio do trigo, explicitando as contradições para combatê-
las sem que isto signifique o fenecimento do potencial de resistência contra o qual elas foram
forjadas.
Sob pena de resvalar para o idealismo que o materialismo dialético marxiano
pretendeu por de ponta cabeça, o horizonte revolucionário não se constitui apenas de uma face
política, mas exige especialmente a superação social radical da base material que ampara o
capitalismo, e em especial a forma de trabalho que lhe corresponde. Afinal, modo de produção
é conceito que “não se limita à atividade econômica imediata, mas remete à produção da
totalidade da vida social, ou ao modo de existência” (FONTES, 2012, p. 41) .
Economia social, solidária, popular solidária, alternativa: todos são nomes que, ao
serem apropriados e negados pelo discurso hegemônico a que causam incômodo, parecem
justificar esforços para, mesmo sob as camadas de lama que teimam em ser jogadas sobre as
boas intenções, fazer emergir o signo anti-hegemônico de vivências resistentes, por meio das
quais se entrevê, em gérmen, processos que se colocam em contradição com a lógica produtiva
do capitalismo, fomentando incerteza, negação, contradição, lutas.
O olhar atento aos sinais escondidos no contrapelo, ao tempo que revela a não
linearidade da resistência das classes trabalhadoras, demonstra a necessidade de se aquilatar
com cuidado e argúcia, sem maniqueísmos, a complexidade de seus movimentos e os que elas
suscitam em resposta. E. P. Thompson (2002) revela, por exemplo, a importância que
desempenharam os chamados socialistas utópicos, nos seus avanços e inconsistências,
potências e fraquezas, ao comporem com suas ideias e práticas os ingredientes do caldo
contraditório que alimentaria, mais tarde, a formação da consciência do operariado inglês
enquanto classe. Assim, por exemplo, ao mesmo tempo em que as propostas owenistas
nascentes deixavam entrever características como paternalismo, o sentido de “adestramento”
utilitarista dos operários, correspondente a um planejamento da sociedade ao estilo de um
“gigantesco panóptico industrial”, também é certo que a imprecisão dos textos de Robert Owen

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serviram de amparo a diversas experiências, adaptadas às diferentes realidades dos


trabalhadores. Sempre citado como precursor do movimento cooperativista, assim como dos
socialistas utópicos que foram criticados por Marx19, uma análise simplista de seu papel parece
fadada à imprecisão.Thompson relata, por exemplo, que, ao final dos anos 1820, uma ou outra
variante da teoria cooperativa e a economia do trabalho tinha conseguido o controle da estrutura
do movimento operário (2002, p. 398). O owenismo parece ter sido muito bem sucedido em
criar a ambiência para a ideia de união dos trabalhadores, de todos os ofícios, “um meio de unir
os trabalhadores organizados do país num momento comum” (2002, p. 400).
Revelando, por sua vez, os impasses e contradições vivenciadas na empreitada
revolucionária em sua plena execução, resgata-se igualmente um texto de Lenin (1961), em que
reflete acerca dos desafios enfrentados no bojo da implementação da Nova Política Econômica
soviética. Ponderava, então, que “a cooperação adquire em nosso país uma importância
verdadeiramente extraordinária”, muito embora não deixe de pontuar que “nos sonhos dos
velhos cooperativistas há muita fantasia”. Aliás, “amiúde são cômicos pelo seu caráter
fantasioso” (1961, p. 612):

Mas em que consiste esse caráter fantasioso? Em que essa gente não compreende a
importância fundamental, essencial, da luta política da classe operária para derrubar
o domínio dos exploradores. Agora já é um fato esta derrubada, e muito do que
parecia fantástico, mesmo romântico e até vulgar nos sonhos dos velhos
cooperativistas, converte-se em realidade sem artifícios (1961, p. 612)

Lenin equipara a formação para o trabalho cooperativo, então, a uma tarefa de


transformação cultural, de que dependeria o sucesso da revolução: “se pudéssemos organizar
nas cooperativas toda a população, já estaríamos com ambos os pés em solo socialista”(1961,
p. 618).

CONCLUINDO

As palavras de Lenin, muito embora não se pretenda sejam tomadas de modo


descontextualizado e absoluto, confirmam o quanto o espaço da realidade ocupado pelo que se
tem chamado economia popular e solidária não pode ser analisado de maneira simplista.

19
Muito embora saliente Thompson que Engels fora generoso com Owen no seu Anti-Düring (2002, p. 289, nota 118)

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Repetem-se, então, as perguntas iniciais, feitas com vistas à compreensão do que se


optou chamar de economia popular e solidária. Está-se aí diante de um movimento contra-
hegemônico? Ou, simplesmente, um fenômeno adaptativo à crise do mundo do trabalho, que
se presta ao amortecimento dos riscos por que passa o capital no seu movimento de expansão?
Em outras palavras, em que medida o estímulo ou o reconhecimento e apoio ao trabalho
coletivo autogestionário exaspera a disponibilidade dos trabalhadores para o capital? Ou aduba
o solo da resistência e da autonomia, necessário como trampolim para a superação
revolucionária, social e politicamente, do capitalismo?
Tudo que parece ser possível concluir é que o caminho para essa superação não admite
um andar desavisado. As sibilinas manobras do capital exige um olhar atento para as
contradições, que teimam, aliás, em se invibilizar por detrás do sempre competente trabalho de
fetichização. Isto não pode significar, no entanto, que se tropece na já velha estória do fim da
história. A este tropeço inevitavelmente chegaremos, se se optar por respostas que
desconsiderem a complexidade da questão proposta.
Acredita-se que todo movimento no sentido de aproximação do trabalhador “da
propriedade das condições de realização de seu trabalho”20 (MARX, 2017, p. 786,) assume, em
si, um potencial revolucionário – talvez o mais factível diante da pulverização das classes
trabalhadoras que caracteriza a nova razão do mundo neoliberal –, e deve ser preservado e
adubado como uma semente preciosa no solo árido que hoje abriga tanta desesperança e
desalento. Deste modo, no dizer de Carlos Schmidt:

Se a economia solidária tiver uma perspectiva revolucionária, se forjar uma


identidade de classe dada pelo papel que pode ocupar na luta de classes – inserindo-
se no movimento geral dos trabalhadores – que seja contestador do sistema
capitalista, poderá abarcar parcelas significativas da economia, constituindo no
imaginário coletivo a consciência da possibilidade da autogestão, desenvolvendo
tecnologias alternativas às do capital adaptadas à autogestão plena e respeitadora do
meio ambiente.
Desta forma, cria-se a possibilidade de uma mudança muito mais ampla que a obtida
pela experiência precedente que fracassou. Mudam-se as relações de propriedade,
mas também as de produção, velo sonho de Marx e Engels da sociedade de livres
produtores associados.
A economia solidária com essa perspectiva cria espaço para a desnaturalização das
relações mercantis da sociedade, premissa que está presente de forma implícita nas

20 “Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência [...]A
relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo
a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo
que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de
realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por
outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados.” (MARX, 2017, p. 786)

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análises de muitos marxistas (Wood, 2001) e contribui decisivamente para a


refundação da utopia socialista. (2013, p. 26)

É possível arriscar como resposta provisória, considerando o quadro maior da


pesquisa em andamento, e visando a potencializar outras perguntas, que a economia popular e
solidária corresponde a um recorte do mundo do trabalho onde, mesmo imerso em uma plêiade
de contradições, é possível identificar práticas e sentidos de resistência contra-hegemônicas e,
mais que isso, que espelham características que se peculiarizaram no Brasil, em virtude do
processo colonizatório e de modos específicos de produzir e relacionar dos povos não-europeus.
A partir dessa constatação, no seguimento da pesquisa, pretende-se reduzir o campo
de observação deste específico recorte do mundo do trabalho, mirando, em especial, o papel
assumido pelo Direito burguês em meio a tais processos de resistência/conformação à pressão
expansionista do capital.

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596
VIA COLONIAL E NEOLIBERALISMO:
AS REFORMAS TRABALHISTAS
E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO

JACINTO, Ana Letícia Domingues


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)
RODRIGUES, Arthur Bastos
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

Pretende-se no artigo, desvendar as novas formas de precarização do trabalho feminino, com especial
atenção ao desmantelamento das previsões legais de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras, como
parte das medidas impostas pelo neoliberalismo, que ganha fôlego no Brasil a partir da década de 90 do
século XX. Para isso, partimos de compreensões acerca da formação do capitalismo brasileiro, aqui
categorizado como capitalismo de via colonial, e que, ante sua gênese específica, apresenta também
peculiaridades na consolidação do movimento global neoliberal. Tendo em vista tais perspectivas,
lançamos o olhar à questão das condições de trabalho das mulheres no contexto neoliberal brasileiro,
buscando identificar como os recentes ataques às legislações protetivas, especialmente a reforma
trabalhista aprovada pela lei 13.467 de 2017, influem no aumento da exploração das trabalhadoras.

Palavras-Chave. Capitalismo de via colonial e neoliberalismo. Trabalho feminino. Reforma trabalhista.

ABSTRACT

The aim of this article is to unveil the new forms of precariousness of women's work, with special
attention to the dismantling of legal provisions to protect workers, as part of the measures imposed by
neoliberalism, which has gained momentum in Brazil since the 1990s of the 20th century. For this, we
start with understandings about the formation of Brazilian capitalism, here categorized as colonial
capitalism, and which, before its specific genesis, also presents peculiarities in the consolidation of the
neoliberal global movement. In view of these perspectives, we look at the issue of women's working
conditions in the Brazilian neoliberal context, seeking to identify how the recent attacks on protective
legislation, especially the labor reform approved by law 13,467 of 2017, influence the increase in the
exploitation of women workers .

Keywords. Colonial capitalism and neoliberalism. Female work. Labor reform.

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INTRODUÇÃO

No artigo, pretendemos relacionar a exploração da classe trabalhadora brasileira no


neoliberalismo, com especial atenção às mulheres trabalhadoras, com a especificidade da
formação do capitalismo brasileiro e seus processos históricos de desenvolvimento.
A categoria “capitalismo de via colonial”, teorizada por J. Chasin, nos permitirá
compreender, na primeira parte da análise, as especificidades da formação do modo de
produção capitalista no Brasil, caracterizado, entre outros, pela superexploração da classe
trabalhadora como marca fundamental. Além disso, seria também elemento caracterizador do
capitalismo de via colonial, a sua própria consolidação nos moldes neoliberais da
mundialização do capital, como resultado de seu processo histórico de desenvolvimento.
Estes entendimentos serão úteis para que se siga na investigação da condição da
mulher trabalhadora no neoliberalismo brasileiro que, subordinada a relações que envolvem
classe, gênero e raça (tendo em vista que as mulheres negras estão à frente deste processo de
precarização)enfrentam intensos processos de desvalorização e exploração no mundo do
trabalho.
O avanço da precarização do trabalho pós 70 contribuiu muito para a feminização do
mercado de trabalho, que de fato é uma inserção rebaixada ao mundo do trabalho pelas
mulheres. Pois, a informalidade, os baixos salários e a dupla jornada sempre foram a regra da
exploração da força de trabalho feminina. A precarização, portanto se movimenta, de forma
mais intensa e com determinada antecedência, para os grupos já vulneráveis que dominam o
subemprego e a informalidade, no caso o feminino. As reformas trabalhistas recentes no
processo de desenvolvimento do neoliberalismo no país podem ser compreendidas em sua
gênese função histórica, assim, a partir da análise pormenorizada das variadas formas de
flexibilização da força de trabalho feminina.
Assim, a partir de estudos já consolidados acerca da realidade do trabalho feminino
no cenário brasileiro, tentaremos investigar como os desmontes neoliberais às legislações
trabalhista nas últimas décadas, e mais recentemente com a reforma trabalhista aprovada em
2017, afetam as mulheres trabalhadoras, com a hipótese de que as novas formas de precarização
atingem de modos diferentes homens e mulheres e mais fortemente as trabalhadoras, seja por
sua anterioridade temporal, ou maior intensidade. Elegemos, para isso, pontos da reforma
trabalhista que entendemos como centrais nesse processo amplo de precarização geral, para
demonstrar como seus efeitos se diferenciam entre homens e mulheres trabalhadoras.

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1. CAPITALISMO DE VIA COLONIAL E NEOLIBERALISMO

A compreensão do atual estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira exige


uma investigação sobre seu processo de gênese histórica. A sua atual conjuntura política e
econômica de roupagem neoliberal na perspectiva da mundialização do capital em seu braço
financeiro hipertrofiado tem relação com a conformação histórica do desenvolvimento
particular do capitalismo brasileiro incrustado nas teias do desenvolvimento mundial do capital.
Nesse sentido, nosso objeto de estudo nessa pesquisa são as dimensões e funções da
reforma trabalhista contemporânea no Brasil e os efeitos de precarização sobre a classe
trabalhadora. Para isso, escolhemos analisar a classe trabalhadora feminina pelo fato de as
novas formas de trabalho flexível atingirem em sua maior intensidade os grupos já vulneráveis.
Além disso, desde 1970 estudos comprovam uma crescente feminização do mercado de
trabalho que persiste. De forma que os grupos vulneráveis e especialmente as trabalhadoras
trariam o sentido de “ponta de lança” dos processos de precarização da força de trabalho.
Entretanto, as reformas trabalhistas contemporâneas não são uma novidade na história
do país e é necessário compreender o processo mais amplo de crise e reestruturação produtiva
do capital em nível mundial, que o Brasil se envolve numa lógica combinada e desigual. Nesse
sentido, o neoliberalismo enquanto prática econômica e como ideologia, nas suas variadas
feições, aparece como um projeto “salva-vidas” e como única saída possível para crises, mas
que é tomado por contradições e pela intensificação da exploração em termos materiais e de
decadência ideológica das subjetividades.
De qualquer modo, todas as experiências neoliberais compartilham traços universais
em todos os países, mas também possuem suas formas específicas e concretas em cada um. Se
países de passado colonial trazem consigo um histórico de subordinação econômica, no
contexto de mundialização do capital, o neoliberalismo se objetiva com efeitos diferentes em
cada país (FILGUEIRAS, 2005). Em suma, o “neoliberalismo” é uma doutrina geral, mas o
“projeto neoliberal” e o “modelo econômico” a ele associado, são mais ou menos diferenciados,
de país para país, de acordo com as suas respectivas formações econômico-sociais.
Por isso faz-se necessário trazer a categoria de via-colonial para caracterizar a
especificidade do capitalismo brasileiro, em sua gênese histórica, que pode iluminar a
compreensão sobre a especificidade do neoliberalismo no país. José Chasin, dentro dos debates
sobre as vias de objetivação para o capitalismo iniciado com os marxistas clássicos (via clássica,
via francesa, via prussiana, via russa...) diferencia a formação do Brasil dos modelos de atraso

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da via-prussiana, e realizando na década de 70 uma “síntese corretora do pensamento social


brasileiro de talhe marxista” (PAÇO CUNHA, 2017), particulariza a via-colonial em relação
às outras vias para o capitalismo É uma via particular por ser um processo histórico hiper-
tardio.
O capitalismo de via colonial diferencia-se assim das outras vias para o capitalismo -
via clássica e prussiana - como um “particular contrastante do qual se avizinha o caso
brasileiro, também diverso dos casos clássicos.” (CHASIN, 1999, p. 627) - por ser um processo
histórico hiper-tardio, incompleto, retardatário, não-autocentrado, lento, inorgânico e atrófico
(ASSUNÇÃO, 2004, p. 9), sustentado por uma burguesia caudatária, que não cumpre sua
função na industrialização e independência do país e se nutre da superexploração das classes
trabalhadoras, excluindo-as dos processos políticos.
Desta forma, “A superexploração da força de trabalho também é uma característica
do país e tem raízes firmemente plantadas na história nacional.” (ASSUNÇÃO, 2004, p. 11).
Chasin aponta que todos os chamados “milagres econômicos” brasileiros - que sempre foram
centrados nos bens de consumo duráveis, capitaneado por empresas monopólicas
majoritariamente estrangeiras, e complementado pelo “esforço exportador”, basicamente de
produtos agrários - tinha como pilar fundamental o rebaixamento salarial: a superexploração
do trabalho. A forma retardatária, subordinada e conciliada com o historicamente velho de
evolver a industrialização brasileira mostra a manutenção, devidamente modernizada e
“desenvolvida”, de sua fase mais perversa - a miserabilidade das amplas massas trabalhadoras,
que se põe, não como produto de uma lacuna “distributivista”, mas como sustentáculo da
própria forma de desenvolvimento (Contrim, 2000).
O processo de consolidação do capitalismo de via colonial que se dá nos anos de 1930
e o seu caminhar posterior se coloca frente a alternativas que se efetivaram sempre como saídas
conciliatórias com o passado colonial e com a subordinação econômica ao mercado estrangeiro.
Entretanto, claro, não sem contradições postas tanto pelas crises econômicas nacionais
reféns da flutuação internacional, quanto das lutas dos trabalhadores. A ditadura bonapartista
de 64 é uma resposta à mobilização popular democrática de forma a retirar quaisquer formas
de turbulências à renovação do velho, que se caminha como transição durante o século XX no
país, em conformidade com os movimentos expansionistas do capital internacional. A chamada
redemocratização não trouxe transformações substanciais (CHASIN, 2000) e a década de 80 é
a consolidação do processo de gênese da via-colonial, ou seja, o seu próprio acoplamento ao

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movimento de mundialização do capital. Postas alternativas de rompimento, que não se


cumpriram, o desenvolvimento do capitalismo de via colonial de 1930 até as décadas de 80 e
90 significaram de fato a consolidação do seu “destino mais forte” que objetivamente se pôs
inquebrantável com o golpe de 64 e o processo de retomada à autocracia, claramente
evidenciado na funcionalidade efetiva do projeto neoliberal globalizante que a partir de então
se torna hegemônico.
Segundo Contrim (2000), essa constituição do capitalismo brasileiro pela via colonial
vai dando seus últimos passos em fins da década de 80, em conformidade, mais uma vez, com
as alterações que se verificavam no plano internacional. No percurso da via colonial, longe de
fatalismos na história, Chasin mostra a vinculação entre o acabamento da transição à autocracia,
a chamada “redemocratização”, e do próprio processo de constituição do capitalismo no Brasil,
desde os anos 30, indicando que, nesses seus passos finais, a burguesia brasileira abandona
definitivamente qualquer ilusão ou aparência de autonomia que pudesse ter alimentado antes,
para assumir plenamente, de sua condição subordinada, por isso o encerramento da via colonial.

De maneira que, se o golpe de 64 fora dado para barrar movimentos e propostas de


mudança, a chamada redemocratização ao contrário, pôs na ordem do dia somente a
modernização do arcaico, sua manutenção sob outra roupagem, adaptada às novas
formas e necessidades do capital mundial. É justamente a reviravolta no panorama
internacional pós 70 que marca e induz os momentos finais da via colonial. O
neoliberalismo, seja enquanto prática efetiva do capital, seja enquanto ideologia, se
confunde com este período em que a superprodução de capital aparece como
superabundância de capital financeiro, que, em busca de espaço de reprodução,
arrebenta os limites que o constrangem, para isto rompendo as barreiras comerciais
e políticas que pudessem emperrá-lo. A desregulamentação e a restrição do papel
econômico dos estados nacionais foram suas manifestações mais evidentes. É sob o
influxo da mundialização do capital que a via colonial vive seu encerramento. A
vitória de Collor em 89 significou de fato a vitória dos ideais profundos de 64. O
encerramento da via colonial pela trilha de suas próprias determinações, e não pela
ruptura com elas, deu-se, assim como todas as anteriores alterações significativas na
vida nacional, por influxo, pelo alto e sob o domínio dos capitais subordinantes.
(Contrim, 2000)

Considerando, já agora, o processo acelerado de mundialização do capital, e o novo


fôlego então obtido pela proposta de integração subordinada, representada, na campanha
sucessória, fundamentalmente por Collor, mas também, pelo PSDB, e recentemente PT e o
PMDB, salta à vista que a tendência mais forte, determinada pela própria dinâmica da via
colonial, era a efetivação da industrialização subordinada ao capital externo, o que implicava a
“resolução” da questão agrária pela manutenção de sua estrutura básica latifundiária e a

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necessidade da intensificação da superexploração do trabalho, bem como as dificuldades assim


postas de integralização da classe trabalhadora (Contrim, 2000).
Desta forma a superexploração e miserabilidade da classe trabalhadora é característica
que se reafirma, na “modernização do arcaico”, com o projeto do golpe de 64 se realizando na
redemocratização transada pelo alto. O neoliberalismo como ideologia e prática econômica
desregulamenta as proteções sociais, intensifica a exploração da força de trabalho através do
desemprego estrutural, da proliferação dos trabalhos temporários e de formas cada vez mais
variadas de flexibilização, alterando significadamente a morfologia da classe trabalhadora
(ANTUNES, 2006), mesmo em países em que a informalidade e a miserabilidades das massas
que vivem do trabalho é própria do desenvolvimento histórico.
A integração mundial do capitalismo “inviabiliza qualquer encaminhamento de
soluções no âmbito nacional”, gerando o influxo cada vez maior sob o “domínio dos
movimentos dos capitais subordinantes” (CONTRIM, 2000). Em outras palavras, os rumos da
exploração dos trabalhadores se acopla cada vez mais aos processos de crise e expansão do
capital em suas formas cada vez mais ofensivas, atingindo objetivamente e subjetivamente o
trabalhador. O processo de gênese da via colonial marcada pela superexploração dos
trabalhadores, na égide de sua consolidação pós-80, com a atual ofensiva globalizante
neoliberal, sem freios, como direitos, nem barreiras comerciais, avança mais facilmente sobre
os trabalhadores brasileiros, cada vez mais desprotegidos, que nunca puderam contar com
efetivos direitos sociais.
O neoliberalismo no Brasil que se inicia com Collor em 1989 na retomada pelo alto
da autocracia burguesa se objetiva através dos programas neoliberais experimentados pelo
mundo como na Europa, com Thatcher, e mesmo antes no Chile, com Pinochet (Anderson,
2000, p. 9). Diz Anderson (2000), que apresenta uma cronologia histórica do neoliberalismo
no mundo, desde sua teorização até consolidação e reprodução desse movimento ideológico,
que

Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente


decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua
extensão internacional. Eis aí algo muito mais parecido ao movimento comunista de
ontem do que ao liberalismo eclético e distendido do século passado. Nesse sentido,
qualquer balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório. Este é um
movimento ainda inacabado. (Anderson, 2000, p. 12)

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Os duros programas neoliberais que são hegemônicos ideologicamente com suas


práticas de desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em
favor dos ricos e privatização, no Brasil, iniciam-se com o governo Collor retirando as barreiras
alfandegárias em processos de desregulamentações estatais e de privatização de bens públicos.
A desregulamentação do Estado, a partir de então, no ritmo da reprodução mundial com a
financeirização do mercado, favorece a subordinação plena da economia brasileira industrial
ao capital global. Com os governos do PSDB1, PT2 e PMDB, nas suas especificidades próprias,
o neoliberalismo se consolida cada vez mais ideologicamente como única saída para as crises
e misérias advindas da reprodução social do capital, mas que de fato não são falhas, mas
sustentáculos de seu desenvolvimento. A eliminação de barreiras alfandegárias e de tributos às
remessas de lucros, as privatizações, a diminuição dos gastos públicos, as variadas formas de
flexibilização dos direitos trabalhistas, aliados ao desemprego estrutural, são as velhas formas
que se regeneram nas atuais mediações da sociedade brasileira cada vez menos autônoma.
O neoliberalismo nesse sentido atua também na subjetividade da classe trabalhadora.
Sua reprodução através do desemprego crônico e estrutural, não mais cíclico, indica uma
tendência forte à fragmentação e competição entre os trabalhadores, prejudicando sua
identificação como ser social que vive do trabalho. O discurso que intensifica esta competição
responsabiliza os trabalhadores pela empregabilidade, e em termos da via-colonial, nunca
houve a ideologia do pleno emprego nem do Bem Estar Social. Assim, os processos de auto-
alienação, justificando o auto-emprego e a precarização, com os atuais mecanismos de info-
empregos, com o trabalho por aplicativos (“uberização da vida”), são mais agudos no Brasil e
a classe trabalhadora se esvazia de compreensões coletivas e classistas de organização da vida.
A superexploração da classe trabalhadora se objetiva nas dimensões materiais e
subjetivas. Há uma horizontalização ideológica no discurso para atingir a subjetividade do
trabalhador, através das narrativas pós-modernas de empreendedorismo, “trabalhador-
colaborador” ou “trabalhador-sócio”. Esse discurso ideológico distorce a realidade cada vez
mais verticalizada em exploração, pois o empreendedorismo e a flexibilização da relação

1
Sobre o governo FHC e as reformas de Estado neoliberais: “E isso se explica pela permuta de valores ocorridos no governo
FHC. Ao trocar a idéia de solidariedade, presente na Constituição de 88, pela competitividade, expressa a elevação das questões
econômicas a um primeiro plano, de forma a relegar a questão social a um simples pano de fundo, inserida na lógica neoliberal
de restrição dos gastos sociais.” (Carinhato 2008, p. 46). Ainda sobre reformas trabalhistas no Governo FHC ver KREIN, J. D.,
2003
2
Sobre os governos PT ver: CASTELO, Rodrigo, 2012 e também Boito Júnior, Armando

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trabalhista indica de fato precarização, desemprego e concentração massiva de riquezas, com o


consequente aumento da miséria, violência e desigualdade (CASTRO, 2013).
Desta forma, as reformas trabalhistas em curso atualmente atingem de forma
estrutural, devido a sua substância (ANTUNES, 2006; CASTRO, 2015), a exploração do
trabalho no Brasil. Sem barreiras, sejam as legais ou as de resistência dos trabalhadores, e com
a gênese histórica da superexploração como elemento central da formação social brasileira, as
reformas neoliberais, de recuo de direitos, são vertiginosas e generalizantes, com efeitos
devastadores a curto prazo.
Nesse novo ciclo do capital, de precarização neoliberal do trabalho, em que a
desregulamentação passa a se tornar regra e o direito trabalhista se pauta pela desproteção, as
variadas formas de flexibilização das proteções legais (ANTUNES, 2006; CASTRO, 2015) são
mediadas através de modos específicos. Preocupa-nos particularmente nesta pesquisa a
especificidade do trabalho feminino neste processo de reforma estrutural, pois generalizante.
Mas o processo de generalização e preponderância passa por mediações intermediárias de
desenvolvimento e transição, como a precarização dos grupos mais vulneráveis e aqui
particularmente do trabalho feminino.

2. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E A SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA


DE TRABALHO FEMININO

Como trazido por Cláudia Mazzei Nogueira (2004), através do enfoque nas relações
de trabalho, é possível apreender de um lado, a exploração da mulher inerente à sociedade de
classe e de outro, diferenciações e explorações especificamente suportadas pela mulher
trabalhadora, partindo, para isso, da complexa indissociabilidade e complementariedade das
questões de gênero e classe (HIRATA & KERGOAT, 1994).
De acordo com Saffioti (1979-a), ainda que em sociedades pré-capitalistas as funções
femininas pudessem ser marcadas pela subsidiariedade e complementariedade em relação às
atividades produtivas dos homens, é especialmente com o desenvolvimento do sistema
capitalista que as desvantagens das mulheres se tornam cada vez mais marcantes.
Ocorre que, as trajetórias de homens e mulheres, muito mais do que diferenças
biológicas, são marcadas especialmente por construções sociais que destinam os papéis de cada
sexo. Segundo Kergoat (2009), destas relações sociais decorrem tanto a separação dos trabalhos

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exercidos por homens e mulheres, quanto as diferentes destinações e valor social agregado às
suas funções.
Saffioti acerca do trabalho feminino no processo de industrialização da economia
brasileira, revela que o capitalismo dependente3 no Brasil teve como elemento o fato de que “a
participação da mulher na força de trabalho brasileira tem sido uma das baixas do mundo”
(SAFFIOTI, 1979-b, 409), entre outros motivos, porque durante a primeira metade do século
XX, cerca de 50% das trabalhadoras brasileiras estavam inseridas em atividades de corte não-
capitalista, como empregadas domésticas, lavadeiras, costureiras, entre outros, (SAFFIOTI,
1979-b).
Não obstante à realidade do capitalismo brasileiro de manter à margem do mercado
de trabalho grandes contingentes de trabalhadoras, é evidente que a dinâmica do capital exige
que, em diferentes momentos da economia, também diversas parcelas de trabalhadores
marginalizados sejam incorporados pelo setor capitalista (SAFFIOTI, 1979-b).
Segundo Hirata (2009), a gênese do processo de globalização e de reestruturação das
forças produtivas na década de 70, gerador do atual processo de acumulação capitalista, em sua
fase neoliberal, teve como uma de suas consequências o crescimento do emprego feminino em
todas as partes do globo.
Além disso, ao mesmo tempo em que há o aumento do número de mulheres em
profissões intelectuais valorizadas, há a manutenção das ocupações de cuidado e educação
tradicionalmente femininas, mas que crescentemente se tornam cada vez mais instáveis, mal
remunerados e também intensificadas (HIRATA, 2009).
Ademais, apesar dos efeitos de aprofundamento do desemprego estrutural e
pauperização da população, as políticas de cunho neoliberal surgiram como estratégia de
combate à crise do capital iniciada nos anos 1970, entretanto não cumpriram sua promessa, pois
o desemprego estrutural (CASTRO, 2015) é característica desse novo processo de acumulação
atual. Destaca-se que, para Bruschini (1994), a não redução no número de mulheres
economicamente ativas no Brasil na década de 80, ao revés da crise econômica e do
desemprego estrutural, demonstra a consolidação da força de trabalho feminina na realidade
brasileira, especialmente como estratégia de enfrentamento à situação econômica adversa.

3 Heleith Saffioti trabalha a partir da teoria marxista da dependência nas teorizações realizadas por Florentan Fernandes. Tendo
sido orientada em sua tese de doutoramento A mulher na sociedade de classes: mito e realidade pelo sociólogo paulista.

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Também neste sentido, Cláudia Mazzei Nogueira, reconhece que o período pós-1970
foi marcado pela feminização do mundo do trabalho, com a forte intensificação da inserção das
mulheres no mercado, no entanto, “essa presença feminina se dá mais no espaço dos empregos
precários, onde a exploração, em grande medida, se encontra mais acentuada” (NOGUEIRA,
2009, p. 187).
Assim, partindo do entendimento da indissociabilidade da questão de classe e gênero,
mostra-se a realidade de diferenças das trajetórias sociais de homens e mulheres durante o
processo histórico de formação da classe trabalhadora no capitalismo de via colonial, vez que,
como nos ensina Saffioti “as diferentes formações sociais, com suas culturas e tradições
específicas, darão um colorido especial à inserção da mulher nas diferentes economias
nacionais” (SAFFIOTI, 1979-b, p. 408).

3. CONDIÇÃO DA MULHER TRABALHADORA E REFORMA TRABALHISTA


DE 2017

As recentes reformas ocorridas no mundo do trabalho, nesse contexto de


mundialização, com tendência ao subemprego e à informalidade, além de processos intensos e
variados de flexibilização de direitos, como é o caso do aumento e generalização das atividades
terceirizadas, iniciadas com fôlego na década 90 no Brasil, tem tido efeitos intensos sobre o
trabalho feminino. A Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943 apesar de ser uma proteção
relevante que por hora é atacada, não atinge a totalidade dos trabalhadores, por isso, seu caráter
simbólico (CASTRO, 2015). Desde sua promulgação, os trabalhadores rurais e domésticos,
com relevo para a força de trabalho feminina, ficaram excluídos da proteção social trabalhista
por longas décadas.
Além disso, mesmo com a CLT, a exploração da força de trabalho no Brasil sempre
foi marcada por grandes contingentes de trabalhadores na informalidade. Com a expansão do
mercado de trabalho feminino do final do século XX, as formas de flexibilização do trabalho,
desde as formas mais recentes de teletrabalho e uberização, até o próprio desemprego
estrutural, afetam de modo específico, a exploração da força de trabalho feminina, indicando
uma maior intensidade e anterioridade da desproteção da mulher trabalhadora.
Desta forma, a recente reforma trabalhista aprovada em 2017, Lei 13.467 de 2017,
tende a precarizar fortemente as condições de trabalho da trabalhadora. Em vista de suas

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alterações substanciais nas formas de remuneração, na extensão da jornada de trabalho, na


flexibilização das formas de contratação, permitindo a terceirização ampla, o trabalho
temporário e o intermitente, recua-se em relação à, já, pouca estabilidade presente na CLT, e
abrem caminho para uma exploração aberta. As indicações e tendências históricas evidenciam
que a informalidade, os baixos salários e, mais recentemente, as ocupações atípicas e precárias,
como respostas às crises produtivas, especulativas e de queda da taxa de lucros, pela natureza
e profundidade destas crises e contradições, materializam-se através dos setores mais
fragilizados socialmente. Em outras palavras, buscando recuperar taxas econômicas anteriores
às crises, a precarização do trabalho como saída é rapidamente direcionada para o trabalhador
mais precarizado, neste caso, o das trabalhadoras.
É por isso que, Cláudia Mazzei Nogueira (2009) afirma que, muito embora as
alterações no mundo do trabalho atinjam a totalidade dos trabalhadores, em verdade a
precarização tem sexo, e ainda, como trazido por Hirata & Kergoat (2007), no caso das
mulheres trabalhadoras, a questão do tempo de trabalho assume papel de destaque no processo
de flexibilização do emprego feminino.
A flexibilização da jornada de trabalho no caso das mulheres, é incentivado pelo que
Miriam Nobre (2004) denomina como “sabedoria da conciliação”, através da qual as
trabalhadoras são levadas a ocuparem jornadas flexíveis tendo em vista o tensionamento entre
as obrigações familiares e profissionais.
É o caso do trabalho por tempo parcial, atividade majoritariamente feminina, que se
expandiu fortemente nos anos 1990 num grande número de países (HIRATA, 2002-a),
possibilitado no Brasil a partir da medida provisória 2164-41 de 2001 e caracterizado pela
jornada não excedente a vinte e cinco horas semanais, excluída a possibilidade de realização de
hora extraordinária, com salário proporcional à jornada contratada, vez que, como destaca
Hirata (2002-a) trabalho em tempo parcial significa salário parcial.
Como nos apresenta Cássia Maria Carloto em Gênero, Reestruturação Produtiva e
Trabalho feminino, as novas estruturas do mercado, especialmente as ocupações de tempo
parcial, facilitam a exploração da força de trabalho feminino, “substituindo homens melhor
remunerados e mais difíceis de serem admitidos, pelo trabalho feminino mal pago”
Aliás, é a tendência do mercado de trabalho brasileiro a expansão dos postos de
trabalho precarizados, conforme trazido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas
(IPEA):

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Houve queda expressiva do trabalho precário4 até 2013, com leve tendência de
aumento a partir de então, corroborada pelos dados da Pnad 2014, conforme se pode
depreender do gráfico abaixo. O percentual de trabalhadores inseridos em formas
precárias de ocupação apresenta a mesma estrutura hierárquica que os estudos
clássicos sobre estratificação social com base na renda apresentam: a mulher negra é
a base do sistema remuneratório, sujeito preferencial das piores ocupações,
convergência da tríplice opressão de gênero, raça e classe. Nada menos que 39,1%
das mulheres negras ocupadas estão inseridas em relações precárias de trabalho,
seguida pelos homens negros (31,6%), mulheres brancas (27,0%) e homens brancos
(20,6%) (IPEA, 2016, p. 11-12)

Neste ponto, destaca-se a categoria de telemarketing, caracterizada pela jornada


parcial e por ser predominantemente feminina, vez que 70% (setenta por cento) dos postos de
trabalho neste setor são ocupados por mulheres. Trata-se de uma ocupação precarizada e em
grande processo de expansão, de baixos salários, alto controle de tempo e intervalos para
descanso e alimentação, ritmo e pressões intensas no ambiente de trabalho. (NOGUEIRA,
2009).
Ademais, a reforma trabalhista aprovada pela lei 13467 de 2017, representa ainda
maior exploração ao trabalhador deste regime, vez que aumentou o teto de horas semanais para
trinta horas, incluindo a possibilidade de realização de horas extraordinárias (que podem ser
convertidas em compensação de horas) nos regimes menores de vinte e seis horas semanais,
viabilizando ainda o abono pecuniário de um terço do período de férias.
Assim, este ponto da reforma trabalhista de 2017, se apresenta como fortemente
ligado ao trabalho feminino, tendo em vista que a feminização deste setor é motivada pelo
tempo parcial de trabalho, pela suposta possibilidade de conciliação com suas tarefas no
ambiente reprodutivo:

Talvez possamos afirmar que os ofícios de jornadas parciais (como é o caso do


telemarketing) estejam mesmo reservados para as mulheres trabalhadoras, porque,
culturalmente (e por interesse da própria lógica do capital), na sociedade patriarcal,
as prioridades femininas residem na esfera doméstica. (NOGUEIRA, 2009, p. 208)

Outra forma de absorção do trabalho feminino que se baseia na conciliação com


obrigações domésticas e familiares é o denominado teletrabalho, já viabilizado legalmente a
partir da alteração à CLT pela lei 12.551 de dezembro de 2011 e regulamentado pela reforma
trabalhista de 2017.

4
Foram classificados como trabalhadores precarizados aqueles trabalhadores com renda de até 2 salários mínimos e com as
seguintes posições na ocupação: sem carteira assinada, construção para próprio uso, conta-própria (urbano), empregador com até
5 empregados (urbano), produção para próprio consumo (urbano) e não-remunerados (urbano).

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Estabelecido como um regime de trabalho sem qualquer tipo de controle de jornada,


a partir da reforma de 2017 os teletrabalhadores não gozam de adicional por horas
extraordinárias, adicional noturno ou intervalos para descanso e alimentação e intervalo entre
jornadas.
Em artigo denominado Teletrabalho: subjugação e construção de subjetividades,
Isabel de Sá Affonso da Costa (2007) revela que, inseridos no discurso do empreendedorismo
de si5, os teletrabalhadores possuem uma alta carga de trabalho e horas de jornada, pouca infra-
estrutura combinada com a necessidade de disponibilização de espaço dentro de casa,
convivendo ainda com a transferência de custos e seu isolamento. Acresce-se a isso a
responsabilização do trabalhador, uma vez que a lei dispôs caber ao empregador instruir os
empregados, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho,
porém “o empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as
instruções fornecidas pelo empregador”, conforme parágrafo único do artigo 75-E da CLT
trazida pela lei de 2017.
Apesar das implicações aos trabalhadores de modo geral, esse tipo de trabalho possui
reflexos distintos no caso das mulheres, impondo grandes custos emocionais pela invasão do
mundo produtivo ao espaço reprodutivo ao mesmo tempo em que reforça sua condição de
responsáveis pelas tarefas domésticas (CASACA, 2002).
Casaca (2002) argumenta que esta espécie de trabalho representa para as mulheres
uma “saída flexível” para conciliar a atividade remunerada com as funções domésticas,
gerando, no entanto, problemas com a gestão do tempo, tendo em vista a distorcida união entre
o tempo de atividade profissional e o tempo com a família e obrigações domésticas, além da
necessidade de simultaneidade de tarefas:

A indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, assim como a ampliação do


tempo de trabalho não pago, são hoje elementos centrais para problematizarmos a
relação entre exploração do trabalho e acumulação, e reproduzem muito da lógica
que historicamente estrutura o trabalho feminino em domicílio. (ABÍLIO, 2014, p.
96)

Soma-se ao processo de precarização dos postos de trabalho predominantemente


femininas, as dificuldades de organização das mulheres trabalhadores, tendo em vista “o seu

5 Para o aprofundamento do debate acerca da lógica de empreendedorismo de si, com especial atenção às mulheres, e suas
implicações com a tripla jornada de trabalho e a “polivalência precária” do trabalho feminino das revendedoras de comésticos,
ver ABÍLIO, Ludmila. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo : Boitempo,
2014

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isolamento ou as condições de flexibilidade do tempo de trabalho impostas pelas empresas”


(HIRATA, 2002-a).
Na obra A classe operária tem dois sexos de 1991, Elizabeth Souza-Lobo revelou a
dificuldade de participação das mulheres nas lutas sindicais ocorridas na indústria brasileira nas
décadas de 70 e 80, apesar do grande aumento de trabalhadoras no setor industrial verificado à
época.
Mesmo no período de forte resistência dos trabalhadores, como ocorrido nas
indústrias automobilísticas do ABC paulista a partir da década de 1970, o discurso sindical se
mantinha alinhado à lógica de destinação natural das mulheres à esfera reprodutiva e a
consequente complementariedade do salário feminino em relação ao principal provedor,
identificando como secundárias as necessidades e reivindicações da força de trabalho feminina.
Ocorre que, ainda hoje, o movimento sindical continua fortemente marcado pela
presença masculina, especialmente no que se refere à direção sindical, uma vez que as mulheres
permanecem “sub-representadas (quando não totalmente excluídas) das posições de liderança
e de poder tanto nos sindicatos locais quanto nas organizações federativas de âmbito regional
ou nacional” (ARAÚJO & FERREIRA, 2000, p. 311).
É neste contexto em que se apresenta ainda a reforma trabalhista de 2017,
estabelecendo que a negociação coletiva prevalece sobre a lei, em questões relacionadas à
jornada e intervalores, banco de horas, teletrabalho, enquadramento do grau de insalubridade,
entre outros pontos.
Assim, tendo em vista as dificuldades de organização coletiva dos trabalhadores,
causado especialmente pelo elevado grau de desemprego e relações flexíveis de emprego, o
negociado apresenta-se não como um instrumento de conquistas da classe trabalhadora, mas
sim como meio de desmantelamento das proteções sociais anteriormente conquistadas e de
fragmentação da classe trabalhadora, o que pode ser ainda mais gravoso no caso das mulheres
já vulneráveis no mercado de trabalho e excluídas dos processos de negociação coletiva e
organização de categoria profissional.
Merece destaque ainda, pelo alto potencial lesivo às mulheres trabalhadoras, a
alteração da reforma trabalhista de 2017, relativa ao arbitramento de condenações decorrentes
do assédio sofrido nos ambientes de trabalho, uma vez que a fixação da indenização a ser paga,
depende agora do salário do ofendido.

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Através disso, a reforma na legislação trabalhista permite que uma mesma ofensa
moral seja condenada de forma desigual entre empregados com diferentes salários e deixa claro,
através da própria folha de pagamento, qual funcionário é “mais barato” de ser assediado. Ante,
a desigualdade salarial do mercado de trabalho, se torna evidente a população mais afetada pela
alteração legal, uma vez que de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), em 2014, a diferença salarial entre homens e mulheres brancos era de 30% (trinta por
cento) e ainda que, no caso das mulheres negras, a percepção do salário é 60% (sessenta por
cento) menor que o salário recebido pelos homens brancos, mostrando como no caso das
mulheres negras o processo de precarização é ainda mais intenso.

CONCLUSÃO

A superexploração da classe trabalhadora, se objetiva de diversas maneiras


específicas na reprodução social do capitalismo, neste sentido, a feminização do mercado de
trabalho tem como uma das causas centrais o processo de precarização da força de trabalho pós
70. Pois, se a necessidade do capital é efetivar a tendência de generalização das variadas formas
de trabalho flexível, a universalização dos grupos vulneráveis no mercado de trabalho é uma
ação imediata de ponta de lança desse próprio desenvolvimento.
É por isso que acreditamos que a compreensão da gênese histórica e da função das
reformas trabalhistas em curso pode ser apreendida através da investigação dos recentes modos
de precarização do trabalho feminino, tanto nos efeitos destas flexibilizações na contratação
individual, quanto na complexa desestruturação das relações coletivas e desfragmentação das
categorias sindicais, intensificada pela reforma trabalhista de 2017.

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614
APORTES MATERIALISTAS AO
ESTUDO DO PENSAMENTO JURÍDICO COMO IDEOLOGIA:
A CRÍTICA ROMÂNTICA DO CAPITALISMO
E O DIREITO SOCIAL DE CESARINO JÚNIOR

SALES, Anna Paula Almeida


Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação
da Universidade Federal de Juiz de Fora
PAÇO CUNHA, Elcemir
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação da Universidade Federal de Juiz de Fora
MONNERAT, Alice Nogueira
Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação
da Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

Este artigo objetiva apresentar a fundamentação ontoprática para o estudo do pensamento jurídico como
ideologia. A proposta coloca-se entre duas tendências igualmente insuficientes: a primeira que
autonomiza o pensamento para lançar-se a uma hermenêutica e a segunda que procede por mera
derivação do pensamento jurídico da estrutura econômica. Dessa maneira, recupera-se de Marx, Lukács,
Mészáros e Chasin delimitações para o estudo das formas de consciência como “objeto ideológico” com
gênese e função. Situou-se prioritariamente essa discussão nos marcos da decadência ideológica a partir
de 1848, quando se desenvolve uma crítica romântica do capitalismo. A determinação ontoprática do
direito como ideologia assegura sua gênese e funcionalidade no interior dos conflitos sociais, em que o
pensamento jurídico possui especificidades se comparado a outras formas de consciência. A partir desses
elementos, o artigo apresenta um exemplo de pesquisa, lançando mão de uma investigação de dois
materiais de Cesarino Júnior, ambos de 1940 e versados em direito social, para determinar o
desenvolvimento da crítica romântica do capitalismo no contexto de objetivação hipertardia do
capitalismo.

Palavras-Chave. Pensamento jurídico; ideologia; crítica romântica do capitalismo

ABSTRACT

This article aims at to present the ontopractical study of juridical thought as ideology. The proposal falls
between two equally inadequate tendencies: the first that autonomizes thought to launch some
hermeneutics and the second that proceeds by mere derivation of juridical thought from the economic
structure. Thus, recovers from Marx, Lukács, Mészáros and Chasin delimitations for the study of forms
of consciousness as ideological objects with its own genesis and function. This discussion has placed
first within the framework of ideological decadence since 1848, when the romantic critique of capitalism
arises. The ontopractical determination of law as ideology ensures your genesis and functionality inside
social conflicts, in which juridical thought has specificities compared to other forms of consciousness.
From these elements, the article presents an example of research, using an investigation of two materials

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of Cesarino Júnior, both from 1940 and about social law, to determine the development of romantic
critique of capitalism in the context of hiperlate capitalist objetification.

Keywords. Juridical thought; ideology; romantic critique of capitalism.

INTRODUÇÃO

Uma das questões prementes da pesquisa no direito é a adequada apreensão dos nexos
entre o pensamento jurídico e a realidade material. Em termos gerais, esse aspecto é
consideravelmente aceito e propalado. À diferença disso são os meios de se investigar tais
nexos.
Dois caminhos são frequentemente replicados. Por um lado, está o esforço de uma
hermenêutica dos textos que compõem a “materialidade” do pensamento jurídico. Ao eleger
tais textos como o objeto do estudo, tendencialmente se corta os elementos perturbadores para
que o mergulho seja profundo e proveitoso. Atitude correta e incontornável; insuficiente,
porém. A eleição do objeto dedicado frequentemente exige a dilapidação das determinações
concretas desse pensamento jurídico em favor de uma autonomia que ele não possui e o
mergulho profundo não é compensado pela eliminação do confinamento necessário a essa
hermenêutica. Ao final, a tendência predominante é fixar o pensamento jurídico como a força
motriz da própria realidade. Por outro lado, está o que se pode chamar de materialismo
mecânico. Se não se limita a paralelismos grosseiros entre a base econômica e o pensamento
jurídico, também ecoa uma derivação linear deste pensamento a partir da estrutura econômica.
Encontra assim uma realidade como um traço retilíneo entre pontos fixos, tornando a dimensão
das formações ideais, como tal pensamento jurídico, um puro epifenômeno: uma realidade, ao
final, morta e sem reciprocidades.
A tais insuficiências é possível contrastar a propositura delineada a partir das
aquisições de Marx a respeito da determinação social do pensamento ou das reciprocidades
entre ser social e pensamento. O ponto de partida é a constatação de que “Pensar e ser são,
portanto, certamente diferentes, mas [estão] ao mesmo tempo em unidade mútua” (MARX,
2004, p. 108) e que o “mundo das formas de consciência e seus conteúdos não é visto como
produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social” (LUKÁCS, 2012, p.
308). E mais além: os nexos existentes de relações recíprocas jamais podem ser cindidos, pois

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a explicação do pensamento em questão deve ser buscada nas condições objetivas que o tornam
possível e, ao mesmo tempo, compreender a função social a que tal pensamento é chamado a
responder nos contextos materiais particulares.
É nesse sentido que a consideração do pensamento jurídico como “objeto ideológico”,
isto é, como ideologia que nasce de condições objetivas e atua no interior delas, é contributiva
à pesquisa na área do direito. Também é particularmente útil para o estudo desse pensamento
no contexto brasileiro de objetivação do capitalismo. Como parte de um estudo mais amplo
sobre a função do direito nas vias de desenvolvimento do capitalismo clássico, prussiano e
colonial (brasileiro), esta investida demonstra na exemplaridade de Cesarino Júnior (1930-
1940) não só a convergência de tendências teóricas do período (como a crítica romântica do
capitalismo), mas também, e tão importante quanto, como esse pensamento é chamado a atuar
no conflito social posto entre as classes sociais no período marcadamente industrializante. Cabe
acrescentar que Cesarino Júnior foi importante jurista, compilador dos direitos sociais e teve
destacável relacionamento como intelectual no período em questão. Para efeito dessa
exemplificação, restringiu-se a consulta a Direito Corporativo e Direito do Trabalho e Direito
Social Brasileiro, ambos com primeira edição em 1940.
Assim, o presente trabalho tem por objetivo apresentar o estudo dos “objetos
ideológicos” tendo por base um materialismo consequente como alternativa aos limites dos
caminhos frequentemente percorridos. Para tanto, recorreu-se a, sobretudo, Marx, Lukács,
Mészáros e Chasin, para discutir precisamente esse materialismo e o direito como ideologia
para, em seguida, apresentar uma formulação que demonstra a pesquisa do pensamento jurídico
na formação do capitalismo brasileiro na exemplaridade de Cesarino Júnior.

1. “OBJETO IDEOLÓGICO” E CRÍTICA ROMÂNTICA DO CAPITALISMO

Marx (1996) coloca o ano de 1830 como ano de início da crise decisiva da Economia
Política burguesa, quando, tendo a burguesia tomado o poder político na França e Inglaterra, a
luta de classes assume, tanto na teoria quanto na prática, “formas cada vez mais explícitas e
ameaçadoras” (MARX, 1996, p. 135). Assim, “já não se tratava de saber se este ou aquele
teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou
incômodo, subversivo ou não” (MARX, 1996, p. 135). O combate da burguesia contra o

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feudalismo se encerra; a defensiva contra o proletariado ascendente se inicia (LUKÁCS, 1979,


p. 32).
Lukács aponta como, em período anterior, que se inicia “no fim do primeiro terço do
século XIX” (LUKÁCS, 1979, p. 31), a filosofia burguesa clássica ocupa um importante papel
na produção do conhecimento. Neste período, a filosofia burguesa clássica, gera a “expressão
mais elevada de concepção de mundo da burguesia” (LUKÁCS, 1979, p. 31), por ser o
momento da revolta burguesa frente ao feudalismo, de consequente apresentação dos princípios
e da visão de mundo próprios da burguesia (LUKÁCS, 1979, p. 32).
Em período posterior a 1848, a filosofia se desvia das questões últimas, passando a
pressupor sem utilidade tais estudos, e considerar “anticientíficas as grandes realizações
ideológicas do período precedente” (LUKÁCS, 1979, p. 43). O período de decadência
ideológica burguesa “tem início quando a burguesia domina o poder político e a luta de classe
entre ela e o proletariado” (LUKÁCS, 1968, p. 50) passa a ocupar o centro da dinâmica social
regida pelas legalidades fundamentais da sociabilidade do capital.
Analisar ideologias exige a compreensão do que é afirmado por elas e, ainda, na sua
“relação com a situação concreta de quem as afirma” (CHASIN, 1978, p. 66). Assim, quando
se fala da filosofia burguesa em seu período de decadência, é necessário observar as novas
condições materiais em que se encontra enquanto classe.

Dentro de contornos assim delineados compreender-se-á, pois, do que se trata;


quando se afirma, ao ter sistemas ideológicos como objetos científicos, que sua
delucidação obriga a remeter à totalidade histórica onde se produzem e onde se
encerram; em outros termos: a análise de ideologias implica necessariamente no
entendimento do que é por elas afirmado na sua relação com a situação concreta de
quem as afirma. E se os produtos ideológicos são obviamente expressos pelas bocas
ou penas singulares de indivíduos singulares, cabe, no entanto, assinalar que sua
produção efetiva já não goza, tão amplamente, da mesma evidência empírica, e que
é necessário não simplificar, a questão é considerar que, pelo menos, ela seria o
resultado de um vasto e complexo trabalho interindividual [...] cabe grifar, todavia,
que a análise de ideologias requer, desde o início, o reconhecimento de que essa
interindividualidade implica na consideração analítica de grupos e interesses sociais
coletivos, donde, portanto, na atenta consideração da "anatomia" há pouco referida.
Com isto não estamos sugerindo, nem, muito menos, uma linearidade mecânica entre
o econômico e o ideológico, mas fixando um nexo básico, sem deixar de subentender
o espaço próprio das mediações que entre ambos concretamente se desdobra
(CHASIN, 1978, p. 66-67).

Para Lukács, a abordagem de um objeto ideológico “implica na determinação de sua


gênese e de sua função social” (CHASIN, 1978, p. 62): para a compreensão de uma entidade

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ideológica precisa-se analisar “os textos que a explicitam com a investigação de sua gênese
histórica e com a da função social que desempenha” (CHASIN, 1978, p. 78).

Em outros termos, a formulação sintética de que partimos (...) implica reconhecer


que o tratamento analítico de uma questão ideológica qualquer (como qualquer outro
fenômeno sócio-histórico) só pode ser dirimido se nos situarmos no terreno das
relações entre o todo e as partes, na imprescindibilidade de relacionar a ideologia
(parte) ao todo da existência social (CHASIN, 1978, p. 63).

A totalidade na concepção de Lukács não tem relação com configurações estáticas ou


com a junção de fragmentos recortados e posteriormente rearticulados, mas sim uma
“totalidade em processo, teleologicamente orientada” (CHASIN, 1978, p. 64). Assim, “[...] a
totalidade em processo não é um devir arbitrário, mas uma sucessão ordenada de ordenações,
de ‘equilíbrios estruturais’ regidos por leis próprias que resolvem as grandes tendências gerais
de transformação” (CHASIN, 1978, p. 65).
Para Chasin é, portanto, inquestionável a relevância conferida ao “complexo
histórico-social como determinante fundamental do pensamento” (CHASIN, 1979, p. 67).

Fica com isto superado o tipo de análise que dicotomiza a questão, colocando de um
lado as condições para o florescimento de uma ideologia, e doutro a ideologia ela
própria, o que, de algum modo, sugere sempre que cada uma delas habita um
universo fechado e que suas relações se baseiam numa reciprocidade excludente, isto
é, aparecem como se fossem externas uma à outra, da mesma forma que o ninho,
apesar de sustentar, é externo ao ovo e à ave que o ocupam (CHASIN, 1979, p. 67).

Em direção semelhante, Mészáros (1996) afirma que as ideologias conflitantes de


qualquer período histórico constituem a consciência prática necessária para as principais classes
sociais se relacionarem e se confrontarem. Desse modo, a natureza da ideologia será
determinada “pelo imperativo de se tornar praticamente consciente do conflito social
fundamental, com o propósito de resolvê-lo através da luta” (MÉSZÁROS, 1996 p. 23). Ou
seja, as diversas formas ideológicas de consciência social irão promover implicações práticas
de longo alcance em todas as variantes possíveis. Será esta orientação prática que definirá o
tipo de racionalidade apropriado para o discurso ideológico, na medida em que seus interesses
não devem se articular como proposições teóricas abstratas que não gerarão nada além de outras
proposições teóricas abstratas, mas sim “devem se articular como indicadores práticos bem
fundamentados e estímulos efetivamente mobilizadores, direcionados às ações socialmente
viáveis dos sujeitos coletivos reais” (MÉSZÁROS, 1996, p. 24).

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Mészáros (1996, p. 25) coloca duas formas possíveis de determinação das ideologias
por sua época: a primeira seria na medida em que o impulso conflitante das diversas formas de
“consciência social prática” constituem - na sociedade divida em classes - a característica mais
relevante dessas formas de consciência prática; a segunda, na medida em que o caráter do
“conflito social fundamental”, que marca as ideologias conflitantes, surge exatamente do
caráter historicamente modificável das “práticas produtivas e distributivas da sociedade e da
necessidade correspondente de se questionar a continuidade da imposição das relações
socioeconômicas e político-culturais que, anteriormente viáveis, tornam-se cada vez menos
eficazes no decorrer do desenvolvimento histórico” (MÉSZÁROS, 1996, p. 25).
O autor húngaro aponta então três posições ideológicas fundamentalmente distintas,
sendo a primeira a que apoia a ordem estabelecida de forma acrítica, exaltando a formação do
sistema dominante vigente, independentemente de suas problemáticas e contradições; a
segunda mostra com certa competência as irracionalidades presentes na sociedade de classes,
rejeitando-as, porém sua crítica é “viciada pelas contradições de sua própria posição social”,
que se encontra submetida às determinações de classe; a terceira, por sua vez, questiona a
“viabilidade histórica da própria sociedade de classes”, tendo como objetivo a superação de
toda e qualquer forma de antagonismo de classe (MÉSZÁROS, 1996, p. 26).
A divisão acima exposta, proposta por Mészáros, se assemelha com a crítica realizada
por Lukács, em que define a “apologética”, denunciada por Marx, como problemática da
reviravolta político-ideológica do pensamento burguês após o fim do feudalismo e consequente
ascensão da burguesia ao poder, em que o materialismo e a dialética são liquidados, passando
o pensamento do “apologetas” a abandonar a crítica das contradições do desenvolvimento
social para então buscar mitigá-las, de acordo com as necessidades econômicas da burguesia
(LUKÁCS, 1968, p. 51). A semelhança é clara a com primeira posição ideológica proposta por
Mészáros, seriam os apologetas aqueles que fazem a exaltação da ordem vigente, fechando os
olhos para as contradições presentes na sociedade, operado um falseamento da realidade.
Lukács aponta, ainda, para a chamada crítica romântica do capitalismo, que se pode relacionar
com a segunda posição ideológica trazida por Mészáros. A crítica romântica possibilita o
desenvolvimento de uma apologética mais “complicada e pretensiosa”, sendo uma apologia
indireta, que faz a defesa a partir da crítica (LUKÁCS, 1968, p. 55).
Recuperando o já mencionado acima, o período de decadência do pensamento
burguês se inicia com a tomada de poder pela burguesia em meados de 1830, Lukács (1979)

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aponta para uma tendência ao agnosticismo, que renuncia a descoberta da essência verdadeira
do mundo e da realidade, alegando que nada podemos saber sobre esta. Assim, para o
agnosticismo, a preocupação deve ser com o desenvolvimento das ciências especializadas e
separadas umas das outras, sendo papel da filosofia vigiar “para que ninguém ultrapasse os
limites definidos pelas ciências e para que ninguém ouse tirar das ciências econômicas e sociais
conclusões poderiam desacreditar o regime” (LUKÁCS, 1979, p. 34).
No período imperialista, a filosofia irá apresentar uma considerável evolução, o que
não significa uma mudança na base da teoria do conhecimento, que continua a mesma, porém,
apresenta características diferenciadas como uma tendência ao objetivismo e o nascimento de
uma “pseudo objetividade”; a luta contra o formalismo na teoria do conhecimento, que vem
acompanhada de uma apologia a intuição; e a retomada do estudo das questões ideológicas.
Tais temas correspondem às necessidades particulares dessa fase específica da evolução social,
se distanciando do elogio direto da sociedade capitalista para ter como tema central a crítica da
cultura capitalista, apontando um chamado “terceiro caminho” ou “terceira via”: “ideologia
segundo a qual nem capitalismo nem socialismo correspondem às verdadeiras aspirações da
humanidade” (LUKÁCS, 1979, p. 44).
A filosofia burguesa clássica deu lugar ao nascimento e ao desenvolvimento de uma
ideologia universal e potente, colocada sob o signo do progresso. Nessa época, a filosofia
ocupava o cume das ciências humanas; era o têrmo, a base e o quadro de todo o conhecimento.
A ideologia constituía então o objeto propriamente dito da filosofia, ela própria produto
orgânico do progresso social ininterrupto, término e corolário do conjunto da atividade
científica de cada etapa da evolução social.

O período economicamente repleto de compromissos sociais desviou-se com


preguiça e covardia de toda questão ideológica, cujo estudo julgava inútil, declarando
anticientíficas as grandes realizações ideológicas do período precedente. Quanto à
“intelligentzia” do período de crise, aspira à resignação e ao reconforto que uma
ideologia nova devia fornecer-lhe (LUKÁCS, 1979, p. 43).

São sintomas da crise da filosofia a necessidade de ideologia e do reconforto, é o


momento de se comentar de forma persistente os problemas e contradições presentes no
capitalismo. Reconforto este que está ligado a uma perspectiva idealista - ahistórica e abstrata -
, em que, de forma pessimista, se encara “o destino do homem do período imperialista, como
sendo o destino do homem em geral” (LUKÁCS, 1979, p. 44). Será um reconforto fatalista.

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Para Lukács (1979, p. 45), o “terceiro caminho” está empenhado em não permitir que
a conclusão retirada da crise seja o socialismo, não deixando, portanto, de ser uma apologia ao
capitalismo, tornando-se a luta contra o socialismo a questão ideológica fundamental, afinal, é
uma luta filosófica contra o materialismo dialético. A falta de argumentos concretos para atacar
o socialismo, a filosofia burguesa passa a enfrentá-lo nas ciências naturais e sociais, ao mesmo
tempo que procura atender os desígnios da “intelligentzia” frente à crise (LUKÁCS, 1979, p.
46).
Cabe ressaltar a tendência ao escamoteamento dos princípios subjetivos ligados ao
idealismo presentes no chamado “terceiro caminho”, de forma que as questões da consciência
passam a ser apresentadas como “realidades objetivas” (LUKÁCS, 1979, p. 47). O idealismo
tende então à “produção de mitos” (LUKÁCS, 1979, p. 49), concedendo uma atribuição de
realidade às “construções puras do espírito” (LUKÁCS, 1979, p. 49). Para Lukács (1979, p.
51), a intuição será o instrumento de conhecimento deste novo objetivismo, vista de forma
independente do pensamento discursivo terá um papel central na metodologia objetiva da
filosofia imperialista. Utilizando-se da intuição, a filosofia imperialista cria uma ideologia anti-
científica, que busca “destronar a razão” (LUKÁCS, 1979, p. 54). Na análise da crise do
imperialismo, a filosofia burguesa precisa questionar verdade que até então pareciam ser
eternas, devendo então, reconhecer sua incapacidade de dar respostas reais ao problema posto.
Porém, tal reconhecimento levaria à constatação da própria falência da filosofia burguesa, coisa
que não se pode permitir à burguesia, porque seria o mesmo que indicar como saída o
socialismo. A solução encontrada é a declaração da falência da própria razão, sustentando que
não existe razão verdadeira, apregoando que “a verdadeira realidade, a realidade superior, é
irracional e supra-racional” (LUKÁCS, 1979, p. 56). O irracionalismo se funda então como a
ideologia do período de crise, tendo como característica essencial a transformação da condição
do ser humano dentro no imperialismo na “condição humana geral e universal” (LUKÁCS,
1979, p. 57). O racional e o social serão colocados como inimigos da personalidade humana,
que será patenteada como naturalmente irracional. Resta à crítica uma saída romântica frente
aos problemas postos, assumindo formas regressivas, conservadoras, abertamente autoritárias,
etc.
Retomando Mészáros e suas considerações de o que se deve esperar da ideologia
dominante não é uma reflexão verídica do mundo social e da representação dos agentes sociais
e de seus conflitos, mas sim o fornecimento de uma única explicação plausível, que possibilite

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a projeção da “estabilidade econômica vigente” (MÉSZÁROS, 1996, p. 28). A ideologia


dominante tem como tendência “produzir uma estrutura categorial que atenua os conflitos
vigentes e eternize os parâmetros estruturais do mundo social estabelecido” (MÉSZÁROS,
1996, p. 28).
Assim, “o relacionamento entre o complexo historicamente específico das
necessidades sociais e as variadas manifestações cultural-ideológicas que emergem de sua
base” possui determinações dialético-recíprocas, de modo que “as práticas cultural-ideológicas
concorrentes da época” atuam de forma ativa na articulação das necessidades sociais. Dessa
forma, tais práticas ideológicas intervêm “no decorrer dos desenvolvimentos históricos”
(MÉSZÁROS, 1996, p. 72), seja de forma crítica ou apologética, contribuindo para a realização
de determinadas potencialidades em detrimento de outras.
É o caso do direito e sua funcionalidade. Cabe, então, determinar sua especificidade
como ideologia.

2. A ESPECIFICIDADE DO DIREITO COMO IDEOLOGIA

A questão da ideologia vem sendo estudada no decorrer da história através de um


prisma gnosiológico, estabelecendo um vínculo imediato entre ideologia e a problemática do
conhecimento. Mesmo no marxismo, a perspectiva geral tende a se dar através daquele prisma,
imputando uma compreensão da ideologia enquanto sinônimo de falsa consciência
equivocadamente a Marx (VAISMAN, 2010, p. 42). Essa compreensão tem como
consequência direta o estabelecimento de uma oposição entre ideologia e ciência, de modo que
algo científico não pode ser ideológico, e vice-versa.
A tendência de se estudar o fenômeno ideológico pela perspectiva gnosiológica
corresponde a um fenômeno que se desenrolou durante muito tempo na filosofia, tendo o
pensamento filosófico sido dominado pela teoria do conhecimento em detrimento do interesse
pela questão ontológica. No entanto, segue-se aqui o entendimento de Lukács, conforme o qual
seria impossível negar a questão do ser, a ontologia, visto que esta se encontra intimamente
ligada à vida e à práxis (VAISMAN, 2010, p. 45). Dessa maneira, a ontologia é incontornável
na trilha do marxismo porque trata de um desafio histórico-concreto: o real existe, sua
existência e sua natureza são passíveis de reprodução pela consciência, e na medida em que o
real pode ser capturado, ele também pode ser modificado pela ação cientificamente instruída,

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ideológica e conscientemente conduzida pelos homens. Lukács, portanto, refuta o critério


gnosiológico para a análise do fenômeno ideológico, buscando a conexão ontológica desse
fenômeno com o ser social.
No interior da temática lukácsiana, a condição de produto de falsa consciência não
identifica um pensamento como ideologia. O fato de determinado pensamento ser classificado
como verdadeiro ou falso não basta para determiná-lo como ideologia, pois essa caracterização
não está ligada à falsidade da consciência, mas sim à função que determinado pensamento
assume junto às lutas sociais. Deste modo, algo não nasce como ideologia, mas pode vir a sê-
lo quando e se desempenhar determinada função social. Está aí exposto o fundamento
ontológico-prático utilizado por Lukács para a análise do fenômeno ideológico. O autor, dessa
maneira, deixa de lado o critério científico-gnosiológico, dado que este é capaz de determinar
apenas se um produto espiritual é falso ou verdadeiro, e não se ele pode ou não pode assumir
uma função social (VAISMAN, 2010, p. 51). Não obstante o acento sobre a funcionalidade,
sua apreensão depende também dos condicionantes de sua gênese por meio da qual se revela
precisamente as condições objetivas que tornam tal elemento possível de emergir na vida social
e também condicioná-la, dadas as inelimináveis reciprocidades.
Em termos de gênese, a história mostra que o surgimento da escravidão foi
responsável por instaurar a primeira divisão de classes na sociedade. Com o advento da troca
de mercadorias, o comércio e a usura, outros antagonismos de classe surgiram, e foi somente a
partir das controvérsias manifestadas nesse momento que se tornou necessário o aparecimento
de um sistema judicial conscientemente posto, não mais meramente tradicional, capaz de
regular essas atividades materiais decisivas. Com o decorrer do desenvolvimento social e a
crescente socialização do ser social, torna-se latente a necessidade de uma regulação dos
antagonismos sociais por outro meio que não a força bruta, tendo em vista que o uso puro desta
levaria à uma desagregação da sociedade. Dessa maneira, conforme Lukács (2013, p. 232), e
que dissolve a falsa oposição entre direito e violência, “deve estar em primeiro plano aquela
unidade complexa de força indisfarçada e latentemente velada, revestida da forma da lei, que
adquire seu feitio na esfera jurídica”. Por certo que o direito surgido para responder às
necessidades que se consolidaram na sociedade de classes nascente era essencialmente um
direito de classe, correspondente aos interesses e ao poder da classe dominante1.

1 Isto não elimina certa maleabilidade nesse terreno para acomodar tensões, a depender de contextos históricos contingentes. O
Livro dos Mortos do antigo Egito registra que, apelando para o aspecto religioso, sofreria os infortúnios após a morte aquele
senhor que maltratasse seus escravos. A zona cinzenta que acentua certo aspecto protetivo cobre uma dimensão no limite em que

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Posteriormente, essa necessidade de regulação de controvérsias tomou uma forma


própria na divisão social do trabalho, estratificando-se num segmento particular: o dos juristas,
que se tornaram então os “especialistas” na regulação desses conflitos (LUKÁCS, 2013, p.
247). Ocorre que é justamente nesse momento de divisão social do trabalho que as ideologias
se especificam, num movimento que autonomiza uma atividade peculiar, exigida pela produção
material para sua própria efetivação. Por conseguinte, a existência de profissionais da atividade
jurídica indica um desenvolvimento e uma maior socialização da sociedade e da produção, pois
é necessária, dada a contradição, certa estruturação e organização social para que uma
determinada quantidade de pessoas possa tomar parte nesse tipo de função, sem participar da
produção material de essência (VAISMAN, 2010, p 51). Essa diferenciação acarreta também
a criação simultânea de uma doutrina jurídica, em conjunto com a criação desse estrato
profissional dos juristas, completando desse modo, o ser do direito como ideologia.
Para melhor explicar, toma-se uma exemplificação: a transição do sistema feudal para
o capitalista e a maior socialização da sociedade daí decorrente tornou necessária a
implementação de uma regulação jurídica universal de todas as atividades sociais em razão da
necessidade de resolver conflitos que passaram a existir em decorrência desse novo modo de
produção e do antagonismo de classes recém surgido, transformando em questão crucial da
vida social a superioridade e a autoridade da regulação central. Conforme a sociedade avançava
e a divisão social do trabalho se complexificava, a esfera jurídica também ia se especificando
de forma gradativa, até chegar ao ponto que precisou de profissionais e uma técnica particulares
para funcionar. É somente neste ponto que Lukács considera o direito enquanto uma ideologia
específica e em heterogeneidade diante de outras mediações, pois sua manutenção, reprodução
e transformação passam a depender da atividade desses especialistas.
A esfera jurídica alcança, então, uma amplitude cada vez maior na realidade, o que,
por sua vez, desencadeia um desconhecimento também maior da essência ontológica do direito,
além de uma extrapolação da mistificação desse campo (LUKÁCS, 2013). À medida em que
a esfera jurídica fecha-se mais em razão dessa especialização, um autoenaltecimento e uma

não ameace seriamente a própria relação social posta. Em verdade, a preservação dessa relação depende da reprodução física do
próprio escravo como condição básica dessa relação. O caso da Ática antiga é também ilustrativo no episódio das resoluções de
Sólon com respeito à nova redistribuição das terras entre gregos ricos e pobres. Na iminência de uma guerra civil, decide, como
legislador, pela nova partição apenas até certo limite, arrefecendo o conflito então posto. Podemos multiplicar esses exemplos até
o contemporâneo, como as leis fabris na Inglaterra ou as leis trabalhistas no Brasil da primeira metade do século XX. O importante
é não descartar o terreno jurídico por ser expressão da dominação de classes e, igualmente importante, reconhecer que esta é sua
determinação material irrevogável. É a existência das classes que torna funcional o terreno jurídico, das formas arcaicas e antigas,
às modernas.

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suposta autonomia do fenômeno e da própria atividade do jurista lhe são garantidas, afastando-
a da realidade econômica, e “mascarando” a influência dessa realidade no direito. Nesse
sentido, o conteúdo e a forma do direito passam a assumir uma “roupagem fetichista de forças
soberanas da humanidade” (VAISMAN, 2010, p. 52).
No momento em que a divisão social do trabalho delega o cuidado do âmbito jurídico
aos seus especialistas, ocorre aquilo que Lukács chama de “ideologização da ideologia”: fecha-
se o ciclo da ideologia, pois os especialistas do direito tendem a apresentar uma resistência à
visão ontológica do fenômeno ideológico, procedendo com uma espécie de “operação
escamoteadora”. Conforme Vaisman:

Nessa operação escamoteadora da esfera jurídica, é sintomático que a escamoteada


seja a dimensão ontológica do fenômeno e de sua análise. Para logo em seguida
retornar acriticamente a uma “ontologia” meramente imputada, em que a
mundaneidade real passa a “desprezível submundo da existência”, e uma pura
espiritualidade passa à condição de essência real e explicativa (VAISMAN, 2010, p.
52).

Com o surgimento do Estado de direito no século XIX, os elementos manipuladores


do positivismo adquiriram maior importância, transformado o direito em uma esfera da vida
social na qual as chances de êxito e os riscos de danos deveriam ser calculados de modo
semelhante ao que se fazia no âmbito da economia (LUKÁCS, 2013). Há então uma
“prioridade ontológica do econômico” na realidade, e não do direito. De acordo com Marx, o
direito seria apenas o “reconhecimento oficial do fato” (MARX, 1985, p. 86), configurando um
espelhamento que não é consciente e tampouco adequado do meio econômico, porque o
reconhecimento de caráter oficial, ou seja, estatal, do fato permite que uma determinada classe
se apodere desse poder de determinação ainda que guarde potencialmente possibilidades de
reconhecimento de demandas fáticas das classes dominadas. Afirma Lukács (2013, p. 240) que
“a constatação dos fatos e seu ordenamento dentro de um sistema não estão ancorados na
realidade social mesma, mas apenas na vontade da respectiva classe dominante de ordenar a
práxis social em conformidade com suas intenções”, mas não em completa ausência de
resistências e disputas.
Logo, o direito positivo ganhou bastante importância em sentido prático, cuja gênese
e condições sociais de desenvolvimento apareceram de modo cada vez mais indiferente em
termos teóricos. O direito assume, portanto, a forma de um sistema cada vez mais lógico e
coeso, não só na sua práxis, mas também na sua teoria, podendo ser manejado unicamente

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conforme uma certa “lógica jurídica” autossuficiente, que necessita cada vez mais de
“especialistas” capazes para tanto. No entanto, para que um sistema jurídico possa ser real, não
basta que seja teórico, mas deve, antes de tudo, ser prático. Assim, o caráter do direito é duplo:
ao mesmo tempo em que ele deve expor a factualidade do modo mais exato possível em termos
de definição ideal, essas constatações também devem compor um sistema formal, coeso e livre
de contradições. Com efeito, o sistema jurídico não espelha a realidade, mas a manipula em
busca dessa aparência de coesão. Sendo assim, o funcionamento do direito positivo se dá
através da manipulação das contradições existentes na realidade, de modo que através disso
surja não só um sistema unitário e coeso, mas um sistema capaz de regular na prática as
contradições sociais, capaz de se mover entre os polos antinômicos elasticamente, com o intuito
de implementar nos casos concretos as decisões que não ameaçam seriamente a preservação
das relações postas. Destarte, para que a manipulação aconteça, faz-se necessária a existência
de uma técnica bem própria, o que explica o fato de que o complexo jurídico só é capaz de se
reproduzir se houver em conjunto uma reprodução de seus especialistas (LUKÁCS, 2013).
Importa ressaltar que a especificação da função ideológica do direito não o impede de
se inter-relacionar e se alimentar de outros conteúdos. Como dito acima, o direito se configura
como um corpo aparentemente coeso, coerente e isento de contradições, e como instrumento
de resolução de conflitos sociais que reflete o estágio desse conflito e que segue precisamente
uma direção de apaziguamento tensionado. Ele reflete o meio econômico de forma aproximada,
mas não mecânica, até porque do contrário sua efetividade estaria comprometida. O direito,
portanto, deve pretender o máximo de universalidade, objetividade e autonomia possíveis para
cumprir sua função de regulação, e é aí que a análise do direito enquanto ideologia deve ser
feita. Não importa, portanto, se o direito é falso, pois o que o determina enquanto ideologia é
se ele cumpre o seu papel como forma de regulação e ordenação da vida econômica de forma
efetiva.
Dado o duplo caráter do direito como ideologia, ele se diferencia da filosofia, por
exemplo, na medida em que a filosofia constitui, junto com a arte, aquilo que Lukács chamou
de “ideologia pura”. Formas ideológicas puras são aquelas que não estão diretamente
vinculadas à ação prática humana, objetivando cultivar o gênero humano (VAISMAN, 2010,
p. 57), diferenciando-se, portanto, do direito e da política, formas ideológicas que visam atuar
diretamente na práxis humana. A filosofia configura uma forma ideológica particular, cuja
particularidade reside no fato de objetivar as questões últimas da existência e do conhecimento

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humano, “isto é, a concepção do próprio mundo sob suas formas abstratas e gerais” (LUKÁCS,
1967, p. 30).
Isso, entretanto, não significa que a filosofia não pode interferir no rumo de
desenvolvimento social, e pelo contrário, ela vai interferir, mas apenas que essa não é sua
determinação precípua. A filosofia caracteriza-se por ser uma área do conhecimento interessada
pelo destino do homem, por sua essência e as questões relativas ao gênero humano, de modo
que não se esgota em si mesma. É uma forma pura porque suas questões ultrapassam a
imediaticidade do cotidiano, como o direito, e também porque não dispõe de meios próprios
para ser praticada. Foge da especificidade da filosofia uma intervenção direta e imediata sobre
a realidade, contudo isso não impede que a mesma possa vir a exercer uma influência ideológica
na realidade dependendo da circunstância. Como essa esfera do conhecimento não possui os
meios necessários para realizar essa interferência diretamente, essa influência só se concretizará
de forma efetiva quando houver possibilidades históricas reais para tal (VAISMAN, 2010, p.
57).
Esse contraste com as formas puras permite uma melhor captura do caráter mais
imediato do direito como mediação no interior do conflito social. Mediante os juristas ideólogos
e os instrumentos práticos do dispositivo legal, desponta-se uma ideologia que nasce
diretamente do conflito e deve necessariamente retornar a ele em seu cotidiano, refletindo o
próprio estágio do conflito e produzindo efeitos diversos e contingentes na dinâmica dos
processos históricos.

3. CRÍTICA ROMÂNTICA NO DIREITO SOCIAL DO CAPITALISMO


HIPERTARDIO

Como visto, em síntese, o estudo das formas ideológicas exige o mesmo rigor que
qualquer análise que se lance sobre o plano concreto. Mesmo porque está pressuposto a
compreensão deste plano concreto para a devida apreensão. No caso, considerando a
ideologização da ideologia como atributo dos juristas, o exercício sucinto aqui no presente
tópico tem natureza meramente demonstrativa e não conclusiva. Para isso, vamos considerar
aspectos acerca do direito social que Cesarino Júnior esboçou sob as confluências dos anos de
1930 e 1940 no Brasil (Direito Corporativo e Direito do Trabalho, de 1940, e Direito Social
Brasileiro, do mesmo ano, atualizado várias vezes até os anos de 1950).

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Procura-se apontar as marcas da crítica romântica do capitalismo nas condições do


capitalismo no Brasil do período como sustentáculo do chamado direito corporativo, não se
tratando de um espelhamento mecânico do fascismo, mas sim de uma variante do ideário
nostálgico do corporativismo medieval de talhe católico e industrialmente orientado para as
condições nacionais de então que, em insuficiência material, recorre compreensivelmente ao
Estado como agente modernizante. Aliás, solução compartilhada em grande medida pelas vias
mais tardias de objetivação do capitalismo, como a própria Alemanha, remontando aos
processos turbulentos do século XIX, não obstante a particularidade do processo brasileiro.
Enquanto a via prussiana teve por anterioridade a existência do feudalismo, a via colonial
marcadamente brasileira é historicamente delimitada no sistema colonial escravista já integrado
de modo subordinado aos processos dinâmicos principalmente europeus. Essa diferença separa
claramente a particularidade brasileira, cuja objetivação capitalista se dá de maneira hipertardia
se comparada ao modo tardio prussiano e clássico inglês e francês. Certos aspectos, no entanto,
igualam o modo tardio e hipertardio: processo de modernização não revolucionário, dado por
via de conciliação entre as classes (CHASIN, 1978).
Para efeito de recuperação, basta dizer que a crítica romântica do capitalismo que se
desenvolve no entre guerras parte do reconhecimento de certas modalidades de contradições da
sociabilidade, mas nega a alternativa prática de superação do próprio capitalismo,
estabelecendo uma espécie de resignação a um capitalismo modificado em termos de limitação
do liberalismo. Diante da inexistência de uma real “terceira via”, a crítica romântica é uma
apologia indireta ao capitalismo. No caso brasileiro, de condições débeis de objetivação do
capitalismo, essa crítica romântica assume formas diferenciadas. É o caso, por exemplo, do
integralismo de Plínio Salgado. Tratou-se de uma “proposta ruralista, tecida sobre as mal
traçadas linhas de uma crítica romântica ao capitalismo” (CHASIN, 1978, p. 618) que, em sua
especificidade,

[...] não foi certamente uma cópia [do fascismo]; correspondendo às condições
histórico-sociais, foi um movimento reacionário, conciliatório, norteado por valores
e interesses da pequena-burguesia parasitária do capitalismo; inscrito num panorama
de capitalismo atrasado, o presente e sobretudo o futuro lhe causavam medo, e ele
incorporou um máximo de tradição ruralista e patriótica, refugando a dinâmica do
mundo industrial; para fazer isso, absorveu elementos essenciais do fascismo, que o
inspirou em boa parte, desenvolvendo, todavia, traços próprios que permitem
considerá-lo uma variante especificamente brasileira; se não foi um fascismo foi
certamente um semi-fascismo verde-amarelo, que não chegou talvez a definir toda a
sua fisionomia nos cincos anos que durou oficialmente (CANDIDO, 1978, p. 20).

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Esse integralismo coexistiu com outras variantes conciliatórias, refletindo também no


pensamento jurídico do período, porém, influenciado pela crítica romântica ao capitalismo
posicionada ao lado das classes industrialistas.
Nessa direção, é importante considerar que o contexto nacional refletia o período de
uma transição problemática em que as forças sociais de então confrontavam-se de modo mais
ou menos velado. Enquanto o território político era o palco de uma conciliação mais ou menos
turbulenta entre os interesses agroexportadores e urbano-industriais ascendentes, o território
dos direitos sociais prevaleceu como mediação para acomodação dos interesses populares
impossibilitados de se colocar no plano diretamente político (cf. PAÇO CUNHA, 2017). Nesse
particular, o direito social expressava o conflito crescente entre capital e trabalho no meio
urbano. Não por outro motivo, os industrialistas tinham mais do que razões para participar
ativamente do processo que modelaria os direitos sociais, particularmente a legislação
trabalhista. Uma parte considerável dessa burguesia era não apenas favorável à legislação como
tinha, e isso é mais importante, interesse em determinar os limites de tal legislação (cf. GOMES,
1979). Pupo Nogueira (1935), Jorge Street (1980) e Roberto Simonsen (1973) talvez sejam
emblemáticos a esse respeito. Seus textos se direcionavam francamente em apoio a tais direitos,
desde que sem exageros e que não fossem meras cópias do que se passava na Europa -
temerosos que seguiam com relação a uma potencial radicalização. E influíram como puderam
para que a legislação promovesse determinados direitos sem que houvesse prejuízo ao processo
de acumulação de capitais em curso. É a mais fina expressão da consciência prática dos homens
de negócio, ou melhor, da vanguarda da classe do capital.
Nesse contexto de objetivação do capitalismo industrial no Brasil, um processo de
acomodação entre o velho e o novo, estabelece-se as bases do pensamento jurídico do período
na exemplaridade de Cesarino Júnior, articulado ao empresariado industrial. Como dito antes,
não é uma mera derivação da estrutura econômica, mas a determinação do pensamento pelo ser
social e que envolve, naturalmente, inúmeros fatores que estão em reciprocidade num conjunto
articulado em que o fator econômico desempenha o papel preponderante, a raiz da problemática
posta.
A gênese do direito social, tal como Cesarino Júnior foi capaz de apreender, é o
conflito social e a ele deve retornar para, como ideologia, atuar em suas direções. Explicou o
jurista que como o “Direito Social se criou para resolver as questões surgidas com o
aparecimento da grande indústria, entre patrões e operários, teve ele, a princípio, os nomes de

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Direito Industrial e de Direito Operário, com as correspondentes finalidade de regular as


relações oriundas desses problemas” (1957, p. 27). Não obstante o fato de capturar o problema
da gênese, não era dada a possibilidade de determinar a real funcionalidade do direito e jamais
pôde abandonar sua posição social que, muito próxima de homens como Roberto Simonsen,
cobrava resposta prática na direção da industrialização. Este último aspecto não é, em absoluto,
desimportante. A filiação a determinados interesses sociais postos no contexto conflituoso
implica uma programática manifesta através da pena do jurista. Embora o próprio autor não
estivesse em condições de apreender, a “situação econômica geral” atuou sobre a “mentalidade
dos legisladores”2 (1987, p. 91).
Mas a força do período não se direcionava tão somente pelo aspecto industrializante.
Refletia-se na manifestação de grandes questões da época. Os conflitos sociais no exterior, a
revolução russa de 1917, as críticas de diferentes tipos ao capitalismo rodavam o mundo:

O período entre as duas guerras foi dominado pela doutrina corporativista na área
católica. Várias idéias estavam confluindo numa fórmula: a crise da representação
liberal, um certo esvaziamento dos parlamentos, a necessidade de superar o conflito
capitalismo vs. comunismo, a nostalgia das corporações medievais, o
reconhecimento de que nós entrávamos numa época em que a sociedade seria
organizada em corporações (em sentido lato) (TORRES apud CHASIN, 1978, 327).

É nesse contexto que se demarca o pensamento do jurista em tela, num esforço


constante de situar a explicação para o que estava em processo no país particularmente no
terreno jurídico. E fica patente em seus textos o registro de uma crítica romântica ao
capitalismo. Pois o direito social é “essencialmente anti-individualista” (CESARINO JÚNIOR,
1957, p. 23), explicou o autor. Em discussão acerca da nomenclatura, grafou que “a lembrança
da sua origem na solução da ‘questão social’, nas dúvidas entre as ‘classes sociais’, ao mesmo
tempo que a extensão do campo de aplicação das novas normas jurídicas, inspiradas aliás, em
conceitos filosóficos opostos ao individualismo, não deixava de influir para que se desse, ao
novo direito, também a denominação de Direito ou legislação Social” (1957, p. 27).

2 Como dito antes, a especialização heterogênea do terreno do direito o afasta da realidade econômica e produz o efeito de obliterar

a influência dessa mesma realidade sobre aquele terreno. É curioso como Cesarino Júnior intuía essa reciprocidade sem poder dar
um acabamento à questão: “Embora talvez não mais importante que as da Economia no Direito Social, são pelo menos mais
palpáveis as influências do Direito Social na Economia. É que as leis sociais têm a suas repercussões na Economia mais facilmente
observáveis, através do estudo da vida das empresas, que o influxo da situação econômica geral, mais ou menos vago, sobre a
mentalidade dos legisladores” (1957, p. 91). O jurista não estava em condições objetivas que lhe permitissem alguma isenção
subjetiva necessária à apreensão do “influxo”. E fica patente que tomava o próprio terreno do direito como o ponto de arranque,
ao invés da própria economia. Na verdade, tendo o direito gênese na materialidade, a ela volta por “influxo”. A inversão
determinativa não é exclusividade do idealismo objetivo do século XIX. A crítica romântica herda e desenvolve de modos
irracionalistas esta inversão.

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A crítica romântica aqui não se completa pela constatação do aspecto individualista


do capitalismo - o que é tautológico -, mas pela resposta de uma propositura que nega
peremptoriamente a alternativa prática disponível à época. Quer dizer, a recusa do caminho
socialista revolucionário, de um lado, e a constatação dos problemas intrínsecos do capitalismo,
de outro, assinalam a busca de uma via que não existia. Após dar mostras da recorrente
ignorância acerca do marxismo, condição compartilhada, aliás, com muitos de seus
contemporâneos e sucedâneos, sustentou que o “coletivismo é, relativamente, uma escola
moderna (…). É uma doutrina nascida no século XIX, tendo sido CARLOS MARX, sobretudo
na sua obra ‘O Capital’, quem a sistematizou” (1957, p. 65). Não apenas não há sistematização
em O capital sobre assunto e, se houvesse, não seria sobre coletivismo. É a vulgata que operava
em todos os níveis e servia à contrapropaganda da revolução russa (cuja pobreza material já
tinha se revelado cabalmente nos anos de 1930, isto é, o retrato de uma revolução que não que
tinha condições objetivas de ocorrer, mas não poderia deixar de ser realizada). O que Cesarino
denomina de “coletivismo integral de MARX” (1957, p. 67) não passa da posição
ideologicamente instruída a encontrar uma posição intermediária e inexistente entre capitalismo
e socialismo. Não há dúvidas com respeito a isso, pois, contrariando todos os nexos concretos
que apontam, com o mais alto rigor, para o trabalho como o fundamento da produção social,
sustentou, sem provas aliás, que “sem a propriedade privada, não haveria riqueza a distribuir,
pois, a mola da produção é o interesse privado” (1957, p. 69). Vê-se que a crítica romântica que
se esboça é igualmente uma apologia indireta do capitalismo. E a propositura que Cesarino
Júnior adjunta é para que se confirme o “espírito da legislação social do trabalho,
principalmente no Brasil”, orientada “no sentido da solidariedade social, do equilíbrio de
interesses, da justiça social e da dignidade do homem” (1957, p. 101).
Todos esses apetrechos expressam o empuxo de garantir que os fundamentos da
ordem do capital permaneçam intocados. Não é algo que se oculte a todo instante, mas também
não é parte do argumento geral sempre reposto. Todavia, ao classificar as leis sociais quanto
aos efeitos sobre a produção, explicou que não tinha “em vista encarar as leis sociais mais do
ponto de vista de sua elevada finalidade, pois agora o aspecto em que nos colocamos é tão
somente o de sua influência no mecanismo da produção. (...) qualquer conclusão a respeito
deve ter por escopo, para ser a um tempo útil e justa, propor, nunca qualquer medida prejudicial
a essas finalidades, mas tão somente as alterações aconselháveis no seu modus faciendi, isto é,
modificações de forma e não de conteúdo”. É uma expressão de caráter positivista, do cálculo

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entre riscos de danos e chances de êxitos. Mais importante ainda, é que o jurista ecoava não
apenas a posição da classe industrial brasileira em sua vigorosa iniciativa de estabelecer limites
aos inevitáveis direitos sociais naquele período, em fazer a legislação refletir as condições de
realização dos interesses do capital em condições débeis de desenvolvimento. Ecoava
igualmente o contumaz argumento desta classe de que os legisladores são estranhos em matéria
econômica. Em linguagem condizente com o que está em jogo, escreveu que é “óbvio que este
estudo lucraria muito mais em ser feito por um industrial e não por um professor universitário”,
explicou o jurista, fazendo reverência a Roberto Simonsen de passagem. “E se o fizemos -
queremos repeti-lo - é unicamente com o intuito de sugerir a sua realização pelos competentes”
(CESARINO JÚNIOR, 1957, p. 93). Sua vinculação ao projeto industrializante é bastante
evidente, diferenciando-o da variante ruralista que marcou, como visto, o integralismo de Plínio
Salgado.
Essas questões são adensadas pela análise de material da mesma época e terminam
por enfatizar ainda mais o aspecto conciliatório ao dar preponderância ao Estado. O jurista
responde, por encomenda do então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo, o recorrente Roberto Simonsen, sobre as diferenças entre a organização do Estado
Brasileiro, determinada pela Constituição de 1937 e a organização do Estado Corporativo
Italiano3. Concluindo pelas diferenças mais do que pelas igualdades, ressalta que na “esfera
econômica, em matéria de organização do Estado, há que acentuar a preocupação política
dominando a economia italiana e o fato da Constituição de 1937 traçar somente as bases de um
corporativismo de Estado, já plenamente atuado no Estado Fascista Italiano” (1940, p. 9).
Segue, no geral e no específico, na letra e no espírito, a quem considera ser a síntese
maior do corporativismo. Daí a importância de laçar algumas indicações, para além das que
Cesarino reproduziu diretamente. Brèthe de la Gressaye (1938, p. 117) sugere que o “puro
regime individualista, como o regime corporativo integral, são simplistas e mutilam o real”, já
de partida aqui sinalizando a posição entre os caminhos abertos na história. Enfaticamente
explica que a “modalidade atual” manifesta na propositura do corporativismo “é em reação
contra o individualismo e o liberalismo absolutos da Revolução francesa” (1938, p. 110). A
nostalgia do medievo sobressalta-se, no entanto, demandante do Estado em sua configuração
mais ou menos atualizada, pois a “corporação é a liberdade para a profissão de se governar ela

3
Mais tarde escreveria: “No capítulo sobre a ordem econômica, vê-se muito forte a influência da Carta do Trabalho italiana”
(Cesarino Júnior, 1957, p. 124). Completando em nota que “Não significa isto, porém, a inexistência de diferenças entre a nossa
legislação social e a italiana. Há diferenças fundamentais” (1957, p. 124, nota 166).

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mesma sob o controle do Estado, guardião do bem comum”. Aludindo a aspectos ecoados
inclusive por Francisco Campos (cf. CESARINO JÚNIOR, 1940, p. 20), o jurista francês
escreve que a “corporação é a descentralização econômica, desincumbindo o Estado de uma
série de tarefas para as quais ele não se destina”. Registre-se, asseverava, “Totalmente diferente
é a corporação de tipo fascista” (Brèthe de la Gressaye, 1938, p. 113-4). Lamentava que tenha
sido sobre o fascismo que o corporativismo teria se desenvolvido, mas que seus princípios
sobreviveriam ao teste de fogo desse “totalitarismo” identificado.
Não obstante, e o que é decisivamente mais importante, é de demarcação sem disfarce
de que o “corporativismo se apresenta como uma via mediana entre o liberalismo e o
socialismo. O que é ele de fato? Uma forma de socialismo, o socialismo de Estado” (BRÈTHE
DE LA GRESSAYE, 1938, p. 114). É um ideário para o qual, não por acaso, sobretudo as
“classes sociais não constituem os corpos sociais tanto que não são organizados por uma defesa
de um interesse ou de um bem comum” (1938, p. 79). Precisamente a particularidade que
medeia o singular e o universal nas condições sociais, e que é força social significativa, é
expurgada não por outra razão senão o fato de que é precisamente o conflito das classes que faz
estremecer os pilares do altar. Como confessa o jurista francês, foi moldado à luz de uma
definição de corporação resgatada do “Compendium das Decisões da União de Friburgo (Paris,
1893), que resume o trabalho realizado de 1885 a 1891 por um grupo de católicos sociais da
França, Áustria, Itália, Suíça e Bélgica, conhecida como União Internacional de Católicos
Sociais” (1938, p. 79, nota 1). É uma crítica romântica ao capitalismo, crítica de matriz católica.
É preciso repetir que Cesarino Júnior segue na letra e no espírito esse desenho de seu
par francês. Repete, igualmente, Francisco Campos na definição, como manda o figurino
jurídico, da “organização corporativa”. É uma lógica imputada pelo intelecto à realidade, e não
o contrário, mas suficiente para denotar o caráter de sua propositura acomodada por Cesarino
Júnior. Francisco Campos, em seu exercício de “dialética”, uma dialética restrita às formas
políticas dado que o conteúdo econômico real é a todo custo protegido, escreveu que o
“liberalismo político e econômico conduz ao comunismo. O comunismo funda-se,
precisamente, na generalização à vida econômica dos princípios, das técnicas e dos processos
do liberalismo político” (CAMPOS, 1940, p. 61). Seguindo a toada já explicitada, o capitalismo
é alvo da crítica romântica estabelecida que recusa do socialismo. Daí que o “corporativismo
mata o comunismo como o liberalismo gera o comunismo. O corporativismo interrompe o
processo de decomposição do mundo capitalista previsto por Marx como resultante da anarquia

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liberal” (1940, p. 61). Assim, o “corporativismo, inimigo do comunismo e, por consequência,


do liberalismo, é a barreira que o mundo de hoje opõe à inundação moscovita” (1940, p. 62). A
terceira via, ao final, é apologia do capitalismo acomodado por uma forma política
supostamente capaz de arrefecer suas contradições mais ou menos identificadas. Em detalhes,
isto quer dizer que um modo de organização assim idealizado, nos dois sentidos, como
momento ideal e fantasia, precisa supor que o conflito entre as classes é precisamente aquilo
que deveria ser combatido, não para superá-la, por óbvio, mas para acomodá-la nos contornos
de uma variante do capitalismo. Para isso é preciso supor a altivez de um ente moral de se
colocar acima das relações entre as classes. É nesses termos que o “Estado é a justiça; as
corporações, os interesses. Nos quadros do Estado, só os interesses justos encontram proteção”
(1940, p. 62).
Do mesmo jeito, replica Manoilescu e Oliveira Vianna. Mas já temos material
suficiente para a exemplificação proposta. Procurou-se evitar a solução mais simples de igualar
o fascismo ao pensamento jurídico do período. Em síntese, o pensamento jurídico como objeto
ideológico na exemplaridade de Cesarino Júnior é determinado socialmente num período de
conturbação nacional e internacional. É uma variante da crítica romântica do capitalismo,
conciliatória, escavando uma mediania entre as alternativas historicamente postas, colocando-
se ao lado dos interesses industrialistas no entrechoque político com o capital agroexportador e
econômico-social com a classe trabalhadora. Seja por sua linha direta, seja por suas fontes
replicadas com recorrência, temia mais o presente do que o futuro posto como imagem de uma
pacificação social que atendesse ao processo de objetivação do capitalismo. Suas condições
atróficas de desenvolvimento apelam para o Estado, modificado em sua forma corporativa e
idealizado na qualidade ente moral supra classe, que servisse de alavanca necessária a tais
processos nas condições atróficas de um capitalismo hipertardio. E é por esse motivo que a
crítica ao capitalismo que dá o arranque a esse processo é, ao final, uma apologia do
capitalismo.
Nesses termos, revela-se que o fio vermelho é a crítica romântica do capitalismo que
pressupõe superá-lo sem, de fato, mudar sua essência. A ilusão do controle das contradições
por meio dessa modalidade política se desfez no tempo histórico, pois irromperam à luz do dia
nos períodos subsequentes, denotando os limites e a temporalidade de medidas desse tipo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo objetivou apresentar a pesquisa de talhe materialista dos “objetos


ideológicos”, demonstrando suas possibilidades através da análise não exaustiva do
pensamento jurídico do período crucial de formação do capitalismo no Brasil na figura de
Cesarino Júnior.
Nessa direção, o artigo apresenta contribuições em duas direções interligadas. A
primeira é no aspecto teórico-metodológico, por assim dizer, em razão da demarcação dos
nexos irrompíveis entre o pensamento jurídico e as condições materiais e, portanto, da
determinação material da gênese e da função do direito. De tal maneira, o pensamento jurídico
nunca surge autonomizado e autoexplicativo.
A segunda contribuição está na demonstração, ainda que não exaustiva, das
possibilidades de pesquisa ao inquirir o pensamento jurídico de Cesarino Júnior do período de
objetivação hipertardia do capitalismo. Revelou-se que tal pensamento esteve em ligação com
as formações ideais propaladas no período entre guerras. Viu-se que essa fase histórica é uma
continuação da decadência ideológica e do fortalecimento da crítica romântica ao capitalismo.
Não obstante tal ligação, o que explica esse pensamento é o contexto material do Brasil de
então, em meio ao conflito social posto e a inclinação industrializante em razão da filiação do
jurista em tela à classe do empresariado nacional. Nesse sentido, não se esgota o pensamento
jurídico em questão como um simples reflexo do fascismo. Há especificidades dadas pela via
particular de objetivação do capitalismo no Brasil, em meio ao conflito entre capital
agroexportador, urbano-industrial ascendente e o proletariado em progressiva constituição, de
modo que a crítica romântica ao capitalismo atende à funcionalidade de dar vazão a um direito
social orientado a influir principalmente sobre as questões postas entre capital e trabalho.
Essas contribuições apontam também para a necessidade de continuação da pesquisa,
uma vez que os achados se sustentam em poucos materiais. Seria muito importante adicionar
outros elementos de composição do pensamento jurídico do período em tela, mas também seria
proveitoso abarcar outros períodos e outros personagens igualmente indispensáveis e que
marcaram o processo histórico nacional.

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REFERÊNCIAS

BRÈTHE DE LA GRESSAYE, Jean. La corporation et l'État (histoire et doctrine). Archives de philosophie du droit
et de sociologie juridique, n. 1-2, 1938, p. 78-118. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5405
903v>. Acesso em 17 de setembro de 2017.

CAMPOS, Francisco. O Estado nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.

CANDIDO, Antonio. Prefácio. In: Chasin, José. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Ciências Humanas,
1978.

CESARINO JÚNIOR, A.F. Direito corporativo e direito do trabalho. 2 vols. São Paulo: Martins, 1940.

______. Direito social brasileiro. 2 vols. São Paulo: Freitas Bastos, 1957.

CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.

GOMES, Angela M. de. C. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio de Janeiro:
Campos, 1979.

LUKÁCS, G. Marx e o problema da decadência ideológica. In: Lukács, G. Marxismo e teoria da literatura. São
Paulo: Civilização Brasileira, 1968.

______. Existencialismo ou marxismo? São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

______. Para uma ontologia do ser social. v. 1. São Paulo: Boitempo, 2012.

______. Para uma ontologia do ser social. v. 2. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

______. O Capital, Livro I, Coleção Os Economistas, vol. I, São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.

PAÇO CUNHA, Elcemir. A função do direito na via colonial. Marx e os Marxismos: Niterói, 2017.

PUPO NOGUEIRA, Otávio. A indústria em face das leis do trabalho. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas,
1935.

SIMONSEN, Roberto. Evolução industrial do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora Nacional, 1973.

STREET, Jorge. Ideias sociais de Jorge Street. Brasília: Senado Federal, 1980.

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UMA REFLEXÃO SOBRE AS CATEGORIAS:
CAMPESINATO E AGRICULTURA FAMILIAR
COMO PROCESSO DE LUTA

SOARES, Mara Magda


Estudante de Especialização em Filosofia e Teoria do Direito
RIBEIRO, Ana Maria Motta
Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito
SOUZA, Maria José Andrade de
Estudante de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito

RESUMO

Em homenagem aos “Cem anos da Revolução Russa", esse trabalho propõem uma reflexão histórica
sobre o “Relato de pesquisa do retrato da repressão política no campo: Brasil 1962-1985 - camponeses
torturados, mortos e desaparecidos”. Qual foi o legado dos camponeses em 1917, quais foram as
transformações sociais e políticas naquela época e como essa revolução reverberou na
contemporaneidade. Uma análise de pesquisadores críticos que revelam através de entrevistas, memórias
e uma vasta pesquisa bibliográfica, quais foram as perseguições camponesas no Brasil. Uma releitura da
construção de uma luta emancipatória campesina, suas contradições e o desmantelamento das relações
sociais. Pretende-se também analisar a desconstrução do conceito camponês em outra terminologia - os
agricultores familiares.

Palavras-Chave. Revolução Russa. Camponeses. Agricultores Familiares.

ABSTRACT

In honor of "one hundred years of the Russian Revolution", this paper proposes a historical reflection
on the "research report on the portrait of political repression in the countryside: 1962-1985 Brazil-
peasants tortured, killed and missing". What was the legacy of the peasantry in 1917, which were the
socio-political transformations of that epoch and how the revolution reverberated in contemporary
times. Also approaches an analysis of critical researchers reveal through interviews, memoirs and a
wide bibliographical research; how were the peasant chases in Brazil. We have here the construction of
retelling a peasant emancipatory struggle, its contradictions and rupture of social relations. Lastly is
intend to analyze a deconstruction of the concept peasant in another terminology- family farmers.

Keywords. Russian Revolution. Peasant. Family Farmers.

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INTRODUÇÃO

Neste ano homenageamos os “100 anos da Revolução Russa” seu legado, e quais
foram as transformações sociais, políticas, históricas e culturais conquistadas ao longo desse
século. Este trabalho propõe uma releitura de um “Relato de pesquisa do retrato da repressão
política no campo: Brasil 1962-1985 - camponeses torturados, mortos e desaparecidos”. Quais
foram as influências desse movimento revolucionário em 1917 e nos tempos atuais. Trata-se
de um recorte da opressão, resistência e luta dos camponeses na Rússia naquele ano e o seu
alcance nas décadas de 60 a 80 no Brasil.
Para compreender melhor as mudanças e as transições neste período, foram utilizadas
várias fontes de informações:

Em Minas Gerais, existe um variado registro bibliográfico disponibilizado pelos


núcleos do Projeto República: Núcleo de Pesquisa, Documentação e Memória do
Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, sob
coordenação da professora Heloísa Starling, que desenvolveu em parceria com o
NEAD o Projeto Sentimento de Reforma Agrária, Sentimento de República. Além
dos dados e documentos históricos em outros arquivos e centros de memória,
visitando a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; o Programa de História Oral do
CPDOC Fundação Getúlio Vargas; o Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp (AEL)
e o Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem). Privilegiando a procura
por relatos fornecidos pelos próprios trabalhadores e seus líderes, com entrevistas
notáveis, como a concedida por Francisco Julião à socióloga Aspásia Camargo, em
1977, no México, disponível no CPDOC-FGV. Na Biblioteca Nacional, tivemos
acesso a edições da revista O Cruzeiro e dos periódicos Movimento e Terra Livre
(CARNEIRO, 2010, p.15).

Os camponeses com suas especificidades e tradições, possuem um traço histórico


diverso, complexo e resistente que dissipam de qualquer suposição que possamos ter de suas
ações. Eles revelam uma extraordinária natureza criativa e transformadora nesta Revolução
Russa de 1917 que marcou a história do mundo (BADCOCK, 2017).
Nessa proposta de estudo, pretende-se discutir quais são as controvérsias conceituais,
a motivação política e social da mudança dessas terminologias: camponeses e agricultores
familiares.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1. PERCURSO HISTÓRICO DE UMA CLASSE

Em 1859, na confecção de sua obra, Karl Marx descreve como foi construído o
processo de produção do capital (a acumulação para o capitalismo) e a expropriação que levou
os camponeses, ao desmantelamento de suas relações sociais, levando-os a um quadro de
miséria, delineando a construção de um novo sistema de exploração da mais valia e
transformando em capital. Nesse percurso, houveram resistências, conflitos e subordinação dos
camponeses:

Assim, o movimento histórico, que transforma os produtores em trabalhadores


assalariados, aparece, por um lado, como sua libertação da servidão e da coação
corporativa; e esse aspecto é o único que existe para nossos escribas burgueses da
História. Por outro lado, porém, esses recém-libertados só se tornam vendedores de
si mesmos depois que todos os seus meios de produção e todas as garantias de sua
existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais, lhes foram roubados. E a
história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de
sangue e fogo (MARX, 1859, p. 341).

O preço pela luta contra a opressão e expulsão de suas terras significou a perda de
suas próprias identidades, quando muitas vezes eram levados à clandestinidade e á miséria na
cidade maior, longe de seus familiares, forçados a romperem seus vínculos mais essenciais. A
outros, o terror do passado deixou derradeiras marcas emocionais, que não esmaecem nem se
apagam (CARNEIRO, 2010, p.20).

Os camponeses foram atores políticos decisivos em 1917. Definiram as respostas dos


políticos para os desafios nacionais; eles produziram, controlaram e ditaram o
suprimento de alimentos. Armados e fardados, os camponeses serviram como
soldados, fazendo parte do poder político e rompendo com ele e, como a maioria dos
residentes urbanos da Rússia, eles tiveram papéis centrais nas revoltas urbanas [...].
No entanto, quando falamos de revoluções camponesas, normalmente nos referimos
às batalhas rurais pelo uso e propriedade da terra (BADCOCK, 2017).

Assim, o campesinato ao resistir passou a representar historicamente uma importante


forma de organização social para o desenvolvimento humano em diferentes escalas
geográficas. Nesse alinhamento, na contemporaneidade, podemos destacar a retomada do uso
da categoria “camponês” na América latina como uma forma de representação politizada de
ações de diferentes segmentos de trabalhadores do campo e, no Brasil, desde as Ligas, passando
por associações que reagiram de modo organizado contra o Latifúndio e que hoje se batem

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contra a pressão espoliadora do agronegócio que concentra cada vez mais as terras disponíveis,
seja enquanto “sem terra” ou como agricultor familiar. Apenas pode-se considerar que em geral,
pesquisas tem apontado para o fato de que a presença de assentamentos de trabalhadores rurais,
ou a concentração de pequenas propriedades, ou posses caracterizando a produção familiar, tem
demonstrado uma tendência a efetivação de impactos socioterritoriais positivos contribuindo
tanto para a preservação ambiental como para a distribuição de alimentos contribuindo para as
políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, e, finalmente fortalecendo o
desenvolvimento regional e com a melhoria da qualidade de vida (FERNANDES, 2004, p.2).

O conceito de camponês permite apreender a complexidade do sujeito histórico que


designa, diferentemente do que ocorre com outros conceitos como os de pequena
produção e agricultura familiar. Trata-se de um conceito que possui uma história
significativa no interior das ciências sociais e que tem se relacionado às disputas
políticas e teóricas travadas em torno da interpretação da questão agrária brasileira e
das direções tomadas pelo desenvolvimento capitalista no campo (MARQUES,
2008, p.60)

Marx (1859, p. 355-356), descreve a violenta luta dos expropriados, arrancados de


seu modo costumeiro de vida, retirados dos campos, conquistados para a agricultura capitalista,
incorporados na base fundiária até o capital, criando assim, uma indústria urbana como oferta
necessária de um proletariado livre como os pássaros. Converteram-se numa massa de
esmoleiros, assaltantes e vagabundos, em parte por predisposição e na maioria forçados pelas
circunstâncias da pobreza e fome.

1.2. MOVIMENTO CAMPONÊS NA RÚSSIA

O início do movimento camponês na Rússia está atrelado as sucessivas revoluções,


transformações políticas que do século XIII até o século XIX, foram necessárias para varrer o
sistema feudal e o antigo regime: a Revolução Francesa (1789 - 1799) foi o momento crítico
(COGGIOLA, 2013, p. 282).
Em 1917, a situação agrava-se, devido à volatilidade de sua sociedade, à má
administração do sistema czarista obrigava os trabalhadores rurais a pagarem altos impostos
para manter sua estrutura, governando de forma absolutista, ou seja, concentrava os poderes em
suas mãos, não abrindo espaço para a democracia. Mesmo os trabalhadores urbanos, que
desfrutavam dos poucos empregos da fraca indústria russa, viviam descontentes com esse
governo (CHRETIEN, 2017, p. 20).

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A Revolução de Fevereiro iniciou um contínuo desdobramento das aspirações e


ações camponesas, mas a forma como os revolucionários rurais lutavam por
igualdade dependia do uso local que faziam da terra e dos padrões de propriedade. A
maioria dessas ações não envolveram violência ou confiscos forçados. Ao invés
disso, as comunidades rurais testaram e transgrediram as leis da propriedade privada
enquanto tentavam se proteger de potenciais repressões (BADCOCK, 2017).

Para contribuírem nas várias revoltas clandestinas na Rússia em 1917, algumas ações
camponesas, mostravam sua indignação e resistência com o sistema, vezes abriam portões e
permitiam que o gado de todo o vilarejo se alimentasse no pasto dos donos das terras, em outras
produziram documentos aparentemente oficiais que lhes garantiram o uso dos recursos locais
perpetuamente, outros revoltavam-se trabalhando juntos para derrubar a madeira de florestas
da vizinhança (BADCOCK, 2017).

1.3. MOVIMENTO CAMPONÊS NO BRASIL

Marques descreve a origem do conceito do campesinato no Brasil:

Está relacionada à realidade da idade média europeia, mas a formação do


campesinato brasileiro guarda as suas especificidades. Aqui, o campesinato é criado
no seio de uma sociedade situada na periferia do capitalismo e à margem do
latifúndio escravista (MARQUES, 2008, p.60).

O termo “camponês” passou a ser adotado no Brasil em meio às ações do Partido


Comunista Brasileiro, a partir de meados dos anos 40, difundindo ali o linguajar adotado pela
III Internacional Comunista. Se originou numa espécie de “importação política”, fora da
realidade rural brasileira daquela época. Nesse percurso, os trabalhadores reunidos,
sobressaíram no engajamento político - seja ele partidário ou não - decorrente de distintas
iniciativas de “camponeses” na condução dos movimentos em cada região do país
(CARNEIRO, 2010, p.21).

Foi a partir dos anos 1950 que os movimentos passaram a generalizar o uso do termo
“camponês” no país, revestindo demandas locais em propostas políticas vinculadas
a um projeto nacional. A palavra reunia ampla gama de categorias - lavradores,
trabalhadores rurais, meeiros, foreiros, agricultores familiares, pequenos
proprietários, posseiros, articulando reivindicações diversas: direitos trabalhistas,
acesso à previdência social, direito à posse, reforma agrária, etc. Assim, carregava
um significado simbólico e um sentido político. Foi justamente esse sentido político
do termo “camponês” que passou a ser combatido, não apenas pelos agentes da
repressão militar, como também por latifundiários e seus capangas (CARNEIRO,
2010, p.20).

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A resistência do campesinato brasileiro, através de sua luta por terra e por direitos,
trazia em si singularidades, como a repressão política e as transformações democráticas. Muito
antes do golpe militar de 1964, o campo brasileiro já era um trágico palco de abusos e
assassinatos de trabalhadores rurais. As associações de trabalhadores rurais e as ligas
camponesas expandiram-se nas décadas de 50 e 60, desenvolvendo-se significativamente no
Nordeste, mas tiveram também núcleos no Paraná, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Rio
Grande do Sul e em Goiás. Mesmo diante de tantas coerções ainda havia certo espaço para as
manifestações populares, uma possibilidade de enfrentamento contra a violência dos patrões.
Era adotado um sistema de sindicatos, mas a situação se tornou ainda mais crítica nos anos
1970, quando ocorreu um maior número de prisões e assassinatos dos líderes camponeses,
praticadas por pistoleiros, jagunços e capangas, que eram contratados por latifundiários e
empresas, para matar e muitas vezes, para compor milícias privadas. Um percurso violento que
se estende no tempo e no espaço (CARNEIRO, 2010, p.21-28).

A questão agrária, tão antiga quanto vasta, incide diretamente sobre a longa história
de lutas sociais no país. A “reforma agrária”, ao contrário, remete ao designativo mais
recente, datada de meados da década de 1950, e a um discurso estatizado. A questão
agrária sempre existiu, com ou sem projetos de reforma agrária, acontecendo
independentemente desta última (NATIVIDADE, 2013).

Diante de tantos conflitos, consideremos a citação de Marx que descreve a


repercussão da privação dos meios de primeira necessidade para criar uma dependência ao
sistema capitalista:

Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que o processo
de separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho, um
processo que transforma, por um lado, os meios sociais de subsistência e de produção
em capital, por outro, os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim
chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de
separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como “primitivo” porque
constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde
(MARX, 1859, p.340).

No Brasil, segue o mesmo modelo de sujeição que fora criado na dialética


internacional:

Nesse percurso, houveram muitos exemplares de migrantes imposta aos camponeses


em todo o país: expulsos pela lógica do latifúndio, nômades do grande capital sob a
tutela do regime militar. Uma circulação constante e às vezes tensas entre campo e
cidade. A urbanização promovida pelo desenvolvimentismo do governo militar,
afinal, passava justamente pela concentração fundiária e tinha, como consequente

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destino dos camponeses, agrupamentos precários de moradias em uma incipiente


periferia rural (CARNEIRO, 2010, p.169).

Para Marx, o movimento histórico que transforma os produtores rurais em


trabalhadores assalariados inicia-se:

[...] todos os momentos em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e
violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como
proletários livres como os pássaros. A expropriação da base fundiária do produtor
rural, do camponês, forma a base de todo o processo. Sua história assume coloridos
diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases em sequência diversa e em
diferentes épocas históricas (MARX 1859, p. 341-342).

Abaixo, uma lista de registro de camponeses mortos e reprimidos em Minas Gerais:

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Quadro: Lista de vítimas de repressão no campo


Fonte: Relato de pesquisa do Retrato da Repressão Política no Campo: Brasil 1962-1985 - camponeses
torturados, mortos e desaparecidos

1.4. CAMPONÊS E O AGRICULTOR FAMILIAR

A transmutação do termo camponês em agricultor familiar no Brasil, nos traz uma


série de discussões e debates sobre a redefinição do trabalhador rural. Os camponeses possuem
um percurso histórico de lutas, de conquistas sociais e políticas, contudo perdem seu valor
conceitual e estrutural para uma nova determinação: os agricultores familiares.

O processo de transformação do sujeito camponês em sujeito agricultor familiar


sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em
agricultor familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua pertinácia, e se
torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um
processo natural do capitalismo (FERNANDES, 2004, p.2)

Essa desconstrução conceitual, deslegitima as ações e lutas na ampliação de um


campesinato forte que possui um projeto nacional para geração de renda, contribui na
construção da soberania alimentar no país, no abastecimento popular, e possuem um plano
unificador entre pesquisadores e intelectuais, membros do governo para consolidar assim, as
melhorias nas condições de vida no campo, vida de qualidade, esporte, cultura, lazer e um bom
viver no campo. Uma afirmação de identidade de uma classe, modo e projeto de fazer uma
agricultura sustentável e energética (MPA e Plano Camponês, descrição baseada em áudio,
2017).

O campesinato é formado por um conjunto de famílias camponesas existentes em


um território, num contexto de relações sociais que se expressam em regras de uso
(instituições) das disponibilidades naturais (biomas e ecossistemas) e culturais
(capacidades difusas internalizadas nas pessoas e aparatos infraestruturais tangíveis
e intangíveis) de um dado espaço geográfico politicamente delimitado (COSTA; F.
A.; CARVALHO, H. M., 2012, p.115).

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Nesse contexto, a agricultura familiar é descrita:

Para Neves (2012a, p.34), O termo agricultura familiar corresponde a múltiplas


conotações. Apresenta-se como categoria analítica, segundo significados construídos
no campo acadêmico; como categoria de designação politicamente diferenciadora da
agricultura patronal e da agricultura camponesa; como termo de mobilização
política referenciador da construção de diferenciadas e institucionalizadas adesões a
espaços políticos de expressão de interesses legitimados por essa mesma divisão
classificatória do setor agropecuário brasileiro (agricultura familiar, agricultura
patronal, agricultura camponesa); como termo jurídico que define a amplitude e os
limites da afiliação de produtores (agricultores familiares) a serem alcançados pela
categorização oficial de usuários reais ou potenciais do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) (decreto nº 1.946, de 28 de junho de
1996). [...] Pela legislação específica (decreto nº 1.946, de 28 de junho de 1996, lei
nº 11.326, de 24 de julho de 2006, especialmente artigo 3º, e demais instrumentos
que vão adequando os desdobramentos alcançados e incorporados): agricultor
familiar é o que pratica atividades no meio rural, mas se torna sujeito de direitos se
detiver, a qualquer título, área inferior a quatro módulos fiscais; deve apoiar-se
predominantemente em mão de obra da própria família e na gestão imediata das
atividades econômicas do estabelecimento, atividades essas que devem assegurar o
maior volume de rendimentos do grupo doméstico.

A legislação brasileira impõe aos agricultores familiares uma demarcação de espaço


para o cultivo e manejo de seus produtos, diferentemente do camponês que não tem essa mesma
delimitação. Há uma divergência no tamanho dos módulos, já que o Brasil é um país de
proporções continentais, o tamanho do módulo fiscal se torna um pouco contraditório, pois cada
município possui tratamento jurídico diferenciado. O módulo é uma unidade de medida agrária
familiar variável conforme cada região, exprimindo uma interdependência entre a dimensão, a
situação geográfica e a forma de aproveitamento econômico do imóvel (REZEK, 2007, p.66).
Para o campesinato, a terra é uma herança, uma reprodução familiar pelas gerações
subsequentes. Wanderley (2003, p.56-57), descreve as diferenças estruturais dos dois conceitos
no Brasil. Não houve uma construção de um projeto em comum, o capitalismo desenvolvido
no setor agrícola brasileiro, antes ou depois do processo de modernização, jamais se libertou de
sua vinculação com a propriedade da terra. As várias lutas no campo, as transformações sociais
e tecnológicas ampliaram uma visão em que os camponeses e seu modo de vida não se
adaptariam as essas novas condições de plantio de larga escala. Com isso, nos anos 70, por
ocasião do processo de modernização, denominado Revolução Verde, os camponeses não
foram convocados para participar desse projeto da agricultura, sob o argumento tautológico de
que eram tradicionais e avessos ao progresso. Para eles, os agricultores familiares adaptariam
melhor ao estilo mercadológico e automatizado, nas orientações técnicas de manejo da terra,
pois estariam sob as orientações de especialistas agrícolas no desenvolvimento do seu plantio,

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entretanto essa classe de trabalhadores, lutou para que a captação das políticas públicas
alimentares fizessem parte da sua sobrevivência.

O saber tradicional dos camponeses, passado de geração em geração, não é mais


suficiente para orientar o comportamento econômico. O exercício da atividade
agrícola exige cada vez mais o domínio de conhecimentos técnicos necessários ao
trabalho com plantas, animais e máquinas e o controle de sua gestão por meio de uma
nova contabilidade. O camponês tradicional não tem propriamente uma profissão; é
o seu modo de vida que articula as múltiplas dimensões de suas atividades. A
modernização o transforma num agricultor, profissão, sem dúvida,
multidimensional, mas que pode ser aprendida em escolas especializadas e com os
especialistas dos serviços de assistência técnica (WANDERLEY, 2003, p.46).

O agricultor familiar, construiu sua própria história nesse emaranhado campo de


forças que vem a ser a agricultura e o meio rural inseridos em uma sociedade moderna. O que
o faz recorrer à sua própria experiência (camponesa) procurando adaptar-se, como já foi dito,
às novas “provocações” e desafios do desenvolvimento rural (WANDERLEY, 2003, p.58).

Na última década do século XX, o conceito de agricultura familiar é proposto por


alguns autores como substituto para o de camponês enquanto conceito-síntese e
aceito sem maiores reflexões por muitos, seja na academia, na burocracia do Estado,
ou também entre os próprios agricultores, seus sindicatos e movimentos sociais. Essa
substituição se dá com base na adoção de uma abordagem evolucionista sobre o
desenvolvimento da história e contribui para o empobrecimento do debate político
em torno da questão agrária. Diferentemente do que ocorreu com o conceito de
pequena produção, que aparece de forma articulada ao de camponês em algumas
situações, o emprego do conceito de agricultura familiar passa pela afirmação de sua
diferença em relação ao de camponês, que não mais se aplicaria às novas realidades
criadas a partir do desenvolvimento do capitalismo na agricultura (MARQUES,
2008, p.61).

Neves (2005b, p.23) descreve também o termo agricultura familiar como um


segmento de produtores modernos integrados ou tecnificados ao mercado pela especialização
e sob uso intensificado de instrumentos de trabalho concebidos pela lógica industrial. No
contexto de lutas políticas, essa categoria se utiliza dessa definição jurídica para o acesso de
políticas públicas construídas para essa classe, com o aval de certos intelectuais, políticos,
sindicalistas articulados pelos dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (Contag).
Dentro dessa mudança ideológica, conceitual e cultural num cenário de lutas e
resistências, o agricultor familiar e o camponês labutam por melhores condições no campo,
pelo seu espaço e por uma vida digna para suas famílias.

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RESULTADOS ALCANÇADOS

Essa releitura dos fatos históricos sobre o campesinato, a agricultura familiar, as


repressões aos movimentos políticos e sociais não se esgotam por aqui. São inúmeras questões
e problematizações. A partir de processos reais das contradições a história se redesenha, em
diferentes lugares de reconstrução e da valorização de uma gama de fontes de informações e de
linguagens. Um país pode, por exemplo, reconstruir a visão sobre seu próprio mapeamento,
certamente inacabado nos ajudam a compreender a singularidade da resistência do homem do
campo, sua luta por terra e por direitos, que traz em si toda sua força e resistência pelas
transformações democráticas do campo e em seu país.

CONCLUSÃO

A riqueza das mobilizações, as pesquisas no campo, os relatos, os movimentos de


massa, formam-se nas coletividades autônomas e criativas. Como força política própria,
constroem um novo Brasil e um novo mundo. Tanto o campesinato, quanto os agricultores
familiares, apesar de terem um mesmo modo de identificação de luta de classes, representam
cada um, formas de reprodução social, econômica e cultural articuladas por grupos
heterogêneos, que pelejam pelo direito de posse da terra. Eles possuem histórias e contextos
econômicos diferentes, sejam sociais ou políticos. Apresentam novos paradigmas, nos quais
sugerem uma maior e mais democrática aplicação e distribuição de políticas públicas. Por isso
e por todas as questões envolvidas nessa discussão, este tema se torna fundamental nos tempos
atuais.
Agricultura Familiar
Chico Antônio

Alguém já disse que a enxada só presta


Para “puxar cobra pros pés” do produtor
Mas é com ela e a semente que germina
Que faz a planta dar a fruta, pão e flor
Pois acredite também que o que resta
Fauna, flora, água, solo e o que for
São tratados com carinho e destreza
E o alimento da mesa tem a mão do agricultor

Para cuidar não é preciso usar veneno

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Pois o agrotóxico adoece o cidadão


O camponês aprendeu desde pequeno
Que o excedente da sua alimentação
Vai para a economia solidária
Sanar a fome de toda a nossa nação

E o agronegócio produz com suas máquinas


Mercadorias para a exportação

O lavrador diversifica sua roça


Cultivando a agroecologia
Produz verdura, feijão, arroz e farinha
Peixe, carne e galinha
Que consome todo o dia

Para o café, o almoço e o jantar


E para a nossa segurança alimentar
Vamos viver, vamos beber, vamos comer
Produtos da agricultura, agricultura familiar
Canta tudo outra vez

REFERÊNCIAS

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Disponível em: <https://www.letras.mus.br/chico- antonio/agricultura-familiar/>. Acesso em 17 set. 2017.

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comum tomou ação direta para transformar sua realidade. Especial Revolução Russa. Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/12/a-revolucao-dos-camponeses-de-1917-especial-revolucao-russa/>.
Acesso em: 21 set. 2017.

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COGGIOLA, Osvaldo. Novamente, a revolução francesa. Projeto História, São Paulo, n. 47, p. 281-322, ago. 2013.

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649
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MARQUES, Marta Inez Medeiros. A atualidade do uso do conceito de camponês. Revista Nera, ano 11, n. 12, jan.
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WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos
Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, 21, Outubro, 2003: 42-61. Disponível em: <http://wp.ufpel.edu.br/leaa/
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650
Grupo de Trabalho 09

ARTE E LITERATURA
EM CENÁRIOS SOCIOJURÍDICOS

dcli
O DIREITO E SUAS NECESSÁRIAS INTERAÇÕES
COM A LITERATURA E A TECNOLOGIA

SANTO, Letícia Alonso do Espírito


Estudante do Programa de Mestrado em Direito e Inovação da Universidade Federal de Juiz de Fora.

RESUMO

O presente trabalho pretendeu analisar a relação do Direito com a Literatura e as inovações tecnológicas,
avaliando a influência que é exercida, de forma recíproca, entre essas temáticas para a criação das leis.
Primeiramente foi traçado um paralelo sobre as maneiras com que esses diferentes sistemas
fundamentalmente distintos evoluem, ressaltando os diferentes ritmos com que as mudanças ocorrem
em cada um deles. Após essa análise inicial, pretendeu-se debater acerca da influência mútua que é
exercida entre os sistemas. O estudo almejou examinar se a linguagem e as inovações tecnológicas
influenciam o Direito ou se a legislação e a jurisprudência podem ditar os rumos da literatura e da
tecnologia. Dessa forma, foi verificada a existência ou não de uma integração entre Direito e Literatura,
e o nível de integração existente entre os sistemas, com embasamento no texto do autor François Ost,
“El Reflejo Del Derecho En La Literatura”.

Palavras-Chave. Tecnologia, Direito, Literatura.

ABSTRACT

The present work had as objective to analyze the relation between Law and Literature and technological
innovations, evaluating the influence that is exerted, of reciprocal form, between these subjects for the
creation of laws. First, a parallel was drawn on the ways in which these different fundamentally distinct
systems evolve, highlighting the different rhythms with which changes occur in each of them. After this
initial analysis, it was intended to discuss the mutual influence that is exerted in each system. The study
aimed to examine whether linguistic and technological innovations influence the law or whether
legislation and jurisprudence can dictate the directions of literature and technology. Thus, it was verified
the existence or not of an integration between Law and Literature and the level of integration between
the systems based on the text of the author François Ost, "The Reflection of the Right in the Literature".

Keywords. Technology, Law, Literature.

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INTRODUÇÃO

Em uma análise superficial, é certo que Direito, Linguagem e Tecnologia são áreas
que abordam ramos notoriamente diversos do estudo científico, possuindo poucas
características em comum e diferentes formas de construção. E, ainda hoje, são estudadas e
concebidas de forma isolada, sem que haja esforço de integração de seus sistemas de
estruturação.
O presente e preliminar estudo se desenvolveu diante da percepção de que há
necessidade que seus estudos e desenvolvimentos sejam integrados, porque a pouca integração
entre elas é prejudicial aos seus próprios aprimoramentos e adequação social.
Partiu-se da ideia de pensar um estudo ou uma ciência multidisciplinar, cujo qual tem
como proposta aliar os sistemas, integrando-os, o que visa colaborar com suas respectivas
evoluções. Logo de início já foi possível vislumbrar o surgimento de novas disciplinas e grupos
de estudo, que propõem efetivar essa ligação constante entre os diferentes ramos, como, por
exemplo, um estudo do livro “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, e sobre
como as câmeras de vigilância podem auxiliar na prevenção e repressão aos crimes.
Com relação às tecnologias, quase impossível negar que há uma interação delas com
o Direito e que essas interações ocorrem de maneiras distintas, podendo os recursos
tecnológicos servirem de auxílio à resolução dos conflitos, mas também se valem do Direito
para regulamentar o seu uso ou proteger seus dados – como nos casos de propriedade intelectual
relacionado a novos programas e aparelhos, por exemplo.
Já no que tange ao Direito e a Literatura, esta consiste em uma maneira do Direito
compreender a razão prática, ao passo que a literatura perpassa a mera retórica judicial,
alcançando questões fundamentais de justiça e poder.
Considerando a obra de François Ost, “El Reflejo Del Derecho em La Litertura”, e de
Austin Sarat, Cathrine O. Frank, e Matthew Anderson, “Teaching Law and Literature”, bem
como as aulas ministradas pelo professor Vicente Riccio na disciplina “Direito, Mídia e
Construção Social do Justo”, do Mestrado em Direito e Inovação da Universidade de Juiz de
Fora, se desenvolveu um estudo balizado na compreensão da inter-relação dos ramos e a
necessidade de entender como ocorre a integração multidisciplinar.
Com base no referencial teórico supramencionado, se torna viável analisar os pontos
de integração, o que se pretende fazer de maneira dedutiva, pois o estudo não pretende avaliar
casos específicos e, sim, compreender a influência exercida entre os sistemas em pauta.

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1. EVOLUÇÃO E INTERAÇÃO DO DIREITO

Uma característica notória do Direito é seu fim sociológico, de pacificação social. Ele
organiza toda a dinâmica coletiva, tanto as questões pessoais dos indivíduos quanto as
organizações públicas e privadas. Há um embasamento principiológico do ramo, cujo qual é
necessário para que haja respeito e probidade nas relações entre as partes de uma demanda.
Hodiernamente, de forma superficial, é possível dizer que cada nação adota uma
metodologia diferente para gerenciar seus conflitos e estabelecer diretrizes de convivência,
sendo mais destacáveis as que advém do sistema romano-germânico e o modelo da Common
Law. O ordenamento jurídico brasileiro tem suas raízes no sistema romano-germânico, que se
funda em normas compiladas em leis e códigos, ou seja, a principal fonte jurídica é a norma
escrita.
Nos países de Common Law, a principal fonte do direito são as decisões emitidas
pelos tribunais referentes a algum caso em concreto. Apesar de haver normas escritas dispondo
sobre princípios gerais, essas leis escritas tem uma importância mitigada, sendo apenas uma
diretriz básica. A formação do Direito, nesses sistemas, se dá no deslinde do caso.
Independentemente do viés adotado pelo país, os diferentes tipos de ordenamento
jurídico têm suas evoluções correlacionadas aos contextos históricos vivenciados e as
mudanças sociais ocasionadas, bem como a própria definição do sistema legal preponderante.
Os novos costumes, as novas possibilidades de vida, conforto e acesso ao conhecimento, são
alguns dentre tantos outros fatores que desencadeiam a construção de um novo Direito,
tornando o até então prevalente obsoleto.
Nos sistemas em que a lei é fonte norteadora a sua alteração deve obedecer maior
trâmite, sendo um sistema mais engessado no que tange à possibilidade de mudanças e
acompanhamento dos novos valores e das novas tecnologias. Já nos sistemas de origem anglo-
saxônica, a atualização jurídica é muito mais ligada aos novos casos que vão ser apresentados
perante o juízo.
Fato é que toda nação possui seu formato de Direito, o qual terá desenvolvimento ou
alteração mais facilitada ou mais burocrática, mas, da mesma forma que as sociedades evoluem,
as normas também sofrem mutações para acompanharem – ou tentarem acompanhar – as novas
formas de expressão, composição e inovação da coletividade que visa regular.
A doutrina e a jurisprudência, mesmo em países de Civil Law, denotam, cada vez
mais, seu potencial para impulsionar mudanças, almejando tornar o Direito aplicado eficaz. A

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evolução pode ser lenta, mas ocorre, e os fatores de inovação, assim como os de reflexão, são
essenciais à formação de um novo contexto ensejador de atualizações.

1.1. A REFLEXÃO ENSEJADA PELA LITERATURA:

O ensino jurídico se conecta com o real e é formado em consonância com a vontade


social e política de uma determinada comunidade, mas nem sempre se coaduna com o ideal de
justiça prevalente naquele contexto, tendo em vista que as letras da lei podem se demonstrar
desatualizadas ou injustas em certos casos. Mormente após o final da 2ª guerra mundial, houve
maior clamor pela interpretação do Direito com uma linguagem em que prepondere o ideal de
justiça, uma textura mais aberta do Direito, voltada ao contexto em que se aplica e obedecendo
uma série de garantias.
A Literatura acompanha o contexto e o modelo histórico, ela vai sendo construída ao
longo dos anos, estando sempre sujeita e aberta às mudanças e novas reflexões. Ela não pertence
a um ramo fechado e direcionado a apenas uma área científica e, sim, é construída de acordo
com que vivencia ou acredita os diversos autores, o que a dota de ambiguidades e possibilidade
de alcance das mais diversas situações.
A Literatura permite ir além, o que se relaciona com a aplicação garantista da lei,
segundo a qual as normas devem estar em constante revisão e aprimoramento. E, como já
assinalado introdutoriamente, o conhecimento compartilhado ou multidisciplinar é o mais apto
a permitir a inter-relação das disciplinas, ele facilita o acréscimo de inovações, o que permite
maior abertura das diretrizes jurídicas. A Literatura possui a habilidade de refletir a cultura, o
que fornece meios para a correção da dogmática.
É necessário que o Direito pare de reprimir sua própria retórica e se aproxime das
criações sociais e culturais. O estudo da Literatura em conjunto com o do sistema jurídico torna
notório o valor de uma cultura crítica da lei, pois a primeira contribui para a formação de
realidades culturais que funcionem no momento de construção e aplicação das normas. O
Direito e a Literatura, uma vez estudados em conjunto e como iguais, são capazes de produzir
discursos e redefinir o que vale como norma imposta, considerando que a lei é composta por
múltiplas tradições e interesses.
O Direito constitui uma atividade do raciocínio e da linguagem, ele codifica a
realidade a partir da organização e compilação de pressupostos acordados entre os sujeitos de
determinada sociedade, sendo que esses pressupostos vão acarretar na imposição de limites e

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sanções. Ao revés, a literatura é aberta às possibilidades de reflexão, não se atém às convenções


e nem está adstrita às situações estereotipadas, o que a permite se renovar de diferentes formas.
O exercício dialético entre esses ramos de estudo permite uma criação
transformadora. Toda a sociedade se encontra imersa em diretrizes normativas e estas são
emergidas da Literatura, que é seu meio refletor. Essas criações são institucionalizadas, o que
acarreta a formação ou alteração do Direito, passando a impor certas obrigações por meio de
determinadas autoridades. A criação literária baliza a revisão de ideias e reexame de valores,
consubstanciando-se em um incentivo para conhecer e aprimorar a razão prática.
A evolução do Direito precisa ser constante, não se coadunando com a natureza
imutável e rígida da lei, já que fruto de uma criação cultural, uma deliberação finita ou modelos
pré-estabelecidos. A ideia democrática requer que o ordenamento jurídico se assente no
exercício de uma liberdade responsável, caso contrário, se tornaria uma espécie de opressão.
Disto advém a necessidade da relação constante com a Literatura, tendo em vista que esta
demonstra os liames de uma instituição e as possíveis distorções que podem ocorrer.
Uma decisão justa, em um determinado momento e contexto, pode se tornar injusta a
posteriori, uma vez que a dinâmica social é mutável. Em um Estado Democrático de Direito, a
concepção de justiça tem que estar aberta ao debate, o que possibilitará revisões e ponderações.

1.2. A REFLEXÃO ENSEJADA PELA TECNOLOGIA

As modernas tecnologias permitem que pessoas de qualquer parte do mundo possam


trocar informações e realizar pesquisas de maneira rápida e cômoda, pois o acesso pode se dar
em qualquer local, sendo raras as exceções de locais que não possuem pleno acesso.
A popularização da internet acarretou um desenvolvimento tecnológico
incomensurável nos diversos setores e segmentos existentes. Inovações tecnológicas, antes
tidas como ilusórias ou pertencentes apenas às criações cinematográficas, estão sendo
incorporadas ao cotidiano social.
As inovações se incorporaram à nossa rotina de forma veloz e têm se tornado
essenciais em todos os ramos de estudo, o que nos faz vivenciar a chamada “Era da
Informação”. Essa agilidade, peculiar dos meios de inovação, destoa consideravelmente da
forma com que evoluem os sistemas jurídicos, pois a evolução deste é lenta e gradativa.
O avanço tecnológico no Direito tem progredido cada vez mais rápido, mas há
verdadeiro despreparo da lei em abordar e recepcionar os novos recursos. A forma de produção

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e a incorporação ao processo requer um pensamento diferenciado, uma compreensão além da


mera técnica de aplicação normativa. Os recursos tecnológicos já existentes permitem um
amplo controle dos indivíduos pelo Estado, mas este ainda não conseguiu delimitar até onde
pode-se permitir esse manejo pelo ente público.
Há uma série de garantias no ordenamento jurídico que vedam violações à
privacidade dos sujeitos, sendo a cultura jurídica vigente determinante no tratamento dessa
incorporação, se vai ser mais incisiva ou não. Nos países de Common Law, em que o Direito é
construído a partir dos casos levados aos tribunais, existe maior abertura às novas situações.
Mas, no que concerne aos países de Civil Law, é difícil conceber a utilização de um recurso
inovador que esteja colidindo com uma lei ou com um princípio. Ambos os sistemas possuem
dificuldade de acompanhar os progressos tecnológicos, até pela natureza tão distinta da lei, que
requer vinculação à um mínimo de garantias, mas os de tradição romano-germânica se
encontram mais limitados.
É indubitável que a tecnologia possibilita maior proximidade entre o Estado e os
cidadãos, o que reforça o ideal democrático, consistindo em um meio de garantir transparência
e controle dos atos dos administradores e agente públicos. Incorporação de sistemas como, por
exemplo, o processo judicial eletrônico, representa uma necessidade da sociedade moderna, na
qual se preconiza facilitação do acesso, independentemente do local em que se reside. Não
obstante, os recursos tecnológicos não caminham simultaneamente com o universo jurídico.
Impulsionado pelo exponencial crescimento tecnológico que se populariza cada vez
mais, o Direito precisou ceder ao uso de novos recursos, como a videoconferência, que vêm
sendo utilizada para oitiva dos envolvidos em um processo, sejam eles partes ou testemunhas.
Os casos judiciais em que são utilizados recursos tecnológicos também têm crescido, embora
ainda haja notória resistência por parte dos operadores da lei.
A utilização das inovações nos casos judiciais não tende a diminuir, pelo contrário, a
tendência é que sejam mais valorizados no processo como lastro probatório ou meio de
obtenção de provas. Existe uma inevitabilidade de que as provas obtidas por meio de inovações,
como vídeos, gravações sonoras e coisas do gênero, repercutam de forma mais intensa na
formação da opinião do espectador, e essa repercussão precisa ser analisada de maneira crítica
e objetiva, para que a incorporação ao sistema judicial não abale as garantias
constitucionalmente asseguradas às partes envolvidas. No presente trabalho não se pretendeu

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desenvolver essa temática, servindo apenas para demonstrar que a incorporação tecnológica
também requer estudo e regulamentação – devendo haver dinamicidade nesse processo.
Os desafios lançados ao Direito envolvem não só a imprescindibilidade de
incorporação das ferramentas tecnológicas, o que demanda repensar conceitos jurídicos, mas,
também, regulamentar o desenvolvimento dessas inovações e seus limites de alcance. A
integração entre os sistemas enseja dificuldades, considerando as diretrizes do texto legal e a
dinâmica veloz das inovações. Talvez uma das maiores dificuldades seja entender que, para
que haja integração, deve ocorrer verdadeira mudança e não mera incorporação dos recursos
na aplicação das normas atuais, pois serão conflitantes. O Direito deve ser repensado como um
todo, para que haja recepção dos meios tecnológicos, de modo que se evite o dissenso entre os
doutrinadores e aplicadores.
Antigos conceitos jurídicos devem ser repensados para que se crie um novo formato
de processo, o qual se coadune com a inserção de recursos tecnológicos e abarque a própria
regulamentação do uso das tecnologias. Sem uma reforma substancial não é possível haver uma
integração eficiente entre os ramos. O Novo Código de Processo Civil Brasileiro se propôs a
algumas mudanças, mas manteve uma concepção engessada, pois o estudo para a sua criação
não foi multidisciplinar, tendo apenas focado nas normas já existentes e reformulações pouco
significativas ao ramo tecnológico.
É de extrema importância um estudo multidisciplinar para que exista a integração
entre os sistemas jurídico e tecnológico, uma vez que o Direito se forma pelo clamor social e o
contexto vigente, sendo inegável que a popularização das tecnologias torna imprescindível sua
incorporação.
Tecnologia e Direito são áreas de estudo intrinsecamente divergentes, possuindo a
primeira uma natureza propensa a mudanças, pois sua forma peculiarmente dinâmica enseja
mutações frequentes. Já a segunda é um ramo que se funda e desenvolve à medida que existe
um clamor social ou um contexto político propício a alteração, não havendo uma propensão à
mudança. Entretanto, as inovações proporcionadas pelas inovações foram tamanhas que é
impossível pensar em não as utilizar nas outras disciplinas, principalmente, a jurídica.
O diálogo entre os ramos deve ser frequente e de maneira pormenorizada, sempre
almejando o ideal de justiça. O Direito é o meio apto a assegurar que o desenvolvimento
tecnológico se estabeleça de acordo com parâmetros éticos, ou seja, que a evolução se construa

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sem ofensa aos princípios norteadores da sociedade e, por conseguinte, da lei. Ao passo que a
tecnologia permite e fomenta a atualização jurídica.

2. BENEFÍCIOS DE UM ESTUDO MULTIDISCIPLINAR

Os estudos e pesquisas sobre a interação entre Direito e Literatura no Brasil ainda são
muito recentes, bem como sobre as possibilidades do estudo interdisciplinar. A
interdisciplinaridade pode, além de melhorar a técnica de cada ciência, pode conferir
efetividade a instrumentos de solução dos conflitos sociais.
O ensino jurídico precisa estar sempre em evolução, contudo, o que se averigua nas
faculdades é um ensino cada vez mais doutrinador e pouco crítico. O Direito vem sendo
construído através de um senso comum sobre situações pré-determinadas, não indo além em
suas possibilidades, muito menos refletindo sobre as possibilidades de fundamentação e
compreensão das lides.
Nesse sentido, crítica Lênio Streck:

(...) essa falta de aderência teórica se origina na produção rasa de conhecimento


jurídico, no ensino plastificado do Direito. Em outras palavras, cada vez mais o
direito está sendo reduzido a resumos plastificados e aos chamados manuais de
direito, auxiliando os juristas a desenvolver uma representação precária e limitada
sobre o que é o direito e a sua integração à sociedade” (STRECK, 2008, p. 77-80).

O paradigma jurídico-dogmático precisa analisar a sociedade em que se encontra


inserido e que pretende exercer função reguladora, haja vista que os postulados acadêmicos não
conseguem retratar todas as formas de convivência e conflitos sociais. Uma matriz curricular
rígida e conservadora não conseguirá formar profissionais críticos e humanos, o que tem sido
um problema crescente na área jurídica.
A Literatura passa a ter grande importância no ensino jurídico, uma vez que, por
possuir uma natureza mais abstrata, abrange mais situações e é construída através da exploração
de diversas áreas de conhecimento, o que possibilita e facilita a reformulação de muitos
pressupostos jurídicos.
Apesar do movimento de integração entre Direito e Literatura estar mais consolidado
nos países anglo-saxões, no Brasil já se propaga essa ideia. Alguns clássicos da nossa Literatura
abordam questões relevantes socialmente e que, por conseguinte, acabam tendo reflexos no
mundo jurídico. Temos a abordagem de questões como a marginalização, o preconceito, a

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desigualdade, ausência do mínimo existencial, como, por exemplo, a obra Capitães da areia, de
Jorge Amado, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
A Literatura representa e reconstrói o convívio social, retratando a realidade e a
orientando. Apesar disso, ainda há certo preconceito com sua utilização no mundo jurídico,
sobre até que ponto essa ciência pode influenciar na formação do cidadão e na compreensão
dos seus atos. Mas, certo é que há um papel importante de adequação social, que desperta a
sensibilidade do leitor ao criar um juízo crítico. A criação de indivíduos críticos, por si só, já é
um importante instrumento para alcance de melhorias socioculturais.
A interação entre as ciências, no caso o Direito e a Literatura, favorece que os juízes
criem juízos críticos mais articulados, mais suscetíveis a novas possibilidades e não se vinculem
a uma solução sempre óbvia e nem sempre justa. A literatura auxilia na solução dos litígios,
pois amplia a visão acerca das possibilidades de aplicação do Direito. Conforme salientam
TRINDADE e GUBERT (2008, p. 43):

(...) a imaginação literária possibilita o resgate da singularidade e das nuanças do


mundo da vida, pois ela aproxima o sujeito das situações de qualquer um que é
diferente de si, na medida em que o leitor admite (re) conhecer, mediante uma
representação concreta, o valor da dignidade humana e as necessidades daqueles que
com ele vivem. A imaginação literária deve, portanto, ser entendida como “um
componente essencial de uma posição ética que nos exige a preocupação com o bem
das outras pessoas, cujas vidas encontram-se distantes da nossa. ”

É importante que os aplicadores do Direito também sejam dotados de humanidade e


não só conhecimentos processuais esquematizados e técnicos. A doutrina molda a práxis e
também a contesta, e a Literatura reconstrói sentidos, se desfazendo de estigmas e repressões,
a soma dos estudos dessas duas ciências possibilita novas formas de ver o Direito e, também,
novos modelos de construções literárias.
A Literatura também pode ser considerada uma fonte de conhecimento jurídico,
assim como são os costumes, porque ela retrata o que já foi vivenciado ou está sendo vivido em
uma determinada época e em um local específico. Afora o fato de que muitas obras literárias
vão além do seu tempo, explorando situações que um dia poderão se tornar um conflito fático
e judicial.
Enquanto o Direito figura como uma ciência mais fechada, a Literatura tem como
característica ser ampla, aberta a visões de mundo completamente diferentes, o que incita o
sujeito que está envolvido em sua trama a sentir empatia aos personagens. O leitor consegue

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vivenciar novas situações e, assim, se posicionar sobre aquela situação retratada após uma
reflexão palpável.
A construção de uma formação mais crítica é importante para o ensino jurídico, pois
isso vai além de um auxílio ao desenvolvimento crítico dos indivíduos, isso toca questões de
justiça e equidade. O Direito deve ser dotado de estudos mais aprofundados para que não se
torne uma ciência superficial e distante da realidade em que esteja inserido.
No que concerne ao uso das tecnologias, o profissional da área jurídica necessita
desenvolver habilidades na área tecnológica, pois as exigências estão maiores, não basta mais
apenas saber digitar, é preciso entender um pouco das configurações dos sistemas. Isto ficou
claro a partir da implantação dos processos jurídicos eletrônicos, que são meios facilitadores
(pois permitem acesso à distância) e também complicadores para quem não se adaptou aos
meios digitais.
O número de analfabetos digitais é grande, o que tem como um dos fatores o conflito
de gerações, pois alguns se negam a aderir à realidade digital da comunidade ou ainda possuem
um acesso precário, outros sequer entendem como pode se dar o uso de provas de vídeo, áudio
e etc – o que na verdade ainda gera dúvidas em todo o meio jurídico, seja ele acadêmico ou
relacionado à práxis -. As mudanças, mesmo que positivas pela facilitação do acesso e da
ampliação dos meios probatórios, ainda gera dificuldade de adaptação e obstáculos que
precisam ser superados pelo Poder Judiciário.
Os cursos jurídicos estão carentes de disciplinas que considerem a exclusão digital,
bem como promovam um estudo mais profundo sobre as provas no processo. É cada vez maior
o número de casos envolvendo contratos via telemarketing, crimes virtuais, flagrantes
registrados em vídeos, e muitos desses temas ainda não estão devidamente ou suficientemente
regulamentados pelo legislador.
É necessário que os aplicadores do Direito priorizem a inserção dos aparatos
tecnológicos, renovando suas posturas e se abrindo aos novos meios e possibilidades, com o
fito de dinamizar a tramitação dos processos, para que a justiça se torne eficaz, garantindo o
acesso à justiça, à igualdade, a informação e, como consequência, teremos a consolidação da
Democracia.

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CONCLUSÃO

Um dos principais pressupostos do Direito é propiciar e garantir a Democracia em


uma comunidade política e, uma vez tido como inerente à Democracia, ele é essencial ao
desenvolvimento. A Democracia é a forma de organização que proporciona a emancipação
social, assegurando o respeito às diferenças e o desenvolvimento livre das capacidades
individuais.
A concepção do Direito como um limite ético é fruto de uma compreensão cultural,
enraizada e criada não pelo meio jurídico, mas por toda a coletividade. A própria criação e
evolução do Direito é fruto de uma criação cultural, sendo exigido pela ideia democrática que
o ordenamento jurídico se assente no exercício de uma liberdade responsável. Destarte, disso
advém a imposição de uma relação constante com a Literatura, como já mencionado, tendo em
vista que é ela que torna possível estabelecer os liames de uma instituição e as possíveis
distorções que podem ocorrer.
No que tange aos recursos tecnológicos, é preciso compreender que o Direito e a
Tecnologia integram uma mesma cultura, apesar de possuírem ritmos diferentes de
transformação. Os meios inovadores alteraram a dinâmica social, logo, são parte do Direito, o
influenciando diretamente. O que se torna evidente é que os avanços tecnológicos não podem
ser subjugados a leis imutáveis ou engessadas, o conteúdo jurídico deve refletir as inovações,
integrá-las ao seu estudo. É dever do Estado auxiliar que a norma acompanhe o progresso
tecnológico, bem como regulamentá-lo.
O que se vive atualmente é a chamada “era digital” e a evolução não cessa. Com essa
nova dinâmica, outros modos de litígio surgem sem possuir soluções pré-estabelecidas no
ordenamento, sendo um requerimento atual que a antiga sistemática seja transformada, pois não
é mais condizente ao novo contexto. Afora o fato de que o trâmite para elaboração ou alteração
de uma norma não é apto, regra geral, a acompanhar de forma adequada o desenvolvimento
tecnológico e suas constantes transformações, ficando o ordenamento jurídico, frequentemente,
em falta para com a sociedade.
O Direito, como instrumento de gestão do convívio social, serve para pacificar e
organizar o espaço público, necessitando, portanto, ser reflexo das demandas da sociedade em
que se encontra inserido. Ele representa a expressão da vontade social, não estando, portanto,
submetido a conceitos imutáveis, pelo contrário, precisa se adequar aos avanços.

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De tudo que fora exposto, resta claro que a inter-relação do Direito com a Literatura
e as tecnologias é algo intrínseco à sua própria natureza, porquanto ambas lhe permitem se
atualizar e se manter alinhado aos valores da comunidade. Para que isso se torne real, deve o
Poder Público incentivar a integração desses ramos científicos, criando e exigindo a
incorporação de disciplinas multidisciplinares nas grades curriculares, fornecendo incentivos
para que as empresas e o ordenamento possam estabelecer acordos voluntários de
desenvolvimento e regulamentação das tecnologias, enfim, promover estudos
interdisciplinares.
Destarte, se faz necessária a criação de meios que garantam maior eficácia das
diretrizes jurídicas e integração das tecnologias ao mundo jurídico, para que representem,
efetivamente, a vontade social.

REFERÊNCIAS

OST, François. El Reflejo Del Derecho En La Literatura. Doxa, Cuadernos de Filosofía del Derecho, 2006, 29, p.
333-346.

SARAT, A.; FRANK, C.; ANDERSON, M. Teaching Law and Literature. New York, Modern Language
Association, 2006.

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. 2 ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008.

TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para
se pensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães (Orgs.). Direito & Literatura:
reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

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ORDEM E DESORDEM NA FRONTEIRA DO DESERTO:
A NARRATIVA DE BREAKING BAD E
AS TRANSGRESSÕES MORAIS.

MADEIRA FILHO, Wilson


Professor da Universidade Federal Fluminense
DIAS, Fabricio de Barros Seraphim
Mestre pelo Programa de Sociologia e Direito da UFF
SANTOS, Rayanne Monteiro de Andrade
Estudante da graduação em Direito da Unisuam

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo a análise da narrativa do seriado Breaking Bad, do canal de
televisão por assinatura AMC, criado por Vicent Gilligan utilizando como contraponto conceitual
produções acadêmicas nacionais selecionadas que versam sobre análises pontuais de características da
sociedade brasileira, buscando estabelecer paralelos conceituais que aproximam as particularidades
existentes entre as representações arquetípicas dos personagens da série e a teoria que se conecta à
realidade brasileira. A complexidade narrativa do seriado, assim como o teor das obras nacionais aqui
selecionadas, permite uma coerente análise das representações e dos modelos utilizados no enredo do
seriado que revelam traços das contemporâneas configurações sociais do mundo ocidental. Como
método de análise destacamos pontos centrais da narrativa das cinco temporadas que compõem o
seriado, contrapondo os discursos e representações ali produzidos às teorias contidas nas obras
acadêmicas nacionais selecionadas. Como resultado, será esclarecido como os indivíduos representados
na narrativa do seriado se relacionam com as questões de ordem e desordem e como as transgressões
ocorrem numa configuração social contornada pela moral religiosa protestante.

Palavras-Chave. Breaking Bad, narrativa, ordem e desordem, utilitarismo.

ABSTRACT

The objective of this paper is to analyze the TV series Breaking Bad, from the cable TV channel AMC,
created by Vicent Gilligan, using as conceptual counterpoint selected national academic productions
that discuss punctual analyses characteristic of Brazilian society, in order to establish conceptual
parallels that approximate the existing particularities between the archetypal representations of
characters from the series and the theory that connects it to the Brazilian reality. The narrative
complexity of the series, as well as the tenor of the national works selected for discussion, allow for a
coherent analysis of representations and of the models utilized in the series plot that reveal traces of the
contemporary social configurations of the Western world. As method of analysis, we highlight central
narrative points of the five seasons that compose the series, contrasting the discourses and
representations there produced to the theories pertaining to the selected national academic works. As a
result, this paper explains how individuals represented in the narrative of that series relate to questions

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of order and disorder and how the transgressions occur in a social configuration circumvented by the
protestant religious morals.

Keywords. Breaking Bad, narrative, order and disorder, utilitarism.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo o exame da narrativa de Breaking Bad, seriado
criado por Vicent Gilligan e exibido pelo canal de televisão por assinatura AMC no período
compreendido entre janeiro de 2008 e setembro de 2013. O enredo do seriado gravita ao redor
da história da transformação de Walter White, um professor de química, dedicado pai de
família, que diante da descoberta de um câncer decide começar a produzir metanfetamina para
sustentar sua mulher e filhos, personagens inseridos num tardio sonho americano, determinado
pela lógica de consumo.
Do exame proposto, se depreende das primeiras cenas do seriado que os personagens
atuam num mundo de moral rígida, de imposições padronizadas, de restrições e limitações
generalizadas que atingem de igual modo a todos os indivíduos. As condutas dos personagens
são desdobramentos naturais das exigências morais e da ética peculiar de uma sociedade
cunhada pela austera educação protestante que moldou o caráter dos cidadãos norte-americanos
mediante o constante conflito entre a pureza e o pecado. Desta obsessão pela moral temos que
as transgressões à ordem historicamente imposta são punidas de modo exemplar, tanto pelo
aparato psicológico, interno, orientado pela culpa, quanto pelos mecanismos externos, pelo
aparato repressivo-punitivo estatal, valendo tais regras de condutas para todos, sem qualquer
espécie de tratamento desigual que privilegie um ou outro em razão de qualquer condição que
os possa diferenciar.
Todavia, a hipótese que aqui se apresenta, e que se deixa escapar da análise mais
aprofundada da narrativa da série, é a de que, para além do imenso apreço pela igualdade e
individualidade – a obsessão pela ordem - que a sociedade ocidental norte-americana prega
como preceito fundamental democrático, a necessidade de sobrevivência individual, em alguns
casos, empurra grupos de indivíduos para condutas desviantes, transgressivas que operam de
acordo com uma determinada lógica, de natureza utilitarista, orientada, principalmente, pelo

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“Princípio da Maior Felicidade”1. As condutas dos indivíduos, postas sob o olhar da ética
utilitarista, obedeceriam a um cálculo individual racionalizado que consideraria
necessariamente os custos e benefícios de uma determinada ação, com a mira apontada para o
saldo líquido de prazer que pode ser proporcionado daquela performance.
Da análise da narrativa da série Breaking Bad e de posse de algumas produções
acadêmicas nacionais que versam sobre análises pontuais sobre características da sociedade
brasileira - que nos utilizaremos como marcos teóricos - buscaremos estabelecer paralelos
conceituais que aproximam as particularidades existentes entre a série e a teoria que se conecta
à realidade brasileira.
Para aprofundar a discussão proposta, nos utilizaremos dos textos emblemáticos de
Antônio Cândido e Roberto DaMatta, numa tentativa de demonstrar como se dá a dinâmica
social dentro de uma sociedade que se encontra delineada por conflitos e graves desigualdades
em diversos âmbitos e esferas.

1. A ÚTIL LETRA ESCARLATE

Na pacata cidade de Albuquerque, tudo transcorre aparentemente sob o manto da


normalidade. A silenciosa vizinhança (que se confunde por vezes e intencionalmente com o
árido deserto, recorrente paisagem no seriado), a pretensa vida harmônica do subúrbio norte-
americano sulista e os desejos de consumo e felicidade individuais comungados por toda a
comunidade desenham o quadro dos valores ali coletivamente partilhados.
Claramente, falamos aqui sobre os valores puritanos norte-americanos, e nisto temos
que o caráter destes indivíduos são organizados em torno da rígida educação religiosa, que
através da consciência natural internalizada de reverência às leis divinas de cunho moral – que
atuam em um disputado jogo cotidiano com a conduta pecaminosa - valoriza a honestidade, a
verdade, a honra, o produto do trabalho árduo, de sol a sol, o temor, o medo do desconhecido,
entre outros tantos valores característicos da sociedade em estudo.
Walter White, um cidadão americano arquetípico2, professor de química, caixa de
lava jato nas horas vagas, é o patriarca e provedor da família White, e mantém os seus entes

1 MILL, Stuart. Utilitarismo: Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Trad. Pedro Galvão. Porto: Editora Porto Editora,
2005, p. 43.
2 De acordo com Anthony Stevens (2012) “os arquétipos dão origem a pensamentos, mitologemas, sentimentos e ideia

semelhantes nas pessoas, independente de classe, credo, raça, localização geográfica ou época histórica. A herança arquetípica

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queridos - sua esposa Skyler e seu filho Walter White Junior - ante as dificuldades financeiras,
e esta obrigação de manutenção do núcleo familiar decorre em razão de regras bem
estabelecidas no tempo. No mesmo sentido, a maneira com que o protagonista se posiciona
perante a sociedade, é o reflexo exato dos valores partilhados: ser um homem honesto, justo,
adimplente com suas obrigações familiares e financeiras, empenhado no ofício, apesar do
desinteresse dos alunos e do baixo salário, obediente às leis e antipático à desordem.
Com mesma intensidade, observamos em Skyler o compartilhamento dos mesmos
valores sociais que guiam White. O companheirismo do arquétipo da esposa do protagonista
da série, a pressuposta fidelidade matrimonial (promessa violada no decorrer do seriado), o
respeito e admiração pelo marido que a sustenta financeiramente, a força da coesão moral que
se exprime em pequenas atitudes cotidianas são indicativos desta vida conduzida pelas regras.
O pensamento perturbador de se tornarem pecadores, violadores das regras sociais,
personagens desviantes, não é uma possibilidade que se apresenta facilmente no mundo de
Walter White e Skyler. E é nisto que a série conquista o público: na impossibilidade que se
concretiza como enredo improvável.
Nestas sociedades norte-americanas historicamente reguladas pelo puritanismo
religioso, os inconvenientes sociais e as delinquências dos grupos desviantes são tratados pelos
indivíduos sob o olhar de reprovação e indiferença daqueles que de modo corriqueiro seguem
cegamente (e inconscientemente) as regras dispostas no meio social para além das sanções
legais dispostas no ordenamento jurídico, quando é o caso.
Contudo, a felicidade traduzida em termos de poder de consumo, como necessidade
básica da sociedade ocidental moderna conjugada às dificuldades de inserção individual (e
familiar) neste irreal e inalcançável (pelo menos para o indivíduo da classe média) mundo de
compras e aquisições que se renovam constantemente, impele grupos de pessoas a condutas
que vão de encontro, de certo modo, aos valores regentes da sociedade, já tão impregnados no
inconsciente coletivo puritano. A grande questão que emerge daí passa necessariamente pela
expressão interrogativa: como consumir o que está à disposição, diante das inúmeras
dificuldades que a vida real apresenta, se orientando pelos valores morais que orientam a
sociedade norte-americana? Como agir de acordo com um código mora rígido, de raiz puritana,
conservadora, se os maiores prazeres da vida são proibidos?

inteira de um indivíduo compõe o inconsciente coletivo, cujo poder e autoridade pertencem a um núcleo central, responsável pela
integração da personalidade como um todo, que Jung chamou de si mesmo”.

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A felicidade nas sociedades modernas é compreendida, basicamente, em termos de


poder de consumo, e esse mantra consumista é perpetuado pelas propagandas e produtos que
criam novas necessidades diariamente e que se unem ao anseio de prazer que seduz os
indivíduos. O que Walter White deseja inicialmente, e que se apresenta como mote principal
do seriado, é a felicidade de sua família, ou seja, a manutenção efetiva dos seus entes na
sociedade de consumo. O objetivo do protagonista fica claro quando este, sabendo que morrerá
de câncer e sua família ficará desprovida depois do inevitável desenlace, estabelece como meta
uma quantia de dinheiro que seria bastante para atender as exigências mínimas dos seus
familiares, tais quais, educação, plano de saúde, faculdade e alguns confortos. Resolve, pois,
unir seu conhecimento em química à expertise das ruas, que Jesse Pinkman, seu parceiro na
empreitada, parece possuir, e monta o lucrativo negócio de produção e venda de metanfetamina.
Algumas produções culturais se apresentam como marcos representativos destes
valores puritanos, que até hoje em dia permeiam o consciente e inconsciente da sociedade norte-
americana. Nathaniel Hawtorne no livro “A letra escarlate” narra a história de Hester Prynne,
uma jovem que, quando da ida do seu marido à guerra em Amsterdã, acaba se envolvendo,
secretamente, com Arthur Dimmesdale, o jovem sacerdote da cidade, e engravida deste. A
comunidade puritana de Boston do século XVII ao tomar ciência do fato - do adultério de
Hester - clama pela condenação da personagem, o que, de fato, acontece. Além da prisão,
Hester é condenada a usar perpetuamente a letra A escarlate presa às suas vestimentas. Ou seja,
a letra A (de adultério) escarlate é a marca da vergonha, do pecado, da humilhação e do mesmo
modo, dos valores da sociedade.
Embora compelida pela comunidade a revelar o nome de seu amante, Hester Prynne
não o faz. O sacerdote, no entanto, com a culpa e o pecado pesando em sua consciência –
mecanismos de repressão interna - se pune, de diversos modos, chegando a gravar no seu peito,
na carne, a letra A, assim como Hester Prynne. Por baixo de sua batina está a vergonha, a
penitência auto infligida por ter pecado, mas a cor escarlate da letra marcada no dorso tem a cor
do próprio sangue do pastor. Mas ninguém sabe, a sociedade de Boston do século XVII não
desconfia que o pastor violou as regras morais. A letra escarlate se encontra escondida dos olhos
dos cidadãos.
A letra escarlate é a expressão-símbolo da sociedade moral tradicional norte-
americana. Uma sociedade rígida, obcecada com o irrestrito e imediato cumprimento da lei e

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da observância da moral, preocupada com a ordem cujos indivíduos se apropriam, por vezes,
da lógica utilitarista para operacionalizar suas intenções de conquista do saldo líquido de prazer.
A teoria ética utilitarista, que encontra em Stuart Mill seu maior defensor, parte da
premissa de que o objetivo principal na vida dos indivíduos é a busca pelo prazer. Assim, se a
finalidade da vida humana é a perseguição da felicidade, as ações moralmente corretas seriam
aquelas que se consolidassem como instrumentos para o alcance deste objetivo principal, vez
que “os princípios utilitários nos aconselham que boas ações são aquelas que produzem o
máximo de felicidade para o maior número de pessoas” (SARA, 2014).
O Princípio da Maior Felicidade, principal guia da teoria utilitarista, determina que
“as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida
em que tendem a produzir o reverso da felicidade”3 e desse modo, em nome do prazer e da
satisfação pessoal, as ações seriam moralmente justificáveis. Na busca pela felicidade
individual os indivíduos estariam ao mesmo tempo promovendo a felicidade geral vez que o
padrão moral teria a natureza de senso comum, seriam, em verdade, princípios morais gerais.
Decorre naturalmente daí que, uma vez que o significado de felicidade é compartilhado por
toda uma sociedade, a busca da felicidade de um indivíduo seria uma colaboração para a
felicidade de toda a sociedade em que os valores fossem compartilhados.
Assim, o certo e o errado na ética utilitarista se mostram como parâmetros flutuantes
que, de acordo com a situação concreta, podem sofrer alterações nos seus significados, outrora
estabelecidos pelo método indutivo/empírico. O que foi considerado certo uma vez, e
possibilitou dada conduta individual do ponto de vista moral, pode não ser considerado certo
na próxima oportunidade. Os conceitos de certo e errado seriam constantemente reanalisados à
luz da necessidade de se obter saldos positivos de prazer e, deste modo, a decisão a ser tomada
ou o ato a ser realizado seria moralmente correto se tal conduta tivesse o condão de proporcionar
ao indivíduo uma maior felicidade.
A útil letra escarlate é, enfim, o pecado racionalmente praticado, que se esconde por
baixo das roupas, muito embora marcado na carne. Se esconde, em verdade, dos olhos dos
outros. É a vergonha do pecado cometido, mesmo que não visto por ninguém, e por assim ser,
ainda que exista a reprovação do próprio individuo da sua conduta, uma vez libertado das
correntes morais, a lógica utilitarista se mostra como um permissivo para a o ilícito, para a
desordem. A performance do indivíduo é o que vale se um bom resultado é alcançado, e o que

3
Stuart Mill, op. cit, p. 48.

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existe de ruim neste ato, o que se mostra como negativo, imoral, não merece ser visto, por
ninguém, nem pelo próprio indivíduo.

2. MALANDRAGEM IDÍLICA OU CLIENTELISMO?

Concentraremos nossa atenção, no presente momento, para a obra denominada


“Dialética da Malandragem: caracterização das Memórias de um sargento de milícias”, de
Antonio Candido, uma análise crítica acerca da obra literária de Manuel Antônio de Almeida,
e da comparação com a série objeto de estudo, teceremos algumas considerações acerca das
ideias desenvolvidas pelo autor, principalmente sobre o movimento da sociedade brasileira que
opera entre a ordem e a desordem.
Antônio Cândido analisa a obra do escritor brasileiro e observa que, por ser um
romance representativo legítimo de natureza popular que revela a “imitação de uma estrutura
histórica por uma estrutura literária” (SCHWARZ, 1987), possui um alcance identitário
generalizado, ocasionando, pois, uma assimilação da ficção com a realidade, e por
consequência, despertando ressonância nos leitores representados pela obra em destaque.
A crítica realizada por Cândido congrega análise literária e teoria social, eis que
denuncia as estruturas ocultas que servem de mecanismo de movimentação das engrenagens
da sociedade brasileira. Mediante a constatação da existência do nexo entre a ficção e a o
mundo real, é possível se determinar “o lugar da realidade dentro da ficção e o lugar da ficção
na realidade”4, tornando possível a percepção na obra literária da existência de um “mundo
imaginário construído segundo a lógica de um aspecto real”5 , um mundo real que se encontra
determinado por características próprias.
Da análise do livro de Manuel Antonio de Almeida, observamos uma narrativa em
terceira pessoa, um narrador onisciente, impessoal e imparcial, que desvela para o leitor, através
da suspensão de qualquer juízo de valor, as aventuras transgressoras de Leonardo, desde o
momento do primeiro encontro de seus pais - Leonardo Pataca, comerciante de roupas, e Maria
das Hortaliças, camponesa - no navio que os trazia de Lisboa até o Rio de Janeiro da época
joanina.

4
Ibidem, p. 143
5
Ibidem, p. 142

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Após o seu nascimento, Leonardo é abandonado pelos pais, vindo a ser criado pelo
padrinho, o Barbeiro, que desenvolve grande apego ao protagonista e decide que o menino,
quando crescido, ingressará no seminário. Leonardo é um malandro nato que em nada se
conecta com as básicas noções de responsabilidade, respeito e ordem que seu padrinho tenta,
inutilmente, lhe passar. Por conta disso, Barbero é constantemente enganado pelo protagonista.
Até mesmo quando entra na escola, sua permanência na instituição é interrompida
precocemente, ante o comportamento inadequado do protagonista.
Crescido, Leonardo se torna um desocupado e é preso algumas vezes pelo Major
Vidigal - bastião da ordem na obra - por conta de seu comportamento infrator e desordeiro.
Com a súbita morte de Barbeiro, Leonardo, herdeiro do padrinho, é obrigado a voltar a morar
com o pai, Leonardo Pataca, eis que este último administra a herança.
Em pouco tempo, Leonardo é expulso da casa de seu pai, indo morar em seguida na
Rua da Vala, com outros adolescentes. Ali conhece Vidinha, com quem acaba se envolvendo.
O breve romance com Vidinha acaba por desembocar em mais uma prisão, só que desta vez, o
protagonista é obrigado pelos policiais a se alistar no Exército.
Depois de mais algumas transgressões e confusões, com a colaboração de amigos e
conhecidos, se utilizando de seus contatos no mundo social, Leonardo toma posse no posto de
sargento. Assim, com a conquista do posto de sargento, o protagonista se casa com Luisinha,
um amor que teve na juventude, e que veio a se tornar, felizmente, uma bela e rica mulher. Com
a morte de Dona Maria, Luisinha, sua filha, e Leonardo ficam com a herança da falecida.
Sobre a natureza do romance, Cândido defende que a obra de Manuel Antonio de
Almeida, cujo pequeno resumo deixa-se revelar acima, não se constitui num romance
picaresco, vez que o protagonista, Leonardo, é carregado pela narrativa do enredo, não
instituindo o mundo fictício a partir do seu próprio ponto de vista. O livro é “contado em terceira
pessoa por um narrador (ângulo primário) que não se identifica”6 . Está ausente do personagem
principal, ainda, um traço básico do pícaro: a malandragem como atributo adquirido em razão
da brutalidade do mundo traduzida em “reflexos de ataque e defesa”7. Observa o autor que
Leonardo é um malandro nato, quase como se tal característica fosse uma qualidade essencial
do personagem, parte do seu caráter natal. Das dificuldades que enfrenta, Leonardo nada
aprende, não reflete moralmente acerca de nada.

6
Antônio Cândido, op. cit., p.70
7
Ibidem, p. 71

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A opção de base marxista na análise de Cândido aponta para uma sociedade de classes
que se dividem em patrícios e plebeus, corte e escravos, em transubstanciação dialética via
homens livres, esses sim a oscilar entre ordem e desordem, criando o tipo malandro. Neste
sentido observa Schwarz que “a dialética de ordem e desordem é construída inicialmente
enquanto experiência e perspectiva de um setor social, num quadro de antagonismo de classes
historicamente determinado”8. Da supressão de grande parte da população brasileira do período
joanino - a elite e os escravos - a obra “Memória de um sargento de milícias” não documenta a
realidade integral, mas apenas uma parcela dela. É nesta parcela setorizada, que exclui as
extremidades, que ganha corpo a luta de classes de base marxista que, conforme se observa no
pensamento de Cândido, é a síntese da própria dialética da malandragem. Contudo, a luta de
classes é representada pelo autor de forma agradável, simpática, risonha, conduzindo à
conclusão que seríamos uma sociedade da interseção, de homens cordiais, de aceitação, de
horizontes éticos amplos, que caminha entre os polos da ordem e da desordem, num aparente
mundo sem culpas interiores, sem repressões internas mais severas, e isto, ao fim se apresentaria
como uma vantagem.
Neste cenário bipolarizado que constrói caminhos que conduzem os cidadãos na
direção ora da ordem, ora da desordem, haveria sempre espaço de sobra para os dois lados das
questões, vez que os antagonismos constroem o próprio tecido social. Os indivíduos agiriam,
naturalmente, sempre com um pé na ordem e outro da desordem, para além das normas e da
moral estabelecida.
A ordem criada por um sistema de normas e condutas que se baseia principalmente
nos ideais de moral e licitude e nos valores de uma elite dominante se mostra como mera ficção
para grande parte da sociedade, e os comportamentos desviantes diante destes meios de
disciplina irregulares se apresentam como provas reais desta distância que se firma no seio da
sociedade representada. A própria dinâmica social, o ritmo da sociedade, é regido pelos valores
desta elite dominante, e assim, para que se possa caminhar no ritmo imposto, alguns
“pormenores” devem ser reanalisados pelos cidadãos.
A preponderância da igualdade dos indivíduos nas relações sociais, peça fundamental
da democracia ocidental norte-americana, se apresenta inicialmente como condição impeditiva
da oscilação natural das condutas entre os polos, tal qual se observa no caso brasileiro. A
reprovação da conduta transgressiva nessas sociedades morais se daria não apenas através das

8
Roberto Schwarz, op. cit., p. 150

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externalidades, dos controles extracorpóreos, mas seria, principalmente, orientada pelo interior,
pela culpa construída e insculpida no corpo pelas fortes instituições morais e legais, que
explicariam em grande parte a obsessão norte-americana pela ordem, que agiriam como forças
contrárias às formas espontâneas de vida social.
Inserido neste debate, Roberto DaMatta sustenta a existência de diferenças entre
sociedades que operam sob a orientação do domínio da pessoa e aquelas outras, que privilegiam
o domínio do indivíduo. Ressalta o autor, no entanto, que as duas noções – pessoa e indivíduo
- estão sempre presentes nas diferentes sociedades, existindo, portanto uma dialética entre os
dois conceitos. Ora a noção de pessoa prepondera sobre a de indivíduo, ora, o contrário ocorre.
Através da análise do rito autoritário da máxima “sabe com quem está falando?”,
DaMatta constata, através do estudo do caso brasileiro, a existência de uma estrutura social
construída, principalmente, a partir das relações interpessoais de compadrio e troca de favores
em detrimento de um sistema baseado na igualdade, na impessoalidade conferida pelas leis e
regulamentos gerais que se aplicam de igual modo e intensidade a todos.
Enquanto Cândido corrobora com um Brasil jovial e cordial, na linha de Sérgio
Buarque de Hollanda, que acaba criando um tipo roussoniano tropical, DaMatta evoca
criticamente para o brasileiro a tradição escravocrata e dominial, denunciando a estrutura
hierárquica que persiste na história brasileira. Para DaMatta não existe o malandro tal qual
Cândido contempla, tampouco o homem cordial, mas sim, indivíduos que se relacionam
autoritariamente na micropolítica cotidiana. Qualquer que seja o posto, a autoridade é acionada,
e as relações se modificam a partir deste rito. O brasileiro é tirano com o próximo.
Para o autor, o uso reiterado da expressão “sabem com quem está falando” pelos
cidadãos revela a existência de um rito de separação com características essencialmente
autoritárias e denuncia, do mesmo modo, a presença de uma estrutura social altamente
hierarquizada que se mostra como traço representativo essencial das sociedades que operam no
domínio da pessoa.
Nessas sociedades de pessoas, as relações interpessoais de consideração se mostram
como instrumento principal de acesso à cidadania, muito embora tal instrumento conviva
mutuamente com um discurso recorrente que se mostra avesso a esse rito autoritário. Sob o
manto dos enunciados de igualdade, universalidade e impessoalidade, existe a preponderância
do particular, dos laços pessoais como forma de garantia de acesso à cidadania. Através da

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exigência de tratamento diferenciado, personalizado, se estabelecem as relações numa


sociedade onde predomina o domínio da pessoa.
Observa Da Matta que o rito em destaque

(...) é um instrumento de uma sociedade em que as relações pessoais formam o


núcleo daquilo que chamamos de moralidade, e tem um enorme peso no jogo vivo
do sistema, sempre ocupando os espaços que as leis do estado e da economia não
penetram. É uma função da dimensão hierquizadora e da patronagem que permeia
nossas relações diferenciais e permite em consequência o estabelecimento de elos
personalizados em atividades basicamente impessoais.”9

Através da persecução de valores como “a intimidade, a consideração, o favor, o


respeito e apreciações éticas e estéticas generalizantes”10 a pessoa busca um tratamento especial
e exclusivo na aplicação da lei. Exige ser uma exceção à regra da generalidade, que é
característica principal de sociedades onde predomina a noção de indivíduo.
Enquanto o indivíduo se constrói na impessoalidade das leis, na universalidade, na
igualdade, no anonimato, se reconhecendo, assim, no público, eis que é ele quem contém a
sociedade dentro de si 11, a pessoa preza pelo privado, pelo biográfico, pela hierarquia definida
em termos de relações pessoais, de poder e prestígio. A pessoa busca a transcendência das
regras, a suspensão da igualdade em nome do tratamento diferenciado, do privilégio dado pelas
relações interpessoais, do “conchavo”, da “carteirada”.
Como já mencionado, se faz necessário destacar que o dualismo entre as noções de
indivíduo e pessoa é característico de todas as sociedades ocidentais, preponderando em alguns
sistemas a noção de pessoa, e em outros, a de indivíduo, havendo necessariamente uma
coexistência desses domínios.
Neste sentido, observa Da Matta que

(...) de um lado temos a ênfase numa lei universal (cujo sujeito é o indivíduo), sendo
apresentada como igual para todos; e de outro, temos a resposta indignada de alguém
que é uma pessoa e exige uma curvatura especial da lei (...) duas noções operando de
modo simultâneo, devendo a pesquisa sociológica localizar os contextos em que o
indivíduo e a pessoa são requeridos.12

9
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Ed. Rocco: Rio de janeiro,
1997, p. 185
10
Ibidem, p.192
11
Ibidem, p. 222
12
Ibidem, p. 229

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O malandro, para DaMatta, surge nas situações concretas, forçando sua passagem
através do uso do poder e prestígio disponibilizado pelos ritos autoritários que permitem sua
transição do domínio do indivíduo para o domínio da pessoa, e é assim que o “uso do rito de
autoridade expressa uma tentativa de transformação drástica, do universo da universalidade
legal para o mundo das relações concretas, pessoais e bibliográficas”13. A presença do malandro
no cenário social, para DaMatta, é a própria denúncia de uma sociedade hierarquizada que
prevê brechas de acesso a pessoas que conseguem estabelecer e/ou manter relações de
consideração, de apadrinhamento se apropriando e/ou se utilizando de poder e prestígio, de
forma autoritária, para exigir da lei uma curvatura que privilegie os interesses pessoais em jogo
em dado caso concreto. E deste modo, para o autor, o malandro é o símbolo do autoritarismo,
a sua personificação.
A lei geral e universal valeria num primeiro momento para todos os indivíduos, vez
que indiferenciados dentro da sociedade que se pressupõe inicialmente coberta pelo manto da
igualdade, pressuposto básico da democracia. Contudo, em situações de conflito, aberta a
possibilidade de não incidência das regras na iminência de algum prejuízo ou conseqüência
indesejada contrária aos interesses individuais envolvidos na situação prática, entra em jogo a
demanda pelo tratamento diferenciado informal e ali revela-se o momento exato da transição
do indivíduo para a pessoa.
O caso da sociedade norte-americana seria o inverso. Conforme observa o autor, há
naquela sociedade uma evidente preponderância do domínio do indivíduo, uma preocupação
em grande escala com a aplicação impessoal da lei. O tratamento indiferenciado entre os
indivíduos é a tônica da dinâmica social norte-americana, e por assim ser, o trânsito livre entre
a ordem e a desordem estaria prejudicado.

3. MALANDRAGEM EM PRETO E BRANCO

A narrativa da série Breaking Bad revela que por trás da sociedade de indivíduos -
baseada na aplicação da lei geral para todos, do moralismo puritano norte-americano ensejador
de uma culpa interna repressiva que impediria o processo de formação de formas espontâneas
de sociabilidade - existe uma estrutura social que denuncia a conduta individual que, mediada
através de manejos muito bem calculados, escapa da rígida ordem imposta.

13
Ibidem, p. 219

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As ações das personagens da série indicam a existência subjacente de uma desordem


latente que denuncia com mesmo efeito a ausência de obsessão de uma ordem que sobrevive
apenas como uma fina camada superficial da sociedade norte-americana. São desvios
comportamentais, imoralidades, transgressões, ilicitudes que passam desapercebidas pelo
termômetro ético das consciências das personagens e que ganham corpo no cotidiano, nas
práticas sociais rotineiras, exigindo, para tanto, longos formatos de adaptação.
Walter White possui marcado no seu dorso uma imensa letra escarlate cuja acentuada
cor é composta pela mistura do sangue das vidas ceifadas em decorrência da ganância cega e
do egoísmo do personagem. Diante da necessidade de sua sobrevivência e de sua família, o
anti-herói opta por caminhar pelo mundo sem quaisquer amarras morais, muito embora
mantenha, ciente do olhar vigilante da comunidade em que vive, a fantasia puritana que exibe
no dia a dia. White exige o lugar ao sol que tanta dedicação com o trabalho deveria ter trazido
da forma mais utilitarista possível, sob o salvo conduto do câncer, que na verdade se alastra
pela sua alma muito mais do que pelo corpo já doente.
Com a notícia do câncer, e do pouco tempo de vida que lhe resta, White decide
“despertar”, conforme enuncia no episódio piloto. Começa a produzir e traficar metanfetamina
para conseguir dinheiro para sua família, dado que sua morte é inevitável, e mesmo sabendo
que está cometendo um crime, a consciência desta conduta não lhe parece ser um impedimento
e isso graças a lógica utilitarista que orienta a consciência do personagem, racionalizando suas
condutas em torno de uma avaliação de custo e benefício. Nisto, destacamos que a criação pelo
protagonista de Heisenberg, seu alterego, é o ponto de virada da narrativa da série que indica
que as reflexões morais de White serão deliberadamente suplantadas em determinadas ocasiões
em benefício próprio.
White, inserido numa sociedade moral de valores rígidos, uma sociedade de
indivíduos - tal qual descreve DaMatta - ao se subordinar superficialmente à lei universal e
individualizante se revela como uma caricatura do moralismo que orienta a sociedade da qual
faz parte: possui um discurso sobre correção que orienta os caminhos de sua vida, mas tal
discurso se descola das suas ações. Mas esconde, e bem, as transgressões cometidas, e apesar
de ‘passar’ a imagem de um indivíduo que age corretamente, moralmente, temos um
personagem egoísta, por vezes cruel, e que não enxerga o prejuízo que causa ao mundo a seu
redor.

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Para o protagonista não há problema algum em produzir e traficar metanfetamina e


que com isso seja causado um prejuízo à sociedade e, especialmente, à vida pessoal de seu
parceiro, que é viciado no produto que distribui. As preocupações de White com o jovem
parceiro se resumem às questões que envolvem exclusivamente a felicidade do protagonista.
Se a produção e a venda de metanfetamina forem prejudicadas por conta de algum problema
na vida de Jesse Pinkman, afetando de algum modo o lucro do protagonista com o negócio,
White é capaz de resgatá-lo do inferno, e se sente bem com isso, como se fosse o salvador e
redentor do jovem. Através do correto e preciso manejo da hipocrisia e da mentira White passa
pelas reavaliações morais de suas próprias ações, e assim, dá continuidade aos seus desejos e
anseios, objetivando ao final, a sua própria satisfação material e emocional. A letra escarlate
permanece escondida sob suas roupas de tom pastel, que se tornam recorrentes a partir do seu
ingresso no mundo do crime.
Neste sentido, temos que White é um malandro, mas de natureza diversa daquele
compreendido pela análise Cândido: é um malandro do puritanismo, que através destes jogos
de interpretação entre o certo e o errado, orientado pela busca da felicidade, subverte a ordem
estabelecida, ocultamente, sem que ninguém saiba ou perceba. O segredo acerca do conduta
desviante, transgressiva, é condição indispensável deste modo de agir peculiar à sociedade
norte-americana.
Jesse Pinkman, o pupilo e principal comparsa de White, não racionaliza acerca de
suas condutas e, assim, dificilmente poderíamos afirmar que suas ações estão orientadas por
uma análise de custo e benefício, própria do utilitarismo. O personagem, um outsider viciado
em metanfetamina, que caminha pelo submundo das drogas, seja consumindo, seja vendendo
e produzindo, possui uma hipersensibilidade em relação ao mundo que conquista o espectador.
Pinkman é a resistência, é o olhar de humanidade que falta a quase todos os outros personagens
da série. E por isso se culpa, se destrói, e irracionalmente, se vê tragado para um buraco que ele
mesmo criou. Se existe algum traço de malandragem o personagem é apenas o resquício do
malandro romantizado, quase um pícaro, que se brutaliza ante as circunstâncias da vida, mas
possui uma natureza ingênua e uma espontaneidade que afasta a lógica utilitarista. O
comportamento em Pinkman são apenas reflexos de ataque e defesa, nada mais.
O cunhado de White, Hank Schrader, o agente da narcóticos que investiga, sem saber,
White, é o bastião da ordem, modelo forte de conduta regrada e ilibada, o arquétipo do
americano puritano tradicional. Hank é a referência de ordem e moral dos outros personagens

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da série. Aos poucos, é revelado que o exemplar (e politicamente incorreto) agente do


departamento de narcotráfico da polícia de Albuquerque dá seus passeios pela desordem,
fazendo vista grossa aos roubos de sua mulher em lojas de jóias e roupas, torturando
prisioneiros para conseguir informações, importando charutos proibidos de Cuba, entre outros
deslizes morais e ilícitos, que passam desapercebidos por qualquer julgamento moral interno.
Os desvios de conduta do bastião da ordem da série ocorrem através da mesma dinâmica que
as transgressões de White se dão. O custo-benefício das ações de Hank indicam que este
percebe que seus desvios são muito mais úteis que prejudiciais à sociedade. Ou seja, torturar os
prisioneiros não se mostra como atitude reprovável se tal proceder leva ao principal traficante
da cidade de Albuquerque, que causa com suas ações criminosas muito mais dano aos
indivíduos. Muito embora seja eixo de autoridade, Hank se apropria da ética utilitarista, do
mesmo modo que White. Através de um método indutivo/empírico, que leva em conta as
experiências pessoais, Hank pondera acerca de suas escolhas, buscando a melhor performance,
ainda que, os danos oriundos de tal escolha sejam inevitáveis.
Skyler, a mulher de White, irredutível personagem quando se trata de flexibilização
nas suas convicções morais, é a própria encarnação da obsessão norte-americana pela ordem.
É a mão-de-ferro que, através de seu discurso e ações, em inúmeros momentos, traz à tona todo
o sistema de valores morais constritores de condutas. Contudo, ao descobrir que o marido está
produzindo e traficando drogas, depois de superadas as tormentas que a consciência lhe
preparou, resolve tornar lícito o dinheiro sujo do negócio de White, propondo a compra de um
lava-jato, que serviria de empresa de fachada, se apropriando das mentiras do marido, tornando-
as verossímeis. Soma-se isto o caso extraconjugal que Skyler manteve com seu chefe, mas que,
no entanto, não aparentou qualquer arrependimento ou culpa. O moralismo é, sem maiores
reflexões, posto de lado, sem muitas cerimônias. O pensamento consequencialista de Skyler
demonstra o peso que a personagem confere à reinterpretação entre o certo e o errado.
Dependendo da circunstância, do caso concreto, Skyler adequa os significados da moral que
muito bem conhece. Mas, assim como o marido, mantém a letra escarlate escondida por baixo
da roupa, uma outra letra, diversa da A, de adultério, eis que o caso extraconjugal não foi
escondido dos olhos da sociedade.
Saul Goodman, advogado de White e Pinkman - que surgiu como um personagem
secundário, mas ganhou espaço e atualmente é o protagonista de uma série que carrega o seu
lema profissional, a saber, “Better call Saul”- é o que mais se aproxima do malandro brasileiro,

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conforme o pensamento de Cândido. Goodman utiliza o trânsito entre a ordem a desordem


como ferramenta de trabalho. Entre ilegalidades, ilicitudes e o ordenamento jurídico norte-
americano, o patrono de White opera dentro e fora da lei e da moral, para garantir a satisfação
dos seus clientes, e consequentemente, alcançar o sucesso em sua carreira. E nesta lista de
ilicitudes que buscam se travestir em legalidades estão incluídas negociatas com traficantes e
revendedores de drogas, lavagem de dinheiro, saídas legais para problemas burocráticos, entre
outras diversas práticas moralmente corrosivas.
Gus Fring, o poderoso executivo da rede de restaurantes de fast-food Los Pollos
Hermanos, controla ao mesmo tempo o mercado nacional norte-americano de metanfetamina.
Vestido com ternos impecáveis, uma postura elegante, cauteloso, disciplinado, uma fala serena,
calma, aparentemente, Gus é a própria visão da ordem, o exemplar mais puro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Superficialmente, a sociedade representada pela série é igualitária, com valores


traduzidos em termos de normas legais e morais que se aplicam indistintamente a todos,
independente do status ou qualquer outra condição social que o indivíduo possa ostentar. Mas,
numa análise mais detida, temos que os valores impostos são por vezes ficções e não se adaptam
à realidade dos indivíduos e que, em razão da urgência de sobrevivência social, de busca pelo
saldo líquido de prazer há nestas sociedades de indivíduos a necessidade inerente de
transformação do universo social, muito embora, não declarada.
Todavia, a transformação social na sociedade americana se dá através de uma outra
abordagem, através de outro intricado viés. A letra escarlate que se mantém escondida dos olhos
de todos é parte do modelo puritano de malandragem. Na sociedade norte-americana não
observamos espaço para a existência do malandro de Cândido, contudo, notamos a criação de
um outro tipo, um malandro do puritanismo, que obedece a um proceder muito peculiar.
O malandro brasileiro de Cândido surge num mundo ausente de culpas, onde todos
os membros da sociedade cometem transgressões, desvios, imoralidades, ilícitos, e por assim
ser, ninguém é censurado. Transitar entre a ordem e a desordem é o ato de não se submeter por
completo à lei geral, é operar para além do princípio da igualdade, princípio tão caro às
sociedades ocidentais modernas. A dialética da ordem e da desordem é a confirmação e a

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exigência de que a lei e a moral não devem ser aplicadas em alguns casos, devem se manter
secretamente, diante do olhar do outro, suspensas.
O contrário ocorre nas sociedades de indivíduos norte-americanas, cujo sistema
observa a necessidade de igualdade de tratamento através de uma lei geral que todos, sem
exceção devem seguir. Os hemisférios da ordem e da desordem se encontram de forma
dialética, como possibilidade de formação de formas espontâneas de vida social, apenas no caso
brasileiro. A obsessão pela ordem e a força da moral tradicional não permite que surja o
malandro brasileiro na sociedade americana, não permite que a ordem e a desordem se
articulem assim, à luz do dia, às claras. A utilidade da letra escarlate que se esconde dos olhares
de toda a comunidade, cria o malandro de tipo puritano, que através da ética utilitarista,
transgride, em segredo, longe dos olhares reprovadores e sancionadores. As transgressões se
consumam e são escondidas pelo falso-moralismo, que se conecta, somente neste sentido, à
afirmação de Cândido: a hipocrisia é o pilar da civilização ocidental.

REFERÊNCIAS

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Revista do Instituto brasileiro, nº 8, São Paulo, USP, 1970.

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680
Grupo de Trabalho 10

ESTADO,
POLÍTICAS PÚBLICAS E
GOVERNANÇA

dclxxxi
A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE:
UM ESTUDO DOCUMENTAL

CHRIZOSTIMO, Raquel Marinho


Estudante de mestrado do Programa Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde – PACCS, da Escola de
Enfermagem Aurora de Afonso Costa - EEAAC, da Universidade Federal Fluminense (UFF)
SILVINO, Zenith Rosa
Doutora, professora titular do Departamento de Fundamentos de Enfermagem e Administração e do Programa
Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde - PACCS, da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa -
EEAAC, da Universidade Federal Fluminense (UFF)
SANTOS, Marcelo José
Aluno especial do Mestrado Profissional de Ensino na Saúde – MPES, da Escola de Enfermagem Aurora de
Afonso Costa - EEAAC, da Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO

Trata-se de estudo documental com abordagem quantitativa que visa discutir os principais casos de
procura do judiciário para solução de litígios relacionados às pessoas jurídicas de direito privado que
operam planos de assistência à saúde, regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Envolve
direito social garantido constitucionalmente e, assim, a pesquisa abordará casos publicados da 26ª
Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no período de 2012 a
2016. No desenvolvimento será verificada a judicialização da saúde, ao considerar demandas repetitivas
relacionadas ao assunto, decorrente da falta de garantia a esse direito na esfera administrativa. Os dados
serão coletados por meio de formulário com a utilização de busca de Decisões Monocráticas e/ou
Acórdãos no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Assim, trará como possibilidade
de solução para o problema a reestruturação da esfera administrativa.

Palavras-Chave. Judicialização da saúde; Sistema único de Saúde (SUS); Plano de saúde

ABSTRACT

This is a documentary study with a quantitative approach that aims to discuss the main cases of judicial
search for the settlement of litigation related to legal entities under private law that operate health care
plans, regulated by the National Agency of Supplementary Health. It involves a constitutionally
guaranteed social right and, thus, the research will address published cases of the 26th Consumer Civil
Chamber of the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro, between 2012 and 2016. In the
development will be verified the judicialization of health, when considering demands related to the
subject, due to the lack of guarantee to this right in the administrative sphere. The data will be collected
through a form using the search for Monocratic Decisions and / or Judgments on the website of the
Court of Justice of the State of Rio de Janeiro. Thus, it will be possible to solve the problem of
restructuring the administrative sphere.

Keywords. Judicialization of health; Single Health System (SUS); Health insurance

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho foi baseado em projeto de pesquisa do Mestrado do Programa


Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde, da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso
Costa, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem como objeto de pesquisa os casos de
litígios da 26ª Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
no período de 2012 a 2016, relacionados às pessoas jurídicas de direito privado que operam
planos de assistência à saúde, regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Surge
a partir do interesse em estudar casos de prestação de tutela jurisdicional relacionados a usuários
de planos de saúde no TJ/RJ, através de pesquisa com abordagem quantitativa. Como o estudo
está em fase inicial, os resultados ainda não foram obtidos.
Sendo assim, a investigação se desenvolverá com intuito de que se verifique a
judicialização da saúde, tendo em vista a grande quantidade de demandas judiciais relacionadas
ao assunto, decorrente da falta de garantia a esse direito na esfera administrativa. Com base
neste tema, será estudada a trajetória do surgimento dos direitos sociais, com foco no direito à
saúde, com consequente reflexão sobre alguns entraves que impedem a garantia plena deste
direito, de forma a verificar possíveis soluções para o problema.
Neste contexto, cabe enfatizar que, no Brasil, o marco inicial da institucionalização
dos direitos sociais foi a Constituição de 1934, com influência das Constituições do México
(1917); da Alemanha, de Weimar (1919); e da Espanha (1931) (MARTINS, 2008, p. 23). De
início, tratava-se de normas fundamentalmente programáticas, no entanto, a intenção foi de
tornar essas normas eficazes, pois quanto mais se reconhece eficácia e se aplica normas
constitucionais que reconhecem direitos sociais, sua principal garantia é revelada.
Conforme Martins (2008, p. 23), a Constituição de 1937 “suprimiu direitos civis e
políticos, de forma a estabelecer uma ordem econômica liberal, sem relação com o princípio da
justiça e dos anseios da população, o que impossibilitou retirar suas necessidades básicas e
violando o princípio da dignidade da pessoa humana”.
A Constituição de 1946 voltou a prever os direitos sociais e aderiu às ideias da
Constituição alemã de Weimar em 1919 (MARTINS, 2008, p. 23) ao dispor sobre “ordem
econômica, social e liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano”.
A Constituição de 1967, marcada por um “grande período de ditadura militar e pela
concentração de poder”, de 1967 a 1985, (MARTINS, 2008, p. 23), significou retrocesso

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quanto aos direitos políticos. Já em relação aos direitos sociais, não apresentou grandes
alterações, apenas diminuiu as possibilidades de intervenção do Estado na esfera econômica.
O centro dos direitos sociais da atual Constituição (BRASIL, 1988) está fundado no
direito do trabalho e no direito de seguridade social e, em torno destes, outros direitos gravitam.
O direito à saúde é um deles, bem como o direito de previdência social, o de assistência social,
o de educação e o do meio ambiente.
A Constituição Federal de 1988 inaugura a abordagem sobre os direitos econômicos,
sociais e culturais no rol dos direitos fundamentais e, a fim de que esses direitos sejam eficazes,
menciona dispositivos que abordam a matéria, como, por exemplo, a previsão de fonte de
recursos para a seguridade social, com aplicação obrigatória nas ações e serviços de saúde e às
prestações previdenciárias e assistenciais (arts. 194 e 195) e a reserva de recursos orçamentários
para a educação (art. 212), além de outros (BRASIL, 1988).
Doutrinariamente, os direitos sociais são chamados de direitos fundamentais de
segunda geração e se revelam como direitos de crédito do indivíduo contra o Estado. Foi na
intenção de toda população ter acesso ao direito à saúde que o Sistema Único de Saúde (SUS)
foi criado pela Constituição Federal de 1988 (art. 198) e regulamentado pela Lei nº 8.080/90,
chamada Lei Orgânica da Saúde (BRASIL, 1990a), e pela Lei nº 8.142/90 (BRASIL, 1990b).
O SUS surgiu com o fim de modificar a situação de desigualdade na assistência à
saúde, através da obrigatoriedade do atendimento público a qualquer indivíduo, com proibição
de cobrança de quaisquer valores pelo serviço prestado. Dessa forma, pode-se dizer que a ideia
inicial era de equidade no atendimento das necessidades de saúde da população, com oferta de
serviços de qualidade adaptados às necessidades, independente do poder aquisitivo do
indivíduo. Objetiva gerar saúde ao privilegiar as ações preventivas e ao democratizar as
informações importantes, para que a população perceba seus direitos e riscos à saúde.
As Leis 8.080/90 (BRASIL, 1990a) e 8.142/90 (BRASIL, 1990b) dispõem que, em
cada esfera de governo, a direção do SUS é formada pelo órgão setorial do Poder Executivo e
pelo Conselho de Saúde correspondente.
O SUS tem algumas responsabilidades, dentre elas, controlar a ocorrência de doenças,
seu aumento e propagação; controlar a qualidade de remédios, exames, alimentos, higiene e
adequação de instalações que atendem ao público, onde atua a vigilância sanitária.
Os centros e postos de saúde, hospitais, inclusive os universitários, laboratórios,
hemocentros, fundações e institutos de pesquisa integram o SUS. Assim, pelo SUS as pessoas

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têm direito a consultas, exames, internações e tratamentos nas Unidades de Saúde ligadas ao
SUS, públicas (de ordem municipal, estadual e federal), ou privadas, contratadas pelo gestor
público de saúde.
A participação do setor privado no SUS pode causar estranheza, no entanto, isto
ocorre, ainda que seja de maneira complementar, através de contratos e convênios de prestação
de serviço ao Estado em ocasiões em que as unidades públicas de assistência à saúde são
insuficientes para garantir atendimento a toda população de determinada região.
Para funcionar adequadamente, o SUS se estruturou com base em princípios, quais
sejam: princípio da saúde como direito; princípio da unidade do sistema SUS; princípio da
integralidade do atendimento; princípio da preservação da autonomia das pessoas; princípio do
direito à informação às pessoas assistidas; princípio da igualdade; princípio da participação da
comunidade; princípio da solidariedade no financiamento, ou da diversidade da base de
financiamento; princípio da vinculação de recursos orçamentários; princípio da ressarcibilidade
ao SUS; princípio da prevenção ou precaução; princípio da beneficência; princípio do não
retrocesso; e princípio da justiça
A gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) tem duas modalidades de participação
popular, as Conferências e os Conselhos de Saúde, que estão previstos na Lei 8.142/1990
(BRASIL, 1990b). Já o controle, é exercido por órgãos interno e externo, além do Sistema
Nacional de Auditoria (SNA), previsto no art. 16, XIX da Lei nº 8.080/1990 (BRASIL, 1990a)
e no art. 6º da Lei nº 8.689/1993 (BRASIL, 1993), organizado junto à direção do SUS.
As entidades privadas com ou sem fins lucrativos que a respectiva direção do Sistema
Único de Saúde tiver celebrado contrato ou convênio sofrerão controle, avaliação e auditoria
pelos órgãos do SNA. Ou seja, as atividades de controle de execução, para averiguar
consonância com os padrões; auditoria de regularidade dos procedimentos praticados por
pessoas naturais e jurídicas, por exame analítico e pericial e a avaliação da estrutura, dos
processos aplicados e dos resultados alcançados, para conseguir ajustamento aos critérios e
parâmetros exigidos de eficiência, eficácia e efetividade, referentes às ações e serviços
desenvolvidos no âmbito do SUS, serão realizados pelo SNA.
Ocorre que, embora estruturado com a finalidade de atender a população de forma
igualitária, o SUS apresenta diversos problemas demonstrados pelas grandes filas, atendimento
deficiente, ausência de leitos, exames, médicos e medicamentos. No entanto, é preciso destacar

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que os referidos entraves não surgiram com o SUS, são resultado de uma desordem histórica
de um modelo de atenção à saúde centrado na assistência médica.
Assim, diante das falhas na prestação de serviços de saúde e na intenção de obter
qualidade, a população começou a recorrer aos planos de saúde. Os planos de saúde atuam
numa esfera denominada “saúde suplementar”, que se refere à prestação de serviços de saúde
em contexto diferente daquele do Sistema Único de Saúde. A “saúde suplementar” está ligada
a um sistema organizado de intermediação por pessoas jurídicas especializadas, denominadas
operadoras de planos de saúde. Melhor dizendo, revela prestação privada de assistência
médico-hospitalar no âmbito do subsistema da saúde privada por operadoras de planos de
saúde.
Os contratos de Direito Público ou convênios entre hospitais ou serviços privados e o
SUS, nem o atendimento por meio de pagamento direto pelo paciente não estão inseridos na
esfera da “saúde suplementar”.
A Lei nº 9.656/1998 (BRASIL, 1998) disciplina sobre os planos de saúde e foi
alterada por algumas Medidas Provisórias, até chegar à Medida Provisória nº 2.177-44, de 24
de agosto de 2001 (BRASIL, 2001), que está em vigor. Já a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), é o órgão responsável pela regulação, normatização, controle e
fiscalização das atividades realizadas pelos planos de saúde.
A ANS foi criada pela Lei nº 9.961/2000 (BRASIL, 2000), que prevê em seu art.1º
que se trata de “órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que
garantam a assistência suplementar à saúde”, bem como dispõe no art. 3º que “a ANS terá como
finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à
saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e
consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País”.
Dessa forma, a ANS se revela como o órgão responsável por contornar a relação entre
usuários e operadoras de serviços de saúde, com implementação de regras e fiscalização das
atividades executadas, de forma que os serviços sejam prestados de forma adequada. No
entanto, não raro, a ANS tem apresentado deficiência em suas atividades.
Ou seja, também na assistência à saúde privada, diversos problemas têm ocorrido,
especialmente quanto às questões que envolvem abuso ao direito do consumidor. Os planos de
saúde, em muitos casos, negam a prestação de serviço de saúde a usuários que têm direito de

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obtê-los. Sendo assim, impossibilitada a resolução do conflito na esfera administrativa, resta


aos interessados buscar solução no judiciário.
Dessa forma, fica a cargo dos juízes decidirem demandas referentes a fornecimento
de remédios, tratamentos de saúde, cirurgias, internações, dentre outros procedimentos
terapêuticos. Portanto, o judiciário fica abarrotado de ações vinculadas ao tema saúde, o que
pode se denominar “judicialização da saúde”.
Se, com a existência de problemas, as pessoas se deparassem com uma administração
bem estruturada, capaz de apresentar soluções, elas não teriam necessidade de procurar o
judiciário, o que colaboraria para reduzir o número de demandas repetitivas.
Além disso, é importante destacar que, para resolver demandas referentes à saúde, o
julgador adentra em um domínio que foge ao seu conhecimento técnico. Desta forma, para
melhor solucionar os problemas que envolvem prestação de serviços e produtos de saúde, seria
adequado reestruturar a administração, tendo em vista ser este o setor responsável.
Logo, diante dos entraves apresentados quanto à prestação de serviços e produtos de
saúde, o estudo analisará os principais pedidos judiciais referentes à saúde vinculados à
prestação de serviços pelos planos de saúde, no âmbito da 26ª Câmara Cível do Consumidor
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro no período de 2012 a 2016.

1. DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA

Tendo em vista que o Poder Executivo é o responsável por garantir assistência


terapêutica à população brasileira, quais são as mais frequentes demandas judiciais da 26ª
Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vinculadas à
prestação de serviços e produtos de saúde?

2. HIPÓTESE

A reestruturação da esfera administrativa para que ela possa atender as demandas da


população decorrentes da ausência de fornecimento de produtos e serviços de saúde, ao
considerar a deficiência da gestão em assistência à saúde. Dessa forma, o judiciário atuaria
excepcionalmente, e não como órgão primordial de fornecimento de serviços e produtos de
saúde.

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3. JUSTIFICATIVA/RELEVÂNCIA

A pesquisa é relevante tendo em vista estar diretamente vinculada ao direito à saúde,


direito essencial do cidadão garantido constitucionalmente. Interessante, portanto, é o estudo
de alguns fatores que dificultam a garantia plena desse direito, pois geram desdobramentos que
prejudicam a sociedade como um todo.
Então, a trajetória que tornou o direito à saúde importante merece ser estudada. Com
a transição do feudalismo para o capitalismo e entrada na Idade Moderna, uma nova percepção
de mundo passou a se consolidar gradualmente. Através dos processos de secularização,
racionalização e individualização, a ideologia tradicional da Igreja Católica Romana foi sendo
substituída, assim a legitimidade de uma sociedade hierarquizada, com base em privilégios de
nascimento, perdeu a força.
Nesta fase de mudanças, o saber científico, crítico e otimista predominou a fé e o
trinômio particularismo/organicismo/heteronomia foi substituído pelo trinômio
universalidade/individualidade/autonomia, que dispõe que a descoberta das verdades depende
do esforço criativo do homem (PINSKY, 2003, p. 115).
O desenvolvimento de uma consciência histórica da desigualdade foi um dos eventos
mais relevantes dessa transição, a contextualização histórica da desigualdade fundamentou uma
importante mudança no caminho da humanidade: a do citadino/súdito para citadino/cidadão.
Dessa forma, a partir de então, o homem passou a ter direitos na cidade além de
deveres. A Era dos Deveres abre espaço para uma próspera Era dos Direitos. Desse modo, a
evolução da cidadania na Europa centro-ocidental foi marcada pelo desenvolvimento dos
direitos civis no século XVIII, desenvolvimento dos direitos políticos no século XIX e
desenvolvimento dos direitos sociais no século XX.
Relacionadas a tais direitos, outras formas de Estado, outras funções estatais
indicadoras de uma relação dinâmica entre indivíduos, sociedade e aparelho estatal foram
formadas.
A origem do desenvolvimento dos direitos de cidadania se deu no século XVII,
quando ocorreu a Revolução Inglesa, considerada a primeira revolução burguesa da história e
que fez surgir o primeiro país capitalista do mundo.
Nos Estados Unidos da América, a cidadania e a liberdade estão intrinsecamente
ligadas e foram consolidadas a partir da experiência colonial e da Guerra de Independência.

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O conceito norte-americano de cidadania foi estruturado com base em documentos


como a Declaração de Independência, as dez primeiras emendas, o zelo da Suprema Corte e
com novas legislações como o Civil Rights Act de 1964 (PINSKY, 2003, p. 151), que extinguia,
juridicamente, quaisquer diferenças de raça, sexo, cor, religião ou origem nacional.
Por um lado, a cidadania era estruturada a partir de instrumentos de defesa do
indivíduo perante o Estado ou outros indivíduos, por outro lado, era construída a ideia do
excepcionalismo norte-americano, ligado à ideologia do dever do país propagar essas virtudes
pelo mundo.
Muitos processos históricos surgiram no século XVIII e, dentre eles, um importante
processo, o de construção do homem comum como sujeito de direitos civis, com destaque para
a Revolução Francesa, que pode ser compreendida como instauradora dos direitos civis. No
entanto, é importante destacar que o direito natural foi inaugurado no século XVII e tem como
base a razão, característica central do homem.
Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade impulsionaram a Revolução Francesa
e, com base neles, lutou-se contra as opressões vividas desde muito tempo, bem como
sintetizou-se a natureza do novo cidadão.
Assim como a Revolução Americana, a Revolução Francesa teve como ponto crucial
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, embora divergentes, já que a Declaração
francesa pretendia ser universal, ou seja, declarar os direitos civis dos homens, sem qualquer
tipo de diferenciação e que abrangesse a humanidade como um todo.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França, por apresentar caráter
universal, representa avanço no processo de transformação do homem comum em cidadão,
cujos direitos civis lhe são garantidos por lei (PINSKY, 2003).
A Declaração também dispõe sobre direitos da Nação, sendo que estes devem estar
subordinados aos direitos do cidadão, já que o Estado não é um fim em si mesmo e seu principal
objetivo é assegurar o exercício dos direitos civis ao cidadão. Se o Estado não cumpre essa sua
incumbência, o cidadão tem direito de insurgir.
Os 17 artigos desta Declaração da França inauguraram um novo período histórico.
Portanto, pode-se dizer que a cidadania vem se construindo de forma paulatina desde a
Revolução Inglesa no século XVII, passando pelas Revoluções Americana e Francesa e,
especialmente, pela Revolução Industrial, já que este último movimento fez surgir uma nova
classe social, o proletariado.

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O proletariado adveio da burguesia e, além de trazer dela a consciência histórica do


papel de força revolucionária, buscou ampliar nos séculos XIX e XX os direitos civis que
auxiliou a burguesia a conquistar, por meio da Revolução Francesa. E, assim, abre-se o leque
de possibilidades para que as minorias tenham chance de serem abrangidas pelos direitos civis,
sendo certo que a história está em constante construção.
É nesta perspectiva, de enxergar o ser humano como cidadão, que algumas garantias
surgiram. Além de obrigações, o homem passou a ter direitos, dentre eles, os sociais. Os direitos
sociais visam garantir mínima qualidade de vida às pessoas, através da prestação de serviços.
Assim, relevante é o estudo do direito à saúde, previsto constitucionalmente, vez que
se trata de direito social que tem como finalidade garantir condição básica de vida à população.

4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A fundamentação do estudo contará com a contribuição de ALVES, Danielle Garcia


e CARDOSO, Henrique Ribeiro, que mencionam que a instauração de políticas públicas pelo
Poder Público, principalmente aquelas que se referem à saúde, estaria vinculada aos princípios
e preceitos constitucionais, e não à livre vontade do administrador, de forma que o destinatário
de seus serviços, o cidadão, seja tratado com a dignidade e o respeito que sua condição de ser
humano impõe, dentro de uma atuação ética dos profissionais de saúde e do Poder Público.
Também será utilizada GONÇALVES, Sandra Krieger, que leva a refletir sobre a
efetivação do Direito à Saúde e analisar os problemas decorrentes da fundamentação utilizada
pelo Poder Judiciário no momento de intervir nas relações jurídicas respectivas, sobretudo
naquelas travadas em sede de Saúde Suplementar.
E, ainda, CARNEIRO, Bernardo Lima Vasconcelos, que dispõe sobre a amplitude do
âmbito de proteção material do direito fundamental à saúde em cada caso concreto levado ao
conhecimento do Judiciário, nos quais se requer o custeio estatal de medicamento ou tratamento
não disponibilizado pelo SUS.
Assim, esses autores irão auxiliar no fundamento teórico.

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5. OBJETIVOS

5.1. OBJETIVO GERAL

Discutir os principais casos julgados pela 26ª Câmara Cível do Consumidor do


Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no período de 2012 a 2016, para solução de
litígios relacionados às pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à
saúde, regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.

5.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

 Identificar casos de procura do judiciário para solução de litígios relacionados às


pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde,
regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar;
 Estabelecer a prevalência dos litígios;
 Qualificar os temas emergentes dos litígios.

6. METODOLOGIA

Pesquisa documental de abordagem quantitativa sobre os casos julgados e publicados


da 26ª Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no
período de 2012 a 2016.
Os dados serão coletados por meio de formulário com a utilização de busca de
Decisões Monocráticas e/ou Acórdãos no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, com critério de inclusão baseado no tema plano de saúde; na origem e competência do
órgão julgador; no período dos julgados; na motivação do requerente por não ter suas
necessidades de prestação de serviços e/ou produtos de saúde atendidas no âmbito
administrativo. Quanto aos critérios de exclusão, serão desconsiderados os casos que não
atendam ao objeto da pesquisa; os julgados que não estejam vinculados à busca de prestação
de serviços e produtos de saúde, embora vinculados aos planos de saúde.
Estes dados serão tratados com o uso de programa estatístico denominado Excel, para
saber a frequência dos serviços e produtos de saúde requeridos às pessoas jurídicas de direito
privado que operam planos de assistência à saúde.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como o estudo está em fase inicial, não há resultados concretos de quantificação das
principais demandas judiciais referentes à prestação de saúde pelos planos de pré-pagamento
no âmbito da 26ª Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, no período de 2012 a 2016. Portanto, o desenvolvimento se dará com intuito de que
essas necessidades sejam contabilizadas, com observância de que o direito à saúde é
constitucionalmente garantido e se encontra no rol dos direitos fundamentais, o que demonstra
sua relevância à população.

REFERÊNCIAS

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693
GOVERNANÇA CORPORATIVA,
GOVERNANÇA PÚBLICA E ACCOUNTABILITY:
INSTRUMENTOS PARA A CONCRETIZAÇÃO
DE DIRETOS FUNDAMENTAIS NAS COMPANHIAS ABERTAS

DALCASTEL, Marcia Bataglin


Professora Adjunta de Direito Empresarial da Universidade Federal Fluminense.
Doutora em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
ALONSO, Pedro Moreira
Bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense
Bolsista de Iniciação Científica da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ

RESUMO

O presente trabalho visa analisar como as normas de governança corporativa e governança pública
podem contribuir para a efetividade dos direitos fundamentais, pelo fortalecimento do princípio da
prestação de contas (accountability), nas relações jurídicas polarizadas por sociedades anônimas de
capital aberto, mais especificamente as sociedades de economia mista. Para tal, primeiro será feita uma
breve análise das governanças corporativa e pública na cultura empresarial nacional e como a
governança pode ser instrumentalizada para a prevenção de danos aos direitos humanos/fundamentais.
Logo após, será procedido um estudo de caso a partir da análise dos instrumentos de governança
adotados pelas sociedades de economia mista Petrobras S/A, Copel S/A e CEDAE, além de um breve
exame a fim de averiguar se estas promessas se realizam, a partir de busca realizada no banco de dados
disponibilizado no sítio eletrônico do Ministério Público do Trabalho.

Palavras-Chave. Governança Corporativa, Governança Pública, Direitos Fundamentais.

ABSTRACT

This present paper intends to analyze how corporate governance and public governance norms can
contribute to the enforcement of the constitutional rights, by the empowerment of the accountability in
the juridical relations polarized by join-stock companies, more specifically those that are state-owned
enterprises. In order to do it, will be proceeded a brief analysis of the corporate and public governance
in brazilian business culture, and how the governance can be utilized for the prevention of damages in
constitutional/human rights. There upon will be proceeded a case study by the review of governance
instruments adopted by Petrobras S/A, Copel S/A and CEDAE, and a short scrutiny to discover if these
promises are undertaken, by means of a search in the database from the website of the Ministério Público
do Trabalho.

Keywords. Corporate Governance, Public Governance, Constitutional Rights.

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ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O movimento de implementação das boas práticas de governança corporativa vem


crescendo na cultura empresarial brasileira, mormente no âmbito das sociedades anônimas de
capital aberto. A governança corporativa pode ser definida como um conjunto de modos de agir
empresarial em prol da ética, probidade, transparência, com o fim último de melhor informar
os investidores e, assim evitar os conflitos internos na sociedade1.
O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, um dos mais eminentes
atores do movimento de implementação da governança, dentre várias de suas publicações,
editou o Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, contendo diversas
recomendações nesse fim. Cabe ressaltar que há um capitulo do referido Código que trata da
prevenção dos atos de caráter ilícito, no qual propõe que as companhias criem um canal de
denúncias para apuração interna de atos ilícitos cometidos pela companhia e mantenham um
órgão interno independente para receber e apurar tais relatos. Partindo da premissa de que toda
agressão a direitos fundamentais constitui espécie de ato ilícito, pode-se dizer que tais medidas
podem vir a colaborar com a diminuição de lesões a direitos fundamentais no âmbito das
companhias.
Nessa linha de proteção e prevenção, não se pode olvidar do relatório da ONU em
matéria de Direitos Humanos e Empresas, mais conhecido como Princípios Ruggie, no qual
pela primeira vez as Nações Unidas estabeleceram princípios norteadores de tal matéria. Os
princípios são baseados no trinômio proteger, respeitar e reparar, de modo a não somente
estabelecer obrigações negativas – abster-se de violar -, mas também obrigações positivas,
impondo aos estados-membros e às empresas a obrigação de promoção dos direitos humanos.
Para além do que já existe em matéria de governança corporativa, aos moldes do que
propõem o IBGC e os próprios Princípios Ruggie em matéria de Direitos Humanos, há que se
destacar também as normas que abordam o tema da governança sob um viés da Administração
Pública, quando estamos a tratar de empresa pública e sociedade de economia mista. Mais
especificamente quando se tratar de sociedade de economia mista que possui características
muito próprias, visto serem entes da administração pública indireta, mas que seguem também
regras das sociedades privadas, nos termos do que determina o texto constitucional (art. 173).

1 Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa em seu Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa:
(...) governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas,
envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais
partes interessadas. ” (IBGC, 2015, p.20)

695
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Muitas delas com ações negociadas em bolsa de valores, também se submetem às regras da
Comissão de Valores Mobiliários – CVM, bem como devem estar em conformidade com o
que sugere o IBGC para que possuam um grau de governança perante a Bolsa de Valores que
possa atrair investidores.
Desse modo, o que em princípio se busca destacar é a relação entre direitos
humanos/fundamentais e mercado de capitais quando se está diante de uma sociedade de
economia mista. A ideia inicial é de alertar para o fato de que nem sempre o que as companhias
prometem aos investidores em matéria de sustentabilidade, respeito aos direitos
humanos/fundamentais, responsabilidade social, ambiental, etc., estão sendo efetivados na
prática, ou se constituem meros discursos desvinculados de qualquer prática. Também deverão
ser analisadas as normas, por exemplo, do TCU e TCE que versem sobre o controle das estatais,
visto que para além da prestação de contas propriamente dito, deverão, enquanto entes da
administração pública, ter uma boa governança pública também.
Governança pública, regra geral, vale ressaltar, é a capacidade que o estado tem de
executar as decisões tomadas. Assim, considerando a governança e a accountability para efeitos
de verificação da atuação estatal nas sociedades de economia mista, no que tange, por exemplo,
aos processos de corrupção sistêmicos ocorridos ultimamente no país, pode-se ressaltar que há
um déficit de accountability que gera, por si só, um déficit de governança. Ressalta-se que o
momento não é o mais adequado para tratarmos do assunto, restando o mesmo apenas como
exemplo: aquisição da Refinaria de Pasadena2. Plenamente perceptível, no caso mencionado, a
falta de governança, bem como de accountability (prestação de contas, responsabilização dos
agentes e responsividade)3.
Os programas e determinações de transparência dos atos públicos, por exemplo,
também não deixam de ser comando normativo, de origem inclusive constitucional, que
também não passa de “norma de papel” – o que é lamentável – mas que, em grande parte sem,
ou muito pouca, efetividade. Ainda nessa linha, observa-se que enquanto se tem de um lado

2 Por todos, conferir reportagem que trata da condenação, pelo TCU, de 11 diretores da Petrobras pela compra de Pasadena.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1490125-tcu-condena-11-diretores-da-petrobras-por-prejuizo-de-
us-792-mi-na-compra-de-pasadena.shtml>. Acesso em 05 de out 2017.
3
Sobre a classificação, cabe observar que a accountability, além das formas vertical e horizontal pode ainda ser entendida
em 3 dimensões: (i) Prestação de contas: que reflete a transparência do governo para com a população, como, por exemplo,
Lei de responsabilidade Fiscal (LRF); (ii) Responsabilização dos agentes: os agentes púbicos são responsáveis pelos mau uso
dos recursos, como, por exemplo, Lei de Improbidade Administrativa (LIA); e (iii) Responsividade dos agentes: está
relacionada com a capacidade de resposta do poder público às demandas sociais, como, por exemplo, colocar em prática as
políticas escolhidas pelos cidadãos, como, por exemplo, a imediata aprovação da Lei das Estatais em momento de descrédito
nos agentes da administração Pública (lei 13.303/2016)

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normas que são soft law por parte do direito privado, como são as normas de governança
corporativa, por outro lado temos normas impositivas, decorrentes da lei e da própria
Constituição Federal e aí fica complicado estabelecer uma divisão nítida de aplicação às
sociedades de economia mista, ainda mais no que diz respeito à observância de normas
direcionadas a proteção de direitos fundamentais, não se olvidando de demais diretrizes de
outros órgãos como a OCDE, BIRD, BID4 etc.
Para uma melhor compreensão do acima apontado foram selecionadas três sociedades
de economia mista. São elas: Petrobras, Copel e CEDAE. O objetivo é demonstrar se as
companhias selecionadas estão agindo ou não em conformidade com o que apontaram em seus
estatutos ou códigos de conduta no que está relacionado aos direitos humanos/fundamentais.
A metodologia utilizada na realização do presente trabalho se fez em razão da análise
da bibliográfica e documental, bem como do levantamento de dados empíricos levantados junto
ao banco de dados do Ministério Público do Trabalho, sendo o método dedutivo-indutivo o
utilizado para a conclusão do exposto.

1. DIREITOS HUMANOS/FUNDAMENTAIS E O EXERCÍCIO DA EMPRESA

O exercício da empresa5 tem grande importância em uma economia de mercado como


a vivenciada no atual contexto de globalização econômica. Tendo em vista tal fato, o
constituinte originário estabeleceu que a “ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social (...)”6
Portanto, é opção adotada pelo constituinte a prescrição que, na ordem jurídica
nacional, os fatores de produção devem cooperar a fim de promover o bem comum. Disso
decorre que ao enunciar o princípio da livre-iniciativa, enuncia-se também a finalidade da
existência do mesmo que é a promoção da justiça social.
Além disso, teorias vêm se desenvolvendo no sentido de propor que a exploração da
atividade econômica não deve ter como único objetivo a maximização dos lucros. Em tal

4 Vale mencionar que recentemente (20.06.2017) foi aprovado pela CAE (comissão de assuntos econômicos) o repasse de
US$750 milhões oriundos do BID para o BNDES, a fim de financiar investimentos em energias renováveis.
5 Empresa tida neste trabalho como atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, como

é enunciada pelo art. 966 do Código Civil, apesar das diversas teorias a respeito da empresa.
6
Artigo 170 da CRFB/88.

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gênero se encaixa a teoria do Capitalismo Consciente7, a qual prescreve que as companhias


devem ter um propósito maior (higher purpose) no desenvolvimento de suas atividades. Os
autores de tal teoria afirmam que a incorporação de valores éticos pelas sociedades empresárias
acarretará melhores resultados para as partes interessadas8, o que gerará melhores desempenhos
econômicos e sociais para a companhia. Desse modo, pode-se dizer que a doutrina do
Capitalismo Consciente está alinhada com os ditames da Constituição 1988.
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas já é pacificada
na jurisprudência nacional, a partir de interpretações constitucionais em prol de maior
efetividade dos direitos fundamentais. Nesse diapasão, a tese predominante sobre a incidência
dos direitos fundamentais nas relações privadas é a tese da eficácia direta ou imediata, a qual
propõe que os direitos fundamentais tenham eficácia plena nas relações entre particulares,
prescindindo de intermediação legislativa. Logo, em uma relação de possíveis conflitos entre
um direito fundamental invocado e o direito fundamental de liberdade do empresário9, deverá
ser procedida, pelo órgão incumbido de resolver o conflito10, uma ponderação de interesses
(SARMENTO, 2010, p. 205).
No entanto, diverso é o caso de sociedades empresárias comprometidas com a ética,
equidade, promoção dos direitos humanos, como vemos em diversos casos. Na eventualidade
de tais companhias discutirem se devem ou não ser vinculadas ao direito fundamental invocado
no caso concreto, não há dúvida que tal direito fundamental deverá ter um maior peso prima
facie em comparação com a autonomia da vontade da sociedade. Afinal, a sociedade utilizara
de sua autonomia da vontade para se vincular aos compromissos acima descritos.
Destarte, pode-se afirmar que companhias de capital aberto que negociem em bolsa
de valores, e que por isso devem possuir elevados padrões de governança, além de diversos
compromissos éticos, acaso enveredem pelo desrespeito aos direitos fundamentais, poderão vir
a sofrer restrições em razão de seu atuar de forma menos branda. A adesão interna das
sociedades em defesa e promoção dos direitos fundamentais a vinculam para além de normas
gerais, considerando ter advindo de sua liberdade no exercício da empresa o seu
comprometimento às normas de governança, tornando-a mais comprometida que as demais,

7 Ver em: SISODIA, Rajendra S.. Doing business in the age of conscious capitalism. Journal of Indian Business Research Vol. 1
Nos 2/3, 2009. pp. 188-192.
8 O conceito de partes interessadas (stakeholders) abrange todo o grupo atingido de alguma pelo exercício da empresa, como

empregados, comunidade local, o Estado, acionistas, etc.


9
Definido como aquele que exerce empresa, ainda segundo a redação do art. 966 do Código Civil.
10
Tal órgão pode ser o órgão judiciário, câmaras arbitrais, ou até um órgão interno da sociedade empresária.

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visto estar inserto em seus regulamentos e códigos de conduta referido agir. Dito de outra forma,
o comprometimento integra o objeto social e reforça o interesse público da companhia, mais
especificamente ainda da sociedade de economia mista.

2. GOVERNANÇA CORPORATIVA E A FIXAÇÃO DO RESPEITO AOS


DIREITOS HUMANOS/FUNDAMENTAIS COMO VALOR EMPRESARIAL

O movimento de implementação de melhores práticas de governança corporativa tem


por finalidade minorar os conflitos de agência11. Como o conceito de partes interessadas é bem
amplo, abrangendo todos os grupos impactados de alguma forma pelo exercício da atividade
empresarial – consumidores, trabalhadores, comunidade local, etc. – as boas práticas de
governança corporativa podem ser instrumentalizadas em prol de uma maior efetividade dos
direitos fundamentais nas relações jurídicas em que as sociedades empresárias forem partes.
Aparentemente o maior número de lesões a direitos fundamentais está relacionado
com os trabalhadores, podendo ser citado, a título de exemplo, a utilização de mão de obra
escrava, a restrição do direito de greve, a não observância das horas de intervalo e por aí em
diante. Também há relatos em relação à discriminação de gênero, ao trabalho da mulher...há
restrições as liberdades individuais e um total desalinhamento entre o comando constitucional
de proteção aos direitos fundamentais individuais e sociais com o efetivo atuar das sociedades
empresárias.
Outrossim, vale destacar que faz parte do conjunto de proposições de boas práticas de
governança corporativa as políticas de prevenção de atos ilícitos, constando, por exemplo, no
Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, elaborado pelo IBGC, um capítulo
destinado a este tema no qual se propõe a criação de um órgão de controle independente e um
canal de denúncias diretamente vinculado a este órgão, além da implantação de uma política de
não retaliação a quem denuncie a possível prática de atos ilícitos no interior das companhias.
Desse modo, a partir de um simples silogismo, conclui-se que todo ato violador de
direitos fundamentais seja um ato ilícito, máxime a partir do protagonismo conferido aos
direitos fundamentais com a promulgação Carta Constitucional de 1988, inserida no contexto
de afirmação das bases democráticas e valorização da pessoa humana. Portanto, a partir de tal
instrumento de governança, pode-se prevenir não só o conflito de interesses unicamente

11
Conflitos de agência são os conflitos entre as diversas partes interessadas de uma determinada empresa.

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econômicos, mas também aqueles em que se esteja em jogo direitos constitucionalmente


protegidos, e mais especificamente, os direitos humanos/fundamentais.
Por outro viés, as propostas de governança prescrevem maior transparência nas
atividades empresárias, partindo do pressuposto que a companhia deve prestar contas à
sociedade, em geral, de sua atuação. Desse modo, o consumidor/investidor consciente do papel
que as companhias devem desempenhar na sociedade poderá nortear a sua atuação no mercado
com base, não só com os proveitos que suas transações geram (a mercadoria ou os dividendos),
mas também com o que tal companhia gera de valor para o meio em que atua. Não faz parte do
escopo deste trabalho responder se o agente econômico, em posse de tais informações, norteará
(ou, pelo menos, levar em consideração) sua atuação com base nos impactos gerados para a
sociedade, meio ambiente, etc. Contentamo-nos com a mera possibilidade que a exigência de
respeito aos valores da pessoa humana possa vir dos próprios agentes econômicos.
O mercado de capitais, portanto, pode ser visto também como um instrumento capaz
de auxiliar na construção de uma postura mais alinhada aos ditames constitucionais, permitindo
um atuar mais ético dos agentes econômicos, integrando investidores e companhias de capital
aberto e propiciando um maior controle e transparência também neste aspecto, que vai além do
controle econômico propriamente dito.

3. EMPRESAS ESTATAIS E DIREITOS FUNDAMENTAIS: GOVERNANÇA


CORPORATIVA E GOVERNANÇA PÚBLICA NAS SOCIEDADES DE
ECONOMIA MISTA

A Constituição de 1988, em seu artigo 173, prescreve que a atuação do Estado de


forma direta na atividade econômica somente será permitida quando necessário aos
imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse público, conforme definidos em lei.
Já no parágrafo primeiro do mesmo artigo, com redação conferida pela Emenda 19 de junho de
1998, o poder constituinte derivado exara mandamento de elaboração de estatuto jurídico da
empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem
atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços.
A Lei 13.303, promulgada em 30 de junho de 2016, considerado o estatuto das
estatais, veio concretizar tal comando constitucional às pressas, a fim de atender aos reclamos
da sociedade civil ante os escândalos de corrupção envolvendo empresas estatais, os quais

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deixaram grande mácula nos princípios norteadores da administração pública, insculpidos no


art. 37 da Constituição, mormente os da impessoalidade e moralidade. Nesse ínterim, a grande
preocupação do legislador ordinário ao elaborar tal diploma legal foi a de trazer para o regime
jurídico das empresas estatais os avanços conquistados nas sociedades privadas em questão de
governança corporativa, de modo a melhorar também a governança pública.
O estatuto das estatais, em que pese críticas contundentes sobre o mesmo, rompeu
com um silêncio de quase 20 anos e inovou em alguns pontos. Merece destaque, neste trabalho,
a obrigatoriedade da confecção de uma carta anual, a qual intitulamos de “carta
compromissória”, como requisito mínimo de transparência a ser implementada pelas estatais
nos termos do art.8, I da Lei 13.303/2016.
Referida Carta compromissória deve ser subscrita pelos membros do Conselho de
Administração, contendo os compromissos em relação aos objetivos a serem alcançados pela
empresa estatal, de modo a atender ao interesse público coletivo, ou ao imperativo de segurança
nacional que justificou a criação da mesma. Tal instrumento, grosso modo, pode servir
inclusive de autorização para o cancelamento da existência da estatal quando em descompasso
com norma autorizativa de sua existência, haja vista flagrante inconstitucionalidade.
De toda sorte, o estatuto das estatais pode vir a ser também mais um elemento a somar
na busca por uma maior proteção aos direitos humanos/fundamentais no âmbito das estatais,
mais especificamente das sociedades de economia mista com ações negociadas no mercado de
capitais. O aumento no grau de governança pública/corporativa só fará com que o mercado
passe a se reorganizar também de forma comportamental em busca de maior proteção aos
direitos humanos/fundamentais.
Espera-se que com a entrada em vigência12 de tal diploma legal, ocorra um
incremento nos níveis de governança das empresas estatais – o que é desejável ante o atraso das
mesmas em relação às companhias privadas, conforme demonstrado em recente estudo
promovido pelo IBGC13.

12
As estatais já constituídas à época da promulgação da lei terão 24 meses para se adaptar às disposições da Lei 13.303, conforme
redação de seu art. 91.
13 Ver em: INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Governança Corporativa em empresas estatais

listadas no Brasil / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. São Paulo, SP : IBGC, 2017.

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4. ESTUDO PRÁTICO – CASOS PETROBRAS, Copel e CEDAE

Para ilustrar o acima mencionado, foram separadas algumas estatais: (i) Petrobras, (ii)
Copel e a (iii) CEDAE.
O objetivo é demonstrar o quanto as referidas empresas estão alinhadas com seus
estatutos e códigos de conduta para que se possa verificar o grau de efetiva governança, bem
como se estão alinhadas com as propostas apresentadas aos investidores no que se relaciona à
proteção de direitos humanos/fundamentais, de forma a demonstrar também o grau de
comprometimento das empresas com suas propostas e como seu efetivo agir no mercado.
Vale mencionar também que a Petrobras S/A é signatária do Pacto Global da
Organização das Nações Unidas, o qual “pretende mobilizar um movimento global de empresas
sustentáveis e as partes interessadas para criar o mundo que queremos”14 (ONU, 2017). Em
sendo companhia de grande projeção nacional, e internacional, com ações negociadas na B3 e
na Bolsa de Nova Iorque, deve-se ficar atento para todo comprometimento realizado para que
não passem a ser apenas instrumento capaz de chamar a atenção de investidores e que não
tragam maiores consequências, tal qual a vinculação ao que proferiram em relação à proteção
e implementação de direitos humanos /fundamentais.
Também será apresentado o resultado de uma análise do banco de dados do Ministério
Público do Trabalho a fim de averiguar a possível violação de direitos humanos/fundamentais
dos empregados de tais companhia. Justifica-se a escolha pela reconhecida fragilidade de tal
parte interessada para corroborar com o acima referido que são os trabalhadores os que mais
sofrem lesão aos seus direitos fundamentais, para além dos demais agentes que com a empresa
se relacionam, como consumidores, fornecedores, acionistas, investidores etc.
As breves linhas traçadas sobre o tema têm o condão, repita-se, de chamar a atenção
para a vinculação dos estatutos sociais e códigos de conduta das sociedades de economia mista
como elemento também de instrumentalização de governança pública e corporativa, que devem
ser considerados quando da análise para efeitos de verificação de accountability e
responsividade do agente público ante ao agente privado também em sede de mercado de
capitais.

14
Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/mission, acessado em 02/11/2017.

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4.1. PETROBRÁS S/A

A Petrobrás S/A é uma sociedade de economia mista da União, vinculada ao


Ministério de Minas Energia15, e tem por objeto, nos termos do art.3º do seu estatuto social:

Art. 3º- A Companhia tem como objeto a pesquisa, a lavra, a refinação, o


processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto
ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos
fluidos, além das atividades vinculadas à energia, podendo promover a pesquisa, o
desenvolvimento, a produção, o transporte, a distribuição e a comercialização de
todas as formas de energia, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins.

Recentemente a Petrobras foi reconhecida “como uma das empresas brasileiras que
mais atendem a requisitos de conformidade, práticas de mercado e excelência em governança
e transparência” pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest)
para a formação do inédito Indicador de Governança (IG Sest), merecendo ser destacado ter
recebido nota 10 em todos os quesitos. 16 Também está previsto uma reformulação do estatuto
da estatal a fim de que se faça uma adequação do mesmo as novas regras impostas pelo estatuto
das estatais.17
Sobre suas ações, de acordo com a tabela abaixo, é possível identificar a composição
acionária em 30/09/2017:

Ações Ordinárias 7.442.454.142 100,00%


União Federal 3.740.470.811 50,26%
BNDESPar 11.700.392 0,16%
BNDES 734.202.699 9,87%
Fundo de Participação Social – FPS 6.000.000 0,08%
Fundo Soberano – FFIE 0 0,00%
ADR Nível 3 1.384.062.778 18,60%
FMP - FGTS Petrobras 200.964.801 2,70%
Estrangeiros (Resolução nº 2.689 C.M.N) 796.368.159 10,70%
Demais pessoas físicas e jurídicas (1) 568.684.502 7,64%

15 Vale mencionar que a estatal foi criada pela Lei 2004/1953. Seu estatuto social foi alterado pela Lei 9.478 de 1997 e
recentemente tem previsão de ser novamente modificado.
16
Conforme pode ser verificado em: <http://www.petrobras.com.br/fatos-e-dados/lideramos-ranking-de-governanca-e-
transparencia-com-nota-maxima.htm>.Acesso em 14 nov.2017
17 Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/5193255/petrobras-convoca-assembleia-para-discutir-reforma-do-estatuto-

social>. Acessado em 14 nov 2017.

703
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Ações Preferenciais 5.602.042.788 100,00%


União Federal 0 0,00%
BNDESPar 1.250.053.496 22,31%
BNDES 161.596.958 2,88%
Fundo de Participação Social – FPS 0 0,00%
Fundo Soberano – FFIE 0 0,00%
ADR, Nível 3 e Regra 144 -A 752.226.094 13,43%
Estrangeiros (Resolução nº 2.689 C.M.N) 1.520.973.047 27,15%
Demais pessoas físicas e jurídicas (1) 1.917.193.193 34,22%
Capital Social 13.044.496.930 100,00%
União Federal 3.740.470.811 28,67%
BNDESPar 1.261.753.888 9,67%
BNDES 895.799.657 6,87%
Fundo de Participação Social – FPS 6.000.000 0,05%
Fundo Soberano – FFIE 0 0,00%
ADR (Ações ON e PN) 2.136.288.872 16,38%
FMP - FGTS Petrobras 200.964.801 1,54%
Estrangeiros (Resolução nº 2.689 C.M.N) 2.317.341.206 17,76%
Demais pessoas físicas e jurídicas (1) 2.485.877.695 19,06%

Tabela 1
Fonte: (Petrobras; 2017)

Tal tabela revela a divisão das ações em ordinárias e preferências. Estas sem direito a
voto por determinação do parágrafo único do art. 62 da Lei 9.478. Destarte, a União detém
50,26 % das ações ordinárias. Ressalte-se a participação do BNDES e do BNDESPar, tanto no
quadro de ações ordinárias, tanto no de ações preferenciais. A Petrobras negocia suas ações na
Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE – New York Stock Exchange), submetendo-se,
portanto, a níveis mais exigentes de governança do que os necessários para negociar na B3.
No Código de Conduta da Petrobras não há uma referência expressa e genérica em
relação ao respeito aos direitos humanos/fundamentais, embora contenha referências a alguns
direitos em dispositivos do documento, como o direito de isonomia, do meio ambiente
equilibrado, etc. No entanto, como tal empresa estatal está vinculada ao Pacto Global da ONU
e seus dez princípios, a Petrobras manifesta sua vontade na promoção dos direitos humanos,
uma vez que os dois primeiros princípios de tal pacto geram a obrigação de “apoiar e respeitar

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os direitos humanos reconhecidos internacionalmente e de não ser cúmplices em violações de


direitos humanos”18. Também possuem comandos específicos em relação ao trabalho forçado
e infantil, os quais aqui são considerados como desdobramentos de direitos fundamentais.
No plano prático foram encontradas no banco de dados do MPT-RJ duas
recomendações caracterizadoras de violações incompatíveis com os compromissos assumidos
pela Petrobras A primeira, a Recomendação nº 922.201519, de 11 de fevereiro de 2015, exarada
pela Procuradoria do Trabalho do Município de Cabo Frio, recomenda: “Somente reativar a
calderaria da Plataforma P - 18, após a instalação de um sistema de renovação de ar a fim de
eliminar gases, vapores e fumos empregados durante os trabalhos a quente” (MPT, 2015, p.1).
Tal recomendação demonstra que o ambiente de trabalho na referida calderaria não era o
adequado ao resguardo da incolumidade física dos trabalhadores.
A segunda, a Notificação Recomendatória nº 165136/201620, de 13 de maio de 2016,
exarada pela Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, destinada à Petrobras
Transportes - Transpetro S/A – subsidiária da Petrobras e, portanto, submetida aos mesmos
compromissos –, na qual o membro do MPT recomenda que tal companhia “se abstenha de
adotar quaisquer medidas que atentem contra o exercício do direito de greve dos seus
empregados, em especial daqueles expressamente previstos no art. 6º da Lei nº 7.783/1989”21
(MPT, 2016, p.2). Exsurge, portanto, da leitura de tal documento a agressão ao direito
fundamental à greve garantido no art. 9º da Constituição Federal.

4.2 COPEL

A Companhia Paranaense de Energia S/A – Copel é uma sociedade de economia


mista do Estado do Paraná, de capital aberto, que tem entre os sócios a BNDESPar. Abriu seu

18 Principle 1: Businesses should support and respect the protection of internationally proclaimed human rights; and;Principle
2: make sure that they are not complicit in human rights abuses. Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/what-is-
gc/mission/principles, acessado em 02/11/2017.
19 Disponível em: http://www.prt1.mpt.mp.br/component/mpt/?task=baixa&format=raw&arq=Ch6_yP7BU7lIK6
x4RUYfsfHlXtrG3or4h2WtPnDHWWfnksqIBrg1_JWA6eK8HK8aHunr6AzeBnRj60VsCj-kC5RxbfFxv4z3fpg GJM7jX-
L9clgUfxw3ewq2c5EjeFRX, acessado em 02/11/2017.
20
Disponível em: http://www.prt1.mpt.mp.br/component/mpt/?task=baixa&format=raw&arq=Ch6_yP7BU7lIK6
x4RUYfsfHlXtrG3or4h2WtPnDHWWftAmkR2DTH6W4GLG63qkklWqEt-ZoZcAKIimSLJQhQGJRxbfFxv4
z3fpgGJM7jX-L9clgUfxw3ewq2c5EjeFRX, acessado em 02/11/2017.
21 “Art. 6º São assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I - o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar

os trabalhadores a aderirem à greve; II - a arrecadação de fundos e a livre divulgação do movimento. § 1º Em nenhuma hipótese,
os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de
outrem. § 2º É vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como
capazes de frustrar a divulgação do movimento. § 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão
impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa.”

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capital em 1994 e em 1997 foi a primeira empresa do setor elétrico brasileiro a ter suas ações
negociadas na bolsa de Nova York. Possui ações negociadas também na bolsa de valores de
Madri. Integram oficialmente o Nivel 1 da B3 e é uma empresa com alto grau de governança
corporativa, tendo, inclusive, se antecipando ao estatuto das estatais e reorganizado sua
estrutura interna na luta contra corrupção.
Conforme consta de seu Código de Conduta, a Copel recomenda “respeitar os
direitos humanos e trabalhistas e adotar práticas que contribuam para a erradicação do
trabalho forçado ou compulsório e do trabalho infantil”, bem como entende ser conduta não
aceita a de “desrespeitar a proteção dos direitos humanos reconhecidos
internacionalmente”.22 Em relação aos clientes interno a Copel ainda assevera que não é
conduta não aceita a que “discriminar qualquer pessoa por cor, etnia, classe social, convicção
política, naturalidade, sexo, identidade de gênero, orientação sexual, credo, religião, culto,
idade, deficiência, nível de escolaridade, nível hierárquico, cargo e função” e com relação aos
clientes externos aponta ser conduta não aceita a de “discriminar clientes, seja por cor, etnia,
classe social, convicção política, naturalidade, sexo, identidade de gênero, orientação sexual,
credo, religião, culto, idade, deficiência, nível de escolaridade, origem, porte econômico ou
localização geográfica”. Assim, tem-se que a Copel está diretamente e fortemente
comprometida com a proteção dos direitos humanos/fundamentais. A empresa também
informa em seu Código de Conduta que possui um portal – Portal Compliance – que possibilita
a implementação de maior transparência, segurança e demonstra o comprometimento da
empresa com sua conduta ética.23
Em sendo realizada uma busca junto ao MPT do Estado do Paraná para verificar se
alguma conduta contrária ao estabelecido em relação ao proposto em face da proteção dos
direitos humanos/fundamentais, cabe observar que nada foi encontrado, levando a crer que a
companhia segue à risca seu Código de Conduta e seu estatuto social, bem como as demais
regras no que diz respeito aos direitos humanos/fundamentais.

22 Conforme disponível em: <http://www.copel.com/hpcopel/root/sitearquivos2.nsf/arquivos/conduta_port/$FILE/


codigo_conduta.pdf>. Acesso em 15 de nov.2017
23 “Comprometida com a conduta ética e visando maior transparência e segurança de suas atividades, a Copel possui o Portal

Compliance e o Programa de Integridade, incentivados pela alta direção da Companhia. A disponibilização de canais de acesso,
abertos e amplamente divulgados ao público, empregados e terceiros, expressa o compromisso da Copel com o cumprimento
efetivo deste Código de Ética e de Conduta Empresarial. Estes canais fazem parte do sistema de compliance adotado pela
Companhia”. Disponível em: <http://www.copel.com/hpcopel/root/sitearqui
vos2.nsf/arquivos/conduta_port/$FILE/codigo_conduta.pdf>. Acesso em 15 nov. 2017.

706
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Merece ser destacado que a Copel ainda possui um Conselho de Orientação Ética –
COE, o qual é formado por doze conselheiros, sendo onze empregados e um representante da
sociedade civil, que tem por objetivo fazer valer as orientações contidas no Código de Conduta
da Companhia.24
A tabela abaixo expõe o quadro societário da companhia:

Acionistas ON % PNA % PNB % TOTAL %


Estado do Paraná 85.029 58,6 - - - - 85.029 31
BNDESPAR 38.299 26,4 - - 27.282 21,3 65.581 24
Eletrobras 1.531 1,1 - - - - 1.531 0,6
Custódia da Bolsa 19.874 13,7 77 23,4 100.964 78,7 120.915 44,2
B3 18.610 12,8 77 23,4 64.949 50,6 83.636 30,6
NYSE 1.264 0,9 - - 35.932 28 37.196 13,6
LATIBEX - - - - 83 0,1 83 -
Outros 298 0,2 252 76,6 49 - 599 0,2
TOTAL 145.031 100 329 100 128.295 100 273.655 100
Tabela 2
Fonte: (COPEL, 2017)

4.3. COMPANHIA DE ÁGUAS E ESGOTO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO –


CEDAE

A Companhia de Águas e Esgoto do Estado do Rio de Janeiro – CEDAE, é uma


sociedade de economia mista, tendo 99,9996% das ações titularizadas pelo Estado do Rio de
Janeiro, e outras 0,0004% das ações de acionistas minoritários25. A falta de governança é
facilmente observável: basta a não disponibilização do estatuto social da companhia em seu
sítio eletrônico.

24 Nos termos do Código de Conduta: “O Conselho de Orientação Ética – COE é constituído como um colegiado vinculado
administrativamente à Presidência, com a atribuição de contribuir para que a atuação da Companhia seja permanentemente
conduzida por princípios moralmente sãos no desenvolvimento de seus negócios, bem como pela divulgação e efetiva aplicação
dos preceitos e orientações deste Código de Conduta por parte dos empregados, administradores e contratados, em consonância
com os valores da Copel, os Princípios do Pacto Global e os Princípios da Governança Corporativa. O COE aprecia e emite
orientação em processos relacionados à conduta ética na Companhia. Para garantir transparência e autonomia, o COE é constituído
por doze conselheiros, dos quais onze são empregados da Copel nomeados através de circular e um é representante da sociedade
civil”. Disponível: <http://www.copel.com/hpcopel/root/sitearquivos2.nsf/arquivos/conduta_port/$FILE/codigo_conduta.pdf>.
Acesso em 15 nov. 2017.
25 Tal informação foi obtida no seguinte endereço: <http://www.cedae.com.br/portals/0/ri_cedae/a_cedae/distri
buicao_capital/distribuicaodosacionistas.pdf>

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Há um Código de Ética26 da companhia, porém não contém previsão expressa de


promoção dos direitos fundamentais. Contudo, pode ser extraído do item 3.1 tal preceito, visto
que em tal item há a previsão do respeito à legislação como um princípio ético da companhia.
Além disso, há a previsão de um Comitê de Ética no item 16 a fim de implementar as normas
do Código de Ética e Conduta.
Na Recomendação nº 7116.201627, exarada pela Procuradoria do Trabalho no
Município de Petrópolis, ficou constada violações aos direitos fundamentais perpetradas pela
Cedae ao oferecer um ambiente de trabalho inadequado aos seus trabalhadores da Estação de
Tratamento de Água de Paraíba do Sul.

CONCLUSÃO

Do exposto, pode-se dizer que as sociedades de economia mista ainda precisam


melhorar e muito em suas boas práticas de governança, seja para atingir os objetivos da nova
legislação em relação à governança corporativa das estatais, seja para implementação mesmo
das regras de direito público já devidamente expostas na Constituição Federal de 1988.
Em que pese a existência de normas e recomendações nacionais e internacionais é
possível perceber que o mercado de capitais ainda não deitou maiores atenções para o
desenvolvimento prático das condutas assumidas no âmbito interno das companhias, condutas
estas que servem para traçar um norte ao investidor – e talvez aos demais agentes que se
relacionam com a companhia –, mas que não demonstram ter eficácia direta e ser condutas
efetivamente assumidas e seguidas pelas companhias de uma maneira geral.
A melhora na exigência de maior governança por parte da legislação, ainda que
pendente de melhoras na própria legislação, já aponta para um comportamento mais condizente
com a exigência do mercado, ao qual as sociedades de economia mista terão que se adaptar,
não podendo mais ficarem sob o manto da proteção do interesse público e de normas de direito
administrativo que impediam, de certa forma, maior acesso a informações não só em relação
ao atuar econômico da sociedade, mas também em relação ao seu agir em conformidade com
os ditames legais, tais quais os relacionados a proteção de direitos fundamentais, direcionando

26
<http://www.cedae.com.br/Portals/0/codigoconduta.pdf>
27
<http://www.prt1.mpt.mp.br/component/mpt/?task=baixa&format=raw&arq=Ch6_yP7BU7lIK6x4RUYfsfHlX
trG3or4h2WtPnDHWWfFQ9k7TdFR6vM_8Gu2L0QaBlNeAXukdRmCy2gAz_jqf5RxbfFxv4z3fpgGJM7jX-L
9clgUfxw3ewq2c5EjeFRX>

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a companhia para aquilo que podemos considerar como sendo uma maior interação ética das
estatais e mais alinhadas também com a teoria do Capitalismo Consciente, em razão da
personalidade jurídica de direito privado que recobre as sociedades de economia mista, de
forma que o interesse público possa ser identificado na realização mesmo dos direitos
humanos/fundamentais.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Empresas Estatais. Gen-Forense: São Paulo, 2017.

BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

COSTA, Fernando Nogueira da. Economia comportamental: de volta à filosofia, sociologia e psicologia.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 173, dez. 2009.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Governança Corporativa em empresas


estatais listadas no Brasil / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. São Paulo, SP: IBGC, 2017.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Portal da Transparência. Disponível em:<


http://portal.mpt.mp.br/MPTransparencia/>, acessado em 01/11/2017.

ROCHA, Arlindo Carvalho. Contabilidade, Gestão e Governança, Brasília, v. 14, n. 2, p. 82 - 97 ·mai/ago 2011.
Disponível em: <https://cgg-amg.unb.br/index.php/contabil/article/viewFile/314/pdf_162>. Acesso em: 05 de
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SISODIA, Rajendra S.. Doing business in the age of conscious capitalism. Journal of Indian Business Research
Vol. 1 Nos 2/3, 2009. pp. 188-192.

VERGARA, Sylvia Constant; BRANCO, Paulo Durval. Empresa Humanizada: a organização necessária e
possível. RAE - Revista de Administração de Empresas. Abr./Jun. 2001. São Paulo, v. 41, n. 2, p. 20-30.

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O IMPACTO DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS
NA PRODUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

LOPES, Monique Rodrigues


Historiadora (UFV-MG); acadêmica em Direito (Estácio-JF-MG); Mestranda no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF)

RESUMO

A atuação dos movimentos de mulheres e feministas no Brasil tem sido de grande importância na
consolidação e garantia dos direitos das mulheres e na luta pela equidade de gênero. Nesse sentido, este
trabalho busca compreender a trajetória brasileira de luta das mulheres, desde a década de 1980 até os
dias atuais, no que tange a efetiva promoção de seus direitos a contar qualquer tipo de discriminação.
Como a estrutura de dominação do direito pode ser quebrada pela atuação tática do movimentos das
mulheres e feminista? Como instituições, Ongs, associações e movimentos na luta pelos direitos das
mulheres tem se articulado na promoção e garantias dos direitos das mulheres principalmente após o
final da década 1980? Desta forma, traçaremos a história da inclusão das pautas feministas nesses
movimentos e organizações, os avanços alcançados na luta pelos direitos das mulheres e o que muito há
por fazer pelas mulheres brasileiras.

Palavras-Chave. Feminismo, Direito das Mulheres, Esfera pública, movimentos sociais, trajetórias
históricas

O impacto das trajetórias feministas na construção de direitos para mulheres e de


políticas públicas, vem ao longo da história se mostrando em constante construção. Sabemos
que a história é julgada não mais em um aspecto autorreferencial, “mas em função do respeito
ou do desprezo com que os direitos humanos são tratados” (TOURAINE, 2011, p.27). Esse
construir a história é algo peculiar entre as mulheres. Se uma das teorias sociais mais influentes
apostou na historicidade com início, meio e fim – nomeadamente o Marxismo -o feminismo
praticante, isto é, o da vida cotidiana das mulheres parece não depositar sua fé em localizar as
práticas em uma determinada etapa dessa história como devir. No trabalho empírico de
Touraine, é possível observar que as mulheres avaliam sua situação na hora presente, não como
etapa histórica de um contínuo. Conta-nos Touraine:

[a]s mulheres que ouvimos não falavam nem de progresso nem de retrocesso, ao
passo que os homens, e por consequência os discursos que eles detêm, quase sempre

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falam em progresso ou retrocesso, mesmo quando se inquietam com as ameaças que


pesam sobre um desenvolvimento durável (2011,p.72)

Dessa maneira percebe-se o gênero como ato fundador da identidade da mulher. É


pela sexualidade que a mulher começa a se construir e a se avaliar; a sexualidade enquanto
desejo como fim em si mesmo está radicada no sujeito, diferente da ideia de libertação ou de
progresso, que estão radicadas na história enquanto plano evolutivo (ou evolucionário, se
preferir). A observação de Touraine é precisa e contundente quando afirma que colocar a
sexualidade sob foco significa passar da narrativa coletivizante para a narrativa individual. Essa
mudança é difícil de ver expressa nos homens, posto que sempre tivessem sua voz ouvida no
cenário público, lócus ainda que soe ensurdecedora ausência de voz feminina, um silêncio que
diz muito.
A sociedade brasileira está estruturada de forma piramidal, marcada fortemente pela
desigualdade social e, para refletir sobre essa questão, devemos levar em consideração suas
multi-dimensões (gênero, sexualidades, raça/etnia, classe social, geração...), compreendendo-
as enquanto fenômenos que estruturam relações sociais e apresentam suas peculiaridades,
porque se inscrevem no domínio da história. No mundo e, especificamente no Brasil, as
mulheres vivenciam uma desvantagem sistemática em relação aos homens em quase todos os
indicadores sociais. Refletir sobre a categoria gênero é extremamente importante para a
discussão da igualdade no contexto da sociedade como um todo. A atuação dos movimentos
de mulheres e feminista no Brasil tem sido de grande importância na consolidação e garantia
dos direitos das mulheres e na luta pela equidade de gênero. Nas últimas décadas, a atuação
desses movimentos foi fundamental para a formulação, implantação e implementação de
políticas públicas de gênero no país, nos diferentes níveis de governo (municipal, estadual e
federal) e nos vários campos das políticas, dentre as quais: a assistência, a saúde, a educação e
a violência.
Nesse sentido, o presente trabalho busca identificar como esses movimentos tem se
articulado, isolada e conjuntamente, para vocalizar as pautas das mulheres, pautas comuns e
específicas (se pensarmos nas especificidades das transversalidades e interseccionalidades,
como mulheres brancas, mulheres negras, mulheres campesinas, mulheres transexuais e etc.),
no espaço público e como a institucionalidade tem lidado com essas pautas.
Nessa esteira de lutas, conquistas e desafios enfrentados pelos movimentos feministas
no que tange o período da nova constituinte, o de redemocratização e o dias atuais, destacamos

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alguns acontecimentos de suma importância para consolidação dos direitos das mulheres. Essas
transformações estruturais, somadas ao esforço já realizado pelos movimento feminista e de
mulheres, tornaram ilegítimas as assimetrias artificiais entre homens e mulheres e criaram uma
base sólida para a construção social, edificada e sustentada na justiça e nos direitos humanos
(BLAY; AVELAR,2017).
Os avanço nas condições de vida das mulheres, na saúde, na educação, no mercado
de trabalho, entre outros é uma revolução lenta mas contínua e que na palavras de Eva Blay,
não está imune a retrocessos, como veremos mais adiante. Assim destacamos alguns
acontecimentos como a criação do Geledés, Instituto da mulher negra em 1988, que é uma
organização política contra o racismo e o sexismo. Sendo uma das maiores ONGS de
feminismo negro do Brasil com várias campanhas e ações significativas contra o racismo. Seus
canais de comunicação estão sempre atualizados com temas de direitos humanos, gênero,
educação, saúde, com diversas pesquisas públicas com relação a esses temas.
Já após o período de redemocratização temos em 1992 a criação da Rede Nacional
Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos que vem reafirmar princípios já explicitados na
Constituição Federal de 1988, em específico, o conteúdo do Artigo 226, § 7º, que “dispõe sobre
o direito de mulheres e homens decidirem livremente sobre concepção e anticoncepção, e o
dever do Estado de informar e assegurar a prestação dos serviços necessários para a garantia
desses direitos”.
Tais questões no início da década de 1990, principalmente com a Conferência do
Cairo (CIPD, 1994) e na Rio 92 ganhavam as pautas das discussões e movimentos de mulheres
pela questão de se colocar os direitos reprodutivos como direitos humanos pela primeira vez.
A emblemática questão do controle populacional imposto pelos Estados principalmente nos
países pobres também ganhava pautas de discussão. Em seu documento final, (parágrafo 8.25
do Programa de Ação do Cairo) a questão do aborto inseguro aparece como um grave problema
de saúde pública.
Pouco tempo depois, a IV Conferência Mundial sobre Mulheres (Beijing, 1995),
Intitulada “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, partiu de uma avaliação dos
avanços obtidos desde as conferências anteriores (Nairobi, 1985; Copenhague, 1980; e México,
1975) revelou a distância das mulheres dos espaços de poder e a relação entre o empoderamento
de gênero e a superação dos desequilíbrios mundiais.

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É importante registrar que a IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, em 1995)


reconheceu que as assimetrias de gênero são condicionadas, também, pelas políticas públicas e
recomendou duas estratégias para alcançar a igualdade entre os homens e as mulheres: a
transversalidade em todos os processos de tomada de decisão e o empoderamento das mulheres.
Assim, surgiu a perspectiva da “transversalidade de gênero” nas políticas públicas
visando à garantia e à ampliação dos direitos humanos das mulheres. A Conferência também
nomeou doze áreas de atenção, a saber: a crescente proporção de mulheres em situação de
pobreza (fenômeno que passou a ser conhecido como a feminização da pobreza); a
desigualdade no acesso à educação e à capacitação; a desigualdade no acesso aos serviços de
saúde; a violência contra a mulher; os efeitos dos conflitos armados sobre a mulher; a
desigualdade quanto à participação nas estruturas econômicas, nas atividades produtivas e no
acesso a recursos; a desigualdade em relação à participação no poder político e nas instâncias
decisórias; a insuficiência de mecanismos institucionais para a promoção do avanço da mulher;
as deficiências na promoção e proteção dos direitos da mulher; o tratamento estereotipado dos
temas relativos à mulher nos meios de comunicação e a desigualdade de acesso a esses meios;
a desigualdade de participação nas decisões sobre o manejo dos recursos naturais.
O Brasil teve participação ativa na Conferência de Pequim e em sua continuação.
Com o intenso diálogo entre o governo e a sociedade civil e com participação ativa dos
movimentos feministas, assim como da interação construtiva com os demais Poderes do
Estado, em especial parlamentares e representantes de conselhos estaduais e municipais sobre
a condição feminina. A aguda articulação com o movimento de mulheres, estabelecida desde
então, tornou-se elemento essencial à formulação das políticas públicas no Brasil, que hoje
incorporam a perspectiva de gênero de forma transversal.
Neste sentido de plataforma transversal, destaca-se também já nos anos 2000 a criação
da Secretaria de políticas para mulheres com vínculo ministerial que recentemente em 2016 no
governo de Michel Temer foi extinta pela medida provisória 696 com a junção da Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir); Secretaria de Políticas para as Mulheres
(SPM); Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e Secretaria Nacional de Juventude (SNJ).
Todas essas secretarias juntas, passando a ser vinculada ao Ministério da Justiça e
Cidadania. O que com enfatiza Eva Blay, são os retrocessos que caminham lado a lado com as
conquistas pois em um país como no Brasil de democracia tão jovem e frágil onde os direitos
das mulheres são desrespeitados constantemente, onde o número de mulheres representa menos

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de 10% nas eleições de 2014 na Câmara Federal, perdendo o Brasil para todos os países da
américa do sul (BLAY, Eva. 2017, p.50); onde estima-se que cinco mulheres são espancadas a
cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex-companheiro) é o responsável por mais
de 80% dos casos reportados, segundo a pesquisa “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e
Privado” (FPA/Sesc, 2010).
Importante ressaltar a aprovação da Lei Maria da Penha (lei 11.340) em 2006 onde
todo o processo começou no Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (Cejil) e no Comitê
Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem). Quando os dois órgãos e Maria
da Penha formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o então marido dela, o colombiano
Heredia Viveiros. A discussão que chega ao governo federal coordenada pela secretaria
especial de políticas para mulheres e pela repercussão internacional coloca as autoridades do
país em cheque.
Ainda nesse caminhar das trajetórias da consolidação de direito das mulheres e sua
ocupação nos mais diversos espaços de poder temos em 2010 Dilma Rousseff eleita presidente
da República. Pela primeira vez uma mulher ocupa o cargo mais elevado do executivo federal.
Entre erros e acertos desse período, não podemos deixar de mencionar o quanto
misógino foi o processo de impedimento da mesma presidente no decorrer de seu segundo
mandato em 2016. Vinculações de imagens depreciativas com referências claras ao estupro. A
imagem da presidenta - com as pernas abertas sobre a entrada do tanque de combustível – foi
adesivada em alguns automóveis, sugerindo a vulgaridade da pessoa, a violação de seus
direitos, enquanto mulher, bem como uma vontade de que a política, ou seja, sua gestão
explodisse com a injeção da bomba de combustível em seu corpo, no caso, na sua vagina. No
entanto, quando alguma crítica política se dirige ao homem, não verificamos os mesmo
adjetivos misóginos ou pejorativos no sentido de ofender sua sexualidade.
Tal fato nos remete a questão da virilidade e violência abordada por Pierre Bourdieu
(1998) no poder simbólico masculino dos espaços públicos no que o autor chama de
“‘agorafobia socialmente imposta’, que pode subsistir por longo tempo depois de terem sido
abolidas as proibições mais visíveis e que conduz as mulheres a se excluírem motu próprio da
agora”( BOURDIEU,1998. p.52), isso somado a dominação do assédio com a conotação da
bomba de gasolina entrando e explodindo, assim o que acontece é que ele (o assédio) “visa,

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com a posse, nada mais que a simples afirmação da dominação em estado puro”(BOURDIEU,
1998. p. 31).
Assim, naturalizando a presença do homem no espaço público e determinando lugares
privados à mulher, o discurso contemporâneo apresenta um forte domínio machista. Os
constantes comentários sobre a aparência de mulheres nos cargos públicos são parte desse
fenômeno, como se fosse um lembrete de que a função das mulheres no mundo ainda é
decorativa, haja vista a figura das primeiras-damas. Também é comum comentários acerca da
estabilidade emocional das mulheres/políticas. Insinuar que a mulher é louca e por isso incapaz
de gerir a Coisa pública chega a ser anacrônico, já que se baseiam nos argumentos do passado,
os mesmos que defendiam que a mulher não deveria votar e ser votada por ser emocional
demais. (KARAWEJCZYK, 2013).
Outra questão que pode ser analisada é a construção da autonomia e responsabilidade
das mulheres pelas decisões que mais lhe tocam em sua privacidade e intimidade pelas
instituições jurídicas. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que tratou
da possibilidade do aborto terapêutico na hipótese de feto anencéfalo em 2012 constitui um
bom exemplo. Em seu bojo, ficou constatada a invisibilidade institucional perpetrada pelo
Supremo Tribunal Federal brasileiro. O órgão máximo do judiciário nacional, guardião da
Constituição, foi omisso, quando não enfrentou a possibilidade de antecipação de parto
terapêutico ou mesmo o aborto pela perspectiva da privacidade e autodeterminação da mulher.
Em uma discussão tecnicista que se circunscreveu em definir a atipicidade da conduta do aborto
de fetos anéncefalos, o STF deixou passar uma ótima oportunidade de colocar na esfera pública
as bases para a igualdade, equidade e autodeterminação das mulheres.
Não podíamos deixar de mencionar a votação ocorrida recentemente, no dia 8 de
novembro de 2017, da PEC 181, que em comissão especial foi aprovada na câmara dos
deputados por 18 votos a 1(somente essa era mulher), a apelidada de “cavalo de Troia” por se
tratar da ampliação de direitos trabalhistas, como o aumento do tempo da licença-maternidade
para mulheres cujos filhos nasceram prematuros, determina que a vida começa desde a
concepção. Ou seja, visa barrar a descriminalização do aborto, vetando a pratica em qualquer
situação mesmo nas já permitidas por lei como no caso de estupro, anencefalia do feto ou
gravidez com risco de morte para a mãe.
Protestos de movimentos feministas ocorreram nesse último mês nas principais
capitais de todo o país contra esse ato tomado e que para não passe pelas demais casas do

715
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senado. Considerando nossa estrutura de sociedade machista e patriarcal, quaisquer


possibilidade das mulheres conseguirem o mínimo de direitos garantido na constituição,
Beauvoir (1967) afirma: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou
religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são
permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” (p. 21)
Os incentivos institucionais são extremamente importantes, justamente para
funcionarem como motor auxiliar na máquina de luta por direitos. O feminismo busca a
construção de uma ética pessoal e interpessoal; noutros termos, o que se busca é o fundamento
de uma ética que reflita no modo que alguém se relaciona consigo mesmo e com os demais,
bem como as instituições que normatizam e distribuem o discurso hegemônico. Essa relação
repercutirá na “orientação moral” e, consequentemente, na “concepção de direitos” que
conformam o tecido social (TOURAINE, 2011, p.73).

PRODUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES

Para Galeotti (2002) as políticas públicas estabelecem um vínculo com o Estado e a


sociedade civil além do mercado, assim esse vínculo não é imparcial porque implica sujeitos
sociais, posições e interesses diferentes. O Estado então é visto como arena de negociações e
articulações políticas, não deixando de destacar a relação entre economia e política que se
produz no capitalismo.
Conceitua então as políticas públicas como um meio pelo qual se distribuem recursos
econômicos e simbólicos. Se tratando de ações deliberadas, que levam a cabo atores
governamentais para determinar a forma em que serão atribuídos os recursos com vista a
satisfazer as necessidades e interesses da população. Essa intervenção do Estado estabelece
quem tem direito a que e quem não. Assim em cada momento da história as políticas públicas
constroem determinadas identidades coletivas. Para Galeotti (2002) praticas fortemente
naturalizadas e arraigadas se sustentam como fortes estereótipos e dificilmente são
consideradas questões que precisam de modificação.
Considerando a esfera social é um lugar privilegiado e que há uma contradição entre
o caráter social da força de trabalho e a apropriação privada da riqueza social. As relações de
exploração portanto não são só e classes, mas também opressão de sujeitos que ocupam lugares
subalternos, entre eles, as mulheres.

716
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Dessa maneira dentro das políticas sociais as políticas de gênero fazem referência as
políticas do Estado que buscam reduzir as desigualdades e descriminação entre os gêneros e
atender as mulheres na sua condição de subjugação. Assim, essa inclusão demanda uma
necessidade de redistribuição e também de reconhecimento, implicando condições matérias de
existência e também de “condições simbólicas” que quebrem uma somatização das relações
sociais de dominação. (BOURDIEU, op.cit p. 33)
Nessa esteira de reconhecimento e redistribuição a qual menciona Nancy Fraser
(2001), temos que esses vetores da justiça vão estabelecer como as disputas serão resolvidas. A
política lida assim como quem pode reivindicar e nesse sentido há uma problema de falsa
representação. Tanto as políticas de reconhecimento quanto a de redistribuição são ações de
transformação que buscam assim os problemas estruturais que as originaram.
Assim, a forma como homens e mulheres foram alocados no mundo público ou na
esfera privada, revela o caráter patriarcal da doutrina liberal que vem hoje sendo reforçadamente
denunciado pelas teorias feministas. Dessa maneira, a autora se apoia na ideia de que a família
e a vida pessoal são reguladas politicamente, assim sendo, “problemas pessoais só podem ser
resolvidos através de uma reflexão política e de uma ação política” (LAVINAS apud
PATEMAN,1989).
Dentro desse contexto de ação política que os movimentos organizados de mulheres
e feministas tem procurado exercer sobre as cidades, para Lavinas uma espécie de lar
expandido. Assim nesse sentido as mulheres fazem suas reivindicações colocadas pelas lutas
urbanas, como moradia, qualidade de vida e serviços básicos. Surge então uma questão nessa
relação que é as mulheres estabelecerem o Estado como interlocutor na luta por atendimento as
suas necessidades, via formulação de políticas públicas e esse Estado para qual se voltam as
mulheres é o mesmo patriarcal que se apropria do trabalho doméstico não remunerado delas,
da maternagem e no trato com os idosos. (LAVINAS.L,ibidem,1997).
Como esse estrutura de dominação do direito e do Estado pode ser quebrada pela
atuação dos movimentos feministas? Se percebemos o Direito como instrumento de uma
dominação historicamente masculina e patriarcal com reprodução dos valores
heteronormativos como afirma Catherine Mackinnon1 (1991a), vendo as leis de discriminação
sexual, que são analisadas dentro da teoria moral corrente, vêem as questões de igualdade e

1
Estamos cientes dos problemas epistemológicos de trabalhar com a leitura de Mackinnon sobre feminismo, principalmente na
questão da diversidade, dado as premissas radicais que ela evoca em seu discurso. Nada obstante, para os fins deste trabalho, sua
perspectiva de igualdade e papel do Direito nos serve bem como ponto de partida.

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gênero como questões de similitude e diferença. De acordo com essa abordagem, que tem
dominado a percepção política, jurídica e social, a igualdade é vista como equivalência, não
distinção, enquanto gênero é visto como uma distinção, não uma equivalência.
O mandato legal da igualdade de tratamento, afirma Mackinnon, que é tanto uma
norma sistêmica quanto uma especificidade jurídica, se torna uma questão de tratar os iguais
como iguais e os desiguais a partir de suas desigualdades. Isto é, gênero é socialmente
construído como diferença epistemológica e a legislação limita a igualdade de gênero a partir
da diferença através da doutrina, o que acaba por não enfrentar diretamente a questão da
desigualdade histórica da vivência dos gêneros.
Como afirma Foucault (2014, p.37), existem “as sociedades do discurso, cuja função
é conservar e produzir discursos, mas para fazê-los circular em espaços fechados, distribuí-los
somente segundo regras restritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa
distribuição”, isto é, o Direito como dominação atribui papéis pré-estabelecidos. Assim, ainda
com Mackinnon (1991b), a dominância reificada torna-se diferença. A coerção legitimada
torna-se consentimento. A realidade objetificada torna-se ideias. Ideias objetificadas tornam-se
realidade; e a realidade é inquestionável.
Já buscando respostas na teoria feminista pós-moderna do direito, por mais que sua
proposta não seja oferecer respostas mas destrinchar os questionamentos, argumenta que as
abordagens comparativas do tratamento igual (mulheres são como os homens) e do feminismo
cultural (as mulheres não são como os homens) assumem erroneamente que todas as mulheres
são, grosso modo, iguais, tal como os homens (LEVIT e VERCHICK, 2006). Neste sentido,
defende, por um lado, que as categorias binárias de homem e mulher são ambas um produto e
reprodução de relações de poder, estando especialmente interessada em analisar como mulheres
e homens são construídos pelo direito e como o direito reproduz as relações de gênero
(MCCORKER et al., 2000). Por outro lado, recorre à ferramenta da desconstrução para
questionar a existência de verdades absolutas e, em especial, de um direito imparcial e objetivo
(LEVIT e VERCHICK, 2006).
Na mesma linha, isto é, sobre a necessidade de repensar o “como se faz” pela via
institucional, Judith Batller (2008) afirma que as teóricas feministas que debatem o papel de
dominação social via legislação compartilham de três premissas: as doutrinas jurídicas
convencionais, produzidas por homens, em uma sociedade dominada por homens, possuem em
si os preconceitos machistas, ainda que se digam ostensivamente neutros em relação a gênero;

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a vida das mulheres são diferentes, por diversas razões, da vida dos homens, de modo que as
doutrinas tradicionais não conseguem encaixar ou retratar a realidade concreta das vidas das
mulheres; por fim, concordam que o desenvolvimento de uma teoria feminista do Direito requer
a produção de doutrina jurídica a partir de mulheres, que coloquem na teoria as suas práticas,
as suas vivências e suas perspectivas.
Neste sentido, a corrente feminista pós estruturalista vai dizer que o Direito não é uma
construção racional como a ciência jurídica propõe, menciona (OLSEN, 1990) tampouco que
o Direito seja masculino. O Direito não tem uma natureza imutável, ele é uma atividade
humana, uma prática social, que tem sido operada majoritariamente por homens e que, por este
motivo, as características culturalmente associadas ao masculino são ressaltadas e valorizadas
em detrimento das características associadas ao feminino, que não teriam sido eliminadas, mas
sim invisibilizadas. Então, a autora menciona que o “Direito é tão irracional, subjetivo, concreto
e particular como também pode ser racional, objetivo, abstrato e universal”. (OLSEN, ibidem
p. 32, 1990). Os estudos pós-estruturalistas vêm, assim, confrontar o essencialismo da
categorização de homens e mulheres feita por meio de valores distintos e duais, sustentando
que tal normatização é a própria origem das formas de opressão.
Assim, Olsen, parte da constatação de que desde o pensamento liberal, o nosso
pensamento (pensamento ocidental) se estruturou em torno de dualismos ou pares opostos:
ativo/passivo, racional/irracional, objetivo/subjetivo, cultura/natureza, universal/particular. Os
primeiros termos são culturalmente associados ao masculino e os segundos, ao feminino
(termos estão sexualizados e hierarquizados), de modo que esta bipolarização teria contribuído
para limitar o acesso e a influência das mulheres no Direito (já que o Direito é identificado com
o lado masculino dos dualismos).
Negando então que a irracionalidade e a passividade sejam categorias inerentes às
mulheres, pois elas teriam sido ensinadas a serem assim e isso precisa ser desconstruído, para
que as mulheres possam ter a capacidade de se desenvolver e, que a possibilidade de quebra ou
de inversão da hierarquia dos termos seria uma forma de subverter esses dualismos.
Nos perguntamos portanto como trazer essa perspectiva para o Direito? Sendo ele
participante da produção das identidades e na produção de políticas públicas é preciso incluir o
gênero no ensino do Direito, como aponta (REVOREDO, 2006). De acordo com a mesma, isso
poderia ser feito de duas formas: uma mudança de cima para baixo, reelaborando a estrutura
curricular das faculdades, com o objetivo de formar operadores do Direito questionadores de

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uma ordem sexista e conscientes da bagagem cultural que pode ser estendida para aplicação e
criação das normas ou, uma mudança de baixo para cima, quando os professores e professoras
trazem esse debate para dentro de sala de aula, inclusive propondo disciplinas que tratem sobre
gênero e sexualidade. Mas, como aponta Smart (2000) é preciso considerar que nem todos os
alunos se interessam pelo assunto e que muitos, não se interessam não porque não seja
relevante, mas que esse estudo mais teórico e crítico não é absorvido depois pelo mercado de
trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações estruturais, somadas ao esforço já realizado pelos movimento


feminista e de mulheres, tornaram ilegítimas as assimetrias artificiais entre homens e mulheres
e criaram uma base sólida para a construção social, edificada e sustentada na justiça e nos
direitos humanos (BLAY,opcit, 2017). Sendo assim nenhum outro momento da história foi tão
fértil para mudanças como o século XXI.
Objetivando, pois, analisar a trajetória de lutas e conquistas dos movimentos
feministas no que tange o início do período de redemocratização no Brasil, bem como fazendo
uma análise de como as estruturas de dominação podem ser quebradas ou repensadas por um
viés que contemple de fato a mulher com a construção de políticas públicas que construam
identidades coletivas que realmente versem sobre um direito plural. Que rompa com as práticas
arraigadas e naturalizadas do sistema patriarcal e que o avance nas condições de vida das
mulheres, na saúde, na educação, no mercado de trabalho, na política.
E nesse caminhar de trajetórias que se encontram e sabendo que a revolução é lenta
mas contínua e que não está imune a retrocessos, seguimos na busca de uma sociedade sem
desigualdades sociais e de gênero, sendo essa uma meta a ser atingida ainda no século XXI.
(BLAY, op cit, 2017).

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721
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critica_da_proposta_teorica_de_Carol_Smart. Acesso em 22 de Novembro 2017.

722
ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS
CONDENADOS (APAC) COMO POLÍTICA PÚBLICA
ALTERNATIVA AOSISTEMA CARCERÁRIO CONVENCIONAL

NUNES, Isabela Gomes


Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida.
RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense.
Pós-Graduada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Professora de Direito Constitucional ede
Direitos Humanos em Instituições de Ensino Superior.

RESUMO

O presente trabalho visa demonstrar, através da jurisprudência, da doutrina e de dados numéricos, que o
sistema prisional brasileiro não cumpre com um dos seus objetivos centrais, qual seja, a ressocialização
dos condenados. Para ocorrer uma mudança nesse quadro deve ser aplicada uma nova política pública
ao sistema carcerário. Com esse objetivo, será demonstrado o método APAC como política pública
alternativa ao sistema penitenciário convencional. O método já é aplicado em alguns Estados brasileiros
e também outros países. Os resultados da aplicação do método “apaqueano” têm sido positivos, pois
respeita os direitos fundamentais do ser humano no momento da execução da pena e os ditames previstos
na lei de execução penal, de forma que o nível de reincidência torna-se baixo e o custo mensal de cada
preso é reduzido pela metade, se comparado com os números do sistema prisional atual.

Palavras-Chave. sistema prisional brasileiro; direitos fundamentais dos presos; Estado de Coisas
Inconstitucional; execução penal; Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC).

ABSTRACT

This work intend to demonstrate that the brazilian prison system do not fulfill its main goal: the re-
socialization of prisioners. Therefore, it will be shown the APAC as a alternative public policy. This
system has been aplied in some brasilian states and in others countries. The consequences of adopting
this method are positive: the fundamental rights of prisioners are respected, the predictions of penal
execution law are fulfilled, the nível of recidivism are low and the cost is cut in half if compare with the
tradicional system.

Keywords. Brazilian Prision System; fundamental rights of prisioners; unconstitutional state of affair;
penal execution; APAC.

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INTRODUÇÃO

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal vem enfrentando importantes questões


com relação ao sistema penitenciário brasileiro. A Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 347 é um novo marco nesta temática, tendo em vista que declarou que o sistema
penitenciário brasileiro vive em um “Estado de coisas inconstitucional”1, ou seja, encontram-
se dentro desse sistema inúmeras violações diretas à Constituição da República Federativa do
Brasil, em especial no que tange a proteção dos direitos dos presos.
Conforme o Informativo da Rede de Justiça Criminal nº 8 - de janeiro de 2016, a
população carcerária brasileira já passa de 600.000 presos2, sendo que 41% destes presos são
provisórios3.O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, estando atrás apenas de
Estados Unidos, China e Rússia. Porém, a punição excessiva não fez com que os índices de
violência regredissem4.
Este artigo propõe a discutir sobre a necessidade de implementação da Associação de
Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) como uma política pública alternativa ao
sistema carcerário brasileiro, tendo em vista a falência da Lei de Execução Penal, no que tange
a sua implementação e efetividade.
A APAC vem se demonstrando um modelo prisional bem-sucedido comparado ao
atual, garantindo um cumprimento de pena digno e humano. São propiciados aos apenados
meios para que, ao fim da sua condenação, possam ser realocados no mercado de trabalho e,
consequentemente, reinseridos na sociedade.
Assim, a presente pesquisa, partindo do pressuposto do colapso do sistema prisional
brasileiro, apresenta o método “apaqueano” como possível política pública alternativa à crise
penitenciária que vive atualmente o Brasil. Para tanto, serão trazidos breves dados sobre a crise
do sistema penitenciário atual. Posteriormente, impõe a análise do estudo do caso escolhido, ou
seja, será analisado o método APAC e seus resultados positivos, em dados numéricos, na
recuperação do apenado. Por fim, será demonstrado como a adoção da APAC enquanto política
pública alternativa de implementação de eficiência e eficácia no alcance de um dos objetivos
da pena, qual seja, a recuperação do apenado e a sua reinserção sadia no meio social.

1
ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.
2
INFORMATIVO REDE DE JUSTIÇA CRIMINAL, São Paulo: ed. 8, jan. 2016.
3
Idem
4
Ibidem.

724
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1. O COLAPSO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Vivemos em um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamento supremo


de validade e ápice axiológico a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). O
texto constitucional brasileiro um extenso catálogo de direitos civis e políticos, econômicos,
sociais e culturais, direitos transindividuais, além de possibilitar a proteção de direitos
implícitos5. Nossa Constituição, considerada Cidadã, prevê diversos normativos protecionistas,
garantindo direitos fundamentais dos seres humanos.
Todas essas prerrogativas devem também alcançar aqueles que se encontram privados
da sua liberdade de locomoção em razão do cometimento de ilícitos penais. Compactuando
com este entendimento, Rodrigo Roig6 salienta que:

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, estabelece como


fundamentos a prevalência dos direitos humanos, o respeito à cidadania, a dignidade
da pessoa humana e a tutela dos direitos e garantias individuais. Não obstante, o
sistema carcerário em nosso país evidencia, e sempre evidenciou, a abissal distância
entre a existência formal dos preceitos normativos e sua eficácia concreta, como
meios de contenção do arbítrio estatal sobre o indivíduo.

Como se afirma acima, apesar da Magna Carta dispor estes direitos e garantias ao
preso, a norma constitucional torna-se inócua e vazia de sentido frente à realidade do sistema
prisional brasileiro, pois não é devidamente aplicada na execução penal, tornando o texto
constitucional uma mera diretriz, quando deveria ser mandamental, sendo claro, como será
disposto a seguir, a ineficiência do Estado Brasileiro na implementação dessa política pública
O que se vê, no sistema penitenciário brasileiro, é a total discrepância entre o que é
determinado na Constituição e na lei de execução penal com o que realmente ocorre dentro do
cárcere. Ao preso e ao internado devem ser garantidos todos os direitos que não se oponham ao
que lhe foi retirado pela sentença: sua liberdade de locomoção.
Como consequência da não observância dos direitos e garantias fundamentais e
também da não efetivação das medidas dispostas na lei de execução penal, que disciplina
maneiras para que haja reinserção social, vivemos em um total caos penitenciário, com motins,
mortes dentro do sistema carcerário, proliferações de doenças e reincidência criminal7.

5 CRFB, art. 5, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios

por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
6 ROIG , Rodrigo Duque Estrada. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006.

p.15.
7
GRECO, Rogério. Sistema Prisional: Colapso Atual e Soluções Alternativas.3. ed. Niterói: Impetus, 2016.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Neste sentido, Rogério Greco8 enumera os diversos episódios onde ocorreu a falha
total do Estado brasileiro, entre estes, pode-se citar para melhor elucidar a questão9: o “massacre
do Carandiru” em 1992; as rebeliões simultâneas em 73 presídios Paulistas comandadas pelo
Líder do PCC em 2006; a Rebelião que ocorreu no presídio conhecido como Urso Branco em
Rondônia onde houveram execuções sumárias do alto do prédio do presídio; e, mais
atualmente, o que aconteceu no Complexo de Pedrinhas – São Luís do Maranhão, entre os anos
de 2010 a 2014, onde inúmeros presos foram mutilados e/ou mortos.
Cabe ressaltar que grande parte dessas falhas foram constatadas pela Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que visitou inúmeros presídios dos Estados
brasileiros10.
Nesse contexto, torna-se evidente e notório o descumprimento do supraprincípio da
dignidade da pessoa humana, alicerce da Constituição e fundamento da República Federativa
do Brasil, previsto no artigo 1º, inciso III da CRFB11, e que é garantido a todas as pessoas,
estejam elas dentro ou fora do cárcere.
Reiterando este entendimento, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – 347, afirmou que “deve o
sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘Estado de coisas inconstitucional’”,
restando evidente que a Suprema Corte entende que essa política pública não vem sendo
aplicada de maneira eficiente, conforme o julgado e também as palavras da Ministra Cármen
Lúcia12.
Nesse sentido, Carlos Alexandre de Azevedo Campos13 ressalta no sistema
penitenciário brasileiro estão evidenciados todos os pressupostos de configuração do Estado de
Coisa Inconstitucional14. Em suas palavras:

8 Idem 7.
9
Idem 7. p. 174 – 176.
10Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados apud .GRECO, 2016. p. 176.

11
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;
12
ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.
13 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional.1. ed. Salvador: JusPodvim, 2016. p. 271.

14
Vale salientar que, o Estado de Coisas Inconstitucional foi reconhecido pela primeira vez pela Corte Constitucional da
Colômbia, em um processo que envolvia direitos previdenciários e de saúde de professores municipais. Esta Corte é conhecida
como modelo de ativismo judicial na América do Sul e uma das mais ativistas do mundo, voltada, sobretudo, para o “controle das
práticas políticas e das ações dos Poderes Executivos e Legislativos, e a promoção dos direitos fundamentais, sociais e
econômicos” (YEPES, 2007 apud CAMPOS, 2016. p. 100). Após este processo, diversos foram os temas que tiveram como
fundamento o Estado de Coisas Inconstitucional e foram acolhidos pela Corte Colombiana, como por exemplo, reivindicações
por melhorias no sistema prisional colombiano.

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ISSN 2236-9651, n. 7

O sistema prisional brasileiro revela violação massiva e generalizada de direitos


fundamentais dos presos quanto à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A
superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios,
mais do que inobservância da ordem jurídica correspondente pelo Estado,
configuram tratamento desumano, degradante, cruel, ultrajante e indigno a pessoas
que se encontram em custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos
presídios convertem-se em cruéis e desumanas; os presos tornam-se “lixo digno” do
pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência
minimamente segura e salubre.

Adiante, pode-se observar a emenda da Decisão Proferida pelo Supremo Tribunal


Federal brasileiro, na Arguição de Preceito Fundamental 347, que na tendência da Corte
Colombiana, reconheceu que devido à situação degradante e caótica, que se encontra o sistema
penitenciário brasileiro, deve este ser configurado como Estado de Coisas Inconstitucional, em
consequência da precariedade das penitenciárias, onde é notada a violação constante dos
preceitos fundamentais, propondo o STF medidas para que haja uma mudança dessa política
pública15.
No mencionado julgamento, a Ministra Cármen Lúcia, quando do seu voto, que
acompanhou o relator, destacou a importância de haver uma discussão junto à sociedade sobre
este tema, pois “faliu esse tipo de penitenciária que vem sendo feita”16 no Brasil. Além disso,
ressaltou que, para que haja efetivação das leis, deve-se pensar em novos modelos prisionais, e
mencionou a experiência da parceria público-privada nas penitenciárias de Minas Gerais,
afirmando que é um modelo completamente diferente de tudo que ela já havia visitado no
país17.

15 CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE


DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de
preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO
NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO
MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS
INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais,
decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza
normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “Estado de coisas
inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação
precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA
DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto
dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias,
audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas,
contado do momento da prisão. (ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016).
16SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF determina realização de audiências de custódia e descontingenciamento do Fundo

Penitenciário. Brasília, 09 set. 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=


299385>. Acesso em: 03 abr. 2017.
17 STF determina realização de audiências de custódia e descontingenciamento do Fundo Penitenciário. Brasília, 09 set. 2015.

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo= 299385>. Acesso em: 03 abr. 2017.

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ISSN 2236-9651, n. 7

De acordo com o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias –


Infopen, publicado em dezembro de 2014, existem 622.202 presos no Brasil. Deste elevado
número, cerca de 41% são presos provisórios, isto é, em número são 249.668 indivíduos que
sequer foram condenados18.
Entre os anos de 2002 e 201319, a população brasileira aumentou 15%, em
contrapartida a população carcerária teve um acréscimo de 140%. Se formos abranger a análise
para um período maior, pode-se dizer que nos últimos 14 anos houve um acréscimo de 167,32%
de pessoas encarceradas no Brasil20.
Em razão disso, o sistema carcerário atual encontra-se em evidente a superlotação,
apesar de ter sido triplicado o número de vagas entre 2000 a 201421. Em dados numéricos
pode-se dizer que são 16 presos para 10 vagas dentro do sistema carcerário brasileiro22.
Após esta análise, é notório a ineficiência do Estado Brasileiro na implementação
dessa política pública, sendo visto diversos aspectos onde é descumprida a lei de execução
penal e demais direitos fundamentais descritos na Constituição da República. O sistema
prisional brasileiro não consegue atingir a finalidade da pena, qual seja, a reabilitação do
condenado e a sua reinserção na sociedade.
Por conseguinte, foi evidenciada, através desses dados, a falência do modelo prisional
atual, sendo este uma política pública que precisa ser revisada e reformulada para que possa
enquadrar-se com os dispositivos legais que o regulam e, acima de tudo, com o que dispõe a
Constituição da República Federativa do Brasil. Partindo desse pressuposto, o presente artigo,
visa demonstrar o modelo “Apaqueano”, apresentando-o como uma alternativa de política
pública carcerária.

18
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, InfoPen - Dezembro de 2014.
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/>. Acesso em: 05 abr. 2017.
19 Idem 18. p. 4.

20
Idem 18. p.18.
21
Idem 18. p. 4.
22
Idem 18. p. 37.

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ISSN 2236-9651, n. 7

2. A ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS

2.1 O QUE É UMA APAC?

Inicialmente, necessário se faz uma conceituação da Associação de Proteção e


Assistência aos Condenados (APAC). Esta pode ser descrita como uma organização voltada a
gerir a execução penal de maneira humanizada, buscando o auxílio não apenas do Poder
Público (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas primordialmente da comunidade, prestando
auxílio àqueles que estão privados de sua liberdade23.
A APAC tem personalidade jurídica própria, possui autonomia jurídica,
administrativa e financeira, não tem fins lucrativos, seguindo sempre as diretrizes da lei de
execução penal; dispõe de estatuto próprio e é filiada à Fraternidade Brasileira de Assistência
aos Condenados (FBAC)24.
Quanto à FBAC, esta pode ser descrita segundo as palavras de Valdeci Ferreira e
Mário Ottoboni25: “a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados - FBAC é uma
associação civil de direito privado sem fins lucrativos que tem a missão de congregar e manter
a unidade de propósitos das suas filiadas e assessorar as APACs do exterior.”
Vale destacar que Mário Ottoboni é o idealizador das APACs e o projeto se iniciou
em São José dos Campos (SP) em 1972, quando ele se reuniu com 15 pessoas com o objetivo
de procurar uma solução para a crítica situação que se encontrava os presídios do município.
partindo dessa perspectiva, ele começou a se aprofundar sobre os problemas nos presídios de
todo o Brasil26.
Em 1986 foi fundada juridicamente a APAC de Itaúna – Minas Gerais, que,
atualmente, é referência no mundo inteiro, sendo uma entidade civil com caráter social, que
necessita de voluntários, conta com parcerias públicas e privadas e que tem o auxílio dos
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como de empresas privadas e,
fundamentalmente, da comunidade27.

23OTTOBONI, Mário; FERREIRA, Valdeci. Método APAC: Sistematização de Processos. 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, 2016. p. 20.
24
Idem 23. p. 21.
25Idem 23. p. 21.

26SILVA, Jane Ribeiro (Org.). A Execução Penal à Luz do Método APAC, 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado

de Minas Gerais, 2012. p. 55 – 56.


27
Idem 23. p. 159 – 160.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Em Minas Gerais, o Poder Público se envolve através da Secretaria de Estado de


Defesa Social, que garante o repasse de recursos financeiros; para isso ocorrer: “O Poder
Legislativo, por meio da Lei 15.299/2004, reconheceu as APACs como entidades aptas a firmar
convênios com o Poder Executivo [...]”28, já o Poder Judiciário contribuiu com o “Projeto
Novos Rumos”, que foi criado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com o objetivo de
difundir o método APAC nas demais Comarcas do Estado29.
Além de Minas Gerais, já existem APACs nos Estados do Espírito Santo, Maranhão,
Paraná, Rio Grande do Norte. Tendo ainda 6330 em processo de implementação, “que ainda
não tem uma sede ou um Centro de Reintegração Social, em vários Estados brasileiros. Estas
APACs existem juridicamente e estão em processo de implantação”31.
O método APAC, adotado nesses Estados é baseado no amor, na confiança e na
disciplina. A filosofia da APAC é “matar o criminoso e salvar o homem”32. Com isso, deve-
se enxergar o ser humano além das suas transgressões, incentivar a participação da família do
apenado durante o cumprimento da pena, acreditando que nenhuma pessoa é irrecuperável,
conforme afirma Mario Ottoboni33: “ [...] a APAC é um método de recuperação de presos (não
um “lugar geográfico”) que pode ser aplicado em qualquer estabelecimento penal”.
A disciplina dentro das APACs é rígida, o dia a dia é repleto de atividades, como a
obrigatoriedade dos estudos34, do trabalho, da participação nos atos relativos à valorização
humana e dos grupos de autoajuda. As atividades se iniciam às 6 da manhã e o horário de
silêncio é às 10 da noite35.

28 Idem 26. p. 6.

29 Idem 23. p.19.

30
Localizam-se nas Comarcas de: Alfenas (unidade feminina), Araçuaí, Barbacena, Barroso, Belo Horizonte, Bom Sucesso,
Campos Gerais, Carlos Chagas, Conceição do Rio Verde, Conselheiro Lafaiete (unidade feminina), Conselheiro Pena, Curvelo,
Diamantina, Divinópolis, Guanhães, Ibiá, Ipanema, Itabira, Itabirito, Itajubá, Itamarandiba, Jaíba, Manhumirim, Mantena,
Matozinhos, Monte Santo de Minas, Montes Claros, Muriaé, Nanuque, Nova Era, Novo Cruzeiro, Piumhi, Sacramento, Santa
Vitória, Santos Dumont, São Sebastião do Paraíso, Tupaciguara, Uberaba, Uberlândia e Varginha (MG); Alto Paraná, Cascavel,
Cruzeiro do Oeste, Jacarezinho, Londrina, Marilândia do Sul, Matelândia, Palotina, Piraí do Sul, Ponta Grossa, Prudentópolis,
Santo Antônio da Platina e Toledo (PR); Cachoeiro de Itapemirim, Vila Velha e Vitória (ES); Distrito Federal (DF); Bacabal e
Balsas (MA); Cuiabá (MT); Canoas (RS); Ji-Paraná e Porto Velho (RO).
31 FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. APACs filiadas em processo de

implementação. Disponível em: <http://www.fbac.org.br/index.php/pt/component/contact/category/72-apacs-mundo/68-apacs-


brasil/142-em-implantacao?alias=sao-joao-del-rei-feminina&limitstart=0> Acesso em: 18 abr. 2017.
32 OTTOBONI, Mário. Vamos Matar o criminoso?: Método APAC. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 2014. p.49.

33 Idem 32. p. 56.

34
Apesar da notável importância da educação, que além de prevenir a reincidência, é uma forma de remição de pena (12 horas de
frequência escolar é igual a menos 1 dia de pena), no sistema carcerário convencional, apenas 13% da população prisional
participam de atividades educacionais (infopen, 2014, p. 6) Cabe salientar que apenas 50% de estabelecimentos prisionais têm
salas de aula, apesar da obrigatoriedade do oferecimento, no mínimo, do ensino fundamental aos presos (infopen, 2014, p. 118).
35NEVES, Eduardo. Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados. Informações sobre APACs [mensagem pessoal].

Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.

730
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ISSN 2236-9651, n. 7

O maior diferencial da APAC em relação ao sistema prisional convencional é a


participação efetiva dos apenados na sua reintegração social, denominando-os como
recuperandos, que tem também responsabilidade pela própria recuperação. Desta forma, o
apenado torna-se sujeito ativo na execução de sua própria pena, para que este entenda que a
mudança deve começar inicialmente por sua vontade própria e depende em grande parte do seu
esforço pessoal.
Outra dessemelhança entre os modelos prisionais é descentralização penitenciária
proposta pela APAC, que não se trata de uma inovação do método, mas sim de disposição que
constava no Código Criminal do Império de 1830, onde disciplinava que os presos condenados
a penas mais brandas cumpririam a sua condenação em local mais próximo ao que foi praticado
o delito. Dessa forma o preso não é privado do convívio com a sua família, possibilitando a
visitação mais frequente dos seus entes, fator extremamente relevante para a recuperação do
apenado.
Além disso, viabiliza a melhora das instalações das cadeias públicas, direcionando as
verbas destinadas a construção de penitenciárias para construção de mais salas destinadas a
educação, ensino profissionalizante, atos religiosos, reflexões em grupo, oficinas de trabalho,
conforme disciplina Mário Ottoboni36. Outrossim, para melhor sustentar a metodologia APAC,
foram desenvolvidos fundamentos que sustentam o método.
Com o intuito de consolidar o método “apaqueano” foram desenvolvidos elementos
fundamentais, que para inteira observância da proposta da APAC sejam cumpridos de forma
integral, sendo indispensáveis na aplicação da metodologia. Segundo o método criado por
Mario Ottoboni37, são doze os seus fundamentos: participação da comunidade38, recuperando

36Idem 32. p. 58 – 59.

37
Idem 32. p. 65 – 100.
38
Tal diretriz, já presente no artigo 4º da lei de execução penal, o método APAC apregoa a conscientização da sociedade,
primordialmente da comunidade local, chamando-a para a responsabilização e cooperação na execução penal, através do
voluntariado.

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ISSN 2236-9651, n. 7

ajudando recuperando39, trabalho40, religião41, assistência jurídica42, assistência à saúde43,


valorização humana44, família45, voluntário e sua formação46, Centro de Reintegração Social –
CRS47, mérito48 e jornada de libertação com Cristo49.
Restando esclarecer a importância do respeito e efetivação de cada elemento e da
comunhão de todos eles para o sucesso da metodologia, não podendo excluir nenhum dos
fundamentos, que devem funcionar harmonicamente juntos para que ocorra o resultado
propagado pelo método.

2.1. O PROCESSO DE IMPLEMENTAÇÃO DE UMA APAC

De acordo com o Sr. Ronald Nikkel, presidente e chefe executivo da PFI (Prison
Fellowship International), durante a realização do 6º Congresso Nacional das APACs na cidade

39 Este elemento diz respeito à cooperação que deve ser incentivada entre os recuperandos, devendo ensiná-los a viver em
comunidade. Os apenados devem aprender a importância da solidariedade.
40Cada regime prisional tem uma especificidade quanto ao trabalho. No regime fechado, o método APAC indica os trabalhos

laborterápicos (artesanais), no regime semiaberto o trabalho visa dar ao recuperando uma profissão, caso ainda não tenha, ou
praticar suas habilidades já adquiridas. Já ao passar para o regime aberto, o objetivo do trabalho é a consolidação de todo o processo
de transformação do recuperando. O trabalho nessa fase será uma comprovação que o recuperando já está apto a viver em
sociedade e a ter obrigações e responsabilidades.
41A evangelização no método APAC é embasada na valorização humana. Inicialmente se deve reconstruir a confiança no homem

para que a partir disso o recuperando possa ter uma religião, sem uma imposição de credo, fazendo-o refletir sobre o amor ao
próximo e a oportunidade de uma vida nova.
42A assistência jurídica deve se restringir àqueles definitivamente pobres que se encontram comprometidos na proposta da APAC,

não devendo apenas visar a liberdade do preso sem levar em conta os seus méritos.
43A assistência à saúde deve estar em primeiro plano, pois além de dar maior qualidade de vida ao recuperando, transmite a

mensagem de cuidado e acolhimento. Para a aplicação desta assistência é necessário que se busque voluntários da área da saúde,
da localidade em que se encontra a APAC, que possam, mesmo que de forma intervalada, prestar atendimento aos recuperandos.
44Ações como chamar o recuperando pelo nome, ouvir as necessidades de cada um e tentar atendê-las dentro do possível, conhecer

a família de cada um que se encontra na entidade, são medidas que contribuem para a o restabelecimento da autoestima do
recuperando.
45Em cada entidade deve haver um departamento próprio para lidar com os entes dos recuperandos, oferecendo aos familiares

cursos e palestras que façam estreitar o relacionamento destes com os recuperandos, buscando-se sempre facilitar o contato entre
os mesmos. Segundo o Informativo da Infopen (2014, p. 88-89), no sistema carcerário atual, apenas 37% dos estabelecimentos
prisionais tem local reservado à visitação, existindo somente em 31% dos estabelecimentos prisionais locais destinados a visitas
íntimas.
46O trabalho na APAC é, em sua maioria, gratuito; a entidade deve manter-se pelo voluntariado e pelo trabalho dos recuperandos.

Após a captação dos voluntários, um curso será ministrado a eles, para que possam desenvolver suas habilidades compatíveis
com o trabalho na entidade.
47
Trata-se do espaço físico onde será constituída a entidade, visando o cumprimento da pena o mais próximo possível do núcleo
afetivo do recuperando. É disposto em três pavilhões, cada um para um regime: fechado, semiaberto e aberto, respeitando desta
forma o que preceitua a lei de execução penal.
48Este fator deve se sobrepor ao lapso temporal para embasar a progressão de pena, verificado através das atividades que o

recuperando desempenha dentro da entidade, não sendo relacionado com uma obediência imposta. O cotidiano do apenado, assim
como todas as tarefas que desempenha, é registrado em uma pasta-prontuário para que possa ser avaliado o mérito.
49A Jornada de Libertação com Cristo é disposta em três dias, dividindo-se em duas etapas, com a seguinte finalidade, conforme

preleciona Mário Ottoboni (2016, p. 100), “a Jornada nasceu da necessidade de se provocar uma definição do recuperando sobre
a adoção de uma nova filosofia de vida [...], com o objetivo precípuo de fazer o recuperando repensar o verdadeiro sentido da
vida[...]”

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de Itaúna, Estado de Minas Gerais, em Julho de 2008: “o fato mais importante que está
acontecendo no mundo hoje, em matéria prisional é o movimento das APACs no Brasil”50.
Em contrapartida, resta inconteste a ineficiência do Estado Brasileiro na
implementação da política pública relativa ao sistema carcerário, após o que foi disposto acima,
é notório que a APAC seria uma opção viável de política pública a ser aplicada no sistema
carcerário, sendo o método apaqueano de fácil implementação.
Com base no livro “Método APAC: Sistematização de Processos”51, pode-se
compreender como se dá o processo de implantação de uma APAC. O processo inicia-se
através de uma audiência pública que tem por objetivo demonstrar à comunidade o método
APAC. A partir deste ponto, apura-se os interessados em criar uma APAC e também àqueles
que pretendem dar subsídios para tanto, após, forma-se uma assembleia geral e aprova-se o
estatuto pelos membros que estarão à frente da criação e gestão da APAC, devendo ser
encaminhado a FBAC, que emitirá um parecer sobre a aquiescência ou não da implementação
da nova unidade.
Após a aprovação pela FBAC, deve-se registrar a entidade no cartório da localidade
onde será implantada a APAC. Posteriormente a filiação, devem os membros dos conselhos
eletivos e demais responsáveis pela implementação visitar unidades que já estão em
funcionamento. Além disso, deverá ser realizado o seminário de estudos e conhecimentos do
método “apaqueano” juntamente com a FBAC.
Para a instalação física da APAC é ideal que haja a aquisição de um lugar próprio,
com setores distintos para cada regime penal de cumprimento de pena. Podendo este ser obtido
através de uma cessão pelo Poder Público ou Privado de um terreno ou edificação, podendo
também ser alugado. Essa escolha deve ser levada a aprovação do Ministério Público, do Poder
Judiciário e da FBAC.
A partir desse ponto, a obtenção de parcerias é necessária para que possa ser dado
início aos trabalhos da APAC, essas parcerias podem se dar através de convênios com o Poder
Púbico estadual e municipal, instituições privadas sem fins lucrativos, empresas privadas,
entidades religiosas, bem como toda e qualquer instituição que possa contribuir para o trabalho

50
FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. Filiação à FPI. Disponível em: <
http://www.fbac.org.br/index.php/pt/filiacao-a-pfi> Acesso em: 01 maio 2017.
51OTTOBONI, Mário; FERREIRA, Valdeci. Método APAC: Sistematização de Processos. 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de

Justiça do Estado de Minas Gerais, 2016.

733
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

da APAC. Logo em seguinte é oferecido pela FBAC o curso de capacitação para os voluntários
que irão trabalhar na unidade.
A etapa posterior ocorre faltando três meses para o início dos trabalhos na unidade da
APAC, onde deverão ser escolhidos pela equipe da APAC dois a três condenados que cumprem
pena no sistema penitenciário convencional, para que façam um estágio em uma APAC já
instituída, com o fim de se adaptarem ao funcionamento do CRS e assimilarem a metodologia.
Concomitantemente a etapa anterior, deve-se requerer ao Poder Executivo que seja
feito um convênio de custeio com a APAC, visando que sejam atendidas necessidades básicas
dos recuperandos. Os recursos que o poder público disponibiliza para a APAC é correspondente
a metade dos valores que disponibilizaria no sistema convencional para o custeio do mesmo
preso.
Antes de inaugurar a nova unidade da APAC, ocorre o estágio em APACs já
consolidadas para os funcionários que irão trabalhar nesse novo Centro de Reintegração Social
- CRS, esse estágio irá selecionar e qualificar os futuros funcionários da APAC.
Após todas as etapas acima concluídas, pode-se inaugurar o novo Centro de
Reintegração Social, a nova APAC começará suas atividades com número muito pequeno de
recuperandos, para que haja inicialmente uma adaptação não apenas dos apenados, mas
também dos voluntários e funcionários52.
Para assegurar a aplicação da metodologia na APAC recém-inaugurada é necessário
a constante comunicação da unidade com a FBAC. Este contato tem como fim controlar, de
forma habitual, as atividades da APAC, mantendo esse canal direto da unidade com a
Fraternidade.
Por todo exposto e, após esta sucinta disposição do processo necessário para
implantação dessa política pública, é notório que a implementação do sistema “apaqueano”
como política pública pode ser uma solução para a falência do sistema prisional convencional,
que atualmente é aplicado no Brasil. Para tanto, é necessário, para a implementação dessa
política pública, a colaboração da comunidade, cabendo ao Poder Público o papel de incentivar
e propagar a metodologia APAC, oferecendo subsídios para que o método “apaqueano” seja
instituído como política pública alternativa ao modelo prisional brasileiro.

52OTTOBONI, Mário; FERREIRA, Valdeci. Método APAC: Sistematização de Processos. 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, 2016..p. 30 – 31.

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3. A ADOÇÃO DA APAC COMO POLÍTICA PÚBLICA ALTERNATIVA AO


SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

A partir da conceituação da APAC e da demonstração do seu processo de


implementação e, em razão da eficiência na recuperação dos apenados, a adoção da APAC
enquanto política pública traria melhor governança pública na execução penal. Segundo dados
que serão demonstrados adiante, a APAC é a política pública que melhor se adéqua ao que
dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil e a lei de execução penal e,
consequentemente, a que proporciona melhores condições de reinserção social dos condenados.
Resta esclarecer e demonstrar que, o modelo apaqueano não se trata de política
pública apenas disposta em livros ou teorizada por um idealizador. Ele já vem sendo aplicado
em diversos estados brasileiros e também utilizado como parâmetro em outros países. Através
da análise dos dados a seguir, é possível vislumbrar que a sua adoção como política pública
carcerária poderá trazer de volta ao Estado o poder de aplicar penas que tenham efeito prático
e positivo tanto para com os encarcerados, quanto para a sociedade.
De acordo com os dados fornecidos no último relatório de atividade da Fraternidade
Brasileira de Assistência aos Condenados, emitido em abril de 201753: “a FBAC presta
assistência às 108 APACs filiadas, em 09 Estados da Federação e no DF, e àquelas que aplicam
parcialmente o método em 24 países”.
A FBAC é responsável pela uniformização na aplicação da metodologia APAC em
todas as unidades existentes, para a criação de uma APAC é necessário parecer deste órgão. Ela
também é “filiada à Prison Fellowship International – PFI, organização consultora da ONU
para assuntos penitenciários54”.
Sobre as unidades filiadas à FBAC, ainda existem 63 APACs que estão em processo
de implementação55, essas serão fixadas nos Estados do Espírito Santo, Minas Gerais,
Maranhão, Paraná (onde já existem outras APAC’s); e nos Estados de Mato Grosso, Rondônia,
Rio Grande do Sul e no Distrito Federal (onde não existem ainda APAC’s funcionando).

53 FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. Relatório de Atividades da FBAC – Abril de


2017. Disponível em: <https://www.dropbox.com/sh/7epj02ditiaobua/AADsLlBfmNL6L0jS7OiwRAkOa>. Acesso em: 01
maio 2017.
54 Idem 55.

55NEVES, Eduardo. Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados. Informações sobre APACs [mensagem pessoal].

Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Entre os países que adotam, de forma relativa, o método “apaqueano” pode-se citar:
Canadá, Estados Unidos, México, Costa Rica, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Uruguai,
Nigéria, Portugal, Alemanha, Holanda, Hungria, Itália, Austrália56.
De acordo com o relatório57, dentre as APAC’s que já estão em funcionamento, 48
entidades funcionam em sede própria sem o concurso das polícias civil e militar e também sem
agentes penitenciários.58 Dentre estas unidades, localizam-se 39 no Estado de Minas Gerais, 6
no Maranhão, 2 no Paraná e 1 no Rio Grande do Norte, atendendo uma média de 3.500
recuperandos.
Ao passar a análise dos dados estatísticos das APACs, serão utilizados dados
fornecidos pela FBAC por e-mail59, esses dados registram uma média de 28% de reincidência
criminal nas APACs de todo o Brasil, confrontando uma média de 80 a 85% que ocorre no
sistema prisional convencional e a média mundial que é cerca de 70%. Quanto ao custo mensal
de cada preso na APAC, este é de R$ 1.089,73, enquanto no sistema prisional convencional o
custo médio é de R$ 2.200,0060.
Diferente do que ocorre no sistema penitenciário atual61, nenhuma rebelião,
assassinato ou ato de violência foram registrados nas APACs, desde a sua criação, em 1992.
Mesmo as chaves do Centro de Reintegração Social estando sob o controle dos recuperandos,
fugas são consideradas raras dentro do sistema “apaqueano”62.

56 FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. Mapa das APACs no mundo. Disponível em:

< http://www.fbac.org.br/index.php/pt/realidade-atual/mapas-2> Acesso em: 01 maio 2017.


57 Idem 53.

58 Localizam-se nas Comarcas de: Alfenas-MG, Araxá-MG, Arcos-MG, Campo Belo-MG, Caratinga-MG, Canápolis-MG,

Conselheiro Lafaiete-MG, Frutal-MG, Governador Valadares-MG (feminina), Inhapim-MG, Itaúna-MG (masculina), Itaúna-
MG (feminina), Ituiutaba-MG, Januária-MG, Lagoa Da Prata-MG, Manhuaçu-MG, Nova Lima-MG (masculina), Nova Lima-
MG (feminina), Paracatu-MG, Passos-MG, Patos De Minas-MG, Patrocínio-MG (masculina), Patrocínio-MG (feminina),
Perdões-MG, Pedra Azul-MG, Pirapora-MG, Pouso Alegre-MG (masculina), Pouso Alegre-MG (feminina), Rio Piracicaba-MG
(feminina), Salinas-MG, Santa Bárbara-MG, Santa Luzia-MG, Santa Maria Do Suaçui-MG, São João Del Rei-MG (masculina),
São João Del Rei-MG (feminina), Sete Lagoas-MG, Teofilo Otoni-MG, Timóteo-MG, Viçosa-MG, Barracão-PR, Pato Branco-
PR, Macau-RN, Imperatriz-MA, Itapecuru-Mirim -MA, Pedreiras-MA, São Luis-MA, Timom-MA , Viana –MA.
59
NEVES, Eduardo. Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados. Informações sobre APACs [mensagem pessoal].
Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.
60 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cármen Lúcia diz que preso custa 13 vezes mais do que um estudante no Brasil.

Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83819-carmen-lucia-diz-que-preso-custa-13-vezes-mais-do-que-um-


estudante-no-brasil> Acesso em: 07 de maio 2017.
61
De acordo com o Informativo Rede Justiça nº 08 (2014, p. 6), confrontando a proporção de pessoas mortas por 100 mil
habitantes da população brasileira, há uma disparidade de três vezes mais mortes dentro da prisão, do que mortes que aconteceram
fora do cárcere. Segundo o informativo: “ Mesmo sem a apresentação dos dados de São Paulo e Rio de Janeiro, o número de
mortes nas unidades prisionais brasileiras assusta: apenas no primeiro semestre de 2014 foram registradas 565 mortes, sendo que
aproximadamente metade delas foi classificada pelos agentes públicos como violentas intencionais”.
62
Idem 59.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Consta destes dados, também, outra informação relevante: “Além dos funcionários
que atuam especificamente no setor administrativo, as APACs contam com mais de 800
voluntários atuando nos mais diversos setores, como saúde, educação, valorização humana,
revistas, etc.63”
Além disso, relativamente a experiência mineira, segundo relato de Cristiane Santos
de Souza Nogueira, no livro publicado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
divulgado em 2012: “As dezenas de unidades APAC, que são mantidas por convênio com o
Estado de Minas Gerais, custam aos cofres mineiros 1/3 (um terço) do valor que seria
despendido para manutenção do preso no sistema comum”64.
Para concluir, cabe ressaltar que avanços significativos já estão sendo alcançados, em
Minas Gerais, no mês de maio de 2017, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa do Estado realizou uma audiência pública com o intuito de discutir a implantação
do método APAC em todo o Estado. Um grande passo rumo à aplicação da metodologia APAC
como regra de modelo prisional e não mais exceção aplicada apenas em parte do nosso país,
logo tornando mais próximo a sua implementação como política pública alternativa ao sistema
carcerário brasileiro.

CONCLUSÃO

O presente artigo abordou as deficiências latentes da política pública aplicada ao


sistema prisional brasileiro, que infringe os direitos fundamentais descritos na Constituição da
República Federativa do Brasil e também na lei de execução penal, assim como os demais
dispositivos legais protecionistas. Ficando evidente que o sistema penitenciário brasileiro não
alcança um dos principais objetivos da pena, qual seja, a ressocialização.
Para que ocorra a mudança neste quadro, é necessário que uma nova política pública
criminal seja implementada no Brasil. Com esse intuito, este trabalho apresentou o método
“apaqueano” como política pública alternativa. A APAC tem como filosofia “matar o
criminoso e salvar o homem”.
O método “apaqueano” é fundado na disciplina, no amor ao próximo, na
solidariedade, buscando ainda o apoio da comunidade e da família dos condenados no

63Idem 59.
64SILVA, Jane Ribeiro (Org.). A Execução Penal à Luz do Método APAC, 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais, 2012.

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ISSN 2236-9651, n. 7

cumprimento da pena. Os presos têm acesso à educação, ao ensino profissionalizante e ainda


ao trabalho, adequando as atividades laborativas a cada regime de cumprimento de pena.
As unidades das APACs existentes subsistem com o trabalho voluntário e dos
próprios presos, e ainda por parcerias tanto públicas quanto privadas. O custeio de cada preso
dentro de uma unidade da APAC é reduzido à metade em comparação com o sistema prisional,
os níveis de reincidência são baixos e os presos cumprem sua pena, sempre que possível,
próximo as suas famílias.
Em decorrência disto, a aplicação da metodologia APAC como política pública
carcerária poderá ser uma solução ao colapso que se vê hoje no sistema penitenciário brasileiro,
que se distancia dos ditames da lei de execução penal e só vem desumanizando àqueles que ali
adentram que, ao contrário disso, deveriam dentro do cárcere (re)descobrir suas habilidades e
sua função na sociedade.
Por tudo isso, o propósito deste trabalho foi demonstrar que não há mais possibilidade
de continuarmos aplicando a atual política pública ao sistema carcerário, pois esta não consegue
mais alcançar os objetivos centrais da pena. O ideal seria que fossem revistas as políticas
públicas carcerárias, sendo estabelecido o modelo “apaqueano” como política pública padrão
ao cumprimento das penas no Brasil, pois este assegura uma forma digna de cumprimento de
pena. E o modelo prisional adotado atualmente, seria aplicado de forma subsidiária, com as
devidas correções, para alcançar os ditames da lei nº 7.210/84.

REFERÊNCIAS

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______. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.

______. STF. ADPF nº 347. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 09/09/2015. DJe 19/02/2016.

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738
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

______. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, InfoPen - Dezembro de 2014. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/>. Acesso em: 05 abr. 2017.

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pessoal]. Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.

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Saraiva, 2006.

SILVA, Jane Ribeiro (Org.) A Execução Penal à Luz do Método APAC. 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, 2012.

739
OS PAÍSES DO BRICS E O
CONTEXTO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO:
O DEBATE NO ÂMBITO DA GOVERNANÇA GLOBAL

RACHED, Gabriel
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

Desde 2009, os países do BRICS vêm buscando estabelecer estratégias coordenadas para uma nova
plataforma de cooperação econômica entre esses países, com o objetivo de alcançar um maior nível de
desenvolvimento acompanhado de um reposicionamento na arena internacional. Apesar de todas as
diferenças, esses países têm alguns elementos e aspirações que os unem e o desafio consiste em projetar
uma plataforma comum para ganhar espaço e uma maior inserção do ponto de vista internacional. Neste
sentido, as questões podem ser colocadas da seguinte forma: num mundo em constante transformação,
no qual se percebe a perda do poder econômico e político dos poderes tradicionais (especialmente
Estados Unidos e Europa), como seria possível pensar inserção dos chamados "países emergentes"?
Como esse processo pode ser dinamizado com o conjunto de instituições internacionais em vigor? O
Novo Banco de Desenvolvimento (BRICS Bank) poderia desempenhar um papel relevante neste
contexto? Nesta perspectiva, pretende-se discutir como repensar a inserção dos países do BRICS no
cenário internacional, levando em consideração a dinâmica atual em face às aspirações desses países do
ponto de vista das instituições internacionais. Para tanto, a idéia consiste em refletir sobre esses pontos,
usando uma abordagem ampla e crítica acerca da temática em questão.

Palavras-Chave. Inserção internacional dos países emergentes. BRICS. Nova Governança Global.

ABSTRACT

Since 2009, the BRICS countries have been seeking to develop coordinated strategies for a new platform
for economic cooperation between these countries, with the aim of reaching a higher level of
development accompanied by a repositioning in the international arena. Despite all the differences, these
countries have some elements and aspirations that unite them and the challenge is to design a common
platform to gain space and greater insertion from the international perspective. At this moment, the
questions are posed as follows: in a world in constant transformation, in which can be perceived the loss
of economic and political power of the traditional powers (especially the United States and Europe),
how it would be possible to think on the insertion of the so-called "emerging countries"? How could this
process be dynamic with the set of international institutions in force? Would the New Development Bank
(BRICS Bank) play a relevant role in this context? From this perspective, this paper intends to discuss
how to rethink the insertion of the BRICS countries in the international scenario - taking into
consideration the current dynamics face to the aspirations of these countries from the point of view of
the international institutions. In order to execute it, the idea is to reflect upon these points, using a broad
and critical approach to the thematic.

Keywords. International insertion of the emerging countries. BRICS. New Global Governance.

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ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO E LOCALIZAÇÃO DO TEMA

Nas últimas décadas vem se observando uma série de transformações – cada vez mais
velozes e profundas - na conjuntura internacional que se reflete em aspectos econômicos,
políticos, sociais e institucionais.
Ainda nos anos 80 e 90, com exceção dos países asiáticos, a quase totalidade dos
países periféricos - dentre os quais os da América Latina e África - apresentou não apenas baixas
taxas de crescimento, como também uma ampla restrição externa imposta por crises de dívida
e pela abertura financeira nos anos 90, tornando essas economias amplamente dependentes das
economias centrais.
Em contraste com este período, desde os anos 2000 tem se observado tanto o aumento
das taxas de crescimento dos países periféricos, como uma maior contribuição destes para o
crescimento do PIB global e do comércio mundial, quando comparados à participação dos
países centrais, como os Estados Unidos e Europa.
Com singularidades evidentes e contrastantes os países do BRICS - Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul - vêm expandindo seu comércio externo e suas taxas de
crescimento através da ampliação de seus mercados domésticos e da intensificação do comércio
realizado entre estes próprios países. Ainda que com eventuais particularidades ao longo do
período é possível observar, como tendência mais geral, que o cenário concernente aos países
periféricos está em transformação – o que sugere um panorama com maior inserção
internacional das economias até então consideradas não centrais. Dessa forma, dentro desta
nova configuração da economia internacional, observa-se a presença de polos autônomos de
crescimento que surgem em paralelo ao “centro cíclico principal”.
Essas transformações alcançam dimensões que extrapolam a esfera econômica
passando por mudanças que envolvem também as correlações de força dentro do sistema
interestatal.
Nessa perspectiva é possível afirmar que a nova conjuntura expressa uma fase de
mudanças do sistema interestatal, ainda centrada na expansão do poder americano, porém
apresentando agora elementos que apontariam para um possível cenário no qual as decisões
internacionais seriam permeadas por plataformas de países que alcançaram uma posição
intermediária, denominados países ou economias emergentes. Em tal ambiente reforça-se a
pressão competitiva entre os Estados e aponta-se até mesmo para um processo de expansão ou
nova corrida imperialista.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Esse processo representa uma transformação estrutural de longo prazo do sistema


interestatal iniciada na década de 70, quando os EUA acentuam seu processo de expansão de
forma explícita. Ainda hoje os EUA seguem tendo papel decisivo, dadas: a posição do dólar
como moeda de referência das relações comerciais e financeiras a despeito inclusive da atual
crise financeira mundial; a liderança no ranking do maior arsenal bélico e atômico mundiais;
além da centralização da informação e da corrida tecnológica. Apesar dessa posição de
liderança a disputa entre as grandes potências não acabou, ao contrário, se intensificou. Nesse
sentido, o processo de expansão americano acabou por reforçar os nacionalismos e a
concorrência entre as principais nações mundiais.
Alguns dos sinais dessa pressão competitiva e de corrida entre os Estados já podem
ser observados na presença cada vez mais ativa de países como China e Rússia, com interesses
territoriais e energéticos que apontam o acirramento da competição interestatal.
Estas transformações de ordem econômica e política manifestam-se também em
outras esferas, apontando para (novas) articulações institucionais, outras formas de organização
social, além de propostas de políticas a nível internacional que vêm sendo formuladas para
enfrentar os dilemas do sistema internacional contemporâneo.
Por esta perspectiva, torna-se pertinente através deste estudo discutir de forma ampla
e profunda as mutações de ordem econômica, social e política em curso no sistema
internacional, bem como refletir, a partir do trabalho de pesquisa, acerca da inserção dos países
do BRICS e do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) nesse novo contexto. Isso permitirá
uma reflexão sobre as condições do presente, os constrangimentos do passado e as
possibilidades de futuro, buscando compreender os reflexos e impactos dessa gama de
transformações no contexto latino-americano atual.

1. BRICS E O NOVO BANCO DE DESENVOLVIMENTO

Assim como outras regiões periféricas, os países emergentes vêm enfrentando uma
série de desafios nesse início de século XXI. Novas estratégias de desenvolvimento econômico,
inserção em uma nova dimensão da divisão internacional do trabalho, aderência a novos
arranjos institucionais, além de decisões ligadas à alocação de recursos estratégicos tornam-se
questões da ordem do dia cujo debate apresenta-se fundamental. É dentro desse contexto que

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se pretende analisar a inserção internacional dos países emergentes do BRICS, bem como
investigar o papel sua principal instituição – o Novo Banco de Desenvolvimento.
Para tanto, torna-se relevante nesse momento voltar aos primórdios dos anos 2000, no
intuito de situar os acontecimentos e processos decisórios, que levaram da criação do
agrupamento do BRICS à constituição do NBD.
O termo BRIC foi criado em 2001 pelo economista inglês Jim O'Neill1 para fazer
referência a quatro países Brasil, Rússia, Índia e China. Em abril de 2001, foi adiciona a letra
“S” em referência à entrada da África do Sul (em inglês South Africa). Desta forma, o termo
passou a ser BRICS.
Estes países emergentes, naquele momento, apresentavam características comuns
como, por exemplo, perspectivas positivas de crescimento econômico no médio e longo prazo.
Ao contrário do que se pensa, estes países até então não compõem especificamente um bloco
econômico, apenas compartilham de uma situação econômica com índices de desenvolvimento
e situações econômicas parecidas - ainda que não similares. Esses países configuram uma
espécie de aliança que busca ganhar força no cenário político e econômico internacional, diante
da defesa de interesses comuns. A cada ano ocorre uma reunião (cúpula) entre os representantes
destes países, com o intuito de formalizar acordos e medidas com claros objetivos de compor
um bloco econômico. Um exemplo disso foi a criação recente do Novo Banco de
Desenvolvimento, também conhecido como Banco do BRICS, visando representar uma fonte
alternativa àquelas preexistentes em termos de financiamento do desenvolvimento.
Criado em 15 de Julho de 2014, na ocasião da 6ª Cúpula dos BRICS, o Novo Banco
de Desenvolvimento foi fundado em decorrência do acordo entre os países membros do BRICS
com um capital inicial de 100 bilhões de dólares e um fundo (Arranjo Contingente de Reservas)
contemplando mais 100 bilhões de dólares.
O Arranjo Contingente de Reservas possui um sistema de governança em dois níveis:
as decisões mais importantes serão tomadas pelo Conselho de Governadores (Governing
Council) e os assuntos de nível executivo e operacional ficarão a cargo de um Comitê
Permanente (Standing Committee), sendo que o consenso será a regra para quase todas as
decisões.

1
Nessa ocasião em 2001, Jim O’Neill (economista da Goldman Sachs) intuiu que o PIB dos países do BRIC até 2041 (horizonte
posteriormente antecipado para 2039 e depois para 2032) seria superior àquele dos principais países industrializados do G7. Para
mais sobre esse tema, ver O’Neill (2011) e Goldstein, (2011), p.07-11.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Se por um lado o capital de fundação do Banco possui aporte igualitário entre os cinco
países membros (20 bilhões de dólares cada) com igual poder de voto, o Arranjo Contingente
de Reservas (Contingent Reserve Arrangement - CRA) que representa um fundo de
estabilização entre os cinco países, é composto da seguinte forma: China participa com 41
bilhões, Brasil, Rússia e Índia com 18 bilhões cada e África do Sul com 5 bilhões. De acordo
com Paulo Nogueira Batista Jr., vice-presidente da instituição como representante do Brasil:

Trata-se de um “pool” virtual de reservas, em que os cinco participantes se


comprometem a proporcionar apoio mútuo em casos de pressões de balanço de
pagamentos. O termo “contingente” reflete o fato de que, no modelo adotado, os
recursos comprometidos pelos cinco países continuarão nas suas reservas
internacionais, só sendo acionados se algum deles precisar de apoio de balanço de
pagamentos. Os limites de acesso de cada país aos recursos do CRA são
determinados por suas contribuições individuais vezes um multiplicador. A China
tem um multiplicador de 0,5; o Brasil, a Índia e a Rússia, de 1; e a África do Sul, de
2. O apoio aos países pode ser concedido por meio de um instrumento de liquidez
imediata ou de um instrumento precaucionário, este último para o caso de pressões
potenciais de balanço de pagamentos (BATISTA JR., In: SOUZA, P., 2015, p. 265).

Uma das questões que se coloca nesse momento se refere à diferença entre os países
em relação ao montante que compõe o Arranjo Contingente de Reservas. Essa diferença já
remeteria a uma diferença de poder no interior da organização? Nessa direção, seria uma
evidência do protagonismo da China desde a fundação do Banco?
A proposta do Novo Banco de Desenvolvimento consiste em financiar projetos de
infra-estrutura e desenvolvimento sustentável não somente nos países membros do BRICS, mas
também em outros países em desenvolvimento diante da carência de recursos para financiar o
desenvolvimento de infra-estrutura no âmbito internacional. Ou seja, a própria iniciativa de
fundação do Banco se formaliza para oferecer mais uma possibilidade de financiamento, com
a diferença que desta vez não se trata de um organismo tradicional decorrente do formato
instituído em Bretton Woods.
O Banco estará aberto à participação dos países-membros das Nações Unidas, sendo
que os países desenvolvidos poderão ser sócios, porém não tomadores de empréstimos. Por
outro lado, os países em desenvolvimento poderão ser sócios e captar recursos. Os países do
BRICS preservarão sempre pelo menos 55% do poder de voto total enquanto os países
desenvolvidos terão no máximo 20% do poder de voto. Exceto os países-membros, nenhum
outro deterá mais do que 7% dos votos.

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Em relação às definições básicas e distribuição de cargos-chave do Novo Banco de


Desenvolvimento: a China ficou com a sede em Xangai; a Índia com a primeira presidência do
Conselho de Governadores; o Brasil com a primeira presidência do Conselho de
Administração; a Rússia com a primeira presidência do Conselho de Governadores; e a África
do Sul deve sediar o Centro Regional Africano da instituição. Nesse sentido, como sugere Paulo
Nogueira Batista Jr., “corre-se o risco de que o NDB venha a ser um banco essencialmente
asiático, dominado pela China e pela Índia, com os demais BRICS desempenhando papel
caudatário” (BATISTA JR., In: SOUZA, P.,2015, p. 267).
De modo geral, até o momento, o Novo Banco de Desenvolvimento representa uma
instituição bastante recente, tendo apenas iniciado suas atividades de financiamento de projetos
e com previsão de início da abertura para novos membros ainda em 2017.
A novidade consiste em que, para além das diferenças econômicas, políticas e
históricas, trata-se de um acordo, com perspectiva de longo prazo, entre um conjunto de países
heterogêneos, porém com alguns traços em comum: são países de economia emergente, de
grande porte econômico, territorial e populacional, que de certa forma possuem e seguem
buscando condições para atuar com mais autonomia – sendo que esse não representa o cenário
da maioria dos demais países em desenvolvimento.
Esse novo processo de cooperação entre países emergentes poderia sinalizar que o
formato tradicional dos organismos multilaterais estaria em descompasso com as demandas do
século XXI? Ou apenas representa uma forma a mais de financiamento de projetos de
desenvolvimento que passa a estar disponível para a periferia do sistema?

2. O FINANCIAMENTO DO DESENVOLVIMENTO

Nesse contexto, com a abertura para novos membros do Banco prevista em 2017 será
interessante observar como os principais players internacionais irão se posicionar: seria
interessante integrar e participar desse projeto do ponto de vista das economias centrais
(sobretudo EUA e Europa)? Mais especificamente, o que a fundação desse novo acordo com
tendência de longo prazo poderia estar sinalizando no cenário internacional?
A relevância do desenvolvimento do BRICS deriva possivelmente do modus
operandi que se vem decidindo percorrer. Não se trata apenas de um Fórum que se propõe a
revolucionar a governança global, mas sim, de um caminho que vem trilhando através de uma

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via legal sinalizando para a necessidade de reforma - que possa contemplar, gradualmente, um
formato que se aproxime na direção de decisões multilaterais promovendo maior justiça social
no âmbito interno e também internacional. Esse projeto aparentemente já foi lançado, ainda que
as distâncias para as metas progressivas e no que concerne à forma de atuação a curto, médio e
longo prazo, ainda sejam passiveis de acompanhamento e observação ao longo das próximas
décadas.
De acordo com o artigo 3 do documento final oriundo do Fourth BRICS Summit:
Delhi Declaration (2012), “Os BRICS são uma plataforma para o diálogo e a cooperação entre
países que representam 43% da população mundial, para a promoção da paz, da segurança e do
desenvolvimento em um mundo globalizado multipolar, interdependente e cada vez mais
complexo. Vindo da Ásia, da África, da Europa e da América latina, a dimensão
transcontinental dessa interação ganha valor e significado”2.
O que parece permear as iniciativas do BRICS é uma proposta construtiva atípica, na
qual o fluxo de medidas políticas e normas legais vão formando um novo e diverso modelo de
institucionalização regional. O dinamismo desencadeado desse processo de cooperação
interestatal acaba representando um processo diferente daquele verificado no caso europeu ou
norte americano. Do ponto de vista jurídico institucional, por exemplo, destaca-se o forte papel
que esses cinco países remetem ao Estado.
Segundo Lucia Scaffardi (2012), os BRICS quanto atividade interinstitucional, se
inserem em perspectiva de comparação internacional (inclusive sob o ponto de vista do FMI e
Banco Mundial) através de elementos centrais e imprescindíveis para a compreensão de
policymaking interno e externo a outros Estados – comparação que requer esforço cognitivo e
avaliativo complexo tanto do ponto de vista jurídico institucional como levando em conta as
estruturas informais que levam em conta o “diálogo” e o “fluxo” que sustentam a dinâmica em
curso (SCAFFARDI, 2012, p.163).
A pergunta que fica em aberto se refere a qual posicionamento seria o mais apropriado
na direção do crescimento e desenvolvimento econômico pensando na realidade e conjuntura
dos diferentes Estados. Esse assunto não toca apenas aos países periféricos ou emergentes, mas
a todos os países do globo, que possuem suas nuances e suas demandas nesse início de século

2 Art. 3 da Declaração final do New Delhi Summit (29.03.2012). Disponível em: <http://brics5.co.za/aboutbrics/ summit-
declaration/fourth-summit/>. Acesso em Junho de 2017.

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XXI. Voltamos ao debate recorrente da proporção desejável entre intervencionismo e


liberalismo na busca pela dinâmica de sociedades mais prósperas e abundantes.
O fato desses cinco países não centrais – que juntos possuem boa parte do território,
população, mercado consumidor e PIB mundial - se reunirem e buscarem se organizar
institucionalmente paralelamente ao formato tradicional proposto em Bretton Woods, é algo
significativo em termos de governança global e política internacional.
Nesse contexto, o papel do Novo Banco de Desenvolvimento também torna-se
pertinente como objeto de análise, de modo que analisar mudanças envolvendo questões
econômicas, sociais, políticas e institucionais relacionados com os campos da geopolítica
internacional, reposicionamento nas relações de forças e novas inserções dos países emergentes
no sistema interestatal, assim como seus impactos na realidade latino-americana recente,
tornam-se assuntos de interesse para que se possa compreender o cenário contemporâneo.
Essas são questões que se colocam nesse início de século e, em mundo em que as
transformações acontecem de forma cada vez mais acelerada, torna-se pertinente analisar e
refletir sobre esses pontos para que se possa, a partir das lições do passado, compreender melhor
quais as tendências de transformação do cenário internacional que estão em curso e que são
desejáveis na construção de uma sociedade global que contemple desenvolvimento econômico
e qualidade de vida com amplo alcance e difusão em nível internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste artigo consistiu em resgatar alguns elementos que antecedem a


constituição do bloco dos países denominados BRICS, no intuito de contextualizar a análise
dos acordos desse conjunto de países que se estabelece internacionalmente no século XXI –
sobretudo levando em conta a fundação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) – também
conhecido como Banco dos BRICS.
Nesse sentido, recorrer ao passado torna o trabalho de observação mais pertinente
uma vez que permite analisar o surgimento do Novo Banco de Desenvolvimento enquanto
produto de uma série de eventos históricos, e não como ponto de partida da análise.
Por essa perspectiva, assume-se neste trabalho que as relações interestatais, sobretudo
suas rivalidades e hierarquias, correspondem a um elemento fundamental para que se possa
entender o nascimento, a dinâmica e a potencial evolução do NDB ao longo do tempo. Da

747
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mesma forma, as mudanças no cenário internacional podem ser entendidas como elementos
fundamentais para a fundação do Novo Banco de Desenvolvimento.
Em um sistema constituído por Estados Nacionais o NDB representa, pela primeira
vez, uma iniciativa com aspiração em tornar-se uma instituição de escopo global, formada
exclusivamente por países emergentes – ou seja, sem a participação direta de nenhum país
“desenvolvido”. Assume-se assim, de forma inovadora, uma nova conotação de cooperação e
abrangência internacional.
Novos players em um cenário internacional em mutação configuram um panorama
onde as demandas específicas dos países-membros possam abrir novos espaços criando, assim,
a possibilidade de revisão de suas respectivas inserções individuais na estrutura global da
organização. Nesse contexto, perceber quais mudanças estariam por trás e dinamizando a
criação do Novo Banco de Desenvolvimento, torna-se algo pertinente dentro do cenário
geopolítico internacional contemporâneo.
A reflexão em torno do NDB nesse princípio de século XXI requer uma análise
histórica crítica, associada à elaboração de uma nova agenda de compromissos que, levando
em conta o fato da adoção do receituário tradicional aplicado pelas instituições de Bretton
Woods nem sempre ter favorecido o processo de desenvolvimento dos países periféricos,
possua vínculos com o resgate da autonomia e desenvolvimento econômico dessas nações. Por
esse prisma, países semiperiféricos e periféricos ainda possuem longo percurso a percorrer,
sobretudo se forem levadas em conta as mudanças a serem perseguidas em termos da
governança dos organismos multilaterais.
Vivemos um momento em que as transformações internacionais estão acontecendo
em uma velocidade rápida. Alguns players progressivamente vêm ganhando destaque e isso
apresenta reflexos em torno dos debates na arena internacional. Nessa direção, o Novo Banco
de Desenvolvimento - Banco dos BRICS - criado em Julho de 2014, pode ser considerado uma
evidência desse processo de transformação. Porém, o processo de mudanças em termos da
governança dos organismos multilaterais, ainda que aparentemente esta temática esteja mais
presente no debate, precisa ganhar mais fôlego para que se torne efetivo.
Nesse sentido, o que se pode observar, é o peso do ordenamento do sistema interestatal
em bases multilaterais, e como o sistema ainda segue “amarrado” à ordem proposta em Bretton
Woods. A velocidade das mudanças depende exclusivamente da mobilização política das
partes interessadas em rediscutir o modelo, caso contrário, seguiremos reproduzindo “mais do

748
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
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mesmo”. O papel efetivo e os instrumentos de persuasão a serem adotados pelos países


envolvidos nesse processo permanecem representando uma questão em aberto (e que merece
debate) na conjuntura internacional atual.
Se o Novo Banco de Desenvolvimento ocupará um papel de destaque, sinalizando
um processo de mudanças no contexto internacional, é algo ainda a ser verificado e que se torna
um assunto interessante na conjuntura atual do ponto de vista de uma possível nova
configuração no médio, mas sobretudo no longo prazo, dentro do sistema interestatal.
Pela perspectiva de promoção do desenvolvimento, os impactos do ponto de vista
latino-americano, seriam representados pela possibilidade gradual de acesso a uma via
paralela/complementar de financiamento que tem pretendido, até o momento, apresentar-se de
forma menos excludente e limitadora que o formato de financiamento tradicional associado ao
modelo de Bretton Woods.

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750
AS DISPUTAS DE CAPITAL SIMBÓLICO NO CAMPO JURÍDICO:
AS REAÇÕES AO NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA
DEFENSORIA PÚBLICA

ALÔ, Bernard dos Reis


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

RESUMO

O Direito brasileiro observou, nos últimos anos, o processo de reconfiguração institucional da Defensoria
Pública, notadamente marcado por sucessivas Emendas Constitucionais. A Emenda Constitucional
80/2014 apenas complementa um ciclo iniciado com a Emenda Constitucional 45/2004, no sentido da
reestruturação constitucional da Defensoria Pública e da teórica tentativa de efetivação da política
pública de acesso à justiça. O presente estudo objetiva um diálogo do Direito com a Sociologia, a fim de
demonstrar que, por trás de argumentações jurídicas, relativas à adequação das citadas Emendas
Constitucionais ao sistema jurídico pátrio, existe, na realidade, uma disputa de capital simbólico. O
trabalho se funda nos conceitos clássicos da obra de Pierre Bourdieu, a fim de embasar a tese proposta,
no sentido de que o conflito de teses jurídicas mascara disputas corporativas em determinado campo
social.

Palavras-Chave. Acesso à Justiça. Defensoria Pública. Pierre Bourdieu.

ABSTRACT

In recent years, brazilian law has observed the process of institutional reconfiguration of the Public
Defender's Office, notably marked by successive Constitutional Amendments. Constitutional
Amendment 80/2014 only complements a cycle initiated with Constitutional Amendment 45/2004, in the
sense of the constitutional restructuring of the Public Defender's Office and the theoretical attempt to
implement the public policy of access to justice. The present study aims at a dialogue between Law and
Sociology, in order to demonstrate that, behind legal arguments related to the adequacy of the
aforementioned Constitutional Amendments to the national legal system, there is in fact a dispute of
symbolic capital. The paper is based on Bourdieu’s classic concepts, in order to base the proposed thesis,
in the sense that the conflict of legal theses masks corporate disputes in a certain social field.

Keywords. Access to Justice. Public defense. Pierre Bourdieu.

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INTRODUÇÃO

O Direito brasileiro observou, nos últimos anos, o processo de reconfiguração


institucional da Defensoria Pública, notadamente marcado por sucessivas Emendas
Constitucionais. O direito fundamental de acesso à justiça, dissecado pela obra clássica de
Cappelletti e Garth1, e constantemente revisitado por autores contemporâneos2, experimentou,
em nosso país, um novo capítulo, especialmente após o advento da Emenda Constitucional
80/2014, que consagrou a plena autonomia da Defensoria Pública, em âmbito nacional, dos
Poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário). A Emenda Constitucional 80/2014,
na realidade, apenas complementa um ciclo iniciado com a Emenda Constitucional 45/2004,
como abordaremos no decorrer da explanação, no sentido da evolução constitucional da
Defensoria Pública, Instituição eleita pelo constituinte como garantidora, no plano estatal, da
política pública de acesso à justiça e do serviço público de assistência jurídica integral e gratuita.
Contudo, esse novo desenho constitucional da Defensoria Pública não foi recebido
pelo campo jurídico com isenção de críticas e questionamentos, principalmente por outras
Instituições de igualmente elevada estatura constitucional. Aprofundando a análise, se busca,
no presente estudo, um diálogo do Direito com a Sociologia, a fim de demonstrar que, por trás
de argumentações jurídicas, relativas à adequação das citadas Emendas Constitucionais ao
sistema jurídico pátrio, existe, na realidade, uma disputa de capital simbólico. No decorrer da
dissertação, nos afluiremos dos conceitos clássicos da obra de Pierre Bourdieu, a fim de
fundamentar a tese proposta.

1. O NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA

A reestruturação institucional da Defensoria Pública teve início, no direito pátrio, com


o advento da Emenda Constitucional 45/2004, que inseriu, no texto maior, o § 2º, do art. 134,
concedendo às Defensorias Públicas estaduais autonomia funcional, administrativa e financeira
(iniciativa de elaboração de sua proposta orçamentária, prevendo a sua gestão financeira anual).
Por via reflexa, a Instituição, no âmbito estadual, deixou de ser um simples órgão auxiliar do
governo, passando a ser órgão constitucional independente, sem qualquer subordinação ao

1CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
2ECONOMIDES, Kim. “Lendo as ondas do movimento de acesso à justiça: epistemologia versus metodologia”. Revista
Cidadania, Justiça e Violência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

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Poder Executivo. Assim, tinha início o processo de tentativa de concretização do direito


fundamental de acesso à justiça, através da assistência jurídica gratuita estatal, tendente a abolir
qualquer vinculação entre a Instituição e o Poder Executivo, seja no que toca à “atividade-meio”
ou à “atividade-fim”.
Continuando o movimento, o Congresso Nacional promulgou, em 29 de março de
2012, nova Emenda Constitucional, oriunda da proposta nº 445/2009, que concedeu
competência ao Distrito Federal para organizar e manter a sua própria Defensoria Pública. A
Constituição Federal, no art. 21, XIII, conferia à União a organização e manutenção da
Defensoria Pública do Distrito Federal, e o art. 22, XVII, atribuía à União a competência
privativa para legislar sobre a instituição. Destarte, o Distrito Federal não possuía autonomia
quanto à Defensoria Pública, embora pudesse, com fulcro no art. 24, XIII, primeira parte, da
CF, legislar sobre assistência jurídica.
Com a Emenda Constitucional nº 69/2012, a organização e manutenção da Defensoria
Pública do Distrito Federal passaram a ser de competência deste ente federativo e não mais da
União, alterando a redação dos arts. 21, XIII, 22, XVII e 48, IX, da Constituição da República.
Importante observar que, segundo o art. 2º, da referida Emenda, à Defensoria Pública do
Distrito Federal, sem prejuízo do estatuído pela Lei Orgânica do DF, seriam aplicáveis as regras
e princípios atinentes às defensorias estaduais, inclusive no que toca à plena autonomia.
Contudo, subsistia a exclusão da Defensoria Pública da União, que permanecia
vinculada à estrutura organizacional do Ministério da Justiça, o que, inclusive, foi objeto da
ADI nº 4282, sob o patrocínio do então advogado, hoje Ministro do STF, Luís Roberto Barroso,
buscando interpretação conforme a Constituição, com intuito de estender as garantias
institucionais conquistadas à Defensoria Pública da União.
Todavia, antes que o mérito da ação fosse julgado pela Corte Suprema, o poder
constituinte reformador conferiu, expressamente, as garantias institucionais do art. 134, § 2º, da
Constituição, à Defensoria Pública da União, através da Emenda Constitucional nº 74/2013. A
partir de então, a Defensoria Pública da União adquiriu o mesmo patamar constitucional das
Defensorias estaduais e do Distrito Federal, podendo gerir sua própria proposta orçamentária.
Cabe registrar que, em 2015, por ocasião do primeiro orçamento próprio da DPU, sem
qualquer vinculação ao Ministério da Justiça, já houve incremento significativo dos valores.
Em 2014, o governo federal enviou proposta ao Parlamento em valor inferior ao executado no
ano de 2013 (R$ 115 milhões), apenas R$ 103 milhões para custeio, enquanto, em 2015, a

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proposta encaminhada pela DPU foi de R$ 245 milhões. Ressalte-se que este aporte
orçamentário permitiu, no ano 2016, o planejamento da abertura de 25 novas unidades, em
locais que não eram atendidos pela Instituição, iniciando o processo de plena interiorização.
Arrematando o processo, em 04 de Junho de 2014, foi promulgada a Emenda
Constitucional nº 80/2014, conhecida, no mundo jurídico, como “PEC Defensoria Para Todos”,
“PEC das Comarcas” ou “PEC das Defensorias Públicas”. A alteração constitucional buscou
interferir na realidade do sistema de Justiça no país, empoderando a Instituição, com o escopo
de garantir a universalização do atendimento, com os recursos jurídicos e materiais necessários
para sua plena interiorização.
A Emenda em tela constitucionalizou o art. 1º, da Lei Complementar nº 80/94
(alterada pela Lei Complementar nº 132/2009), Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública
(LONDP), e os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência funcional
(art. 3.°, LC 80/94), além de ampliar o conceito de Defensoria Pública, tornando-a “instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e
instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais
e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º
desta Constituição Federal” (art. 134, caput, da CRFB 88).
Ademais, criou-se a Seção IV, no Capítulo constitucional das Funções Essenciais à
Justiça, diferenciando, inequivocamente, a Advocacia privada, presente na Seção III, da
Defensoria Pública, cada qual com Seção específica (Ministério Público, Advocacia Pública,
Advocacia Privada e Defensoria Pública, respectivamente). Mudança importante também
ocorreu nos requisitos de ingresso na carreira de Defensor Público, arrastando para o cargo a
exigência, já aplicável à Magistratura e ao Ministério Público (art. 93, CRFB/88), de três anos
de atividade jurídica para os concursos públicos.
Entretanto, os pontos mais relevantes deste diploma foram a estipulação de
mandamento constitucional tendente à efetiva instalação da Defensoria Pública em todo
território nacional, tendo o constituinte derivado, inclusive, estipulado o prazo de 8 anos para
concretização (art. 98, § 1º, ADCT), e, principalmente, a previsão de iniciativa legislativa,
conforme arts. 96, inc. II, e 134, § 4.°, da CRFB, conferida aos Defensores Gerais, no que toca
a matérias relevantes como, por exemplo, criação e extinção de cargos.

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Assim, consolidou-se o arcabouço constitucional necessário à efetiva instalação da


Defensoria Pública, em âmbito nacional e em todas as esferas de governo (União, Estados e
Distrito Federal), conferindo-lhe, o constituinte, toda musculatura jurídica necessária para a
busca de recursos materiais indispensáveis à prestação de um serviço público de qualidade.
Interessante notar que, como colocado acima, o novo patamar orçamentário conferido à DPU
pela EC 74/2013 permitiu, no ano 2016, o planejamento da abertura de 25 novas unidades,
sendo certo que, mantendo-se tal proporção de investimento e o mesmo ritmo de abertura de
novas unidades (25/ano), em 8 anos a DPU alcançará as 200 subseções judiciárias da justiça
federal que ainda carecem de sua atuação, cumprindo, com exatidão, o prazo estipulado pela
EC 80/2014.
A nova moldura constitucional aqui narrada resultou, portanto, na plena autonomia
da Defensoria Pública em relação aos Poderes constituídos, permitindo que a Instituição possa
defender os interesses de seus assistidos, independente de qualquer ameaça de retaliação à
Instituição ou aos seus membros. Contudo, reações dos Poderes Executivos surgiram, a fim de
manter a subordinação da Instituição. A partir da EC 45/2004, práticas costumeiras dos
Governos estaduais, que travavam o desenvolvimento institucional, como, por exemplo, cortes
unilaterais de dotação orçamentária e subordinação da Defensoria a Secretarias estaduais,
passaram a ser repelidas pela Corte Suprema. Nesse sentido, vejamos:

A autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública qualifica-se como


preceito fundamental, ensejando o cabimento de arguição de descumprimento de
preceito fundamental, pois constitui garantia densificadora do dever do Estado de
prestar assistência jurídica aos necessitados e do próprio direito que a esses
corresponde. Trata-se de norma estruturante do sistema de direitos e garantias
fundamentais, sendo também pertinente à organização do Estado. A arguição dirige-
se contra ato do chefe do Poder Executivo estadual praticado no exercício da
atribuição conferida constitucionalmente a esse agente político de reunir as propostas
orçamentárias dos órgãos dotados de autonomia para consolidação e de encaminhá-
las para a análise do Poder Legislativo. Não se cuida de controle preventivo de
constitucionalidade de ato do Poder Legislativo, mas, sim, de controle repressivo de
constitucionalidade de ato concreto do chefe do Poder Executivo. (...) Nos termos do
art. 134, § 2º, da CF, não é dado ao chefe do Poder Executivo estadual, de forma
unilateral, reduzir a proposta orçamentária da Defensoria Pública quando essa é
compatível com a LDO. Caberia ao governador do Estado incorporar ao PLOA a
proposta nos exatos termos definidos pela Defensoria, podendo, contudo, pleitear à
Assembleia Legislativa a redução pretendida, visto ser o Poder Legislativo a seara
adequada para o debate de possíveis alterações no PLOA. A inserção da Defensoria
Pública em capítulo destinado à proposta orçamentária do Poder Executivo,
juntamente com as Secretarias de Estado, constitui desrespeito à autonomia
administrativa da instituição, além de ingerência indevida no estabelecimento de sua
programação administrativa e financeira. (ADPF 307-MC-REF, rel. min. Dias
Toffoli, julgamento em 19-12-2013, Plenário, DJE de 27-3-2014.)

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A EC 45/2004 outorgou expressamente autonomia funcional e administrativa às


defensorias públicas estaduais, além da iniciativa para a propositura de seus
orçamentos (art. 134, § 2º): donde, ser inconstitucional a norma local que estabelece
a vinculação da Defensoria Pública a Secretaria de Estado. A norma de autonomia
inscrita no art. 134, § 2º, da CF pela EC 45/2004 é de eficácia plena e aplicabilidade
imediata, dado ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direitos
humanos. (ADI 3.569, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-4-2007,
Plenário, DJ de 11-5-2007.) No mesmo sentido: ADI 4.056, rel. min. Ricardo
Lewandowski, julgamento em 7-3-2012, Plenário, DJE de 1º-8-2012; ADI 3.965,
Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 7-3-2012, Plenário, DJE de 30-3-2012; RE
599.620-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 27-10-2009, Segunda Turma,
DJE de 20-11-2009.

No plano federal, por sua vez, após a EC 74/2013, a Presidência da República deixou
de incorporar a proposta orçamentária da Defensoria Pública da União ao projeto de lei
orçamentária de 2015, suprimindo 95% dos valores relativos à despesa com pessoal definida
originalmente pela Instituição. Este fato motivou a impetração do Mandado de Segurança nº
33.193, perante o STF, sendo proferida, pela Ministra Rosa Weber, na qualidade de Relatora
do feito, decisão liminar, assegurando a apreciação pelo Congresso Nacional da proposta
orçamentária elaborada pela DPU, como parte integrante do projeto de lei orçamentária anual
de 2015.
Em acréscimo, o Executivo Federal também se insurgiu contra a EC 74/2013,
ajuizando a ADI 5.296, sob o argumento de que a reforma constitucional seria inconstitucional,
por suposto vício de iniciativa. De acordo com o professor Daniel Sarmento, em parecer juntado
aos autos da referida ADI, “mais uma vez, o interesse público secundário na economia de
recursos foi posto na frente da proteção dos direitos fundamentais dos hipossuficientes”3.
Cumpre citar que o Estado de São Paulo, por seu Procurador Geral do Estado, requereu
admissão na ação como amicus curiae, sustentando a inconstitucionalidade da EC 74, nos
mesmos termos da inicial, demonstrando clara tendência ao mesmo questionamento em âmbito
estadual. A ação, em seu mérito, ainda está pendente de julgamento. Porém, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos (8 a 2), indeferiu o pedido de liminar, sob o
entendimento de que não houve violação a princípios constitucionais.

3
ASSOCIAÇÃO DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em:
<http://www.adpergs.org.br/todas-as-noticias/item/parecer-de-daniel-sarmento-na-adi-proposta-pelo-governo-dilma-rousseff-
contra-a-autonomia-da-defensoria-publica-da-uniao>. Acesso em: 03 de agosto de 2017.

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2. AS REAÇÕES AO NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA


PÚBLICA, À LUZ DA TEORIA SOCIOLÓGICA DE BOURDIEU

Aproveitando-nos do caráter interdisciplinar do presente evento acadêmico,


estimulante do diálogo do Direito com a Filosofia e, principalmente, a Sociologia, cabe
analisarmos a resistência diante da afirmação institucional da Defensoria Pública, à luz da obra
de Pierre Bourdieu.
Em seus escritos, Bourdieu4-5 trabalha conceitos indispensáveis para entendermos
que, por trás de eventuais divergências jurídicas existentes sobre os atos normativos que
embasam a evolução institucional, há, na essência, uma intensa disputa de poder, ou, nas
palavras do autor, de capital econômico, social e/ou simbólico, entre atores de um determinado
campo social. A ação jurídica é permeada pela noção de poder, seja na concorrência entre
aqueles que necessitam da justiça para defesa de seus interesses, seja na concorrência entre os
profissionais da área6.
Segundo Bourdieu, as relações sociais são vistas como um sistema hierarquizado de
poder e privilégio, determinado tanto pelas relações econômicas, como pelas relações
simbólicas ou culturais entre os indivíduos. Assim, a posição dos agentes nessa estrutura social
deriva da distribuição, naturalmente desigual, de recursos e poderes. Por recursos ou poderes,
Bourdieu coloca especificamente o capital econômico (exemplos: rendas, salários, imóveis), o
capital cultural (diplomas e títulos representativos de conhecimentos adquiridos), o capital
social (relações sociais que podem ser capitalizadas) e, por fim, mas não menos importante, o
capital simbólico (vulgarmente chamado de prestígio e/ou honra). Nessa toada, a posição de
“privilégio” ou “não privilégio” ocupada por um grupo ou indivíduo é definida de acordo com
o volume e a composição de capitais adquiridos ao longo das respectivas trajetórias sociais.
A sociologia bourdieusiana tende a interpretar os fenômenos sociais de maneira
crítica, buscando as verdadeiras relações de poder mascaradas pelas convenções sociais. Nesse
diapasão, consideramos indispensável para a análise realista das resistências impostas ao novo
patamar constitucional da Defensoria Pública a exposição de que não se está a tratar apenas de

4 BOURDIEU, Pierre. Capitulo 1: Espaço Social e Espaço Simbólico; Capitulo 2: O Novo Capital, Capitulo 4: Espíritos de
Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. IN: Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996 (pp. 13-
28, 35-52, 91-124).
5
______. Capitulo III: A Genese dos conceitos de Habitus e de Campo. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2010 (pp. 59-73).
6 SANTOS, Márcio Achtschin . Uma leitura do campo jurídico em Bourdieu. In: Águia: revista científica da FENORD , v. 01, p.

90-105, 2011.

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debates sobre teses jurídicas, mas de disputas, dentro do campo social jurídico, de troféus
específicos.
Um campo pode ser compreendido como um espaço estruturado de posições, onde
agentes estão em concorrência pelos seus troféus específicos, seguindo regras igualmente
específicas7. Afirma Bourdieu (apud Bonnewitz8):

Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou uma
configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas
objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus
ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na
estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse
comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo e, ao mesmo
tempo, por suas relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação,
homologia etc.). Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é
constituído do conjunto destes microcosmos sociais relativamente autônomos,
espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma necessidade
especificas e irredutíveis às que regem os outros campos. Por exemplo, o campo,
artístico, o campo religioso ou o campo econômico obedecem a lógicas diferentes.”

Destarte, o conceito de campo engloba um espaço no qual são travadas relações


sociais múltiplas entre agentes que disputam os mesmos interesses, ou seja, pelejam por troféus
específicos, mas sem dispor dos mesmos recursos. É um lócus de batalha entre dominantes e
dominados, respectivamente agentes que possuem um acúmulo maior de capital (poder) para
intervir no campo, e empregam estratégias para conservarem suas posições, e aqueles desejosos
de abandonar sua posição de dominados, empregando, geralmente, estratégias de subversão. A
estrutura do campo, portanto, consiste no eterno embate entre agentes dominantes e dominados
engajados na luta.
Neste ponto, interessante verificar a diferença conceitual entre o espaço público
habermasiano9 e a ideia de campo social de Bourdieu. Este avalia a sociedade e seus diversos
campos como espaço de luta, de enfrentamento. Não há consenso, como aduz Habermas, mas
sim dominação. Habermas, por sua vez, acredita no acordo de convivência, advogando que,
através do debate e das decisões coletivas, aprimora-se a democracia. Em oposição à lógica de

7 BARROS, Clóvis de Barros. “A sociologia de Pierre Bourdieu e o campo da comunicação”: Uma proposta de investigação
teórica sobre a obra de Pierre Bourdieu e suas ligações conceituais e metodológicas com o campo da comunicação. Tese de
doutorado, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2003. p. 120.
8 BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2005. P. 60.

9 VOIROL, O. A esfera pública e as lutas por reconhecimento: de Habermas a Honneth. Cadernos de filosofia alemã, São Paulo,

n. 11, p. 33-56, Jan./Jun, 2008.

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Bourdieu, calcada em uma arena truculenta de dominação, o espaço público habermasiano é


local de convencimento e consenso.
Ao alcançar o presente patamar constitucional, a Defensoria Pública subverteu a
lógica específica do campo social jurídico, deixando de figurar como agente dominado para
disputar capital social e troféus específicos com Instituições dominantes. Paralelamente, em
uma ótica mais abrangente do campo, as classes sociais representadas pela Defensoria,
historicamente dominadas, passaram a ter, pelo menos em tese, representatividade jurídica, com
certa paridade de armas, perante classes sociais historicamente dominantes, ensejando naturais
movimentos de resistência. Enquanto dominantes buscam conservar seu capital social e seus
troféus específicos, dominados buscam subverter a lógica do campo, sendo tal dinâmica
intrínseca às relações sociais.
Interessante anotar que as reações às conquistas de capital social da Defensoria não
surgiram em momento recente, sendo um fenômeno recorrente a cada avanço concretizado.
Apenas a título exemplificativo, além das questões já citadas em tópicos anteriores, podemos
citar mais dois casos concretos, aptos a demonstrar disputas por troféus específicos do campo
jurídico.
Em primeiro plano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente
procedente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 230), em que o governo do Rio de
Janeiro, réu contumaz nas ações promovidas pela Defensoria Pública, questionava itens da
Constituição estadual sobre prerrogativas dos Defensores Públicos. Especificamente sobre
dispositivo que estabelecia como prerrogativa do Defensor Público o poder de requisição de
informações de autoridades públicas e dos seus agentes ou de entidades particulares,
instrumento importante de atuação, tendo em vista as dificuldades enfrentadas pela população
hipossuficiente na obtenção de documentos básicos, ante o argumento de se evitar um
“superadvogado”, com “superpoderes”, o que, em tese, quebraria a igualdade com outros
advogados, foi declarado integralmente inconstitucional o dispositivo. Com o exemplo, se
verifica, para o observador mais crítico, que, nos bastidores de uma disputa aparentemente
jurídica, se trava, na realidade, uma disputa por posições de vantagem dentro do campo social.
Indo além, em outra ocasião, por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal
Federal julgou improcedente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3943) e considerou
constitucional a atribuição da Defensoria Pública para o ajuizamento de ações civis públicas.
Essa atribuição foi questionada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público

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ISSN 2236-9651, n. 7

(CONAMP), em clara disputa de capital simbólico no microcosmos jurídico. Interessante,


nesse julgado, verificar que, nos próprios votos, alguns Ministros transpareceram que o debate
revelaria uma disputa entre Instituições, distante de uma preocupação unicamente ligada à
higidez do ordenamento jurídico. Nesse sentido, ponderou a relatora, Ministra Carmem Lúcia:

Para a Autora, a Defensoria Pública não poderia defender, por ação civil pública,
direitos coletivos (difusos e coletivos estrito senso – transindividuais) tampouco
direitos individuais homogêneos porque a atuação da Defensoria está condicionada
à identificação dos que comprovarem a insuficiência de recursos.
Partindo da afirmativa de que, em ação civil pública, não são identificáveis e
individualizáveis os hipossuficientes que poderiam se beneficiar dos serviços da
Defensoria, esse instrumento processual não se adequaria aos limites impostos à
instituição pela Constituição da República, pelo que a norma impugnada deveria ser
declarada inconstitucional.
Parece-me equivocado o argumento, impertinente à nova processualística das
sociedades de massa, supercomplexas, surgida no Brasil e no mundo como reação à
insuficiência dos modelos judiciários convencionais. De se indagar a quem
interessaria o alijamento da Defensoria Pública do espaço constitucional-
democrático do processo coletivo.
A quem aproveitaria a inação da Defensoria Pública, negando-se-lhe a legitimidade
para o ajuizamento de ação civil pública?
A quem interessaria restringir ou limitar, aos parcos instrumentos da processualística
civil, a tutela dos hipossuficientes (tônica dos direitos difusos e individuais
homogêneos do consumidor, portadores de necessidades especiais e dos idosos)? A
quem interessaria limitar os instrumentos e as vias assecuratórias de direitos
reconhecidos na própria Constituição em favor dos desassistidos que padecem tantas
limitações? Por que apenas a Defensoria Pública deveria ser excluída do rol do art.
5º da Lei n. 7.347/19852?
A ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que
compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito.
(…)
A ausência de demonstração de conflitos de ordem objetiva decorrente da atuação
dessas duas instituições igualmente essenciais à justiça (a Defensoria Pública e o
Ministério Público) demonstra inexistir prejuízo institucional para a segunda, menos
ainda para os integrantes da Associação Autora.”

O Ministro Marco Aurélio, defendendo que o mérito da ação sequer deveria ser
analisado, por ausência de pertinência temática da CONAMP, coloca:

“Presidente, peço vênia para divergir. Não reconheço à CONAMP – e vejo que a
CONAMP tem receio da Defensoria Pública – a legitimidade universal.”

Importante registrar que não se está a advogar um cenário de heróis e vilões, no qual
instituições supostamente mais legítimas seriam perseguidas por outras menos legítimas. Na
realidade bourdieusiana que expomos, todas estão legitimamente disputando capital social e
troféus específicos. Apenas a título exemplificativo, pode-se citar as Ações Diretas de
Inconstitucionalidades (ADIs) 3892 e 4270, que declararam a inconstitucionalidade de normas

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do Estado de Santa Catarina sobre a defensoria dativa e a assistência judiciária gratuita. O


Estado não possuía Defensoria Pública e a população hipossuficiente recebia prestação jurídica
gratuita por meio de advogados dativos indicados pela seccional catarinense da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB-SC). Não obstante a discussão técnico-jurídica travada, inegável
que, no âmago, buscava a Defensoria ganhar capital social, conquistando um espaço no campo
até então ocupado pela advocacia privada.
A reflexão que merece ser feita diz respeito ao limite tênue em que excessos nas
contendas institucionais passam a disputar espaço com a efetiva tutela dos direitos. Até que
ponto preocupações com aspectos meramente formais, que tentam esconder competições
sociais de poder, colocam em segundo plano a preocupação com a efetivação da justiça? Eis
uma provocação que merece destaque, notadamente na discussão sobre a materialização social
da ciência jurídica.

CONCLUSÃO

No presente estudo, se buscou um diálogo do Direito com a Sociologia, a fim de


demonstrar que, por trás de argumentações jurídicas, existe, na realidade, uma disputa de capital
simbólico. Valendo-nos dos conceitos clássicos da obra de Pierre Bourdieu, se aprofunda o
debate entre o tema proposto e as demais ciências sociais, suscitando ponderações sobre a
interpretação jurídica em geral e, no presente estudo, especificamente sobre os atos normativos
relacionados ao fortalecimento institucional da Defensoria Pública, a fim de situá-la não como
um fenômeno hermético e apartado da realidade, mas sim como um fato social representativo
das relações intrínsecas de poder.

REFERÊNCIAS

Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.adpergs.org.
br/todas-as-noticias/item/parecer-de-daniel-sarmento-na-adi-proposta-pelo-governo-dilma-rousseff-contra-a-aut
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CORRUPÇÃO E INSTITUIÇÕES

BRETAS, Carlos Renan Moreira


Mestrando do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da UFF
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO

O presente artigo discute um fenômeno muito presente no passado e nos dias atuais: a corrupção. Para
tanto, será apresentado neste ensaio algumas teorias que buscavam explicar a relação entre Estado,
corrupção e agentes políticos e econômicos. Neste sentido, destaca-se, inicialmente, a teoria da
modernização, muito presente a partir dos anos 1950, segundo a qual a corrupção poderia ser explicada
a partir da lacuna deixada entre o desenvolvimento econômico e a baixa institucionalização da política.
A corrupção surge, nesse contexto, como um mecanismo para driblar barreiras políticas para a obtenção
de benefícios econômicos. Ressalta-se também, teorias institucionalistas, que tentaram articular a ideia
de atores autointeressados e o papel das instituições. Neste caso, insere-se uma discussão a respeito do
rent-seeking, uma teoria que evidencia como agentes agem em busca de rendas geradas pela atuação
estatal. Por fim, deve-se apontar, na realidade brasileira, que fatores contribuíram e contribuem para
práticas corruptivas e que medidas são tomadas para combatê-las.

Palavras-Chave. corrupção, economia, política

ABSTRACT

This article discusses a very present problem in the past and in the present day: corruption. For this, we
will demonstrate in this essay some theories that sought to explain the relationship between State,
corruption and political and economic agents. In this sense, the theory of modernization, very present
from the 1950s onwards, stands out, according to which corruption could be explained from the gap left
between economic development and the low institutionalization of politics. Corruption emerges in this
context as a mechanism to overcome political barriers to obtaining economic benefits. Institutionalist
theories have also tried to articulate the idea of self-interested actors and the role of institutions. In this
case, there is a discussion about rent-seeking, a theory that shows how agents act in search of revenues
generated by state performance. Finally, it should be pointed out, in the Brazilian reality, what factors
contributed to and contribute to corruptive practices and what measures are taken to combat them.

Keywords. corruption, economy, politics

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INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a analisar algumas teorias sobre corrupção que foram
desenvolvidas ao longo do século XX. Veremos que, em muitas delas, aborda-se este fenômeno
a partir de uma perspectiva da economia - a economia política da corrupção.
A teoria da modernização evidencia a corrupção a partir do espaço deixado entre o
desenvolvimento econômico e a baixa institucionalização política, em que os agentes políticos
e econômicos tendem a burlar regras do sistema político em seu próprio benefício.
Enquanto a teoria da escolha pública toma um indivíduo como foco de análise,
considerando uma instituição como agrupamento de pessoas, em que cada uma visa um
interesse específico, a teoria da escolha racional, desenvolvida a partir dos anos 1980, procura
evidenciar o papel que as instituições exercem sobre o comportamento dos indivíduos.
Dentro desse panorama, surgem análises mais específicas, como a do rent-seeking. A
partir dessa teoria, da atuação estatal, como a regulação, por exemplo, surgem rendas, ou seja,
benefícios que são almejados por agentes econômicos. Para ganhar essas rendas, esses agentes
encontram na corrução uma saída com custo inferior ao caminho que deveria ser perseguido
caso fossem observadas as regras do sistema.
Analisaremos ainda a situação brasileira, fortemente marcada pelo patrimonialismo,
“que envolve a ideia de confusão entre bens particulares e públicos” (SOUZA, 2012, p.68),
fenômeno já apontado por Sérgio Buarque de Holanda em 1936, evidenciando uma realidade
histórica em nosso país. Além disso, ao longo do século passado, diversas práticas contribuíram
para o avanço da corrupção, como o clientelismo.
Ainda em curso, a operação Lava-Jato é um marco dos dias atuais que demonstra, não
obstante nossa história tenha mudado de atores, que práticas corruptivas estão ainda muito
presentes na relação entre Estado e sociedade.

1. TEORIA DA MODERNIZAÇÃO

Ao longo do século XX, diversos autores, sobretudo estadunidenses, a partir de um


olhar econômico sobre o problema político da corrupção, criaram diversas teorias sobre esse
instituto. Em um primeiro momento, em um panorama pós-segunda guerra mundial,
desenvolveu-se aquilo que posteriormente se denominou teoria da modernização. Esta teoria
explora a relação entre mudanças sociais e atos de corrupção, que são praticados em um

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contexto de um desenvolvimento econômico que não é acompanhado por uma evolução das
instituições. O principal pano de fundo para essa teoria são “grandes dicotomias como rural e
urbano, não industrializado e industrializado, subdesenvolvidas e desenvolvidas”
(FILGUEIRAS, 2012, p.300).
A partir da década de 1950, a questão da modernização ganhou força dentro de uma
análise funcionalista, cujo objetivo era investigar a relação entre o desenvolvimento político-
econômico e a corrupção. Samuel Huntington1, um dos principais nomes dessa escola,
sustentava que a corrupção surgia no espaço existente entre a modernização e a
institucionalização (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.10), quando esta não conseguia
resolver as necessidades que aquela impunha.
Para HUNTINGTON, a baixa institucionalização política seria um fator que
favoreceria a prática de atos corruptivos. Neste sentido:

Corruption is behavior of public officials which deviates from accepted norms in


order to serve private ends. [...] Corruption is one measure of the absense of effective
political institutionalization. Public officials lack autonomy and coherence, and
subordinate their institucional roles to exogenous demands2. (HUNTINGTON,
2002, p.253)

Com isso, devido à baixa institucionalização das organizações políticas, que pouco se
adaptam à dinâmica de mudanças, ocorre a corrupção, que pode representar um meio facilitado
de ascensão para o agente corrupto. Há autores, como JOSEPH NYE, que aludem a um caráter
positivo da corrupção, que se consubstanciaria na formação de “capital privado, superação de
barreiras burocráticas, integração das elites políticas e de capacidade governamental”
(FILGUEIRAS, 2012, p.301), o que, em uma perspectiva econômica, favoreceria o
desenvolvimento político de um país. Contudo, isso apenas se aplicaria em casos de corrupção
controlada.
Os estudos funcionalistas da corrupção, a partir da teoria da modernização, tiveram
grande influência até os anos 1970, restando superada, simbolicamente, com a queda do muro
de Berlim3.

1
Um de seus principais livros é “A ordem política em sociedades em mudança”, de 1975.
2
Texto original data de 1968.
3
FILGUEIRAS, 2012, p.302

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2. TEORIA INSTITUCIONAL DA ESCOLHA PÚBLICA

Paralelamente aos estudos da teoria da modernização, nos anos 1950 começaram a se


desenvolver outras ideias aplicadas ao sistema político a partir de uma abordagem econômica.
A principal agenda dessa linha ficou conhecida como teoria da escolha pública, ou public
choice theory, que aplicava um método da economia a elementos historicamente estudados pela
ciência política, tais como: “grupos de interesse, partidos políticos, processo eleitoral, análise
da burocracia, escolha parlamentar e análise constitucional” (PEREIRA, 1997, p.419).
A teoria da escolha pública assenta-se em uma perspectiva denominada
individualismo metodológico, que consiste em tomar o indivíduo como eixo de análise, pois só
ele é dotado de valores e estímulos, que podem orientar suas ações, sejam estas individuais ou
coletivas. Nessa perspectiva, as instituições são consideradas como agrupamento de indivíduos,
não se cabendo falar em uma concepção orgânica de instituição passível de ser analisada. Nesse
sentido, portanto, qualquer decisão coletiva é fruto de preferências individuais de cada agente
envolvido, instrumentalmente racional, assim como do arcabouço normativo que viabiliza a
passagem de diversos interesses pessoais para uma escolha coletiva. (PEREIRA, 1997, p.423-
424)
Os principais cientistas que desenvolveram a teoria da public choice foram Anthony
Downs, em sua obra “An Economic Theory of Democracy”, publicada em sua primeira edição
em 1957, e Marcur Olson, em se livro “A lógica da Ação Coletiva”, publicado em 1965. São
duas obras importantes para se compreender a atuação de grupos de interesse na política.
A obra de Dows deixa a intuição de um paradoxo na relação entre dois níveis, que
aparece de formas variadas, nos escritos de outros autores contemporâneos da época. Trata-se
do paradoxo da ação coletiva, segundo o qual as ações dos agentes racionais, consideradas em
uma esfera micro, podem convergir em uma irracionalidade de uma esfera macro, restando
frustrados os interesses de todos. (REIS4, 2013, p.12)
Olson defendeu que o fato de existir um grupo com objetivos em comum não é
condição de per si para a consolidação de um grupo de interesse, tendo em vista que diversos
daqueles grupos existem de maneira latente e, em razão disso, permanecem incapacitados de
exercer uma forte pressão sobre o governo para a defesa de seus interesses. Até mesmo grupos

4
Apresentação do Livro Uma teoria econômica da democracia, de Anthony Downs

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menores podem ser “mais eficazes em organizarem-se e em influenciarem as políticas


governamentais” (PEREIRA, 1997, p.434).

3. TEORIA INSTITUCIONAL DA ESCOLHA RACIONAL

A partir dos anos 80, passaram a exercer força no cenário político proposições da
teoria da escolha racional (rational choice) e de teorias institucionalistas. Nesse contexto,
evidenciam-se análises sobre grupos de interesse mais específicos, como no caso do rent-
seeking5, que será abordado em seguida.
O grande diferencial desse novo panorama consiste na consideração por parte dos
teóricos vinculados ao neo-institucionalismo da escolha racional do papel fundamental que as
instituições exercem na influência sobre o comportamento dos agentes e grupos de interesses
envolvidos no processo político. Segundo MARQUES:

O neo-institucionalismo da escolha racional considera as instituições fundamentais


para a definição das estratégias dos atores. Para eles, as instituições representam
constrangimentos à escolha estratégica, alterando o comportamento auto-
interessado. (MARQUES, 1997, p.77)

A escola do neo-institucionalismo da escolha racional se divide em duas vertentes. A


partir do primeiro modelo teórico, instituições seriam meras “regras do jogo”, um elemento
exógeno aos atores, e que representa uma espécie de script que descreve como deve agir cada
um no alcance dos seus interesses. Uma segunda interpretação leva em conta que essas “regras
do jogo” são estabelecidas pelos próprios atores-jogadores; logo, por esse viés, instituições
representam a forma “como os jogadores desejam jogar”. Com isso, se um ator não concorda
com a regra e deseja jogar de forma diferente, a instituição se torna frágil. Como consequência
disso, evidencia-se uma baixa institucionalização política. Neste sentido, SHEPSLE:

Within the rational choice tradition there are two now-standard ways to think about
institutions. The first takes institutions as exogenous constraints, or as an
exogenously given game form. The economic historian Douglass North, for
example, thinks of them as ‘‘the rules of the game in a society. [...] An institution is
a script that names the actors, their respective behavioral repertoires (or strategies),
the sequence in which the actors choose from them, the information they possess
when they make their selections, and the outcome resulting from the combination of
actor choices. (SHEPSLE, 2006, p.24)

5
Em português: caçadores de rendas

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The second interpretation of institutions is deeper and subtler. It does not take
institutions as given exogenously. Instead of external provision, the rules of the game
in this view are provided by the players themselves; they are simply the ways in
which the players want to play. (SHEPSLE, 2006, p.25)

Institutions are simply equilibrium ways of doing things. If a decisive player wants
to play according to diferent rules [...] then the rules are not in equilibrium and the
‘‘institution’’ is fragile. (SHEPSLE, 2006, p.26)

A teoria da escolha racional juntamente com uma visão institucionalista


proporcionam os elementos para a análise do problema da corrupção, por considerarem, como
primeiro nível de análise, o indivíduo. As teorias que levam em conta o comportamento dos
agentes destacam-se pelo foco no indivíduo, deixando em segundo plano, fatores gerais. Nesta
linha teórica, situa-se Susan Rose-Ackerman, referência em estudos sobre corrupção.

First, there is rational choice theory: public choice theory. For the independent
variables to explain corruption, it primarily looks at the level of the individual.
(GRAAF, 2007, p.46)

This group of causal theories is made popular by Rose-Ackerman (1978), who claims
that public officials are corrupt for a simple reason: they perceive that the potential
benefits of corruption exceed the potential costs. (GRAAF, 2007, p.47)

The advantage of public choice theory is that it has relatively close focus (Schinkel
2004: 11). Instead of looking for general determining factors, it concentrates on a
specific situation of an agent (a corrupt official) who calculates pros and cons. In that
sense however, it is insensitive to the larger social context (which is something public
choice in general has often been criticized for). (GRAAF, 2007, p.48)

Susan Rose-Ackerman possui um relevante estudo a respeito da corrupção, incluindo,


junto à teoria da escolha racional, o papel das instituições. Sua perspectiva de análise consiste
em tentar compreender como ajustes institucionais são coordenados a fim de permitir que
atores, visando interesses egoístas, possam potencializar ganhos ao desrespeitar regras que
organizam o sistema político. O que se busca é explicar a corrupção a partir da “ação estratégica
de atores políticos, de acordo com o cálculo racional que eles fazem para burlar ou não uma
regra institucional”. (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.11)

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4. RENT-SEEKING

Uma teoria que se fortaleceu no âmbito do estudo da corrupção por economistas é a


do rent-seeking. Trata-se de um conceito advindo do campo da economia, sobretudo das ideias
inseridas no campo da teoria da escolha racional. As principais obras sobre esse assunto foram
desenvolvidas por autores como “Tullock, Bhagwati, Krueger, Rose-Ackerman, entre outros”
(ZURBRIGGEN, 2012, p. 365). A teoria do rent-seeking pretende explicar como certos atores
buscam a maximização das suas rendas em prejuízo de recursos públicos. Para KRUEGER e
TULLOCK, atitudes típicas do rent-seeking são mais observadas em contextos de monopólio
político de poder e recursos, o que favorece a persecução de rendas pelos agentes, os quais não
encontram qualquer incentivo para seguir as regras institucionais do sistema. (AVRITZER,
FILGUEIRAS, 2011, p.11) Neste sentido:

Costly transfers should be particularly an issue in the case of a monopoly. As


monopolies give rise to rents, these incite disputes regarding their distribution.
(LAMBSDORFF, 2007, p. 111)

Com isso, a problemática da corrupção, a partir de vertentes teóricas oriundas de


proposições econômicas – como é o caso do rent-seeking, é explicada pela atitude dos atores
políticos “no contexto de instituições que procuram equilibrar esses interesses com noções
amplas de democracia”. (FILGUEIRAS, 2009, p. 396) Com isso:

From the outset, corruption has been considered as one form of rent-seeking. It was
viewed as a special means by which private parties may seek to pursue their interests
in the competition for preferential treatment. Just like other forms of rent-seeking,
corruption representes a way to escape the invisible hand of the market and influence
policies to one’s own advantage. (LAMBSDORFF, 2007, p. 113-114)

A teoria do rent-seeking possibilitou a conexão entre a ação de grupos de interesse e


governo, tendo em vista que este possui a capacidade de deliberar sobre “a atribuição de direitos
de propriedade sobre determinados recursos, conceder concessões de exploração, atribuir
licenças, [...], regular mercados, no sentido de uma restrição à competição, etc.” A partir dessas
inúmeras possibilidades de atuação estatal surgem as rendas de monopólio. (PEREIRA, 1997,
p.435)
Com isso, a busca por rendas é uma expressão designada para evidenciar a procura
por privilégios por parte de agentes públicos e privados. Estes últimos buscam influir
politicamente sobre os primeiros, para conseguirem alterações em medidas de cunho

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econômico que sejam benéficas seus fins, em prejuízo do bem-estar da coletividade. Trata-se,
de todo modo, de uma manifestação da corrupção (ZURBRIGGEN, 2012, p. 365). Neste
sentido, portanto:

A busca por rendas se define como a competência de empresas ou grupos de interesse


organizados para obter privilégios, rendimentos financeiros e favores políticos
individuais, em contraposição ao bem-estar social. [...] Os empresários atuam de
maneira racional, e incorrem em condutas de caça à renda quando julgam que os
prováveis benefícios por cometer um ato ilícito superam os custos. (ZURBRIGGEN,
2012, p. 365)

Ao analisar a teoria do rent-seeking, portanto, observamos um grande enfoque da


atitude de agente, que realizam atos de corrupção com o fim de alcançar seus próprios
interesses. Para isso, considera-se o governo como o “agente dos interesses dos cidadãos, eleito
para representar seus interesses através da formulação e execução de políticas públicas”
(ZURBRIGGEN, 2012, p. 366).
Para alguns autores como ZURBRIGGEN, uma saída para o problema do rent-
seeking consiste na execução de mudanças institucionais, a partir da perspectiva do
institucionalismo da escolha racional, que oferece um enfoque “útil para compreender os
aspectos microeconômicos da caça às rendas” (ZURBRIGGEN, 2012, p. 366).
Com isso, passa-se além de um enfoque micro de relações para a análise de uma
dinâmica macro, ao se investigar o papel das instituições, sejam elas formais ou informais, que
dominam o cenário político no qual os atores agem para que decisões políticas favoráveis a
seus interesses sejam adotadas. Partir para um estudo institucionalista do problema é essencial
para que se compreendam as relações de renda não apenas como uma “mera troca de recursos,
ou seja, benefícios específicos por apoio político ou eleitoral”. Neste sentido, o próprio rent-
seeking constitui-se como instituição específica, presente nos regimes políticos, sobre tudo na
América Latina, que “se reproduzem em forma de redes de caça à renda”. (ZURBRIGGEN,
2012, p. 367).

5. CORRUPÇÃO NO BRASIL

Vimos até então, diversas teorias que buscavam compreender a corrupção, sobretudo
a partir de uma abordagem do campo da economia. Muitos autores que, ao longo do século

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XX, desenvolveram esses estudos eram estadunidenses, inseridos, portanto, em um contexto


econômico diferente do nosso.
No caso brasileiro, a corrupção remonta desde os tempos da colonização, passando
pelo Império, até os dias atuais. Para se interpretar o fenômeno da corrupção na época colonial,
é preciso ter em vista as “diretrizes gerais que marcavam a cultura política, as práticas
administrativas e a dinâmica da colonização mercantilista na América portuguesa”
(FIGUEIREDO, 2012, p.174).
Caio Padro Jr. em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, relata diversas
práticas realizadas no âmbito da Administração, que careciam de total imparcialidade e que não
visavam a um fim comum, mas sim, a interesses de segmentos políticos, religiosos ou mesmo
econômicos. Isso se devia a uma realidade que assim descreveu o historiador:

Numa palavra, e para sintetizar o panorama da sociedade colonial; incoerência e


instabilidade no povoamento; pobreza e miséria na economia; dissolução nos
costumes; inépcia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos. (PRADO JR,
1961, p.355)

No contexto de uma sociedade completamente desestruturada, de uma administração


ineficaz e de uma economia voltada para a exportação de gêneros para o mercado exterior, em
que a colônia era importante apenas em aspectos que representassem ganhos financeiros para a
metrópole, certas práticas eram bastante comuns:

Magistrados, capitães, governadores, vice-reis, meirinhos, contratadores,


eclesiásticos não desperdiçaram chances de cultivar ganhos paralelos. Em troca deles
guardas facilitavam a soltura de condenados, juízes calibravam o rigor das sentenças,
fiscais unhavam parte das mercadorias que deveriam tributar. A participação em
atividades de contrabando revelava-se também tolerada. Afinal era recomendável, ao
menos tacitamente, participar das oportunidades da economia colonial amealhando
ganhos para o patrimônio familiar. Essa lógica que tornava natural a recepção por
parte dos funcionários de ganhos no exercício de funções em nome do rei integrava
o universo cultural em diversas escalas, desde o ambiente das relações locais em que
a autoridade atuava, que aceitavam, até as esferas decisórias na metrópole, que
toleravam. (FIGUEIREDO, 2012, p. 177)

A corrupção no Brasil é atribuída como uma herança ibérica, assim como também
decorrente do patrimonialismo, que constitui uma modalidade de dominação política. Para
AVRITZER e FILGUEIRAS, a corrupção não é uma prática a ser considerada como natural,
mas sim um fenômeno existente em várias dimensões:

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Esse tipo de leitura a respeito do problema da corrupção atribui ao Estado e à cultura


política brasileira a explicação das mazelas institucionais promovidas pela
malversação dos recursos públicos, tendo em vista nossa herança histórica. [...] Por
esse tipo de abordagem, é proporcionado um engessamento crítico das instituições
políticas, uma vez que a possibilidade de controle da corrupção ocorreria apenas por
uma revolução cultural e histórica do Brasil. [...] No entanto, para entender a
corrupção como fenômeno que afeta o Brasil democrático no começo do século XXI,
é importante desnaturalizá-la, isto é, entender que um conjunto de práticas e
instituições que existem no país tem forte centralidade na persistência do fenômeno,
que nada tem de natural. Assim, a organização do sistema político, a organização do
Estado e a organização das formas de controle sobre o sistema administrativo-estatal
são as principais dimensões da corrupção que a tornam um fenômeno fortemente
contencioso no Brasil. (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.8)

Um dos fatores que mais contribuíram para o fortalecimento da corrupção no Brasil


foi a “baixa institucionalização política”. Em função disso, a corrupção, ainda que em um
contexto de modernidade, relacionar-se-ia com “práticas políticas típicas de sociedades
tradicionais”. Exemplos dessas práticas são: “o clientelismo, a patronagem, o nepotismo, o
fisiologismo”. Embora possa se reconhecer que esses comportamentos possam não
obrigatoriamente constituir corrupção propriamente dita, “promovem vulnerabilidades
institucionais que resultam na corrupção”. (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.10) Neste
sentido:

[...], práticas como clientelismo, patronagem, nepotismo, malversação de recursos


públicos, extorsão, concussão, suborno, prevaricação e outras práticas mais podem
ter um sentido de corrupção à medida que seja considerada uma ação ilegítima em
contraposição ao interesse público. [...] Em primeiro lugar, porque estabelece uma
tensão entre o conceito de corrupção e os valores políticos fundamentais de uma
ordem democrática. Em segundo lugar, porque permite transcender a ideia, por si
restrita, de que a corrupção esteja referida apenas ao uso indevido de dinheiro público
ou ao suborno. Em terceiro lugar, porque assume que o efeito da corrupção esteja
não apenas no aspecto gerencial do Estado, mas no problema da legitimação da
ordem democrática como um todo. Em quarto lugar, porque permite absorver a ideia
de que o controle da corrupção envolve uma concepção mais ampla, assentada em
uma concepção aberta de cidadania e de accountability. Em quinto lugar, porque
permite perceber que o enfrentamento da corrupção não envolve apenas o ajuste das
instituições a sistemas de incentivo, mas compromissos de sociedades inteiras, tendo
em vista aspectos que são sociais, econômicos, culturais e políticos. (AVRITZER,
FILGUEIRAS, 2011, p.13)

Desde 2009, no Brasil, desenvolvem-se investigações do Ministério Público e da


Polícia Federal que levantaram uma série de irregularidades em contratos celebrados entre o
Estado e grandes empreiteiras, e que culminou na prisão de diversas pessoas, incluindo políticos
outrora influentes. Trata-se da operação Lava-Jato, que recebeu esse nome pelo fato de uma
rede de postos de combustíveis e de lava-jato de veículos ter sido usada como ferramenta de

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movimentação de recursos ilícitos. Trata-se da maior investigação sobre corrupção


empreendida no Brasil, que ganhou notoriedade, sobretudo em 2014, com a deflagração da
primeira fase, que culminou com a prisão do doleiro Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa,
ex-diretor da Petrobrás. A operação sofreu alguns desmembramentos, dentre os quais o do Rio
de Janeiro, em 2015. No ano seguinte, com a deflagração da Operação Calicute, o ex-
governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral é preso preventivamente a partir de investigações
que apontaram irregularidades em contratos celebrados pelo estado, em sua gestão, como no
caso das obras de reforma do Maracanã e da construção do Arco Metropolitano. A partir daí,
diversas outras denúncias foram oferecidas pelo Ministério Público em desfavor de Sérgio
Cabral, que resultaram em novos pedidos de prisão sua e de outras pessoas que eram ligadas ao
ex-governador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se afirmar, ao fim, que não é aconselhável falar-se em uma teoria política da
corrupção. Como foi visto, diversas teorias foram desenvolvidas ao longo do século passado,
cada uma com um foco específico. A corrupção é um fenômeno ainda muito presente na
realidade brasileira e de outros países. Trata-se de uma manifestação institucionalizada, a partir
da qual agentes políticos e econômicos procuram obter vantagens pessoais em detrimento do
interesse público.

REFERÊNCIAS

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CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA, 2011

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São Paulo: Edusp, 2013.

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ZURBRIGGEN, Cristina. Empresários e redes rentistas. In. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2. ed., 2012

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A LEI N. 13.019/14: LIÇÕES DE “BOA” GOVERNANÇA
NAS PARCERIAS COM O TERCEIRO SETOR?

SILVA, Daniela Juliano


Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense.

RESUMO

Nos primeiros meses do corrente ano, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro expediu uma
recomendação ao Município do Rio de Janeiro para que o mesmo suspendesse novas contratações por
meio de Organizações Socias (OS’s) para a saúde. O argumento que serve de base argumentativa para
tal documento sugere que a Secretaria Municipal de Saúde deve promover, antes de tudo, uma
reestruturação interna, de modo a ser capaz de realizar uma fiscalização eficaz dos contratos de gestão
firmados. A recomendação se alicerça nos sucessivos casos de corrupção capitaneados por OS’s, com o
desvio de pelo menos quarenta e oito milhões de em recursos públicos. O caso em apreço exterioriza
apenas um dos pilares da crise que afeta os entes do Terceiro Setor. A falta de repasse dos recursos
fomentados, aponta para o fracasso do modelo quando pautado apenas na parceria com o poder público
e coloca em xeque a efetividade, grande bandeira dos entes do Terceiro Setor. O denominado “Marco
Regulatório do Terceiro Setor” - Lei n. 13.019/15 - surge em um cenário de incertezas como promessa
não só de um lugar ao sol para tais entes parceiros do poder público na realização de direitos sociais de
primeira grandeza, mas também como esperança de um modelo de sucesso na implementação de mais
transparência e uma governança exemplar no trato desses acordos.

Palavras-Chave. Terceiro Setor. Accountability. Compliance.

ABSTRACT

In the earliest months of 2017, Ministério Público of Rio de Janeiro State, an institute responsible for
public accountability and compliance, recommended to Rio de Janeiro healthy secretary to interrupt
their contracts with social organizations which are responsible for the management of contracts in
health área. The reports of corruption had increased properly. The crisis in the sector, with economical
impacts in the contracts, is another cruel reality of the partnership constructed between groups that are
socially responsible and the public sector. A bill, that marks the regulation of the Brazilian third sector
– n. 13.019/14 – is a huge promise in the construction of more transparency and responsability between
public and private partners, in order to implement a fairness that could change the logic of the
implementation of public services.

Keywords. Third Sector. Accountability. Compliance

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O característico dualismo maniqueísta ainda presente em nosso dia a dia inspira as


reflexões do presente estudo. A tendência simplista de se rotular tudo com base em seus
opostos (bom x mau; sujo x limpo; certo x errado), de pessoas a instituições, também afeta o
tema central de nossas reflexões: o denominado “Terceiro Setor”. O espectro do “bom” também
afeta o poder público, na sua permanente busca por uma “boa administração”, fator que
influencia as parcerias firmadas entre tais entes e o poder público na gestão de direitos sociais
de relevância.
Antecipando, desde já, o que enfrentaremos em seus pormenores no desenvolvimento
deste artigo, o Terceiro Setor, por conta de sua estruturação “sem fins lucrativos” e de suas
bandeiras em prol de uma cidadania mais ativa, se apresentaria, para alguns (CARDOSO apud
IOSCHPE, 1995) (AMARAL, 2009), como fruto da dinâmica de fortalecimento da sociedade
civil rumo a uma verdadeira reestruturação capitalista. Nesses termos, o Terceiro Setor se
contrapõe ao mercado e ao Estado como verdadeira alternativa, como algo “bom”, pautado na
solidariedade e no reconhecimento do “outro”. Para outros, o Terceiro Setor não causa qualquer
ruptura no sistema da livre iniciativa, servindo-se, em verdade, como instrumento de
reprodução de toda esta lógica (MONTAÑO, 2005). Além disso, quando o Terceiro Setor firma
parcerias com o poder público (sua grande “bandeira” na atualidade) para a realização de
direitos sociais de relevância (saúde, educação, cultura, meio ambiente), o mesmo estaria, em
verdade, tentando garantir “sua ração no caldeirão das verbas” (NERFIN, 1991).
Igualmente inspirados pela concepção kantiana de “boa vontade”, bem como por seu
Imperativo Categórico, as reflexões aqui postas impõem o desenvolvimento do tema, de modo
a se buscar, não uma resposta definitiva ao questionamento proposto no título do presente
artigo, mas sim um ponto de vista que vá além do senso comum que coloca o Terceiro Setor
ora como uma opção milagrosa, ora como o pior dos mundos.
Primeiramente, parte-se do reconhecimento de que a Administração Pública
brasileira, como não poderia deixar de ser, vem sofrendo sucessivas transformações. Tal
assertiva se justifica na medida em que se verifica que a Administração não mais realiza o
exercício de suas competências públicas somente por intermédio dos órgãos da Administração
Direta e das entidades da Administração Indireta (autarquias, empresas públicas, sociedades de
economia mista e fundações públicas). Outros modelos têm sido adotados na busca pela plena
realização das finalidades públicas, indicando um cenário de pulsante mudança. É certo que

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essa mudança estrutural não sinaliza para outra coisa senão para a conclusão inquestionável de
que o próprio Estado se encontra em permanente mutação.
É neste cenário que insurgiu a perspectiva de um “Terceiro Setor”, que se desenvolve
para além do “Primeiro Setor” (Estado) e do “Segundo Setor” (mercado), e que tem como
expoentes, as Organizações Não Governamentais (ONGs), as Organizações Sociais (OS’s) e
as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
Como não poderia deixar de ser, o primeiro capítulo do presente estudo traçará, em
algumas poucas linhas, acerca da evolução da Administração Pública que culminou no cenário
que temos hoje, de verdadeira proliferação dos entes do Terceiro Setor. Sendo assim, antes de
adentrarmos na problemática proposta no título deste estudo, passar-se-á, primeiramente, à
análise de todo o processo que culminou na mudança do paradigma estatal, bem como nas
repercussões doutrinárias que impulsionaram a adoção desta nova estrutura administrativa, que
recebe a denominação recorrente de “Terceiro Setor”.
Em um segundo momento, interessa-nos mais de perto, focando-se no objeto em
estudo, a percepção desenvolvida no sentido de se entender que a evolução do Terceiro Setor,
fruto de uma verdadeira “profissionalização” da sociedade civil organizada, encontra-se
cercado de promessas e dificuldades. Em um segundo capítulo, pretende-se enfrentar tal
problemática, com base em revisão bibliográfica pautada em alguns marcos teóricos de
importância ao tema, no que citamos: Montaño (2008) e Oliveira (2008).
Por fim, no terceiro capítulo, de modo a proporcionar certo direcionamento ao
questionamento impresso no título deste estudo, julgamos oportuna uma breve reflexão acerca
do pensamento kantiano sobre seu entendimento quanto a “boa vontade”, sua percepção do
“outro” com base em sua concepção de alteridade. Refletir-se-á, ainda, em contraponto, acerca
das noções de cidadania e solidariedade, que rotulam o Terceiro Setor no sentido de fazer o
“bem” e o poder que tal condição lhe investe.

1. A EVOLUÇÃO ESTATAL RUMO AO ESTADO SUBSIDIÁRIO

Ernst Forsthoff (1958) já advertia: “Cada época da história dos Estados produz um
tipo próprio de Administração, caracterizado por seus fins peculiares e pelos meios de que se
serve. Isso não quer dizer, está claro, que uma espécie de Administração seja substituída,

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abrupta e repentinamente por outra” 1. Pelas palavras de citado autor é possível perceber a
gradação das mudanças, que não ocorrem de forma súbita. Novos paradigmas vão sendo
incorporados de modo a respeitar as realidades históricas e sociais.
A primeira forma do Estado moderno é o Estado absoluto. Aqui, o poder ainda se
encontra com a aristocracia, mas aliada à burguesia, burguesia esta que não representa mera
fonte de poder, mas também as elites profissionais, passando a demandar a garantia dos direitos
civis. Nessa perspectiva, desabrocham os primeiros traços do Estado liberal, garantidor destes
direitos, garantia pautada em uma conduta absenteísta, avessa a qualquer tipo de intervenção.
A premissa maior no Estado Liberal de Direito sugere uma postura negativa, um non
facere. Fundado nos direitos de liberdade, propriedade e de participação política, o Estado
ausente, até mesmo indiferente, é que garantiria as liberdades individuais. Tal sistemática fazia
toda a lógica diante das arbitrariedades estatais tão presentes no Estado Absoluto, que
desconhecia conceitos tais como o de Direitos Fundamentais.
Voltado à limitação do poder em favor das liberdades individuais, o Estado liberal
concedia à iniciativa privada toda a liberdade negocial, ficando a seu cargo poucas atividades,
ligadas à segurança, tributação e relações exteriores. Nesta linha, sob pena de se caracterizar
ofensa a essa, digamos, “ordem natural”, a Administração correspondia à burocracia guardiã,
patrimonialista, encarregada de tarefas clássicas de segurança pública, defesa externa e
distribuição de justiça2.
Ademais a expectativa de que a atividade econômica conduzisse ao desenvolvimento
de toda a sociedade, o crescimento incomum da economia no século XIX representou um
aumento da concentração de riquezas, que culminou em níveis alarmantes de exclusão social e
miséria. Os mecanismos autorreguladores do mercado não conseguiram frear crises
econômicas cíclicas. O liberalismo não se prestava a dar respostas às gritantes contradições
sociais.
O movimento reivindicatório das massas, aliado às concepções socialistas levou à
crise do Estado, que foi compelido a movimentar seu aparato administrativo para atender aos
reclamos da sociedade. Surgem desigualdades que não podem mais ser dirimidas e suportadas
pela sociedade. O senso coletivo floresce e o Estado se faz presente efetivamente, no que se

1 FORSTHOFF, Ernst. Tratado de derecho administrativo. Tradução de LACAMBRA, Legaz, FALLA, Garrido e ORTEGA Y
JUNGE, Gómez de. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1958. p. 35.
2
NICZ, Alvacir Alfredo. A liberdade de iniciativa na constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 67.

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chama de Estado Social. Migra-se da concepção de uma prestação estatal negativa para uma
prestação positiva (facere). Inicia-se, então, a transição do Estado liberal para o Estado Social,
na tentativa de superar as injustiças provocadas pela postura abstencionista do liberalismo.
Esta nova “fórmula” demandou uma conduta ativa por parte do Estado, sendo
significativa a demanda por maior intervenção administrativa (planejamento, coordenação,
execução e controle). Sem deixar de lado a defesa da liberdade, o Estado assumiu a justiça
social como sua preocupação primeira, bem como a busca pela igualdade material. O Estado,
em especial sua Administração Pública, deixa sua postura abstencionista e passa a assumir a
responsabilidade pela condução do processo de satisfação das necessidades coletivas.
O público passa a prevalecer sobre o privado, estando o Estado no comando do
interesse coletivo. A retomada da gestão direta da ordem social e econômica tornou-se
imperativo essencial à correção dos efeitos disfuncionais de um desenvolvimento social e
econômico não controlado, estruturando a sociedade através de medidas diretas ou indiretas3.
O aumento da demanda social sobre o Poder Público forçou o crescimento do aparato
administrativo, com o incremento do número de empresas estatais, escancarando o mau
gerenciamento administrativo que acabou por conduzir ao aumento no déficit público. Uma
lista cada vez maior de necessidades sociais sem o correspondente incentivo ao investimento
eficaz, o crescimento do setor público e a corrupção inerente ao sistema administrativo
corroboraram para o colapso do sistema4.
Diante deste cenário, passa a ganhar destaque uma sistemática estatal mais
colaborativa, de um Estado fomentador, negocial, subsidiário, que vai em busca de parcerias
para realizar de forma efetiva suas competências públicas. Um Estado financiador, nas palavras
de Gaspar Ariño Ortiz5, se caracterizaria como a atividade de estímulo e pressão, realizada de
modo não coativo, sobre os cidadãos e grupos sociais, para imprimir um determinado sentido
a suas atuações . Para o autor, por meio de subvenções, isenções fiscais e créditos, o Estado não
obriga nem impõe; oferece e necessita de colaboração do particular para que a atividade
fomentada seja levada a cabo.

3 GARCIA PELAYO, Manuel. Las transformaciones Del Estado contemporâneo. Madrid: Alianza Universidad, 1980, p. 21-23.
4
MUÑOZ, Jaime Rodrigues-Arana. Reflections on the reform and modernization of the public administration. Rivista
Trimestrale di Diritto Pubblico, Millano, Dott. A. Giuffré, n. 2, p. 522, apr/giu. 1996.
5 ARIÑO ORTIZ, Gaspar. Principios de derecho publico econômico: modelos de Estado, géstion pública, regulación econômica.

Granada: Comares, 1999, p. 290.

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É neste cenário, onde se encontrariam as bases do denominado “neoliberalismo” e


também é neste cenário que desponta no Brasil, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado, aprovado em 21 de setembro de 1995, pela Câmara da Reforma do Estado, que tratava
das diretrizes para o início de uma ampla reforma do aparelho estatal. Citado Plano reafirmou
a noção de uma Administração Pública gerencial, que se postularia como verdadeira resposta
aos problemas do modelo anterior, firmando-se sob critérios de eficiência, de um adequado
sistema de prestação de serviços públicos e por dotar as organizações de uma cultura
empreendedora. Deste paradigmático instrumento é de onde se estruturou e se alimentou o
denominado “Terceiro Setor”, a ser tratado de forma pormenorizada no tópico seguinte.

2. O TERCEIRO SETOR

Pedro Gonçalves pontua com extrema clareza três momentos essenciais do processo
de transformação do Estado contemporâneo: “(i) a cooperação mais ou menos sistemática e a
conjugação ordenada dos papéis de actores públicos e privados no desenvolvimento das
tradicionais finalidades do Estado Social e de Serviço Público; (ii) Sob o mote de uma
‘modernização administrativa’, um complexo processo de ‘empresarialização’ que, por vezes,
passa pela ‘privatização das formas organizativas da Administração Pública’; (iii) A promoção
de mecanismos de envolvimento e de participação de particulares ‘interessados’ na gestão de
um largo leque de incumbências públicas”6.
O Terceiro Setor, como tivemos a oportunidade de verificar no tópico anterior, nasce
deste cenário de profusa mutação estatal. A expressão “Terceiro Setor”, traduzida do inglês
third sector, se difundiu a partir da década de setenta, se referindo às organizações formadas
pela sociedade civil, cujo objetivo maior é a satisfação do interesse social e não o mero lucro.
O Terceiro Setor surge em contraposição aos chamados Primeiro Setor (representado
pela figura do Estado) e o Segundo Setor (Mercado). Disto se extrai que o Terceiro Setor é
tradicionalmente entendido como área dentro da qual se encontram todas as entidades, que não
fazem parte do Estado nem do mercado.
Neste viés, difundiu-se a utilização, como referência para classificação do Terceiro
Setor, dos critérios estabelecidos pelo Handbook on nonprofit institutions in the system of
national accounts, editado pela Organização das Nações Unidas, em conjunto com a

6
GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005. p. 13-14.

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Universidade John Hopkins. Sob esta metodologia, fariam parte do Terceiro Setor as entidades
que detenham, cumulativamente: (i) natureza privada; (ii) ausência de finalidade lucrativa; (iii)
institucionalizadas; (iv) auto-administradas; (v) voluntárias7.
Apesar desta referência, ela não se presta à adoção de um conceito satisfatório à
dogmática jurídica, mormente pela amplitude e pelos contornos assumidos pela matéria no
cenário institucional pátrio. De toda forma, na tentativa de conceituar o Terceiro Setor uma
concepção prevalece: a idéia de delegação social. É o que alerta Diogo Figueiredo Moreira
Neto, ao inserir os entes do Terceiro Setor no que denomina entes intermédios, para os quais
haveria a transferência de serviços de interesse público “(...) em favor de entes criados por ela
própria sociedade, dedicados à colaboração no atendimento de interesses legalmente
considerados como públicos”8.
Diante dos mais variados conceitos apresentados pela doutrina do que se entenda por
Terceiro Setor, citamos o conceito de Gustavo Justino de Oliveira, por sua variedade de
elementos, senão vejamos: “o conjunto de atividades voluntárias, desenvolvidas por
organizações privadas não-governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou fundações),
realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado),
embora com eles possa firmar parcerias e deles possa receber investimentos (públicos e
privados)9”.
Há ainda quem diga:

O terceiro setor é um tipo de ‘Frankstein’: grande, heterogêneo, construído de


pedaços, desajeitado, com múltiplas facetas. É contraditório, pois inclui tanto
entidades progressistas como conservadoras. Abrange programas e projetos que
objetivam tanto a emancipação dos setores populares e a construção da sociedade
mais justa, igualitária, com justiça social, como programas meramente assistenciais,
compensatórios, estruturados segundo ações estratégico-racionais, pautadas pela
lógica de mercado. Um ponto em comum: todos falam em nome da cidadania (...)10.

De toda forma, a expressão “Terceiro Setor” é recente e a abrangência de seu conceito


encontra-se em fase não só de consolidação, mas de reflexão, principalmente no Brasil, em
razão do recente aparato legislativo que instituiu o Marco Regulatório do Terceiro Setor – a Lei
n. 13.019/2014.

7
SALAMON, Lester; ANHEIER, Helmut. The emerging sector: an overview. Baltimore, 1994.
8 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 129-130.
9 OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito do Terceiro Setor. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 17.

10 GOHN, Maria da Glória. Mídia, terceiro setor e MST: impacto sobre o futuro das cidades e do campo. Petrópolis: Vozes, 2000,

p. 60.

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O histórico de desenvolvimento do Terceiro Setor no Brasil tem seus contornos


próprios, respeitando as peculiaridades do país. A princípio, a prestação de serviços de interesse
público se restringiu à atuação da Igreja Católica, por meio de confrarias e irmandades que,
posteriormente, ganharam companhia de entidades criadas por outras igrejas e de associações
de imigrantes. No século XX, frente aos processos de urbanização e industrialização, este
quadro se alteraria sensivelmente. Surgem numerosas associações profissionais, associações de
classe e sindicatos, como instrumentos de amparo ante a ausência de normas regulatórias das
relações de trabalho.
Com a Constituição de 1934, o Estado brasileiro assume o modelo de Estado social,
ocorrendo uma aproximação entre Estado e sociedade, caracterizada por um movimento de
“socialização do Estado e estadualização da sociedade11”, ou melhor, “(...) absorção da
Sociedade pelo Estado, isto é, a politização de toda a sociedade12”.
Como expressão máxima do modelo intervencionista de Estado, foram criadas nessa
época, empresas públicas para atuação na área econômica, bem como foi ampliado o aparato
estatal destinado à prestação de serviços sociais. Nesta perspectiva, cita-se a criação da Legião
Brasileira de Assistência – LBA pela Lei 4.830/42. Cite-se também, a instituição, por
determinação legal, dos denominados serviços sociais autônomos (em nível federal, as
entidades do chamado sistema “S” – SENAI, SESI, SESC, SENAC, SEBRAE, SENAR),
pessoas jurídicas de direito privado, mantidas por contribuições sociais e dotação orçamentária,
com o objetivo de prestar educação profissional e assistência aos cidadãos vinculados ao setor
produtivo.
Finalmente, digno de menção, a criação do Conselho Nacional do Serviço Social –
CNSS (1938), momento em que se consolida a aliança entre Estado e as entidades prestadoras
de serviços de interesse público nas áreas de assistência social, saúde e educação. A princípio,
este órgão tinha por atribuição, a avaliação de pedidos de subvenções, passando, tempos depois,
a gerenciar um Registro Geral de Instituições (que acaba por servir de requisito para a concessão
de benefícios fiscais a estas entidades) e a fornecer o certificado de fins filantrópicos.
Com a promulgação da Constituição de 1988 foi possível identificar dois fenômenos
sociais opostos: por um lado, experimentou-se uma desmoralização destes instrumentos de

11 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado e do direito: do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e
Democrático de Direito. Coimbra: Coimbra Ed., 1987, p. 197.
12
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. P. 231.

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relação entre o Estado e as entidades prestadoras de serviços públicos, ante sucessivos


escândalos envolvendo os mesmos e, de outro lado, ocorreu a explosão no número de
movimentos associativos tanto nacional quanto internacionalmente.
Ademais este cenário, forçoso reconhecer que, pela primeira vez, uma Constituição
brasileira tratou de maneira expressa acerca da sociedade civil, atribuindo à mesma, em
inúmeros dispositivos (art. 199, §1º; art. 204, I; art. 205; art. 213, I e II; art. 216, §1º; art. 227,
§1º), o dever de contribuição para a consecução dos objetivos do Estado brasileiro. Tal
perspectiva se coaduna com a necessidade de mudança na atuação estatal, principalmente no
sentido de se alcançar maior eficiência nas atividades da Administração Pública, voltando a
ação dos serviços do Estado para o atendimento dos cidadãos.
Neste panorama surge o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado que,
adotando um modelo conceitual baseado na distinção de quatro setores específicos de ação
estatal, conforme a natureza de suas atividades, associando-os a modalidades de propriedade
(pública, pública não-estatal e privada) e formas de gestão, tendo previsto a criação de entidades
denominadas Organizações Sociais (OS’s), exteriorizando a tentativa de redefinir o plano de
relações entre o Estado e as entidades prestadoras de serviços de interesse público (Setor de
serviços não-exclusivos do Estado).
No desenvolvimento de todo esse cenário destacaram-se outras entidades, no que
citamos as agências reguladoras, as agências executivas e a Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP). Tais entidades têm em comum o fato de não pertencerem nem à
Administração Direta nem à indireta e esta seria a lição primeira, consolidada nas palavras de
Celso Antônio Bandeira de Melo (2009), da seguinte forma:

As “organizações sociais” e as “organizações da sociedade civil de interesse


público”, ressalte-se, não são pessoas da Administração Indireta, pois, como além se
esclarece, são organizações particulares alheias à estrutura governamental, mas com
as quais o poder público (que as concebeu normativamente) se dispõe a manter
parcerias – para usar a expressão em voga – com a finalidade de desenvolver
atividades valiosas para a coletividade e que são livres à atuação da iniciativa
privada13.

Os entes do Terceiro Setor na atualidade brasileira se destacam pelas parcerias que


firmam com o Primeiro Setor para a realização de fins públicos (saúde, educação, meio
ambiente, cultura, dentre outros). Tal posicionamento coloca-os no centro de polêmicas que

13
BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros. 2009, p. 167.

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acusam os entes do Terceiro Setor de oportunismo e instrumento para a privatização da coisa


pública. Essa discussão não é o centro do presente trabalho.
Sendo assim, feita a contextualização do tema e toda a necessária exposição que
fornece elementos para a construção da discussão central do presente estudo, passamos ao
enfrentamento do tema sob a perspectiva de suas principais bandeiras: a da solidariedade e da
cidadania ativa. Passa-se ainda à análise da obra de Immanuel Kant, na tentativa de
apresentarmos uma resposta contundente ao questionamento presente no título deste artigo e a
contraposição do tema a sua natural percepção de “bom”.

3. O TERCEIRO SETOR E A “BOA” GOVERNANÇA

Como já tivemos a oportunidade de pontuar, o Terceiro Setor se alimenta do discurso


da solidariedade e da realização do bem comum, de modo que se torna um verdadeiro centro
de atração para o maior número possível de defensores. Nada mais natural do que não se opor
àquele que prega e tem como missão ajudar ao próximo. O “fazer o bem sem olhar a quem”
que parece perseguir as intenções desses entes inspira seguidores e cria uma massa de
colaboradores altruístas por excelência, o que mascara e coloca em segundo plano quaisquer
outras intenções. Um olhar mais crítico a despeito dos discursos de solidariedade e fraternidade
se faz necessário e é o que também se pretende neste capítulo.
A solidariedade nunca foi uma máxima social incontestável, ademais a inata vocação
humana pelo coletivo. Por muito tempo o individualismo prevaleceu como valor. Na
Antiguidade, os sofistas representavam a face mais óbvia desta afirmação, com a famigerada
declaração de Protágoras que afirmava que o homem, ser pensante, bastava por si só, segundo
aforismo “o homem é medida de todas as coisas, das que são o que são, e das que não são o que
não são”14.
A partir do início do século XX, por imposição de suas Constituições (seguindo a
influência da Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919), os Estados passam a
fornecer prestações positivas, a fim de viabilizar a plena fruição dos direitos fundamentais de
que são titulares os cidadãos, além do dever de abstenção em relação às chamadas liberdades
públicas. Nesta escala evolutiva, após a segunda metade do século XX, verifica-se a ocorrência

14SILVA, Cleber Demétrio. O princípio da solidariedade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1272, 25 dez. 2006.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9315>. Acesso em: 10 ago. 2015.

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do fenômeno que se denominou de neoconstitucionalismo, onde não se afirma apenas o caráter


estrutural ou organizacional da Constituição, mas sua nova dimensão: a da normatividade e da
eficácia dos direitos fundamentais.
Como uma faceta deste constitucionalismo contemporâneo, surge a expectativa de
que o mesmo seja incorporado ao que foi chamado por Roberto Dromi e Eduardo Menem de
“constitucionalismo da realidade”, baseado em um sistema “que no solo consolida y afianza El
Estado de derecho, sino que posibilita uma verdadeira ejecución de sus proclamas, una
realización de la verdad prática de sus declaraciones, derechos e garantias” 15.
Nestas bases, a solidariedade surge como um novo valor, sendo, segundo citados
autores, uma nova concepção de igualdade, sustentada sobre o velho princípio da segurança
jurídica, constituindo não a exaltação do individualismo, mas sim, um equilíbrio entre o homem
e as instituições.
Proveniente de um dos primados da Revolução Francesa (fraternidade) e alçado à
qualidade de princípio, a solidariedade (que para muitos tem como fundamento último a
dignidade humana), encontra fundamento no ordenamento constitucional brasileiro como
objetivo da República Federativa do Brasil (art. 3º, I, CF/88).
Analisando o tema pelo viés filosófico, percebe-se uma permanente disputa entre
egoísmo x altruísmo. Aristóteles teria sido o primeiro a ressaltar a verve egoísta do ser humano,
tendo defendido que toda ação humana busca a felicidade do agente e o altruísmo genuíno é
algo impossível16. Arthur Schopenhauer chegou a afirmar que “o egoísmo é gigantesco: ele
rege o mundo”17. Terence Irwin e John Cooper18, por sua vez, tentaram mostrar a importância
do altruísmo sustentando em uma felicidade que consiste no desenvolvimento da parte racional
da alma, tornando genuína não só a preocupação consigo, mas com os outros.
Immanuel Kant (1724-1804), como um dos expoentes do pensamento moderno e
como verdadeiro norte em termos de teoria do conhecimento, presta-nos como autor de
referência, na medida em que passados mais de duzentos anos de sua morte, seu pensamento
surpreende pela atualidade, precisão e conexão com a temática abordada. Sua compreensão de

15 DROMI, Roberto; MENEN, Eduardo. La Constitucion reformada, comentada, interpretada y concordada. Buenos Aires:
Ediciones Ciudad Argentina, 1994, p. 19.
16 ALLAN, D. J. A filosofia de Aristóteles. Tradução de Rui Gonçalo Amado. Lisboa: Editorial Presença, 1983, p. 166.

17 SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de insultar. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 51.

18 IRWIN, T. H. Aristotle’s First Principles. Oxford: Clarendon Press, 1992, p. 364; COOPER, John. The forms of Friendship

in: COOPER, John. Reason and Emotion. New Jersey: Princeton University Press, 1999, p. 316.

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moralidade e a construção do denominado “Imperativos Categórico” emprestam importantes


contribuições ao estudo ora empreendido, bem como a sua noção de “boa vontade”.
Em termos de solidariedade, Kant alimenta o paradoxo que denominou de
“sociabilidade insociável dos homens”, explicando que: “isto é, a sua tendência para entrar em
sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que, incessantemente,
ameaça dissolver a sociedade. Esta disposição reside manifestamente na natureza humana. O
homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque em semelhante estado se sente
mais como homem, isto é, sente o desenvolvimento das suas disposições naturais. Mas tem
também uma grande propensão para se isolar, porque depara ao mesmo tempo em si com a
propriedade insocial de querer dispor de tudo a seu gosto e, por conseguinte, espera resistência
de todos os lados, tal como sabe por si mesmo que, da sua parte, sente inclinação para exercer
a resistência contra os outros”19.
Segundo o autor, é nesta insociabilidade que se construiria, verdadeiramente, o valor
social do homem20, no que acreditamos sejam as bases para a construção de sua ideia de boa
vontade e de seu Imperativo Categórico.
Em sua proeminente obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, de 1785,
Kant advertia: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser
considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”21. Segundo o
autor, de nada valeriam os talentos, dons e as mais prestigiosas virtudes, “se não existir também
a boa vontade que corrija a sua influência sobre a alma e juntamente todo o princípio de agir e
lhe dê utilidade geral”22. Percebe-se, nessas reflexões iniciais, que Kant chama atenção para o
“bom” não como algo absoluto, mas como algo que se encontra sujeito a limitações, a uma
certa medida. O “bom” pelo “bom” não se justifica por si só, merece ajustes e temperamentos,
bem como em uma referência que o identifique como a verdadeira noção de “bom”. Daí sua
noção de “boa vontade”, que seria:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para
alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é em si

19 KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Trad.Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra.
São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 08.
20 Segundo Kant, seria na insociabilidade onde “desenvolvem-se a pouco e pouco todos os talentos, forma-se o gosto e, através

de uma incessante ilustração, o começo transforma-se na fundação de um modo de pensar que, com o tempo, pode mudar a
grosseira disposição natural em diferenciação moral relativa a princípios práticos determinados e, por fim, transmutar ainda, deste
modo, num todo moral uma consonância para formar sociedade, patologicamente provocada” (KANT, 1986, p. 08).
21
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Portugal: Edições70, 2007, p. 21.
22
KANT, 2007, p. 22.

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mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do
que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer
inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações23.

Nesta perspectiva, o autor atrela a concepção de boa vontade à concepção de dever,


asseverando: “Para desenvolver, porém, ó conceito de uma boa vontade altamente estimável
em si mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito que reside já no bom senso natural e
que mais precisa de ser esclarecido do que ensinado, este conceito que está sempre no cume da
apreciação de todo o valor das nossas ações e que constitui a condição de todo o resto, vamos
encarar o conceito do Dever que contém em si o de boa vontade, posto que sob certas limitações
e obstáculos subjetivos, limitações e obstáculos esses que, muito longe de ocultarem e tornarem
irreconhecível a boa vontade, a fazem antes ressaltar por contraste e brilhar com luz mais
clara”24.
Em sua lição, o dever encontra-se carregado de conteúdo moral, afastando o dever
que se concretiza pela vontade egoísta25. Nesta medida, a moralidade kantiana se encontra
impregnada por um princípio de universalização, um cosmopolitismo que marca sua obra e a
torna mais contemporânea do que nunca, bem como, serve de inspiração a seu Imperativo
categórico. Hansen (2012) resume de modo bastante pontual as três formulações do Imperativo
Categórico kantiano, em sendo: 1ª) Age de tal modo que tua ação sirva de modelo aos demais;
2ª) Age de tal maneira a tratares, na tua pessoa ou de qualquer outrem, a humanidade não
somente como meio, mas sempre como fim em si mesma; 3ª) Age de tal maneira que tua ação
seja a de um legislador universal26.
Percebe-se presente nessas máximas, ideais que alimentam o Terceiro Setor na
atualidade. Esse se apresenta como um verdadeiro representante das duas primeiras
formulações acima referidas. Os entes do Terceiro Setor se comportam como verdadeiros
modelos de plenitude, pautado nas melhores das intenções, preocupados com a humanidade
como um todo, com o bem comum, tendo por finalidade a ajuda ao próximo.

23 KANT, 2007, p. 23.


24 KANT, 2007, p. 26.
25 KANT, 2007, p. 27.

26
HANSEN, Gilvan Luiz. Conhecimento, verdade e sustentabilidade: perspectivas ético-morais em cenários contemporâneos.
In: REBEL GOMES, Sandra Lúcia ; NOVAIS CORDEIRO, Rosa Inês; MENDES DA SILVA, Ricardo Perlingeiro. (Orgs.).
Incursões interdisciplinares: Direito e Ciência da
Informação. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012, v. 1, p. 55-76.

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Por sua vez, Habermas (2002) reflete acerca do sentido deontológico da moral
kantiana presente no Imperativo Categórico, incluindo a responsabilidade solidária, no que
pontifica:

A ética do discurso justifica o teor de uma moral do respeito indistinto e da


responsabilidade solidária por cada um. Certamente, ela só chega a isso pela via da
reconstrução racional dos conteúdos de uma tradição moral abalada em sua base
validativa religiosa. Se a maneira de ler o imperativo categórico assumido pela teoria
discursiva permanece atrelada a essa tradição da origem, essa genealogia se
interporia ao objetivo de comprovar o teor cognitivo dos juízos morais em geral27.

De todo modo, é o próprio Kant que, como já tivemos a oportunidade de pontuar, na


construção de todo seu pensamento trata de deixar claro que a formação dessa boa vontade não
é do mero “bem” pelo “bem”. De modo a deixar clara sua concepção de boa vontade atrelada
ao dever (“por dever”), kant, de modo bastante didático, afirma:

Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de
disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou
interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar
com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo, porém, que
neste caso uma tal ação, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem
contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações,
por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que
efetivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso
e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo
moral que manda que tais ações se pratiquem, não por inclinação, mas por dever28.

E mais:

(...) se a natureza não tivesse feito de um tal homem (que em boa verdade não seria
o seu pior produto) propriamente um filantropo, — não poderia ele encontrar ainda
dentro de si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que
o dum temperamento bondoso? Sem dúvida! — e exactamente aí é que começa o
valor do carácter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto, e que
consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever.

Diante de todo exposto, percebe-se um grande peso ao conteúdo moral na percepção


kantiana de boa vontade. O homem virtuoso e possuidor de uma boa vontade legítima é um ser
abnegado, coloca seus desejos em segundo plano e é quem supera suas frustrações mais
mundanas.

27 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Trad. Gorge Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo:
Loyola, 2002, p. 53.
28
KANT, 2007, p. 28.

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Ainda que se intente enxergar nos entes do Terceiro Setor uma tendência ao altruísmo
e todas as suas bases se construam sob esse fundamento, um olhar crítico e mais voltado ao dia
a dia destas instituições, que se proliferam no Brasil e assumem cada vez mais competências,
pode evidenciar realidades mais egoísticas. Na prática, é possível verificar certo movimento de
estruturação de entes filantrópicos (associações, fundações, ONGs), a fim de receberem a
qualificação de Organizações Sociais (OS’s) ou Organizações Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIP). Tal movimentação parece ter por fim único e exclusivo, a formação de
parcerias com entes políticos/públicos, de modo a se servirem de verbas públicas para a
realização de direitos sociais de importância, o que em um último aspecto, aumentam sua área
de influência e alimentam sua boa reputação.
Na verdade, ainda que esta dinâmica seja interessante para os entes do Terceiro Setor,
o que se percebe, é uma dependência destes entes não só dos recursos frutos dos arranjos
firmados com o poder público, mas também de eventuais ideologias que certamente deverão
sustentar tais parcerias. Tornam-se mais um “braço” do poder público, sendo coniventes com
suas políticas e controladas por métodos de avaliação e desempenho. Tal dependência gera
desconfiança quanto a suas reais intenções e acaba deturpando seus fins originais. Além do
mais, afasta tais organizações da sociedade civil com quem tem direta relação direta,
comprometendo tal interlocução.
No mais, é possível dizer, com certa certeza, que associações, fundações privadas,
organizações não-governamentais (todas pessoas jurídicas de direito privado) possuem em seu
instinto (e em seu discurso) a ideologia do coletivo. Em breves considerações, vimos todas as
consequências do discurso que preza pela tutela do coletivo e neste, momento, nos valemos de
uma reflexão que coloca em xeque os efeitos do poder por detrás das ideologias, inclusive das
que pregam a solidariedade.
Assim nos alerta Pedro Demo (2002):

(...) as relações de poder são repletas de artimanhas, das quais a mais conhecida é a
ideologia, no sentido mais preciso de Thompson (1995): ideologia é reflexo
necessário do poder e se configura como tentativa sempre renovada de justificação
do cultivo e manutenção do poder. Ideologia é discurso orientado, em primeiro lugar,
para justificar, encobrir, pregar subalternidades, por vezes de modo ostensivo, mas
mais comumente de modo sibilino. Ideologia inteligente vende-se como ciência,
evolução lógica, rodeios aparentemente fundamentados, números reveladores,
porque sabe que a relação de poder torna-se mais aceitável quando manejada sob o
véu do envolvimento lógico e emocional.

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Percebe-se nas linhas acima trasladadas, toda a lógica avassaladora e atraente da


ideologia como efeito de poder, no caso em estudo, alimentada pela solidariedade, fraternidade
e ausência de lucro. Essa última característica, pautada em um sentimento altruístico que não é
nutrido pelo ganho, entendemos restar caracterizada a bandeira mais atrativa dos entes que aqui
estudamos. Se ao nos debruçarmos sobre a lógica da responsabilidade social das empresas
(mercado) nos intriga suas reais intenções e eventuais vantagens geralmente estornadas em
forma de outras rendas (know how, influência e expansão da área de alcance), que não o lucro
propriamente dito.
O tema merece permanente ponderação, não somente pelos diferentes sentimentos
que desperta, mas também pela importância e pelos espaços que vem assumindo. Além disso,
há de se considerar o reconhecimento que o setor recebeu recentemente com o advento do
denominado “Marco Regulatório do Terceiro Setor”, com a instituição da Lei n. 13.019, de 31
de julho de 2014. O tema exige, portanto, reflexão contínua.

CONCLUSÕES

A reforma da Administração Pública brasileira teria sido a responsável por trazer uma
figura que representa um instrumento de efetiva cooperação entre a sociedade e o Estado na
busca pela concretização do bem estar comum, recebendo a denominação de “Terceiro Setor”.
As Organizações Não Governamentais – ONGs, as Organizações Sociais – OS’s e as
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP’s, típicos exemplos de
entidades que formam o cenário acima descrito, enfrentam dificuldades práticas na realização
de um discurso que privilegia a cidadania ativa e um espaço alternativo ao modo capitalista.
Pretendeu-se um olhar sobre o Terceiro Setor sob a perspectiva de “boa vontade” de
Immanuel Kant e de seu Imperativo Categórico. Desse modo, uma vez que as reflexões aqui
postas tem como ponto de partida o pensamento kantiano, por certo, fecharmos o presente
estudo com uma resposta ao questionamento presente no título deste artigo. Desta feita, sob a
perspectiva kantiana de boa vontade e especialmente tendo por base o universo das parcerias
firmadas entre o Terceiro Setor e o Primeiro Setor (Estado), há de se concluir que o mesmo não
é bom, na medida em que o elemento moral que dita seu modo de vida na realidade brasileira
atual, o coloca como importante centro de influência e instrumento de conquistas com base em
uma agenda que não lhe pertence.

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Há de se separar o “joio do trigo”, de modo a não se colocar todos os entes do Terceiro


Setor sob a mesma perspectiva. Também há de se ter o cuidado de não se deixar seduzir pelo
discurso milagreiro que geralmente envolve tais instituições. De fato, em sua essência, tais entes
carregam em suas bases, um verdadeiro “investimento ético29”, mas não podemos nos deixar
envolver pela promessa de uma solidariedade que, em verdade, pode vir a se distorcer em novas
formas de poder.
Desta feita, ainda que o Terceiro Setor tenha se concretizado na atualidade como
espaço de construção de uma cidadania ativa e de uma solidariedade revisitada, seu estreito
relacionamento com o Estado para a realização de direitos sociais de relevância, o colocam
como centro de pesadas crítica e de percepções distorcidas.
De todo modo, há de se reconhecer que o tema ora em estudo tem tido cada vez mais
espaço nas discussões acadêmicas e no universo legislativo. Data de Julho de 2014, a Lei n. 13.
019 que recebeu a denominação de “Marco Regulatório do Terceiro Setor” e adentra no
universo normativo brasileiro como instrumento e promessa de concretização dos entes do
Terceiro Setor em nossa realidade. Programada para entrar em vigor na data de sua publicação,
o posicionamento foi revisto, havendo sido dilatado o prazo de vigência da lei, a fim de se
decantar todas as ponderações e reflexões que o tema abarca. A discussão é multidisciplinar e
cabe a várias ciências.

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793
Grupo de Trabalho 11

SEXUALIDADE,
DEMOCRACIA E PODER

dccxciv
A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES, O POLIAMOR E O
RECONHECIMENTO DA UNIÃO POLIAFETIVA PELO
TABELIÃO DE NOTAS EM ESCRITURA PÚBLICA

BOLSON, Simone Hegele


Doutoranda PPGSD-UFF

RESUMO

No mundo hodierno novos arranjos familiares surgem com diferentes contornos, tendo por suporte
vínculos afetivos poliamorosos. É o afeto, emoção construída socialmente, o elemento estruturante do
poliamor. As relações poliafetivas ocorrem entre mais de duas pessoas e são anti-monogâmicas em sua
essência. Sob a ótica jurídica, as uniões poliafetivas - nova espécie de família -, são “invisíveis” à
sociedade e invisibilizadas pelo Judiciário. Embora o menoscabo pela sociedade, as uniões poliafetivas
existem no contexto nacional e são fatos sociais dos quais os operadores jurídicos não podem descurar.
O tabelião de notas, enquanto ator social e jurídico, através do exercício de sua função e, instado a exercê-
la, pode lavrar escrituras públicas poliafetivas, e, em consonância com os princípios da igualdade e da
dignidade da pessoa humana, a pluralidade das entidades familiares e autonomia existencial, estabelecer
cláusulas que traduzam a vontade dos policonviventes e, ao fim e ao cabo, realizem os direitos de
personalidade dos mesmos.

Palavras-Chave. Sociologia das Emoções. Afeto. Poliamorismo. União poliafetiva.

ABSTRACT

In the modern world new family arrangements arise with diferente outlines, having as support
polyamorous affective bonds. It is affection, socially constructed emotion, the structuring element of
polyamory. Poly-affective relations occur between more than two people and are anti-monogamous in
their essence. From the juridical point of view, polyaffective unions - new species of family -, are
"invisible" to the society and invisibilizadas by the Judiciary. Although society is undermined,
polyaffective unions exist in the national context and are social facts that legal practitioners can not
ignore. The notary public, as a social and legal actor, through the exercise of his or her function and,
when called upon to exercise it, may draw up public legal writings and, in accordance with the principles
of equality and dignity of the human person, the plurality of family entities and existential autonomy, to
establish clauses that reflect the will of the polyvinists and, after all, to realize their personality rights.

Keywords. Sociology of Emotions. Affection. Polyamory. Polyaffective union.

795
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade assiste-se ao surgimento de um novo paradigma de família.


Muito se fala na fluidez das emoções, na descartabilidade dos sentimentos, na impaciência para
relacionamentos permanentes, na angústia e aflição atuais, entretanto olvida-se que as gerações
anteriores batalharam justamente por essa liberdade de pensamento, sexual, de gênero e que,
hoje, novos arranjos familiares indicam que a sociedade está em mutação; a vida social
transforma-se diuturnamente. Essas novas famílias existem, são formadas também de relações
poliafetivas e não há como negar, na legalidade constitucional, que o afeto constitui esses novos
núcleos familiares; a monogamia, não; o matrimônio, não!
E se Anna Karenina não precisasse escolher entre o conde Vronsky e Alexei Karenin,
e se Rick Blaine pudesse partir de Casablanca com Ilsa Lund e Victor Laszlo? E se o coronel
Odorico Paraguaçu “assumisse” as irmãs Cajazeiras? E se Gabriela, Nacib e Tonico Bastos
vivessem “a três”? Se todas essas personagens pudessem ter vivido em paz seus afetos não
haveria a literatura de um Tolstói, Dias Gomes ou Jorge Amado, ou o cinema de Michael
Curtiz. Mas, fora da arte literária ou cinematográfica, e em tantos casos conhecidos, se pudesse
ter havido a aceitação da poliafetividade, talvez quantas dores teriam sido evitadas, quantos
amores teriam sido vividos plenamente?
Esse exercício do “se” tem uma carga revisionista, mas também de constatação de
que os tempos hodiernos são, contraditoriamente, de avanços e retrocessos. Nas relações
interpessoais, o afeto – enquanto emoção, sentimento construído socialmente – foi guindado ao
centro das relações, elemento definidor das mesmas sendo reconhecido como categoria
jurídica. Houve a construção do direito das famílias: reconhecimento da paternidade
socioafetiva; tutela dos direitos da(o) companheira(o); reconhecimento da união homoafetiva;
multiparentalidade. Tudo em uma marcha rumo à consolidação da autonomia existencial, da
dignidade da pessoa humana, da pluralidade das famílias. Contudo, nessa trajetória, assim como
nos processos históricos, a contramarcha surgiu, se antes isolada, tímida, receosa frente à
exuberância da doutrina laica e plural e à jurisprudência civil-constitucional; hoje, unida,
exibida, destemida em seu propósito – o de retroceder, o de anular as conquistas, invisibilizando
os arranjos familiares plurais existentes, tutelando o anacronismo, surrupiando a esperança de
que, finalmente, o Brasil aceitara que a(s) família(s) poderia(m) assumir múltiplos contornos.
Trava-se no Congresso Nacional uma luta entre o obscurantismo e as luzes de um
Estado laico. É como se a virada de Copérnico, lembrando a expressão tão cara ao Direito

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Civil Constitucional e ao seu maior entusiasta – ministro do STF Edson Fachin – estivesse
sendo obliterada pelos projetos de leis com visão “ptolomaica” e de retrocesso em temas
familiaristas (v.g. PL 65813/2013; PL 4508/2008; PL 478/2007; PDC 395/2016, etc.).
A inter-relação entre um campo do saber específico da Sociologia e a emoção afeto;
a observância, na prática, de como o afeto é uma construção social e do que se constitui a cultura
poliamorista em um estudo etnográfico em Brasília; a possibilidade do poliamor ser
reconhecido, senão (ainda) socialmente, juridicamente em instrumentos públicos notariais; e o
papel do tabelião de notas diante dessa realidade são os itens que integram o trabalho e serão
desenvolvidos com o objetivo de análise desse relacionamento humano, ensejando um novo
arranjo familiar alicerçado no valor afeto, sem o dogma da monogamia e que desafia os padrões
vigentes.
Nos primeiros itens, analisam-se a Sociologia das Emoções e o afeto como uma teia
de sentimentos, construído socialmente, além de etnografia realizada por pesquisador da UnB.
Não se desconhecem os excelentes trabalhos jurídicos sobre o afeto e as novas famílias, porém,
busca-se um viés sociológico sobre essa emoção que foi categorizada juridicamente e a
etnografia de um grupo de poliamor de Brasília.
Após a análise do estudo etnográfico, insere-se em item posterior a investigação sobre
o poliamor e as uniões poliafetivas ensejando novos arranjos familiares, destituídos (ainda) de
uma juridicidade própria, vez que não reconhecidos, porém abordados pela doutrina e a
jurisprudência. O STF, no Recurso Extraordinário 656.298/SE, com repercussão geral
conhecida, julgou pelo reconhecimento de união estável e relação homoafetiva concomitantes.
Não obstante esse avanço, as uniões poliafetivas ainda são invisíveis à sociedade e
invisibilizadas pelo Judiciário, pois, quando tratadas em juízo, ainda permanecem, no mais das
vezes, decisões em que o poliamorismo é visto, pejorativamente, como concubinato adulterino,
nesse sentido a manifestação do professor Cristiano Chaves de Farias (2017, p. 1):

Todavia, a jurisprudência vem assumindo um papel recrudescente, negando proteção


e direitos ao poliamor, a partir do tratamento que foi historicamente emprestado ao
concubinato. ‘Um lapso, equívoco, que precisa ser reparado’, protesta. O sistema
jurídico, conforme o especialista, precisa ser de inclusão, e não de exclusão de
direitos.

Embora tenha havido histórica decisão no acórdão paradigmático do Supremo


Tribunal Federal que admitiu a união homoafetiva (STF, ADI 4277; ADPF 132) e dela os
efeitos que se irradiaram na sociedade, mesmo essa uniões – hoje – são alvo de um pretensioso

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revisionismo jurídico (v.g., com o Estatuto da “Família” – PL 6583/13), quanto mais se falar
em uniões poliafetivas. Afora o tratamento de galhofa geralmente dado ao tema – quando em
conversas coloquiais – o operador jurídico se defronta com o preconceito e a ausência de uma
cultura estribada na diversidade.
Em geral, a sociedade brasileira é refratária a temas que refogem do nosso cotidiano,
ignora-se o diferente, o diverso do pensamento do cidadão “médio”; contudo, se o tabelião de
notas – delegatário de um serviço público - instado por situação existencial diversa que se
apresenta diante de si, em sua serventia, ele não pode se furtar a exercer a sua relevante função
de formalizar juridicamente a vontade das partes. Por isso, o último item se refere à
possibilidade do reconhecimento das uniões poliafetivas pelo tabelião de notas em escrituras
públicas poliafetivas. Compartilha-se da doutrina que entende que os princípios que devem
nortear a atuação de atores sociais como o tabelião ou mesmo os registradores é o da igualdade
e dignidade da pessoa humana; o da proteção da entidade familiar – seja o tipo que for:
monoparental, simultânea, homoafetiva, poliafetiva, mosaico, anaparental – e o da autonomia
existencial.
Na conclusão, alinhavam-se os principais pontos discorridos ao longo do trabalho,
posicionando-se pelo reconhecimento das uniões poliafetivas em escrituras públicas lavradas
pelo tabelião de notas, com fundamento nos princípios antes citados e no dever de prevenção
de litígios que está arrolado na lei de regência (Lei 8495/1994) como um dos inarredáveis
deveres funcionais do notário ou registrador.
Para além do escopo inicial investigatório sobre tema polêmico, deseja-se que as
ideias contidas nesse locus acadêmico reverberem, pois em tempos de caos, de incertezas, de
perda de direitos, combater o conservadorismo e o retrocesso em temas familiaristas é um modo
de demonstrar empatia, afeto pelo outro e os dramas que trazem consigo!

1. A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES: O AFETO COMO CONSTRUÇÃO


SOCIAL

A Sociologia é a ciência que estuda os fenômenos sociais decorrentes das atividades


humanas, seja analisando e interpretando a influência e ação das estruturas sociais, e o
comportamento dos indivíduos enquanto grupo integrante de uma sociedade, ou, por vezes,
buscando a manutenção e a estabilização dessas mesmas estruturas e a regularidade do

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comportamento social, ou mesmo visando entender a realidade a qual os indivíduos então


inseridos, com a intenção de propor a apresentação de uma possível transformação deste estado
no qual podem se encontrar. Essa área do conhecimento surgiu ao final do século XVIII, em
decorrência das mudanças drásticas que a Revolução Industrial e o novo modelo econômico –
o capitalismo – impuseram à sociedade, e se firmou ao longo do século XIX, em um primeiro
momento com os estudos de Karl Marx, Émile Durkein; Max Weber – “pais fundadores” da
Sociologia Clássica - e, mais tarde, com a Escola do Interacionismo Simbólico - Mead e
Goffman.
As sociologias especiais, de forma genérica, partem dos mesmos princípios teórico-
metodológicos da Sociologia geral, embora abarquem em suas discussões algumas questões e
fenômenos sociais mais específicos, como é o caso da Sociologia da religião, da família, da
saúde, da arte, do direito, das profissões jurídicas, entre outras. Uma das mais recentes
subdisciplinas da Sociologia geral, e de enfoque neste trabalho, é a chamada Sociologia das
Emoções, que, como o próprio nome sugere, tem como encargo de suas investigações a
categoria de análise "emoção", buscando identificar o caráter social de nossas emoções, quais
os fatores sociais que nos influenciam a sentir determinada emoção, bem como identificar o
caráter cultural da construção destas emoções. Esse processo foi iniciado nos anos de 1970 nos
Estados Unidos, já no Brasil a luta pelo reconhecimento e a consolidação aconteceu quase vinte
anos depois na década de 90. A constituição dessas novas disciplinas deu-se como um processo
de busca de rejuvenescimento da teoria social, permitindo uma releitura da tradição sociológica
e antropológica, desde os seus clássicos. Pensadores como Derrida e Foucault – pela filosofia
francesa, além de Norbert Elias, e o seu processo civilizador, entre outros autores, influenciaram
diretamente o surgimento dessa sociologia “especial” (KOURY, 2014, p.841).
A Sociologia das emoções aparece, então, com o intuito de compreender os
fenômenos emocionais como uma construção social, preocupando-se com os fatores sociais
que influem na esfera emocional. Conforme Mauro Koury (2009, p.9),

As emoções nas ciências sociais e, especificamente, na antropologia e sociologia,


podem ser definidas como uma teia de sentimentos dirigidos diretamente a outros, e
causados pela interação com os outros em um contexto e situação social e cultural
determinados. A antropologia e sociologia das emoções, vistas como áreas de
interesse em intenso compartilhamento e debates, deste modo, parte do princípio de
que as experiências emocionais singulares, sentidas e vividas por uma pessoa, são
produtos relacionais entre os indivíduos, a cultura e a sociedade da qual faz parte.
Em suas fundamentações analíticas vão além do que uma pessoa determinada sente
em certas circunstâncias, ou em relação às histórias de vida estritamente pessoais. As
preocupações que orientam os debates no interior destes campos disciplinares que

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relacionam emoções, cultura e sociedade, portanto, se dirigem aos fatores culturais e


sociais que influenciam a esfera emocional, como elas interagem entre si, como se
conformam e até onde vai a influência e a reciprocidade entre elas. (Grifo nosso).

Essa sociologia especial possuiu duas grandes tendências teóricas de análise das
emoções, que divergem significativamente no modo como veem e analisam o objeto. Em sua
obra Emoções, Sociedade e Cultura, Koury (2009) apresenta, brevemente, segundo a
concepção de Kemper, estas duas grandes perspectivas teóricas como sendo, uma de cunho
positivista e outra com feições “antipositivistas”. A primeira analisa as emoções dentro da
sociologia concebendo maior importância aos aspectos biológicos e fisiológicos em relação aos
substratos sociais, partindo de uma concepção teórico-metodológica positivista. A segunda, por
sua vez, sobreleva os aspectos socioculturais das experiências emocionais, valorizando os
sentidos subjetivos que os próprios atores sociais atribuiriam aos fenômenos emocionais através
das relações sociais criadas e desenvolvidas na sociedade e na cultura as quais pertencem. Desta
forma para esta segunda posição as emoções são uma construção social (KOURY, 2009, p.9).
Assim, para Koury, o que de fato importa para esta corrente teórica, não é se existem
semelhanças biossociais/universais entre as emoções, nem o processo evolucionário das
emoções, e sim os aspectos da emoção que diferenciam os grupos sociais de seres humanos.
Sejam ligadas ao interacionismo simbólico ou não, as atuais tendências de estudos na
Sociologia das Emoções privilegia a perspectiva culturalista das emoções como explicação
social para os fenômenos emocionais, demonstrando que o modo como se vê e se percebe o
mundo ao nosso redor e todos os fenômenos recorrentes de interações sociais, são constituídos
no seio destas mesmas interações, que regem nosso comportamento. Dentre essas emoções, o
afeto, ao mesmo tempo em que constitui o sujeito em relação, é constituído da interação entre
esse sujeito e o outro, permeado pela cultura e sociedade da qual faz parte.

1.1. O AFETO COMO EMOÇÃO: DE TEIA DE SENTIMENTOS À


CATEGORIZAÇÃO JURÍDICA

O(s) afeto(s) é uma teia de sentimentos que pode englobar o amor, a amizade, o desejo
sexual, a confiança, a solidariedade e, paradoxalmente, o egoísmo, o rancor, a mágoa, a
desconfiança. Lembrando Giselle Groeninga (2015, p. 1), “o afeto é o que nos emociona, o
que nos move, e que ganha no encontro com o Outro, igual ou diferente de si mesmo, a
qualidade de sentimento: o que dá sentido às relações. Tal teia dá conformidade a um produto

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relacional advindo da interação entre os indivíduos, a cultura e a sociedade de que fazem parte.
Se sob a perspectiva da Neurociência, as emoções têm origem no sistema límbico e são
definidas como processos neuroquímicos que ocorrem no cérebro, e na Psicologia elas têm
uma concepção de cunho cognitivo, isto é, como fruto de como se interpreta conscientemente
determinadas situações; na Sociologia o afeto é uma construção social, sob a perspectiva de
cunho culturalista-construtivista. Há uma interação entre as estruturas sociais existentes e a
influência dessas no “como sentimos”. Nas relações afetivas são estabelecidas alianças entre os
envolvidos, em que os esforços de manutenção desses laços de amor, de amizade se pautam
por uma moral e por códigos de ética próprios, mas que não estão imunes à influência de uma
estrutura social pré-existente, pois o ser humano é um sujeito em relação.
A categorização jurídica do afeto é recente, fruto da repersonalização do Direito
Privado e da constitucionalização do Direito de Família. Não obstante a expressão afeto não
esteja no texto da Constituição Federal, houve, nos últimos vinte e oito anos, um processo de
construção doutrinária calcada na valorização da afetividade, como uma das projeções da
dignidade da pessoa humana – princípio expresso no artigo 1º, III, CF. O afeto, de mera
expressão do subjetivismo, transmudou-se em um valor jurídico. Para Tepedino (2015, p.7),

O afeto torna-se, nessa medida, elemento definidor de situações jurídicas, ampliando-


se a relação de filiação pela posse de estado de filho e flexibilizando-se, com
benfazeja elasticidade, os requisitos para a constituição da família. O direito de
família passa a atribuir particular importância (não à afetividade como declaração
subjetiva ou obscura reserva mental de sentimentos não demonstrados) à percepção
do sentimento do afeto na vida familiar e na alteridade estabelecida no seio da vida
comunitária. Nessa esteira, situa-se a ampla admissibilidade, pela jurisprudência
atual, de entidades familiares extraconjugais, incluindo-se a união de pessoas do
mesmo sexo, as famílias simultâneas, cuja repercussão geral foi reconhecida (STF,
RG no ARE 656.298/SE), além das uniões poliafetivas, reguladas pelo tabelionato
(escritura pública foi lavrada pelo 15º Ofício de Notas/RJ para contratualizar união
entre 3 mulheres), e cuja eficácia, no âmbito do direito de família, ainda é objeto de
controvérsia, justamente porque o conceito de família há de ser necessariamente
elástico, em contínua evolução.

Na trajetória do direito das famílias, com a ascensão do afeto à categoria jurídica,


várias situações jurídicas existenciais puderam ser finalmente reconhecidas, entre elas as uniões
homoafetivas, hoje, modelo ao (futuro) reconhecimento de outros arranjos familiares.

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2. DO POLIAMOR À UNIÃO POLIAFETIVA: DE MOVIMENTO DE


VANGUARDA E ESTILO DE VIDA AO ESTABELECIMENTO DE (NOVA)
FAMÍLIA COM SUPORTE NO AFETO

O poliamor surgiu a partir da reunião de vários discursos fundados na libertação


sexual, com o objetivo de promover o espaço e o conjunto de valores éticos pertinentes a estilos
de vida alternativos e a relacionamentos íntimos, sexuais e/ou amorosos que não observavam
o senso comum da cultura da “monogamia compulsória”. Em um contexto histórico, sua gênese
e trajetória são recentes, encontradas suas proto-origens no final da década de 60 do século XX
com o movimento hippie. Entretanto, concomitantemente às ideias de amor livre, também
emergiam daquelas comunidades hippies indivíduos que buscavam a felicidade em
relacionamentos não-monogâmicos, mas com características distintas de relacionamentos
afetivos abertos, nesse espaço acadêmico sendo abreviadas para RLi (relações de amor livre).
Relações poliamorosas são distintas das relações de amor livre.
Em um dos estudos mais completos sobre o tema, Rafael Silva Santiago (2014, p.
118-123) esclarece que o movimento do poliamor é de abrangência mundial e que uma das
principais ferramentas de informações acerca do mesmo é o sítio eletrônico da organização
“Loving More.” De acordo com o “Loving More”, o poliamor se refere ao amor sentido por
mais de uma pessoa, marcado pela honestidade e pela ética, bem como pelo total conhecimento
e consentimento de todos os interessados. Em outro site - “The Polyamory Society” - há a
transcrição da definição de poliamor:

Poliamor é a filosofia não-possessiva, honesta, responsável e ética, bem como a


prática de amar várias pessoas ao mesmo tempo. O poliamor enfatiza a escolha
consciente de com quantos parceiros alguém deseja estar envolvido, ao invés de
aceitar normas sociais que determinam que se ame uma única pessoa ao mesmo
tempo (THE POLYAMORY SOCIETY, 2013a, tradução nossa). (SANTIAGO,
2014, p. 118-119).

A principal ideia do poliamor é admitir uma pluralidade de sentimentos (seja amor,


amizade, paixão, desejo ou carinho) que se desenvolvem em relação a diversas pessoas, os
quais vão até mesmo além da mera relação sexual. Inclusive aqueles que praticam o poliamor
definem esse sentimento como um vínculo afetivo sério, íntimo, romântico ou, ao menos,
estável que uma pessoa tem com outra ou com um grupo de pessoas. “O vínculo afetivo
desempenha um papel fundamental no poliamor, vez que a aceitação do afeto em relação a

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mais de uma pessoa é o fator que o diferencia das demais formas de relacionamento não-
monogâmicas” (SANTIAGO, 2014, p.120).
Para aqueles criadores do poliamor, o modo de relacionamento é menos importante
do que o entendimento de seus valores. A liberdade para se entregar e permitir que o amor – e
não apenas a paixão sexual, as normas sociais, as críticas religiosas ou as reações emocionais –
estabeleça a forma dos relacionamentos íntimos é a essência do poliamor. Importa ressaltar que,
por isso, para além de movimento, ele é um verdadeiro estilo de vida, em que dois pilares muito
importantes fazem parte de tal estilo: honestidade e consenso. Enquanto a ideia ética de
consenso só pode ser obtida em um processo de negociação, a honestidade é um pressuposto
para que esse processo seja possível em sua totalidade.
Em apertada síntese, é possível vislumbrar que o principal valor do poliamor diz
respeito ao afeto que existe entre seus integrantes, não se tratando de um relacionamento
marcado pela promiscuidade ou pelo sexo casual. Toda e qualquer relação de poliamor só se
justifica enquanto tal a partir do amor, da afetividade, por conseguinte, toda a relação
poliamorosa encerra afeto(s) e isso vai ao encontro do imprescindível fundamento do direito
das famílias e dos novos arranjos familiares que o ordenamento jurídico nacional deve tutelar.

2.1. ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O POLIAMOR - O GRUPO POLIAMOR


BRASÍLIA - E SUAS LIÇÕES: A RECUSA À MONOGAMIA E O ESTIGMA E
PRECONCEITO COM OS PRATICANTES

Tendo em vista que o afeto é uma construção social e o principal valor do poliamor e
esse artigo analisa esse fenômeno social e as uniões poliafetivas, que já existem na sociedade,
não poderia deixar de trazer um recorte que trata de interessante estudo etnográfico realizado
em Brasília, com um grupo denominado Poliamor Brasilia, cujos participantes ou são
simpatizantes ou mantêm relações poliafetivas, ambos portadores de um discurso anti-
monogâmico, isto é, contra a monogamia como estruturante dos relacionamentos mantidos
(FRANÇA, 2016).
A pesquisa foi realizada durante um ano e 4 meses (julho de 2014 a outubro de 2015)
e consistiu na participação das reuniões do grupo, de entrevistas com os participantes, e
interação através das redes sociais. Na condição de observador-participante, o autor colhia
informações para a sua (futura) dissertação de mestrado em Antropologia Social/UnB, com o
intuito de traçar um painel do poliamor e de seus praticantes em um local e espaço temporal

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previamente determinados, estudando aspectos referentes à identidade, gênero e conjugalidade


do grupo,

[...] Assim, acredito que a etnografia que realizei no Poliamor Brasília – DF permite
vislumbrar algumas das estratégias mobilizadas por estes sujeitos no que tange à
constituição de diversas formas de arranjos em termos de afetividade e de
conjugalidade. Inclusive, extrapolam o binarismo monogamia versus não-
monogamia, tendo em vista que uma forma de relacionamento guarda elementos da
outra e vice-versa, conforme mostrarei ao longo do trabalho. (FRANÇA, 2016, p 12.)

No que compete a este artigo, cumpre esclarecer que o estudo etnográfico realizado
em Brasília mais do que levantar dados, descrever as visões de mundo e a própria atuação sócio-
política desse grupo, retrata a crítica ao amor romântico e à monogamia. Não é demasiado dizer
que algumas das conclusões da dissertação são o esboço do pensamento de parte dessa nova
geração acerca de institutos “tradicionais” como o casamento e a família, além das escolhas
amorosas. Uma geração que convive com a diversidade sexual e novos arranjos afetivos e que
têm suas idiossincrasias. O grupo pesquisado era composto por jovens, como se infere da faixa
etária dos participantes, entre os 18 e os 34 anos; em sua maioria, formada por universitários ou
profissionais recém-egressos do ensino superior, moradores do Plano Piloto na capital federal,
com hábitos semelhantes, inseridos em uma mesma cultura.
Diz o pesquisador que “praticamente todas/os integrantes do Poliamor Brasília
compartilham da ideia de que na monogamia e no amor romântico há um discurso hipócrita
sobre a dimensão das relações amorosas”, tendo em vista que mesmo em relações
monogâmicas pode acontecer de ambas as partes se apaixonarem por alguém de fora da relação
e isso se tornar fonte de conflito, mágoa, revolta, etc.
Outro aspecto que é sublinhado nesse espaço é o que tange ao estigma e preconceito
com os poliamoristas. Em todos os espaços de discussão do Poliamor Brasília (grupos de
Facebook e WhatsApp, poliencontros, happy hours do amor etc.), boa parte dos relatos giraram
em torno de situações em que poliamoristas eram acusadas/os de serem promíscuas/os e, no
limite, estarem usando o termo poliamor como desculpa para praticar “putaria”, ou ainda,
“pegação”. A seguir alguns dos comentários sobre a condição de poliamoristas e o estigma
sobre a mesma:

Para os conservadores que acham isso tudo uma grande putaria, deixamos duas
notícias: a primeira é que não adianta lutar contra essa tendência, pois ela já está
acontecendo. No futuro, iremos olhar para a época em que vivemos hoje e será mais
fácil identificar essa mudança acontecendo na vida de muitas pessoas. A outra notícia

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é que essa abertura tende a quebrar modelos e apontar para uma direção onde não há
regras – se alguém quer ficar casado por 60 anos com a mesma pessoa, ótimo. Se a
outra quer casar com 5 pessoas, ótimo também. Se a outra quer ficar sozinha, sem
problemas. (FACEBOOK, 2014). (Grifo nosso).
[...]
Valéria [negra, 25 anos, faz graduação no curso de Letras, feminista: Debater a
pluralidade do amor ok, mas, falar que você namora 3 pessoas [risos] é complicado
[...] Imagina só, eu falando sobre isso no meu serviço ou para a minha avó cristã de
70 anos [risos].
[...]
Maiara [Comunicadora]: Eu costumo dizer que meus pais sabem que eu sou do
poliamor, mas eles preferem chamar carinhosamente de “promiscuidade”.
(FRANÇA, 2016, p.95-102).

Nas falas colacionadas pela pesquisa, o estigma evidenciado é formado pelos


comentários, insinuações, atitudes e opiniões que de alguma forma (da perspectiva de
poliamoristas) deslegitima o poliamor enquanto válido em termos de afetividade e de
conjugalidade porque se trata de uma prática não-monogâmica. Há, em geral, primeiro, o
desconhecimento do que é o poliamor; segundo, um julgamento moral de seus praticantes;
terceiro, a invisibilização desse movimento e dos indivíduos ligados a ele, como se a realidade
social pudesse ser “apagada”.
Não obstante a etnografia tenha sido realizada em Brasília, é possível afirmar que o
que acontece nesse microcosmo no Planalto Central pode ser visto em outros lugares. O
poliamor é uma nova opção de relacionamento, geralmente entre jovens (alerta-se, nem
sempre), que já nasceram em um ambiente livre (pós-anos 80 e a ditadura civil-militar),
comungando de valores diferentes dos “tradicionais”, influenciados por uma cultura que
também vem sendo construída desde a revolução sexual, cujos afetos e desejos expressam
subjetividades que se formam em um meio diverso e plural. Não é um modismo; não é
passageiro! Reflete a transição de costumes.
É claro que, ao lado disso, há as permanências. Relacionamentos monogâmicos e o
próprio casamento também fazem parte dos ideais de (outros) jovens (não só deles), basta a
análise do número crescente de uniões estáveis e de registro de casamentos civis (e dos
divórcios, também). Então, por que não é possível que se reconheça que, ao lado da
“permanência”, há o – hoje - “diferente” poliamor? Por que as relações poliafetivas, no Direito,
ainda são percebidas como algo exótico? O julgamento do STF não impôs um novo tratamento
às uniões homoafetivas, por que não estendê-lo às uniões poliafetivas? Acaso os valores
constitucionais da autonomia e pluralidade somente são válidos para a família nuclear e
monogâmica?

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2.2. AUTONOMIA PRIVADA EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


E A PLURALIDADE: PERSPECTIVA JURÍDICA DO POLIAMOR E A UNIÃO
POLIAFETIVA

O poliamor é tema interdisciplinar, pois abriga noções da Psicanálise, Sociologia,


Antropologia, conforme o antes visto. Sob uma perspectiva jurídica, no Brasil, um dos
primeiros autores que trouxeram a lume o tema do poliamor foi o magistrado e professor Pablo
Stolze Gagliano, quando, ainda em 2008, publicou um artigo intitulado “Direitos da(o)
amante”. Então, há quase dez anos a doutrina familiarista vem tratando do tema, nem sempre
com razão e sensibilidade.
Além de movimento e estilo de vida (perspectiva antropológica), compreende-se o
poliamorismo como uma escolha pessoal, uma subjetividade que tem no afeto seu vínculo
maior. Nesse rumo, trata de situação subjetiva existencial, manifestação direta, portanto, da
personalidade; a liberdade da escolha por um tipo de relacionamento não-monogâmico pelo
poliamorista nada mais é do que a opção de vida que melhor lhe realiza. Infere-se desse quadro
a autonomia privada existencial como primado do poliamor, é dizer, a livre realização da
personalidade. Essa autonomia pode ser traduzida como a auto-determinação, o direito de
decidir os rumos de sua vida, ou, na concepção do ministro do STF, Luis Roberto Barroso e
Letícia Martel (2010, p.191):

É o poder de realizar escolhas morais relevantes, assumindo a responsabilidade pelas


decisões tomadas. Por trás da concepção de autonomia está um sujeito moral capaz
de se autodeterminar, traçar planos de vida e realizá-los. Com efeito, as decisões
sobre a própria vida de uma pessoa, escolhas existenciais sobre religião, casamento,
ocupações e outras opções personalíssimas que não violem direitos de terceiros não
podem ser subtraídas do indivíduo, sob pena de se violar sua dignidade.

O legislador constituinte quando se expressou por uma república que objetiva a


constituição de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF) e pela promoção do bem de
todos, sem qualquer tipo de preconceito (art. 3º, III, CF), impôs, a priori, o respeito às
concepções pessoais de felicidade e ao livre desenvolvimento da própria personalidade. “É esta
liberdade que franqueia a possibilidade de cada sujeito elaborar sua própria identidade, a qual,
embora construída dialogicamente com seus convivas, torna-se única e individual, elemento de
seu destacamento frente a seus pares” (TEIXEIRA; KONDER, 2010, p.5).
Nos aspectos que tangem ao poliamorismo e às uniões poliafetivas, reitera-se, há a
proteção que decorre do texto constitucional: dos princípios da igualdade e dignidade da

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pessoa humana (artigo 1º, III, CF) – os quais perpassam a todas as situações subjetivas
existenciais e que já foram objeto de inúmeros estudos, obras acadêmicas, decisões jurídicas,
constituindo um conjunto doutrinal e jurisprudencial de fôlego e da proteção (indistintamente)
às entidades familiares (artigo 226,caput, CF)
Com o reconhecimento do poliamor, o Estado estará provendo o mínimo existencial
para os indivíduos que escolheram esse estilo de vida e novo modelo de relação afetiva, no
sentido de contemplar seus anseios existenciais pertinentes à formação de uma família
poliamorosa, assegurando o respeito à sua legítima expectativa de se inserir na sociedade a
partir de sua própria identidade relacional, e não a partir de um dogma mitificado e propagado
pela sociedade ocidental (SANTIAGO, 2014, p.141).

2.3. UNIÃO POLIAFETIVA – NOVA ENTIDADE FAMILIAR - E A MONOGAMIA

A expressão união poliafetiva foi utilizada pela tabeliã de notas Claudia do


Nascimento Domingues, a qual lavrou a primeira escritura pública de união poliafetiva no
Brasil. Não se sabe ao certo se foi a primeira a utilizar o termo, mas, sem dúvida, a partir de seu
trabalho foi difundido o mesmo.
A união poliafetiva pode ser conceituada como uma união mantida por mais de duas
pessoas, constituída com base em vínculos afetivos que englobam o animus de constituir
família e as mesmas crenças individuais quanto ao exercício da sexualidade. E não se confunde
com as famílias paralelas ou simultâneas, em que, em regra, um homem vive com duas
mulheres, mas em casas distintas; as uniões poliafetivas não são paralelas, pois formam uma
única união. E como entidades familiares que são, devem ser protegida (artigo 226, caput, CF).
Embora no mesmo artigo 226, o parágrafo 3º, CF tenha regulamentado a união estável
entre duas pessoas, isso não significa uma negativa de proteção da união entre mais de duas
pessoas, pois, segundo a melhor doutrina, não quis o dispositivo expressar que somente será
união estável aquela que possa ser convertida em casamento. (VECHIATTI, 2014).
Não é o matrimônio e muito menos a monogamia que constitui família. Destaca-se
que a monogamia não é princípio estruturante do direito das famílias e que, em razão disso, são
inconsistentes teses que desqualificam a união poliafetiva como (nova) entidade familiar. A
monogamia caracteriza um vetor que pode ou não se inserir no mundo dos valores de cada um
dos membros da família. É capaz de contentar mais ou menos algumas pessoas – seja por
fatores morais, religiosos e/ou culturais – ou desagradar mais ou menos outras – seja por fatores

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individuais, sexuais e/ou íntimos. No caso dos policonviventes, é obvio que não se trata de vetor
inserido em suas vidas.
Compartilha-se da opinião de Rafael Santiago de que,

Não cabe ao Estado ou à doutrina, a partir de um exercício hermenêutico subversivo,


transpor a barreira que separa os planos axiológico e deontológico, impondo um valor
como um “dever ser” e atribuindo-lhe um falso caráter principiológico em razão de
aspectos morais, religiosos e/ou culturais. Tal movimento representa uma grave
violação à autonomia dos indivíduos em decidir qual vetor axiológico irá delinear as
regras de seu relacionamento amoroso. (SANTIAGO, 2014, p. 102).

Na mesma esteira – a de que a monogamia foi superada como princípio estruturante


do Direito de Família – as conclusões alinhadas por Marcos Alves da Silva (2013), em
portentoso estudo sobre o tema e em recente artigo da lavra de Luciana Poli e César Fiuza
(2016).

2.4. A (IN)VISIBILIDADE DA UNIÃO POLIAFETIVA NA JURISPRUDÊNCIA

Se a doutrina “despertou” para o tema da união poliafetiva, de sua constituição e


embasamento jurídico, o mesmo não pode se dizer da jurisprudência. Sublinha-se que as
decisões proferidas tratam em sua maioria de famílias simultâneas ou paralelas, ou a expressão
concubinato, embora os casos sejam de poliafetividade, talvez em razão do caráter i)
preconceituoso; ii) novidade. O fato é que a união poliafetiva também é (ainda) invisível aos
tribunais, como se depreendo do julgamento do Recurso Extraordinário 883.168/SC, rel. Min.
Luiz Fux, tratando-se aquele caso de união poliafetiva como concubinato adulterino, nesses
termos:

Direito Constitucional, Previdenciário e de Família. Recurso Extraordinário.


Repercussão geral. Tema 526. Concubinato de longa duração. Efeitos
previdenciários. Pensão especial de ex-combatente. Distinção entre união estável e
concubinato. Alcance da proteção das famílias. Novas concepções de família e de
conjugalidade. Impossibilidade de conferir tratamento igualitário a situações
diferenciadas. Cogência dos deveres inerentes ao matrimônio e dos impedimentos
previstos na legislação. Provimento do recurso.
1 – Proposta de Tese de Repercussão Geral – Tema 526: É possível o
reconhecimento de efeitos previdenciários ao concubinato, quando presentes as
condições para sua equiparação à união estável, mas não ao concubinato adulterino.

Conquanto essa “invisibilidade” das uniões poliafetivas, o reconhecimento


concedido, em julgamento histórico do STF, às uniões homoafetivas quando do julgamento da

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Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ e da Ação Direta de


Inconstitucionalidade nº 4.277/DF conferindo interpretação conforme a Constituição Federal
para excluir do artigo 1.723 do Código Civil todo significado que impeça o reconhecimento da
união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar,
acabou por aceitar que não se pode negar proteção estatal a qualquer família, posto que todas
possuem o mesmo elemento definidor - o afeto. A hermenêutica constitucional, portanto,
prestigiou a autonomia existencial e a pluralidade das entidades familiares, além da dignidade
da pessoa humana. O mesmo poderá valer para uniões poliafetivas, o Judiciário não poderá
negar-lhes a prestação jurisdicional. Assim como a família(s) mudou ao longo do tempo, a
percepção sobre o poliamorismo e as uniões poliafetivas também há de mudar.
A título de exemplo, traz-se a percepção da Colômbia, que recentemente oficializou
o matrimônio de três homens, no dia 3 de junho do corrente ano, em um cartório em Medelín.
Registra-se que o casamento gay é legal na Colômbia desde o ano passado, mas esta é a primeira
união oficial entre três pessoas do mesmo sexo no país (O GLOBO, 2017), o primeiro na
Colômbia e o segundo no mundo.

3. O RECONHECIMENTO, PELO TABELIÃO DE NOTAS, DA UNIÃO


POLIAFETIVA EM ESCRITURAS

O tabelião de notas exerce uma função pública; é um delegatário de serviço público


colocado à disposição da população, ex vi do artigo 236, CF. De modo precípuo, formaliza
juridicamente a vontade das partes, intervindo nos atos e negócios jurídicos a que as partes
devam ou queiram dar forma legal. A doutrina notarial esclarece que essa função deve ser
exercida com imparcialidade e independência, além disso, há o dever de prevenção que se
consubstancia no princípio da justiça preventiva, o qual tem a finalidade de prevenir conflitos
e garantir a paz social (LOUREIRO, 2016).
Na lei de regência da atividade notarial – Lei 8.935/1994 – os direitos e deveres estão
insculpidos nos artigos 28 a 30 - e como são delegatários do Estado se obrigam à estrita
observância dos princípios constitucionais da Administração Pública – artigo 37, CF e, por isso,
sujeitos também à lei de improbidade administrativa. Em razão de escolhas legislativas, nos
últimos anos, vários procedimentos judiciais deixaram de fazer parte do rol da atividade

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jurisdicional e passaram ao abrigo da atividade notarial e/ou registral, implementando o


fenômeno da desjudicialização.
A atuação desses delegatários, em específico do tabelião de notas, contribui para que
a conflituosidade/litigiosidade diminua, pois, assim como os demais operadores
jurídicos/intérpretes, o que o guia (ou pelo menos, deveria guiar) é o respeito, em primeiro lugar,
à Constituição Federal. Como intérprete que é, quando instado ao exercício de sua função, em
particular na formalização jurídica da vontade das partes (função ampla) ou autenticando
documentos e reconhecendo firmas (função específica), o tabelião de notas confere ao fato
social que lhe é narrado a moldura legal necessária, não devendo se furtar à realização de análise
sobre o que lhe trazem à serventia.
Existindo uma realidade social (fato social) sem regulamentação expressa, mas sem
óbice no ordenamento, o tabelião há de encontrar a moldura legal ao caso concreto. Pode-se
afirmar que quando o notário está diante de uma norma legal e busca seu conteúdo e sentido,
estará realizando atividade interpretativa. Do mesmo modo, estará interpretando e, portanto,
criando, quando se deparar com uma situação de inexistência de norma, ou quando houver
lacuna na lei.
Os policonviventes que se dirigem a um tabelionato de notas para formalizarem
juridicamente suas vontades têm o direito de fazê-lo, a uma, pois o relacionamento poliafetivo
(= fato social) existe e é fundado na autonomia existencial e dignidade da pessoa humana; a
duas, o ordenamento jurídico não lhes nega tutela, não há regra proibindo-lhes o
relacionamento, levando-se em consideração que a monogamia não é um princípio estruturante
do direito das famílias; a três, o tabelião de notas não pode deixar de realizar o ato por ausência
de norma expressa. Quando, no exercício de sua função, o tabelião se deparar com uma situação
em que não haja norma jurídica expressa, deverá recorrer aos princípios, à analogia, ou até
mesmo aos costumes para suprir a lacuna ou para complementar o que a norma deixou em
aberto (FISCHER, 2017). Além disso, respeitados alguns pressupostos contidos no artigo
1.723, CCB, como, por exemplo: ser pública, ser contínua, ser duradoura (não há limite
temporal), apresentar objetivo de constituir família, não apresentar impedimentos
matrimoniais, contidos no artigo 1.521, CCB (v.g., ascendente não pode se casar com
descendente), a união poliafetiva há de ser reconhecida.
O que o tabelião de notas não deve fazer é um juízo de valor no que tange à moralidade
daquele relacionamento e dos indivíduos envolvidos. De outro lado, negar a existência de

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famílias poliafetivas como entidade familiar acaba por excluir de todos os envolvidos os direitos
no âmbito do direito das famílias e sucessório. Negando-lhe reconhecimento jurídico nenhum
de seus integrantes poderia receber alimentos, herdar, ter participação sobre os bens adquiridos
em comum. A rejeição de ordem moral ou religiosa à dupla conjugalidade não pode gerar
proveito indevido ou enriquecimento injustificável de um ou de mais de um frente aos outros
partícipes da união.
A intervenção do notário também tem um viés preventivo. In casu, os
policonviventes, justamente por enxergarem no estabelecimento formal de cláusulas que lhes
garantam harmonia e segurança, assim como as demais espécies de companheiros/conviventes,
almejam que suas vontades instrumentalizadas em um documento público lhes previnam de
(futuros) conflitos.

3.1. DAS ESCRITURAS PÚBLICAS POLIAFETIVAS: INSTRUMENTO PÚBLICO


EM UM ESTADO LAICO E PLURAL À DISPOSIÇÃO DE NOVOS ARRANJOS
FAMILIARES

A escritura pública é a expressão concreta da função exercida pelo notário ou tabelião,


“é considerada essencial nos países de direito continental, tanto para o indivíduo, quanto para o
Estado” (LOUREIRO, 2016, p.62). Esse documento notarial garante uma verdadeira liberdade
contratual – consentimento livre com conhecimento de causa – ao indivíduo, e oferece ao
Estado a segurança jurídica e estabilidade do regime de direito. Trata-se de um documento
solene, cujos requisitos estão expressos, em sua maior parte, no artigo 215, CCB, mas há outros
em legislação especial. As uniões poliafetivas, nos mesmos moldes das uniões estáveis
“comuns” ou homoafetivas, são objetos de escrituras públicas poliafetivas; o que
instrumentaliza tais uniões, então, é o documento notarial em que há o reconhecimento dessa
nova família.
Tudo o que é novo causa perplexidade, mais por ignorância, do que propriamente por
aversão. No ano de 2012 causou perplexidade a lavratura de escritura pública com tal teor;
pioneiramente a tabeliã de notas da comarca de Tupã (SP) lavrou escritura em que três
policonviventes (duas mulheres e um homem) declararam suas vontades, estabelecendo
direitos e deveres. Mais tarde, em 2015 e 2016, no 15º Tabelionato de Notas da comarca do Rio
de Janeiro, houve o reconhecimento de outras uniões poliafetivas, uma entre heteros e outra em

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relacionamento homoafetivo. Em seguida, talvez em razão da ampla publicidade em torno do


assunto, houve manifestação de vários juristas – favorável ou contrariamente ao tema .
As manifestações jurídicas quanto à validade e eficácia dessas escrituras traduzem a
controvérsia do tema. E, como se vive em um Estado laico e plural, posicionamentos contrários
à realização de escrituras públicas poliafetivas são legítimos, ainda que isso desconsidere a
autonomia existencial e a dignidade da pessoa humana, como é o caso da Associação de Direito
de Família e Sucessões (ADFAS).
Logo, ao revés de posicionamento emanado da ADFAS, não há nulidade absoluta no
ato notarial, por suposta ilicitude do objeto (artigo 166, II, CCB). Negar a existência de uniões
poliafetivas é, no mínimo, obtuso. Há uma diversidade de famílias que têm no afeto o seu
elemento estruturante; conforme demonstrado, o afeto é uma construção social e valor jurídico.
Ontologicamente dizendo: ele é e constitui as relações poliafetivas que resultam em uniões
poliafetivas.
No plano da validade, também por representar uma declaração de vontade hígida e
sem vícios dos envolvidos, não há qualquer problema no seu objeto. Conforme o já delineado,
compartilha-se da opinião de Alves (2013) e Santiago (2014) de que a monogamia não é
princípio estruturante do direito das famílias. Por isso, uniões poliafetivas são válidas, conforme
Flávio Tartuce (2017, p.2)

No que diz respeito ao objeto do negócio em estudo, como tenho exposto em aulas e
escritos, a monogamia não está expressa na legislação como princípio da união
estável, mas apenas do casamento, eis que o Código Civil enuncia que não podem
casar as pessoas casadas, sob pena de nulidade do casamento (arts. 1.521, VI, e 1.548,
CCB). Em relação à união estável, muito ao contrário, admite-se até que a pessoa
casada tenha um vínculo de convivência, desde que esteja separada judicialmente,
extrajudicialmente ou de fato (art. 1.723, § 1º, do CC/2002, em leitura atualizada), o
que denota um tratamento diferenciado a respeito da liberdade de constituição das
duas entidades familiares.

Quanto à validade e eficácia de tais uniões, expressa Tepedino, “há de se afastar o


paradigma do casamento, submetido a controle formal e substancial rigoroso e, em particular,
ao princípio da monogamia, que não se constitui em modelo prescritivo único” (TEPEDINO,
2016). Então, não é razoável a recomendação feita pela Corregedoria do Conselho Nacional de
Justiça, em abril de 2016, no sentido de que as serventias extrajudiciais não realizem escrituras
de uniões poliafetivas.

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As cláusulas que constam das escrituras, em realidade, são declaratórias e valorizam


um relacionamento que já existe no mundo dos fatos. O que pode gerar discussões é quanto aos
efeitos jurídicos de tais cláusulas, porém, o que aqui se defende, reitera-se, é que o tabelião de
notas – atento aos princípios da dignidade da pessoa humana e pluralidade das entidades
familiares – há de conformar a vontade dos policonviventes à legalidade constitucional, é dizer,
à proteção da entidade familiar e aos direitos de personalidade de seus membros.

CONCLUSÃO

Ao longo do artigo discorreu-se sobre tema polêmico que já faz parte da sociedade
brasileira. Alicerçou-se o estudo na convicção de que o poliamorismo, mais do que um
movimento ou estilo de vida, é uma manifestação dos tempos pós-modernos no âmbito das
relações humanas. Ancorado na emoção/teia de sentimentos que é o afeto, as relações
poliamorosas vividas por jovens da geração pós-anos 80, em um microcosmo como
Brasília(DF), e suas representações podem ser vislumbradas em outros ambientes do país. Se
nos Estados Unidos já há mais de meio milhão de pessoas que se identificam como
“poliamorosas” (SANTIAGO, 2014, p.256), no Brasil, ao contrário, não há uma demonstração
consistente quanto à essa condição. Mas essa é uma realidade social, que não pode ser
desconsiderada pelo Direito.
Em tempos pós-modernos, embora os problemas decorrentes da desagregação
familiar, seja em razão dos excessos, da intolerância e impaciência nos relacionamentos, novos
arranjos familiares se constituem, como é o caso das uniões poliafetivas. É um aparente
paradoxo nesse tempo de incertezas, fluidos, líquidos (Bauman) que novas famílias se formem
a partir de subjetividades e escolhas baseadas na autonomia existencial e que queiram
instrumentalizar suas vontades em escrituras públicas poliafetivas visando justamente a
proteção e garantia de seus direitos da personalidade.
O Direito de Família (das famílias) não tem como princípio estruturante a
monogamia. Essa é um valor enquanto identidade relacional; logo, cada pessoa tem o condão
de valorar a monogamia da forma que melhor lhe aprouver, escolhendo por inseri-la ou não em
seu mundo de valores. Os relacionamentos não-monogâmicos estão inseridos em um novo
cenário sociojurídico, em que situações subjetivas existenciais diferentes dos padrões vigentes

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poderão ser reconhecidas em razão dos princípios da dignidade da pessoa humana e da


pluralidade de entidades familiares.
Retroceder aos Oitocentos por uma moralidade desagregadora que não consegue
perceber que a realidade do mundo é muito mais complexa do que a lei consegue aferir é dar
guarida a concepções de mundo que não se coadunam com a pós-modernidade. Sejam famílias
simultâneas, paralelas, homoafetivas, poliafetivas, o que há são sujeitos em relação; pessoas
que tem no afeto o núcleo de suas relações.
Há uma evidente transição de costumes no Brasil, que ainda não foi percebida
adequadamente pelos Tribunais. À vista disso, o tabelião de notas, no exercício de sua função,
quando procurado pelas partes, pode, realizando uma interpretação conforme CF, e com esteio
nos princípios acima delineados, lavrar escrituras pública contendo cláusulas que, ao fim e ao
cabo, implementam o direito de personalidade dos policonviventes.

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815
DIÁLOGO ENTRE FEMINISMOS, DIREITO E RELIGIÃO

COLEN, Karen de Sales


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista Capes

RESUMO

A modernidade tem sido o palco da superação de grandes tradições e do surgimento de movimentos com
caráter emancipatório, principalmente, no que diz respeito a dominação masculina. Neste sentido,
considerando a articulação entre feminismos e a religião cristã, o presente artigo aponta a eclosão do
movimento feminista cristão, apresentando as reivindicações de dois grupos presentes no cenário sócio-
político brasileiro: as Católicas pelo Direito de Decidir e as Evangélicas pela Igualdade de Gênero.
Indaga-se, ao final, se tal movimento possui uma prática emancipatória ou se consiste em uma adaptação
religiosa do discurso feminista às dinâmicas sociais.

Palavras-Chave. Cristianismo. Feminismo. Emancipação.

ABSTRACT

Modernity has been the scene of overcoming great traditions and the emergence of emancipatory
movements, especially with regard to male domination. In this sense, considering the articulation
between feminisms and the Christian religion, this article points to the outbreak of the Christian feminist
movement, presenting the demands of two groups present in the Brazilian socio-political scenario:
Catholics for a Free Choice and Evangelicals for Gender Equality. In the end, it is questioned whether
such a movement has an emancipatory practice or whether it consists of a religious adaptation of
feminist discourse to social dynamics.

Keywords. Christianity. Feminism. Emancipation.

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INTRODUÇÃO

Estruturalmente, a sociedade se desenvolveu com base em relações de poder, em uma


aparente distinção hierarquizada entre homens e mulheres. Não se pode negar que esta
assimetria social também é fruto de doutrinas religiosas cristãs que, ao longo dos séculos,
sustentaram a superioridade masculina, a quem a mulher deveria se subordinar. Entretanto,
considerando que este cenário tem sofrido consideráveis transformações, o objetivo geral desse
artigo é analisar a eclosão, no século XX, do movimento feminista cristão, que se opõe não só
a dominação masculina no âmbito religioso, mas também aos discursos moralizadores que
orientam as práticas sociais das fiéis e, por vezes, legitimam a violência de gênero.
A metodologia será pautada na consulta bibliográfica das teorias feministas e das
produções teóricas de feministas cristãs, bem como na observação e indagação das experiências
humanas e interações sociais dos seguintes grupos: Católicas pelo Direito de Decidir e
Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Assim, serão utilizados como métodos de pesquisa a
revisão bibliográfica e a pesquisa de práticas sociais na internet.
Em um primeiro momento, será traçada a trajetória do movimento feminista, com as
especificidades de cada uma de suas vertentes e, além disso, a influência dessas novas
dinâmicas sociais no contexto religioso. Posteriormente, adentra-se ao debate da articulação
entre os feminismos e a religião cristã, apontando quais são as reivindicações e as frentes de
luta das mulheres católicas e protestantes, em sua busca por autonomia e emancipação.
Somente ao final de todas as explanações, nas considerações, é que se reflete criticamente e se
aponta um caminho para observar se o movimento feminista cristão pode ser considerado, de
fato, um movimento feminista ou se que o tem sido produzido é uma adaptação religiosa do
discurso feminista.1

1. MODERNIDADE E FEMINISMOS

A modernidade, período histórico que emergiu na Europa a partir do século XVII, é


caracterizada pelo afastamento de uma visão teológica e metafísica de compreensão do mundo,
com o rompimento de crenças e costumes religiosos. Nesse sentido, os postulados da
racionalidade substituíram os da tradição (GIDDENS: 1991,40), de modo que tal momento

1O presente artigo não tem como objetivo aprofundar tal discussão, pois esta constitui parte do debate que será desenvolvido no
estudo para dissertação de Mestrado.

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histórico se tornou palco do surgimento de movimentos com caráter emancipatório, sobretudo,


no que diz respeito ao patriarcado e a dominação masculina.
O principal desses movimentos ocorreu no mundo ocidental, amplamente conhecido
como movimento feminista, que surgiu da passagem do século XVIII para o século XIX,
reivindicando a igualdade entre homens e mulheres. Para este importante momento histórico,
o patriarcado pode ser entendido como "uma forma de expressão do poder político"
(SAFFIOTI: 2004,53), mas este significado não é unânime entre as teóricas feministas, haja
vista que, com o desenvolvimento das dinâmicas sociais, tem se utilizado o termo dominação
masculina, "com o patriarcado sendo uma de suas manifestações históricas"
(MIGUEL;BIROLI: 2013,7).
Jean Elshtain, por exemplo, entende que o patriarcalismo está vinculado a uma
organização política própria do absolutismo, que já não é mais verificada em sociedades
democráticas contemporâneas (MIGUEL;BIROLI: 2013,7). Nancy Fraser (2013), por sua vez,
compreende que, embora as estruturas familiares sejam compostas por relações desiguais onde
a mulher é a parte mais vulnerável, não haveria a ingerência do patriarcado em si, mas da
dominação masculina. Dessa forma, esta dominação restaria demonstrada por estruturas e
mecanismos sociais mais impessoais e fluidos, em que, apesar de não se ter, necessariamente,
restrições institucionalizadas (MIGUEL;BIROLI: 2013,34), as diferenças de gênero
continuariam sendo hierarquizadas.
A partir de uma noção ampla do feminismo, o que se buscou foi justamente a
concepção de que as diferenças entre homens e mulheres precisavam ser reconhecidas, mas não
deveriam ser organizadas ou operadas segundo graus de subordinação. Assim, considerando
que esta concepção é trabalhada de maneira distinta em cada corrente feminista − razão pela
qual fala-se em feminismos, no plural −, vale ressaltar as contribuições e críticas de suas
vertentes.
A primeira fase do feminismo tinha como reivindicações o direito ao voto, a educação
das mulheres e a igualdade no casamento. É o feminismo liberal, desenvolvido ao longo do
século XIX e tendo como expoentes Mary Wollstonecraft e John Stuart Mill, que traz à tona
uma crítica aos processos de socialização que classificam as mulheres como seres inferiores.
Exigia-se, então, a extensão dos ideais liberais − liberdade e igualdade de tratamento − também
às mulheres, fundamentais para que fossem consideradas cidadãs. Desse modo, o modelo

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liberal feminista denunciou a subordinação das mulheres aos homens nas práticas dos atos da
vida civil, relegando-as ao cuidado do lar e da prole na esfera doméstica.
O século XIX também abarcou o surgimento do feminismo socialista ou marxista,
que insere no debate a discussão da relação entre a desigualdade de gênero, a exploração sexual
e a estrutura econômica capitalista, numa tentativa de demonstrar que o patriarcado é
subproduto do capitalismo.2 E que, por este motivo, aos homens estaria confiada a produção
social por meio do trabalho assalariado e as mulheres, a reprodução. Analisando a opressão sob
o viés de classe e de gênero, a reprodução feminina seria explorada pelos homens da mesma
forma que o seu trabalhado produtivo seria explorado pelo sistema capitalista.
A argumentação sobre a necessidade da igualdade de gênero, largamente utilizada no
século XIX, foi substituída pela valorização da diferença. Assim, o feminismo cultural (ou da
diferença), a partir dos estudos de Carol Gilligan (1982), pontuou que homens e mulheres
possuem uma formação moral distinta, constituindo duas perspectivas: a ética da justiça e a
ética do cuidado. A primeira, considerada tipicamente masculina, estaria baseada em um
raciocínio abstrato, em que as decisões são tomadas com base em noções de justiça, respeitando
direitos individuais e normas universais. Já a segunda, consistiria em um raciocínio contextual,
já que as mulheres se perceberiam como integrantes das relações sociais e, dessa maneira, com
o devido cuidado e atenção, prezariam pela manutenção de relacionamentos pacíficos.
O estudo da diferença também é observado no feminismo radical, que tem como
expoente a jurista Catherine Mackinnon. Esta corrente demonstra que a igualdade formal entre
homens e mulheres não alterou a realidade da subordinação feminina na sociedade, apontando
que a sexualidade constitui um lugar privilegiado de opressão dos homens sobre as mulheres.
Nesse caso, o ponto central de explicação da dominação masculina seria o patriarcado, em que
as instituições − sociais, políticas, econômicas e jurídicas − estariam baseadas em linguagens,
interesses e perspectivas essencialmente masculinas, modelando o desejo e se apropriando da
sexualidade feminina.
Diferentemente das abordagens supramencionadas, o feminismo pós-moderno ou
pós-estruturalista preocupou-se com a multiplicidade de identidades e subjetividades. As
reflexões desta vertente partem de uma compreensão de gênero como fruto de um discurso de
poder, que oprime os indivíduos por meio das noções de feminino e masculino. Nesse sentido,
a autora Judith Butler (2003 [1990]) tensiona as concepções de sexo e gênero, pois ambos

2
No Brasil, a abordagem feminista marxista do patriarcado é inaugurada por Heleieth I. B. Saffioti.

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seriam um produto das relações sociais e culturais dos indivíduos, não havendo uma
característica inerente ao ser humano que o definisse segundo o binarismo homem/mulher.
Portanto, provoca-se a desconstrução da neutralidade e da naturalidade das convenções sobre
sexo, gênero e sexualidade.
Diante dessa breve contextualização, pode-se observar que a construção dos sujeitos
e a sua relação com a sociedade não estariam mais pautadas em uma ordem divina, mas sob
uma perspectiva humana, centrada na razão. Não há mais uma lógica transcendente que
determina o sentido do ser e o desenvolvimento de papéis sociais para homens e mulheres, mas
uma constante releitura e reconstrução dos espaços sociais e de quem deles participam.
Nesse sentido, vale ressaltar que o próprio contexto religioso tem absorvido essa
dinâmica. E isso se deve as sucessivas críticas internas às estruturas das instituições religiosas,
no tocante a dominação masculina. As pregações, a literatura, as músicas, os discursos e todas
as outras formas de ensino religioso são acusadas de impor uma posição hierárquica, de
superioridade do homem, como se ele fosse "um cidadão de primeira classe, escolhido para
dominar não somente os animais e a terra, como também a mulher" (RODRIGUES:2011,11).
É nesse contexto que as mulheres cristãs têm criticado não somente as constantes
reafirmações do masculino como único representante do sagrado, mas também as relações
sociais operadas na dicotomia entre o público e o privado. A crítica à exclusão da mulher da
esfera pública e a sua submissão à esfera privada é, historicamente, o tema central do
pensamento feminista. Só que, neste caso, o que está em questão é a herança da religião
primitiva cristã, em que a esfera pública religiosa se confunde com a esfera privada da família.
(FIORENZA:1992, 287). E, diante disso, como a igreja é considerada a extensão da casa, a
ingerência do poder patriarcal é potencializada.
Com isso, o que se pretende levantar é que se a igreja é um espaço público, "a casa é
política" (SOUZA:2009, 8) e isto significa que nem a instituição religiosa, tampouco o lar são
espaços de ocultamento das injustiças sociais praticadas contra as mulheres. Assim, a tentativa
é a de que as discussões sobre as atividades públicas e privadas estejam atentas as
representações de gênero, que perpassam os corpos dos sujeitos, construindo as noções de
masculinidade e feminilidade no âmbito religioso.
Apesar de muitas mulheres ainda estarem sujeitas a sacralização masculina e a igreja
representar uma das estruturas sociais de dominação masculina em que se reproduzem e se
justificam formas de violência, sobretudo, a violência simbólica (BOURDIEU, 2002), esse

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cenário tem apresentado crescentes mudanças. E isso se deve ao fato de que a construção teórica
dos feminismos, sustentando e inspirando práticas de resistências à sujeição e opressão
feminina (ROSADO: 2011, 81), tem influenciado tanto as mulheres católicas, quanto as
mulheres protestantes, a ponto de se poder falar em uma hermenêutica feminista para a leitura
bíblica. Assim, pautada nas discussões de gênero, tem sido produzida a chamada "teologia
feminista".
Por meio desse novo discurso teológico, que passou a ser produzido e difundido na
América Latina a partir da década de 1970, as mulheres reivindicaram a ordenação sacerdotal
e pastoral feminina; ressignificaram as imagens de deus; afastaram o ensino da teologia
patriarcal e, ressaltaram a importância da história de vida das mulheres na (re)construção da
própria história cristã. Segundo a filósofa e teóloga feminista brasileira, Ivone Gebara3,

(...) quando as teologias feministas se articulam aos movimentos feministas e fazem


de suas questões as questões cotidianas vividas pelas mulheres, se dá uma espécie
de ruptura em relação às questões tradicionais da teologia e à sua forma de
abordagem. Mais uma vez, essa maneira de fazer teologia não é institucional, no
sentido de não ser assumida oficialmente pelas igrejas. Desenvolve-se à margem e
por isso muitas vezes é difícil manter sua reprodução e crescimento, visto o caráter
assistemático em que se apresenta. Nesse sentido, talvez precisaríamos criar formas
de atuação mais organizadas para garantir uma vivência e uma teoria teológica que
acompanhe o avanço dos movimentos feministas. (grifos nossos)

Não obstante a observação de Ivone Gebara quanto a teologia feminista se


desenvolver à margem das instituições religiosas não seja o foco deste artigo, a passagem é
importante, pois menciona a articulação da teologia ao movimento feminista. Esta constatação
é que permite uma breve análise da aproximação da religião cristã aos feminismos, responsável
pela eclosão, no século XX, de mais um movimento que, em princípio, busca um caráter
emancipatório: o movimento feminista cristão.

2. FEMINISMOS E CRISTIANISMO: O DEBATE SOBRE OS DIREITOS DAS


MULHERES

A busca por emancipação por parte das mulheres cristãs se iniciou nos Estados
Unidos, no século XIX, onde surgiu uma das primeiras construções de uma interpretação
bíblica feminista. Elisabeth Cady Stanton publicou um projeto coletivo de revisão e

3 O fragmento é parte da entrevista de Maria José Rosado Nunes com Ivone Gebara, publicado na Revista de Estudos
Feministas. vol.14, n.1, Florianópolis, jan./abr. 2006.

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reinterpretação da Bíblia sob uma nova perspectiva, que ficou conhecido como The Woman's
Bible − A Bíblia da Mulher. Entretanto, justamente por visar afastar o caráter patriarcal das
interpretações bíblicas e se constituir como um instrumento de emancipação das mulheres, o
trabalho não se tornou popular devido ao seu viés político. (FIORENZA:1992,31-36)
Na América Latina, por sua vez, a reflexão teológica foi considerada como o segundo
momento da teologia, já que o primeiro plano da questão recairia sobre a vida social das
mulheres. (LÓPEZ, 85) Foi a Teologia da Libertação, preocupada com a libertação dos pobres
e oprimidos, a forma de interpretação bíblica que permitiu às mulheres a participação na
construção do conhecimento e do discurso no âmbito religioso, a partir de suas próprias
experiências. (AQUINO:1997,11) Diante desta possibilidade, houve uma produção teológica
feminista de acordo com as particulares das mulheres, incluindo mulheres negras e indígenas
latino-americanas.
Essa nova perspectiva de compreensão do divino, que é criada por mulheres e se
destina a elas, se justifica no fato de que,

As mulheres das diferentes esferas de vida e de trabalho necessitam uma das outras
para celebrar sua fé, reforçar sua luta, redescobrir ou, se for o caso, rejeitar tradições
cristãs. Quer dizer, a teologia feminista tanto é expressão como porta-voz deste
movimento de mulheres no cristianismo e em outras religiões em busca de superar o
patriarcado. É ruptura e saída a um só tempo. (GOSSMANN: 1997, 505)

Como resultado não só desse pensamento, mas também desse engajamento, é que se
faz necessário demonstrar, brevemente, a história e a atuação de dois grupos presentes no
contexto social e político brasileiro: o Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) e o Evangélicas
pela Igualdade de Gênero (EIG). Tais movimentos, opondo-se a assimetria sócio-eclesial
sustentada, ao longo dos séculos, pelas doutrinas religiosas cristãs, militam em prol da
autonomia, da garantia de direitos e da emancipação das mulheres.

2.1. CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR (CDD)

O grupo Católicas pelo Direito de Decidir (Catholics For a Free Choice - CFFC)
surge, inicialmente, nos Estados Unidos, na década de 1970. Anos mais tarde, em 1990, seus
ideais serão recepcionados por alguns países da América Latina. Em qualquer dos casos, é um
movimento que se caracteriza como católico, mas que se contrapõe aos ensinamentos clericais
tradicionais, fundamentando os seus posicionamentos com argumentos feministas.

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No Brasil, a organização não governamental Católicas pelo Direito de Decidir


(CDD/BR) foi fundada em 1993, sendo composta por pesquisadoras e pesquisadores da
academia, operadoras e operadores do Direito e por fiéis de forma geral.4 Além disso, integra a
Rede Latino-americana de Católicas pelo Direito de Decidir, criada em 1996, que se articula
por mais onze países.5 A Rede, atuando a partir da teologia feminista, luta contra as injustiças
sociais na América Latina e no Caribe e é responsável por difundir argumentos que
fundamentam o direito de decidir, a liberdade de consciência e o reconhecimento da diferença,
todos em prol da autonomia feminina.
No contexto brasileiro, a ONG tem como enfoque promover transformações sociais,
no que diz respeito a desconstrução de padrões culturais e religiosos. Para tanto, tem como
objetivos específicos contribuir para a promoção da justiça social, a garantia de uma vida sem
violência, o diálogo interreligioso e, por fim, assegurar a implementação de leis e políticas
públicas necessárias ao desenvolvimento das mulheres, em sua interseccionalidade com as
questões de raça, classe, geração, orientação e identidade sexuais.
Além disso, as Católicas, assim como muitas teóricas feministas, trabalham com a
ideia da maternidade como sendo invenção da modernidade. (GIDDENS:1993,53) Nesse caso,
opõem-se aos discursos religiosos que condenam a atribuição de uma natureza própria às
mulheres, cuja essência é a maternidade, bem como o exercício livre da sexualidade. Importante
destacar que, a socióloga e uma das fundadoras da CDD/BR, Maria José Rosado Nunes,
questiona o sentido materno imposto as mulheres católicas, tendo em vista que se não forem
mães biológicas, poderão − e deverão − cumprir o seu papel sendo mães espirituais.6
Ademais, cumpre destacar que contrapondo-se a moral sexual católica, ressaltam a
contribuição dos feminismos que retiraram a discussão dos direitos sexuais e reprodutivos do
campo da moral e os colocaram no campo dos direitos. Seguindo esta influência e, entendendo
que a possibilidade de interrupção da gravidez é tema controverso dentro da igreja católica7, a
organização defende o aborto, de forma legal e segura. Na realidade, defende-se o direito ao

4 Todas as informações mencionadas estão disponíveis nos seguintes sítios eletrônicos: <http://catolicas.org.br/> e <
https://www.facebook.com/catolicasdireitodecidir/?fref=mentions>.
5 A Rede se articula nos seguintes países: Argentina, Chile, Colômbia, Chile, Equador, Espanha, El Salvador, Nicarágua, México,

Paraguai e Perú.
6
Esta crítica foi levantada numa palestra sobre "Feminismo e Religião" que integra a série "O que querem as mulheres?", com
curadoria de Margareth Rago, e que está disponível na seguinte página eletrônica do programa Café Filosófico:
<https://www.youtube.com/watch?v=kFpLZC8tNS0 >
7
Somente no século XIX é que se afirma que o feto possui vida a partir da concepção.

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aborto, a livre escolha da mulher de decidir sobre o seu corpo, pois "o que está em jogo (...) é
precisamente a individualidade e a identidade da mulher". (COHEN: 2012 [1997],196)
Nesse sentido, como meio de difundir argumentos que sustentem os direitos e à
autonomia das mulheres, a organização disponibiliza em sua página eletrônica livros, artigos,
cartilhas, revistas e pesquisas de opinião pública.8 Os temas principais são sexualidade,
maternidade, aborto e planejamento familiar, que também são abordados e divulgados por
intermédio de peças publicitárias, vídeos e de rádios comunitárias. O objetivo é promover a
educação popular de homens e mulheres, no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos,
confrontando as convenções impostas pela moral sexual religiosa.
Por fim, tão importante quanto as atividades desenvolvidas pela CDD, tem sido
considerada a sua atuação no cenário político. Em setembro de 2017, por exemplo, comunicou
que fez o pedido de amicus curiae no âmbito da ADPF 442, em que se pede a descriminalização
do aborto até a 12ª semana da gestação. A ONG entende que o aborto é uma questão de saúde
pública, que afeta desproporcionalmente as mulheres, pois a que tem menos acesso a
informação e poder econômico, realizam o procedimento de forma clandestina, correndo risco
de vida.
E mais do que tratar o aborto como direito social e questionar as precárias condições
em que é praticado, fato que começa a ser denunciado pelas feministas brasileiras a partir da
década de 1990 (SCAVONE:2008, 676-677), a ONG defende os princípios da laicidade do
Estado. Indo de encontro a grupos religiosos conservadores, reafirmam a separação entre igreja
e Estado, para se poder dialogar sobre cidadania das mulheres, sem que políticas públicas e
propostas legislativas sejam pensadas em favor de um único credo religioso.
Observa-se, diante do exposto, que a associação das pautas dos movimentos
feministas com as demandas das mulheres cristãs católicas tem contribuído para reconstruir a
esfera pública religiosa e privada familiar, afirmando a autonomia individual das mulheres para
decidirem sobre todos os campos da sua vida e para buscarem emancipação de doutrinas
religiosas patriarcais. E quanto as mulheres protestantes? Quais são as contribuições dos
feminismos para as suas vivências? É o que se passa a expor, com base no grupo Evangélicas
pela Igualdade de Gênero.

8
O livro mais recente publicado é "Entre dogmas e direitos: religião e sexualidade" e está disponível para download no link que
segue: <http://catolicas.org.br/wp-content/uploads/2017/09/ENTRE-DOGMAS-E-DIREITOS_RELIGI%C3%83O-E-
SEXUALIDADE.pdf>.

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2.2. EVANGÉLICAS PELA IGUALDADE DE GÊNERO (EIG)

O grupo Evangélicas pela Igualdade de Gênero foi criado em maio de 2015, durante
o Fórum Pentecostal Latino-Caribenho, diante da necessidade de se discutir como se
operacionalizam as relações de gênero dentro da igreja. O objetivo geral é reunir mulheres
protestantes, pentecostais e neopentecostais, para compartilharem as vivências e experiências
de suas caminhadas cristãs. O eixo dos debates são as violências contra as mulheres, sejam elas
físicas ou simbólicas, praticadas tanto no espaço doméstico e de trabalho, quanto no âmbito da
igreja. Para este último ponto de análise, reivindicam-se voz e participação feminina no seio
religioso, em igualdade de condições com os homens.
Apesar da EIG só ter sido constituída em 2015, Valéria Cristina Vilhena, uma de suas
fundadoras, defendeu em 2009, sua dissertação de Mestrado intitulada "Pela Voz das Mulheres:
uma análise da violência doméstica entre mulheres evangélicas no Núcleo de Defesa e
Convivência da Mulher − Casa Sofia". Em sua investigação, ela desenvolveu um estudo que
relaciona gênero e religião. Sua motivação foi o campo de pesquisa, a Casa Sofia, projeto social
da igreja católica localizado na periferia de São Paulo, onde os dados revelaram que 40% das
mulheres atendidas se declaravam evangélicas. (VILHENA:2009, 90)
Não por acaso, a pauta norteadora da EIG seja a violência praticada contra as
mulheres, incluindo, a violência doméstica, justificada no dever de sujeição feminina ao homem
e reforçada pelos aconselhamentos dos líderes religiosos de que a mulher deve preservar o
matrimônio. No entanto, segundo Valéria, essa questão precisa ser tratada fora do âmbito
religioso, pois violência doméstica e familiar é crime e não há argumentos religiosos que o
podem contrapor:

(...) quando tratamos de direitos humanos, como é o caso do 'direito a ter uma vida
sem violência', entendemos que as teologias deveriam procurar rever suas bases
estruturais à não utilizarem bases sexistas e patriarcais que fortaleçam relações de
violência doméstica. (VILHENA: 2009, 125)

A dissertação foi o início de uma caminhada que rendeu como frutos as seguintes
obras: Uma Igreja sem Voz (2011), Evangélicas por sua Voz e Participação (2015) e Violências
de Gênero, Evangélicos (a)políticos e os Direitos Humanos (2015). A partir dos títulos do
livros, observa-se a tentativa de romper com o silenciamento das mulheres nos templos cristãos,

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demonstrando que "não são subalternas e que podem falar"9 e, além disso, que são sujeitas de
direito dentro e fora da igreja. Assim, busca-se um tratamento igualitário, sem hierarquias, nos
espaços religiosos.
A reivindicação pela extensão da liberdade e da igualdade às mulheres no âmbito
religioso é fruto da aproximação dos feminismos com a fé cristã. Sobre esse assunto,
questionada sobre a possibilidade de uma feminista se manter religiosa, Valéria Vilhena10
afirma que:

Muitas mulheres, jovens ou não, têm demonstrado que é possível continuar a ser
cristã, mesmo aderindo ao feminismo. Mesmo porque o movimento feminista é
composto por muitas linhas de pensamento feminista. É um movimento plural. Nem
todas as feministas convergem em todos os pontos. Há divergência. E isto só nos
enriquece, porque consegue responder a mais demandas sociais. Mas há um ponto
comum: a igualdade entre homens e mulheres. O olhar para além das diferenças
biológicas, ou seja, as diferenças biológicas não podem justificar injustiças,
violências, desigualdades de oportunidades. Nem tão pouco a bíblia pode ser base
para isso, porque é violento - toda desigualdade é violenta. O feminismo pauta-se
em direitos humanos, no resguardo da dignidade humana para homens e mulheres,
independentemente da diversidade humana que nos diferencia. O feminismo é forma
de luta política e a bíblia tem muitos textos que pautam por estas lutas pelos mais
pobres, os desfavorecidos, os injustiçados, as minorias. (grifos nossos)

A hermenêutica bíblica realizada por essas mulheres também parte de um viés


feminista, de modo que entre as evangélicas também se tem utilizado a teologia feminista. O
intuito é desconstruir a teologia patriarcal, ressignificando as escrituras. Afinal, para muitas
evangélicas, a bíblia não tem sido considerada como palavra de ordem divina, mas como
criação e interpretação de homens. Por esta e outras razões, algumas instituições religiosas já
praticam a ordenação pastoral feminina, o que não acontece no catolicismo − em que não há
papisa11.
Além disso, ressalta-se que as atividades e as discussões promovidas pela EIG podem
ser acessadas em duas páginas eletrônicas12, sendo uma delas em rede social, que já contém
cerca de 2.800 seguidoras e seguidores. Sobre esta última, merece destaque a nota oficial
publicada em 10 de novembro de 2017, convidando a todas as mulheres a participarem da

9
"Pode o subalterno falar?" é o título da obra de Gayatri Chakravorty Spivack, publicado pela Editora UFMG, em 2010.
10 Entrevista concedida por Valéria Cristina Vilhena a Edson Caldeira, do sítio eletrônico Metrópole de Brasília. A entrevista foi
publicada, em 30 de maio de 2017, na página eletrônica da EIG, sob o título "É possível alinhar a proposta feminista com o
evangelho?" e pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico: < https://mulhereseig.wordpress.com/2017/05/30/e-possivel-
alinhar-a-proposta-feminista-com-o-evangelho/>
11
Há quem defenda a existência da Papisa Joana, embora não se tenha relatos que confirmem o período histórico de seu papado.
12
As páginas eletrônicas são: < https://mulhereseig.wordpress.com/> e < https://www.facebook.com/mulhereseig/>.

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manifestação contra a aprovação da PEC nº 181/2015. Apelidada de "cavalo de tróia", a


proposta tinha como objetivo inicial aumentar a licença maternidade para mães de bebês
prematuros, mas foi alterada por um Deputado, incluindo a palavra "concepção" no texto que
modifica artigos da Constituição Federal de 1988, com o objetivo de que este momento marque
o início da vida. Assim, o aborto seria criminalizado em todos os casos, mesmo nos que já
possui permissão legal. 13
Segue um trecho da nota oficial14:

A PEC, apelidada de “Cavalo de Tróia” pelo movimento feminista, a princípio tinha


como tema aumentar o tempo de licença maternidade para mães de prematuros. Seria
um avanço nos direitos trabalhistas das mulheres, mas então abriram o Cavalo de
Tróia e o os inimigos estavam lá - 18 oportunistas, moralistas, conservadores e
hipócritas, achando-se no direito de votar ao que nomearam de “proteção do direito
à vida desde a concepção” e em nome de Deus. Por isso, como cristãs evangélicas e
feministas somaremos ao movimento das mulheres no ATO contra a PEC CAVALO
DE TRÓIA e ocuparemos as ruas! Em ato de resistência e muita indignação nos
reuniremos no dia 13/11, próxima segunda-feira, na Av. Paulista, no MASP junto
às Católicas Direito de Decidir, Feministas Cristãs e a Frente Feminista de
Esquerda, em apoio a todos os movimentos presentes! A descriminalização e a
legalização do aborto – passando a ser tratado como questão de saúde pública NÃO
obrigará quem crê ser pecado abortar. Mas impedirá que mulheres que não creem
desta maneira ou estão em situações muito difíceis, sem apoio de familiares, já com
muitos filhos, empobrecidas, abandonadas (maioria dos casos) e que, com muita dor
decidem abortar, NÃO morram por isso. (grifos nossos)

Diante desse fragmento, pode-se constatar que as mulheres cristãs, de forma geral, se
posicionam e se declaram feministas, a fim de lutar pela efetivação dos direitos das mulheres.
Nesse caso, tanto católicas, quanto evangélicas têm somado forças para juntas defenderem o
direito de decidir, independente de qualquer postura conservadora que, não só os parlamentares,
mas também elas mesmas possam vir a ter, no tocante a interrupção da gravidez.
Portanto, observa-se que as mulheres evangélicas não só tem lutado por liberdade e
igualdade, mas também tem buscado uma ruptura com o paradigma masculino, que cerceia
todo e qualquer sentido emancipador insistentemente almejado por elas. E isso tem se
expandido, tal como já realizado há muitos séculos por feministas não religiosas, ao espaço

13 BOLDRINI, Angela. Comissão da Câmara aprova regras mais duras sobre o aborto no país. Folha, Brasília, 08 nov. 2017.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1933899-comissao-da-camara-aprova-regras-mais-duras-
para-aborto-no-pais.shtml> Acesso: 10 nov. 2017.
14 Nota publicada em 10 nov. 2017, podendo ser acessada na rede social Facebook a partir do seguinte link: <

https://www.facebook.com/pg/mulhereseig/posts/?ref=page_internal>

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público, político. São mulheres que, independente de estarem ou não "desigrejadas"15, mantém
a sua religião na esfera privada, e buscam desconstruir uma mentalidade sexista e conservadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto e, após as contribuições do debate no Grupo de Trabalho


"Sexualidade, Democracia e Poder", observa-se que, refletindo sobre a interação entre o eu e o
mundo social, as mulheres cristãs têm reconhecido o caráter arbitrário das normas impostas por
figuras masculinas dominantes em diferentes estruturas sociais, incluindo o contexto religioso.
Esta consciência, como demonstrado, é resultado da influência dos feminismos entre as
mulheres católicas e protestantes (pentecostais e neopentecostais).
Essa influência se faz sentir na busca por liberdade e igualdade, ao mesmo tempo em
que se requer o reconhecimento da diferença, sem a hierarquização entre os gêneros. Nesse
sentido, sob o ponto da teologia feminista, as católicas lutam pela autonomia das mulheres,
principalmente, no tocante ao exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. E as
protestantes, por sua vez, reivindicam voz e participação na igreja, denunciando o silenciamento
da mulher, inclusive, no âmbito familiar, onde doutrinas religiosas são acusadas de sustentar
relações de violência doméstica.
Entretanto, para alcançarem um sentido emancipatório por meio de uma teologia que
se propõe feminista, esses movimentos de mulheres cristãs precisariam gerar uma falibilidade
e uma reflexividade sobre os discursos religiosos. Mesmo porque, quando as instituições
religiosas se colocam no espaço público para debater, elas se reconhecem como um espaço
humano − e não divino − de discussão. É preciso analisar, sob a perspectiva da teoria política
feminista, se o conteúdo valorativo cristão é condizente com os parâmetros da modernidade
que, nesse caso, independem da religiosidade.
Ao que tudo indica, a teoria política feminista pode fornecer um caminho para que os
novos pressupostos cristãos sejam recepcionados. Além disso, é por este meio que poderá ser
observado se, mesmo mantendo a religião na esfera privada, essas mulheres conseguem a
preservação e a garantia de seus direitos, na esfera pública, pautada na liberdade e no tratamento
igualitário. Somente assim se compreenderá se esse movimento feminista cristão pode ser

15
Expressão que caracteriza quem mantém o exercício da fé, ainda que não mantenha vínculos com nenhuma instituição religiosa
específica. Algumas observações empíricas, que não são alvo desse artigo, mostram que muitas mulheres se declaram evangélicas,
mas não pertencem a denominações cristãs.

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considerado, de fato, um movimento feminista ou se que o tem sido produzido é uma adaptação
religiosa do discurso feminista.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Maria Pilar. A teologia, a Igreja e a Mulher na América Latina. Tradução de Rodrigo Contrera. São
Paulo: Paulinas, 1997.

BOLDRINI, Angela. Comissão da Câmara aprova regras mais duras sobre o aborto no país. Folha, Brasília, 08
nov. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1933899-comissao-da-camara-
aprova-regras-mais-duras-para-aborto-no-pais.shtml> Acesso: 10 nov. 2017.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de La domination masculine por Maria Helena Kuhner.
2ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar.
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CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR. Disponível em: <http://catolicas.org.br/> Acesso em: 20 out. 2017.

COHEN, Jean L. Repensando a privacidade: autonomia, identidade e a controvérsia sobre o aborto. Revista
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830
Grupo de Trabalho 12

ENSINO JURÍDICO,
FACULDADES DE DIREITO E
FORMAÇÃO PROFISSIONAL

dcccxxxi
A ARTE DE ENSINAR DIREITO TRIBUTÁRIO

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF

RESUMO

Este artigo trata da experiência da Professora Elizabete Rosa de Mello, que ministrou aulas de Direito
Tributário, Coordenou Cursos de Pós-graduação Lato sensu por mais de quinze anos em instituições
públicas e particulares, demonstrando ser possível desmistificar os conteúdos de uma disciplina que,
geralmente, não tem muita aceitação entre os alunos. O artigo sugere metodologias, procedimentos e
recomendações para chegar a ter resultados satisfatórios de aprendizagem, detectados por diversas
formas de avaliação. Para ensinar é necessário primeiro ter conhecimento, metodologias adequadas e
requisitos de ordem subjetiva e objetiva. Tudo isso pode ser apreendido, não somente para ensinar
Disciplinas que tratam do Direito Tributário, como também para outras, já que ensinar é uma arte
interdisciplinar de constante transformação.

Palavras-chave. Direito Tributário. Metodologias. Ensino aprendizagem.

ABSTRACT

This paper discusses the experience of lecturer Elizabete Rosa de Mello, who has taught Tax Law for
over ten years in public and private institutions, demonstrating that it is possible to demystify the content
of a discipline which is usually not very popular among university students. The article suggests
methodologies, procedures and recommendations for achieving satisfactory learning outcomes, prover
by various means of evaluation. Successful teaching requires knowledge of the subject, appropriate
methodology as well as subjective and objective requisites. All this can be learned, not only for subjects
dealing with Tax Law, but also for others, since teaching is an interdisciplinary art of constant
transformation.

Keywords. Tax Law. Methodologies. Education learning.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Poucos professores e alunos interessam por disciplinas que envolvem o Direito


Tributário, devido ao fato de não conhecerem seu conteúdo ou não perceberem sua inter-relação
com outras disciplinas e sua compatibilização entre teoria e prática.
Este artigo trata de sugestões de como deve ser o ensino do Direito Tributário, sobre
a necessidade de conhecer seu conteúdo para poder ensiná-lo, sua interdisplinariedade com
outras disciplinas e outras áreas, e de metodologias que possam servir de alicerce ao ensino
aprendizagem.
Alguns procedimentos e requisitos também serão sugeridos com o intuito de
qualificar o docente, e algumas formas de avaliação serão explicadas, tudo baseado em
atividades empíricas realizadas pela autora deste artigo que, por mais de quinze anos foram
aceitas em instituições públicas e particulares, onde coordenou cursos e ministrou aulas e,
também, recebeu elogios e prêmios por adotar metodologias diferenciadas.

1. O ENSINO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Ensinar é uma dádiva, saber o conteúdo de um tema de Direito e transformá-lo em


algo entendível aos alunos, é uma arte, que pode ser apreendida.
Ensinar disciplinas que tratam do Direito Tributário, como Legislação Tributária,
Introdução ao Estudo do Direito Tributário, Direito Financeiro e Tributário, Direito Tributário
Internacional, Direito Tributário Ambiental ou, simplesmente, Direito Tributário, por mais de
quinze anos em várias Universidades, públicas e privadas foi mais do que um mister, não foi
fácil, demandou e ainda demanda muita dedicação, já que primeiro aprende-se a entender o
conteúdo, interpretando-o, depois aprende-se a ensiná-lo para alunos de diversas faixas etárias,
classes sociais e de diferentes níveis, oriundos ou não das cotas sociais e raciais e, por último,
aprende-se a avaliar o aluno.
Como ensinar uma Disciplina que os alunos, geralmente, não têm empatia, na verdade
têm aversão?
O primeiro passo é desmistificar a disciplina, trazê-la para realidade dos alunos, para
seu cotidiano, com exemplos e casos concretos vivenciados na advocacia ou que são tratados
pelos Tribunais, pela mídia; jornais, boletins, revistas, por meio da internet e outros.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O segundo passo é demonstrar que o Direito Tributário, apesar de ser positivista, deve
ser humanizado. A humanização do direito vai além da subsunção do fato à norma,o aluno
deve estar consciente dos fundamentos, formação e evolução do Direito Tributário,
para poder compreendê-lo e entender o Sistema Tributário Brasileiro.
Ser docente é tratar o conteúdo aparentemente difícil em algo de fácil assimilação por
qualquer um, mas, principalmente, pelos próprios alunos, é ser didático. Todavia, não é só
transmitir o conhecimento de forma simplista e planejada, é ajudar o aluno a entender o que
está sendo tratado de forma crítica.
A metodologia de ensino deve ser apreendida e utilizada pelo docente, e pode ser
conservadora ou inovadora, o que será tratado posteriormente no item 3 deste artigo.

2. CONHECIMENTO PARA ENSINAR

O conhecimento do conteúdo que se pretende ensinar, deve ser bem planejado, de


acordo com o Plano de Ensino, com seu conteúdo programático, bibliografia e métodos pré-
estabelecidos pela instituição onde se oferece a Disciplina de Direito Tributário. Isso não
significa que o docente não possa inovar, já que possui liberdade de cátedra.
Para cada aula é necessário buscar o entendimento de vários autores sobre o tema e,
inclusive da jurisprudência, e dos verbetes e informativos dos Tribunais Superiores. Na área do
Direito Tributário, a doutrina interpreta a legislação da forma que considera correta e o aluno
também pode interpretá-la de outras maneiras, dependerá de como o docente irá informar o
conteúdo, não como verdade absoluta, por existir a liberdade de interpretação no nosso Estado
Democrático de Direito.
O bom docente nunca deve parar de estudar para ensinar. Fazer cursos de atualização,
especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado é uma obrigação de quem ensina, só
aprende a ensinar quem aprende a aprender.
Discutir o que se estuda é fundamental, para isso, participar de Congressos,
Seminários, de reuniões em Institutos e Associações, de Grupos de Pesquisa e de Estudos é
relevante para o docente, para poder esclarecer e debater temas complexos com seus pares e
seus discentes.

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2.1. INTERDISCIPLINARIDADE DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Ensinar Direito Tributário sem relacioná-lo com outros ramos e áreas é afastá-lo da
realidade jurídica e social.
Geralmente as disciplinas relacionadas ao Direito Tributário como Legislação
Tributária, Introdução ao Estudo do Direito Tributário, Direito Financeiro e Tributário, Direito
Tributário Internacional, Direito Tributário Ambiental ou, simplesmente, Direito Tributário são
ministradas nos últimos períodos da Faculdade por ser uma disciplina de caráter profissional,
de especialização e, muitas vezes, não são relacionadas com os demais ramos e áreas do Direito,
fazendo com que a aluno imagine ser uma disciplina totalmente nova, o que é um grave engano,
por termos disciplinada a tributação no Brasil desde a Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil de 1891 e, atualmente, pela Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 e pelo Código Tributário Nacional de 1966.
O Direito Tributário inter-relaciona com todas outras áreas do Direito, a saber: com o
Direito Constitucional, que é a base de sua fundamentação, por estar o Sistema Tributário
Nacional disciplinado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; com o
Direito Financeiro por ser o tributo a principal fonte de receita orçamentária do Poder Público;
com o Direito Administrativo por serem atos administrativos os atos tributários praticados pelos
agentes fiscais, considerados como servidores públicos; com o Direito Empresarial diante teoria
das sociedades empresariais e títulos de crédito, que em suas relações jurídicas incidem
variados tributos; com o Direto do Trabalho pela tributação retida na fonte empregadora; com
o Direito Previdenciário diante do pagamento das contribuições previdenciárias; com o Direito
Penal perante os crimes contra a ordem tributária; com o Direito Processual para viabilizar
concretamente o direito material tributário; com o Direito Civil diante do disposto no artigo 110
do Código Tributário Nacional(CTN) no sentido de que podemos utilizar conceitos de direito
privado, como alguns conceitos do Direito Civil, como propriedade, inventário, casamento e
outros, sem alterar sua definição, evidentemente, porque conceitos milenares não devem ser
afastados pela CTN instituído em 1966; com o Direito Ambiental por utilizar a tributação na
sua função extrafiscal como forma de educação e de proteção do meio ambiente; com o Direito
Imobiliário diante de toda transação imobiliária estar sujeita a tributação, exceto às protegidas
pelos benefícios fiscais, como imunidade, isenção, anistia, moratória e remissão, finalmente,
com o Direito Internacional perante a tributação internacional, tributos sobre o comércio

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exterior, repatriação de bens e valores encaminhados indevidamente para o exterior, preços de


transferência, e Tratados e Convênios Internacionais.
Ainda, o Direito Tributário relaciona-se com a Ética já que os agentes fiscais devem
pautar suas condutas na boa-fé objetiva, conduta socialmente recomendada; com a
Antropologia, na medida em que ao estudar o homem, pode-se tratar de fundamentos de
igualdade e de mínimo existencial para afastar a tributação em determinadas localidades do
país; com a Sociologia, para interpretar as leis tributarias num viés macro, entre a coletividade
e o Estado, como por exemplo, a influencia que causaria uma isenção geral para um Município
que não pode deixar de arrecadar o IPTU (imposto sobre a propriedade territorial urbana); com
a Economia por estar o déficit e superávit de um país relacionados à tributação nacional e
internacional; com a Deontologia Jurídica e com a Filosofia, já que primeira é parte da segunda,
no sentido de tratar a finalidade social que se tem com arrecadação de determinados tributos.
Enfim, percebe-se que o Direito Tributário não é uno, isolado, ele necessita ser
estudado e inter-relacionado com outras disciplinas e com a realidade social.

3. METODOLOGIAS PARA ENSINAR

No decorrer das aulas, o uso de metodologia adequada para o conteúdo a ser


ministrado é de extrema importância e irá fazer a diferença entre ensinar bem ou mal.
O ensino jurídico tradicional, segundo Álvaro Melo Filho (1976. p. 11) “[...]
repousava na aula magistral expositiva em que o mestre explicava o Direito a um auditório
passivo. Toda a pedagogia era centrada na ação unilateral do magister dixet”. O que ainda é
praticado por muitos docentes, considerada como metodologia conservadora.
A metodologia inovadora não significa que está sendo criada pela primeira vez, mas
no sentido de afastar do ensino a aula somente expositiva sem a participação do aluno, passando
a dar ênfase na participação dos discentes por meio da aula dialogada, unindo teoria e prática,
o que já vem sendo estudado desde 1976, em matéria tributária, pelo mencionado autor Álvaro
Melo Filho (1976).
A metodologia inovadora defendida neste artigo, baseia-se no ensino teórico-prático
com a participação efetiva dos alunos, é possível unir teoria com a prática, por meio da aula
dialogada, sempre desenvolvendo nos discentes o saber-pensar e interpretar, que para Álvaro
Melo Filho (1976. p. 15) significa:

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[...] Na sociedade tecnológica não se deve perder de vista a concomitância desses


dois objetivos, exigindo que o ensino do Direito seja, a um só tempo, suficientemente
teórico, para insuflar, no discente, o conhecimento geral da ciência jurídica, o
sentimento do Direito e aquela dose de idealismo e de ética, indispensável àqueles
que militarão no exercício diário da profissão, e o suficientemente prático para que o
bacharel, ao findar seu curso de Direito, não se sinta estonteado e incapaz ante as
dificuldades que tem de enfrentar na vida forense e na advocacia preventiva.

A aula dialogada propicia ao docente a aprender a lidar com a tensão entre a palavra
e o silêncio, e ao discente a fazer perguntas, que segundo Paulo Freire (1989. p. 2-3):

[...] Se alguém como educador não resolve bem esta tensão, pode ser que sua palavra
termine por sugerir o silêncio permanente dos educandos.
Se não sei escutar os educandos e não me exponho a palavra deles, termino
discursando “para” eles. Falar e discursar “para” termina sempre em falar “sobre”,
que necessariamente significa “contra”.
Viver esta experiência de tensão da palavra e o silêncio não é fácil. Exige muito de
nós.
Temos de aprender algumas questões básicas, como estas, por exemplo: não existe
pergunta boba nem resposta definitiva.
A necessidade de perguntar é parte da natureza do homem. A ordem animal foi
dominando o mundo fazendo-se homem e mulher sobre o alicerce de perguntar a
perguntar-se.
É preciso que o educador testemunhe aos educandos o gosto pela pergunta e o
respeito à pergunta.
[...] É necessário desenvolver a pedagogia da pergunta, porque o que sempre
estamos escutando é uma pedagogia da contestação, da resposta. De maneira
geral, nós professores, respondemos a perguntas que os alunos não fizeram.

Incentivar os alunos a formular perguntas é o primeiro caminho, elogiar é fundamental


para que continuem perguntado, das perguntas sobrevém novas perguntas que poderão ser
respondidas pelo docente ou novamente perguntadas aos alunos na forma de questão de desafio,
um dos métodos que serão abordados no próximo item deste artigo.
Como no Direito Tributário há uma constante mudança na legislação, diante da
quantidade de tributos existentes no Brasil, o docente deve utilizar de métodos e instrumentos
necessários a melhor aprendizagem do aluno, na medida em que não basta somente conhecer a
legislação atual, o discente deve entendê-la para saber critica-la, e quem sabe altera-la, por meio
de sugestões de projetos de lei, ou de interpretações de acordo com os princípios ou em
conformidade com a Constituição Brasileira.
Pode-se citar o uso de mapa mental ou conceitual, de tabelas comparativas, de roteiros
de aulas, de filmes, de noticiários, de questões de desafio e de casos concretos, instrumentos a
serem utilizados na aula dialogada para buscar sempre interagir a teoria com a prática.

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O mapa mental ou conceitual servirá como uma forma de sintetizar o conteúdo,


apresentando ao aluno: do todo, para depois ele entender cada parte, a seguir apresenta-se um
exemplo de mapa mental, sobre a ação de execução fiscal, o qual deverá ser complementado
pelos alunos e docente no decorrer da exposição da aula:

Fonte: Mapa Mental elaborado pela autora desse artigo.

As tabelas comparativas, por exemplo, sobre os tributos visam trazer informações


essenciais como os dispositivos constitucionais e legais, o conceito de cada tributo,
características, fato gerador, contribuinte ou responsável e benefícios fiscais. Outro exemplo é
a tabela comparativa entre decadência e prescrição, institutos que os alunos confundem em
qualquer área do Direito, demonstrando suas semelhanças e diferenças.
Os roteiros de aulas são direcionamentos para o estudo do aluno sobre o conteúdo do
Plano de Aula que será ministrado. Ao final de cada aula, no mesmo dia em que for ministrada
a aula, o docente encaminha ao aluno o roteiro correspondente por meio eletrônico, o que faz
com que, o aluno sinta-se prestigiado, fazendo parte do processo ensino-aprendizagem. O
docente também poderá colocar o roteiro, semanalmente, na página do facebook, abrindo um
Grupo de Estudos de Direito Tributário, uma vez que é notório que a maioria dos alunos acessa
o facebook, que também pode ser utilizado como instrumento de acesso ao conhecimento e à
aprendizagem, com a criação desse grupo o professor poderá incluir notícias dos Tribunais,
alterações legislativas e benefícios fiscais relacionados ao Direito Tributário.

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Em cada roteiro é necessário que seja colocada uma advertência no sentido de que a
simples leitura do roteiro não substitui a bibliografia indicada ao final, no próprio roteiro.
Nenhum roteiro, tabela, mapas substituem livros que contribuirão para análise crítica do
conteúdo a ser ministrado, apenas ajudarão nos estudos.
Apresentações de filmes, noticiários demonstrando o direito vivo, como a apreensão
de mercadorias e bens pertencentes a contribuinte que não efetuaram o pagamento de tributos,
nos portos e aeroportos, realizada por fiscais da Receita Federal, demonstra que o conteúdo
tratado em aula está mais perto da realidade do discente do que ele imagina.
O incentivo aos alunos para responderem questões de desafios e casos concretos, não
se trata de “obrigar” o discente a escreve algo, mas oportuniza-lo a pensar e interpretar,
mostrando que pesquisar, aplicar e concluir é mais importante do que decorar um instituto para
passar em uma prova.
Aqui, temos duas metodologias diferenciadas: a do caso concreto (AMARAL, 2011.
p. 39) e a da questão de desafio, para esta última devem ser observados os seguintes
procedimentos: o docente ministra a aula e diante de um assunto que ele ainda irá tratar, ele faz
um questionamento aos alunos solicitando para eles pesquisarem e trazerem a resposta para a
próxima aula, a maioria dos alunos se sentem desafiados a acertarem e, trazem de forma escrita
a resposta, o docente rubrica e devolve para o aluno antes de respondê-la, e na data da prova o
aluno entrega todas as questões respondidas para que seja atribuída a pontuação acordada entre
docente e discente no início do período letivo.
A questão de desafio deve gerar no aluno uma necessidade de pesquisar, para que o
discente não venha de plano com a resposta, para obtê-la terá de pesquisar a legislação, doutrina
e jurisprudência. O docente deverá sempre informar o tema relacionado à questão de desafio,
como no exemplo abaixo:

TEMA: SUPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO


QUESTÃO DE DESAFIO:
Para o contribuinte, pessoa física ou jurídica, recorrer na esfera administrativa ele
deve depositar 30% do valor do crédito tributário?
Responda de forma fundamentada informando o atual entendimento do STF.

Na metodologia do caso concreto refere-se ao conteúdo extraído dos julgados dos


tribunais brasileiros na forma de questão a ser elaborada pelo docente e, a cada aula o discente
entrega ao professor as respostas, que são rubricadas pelo docente e devolvida ao discente. O
aluno recebe pontuação pela tempestividade, por ter feito a tarefa no dia que foi determinado e

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pontuação pela correção do docente de todos os casos concretos, fazendo com que o aluno
assista às aulas e corrija as respostas dos casos concretos e, principalmente, opine a respeito das
respostas de outros colegas e traga sua contribuição, na medida em que reflete sobre vários
temas tributários.
Tanto na metodologia da questão de desafio, como na do caso concreto, nem sempre
a maioria dos alunos consegue chegar à resposta correta, ou porque não tentaram com
dedicação ou porque não conseguiram mesmo por falta de hábito ou de conhecimento de como
e onde pesquisar. A resposta é construída com a participação dos alunos, depois o docente
explica como chegou àquela conclusão e onde deveria pesquisar, que tipos de expressões foram
utilizadas para a pesquisa, em quais sites, livros e revistas jurídicas o tema está sendo abordado.
Todavia, o mais importante é que foi desenvolvido o senso crítico do aluno, sua argumentação,
essencial não somente para o aluno enquanto estudante de direito, mas para depois que obtiver
o título de bacharel ou ter êxito no concurso da prova da OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil), enfim como profissional do direito.
Para ilustrar a metodologia do caso concreto, apresentamos a seguir um caso concreto
como exemplo do que foi tratado:

TEMA: SUJEIÇÃO ATIVA E PASSIVA


CASO CONCRETO:
Em contrato de locação de imóvel, localizado na zona urbana do Município de Juiz
de Fora, ficou pactuado entre locador, locatário e a empresa administradora do
imóvel que o locatário assumiria todos os encargos incidentes sobre o imóvel,
fincando a empresa responsável pela administração e fiel execução de toas as
cláusulas contratuais, que exigissem a sua interveniência. Considerando-se que o
locador é o proprietário do imóvel, responda de forma fundamentada:
a) Em caso de inadimplemento do IPTU, de quem o Município de Juiz de Fora
deverá cobrar o imposto?
b) O locatário é parte legítima para impugnar o lançamento deste imposto, caso ele
não concorde com o seu valor?
Responda de forma fundamentada informando o entendimento majoritário do STJ.

O caso concreto ajuda o aluno a relacionar teoria com a prática, que na visão de Paulo
Freire (1989. p. 6-7) é uma das principais virtudes do educador:

[...] Outra virtude é a de viver intensamente a relação profunda entre a prática e a


teoria, não como superposição, mas como unidade contraditória. Viver esta relação
de tal maneira que a prática não possa prescindir da teoria.
Temos de pensar a prática para, teoricamente, poder melhorar a prática.
Fazer isto, demanda enorme seriedade, uma grande rigorosidade (e não
superficialidade). Exige estudo, criação de uma disciplina séria.
Pensar que tudo que é teórico é mal, é algo absurdo, é absolutamente falso.
[...]

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Não há porque negar o papel fundamental da teoria.


Entretanto, a teoria deixa de ter qualquer repercussão se não existir uma prática que
a motive.

Ainda Paulo Freire (1989. p. 8) entende que “[...] toda a leitura de texto pressupõe
uma rigorosa leitura do contexto”, independente do grau de instrução dos educandos é
necessária a experiência indispensável de ler a realidade sem ler as palavras. Para que inclusive,
se possa entender as palavras”.
Assim, o docente ao levar para a sala de aula uma cópia de uma certidão de inscrição
de dívida ativa eivada de vícios, retirada de um processo de uma ação de execução fiscal, deverá
informar ao aluno o contexto daquela certidão, oriunda de qual Município e em qual ano foi
inscrita. Com estas informações o aluno poderá identificar o que está disposto no artigo 202 e
parágrafo único do Código Tributário Nacional (requisitos da certidão de inscrição em dívida
ativa), com a cópia da certidão que está em suas mãos. O discente presenciará o direito vivo,
identificando quais falhas ocorreram em um processo com uma certidão nula, que durante
muitos anos tramitou e por fim, foi julgado o pedido sem o julgamento do mérito, causando
prejuízo para às partes, de tempo e de investimento, por não ter o aplicador do direito observado
a teoria com a prática.
Depois do término de um curso, seja de Graduação ou Pós-graduação, o aluno seguirá
sozinho. E como trabalhar sozinho? Somente sabendo pesquisar. E como saber pesquisar se
não aprendeu a fazê-lo? O docente deve ensinar o aluno a pesquisar e orientá-lo a desenvolver
suas respostas nos seguintes pilares: legislação, princípios, jurisprudência e doutrina e,
preferencialmente, nesta ordem. Evidentemente, a opinião do aluno deve ser explicitada, afinal
ele pode inovar, concordar ou discordar com o que vem sendo tratado a respeito do Sistema
Tributário brasileiro.

4. REQUISITOS PARA SER UM BOM DOCENTE

Não basta aplicar determinada metodologia para ser um bom docente, a metodologia
é o instrumento que não deve somente ser aplicado, deve ser bem aplicado, este é um dos
requisitos objetivos sugeridos.
Um bom docente ajuda o aluno a pensar e a interpretar determinada lei ou instituto
jurídico e fatos, segundo o autor Eros Roberto Grau (2005, p. 71):

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Praticamos a interpretação do direito não – ou não apenas – porque a linguagem


jurídica é ambígua e imprecisa, mas porque, [...] interpretação e aplicação do direito
são uma só operação, de modo que interpretamos para aplicar o direito, e ao fazê-lo,
não nos limitados a interpretar (=compreender) os textos normativos, mas também
compreendemos (= interpretamos) os fatos.
O intérprete autêntico procede à interpretação dos textos normativos e,
concomitantemente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os acontecimentos que
compõem o caso apresentam vai também pesar de maneira incisiva na produção
da(s) norma(s) aplicável (veis) ao caso.

Outro requisito objetivo é a quantidade de conhecimento, não basta apenas ministrar


o conteúdo determinado no Plano de Aula, deve ser tratado com qualidade, envolvendo sempre
a legislação, jurisprudência e doutrina atuais, não se esquecendo de mencionar os clássicos do
Direito Tributário, cada qual no seu contexto social. Muitos alunos dizem que alguns
professores sabem muito, mas não conseguem entender o que o docente quis dizer ao tratar de
determinado assunto jurídico, por isso, insistimos, a metodologia é essencial para tornar o
conteúdo que aparentemente é complicado em algo de fácil entendimento.
A metodologia de ensino deve ser estudada anteriormente à aula, quando o docente
prepara a aula, de forma concomitante no decorrer da aula e, posteriormente, quando avalia
seus alunos.
Os requisitos de ordem subjetiva são os que dependem da conduta do profissional da
educação, do docente, estamos na era da Humanização do Direito, não basta o docente somente
chegar à sala de aula e dizer onde parou com a matéria, primeiro que ele deveria ter anotado
para não fazer este tipo de pergunta. Deve antes de iniciar a aula, tratar seus alunos com
urbanidade, cumprimentando-os, perguntando se estão bem, demonstrando que está ali porque
gosta de ensinar e importa-se com a aprendizagem dos alunos, porque são os seus alunos.
Outros requisitos de ordem subjetiva são facilmente identificáveis, como a
pontualidade e a assiduidade, que são qualidades imprescindíveis para qualquer profissional, a
pontualidade não deve ser medida apenas por meio de um ponto eletrônico, o que adianta um
docente usar o ponto eletrônico e demorar a adentrar na sala de aula, ou estar em sala de aula
sem sequer tratar do conteúdo programático e da metodologia? Ser pontual é chegar com
antecedência para ministrar a aula mas, além disso, é iniciar a aula no horário programado, os
alunos vão se adaptando a chegar no horário programado e também encerrar a aula no horário,
já que os discentes poderão ter outras aulas e outras atividades.
A assiduidade é também necessária, um docente ausente não interessa ao aluno,
mesmo que ele seja o melhor dos professores, sem estar com os alunos não adiantará nada. As

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faltas frequentes são sinônimas de ausência de comprometimento com a turma e consigo, já


que o docente deve ensinar o conteúdo proposto pela Faculdade.
Outro aspecto relevante é a postura do docente, que se traduz desde sua vestimenta,
seu linguajar e suas críticas em relação à instituição onde ensina. O docente é uma imagem
modelo para o aluno, ir para sala de aula de tênis de corrida e camiseta, como se estivesse indo
fazer um lazer ou produzido(a) como se estivesse indo para uma festa, ou sentar em cima de
uma mesa de qualquer jeito, não convém. O professor que pretende se aproximar dos alunos
falando gírias apenas os incentivam a continuar com este linguajar, o que para a carreira jurídica
é inapropriado. Nossa língua portuguesa deve ser correta, polida, formal em qualquer matéria
que se pretenda ensinar, para evitar interpretações incorretas.
Criticar de forma negativa a instituição onde se ministra aulas além de ser antiético é
desagradável, existem formas de fazer isso, até mesmo sem que o docente necessite ser
identificado, como por meio de caixas de sugestões ou diretamente perante às Coordenações
de Cursos. O docente sempre deve zelar estritamente pela aprendizagem do aluno, esta é uma
de suas atribuições determinada pelo artigo 13, inciso III da Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de
1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Portal do MEC, 2014).
As tarefas extracurriculares dos professores, como o preenchimento das pautas com
os lançamentos de todas e frequências, não é uma exigência somente da instituição de ensino
onde se ministra as aulas, é também do MEC, além de ser essencial para o aluno acompanhar
sua vida acadêmica.
Nas instituições públicas o docente deve se preocupar não somente com ensino, mas
também com pesquisa e extensão, mas não deve esquecer de seus alunos graduandos, que são
sua razão de ser, sem eles ficará inviável pesquisa e extensão. Ministrar uma boa aula,
melhor, uma excelente aula, dependerá de muito planejamento, dedicação, estudo e
metodologias de ensino para chegar ao objetivo final: educar seus alunos para a vida.
Um docente pode começar como um bom professor, mas poderá atingir ao status do
ótimo docente, para isso, deve ser entendido e compreendido por seus alunos, antes, durante e
depois das aulas.

843
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

5. AVALIAÇÃO

A cada semestre a avaliação dos discentes acaba sendo a pior parte do trabalho dos
docentes, muitos reclamam que devem corrigir provas de diversas turmas e acabam passando
madrugadas fazendo isso.
A avaliação é necessária para que o docente verifique se a sua metodologia de ensino
deu certo, servirá tanto para analisar se o aluno conseguiu entender a matéria quanto para o
professor, se foi apto o suficiente para informar, transformar e educar seus alunos.
Há várias espécies de avaliação do aluno, desde sua autoavaliação, pouco utilizada,
até as provas escritas, provas orais, seminários, simulados, grupos de debates e avaliação
contínua, durante às aulas pela participação dos alunos.
Com a metodologia do caso concreto e das questões de desafio é possível esta
avaliação contínua, o discente tenta elaborar uma resposta, e terá a oportunidade de falar sobre
ela em sala, treinará sua oratória e argumentação.
As provas escritas sobre o conteúdo ministrado é a espécie de avaliação mais utilizada,
incontestada, pois expressa o conteúdo que o aluno conseguiu reter ou apreender, de forma
escrita. Dependerá muito do docente ao elaborar sua prova para ser uma forma de avaliação
eficiente, de sua metodologia empregada.
Todo docente deveria fazer um curso ou oficina de como elaborar questões objetivas
e discursivas, para poder apreender os diversos níveis de dificuldades das questões, e saber
montar uma prova. Não se pode partir do pressuposto que um professor já nasce professor, ele
aprende a ser professor, e quando mais aprende, melhor será.
A prova é um contínuo processo de aprendizagem, anterior, concomitante e posterior
a sua realização, o docente deve escolher o conteúdo que será utilizado na prova, dentre os que
foram tratados em sala de aula, com seus níveis de dificuldade, ao fazer a prova o aluno está
testando tempo versus conteúdo, se consegue naquele curto período de tempo expressar
em palavras o que conseguir aprender e, posteriormente, diante do gabarito
apresentado pelo docente, o discente verifica o que acertou e o que errou. E, por fim, teríamos
a avaliação após o gabarito, de aplicar uma prova oral somente com os alunos que erraram, para
eles explicarem o motivo de tais respostas erradas e quais seriam as respostas corretas, já que
na maioria das vezes o aluno ao ter o gabarito guarda ou descarta a prova, sem entender bem
os erros que cometeu. O erro também é uma forma de aprendizagem para chegar ao acerto.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Estas foram apenas algumas sugestões que poderão ser aperfeiçoadas com o objetivo
de concretiza a arte de ensinar, de tornar-se um educador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ensinar envolve aprendizagem contínua, primeiro do próprio docente, de como ele


deve transmitir o conteúdo, a maioria dos professores não costuma fazer cursos de atualizações
jurídicas, de didática, de como ensinar, de como elaborar questões, de como aprender técnicas
de aprendizagem, de como utilizar a voz da melhor maneira possível, de como utilizar novas
tecnologias e até mesmo a lousa.
Conclui-se que ensinar não é fácil, ser educador, ser professor é a arte da
transformação, que exige muita dedicação, muitos desafios e aprendizagem contínua na busca
da interdisciplinariedade, da compatibilidade entre teoria e prática, de novas metodologias e
principalmente, da humanização do Direito.
O professor já capacitado com o conhecimento do conteúdo da matéria que pretende
ministrar, deve saber como utilizar estes instrumentos que o auxiliará na conquista de seu maior
objetivo: ensinar com qualidade.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Antônio Carlos Rodrigues. Ensino Jurídico e Método do Caso: ética, jurisprudência, direitos e garantias
fundamentais. São Paulo: Lex Magister, 2011.

FILHO MELO. Álvaro. Direito Tributário: metodologia e aplicação. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

FREIRE, Paulo. Virtudes do Educador. In pronunciamento verbal realizado no dia 21 de junho de 1985, na Reunião
Preparatória da III Assembléia Mundial de Educação de Adultos promovida pelo CEAAL(Conselho de Educação
de Adultos da América Latina). Disponível em: <
http://acervo.paulofreire.org/xmlui/handle/7891/1475#page/4/mode/1up>. Acesso em: 15 ago. 2017.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação: aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2005.

Portal do MEC: Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=comContent&view=article&id=13088:legislacao-e-
normas&catid=323:orgaos-vinculados>. Acesso em: 15 ago. 2017.

845
AS UNIVERSIDADES PRIVADAS NO BRASIL:
O LONGO CAMINHO

FIGUEIRA, Hector Luiz Martins


Doutorando em Direito, Constituição e Cidadania pelo PPGD – UVA, professor da Estácio/RJ.
VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida e Universidade Estácio de Sá.
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida dos Cursos de Direito e Administração.

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo problematizar o ensino privado no Brasil. De que modo a reforma do
ensino superior promoveu a transformação do cenário educativo brasileiro. Compreendendo o percurso
histórico do nascimento da universidade no país e seus desdobramentos na atualidade. Para além do
aspecto acadêmico também pretendemos apontar e investigar problemas de gestão, mantença tão
comuns a estas instituições. Ainda, analisar os meios de regulação e burocracia que regem o ensino
privado no Brasil e seus reflexos na seara jurídica, social e educacional. Demonstra profunda relevância
dentro do contexto jurídico nacional, posto que o cenário da realidade das futuras gerações no que
concerne a educação Brasileira está em vias de extinção.

Palavras-Chave. Educação superior; ensino privado, gestão, burocracia.

ABSTRACT

This study aims to problematize private education in Brazil. In what way did higher education reform
promote the transformation of the Brazilian educational scene. Understanding the historical course of
the birth of the university in the country and its unfolding in the present time. In addition to the academic
aspect, we also aim to identify and investigate management problems that are so common to these
institutions. Also, to analyze the means of regulation and bureaucracy that govern the private education
in Brazil and its reflections in the legal, social and educational area.

Keywords. Higher education; Private education, management, bureaucracy.

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INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo discutir as transformações da universidade no


Brasil. Nosso recorte limita-se a analisar a universidade privada e seu desenvolvimento no na
história da educação superior no país. Percebendo ainda as rupturas e as continuidades do seu
processo de sedimentação no solo brasileiro. Deste modo, além do esboço de todo o percurso
histórico, trataremos também dos fenômenos legais que contribuíram para que a educação fosse
entendida como um mecanismo único para persecução do saber e do conhecimento.
Em decorrência de estudos e pesquisas realizados sobre a história da universidade
brasileira, suas origens, desenvolvimento e impasses vivenciados até a Reforma Universitária
de 1968, poder-se-ia observar que há um longo caminho a percorrer ainda, por isto a
importância deste artigo. Não se pretende afirmar, com isso, que algumas conquistas já não se
fizeram sentir. Neste sentido, a universidade é convocada a ser o palco de discussões sobre a
sociedade e suas práticas e não somente em termos puramente teóricos, abstratos. Devendo ser
o espaço em que se desenvolve o pensamento teórico-crítico de ideias, opiniões,
posicionamentos, como também o encaminhamento de propostas e alternativas para solução de
problemas sociais complexos. Não resta dúvida de que essas tarefas constituem um aprendizado
difícil e por vezes exaustivo, mas necessário nos dias de hoje.
Assim, discutir academicamente o setor privado de educação superior no país permite
compreender suas lógicas, e seus anseios. No entender de Barreyro (2008, p.15), o ensino
superior privado no Brasil surge na República com a Constituição de 1891, pelo Art. 35.
Naquele tempo, pela ausência de universidades, “essas instituições eram de confissão católicas
ou criadas pelas elites locais às vezes com apoio de governos estaduais ou exclusivamente pela
iniciativa privada.” (Sampaio, 2000, p.37).
Segundo Gürüz (2011), a educação superior entrou em uma era em que foram
iniciados processos para transformá-la de um setor público estruturado e regulado pelo governo
para um setor semi-público (privado) a fim de responder a demanda e a competição econômica.
Esse processo continua até o presente momento devido ao nosso sistema capitalista e a
sociedade de mercado e consumo. Some-se a isto ainda, propostas recentes de democratização
do ensino superior e a real necessidade de aberturas de novas vagas. Bem como o atendimento
aos objetivos sociais do estado democrático brasileiro. Neste sentido, Júnior e Spears (2012,
p.7)

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ISSN 2236-9651, n. 7

O ensino superior brasileiro, tanto na esfera privada como pública, é reconhecido


pelo Estado brasileiro como parte de uma estratégia de longo prazo de hegemonia na
América do Sul. O ensino superior também é romantizado em seu objetivo de
ascensão social, amenizando as estruturais desigualdades sociais no Brasil.
Paradoxalmente, no entanto, o ensino privado atrai aqueles alunos que não
conseguem passar no vestibular da Universidade Pública Federal (geralmente classe
média baixa) e, o sistema público e gratuito continua a ser aquele que aceita os alunos
de elite do país (a maioria dos quais oriundos de escolas particulares). Essa dialética
entre as esferas pública e privada na educação desafia a axiologia tradicional das
humanidades e ciências sociais à luz de um reducionismo aplicado à aprendizagem
e ao currículo, que visam à formação prática em determinadas carreiras com base
numa epistemologia da prática.

É importante destacar, ainda, que a política de privatização da educação superior,


demonstrada nos dados do Resumo Técnico do Censo da Educação Superior de 2012, apontava
que havia naquele momento 2.416 instituições privadas, sendo 51 IES a mais do que em relação
ao Censo de 2011. Desmembrando esses dados, somamos 2.112 IES privadas (87,41%) e 304
IES públicas (12,58%). Além disso, já havia mais de 7 milhões de matrículas na educação
superior, concentradas na iniciativa privada, com 5.140.312 alunos (73,03%), enquanto que o
setor público estava com apenas 1.897.376 (26,96%). Noutras palavras, é válido dizer que a
atividade da universidade privada é uma realidade marcante no cenário da educação superior
no Brasil, merecendo toda sorte de estudo e reflexão. Por isso, propomos aqui discuti-la e até
mesmo repensá-la no quesito administrativo e acadêmico.

1. BREVE PERCURSO HISTÓRICO: O INÍCIO DO CAMINHO

Para sistematizar e tornar didático nossa explanação histórica, dividimos as fases do


processo de nascimento da universidade no Brasil da seguinte forma: Primeiro período: Colônia
– Iniciando-se em 1572, data de criação dos cursos e artes e teologia no colégio dos jesuítas da
Bahia. Segundo período: Império – iniciou-se de fato quando o Brasil era ainda colônia, em
1808, com a criação de um novo ensino superior, estendendo-se até 1889, com a queda da
monarquia. Terceiro período: Primeira república – iniciou-se com o governo provisório de
Deodoro e terminou com a instalação do provisório de Vargas em 1930. Quarto período: Era
Vargas – começou com a revolução de 1930 e findou-se com a deposição do ditador em 1945.
Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, o que se tinha no Brasil eram cursos com o
objetivo de servir à qualificação das elites agrárias e à classe dominante da metrópole
exploradora da Colônia. Durante o período colonial, os núcleos educacionais importantes eram
os colégios jesuítas espalhados pelo país. Neste sentido Luiz Antônio Cunha (2007, p.27):

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
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O estabelecimento dos jesuítas seguiam normas padronizadas, que vieram a ser


sistematizadas na Ratio atque Insituto Studiorum Societas Jesu – ou, simplesmente
Ratio Rtudiorum -, promulgada após versões preliminares, em 1559. Esse tratado
previa um currículo único ara os estudos escolares dividido em dois graus, supondo
o domíneo das técnicas elementares da leitura, escrita e cálculo: os studia inferiora
correspondentes, grosso modo, ao atual ensino secundário, e os studia superiora,
correspondendo aos estudos universitários. Grifos do autor.

Assim, o Ensino Superior no Brasil nasceu com a transferência da sede do poder e da


elite portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Os cursos de Ensino Superior foram criados
para atender, predominantemente, as necessidades do Estado nascente: formação dos seus
burocratas, formação de especialistas para a produção de bens de consumo das classes
dominantes (aristocratização do saber). Desta forma, para a exteriorização do saber e
apropriação do conhecimento era fundamental que se estudasse fora do Brasil, principalmente
em Portugal. Sobre tal temática elucida Anísio Teixeira (1989, p. 65):

Até os começos do século XIX, a universidade do Brasil foi a Universidade de


Coimbra, onde iam estudar os brasileiros, depois dos cursos no Brasil nos reais
colégios dos jesuítas. No século XVIII, esses alunos eram obrigados a um ano apenas
no Colégio de Artes de Coimbra para ingresso nos cursos superiores de Teologia,
Direito Canônico, Direito Civil, Medicina e Filosofia, nesta última, depois da reforma
de 1772, incluídos os estudos de ciências físicas e naturais. Nessa universidade
graduaram-se, nos primeiros três séculos, mais de 2.500 jovens nascidos no Brasil.

O brasileiro da Universidade de Coimbra não era um estrangeiro, mas um português


nascido no Brasil, que poderia mesmo se fazer professor da Universidade. O próximo período
histórico foi o período denominado de Primeira República que vai da Proclamação da
República em 1889 até a revolução de 1930, que surgiram as escolas superiores não
dependentes do Estado.1 A primeira Constituição Republicana, de 1891, foi omissa em assuntos
da Educação e do ensino, não previa a escolarização obrigatória e determinava a laicidade nas
instituições públicas.
Mesmo tendo em vista a previsão da laicidade, não se pode olvidar do aparecimento
das instituições com viés religioso e sua forte marca no processo de criação e surgimento das
universidades privadas no brasil. A Mackenzie College, em 1896, de influência protestante e de
modelo norte americano. E ainda, o surgimento das Pontifícias Universidades Católicas. A

1Entre 1891 e 1910 foram criadas vinte e sete escolas superiores, nove de Medicina, Obstetrícia, Odontologia e Farmácia; oito de

Direito, quatro de Engenharia, três de Economia e três de Agronomia. Final do século XIX: a criação da Escola de Engenharia do
Mackenzie College, em 1896, e a criação da Escola de Engenharia de Porto Alegre, no mesmo ano, de iniciativa privada e sem
orientação religiosa.

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PUC/RJ foi fundada em 1941 por D. Sebastião Leme e pelo padre Leonel Franca, e
reconhecida oficialmente pelo Decreto 8.681, de 15 de janeiro de 1946. Já neste ano, tivemos a
fundação da PUC/SP no dia 13 de agosto de 1946 pelo Cardeal-Arcebispo da Cúria
Metropolitana de São Paulo, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, nasceu a partir da
fusão da Faculdade Paulista de Direito com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São
Bento, esta fundada em 1908.
Por fim, em resumo, na Era Vargas, Francisco Campos, o primeiro Ministro da
Educação e Saúde do Estado Novo elaborou o Estatuto das Universidades Brasileiras. O ensino
superior brasileiro poderia se organizar na forma de universidade (pública ou privada). No
inicio da Era Vargas (1930): três universidades surgiram (Universidade do Rio de Janeiro e
Universidade de Minas Gerais e Escola de Engenharia de Porto Alegre); No fim da Era Vargas
(1945) mais outras: cinco universidades (Universidade do Brasil, Universidade Técnica do Rio
Grande do Sul, Universidade de São Paulo, Universidade Católica do Rio de Janeiro e
Universidade do Distrito Federal). E logo adiante temos o boom na criação das universidades
privadas.

2. NOVOS RUMOS DA UNIVERSIDADE PRIVADA NO BRASIL

Contextualizando a temática no tempo, vale dizer que no ano de 1968 tivemos a


grande reforma universitária. Tal reforma, significou a criação da Lei de Diretrizes Bases da
Educação (LDB) assegurando ao ensino superior autonomia didático-científica, disciplinar,
administrativa e financeira. Entre as principais características do ensino superior está a
possibilidade de privatização das instituições e o desenvolvimento de instituições de pequeno
porte. A reforma de 1968 proporcionou, portanto, grandes modificações que se colocam
presentes atualmente na organização das instituições educacionais brasileiras.
A LDB passou por diversas transformações e adaptações até chegar ao formato atual
que temos hoje de 1996 e é apontada por isso como marco legal da reforma que foi colocada
em curso na década de 1990, pela qual o Estado assume o controle e a gestão das políticas
públicas. Ou seja, o Estado é o máximo gestor no que se refere à avaliação e ao controle das
IES, mas é o mínimo no que se refere ao financiamento das IES públicas, liberando a oferta da
educação superior para a iniciativa privada, conforme vemos a seguir:

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Art.7º: O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I –


cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de
ensino; II- autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder
Público; III – capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 2134 da
Constituição Federal (BRASIL, LDB, 1996).

A aprovação da LDB, no entanto, favoreceu que a iniciativa privada com fins


lucrativos ou sem fins lucrativos (filantrópicas) pudessem atuar em paralelo com as instituições
públicas, patrocinando e democratizando o ensino superior pra diversos seguimentos da
sociedade brasileira. Contudo, reside aqui a grande crítica de muitos estudiosos no que se refere
às instituições de ensino privado. Sob a alegação que as mesmas não praticam qualquer tipo de
pesquisa e extensão, comprometendo assim a qualidade do ensino prestado. Contudo, nossa
discussão não caminha sobre este prisma, por isso não adentraremos neste mérito.
Durante o regime militar, sobretudo na fase posterior a reforma universitária de 1968,
o processo expansionista assumiu feição predominantemente privatista, consubstanciada pelas
políticas de liberalização adotadas pelo Conselho Federal de Educação (CFE). Assim, na
década de 90 uma grande expansão do ensino superior aconteceu e novos padrões de regulação
e gestão, muitos ainda sofrendo com o processo de internacionalização.2 Segundo Guadilla
(1996), durante os anos de 1990 consolidou-se uma tendência descrita há já algum tempo por
Brunner (1990) como “a explosão dos números”: o aumento do corpo estudantil, do
professorado e do número de instituições foi notável; também foi considerável a ampliação do
percentual correspondente ao setor privado. 3
Importante ressaltar que com o advento e a possibilidade do ensino privado no Brasil
um processo de mercantilização do ensino de fato emergiu na nossa economia, sendo
representado por grandes conglomerados econômicos de fins meramente comerciais. Assim, a
Anhanguera Educacional foi a primeira instituição privada de educação superior a abrir seu
capital, tornando-se a primeira Instituição de Ensino Superior (IES) privada da América Latina
a ter ações na Bolsa de Valores. De certa forma, está parece ser uma alternativa viável para a
sobrevivência desse campo do ensino, haja vista que pequenas universidade familiares ou

2 Grupo LAUREATE – que envolve administra várias universidades/faculdades no brasil. E também a rede ILUMNO –
mantenedora da UVA.
3 Da educação mercadoria à certificação vazia [...] O ensino superior, público e privado, no Brasil, passou por grandes

transformações nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o acesso – visaram atender
a uma proposta de privatização e barateamento da educação. A predominância de objetivos economicistas em detrimento dos
pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais,
grandes empresas, de capital aberto e com forte participação de grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. (SOUZA, Le
Monde Diplomatique Brasil, online).

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faculdades com problemas de gestão fecham as portas devido à dificuldade financeiras


encontradas no mercado.
Um caso emblemático marcou o estado do Rio de Janeiro no ano de 2014 – foi o
fechamento das portas de duas universidades – a Gama Filho (UGF) e a UniverCidade. O MEC
ao descredenciá-las alegou: "a baixa qualidade acadêmica, o grave comprometimento da
situação econômico-financeira da mantenedora [das instituições] e a falta de um plano viável
para superar o problema, além da crescente precarização da oferta da educação superior".4
Ainda em situação análoga, podemos citar a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Apesar de ser mantida pelo poder publico a UERJ, um dos grandes nomes da educação superior
no Brasil, parece ter parado no tempo, sem aulas, professores em greve e sem salários. Tudo
isso devido a problemas de repasse e gestão das verbas destinadas à educação.
O exemplo nos relata um problema relevante enfrentado pelas instituições de capital
privado no Brasil, o obstáculo de gestão. Ao que tudo indica gestões esquizofrênicas são
praticadas muitas vezes levando à falência de grandes nomes do setor educacional. Faz-se
necessário, portanto, aprimorar a competência e seriedade do trabalho universitário, tanto dos
controladores administrativos, quanto de docentes, vendo na universidade um empreendimento
em permanente construção e reconstrução do saber. Noutras palavras, o sistema de gestão
acadêmico implantado pelas IES privado precisa se reconstituir numa perspectiva histórico-
crítica para a edificação de um futuro promissor. Em que pese à existência de mecanismos
nítidos de privatização e mercantilização do ensino superior, por outro lado, tem-se uma recente
democratização perpetrada pelo governo do PT e suas políticas de acesso, como ressalta a
revista Forum:

Atualmente, o País vive a expansão do setor público da educação superior com a


ampliação das redes das universidades federais e dos institutos de educação
profissional e tecnológica. No setor privado, o governo federal criou o programa
Prouni – que concede bolsas de 100% e 50% a estudantes de baixa renda para cursos
em instituições privadas – e ampliou o alcance do Fies – Programa de financiamento
estudantil. O setor privado da educação superior vive forte processo de concentração
e de internacionalização das instituições que, ao longo deste início do século XXI,
mantiveram a tendência de crescimento, especialmente nos primeiros anos da
década.5

4MEC fecha Universidade Gama Filho e UniverCidade, no Rio: <http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/01/ mec-


descredencia-universidade-gama-filho-e-univercidade-no-rio.html>
5
<http://www.revistaforum.com.br/2012/10/18/democratizacao-da-educacao-superior-no-brasil-avancos-e- desafios/>

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. UNIVERSIDADE PRIVADA E SUA AUTONOMIA JURÍDICA E DE GESTÃO

De acordo com CRFB de 1988 em seu Art. 207 – “As universidades gozam de
autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e
obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão"; Já o Decreto
nº 2.207, de 15 de abril de 1997 - Regulamenta para o Sistema Federal de Ensino. Art 1º - As
instituições de ensino superior do Sistema Federal de Ensino, nos termos do art. 16 da Lei nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996, classificam-se, quanto a sua natureza jurídica, em: II -
privadas, quando mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
Com base neste mecanismo legal questiona-se: a universidade privada deve ter o
mesmo modelo de gestão da universidade pública? É possível um ensino que conjugue a
educação de qualidade e a satisfação do mercado econômico que visa o lucro? Sabemos que as
universidades possuem autonomia pra gerir seus departamentos, sendo necessário respeitar
apenas critérios mínimos de exigência do MEC na graduação e da CAPES na pós-graduação.
O conceito de autonomia tem sido tratado pela doutrina nos moldes do art. 207 da CRFB. Na
lição de Ferreira (1995, p. 97):

A autonomia da universidade é assim o poder que possui esta entidade de estabelecer


normas e regulamentos que são o ordenamento vital da própria instituição, dentro da
esfera da competência atribuída pelo Estado, e que este repute como lícitos e
jurídicos. A autonomia pode ser exercida em diversas esferas: no plano político, com
o direito de as universidades e faculdades elegerem a sua lista sêxtupla de reitores ou
diretores; no plano administrativo, dentro dos limites do seu peculiar interesse; no
plano financeiro, com as suas verbas e o seu patrimônio próprio; no plano didático,
estabelecendo os seus currículos; no plano disciplinar, a fim de manter a estrutura da
sua ordem. A autonomia pode ser plena ou limitada, segundo a sua extensão, e será
exercida tanto pela universidade como pelas unidades que a integram (faculdades,
escolas e institutos). A autonomia plena não significa, entretanto, que a Universidade,
que dela desfruta, posse esmagar e anular a autonomia limitada de que gozam as
unidades integrantes da universidade. A autonomia plena será exercida pela
universidade; a autonomia limitada será exercida pelas unidades que a integram. A
autonomia plena não significa o poder de tudo fazer, mas ela mesma está
condicionada pelos limites com que a legislação a enclausurou, estabelecendo
competências privativas e exclusivas tanto para a universidade como para as suas
unidades integrantes. Cada uma delas tem autonomia no campo de suas atividades
especificas e exclusivas, competências que não deverão e não poderão ser anuladas
pelo poder central da universidade. Tudo se resume, pois, em uma questão de
competências, de atribuição e exercício de competência.

A autonomia da universidade estabelece normas e regulamentos que são o


ordenamento vital da própria instituição, dentro da esfera da competência atribuída pelo Estado,
e que este repute como lícitos e jurídicos. Contudo, esta liberdade não é plena, deve ser limitada

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em alguns aspectos. Se por um lado a universidade privada não precisa fazer concurso público
de títulos e provas para a seleção de professores e pode definir sua estrutura curricular, por
outro, a constituição no art. 167, inciso VI, veda que sem prévia autorização legislativa se faça
a transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria para outra.
Percebe-se então que esta autonomia não se trata de uma soberania plena para a execução de
seus projetos. Prova da limitação desta autonomia é que o poder judiciário em muitos casos já
decidiu pelo encerramento das atividades de universidades privadas como o caso da Gama
Filho já citado dentre outros6.
Desta maneira, a autonomia universitária, como já abordamos, é uma autonomia
relativa, pois seu parâmetro é a própria Constituição, estando em consonância com o
ordenamento jurídico pátrio, pode-se afirmar ainda que sua autonomia está situada no mesmo
patamar do Ministério Público e mais recente, as Defensorias públicas. A autonomia jurídica
então decorrente de lei pode ser mitigada caso haja interesse maior do Poder Público, como no
caso do fechamento de universidades por baixa qualidade do ensino.
O princípio da autonomia congrega os elementos fundantes da identidade
universitária, ainda que coexistindo com a contradição público/privado presente no primeiro
princípio. Autonomia sugere autodeterminação, independência e liberdade; heteronomia,
subordinação a ordens e agentes externos, adequação a demandas mercadológicas, a agendas
estatais marcadas pelo pólo privado/mercantil. Outro princípio de grande relevância é o
princípio da democracia universitária. Ou seja, a universidade, ainda que tenha que se submeter
ao ordenamento jurídico do Estado, de alguma forma reciprocamente o submete, posto que
aquele deve submissão à sociedade, isto é, ao ente público.
Outro fator que se atrela a autonomia é a burocracia das universidades. O
desembargador Johonsom di Salvo, da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
considerou ilegal uma resolução da Universidade Federal do ABC que exigiu coeficiente de
aproveitamento mínimo para participação de alunos em estágios, além daqueles estabelecidos
na Lei 11.788/2008. Segundo o desembargador, a autonomia universitária não permite que
atos das universidades estejam imunes a julgamento pelo Poder Judiciário. “Ademais, não se

6
Universidade Braz cubas. Curso de Odontologia. Fechamento por inobservância da legislação de regência. Portaria n. 196, de 3-
2-94, do ministro da educação e do desporto. O ensino universitário, administrado pela iniciativa privada, há de atender aos
requisitos, previstos no art. 209 da constituição federal: cumprimento das normas de educação nacional e autorização e avaliação
de qualidade pelo poder público. MS 3318/DF, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado
em 31.05.1994, DJ 15.08.1994 p. 20271

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está invadindo a seara de discricionariedade (oportunidade e conveniência) da Universidade


Federal do ABC.”7
Num cenário de economia globalizada, a disputa por espaço no meio empresarial é
cada vez maior, fazendo com que surjam inúmeras vagas nestas universidades. Some-se a isso
a exigência do mercado capitalista que implica na necessidade de capacitação cada vez maior
por parte de estudantes e pesquisadores, por este motivo a universidade não pode se furtar de
um dos mais nobres ideais – o partilhar do conhecimento em prol da solidariedade humana.

CONCLUSÃO

No Brasil, a Universidade surgiu, tardiamente, com características bem peculiares e


se consolidou em escolas superiores isoladas com orientação precipuamente voltada à
preparação profissional naquelas áreas mais tradicionais que as elites emergentes do país
demandavam. As universidades não foram mais do que a reunião desses estabelecimentos
isolados que relutaram em se articularem numa nova instituição, mantendo seu status particular
e características originárias. As reitorias surgiram sem poder acadêmico, relegadas às questões
burocráticas e de relações com o Governo para a obtenção de recursos.
Percebe-se então, que este modelo que se formou a universidade no Brasil deve-se ao
processo histórico de formação nascimento desta instituição. Com o passar dos anos vários
mecanismos legais foram criados para regular a questão do ensino superior no país. Entre
variáveis e permanências, inúmeras leis, projetos foram propostos para regular a universidade
no país. Contudo, nenhuma nunca se apresentou de forma adequada para suprir as necessidades
e demandas do campo educacional.
A Universidade tem um papel inalienável na geração e disseminação do
conhecimento em todo o Sistema Educacional, pelo seu papel na preparação de seus recursos
humanos e geração de alternativas para o desenvolvimento autônomo da nação. Portanto, a
universidade se insere na comunidade como criadora e difusora do conhecimento,
impulsionando o crescimento da sociedade, do Estado e do País, e tendo responsabilidades
frente aos seus alunos (e famílias), à sociedade, aos professores e funcionários e, ainda, frente
às entidades financiadoras.

7
Agravo de instrumento 0005960-87.2015.4.03.0000/SP.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Conclui-se, portanto que as universidades demandam estruturas, sistemas e métodos


diferenciados daqueles desenvolvidos nas burocracias tradicionais. Seus dirigentes, além das
competências para gestão, comuns às demais organizações necessitam de conhecimentos,
habilidades e atitudes inerentes a sistemas políticos, porque a universidade é um sistema político
do que uma organização burocrática.
Por fim, em que pese muitos autores pensarem na universidade privada como uma
instituição de viés meramente empresário e como finalidade última a obtenção de lucro, não
concordamos com essa premissa. Corroboramos com a ideia de que a universidade de capital
privado tem grande representatividade no cenário acadêmico, social, político e jurídico. Sendo
ela imprescindível para a melhor democratização do ensino superior.

REFERÊNCIAS

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857
A CRISE NO ENSINO JURÍDICO
E OS CONCURSOS PÚBLICOS

COSTA, Beatriz Guimarães


Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

RESUMO

O trabalho se concentra na crise do ensino de Direito no Brasil, questionando-se o modelo tradicional de


ensino, baseado na reprodução acrítica de conhecimento, descolado da realidade prática e subordinado
aos interesses do mercado de preparação para concursos públicos. Analisa-se os esforços de intervenção
regulatória do Estado no ensino jurídico através de normas específicas, suas contribuições para a
melhoria da qualidade de formação e suas limitações frente à manutenção de um modelo pedagógico
tradicional. Também se aborda a relação entre o aumento exponencial do número de cursos de Direito a
partir da década de 90 do século XX, a baixa qualidade da formação jurídica e a subordinação desta ao
mercado de preparação para concursos públicos.

Palavras-Chave. ensino jurídico; concurso público; formação jurídica.

ABSTRACT

The paper focuses on the crisis of law education in Brazil, questioning the traditional model of education,
based on the uncritical reproduction of knowledge, detached from practical reality and subordinated to
the interests of the market for preparation for public tenders. It analyzes the efforts of the State's
regulatory intervention in legal education through specific norms, its contributions to the improvement
of the quality of training and its limitations in the maintenance of a traditional pedagogical model. It
also discusses the relationship between the exponential increase in the number of law courses since the
1990s, the low quality of legal training and the subordination of this to the market for preparation for
public examinations.

Keywords. legal education; public tender; legal training.

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INTRODUÇÃO

O desenvolvimento dos cursos jurídicos brasileiros coincidiu com a afirmação do


Brasil enquanto império, independente de Portugal. Foi na Assembleia Constituinte do ano de
1823 quando se apresentou um primeiro projeto de Curso de Direito, que só veio a ser realmente
implantando quatro anos mais tarde, em São Paulo e em Olinda. Antes disso, aqueles brasileiros
que possuíam condições iam cursar Direito em Portugal, na Faculdade de Direito de Coimbra,
e regressavam já formados para exercerem as profissões jurídicas ou polítcas. Dessa forma é
correto dizer que, até 1827, todos os juristas que atuavam no Brasil, mesmo os de nacionalidade
brasileira, eram portugueses, pois eram formados conforme o sistema jurídico de Portugal.
Desde aquele período, poucas foram as alterações do modelo ensino jurídico
brasileiro. Mais de cento e cinquenta anos depois da implantação das faculdades de Direito no
Brasil, elas mantinham o mesmo discurso e a mesma metodologia de cariz liberal do Brasil
Império 1. Apenas com a promulgação da Constituição de 1988 criou-se ambiente propício para
se implementar reformas no ensino jurídico que fossem realmente transformadoras.
Assim é que, no início da década de 1990, já havia um diagnóstico de crise do ensino
jurídico brasileiro, que não conseguia formar profissionais com o nível técnico exigido para
lidar com as novas demandas existentes na sociedade brasileira pós CF/88, cujos conflitos eram
complexos e não mais suprimidos por um governo ditatorial 2. Nesse contexto a Ordem dos
Advogados do Brasil iniciou em 1992 um estudo para reavaliação do ensino jurídico com base
na Resolução nº 3 de 1972 do Conselho Federal de Educação, que tinha sido a última norma
editada para regular a matéria, de caráter conservador.
A evolução desse estudo resultou na Portaria nº 1.886/94 do Ministério da Educação,
que revogou a resolução citada acima e atualizou a estrutura dos cursos jurídicos ao modelo
que ainda se vê hoje. Por sua relevância, é proveitoso mencionar as reformas que a portaria
implementou no cenário educacional relativo ao Direito.
Primeiramente foi determinada uma carga horária mínima de 3.300 horas de
atividades a serem ministradas em pelo menos cinco anos de curso, fixando um limite de quatro
horas de atividades didáticas para o período noturno sem, contudo, abrir mão do mesmo nível

1 MARTÍNEZ, Sérgio Rodrigo. A evolução do ensino jurídico no Brasil. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/
portal/sites/default/files/anexos/29074-29092-1-PB.pdf>. Acessado em 28 set. 2017.
2
Idem.

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de qualidade. Também foi fixado um mínimo de 300 horas de estágio de prática jurídica
obrigatória.
A portaria também incluiu no currículo de Direito a obrigação de redação,
apresentação e defesa de monografia final perante banca examinadora. Outras importantes
inovações trazidas foram a exigência de desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e
extensão, de forma interligada e obrigatória, a obrigatoriedade de implementação de
“escritórios modelos” nas faculdades e a exigência da manutenção de bibliotecas com pelo
menos dez mil volumes.
A evolução do quadro das faculdades de Direito não pode ser creditada inteiramente
à portaria do MEC, pois outras normas aplicadas tiveram importância na manutenção de uma
rede de avaliação e controle periódico de qualidade das condições de ensino e do conteúdo
absorvido pelos alunos. Deve-se mencionar, nesse sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (Lei 9.394/96).
Sobreveio a Resolução 09/2004, também do Ministério da Educação, que revogou a
sobredita portaria, mas manteve suas inovações, diferenciando-se desta por acrescentar
disciplinas ao currículo, além de ser mais explícita e detalhista quanto ao nível de qualificação
que um curso de Direito deve oferecer ao graduando, prescrevendo uma “sólida formação geral,
humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia
jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e
sociais”.
Com a portaria de 1994 verifica-se um esforço em ir além das reformas anteriores do
ensino jurídico, que se limitavam a alterações de currículo. Inovações como a obrigação de
horas mínimas de estágio e as atividades de pesquisa e extensão demonstram um movimento
no sentido de superar a ideia da educação apenas como o que acontece em sala de aula e de
uma formação não só dogmática, mas também prática.
Apesar disso, o modelo liberal e tradicional de transmissão do conhecimento em sala
de aula permaneceu o mesmo e é lá que a maior parte da carga horária se realiza. A concepção
do mercado ditando a formação dos graduandos resistiu à intervenção regulatória do Estado.
Também permanece a influência de um modelo pedagógico onde o professor é a figura que
concentra todo o conhecimento e o transmite aos alunos, sem interações significativas e sem
troca de experiências.
Criticando a didática jurídica tradicional, Santiago Dantas afirma:

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A didática tradicional parte do pressuposto que, se o estudante conhecer as normas e


instituições, conseguirá, com os seus próprios meios, com a lógica natural do seu
espírito, raciocinar em face de controvérsias, que lhe sejam amanhã submetidas. O
resultado dessa falsa suposição é o vácuo que a educação jurídica de hoje deixa no
espírito do estudante já graduado, entre os estudos sistemáticos realizados na escola
e a solução ou a apresentação de controvérsias, que se lhe exige na vida prática. 3

Essa pedagogia tradicional onde o professor se limita a expor o conteúdo e os alunos


a o receberem de forma acrítica e meramente reprodutiva contribuiu e ainda contribui com o
modelo liberal de ensino livre, conforme os ditames do mercado 4. O mercado, por sua vez,
mostra-se voltado para os concursos públicos, especificamente com a necessidade de
suprimento de uma demanda por produtos e serviços de preparação para os certames.

1. A VALORIZAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO E SUA LÓGICA


AUTORREFERENCIADA

A Constituição de 1988 determinou a obrigatoriedade de concursos públicos para


investidura nos cargos de servidores públicos e nos cargos profissionais de carreira pública
(magistrado, promotor de justiça, advogado geral da União, procurador do Estado, defensor
público), criando demanda para tudo aquilo que possibilitasse a investidura em tais cargos,
incluindo aí o curso de graduação em Direito. Por conseguinte, houve um aumento gradual e
constante no número de certames ao longo dos anos. A essa tendência o mercado respondeu
com a expansão da oferta de produtos e serviços voltados à preparação para participação nesses
processos seletivos, de forma que se verifica hoje a existência de um “universo” dos concursos
públicos, que impacta a realidade.
Para melhor entender o contexto que possibilitou essa valorização do concursos
públicos, é útil utilizar o conceito weberiano de “tipos ideais” para identificar ideologias que
ajudam a explicar a relevância alcançada pelo concurso público no Brasil e todo o mercado de
preparação para os mesmos 5. A primeira é a ideologia republicana, que determina a utilização
de critérios racionalizados e impessoais de acesso a cargos públicos, rompendo com a tradição

3 DANTAS, Santiago. A educação jurídica e a crise brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1955. p. 16.
4
MARTÍNEZ. “A evolução...”.
5
FONTAINHA, Fernando de Castro; GERALDO, Pedro Heitor Barros; VERONESE, Alexandre; ALVES, Camila Souza. O
concurso público brasileiro e a ideologia concurseira. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 16 n. 110 Out. 2014/Jan. 2015 p.
673-674.

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da monarquia de nomeação, hoje visto como prática antidemocrática. Os concursos públicos se


encaixam nessa ideologia por serem um avanço em direção à igualdade de condições de acesso.
Também é possível apontar para uma subsequente ideologia burocrática, onde a
administração do Estado passa a ser exercida por um conjunto de funcionários aprovados em
concursos, ou seja, selecionados por um critério racional-legal, ao qual se confere maior
legitimidade por supostamente preencher os quadros com os candidatos mais qualificados.
Com isso marca-se o primado da técnica sobre a política, identificando-se nesse processo a
valorização da forma escolar como parâmetro para auferir o grau de “saber neutro” dos
funcionários.
Do cruzamento da ideologia republicana com o valor da democracia surgiu o conceito
da meritocracia, inicialmente construído em um ensaio publicado por Michael Young em 1956
para identificar uma forma mais justa de seleção das elites, independente de variáveis como
parentesco e condição financeira e totalmente vinculado ao valor “talento”. Retirado de seu
contexto, no entanto, a meritocracia foi alçada à condição de ideologia, definida como “aquela
que vê, no resultado dos processos objetivos de medição de performance, a expressão do mérito,
definido por Young como esforço + talento” 6.
Em países como França, Estados Unidos e Inglaterra, a ideologia meritocrática já era
estudada e questionada antes mesmo de sua importação para o Brasil em relação aos concursos
públicos. Há diversos estudos que demonstram o fracasso da meritocracia no ambiente escolar
para equalizar a performance dos alunos de diferentes origens sociais e econômicas e as
dificuldades de se implementar padrões justos e precisos de avaliação de rendimento escolar,
ou mesmo de se utilizar esse rendimento como parâmetro para avaliar a qualificação dos
indivíduos para o mercado de trabalho. Denunciava-se, enfim, já no início do século XX “a
educação baseada na meritocracia como um mito” 7.
Apesar de todos os indicativos contrários, a ideologia meritocrática aflorou no Brasil
e teve nos concursos públicos um grande referencial, posto que o concurso seria a forma mais
isenta de selecionar e premiar os indivíduos mais talentosos, esforçados e capazes. A
quantidade de concursos públicos ocorridos a partir da década de 1990 deixam clara a adesão
do Estado brasileiro a essa ótica. Contudo, esse modelo adotado no Brasil não resulta da

6
Idem. p. 674.
7
Idem. p. 677.

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superação dos problemas do ideal meritocrático; o cenário brasileiro não é em nada melhor ao
cenário de países como França, EUA e Inglaterra.
Investigações sobre o universo dos concursos públicos demonstram fatores de
influência sobre as chances de aprovação que contrariam o conceito de meritocracia. Questões
como renda familiar, grau de escolaridade e local de residência são determinantes para as
possibilidade de aprovação em certame 8.
Fernando de Castro Fontainha et al (2014) realizaram pesquisa estatística nos editais
de 698 processos seletivos ocorridos entre os anos de 2001 e 2010 através de vários recortes
distintos, mas sempre focando nos editais, enquanto projetos das instituições recrutadoras; não
apenas como documentos jurídicos que estabelecem as regras de realização dos certames, mas
principalmente como “fontes de discursos institucionais” 9, retirando dos mesmos o perfil de
candidato que as instituições desejam empregar em seus quadros.
Através do estudo verificou-se que, em relação aos critérios para seleção de
profissionais 10, virtualmente todos se valem de prova de múltipla escolha e a maioria também
utilizam provas discursivas e de títulos. Exames médico, psicológico e de vida pregressa foram
encontrados em uma minoria dos concursos. A experiência do candidato com as funções do
cargo que pretende ocupar foi aferida em apenas 4,3% dos concursos e nenhum dos quase 700
certames aplicou prova prática para avaliar a capacidade de desempenho das funções típicas da
carreira.
Além disso, estudo identificou uma incongruência chamativa: nos concursos
estudados, os profissionais com título de mestrado percebiam menos da metade dos
vencimentos dos profissionais com graduação. Profissionais com doutorado também ganham
menos que os graduados, embora a diferença fosse menor (cerca de 20% menos) 11, indicando
que o grau de titulação não é fator para fixação de salário, em clara contradição à lógica da
meritocracia escolar.
Realizado esse estudo, os autores expõem uma “ideologia concurseira” baseada na
constatação de que “os certames recrutam os mais habilidosos, competentes e aptos a fazê-los”
12
. De fato, da forma como são organizados, os certames privilegiam sobremaneira o domínio

8 Idem. p. 680.
9 Idem. p. 682.
10
Idem. p. 694-695.
11
Idem. p. 693.
12
Idem. p. 682.

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do conteúdo bibliográfico proposto, cobrado na forma de questões aplicadas em prova “que


sequer emulam ou simulam contextos análogos aos que [o candidato] enfrentará na carreira”
13
.
Como o conteúdo cobrado não possui necessariamente vínculo com a atividade a ser
desenvolvida, o concurso público torna-se um fim em si mesmo, aferindo basicamente o grau
de adaptabilidade do candidato às condições impostas pelo edital, sem a necessária garantia de
que os aprovados são os mais aptos a desenvolverem a contento as funções que deverão ocupar.
Aliando-se essa constatação à realidade evidenciada pelos estudos sobre o perfil dos
candidatos aprovados, tem-se que os concursos públicos, tal como aplicados no Brasil,
apresentam as mesmas fraquezas e limitações inerentes à ideologia meritocrática, mas não
alcançam o resultado proposto por essa ideologia. Em outras palavras, os concursos públicos
não são capazes de equalizar eficazmente as chances de sucesso de candidatos com diferentes
condições socioeconômicas e também não aprovam os candidatos de maior “talento” para o
exercício da função pública.

Ao contrário do que se pode supor, os editais não expressam uma vontade, mas uma
ideologia que legitima os funcionários públicos e orienta os concurseiros. Entender
esses instrumentos em termos políticos permite compreender a complexa ligação
entre as instituições e as entidades organizadoras e entre os candidatos e o mercado
de cursinhos. 14.

Conforme indicado, a situação teratológica criada pela ideologia concurseira é


potencializada pela criação e expansão de um mercado de produtos e serviços de preparação
para realização de concursos, que aderiram integralmente a tal ideologia e propagam uma
cultura autorreferenciada de memorização do conteúdo cobrado que se adapta ao perfil da
instituição recrutadora e da instituição organizadora do certame. Assim, por exemplo, uma
norma é constitucional ou inconstitucional a depender do órgão que se pretende integrar e a
corrente doutrinária correta corresponde àquela defendida pelos membros da banca avaliadora.

13
Idem. p. 695.
14
Idem. p. 683-684.

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2. A MASSIFICAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO E SUA SUBORDINAÇÃO À


ÓTICA DOS CONCURSOS PÚBLICOS

Em 1964 havia 61 cursos de Direito no Brasil. Dez anos depois esse número dobrou:
eram 122 cursos em 1974 15. Quase duas décadas à frente, em 1991, percebia-se um pequeno
aumento ao alcançarmos 165 faculdades de Direito credenciadas. Repetindo novamente o
intervalo de vinte anos, tem-se que, em 2011 o Brasil contava com 1.174 cursos, um
16
crescimento de 612% . Em 2015, uma última atualização dá conta de 1.280 cursos de
graduação em Direito 17.
Paralelamente a esses dados, são recorrentes as notícias sobre os baixos índices de
aprovação no exame nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que ficou em 22% no XX
Exame (2016) e chegou a apenas 15% no XXI Exame (2017). Além disso, a entidade
recomenda apenas 142 faculdades de Direito em 2016 18.
Não se defende a utilização do exame da OAB como parâmetro para aferição de
qualidade, tendo em vista a qualidade do próprio modelo de provas, critérios de avaliação e
correção etc. Porém, se impõe a correlação entre a proliferação dos cursos de Direito e a
percebida baixa qualidade da formação jurídica.
Conforme se observa pelos dados acima, a partir da década de 1990 houve um
investimento maciço na criação de novos cursos de Direito. Esse incremento na oferta de cursos
de graduação pode ser creditado ao modelo liberal de ensino para fins de suprir as necessidades
do mercado.
A graduação em Direito foi valorizada não apenas por ser requisito para investidura
em cargos públicos, mas também porque seu currículo engloba conteúdo cobrado nos certames.
Além disso, fomentou-se todo um mercado de preparação para concursos públicos, como
cursos preparatórios e material didático específico.
Conforme a oferta de cursos jurídicos crescia para atender a demanda por preparação
para concursos públicos, também se configurava a subordinação do ensino jurídico a este fim.
As frequentes confluências entre professores de graduação, professores de cursos preparatórios,

15
MARTÍNEZ. “A evolução...”.
16 Disponível em: <http://www.jb.com.br/pais/noticias/2011/06/17/numero-de-faculdades-de-direito-chega-a-mais-de-mil/>.
Acessado em 28 set. 2017.
17
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-set-06/segunda-leitura-excesso-faculdades-direito-implodem-mercado-
trabalho>. Acessado em 28 set. 2017.
18 Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/29187/oab-entrega-a-142-faculdades-selo-de-qualidade-em-ensino-de-
direito>. Acessado em 28 set. 2017.

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integrantes de bancas organizadoras, autores de livros doutrinários e autores de livros


específicos para concursos evidenciam essa relação perniciosa. Nas palavras de Lênio Streck:

É um círculo vicioso e não virtuoso. Os concursos repetem o que se diz nos cursinhos,
um conjunto de professores produz obras que são indicadas/utilizadas nos cursos de
preparação, que por sua vez servem de guia para elaborar as questões que são feitas
por aqueles que são responsáveis pela elaboração das provas (terceirizados —
indústria que movimenta bilhões e os próprios órgãos da administração pública) 19.

Também é interessante considerar o relator de Geraldo Prado sobre o tema:

Ao mesmo tempo, o intenso recrutamento de profissionais da área jurídica,


impulsionado pela expansão das vagas no setor público em virtude da crescente
jurisdicionalização das demandas, a reclamar mais juízes, promotores de justiça,
defensores públicos e delegados de polícia (na esfera criminal) e mais concursos,
realizados periodicamente, fomentou o mercado dos cursos preparatórios para
concurso público.
Nestes cursos, por sua vez, crescia a demanda por “professores” cuja expertise era
avaliada pelo sucesso em “ser aprovado em um concurso público”, em um círculo
vicioso que funcionava a partir do sucesso dos respectivos profissionais medido pela
citada aprovação prévia em um concurso público da área e ainda pela capacidade de
aprovar alunos em concursos similares.
(...)
Ser magistrado, por exemplo, qualificava mais alguém para ser professor em um
curso preparatório para concursos do que ser mestre, doutor ou livre docente na
disciplina, embora advogado 20.

Encontra-se fundamento na obra de Pierre Bordieu, que divide o espaço social em


campos dotados de certa autonomia e que funcionam de acordo com estruturas e critérios
próprios. Os campos são compreendidos como espaços de disputa de poder, havendo posições
dominantes e dominadas que concorrem pelo domínio de sentidos e significados e que se valem
de diferentes estratégias de ação.
Nesse contexto de disputa deve-se utilizar a noção de capital, que não se limita ao
capital econômico, mas também inclui capital cultural, que pode ser entendido como os títulos,
a experiência, o conhecimento, e capital social, correspondente à rede de relacionamento dos
agentes. Cada campo valoriza as diversas formas de capital de sua própria maneira, de acordo
com interesses específicos.

19
STRECK, Lenio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis!. 2013. Revista Consultor Jurídico. Disponível
em: < http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-perguntas-imbecis>. Acessado em 26 set.
2017.
20
PRADO, Geraldo. Campo jurídico e capital científico: o acordo sobre a pena e o modelo acusatório no Brasil – transformação
de um conceito. In: PRADO, Geraldo; MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Decisão
judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 43.

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Assim, a relação entre a demanda por preparação para concurso público e a formação
jurídica dos cursos de graduação em Direito é feita a partir da perspectiva de interação entre
diversos campos sociais, especialmente o campo jurídico e seus subcampos, que Bordieu define
como o universo de agentes e instituições que produzem, reproduzem e difundem o
conhecimento jurídico. É um espaço social onde se disputa “o direito de dizer o direito”, ou
seja, a “correta” interpretação e a aplicação do direito.
A vantagem do conceito de campo é levar em consideração abertamente a influência
de fatores externos ao discurso científico produzido. Especificamente em relação à formação
jurídica dos graduandos em Direito, pode-se afirmar que determinados agentes do campo
jurídico disputam pelo domínio da influência nessa formação. Geraldo Prado afirma que, na
década de 1990, os “cursinhos” preparatórios para concurso público representavam a “principal
Escola Jurídica no Brasil” 21 justificando sua opinião na colonização das publicações jurídicas
por obras voltadas a concursos públicos, que compartilhavam com estes a mesma estrutura de
perguntas e respostas, as quais dispensavam um juízo crítico do conteúdo e omitiam do
graduando intensos debates doutrinários.
É possível identificar a ocorrência de um processo de colonização do ensino jurídico
como um todo pelo mercado dos concursos públicos, na medida em que se percebe situações
como a do próprio material didático utilizado nos cursos de graduação se confundindo com as
publicações voltadas à aprovação em concurso público, ou a divulgação do ranking de cursos
de graduação conforme a taxa de aprovação de seus graduandos no exame da OAB. Também
é válido apontar para a criação de cursos de Direito derivados de cursos preparatórios para
concursos públicos e voltados para “as carreiras públicas”, com intercâmbio entre professores
entre os cursos de graduação e preparatórios 22.
Aline Santos também visualiza um “espaço de disputa” na formação do bacharel
ocasionado pela necessidade de aprovação em concurso público ou exame específico da OAB
para que o bacharel possa exercer uma profissão jurídica 23. O mercado de cursos preparatórios

21 Idem. p. 31.
22
Como exemplo: Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Faculdade de Direito do Instituto Processus, Faculdade de Direito da
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. SANTOS, Aline Sueli de Salles. A formação acadêmica
em direito e a preparação para concursos públicos: conexões e disputas no interior do campo jurídico. In: Anais completos do
VIII Congresso Nacional da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi) / Associação Brasileira de Ensino do Direito.
1ª ed. Brasília: Associação Brasileira de Ensino do Direito, 2015. p. 80.
23
Idem. p. 81-82.

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ISSN 2236-9651, n. 7

para concurso cresceu em conjunto com o número de certames realizados e essa lógica liberal
acabou por interferir no foco da formação jurídica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível verificar a manutenção de uma crise do ensino jurídico, cujas origens


remontam à implantação das primeiras faculdades de Direito no país, que importaram o modelo
de Portugal. Esse modelo de ensino tradicional é caracterizado por posições bem marcadas. De
um lado o professor, detentor de todo o conhecimento, que expõe em sala-de-aula o conteúdo
que deve ser assimilado acriticamente pelo aluno, a quem cabe apenas a reprodução do
conhecimento recebido. Trata-se então de um conhecimento dogmático e hermético, fechado
em si mesmo, que não dialoga com outros ramos do saber ou com o meio em que o aluno se
insere.
Essa característica foi potencializada com a previsão do concurso público como
método de obtenção de cargo público e com a implementação do exame da OAB para
habilitação como advogado. Dessa forma o bacharel se vê impedido de exercer uma profissão
jurídica sem antes passar por uma seleção, atualmente baseada em uma lógica própria.
Especificamente em relação aos concursos públicos, verificou-se que os mesmo são
organizados para classificar candidatos conforme suas aptidões para realizarem provas de
múltipla escolha e discursivas com base em conteúdo selecionado por bancas. Esse universo
hermético é construído com base em uma ideologia de meritocracia escolar onde se deve
internalizar um “saber neutro”. Com a expansão do ensino e sua subornação aos ditames do
mercado de preparação para concursos, há um aprofundamento do modelo liberal e tradicional.
O ensino jurídico se mostra, assim, deficitário na preparação do corpo discente para a
vida prática, que não é aparelhado para lidar com os conflitos existentes no mundo jurídico. É
um modelo de ensino totalmente ligado à ideia de mercado, orientado então aos concurso
públicos, os quais possuem lógica interna própria e reproduzem os valores negativos da
sociedade capitalista.

REFERÊNCIAS

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da; SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; COUTO, Monica Bonetti (Org.). Educação jurídica. São
Paulo: Saraiva, 2013. Contém bibliografia. p. 565 - 576.

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110 Out. 2014/Jan. 2015 p. 671-702.

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prática jurídica e método earp como alternativa para as práticas simuladas. In: Direito, educação, ensino, e
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Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches, Alexandre Kehrig Veronese. Aguiar. – Florianópolis : CONPEDI, 2014.
Disponível em: <http://publicadireito.com.br/publicacao/ufsc/livro.php?gt=137> Acessado em 28 set. 2017.

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conexões e disputas no interior do campo jurídico. In: Anais completos do VIII Congresso Nacional da Associação
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STRECK, Lenio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis!. 2013. Revista Consultor Jurídico.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-perguntas-
imbecis>. Acessado em 26 set. 2017.

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ENTRE O TECNÓLOGO E O JURISTA

LOPES, Ricardo Ferraz Braida


Estudante de doutorado do Programa de Sociologia e Direito da UFF
Professor de Direito da FUPAC, Ubá, MG, e Estácio de Juiz de Fora, MG
MEIRELLES, Delton Ricardo Soares
Professor adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense. Integra o corpo
docente permanente do Programa de Pós-Gradução em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

Considerando a oportunidade atual sobre o debate da proliferação dos cursos de graduação em Direito
no Brasil e também a abertura dos cursos de tecnólogos em serviços jurídicos, pergunta-se: qual é o
objetivo do estudante em Ciências Jurídicas e o que se espera do curso de Direito? Objetiva-se, assim,
destacar parte das intenções dos discentes nos cursos que abordam o sistema judicial. Para tanto, procede-
se a um levantamento em uma faculdade particular na cidade de Ubá, Minas Gerais, “Fundação
Presidente Antônio Carlos”, com um questionário direcionado para 78 alunos que estão nos primeiros e
últimos períodos. A pesquisa será direcionada a traçar as expectativas dos que ingressam e dos que
finalizam o curso. Desse modo, observa-se a mudança de projeções futuras, o que permite indagar a
necessidade e relevância da expansão dos cursos de Direito e a criação de cursos técnicos para atenderem
a demanda dos mercados e atuações profissionais contemporâneos.

Palavras-Chave. Ensino. Direito. Tecnólogo

ABSTRACT

Considering the current opportunity on the discussion about the proliferation of universities of Law in
Brazil and the opening of the certificate programs in legal services, we ask: what is the objective of the
student in Law and what is expected of the course? It aims to highlight some of the intentions of the
students in the courses that approach the judicial system. To do so, a survey was carried out in the city
of Ubá, Minas Gerais, at "Presidente Antônio Carlos Foundation". The research was directed to
discover the expectations of those who enter and those who finish the course. In this way, we can observe
the change in future projections, which allows us to investigate the need and relevance of the expansion
of Law courses and the creation of certificate programs to meet the demand of job markets and
professional performances.

Keywords. Education. Law. Certificate

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INTRODUÇÃO

Considerando a oportunidade atual sobre o debate da proliferação dos cursos de


graduação em Direito no Brasil e também a recém-possibilidade de expansão dos cursos de
tecnólogos em serviços jurídicos, pergunta-se: qual é o objetivo do estudante em Ciências
Jurídicas e o que se espera do curso de Direito? Além disso, pode-se indagar: esses cursos
ajudam no desenvolvimento de um ofício específico?
Objetiva-se, assim, destacar parte das intenções dos discentes nos cursos que abordam
o sistema judicial. Para tanto, procede-se a um levantamento em uma faculdade particular na
cidade de Ubá, Minas Gerais, “Fundação Presidente Antônio Carlos”, com um questionário
direcionado para 78 alunos que estão no primeiro, segundo, oitavo e décimo períodos. Quanto
ao tipo, o questionário aplicado foi fechado, formado por sete perguntas e uma última discursiva
com a possibilidade do entrevistado apresentar a sua opinião. Além disso, o questionário foi
direto e também não assistido.
A pesquisa foi direcionada a traçar as expectativas dos que ingressam e dos que
finalizam o curso. Desse modo, buscou-se observar a mudança de projeções futuras. Contudo,
a hipótese inicial não se confirmou, conforme será destacado nas conclusões do presente
trabalho. Assim, diante do resultado obtido, foi possível indagar, a partir de novos pontos de
vista, a necessidade e a relevância da expansão dos cursos de Direito e a criação de cursos
técnicos para atenderem a demanda dos mercados e atuações profissionais contemporâneos.

1. O CURSO DE TECNÓLOGO EM SERVIÇOS JURÍDICOS

Uma polêmica ronda o universo jurídico no Brasil. Após uma suspensão temporária
e a consequente reabertura, no dia 4 de outubro de 2017 foi publicado no Diário Oficial da
União (D.O.U.) o reconhecimento pelo Ministério da Educação (MEC) do curso a distância de
Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais (Tecnológico) do Centro Universitário Internacional
(Uninter), com três mil vagas. A contragosto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que
discorda publicamente da iniciativa desde 2015, ingressou com uma ação civil pública contra
o reconhecimento do curso (REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 2017).
Pelo menos três instituições de ensino do país já oferecem cursos de tecnologia em
Serviços Jurídicos, na modalidade a distância. O Centro Universitário Internacional (Uninter)
oferece desde 2014 aulas de Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais. A sua grade curricular

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inclui legislação trabalhista, mediação e arbitragem, registro de imóveis e competências do


oficial de Justiça (LUCHETE, 2017)
O site da Uninter anuncia: “O curso prepara você para um excelente desempenho nas
carreiras parajurídicas do Poder Judiciário, cartórios judiciais e extrajudiciais, tabelionatos,
escritórios de advocacia, esfera policial, departamentos jurídicos e de recursos humanos de
empresas, assessoria parlamentar, ou como profissional autônomo” (in LUCHETE, 2017).
Portanto, o curso de tecnólogo tem o intuito de encaminhar ao mercado de trabalho
pessoas aptas a auxiliar advogados, promotores e juízes, por exemplo, além de concursos que
não exigem a formação específica em Direito. É preciso destacar que a preparação do tecnólogo
é distinta da de um bacharel em Direito. Sua formação se dá em dois anos, mas o diploma é
também considerado de ensino superior.

2. A CIDADE, A FACULDADE E O QUESTINÁRIO

Nessa etapa iremos delimitar o campo de análise, apresentando a cidade de Ubá,


Minas Gerais, e a Faculdade em que foi aplicada a presente pesquisa - Fundação Presidente
Antônio Carlos. Em um segundo momento, serão destacados os resultados das perguntas
direcionadas aos estudantes do curso de Direito, trazendo algumas observações sobre os dados
quantitativos.

2.1. FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS (FUPAC) DE UBÁ, MG

O município de Ubá, pertencente à mesorregião da Zona da Mata, encontra-se no


estado de Minas Gerais, mais precisamente a 280 km da Capital Belo Horizonte. Com uma
população estimada em 113.300 mil habitantes, seu PIB (Produto Interno Bruto) no ano de
2010 foi de R$ 13.564,99 (IBGE). Ubá é ainda o centro econômico da sua microrregião e de
microrregiões próximas. É considerado o principal polo moveleiro do estado e o terceiro maior
do país.
De acordo com o site institucional da universidade, a Fundação Presidente Antônio
Carlos (FUPAC) de Ubá é uma das unidades mais antigas da história da Universidade
Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), que teve início em 1963, em Barbacena, Minas Gerais.
Em uma contínua expansão, a Fundação Presidente Antônio Carlos passou a estar presente na
cidade de Ubá no ano de 1970. Atualmente a FUPAC/UNIPAC está presente em mais de 160

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cidades de Minas Gerais, com cerca de 45 mil universitários, oferecendo mais de 200 cursos de
graduação, e contando ainda com o Ensino Fundamental, Médio, pós-graduação lato sensu em
diversas áreas do conhecimento, além de pós-graduação stricto sensu, em Administração,
Direito, Comunicação e Tecnologia e Educação e Sociedade.
Mais precisamente, a Faculdade de Direito da FUPAC de Ubá teve sua primeira turma
de ingressos no ano de 1997. Atualmente a unidade conta com cerca de 320 alunos na
graduação de Direito. De acordo com a última avaliação (2017) do MEC, o curso de Direito
recebeu conceito 4, o que denota um desempenho satisfatório.

2.2. QUESTIONÁRIO

Entre os dias 19/10/2017 a 25/10/2017 foi aplicado um questionário a 78 alunos de


Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Ubá, Minas Gerais, com o intuito de
proceder a um levantamento sobre suas opiniões acerca da criação de cursos para Tecnólogo
em Serviços Jurídicos. O universo de alunos foi compreendido entre os que ingressaram há
pouco tempo (1 º e 2º períodos) e aqueles que estão na etapa final (8º e 10º períodos).
Quanto ao tipo, o questionário aplicado foi fechado, formado por sete perguntas e uma
última discursiva com a possibilidade do entrevistado apresentar a sua opinião. Além disso, o
questionário foi direto e também não assistido.
Assim, pode-se destacar abaixo as respostas obtidas:

2.2.1. QUANTOS ANOS VOCÊ TEM?

Gráfico 1. Idade

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Os dados indicam uma média de idade de aproximadamente 23 anos. O maior número


de entrevistados também possuem 23 anos (16,7%). Os mais novos (10 ao todo) possuem 18
anos, o entrevistado mais velho possui 54 anos.

2.2.2. QUAL É O SEU ATUAL PERÍODO?

Gráfico 2. Período

De acordo com o levantamento, 58,9% (8º e 10º períodos) dos entrevistados são os
potenciais egressos. Enquanto que 41,1% (1º e 2º períodos) são os ingressos no curso.

2.2.3. ALÉM DAS DISCIPLINAS CURSADAS NA FACULDADE DE DIREITO, QUE


OUTRAS ATIVIDADES CONSOMEM CONSIDERAVELMENTE SEU DIA ÚTIL?

Gráfico 3. Atividades

Entre o universo de alunos entrevistados se destaca a característica de que uma grande


parcela (39,8%) trabalha em uma atividade que não está ligada ao ramo do Direito. Além disso,
é preciso destacar que 33,3% atuam em estágios remunerados, somando um total de 73,1% de
discentes que percebem alguma renda durante o curso.

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2.2.4. QUAL É O SEU OBJETIVO APÓS GRADUAR-SE EM DIREITO?

Gráfico 4. Objetivos

Quanto ao objetivo dos estudantes após graduarem-se, 33,3% assinalaram a hipótese


de prestar concursos para áreas administrativas e cartoriais (17,9%), além das carreiras policiais
(15,4%). É importante destacar esse dado, pois tais concursos não exigem a formação específica
em Direito.
Ressalta-se, ainda, que 11,6% dos entrevistados não sabem até o momento qual o
objetivo com a possível formação em Direito.

2.2.5. VOCÊ SABIA QUE O BRASIL POSSUI CERCA DE 1.240 CURSOS


SUPERIORES DE DIREITO? COM ESSE NÚMERO, O PAÍS SE CONSAGRA COMO A
NAÇÃO COM MAIS CURSOS DE DIREITO DO MUNDO TODO. A SOMA TOTAL DE
FACULDADES DE DIREITO NO MUNDO CHEGA A 1.100 CURSOS. AS INFORMAÇÕES
SÃO DE 2017 E FORAM DIVULGADAS NO BLOG LEIS E NEGÓCIOS DO PORTAL IG.

Gráfico 5. Número de faculdades de Direito

Nessa etapa destaca-se o pouco conhecimento sobre a expansão dos cursos de Direito
no Brasil e, consequentemente, o seu mercado profissional. Assim, pode-se apreender que

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80,8% dos estudantes ignoram a realidade concreta da hiperinflação dos cursos de Direito,
realidade ao qual estão inexoravelmente inseridos.

2.2.6. VOCÊ FICOU SABENDO DA POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO DO CURSO DE


TECNÓLOGO EM SERVIÇOS JURÍDICOS?

Gráfico 6. Criação do curso de tecnólogo em Serviços Jurídicos

Ao contrário da pergunta anterior, 50% dos graduandos afirmaram ter ciência da


possibilidade de criação do curso de tecnólogo em Serviços Jurídicos, o que pode denotar uma
atenção especial a esse novo campo de ensino.

2.2.7. O TECNÓLOGO PODE SE FORMAR EM DOIS ANOS E SAI COM DIPLOMA


CONSIDERADO DE ENSINO SUPERIOR. O CURSO PREPARA VOCÊ PARA UM
DESEMPENHO NAS CARREIRAS "PARAJURÍDICAS" DO PODER JUDICIÁRIO,
CARTÓRIOS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS, TABELIONATOS, ESCRITÓRIOS DE
ADVOCACIA, ESFERA POLICIAL, DEPARTAMENTOS JURÍDICOS E DE RECURSOS
HUMANOS DE EMPRESAS, ASSESSORIA PARLAMENTAR, OU COMO
PROFISSIONAL AUTÔNOMO. CONTUDO HÁ RESTRIÇÃO NA ATUAÇÃO DAS
CARREIRAS JURÍDICAS, COMO JUIZ, PROMOTOR, ADVOGADO, DEFENSOR
PÚBLICO E DELEGADO. SABENDO DESSAS INFORMAÇÕES, VOCÊ ESCOLHERIA O

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CURSO DE TECNÓLOGO EM SERVIÇOS JURÍDICOS AO INVÉS DO CURSO DE


DIREITO?

Gráfico 7 – Entre o tecnólogo e o jurista

Dentre os entrevistados, 9% responderam afirmativa sobre a possibilidade de escolha


do curso de Tecnólogo em Serviços Jurídicos ao invés do curso de Direito. Contudo, a maioria
esmagadora (93%) negou a possibilidade de trocar a graduação em Direito por um curso que
oferece maiores restrições profissionais.
Há que se destacar que dentre os 7 (o que equivale a 9%) que assinalaram
positivamente, três são do 2º período; dois do 8º período; e dois do 10º período.
Contudo, é preciso ressaltar que, incoerentemente, apenas três entrevistados
afirmaram na pergunta 2.2.4 que desejariam a área administrativa ao formarem e escolheram,
por fim, o curso de tecnólogo.

2.2.8. VOCÊ TEM ALGUMA OPINIÃO FORMADA SOBRE O TEMA? QUER


DEIXAR A SUA OPINIÃO?

Nesta última parte, aberta à participação dos alunos, somente 19 entrevistados


apresentaram alguma opinião. Abaixo seguem algumas posições favoráveis e contrárias à
criação do curso de tecnólogo.
Posições contrárias:

“Já existem bacharéis de direito e advogados de sobra. Só inflacionaria o mercado e


pioraria os ganhos dos profissionais já formados e capacitados. O ideal é efetivar a
fiscalização das faculdades de péssima qualidade que se multiplicam cotidianamente.
Essa proposta mostra apenas mais uma face do nosso "jeitinho brasileiro", mais uma

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invenção política sem lógica. Quem se beneficia com essa falsa democratização da
educação? Qual vantagem tem o aluno da escola pública sair com um diploma se a
faculdade não prepara um profissional minimamente qualificado? Não me assustaria
se aprovada, só seria mais uma jabuticaba...” (Estudante do 8º período)

Acho que os 05 anos que estudamos o Direito não é suficiente para nos qualificar de
forma adequada para o mercado de trabalho, imagina profissionais formando com
muito menos tempo. Sem contar que são vários sacrifícios para enfrentar uma
faculdade durante 05 anos, para criarem um curso que teoricamente o aluno teria a
mesma qualificação de quem fez um curso de Direito regular. (Estudante do 10º
período)

Acho o curso de TECNÓLOGO extremamente abusivo e uma ofensa a nós


estudantes e bacharelados em DIREITO. Nosso curso vai ser desvalorizado e cabe a
OAB tomar medidas extremas a esse curso. (Estudante do 8º período)

Após o curso de direito ser sucateado havendo a possibilidade de qualquer faculdade


abrir o curso e o ingresso de inúmeros profissionais desqualificado, o MEC insiste
em demonstrar seu descaso com a função judiciaria e cria o curso de tecnólogo. (10º
estudante do período)

Posições favoráveis:

Acho que o curso de tecnólogo é válido para aqueles que fazem o curso de Direito
mas na verdade não pensam em seguir nenhuma carreira jurídica, mas querem
ampliar seus conhecimentos e consequentemente as oportunidades de emprego.
(Estudante do 8º período)

Ao meu ver depende muito da condição social do estudante. Exemplo: conheço


várias pessoas que optam por cursos técnicos por não terem condições de cursar uma
graduação regular. Não só isto, muitos saem de casa para trabalhar o dia todo, e
manter uma casa é complicado. Portanto, se estes estudantes tivessem condições, e
tempo; com certeza fariam o curso em uma faculdade ou até mesmo em uma federal.
(Estudante do 10º período)

Creio que o curso para técnico seria uma opção mais viável para pessoas com um
tempo mais curto e que não tenham interesse nas grandes oportunidades que o direito
pode proporcionar. (Estudante do 2º período)

Superinteressante a possibilidade, visando buscar a celeridade na formação dos


acadêmicos que possuem interesse em atuar nos cargos que possibilitam a atuação
pelo curso tecnólogo. (Estudante do 10º período)

Acredito que para a área jurídica, em regra, não haja uma substancial diferença entre
cursar a graduação em direito ou tecnólogo para aqueles que desejam prestar
concurso público nas áreas permitidas para ambos os cursos. Haja vista que os
concursos são muito concorridos e o que diferencia os candidatos é a dedicação nos
estudos direcionados para o concurso que pretende. (Estudante do 10º período)

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CONCLUSÕES

Em derradeiro, cabe na presente oportunidade apresentar considerações e conclusões


sobre a pesquisa, refletindo criticamente o método adotado e a hipótese inicial da pesquisa.
Como já exposto, o universo de amostragem foi bastante reduzido, o que delimita uma
apreensão mais ampla sobre o tema. Contudo, uma interpretação pode se destacar.
Quando iniciada a pesquisa, a hipótese seria a de que os alunos que estão nos últimos
períodos refletiriam sobre a hiperinflação dos cursos de Direito no Brasil e a saturação do
mercado de trabalho. Assim, analisando sobre suas possíveis atuações profissionais no futuro,
apresentariam uma maior aceitação sobre a possibilidade de cursar uma graduação de
Tecnólogo em Serviços Jurídicos ao invés de Direito, já que grande parte dos entrevistados
pretende prestar concursos para áreas que não exigem a graduação específica em Direito.
Imaginava-se que o esgotamento de cinco anos de curso e a iminente perspectiva sobre a
entrada em um mercado de trabalho extremamente concorrido levaria a uma conclusão
pragmática: capacitar-se para as mesmas oportunidades (concursos para áreas administrativas
e carreiras policiais) em um tempo menor (2 anos).
Contudo, essa hipótese não se confirmou. A partir das repostas, principalmente das
opiniões apresentadas, pode-se depreender que quanto mais próximo da conclusão de curso,
mais contundente é a crítica sobre a possibilidade de abertura do curso de Tecnólogo em
Serviços Jurídicos. Dessa informação, é possível perceber que o esforço de graduar-se em
Direito gera também um discurso de reserva de mercado e uma perceptível indignação que se
transforma em críticas à política de ensino das ciências jurídicas.
Talvez isso explique em parte a resistência de algumas instituições, como a OAB, à
abertura do curso de Tecnólogo em Serviços Jurídicos. Talvez isso denote uma contradição na
própria pesquisa. A certeza é a de que o estudo e o debate necessitam de mergulhos reflexivos
mais profundos.

REFERÊNCIAS

FUNDAÇÃO PRESIENTE ANTÔNIO CARLOS. Sobre a FUPAC. Disponível em


http://www.ubafupac.com.br/pagina/2/sobre_a_unipac

IBGE. Disponível em
https://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=_PT&codmun=316990&search=||infogr%E1ficos:-dados-
gerais-do-munic%EDpio

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ISSN 2236-9651, n. 7

LEIS E NEGÓCIOS. In Portal IG. Disponível em https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/brasil-tem-


mais-cursos-de-direito-do-que-todos-os-outros-paises-do-mundo-juntos/

LUCHETE, Felipe. Conselho do MEC libera cursos de tecnólogo e técnico em Serviços Jurídicos. Consultor
Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-abr-10/conselho-mec-libera-tecnologo-tecnico-
servicos-juridicos

REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. OAB vai à Justiça contra curso superior de tecnólogo em Serviços Jurídicos.
Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-out-23/oab-justica-curso-tecnologo-servicos-juridicos.

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AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE:
RETRATOS DE UMA PESQUISA SOBRE
A INSERÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS EM UMA
FACULDADE PÚBLICA DE DIREITO

SANTOS, Erli Sá dos


Estudante de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF
ALMEIDA, Matheus Guarino Sant’Anna Lima de
Estudante de graduação da Faculdade de Direito da UFF
PACHECO, Heloisa de Faria
Estudante de graduação da Faculdade de Direito da UFF

RESUMO

O presente artigo traz conclusões e reflexões de pesquisa realizada acerca da implementação das ações
afirmativas em uma Faculdade de Direito de uma universidade pública federal. A pesquisa se dividiu em
dois momentos: em uma primeira parte, a pesquisa consistiu na coleta e tabulação objetiva de dados nos
bancos públicos da universidade. Na segunda parte, a pesquisa buscou investigar a percepção da
comunidade acadêmica (graduandos, pós-graduandos, professores e servidores) sobre o sistema de cotas,
através de questionários semi-estruturados. Foram utilizados os referencias teóricos da Análise do
Discurso de matriz francesa. Os resultados da pesquisa apontam para a mudança no perfil do corpo
discente da faculdade, e aponta ainda dificuldades no combate ao racismo, no sentimento de
pertencimento dos alunos cotistas, e no silenciamento do debate sobre cotas na Faculdade.

Palavras-Chave. Ações Afirmativas. Racismo. Silenciamento.

ABSTRACT

The following article brings conclusion and reflection about the search done onto the Federal University
Law school. The research has been devided in two topics: the first part consists in the gathering and
systemizing of public data from the university. In the second part, the research investigated the academic
community’s (undergraduates and graduated students, professors and staff) perception about the quota
system, through semi-structured questionnaires. For the purpose of this article, theoretical references
from French school of Discourse Analysis. Research results point to a change in the student body profile,
and also to challenges in combating racism, in the quota student’s sense of belonging and in the silencing
of quota debate in the University.

Keywords. Affirmative Actions. Racism. Silencing.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto de pesquisa realizada entre os anos de 2015 e 2016, acerca da
implementação e recepção das ações afirmativas na Faculdade de Direito da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Mais precisamente, a pesquisa buscava investigar tanto dados sobre
o sistema de ações afirmativas implementado na UFF, quanto dados objetivos relacionados às
ações afirmativas na Faculdade de Direito desta universidade, quanto dados subjetivos ligados
às percepções dos diferentes seguimentos da comunidade acadêmica desta faculdade quanto à
implementação das ações afirmativas, compreendendo alunos de graduação, pós-graduação,
professores e servidores.
O sistema de reserva de vagas por cotas para o ingresso no ensino superior em
universidades federais foi implementado em seu modelo atual através da lei 12.711/2012, a
chamada lei de cotas. Anteriormente a ela, algumas universidades federais já adotavam outros
modelos de ações afirmativas para grupos minoritários, por critérios de renda ou raça e etnia.
Na UFF, havia anteriormente um sistema de acréscimo de pontos na nota do vestibular para os
autodeclarados pretos e pardos, sistema este que foi abandonado com a implementação da lei
atual.
Pela lei atual, são reservados, “em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de
graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (BRASIL,
2012a). Deste percentual, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes
oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e
meio). Ainda deste percentual, serão reservadas vagas aos autodeclarados pretos, pardos,
indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde a universidade
estiver situada, de acordo com o censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Os outros 50% de vagas do total serão destinados aos estudantes não
cotistas, ou seja, aqueles que fazem o processo seletivo em ampla concorrência.
Desta maneira, a reserva é realizada atualmente em quatro modalidades, de acordo
com o artigo 14 da Portaria nº 18, de 11 de outubro de 2012, do Ministério da Educação
(BRASIL, 2012b), que regula a aplicação da lei de cotas. A primeira modalidade (chamada L1)
engloba os candidatos com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo
que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. A segunda modalidade
(L2) engloba os candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, com renda familiar

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bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado integralmente o
ensino médio em escolas públicas. A terceira modalidade (L3) engloba os candidatos que,
independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas. E a quarta modalidade (L4) engloba os candidatos autodeclarados pretos, pardos ou
indígenas que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas.
De acordo com o art. 8º do Decreto 7.824/2012, a implementação de 50% de reserva
de vagas se deu de maneira progressiva, sendo aplicada 12,5% de reserva de vagas a cada ano,
até agosto de 2016, quando houve a integralização da reserva de vagas. Desta maneira, os
períodos mais iniciais, apresentam maior quantidade de cotistas do que os períodos mais
avançados (aqueles próximos de concluir o curso).
A motivação inicial da pesquisa foi realizar uma investigação ampla sobre a inserção
e recepção do sistema de reserva de vagas na Faculdade de Direito da UFF, investigando como
a comunidade acadêmica entendia as mudanças na Faculdade a partir de sua implementação,
relacionando possíveis resultados desta política pública a questões como o combate racismo, à
inclusão, à diversidade e a formação educacional do profissional de direito.
A pesquisa partiu de um entendimento pressuposto no senso comum de que a
Faculdade de Direito é considerado um ambiente geralmente elitista, conservador, opressor e
racista (percepção esta que acabou por ser corroborada pelos diversos depoimentos trazidos na
pesquisa), a pesquisa se justificava pela necessidade de gerar dados sobre a situação dos
ingressantes por ações afirmativas na Faculdade de Direito, sobre seus sentimentos de
pertencimento, e sobre a percepção de toda a comunidade acadêmica acerca de temáticas
ligadas à às ações afirmativas e ao racismo, além das mudanças que a Faculdade teria passado
com o decorrer da implementação do sistema de cotas.
A pesquisa foi realizada ao longo dos anos de 2015 e 2016, sob a coordenação do
professor Delton Meirelles. Participaram da pesquisa, de início, alunos voluntários, e ao longo
de 2016, durante os períodos de 2016.1 e 2016.2, alunos inscritos na disciplina optativa “Grupo
de pesquisa em Direitos Humanos, Governança e Poder”.
O presente artigo traz alguns dados e reflexões sobre a pesquisa, sendo dividido em
quatro partes. Na primeira, será explicada a construção da pesquisa, a maneira de coleta e
interpretação de dados, e algumas reflexões sobre eles. Na segunda parte, serão expostos e
analisados alguns dos dados objetivos coletados pela pesquisa, provenientes dos bancos

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públicos de dados da Universidade, oriundos de dados cedidos pela coordenação de curso da


Faculdade de Direito, e coletados a partir dos questionários semi-estruturados. A terceira parte
realizará uma breve análise das respostas abertas dos questionários, sobre a percepção da
comunidade acadêmica sobre o sistema de cotas. Por fim o encerramento traz algumas
reflexões sobre o silenciamento do debate acerca do racismo e das ações afirmativas,
entendendo o silenciamento como a materialidade do silêncio. Tomando por base os
referenciais teóricos da Análise de Discurso de matriz francesa, através dos conceitos
desenvolvidos por Eni ORLANDI (1995), será apresentado o resultado de um esforço
interpretativo que buscou compreender os discursos apurados na pesquisa. Assim, com essa
base teórica, o silêncio no contexto universitário representa uma categoria que significa, porque
por trás dele há uma história, que possibilita sua compreensão.

1. A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA

Como colocado, a pesquisa foi realizada entre os anos de 2015 e 2016 e contou com
diversas etapas. A primeira etapa, inicial, consistiu na coleta e tabulação objetiva de dados nos
bancos públicos da UFF e de dados fornecidos pela Coordenação do curso de Direito da UFF.
Primeiramente, foi realizado um mapeamento do corpo estudantil da UFF e das
formas de ingresso dos estudantes entre os anos de 2010 e 2015. Para o mapeamento, foram
utilizados dados públicos da Coordenação de Seleção Acadêmica da UFF (COSEAC-UFF) e
do SISU/ENEM1 do Ministério da Educação. Estes dados foram cruzados com dados
fornecidos pela Coordenação de Curso da Faculdade de Direito da UFF, que traziam
informações como CR (Coeficiente de Rendimento, média de notas do aluno ao longo do
curso), trancamento e reprovação de disciplinas, idade, abandono, nota de ingresso no ENEM.
Também foram obtidos dados gerais sobre notas de corte, notas de chamada na última chamada,
desistência de vaga, cancelamento2, porcentagem de alunos que continuam cursando o curso e
os que estão com a matrícula trancada, sendo todos estes dados descriminados por semestre de
ingresso e por forma de ingresso (cada tipo de reserva de vagas ou ampla concorrência). Estes

1
SISU é o Sistema de Seleção Unificada para o ingresso no ensino superior, generalizado para a maior parte das universidades
brasileiras, através das notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), realizado anualmente pelo Ministério da
Educação.
2
Os cancelamentos foram descriminados em trancamentos por indeferimento de avaliação socioeconômica, por alteração de
matrícula, por mudança de curso, por rematrícula ou por solicitação oficial. Se realizados com os dados do ano de 2017, também
haveriam dados

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dados, conforme será demonstrado, nos ajudaram a desfazer uma série de pré-concepções sobre
o aproveitamento dos alunos ingressantes por ação afirmativa em comparação com os
ingressantes por ampla concorrência, assim como mapear uma série de desafios para a
concretização dos fins do sistema ações afirmativas.
A partir desta etapa inicial, os pesquisadores envolvidos puderam discutir e elaborar
as questões a constarem nos formulários que seriam distribuídos para a comunidade acadêmica,
tomando como base as reflexões tiradas da análise dos dados coletados, e reflexões acerca da
problemática das ações afirmativa das questões raciais e sociais internas à Faculdade de Direito
e ao campo jurídico.
Em um segundo momento, então, foi realizada pesquisa através de questionários
semi-abertos, distribuídos por meio eletrônico, a serem respondidos pelos diversos setores da
comunidade acadêmica. Desta maneira, foram elaborados questionários diferentes para os
alunos de graduação3, para os alunos de pós-graduação, para os professores e para os servidores,
além de um formulário específico para os graduandos ingressantes por reserva de vagas.
Os questionários respondidos pelos ingressantes por ação afirmativa possuíam
também perguntas de caráter socioeconômico, e perguntas que buscavam as experiências e
anseios destes alunos sobre o curso de Direito e a Universidade4.

3
A título de exemplo, o formulário graduandos (ingressantes por ampla concorrência ou por ação afirmativa) possuía onze
perguntas objetivas e uma de resposta aberta. Todas as perguntas objetivas, com exceção das perguntas 4 e 8, consistiam em uma
afirmação, à qual se questionava o nível de concordância (“concordo integralmente”, “concordo parcialmente”, “discordo
parcialmente”, “discordo integralmente” ou “não tenho opinião formada”). Eram elas: 2) “Com relação à frase "a Universidade
deveria considerar exclusivamente o mérito intelectual como critério de acesso aos cursos de graduação”; 3) “Com relação à frase
"a Universidade deveria selecionar estudantes que representassem fielmente a diversidade econômica e étnica de nossa
sociedade”; 5) “Com relação à frase "reservar vagas para estudantes de baixa renda diminui a qualidade do Curso de Direito"; 6)
“Com relação à frase "reservar vagas para estudantes egressos de escolas pública (ensino médio) diminui a qualidade do Curso
de Direito"; 7) “Com relação à frase "reservar vagas para estudantes indígenas, negros e pardos”; 9)“Com relação à reserva de
vagas para bolsas no Curso de Graduação em Direito da UFF (monitoria, extensão, PIBIC etc.)”; 10) “Com relação a reserva de
vagas para ingresso nos Cursos de Pósgraduação stricto sensu (mestrado e doutorado) vinculados à Faculdade de Direito da UFF”;
11) “Com relação a reserva de vagas nos concursos para professor efetivo do Curso de Direito da UFF: diminui a qualidade do
Curso de Direito"; e 12) Com relação a reserva de vagas nos concursos para carreiras jurídicas (magistratura, Ministério Público,
Defensoria Pública, Advocacia Pública etc.)”. As duas perguntas que possuíam opções de respostas diferentes eram: 4) “Em sua
opinião, a reserva de vagas por política de ação afirmativa (pode marcar mais de uma opção)”, com as seguintes possibilidades
de resposta: a) “Não deveria existir”; b) “Deve incluir estudantes que cursaram ensino médio em escolas públicas”; c) “Deve
incluir estudantes pobres.” d) “Deve incluir estudantes por critérios étnicos (indígenas, negros e pardos)” e) “Não tenho opinião
formada”; e 8) “Em sua opinião, qual seria um percentual justo de reserva de vagas, no Curso de Direito da UFF, para políticas
de ação afirmativa?”, com as seguintes possibilidades de resposta: a) “0% (todos devem disputar em igualdade de condições).”;
b) “1% a 10%.”; c) “11% a 25%.”; d) “26% a 50%.”; e) “51% a 75%.”; f) “76% a 90%.”; g) “91% a 99%.”; h) “100%”. i) “Não
tenho opinião formada.”
A pergunta aberta era “Qual é a sua opinião sobre reserva de vagas para o Curso de Direito da UFF, em razão de políticas de ação
afirmativa ("cotas").
Os outros formulários distribuídos aos professores, servidores e estudantes de pós-graduação traziam perguntas sobre os
conhecimentos, percepções e opiniões destas pessoas acerca do sistema de cotas, sua inserção na Faculdade de Direito, e sobre
outras políticas de ações afirmativas.
4 Constavam como perguntas específicas para este questionário: 1)“Em qual escola você concluiu o ensino médio?” (resposta

aberta) ; 2) “Em que ano você concluiu o Ensino Médio?” (resposta aberta); 3) “Você frequentou algum curso preparatório

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Após a distribuição dos questionários, foram realizados também, em dois encontros,


grupos focais com os alunos cotistas, onde, reunidos, se conversou sobre o sistema de cotas,
sobre racismo, sobre a Faculdade de Direito e sua experiência nela.
A pesquisa mapeou 193 ingressantes por ação afirmativa por bônus ou reserva de
vaga com matrícula ativa no segundo semestre de 2015. A distribuição dos formulários por via
eletrônica obteve 115 respostas para este seguimento. Quanto ao resto da comunidade
acadêmica, obteve-se a resposta de 16 professores, 20 servidores/técnicos, 317 graduandos5 e
34 pós-graduandos.
Uma vez coletados e sistematizados os dados e as respostas das pesquisas, estes foram
discutidos pelo grupo de pesquisa, e levados junto ao Centro Acadêmico Evaristo da Veiga
(CAEV - Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFF) ao Colegiado de Curso da
Faculdade, resultando em uma série de discussões com os membros do colegiado que
culminaram na aprovação de ações afirmativas e recomendações com o intuito de incentivar a
permanência e as discussões acerca das temáticas de ações afirmativas e racismo na Faculdade.

para o ENEM?” (com as possíveis respostas: a) não; b) “Sim, curso preparatório gratuito ou com taxa de valor baixo, incluindo
"pré-vestibular" comunitário”, ou c) “Sim, curso preparatório pago”); 4) “Em qual município você morava ao optar, no
vestibular/SISU, pelo Curso de Direito/UFF?” (resposta aberta); 5) “Você permanece morando no mesmo município,
atualmente?” (com as possíveis respostas: a “sim”; b) “Não, ao longo do curso, mudei-me com minha família (pais, casamento,
união estável etc.”) c)” Não, ao longo do curso, mudei-me para morar sozinho”; e d) Não, ao longo do curso, mudei-me para
morar com outras pessoas (ex. "república estudantil"); 6) “Exerce alguma ocupação além dos estudos?” (com as possíveis
respostas: a) “Não, sou estudante em tempo integral” b) “Sim, faço estágio extraoficial não remunerado; c) “Sim, faço estágio
extraoficial remunerado”; d) “Sim, faço estágio oficial em instituição pública (MP, Defensoria, Juizado etc.)”; e) Sim, faço
estágio oficial em escritório de advocacia.” f) “Sim, trabalho em órgão público (servidor ou terceirizado)”; g) “Sim, trabalho
em empresa privada com carteira de trabalho”; h) “Sim, sou profissional liberal e/ou trabalhador informal”; i) Prefiro não
responder a esta pergunta .h)Outros); 7) Você cursou outra graduação antes de se matricular no Curso de Direito da UFF?
(com as possíveis respostas: a) “Não”; b) “Sim, cursava graduação em Direito em instituição particular, com financiamento
estudantil”; c) “Sim, cursava graduação em Direito em instituição particular, sem financiamento estudantil (FIES)”; d) “Sim,
cursava graduação em Direito em outra universidade pública”; e) “Sim, na própria UFF, e me graduei em outro curso”; f)
“Sim, na própria UFF, sem concluir outro curso de graduação”; g) “Sim, em outra universidade pública, concluindo a
graduação em outro curso”. h) “Sim, em outra universidade pública, sem concluir o outro curso de graduação”); j) “Sim, em
instituição particular (com FIES) concluindo a graduação em outro curso”. h) “ Sim, em instituição particular (com FIES), sem
concluir outro curso de graduação”; i) “Sim, em instituição particular (sem FIES), concluindo a graduação em outro curso” k)
“Sim, em instituição particular (sem FIES), sem concluir outro curso de graduação”) ;8) Por que você decidiu cursar Direito?
(resposta aberta); 9) Atualmente, o que mais motiva você a concluir a graduação em Direito? (resposta aberta); 10) Com relação
aos estudos no ensino médio, você considera o Curso de Direito da UFF (com as possíveis respostas: a) “Com maior exigência
e rigor nas avaliações”; b) Com praticamente o mesmo nível de exigência do Ensino Médio” c) “menos exigente que o Ensino
Médio”). 9) Ao longo do Curso, você obteve algum tipo de apoio financeiro e/ou acolhimento? (com as possíveis respostas: a)
“Não, e não faria diferença para mim”; b) “Não, e isto seria importante para minha vida acadêmica” c) “Sim, fui/sou bolsista
(monitor, iniciação científica, extensão, acolhimento etc) d) “Sim, moradia estudantil”; e) “Sim, obtive apoio financeiro eventual
para participação em eventos acadêmicos, esportivos e/ou culturais.”; f) “Outros”). Por fim, também era perguntado no
questionário, se o aluno se disponibilizaria para participar de grupo focal com o grupo de pesquisa, o que resultou nos dois grupos
focais descritos ao longo do texto.
5
A pesquisa zelou para que fosse obtido um mínimo de respostas para cada período da graduação, de modo a não haver uma
contaminação de respostas da pesquisa por um grande número de respostas de alunos de um período, e menos de outro, uma vez
que com o processo gradual de implementação do sistema de cotas, as turmas mais antigas possuem menos cotistas.

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A observação dos dados coletados possibilitou a identificação de marcas (formas) de


silêncio: ausências, apagamentos, não-ditos, negações. As ferramentas da Análise de Discurso,
presentes nas obras de Eni P. Orlandi, possibilitam entender que essas manifestações (ou não
manifestações) são especialmente significativas, já que elementos discursivos. Nesse contexto
acadêmico, considerado de elite, em que os interesses hegemônicos são perpetuados em
especial pela relação entre poder e dominação, é muito possível a compreensão da presença de
racismo.

2. ALGUNS DADOS OBJETIVOS OBTIDOS NAS RESPOSTAS DOS


QUESTIONÁRIOS

A pesquisa coletou e mapeou dados objetivos provenientes dos bancos de dados


públicos, da Coordenação de Seleção Acadêmica da UFF (COSEAC-UFF) e do SISU/ENEM
do Ministério da Educação, e fornecidos pela coordenação da Faculdade de Direito da UFF
referentes aos estudantes cotistas com matrícula ativa no segundo semestre de 2015. Nesse
período, 193 estudantes que ingressaram por bônus ou reserva de vagas entre o primeiro
semestre de 2013 e o segundo semestre de 2015 permaneciam cursando a graduação em direito.
Através dos provenientes da COSEAC-UFF e do SISU/ENEM, foi possível mapear
a nota de corte de ingresso pela ampla concorrência e por reserva de vagas. Mapeando a nota
de corte do SISU entre o primeiro semestre de 2014 e o segundo semestre de 2015, as maiores
notas de corte na primeira chamada foram todas da ampla concorrência, sinalizando que a nota
dos ingressantes por ampla concorrência é superior à dos ingressantes por reserva de vagas em
geral, Nesse período, a maior nota de corte na primeira chamada da ampla concorrência foi
756,42 pontos no primeiro semestre de 2015 para o turno integral, enquanto a maior nota para
reserva de vagas nessa seleção foi 733,10 pontos na modalidade L3 para o turno integral. Já
maior nota de corte na primeira chamada da reserva de vagas nesse período foi 741,22 pontos
na modalidade L3 no primeiro semestre de 2014 para o turno integral, enquanto a nota de corte
para ampla concorrência foi 754,82 pontos nesse processo seletivo. Em contra partida, a menor
nota de corte na ampla concorrência nesse período foi 732 pontos no segundo semestre de 2014
para o turno noturno, enquanto a menor nota de corte para reserva de vagas foi 671,64 pontos
foi no segundo período de 2015, modalidade L2.

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A diferença de notas para o ingresso através da ampla concorrência e da reserva de


vagas muitas vezes reafirma a pré concepção de que os estudantes cotistas não teriam condições
de acompanhar o curso ou prejudicariam a qualidade dele. Entretanto, apesar da diferença de
notas no ingresso pelo SISU, os dados sobre o Coeficiente de Rendimento Médio (CR) dos
ingressantes por ampla concorrência e por reserva de vagas sinalizam que o aproveitamento
destes estudantes não diverge ao longo do curso. Nesse sentido, o maior CR médio no primeiro
semestre de 2013 foi 8,62 pontos dos estudantes ingressantes pela modalidade L3 de reserva de
vagas; no segundo semestre de 2013 foi 9,07 pontos dos cotistas ingressantes pela modalidade
L1; no primeiro semestre de 2014 foi 9,04 pontos dos cotistas ingressantes pela modalidade L4;
no segundo semestre de 2014 foi 9,01 pontos dos cotistas ingressantes pela modalidade L4; no
primeiro semestre de 2015, 8,81 pontos dos estudantes cotistas ingressantes através da
modalidade L3 de reserva de vagas. Ao contrário do senso comum, os dados sinalizaram que
os estudantes cotistas apresentam maior Coeficiente de Rendimento Médio ao longo de todo o
período da pesquisa, apontando que, apesar do deficit na formação básica, os ingressantes por
reserva de vagas não possuem um aproveitamento inferior aos ingressantes por ampla
concorrência.
Além dos dados sobre as notas de ingresso através do SISU e do aproveitamento dos
graduandos ao longo do curso, a pesquisa também possibilitou o mapeamento do perfil dos
estudantes cotistas, como a idade, a escola em que ele concluiu o ensino médio, se ele realizou
algum curso preparatório para o vestibular, a participação em programas de assistência
estudantil ou apoio financeiro, entre outros dados. O mapeamento desses dados ocorreu através
da coleta de informações por meio de questionários eletrônicos com doze perguntas gerais,
respondidos por 115 estudantes cotistas.
A pesquisa possibilitou mapear se os estudantes que ingressaram por ações
afirmativas receberam algum tipo de apoio financeiro ou acolhimento estudantil ao longo do
curso. Das 115 respostas recebidas, 28 estudantes (24,3%) responderam que não receberam
auxílio e que este apoio não faria diferença para eles; 53 estudantes (46,1%) responderam que
não receberam auxílio e que este apoio seria importante para a vida acadêmica deles; 27
estudantes (23,5%) responderam que receberam apoio pois receberam bolsa de monitoria,
iniciação científica, extensão, acolhimento estudantil, etc.; 1 estudante (0,9%) respondeu que
morava na moradia estudantil; 2 estudantes (1,7%) responderam que obtiveram apoio
financeiro para participação em eventos acadêmicos, esportivos e/ou culturais; e 13 estudantes

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(11,3%) deram outras respostas, como participação em projetos de extensão ou auxílio


financeiro dos pais.
O questionário também possibilitou mapear se os estudantes cotistas frequentaram
algum curso preparatório para realizar o ENEM/Vestibular. Das 115 respostas recebidas, 68
estudantes (59,1%) responderam que não realizaram qualquer tipo de curso preparatório; 23
estudantes responderam que frequentaram curso preparatório gratuito ou com taxa de valor
baixo, incluindo-se pré-vestibular comunitário; e 24 estudantes (20,9%) responderam que
frequentaram curso preparatório pago.
A pesquisa também buscou mapear se os estudantes cotistas conciliavam a graduação
em direito com alguma outra ocupação. Das 115 respostas recebidas, 43 estudantes (37,4%)
responderam que estudavam em tempo integral; 5 estudantes (4,3%) respondera que
realizavam estágio extraoficial não-remunerado; 13 estudantes (11,3%) responderam que
realizavam estágio extraoficial remunerado; 18 estudantes (15,7%) responderam que
realizavam estágio oficial em instituição pública, como o Ministério Público, a Defensoria
Pública, etc.; 4 estudantes (3,5%) responderam que realizavam estágio oficial em escritório de
advocacia; 24 estudantes (20,9%) responderam que era servidor ou terceirizado de órgão
público; 3 estudantes (2,6%) responderam que trabalham em empresa privada com carteira
assinada; 5 estudantes (4,3%) responderam que eram profissional liberal ou trabalhador
informal; 7 estudantes (6,11%) sinalizaram outras respostas.
Em um segundo momento, foi realizada uma pesquisa com os diversos setores da
comunidade acadêmica (servidores, professores, graduandos e servidores/terceirizados)
buscando observar a percepção desses segmentos sobre diversos aspectos da implementação
das ações afirmativas no curso de Direito da UFF, como o conhecimento da comunidade
acadêmica sobre o modelo de reserva de vagas; se reserva de vagas prejudica a qualidade do
curso; sobre a reserva de vagas para monitoria, extensão, PIBIC, etc.; sobre a reserva de vagas
para ingresso nos cursos de pós graduação strictu sensu; sobre a reserva de vagas nos concursos
para professor efetivo e para as carreiras jurídicas.
Apesar da implementação da lei de cotas a partir de 2013, 21,1% dos
servidores/terceirizados e 18,8% dos professores desconheciam a existência de política de ações
afirmativas no curso de direito; 31,6% dos servidores/técnicos e 31,3% dos professores
pensavam que o critério era reserva de vagas apenas para candidatos provenientes de escolas
públicas de ensino médio; 26,3% dos servidores/terceirizados e 43,8% dos professores

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acreditavam que o critério existente era de reserva de vagas apenas para candidatos negros,
pardos e indígenas; e 21,1% dos servidores/técnicos e 6,3% dos professores pensavam que o
critério era reserva de vagas somente para candidatos vulneráveis socioeconomicamente.
No que tange as percepções da comunidade acadêmica sobre a alteração do perfil dos
discentes da graduação em direito, a pesquisa mapeou que 30% dos servidores/terceirizados e
25% dos professores não identificam qualquer diferença no perfil dos estudantes ao longo dos
últimos anos; 20% dos servidores/terceirizados e 25% dos professores pensam que há mais
estudantes negros do que antes; 35% dos servidores/terceirizados e 37,5% pensam que há mais
estudantes pobres do que antes; e 15% dos servidores/terceirizados e 12,5% dos professores
afirmaram que não tinham opinam formada.
Por fim, a pesquisa possibilitou mapear a opinião da comunidade acadêmica sobre
outras políticas de ações afirmativas, como a reserva de vagas para bolsas de monitoria,
extensão, PIBIC; para o ingresso na pós-graduação e nos concursos públicos para o magistério
e para as carreiras jurídicas.
Com relação a reserva de vagas para bolsas no Curso de Graduação (monitoria,
extensão, PIBIC, etc.), 20% dos servidores/terceirizados, 56,3% dos professores e 27,5% dos
estudantes indicaram discordância integral; 40% dos servidores/terceirizados, 6,2% dos
professores, 42,4% dos pós-graduandos e 32,5% dos graduandos responderam que concordam
com a reserva apenas para estudantes com renda familiar inferior a 1,5 salário-mínimo; 30%
dos servidores/terceirizados, 37,5% dos professores, 54,5% dos pós-graduandos e 21,9% dos
graduandos concordam com a reserva de vagas apenas para pobres, indígenas e negros; e 10%
dos servidores/terceirizados e 17,5% dos graduandos não tem opinião formada.
Com relação a reserva de vagas para ingresso nos cursos de Pós-Graduação stricto
sensu (mestrado e doutorado) vinculados à Faculdade de Direito da UFF, 20% dos
servidores/terceirizados, 50% dos professores e 34,7% dos graduandos discordam
integralmente com a reserva de vagas; 30% dos servidores/terceirizados, 20,6% dos pós-
graduandos e 23,4% dos graduandos concordam com a reserva de vagas apenas para candidatos
com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo; 35% dos servidores/terceirizados, 50% dos
professores, 55,9% dos pós-graduandos e 28,4% dos graduandos concordam que haja reserva
de vagas para candidatos pobres, indígenas negros e pardos; 15% dos servidores/terceirizados.
Com relação a reserva de vagas nos concursos para professor efetivo do Curso de
Direito da UFF, 45% dos servidores/terceirizados, 50% dos professores, 23,5% dos pós-

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graduandos e 47,5% graduandos discordam integralmente; 20% dos servidores/terceirizados,


concordam que haja reserva apenas para candidatos pobres (renda familiar inferior a 1,5 salário-
mínimo); 12,5% dos professores, 14,7% dos pós-graduandos concordam que haja reserva de
vagas apenas para candidatos indígenas, negros e pardos; 20% dos servidores/terceirizados,
37,5% dos professores, 47,1% dos pós-graduandos e 25,9% dos graduandos concordam que
haja reserva de vagas para candidatos pobres, indígenas, negros e pardos. Os demais não
possuem opinião formada.
Com relação a reserva de vagas nos concursos para carreiras jurídicas (magistratura,
Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública, etc.), 45% dos
servidores/terceirizados, 43,8% dos professores, 20,6% dos pós-graduandos e 43,4% dos
graduandos discordam integralmente. 10% dos servidores/terceirizados, 12,5% dos
professores, 17,6% dos pós-graduandos; 35% dos servidores/terceirizados, 43,8% dos
professores, 50% dos pós-graduandos e 27,8% dos graduandos concordam que haja reserva de
vagas para candidatos pobre, indígenas, negros e pardos. Os demais não possuem opinião
formada.

3. RESPOSTAS ABERTAS

Como já exposto, os questionários distribuídos para todos os seguimentos


(graduandos, pós-graduandos, servidores e técnicos e professores) portavam uma pergunta de
resposta aberta, a ser respondida livremente. A pergunta proposta era “Qual é a sua opinião
sobre reserva de vagas para o Curso de Direito da UFF, em razão de políticas de ação
afirmativa ("cotas")?”.
Dos questionários enviados para enviados para os graduandos, foram obtidas 320
respostas no total. Para os professores, servidores/técnicos e pós-graduandos, foram obtidas,
respectivamente, 15, 20 e 33 respostas. Neste tópico, abordaremos brevemente6 as principais
recorrências nas respostas, destacando alguns elementos para a análise. Centraremos a análise
nas respostas oferecidas pelos graduandos, uma vez que este seguimento realizou um número
muito superior de respostas, que torna a análise mais abrangente e representativa.
Neste seguimento, das 320 respostas, 281 se mostravam favoráveis à reserva de vagas,
32 se mostraram contra e 7 delas não expressaram qualquer opinião de que fosse possível retirar

6
Pretende-se que uma análise mais profunda destas respostas seja alvo de publicação específica.

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um posicionamento. Dentre as favoráveis às ações afirmativas, 58 delas apresentaram algum


tipo de ressalva à reserva de vagas.
Os argumentos favoráveis as cotas articulam diferentes estratégias discursivas7, com
o objetivo de justificar a existências desta política pública. Podemos identificar dois principais
tipos de argumento em defesa das ações afirmativas, no qual foram agrupadas as respostas, os
argumentos de “reparação” e os argumentos de “diversidade”. Conforme assinala Thula Pires

O argumento da diversidade admite a adoção de políticas de ações afirmativas como


mecanismos de garantia da pluralidade em ambientes de ensino, trabalho, repartições
pública, entre outros. É a possibilidade de conviver com as diferenças que avalizaria
medidas em processos seletivos, por exemplo. Quando se fala em reparação, por sua
vez, defende-se a correção da injustiça gerada pelo legado escravista através de ações
públicas voltadas à promoção da igualdade dos negros (PIRES, 2013, p. 231)

Os argumentos de diversidade, ligados a ideia de que a pluralidade de alunos de


diferentes origens causam um ganho para todo o ambiente acadêmico, foram menos
recorrentes, sendo encontrados em apenas 25 respostas dos graduandos. Os argumentos ligados
à ideia de reparação, ou seja, de que as cotas vem para reparar uma injustiça histórica ou uma
desigualdade presente por motivos sociais ou raciais, são mais presentes, aparecendo em 69
respostas8.
A maior parte dos argumentos de reparação analisados se limitava a falar de reparação
em um sentido mais amplo, sem especificar exatamente o que estava sendo reparado. Muitas
respostas identificam especificamente o déficit educacional brasileiro, colocando como ponto
central da reparação o fato de que o ingressante por ações afirmativas em questão não teve
direito a uma educação adequada. Estas respostas, em geral, mesmo que favoráveis, identificam
nas cotas uma política paliativa, uma vez que o principal problema seria a falta de qualidade
das escolas públicas brasileiras.

7 Para a análise, entendemos as respostas como um modo de organização argumentativo, articulando categorias da análise do
discurso de matriz francesa. O modo de organização argumentativo se baseia em alguns fatores. Basicamente, pode-se dizer que
é necessário que exista “uma proposta sobre o mundo que provoque um questionamento, em alguém quanto à sua legitimidade
(um questionamento quanto à legitimidade da proposta).” (CHARAUDEAU, p. 2014, p. 205), além de um sujeito engajado em
defender esta proposta e um sujeito-alvo a ser convencido dela. Além disso, toda argumentação parte de “uma busca de
racionalidade” que tende a um ideal de verdade quanto à explicação de fenômenos do universo”, além de “uma busca de influência
que tende a um ideal de persuasão, o qual consiste em compartilhar com o outro (interlocutor ou destinatário) um certo universo
de discurso até o ponto em que este último seja levado a ter as mesmas propostas” (CHARAUDEAU, p. 2014, p. 205). Nas
respostas analisadas, veremos que as argumentações tem como tema as ações afirmativas, elaborando diferentes estratégias
discursivas para legitimarem um posicionamento de defesa ou repulsa a reserva de vagas. Por estratégias discursiva, entende-se a
maneira, consciente ou não, que o discurso se constrói, quais informações e argumentos articula.
8 A maior parte das respostas, 187 delas não articularam nenhum tipo de argumentação consistente, se limitando a preencher o

campo com afirmações como “sou a favor”, “positiva” e “perfeito”.

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Menos recorrente que os argumentos que falam da reparação por causa do déficit de
ensino foram as respostas que criavam a argumentação da reparação histórica com base em
uma dívida histórica que a sociedade tem com o povo negro. Destas, apenas duas citam
explicitamente o passado escravocrata da sociedade brasileira. Algumas poucas respostas
articulavam categorias ligadas ao racismo, de modo que a maior parte das respostas baseadas
em reparação histórica não abordava a questão racial inerente às ações afirmativas do sistema
de cotas9.
Os argumentos de diversidade articulam outras ideias. Um primeiro aspecto das
respostas é a percepção de que o curso de Direito é tradicionalmente um curso elitista, vendo
na reserva de vagas uma maneira de alterar este perfil, sendo interessante notar que várias
respostas já identificam nas turmas mais novas, com maior número de cotistas, estas mudanças.
As respostas dão a entender que alunos cotistas seriam mais interessados em um aspecto social
do Direito, e não teriam apenas interesses individuais e profissionais.
Outra recorrência é a proposição de que a presença de alunos de diferentes origens
traria um benefício geral para a universidade. Os cotistas seriam pessoas que trariam suas
vivências diferenciadas para o ambiente universitário, de modo a contribuírem para uma
produção acadêmica diferenciada, pluralizando o ambiente acadêmico e o tornando mais rico
e inovador. A diversidade também seria um elemento de luta contra o racismo e a exclusão
dentro do ambiente acadêmico, e contribuiria, com a formação de profissionais e intelectuais
negros, pardos e indígenas, ou de classes sociais diversas, para a criação de um mercado de
trabalho e uma sociedade mais inclusiva.
Mesmo entre os argumentos favoráveis, como colocado, foram diversas as ressalvas
as cotas. A primeira ressalva, já apresentada, consiste em ressaltar o caráter paliativo ou
temporário das cotas, explicando que, apesar de ser a favor do sistema de reserva de vagas,
entende que ele deve ser realizado junto com outras medidas, como o combate a pobreza ou a
melhoria do sistema educacional. Importante notar que estes argumentos nunca articulam o
racismo como um problema em si, identificando sempre como principal problema a
desigualdade socioeconômica. As outras duas ressalvas dentre as respostas favoráveis são a

9
De maneira diversa em relação ao argumento que se baseia apenas na debilidade do ensino público, o argumento que tem como
base a dívida histórica por causa do passado escravocrata se baseia em aspectos muito mais diversos, como genocídio da juventude
negra, baixos salários, encarceramento e violência e racismo. Desta maneira, aqueles que se baseiam neste argumento vêem nas
cotas uma solução para problemas sociais mais profundos e amplos do que a simples equiparação no acesso a universidade. A
cota seria uma maneira lutar contra o racismo e a desigualdade racial brasileira.

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ampla possibilidade de fraude às cotas10, e os problemas ligados à permanência dos alunos


cotistas, que articulam a ideia de que o simples ingressos destes alunos não garantem a
permanência deste aluno, que encontra outras dificuldades para continuar na faculdade.
Todas as ressalvas feitas pelas pessoas favoráveis às cotas também estão presentes
nos argumentos das pessoas contrárias a elas. Desta maneira, muitas respostas contrárias as
cotas reconhecem os mesmos problemas que os defensores das cotas enxergam, mas
simplesmente entendem que as cotas não são um caminho para solucionar estes problemas.
Das respostas contrárias, dois são os elementos centrais. O primeiro deles é a
identificação do principal problema a ser combatido. Este seria a desigualdade social, que seria
resolvido com políticas públicas de combate a pobreza, e por um ensino básico de qualidade.
Desta maneira, o debate racial em geral não é citado, e quando é citado, é citado em
subordinação à questão social. Resolvendo um, se resolveria o outro.
A segunda questão central é a ideia de mérito. Os argumentos contrários as cotas em
geral articularam ideias ligadas ao mérito, com base em uma ideia específica de igualdade
formal. Todos devem ter condições iguais de ingresso (um vestibular sem reserva de vagas)
para que o mérito seja testado.
Interessante notar que uma resposta cita expressamente a oposição a uma “igualdade
material sofismática” dos defensores das cotas, de modo a reconhecer a oposição entre os
conceitos de igualdade presentes. Na análise das respostas, é possível notar como muitas das
respostas favoráveis e contrárias as cotas se articulam com base nos mesmos termos, utilizando
apenas interpretações diferentes dos mesmos conceitos. Assim, noções de igualdade formal são
levantadas pelos opositores das cotas, enquanto noções de igualdade material são levantadas
pelos defensores das cotas, com ideias diferentes de mérito sendo articuladas pelos dois grupos.
O debate racial, porém, é um recurso argumentativo das pessoas favoráveis as cotas, e é negado
pelos opositores, que subordinam a questão aos problemas sociais e econômicos.

4. A MATERIALIDADE DO SILÊNCIO EM UMA PESQUISA

Um texto é um tecido cujas linhas podem ser constituídas por palavras (se texto
verbal) ou outros signos não linguísticos (texto não verbal), sua essência reside no significar.

10Como já dito, a pesquisa foi realizada antes da instauração do Comissão Verificadora de Cotas pela UFF, que veio para
combater estes tipos de fraudes no que tange à reserva de vagas por critérios étnico-raciais.

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Um texto é uma unidade significativa. E, numa situação comunicativa, seja verbal ou não
verbal, os interlocutores comprometem-se, mesmo que inconscientemente, com a significação,
com o político, já que um texto é discurso. Deve, assim, ser compreendido como materialização
de um processo histórico-ideológico, presente na sua construção, porque toda palavra integra
um contexto, por isso tem história. Essa afirmativa é essencial para se interpretar o silêncio,
porque “Sem considerar a historicidade do texto, os processos de construção dos efeitos de
sentidos, é impossível compreender o silêncio.” Essa unidade de sentido, que sempre diz algo,
utiliza determinadas formas/maneiras para dizer, porque o tecido não é apenas produto, mas,
sobretudo, processo. Ler um texto é, portanto, um movimento de atribuição de sentido. Deve o
leitor atentar não só para o resultado, mas para o como, por que, para que e para quem se diz.
Considerando-se que a ideologia está presente no texto (que é discurso) e que o dizer
é um enunciado produzido por um sujeito que é motivado a dizer e, portanto, o dito tem uma
finalidade, o mesmo pode ser afirmado quando ao não dizer, ao silêncio, compreendido como
elemento comunicativo, portanto, como categoria de sentido.
Na pesquisa, foi possível identificar formas de não dizer significativas, elementos
discursivos que, no contexto de implementação de uma política afirmativa de inclusão social e
étnico-racial, podem simbolizar mais que ausência de conhecimento, mas, talvez, não
reconhecimento, constituindo-se o silêncio que torna não aparente, o que está presente. É o que
podemos evidenciar na fala de um dos entrevistados em entrevista (grupo focal) promovida
pelo grupo de pesquisa:

A faculdade de direito é uma faculdade bem elitista, apesar das exceções, mas é uma
faculdade bem elitista, a parte das políticas de ações afirmativas, as pessoas não
gostam de tocar no assunto, pelo ao menos eu senti assim, as pessoas da minha turma
são ótimas, mas ninguém toca no assunto, as pessoas falam de colocação, políticas
de ações afirmativas ninguém toca muito, assim, eu não sei muito bem quem entrou
por política de ação afirmativa ... Há comentários, eu já ouvi assim, a maioria não
gosta a maioria com quem eu tive contato, mas isso não é verbalizado.

Os dados apresentados nas seções 1 e 2 deste artigo demonstram a problemática na


recepção das ações afirmativas na Faculdade de Direito. Apesar do número elevado de
apoiadores do sistema de reserva de vagas, um número razoável de pessoas discordava da
utilização de ações afirmativas para diversas outras áreas da vida acadêmica ou profissional.
Também foi demonstrado um grande desconhecimento acerca do próprio funcionamento da
política de cotas, tanto nas respostas abertas quanto fechadas.

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Na construção da pesquisa, a própria dificuldade de obtenção dos dados, uma vez que
os formulários foram distribuídos pela internet, demonstraram uma dificuldade na inserção das
pessoas no debate sobre o tema. O silêncio então se mostrou como uma maneira de resistência
ao debate, na materialização de sentidos específicos sobre a temática. Nas palavras de Orlandi
(1995), “Os sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em todas as direções e se fazem por
diferentes matérias, entre as quais se encontra o silêncio.”
Ora, um índice de 17,5% de graduandos que dizem não ter opinião formada (opinião
silenciada) sobre um assunto relativo a uma importante forma de viabilizar materialmente a
trajetória acadêmica de alunos cotistas indica um não reconhecimento de determinadas
condições de permanência no curso, específicas dos alunos cotistas (negros e índios, inclusive),
uma realidade do outro, sobre a qual não se pensou (ainda?). Contrapor isso ao resultado
relativo à reserva apenas para candidatos pobres (índice de 32,5%), e à área do gráfico (quase
imperceptível) ocupada pelos que concordaram com a reserva étnico-racial, são elementos que
evidenciam apagamento da participação de negros e indígenas, nesse processo. O racismo
estrutural explica a não associação desses modos de dizer e não dizer a uma forma de distinção
naturalizada e, portanto, não questionada.
Enfim, nessas poucas linhas permitidas pelo espaço de um artigo, é possível afirmar,
à guisa de conclusão dessa sessão, que tanto a ausência de palavras quanto algumas (muitas)
das palavras ditas, como parte de um processo de comunicação, de troca de sentidos entre
pessoas. O ato de comunicação (pelo dizer ou pelo silêncio), entendido na perspectiva da função
social, é ferramenta de interação pelo discurso, e representa o olhar sobre o mundo, expondo
modos de ser e de estar nesse lugar. Identifica o sujeito como ser social. Liga-se à história e à
ideologia e aponta, portanto, para uma realidade que se estrutura pelas relações por ela
responsável: as relações de poder hegemônico e dominação.

CONCLUSÃO

A pesquisa desenvolvida possibilitou avaliar a mudança do perfil dos estudantes


ingressantes na Faculdade de Direito da UFF, desfazendo pré concepções e ressaltando desafios
da comunidade acadêmica e da universidade para combater o racismo e garantir a permanência
e inclusão dos estudantes cotistas na universidade. Nesse sentido, apesar de a pesquisa mapear
que os estudantes ingressantes por ações afirmativas possuem desempenho acadêmico

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equivalente aos ingressantes por ações afirmativas, ela também ressalta o desafio para incluí-
los nos programas de monitoria, pesquisa, extensão e de auxílio à permanência.
Os dados coletados e sistematizados e as respostas da pesquisa ampliaram a discussão
e as ações afirmativas foi objeto de debates nos órgãos colegiados e reuniões departamentais
na Faculdade de Direito da UFF. O Colegiado de Curso realizado no dia 21 de junho de 2016
debateu o tema e culminou na aprovação de ações afirmativas e recomendações que buscavam
incentivar a permanência e o debate sobre ações afirmativas e racismo na universidade. Na
reunião departamental ordinária do Departamento de Direito Processual (SDP) no dia 29 de
agosto de 2016 foi aprovada a reserva de vagas da monitoria para os estudantes cotistas. Por
unanimidade foi aprovado que o edital de monitoria para o ano de 2017 reservaria 20% (vinte
por cento) das vagas para os alunos cotistas; e que o edital de 2018 contemplaria a reserva de
50% (cinquenta por cento) das vagas para estudantes cotistas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAUMAN, Zygmunt. Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida. 1.ed., Rio de Janeiro:
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CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 12. Ed. São Paulo: Cortez, 2009.

MENDES JUNIOR, A.A.F.; WALTENBERG, F.D. Políticas de cotas não raciais aumentam a admissão de pretos
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(Disponível em http://www.proac.uff.br/cede/sites/default/files/TD89.pdf).

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 8. ed. Campinas: Pontes, 2009.

_______________. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp, 1995.

TEIXEIRA, Moema De Poli. Negros na Universidade: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, Pallas, 2003.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. A discussão judicial das ações afirmativas étnico-raciais no Brasil. In: PAIVA,
Angela Randolpho. Ação Afirmativa em Questão: Brasil, Estados Unidos, África e França. Rio de Janeiro: Pallas,
2013. p. 210-239.

WALTENBERG, Fábio; CARVALHO, Márcia de. Cotas aumentam a diversidade de estudantes sem
comprometer o desempenho? Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 7, p. 36-77, 2012. (Disponível em
http://www.proac.uff.br/cede/sites/default/files/TD73.pdf).

______________, Elementos para uma definição de justiça em educação. Outubro, 201. (Publicado nos Cadernos
Cenpec. Pesquisa e ação educacional. V. 3(1), pp. 41-62, 2013. (Disponível em:
http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/).

897
A EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO NA COMAR UNIG

NADER, Carmen Caroline Ferreira do Carmo


Professora da Universidade Iguaçu
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis
RANGEL, Tauã Lima Verdan
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF. Mestre em Ciências
Jurídicas e Sociais pela UFF.
NADER, Cristian
Especialista em Sociologia pela Faculdade Signorelli
Graduando em Direito pela Universidade Iguaçu

RESUMO

O objetivo do presente consiste em analisar a experiência de mediação desenvolvida pela Comissão de


Conciliação e Arbitragem da Universidade Iguaçu (COMAR-UNIG). É fato que o modelo tradicional
beligerante de processo brasileiro encontra uma série de obstáculos para sua real efetivação, notadamente
em decorrência do uso indevido da etapa judiciária e a necessidade, pelas partes processuais, do comando
sentencial como manifestação da vingança privada. Neste sentido, o sistema tende a privilegiar uma
postura infantilizada das partes processuais, o que, por si só, colabora para o agravamento do tratamento
das demandas. De lado outro, a COMAR-UNIG, ancorando-se no postulado da cultura do diálogo
promovido pelos métodos extrajudiciais de tratamento de conflitos, em especial a mediação, preocupa-
se em fomentar a cultura do empoderamento dos envolvidos, a partir de etapas pré-judiciárias. O método
empregado é o indutivo, auxiliado de revisão de literatura, pesquisa bibliográfica e dados primários como
técnicas de pesquisa. Como resultados parciais identificados, verifica-se que a COMAR desempenha
importante papel na condução do diálogo entre o público atendido, em especial as demandas envolvendo
questões familiares e consumerista, o que implica em um exitoso número de consensos.

Palavras-Chave. Mediação. Cultura do Diálogo. Empoderamento dos Mediandos. COMAR-UNIG.

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INTRODUÇÃO

O presente estudo iniciou-se em 2014, ano de início das atividades da COMAR UNIG
(Comissão de Conciliação e Arbitragem da Universidade Iguaçu). Apesar a Resolução nº. 125
do CNJ que trata da mediação ser datada de 2010, representou uma novidade no núcleo de
prática da UNIG, há mais de 40 anos lidando de maneira tradicional com os conflitos
apresentados pelas partes. A ideia era implantar tanto a mediação quanto a arbitragem, o que
justifica o nome COMAR. Mas estudos iniciais acabaram por demonstrar a inviabilidade
econômica da criação de uma câmara de arbitragem naquele momento, mantendo-se a
nomenclatura para futura implantação. A função da COMAR é proporcionar a resolução por
meio da mediação - método compositivo de solução de conflitos – de questões que seriam
levadas ao judiciário para a resolução por uma sentença.
Ao observar algumas mediações realizadas dentro daquele ambiente específico,
surgiram dúvidas se a mediação ali realizada correspondia com a mediação propagada pelos
estudiosos do tema e pelo Tribunal de Justiça. Surgiu então a ideia de identificar como essa
mediação está sendo realizada e se de fato ela representa a grande mudança prometida em teoria
para a resolução dos conflitos. O que se busca é entender se os discursos sobre as qualidades da
mediação coadunam com sua prática.
O recorte temporal levou em conta as mediações observadas no primeiro semestre de
2017. Ao iniciar a pesquisa na COMAR UNIG, algumas categorias específicas dentre as
propagadas quando se trata de mediação chamaram mais atenção: celeridade em relação ao
processo convencional, tipos de questões para as quais a mediação é mais indicada, diferenças
em relação à conciliação e, a que pareceu mais intrigante: o conceito de mediação “positiva” e
mediação “negativa”, associado à realização ou não de acordos pelas partes, acordos estes que
posteriormente serão homologados pelo Judiciário. O trabalho então passou a ter por objetivo
a compreensão dessas categorias - propagados pelo Tribunal de Justiça e incorporados pela
COMAR - e identificação de suas implicações na prática.

1. BREVE ANÁLISE TEÓRICA DA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A palavra mediação provém do latim mediatio, que significa intervenção, intercessão,


intermediação. Assim, mediação é entendida como um processo extrajudicial de resolução de
conflitos, no qual um terceiro imparcial dá assistência às pessoas em conflito, com a finalidade

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de que possam manter uma comunicação produtiva à procura de um acordo possível para elas.
Destaco que não colide, nem compete com o processo judicial, sendo mais um meio de
resolução de conflitos.
Considerada dialogal, especialmente indicada para conflitos interpessoais e relações
continuadas, apresenta a promessa de resolver a questão de forma integral, e não apenas a lide
processual, sendo um método que promete ser rápido, barato e eficaz, contribuindo para um
efetivo acesso à justiça (AMARAL, 2009, p. 89) Além disso, busca atuar previamente, na
medida em que educa para a solução autônoma dos próprios conflitos, intencionando promover
mudanças nos relacionamentos sociais e por consequência, a promessa de pacificação social.
Em definição de Guillaume-Hofnung:

[...] a mediação se define principalmente como um processo de comunicação ética


baseado na responsabilidade e autonomia dos participantes, no qual um terceiro –
imparcial, independente, neutro e sem poder decisório ou consultivo com uma única
autoridade que lhe foi reconhecida pelos mediados – propicia mediante entrevistas
confidenciais o estabelecimento ou restabelecimento de relação social, a prevenção
ou a solução da causa (GUILLAUME-HOFNUNG, 2007, p. 71 apud AMARAL,
2009, p. 91).

Propícia quando utilizada em situações em que se busque manter o relacionamento


entre as partes, onde o litígio contenha contextos mais profundos (emocionais, psicológico,
entre outros), bem como a ruptura do diálogo. Sendo assim, é mais utilizada para resolver
conflitos advindos de relações de múltiplos vínculos, como as familiares, de amizade, de
vizinhança, uma vez que através desse procedimento é possível preservar os demais vínculos.
A Resolução n. 125 do Conselho Nacional de Justiça instituiu a chamada “Política
Judiciária Nacional de Tratamento adequado dos conflitos”, determinando que todos os órgãos
do judiciário passariam a oferecer mecanismos de resolução de conflitos “paralelos”, segundo
Filpo (2016, p. 45), que denomina, em via diametralmente oposta, a via judicial de
“convencional”, com o intuito de garantir às demandas a possibilidade de um tratamento
diferenciado, de acordo com sua natureza e complexidade. Ainda segundo o autor:

Esses meios, segundo tal normativa, seriam a mediação e a conciliação, bem como
os serviços de atendimento e orientação ao cidadão. Esse serviço recebe o nome de
atendimento de cidadania, e tinha, inicialmente, prazo limite de 12 meses para ser
colocado em funcionamento em todas as cortes do país (FILPO, 2016, p. 45).

A Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015, regulamenta a mediação entre particulares


como meio de solução de controvérsias e versa sobre a autocomposição de conflitos no âmbito

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da administração pública, com a equiparação da condição do mediador judicial a auxiliar da


justiça, buscando a promoção de solução consensual do litígio. Segundo o artigo 2º da referida
Lei, a mediação possui como princípios norteadores a isonomia entre as partes, oralidade,
informalidade, autonomia da vontade das partes, imparcialidade do mediador, busca do
consenso, confidencialidade e boa-fé. Importante destacar que se trata de rol exemplificativo, e
não taxativo, porém, considerados essenciais para a eficácia da mediação realizada.
O acordo que resulta da mediação não é algo imposto por um terceiro após valoração
das provas e emissão de sentença após seu convencimento, e sim, uma solução que deve ser
debatida por ambas as partes, que manifestam seus interesses, concordam entre si e se propõe
a cumprir um objetivo comum que foi determinado por elas de forma consensual. Como espécie
de autocomposição, a mediação promete se basear na identificação e eliminação das causas que
geraram o conflito, surgindo daí a necessidade de qualificação do profissional atuante na
mediação.

2. O RECORTE ESPACIAL DA PESQUISA

Segundo dados do IBGE datados de 2016, a cidade de Nova Iguaçu possui população
estimada em 797.435 pessoas, denominados de iguaçuanos, com área da unidade territorial de
519.159 quilômetros quadrados. Ainda segundo o IBGE, a incidência de pobreza é de 54,15%.
Esses dados são importantes para a compreensão da dimensão física da cidade e sua
importância para a região da Baixada Fluminense.
Nova Iguaçu possui fórum estadual localizado atualmente no Bairro da Luz, bairro
este vizinho ao Centro da cidade, possuindo 4 Juizados Especiais Cíveis, 5 Varas de Família, 7
Varas Cíveis e 7 Varas Criminais, além do cartório da Dívida Ativa, Juizado da Infância e
Juventude, uma sede da OAB e instalações da Defensoria Pública. A cidade, que já foi
denominada de “Cidade-dormitório”, pois não era considerada um local com boas
oportunidades de emprego, obrigando seus moradores a buscarem trabalho em outras áreas do
Estado, hoje possui, no bairro do Centro, grandes polos de comércio, entretenimento e inúmeros
empreendimentos imobiliários, com imóveis que chegam a ultrapassar da faixa de 1 milhão de
reais.

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Entretanto, nos bairros periféricos, entre os quais se localiza a Universidade Iguaçu,


ainda há ruas sem asfalto e sem saneamento básico. É nesse contexto que está inserida a
Universidade Iguaçu, o principal objeto de estudo desse trabalho, que será apresentada a seguir.

2.1. A UNIG

A UNIG – Universidade Iguaçu foi fundada em 1970. A Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras de Nova Iguaçu, ofereceu a primeira unidade de ensino de terceiro grau à
Baixada Fluminense com a implantação dos cursos de Letras (Habilitações: Português-
Literatura e Português-Inglês), Matemática, Física, Ciências Biológicas, reconhecido em 1974.
Em 1976, o curso de Pedagogia também foi reconhecido, seguido, quatro anos depois, em 1974,
pela implantação da Faculdade de Direito, que atualmente conta com a nota 4 (quatro) na
avaliação do MEC e nota 3 no ENADE. Segundo o site da instituição, todos os cursos
oferecidos pela UNIG surgiram da identificação das características da região, sendo observadas
as demandas de mercado relativas aos perfis profissionais identificados, tendo por missão
institucional gerar progresso científico e tecnológico no país e servir diretamente à comunidade,
valendo-se dos recursos e meios de que dispõe.
Com exceção do curso de medicina, os demais possuem convênios que possibilitam
descontos na mensalidade de até 50 % (cinqüenta por cento) para alunos e dependentes por
intermédio de certas empresas privadas e públicas, sindicatos, Ministério da Defesa, escolas,
cursos, CDL (Câmara de dirigentes lojistas), Igrejas e Prefeituras, além dos próprios
funcionários da instituição e seus dependentes, cujo desconto chega a 100% (cem por cento).
De acordo com relatos de moradores locais, o bairro no entorno do Campus I, localizado em
Nova Iguaçu, desenvolveu e expandiu com a implantação da Universidade, o que deu ensejo a
uma linha de ônibus chamada “Faculdade”, em referência à universidade. Hoje, outras
Instituições de Ensino Superior, a exemplo da UNIABEU e a Universidade Estácio de Sá,
funcionam na região, mas a UNIG ainda possui um grande quantitativo de alunos, funcionando
nos turnos da manhã, tarde e noite. Em 2017.1, somente o curso de Direito contou com mais
de 2.000 alunos nos três turnos.
Atualmente, além do Curso de Direito, a Universidade possui diversos outros cursos
vinculados a cinco Faculdades: Ciências Biológicas e da Saúde, Ciências Exatas e
Tecnológicas, Educação e Letras, além de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas. Fora o
Campus I, onde funciona a sede em Nova Iguaçu, possui ainda outros quatro Campi ativos

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distribuídos na Baixada Fluminense, sendo um dos mais importantes o Campus III, onde está
localizada a EDHAPI (Escola de Desenvolvimento de Habilidades Profissionais Integradas),
que abrange o Núcleo de Prática Jurídica (NPJUR), o Escritório de Prática Jurídica (ESAJUR),
além de possuir pólos conveniados do PROCON e SEBRAE.
O Núcleo de Prática Jurídica tem o objetivo de estabelecer o diálogo entre sociedade
hipossuficiente de Nova Iguaçu e a Universidade, por meio da Assistência Jurídica
Universitária, realizando atividade de extensão, de acordo com o que estabelece a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, em seu artigo 52 que diz que “as universidades são instituições
pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de
extensão e de domínio e cultivo do saber humano(...)”.
Tendo em vista que a Defensoria Pública do Estado, órgão constitucionalmente
incumbido de atender aos vulneráveis economicamente, não tem condições materiais de
suportar tamanha demanda, o Escritório de Prática Jurídica acabou tornando-se uma alternativa
para aqueles que não têm condições de suportar as inúmeras filas e o atendimento massificado
pela enorme quantidade de processos que necessitam do auxílio deste Órgão. Muitas partes que
procuram inicialmente a Defensoria Pública da Comarca acabam sendo encaminhados para o
ESAJUR, realizando uma espécie de “convênio informal”, seja por terem alguma restrição
física que os impossibilitaria de enfrentar as longas horas de espera para atendimento na
Defensoria, seja por tratarem de ações não abrangidas por sua competência, mas trabalhadas
pelo ESAJUR (Que englobam direito do trabalho e direito previdenciário, por exemplo).
Em contrapartida, os alunos integrantes do Núcleo, além de terem contato com a
prática jurídica de forma holística e multidisciplinar, são incentivados a terem uma visão crítica
e humana do direito, condizente com as necessidades da população local, em especial a atendida
pelo Núcleo, tendo em vista que o mesmo se presta a assistir os hipossuficientes.

3. A COMAR UNIG

A COMAR (Comissão de Mediação e Arbitragem) foi implementada pelo centro de


Formação Profissional da Universidade Iguaçu em fevereiro de 2014, com o objetivo de utilizar
a mediação de conflitos como solução para restabelecer o diálogo entre as partes, além de
proporcionar ao graduando em direito contato com a prática da mediação por intermédio de
profissionais capacitados. O projeto teve início em 2012, de acordo com a portaria nº 12/2012,

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datada de 6 de novembro de 2012, expedida pelo Gabinete do Diretor do Curso, Professor João
Batista Barreto Lubanco1. Importante destacar que o objetivo inicial era, além de realizar
mediações, também estabelecer no local câmaras de arbitragem, daí a nomenclatura utilizada.
Contudo, tal medida não foi possível devido ao alto custo financeiro, que não poderia ser
suportado pela universidade naquele momento. A razão da manutenção da nomenclatura se dá,
pois até o final do ano de 2017 será feito novo estudo econômico para tentar viabilizar sua
implementação.
A Comissão de Mediação e Arbitragem da UNIG foi criada com a função de criar
oportunidade para que as partes discutam, questionem e contestem os seus conflitos
abertamente, com fins de solução amigável entre elas. O atendimento ocorre durante todos os
dias da semana. As partes atendidas devem residir nos Municípios de Nova Iguaçu ou Mesquita
e ter proventos individuais comprovados de até 3 (três) mil reais. O Centro de Formação
Profissional ao qual se vincula a COMAR localiza-se no Centro da cidade de Nova Iguaçu.
Fica em um prédio comercial, funcionando das 08:00 às 22:00h, de modo a compreender os
três turnos do curso de Direito e suas turmas, o que também acaba por facilitar o acesso por
parte da população economicamente ativa, que por trabalhar durante o horário comercial, teria
dificuldade de atendimento na Defensoria Pública, por exemplo, que funciona somente de 2ª a
6º feira, em horário comercial.
A COMAR realiza as sessões de mediação às segundas-feiras o dia todo, quartas pela
manhã, quintas também o dia todo e sextas somente na parte da manhã, mas o primeiro
atendimento ocorre todos os dias nos três turnos, das 8 às 22hr. Há supervisão de advogados
do Núcleo de Prática Jurídica, que se revezam de acordo com os turnos e seus dias de plantão
de atendimento, sendo cinco ao todo.
Importante esclarecer que a comissão atende, além dos moradores de Nova Iguaçu,
moradores do município vizinho, Mesquita, que durante muitos anos foi parte da cidade de
Nova Iguaçu. Apenas em 1997, a cidade de Mesquita foi desvinculada e elevada à categoria de

1 Em pesquisa na rede mundial de computadores, é citado pelos sites da Prefeitura de São João de Meriti e de Nova Iguaçu, mas
não possui uma página oficial. Segundo o site Wikipédia, é formado pelo curso de direito na Faculdade de Direito do Catete
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1954. Foi interventor de São João de Meriti, nomeado pela ditadura militar, em
1970, permanecendo até 1971. Nas eleições de 1972 foi eleito vice-prefeito de Nova Iguaçu. Em 1975, eleito pelo partido do
governo, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), Lubanco assumiu a chefia do executivo até 1977. Em sua administração
construiu a primeira pista de skate de América Latina, inaugurada em 1976, e desapropriou a Fazenda São Bernardino, marco da
arquitetura colonial do Brasil, e expulsou seus moradores e proprietários (família Gavazzoni). Foi também deputado estadual do
Rio de Janeiro de 1978 a 1982. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Batista_Barreto_Lubanco>. Acesso
em 22 jun. 2017.

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Município, mas, a despeito de já ser considerada comarca de segunda entrância pelo CODJERJ2
desde 2011, somente teve sua sede inaugurada em dezembro de 2013. Por esta razão, mesmo
após sua emancipação, durante o período de 1997 a 2013, as demandas provenientes da
população da região foram absorvidas pela Comarca de Nova Iguaçu, o que explica a
abrangência da Comissão de Mediação. Até o momento da inauguração de sua sede, Mesquita
contava apenas com um ônibus da chamada “Justiça Itinerante”, que de acordo com o site do
TJRJ, é coordenado pela Divisão de Justiça Itinerante e acesso à Justiça - DIJUI, ligada ao
Departamento de Instrução Processual - DEINP da Diretoria Geral de Apoio aos Órgãos
Jurisdicionais - DGJUR, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, cujo principal
objetivo é dar concreção ao postulado do amplo acesso à Justiça e fomentar a cidadania, por
meio de atendimentos regulares previamente estabelecidos mediante calendários amplamente
divulgados.
Foram realizadas ao todo 10 visitas, entre os meses de abril e maio de 2017, ocasião
em que foram realizadas observações no local, além de entrevistas com os atores da COMAR
(assistidos e funcionários). Foi possível observar que, inicialmente, as partes procuram o
Núcleo de Prática Jurídica da Universidade, seja por indicação de amigos e parentes que já
tenham passado por algum tipo de atendimento no local, seja por indicação da Defensoria
Pública, conforme explicado anteriormente, para ter acesso ao atendimento jurídico gratuito,
ou mesmo indicado por alunos ou ex aluno da instituição.
Após a triagem, que é feita por funcionários com treinamento específico, onde se
identifica o problema apresentado e o motivo da visita, o assistido, como é denominado o
atendido pelo Centro de Formação Profissional, é perguntado sobre a possibilidade de acordo
no problema apresentado, sendo ele na seara cível ou familiar. Caso a resposta seja positiva, o
funcionário pergunta se ele acredita que a outra parte aceitaria vir ao local para uma conversa
informal sobre o objeto da questão para então tentar se chegar a um acordo. Essa pergunta é
considerada crucial para o encaminhamento ou não da parte para a realização do procedimento
de mediação. O assistido é informado que se trata de uma tentativa de acordo, o nome mediação
é citado, mas nãofoi possível observar de fato uma explicação específica sobre a mediação, ou
mesmo um interesse das partes em compreender do que se trata.

2RIO DE JANEIRO (ESTADO). Lei nº 6.956, de 13 de janeiro de 2015. Dispõe sobre a Organização e Divisão Judiciárias do
Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.
br/CONTLEI.NSF/f25571cac4a61011032564fe0052c89c/7954a68a437095b983257dcf00599dda?OpenDocument>. Acesso
em 22 jun. 2017.

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Foi possível perceber um cuidado em informar as partes e de fato incentivar o


restabelecimento do diálogo entre elas. Não há imposição para o acordo ou mesmo
obrigatoriedade na realização daquela mediação. As partes são recebidas na sala de mediação,
recebem uma breve explicação sobre o procedimento, enfatizando que o mesmo só pode ser
concretizado caso as próprias partes tenham interesse e queiram estabelecer o diálogo. As
mediações são marcadas com ao menos 1 hora de diferença entre uma e outra, e vi algumas
situações em que as mesmas foram remarcadas, não existindo uma quantidade pré-estabelecida
de remarcações.
Na COMAR, a sessão de mediação inicia-se com as partes sendo chamadas até a sala
específica, onde são solicitados seus documentos pessoais para a confecção de procuração,
declaração de hipossuficiência e uma ata, nos moldes de uma petição inicial, que será
posteriormente distribuída eletronicamente por meio do site do Tribunal de Justiça para a
homologação judicial por um juiz da Comarca de Nova Iguaçu ou de Mesquita, dependendo
da localidade em que moram os assistidos.
Caso as partes entrem em acordo, a ata da mediação, que conforme dito, é
confeccionada como uma petição inicial, é distribuída eletronicamente no site do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro no item do sistema eletrônico “homologação de transação
extrajudicial”, com livre distribuição para qualquer uma das cinco Varas de Família da
Comarca de Nova Iguaçu, a fim de serem homologadas por um juiz de família da Comarca. É
importante destacar que não há prazo ou mesmo limites para o número de mediações a serem
realizadas, dependendo das partes mediadas e do caso concreto a ser analisado, o que confirma
uma das promessas da mediação relacionada à informalidade do procedimento, que deve
amoldar-se ao caso concreto.
A despeito disto, os relatórios de atendimento não discriminam quantas mediações
são realizadas em um mesmo caso concreto, e limitam-se a elencar as mediações “positivas”,
que conforme dito, são entendidas como as mediações homologadas, e “negativas”, entendidas
como as não homologadas ou aquelas em que há ausência de uma ou de ambas as partes. Não
levam em consideração os motivos da desistência de uma das partes, ou de ambas, por exemplo,
ou mesmo se o não comparecimento se deu por motivos outros que não a ausência de interesse,
e sim a disponibilidade de tempo ou recursos financeiros, já que a Comissão atende em sua
maioria pessoas consideradas hipossuficientes pela Lei, que conforme dito, devem possuir
renda individual mensal de no máximo R$ 3.000,00 (Três mil reais).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas mediações observadas e entrevistas com assistidos e assistentes da


COMAR UNIG algumas observações foram possíveis. A primeira delas, é que de fato os
procedimentos de mediação realizados pela COMAR UNIG são mais céleres do que um
procedimento judicial, tanto em relação ao primeiro atendimento, quanto em relação à
homologação. A fala que se repetiu entre os assistidos, que antes de procurar a COMAR se
dirigiram à Defensoria Pública é que a marcação para o primeiro atendimento estava sendo
agendada para três meses, o que não ocorria na COMAR, onde o primeiro atendimento era
agendado, em média para no máximo um mês.
Pela fala dos funcionários, mediadores e pelos documentos a que pude ter acesso, em
geral, do primeiro atendimento à homologação, as mediações da COMAR levam três meses,
podendo variar para um pouco mais ou um pouco menos, dependendo da vara em que forem
distribuídas. Já em relação aos procedimentos judiciais tradicionais, ainda que consensuais, não
é possível precisar com exatidão. Conforme o próprio Relatório Justiça em Números, que traz
indicativos da duração dos processos no Brasil, essa tarefa é complexa.

O tempo do processo é um objeto de pesquisa de difícil apuração, pois são quase


infinitas as combinações de situações de fato e de direito a caracterizarem cada ação
judicial no Brasil. Quando tantas especificidades são reunidas em um número apenas,
a natural primeira impressão é de imprecisão, já que os extremos são diluídos em
uma média. Portanto, a duração dos casos judicializados no Brasil ainda não
detalhará os efeitos de cada componente de tantas combinações a configurarem cada
característica de um processo, nem possibilitará que se saiba quais as causas para as
maiores delongas, tampouco aclarará por completo o que faz com que muitos casos
sejam bastante céleres. Ainda estamos perseguindo estes objetivos por outros
caminhos, paralelos ao Justiça em Números. (BRASIL, 2016, p. 13)

Contudo, pelos relatos dos funcionários, esses costumam durar bem mais que os três
meses de média das mediações, desde a propositura até a homologação do acordo, o que indica
que as mediações, ao menos realizadas pela COMAR, são de fato mais céleres do que o
procedimento tradicional.
Outra percepção possível é com relação às diferenças entre mediação e conciliação.
Essa distinção não parece ser bem compreendida pelos atores da mediação. Essa confusão se
estabelece o tempo todo na COMAR, não só na fala dos funcionários do Núcleo e participantes
diretos da mediação, mas nos próprios documentos oficiais do órgão institucional. Os assistidos
também não conseguem observar essas diferenças, algo que não parece importar para eles,

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sendo uma discussão meramente técnica. Na prática, o que esperam é a resolução rápida de
seus problemas, sem conhecimento dogmático de como isso se dá ou mesmo preocupação de
como acontece.
Com relação à autonomia das partes, foi possível observar que a maioria dos casais
que participaram de mediações “positivas” já chegavam ao local com os termos praticamente
prontos, então não foi possível identificar se de fato a mediação propiciou essa tomada de
decisões conjunta e autônoma, parecendo mais que isso já estava pré-estabelecido entre eles,
cabendo à mediação apenas a “legalização” de suas decisões.
Uma das promessas da mediação é a sua indicação para questões de relação
continuada, como as de família. Importante destacar que a grande procura pela resolução de
questões familiares é e sempre foi alta no Núcleo de Prática Jurídica da Universidade, o que
posso dizer pela experiência como aluna e depois como professora no local, pro
aproximadamente 2 anos. Isso acaba “esvaziando” o atendimento que é realizado em outras
áreas. Contudo, como se tratam de relações complexas, de múltiplos vínculos e que geralmente
envolvem mais de uma possibilidade de ação (Divórcio pode envolver alimentos e guarda, entre
outros) a realização dessas mediações parece de fato contribuir para um maior número de
soluções consensuais nesse tipo de caso, o que vem crescendo a cada semestre, diminuindo o
ingresso de ações judiciais não consensuais pelo Escritório de Prática Jurídica.
Outro fator que explica a grande quantidade de mediações na área de família e pouca
na área é que a maioria das pessoas quando procura o Núcleo para questões envolvendo matéria
cível, está em busca de reparação referente a direito do consumidor, sendo encaminhados
diretamente para o PROCON. De fato, a mediação sequer é a medida mais indicada para esse
tipo de questão, ao menos do ponto de vista dos seus estudiosos. Há de fato um grande número
de realizações de acordo nas mediações. Quando esta não ocorre, em geral, é porque se tratam
de questões que envolvam patrimônio, o que torna mais difícil uma decisão consensual.
Contudo, isso pareceu ocorrer mais devido a uma pré-disposição das partes que procuram a
UNIG e pela forma como são encaminhadas para a COMAR, do que algo efetivamente
proporcionado pelo emprego da mediação em na resolução dos seus conflitos.

REFERÊNCIAS:

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EM BUSCA DE UM NOVO SABER JURÍDICO:
A EXPERIÊNCIA EM “PODER JUDICIÁRIO E POLÍTICA”

MACHADO, Joana de Souza


Professora da Faculdade de Direito da UFJF
VALENTE, Mário José Bani
Estudante de Graduação da Faculdade de Direito da UFJF

RESUMO

O presente estudo traz relato de experiência em torno da criação e vivência do curso de Poder Judiciário
e Política na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. A partir desse relato, intenta
refletir sobre tradições no ensino jurídico e vias de ruptura para a construção de uma educação
emancipatória. Para tanto, aborda as tentativas de inovação metodológica e de estruturação de temas no
campo da disciplina, na busca de uma experiência de educação jurídica socialmente referenciada,
horizontal e contra hegemônica. Aponta e analisa criticamente os desafios encontrados nessa trajetória e
as perspectivas por ela lançadas. O trabalho se ampara teoricamente nas construções críticas de Paulo
Freire e Pierre Bourdieu sobre educação. Espera-se contribuir para uma avaliação crítica da realidade do
ensino jurídico, bem como para a reflexão sobre alternativas aos modelos tradicionalmente adotados.

Palavras-Chave. Poder Judiciário. Ensino Jurídico. Metodologia.

ABSTRACT

The present study brings an experience report about the creation and experience of the course of
Judiciary and Politics at the Law School of the Federal University of Juiz de Fora. From this report, it
tries to reflect on traditions in the legal education and routes of rupture for the construction of an
emancipatory education. In order to do so, it approaches the attempts of methodological innovation and
structuring of subjects in the discipline field, in the search for an experience of socially referenced,
horizontal and counter hegemonic legal education. It points out and critically analyzes the challenges
encountered in this trajectory and the perspectives it launches. The work theoretically relies on the
critical constructions of Paulo Freire and Pierre Bourdieu on education. It is hoped to contribute to a
critical evaluation of the reality of legal education, as well as to the reflection on alternatives to the
models traditionally adopted.

Keywords. Judiciary. Legal Education. Methodology.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho traz relato de experiência em torno da criação e vivência de uma


disciplina no curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, a
disciplina “Poder Judiciário e Política”. A partir desse relato, é problematizada a realidade local
do ensino jurídico e são discutidos caminhos para que seja repensado em moldes
emancipatórios. Para tanto, discutem-se concepções metodológicas e didáticas testadas a partir
de 2012 quando se deu a proposta de criação da disciplina de ênfase pela Professora Joana de
Souza Machado, ministrada e atualizada com a constante colaboração da equipe do projeto de
monitoria.
A proposta da disciplina funda-se na busca pela contraposição ao que Paulo Freire
chama de educação bancária, que rege as relações dentro das salas de aula, ou seja, procura-se
contrapor ao modelo de educação verticalizada, hierarquizada, que se ampara no pressuposto
de que o aluno nada sabe, mero objeto que recebe o conhecimento do professor, o detentor do
saber. Esse modelo contribui, de forma consciente ou não, para a formação de indivíduos não
questionadores e subordinados a uma ordem dominante vigente. Há vias de ruptura com esse
modelo?
O presente trabalho procurará recompor os caminhos do processo de construção do
conhecimento em Poder Judiciário e Política (PJP) e apresentar alternativas possíveis para o
ensino jurídico a partir dessa experiência em campo. Inicialmente, será apresentada a concepção
acerca da avaliação e do ensino no sistema educacional em curso e os métodos adotados na
referida disciplina. Em seguida, abre-se espaço à discussão sobre o papel de ferramentas extras,
utilizadas mais pontualmente ao longo do curso, como rodas de conversa, sensibilização pela
arte e grupo virtual, na construção do saber. Por fim, são apontadas e analisadas criticamente as
dificuldades e perspectivas de modelos alternativos de ensino jurídico, especialmente o adotado
em PJP.
Ao se discorrer sobre as discussões metodológicas do ensino jurídico, não devem estar
fora do locus de análise e da proposta deste estudo os problemas enfrentados ao se lecionar uma
das “profissões imperiais” (COELHO, 1999), como é o Direito, e que, portanto, carrega consigo
um elitismo marcante desde as primeiras Faculdades de Direito no território brasileiro, quais
sejam, as de Olinda e de São Paulo. O tradicionalismo ainda presente, sem grandes
modificações, nas salas de aula, dificulta a introdução de temas caros à construção do saber no
campo jurídico, como o racismo, a LGBTTIfobia, o machismo, a intolerância religiosa e a

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política, de modo que quando chegam a ter espaço esses temas costumam receber um
tratamento tecnicista e socialmente pouco ou nada referenciados.
Desse modo, a partir da reflexão que propõe, este trabalho busca contribuir para a
ruptura das amarras que ainda inibem modificações mais substanciais nas formas de se
conceber o ensino jurídico na contemporaneidade. Assim, utiliza-se de autores críticos ao
modelo de ensino tradicional e ao campo jurídico, como Paulo Freire e Pierre Bourdieu,
respectivamente, na expectativa de pavimentar caminho para a construção de um novo saber e
ensino jurídicos, com novas cores, horizontalidade, empatia, acolhimento e humanidade.

1. O MÉTODO EDUCATIVO E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO SABER

Primeiramente, é necessário que se apresentem quais as concepções sobre avaliação


(ou exame) e o ensino jurídico que orientam a proposta de Poder Judiciário e Política. Dessa
forma, entende-se que “o exame não é outra coisa senão o batismo burocrático do
conhecimento, o reconhecimento oficial da transubstanciação do conhecimento profano em
conhecimento sagrado” (MARX, 2005), ademais, não se pode perder de vista que ele é, além
da expressão mais visível dos valores e das escolhas do sistema de ensino, é, também, através
da separação entre profano e sagrado, um instrumento extremamente eficaz à introdução da
cultura dominante e dos valores inerentes a ela (BOURDIEU; PASSERON, 2014).
Nesse sentido, o exame serve como instrumento de dominação, que se materializa
com o exercício de uma violência simbólica (BOURDIEU, 1989). Ademais, utilizando-se dos
conceitos de habitus e de capital cultural propostos por Pierre Bourdieu, permite-se afirmar que
são linhas que se conectam constantemente nas salas de aula de uma Faculdade de Direito, isso
porque possibilitam a intensificação das diferenças por meio da imposição daqueles que detêm
o saber e cultura, eruditos, sobre aqueles que são, em tese, despossuídos destes. Assim, um
ensino que se pretende atenuador de diferenças, acaba por intensifica-las e contribuir para a
construção de um saber que domina e não liberta. Questões como essas são constantemente
debatidas em PJP, privilegiando a participação dos (as) estudantes, tendo por objetivo a
desconstrução de tradições e de elitismos que não coadunam com uma proposta de ensino
emancipatória. Mas o que significa um ensino crítico e emancipador?
Um ensino crítico e emancipador pode ser entendido como aquele que percebe no
ensino tradicional a priorização da técnica e da transmissão de um conhecimento instrumental,

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no qual as instituições de ensino são grandes centros de instrução, impossibilitando a


conscientização sobre temas importantes, como o conhecimento, a dominação e o poder-saber
(FOUCAULT, 2015). Para Paulo Freire e sua teoria educacional, é necessário compreender a
ideia de que as formas tradicionais de educação são instrumentos de objetivação e de alienação
dos grupos oprimidos, assim, a proposta do debate acerca de temas relacionados às variadas
facetas da opressão em PJP procura, essencialmente, a superação dessa forma de se conceber o
ensino, pautando o desenvolvimento pelos (as) estudantes de uma compreensão crítica de sua
relação com o mundo.
O caminho para a auto-emancipação passa necessariamente pela dialética e pelo
diálogo em sala de aula, pois “o diálogo é exigência existencial” (FREIRE, 1987) para que seja
possível a reflexão sobre a realidade que os (as) estudantes se depararam hoje, enquanto alunos
(as), e no futuro, enquanto profissionais. Por esse motivo, o processo avaliativo e o método
educativo do curso de Poder Judiciário e Política procuram privilegiar a fala dos (as) estudantes
em sala de aula, seja abrindo espaço para que possam apresentar argumentos aplicados a casos
concretos, seja incentivando a expressão de forma lúdica e artística. Ademais, busca-se
valorizar a criticidade e a criatividade, a fim de se construir um espaço no qual se incentive uma
construção plural do saber, distanciando-se da tradicional tentativa de pura transferência de
conteúdo. A valorização da criticidade, em especial, deve ser compreendida enquanto fomento
da reflexão crítica da realidade em que tanto o educando quanto o educador estão inseridos
(FREIRE, 1987).
Por meio do uso de referenciais transdisciplinares em PJP – essencialmente, da
Ciência e Filosofia Políticas, da Sociologia e da Teoria da Justiça – e de uma perspectiva
comparada de sistemas jurisdicionais, a disciplina articula seu conteúdo programático em três
módulos de maneira a contribuir para que os (as) estudantes se engajem em uma reflexão crítica
a respeito do sistema de justiça e repensem os limites institucionais da atividade judicial, além
de concebê-la enquanto novo (e crítico) espaço de representação política e tradicional esfera de
efetivação de direitos.
Dessa forma, o método educativo de “Poder Judiciário e Política” foge da tradicional
prática do ensino jurídico dos cursos de Direito, os quais prezam somente pelo tecnicismo e
pela reprodução do conhecimento, deixando de lado a construção dialética deste, onde os (as)
estudantes teriam papel central. Destarte, as atividades utilizadas no processo avaliativo e de
construção do conhecimento também se distanciam das usuais provas, mas sem se distanciarem

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do campo jurídico, comprovando ser possível entendê-lo de uma nova forma. Utilizam-se os
seguintes instrumentos: painéis de discussão de textos; práticas argumentativas; visita a órgão
estatal; participação em role-play e na sensibilização pela arte; elaboração de um portfólio, de
um ensaio de análise de caso e de um grupo em rede social. Parte-se, portanto, à explicação
conceitual e programática de cada um desses instrumentos, compreendidos como construtores
de conhecimento, não mais como avaliativos stricto sensu.

1.1. PAINÉIS DE DISCUSSÃO DE TEXTOS: EM BUSCA DE ACÚMULO TEÓRICO


COLABORATIVO

Os painéis de discussão consistem na apresentação e no debate de textos de variados


autores e autoras, divididos em três módulos ao longo do semestre. A atividade, hoje, após
algumas modificações ao longo da existência da disciplina, estrutura-se de forma que os (as)
estudantes pré-selecionados (as) são divididos (as) em dois grandes grupos, quais sejam:
relatores e revisores. Os primeiros devem procurar apresentar suas apreensões sobre o texto e a
teoria trabalhada por ele, procurando trazer conceitos essenciais para uma compreensão inicial
do tema. Os segundos devem atuar como verdadeiros revisores, ou seja, fazendo
questionamentos e apontamentos ao texto e em diálogo com a fala do painel de relatoria. Essa
prática de construção do conhecimento é feita semanalmente e preza, em grande medida, por
oportunizar um acúmulo teórico colaborativo sobre as temáticas, no qual cada estudante em
sala se responsabiliza pela construção do saber do outro.
Assim, os painéis cumprem função muito importante, pois estimulam os (as) alunos
(as) a participarem ativamente da construção de seu conhecimento jurídico, além de
contribuírem para o desenvolvimento da espontaneidade e da argumentação. Além disso,
fogem da “lógica manualesca” presente nas Faculdades de Direito, propondo um real esforço
cognitivo pelos (as) estudantes. Por fim, cabe mencionar que é papel da educadora e dos
monitores contribuir com o fomento deste debate, trazendo novas críticas e ponderações,
especialmente por meio de conexões da teoria com a realidade, estrutural, e/ou com a
conjuntura.

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1.2. PRÁTICA ARGUMENTATIVA: DAS REFLEXÕES TEÓRICAS AOS CASOS


CONCRETOS

Nas aulas seguintes aos painéis, são realizadas as práticas argumentativas, que se
caracterizam pela reflexão acerca de um caso concreto, geralmente decisões judiciais que
propiciem a aplicação dos conceitos presentes no painel anterior, de modo a efetivar o debate
acerca desses conceitos e a proporcionar a construção de uma visão reflexiva e crítica. Durante
a atividade, os (as) estudantes são divididos (as) em grupos com distintas tarefas argumentativas
diante do caso. Sugere-se em geral que o (a) estudante tente identificar eventual pré-
compreensão sobre o pano de fundo temático do caso e que procure integrar o grupo cuja tarefa
argumentativa se choque com essa posição, a fim de que exercite sua capacidade
argumentativa.
São priorizados nas escolhas dos casos concretos aqueles que tangenciem problemas
sociais que influenciam o hoje e o amanhã dos (as) alunos (as), sendo possível que eles (as)
interajam com as demandas sociais. Nesse sentido, as práticas argumentativas são de extrema
importância, pois, primeiramente, contribuem para o melhor entendimento dos temas
trabalhados em aula anterior, e também porque, por meio da construção de argumentos, é
possível romper com as amarras impostas pelo ensino tradicional, principalmente o ensino
jurídico tradicional, através de uma análise interdisciplinar.

1.3. VISITA AO ÓRGÃO ESTATAL E O ROLE-PLAY COMO VERDADEIRAS


PRÁTICAS JURÍDICAS

A disciplina de PJP procura desafiar a cisão entre teoria e prática comumente cultuada
no ensino jurídico. Para tanto, dentro do ensino construído na disciplina, adotam-se algumas
aproximações práticas, como a experiência junto a órgão estatal e a prática simulada por meio
do método do role-play. O ensino jurídico tradicional costuma situar como aula prática aquela
lecionada por um docente cuja ocupação profissional principal seja outra, como se a experiência
do docente como agente essencial da justiça, por exemplo, fosse imediatamente transferível,
independentemente de escolhas metodológicas, ao conjunto de estudantes. Sob a compreensão
de que valorizar a prática é oportunizar experiências próprias às e aos estudantes de
aproximação com o direito em movimento, a disciplina investe nas seguintes estratégias
metodológicas.

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A experiência junto ao órgão estatal tem o objetivo de aproximar o (a) aluno (a) da
atuação de um dos Poderes da República. A inserção dessa atividade foi posterior e se faz
importante pois leva o conhecimento para fora da sala de aula, possibilitando a compreensão
sobre temas debatidos durante o semestre, como a repartição dos poderes, as atividades
legislativa e judicial, a construção do Direito institucionalmente, dentre outros. Após a
experiência (visita, participação de audiência pública, etc.), é necessário que se faça um
relatório, abordando quais foram as impressões e as dificuldades detectadas em realizar essa
atividade. Durante essa relatoria não somente cabem os apontamentos de questões objetivas,
mas também devem ser descritas as informações subjetivas e as sensações relativas ao ambiente
físico visitado - ponto muito relacionado com a análise de Pierre Bourdieu sobre o campo
jurídico, que é discutida pelos (as) alunos (as) - bem como as contribuições proporcionadas por
esta experiência.
Realizam-se também simulações de julgamento, que, apesar de serem uma opção de
prática jurídica, ainda não são tão frequentes no curso de Direito da UFJF. Por meio da dinâmica
de role-play, a disciplina propicia a experimentação de sensações similares às que visitam juízes
(as) e partes envolvidas em casos difíceis, como os que ditam sobre direitos de minorias
representativas, de forma que a análise crítica feita, ao longo da disciplina, em torno da atividade
jurisdicional, possa ser também humanizada.
O role-play é uma espécie do grande gênero da prática simulada e consiste em um
jogo de papéis, com natureza lúdico-pedagógica, por meio da qual pessoas adultas brincam de
vivenciar situações que suscitam decisões, posicionamentos, antecipação e avaliação de
consequências. A dramatização propicia o envolvimento dos e das participantes em torno de
algum conflito em relação ao qual precisam realizar um julgamento moral.
São realizadas três atividades desta espécie ao longo do semestre, sempre ao fim de
cada módulo. São organizadas simulações de julgamento de casos de grande repercussão social,
anteriormente apreciados pelo Supremo Tribunal Federal e, preferencialmente, daqueles nos
quais o Tribunal tenha utilizado audiência pública, que ao menos, em tese, serve como
instrumento de diálogo social voltado a conferir legitimidade democrática à tomada de decisão
da esfera deliberativa. Ao longo de todos os semestres em que a disciplina, que tem caráter de
ênfase, foi disponibilizada aos alunos, já foram simulados diversos julgados de grande
repercussão social, como o das ações afirmativas no ensino superior, do aborto de fetos
anencéfalos, do uso de células tronco, do reconhecimento da união estável homoafetiva, do uso

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de substância entorpecente, escola sem partido, entre outros e o mais recente, sobre ensino
religioso em escolas públicas.
Por fim, cabe uma explicação sobre como a atividade é estruturada. Dessa forma, a
experiência é dividida em dois momentos: o primeiro corresponde à fase de audiência pública,
na qual são ouvidos atores da sociedade civil que têm relação com a temática discutida; no
segundo, é simulada a sessão de julgamento em que as ministras e os ministros do STF
proferem seus votos. Para interpretar tais papeis, alunas e alunos são incentivadas (os) a se
caracterizar, assumindo o personagem. São disponibilizadas togas para aqueles (as) que
representam os (as) ministros (as) do STF, o que facilita a adequação e a crítica à posição
ocupada pelo (a) julgador (a). Após a interpretação, as alunas e os alunos devem tecer uma
opinião crítica sobre o tema e a posição adotada por quem interpretou. Pode-se concluir,
portanto, que a disciplina possibilita aos (as) alunos (as) uma abordagem plural e extremamente
rica de métodos de ensino jurídico, sem se descolar tanto de discussões dogmáticas quanto da
apreensão de questões sociais tocantes ao Direito.

1.4. ENSAIO CRÍTICO E PORTFÓLIO: PRODUÇÃO DE TEXTO E BALANÇO DO


PROCESSO EDUCACIONAL

Ao final do semestre letivo os (as) estudantes devem apresentar dois trabalhos. O


primeiro deles é o ensaio crítico, produção de texto em que se mobiliza o acúmulo teórico
construído de forma colaborativa na disciplina. Estudantes, em seus ensaios, problematizam a
natureza e os limites da atividade judicial, a partir de um caso concreto de sua livre escolha, já
julgado pelo Judiciário brasileiro. Mais uma forma pela qual se busca a construção de um saber
socialmente referenciado.
O segundo desses trabalhos é o portfólio, que se traduz em uma coletânea de
evidências sobre o próprio processo de aprendizagem e habilidades desenvolvidas ao longo do
estudo em Poder Judiciário e Política. Devem ser juntados elementos que dialoguem com a
disciplina e seu objeto de estudo, como anotações de aula, poesias, imagens, letras de músicas
e até mesmo publicações em rede sociais atinentes ao curso. Não são impostas estruturas
formais para sua elaboração, ou seja, é livre e deve ser e pautada na criatividade em demonstrar
o impacto gerado pelo curso nos (as) estudantes. Sua função é simples, porém, de grande valia,
isso porque permite que a professora e a equipe de monitoria tenham um repasse por toda turma
sobre como conceberam a disciplina, possibilitando uma constante reflexão sobre os métodos

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adotados, já tendo contribuído para modificações estruturais. Dessa forma, cumpre-se mais uma
vez a proposta dialética da disciplina, onde professora, monitores e alunos (as) atuam em
conjunto na construção do projeto de ensino.

2. RODAS DE CONVERSA, ARTE, O VIRTUAL E A RESSIGNIFICAÇÃO DO


QUE É JURIDICAMENTE RELEVANTE

Como se demonstrou até aqui os processos de construção do saber em Poder


Judiciário e Política são os mais variados, prezando-se pela construção coletiva de um
conhecimento teórico e prático, sem descuidar do necessário vínculo com a realidade em que
estamos inseridos, a qual deve ser constantemente refletida. Nesse contexto, acredita-se,
também, que é possível adotar novas formas de se discutir o campo jurídico de modo a
ressignificar o que é considerado juridicamente relevante. Para tanto, adotam-se ferramentas
extras na disciplina, quais sejam: a Roda de Conversa, a Sensibilização pela Arte e a discussão
em grupo de uma rede social. Parte-se, portanto, à explanação acerca delas.
As Rodas de Conversa são realizadas em três ocasiões, sempre antes da realização de
cada role-play, tendo como ponto de central de discussão temas que tangenciam o julgamento
que será simulado. Tal iniciativa busca a conscientização social dos (as) estudantes, procurando
proporcionar um espaço de protagonismo aos temas tradicionalmente marginalizados pelo
ambiente acadêmico. Em geral, são objeto das discussões o movimento negro, o LGBTTI,
questões de gênero, a intolerância religiosa, o próprio ensino jurídico e temas que foram
propostos pelos (as) estudantes.
Importante destacar que nesta atividade pessoas que têm vivência no tema debatido
e/ou que se dedicam a estudá-lo são convidadas para que possam contribuir com a dinâmica,
com um ponto de partida hábil a conferir ao tema a sua devida complexidade. Com as rodas de
conversa dois objetivos são alcançados: os (as) estudantes têm a possibilidade de compreender
temas que geralmente são invizibilizados no meio acadêmico; e, por meio do privilégio de fala,
ampliam-se as vozes que comumente são silenciadas em nossa sociedade. De todo modo,
apesar dessa apresentação inicial e o privilégio de fala, o debate é aberto, proporcionando aos
alunos a possibilidade de questionamentos às e aos convidados e entre seus pares.
Outro caminho adotado para romper com o ensino jurídico hermético e alienante é a
realização da Sensibilização pela Arte. Experiências sensoriais, viabilizadas pelas artes, são

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transformadoras em nosso processo de formação de identidade, contribuindo também para o


processo pedagógico crítico e reflexivo previsto no plano de curso da disciplina, criticidade e
reflexão que, como nos alerta Paulo Freire, são aspectos indispensáveis para a superação da
alienação. Dessa forma, a arte não somente nos (re) conecta e contribui para melhorar a
qualidade de vida no ambiente universitário, como também proporciona o encontro com a
sociedade e a cultura em que estamos inseridos.
Nessa lógica, na proposta da atividade, a sala de aula é afirmada enquanto espaço
lúdico e cultural, acomodando a livre manifestação das subjetividades, com intervenções
artísticas diversas, como poemas, músicas, teatros, danças, dentre outras modalidades. O
conteúdo das apresentações é livre, procura-se que hajam apresentações que de alguma forma
dialogam com o tema da disciplina, ou seja, o Poder Judiciário e Política, entretanto, não há
uma limitação quanto a isso, de forma a realmente contribuir com o objetivo da proposta. Deste
modo, não há censura prévia ou juízo de admissibilidade para as intervenções, bastando apenas
a vontade de se expressar.
Como a disciplina propõe-se a desenvolver um saber crítico, direcionado à realidade
social, as e os estudantes acabam por demonstrar esse espírito crítico nas apresentações, como
fruto direto das experiências vivenciadas em sala de aula. Assim, as e os estudantes percebem-
se como sujeitos do conhecimento, atores responsáveis pela sua própria condução pedagógica
– dentro e fora da disciplina - pois o indivíduo “deve ser o sujeito de sua própria educação, não
pode ser o objeto dela” (FREIRE, 1979).
Por fim, cabe destacar, neste momento, que Poder Judiciário e Política não só
promove métodos avaliativos diferenciados, nos quais o objetivo é a construção do
conhecimento do (a) estudante, como também fomenta a discussão fora dos muros da
universidade – o que torna as redes sociais amplamente relevantes, pois se configuram como
espaços férteis de promoção de debates. Para fazer essa comunicação se estender ainda mais
para outros horários e espaços que não os da aula, a disciplina conta com um grupo no
Facebook. Neste grupo, quaisquer alunos ou alunas podem manifestar-se publicando notícias
e assuntos relativos aos temas discutidos durante as aulas. O grupo é composto por estudantes
que estão com a disciplina em curso no semestre e por aqueles e aquelas que já passaram pelas
aulas.
O seu objetivo desta proposta é funcionar como um fórum constante de discussão,
uma vez que o pensamento crítico não deve ficar restrito apenas às salas de aula, devendo

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perpassar todos os aspectos da vida. Dessa forma, há um intercâmbio de conhecimento que


torna a experiência em Poder Judiciário e Política mais rica e proveitosa. É exatamente nesse
sentido que a disciplina se constrói, promovendo espaços de discussão que abranjam quaisquer
opiniões e que possibilitem o diálogo entre experiências distintas, pois a prática educativa deve
ser local de intenso diálogo e debate, sempre aberto aos educandos, e à análise crítica sobre a
realidade.

3. PASSADO, PRESENTE E FUTURO: A REALIDADE, AS DIFICULDADES E


AS PERSPECTIVAS

A disciplina de Poder Judiciário e Política tem história. Foi construída, do ponto de


vista dos temas e bibliografia, a partir dos estudos de mestrado e doutorado da Prof.ª Joana
Machado, e teve como proposta, desde seu início, apresentar uma nova forma de se conceber o
ensino jurídico, especialmente no que se refere às posições hierarquizadas, à participação do (a)
aluno (a) na construção do saber e o papel das avaliações. Entretanto, isso não significa que não
houve dificuldades em sua implementação, dificuldades ainda presentes. Afinal, em uma
Faculdade de Direito, em um campo mais conservador como o campo jurídico, como se pode
conceber uma aula com arte ou a partir de uma roda de conversa?
Ao longo dos mais de cinco anos em que a disciplina ênfase é ofertada, do teste e
amadurecimento da proposta, não foram poucos os desafios e resistências encontrados. Como
a disciplina trabalha com o conceito de presença qualificada, via participação, e não de controle
de frequência, sofreu, naturalmente, concorrência desafiadora com as disciplinas que não
apenas adotam o controle de frequência, mas que operam em lógica quase terrorista de cobrança
de frequência e absorção de conteúdo, que podem levar, inclusive, a consequências desastrosas
no sistema de ensino. Não à toa o debate sobre a saúde mental dos (as) estudantes tem cada vez
mais conquistado espaço dentro das universidades públicas e privadas no país. Esta
concorrência em alguns momentos pesou sobre a disciplina e repercutiu em baixo e confesso
nível de comprometimento de alguns e algumas estudantes com a proposta, o que prejudicou,
por vezes, a qualidade das atividades.
Tais apontamentos têm origem nos portfólios, que se mostram como um ótimo
instrumento para que se possa estar em constante reflexão sobre o método adotado. Por meio
dessas atividades entregues ao final do período letivo já foi possível perceber que há uma grande

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dificuldade em lidar na prática com a autonomia trabalhada na disciplina, por não ser tão
exercitada concretamente no ambiente acadêmico, em suma, ter autonomia é algo estranho para
os (as) estudantes de um curso de Direito.
Além disso, ao trazer para a sala de aula temas considerados cada vez mais explosivos
– como sexualidade, gênero, relações étnicas raciais, dentre outros – embora essenciais a uma
adequada formação profissional, a disciplina foi espaço para a manifestação de conflitos
presentes em nossa sociedade. Esta experiência, como esperado, não foi fácil. Deixou aflorar
pré-compreensões muitas vezes amparadas em uma moralidade religiosa intolerante e
inconfessa. O conforto da certeza e da verdade, em geral buscados na academia, foi, em muitos
momentos, substituído pelo incômodo do desnudamento de contradições e da autodescoberta
da reprodução de culturas opressoras.
Como já apontado é perceptível o estranhamento de alguns ao modelo de aula
proposto. O rigor com presença e na atribuição de notas em outras disciplinas contribui para
que o comprometimento com o método alternativo de ensino não seja uno, ainda que
involuntariamente, o que evidencia a necessidade de que o ensino jurídico seja rediscutido em
linhas emancipatórias. Nesse sentido, foram necessárias algumas mudanças, como na
distribuição dos painéis. A decisão de como fazer isso não foi fácil, a professora e o grupo de
monitoria discutiram em várias oportunidades o que poderia ser feito, mas sem ceder à pressão
imposta pela concepção tradicional de ensino jurídico.
Portanto, o modelo de ensino em PJP sofreu modificações e continuará sofrendo,
sempre tendo como alvo a construção de uma educação contra hegemônica. A contribuição dos
alunos e das alunas, não somente por meio dos portfólios, mas também por questionamentos e
debates, é sempre importante nesta conjuntura. Pretende-se que evoluções sejam constatadas,
assim como são percebidas no momento em que este trabalho é redigido e que PJP não seja
entendida como um projeto findo, tão menos o melhor projeto possível, a constante crítica é
condição imprescindível para que melhores resultados sejam alcançados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo propôs, portanto, a rediscussão sobre o modelo de ensino


majoritariamente adotado nas Faculdades de Direito brasileiras, em especial a da Universidade
Federal de Juiz de Fora. Para tanto, fez-se necessária a alocação no tempo e espaço da disciplina

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de Poder Judiciário e Política, principalmente as matrizes teóricas e os conceitos que a orientam.


Dessa forma, compreender o exame tradicional como o instrumento “mais adequado para
inspirar o reconhecimento dos veredictos escolares e das hierarquias sociais que eles
legitimam” (BOURDIEU. PASSERON, 2014) é essencial. Ademais, deve-se compreender que
“ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção
ou a sua construção” (FREIRE, 1997), de forma que aos (as) estudantes seja proporcionado
local central na construção do conhecimento e não meros objetos que devem ser apenas
instruídos.
Ao se apresentar todas as atividades e projetos que compreendem a disciplina
objetivou-se mostrar como é possível entender o ensino como uma multiplicidade de métodos
e, no que se refere ao ensino jurídico, não se trata apenas de se proporcionar teoria e prática,
mas a teoria e prática socialmente referenciada, o que é mais facilmente proporcionado por
meio da pluralidade de formas de se construir o conhecimento ao longo não somente do período
de PJP, mas nos cinco anos de um curso de Direito. Em especial os portfólios e o ensaio, ao
final do período, comprovam que a metodologia proporciona, em grande medida, a
compreensão dogmática e jurídica, demonstram ainda o desenvolvimento de senso crítico e a
abertura à metodologia adotada, evidenciando que a disciplina diferencia e pluraliza sua
formação.
Em contexto de propostas de escola sem partido, de criminalização de docentes e
estigmatização de temas como ideológicos, as resistências já encontradas tendem a se
intensificar. Avalia-se, porém, que a disciplina tem contribuído para romper com o tradicional
ensino jurídico, formalista, conservador e patriarcal, pois, ao lado das dificuldades, encontra-se
um válido e vívido retorno.
As resistências e dificuldades ajudam a demonstrar a quão desafiadora é a tentativa
de construção de um ensino contra hegemônico, pautado na conscientização social. Um ensino
realmente inclusivo, sem papéis, limites ou lugares determinados para cada indivíduo. Um
ensino efetivamente produzido por todas e todos, mas que, infelizmente, ainda está longe de ser
alçando. O projeto PJP possui a intenção de caminhar nesse sentido, mas não se revela com a
pretensão de configurar-se como a panaceia de todos os males, como a solução ideal. Não
haverá soluções herméticas, prontas e perfeitas, mas sim tentativas, que sempre enfrentarão
desafios. “Poder Judiciário e Política” busca colocar-se como mais uma destas tentativas.

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REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino.
Petrópolis: Vozes, 2014.

COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro, 1822-
1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015

FREIRE, Paulo. Mudança e Educação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

______. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo:
Cortez & Moraes, 1979.

______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo. Paz e Terra, 1997.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

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REFLEXÕES SOBRE VOCAÇÃO E FORMAÇÃO DOCENTE NO
ENSINO JURÍDICO SUPERIOR

FERNANDES, Cristiane de Souza


Doutoranda e mestre - PPGSD/UFF

STEVANS, Felipe S. F. de Souza


Doutorando –PPGDIN e Mestre - PPGSD/UFF

RESUMO

O presente trabalho intenciona elaborar uma análise reflexiva acerca da docência no ensino superior
jurídico, tendo em vista elementos como vocação e formação para docência. Parte-se do questionamento
acerca da eficiência do processo de formação do professor que atua no ensino superior, bem como a
influência do ensino ao qual o docente foi submetido em níveis de graduação e pós-graduação na
reprodução desse modelo em sua atuação docente. Pretende-se abordar a docência enquanto vocação e
meio profissional, e a forma como essa diferença de motivação pode refletir no desempenho da prática.
Ainda, pretende-se observar os caminhos percorridos para o exercício da docência e como tem se dado
a formação do docente, tendo em vista o incentivo a pesquisa e produção em detrimento da formação
em elementos pedagógicos e metodológicos. Para tanto, intenciona-se realizar uma pesquisa exploratória
e bibliográfica. A relevância do tema reside na necessidade de discussão de elementos que repercutem
diretamente no modo de exercício da docência. A vocação e formação do docente refletem no
desenvolvimento da qualidade e aprimoramento da sua atuação profissional, no seu interesse e
conhecimento para aplicação de técnicas que visem superar as práticas tradicionais, bem como na
manutenção da saúde do meio ambiente acadêmico tanto para discentes quanto docentes.

Palavras-chave: Vocação. Formação docente. Ensino jurídico.

ABSTRACT

The present paper intends to draw up a thoughtful screening about teaching in higher education,
considering elements such as vocation and training for teaching. It starts from the questioning about the
efficiency of the teacher training process that works in higher education, as well as the influence of the
teaching to which the teacher was submitted at graduate and postgraduate levels in the reproduction of
this model in his teaching performance. The main purpose is to approach teaching as a vocation and
professional environment, and the way in which this difference of motivation can reflect in the
performance of the practice. Also, it is intended to observe the paths taken to the teaching practice and
how has been given the teacher training, in order to encourage research and production to the detriment
of training in pedagogical and methodological elements. For this, it is intended to carry out an
exploratory and bibliographic research. The relevance of the theme lies in the need to discuss elements
that directly affect the way teachers work. The vocation and training of the teacher reflect in the
development of the quality and improvement of their professional performance, in their interest and

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knowledge to apply techniques that aim to overcome traditional practices, as well as in maintaining the
health of the academic environment for both students and teachers.

Keywords: Vocation. Training for teaching. Legal education.

INTRODUÇÃO

O ensino jurídico no Brasil vem se pautando em um modelo expositivo de aulas e de


provas de memorização, já consolidado e continuamente reproduzido. As possibilidades
didáticas para o ensino do direito, com enfoque em práticas alternativas, tem sido tema de
discussão, diante da necessidade de reconfiguração desse modelo tradicional, permitindo a
consideração das diferentes demandas cognitivas e um efetivo atendimento ao aprendizado
discente.
Nesse contexto, a responsabilidade pela inserção de modificações que tornem
possível essa reconsideração do ensino tende a recair sobre o docente, principalmente no âmbito
do ensino superior público. Assim, surge a necessidade de se analisar a forma através da qual
um professor assim se torna e os caminhos percorridos na sua formação docente, fatores que
refletem diretamente na forma de exercício do ensino em sala de aula.
A importância dessa análise e reflexão reside no fato de que o motivo pelo qual uma
pessoa opta pela docência - e a forma através da qual seu preparo para o ensino é realizado –
repercute, diretamente, no modo de exercício do ensino. A vocação e formação do docente
refletem no desenvolvimento da qualidade e aprimoramento da sua atuação profissional, no seu
interesse e conhecimento para aplicação de técnicas que visem superar as práticas tradicionais,
bem como na manutenção da saúde do meio ambiente acadêmico tanto para discentes quanto
docentes.
O presente artigo tem como objetivo discutir e trazer reflexões sobre a docência no
ensino superior jurídico, tendo em vista elementos como a vocação e escolha para a docência,
bem como a preparação para o ensino, também no que tange as pós-graduações stricto sensu.
Parte-se, assim, do questionamento acerca da eficiência do processo de formação do professor
que atua no ensino superior, bem como a influência do ensino ao qual o docente foi submetido
em níveis de graduação e pós-graduação na reprodução desse modelo em sua prática docente.
Para tanto, pretende-se realizar uma pesquisa exploratória e bibliográfica, estruturada
em três momentos distintos e complementares. Inicialmente, pretende-se abordar a docência
enquanto vocação e meio profissional, entendendo que essa diferença de motivação pode

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refletir na forma e qualidade da atuação no ensino. Em seguida, será abordado o processo de


formação do professor que atua no ensino superior do direito, tendo em vista a formação em
nível de mestrado e doutorado, e a preponderância da pesquisa e produção em detrimento da
formação em práticas pedagógicas, didáticas e metodológicas. Por fim, serão analisados os
reflexos da escolha e forma de preparação para docência na reprodução do modelo tradicional
de ensino jurídico, bem como no desenvolvimento do meio ambiente acadêmico.

1. MUDANÇAS DE PERCURSO E DOCÊNCIA NO ENSINO JURÍDICO:


PROFISSÃO ESCOLHIDA OU QUE ACOLHE?

O número de faculdades de direito no Brasil tem aumentado consideravelmente nos


últimos anos1, revelando uma constante e crescente demanda pela graduação nessa área. Vários
fatores contribuem para a opção pelo ingresso no ensino superior jurídico, em um contexto no
qual jovens devem realizar a escolha sobre qual profissão seguir sem possuir os parâmetros e
conhecimentos necessários para compreender o que de fato significa cada profissão.
O direito se torna atrativo diante da sua versatilidade, seja em termos de matérias ou
áreas a se seguir dentro do próprio direito, seja pelas opções profissionais que englobam, dentre
outros, da advocacia a concursos públicos, em vários níveis salariais e de exercício de poder.
Inicialmente, habita no imaginário de muitos jovens estudantes que o direito no Brasil
se assemelha a cenas hollywoodianas ou de seriados do Netflix, onde figuram advogados
poderosos que atuam como show men em diálogos recheados de “PROTESTO!”. Essa ideia é
rapidamente desconstruída quando o estudante passa, então, a ter contato com o direito na
graduação e a entender como funciona o “mundo” jurídico.
O bacharel em direito passa a almejar então, dentre outras opções, a possibilidade de
se tornar advogado, de possuir um escritório de advocacia, ou de se tornar juiz, promotor,
procurador, ocupando diversos cargos acessíveis apenas para bacharéis em direito. E é,
geralmente, com essa expectativa que o ingressante no direito começa sua caminhada.
O modelo de ensino jurídico brasileiro tende a reforçar essas opções. O aluno da
graduação recebe aulas em sua maior parte expositivas, prioritariamente focadas na absorção
da dogmática jurídica e de doutrinas para condução do aluno à aprovação no Exame da Ordem

1
Segundo pesquisa do Guia do Estudante, Brasil tem mais cursos de direito do que todos os outros países do mundo. Disponível
em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/brasil-tem-mais-cursos-de-direito-do-que-todos-os-outros-paises-do-
mundo-juntos/>.

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dos Advogados do Brasil, em concursos públicos de carreira jurídica, e para o aprimoramento


na elaboração de peças processuais fundamentais para a atuação dos “operadores do direito”.
Nesse cenário, onde se encaixaria a opção pela docência? Não sendo o direito um
curso voltado para o ensino, como ocorre nas licenciaturas, e eminentemente direcionado para
o desenvolvimento e aprovação em carreiras jurídicas, que possuem enfoque na
operacionalização do direito, questiona-se se a docência é vista de igual modo como uma opção
possível pelo estudante em direito.
Em que momento o estudante de direito opta por se tornar um professor de direito?
Quais razões levam o graduando ou graduado em direito a escolher esse caminho? A docência
é vista como primeira opção, motivada por um desejo vocacionado, ou como uma alternativa
diante de uma mudança inesperada ou indesejada de percurso? Dentre os docentes em direito,
quantos ingressaram no curso de direito com o propósito final de se tornarem professores de
direito e quantos deles sofreram, na realidade, uma mudança de percurso motivada por sua
frustração com o direito em sua prática e viram, na docência, uma porta alternativa de saída? A
docência no ensino superior jurídico é uma profissão escolhida ou que acolhe?
Tais questionamentos trazidos - os quais não pretende-se responder e esgotar no
presente trabalho - permitem suscitar a reflexão e dar relevo às bases da formação docente,
partindo da raiz do tema. Defende-se a concepção de que a motivação da escolha da carreira
docente implica na forma como essa docência será exercida. Assim, entende-se que a diferença
na motivação (docência enquanto vocação ou docência enquanto meio profissional alternativo
de fuga) pode refletir na forma e qualidade da atuação no ensino.
Segundo Max Weber (2015), há a necessidade de que a paixão esteja envolvida na
motivação para as escolhas do homem, sendo essa paixão um requisito da “inspiração”, que
por si só não pode prosperar, mas que juntamente com o trabalho, permite o exercício da
vocação e possibilita o alcance do êxito. Dessa forma, a razão que fundamenta a decisão por
uma profissão teria o condão de influenciar diretamente nas práticas e no desempenho na
carreira.
Por fim, surge ainda outro questionamento que será analisado a seguir: se o
bacharelado em direito é estruturado em um modelo tradicional de ensino dogmático, focado
em conteúdos voltados para a prática dos “operadores do direito”, onde e como o graduado em
direito aprende a ser professor?

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Tendo em vista que o aluno de direito virá a ser o futuro professor, surge a necessidade
de se discutir o paradigma concurseiro, o tradicionalismo da advocacia e o enfoque em um
ensino mais reflexivo nos cursos de graduação, bem como a forma como as pós-graduações
vêm desempenhando seu papel na formação e qualificação para docência no ensino superior.

2. TITULAÇÃO E PREPARAÇÃO PARA DOCÊNCIA: PESQUISA EM


DETRIMENTO DO ENSINO NAS PÓS-GRADUAÇÕES STRICTO SENSU

Não sendo o direito um curso voltado para o ensino, como ocorre nos cursos de
licenciatura, entende-se que a preparação para docência jurídica no ensino superior se daria
posteriormente, em nível de pós-graduação.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96) é a legislação que
regulamenta o sistema educacional (público ou privado) do Brasil (da educação básica ao
ensino superior). Nela consta, em seu artigos 66, que “a preparação para o exercício do
magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de
mestrado e doutorado.”
Entende-se, nesse caso, que “preparação” – habilitação, capacitação, treinamento,
educação – significaria um processo de aprendizagem de elementos não abordados na
graduação, como técnicas e métodos pedagógicos necessários para serem utilizados em sala de
aula, os quais viabilizariam o exercício do magistério superior.
A expectativa seria, então, a de que ao realizar um mestrado ou doutorado,
possibilitar-se-ia ao bacharel em direito a aquisição de ferramentas, técnicas e aprimoramento
de habilidade que tornassem seu desempenho em sala de aula satisfatório para todos os
envolvidos.
Porém, o que tem sido observado na prática é que as pós-graduações stricto sensu
priorizam majoritariamente a “preparação” para pesquisa, sendo toda a grade curricular e
atividades exercidas voltadas para o melhor desenvolvimento de pesquisadores e para a
elevação da produção acadêmica quantitativa e qualitativamente.
Observando-se a grade curricular de duas grandes pós-graduações strito sensu na área
do direito, em universidades no Rio de Janeiro, pode-se perceber a existência de disciplinas
voltadas para o aprendizado e desenvolvimento de técnicas e métodos para a produção de

929
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artigos científicos e para a elaboração do objeto final do próprio curso – a dissertação ou tese
de doutorado.
No currículo do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ (PPGD), curso de
mestrado2 e doutorado3, são oferecidas as disciplinas “metodologia jurídica” e “seminário de
pesquisa”, disciplinas voltadas para pesquisa e produção, bem como as disciplinas “pesquisa
de dissertação” e “pesquisa de tese” (apenas para manutenção de vínculo enquanto é elaborado
o trabalho final). Nesse mesmo currículo, a única oportunidade para o desenvolvimento da
docência em termos de ensino é restrita a disciplina “estágio docência”, a qual é facultativa,
sendo obrigatória apenas para bolsistas.
No currículo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF
(PPGSD), são oferecidas as disciplinas obrigatórias de “metodologia científica”, para mestrado
e “seminário de tese” para doutorado, havendo as disciplinas de “prática de pesquisa”
eventualmente oferecidas por orientadores a seus orientandos. Da mesma forma, a
aprendizagem da docência se restringe a disciplina “estágio docência”, também obrigatória
apenas para bolsistas.
No que se refere ao estágio docência, seu exercício pode se dar de diversas formas
(atividades de ensino, pesquisa ou extensão), não significando necessariamente que ao realizar
essa disciplina o aluno estará se preparando de alguma forma para desempenhar suas atividades
em sala de aula enquanto professor. Ainda, quando se opta pela modalidade “atividade de
ensino”, a ausência de supervisão e orientação por professores mais experientes, ou pelo próprio
orientador, costuma ser algo comum. Assim, o aprendizado ou “treino” ocorre com base em
observações, repetições, tentativas e erros pautados nas aulas já assistidas.
É possível observar a preponderância de disciplinas como metodologia da pesquisa
científica, prática de pesquisa, metodologia jurídica, elaboração de dissertação e seminário de
tese predominam nas grades curriculares, juntamente com disciplinas de cunho teórico (e essa
postura pode ser entendida, dentre outros fatores, como consequência das exigências requeridas
pelos órgãos de fomento, dos quais os programas de pós-graduação dependem).
A formação docente, segundo a LDB 9394/96 em seu artigo 65, incluirá a prática de
ensino de, no mínimo, trezentas horas: exceto para a educação superior. Assim, forma-se um
contexto no qual o produtivismo suprime o ensino nos programas de pós-graduação em direito,

2
Dados extraídos da grade curricular do curso, disponível em: http://ppgd.direito.ufrj.br/images/Curriculo_Mestrado.pdf
3
Dados extraídos da grade curricular do curso, disponível em: http://ppgd.direito.ufrj.br/images/Curriculo_Doutorado.pdf

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e a “preparação” para a docência se resume a obtenção da titulação necessária para o exercício


dessa profissão.
Pesquisa realizada sobre docência no ensino superior (CAMPOS, 2017), entre 2006
e 2010 em diversas pós-graduações brasileiras, demonstrou que o número de professores sem
formação e experiência específicas para a docência, e que ingressam nessa profissão, tem
aumentado significativamente. Dos 980 mestrandos e doutorandos questionados, 61%
disseram que os programas em que estavam matriculados não ofereciam disciplinas
pedagógicas ou correlatas à formação docente.
Para Weber, a aptidão para pesquisa e ensino não são necessariamente coincidentes,
e é esse um dos desafios encontrados nos programas de pós-graduação, que tendem em sua
maioria para apenas um aspecto. Para ele:

Todo jovem que acredite possuir a vocação de cientista deve dar-se conta de que a
tarefa que o espera reveste duplo aspecto. Deve ele possuir não apenas as
qualificações do cientista, mas também as do professor. Ora, essas duas
características não são absolutamente coincidentes. É possível ser, ao mesmo tempo,
eminente cientista e péssimo professor. (2015, p. 15)

Pode-se inferir, da mesma forma, que é possível ser, ao mesmo tempo, eminente
professor e péssimo cientista. Mas, a formação para docência nos programas de pós-graduação
requer que essas duas atividades caminhem juntas, sem, no entanto, oferecer oportunidades de
aprendizagem em igualdade e equilíbrio.
Diante desse panorama, aquele que pretende se tornar professor busca mecanismos
de aprendizagem naquilo que está ao seu alcance mais imediato, ou seja, se pautando na sua
vivência e observação de outros profissionais.
A mencionada pesquisa (CAMPOS, 2017) mostrou que os pós-graduandos
consideram não possuírem conhecimentos necessários para desempenhar a docência em sala
de aula, e revelaram a existência de uma naturalização na formação docente, na qual atuam com
base em sua experiência enquanto alunos, se inspirando em antigos professores.

Os mestrandos e doutorandos, que exerciam a atividade docente, tanto na rede


pública como na rede privada de ensino superior declararam que aprenderam “na
marra a dar aulas”. Afirmaram que as aulas que conseguiam programar eram a
“imagem e semelhança” das aulas que haviam tido na graduação. (CAMPOS, 2017,
p. 9)

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Assim, revela-se um dos obstáculos no que se refere a preparação para o ensino,


apreensão de métodos e técnicas de transmissão de conhecimento, de avaliação,
desenvolvimento de aula, bem como de métodos alternativos de ensino que atendam as
diferentes cognições.

3. FORMAÇÃO DOCENTE E O ENSINO JURÍDICO TRADICIONAL:


OBSTÁCULOS ÀS PRÁTICAS ALTERNATIVAS E AO EQUILÍBRIO DO MEIO
AMBIENTE ACADÊMICO

A relação ensino-aprendizagem compreende aspectos fundamentais para que a


transmissão de conhecimento ocorra além de um mero ato de depósito e recebimento de
informações. Para tanto, é necessário que seja atribuído um olhar atento ao público a que se
pretende ensinar.
As pessoas possuem diferentes capacidades cognitivas e diversas formas de apreender
um mesmo conhecimento. Algumas pessoas assimilam melhor conteúdos que lhes são
repassados através de recursos audiovisuais, para outras o aprendizado pela audição é o mais
eficaz, bem como para algumas é necessário, por exemplo, anotar ou copiar determinada
informação para que ela seja compreendida. Algumas pessoas são mais teóricas, outras mais
práticas.
Essas formas de aprendizagem diversas foram analisadas em 1984, por David Kolb,
professor universitário e teórico educacional, que observou a existência de quatro estilos de
aprendizagem, tendo em vista que a informação não é captada da mesma forma por todos.
Assim, Kolb classificou as formas de apreender informação em quatro eixos principais de
acordo com características: os adaptadores ou fazedores, os assimiladores ou especialistas na
conceitualização, os divergentes ou cheios de novas ideias, e os convergentes ou os que se
dedicam a uma só coisa. (JERICÓ, 2017)
A partir dessa análise, é possível perceber como o processo de ensino-aprendizagem
é algo mais complexo do que se imagina, e que demanda diferentes e inovadoras práticas. As
diferentes maneiras de aprender necessitam de diferentes técnicas de ensino.
Ocorre que, o ensino jurídico superior encontra uma grande barreira no
desenvolvimento de métodos alternativos de ensino que permitam o alcance do maoir número
de diferentes cognições existentes em uma sala de aula.

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Conforme visto, a graduação em direito, diferentemente dos cursos de licenciatura,


não possui nenhum conteúdo voltado para aqueles que pretendem lecionar sobre sua área de
formação específica. Além disso, o curso de direito tende a ser voltado precipuamente para a
formação de operadores do direito, especialmente para a advocacia e concursos públicos. Os
professores acabam sendo, então, profissionais de carreira (magistrados, delegados, advogados)
que veem na docência um complemento, ou bacharéis que buscam uma rota de fuga no direito.
Para completar, a formação em nível de pós-graduação, onde se esperaria uma preparação para
ensino tal qual para pesquisa, tem se demonstrado ineficiente, perpetuando a pesquisa e
produtivismo em detrimento do ensino.
Dessa forma, tem-se observado que o professor de direito assim o aprende a ser
através da observação, inspiração e imitação de seus antigos professores, reiniciando um ciclo
de reprodução de práticas tradicionalistas, conservadoras e autoritárias de ensino. Assim, tem-
se a predominância de aulas verticais, de imposição de conteúdo através do argumento de
autoridade do docente (o “detentor de todo o conhecimento”), concebendo o aluno enquanto
receptáculo de informações, tornando a eventual não assimilação de conteúdo responsabilidade
do discente.
Existe, então, um hiato entre o concebido e o vivido na docência, que deveria ser
preenchido pela formação pedagógica, tanto em relação aos que têm experiência enquanto
docentes no ensino superior, como aqueles que ainda não são professores. (CAMPOS, 2017, p.
02).
Surge a necessidade de ressignificação da formação de professores para o ensino
jurídico superior, que tende a ser vista como algo supérfluo ou dispensável, e da superação da
visão de que a formação científica por si só seja suficiente para um bom ensino. Dessa forma,
evita-se a atuação de excelentes pesquisadores e profissionais de carreira, mas péssimos
professores. Assim, entende-se que:

Numa visão conservadora, o pressuposto era de que o domínio do conteúdo seria


suficiente para o exercício da docência no ensino superior, ou seja, os saberes
pedagógicos eram considerados irrelevantes na constituição e formação do professor
universitário. Libâneo (2011) pontua que esse é um problema recorrente no ensino
superior. Porém, a expansão do desse nível de ensino e a diversidade de seus alunos,
a emergência de renovar o paradigma da ciência e da educação, em especial, com a
proposição da complexidade (MORIN, 2002), a nova visão ou o paradigma inovador
exige o conhecimento do todo, no qual o professor compreenda: o contexto no qual
ensina, a quem ensina (os alunos), como se ensina e que reconheça a si mesmo como
pessoa e profissional. (JUNGES; BEHRENS, 2015, p. 287)

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A vocação e formação do docente refletem no desenvolvimento da qualidade e


aprimoramento da sua atuação profissional, no seu interesse e conhecimento para aplicação de
técnicas que visem superar as práticas tradicionais, bem como na manutenção da saúde do meio
ambiente acadêmico tanto para discentes quanto docentes.
O motivo pelo qual uma pessoa opta por determinado percurso ou profissão específica
tende a refletir na forma como essa atividade será desempenhada. Weber entende que “é preciso
agir de outro modo, entregar-se ao trabalho e responder às exigências de cada dia – tanto no
campo da vida comum, como no campo da vocação. Esse trabalho será simples e fácil, se cada
qual encontrar e obedecer ao demônio que tece as teias de sua vida” (WEBER, 2015, p. 52).
O olhar vocacionado permite enxergar aspectos na relação ensino-aprendizagem
fundamentais para que a transmissão de conhecimento ocorra além de um mero ato de depósito
e recebimento de informações.
O exercício do magistério concebido enquanto meio alternativo de profissão, ou seja,
uma rota de fuga em uma escolha frustrada, quando aliado a carência na formação e instrução
específicas para o ensino pode se tornar uma combinação danosa. A relevância de que o docente
perceba sua profissão, além de uma obrigação, enquanto vocação reside no impacto que essa
atuação mais despida possível de frustrações e inabilidades natas desempenha do meio
ambiente acadêmico e na saúde de docentes e discentes.
Segundo pesquisa divulgada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes) em 2016, 30% dos alunos de graduação em instituições
federais no Brasil procuraram atendimento psicológico. Pressão, exigências do mercado de
trabalho, competitividade e descaso dos professores estão entre alguns elementos causadores
desse quadro, que não é recente. “’Na USP, existe um movimento de professores entrando em
contato com o Instituto de Psicologia, preocupados sobre como podem perceber que um aluno
está mal’, revelou um professor” (MATOS, 2017).
Nas pós-graduações a situação não é diferente. O suicídio de um doutorando da USP
reacendeu a discussão a respeito da saúde mental nas pós-graduações. Como um dos fatores
desencadeadores de problemas emocionais e psiquiátricos está a figura do orientador, que
despreparado ou descuidado tende a pressionar excessivamente o aluno, desconsiderando a sua
condição de ser humano, ou recair no extremo do descaso e invisibilidade, (MORAES, 2017).
O autoritarismo é outro fator que tem sido questionado no desempenho dos
professores. Segundo professor da UEL, André Fonseca, o excesso de autoritarismo pode ser

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considerado incompetência. Para ele, para constituir um espaço pedagógico estimulante e


significativo, é indispensável criar um clima de respeito mútuo. “Nem os professores
negligentes, que abdicam de suas responsabilidades, nem os autoritários, que sentem um prazer
secreto em intimidar, constranger e humilhar os alunos, conseguem educar com excelência”.
(FONSECA, 2018)
Por outro lado, a saúde do meio ambiente acadêmico pode ser, dentre outros fatores,
reflexo do desempenho do docente naquele ambiente, bem como refletir na saúde dele próprio.
Cresce o número de docentes que desenvolvem problemas psiquiátricos como a síndrome de
bournout e depressão. Professores não raro são surpreendido por alunos que perguntam “‘o
senhor também trabalha ou só dá aulas?’, como se a tarefa de educar fosse apenas um bico, algo
de menor importância.” (MARCONI; BICUDO, 2018)
Nesse contexto, torna-se relevante a reflexão acerca da motivação para docência, os
caminhos percorridos e a preparação para o desempenho em sala de aula, fatores que tem o
condão de mitigar ou potencializar significativamente esse panorama no meio ambiente
acadêmico.
Para a professora da Unicamp Elisabete Pereira (2018), a preparação para a docência
na universidade é muito mais que adestramento. Para ela a despreocupação com a formação do
docente em nível superior demostra a forma como a formação do homem é pouco evidenciada.
Permite-se que professores aprendam a ministrar aulas por ensaio e erro, desconsiderando a
responsabilidade de formação do aluno que a relação docente envolve, atendendo ao
utilitarismo necessário ao mercado de trabalho. Ela entende que:

Para o processo de ensino e de aprendizagem ser significativo para o indivíduo como


homem, profissional e cidadão, deve ter um compromisso com a preparação do aluno
para autonomia intelectual, emocional, social, cultural, política e profissional. [...]
Ao exercer a atividade docente, particularmente no nível da educação superior, o
professor deve responder para si algumas perguntas: Como eu quero ser professor?
Que formação quero dar ao aluno? Para qual universidade, ou seja, para que tipo de
instituição de educação superior? Para que tipo de sociedade? Com que ideia de
conhecimento estou trabalhando? (PEREIRA, 2018, p. 02)

Dessa forma, através de uma percepção crítico-reflexiva do docente sobre si, sobre o
papel que desempenha e sobre o ensino como um todo, visa-se a possibilidade de
implementação de práticas alternativas e mais eficazes na relação ensino-aprendizagem, que
levem em consideração as diferentes capacidades cognitivas e a manutenção do meio ambiente
acadêmico saudável.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou demostrar, de forma reflexiva e exploratória, alguns


elementos que desempenham papel relevante na docência no ensino superior, com enfoque no
ensino do direito nas universidades.
Para tanto, foram abordadas as possiblidades de escoha, os caminhos percorridos pelo
bacharel em direito, as motivações para suas escolhas profissionais, e como esses elementos
podem refletir no exercício da atividade profissional. Trouxe-se, então, a docência como
profissão que ora é escolhida, e ora acolhe, e a vocação como elemento transformador para o
desenvolvimento da atividade docente, enquanto fator motivador para um desempenho exitoso.
O curso de direito, por se tratar de bacharelado, não fornece elementos suficientes para
o aluno que intenciona se tornar professor de direito. Além disso, o caráter dogmático e
tradicionalista das graduações jurídicas, voltado para as carreiras formadoras de “operadores
do direito”, obstaculiza o vislumbre da docência como uma opção dentro desse ambiente, bem
como a preparação para tanto.
As pós-graduações, ao contrário do que poderia se esperar, tendem a um desequilíbrio
que privilegia a pesquisa e produção em detrimento do ensino. Dessa forma, as grades
curriculares dos cursos de mestrado e doutorado são deficitárias no que se refere ao
oferecimento de conteúdos voltados para a relação ensino-aprendizagem, bem como para a
apreensão de técnicas e métodos que possibilitem o alcance das diferentes cognições discentes
no ambiente de sala de aula.
Dessa forma, o indivíduo se torna professor fundamentado na sua vivência enquanto
discente, inspirado na forma de ensino dos professores que teve. Por se tratar de uma área
notoriamente conservadora, o direito tende a reproduzir modelos de ensino verticais,
autoritários e dogmáticos de ensino, que não levam em consideração o potencial reflexivo-
crítico da aprendizagem, nem a implementação de práticas alternativas de ensino.
Diante desse contexto, tem-se um paradigma que urge ser superado, para que a
formação docente, que vai além da formação específica na área, seja valorizada e desenvolvida.
Entende-se, portanto, que é necessária a superação dos obstáculos às práticas
alternativas de ensino, as quais consideram as diferentes formas de apreensão de conhecimento
e compreendem o aluno horizontalmente permitindo, por consequência, a contribuição para um
meio ambiente acadêmico saudável e equilibrado.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Nº 9.394 de 1996. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 23 dez. 1996.

CAMPOS, Vanessa Therezinha Bueno. Formar ou preparar para a docência no ensino superior? Eis a
questão. Disponível em < www.anped.org.br/sites/default/files/gt08-2528_int.pdf >Acesso em 03 set 2017.

FONSECA, André Azevedo da. Por que o autoritarismo de professores é sinal de incompetência. In: Huffpost
Brasil. Disponível em <http://www.huffpostbrasil.com/andre-azevedo-da-fonseca/por-que-o-autoritarismo-de-
professores-e-sinal-de-incompetencia_a_23 296548/> Acesso em jan 2018.

JERICÓ, Pilar. Os quatro estilos de aprendizagem − ou por que alguns leem os manuais e outros não. In: El País.
Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/10/ciencia/ 1476119828_530014.html> Acesso em nov
2017.

JUNGES, Kelen dos Santos; BEHRENS, Marilda Aparecida. Prática docente no Ensino Superior: a formação
pedagógica como mobilizadora de mudança. In: PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 33, n. 1, 285-317, jan./abr.
2015. Disponível em <http://www.perspectiva.ufsc.br > Acesso em nov 2017.

MARCONI, Elisa; BICUDO, Francisco. Síndrome de Burnout e os professores. In: SinproSP. Disponível em
<http://www.sinprosp.org.br/reportagens_entrevistas.asp? especial=70> Acesso em jan 2018.

MATOS, Thaís. Por que os jovens universitários estão tão suscetíveis a transtornos mentais? In: Huffpost Brasil.
Disponível em <http://www.huffpostbrasil.com/2017/10/06/por-que-os-jovens-universitarios-estao-tao-
suscetiveis-a-transtornos-mentais_a_23214960/?ncid=fcbkl nkbrhpmg00000004> Acesso em dez 2017.

MORAES, Fernando Tadeu. Suicídio de doutorando da USP levanta questões sobre saúde mental na pós. In: Folha
de S. Paulo. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2017/10/1930625-suicidio-de-doutorando-
da-usp-levanta-questoes-sobre-saude-mental-na-pos.shtml> Acesso em nov 2017.

PEREIRA, Elisabete Monteiro de Aguiar. Docência na universidade ultrapassa preparação para mundo do trabalho.
In: Revista Ensino Superior Unicamp. Disponível em
<https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/docencia-na-universidade-ultrapassa-preparacao-
para-mundo-do-trabalho> Acesso em jan 2018.

WEBER, M. Ciência e política – duas vocações. Trad. Marco. Antônio Casanova. São Paulo: Martin Claret, 2015.

937
Grupo de Trabalho 13

SOCIOLOGIA
DOS SENTIMENTOS MORAIS

cmxxxviii
MANUEL DA NÓBREGA E AS MISSÕES JESUÍTAS
NOS PRIMEIROS ANOS DO GOVERNO GERAL
DO ESTADO DO BRASIL (1549-1559)

BROCCO, Pedro
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
(PPGSD-UFF)
GONÇALVES, Marcus Fabiano
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito (PPGSD-UFF)

RESUMO

O trabalho objetiva analisar a dinâmica dos primeiros anos de funcionamento do Governo Geral do
Estado do Brasil. Partindo do exame de fontes produzidas por membros da Companhia de Jesus,
sobretudo pelo jesuíta Manuel da Nóbrega (1517-1570), que esteve à frente das missões brasileiras desde
1549, a construção da análise se debruçará sobre a problemática moral (de fundo teológico) acerca dos
costumes dos nativos brasileiros, dos colonos portugueses e do clero secular que habitavam a terra antes
da fundação do Governo Geral por D. João III. Neste sentido, se pretende verificar em que medida o
projeto missionário, para além de sua preocupação com a conversão dos nativos, gera impactos na
reforma dos costumes e na administração da justiça na colônia.

Palavras-Chave. Jesuítas. Manuel da Nóbrega. Período colonial.

ABSTRACT

This work aims to analyze the dynamics of the first years of operation of the General Government of the
State of Brazil. Starting from the examination of sources produced by members of the Society of Jesus,
especially by the Jesuit Manuel da Nóbrega (1517-1570), who has been at the leader of the Brazilian
missions since 1549, the construction of the analysis will focus on the moral problematic (of theological
background) about the customs of the Brazilian natives, the Portuguese settlers and the secular clergy
who inhabited the land before the founding of the General Government by King John III. In this sense,
it is intended to verify to what extent the missionary project, besides its concern with the conversion of
the natives, generates impacts on the reform of customs and on the administration of justice in the colony.

Keywords. Jesuits. Manuel da Nóbrega. Colonial period.

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ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO: A CHEGADA DA COMPANHIA DE JESUS AO BRASIL, 1549

A atuação da Companhia de Jesus no Brasil tem início no ano de 1549, quando


chegam de Lisboa cinco jesuítas (padres João de Azpilcueta Navarro, Leonardo Nunes,
Antônio Pires e os Irmãos Diogo Jácome e Vicente Rodrigues) chefiados por Manuel da
Nóbrega (1517-1570) entre as três naus, duas caravelas e um bergantim que chegam à Bahia
levando mais de mil pessoas, entre elas o Governador Geral Tomé de Sousa. Pode-se mesmo
afirmar que aí começa-se a construção do Brasil com sede administrativa, em Salvador, do lado
do braço secular, e com os rudimentos de uma província jesuíta, que mais à frente é criada por
Inácio de Loyola, em 1553, nomeando Nóbrega como primeiro provincial.
Estes primeiros anos, no entanto, também chamados de “período heroico” da
Companhia de Jesus no Brasil, são de extrema dificuldade na fixação das bases coloniais e
demandarão grandes esforços adaptativos e administrativos. Tais demandas trazem especial
interesse ao nosso estudo, pois implicarão o fundamento de bases mais sólidas a respeito do
direito, da administração pública e do conjunto de normas que formarão a estrutura colonial, na
medida em que o direito apresenta-se como uma técnica e uma tecnologia de controle social
(concepção gerada somente com sua independência epistemológica em relação à teologia e à
moral), e, neste sentido, importa realizar aqui uma leitura sobre o início da implantação da
colônia brasileira e os respectivos comportamentos impostos aos súditos da fatura tropical do
Império português. O que se chama aqui de “conjunto de normas” será alimentado em suas
configurações gerais, nestes primeiros anos e de maneira muito especial, pela Companhia de
Jesus, não obstante a constante tensão entre jesuítas e colonos sobre a administração dos índios,
que perdurará até a expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses pelo Marquês de Pombal.
O objetivo deste trabalho é o de contextualizar as primeiras medidas administrativas
e jurídicas tomadas pelo Governo Geral em consonância com as diretivas dos jesuítas,
concentrando-nos nestes primeiros anos de presença jesuíta no Brasil, e marcando de forma
especial a centralidade da figura da conversão para os objetivos propostos do assentamento
português em território brasileiro.
João Adolfo Hansen toca nestes pontos em seu estudo sobre Manuel da Nóbrega1.
Começando pela concepção de tempo, podemos observar, seguindo o trabalho de Hansen, outro
tipo de relação, metafísica, com a temporalidade e a teologia aí implícita: “A sociedade

1HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, pp. pp. 11-47,
passim.

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portuguesa do século XVI não é burguesa, iluminista ou liberal. Sua experiência do tempo é
outra, diferente da experiência temporal moderna, pois pressupõe a presença providencial de
Deus como Causa e Fim da sua história”2.
Cumpre ressaltar e realçar este ponto: no que tange à compreensão histórica da
estrutura comportamental (e aqui embute-se o sentido de ética) da Companhia de Jesus a animar
o espírito do século XVI, há que se ter um distanciamento cauteloso em relação a interpretações
de fatos e eventos cuja definição de seu significado histórico nos pareça hoje muito clara, como
é o caso da análise histórica da expansão comercial das potências ibéricas. Do ponto de vista
comercial e material, tais expansões foram animadas pela descoberta de novas rotas comerciais
que levassem às Índias e implicassem em uma supremacia militar, econômica e política para o
Estado que as executasse. Havia, no entanto, outras motivações, talvez mais determinantes do
que esta: aquela que diz respeito à expansão da forma de vida cristã e o subjugar das culturas
infiéis, além da conversão dos estrangeiros (gentios): fruto de uma outra forma de compreender
o tempo, a pessoa humana, as relações sociais, o poder, etc.
Em Os Lusíadas, poema épico fundante da cultura lusófona, há um excelente material
de análise das motivações da expansão ibérica para o Oriente. Em não poucas passagens, fica
clara a tensão envolvendo Ocidente cristão e Oriente ora infiel, mouro, ora estranho, exótico.
Porém do ponto de vista da justificativa expansionista portuguesa, Luís de Camões parece ser
muito claro ao colocar na frente de todos os motivos o da dilatação do cristianismo, como se
observa em dois trechos do Canto Sétimo:

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,


Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A Lei da Vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade,
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

E, também, mais à frente:

Ó míseros Cristãos, pola ventura


Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,
Que uns aos outros se dão à morte dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?
Não vedes a divina Sepultura
Possuída de Cães, que, sempre unidos,

2
Idem, p. 11.

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Vos vem tomar a vossa antiga terra,


Fazendo-se famosos pela guerra?3

Nestes dois trechos pode-se vislumbrar duas linhas de força centrais na construção da
epopeia de Camões: a que coloca Portugal na dianteira da cristandade europeia a lançar-se ao
mar para dilatar a vida cristã, a Lei da Vida eterna e, de outro lado, uma feroz rivalidade frente
às outras religiões monoteístas e aos gentios: “Vós, que esperamos jugo e vitupério / Do torpe
ismaelita cavaleiro / Do Turco Oriental e do Gentio / Que inda bebe o licor do santo Rio”4.
Camões coloca Portugal liderado por Vasco da Gama, e ele próprio, Camões, sobre
dois eixos principais: do lado cultural, nas disputas militares pela vitória da melhor e mais
verdadeira religião, e do lado temporal, também cultural, de supremacia de uma forma de vida
cristã, produtora dos mais sublimes feitos capazes de serem cantados e escritos. Ilustram essas
afirmações as famosas três primeiras estrofes do Canto Primeiro:

As armas e os barões assinalados


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.5

3
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014, pp. 239-241.
4
Idem, Canto Primeiro, p. 67.
5
Idem, p. 65.

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As três estrofes ou estâncias acima citadas representam três grandes linhas de força
dos Lusíadas: a de colocar Portugal na dianteira da dilatação da cristandade no mundo,
edificando “Novo Reino”, a de, assim fazendo, conservar as gloriosas memórias de reis cristãos
construtores no campo secular da fé e do império cristão frente a outras religiões e culturas; e,
finalmente, a pretensão de escrever um poema épico capaz de fazer frente a grandes cânones
da cultura clássica, como os gregos (Homero) e troianos (referência à Eneida de Virgílio) e as
respectivas navegações que narram, Homero com Ulysses ou Odisseu; Virgílio com Eneias.
Camões visa narrar o heroico percurso de Vasco da Gama e sua esquadra até a Índia, em um
esforço ao mesmo tempo militar e literário: Alexandre e Trajano dividem a estrofe com Homero
e Virgílio. Tal é, de fato, a posição de Portugal naquele momento: a de estar na vanguarda
econômica e militar, lançando-se ao arrojo da nova rota comercial na Índia via périplo africano,
o que não custou pouco investimento em tecnologias náuticas e em planejamento. Camões
aparece, assim, como um virtuoso poeta fundamentalmente patriota, sublimando os feitos
portugueses nas letras de sua épica.
Pode-se dar razão a comentadores de Camões como Emanuel Paulo Ramos,
organizador da edição aqui consultada, quando diz que “o real grandioso” de que se ocupa
Camões diz respeito a dois mundos: o mundo material, abrangendo os grandes fenômenos
observáveis pelos sentidos: batalhas, cercos, tempestades, etc.; e o mundo moral, reunindo
estados psicológicos das pessoas que participam da ação “ou durante ela são recortadas ou
pressentidas em profecia”6: tal é o caso de lançar mão de certos personagens capazes de
transmitir ideias e conceitos: D. Afonso Henriques é evocado para transmitir ímpeto épico; já
Inês de Castro, no Canto Terceiro, aparece como personagem histórico transmitindo
passividade e dominância por sentimentos elevados7. Não obstante essa divisão no interior da
obra, pode-se sustentá-la também em relação ao que foi afirmado logo acima: Camões enquanto
sujeito histórico produz sua épica em um Portugal dividido entre o mundo material, do
comércio e da supremacia geopolítica ante seus rivais e, ao mesmo tempo, o mundo moral ou
aquele que forma a estrutura psicológica de seus agentes, movidos por uma ingente e ígnea
vontade de dilatar os limites do catolicismo pelo mundo, subjugando militarmente os resilientes
e trazendo para si os convertidos. Também faz parte desta dinâmica, e de forma muito peculiar,
a Companhia de Jesus. Fundada por um ex-militar, é certo afirmar que a Companhia de Jesus

6
RAMOS, Emanuel Paulo. Introdução literária a Os Lusíadas, op. cit., p. 44.
7
Idem, ibidem.

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manteve uma estrutura muito próxima da militar: rígida hierarquia, rigorosa formação,
incursões em locais distantes e hostis em operações nomeadas de “missões”.
Um jesuíta devia ser um exemplo de preparo teológico e humanista, capaz de dominar
as mais refinadas capacidades voltadas às letras, à teologia, às ciências e à tradução. Envolvida
em operações de alto nível de dificuldade de consecução, a Companhia produziu ao mesmo
tempo padres tradutores capazes de descrever não apenas o mundo físico que se descortinava
às potências europeias, mas as sociedades e os costumes ali desenvolvidos. Tradutores
completos, humanistas e teólogos, vivendo em uma (quase) estrutura militar: talvez aí se possa
buscar o vigor e o sucesso da Ordem nos dois séculos em que atuou mais diretamente no campo
da tradução e conversão das culturas estrangeiras.
A Companhia de Jesus, fundada no mesmo período histórico em que Camões
participa das incursões às Índias como soldado e escreve sua poesia épica, compartilha com
Camões dos mesmos pressupostos de sua ação: tanto cultural quanto militar. Anima a
Companhia de Jesus o desejo de igualmente dilatar a fé cristã pelo mundo quanto o da
supremacia de uma civilização sobre outras. O método a ser utilizado, no entanto, não será o de
subjugar pelas armas, mas pela conquista espiritual ou conversão.
O subjugar pela conversão envolve uma rede de posturas e saberes que vai sendo
formada e atilada ao longo dos primeiros séculos de contato ibérico com o Novo Mundo e com
o Oriente.
A conversão não implica somente na criação de qualquer espécie de docilidade na
alma dos convertidos, mas em refazer suas coordenadas imaginárias e simbólicas, primeiro
mediante uma aproximada compreensão de seu mundo, seus usos e costumes, além de seu
ambiente físico, para depois realizar um processamento e conversão do registro estrangeiro em
clave europeia-católica. Pode-se supor de início a supremacia cultural europeia, em relação à
qual seriam os padres os representantes e porta-vozes. É verdade que em relação às culturas
americanas e em alguns lugares da Ásia, conseguiu-se com sucesso implantar as principais
coordenadas simbólicas europeias, como o vernáculo, porém não é verdade que o intuito fosse
o de apenas subjugar aqueles povos em nome de uma cultura “europeia” ou de um país
específico: o interesse era antes mais sofisticado e religioso. Mesmo dentro dos limites da
Europa, havia a guerra intestina entre católicos e protestantes. Tratava-se então de recolocar a
conversão dos gentios no interior do planejamento e dos objetivos tridentinos
contrarreformistas da Igreja católica.

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Buscando aliar a disciplina militar a uma robusta preparação e treinamento nas letras
e na teologia, a Companhia enviava os padres mais eruditos para serem superiores das missões.
É o caso do primeiro Provincial jesuíta do Brasil, Manuel da Nóbrega. Nóbrega estudou em
Salamanca e em Coimbra, tendo obtido o grau de bacharel em cânones. Forte em direito
canônico e filosofia, possuindo como mestre Martín de Azpilcueta Navarro, Nóbrega tentou
tornar-se Lente (professor) da Universidade, mas não obteve sucesso nas provas de leitura
devido ao fato de ser gago. Talvez para enfrentar tal defeito na fala, Nóbrega é ordenado pela
Companhia de Jesus aos vinte e sete anos, em 1544, tornando-se pregador. Após viajar por
Portugal e Espanha pregando o Evangelho, recebe um convite do rei D. João III para juntar-se
à armada de Tomé de Sousa que partia para o Brasil em 1549. Chegam com ele os padres
jesuítas Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro (sobrinho de Martín de Azpilcueta
Navarro), Antônio Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jacome. Nóbrega desde o
início possui atuação muito próxima ao poder secular de Tomé de Sousa, o que continua com
seus sucessores, sobretudo Mem de Sá, do qual se torna também amigo e conselheiro. Nessa
atuação conjunta dos poderes secular e espiritual se depreende a importância do direito positivo
(secular) para a consecução dos fins da conversão da Companhia de Jesus, e vice-versa. Como
afirma Nicola Gasbarro, é impossível separar a faceta religiosa das missões da faceta política e
civilizacional, o religioso e o civil. Ao longo da gestão conjunta de Nóbrega e Mem de Sá,
percebe-se um esforço de extinção da prática da antropofagia através de leis penais mais rígidas
contra a prática, com a instalação de um pelourinho em Salvador. Nóbrega também pede que o
Governador Geral baixe leis para a proteção dos índios, visando coibir sua escravização sem
limites legais (os da guerra justa). Com isso, o padre abre espaço para o início do uso de mão-
de-obra escrava africana, tendo inclusive apoiado tal expediente.
O exame de suas cartas e de seu diálogo composto para retratar as agruras da
conversão no Brasil da segunda metade do século XVI – período de análise deste trabalho –
será fundamental para estudos subsequentes.

1. O OTIMISMO DOS PRIMEIROS ANOS

O tom das primeiras cartas de Nóbrega é o de otimismo. Transmite aos destinatários


boas informações sobre as condições da terra, sobre o clima e sobre a cidade nova que se
construía, chamada de Salvador. De maneira geral, as cartas de Nóbrega apresentam

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características interessantes quando comparadas ao estilo epistolar que caracterizava as


missivas dos membros da Companhia de Jesus, os quais costumavam compor cartas edificantes
sobre as missões. Nóbrega de fato escreve cartas mais otimistas e edificantes quando as envia
aos colégios ou endereçadas aos padres e irmãos, provavelmente a serem lidas em voz alta para
uma coletividade. As cartas enviadas a autoridades, porém, como provinciais, ao rei D. João III
bem como a carta enviada a Tomé de Sousa, demonstram os reais problemas que a Companhia
enfrentava na missão do Brasil. Quando organizadas em seu aspecto retórico-estratégico e
analisadas em conjunto, as cartas de Nóbrega mostram as principais linhas de força que atuaram
a favor e contra a Companhia de Jesus no Brasil: se por um lado havia um constante apoio
declarado da Coroa, por outro surgia uma crescente resistência por parte dos colonos,
envolvidos nas atividades econômicas que logo demandariam uma necessidade cada vez maior
de força de trabalho escrava.
Em relação à conversão dos nativos também se percebe ainda otimismo, embora
sejam claros os juízos negativos de Nóbrega sobre os costumes dos índios, mas também de
igual maneira em relação aos costumes dos colonos portugueses.
Logo na primeira carta, enviada ao padre Simão Rodrigues, após a chegada da armada
à Bahia, Nóbrega observa;

Eu prégo ao Governador e á sua gente na nova cidade que se começa, e o padre


Navarro á gente da terra. Espero em Nosso Senhor fazer-se fructo, posto que a gente
da terra vive em peccado mortal, e não ha nenhum que deixe de ter muitas negras8
das quaes estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum delles se vem confessar.9

A queixa de Nóbrega de que nenhum colono, naqueles primeiros dias10 de presença


jesuíta, se confessava, denota que nenhum deles ainda se sentia constrangido com sua forma de
vida e, assim, não havia internalizado qualquer tipo de censura ou sentimento de culpa. Os
jesuítas atuavam nestas filigranas da psicologia humana11 ao buscar transmitir ao colono e ao
nativo, ao mesmo tempo, a noção de pessoa humana e a de juízos implicados nas ações, o que

8 Era comum que jesuítas e colonos nestes primeiros anos se referissem aos índios como negros. Cf. MONTEIRO, John Manuel.
Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
9
NÓBREGA, CB, p. 72.
10 A carta é escrita depois de 31 de março e antes de 15 de abril, conforme se depreende da análise da carta subsequente, também

enviada a Simão Rodrigues, quando a certa altura Nóbrega diz: “ontem foi Domingo de Ramos”, isto é, 14 de abril. Cf. CB, p.
77. A armada de Tomé de Sousa, onde vieram os primeiros jesuítas, partiu de Lisboa no dia 1 de fevereiro de 1549, chegando à
Bahia no dia 29 de março.
11
Não estamos aqui nos referindo à psicologia científica moderna, mas àquela profundamente ligada ao étimo que remonta ao
grego psyché para representar o conceito de alma e a relação desta com a observação e ação sobre os costumes, saber relacionado
à ética clássica.

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levaria à má ação geradora de culpa e penitência. O procedimento da penitência era feito através
da confissão, sacramento que havia ganhado nova importância na Contrarreforma tridentina12.
A estratégia de Nóbrega para o planejamento da conversão se dá no Brasil, nesta
segunda metade do século XVI, de modo geral a partir de duas estratégias: pela força
dissuasória dos poderes religioso e secular (compelle intrare), apostando mais no medo do que
na caridade entre os adultos, e pelo ensino da doutrina cristã às crianças. Neste ensino
compreende-se também o aprendizado da leitura e da escrita, que se fazia nas escholas de ler e
escrever. Fazendo com que as crianças nativas aprendessem a ler e a escrever, Nóbrega buscava
doutriná-las para o batismo.
A imagem do papel branco para escrever à vontade marca a diferença do gentio do
Brasil em relação a outros lugares onde a Companhia de Jesus instalou missões. Como o nativo
brasileiro não possuía escrita e se formava por uma cultural oral, os padres encontravam um
quase grau zero da educação e catequese, presente nas crianças. Embora se aproxime da
doutrina aristotélica do ato-potência e vise imprimir à vontade no nativo do Brasil as principais
formações civilizacionais e religiosas europeias, tal imagem, retoricamente muito forte, não era
verdadeira. Os jesuítas necessitaram operar uma leitura protoetnológica da organização social,
crenças e costumes do gentio brasileiro para poder atuar sobre ele de forma eficaz na conversão.
O método utilizado para a conversão passava pelo aprendizado, por parte dos jesuítas,
da língua dos nativos. É possível que antes da política de construção dos aldeamentos, as
missões volantes dos jesuítas se concentrasse em uma imersão nas aldeias nativas para o
aprendizado de sua língua. É o que se depreende do seguinte trecho: “Trabalhamos de saber a
lingua delles e nisto o padre Navarro nos leva vantagem a todos. Temos determinado ir viver
com as aldeias, como estivermos mais assentados e seguros, e aprender com elles a lingua e il-
os doutrinando pouco a pouco”13.
Nóbrega não deixa de observar também o expediente muito usado pelos jesuítas de
aproximação e conversão das elites, que já pode ser notado nesta primeira carta:

Tambem achamos um Principal delles já christão baptisado, o qual me disseram que


muitas vezes o pedira, e por isso está mal com todos os seus parentes. Um dia,
achando-me eu perto dele, deu uma bofetada grande a um dos seus por lhe dizer mal
de nós ou cousa similhante. Anda muito fervente e grande nosso amigo; demos-lhe
um barrete vermelho que nos ficou do mar e umas calças. Traz-nos peixe e outras
cousas da terra com grande amor; não tem ainda noticia de nossa Fé, ensinamo-lh’a;
madruga muito cedo a tomar lição e depois vai aos moços a ajudal-os ás obras. Este

12
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.
13
CB, p. 73.

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diz que fará christãos a seus irmãos e mulheres e quantos puder. Espero em o Senhor
que este ha de ser um grande meio e exemplo para todos os outros, os quaes lhe vão
já tendo grande inveja por verem os mimos e favores que lhe fazemos. Um dia comeu
comnosco á mesa perante dez ou doze ou mais dos seus, os quaes se espantaram do
favor que lhe dávamos.14

É neste sentido que Nóbrega diz a Simão Rodrigues que o que mais importava naquele
momento para a missão brasileira era o básico e o infraestrutural: tecidos para cobrir os índios
e pessoal para percorrer as aldeias indígenas e levar a eles o paradigma de vida cristã. Diz
Nóbrega: “Cá não são necessarias letras mais que para entre os Christãos nossos, porém virtude
e zelo da honra de Nosso Senhor é cá mui necessário”15.
Ao mesmo tempo em que pede cristãos virtuosos a Simão Rodrigues, Nóbrega
confessa temer o mau exemplo dos cristãos portugueses que já habitavam a terra. Fica clara a
questão já posta por Nóbrega, já na primeira carta escrita no Brasil, de que um dos principais
obstáculos para a conversão será a sociedade civil composta por colonos cristãos já instalados
no território. Se por um lado marca a docilidade do gentio e a facilidade de sua conversão, teme
pelo “mau exemplo que o nosso Christianismo lhe dá”:

O padre Leonardo Nunes mando aos Ilheos e a Porto Seguro, a confessar aquella
gente que tem nome de Christãos, porque me disseram de lá muitas misérias, e assim
a saber o fructo que na terra se póde fazer. (...) Leva por companheiro a Diogo
Jacome, para ensinar a doutrina aos meninos, o que elle sabe bem fazer; eu o fiz já
ensaiar na nau, é um bom filho. Nós todos os tres confessaremos esta gente; e depois
espero que irá um de nós a uma povoação grande, das maiores e melhores desta terra,
que se chama Pernambuco e assim em muitas partes apresentaremos e convidaremos
com o Crucificado. Esta me parece agora a maior empresa de todas, segundo vejo a
gente docil. Sómente temo o mau exemplo que o nosso Christianismo lhe dá, porque
ha homens que ha sete e dez annos que se não confessam e parece-me que põem a
felicidade em ter muitas mulheres. Dos sacerdotes ouço cousas feias. Parece-me que
devia Vossa Reverendissima de lembrar a Sua Alteza um Vigario Geral, porque sei
que mais moverá o temor da Justiça que o amor do Senhor. E não ha oleos para ungir,
nem para baptisar; faça-os Vossa Reverendissima vir no primeiro navio (...).16

Não obstante perceber-se aqui já uma inclinação a adotar o medo (o temor da Justiça)
em contraste ao amor da caridade cristã, Nóbrega mostra-se confiante na empresa em sua
primeira carta. As primeiras preocupações de Nóbrega são, assim, em grande parte materiais:
roupa, óleo para a liturgia, bons funcionários jesuítas sob seu comando. Tratava-se, com efeito,

14
Idem, pp. 73-74.
15
Idem, p. 74.
16
Idem, p. 75.

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de administrar uma empresa, cujos lucros mediam-se em número de almas convertidas à


civilização cristã.
Para a Igreja Católica, segundo Castelnau-L’Estoile, o processo de alargamento da
catolicidade é percebido como um processo temporal. Trata-se de fazer com que as novas terras
tornem-se plenamente cristãs e que o direito canônico se exerça. Antes, porém, de chegar-se a
tal objetivo, “um regime jurídico excepcional, o direito missionário, conjugação de faculdades
para o clero e privilégios para os fiéis, se aplica”17. Tal regime jurídico de exceção era visto
como provisório e funcionaria até o momento em que o regime ordinário da Igreja pudesse se
estabelecer e operar.
A figura do missionário desde o fim da Idade Média aparece ligada a faculdades que
se traduzem em poderes excepcionais capazes de colmatar lacunas das regras de direito
canônico ou de acordar benefícios espirituais para determinadas demandas de fiéis. O caso da
dispensa de impedimentos ordinários para o casamento figura entre os benefícios espirituais
concedidos aos fiéis. É este o caso do Brasil, quando a Companhia de Jesus assume o
monopólio da evangelização. Com efeito, o importante sacramento do casamento pôde ser
administrado entre os índios pelos padres da Companhia, que concediam tais benefícios como
a dispensa de impedimentos de casamento por parentesco e afinidade, com base no
conhecimento da organização do social das sociedades indígenas. Esta é também uma faceta
da accomodatio jesuíta, o acomodar-se aos costumes locais para buscar a conversão desde o
lado de dentro das sociedades com as quais se relacionavam. E se vinham desde o lado de fora
e funcionavam ou buscavam funcionar como os que estavam do lado de dentro, buscando a
compreensão de seus mecanismos, os jesuítas mostram a ductibilidade da natureza humana, ao
transitarem entre diferentes consistências sociais e culturas e fazerem o “dentro” e o “fora”
deixarem de apresentar fronteiras rígidas.
A liberdade de obter privilégios e conceder benefícios, em lugares geograficamente
muito distantes das estruturas do clero secular e de superiores hierárquicos como os bispos,
pode trazer um questionamento, a nosso ver, a respeito da obediência que o jesuíta devia ter ao
Papa, constante do quarto voto. Ao menos, o funcionamento do jesuíta em terras longínquas
marca o caráter curioso de um voto e juramento de obediência e, ao mesmo tempo, a grande

17« Une Église aux dimensions du monde : expansion du catholicisme et ecclésiologie à l’époque moderne » in Les clercs et les
princes. Paris: Presses de L’École Nationale des Chartes, 2013, p. 313-330.

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liberdade para administrar as almas e suprir o direito canônico então inoperante em sua
integralidade nessas localidades, fazendo espécies de arranjos e adaptações adequadas ao modo
de funcionamento das sociedades locais. Castelnau-L’Estoile chega a uma afirmação curiosa
que toca no cerne deste trabalho: “a missão é definida não mais como um espaço geográfico
mas como um espaço jurídico onde o clero tem a necessidade de faculdades. Às faculdades do
clero correspondem os privilégios dos fiéis, outro instrumento jurídico em terra de missão”18.
Torna-se interessante o pensamento das missões como zonas jurídicas por dois
motivos: o primeiro deles é o deslocamento do ponto de vista da colonização da conquista
militar e tomada territorial para o de um horizonte jurídico capaz de fundar uma sociabilidade.
O segundo motivo toca na raiz do que se entenderia neste contexto como “jurídico”. Pois parece
que mesmo fundada em um direito cujo sentido último seria o direito divino19, o jurídico
tomado no século XVI como a criação de um ambiente de vida social capaz de organizar e
regular um horizonte de suposições razoáveis de mútua expectatividade20, o papel exercido
pelo termo “jurídico” não foi alterado desde então. O que se observa a partir do século XVIII,
de modo especial, é a tentativa de fundar o direito epistemologicamente em um campo não
religioso, ao mesmo tempo em que também se busca fazer o mesmo com a moral. Deve-se em
grande parte a Kant a configuração de uma moral alheia à religião e submetida à Razão, bem
como as noções de agir conforme os imperativos categórico e hipotético. Tais conceitos,
relacionados também aos de liberdade e autonomia, irão dar origem às noções de autonomia e
heteronomia, fundamentais à epistemologia de uma ciência do direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS OU FEITICEIROS, COLONOS, CLERO


SECULAR: RESISTÊNCIAS AO PLANEJAMENTO DAS MISSÕES

Os jesuítas são tributários de uma longa tradição orientada pela tecnologia da escrita
que vai desde a dimensão religiosa, sob o registro do hebraico até o grego dos evangelhos
sinóticos, e também pela grande tradição greco-romana, em seu aspecto filosófico e jurídico
que informou as principais estruturas de poder e de sociedade, como, por exemplo, todo o saber

18 Idem, p. 326.
19
Fazendo-se aqui menção aos desenvolvimentos teóricos da Escola de Salamanca, com o direito natural e o ius gentium, a partir
dos conceitos de ius communicationis de Francisco de Vitoria.
20 Esta é a definição de Marcus Fabiano Gonçalves para a noção de confiança: a suposição razoável de uma mútua expectatividade

(cf. GONÇALVES, M. F.; ARRUDA, Edmundo Lima. Fundamentação ética e hermenêutica: alternativas para o direito.
Florianópolis: CESUSC, 2002). Com efeito, não seria o direito um saber capaz de caucionar a confiança e fundamentar uma vida
social e cooperativa possível? Parece-nos que sim.

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que envolveu o direito civil romano, direto influenciador do direito canônico. As lutas que
envolveram a evangelização e conversão de tradições orais no Brasil, neste sentido, seriam as
mesmas em relação àquelas que ocorreram depois do fim do Império romano do Ocidente,
levadas adiante pela Igreja primitiva, em vias de se tornar um grande poder hegemônico capaz
de mobilizar o saber e a tradição ocidentais. Compreender que a evangelização e a
cristianização vai de mãos dadas com todo este saber potencial que envolve a tecnologia da
escrita é de grande importância para sustentarmos que a Companhia de Jesus foi o primeiro
grande esforço, no Brasil, de implantação efetiva de aparato jurídico, ético e, neste sentido,
político. Sem este esforço de mudança de registro e paradigma que subjaz à evangelização, toda
tomada de território resvalaria na ineficácia e na violência, como ocorreu nos primeiros anos
de colonização ibérica na América e no fracasso das capitanias hereditárias.
Um exemplo podemos encontrar nesta mesma carta de Nóbrega, quando relata uma
pregação por intermédio de um menino língua21:

Quando viajamos nós outros da Companhia, nunca nos abandonam, e antes nos
acompanham para onde se queira, maravilhados com o que pregamos e escutando
com grande silencio.

Dentre outras coisas, recordo-me que por meio de um menino lingua eu lhes dizia,
uma noite em que eu pregava ao luar (não lhes podendo ensinar mais), que tivessem fé em Jesus
Christo, e que ao deitar e ao levantar o invocassem dizendo: Jesus, eu te encommendo a
minh’alma, e depois que delles me parti, andando pelos caminhos, notei a alguns que diziam
em voz alta o nome de Jesus, como lhes havia ensinado, o que me dava não pequena
consolação.
A rivalidade dos jesuítas com os feiticeiros travava-se neste contexto de uma cultura
oral que dava grande importância aos anciãos que conseguiam conservar e repetir oralmente os
saberes e as fórmulas aprendidas entre as gerações. Os padres buscavam então vencer a eficácia
simbólica dos feiticeiros (lembremos dos ritos envolvendo os maracás) através das pregações e
dos sacramentos, como a confissão e o batismo. O batismo, assim, neste primeiro momento,
apresentava este aspecto performativo e dotado de eficácia simbólica a partir da qual se entrava
na comunidade cristã depois de um rito e um conjunto de palavras proferidas.

21Os “línguas” eram os intérpretes e tradutores. Nóbrega desde o início utiliza línguas, neste primeiro momento crianças, para se
comunicar com os índios, inclusive na confissão, o que gerou um grande atrito com a Igreja.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Percebe-se neste momento um esforço já de início dos aldeamentos que pudessem


funcionar como isolamento em relação aos feiticeiros e assim também ao saber oral que
portavam e, ao mesmo tempo, como centros de instrução-alfabetização e educação nas questões
morais e religiosas.
Neste sentido, a criação de “centros de educação” estava colocada de forma
inseparável do sacramento do batismo. Tornar-se catecúmeno era um status relacionado ao
batismo:

Em duas das principais aldeias de que tem cargo, fizeram-lhe uma casa onde esteja e
ensine aos cathecumenos; em outra aldeia, tambem próximo a esta cidade22, fizemos
uma casa a modo de ermida, onde um de nós está incumbido de ensinar e pregar aos
baptisados de pouco, e a outros muitos cathecumenos, que nella vivem.
Os Principaes da terra baptisaremos em breve (...).23

Ensinar, pregar, converter: a conversão extrai sua eficácia do ensino da doutrina


católica mobilizado em sua plenitude somente com o domínio da leitura e escrita. Porém, neste
primeiro momento da atuação jesuíta, Nóbrega parece querer dizer que o esforço principal
estava em catequizar e criar os primeiros rudimentos de uma sociedade cristã. Nóbrega adota a
metáfora do papel branco ao falar sobre a necessidade de incremento de novos missionários no
Brasil, “que tão poucos operarios possue”: “Poucas lettras bastariam aqui, porque tudo é papel
branco, e não ha que fazer outra cousa, sinão escrever á vontade as virtudes mais necessarias
e ter zelo em que seja conhecido o Creador destas suas creaturas”24.
Essas virtudes mencionadas por Nóbrega tocam em pontos importantes da moral e do
funcionamento social dos índios. Além da já citada antropofagia, em que se encerra o
mandamento de amar o próximo como a si mesmo do Sermão da Montanha, tem-se também a
delicada questão da poligamia e de como os índios organizavam-se acerca das relações sexuais
e amorosas:

(...) outra cousa não se espera sinão que tornem á suas mulheres, que têm esperança
qme que conservem a fidelidade: porque é costume até agora entre elles não fazerem
caso do adulterio, tomarem uma mulher e deixarem outra, como bem lhes parece e
nunca tomando alguma firme. O que não praticam os outros infieis de Africa e de

22
Salvador.
23
NÓBREGA, op. cit., p. 93.
24
Idem, p. 94.

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ISSN 2236-9651, n. 7

outras bandas, que tomam mulher para sempre e si a abandona é mal visto: o que não
se usa aqui, mas ter as mulheres simplesmente como concubinas.25

Tal questão naquele momento era crucial e toca de alguma maneira em todos os
seguintes pontos: religião, moral, subjetividade, direito, política, família e sociedade. A Igreja
era a responsável por ministrar os sacramentos que organizavam a vida seja do indivíduo, seja
da família cristã: está-se aqui falando de batismo e casamento. Ao mesmo tempo, a noção de
indivíduo que possui um nome e uma história de vida toca no ponto da tradição e da
transferência geracional e simbólica do nome de família: aspectos que se incorporam na história
social e individual daqueles que se assujeitam a tal ordem simbólica.
Estava, portanto, em jogo na conversão a mudança de paradigma segundo o qual os
índios organizavam sua vida social: a maneira como se nomeavam, como se entendiam como
sujeitos e partícipes da sociedade. Sabe-se que no rito antropofágico o nome do executado era
incorporado pelo que o matava. Com a interdição à poligamia e concubinato, estava-se em
busca de um horizonte social e moral em que se pudesse fundar um sistema de parentesco, com
suas possibilidades e proibições, à moda europeia: famílias fundadas por e centradas no leito
matrimonial monogâmico; um sistema social e moral que produzisse vergonha e culpa àqueles
que transgredissem suas normas: aí comparece o sacramento da confissão, para que as culpas
possam ser ouvidas e examinadas antes que o ato se possa produzir, ou expiadas após sua
execução. Mais uma vez, trata-se de examinar os atos individuais em uma história de vida; uma
implicação narrativa de um indivíduo em relação aos atos cometidos na história narrada; enfim,
a produção de um sujeito que se pensa enquanto tal.

REFERÊNCIAS

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014.

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. “Une Église aux dimensions du monde : expansion du catholicisme et


ecclésiologie à l’époque moderne” in Les clercs et les princes. Paris: Presses de L’École Nationale des Chartes,
2013, p. 313-330.

GONÇALVES, Marcus Fabiano; ARRUDA, Edmundo Lima. Fundamentação ética e hermenêutica: alternativas
para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002

HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010

25
Idem, p. 93.

953
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1988.

PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.

954
XENOFOBIA PARA ALÉM DA MORAL

MONTEIRO, Tiago Leão


Estudante de mestrado do Programa de Pós-graduação e Sociologia e Direito
da Universidade Federal Fluminense

RESUMO

O discurso e as condutas xenofóbicas alcançam cada vez com mais força as sociedades democráticas
ocidentais, trazendo consigo a reação de pessoas que se indignam e rejeitam tal comportamento. No
entanto, ainda que não se deva descartar o conteúdo moral das motivações da xenofobia, há outros
elementos a ele anteriores que na academia, em especial nas áreas de ciências humanas, costumam não
receber a devida atenção, e geralmente sequer são tomados em consideração aos estudos migratórios.
Com base em obra recente do primatologista Robert Sapolsky, apresento estudos de neurologia que
remetem à compreensão da empatia, da compaixão e da repulsa. Este trabalho repercute uma parte da
pesquisa realizada para elaboração de dissertação de mestrado, cujo problema principal foi a questão da
integração do estrangeiro aos esquemas normativos sociais e jurídicos da sociedade de recebimento.

Palavras-Chave. Xenofobia. Migrações. Neurologia.

ABSTRACT

Xenophobic discourse and behavior increasingly reaches Western democratic societies, bringing with
them the reaction of people who are outraged and reject such behavior. However, although the moral
content of the motivations of xenophobia should not be discarded, there are other elements to it that in
academia, especially in the human sciences, are not given due attention, and are generally not even
taken into account in migration studies. Based on the recent work of the primatologist Robert Sapolsky,
I present studies of neurology that refer to the understanding of empathy, compassion and repulsion.
This work reflects a part of the research carried out for the elaboration of a master's dissertation, which
main problem was the integration of the foreigner to the normative social and legal schemes of the
receiving society.

Keywords. Xenophobia. Migrations. Neurology.

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INTRODUÇÃO

O medo das invasões bárbaras há muito tempo não mais se funda no pavor da chegada
da guerra e aniquilação. Em outros tempos, pessoas que se comunicavam em idiomas diferentes
do falado no país e pessoas provenientes de etnias e culturas diferentes geralmente eram apenas
invasores ou mercadores. Naturalmente as pessoas temiam o estrangeiro, o hostis. Esse temor
não mais faz sentido, porém a xenofobia ainda existe.
Nos dias atuais, muitas palavras que se reportam a conceitos vêm sendo utilizadas
como porretes orais, sempre dispostos a nocautear argumentos discordantes, e geralmente
atacando o interlocutor e não o conteúdo do argumento. Vivendo em tempos de imensos fluxos
migratórios, a palavra xenofobia está entre as que mais repercutem. Porém, xenofobia, assim
como grande parte das demais palavras, não é propriamente insulto, mas conceito elaborado
para designar um fenômeno específico.
No plano do direito e da legislação brasileira, a xenofobia pode ser encontrada na Lei
7.716 de 1989, ainda que implicitamente, pois há punição a certas condutas que abusam da
discriminação de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, e na Lei de Migração1,
que prevê que “(n)inguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça, religião,
nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”. Esta lei, ainda recente no
ordenamento jurídico brasileiro, dispõe ainda que o “repúdio e prevenção à xenofobia, ao
racismo e a quaisquer formas de discriminação” é um dos princípios da política migratória
brasileira, apesar de deixar em aberto a definição de xenofobia.
A abstração em torno do tema dificulta o investimento em soluções, pois presume que
ter ou não ter atitude xenófoba é fruto de uma opção moral por conduzir-se pelo caminho do
mal ou do bem. Essa linha de pensamento não é descartável e tem mérito somente a partir de
um processo de autoconhecimento coletivo da sociedade e de um aprofundamento a teorias do
bem. Não seguirei aqui esse percurso, por maior que seja meu fascínio pelo tema. Além disso,
como bem resumiu Peter Singer, “(d)escobrir que alguma forma de comportamento tem uma
base biológica não justifica aquele tipo de comportamento” (SINGER, 2011, p. 150), apenas
nos permite compreendê-lo melhor.

1
Lei 13.445 de 2017.

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1. A REJEIÇÃO DO ‘NÃO-EU’

Barbaridade e civilização não existem enquanto instintos – com a exceção das


capacidades neurológicas de formação de grupos de dentro e de fora, como será analisado mais
à frente –, mas sim enquanto códigos de conduta que permitem aos humanos adequarem e
julgarem suas ações e as de outros. São duas categorias morais possibilitadoras da avaliação da
conduta humana em termos de bom e ruim. Não há critérios estabelecidos universalmente para
se definir barbaridade e civilização (TODOROV, Tzvetan, 2010) – e evitarei neste trabalho,
por prudência, adentrar nessa importante análise de uma teoria do bem.
Resta apenas um sentimento comum de fraternidade e a consideração da existência
de outros seres que guardam semelhança mínima entre si, e uns nos outros a si se reconhecem
e se respeitam. Esse ideal moral pode cair por terra quando o distanciamento entre nós e eles se
torna um desfiladeiro intransponível.
A xenofobia presume um estabelecimento implícito ou explícito não necessariamente
acurado de uma noção de eu e de não eu. Slavoj Žižek repercutiu em seu livro publicado em
2016 que “nós mesmos não somos ‘pessoas como a gente’”. Isso se deve a uma falha na
autocompreensão de quem somos, e repercute em como vamos mensurar o outro, haja vista
que o convívio social é estruturado por nós a partir de uma interpretação de nós mesmos. Como
diz o ditado, “antes de acusar outros, examine tua própria existência”2, pois possivelmente se
encontrará mais inclinado a julgar seus próprios pecados.
Não há muita novidade nisso. A expressão em latim nescio vos – eu não vos conheço
–, muito usada por diversas figuras importantes, como Santo Agostinho, Santo Tomás de
Aquino e Molière, derivada do evangelho de Mateus3, hoje tem o condão de designar a total
recusa de se enxergar e ouvir o outro, excluindo a possibilidade de qualquer comunicação4.
Não se trata de uma mera rejeição do outro, do diferente, do estrangeiro. Se trata da
rejeição do estrangeiro sem uma justificativa plausível que supere o medo irrazoável. Segue a
linha do preconceito, em oposição ao pré-conceito. Todo indivíduo é um intérprete do mundo,

2 Cum accusas alium, propriam prius inspice vitam. (TOSI, 2010, p. 332)
3 Essa é uma fala de Jesus Cristo quando esteve em Jerusalém, segundo o Evangelho de Mateus: “Quando o mestre da casa tiver
entrado e se fechado, você estará fora, e vai começar a bater à porta, dizendo: Senhor, Senhor, abre-nos; e ele lhe responderá: Não
sei quem você é” (VOLTAIRE, 1843). O original em latim: “Cum autem intraverit pateramilias et clauserit ostium et incipietis
foris stare et pulsare ostium dicentes ‘Domine, aperi nobis’ et respondens dicet vobis ‘Nescio vos’” (TOSI, 2010, p. 315).
4
(TOSI, 2010).

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e dele captura apenas as demandas que lhe alcançaram cognitivamente a partir das lentes pré-
compreensivas subjetivas moldadas por suas experiências de vida.
Adotar uma posição difere de ter preconceito. A posição exige um “encargo
argumentativo de fundamentação e justificação”5, respeitadas as capacidades para liberdade
argumentativa – aceitação ou rejeição do argumento com base na razão6 – , ainda que haja
discordâncias de bases axiológicas. Os preconceitos são o contrário da tomada de posição7:

Trata-se daquilo que, justamente por não se revelar ou não se assumir enquanto
posição, só pode ser presumido e conjecturado segundo os rumores ou efeitos que
produz ou deixa como resultado. Um preconceito estabelece distinções
interpretativas, porém sem arcar com o custo de suas justificações. (ARRUDA
JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 257)

Isso quer dizer que o preconceito oculta subjetividades e transparece a infundada


opinião, enquanto uma posição, ou o pré-conceito, é uma manifestação sobre um assunto
fundamentada numa justificativa gerada de uma interpretação da situação, a partir de uma pré-
compreensão consubstanciada de certos conhecimentos adquiridos ad-hoc e outros pré-
estabelecidos na vivência histórica subjetiva ordinária, podendo ser, a posição, devidamente
confrontada com argumentos racionais da mesma natureza. O preconceito discriminatório, por
outro lado, oculta superstições, suspeitas, intolerâncias, interesses escusos ou crenças
ortodoxas8.
O preconceito é sedutor. Ele “pode aplacar a perplexidade de indivíduos atônitos
diante de um mundo hipercomplexo” e, ao abrir mão do fardo de “fundamentar universalmente,
traz consigo o risco do desprezo às peculiaridades e às diferenças que fazem de uma coisa ela
mesma e não outra”9. Gonçalves, ao interpretar Ernst Tugendhat, sacramenta a definição de
preconceito, como perfeitamente encaixo neste estudo sobre xenofobia, como “adoção sumária
de uma discriminação, diferenciação ou até de uma desigualdade sem a devida justificação
dessa exceção perante os membros de uma comunidade”10.

5 (ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 257).


6 (BENHABIB, 2004).
7 (ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002)

8
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002).
9
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 259).
10
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 259).

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Betts e Collier afirmaram em sua mais recente obra, que não sentir compaixão por
quem precisa ser salvo de algo seria uma conduta sociopata11. Essa generalização me parece
improdutiva e não dá conta do problema da rejeição a imigrantes, o que vulgarmente
generalizamos como xenofobia, o medo do estranho12 (do xenos) ou de estrangeiros. Que
mecanismos despertam essa rejeição, que muitas vezes sobrepõe fortes valores, como
compaixão e hospitalidade, e anula a empatia?

2. COGNIÇÃO DO MUNDO SOCIAL E ESTADO EMPÁTICO

A compaixão, enquanto sentimento análogo ao contágio emocional característico ao


estados empáticos13, estes, quando em funcionamento dentro dos padrões de normalidade, são
influenciados por componentes afetivos e componentes cognitivos14. Entre os afetivos, a
ativação do córtex anterior cingulado (CAC) está relacionada à atividade do cérebro de
processamento de informação interoceptiva – informações do próprio corpo, como sensação de
boca seca ou um ronco no estômago – e ao monitoramento de conflitos de estímulos – o caso
de um indivíduo estar acostumado, por exemplo, a receber um mesmo prêmio sempre que
executa uma mesma atividade, e, subitamente, recebe um prêmio maior (o CAC percebe a
mudança) ou menor (o CAC é ativado como um alarme)15.
O CAC é auto-orientado ao bem-estar do indivíduo. Não obstante, revela Sapolsky,
há vários estudos que demonstram que “um dedo alfinetado, um rosto triste, um conto de
infortúnio”16 evocam um estado empático, e é detectada a ativação do CAC proporcional à dor
sentida pelo indivíduo observado à distância. O CAC está relacionado à tomada de atitude em
relação à angustia ou dor sofrida, haja vista a reação ante a liberação do neuropeptídio
(hormônio) ocitocina pelo hipotálamo quando se entra em contato (interage) com alguém
identificado dentro da percepção subjetiva de nós. A ocitocina tem influência na promoção de

11 (BETTS e COLLIER, 2017, p. 103).


12 Ainda que xenos, do grego antigo, não se traduza como estrangeiro, mas como alguém que faz parte do pacto xenía, a palavra
veio a ser empregada como prefixo de xenofobia com o sentido de “sujeito incomum”. No grego contemporâneo, xenos é
traduzido como desconhecido. A palavra estranho melhor seria traduzida por paráxenos (παράξενος). Logo, xenofobia não
necessariamente designa o medo de estrangeiros ou ao repúdio a outras nacionalidades ou etnias (algo fácil de se confundir em
francês – étrange e étranger), mas o medo ou repúdio ao desconhecido, ao estranho, ao incomum.
13
Segundo Sapolsky, ao alcançar a idade adulta, a empatia se dá através de um processo envolvendo um circuito, que inclui o
CAC, a amígdala cerebral e a ínsula.
14
(SAPOLSKY, 2017).
15
(SAPOLSKY, 2017).
16
(SAPOLSKY, 2017, p. 360).

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comportamentos afiliativos e vinculantes, de confiança e de generosidade17. Sapolsky alerta


que, essa interação, quando feita com alguém do grupo eles, com a liberação de ocitocina, torna
as pessoas mais hostis e xenofóbicas18.
Em algumas ocasiões, quando o despertar do estado empático se funda na
interpretação dos fenômenos do mundo social, se ativam componentes cognitivos19. Da mesma
forma que alguns animais confortam as vítimas de ataques e não o agressor, seres humanos
tendem a optar pela vítima de um comportamento desproporcional ou injusto, como quando,
durante uma partida de futebol em que não há prévia preferência de lados, escolhemos torcer
pelo time mais fraco, desde que ele se esforce; ou quando nos compadecemos mais por alguém
que contraiu moléstia por uma transfusão de sangue do que pelo uso de drogas injetáveis; ou
quando nos comiseramos mais pelo sofrimento de uma vítima de abalroamento do que pelo
sofrimento do causador da colisão.
Não se trata de optar entre algoz e vítima, mas de sentir mais a dor de um e menos de
outro. A dor de uma perna amputada é a mesma para alguém que é vítima de ação alheia e para
alguém que causa o próprio dano. Ainda assim nos aproximamos mais da vítima ao acionarmos
automaticamente o processo cognitivo do estado empático. Isso ocorre porque o CAC é mais
ativado nestas ocasiões20. Ou seja, nas palavras de Sapolsky, interpretando a pesquisa de Jean
Decety, “processos cognitivos servem como um porteiro, decidindo se um particular infortúnio
é digno de empatia”21.
Superar a estranheza do desconhecido pode ser tarefa árdua para um ser humano, ao
contrário de ratos companheiros de gaiola utilizados em estudos. Para o ser humano, é uma
tarefa cognitiva não-automática superar o desconhecido, sendo possível o alcance do contagio
emocional e o atingimento do estado empático em relação a alguém considerado diferente ou
não-atraente22 mediante esforço. Isso quer dizer que despertar empatia por pessoas como nós é
automático, enquanto a empatia em relação a estranhos depende da ativação de elementos de
cognição que vão decidir se a pessoa e a sua dor se enquadram como despertadores do estado
de empatia (ou de mera simpatia, como na expressão, tipicamente anglofônica, I am

17 (SAPOLSKY, 2017).
18 (SAPOLSKY, 2017).
19 (SAPOLSKY, 2017).

20
(SAPOLSKY, 2017).
21
(SAPOLSKY, 2017, p. 361).
22
(SAPOLSKY, 2017).

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sympathetic with you, but I prefer not to intervene). Simpatia, enquanto sentir por outra pessoa,
e não com outra pessoa.
Esse esforço cognitivo para tornar uma reação a um membro do grupo eles como se
fosse a um do grupo nós demanda maior ativação fronto-cortical (onde ficam os “neurônios
executivos”23). Esse empenho, que tem como objetivo suprimir a automática reação de
indiferença ou de repulsa ao outro, se caracteriza pela busca de elementos em comum entre o
intérprete da situação e o comiserado. Segundo analisou Sapolsky:

(...) nós temos uma resposta sensorimotor mais forte em nossas mãos quando a mão
que vemos sendo espetada com uma agulha é de nossa raça; quanto mais forte for o
viés implícito de grupo-de-dentro do indivíduo, mais forte é seu efeito. Enquanto
isso, outros estudos demonstram que quanto mais forte for a discrepância em padrões
de ativação neural enquanto se observa uma pessoa do grupo-de-dentro que sofre
versus uma do grupo-de-fora, menores são as chances de ajudar a última.
(SAPOLSKY, 2017, p. 362)

O estado empático, seja ele ativado em relação a semelhantes ou diferentes, desperta


emoção e cognição, que agem em modulada e contínua alternância conforme a proximidade ou
distância entre o intérprete e o analisado. O elemento cognitivo tem maior destaque quando a
percepção inicial é de desproporcional domínio das diferenças sobre as similaridades entre o
intérprete e o que sofre24. A cognição social é o processo pelo qual entendemos e lidamos com
outros, e ela envolve uma série de áreas do córtex para reconhecer expressões faciais, processar
emoções e promover alinhamento emocional com outros – a empatia.
Em trabalho publicado em 2005, Marco Iacoboni e equipe divulgaram resultados de
sua pesquisa sobre a neuroatividade ocorrida enquanto se realiza processo de entendimento da
intenção de outros. Como o cientista informa, anteriormente se acreditava que as áreas de
neurônios-espelho25 do córtex pré-motor26 – que recebe a informação do córtex pré-frontal e
repassa para o córtex motor para acionamento de músculos – , ativadas em momentos de
execução e observação de ações, se envolvessem apenas em reconhecimento de ações, porém,
como conclui seu artigo, os neurônios-espelho de fato participariam da interpretação e
entendimento da intenção dos outros27.

23 (SAPOLSKY, 2017).
24 (SAPOLSKY, 2017).
25
(CAGGIANO e colab., 1996; DI PELLEGRINO e colab., 1992; FOGASSI e colab., 1992).
26
(SAPOLSKY, 2017).
27
(IACOBONI e colab., 2005).

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É preciso esclarecer um pouco mais sobre o que seria a intenção. Imputar intenção a
uma ação de outrem é presumir um objetivo futuro. Essa operação realizada pelo cérebro é feita
automaticamente pelo sistema motor, que recebe informação do pré-motor. Era já sabido que
os neurônios-espelho (localizados no córtex pré-motor28) proviam um mecanismo neural para
entender intenções simples, como “fulana esticou o braço em direção à TV fazendo com a mão
o formato de um punho, porém com o dedo indicador para frente, logo fulana quer apertar o
botão da TV”. Isto é, o seu objetivo imediato é apertar o botão da TV.
A questão crucial era saber se os neurônios-espelho também participavam na
codificação da intenção global da pessoa observada. Por que ela quer apertar o botão? Ela quer
ligar ou desligar a TV? Ela quer ver um filme específico ou apenas ouvir notícias? Algumas
pesquisas concluíram que há grande participação dos neurônios-espelho, porém há críticos que
afirmam que também há de diversas outras partes do cérebro.
Os neurônios-espelho, responsáveis pela imitação de comportamentos observados ou
sentidos (cheiro de comida e som do forno micro-ondas despertam fome, por exemplo), não
reagem meramente a estímulos captados (movimentos), assim defendem alguns estudos, mas
também incorporam e respondem à intenção global complexa. Por exemplo, a visão de alguém
pegando uma xicara à mesa para limpá-la não ativa o sistema de neurônios-espelhos29 da forma
como ele é ativado quando se pega a xícara para beber café. Isso ocorre porque a sua atividade
sofre influência das “circunstâncias da imitação, conscientemente ou não, incluindo a imitação
da ideia de uma ação, assim como a intenção por trás dela”30. Ou seja, a “mesma ação realizada
em dois contextos diferentes adquire diferentes significados e pode refletir duas intenções
diferentes”31.
Ainda assim, os estudos sobre a participação de neurônios-espelho entre os
mecanismos neurais e funcionais que subscrevem a habilidade de fazer interpretações ou
entender as intenções dos outros enquanto se observa as suas ações têm um longo caminho pela
frente32. Além disso, após mais de duas décadas da descoberta dos neurônios-espelhos por
Giacomo Rizzolatti e Vittorio Gallese e a sua associação ao desenvolvimento de estados

28 Os neurônios "executivos" no córtex pré-frontal decidem algo, passando a notícia para o resto do córtex frontal logo atrás dele.
Que envia projeções para o córtex pré-motor logo atrás dele. Que envia projeções um passo para trás, para o córtex motor, que
então envia comandos aos músculos. Assim, o córtex pré-motor abrange a divisão entre pensar e realizar um movimento.
(SAPOLSKY, 2017, p. 364)
29 (SAPOLSKY, 2017).

30
(SAPOLSKY, 2017, p. 364).
31
(IACOBONI e colab., 2005, p. 530).
32
(IACOBONI e colab., 2005).

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empáticos (o que faz sentido, pois a replicação de um sentimento pela observação é a sua
característica), nos últimos anos surgiram dúvidas quanto ao grau de importância deles no
sistema empático, que envolve uma série de outras áreas do córtex, incluindo críticas à
centralidade sobre cognição dada ao sistema motor33.

3. PROGRAMANDO HUMANOS PARA CONVIVER COM DIVERSIDADES

Feitas todas as últimas considerações sobre neurociência, ainda que não haja
participação dos neurônios-espelho no sistema empático, ou que haja pouca, este sistema
funciona a partir de acionamentos automáticos e cognições ditando o grau de envolvimento
emocional de um indivíduo com uma forte emoção de outrem, um forte sentimento.
Há uma questão mais profunda sobre o processamento de valores que tomaria muito
tempo neste trabalho, que, malgrado pisar neste e em outros campos epistemológicos de alta
complexidade, não se propõe a neles aprofundar-se. O que desejo aqui, com o máximo de
cuidado dentro dos limites da proposta, é repercutir pontos essenciais – cuja contumaz ausência
nos estudos migratórios impossibilita uma visão holística do fenômeno – para compreender as
razões pelas quais uma mesma situação vivida por pessoas é observada e interpretada de formas
diferentes por outras, despertando, em diversos graus e em diferentes pessoas, sentimentos de
compaixão, indiferença e repulsa pelo outro. Seria possível afirmar que a prévia adesão a um
ou outro sistema moral influencia na automática ativação do sistema empático e na produção
da reação por ele ornamentada? Ou estamos fadados ao determinismo biológico?
A intenção é responder por que motivos um italiano residente ao sul da península tem
uma reação empática a migrantes diversa de um alemão ao norte do continente. O mesmo
ocorre entre nacionais do Reino Unido residentes em Londres e York, ou americanos da cidade
de Nova Iorque e do interior do Wyoming.
A interpretação das imagens de pessoas alcançando as bordas da Europa em péssimas
condições, ou de imigrantes caminhando pelo deserto que divide México e EUA, variam
conforme as noções subjetivas de imagem de si, as idiossincracias, e as consequências destas
chegadas de pessoas ao plano da segurança individual de quem as interpreta. O fato de serem
pessoas geralmente diferentes em termos fenotípicos, culturais e econômicos, torna mais

33
(HICKOK, 2014; SAPOLSKY, 2017).

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significativa a ativação de elementos cognitivos para a interpretação da situação e elaboração


da decisão de como agir.
A capacidade de se colocar no lugar destas pessoas e despertar o alinhamento
emocional responsável pela empatia e compaixão – e não de indiferença e repulsa –, além destes
fatores, está ainda atrelada a um juízo sobre a intencionalidade e justificativa das condutas dos
indivíduos que terminaram por se encontrar em situação migratória.
O aumento da carga cognitiva reduz a chance de o indivíduo ser pró-social com
estranhos34. Baixa sociabilidade35 e stress36 podem reduzir a generosidade e a capacidade
empática. Por essa razão enfatizei acima a adesão a um ou outro sistema de valores, além das
experiências passadas acumuladas, o que inclui o costume de conviver ou não (e de forma
pacífica ou não) com altos graus de diversidades. Ainda que o indivíduo se solidarize com a
comiseração de imigrantes desesperados em um naufragante bote que se esvazia em meio a um
mar gelado e revolto, será ele capaz de se colocar em seu lugar e sentir o que ele sente? Ainda
que inicialmente assim se sinta, após os elementos de cognição entrarem em funcionamento e
analisarem uma conjuntura maior e a intencionalidade, seria ainda possível o estado empático
se sustentar? Ainda assim, seria ele potente o suficiente para despertar uma reação compassiva?
A empatia não necessariamente desperta uma ação solidária à outra pessoa. Se o
indivíduo, por via da ressonância emotiva, sentir-se extremamente angustiado poderá ser
compelido a investir todos os seus esforços em aliviar-se, tornando a si mesmo sua maior
prioridade37. Há maior chance, portanto, de estados empáticos darem ensejo a comportamentos
solidários e compassivos quando se é possível administrar uma certa distância38. Por essa razão,
Sapolsky apresenta estudos sobre as diferenças entre comportamento empático (com foco total
em sentir o sofrimento de alguém que experimente angústia) e comportamento compassivo
(com foco total no sentimento de acolhimento e cuidado ao comiserado)39. O empático
demonstra maior ativação da amídala cerebral e um estado negativo de ansiedade40. O
compassivo demonstra não despertar a amídala, ativando fortemente elementos de cognição

34
(SAPOLSKY, 2017).
35 (TWENGE e colab., 2007).
36 (MARTIN e colab., 2015).

37 (SAPOLSKY, 2017).

38
(SAPOLSKY, 2017).
39
(RICARD e colab., 2014; SAPOLSKY, 2017).
40
(SAPOLSKY, 2017).

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(córtex dorsolateral pré-frontal) atuando em conjunto com regiões dopaminérgicas, gerando


emoções mais positivas e maior tendência a comportamentos pró-sociais41.
A adequação positivista da situação de cada indivíduo ou grupo de indivíduos em
deslocamento sob o manto protetivo jurídico-conceitual do refúgio geralmente influencia a
decisão do intérprete, talvez pela mesma razão que tendemos a consolar vítimas e não
agressores. Presumimos serem estas pessoas vítimas das circunstâncias e merecedoras de
compaixão e caridade. Porém, quando se não mais enxerga essa aura de miserabilidade da
vítima, seja porque a situação individual não é (pelo sujeito intérprete) julgada enquadrar-se
como refúgio, ou porque se há uma noção genérica de que ser refugiado não mais o torna
presumidamente uma vítima, ou ainda, quando surge uma ideia de que o refugiado ou o
migrante econômico, ainda que reconhecidamente vítima das condições difíceis em sua terra
natal, na Europa passaria a ser um possível agressor, a interpretação subjetiva da situação
realizada no âmbito da produção de um estado empático pode tomar uma série de caminhos
que genericamente, nos tempos atuais, são prematuramente enquadrados como xenofóbicos.
Além do sentimento de compaixão, podem surgir a indiferença e a repulsa. Logo, se
podemos dizer que hostilidade é o alter ego da hospitalidade, a xenofobia é, portanto, o alter
ego da empatia.
Em 2007 foi publicada uma pesquisa que pode ser importante para aqueles que, como
eu, nutrem esperança após estes parágrafos, que podem parecer um tanto duros e alinhados com
um determinismo aparentemente inultrapassável. Compreender os fenômenos o mais
desenviesadamente possível é o único caminho para se pensar em soluções factíveis, e o
resultado alcançado pode parecer desanimador, mas é dele que as alternativas realistas surgem.
Tendo isso em mente, me deparei com a pesquisa realizada por Caroline Catmur e sua
equipe do Departamento de Psicologia da University College London, que estudou o “sistema
espelho” com o objetivo, entre outros, de descobrir se o espelhamento de ações acontece de
forma fixa ou pode reprogramado.
Catmur e equipe descobriram, não apenas que o sistema espelho, após regularmente
adquirido em certa idade, pode ser reprogramado ao nível neurofisiológio por aprendizado
sensorimotor (observação-execução de ações), bem como que suas propriedades não são
inteiramente inatas, e que ele é ao mesmo tempo produto e processo de interações sociais42.

41
(SAPOLSKY, 2017).
42
(CATMUR e colab., 2007).

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Essa pesquisa pouco tem a dizer sobre a reprodução de um sentimento alheio em si,
mas ela indica ao menos não ser impossível a reprogramação após a fixação. Tendo o estudo
apenas se concentrado no espelhamento de uso dos dedos das mãos, se é possível remodular o
espelhamento de reações emotivas, ainda que tenha aberto a possibilidade, isso não ficou claro.
Retomando o raciocínio do início, a xenofobia ocorre quando há uma repulsa
injustificável ou sem fundamento racional aceitável enquanto ainda que reprovável,
caracterizada pelo preconceito. Há, ainda que possa não parecer, ativação significante do
sistema cognitivo. Mas ela pode se manifestar automaticamente ao se interpretar fenômenos,
ou seja, sem envolver muita cognição. Isso aconteceu em um curiosíssimo caso hollywoodiano.
Durante as filmagens do cânone do cinema Planeta dos Macacos de 1968, os atores
utilizando maquiagem e fantasia foram divididos em três grupos: chimpanzés, gorilas e
orangotangos. De modo que durante as refeições eles preservassem o duro trabalho de
transformação em primatas, um bufê especial foi organizado onde os “humanos” não entravam.
Peculiarmente, as três espécies jamais se misturavam ou se sentavam juntas. E todos eles
praticamente não se relacionavam com os humanos fora do set de filmagens. Eles se auto
segregavam. Havia, sim, certas regras, como a proibição dos fantasiados de deixar o set durante
o dia de gravações, e havia segredo total na produção, mas não havia regras contra o
relacionamento social.
Kim Hunter, que interpretou a Doutora Zira, um chimpanzé, afirmou que “foi uma
questão de se aproximar com quem entendia o que você estava passando”43. De fato, os atores
acordavam as cinco horas da manhã e começavam o dia com fatigantes três horas e meia de
sessão de colocação da fantasia e maquiagem. Não podiam se coçar ou espirrar, e comer era
complicado44. Hunter era muito amiga do ator Maurice Evans45, que estava no elenco, porém
raramente se comunicavam, pois estavam em grupos símios diferentes – Evans era um
orangotango.
O longo e diário processo de transformação física auxiliava na transformação mental
necessária para que os atores entrassem no papel de símios. Eles se esforçavam para acreditar
que eram verdadeiros chimpanzés, gorilas e orangotangos. Hunter investia com tanto esmero
que chegou ao ponto de ter seu pior pesadelo da vida durante um cochilo em um intervalo de

43
(HOFSTEDE, 2001, p. 13).
44
Comida líquida, tipo papinha para bebês (HOFSTEDE, 2001).
45
Dr. Zaius.

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filmagens. Ela dormiu com a maquiagem e sonhou ter de fato o rosto de um chimpanzé e não
conseguia ver se o resto de seu corpo havia também se transformado em símio46. Maurice
Evans revelou que “assim que toda essa maquiagem é aplicada, a pessoa, como ocorreu, entra
na pele do papel47” (CLARKE, 1972, p. 30).
Conforme se depreende do exposto até o momento, diversas forças externas às
adesões a agrupamentos axiológicos também interferem na repulsa aos diferentes, e que podem
ter influência no despertar de preconceitos, que são as atitudes negativas infundadas, ou
insuficientemente fundamentadas, a pessoas que se subjetivamente julgue compor o grupo dos
eles. Um último elemento que apresento que sustenta esse argumento, entre vários outros, pode
ser demonstrado por uma pesquisa publicada em 200948 que concluiu que mulheres brancas
em período de ovulação têm mais negativa atitude em relação a homens afro-americanos. Isso
ocorre porque, quando mulheres estão ovulando, certas áreas do córtex cerebral reagem com
mais intensidade a rostos, principalmente masculinos, tendo os hormônios influência na
formação dos grupos nós e eles.
Como afirma Sapolsky, “(n)ossos sentimentos sobre eles podem ser moldados por
forças subterrâneas que sequer temos ideia”49. E “ter ideia” deles, ou ao menos termos
consciência de que há fatores desconhecidos atuando, é crucial para compreendermos melhor
os fenômenos da hospitalidade, da compaixão e da xenofobia.
Xenofobia crescente em uma sociedade que recebe muitos imigrantes é sintoma de
que algo está errado. Provavelmente de que esta sociedade não está preparada para receber a
quantidade de estrangeiros que ora recebe. Seja por sua hermeticidade, pela incapacidade
(econômica, cultural, social) de assimilar grandes contingentes humanos, ou pelo grau de
dissemelhança entre os locais e os estrangeiros imigrados. São subsequentes ciclos de
imigração descontrolada, que não considera a capacidade de absorção de cada sociedade e as
necessárias medidas de inclusão de estrangeiros, que poderiam reduzir o abismo que dá causa
a manifestações xenófobas e comprometedoras da coesão.
O modelo Interculturalista de integração de imigrantes às sociedades, modelo
proposto por Ted Cantle, Ricard Zapata-Barrero e outros, e que considero ser o que mais se
atenta às preocupações que expus neste trabalho, e que faz oposição aos modelos

46 (CLARKE, 1972).
47
A expressão get into the skin em inglês remete a “sentir o que o outro sente”.
48
(NAVARRETE e colab., 2009).
49
(SAPOLSKY, 2017, p. 279).

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Assimilacionista e Multiculturalista, leva em consideração a importância de a sociedade de


acolhida também investir em medidas em que ela própria dê um passo adiante para encontrar
o estrangeiro, considerando a cultura majoritária local como paradigma, mas abrindo espaço
para manifestações culturais de imigrantes no seio da sociedade, sem segrega-los a supostos
espaços grupais, vulgarmente conhecidos como guetos.

CONSIDERAÇÔES FINAIS

Partindo de uma vontade de compreender os fenômenos migratórios sob uma


perspectiva neutra, que abarca todas as questões que possam vir a repercutir no tema designado,
compreender o conceito de xenofobia através dos fatores que a influenciam para além das
questões morais, e que envolvam a rejeição prima facie de outrem, é de suma importância.
Diante de tais considerações, a compreensão, ainda que superficial, da incidência de
marcadores biológicos averiguados por estudos de neuroci, nos insufla a deixar o conforto de
nossa redoma epistemológica, que, por muito tempo, nos protegeu de influências externas e de
demandas de alta complexidade.
Atualmente, não basta ao acadêmico, se se deseja repercutir suas palavras no mundo
fático, ater-se à unidade epistemológica, pois os fenômenos estudados, em especial, os de
natureza humana, não mais nos permitirão a este luxo, nos demandando, ante sua crescente
complexidade, a expansão dos horizontes dos estudos e pesquisas.
Isso quer dizer que é preciso explorar além do espaço conhecido, ao menos para que
não se abra lacunas à ignorância de elementos importantes às questões estudadas, como, no
caso deste trabalho, as migrações, nos permitindo, assim, tocar o outrora desconhecido. Este
trabalho não tem a presunção de inovar no campo da neurologia, tampouco no da moral, mas
o desejo de iluminar o caminho dos estudos migratórios e recordar que o conhecimento não se
encerra nas barreiras que construímos, ainda que elas existam para facilitar a aquisição de
conhecimento.

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969
IMPEACHMENT NA CONVERGÊNCIA ENTRE DIREITO,
MORAL E POLÍTICA À LUZ DA TEORIA INSTITUCIONALISTA
DE NEIL MACCORMICK

SILVA, Anna Carolina Pinheiro da Costa


Professora de Teoria do Direito da UFRJ
Mestranda do PPGDC-UFF

RESUMO

O impeachment, instituto jurídico de natureza político-administrativa, constitui um espaço de


convergência e interação, por excelência, entre os campos do direito, da moral e da política. Entretanto,
o processo sofrido por Dilma Rousseff, em 2016, ressaltou uma série de problemas deste mecanismo
destituinte. A teoria institucional de Neil MacCormick elucida os espaços de comunicação das três
esferas sociais, conferindo compreensão sobre a legitimidade em termos procedimentais e discursivos.
Não obstante, considerando a tessitura aberta dos crimes de responsabilidade tal como previstos e a
ampla discricionariedade dos parlamentares investidos na função judicante, as falhas do impeachment
agravam-se em contextos de crise de legitimidade democrática e corrupção sistêmica e pela falta de
correspondência entre investidura pelo voto direto e destituição por representantes eleitos indiretamente.

Palavras-Chave. Impeachment. Exercício da cidadania. Legitimidade democrática.

ABSTRACT

Impeachment, a legal institute of political-administrative nature, constitutes a space of convergence and


interaction, par excellence, between the fields of law, morality and politics. However, the process
undergone by Dilma Rousseff in 2016 highlighted a number of problems of this destitute mechanism.
The institutional theory of Neil MacCormick elucidates the spaces of communication of the three social
spheres, conferring understanding on the legitimacy in procedural and discursive terms. Nevertheless,
considering the openness of the crimes of responsibility as foreseen and the wide discretion of the
parliamentarians invested in the judicial function, the failures of impeachment are aggravated in
contexts of crisis of democratic legitimacy and systemic corruption and the lack of correspondence
between investiture by the direct vote and dismissal by indirectly elected representatives.

Keywords. Impeachment. Exercise of citizenship. Democratic legitimacy.

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INTRODUÇÃO

O impeachment é um instituto de natureza político-administrativa, cuja finalidade, na


engenharia constitucional, é a de fornecer um mecanismo destituinte de agentes que atuam nas
altas esferas de poder, ou seja, atingem a chamada politically exposed person (PEP). Em que
pesem as variações da disciplina em cada país, como regra geral, parlamentares, ministros da
Suprema Corte e, sobretudo, o chefe de governo são os agentes passivos do processo que, mais
do que a responsabilização por seus atos no exercício do múnus público, visa à proteção da
dignidade do cargo e das credenciais para o gozo da cidadania participativa (perda do cargo) e
à existência do Estado e manutenção da ordem constitucional (inabilitação para ocupar funções
públicas). Portanto, em um primeiro plano, tem viés preventivo e restaurador da normalidade,
e não punitivo.
Nesse sentido, os crimes de responsabilidade, nomem iuris da conduta imputada ao
agente que enseja seu impedimento para o exercício de funções públicas, versam sobre
infrações que de natureza financeira, administrativa e política em sentido estrito, incluídos aqui
os crimes propriamente ditos de ação própria de funcionários públicos. Como exemplos que se
extraem da Lei n. 1.079/50, que regulamenta a matéria no Brasil, temos declarações de guerra
sem autorização do Congresso Nacional (art. 5o, item 8), tentativas de dissolução deste (art. 6o,
item 1), obstáculos à cidadania direta por meio do voto (art. 7o, item 1), crimes contra a
segurança interna do país (art. 8o, item 4), ausência ou mora na prestação de contas anuais (art.
9o, item 2) e excesso nos gastos das verbas orçamentárias sem autorização legal (art. 10, item
2).
Recentemente, a responsabilidade pela existência e manutenção financeiras do país,
dentro da ordem constitucional vigente, ensejou o impeachment da ex-presidente Dilma
Rousseff, em decisão do Senado Federal tomada por 61 votos a favor e 20 contra.
Diferentemente do que ocorrera no caso Collor, em que ampla maioria de eleitores e da opinião
pública apoiaram a destituição por atos de corrupção, o manejo do instituto em 2016 dividiu
parte de setores ligados a movimentos sociais e às classes artística e intelectual, tendo, nos
apoiadores de Dilma, as manifestações mais expressivas, ao argumento de que a inexistência
de crime, no caso, equivaleria a um golpe de Estado.
Não obstante as dificuldades naturais na compreensão popular atécnica das
complexidades envolvidas na gestão das verbas públicas, que mobilizam conhecimentos nos
campos financeiro, orçamentário e contábil, foram as dimensões jurídica, política e moral que

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efetivamente catalisaram a disputa de narrativas e de adesão popular mais abrangente. Em uma


conjuntura política marcada por escândalos de corrupção, diariamente alimentados pelas
noticiadas investigações da Operação Lava Jato, e no quadro estrutural de um sistema
presidencialista calcado no voto direito, em que o apelo carismático e o personalismo na pessoa
do chefe de governo (e do partido) são a tônica, submetê-lo a julgamento político por
representantes eleitos indiretamente, carecedores daquela identificação pessoal, partidária e
institucional, impõe um ônus sobre as credenciais moral e de legitimidade democrática e
jurídica dos juízes naturais do processo.
Neste cenário, mostra-se relevante um estudo sobre o instituto do impeachment para
a elucidação do diálogo entre as dimensões jurídica, moral e política, cujo conteúdo e resultado
prático são um resultado da experiência discursiva elaborada procedimentalmente nas
instituições e delegações competenciais previstas na Constituição. Para tanto, propõe-se a
investigação do impeachment nos marcos da teoria institucional de Neil MacCormick, que
fornece elementos de averiguação da incorporação dos âmbitos político e moral aos
procedimentos estabelecidos juridicamente, tanto como elementos fornecedores de sentido
gramaticalmente identificável nas razões públicas quando da concretização dos direitos
(incluídos os da cidadania), quanto como condicionantes do próprio funcionamento
procedimental do Direito.
O presente estudo, restrito ao caso Dilma Rousseff, divide-se, assim, em uma
explanação sobre o instituto do impedimento, em que se ressaltam sua origem e importação do
direito estrangeiro, sua natureza jurídica, a carga de discricionariedade e critérios do julgamento
político, tendo Paulo Brossard como marco teórico; em um segundo momento, segue-se à
análise do impeachment pela teoria institucional e da argumentação de MacCormick,
desenvolvendo os conceitos de confiança recíproca, razão pública, legitimidade procedimental,
poder de fato e injustiças graves, que fornece o modelo teórico de análise do instituto; e, por
fim, faz-se a composição do quadro compreensivo do impeachment, tal como existe e é
praticado atualmente, bem como o necessário cotejamento entre este mecanismo destituinte e
o princípio democrático no Estado de direito, levando em consideração as ramificações e
limitações nas esferas moral e política e os problemas apontados e suas possíveis soluções.

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1. O IMPEACHMENT NA CONVERGÊNCIA ENTRE DIREITO, MORAL E


POLÍTICA

A doutrina pátria já se debruça há muito sobre o instituto do impeachment. O que fora


importado do constitucionalismo de inglês sem grandes alardes dentro de uma tradição
monárquica de common law (URUGUAI, 2002) e adaptado ao modelo de civil law, tendo como
parâmetro a Carta Constitucional francesa de 1815, foi alvo de severas críticas com o advento
da República em 1891, desde constitucionalistas do jaez de Rui Barbosa e seus contemporâneos
a estudiosos que dedicaram amplas e profundas análises ao assunto como Paulo Brossard
(1992).
De fato, há uma imprecisão epistemológica no tratamento do instituto, que é agravada
pelo “aparatoso cerimonial” do impeachment, ao misturar procedimentos e nomenclaturas
próprias dos julgamentos de natureza criminal, que possuem uma lógica hermenêutica de
aplicação restrita, e que não se coaduna com a natureza política e de interpretação mais dilatada
do crime de responsabilidade, mas que se explica pela origem do instituto quando de sua
incorporação a nosso ordenamento histórico-constitucional, cujo foro de julgamento constituía
um juízo universal, atingindo a pessoa e os bens do político impedido (BROSSARD, 1992).
A maioria da doutrina esposa o entendimento de que o instituto do impeachment e as
condutas definidas como crime de responsabilidade têm natureza político-administrativa. Por
sua vez, o juiz natural do processo de impedimento, tal como este foi constituído historicamente
em nossa tradição jurídico-constitucional, tem ampla margem de discricionariedade para a
definição, reconhecimento e decisão acerca do cometimento de um crime de responsabilidade
pelo presidente, dentro dos marcos procedimentais que ele mesmo, nos limites impostos pelo
constituinte histórico originário, tem competência para definir.
Todavia, os problemas decorrentes do manuseio do instituto, quanto às matérias
analisadas no caso concreto e ao conteúdo fogem ao campo do estritamente jurídico-
constitucional e são remetidas ao campo da política - aos atos de vontade política das
autoridades competentes, os parlamentares -, tendo-se em conta ainda que são consequências
das falhas do próprio instituto, como instrumento de política e de conformação e rearranjo de
instabilidades entre as forças de poder, em que objetivamente se apura a responsabilidade
política de um político perante seus pares políticos.
À vagueza semântica dos tipos descritos na norma como crimes de responsabilidade
alia-se a natureza política e não técnica das decisões e formação de certezas putativas dos

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parlamentares, cujo acesso aos cargos e investimento em sua autoridade interpretativa e


aplicadora do direito requer como qualificações gerais tão somente o gozo de direitos políticos
e a alfabetização precária (admite-se o analfabeto funcional), além de, mais recentemente, o
requisito negativo da não condenação nas condutas definidas na Lei da Ficha Limpa.
No julgamento de Dilma Rousseff, o caráter político do instituto e a ampla
discricionariedade dos políticos investidos na função judicante fizeram-se evidentes na
revaloração da prática contábil de atraso nos repasses de verbas aos bancos intermediadores de
pagamentos de programas do governo, o que se convencionou chamar de “pedalada fiscal”. De
fato, a mudança de entendimento originara-se no TCU, que, ao dar parecer sobre as contas
presidenciais de 2014 e 2015, rejeitou-as, apontando que o balanço apresentado pela União
continha irregularidades que feriram preceitos constitucionais, a Lei Orçamentária e a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF). Foram detectadas distorções envolvendo mais de R$ 100
bilhões na execução orçamentária do governo, dos quais R$ 52 bilhões se referiam às
pedaladas. O parecer de outubro de 2015, referente ao exercício de 2014, foi histórico, pois não
se opinava pela rejeição desde 1937, sob o governo Vargas, que curiosamente também fora
alvo de um processo de impeachment em 1953, apesar do resultado negativo.
Entretanto, antes do parecer de 2015, as contas de 2013 já haviam sido aprovadas com
26 ressalvas, constando entre elas os mencionados atrasos dos repasses do Tesouro para
programas do governo gerenciados por bancos, como a Caixa Econômica Federal, o Banco do
Brasil e o BNDES, cujo total fora apurado em R$ 36,07 bilhões. O alerta foi feito devido aos
volumes expressivos, fazendo com que as instituições bancassem as despesas que eram do
governo federal e não das entidades financeiras, gerando uma melhora artificial no resultado
fiscal e, em concreto, aumento do déficit das contas públicas, fixado e alterado por lei. Em
outubro de 2016, novo parecer do TCU opina pela rejeição do balanço das contas do governo
Dilma relativo ao exercício de 2015, com passivo, em novembro daquele ano, de R$ 58,68
bilhões, somente em relação às pedaladas. No comparativo com o início do governo Dilma, as
pedaladas somaram R$ 12,98 bilhões no fim de 2011 (primeiro ano do mandato), avançando
para R$ 19,7 bilhões em dezembro de 2012.
O fim da parcimônia ou tratamento como irrelevante jurídico com que tratava a
pedalada fiscal, a despeito de sua decantação política no processo de impeachment de 2016, é
antes uma consequência da vertiginosa escalada e insustentável pressão financeira de uma
prática que, como afirmado tantas vezes pelos apoiadores de Dilma, era recorrente e aceita pelos

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tribunais de contas em todo o país. No histórico das contas federais, em anos anteriores,
vislumbra-se claramente esse quadro.
De acordo com dados do Banco Central, a prática já existia no governo FHC, mas em
proporções menores, somando R$ 1 bilhão e R$ 948 milhões, respectivamente, no fim dos anos
de 2001 e 2002. Durante o governo Lula, no fim de 2003 (primeiro ano da gestão), havia um
passivo contabilizado do governo com bancos públicos e com fundos, como o FGTS, de R$
1,2 bilhão, passando para R$ 1,07 bilhão no fim de 2004. No fechamento de 2005, 2006 e de
2007, por exemplo, as pedaladas fiscais somaram, respectivamente, R$ 1,06 bilhão, R$ 799
milhões e R$ 997 milhões, e no fechamento de 2008, 2009, 2010, um passivo junto aos bancos
de R$ 2,3 bilhões, R$ 4,04 bilhões e R$ 8,43 bilhões, nessa ordem. E a aprovação de verbas
suplementares por meio de decretos, só posteriormente aprovados por lei, ao contrário do que
exigido constitucionalmente, completaria o cenário de ajustes e manobras fiscais que não
refletiriam nem a situação real das contas públicas e tampouco sua adequação às metas fiscais
estipuladas pelo Congresso.
Não obstante, outra guinada de interpretação política foi observada neste caso, agora
para beneficiar Dilma Rousseff. A antes inabilitação automática para o exercício de função
pública foi convertida em penalidade subsidiária à perda do cargo, podendo ou não ser aplicada,
a critério do julgador, fazendo-se para tanto, votação em separado no Senado Federal. Esse
novo parâmetro hermenêutico não encontra correspondente na história da aplicação do instituto
no Brasil, que ressignificou a expressão constitucional “perda do cargo, com inabilitação, por
oito anos, para o exercício de função pública” (art. 52, parágrafo único).

2. A TEORIA INSTITUCIONAL E ARGUMENTATIVA DE NEIL


MACCORMICK

Na análise do tema pelo filtro da teoria institucional do direito de MacCormick (2011),


leva-se em consideração o conceito de ordem normativa institucional ou formal como um
conjunto de expectativas sociais mais ou menos parecidas, às quais pode ser imputada uma
gama de ações praticadas pelos participantes, em uma convergência interpretativa explicitada
por atitudes. Vejamos como decompõem-se tais expectativas comungadas pelo prisma
eminentemente jurídico e as incorporações e processamentos que o Direito faz das emanações
advindas da moral e da política.

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2.1. O DIREITO

O direito, como sistema prescritivo, contribui para a integração social, suprindo a


necessidade de maior grau de certeza a respeito do conteúdo e da eficácia, por meio dos
mecanismos previstos nas regras e da autoridade, sendo que, a esta última, caberia a
interpretação das regras e das práticas sociais, moldadas, em última análise, por valores
articulados dentro de um contexto social, político e econômico específico, ou seja, como objeto
da empiria do campo e do direito positivado, composto por regras e princípios.
Já os direitos (no plural), enquanto relações ou posições, são apreciados através da
interpretação de situações específicas lidas à luz de regras e princípios que se sedimentam nas
interpretações recíprocas de crenças normativas recíprocas e confiança razoável, incorporando
assim, à concepção normativa, a concepção valorativa (MACCORMICK, 2011, p. 33). A
viabilidade de uma prática e a verificação dessa confiança razoável compartilhada nas
interpretações recíprocas só é possível se existe um reconhecimento por um número suficiente
de pessoas, para que a prática seja viável, o que remete a normatividade ao aspecto interno do
comportamento, enquanto referencial para a formação de expectativas de conduta
(MACCORMICK, 2011, p. 61-63).
Em outros termos, a definição conceitual de direito vai além de meras estruturas
formais, cognoscíveis simplesmente por meio de uma abordagem sistemática, e se abre para
uma adesão a um conjunto abstrato de valores, permitindo a composição de diferentes
concepções de justiça, bem como a definição dos conteúdos, dentro dos marcos de confecção
legislativa e conformação política.
Dessa forma, trata-se de uma metodologia antirreducionista, não limitada às estruturas
prescritivas, mas também preocupada com a legitimidade e a eficácia social das interpretações
e aplicações. A ausência de catalogação de uma gramática social dos valores a priori, com seus
percalços e perigos metafísicos, ficaria compensada e garantida pelos procedimentos que
permitiriam a atribuição de conteúdos compartilhados, em um processo intersubjetivo de
reconstrução normativa dos valores imanentes à ordem institucional. Portanto, o sentido ético
estaria inscrito na própria prática institucional, pelo reconhecimento mútuo de suas
necessidades, convicções e habilidades.

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ISSN 2236-9651, n. 7

2.2. A MORAL

Não se deve confundir a esfera jurídica, institucional, com a moral, de natureza


diversa, não institucional. Os agentes morais são indivíduos autônomos que se autodeterminam,
segundo sua própria apreciação discursiva das exigências de uma vida boa e decente junto a
outros agentes morais autônomos na comunidade humana (MACCORMICK, 2011, p. 21). Ou
seja, embora o processo de construção e introjeção de valores morais e concepções de bem seja
um fenômeno verificado socialmente, a interpretação resultante não é recíproca ou
intersubjetivamente experimentada e compartilhada, mas individualmente sentida e dessa
forma exteriorizada.
O atributo da universalizabilidade, a saber, o potencial para universalização, está
presente nas razões públicas, no conceito-valor da razoabilidade e na concepção de justiça
imparcial, todos critérios de justificação jurídica que não são desprovidos de conteúdo moral –
e nesse sentido a validade jurídica encontrará limite em injustiças graves –, contudo estão
limitados pelas exigências da legalidade e do Estado de direito, bem como pelas possibilidades
fáticas do fenômeno jurídico. E a teoria da argumentação jurídica de MacCormick,
desdobramento de sua abordagem institucionalista, aparece aqui como forma de incorporação
de valores morais, utilizando-se tanto das teorias retóricas quanto das teorias procedimentais
para uma moldura racional aceitável, ou seja, com capacidade de formação de confianças
recíprocas e reconhecimento por um número razoável de pessoas.

2.3. A POLÍTICA

A estabilidade da ordem jurídica depende consideravelmente da possibilidade de


exercício do poder de fato, segundo determinados critérios que definirão as qualificações
exigíveis da pessoa que será competente para julgar, as circunstâncias diante das quais a
competência será exercida e quais formalidades processuais deverão ser observadas. Nesse
contexto, a subsistência do direito é observada em razão de sua complementaridade em relação
à política e vice-versa (MACCORMICK, 2011, p. 199).
O poder político, como poder de fato, depende da opinião dos membros da sociedade
acerca da legitimidade, por isso raramente independe de potestades jurídicas. Vale dizer, a
ordem jurídica confere o poder, que será exercido discursiva e decisionalmente na

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sedimentação procedimental de interpretações recíprocas, dotadas de confiança razoável,


potencialmente veiculadoras de conteúdos morais abrangentes.
O processo jurídico, espaço da concertação de reciprocidades, se move por meio de
uma cadeia de certezas putativas, a cada etapa passíveis de questionamento, ou seja, certezas
sujeitas a mudança. Essa certeza excepcionável ou anulável (defeasible), como concepção do
direito de defesa construída dentro da ideologia do Estado de direito, constitui uma proteção
contra a ação arbitrária dos governos ou grupos políticos dotados de potestades jurídicas.
A partir desse quadro conceitual da teoria institucional do direito desenvolvida por
MacCormick, pode-se fazer uma análise das interações entre direito, política e as eventuais
implicações morais pertinentes ao caso do impeachment de Dilma Rousseff.

3. CRISE DE LEGITIMIDADE E DISSONÂNCIA DEMOCRÁTICO-


INSTITUCIONAL

Em ambientes de corrupção endêmica, densamente capilarizada das mais altas às mais


baixas esferas de poder, onde predomina um tratamento da coisa pública por uma ínsita lógica
privatística, a formação das verdades putativas na consolidação das interpretações recíprocas e
na exteriorização discursiva das razões públicas FICA permeável a uma série de vicissitudes e
interesses de ordem econômica, política e seus rearranjos institucionais, não trazidas a público
e que apenas pode ser aferida ou questionada, mas não impugnada diretamente, pelas
interpretações recíprocas da cidadania ampla, o eleitorado, pois não autorizados qualificativa e
procedimentalmente na formação daquelas interpretações lastreadoras de decisões.
O desconforto e o questionamento pela população, fonte da investidura da autoridade
no poder, de casos concretos isolados é consequente incontornável quando há uma dissonância
entre as interpretações consolidadas institucionalmente e as várias compreensões circulantes no
seio social. Tratando-se do impeachment, a cidadania não tem o poder jurídico-procedimental
da palavra no mérito e a maior ou menor veiculação pela autoridade das interpretações
recíprocas espraiadas no corpo da sociedade, quando capazes de ser efetivamente sedimentadas
em uma clara maioria, será dada pelas capacidades de mobilização social e real pressão sobre
a autoridade, esta sim legitimamente investida, pelos procedimentos, na posição decisória.
No caso de Dilma, verifica-se, ainda que sem aprofundamento e clareza discursivo-
narrativa, uma vasta circulação de interpretações e crenças morais recíprocas e confianças

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razoáveis, dos mais variados matizes e inclinações ideológicas, mas sem a sedimentação e
exteriorização interpretativa exigida, de uma forma mais sensível que pudesse influir naquelas
vicissitudes citadas. Em outras palavras, não houve a emergência de atribuição de sentido por
um número suficiente de pessoas quanto à existência de uma injustiça grave na condenação da
ex-presidente.
Por outro lado, fica evidente o aporte e a contribuição da teoria institucional na
compreensão da complementaridade entre direito e política e na viabilização da estabilidade
jurídica e a sobreposição de momentos de impasse, ao garantir a recomposição dos pressupostos
fático-práticos de aplicação do sistema jurídico de normas competenciais da esfera de ações
atribuíveis à figura do chefe de Estado e largamente dependentes da formação e manutenção
de uma base político-parlamentar de sustentação, a chamada governabilidade. E isso ocorre seja
pela confirmação do presidente no exercício do mandato e de seu capital e credenciais fático-
políticas, seja pelo término antecipado do mandato e a possibilidade de concertação em novas
bases de sustentação, agora centradas na figura do vice-presidente, recompondo-se a
aplicabilidade das potestades jurídico-constitucionais e a própria estabilidade do sistema
jurídico pela via política procedimentalmente balizada.
Não por outro motivo, tanto a Constituição de 1988 como a Lei nº 1.079/50, editada
sob a égide da Constituição de 1946 e que regulamenta o impeachment até hoje, apresentam
tipos de configuração aberta, gramaticalmente permeáveis à interpretação do juiz natural em
uma moldura de possibilidades decisionais ampla. Junte-se a isso não haver gradações quanto
a uma maior ou menor gravidade da conduta no julgamento do presidente; resolve-se
binariamente em termos de “tudo ou nada”, procedente ou improcedente, culpado ou inocente,
e a penalidade é apenas uma: a perda do mandato, com a condenação acessória e automática de
inabilitação para o exercício de função pública por oito anos.
Portanto, a legalidade do processo é aferida: 1) pela subsunção de um único tipo
previsto à conduta apurada e reconhecidamente imputada ao presidente, e aferida em amplas
bases hermenêuticas, 2) por um corpo de julgadores leigos em questões técnicas e provenientes
das mais diversas origens e formações pessoais, o que é próprio e basilar do princípio
democrático – a possibilidade de qualquer cidadão ser eleito, sem credenciais mais rígidas –, 3)
atendidos os princípios-garantia da ampla defesa e do contraditório e demais regras e garantias
processuais previstas na lei.

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Não obstante, em um contexto de alta complexidade social e crescente distanciamento


entre os clamores e humores populares, de um lado, e a capacidade de decomposição e oferta
por parte dos representantes democraticamente eleitos, de outro, verifica-se uma dissociação
entre a formação de interpretações condensadas em decisões que espelhem as percepções e
desideratos sociais depositados no voto e renovados conjunturalmente na execução dos
mandatos eletivos. O sentimento e experiência geral é o de que os representantes, umas vez
eleitos, não falam e agem em nome e nos interesses de seus representados, e sim de que estariam
encastelados no parlamento, em nebulosos procedimentos, negociações e respectivos jogos de
poder. No caso brasileiro, em que a eleição de parlamentares é pelo voto proporcional, ademais,
os cidadãos não tem um reconhecimento ou identificação com determinado deputado ou
senador, que figuram como uma massa indivisa no Congresso Nacional, e a quem não se sabe
como recorrer e cobrar suas expectativas.
Esse quadro de desagregação cívico-política, de crise de legitimidade democrática,
remete e esgota ao momento das urnas e aos procedimentos eleitorais renovados a cada quatro
anos, o depósito da legitimidade democrática para a investidura e exercício dos mandatos, mas
sem a correspondente expectação quanto às medidas e políticas públicas, principalmente
estruturais, insertas em um projeto de governo e de nação, que seriam postas em prática durante
a vigência da legislatura. A própria noção de legislatura dissolve-se quando não se tem uma
renovação dos quadros políticos eleitos e mesmo dentro dos novos partidos, que são formados
por transferências de nomes da antiga para a nova sigla.
De fato, a engenharia constitucional, nos moldes em que foi importada da matriz
norte-americana, propicia essa separação e isolamento entre representantes e representados para
além do voto proporcional. Perquirindo sobre a lógica desse modelo de disposição e
organização do poder, expressa nos artigos de O Federalista e que serviu de base para a
confecção das constituições da quase totalidade dos países latino-americanos, Roberto
Gargarella (2009) elucida que a ideia de representação dos pais fundadores dos Estados Unidos,
está estreitamente vinculada ao governo de alguns poucos capazes e ilustrados.
A engenharia constitucional criada à época e reproduzida até hoje procura com êxito
garantir interesses contramajoritários e o exercício da representação a salvo ou infensa às
demandas de maiorias naturalmente orientadas pelas paixões e não pela razão, a qual apenas
floresceria se os governantes credenciados ostentassem um distanciamento do eleitorado.
Dispositivos variados são apontados para a concretização desse escopo, como mandatos

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dilatados, a exemplo dos senadores brasileiros, foro privilegiado e imunidades parlamentares.


O impeachment se enquadra nessa lógica.
Mais que isso, na análise do impeachment de um chefe de Estado e governo como
mecanismo de resolução de instabilidades políticas, procedimentalmente viabilizado pelo
direito, mas resolvido exclusivamente na seara política, ainda que seja um evento extraordinário
na ordem constitucional, aprofunda a situação de crise de representação se se considera que,
em países presidencialistas, há uma forte tendência ao culto da personalidade do presidente,
essa figura unipessoal e de identificação imediata, eleito diretamente pelo povo (BONAVIDES,
1974).
Some-se a isso, um histórico que reforça esse reconhecimento e aproximação do
eleitorado ao chefe do Poder Executivo em países como o Brasil, cuja aquisição de direitos de
cidadania não teria seguido a ordem lógica da Revolução Francesa dos direitos de liberdade,
igualdade e solidariedade (MARSHALL, 1967), em que os direitos sociais foram sendo
conquistados não como o encadeamento de uma luta e conquista sequencial 1) pelas liberdades
civis, salvaguardados pelo Poder Judiciário, 2) pelos direitos políticos na influência ou ascensão
ao Poder Legislativo, via movimentos sindicais e ampliação e franqueamento dos critérios de
habilitação para votar e ser votado, e, por fim, 3) pela conquista de direitos sociais levados a
efeito pelas políticas públicas do Poder Executivo, como desdobramento da etapa anterior.
Ao contrário, teria seguido a ordem inversa (CARVALHO, 2010), desenvolvendo-se
pela concessão de direitos sociais, sobretudo trabalhistas e previdenciários, por um Executivo
que traz para si, organizando, financiando e fiscalizando, dentro da administração estatal, a
estrutura sindical, em que o sindicato e organizações da sociedade civil exercerão ao invés do
papel de centro de mobilizações e demandas combativas, o de negociador e mediador entre
Estado e os seguimentos da população por ele representados.
A cena que se descortina no impeachment especificamente opõe, assim, de um lado,
um parlamento que, quando na eventualidade de decidir orientado pela opinião da maioria ou,
antes, pela coincidente confluência de seus interesses com os de uma ampla maioria, não age e
não é reconhecidamente identificado como agindo em nome do povo (a conquista é deste, sem
intermediários); a um presidente que, dado o alto nível de personificação dos regimes
presidencialistas e a construção pública e publicitária que se irá construir em torno de sua
imagem e percepção social do cometimento de crimes de responsabilidade e as discursividades
e narrativas daí advindas, irá coligir desde as mais ferrenhas campanhas pró ou contra sua

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manutenção no exercício do poder até a total apatia e indiferença sociais (que resolvam os
políticos entre si os seus problemas, já que efetivamente não representam os cidadãos).
Em outros termos, o funcionamento e funcionalidade do instituto do impedimento é
algo que só se verificado ao sabor de complexas conjunturas e como pretexto jurídico-
procedimental legitimador de uma finalidade, não meio ou mecanismo de solução de mandatos
presidenciais de políticos apurados e julgados como indignos de exercer a alta função de chefe
do Executivo.
Não por outro motivo, Bruce Ackerman (2009) propôs uma revisão da separação dos
poderes segundo a formulação de sua teoria da democracia dualista, que distingue a política
extraordinária, correspondente aos momentos de intensa manifestação da cidadania em
contextos de grande mobilização cívica; da política ordinária, que se realiza cotidianamente por
meio das deliberações de órgãos de representação popular. Tem-se, assim, dois instantes de
mobilização política da cidadania.
Na teoria dualista, que se debruça justamente sobre os problemas de crise de
representação das democracias modernas, os eleitos, sob a fiscalização das cortes, determinarão
os conteúdos constitucionais rotineiros por meio da edição de leis ordinárias (normal
lawmaking) e, em situações excepcionais, fá-lo-ão por meio da intervenção mais intensa do
povo, que, inclusive de maneira direta pela realização de referendos regulares, conferirá
legitimidade democrática extraordinária a seus representantes para que possam editar normas
constitucionais originárias ou derivadas, superando obstáculos eventualmente impostos pelas
instituições que se destinam a preservar a integridade da ordem constitucional vigente (higher
lawmaking).
Transpondo-se esta teoria para o presente objeto de estudo, tem-se que o impeachment
constitui procedimento judicante exercido pelo Poder Legislativo em função não típica,
portanto não se trataria propriamente da edição de normas, mas de um julgamento em
verdadeira manifestação do sistema de freios e contrapesos manejado contra atos de
exacerbação das funções do chefe do Executivo.
A proposta de Ackerman, dessa forma, é a de trazer o povo novamente para dentro,
resolvendo-se momentos de crise por meio de uma série espaçada de testes eleitorais,
intermediados por amplo debate e em igualdade de condições, inclusive quanto ao acesso a
financiamento, dos grupos contrários envolvidos, de maneira a impedir a exploração da
ignorância popular, como soe acontecer em campanhas únicas e breves. Em todo caso, faz-se

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a ressalva aqui de que tal procedimento não poderia se estender por muitos meses, sob pena de
resolver a problemática da legitimidade, contudo, manter o desgaste do longo processo de
impeachment.
Acrescente-se, ainda, que esta proposta deriva, em última análise, de mecanismos de
exercício da democracia direta já existentes na teoria do estado, a saber, o referendo revogatório
e o recall, que se apresentam como técnicas modernas e mais condizentes com a realidade
social de países presidencialistas tradicionalmente identificados com figuras fortes e populistas
que se sobrepõem à imagem de seus partidos políticos e as demandas por legitimação
democrática (SILVA, 2000), com o necessário reforço da multiplicidade dos referendos
populares e o resguardo contra abusos no uso do instrumento, ao condicioná-lo a limitações,
como a convocação por uma supermaioria ou a proibição de mais de uma iniciativa por
legislatura.

CONCLUSÕES

O impeachment de Dilma Rousseff, em meio a uma crise também econômica, ao


incremento das demandas sociais e à instabilidade e perda de apoio político, decidido em um
ambiente social não gerador de grandes maiorias, e todo o desgaste daí advindo por meses e
cujo término só se vislumbra efetivamente no advento das eleições presidenciais de 2018, pode
ser considerado como o fracasso do instituto.
Em que pese neste caso específico verificar-se a discricionariedade do impeachment
e sua legalidade e legitimidade jurídico-constitucional segundo uma concepção institucional do
direito, o instituto apresenta falhas que não fornecem subsídios à pacificação social, nem
possibilitam aportes mais densos de conteúdos morais.
Pela teoria dualista da separação de poderes, a responsabilização política do
Presidente da República, por atos cometidos no exercício do mandato e que ofenderiam a ordem
constitucional, deve-se dar dentro dos mecanismos oferecidos pela técnica da democracia
direta, conforme o entendimento e ao sabor não mais da política congressual, mas da
democracia cidadã, para a qual o instituto da revocação ou recall em referendos múltiplos
conferiria, a um só tempo, tanto um reforço ao princípio democrático e ao reconhecimento da
legitimidade da decisão não apenas em termos procedimentais quanto uma possibilidade de,

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em um debate de amplas proporções, evitar-se ou diminuir as armadilhas do culto da


personalidade.
Em síntese, mecanismos diretos de destituição guardam parametricidade com seus
correspondentes mecanismos diretos de investidura em cargos políticos. E, em cenários, não
apenas de baixa densidade democrática, mas de pouca permeabilidade do campo político a
conteúdos morais mais palpáveis e estruturantes discursiva e concretamente, a democracia
direta ainda continuará sendo a melhor técnica de engenharia constitucional apta a desenvolver
os demais direitos de cidadania no Estado democrático de direito.

REFERÊNCIAS

ACKERMAN, Bruce. A nova separação dos poderes. Coleção ANPR de Direito e Democracia. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2009.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

GARGARELLA, Roberto (coord). Teoría y Crítica del Derecho Constitucional. Tomo I, Democracia. Buenos
Ayres: Abeledo Perrot, 2009.

MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1967.

MACCORMICK, Neil. Instituciones del Derecho. Tradução de Fernando Atria y Samuel Tschorne. Madrid:
Marcial Pons, 2011.

PINTO, Paulo Brossard de Souza. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da


República. 3ª ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 1992.

SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a constituição). São Paulo: Malheiros,
2000.

URUGUAI, Visconde de. Paulino José Soares de Sousa: Visconde do Uruguai. José Murilo de Carvalho (org. e
intr.). São Paulo: Ed. 34, 2002.

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Grupo de Trabalho 14

HERMENÊUTICA,
PROCESSO E TEORIA DA
DECISÃO

cmlxxxv
LEI OU JUSTIÇA:
UMA ANÁLISE ETNOMETODOLÓGICA
DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS I E II DA COMARCA
DE VOLTA REDONDA

MIRANDA, Napoleão
Professor do PPGSD-UFF
SEIXAS, Marcus Wagner de
Doutorando do PPGSD-UFF
MARCHI, Amanda Aguado
Aluna de Graduação de Direito na UFF/VR

RESUMO

A Lei n° 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, trouxe como um de seus grandes
escopos a promoção da conciliação. Para fins de sua observância prática, foram escolhidos os Juizados
Especiais Cíveis da Comarca de Volta Redonda I e II como objeto de estudo. Em fase inicial da pesquisa,
foi constatado que o número de acordos é praticamente igual ao número de sentenças proferidas. A fim
de investigar os fatores responsáveis pelo baixo número de acordos nestes JECs, foi utilizada a
etnometodologia. Formulou-se a hipótese de que um juiz mais rígido com relação à aplicação da Lei (em
especial a Lei 8.078/90) desestimula a apresentação de propostas de acordo por parte dos reclamados;
enquanto um outro Juiz mais propenso em buscar o justo entre as partes, acabaria por estimular
indiretamente a busca do consenso na fase prévia de análise do mérito. Todavia, os resultados
encontrados apontaram para um tema extremamente discutido no cenário atual: o ativismo judicial.

Palavras-Chave. Conciliação. Sentenças. Etnometodologia.

ABSTRACT

The Law No. 9.099 / 95, which created the Special Civil and Criminal Courts, has brought conciliation
as one of its great scopes. For the purpose of its practical observance, the Special Civil Courts of the
District of Volta Redonda I and II were chosen as object of study. In the initial phase of the research, it
was found that the number of agreements is practically the same as the number of sentences handed
down. In order to investigate the factors responsible for the low number of agreements in these JECs,
ethnomethodology was used. It was hypothesized that a more rigid judge with respect to the application
of the Law (in particular Law 8.078/90) discourages the presentation of proposals of agreement on the
part of the claimed ones; while another Judge more prone to seek the fair between the parties, would
eventually indirectly stimulate the search for consensus in the previous phase of merit analysis. However,
the results found point to an extremely discussed topic in the current scenario: the judicial activism.

Keywords. Conciliation. Judgment. Ethnomethodology.

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INTRODUÇÃO

Em um cenário onde o ativismo judicial encontra-se em voga, é necessária a reflexão:


qual o impacto de tal postura nos casos concretos decididos nas primeiras instâncias?
Como objeto de análise para a investigação foram escolhidos os Juizados Especiais
Cíveis I e II da Comarca de Volta Redonda – RJ. Houve levantamento das cinco empresas mais
demandadas e do número de processos que foram solucionados através de sentença e de acordo,
descobrindo-se que estes são praticamente iguais. Frente às vantagens do acordo, dentre elas a
celeridade, menor custo, maior diálogo entre as partes, promoção da pacificação social e da
capacitação para dirimir eventuais futuros conflitos, questionou-se o por quê de um número tão
baixo.
Assim, levantou-se uma hipótese, qual seja a de que um juiz mais rígido com relação
à aplicação da Lei (em especial a Lei 8.078/90) desestimula a apresentação de propostas de
acordo por parte dos reclamados; enquanto um outro Juiz mais propenso em buscar o justo
entre as partes, acabaria por estimular indiretamente a busca do consenso na fase prévia de
análise do mérito.
Para verificar a hipótese foi realizada pesquisa utilizando-se da etnometodologia,
incluindo entrevistas aos juízes leigos e aos advogados atuantes nos JECs I e II.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

As sociedades são caracterizadas, entre outras, por situações de conflito entre os


indivíduos, surgindo a necessidade de buscar alternativas para normatizar essas situações. Para
evitar então que esses indivíduos façam uso de suas próprias forças e ferramentas para a
resolução desses conflitos, valendo-se da autotutela, foi que o Estado moderno começou a
intervir até mesmo nas relações privadas, no intuito de buscar uma solução mais justa e
igualitária.
O atual denominado Estado Democrático e Social de Direito, como ente
personalizado e capaz de adquirir direitos e contrair obrigações, caracteriza-se como soberano,
e tem a prerrogativa de até mesmo uso da força se necessário for (poder de polícia e/ou Estado-
juiz), e com isso tenta solucionar os conflitos impondo decisões aparentemente de forma
imparcial e justa. Esse poder se estende ainda aos conflitos entre os particulares e o próprio
Estado, ou seja, a pacificação é o escopo da jurisdição.

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Porém, esse poder-dever que o Estado possui de pacificação social, nem sempre é
feito da forma mais eficiente e célere, uma vez que os processos em nosso país são morosos
(por diversos motivos) e possuem um alto custo financeiro para que sejam concluídos. Diante
dessas dificuldades, surgem meios alternativos, por parte do Estado, como forma de resolução
dos conflitos, tais como, a conciliação , a mediação e o arbitramento.
A idéia de conciliação está presente em nosso ordenamento desde a Constituição
Imperial brasileira, contudo, somente a partir da Constituição de 1988 ela passa a ser entendida
como meio eficaz de pacificação social e resolução de conflitos.
Com o novo Código de Processo Civil, as técnicas autocompositivas adquiriram ainda
maior relevância, porquanto logo no §2° do artigo 2 está prevista a promoção da solução
consensual dos conflitos pelo Estado sempre que possível, e no §3° do mesmo artigo está
estabelecido que a “conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de
conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”
Ao incluir os supracitados dispositivos no capitulo das normas fundamentais do
processo civil, o legislador colocou como escopo a utilização de métodos consensuais de
solução de conflitos, ao invés do antigo modelo heterônomo de decisão.
Estes métodos já eram priorizados em algumas leis, tais como a Lei nº. 10.259 de
2001, que estabeleceu os Juizados Especiais Federais, e a Lei nº. 12.153 de 2009, que criou os
Juizados Especiais da Fazenda pública.
Neste mesmo sentido, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais foram criados pelo
artigo n° 98, inciso I, da Constituição Federal e disciplinados pela lei Federal nº. 9.099 de 26
de Setembro de 1995. Eles são competentes para a conciliação, mediação, o julgamento e a
execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial
ofensivo.
Segundo a Lei nº. 9.099 de 1995, a postura do conciliador deve ser tranqüila e
respeitosa. Conciliador é um profissional que através de técnicas autocompositivas facilita o
diálogo entre as partes e estimula a buscar soluções compatíveis com os interesses em jogo. Ao
mesmo tempo, o artigo 2 da referida lei exige que o princípio da informalidade reja as atividades
do Juizado Especial Cível.

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ISSN 2236-9651, n. 7

O valor da causa é importante para fixação da competência do Juizado Especial Cível,


pois as causas não podem extrapolar o valor de 40 salários mínimos (teto federal), e somente
pessoas físicas e capazes e microempresas podem ser os proponentes de tais ações.
O acordo firmado durante a conciliação proporciona benefícios frente à morosidade
do sistema judiciário, pois permite que as partes decidam a causa, ao invés de aguardar uma
solução imposta pelo juiz, poupando tempo para o resultado final e solucionando seus
problemas, além do fato do acesso ao Juizado Especial Cível ser gratuito em sua 1ª instância.
Todavia, conforme dados obtidos em fase inicial da pesquisa, nos Juizados Especiais
Cíveis I e II da Comarca de Volta Redonda o número de acordos é praticamente igual ao
número de sentenças proferidas. Diante de tal resultado, realizou-se uma investigação para
identificação dos fatores que obstaculizam o maior número de conciliações.

2. METODOLOGIA:

Inicialmente, foi solicitada a autorização do Diretor do Fórum de Volta Redonda para


a realização da pesquisa nas serventias dos I e II JEC’s. Uma vez concedida, realizou-se um
levantamento dos mais recorrentes reclamados, no período de 3 meses seguidos.
Selecionou-se os cinco mais recorrentes e estabeleceu-se um quadro estatístico de
processos finalizados por acordo ou não. Nos que não foram finalizados por acordo, quais
foram as decisões? Condenados ao pagamento de indenizações aos reclamantes, ou não? Em
caso positivo, quais os valores das condenações no I e no II JEC?
Após, foi utilizada a etnometodologia. A etnometodologia possui cinco conceitos-
chave:

Conceito Conteúdo
Prática / Indica a experiência e a realização da prática dos membros de um grupo em
Realização seu contexto cotidiano, ou seja, é preciso compartilhar desse cotidiano e do
contexto para que seja possível a compreensão das práticas do grupo.
Indicialidade Refere-se a todas as circunstâncias que uma palavra carrega em uma situação.
Tal termo é adotado da linguística e denota que, ao mesmo tempo, em que uma
palavra tem um significado, de algum modo “genérico”, esta mesma palavra
possui significação distinta em situações particulares, assim, a sua
compreensão, em alguns casos, necessita que as pessoas busquem informações
adicionais que vão além do simples entendimento genérico da palavra. Trata-
se da linguagem em uso.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Reflexividade Está relacionada aos “efeitos” das práticas de um grupo, trata-se de um


processo em que ocorre uma ação e, ao mesmo tempo, produz uma reação
sobre os seus criadores.
Relatabilidade É como o grupo estudado descreve as atividades práticas a partir das referências
de sentido e significado que o próprio grupo possui, pode ser considerada como
uma “justificativa” do grupo para determinada atividade e conduta.
Noção de O membro é aquele que compartilha da linguagem de um grupo, induz a uma
membro condição de “ser” do e no grupo e não apenas de “estar”.

Tabela 2 - Fonte: elaborado por BISPO, Marcelo de Souza, com base em Coulon (2005), Garfinkel
(2006) e Heritage (1987).

A partir de observação participante, notas de campo e conversas informais, que


possibilitam ao pesquisador a apropriação da realidade vivida por um determinado grupo,
tornando-o apto a descrever e interpretar as práticas ali presentes, foi possível perceber a
propensão dos magistrados dos JECs I e II da Comarca de Volta Redonda a buscar ou não a
conciliação entre as partes.
Além disso, foi analisada a postura dos advogados das empresas mais demandadas e
dos consumidores; e identificou-se fatores não anteriormente previstos que influenciam na
obtenção do acordo.
Por fim, realizou-se entrevistas qualitativas com os juízes leigos, com o intuito de
traçar um perfil ideológico e identificar uma possível relação entre sua ideologia e seu estímulo
à conciliação; e com os advogados, a fim de verificar sua satisfação com as sentenças dadas e
captar seus pareceres sobre a legislação consumerista e a postura dos magistrados.

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

No levantamento das cinco empresas mais demandadas dos Juizados Especiais Cíveis
I e II da Comarca de Volta Redonda e da solução dada ao litígio, foram obtidos os seguintes
resultados:

3.1. 2013

I JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DA COMARCA DE VOLTA REDONDA

JULHO 2013 AGOSTO 2013 SETEMBRO 2013


Oi – 32 processos Oi – 44 processos Oi – 39 processos

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Santander - 20 processos Santander – 20 processos Santander – 22 processos


Itau Unibanco – 12 processos Bradesco – 17 processos Itau Unibanco – 17 processos
Bradesco – 11 processos Itau Unibanco – 12 processos Bradesco – 17 processos
Vivo – 9 processos Vivo – 10 processos Vivo – 12 processos

II JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DA COMARCA DE VOLTA REDONDA

JULHO 2013 AGOSTO 2013 SETEMBRO 2013


OI - 30 processos OI – 57 processos OI – 51 processos
ITAÚ - 27 processos VIVO – 37 processos SANTANDER – 47 processos
SANTANDER – 24 processos ITAÚ – 30 processos ITAÚ – 42 processos
VIVO – 20 processos SANTANDER – 26 processos VIVO – 36 processos
BRADESCO – 17 processos BRADESCO – 25 processos BRADESCO – 28 processos

3.2. 2014

I JEC II JEC
Empresas mais N° processos Empresas mais N° processos
demandadas demandadas
1ª OI 112 PROCESSOS 1ª OI 138 PROCESSOS
2ª SANTANDER 70 PROCESSOS 2ª SANTADER 100 PROCESSOS
3ª BRADESCO 57 PROCESSOS 3ª ITAÚ 99 PROCESSOS
4ª ITAÚ 50 PROCESSOS 4ª VIVO 93 PROCESSOS
5ª CLARO 24 PROCESSOS 5ª BRADESCO 70 PROCESSOS
Total de Processos no 848 PROCESSOS Total de Processos no 1.611 PROCESSOS
Juizado no período Juizado no período
avaliado avaliado
RESOLUÇÃO DA LIDE EM:
Média Média em Média Média em
numérica Valores numérica Valores
ACORDO 104 R$ 561,63 ACORDO 162 R$ 134.64
CONDENAÇÃO 108 R$ 303,03 CONDENAÇÃO 142 R$ 216,48

Foi constatado que as empresas mais demandadas são as telefônicas e as instituições


financeiras. Através de conversa informal com um juiz leigo, todavia, foi dito que além de
processos contra empresas telefônicas e instituições financeiras, há muitos processos contra
empresas fornecedoras de eletrodomésticos nos JECs, mas seus números não são tão
expressivos (por exemplo, o número de demandas contra o Banco do Brasil é bem maior do

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

que contra a Ricardo Eletro) pois alguns advogados entram contra o varejista, e outros contra o
fabricante, pulverizando o número.
Após a identificação, foi constatado que o número de acordos e condenações é
semelhante. Em uma conversa informal, uma juíza leiga disse que no dia, de quarenta e cinco
audiências que realizou, houveram apenas sete acordos.
Para investigar o baixo número de acordos, priorizou-se a observação das audiências
de instrução e julgamento em que as empresas mais demandadas eram rés. Isto, pois as AIJs
são o único momento processual nos JECs em que há tentativa de conciliação, uma vez que as
audiências de conciliação foram extintas recentemente devido à falta de conciliadores.
As audiências são presididas por cinco juízes leigos, em sua maior parte provenientes
da EMERJ. O juiz togado acompanha o processo e revisa as sentenças, homologando-as ou
não, porém não tem contato com as partes.
Nas entrevistas realizadas com os advogados, muitos afirmaram que esta distancia do
juiz togado com as partes prejudica o processo, porquanto o juiz togado não apreende a versão
das partes, verificando qual a extensão do dano que sofreram, tendo contato apenas com as
provas juntadas e padronizando os casos, considerando todos os danos morais como “mero
aborrecimento”.
Ademais, nestas audiências o foco é a celeridade, vez que elas são marcadas com
intervalo de apenas dez minutos. Assim, não há tempo suficiente para que o consumidor lesado
tenha a devida atenção, tampouco há um empenho da empresa em reparar seus serviços para
evitar futuras situações semelhantes.
Mesmo nos processos em que autor e réu são pessoas físicas, não há a construção de
uma solução entre eles que despolarize a relação e efetivamente pacifique o conflito, há apenas
ganhadores e perdedores, uma quantificação do dano sofrido que nada altera o plano fático.
Nestes casos, entretanto, a não realização de acordo não se deve à postura dos juízes, que se
empenham em promover o entendimento das partes, mas sim à cultura da litigiosidade presente
em nosso país, que somada à falta de informação sobre seus direitos dos cidadãos leva-os a
pensar que aceitar um acordo consiste em dar razão à outra parte.
Outro fator dificultador da obtenção do acordo é a pequena flexibilidade e autonomia
dos advogados contratados pelas grandes empresas investigadas nessa pesquisa, que recebem
as instruções do teto a que poderá chegar o acordo e a elas estão presos, não podendo tentar
negociar com o autor, que tem duas opções: acatar o valor oferecido pela empresa ou esperar

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ISSN 2236-9651, n. 7

pela sentença. Um exemplo é, se o advogado de determinada operadora telefônica vem com


proposta de x valor de danos morais, mas o autor, além de danos morais, quer o cancelamento
da linha telefônica; nenhum acordo será feito, pois a empresa não instruiu o advogado a
negociar o cancelamento da linha e por isso este não terá autonomia para tanto, resignando-se
as partes a esperar a sentença.
Neste sentido, em entrevista a seguir relatada, uma advogada afirmou que um dos
fatores que contribuíam para o baixo número de acordo destes JECs é a:

(...) dificuldade de negociação entre os próprios advogados. (...) Na verdade os


advogados correspondentes ficam presos às propostas que são enviadas pelas
empresas. Geralmente elas fazem uma média da condenação. Na verdade os acordos
são combinados diretamente com o valor da condenação do juízo. Se os juízes não
têm uma condenação elevada, as propostas de acordo vêm mais ou menos, faz uma
média em relação a esse valor para poder fazer.”

Ainda, uma advogada que atua para as empresas mais demandadas contou que:

(...) a gente não tem como negociar, é como falei. Vem, a empresa se organiza de
uma forma, manda aquilo para a gente e a gente segue um roteiro. Às vezes, quando
a gente pode fugir, vem um telefone, que a gente pode tentar entrar em contato. Mas
na maioria das vezes não, a gente é preso àquilo, e como que vem esse acordo ?
Quando o escritório realmente tem essa organização, ele se baseiam mais ou menos
no valor da sentença. Então por que o valor do acordo está vindo baixo, porque a
sentença é ruim. É isso que vejo aqui em Volta Redonda, acontece isso. Por que os
valores estão vindo baixos ? Porque as sentenças estão sendo muito precárias.”

Na fase seguinte, iniciaram-se as entrevistas com os juízes leigos e com os advogados


atuantes nos JECs I e II da Comarca de Volta Redonda. Foram 20 advogados entrevistados,
cujas respostas encontram-se sintetizadas e em forma de dados estatísticos nas tabelas a seguir:

Você faz parte de uma sociedade unipessoal de advogados, de um escritório ou é


advogado autônomo?

Autônomo 50%
Sociedade 15%
Escritório 35%

Há diferença no modo de julgamento dos juízes leigos e togados?

Sim 70%
Não 30%

993
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Muitos afirmaram que as sentenças dos juízes togados são melhor fundamentadas e
mais minuciosas quanto ao caso concreto. Ainda, 45% criticou a limitada autonomia dos juízes
leigos ao proferirem suas sentenças, que por serem homologadas posteriormente pelo juiz
togado, que não teve contato com as partes, reforma as que destoam muito dos seus
entendimentos, padronizando-as

As sentenças dadas nestes JECs são justas a seu ver?

Sim 50%
Não 50%

Ao fundamentarem suas respostas ao questionário, 75% dos entrevistados


reclamaram do baixo valor de indenização a título de danos morais concedido, quando
concedido. O baixo valor das indenizações seria, conforme alegado por muitos, um dos
principais fatores responsáveis pelo baixo número de acordos, uma vez que a espera pela
sentença é mais vantajosa do que a proposta de conciliação, porquanto prolonga o tempo até a
execução e o valor da condenação é baixo, não tornando mais atraente o oferecimento de
acordo.
Ainda, 75% deles acredita que o baixo valor é o responsável por manter a prática de
condutas abusivas ao consumidor por parte das empresas, que preferem pagar indenizações aos
poucos que recorrem ao judiciário do que reestruturar e reparar seus serviços oferecidos. Neste
sentido, uma das advogadas afirmou que as empresas persistem apresentando as mesmas falhas

(...) porque não tem uma punição muito grande para elas. Mil reais, o que é mil reais
para as Casas Bahia? Não é nada. Muitas das vezes eles não pagam, você tem que
entrar várias vezes pedindo penhora online. Eu particularmente estou com um caso
agora por causa de mil reais, estou pedindo a penhora online porque as Casas Bahia
não cumpriu dano moral de mil reais. Acho que um dos grandes motivos de eles não
melhorarem o atendimento deles perante o consumidor é isso, é essa falha em cobrar
isso deles, uma punição maior para que faça ser cumprida a lei.

Você identifica alguma falha na legislação consumerista?

Sim 50%
Não 50%

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Você acha que o poder judiciário está antenado com a sociedade?

Sim 45%
Não 55%

Se os juízes fossem mais liberais, as sentenças seriam diferentes?

Sim 15%
Não 50%
Eles têm de se ater mais à letra da lei 35%

Com esta pergunta, pretendeu-se confirmar a hipótese inicial. O resultado foi


surpreendente, porquanto 35% afirmou que os juízes devem seguir mais a letra da lei e menos
suas próprias convicções.
A grande queixa destes profissionais com relação aos JECs da Comarca de Volta
Redonda, qual seja o entendimento do juiz togado responsável por eles de que danos morais
configuram mero dissabor, provém deste desapego em relação ao texto da lei n° 8.078/90, que
prevê como direito básico do consumidor a efetiva reparação dos danos morais (art 6°, VI e
VII), e prescreve a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços pelos danos causados
(art 14, caput).
Devido a um entendimento do juiz, portanto, demandas diferentes estão sendo
solucionadas com sentenças iguais, e muitas delas contemplando apenas os danos materiais
sofridos, relevando os morais.
Sobre o assunto, um dos entrevistados afirmou que acha que os magistrados

(...) têm que ser um pouco mais rígidos, trazer um pouco mais pro lado concreto e
não pensar só em estatística. Porque o tribunal de justiça do Rio tem uma política que
é o seguinte: achata o dano moral que é para diminuir o número de demandas.
Quando na verdade deveria talvez dar indenizações mais altas, como ocorre nos
EUA, para evitar as demandas em massa.

Outro, ainda, contou, ao fundamentar sua opinião de que as sentenças são injustas,
que “às vezes a sentença são baixas. Vai para a turma recursal e em razão do volume eles têm
uma tendência em manter as sentenças que são dadas aqui em primeiro grau.”
Desta forma, verifica-se um efeito cascata. O magistrado prioriza a não concessão de
indenização e, nos casos em que concede, a fixação de um baixo valor, com o fim de
desestimular o consumidor lesado a ingressar no judiciário buscando sua reparação. O baixo

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valor ou apenas a condenação a obrigações de fazer reafirma nas empresas o comportamento


lesivo, sem investimento na melhoria dos serviços oferecidos e interesse na proposição de
acordos, porquanto a espera pela sentença retarda o pagamento, e muitas vezes as execuções
são frustradas, devido à ocultação de bens.
Aos consumidores, por fim, restam duas vias: tentar solucionar seus problemas pela
via administrativa, sem no entanto ter seus danos morais indenizados, ou ingressar no judiciário,
contando com a sorte para que sua sentença respeite minimamente seus direitos previstos no
CDC e sua execução seja bem sucedida.
Todavia, há de se fazer uma reflexão: a adoção desta postura pelo magistrado reduz,
a longo prazo, a demanda, ou a mantém, porquanto a impunidade ou baixa punitividade das
empresas reitera seu comportamento lesivo, gerando repetidos danos aos consumidores ? Qual
o real impacto destas decisões ? Não estariam apenas negando o efetivo acesso à justiça dos
consumidores, e perpetuando a alta demanda nestes JECs ?
Ainda mais: seria o direito ao acesso à justiça, previsto constitucionalmente, tão
disponível assim, a ponto de ser mitigado para melhor atender aos interesses dos magistrados,
guiados por um ativismo judicial desenfreado ?
Impera a realização desta reflexão, porquanto o acesso à justiça é um direito
fundamental, viabilizador da efetivação dos demais, que não pode operar somente no plano
formal, na mera possibilidade do ingresso em juízo, devendo buscar ao máximo o escopo final
da resolução do litígio e da pacificação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação dos Juizados Especiais Cíveis proporcionou a superação de dois dos


maiores problemas do judiciário brasileiro: a morosidade e o alto custo. Guiados pelos
princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade,
aproximaram a população deste poder, ao permitir a apreciação das pequenas causas pelo
magistrado.
Embora promissores, na prática estes Juizados, como se apreende através dos JECs I
e II da Comarca de Volta Redonda, utilizados como objeto de estudo da pesquisa, tiveram falhas
na implementação de seus princípios, devido a alguns fatores ao longo de dois anos
investigados.

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O primeiro escopo que encontra obstáculos é a conciliação, porquanto foram extintas


as audiências de conciliação, restando esta importante técnica autocompositiva para um
momento processual realizado de maneira extremamente rápida e objetiva, a Audiência de
Instrução e Julgamento. Marcadas de 10 em 10 minutos, impossibilitam a plena atenção às
necessidades das partes, que muitas vezes, desinformadas de seus direitos, negam o acordo por
achar que estarão “concordando com a falha” da empresa prestadora de serviço. Ademais,
devido ao baixo valor das condenações, as propostas de acordo, quando vêm, são desvantajosas,
porque é preferível às empresas aguardar a sentença e só então realizar o serviço ou pagamento,
do que oferecer proposta de teor parecido e ter que cumprir antes com suas obrigações. Somado
a isso, há a reduzida autonomia dos advogados das empresas rés para negociar, que ficam
adstritos às orientações passadas, sem poder de fato compor uma solução para o problema.
Não obstante, também foram mitigados nos JECs I e II de Volta Redonda os
princípios da economia processual e da celeridade, pois as sentenças muitas vezes se mostram
ineficazes, dependendo de penhora online para assegurar o direito pertencente ao consumidor,
ou de recurso, porquanto o pleito da parte autora não foi totalmente contemplado.
Assim, percebe-se que a postura do magistrado, embora não totalmente responsável
pelo sucesso da conciliação, tem sobre ela grande influência, muito além do mero estímulo à
reconciliação entre as partes em audiência, que por vezes sequer é dado. As próprias sentenças,
inobservantes dos preceitos legais contidos na Lei n° 8.078/90, repercutem de maneira negativa
facilitando inclusive o surgimento de novas demandas, decorrentes das mesmas falhas não
corrigidas das empresas mais demandadas.
Portanto, insta o olhar cuidadoso às partes, a análise detida de cada caso concreto,
porquanto a padronização das sentenças não está promovendo a celeridade, tampouco
diminuindo a demanda, que mostra-se repetitiva e com soluções pouco efetivas. Urge a atenção
com a vontade do legislador, expressa recentemente no Código de Processo Civil de 2015, e a
utilização dos textos legais como balizador para as decisões proferidas, de modo a promover
um formal e material acesso à justiça.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.

BRASIL, Constituição Federal (1988).

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Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BRASIL, Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras
providências.

BRASIL, Lei 12.291 de 20 de Julho de 2010. Torna obrigatória a manutenção de exemplar do Código de Defesa
do Consumidor nos estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços.

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.. Porto Alegre:
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FRADE, Catarina. A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: A mediação do sobreendividamento.


Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, Maio 2003: 107-128.

998
TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL
NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO:
ALGUNS ARRANJOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

CATHARINA, Alexandre de Castro


Doutor em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM. Professor de Direito Processual Civil
da Universidade Estácio de Sá. Membro do IBDP.

RESUMO

Dentre as principais inovações do Código de Processo Civil de 2015 podemos citar a gestão cooperativa
do procedimento e a democratização do processo decisório. Essas técnicas processuais exigem, para ter
eficácia na prática jurídica, uma reformulação na teoria do processo e na teoria da decisão judicial, pois
toda produção científica elaborada no período de vigência do CPC/73 tinha como pano de fundo um
modelo processual individualizante e centrado no monopólio do processo decisório pelo juiz. Diante
deste cenário, se faz necessário elaborar uma teoria da decisão judicial, que dê conta das técnicas de
democratização do processo decisório inseridas no CPC/2015. O presente artigo tem como principal
escopo refletir sobre alguns arranjos, teóricos e metodológicos, que podem contribuir para o debate sobre
a temática.

Palavras-Chave. Teoria de decisão judicial; técnica processual; processo democrático.

ABSTRACT

Among the main innovations of the Civil Procedure Code of 2015 we can mention the cooperative
management of the procedure and the democratization of the decision-making process. These
procedural techniques require, in order to be effective in legal practice, a reformulation of process
theory and judicial decision theory, since all scientific production elaborated during the period of CPC
/ 73 had as its background an individualized and monopoly of the decision-making process by the judge.
Given this scenario, it is necessary to elaborate a theory of judicial decision, which gives account of the
democratization techniques of the decision-making process inserted in the CPC / 2015. The main
objective of this article is to reflect on some theoretical and methodological arrangements that can
contribute to the debate on the theme.

Keywords. Theory of judicial decision; procedural technique; democratic process.


O artigo apresenta os resultados parciais da pesquisa em andamento intitulada As dimensões democratizantes do CPC/2015 e
seus impactos na cultura jurídica processual brasileira, com auxílio da Bolsa Produtividade da Universidade Estácio de Sá. As
reflexões e conceitos aqui apresentados são desdobramentos das ideias desenvolvidas no texto Elementos para (re) construção
da teoria geral da decisão judicial no Processo Civil brasileiro publicado na Revista da Faculdade de Direito de Valença.

999
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
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INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil de 2015 promoveu uma verdadeira virada epistemológica


e metodológica1 no modo de ser da processualística brasileira cujos reflexos, na prática
judiciária, devem ser analisados com prudência e de forma continuada. A virada epistemológica
diz respeito às mudanças elementares nos fundamentos do direito processual civil,
caracterizado pela inserção de diversos dispositivos jurídicos voltados para coletivização e
democratização do processo judicial. Como exemplo podemos citar a abordagem ampliada da
atuação do amicus curiae (art. 138), como também o estabelecimento do Incidente de resolução
de demandas repetitivas (art.976), dentre outros.
A virada metodológica concerne à mudança na estrutura mesmo do processo como
método de solução de conflitos. O estabelecimento de um procedimento comum único,
ampliando os poderes do juiz para adaptar o procedimento, nas hipóteses do art. 139, VI, e
possibilitando às partes a realização de negócios processuais (art.190), configura, de certo
modo, um novo modelo de gestão do procedimento sem precedentes na legislação revogada.
Por sua vez, a inserção da mediação como etapa anterior à defesa do réu (art. 334) e a
possibilidade de se conceder a antecipação de tutela antecedente sem formulação do pedido
principal (art. 303), entre outras inovações, representam uma mudança de perspectiva do direito
processual enquanto método de julgamento. Neste sentido, o processo decisório passa a ser
centrado menos na condução centralizadora do julgador do que no princípio da colaboração
entre os sujeitos processuais atuantes numa estrutura dialógica de julgamento2.
Uma importante mudança metodológica inserida pela Lei nº 13.105/2015
corresponde à exigência de uma fundamentação qualitativa, por parte do julgador, nas decisões
judiciais. O novo texto normativo processual, portanto, somente admite como válida a decisão
judicial cuja fundamentação for devidamente estruturada, justificando pormenorizadamente,
por exemplo, a opção por aplicar um determinado precedente judicial e a exclusão dos demais
que, em tese, também poderiam ser aplicados ao caso concreto. Não obstante, o novo código
também ampliou as hipóteses de improcedência liminar do pedido, admite a estabilização da
tutela antecipada e tratou de forma específica o regramento da sentença parcial.

1
A virada metodológica mencionada no texto diz respeito ao método de julgamento e não à metodologia de pesquisa, que será
utilizada na parte final do trabalho.
2 Entendemos por estrutura dialógica de julgamento a ampliação da participação dos sujeitos processuais na construção da decisão

judicial.

1000
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Essa nova metodologia de julgamento requer uma sólida teoria acerca da decisão
judicial, que dê amparo aos profissionais do direito, em especial ao julgador e aos advogados,
para atuarem num sistema processual fortemente assentado, do ponto de vista normativo, num
sistema amplo de decisões judiciais, encadeado a partir da exigência de uma fundamentação
devidamente estruturada. A despeito da importância dessa inovação para assegurar o devido
processo legal e a segurança jurídica, é oportuno o debate acerca da (in) existência de uma teoria
da decisão judicial no processo civil que contemple as exigências deflagradas pela Lei nº
13.105/2015.
Considerando esse contexto, o presente artigo tem como escopo analisar, num
primeiro momento, as inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 no âmbito das
decisões judiciais, e, num segundo momento, discutir, com os aportes da sociologia, os
necessários arranjos, teóricos e metodológicos, que em nosso entender, contribuirão para o
necessário debate acerca da construção de uma teoria abrangente da decisão judicial no
processo civil brasileiro.

1. TRATAMENTO NORMATIVO DA DECISÃO JUDICIAL NO CPC

O CPC/2015 pretendeu dar um tratamento amplo ao tema das decisões judiciais de


modo a incorporar os avanços doutrinários e jurisprudências forjados no período de vigência
do CPC/73 e das diversas reformas processuais ocorridas no Brasil. Nesta perspectiva, o código
estabeleceu a denominada sentença parcial do mérito (art. 356), ampliou as hipóteses de
improcedência liminar (art. 332), dispôs sobre a tutela antecipada antecedente (art. 303) e
buscou amarrar as regras relativas aos precedentes judiciais (art. 926) à fundamentação
estruturada detalhada no art. 489 do código.
Embora as regras sejam sofisticadas e com amparo na literatura estrangeira, ainda não
há no Brasil uma teoria da decisão que aborde, de forma abrangente e sistemática, essas
inovações da perspectiva da cultura processual aqui estabelecida. Antes de avançarmos nesta
reflexão, passemos à breve análise dos mencionados institutos.

1.1. FUNDAMENTAÇÃO ESTRUTURADA DA SENTENÇA

A análise da fundamentação das decisões judiciais na vigência do Código de Processo


Civil de 1973 tinha como escopo as regras dos arts. 165 e 458, II, que dispõe, respectivamente,

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sobre o dever de fundamentar e sobre a estrutura trifásica da sentença e dos acórdãos. Não
havia, num primeiro momento, uma normatização mais acurada que vinculasse o julgador ao
dever de fundamentar adequadamente suas decisões.
Diante dessa fragilidade normativa, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 93,
IX, permitiu uma releitura do dever de fundamentação das decisões judiciais contribuindo para
evitar decisões judiciais arbitrárias ou com razões de decidir obscuras, impossibilitando, dessa
forma, a adequada impugnação mediante recurso. Com efeito, decisões interlocutórias,
sentenças e acórdãos sem fundamentação adequada são considerados nulos por violarem o
texto constitucional ensejando, inclusive, interposição de recurso extraordinário.
No entanto, a mera exigência de fundamentação, ainda que com amparo na
Constituição Federal, não foi suficiente para coibir decisões arbitrárias que, a despeito de serem
fundamentadas, desconsideravam argumentos importantes ventilados pelas partes ou se
assentavam em jurisprudência minoritária, dificultando o controle adequado dessas mesmas
decisões judiciais mediante recursos ou ações autônomas de impugnação.
O novo Código de Processo Civil, com efeito, avança no sentido de vincular o
julgador ou colegiado a um sistema de decisões judiciais com fundamentação estruturada
dificultando, pelo menos em tese, decisões arbitrárias ou que desconsidere todas as questões
jurídicas envolvidas no julgamento da causa. Passemos, então, ao sistema de decisões judiciais
disposto de forma minuciosa na Lei nº 13.105/2015.
A fundamentação adequada e estruturada da sentença, disposta no art. 489,§1º, do
Código de Processo Civil de 2015, constitui importante arranjo normativo com escopo de evitar
decisões arbitrárias, assentadas em argumento de autoridade ou até mesmo contrárias aos
precedentes judiciais editados pelos Tribunais superiores. Segundo o mencionado dispositivo
não se considera fundamentada a decisão que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à
paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II -
empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua
incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a
conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula,
sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se
ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou

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precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em


julgamento ou a superação do entendimento.
Destarte, o código exige uma fundamentação qualificada exigindo do julgador uma
justificação acerca da sua convicção e das questões jurídicas que foram fundamentais para o
equacionamento dado ao caso. Por outro lado, exige a adequada aplicação do sistema de
precedente determinando o dever de justificar o critério de distinção (distinguish) como também
evidenciar de forma inequívoca a ratio decidendi do precedente que melhor se ajusta ao caso
sob julgamento, conforme art. 489, §1º, V.
Essa mudança paradigmática, do ponto de vista normativo, foi bem destacada pela
escola mineira de processo civil através da seguinte passagem:
Em todos esses posicionamentos a decisão judicial é vista como ato de criação
solitária pelo magistrado; mesmo aqueles que pensam que a exigência se abriria a uma
possibilidade de um controle público da decisão.

Essa premissa equivocada agora foi corrigida normativamente pelo Novo CPC, pois
este leva a sério o atual quadro de litigiosidade massiva que impõe aos juízes e,
especialmente, aos Tribunais (em decorrência da força que a jurisprudência vem
obtendo na práxis jurídica), analisar desde a primeira vez que as questões (com
destaque para as repetitivas) com amplo debate e levando a sério todos os argumentos
para que, tais decisões e suas ratione decidendi, possam ter a dimensão que
necessitam. É dizer, ao contrário do que possa parecer a uma leitura menos atenta, a
fundamentação substancial é resposta (e não empecilho) a esse momento no qual há
que se enfrentar julgamentos em massa e formação de precedentes: um precedente
bem formado, quando amadurecida a questão, é a solução mais consentânea com os
ditames constitucionais e práticos para servir de parâmetro para o julgamento de
futuros casos sobre a mesma temática. Para isso, no entanto, há que ser formado
como resposta às questões postas, de ambos os lados do debate (THEODORO
JUNIOR; DIERLE; BAHIA E QUINAUD, 2015).

Interessante observar, por oportuno, que o art. 489, §3º do código é contundente ao
asseverar que a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os
elementos tratados no dispositivo legal estabelecendo um potente critério de justificação e
validade das sentenças tendo como eixo valorativo a fundamentação estruturada e adequada.
Essa nova perspectiva da sentença reflete no próprio conceito de interpretação das
normas de Kelsen como também redimensiona a definição de jurisdição no âmbito do processo
civil, tornando insuficientes as teorias dualista (Chiovenda) e unitária (Carnelluti e
Calamandrei) como bem sinalizou Marinoni (2015).
O novo Código de Processo Civil ampliou a irradiação dos princípios constitucionais
estabelecendo um sistema decisório que torna inviável, pelo menos em tese, a prolatação de

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sentenças e acórdãos arbitrários, unipessoais utilizando para se justificar pseuda


fundamentação. Por seu turno, a eficácia normativa dessas inovações depende, em grande
medida, da superação de uma cultura jurídica voltada para a criação solitária da decisão judicial
pelo julgador.

1.2. IMPROCEDÊNCIA LIMINAR DO PEDIDO

A efetividade do processo e a celeridade processual são os eixos que orientaram boa


parte das reformas processuais realizadas no Brasil. A sentença liminar, inserida em nosso
ordenamento através da Lei nº 11.277/2006, que acrescentou ao CPC/1973 o art. 285-A,
constitui importante metodologia de julgamento permitindo ao juiz singular proferir sentença
de mérito, em desfavor do autor, quando se tratar de matéria de direito e no órgão jurisdicional
houver casos similares previamente julgados. Essa reforma processual possibilitou o
julgamento célere das demandas repetitivas contribuindo, em alguma medida, para dar maior
celeridade processual.
A lei nº 13.105/2015 aprofundou essa metodologia de julgamento ampliando as
hipóteses de improcedência liminar do pedido. Conforme dispõe o art. 332, o juiz julgará
liminarmente o pedido autoral que contrariar: I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal
Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III -
entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de
competência; IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
Verifica-se, portanto, que o novo código optou por privilegiar o fortalecimento dos
precedentes judiciais, julgando liminarmente improcedente os pedidos formulados em sentido
contrário às decisões paradigmas dos Tribunais superiores e dos Tribunais locais. Essa regra
deve ser objeto de sérias reflexões, pois caso seja aplicada indevidamente acarretará insolúveis
violações ao princípio do amplo acesso à justiça, devidamente assegurado no art. 5º, XXXV,
da CF/88 e no art. 3º do CPC/2015.
A decisão que julgar liminarmente improcedente o pedido do autor deve ser
fundamentada de forma adequada e criteriosa, nos termos do art. 489,§1º, do CPC/2015, para
evitar que tenha como fundamentos determinantes precedentes judiciais superados ou que não
seja adequado ao caso concreto sub judice. Todas essas dificuldades reais terão seu campo de
incidência reduzido quando se estabelecer uma teoria geral das decisões judiciais que

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viabilizem o adequado controle das sentenças que julgar improcedente liminarmente o pedido
do autor.

1.3. SENTENÇAS PARCIAIS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O Código de Processo Civil de 1973 não tratou especificadamente da sentença parcial.


O art. 330, I, admitia tão somente o julgamento antecipado da lide permitindo ao juiz o
julgamento integral da lide nas hipóteses em que a demanda versasse somente sobre questões
de direito ou questões de fato em que não houvesse necessidade de produção de provas.
No entanto, a Lei nº 10.444/2002 acrescentou o parágrafo 6º ao art. 273, cuja redação
autoriza o juiz antecipar, nas hipóteses de cumulação, os pedidos incontroversos através de
decisão interlocutória, devendo ser confirmado através da sentença.
A Lei nº 13.105/2015 avançou qualitativamente admitindo a possibilidade de
sentença parcial (art. 356) nos casos de pedidos incontroversos (inciso I) e quando um ou alguns
dos pedidos estiverem em condições de imediato julgamento (inciso II). Trata-se de instituto
novo no direito processual civil brasileiro, pois admite a sentença parcial, com os respectivos
efeitos da coisa julgada material, autorizando a liquidação e execução definitiva da decisão
proferida, conforme dispõe o art. 356, §3º.
A sentença parcial poderá ser impugnada mediante agravo de instrumento3, nos
termos do art. 1.015, II, do CPC/2015, revelando a nítida opção do legislador em não causar
transtornos ao processamento dos demais pedidos que não foram julgados antecipadamente,
considerando que não se admite apelação por instrumento na processualística brasileira.
Importante destacar, ainda, o cabimento da ação rescisória contra sentença parcial nos termos
do art. 966 da Lei nº 13.105/2015.
Ainda no âmbito procedimental o novo Diploma autoriza a execução definitiva da
sentença parcial em autos suplementares a requerimento da parte ou de acordo com o critério
do julgador, conforme dispõe o art. 356, §4º. Verifica-se, com efeito, a evidente opção das
comissões de processualistas, que atuaram no debate público acerca do novo código, em
normatizar de forma detalhada a possibilidade de sentença parcial e de sua respectiva liquidação
e execução.

3 Há muito se defende, em sede doutrinária, a existência de decisões interlocutórias com nítido conteúdo de sentença como ocorre

nos casos de rejeição liminar da reconvenção ou exclusão prematura de um litisconsorte. O novo código, por sua vez, normatizou
adequadamente a sentença parcial compatibilizando com um sistema recursal que viabilize a efetividade do processo e celeridade
no julgamento das demandas.

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Trata-se, portanto, de inovação importante que deve ser operada de forma acurada
para que não se aplique a sentença parcial como se fosse antecipação parcial dos pedidos
controversos, tal como modelo efetuado pela Lei nº 10.444/2002. Para que não haja dúvidas ou
continuidades na prática judiciária em contradição com o espírito reformador, necessário se faz
a construção de uma teoria abrangente das decisões judiciais na nova sistemática criada pelo
novo Código de Processo Civil.

1.4. TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE E SUA ESTABILIZAÇÃO

As tutelas de urgência foram sistematizadas de forma mais detalhada no novo Código


de Processo Civil. Além da exclusão de um livro específico sobre tutela cautelar, o legislador
processual avançou em organizar de forma sistematizada a tutela antecipada e a tutela cautelar
no regime da denominada tutela provisória. O novo código incorporou, neste sentido, abalizada
doutrina permitindo, em boa parte, um avanço normativo na temática.
A novidade em relação ao tema concerne à possibilidade de se conceder tutela
antecipada, antecedente, nos casos de urgência, sem a necessidade de se formular na petição
inicial o pedido principal, conforme se depreende da interpretação literal do art. 303. Trata-se
de instituto muito similar à denominada tutela cautelar satisfativa, caracterizada pela solução
de uma situação da vida através de uma medida deferida em cognição sumária.
Segundo o dispositivo mencionado, o juiz, após a antecipação do contraditório,
poderá conceder a tutela antecipada antecedente à formulação do pedido principal, sendo
facultado ao autor formular o pedido principal ou permitir a estabilização da tutela antecipada
permitindo manutenção dos efeitos medida urgente deferida, nos termos do art. 304.
Interessante observar que na hipótese de autor não formular pedido principal e contra a decisão
que concedeu a antecipação da tutela não for interposto recurso o processo será extinto,
estabilizando-se os efeitos da tutela provisória, sem a ocorrência de coisa julgada material, em
conformidade com o disposto no art. 304,§6º do código.
Trata-se de uma interessante inovação no sentido de se permitir que a concessão da
tutela antecipada mantenha seus efeitos mesmo inexistindo sentença de mérito que a confirme.
Com efeito, necessário se faz muito refletir sobre tal instituto e sua aplicabilidade no cotidiano
forense para melhor compreender o alcance dessa norma. No entanto, o acúmulo reflexivo e
teórico acerca da decisão interlocutória não é suficiente para compreender a estabilização da

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antecipação de tutela, seus limites objetivos e subjetivos e, principalmente, nas hipóteses contra
a qual poderá ser proposta ação rescisória, em consonância com art.966, §2º do CPC/2015.

1.5. JUSTIFICAÇÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS

O art. 926 da Lei nº 13.105/2015 institui um verdadeiro sistema de precedentes


judiciais no ordenamento processual civil brasileiro. Embora possamos identificar diversos
dispositivos orientados para a formação dos precedentes judiciais no CPC/1973, conforme se
depreende da leitura do art. 557, o novo código aprofundou a normatização do sistema de
precedentes judiciais estabelecendo um ordenamento jurídico híbrido assentado na legislação e
no direito criado pelas decisões judiciais nos denominados casos difíceis.
Com efeito, o novo Diploma processual, em seu art. 927, fundou um sistema vertical
de valoração dos precedentes judiciais editados pelos Tribunais superiores e pelos Tribunais
locais, edificando um verdadeiro itinerário intelectual a ser seguido pelo juiz na aplicação do
sistema de precedentes ao caso concreto.
É evidente que não se trata, numa primeira reflexão, de engessamento interpretativo
dos juízes de primeiro grau, do julgador monocrático, em sede recursal, ou até mesmo dos
colegiados dos tribunais locais, mas de uma metodologia de julgamento voltada para
racionalizar a administração da justiça com objetivo de superar a morosidade sistêmica, muito
bem sinalizada por Boaventura de Souza Santos (2006).
No entanto, esse sistema requer um procedimento refinado de aplicação e justificação
que não guarda estreita relação com a cultura jurídica processual brasileira, que foi forjada na
lógica da subsunção da norma ao caso concreto. A aplicação do sistema de precedentes judiciais
requer um critério analítico profundo, onde o julgador deve manejar com segurança a
metodologia do distinguish, overruling (art. 927, §2º, 3º 3 4º), e principalmente a habilidade de
extrair os fundamentos determinantes de cada precedente judicial (ratio decidendi) separando
de forma racional e fundamentada dos argumentos utilizados na decisão judicial, mas que não
foram fundamentais para o julgamento (obter dicta).
Esse complexo exercício analítico deve ser levado pelo julgador nos casos concretos,
observando a fundamentação estruturada, conforme dispõe o art. 927, §1º do CPC/2015, o que
exige, para que esse sistema tenha eficácia plena, uma sólida teoria da decisão judicial que
contemple essa metodologia de julgamento. Luiz Guilherme Marinoni (2010) e Thomas da
Rosa de Bustamante (2012) envidaram esforços intelectuais, exitosos em nosso entendimento,

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no sentido de estabelecer os elementos fundantes de uma teoria dos precedentes judiciais na


processualística brasileira. No entanto, com a aprovação do novo Código de Processo Civil
exsurge a necessidade de uma teoria geral da decisão judicial onde o sistema de precedentes
constitui um dos institutos.

2. ALGUNS ARRANJOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA


ELABORAÇÃO DE UMA TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL NO BRASIL

Ao longo deste trabalho destacamos as importantes inovações encartadas pelo novo


Código de Processo Civil e que foram, em alguma medida, transplantadas de outras culturas
jurídicas assentadas em teorias próprias do direito sedimentadas em determinadas sociedades
específicas. Não se pode negar que o diálogo entre culturas jurídicas distintas é importante para
o aprimoramento dos diversos sistemas jurídicos, mas também não se pode negar que é
imprescindível repensar de forma crítica a recepção de modelos de julgamento de outros
ordenamentos jurídicos em nossa cultura jurídica, até mesmo para se antecipar as possíveis
rejeições ou sintomas dos efeitos colaterais.
Embora o novo Código de Processo Civil traga em seu texto normativo um sistema
complexo e avançado de decisões judiciais, a literatura processual acumulada sobre as decisões
judiciais ainda é incipiente e limitada em sua abordagem, considerando a própria limitação das
normas dispostas no Código de Processo Civil de 1973 sobre o tema. Nesse sentido, o art. 162,
§1º, do CPC/1973 defini sentença como ato do juiz que implica alguma das situações previstas
no art. 267 e 269 desta Lei. Por seu turno, o parágrafo 2º dispõe que decisão interlocutória é “o
ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente”.
Essa limitação normativa reflete diretamente nos conceitos doutrinários elaborados a
partir do mesmo. A despeito da limitação normativa quanto ao tema, diversos autores como
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Medina (2009), entre outros, contribuíram, de
forma decisiva, para o aprofundamento da temática. No entanto, o novo código exige uma
ampla e sólida teoria geral da decisão judicial que contemple toda a sorte de metodologia de
julgamento retratada na Lei nº 13.105/2015, principalmente com escopo de evitar decisões
contrárias à Constituição Federal de 19884.

4
Fredie Didier e Dierle Nunes possuem importantes trabalhos neste sentido.

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A nossa proposta nesse artigo é contribuir para esse debate apresentando duas linhas
de estudos preliminares que podem contribuir, ainda que pouco, para a elaboração de uma teoria
abrangente e interdisciplinar da decisão judicial no processo civil brasileiro5. A primeira linha
de reflexão diz respeito ao necessário diálogo entre a teoria da decisão judicial e a teoria
democrática que se consolidou na América Latina nos últimos anos.
A segunda linha de estudo, por sua vez, propõe um novo arranjo metodológico de
modo apreender, através de pesquisas científicas, os impactos que as decisões judiciais com
ampla repercussão social provocam no tecido social como também, num segundo momento,
compreender em que medida os grupos sociais impactam no processo decisório levado a efeito
pelos tribunais nestas mesmas decisões.

2.1. TEORIA DEMOCRÁTICA E PROCESSO CIVIL: UM ARRANJO TEÓRICO


NECESSÁRIO

O modelo decisório elaborado no período de vigência do CPC/73 tinha como


principal escopo o exercício mental de subsunção, pelo juiz, de aplicação da norma abstrata ao
caso concreto posto em juízo. Essa atividade intelectual e solitária do juiz era voltada,
basicamente, para solucionar conflitos individuais e de cunho patrimonial, caldo da cultura
jurídica liberal fundante do processualismo brasileiro.
A literatura processual, neste período, tinha como principal escopo definir com clareza
as distinções entre sentenças definitivas, sentenças terminativas, decisões interlocutórias e
decisões interlocutórias com conteúdo de sentença. A ênfase era dada na natureza do
pronunciamento judicial com o objetivo de se definir com clareza qual recurso cabível em cada
caso.
A Constituição Federal de 1988, ao expandir os direitos e garantias coletivas,
contribuiu para romper, pelo menos em parte, com esse modelo de processo e trouxe para o
Poder Judiciário o debate sobre direito das minorias étnicas, questões de gênero, direitos
humanos, populações tradicionais entre outros temas.
Em outra perspectiva, a admissão dos amici curiae na jurisdição constitucional,
sobretudo nos processos com ampla repercussão social, com o advento das Leis nº 9.868/99 e

5
Os trabalhos sobre decisão judicial utilizam como principal referencial teórico os aportes da hermenêutica e da filosofia do
direito. A nossa proposta neste trabalho tem como principal escopo discutir a teoria da decisão judicial utilizando, para tanto, os
aportes da perspectiva sociológica da teoria democrática.

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9.882/99, foi determinante para democratização da processo decisório através da intervenção


de variados atores coletivos e entidades da sociedade civil organizada (CATHARINA, 2015).
Esse redimensionamento do processo decisório no Supremo Tribunal Federal, com destaque
para a democratização do processo decisório, pode ser identificado em diversas ações
constitucionais como ADPF 186, ADI 3239, ADC 41, ADI 4277, ADPF132, ADPF 54, dentre
várias outras.
O Poder Judiciário, neste contexto, se constitui como uma esfera pública através da
qual a sociedade civil, atores coletivos e movimentos sociais atuam para debater publicamente
suas demandas que, de alguma forma, não foram contempladas pelas instituições democráticas
tradicionais ou mesmo excluídos do projeto político dominante. Esse fenômeno social e
político, muito comum na América Latina (WOLKMER & RONCHI, 2016) transfere para o
Judiciário a dinâmica da vida democrática, que até então era restrita à sociedade política6.
Nesta toada, o CPC/2015 estendeu as dimensões democratizantes do amicus curiae
para todas os graus de jurisdição (art. 138) como também dispôs sobre a audiência pública no
julgamento de recursos extraordinário e especial, possibilitando, pelo menos em tese, a
participação da sociedade civil na formação dos precedentes judiciais. A dimensão democrática
do processo civil e da jurisdição constitucional já foi abordada nos trabalhos de Dierle Nunes
(2008) e Catharina (2015).
Não há dúvidas de que a teoria da decisão judicial elaborada no período anterior à
Constituição Federal de 1988, marcadamente individualizante, não tem condições de apreender
a democratização do processo decisório realizado no atual contexto da jurisdição constitucional
e da proposta normativa do CPC/2015.
Dentre os processualistas civis brasileiros Fredie Didier (2017) é um dos autores que
vêm trabalhando no sentido de se consolidar uma teoria da decisão judicial que dê conta das
inovações normativas levado a efeito pelo CPC/2015. Entretanto, a abordagem desse
importante autor volta-se, como deve ser, para a classificação, conteúdo e eficácia jurídica dos
pronunciamentos judiciais (dos juízes e tribunais) no âmbito jurídico. Entretanto, num processo
civil democrático, se faz importante abordar, também, a construção e eficácia das decisões
judiciais com forte impacto social e político no tecido social.

6Importante ressaltar que não houve mudança estrutural no Poder Judiciário, enquanto instituição hierarquizada e conservadora.
Entretanto, o deslocamento das tensões da vida democrática para este espaço institucional tem sido importante para se repensar
as estratégias de atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil no período posterior à promulgação da Constituição Federal
de 1988.

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É neste sentido que se faz importante e necessário estabelecer um diálogo entre a


teoria do processo e teoria democrática. Embora a teoria democrática de Habermas (2003) seja
importante para se pensar a democracia e o direito, e, como consequência, a relação entre
sociedade, Judiciário e a criação do próprio direito, optamos7 por utilizar os conceitos de
democracia e esfera pública de Avritzer e Costa (2004) elaborados a partir de suas reflexões
sobre América Latina.
Para esses autores, a democracia, na América Latina, não é algo dado ou construído
de forma definitiva. É um permanente processo e nunca inteiramente acabado no sentido de se
consolidar a soberania popular. Por esse motivo os autores utilizam o conceito de
democratização, que, em verdade, representa esse processo de busca pela soberania e efetivação
de direitos, sobre dos grupos excluídos. Importante observar que a democratização não se limita
às instituições políticas mas se irradiam para outras instituições, como o Poder Judiciário.
Nesta perspectiva o próprio Poder Judiciário se constitui como uma importante esfera
pública onde a democratização se manifesta de forma densa e intensa. O conceito de esfera
pública8 aqui utilizado, cunhado pelos mencionados autores, diz respeito a um contexto de
relações difuso no qual se concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos gerados
em diferente campos da vida social. Essa esfera ganha estatura de arena privilegiada para se
observar o modo que se operam os câmbios sociais, a própria reconfiguração do poder político
e a forma como os novos atores sociais ganham relevância na política contemporânea
(AVRITZER & COSTA, 2004).
A dialética processual nos casos com ampla repercussão social transformam o Poder
Judiciário numa importante esfera pública para democratização onde a decisão judicial
proferida retrata, em grande medida, as disputas sociais ocorridas no processo decisório. Essa
dimensão sociológica do processo civil, sobretudo no período de vigência do CPC/2015, deve
ser considerada numa teoria abrangente da decisão judicial. Por essa razão que se propõe
estabelecer, neste particular, um diálogo entre a teoria do processo e a teoria democrática

7 Essa opção decorre da constatação de que a teoria habermasiana tem como pano de fundo a Europa, cuja cultura política diverge

em boa medida da que foi aqui estabelecida.


8
O conceito de esfera pública de Habermas ainda contribui para se pensar as sociedades complexas contemporâneas. Entretanto,
o aperfeiçoamento do conceito pelos autores, ao incorporar, em certa medida, as críticas de Nanci Fraser, em muito contribui para
se pensar o Poder Judiciário na América Latina.

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elaborada a partir da América Latina9. Esse trabalho representa um pequeno passo neste
sentido.

2.2. DECISÃO JUDICIAL E A COMPREENSÃO DE SEUS IMPACTOS SOCIAIS


ATRAVÉS DE UMA METODOLOGIA ADEQUADA

Propomos acima um arranjo teórico que apreenda as dimensões jurídicas e


sociológicas da decisão judicial Entretanto, esse arranjo teórico somente se justifica de for
estabelecida uma metodologia da pesquisa que nos permita apreender a dinâmica do processo
decisório das decisões judiciais com forte repercussão social e como estas impactam no tecido
social.
O método tradicional de pesquisa no campo jurídico, assentado na revisão
bibliográfica, além da sua esterilidade, vez que jamais permitiu apreender a realizada social em
que o direito é aplicado, está superado enquanto método autônomo e exclusivo. Por sua vez, a
jurimetria, que se pretende como método autônomo de pesquisa, conforme abordagem de
Barbosa & Menezes (2015), apresenta limitações, em razão mesmo da fase embrionária em
que essa metodologia se encontra nas pesquisas brasileiras.
A aplicação da estatística, exclusivamente, para se verificar o comportamento dos
juízes ou mesmo a dinâmica do Judiciário nos parece insuficiente, sobretudo se considerarmos
as variáveis e relações de força que se manifestam num determinado processo decisório. Tais
disputas simbólicas não se apresentam nos dados estatísticos. Por outro lado, os dados
fornecidos pelas instituições jurídicas, como todas as demais, representam uma parte da
realidade.
A metodologia que nos parece mais adequada é aquela forjada nas pesquisas
realizadas no campo das ciências sociais. Um arranjo metodológico que conjugam os elementos
das pesquisas quantitativas e quantitativas permitirá ao pesquisador se aproximar mais da
realidade social objeto da pesquisa permitindo-o surpreender dados “não ditos” num
determinado processo judicial. Esse arranjo metodológico foi por nós aplicado em pesquisa
publicada no livro Movimentos sociais e a construção dos precedentes judiciais (2015).
Neste contexto, para se analisar, de forma adequada, a eficácia das normas inovadoras
do CPC/2015 em relação à decisão judicial e à democratização do processo é imprescindível

9Empreendimento similar, em perspectiva diversa, já vem sendo realizado pela Escola Mineira de Processo, capitaneada por
autores como Dierle Nunes e Alexandre Bahia.

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aplicar um arranjo metodológico abrangente, que conjugue investigação qualitativa e


quantitativa.

CONCLUSÃO

A principal proposta deste trabalho teve como fio condutor tornar público algumas
reflexões sobre a necessidade de uma teoria abrangente da decisão judicial que aborde as
dimensões jurídicas e sociológicas do processo civil brasileiro. A pesquisa é embrionária e será
expandida na medida em que o debate for se ampliando, tanto em sede doutrinária como
jurisprudencial.
No entanto, o atual estado da arte nos permite inferir que um estudo aprofundado no
campo da ciência processual brasileira não pode prescindir do estudo sociológico da decisão
judicial e de seus impactos no tecido social. Eis o nosso propósito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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América Latina. Trabalho apresentado no XVIII Encontro ANPOCS, ST08, Caxambu, outubro, 2004.

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1014
PERÍCIAS NAS AÇÕES DE
CONCESSÃO DE AUXILIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO:
A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIODA RAZOABILIDADE
NOS PROCESSOS JUDICIAIS

MARQUES, Marcilene Margarete Cavalcante


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD- Professora da Universidade
Estácio de Sá. E-mail: carlaameijeiras@gmail.com
CHALFUN, Mery
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida do Curso de Direito.
BORGES, Letícia Maria de Oliveira
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida e da Universidade Estácio de Sá.

RESUMO

O estudo proposto tem por fim analisar a demora na realização das pericias medicas no âmbito
administrativo e processual. A problemática do atraso na realização da perícia médica nos casos de
concessão de auxílio doença acidentário vem causando infindáveis problemas aos segurados da
Previdência Social. No âmbito judicial Estadual a pesquisa analisou, o porquê da necessidade de
realização de duas perícias, quando já se poderia em uma única perícia de nexo causal detectar se a
incapacidade laborativa do segurado decorre de acidente de trabalho ou de doença ocupacional em razão
das atividades exercidas pelo segurado. Pois assim, teríamos uma demanda justa e célere, sem gastos
desnecessários para o Estado com a realização da 2ª perícia. Quando o Magistrado não determina seja
identificada a relação do nexo causal já na primeira perícia, isso faz com que o segurado fique no
“limbo”, pois não recebe do INSS nem do seu empregador. Devemos atentar que quando o cidadão
procura o judiciário, ele espera ter uma justiça célere, eficaz e justa já que é um direito fundamental
esculpido no artigo 5º, inciso LXXVIII, da nossa Constituição Federal. Observa-se que a questão é de
relevância para a academia, tendo em vista que causa danos não só ao segurado individualmente, como
a toda a sociedade que padece com a insegurança jurídica em situações análogas. É fundamental um
estudo sobre as viabilidades de se minimizar a demora na realização das perícias para concessão do
benefício previdenciário, bem como a real necessidade de submissão de dois exames realizados por
Perito para a comprovação do nexo de causalidade e a incapacidade.

Palavras-Chave. Perícias médicas. Nexo causal. Justiça. Direito fundamental.

SUMMARY

The purpose of this study is to analyze the delay in the performance of the medical examinations in the
administrative and procedural scope. The problem of the delay in performing medical expertise in the
cases of granting accidental illness aid has been causing endless problems to Social Security
policyholders. In the State judicial area, the study analyzed the reason for the need to carry out two tests,

1015
when one could already in a single investigation of causal link detect if the incapacity of work of the
insured is due to work accident or occupational illness due to the activities performed by the insured.
Thus, we would have a fair and fast demand, without unnecessary expenses for the State with the
accomplishment of the 2 nd expertise. When the Magistrate does not determine that the relationship of
the causal link is already identified in the first examination, this causes the insured to remain in the
"limbo", since he does not receive from the INSS or his employer. It should be noted that when the citizen
searches for the judiciary, he expects to have speedy, effective and fair justice, since it is a fundamental
right set forth in article 5, paragraph LXXVIII, of our Federal Constitution. It is noted that the issue is
of relevance to the academy, since it causes damage not only to the insured individual, but also to the
whole society that suffers from legal uncertainty in similar situations. It is fundamental to study the
feasibility of minimizing the delay in performing the skills to grant the social security benefit, as well as
the real need to submit two exams performed by Expert to prove the causal link and the disability.

Keywords. Medical expertise. Causal link. Justice. Fundamental right.

INTRODUÇÃO

A morosidade de nossa justiça é fato amplamente debatido em nossos dias, sem, no


entanto ser um problema dos dias de hoje. É um problema que remonta à antiguidade e que
vem sendo questionado desde então. Esse trabalho almeja levar a todos a reflexão de como se
pensar em mecanismos para diminuir, ao máximo e na medida do possível, o tempo que leva,
atualmente, um processo judicial e administrativo. Por haver uma escassez em dados
estatísticos, esse trabalho utilizou pesquisa na literatura jurídica e filosófica.

1. ORIGEM

Podemos afirmar que existem vestígios que o princípio do devido processo se iniciou
há mais de cinco séculos antes de Cristo. Especificamente na peça Antígona de Sófocles
exibida em Atenas ao redor de 441 a.C., onde se invocavam princípios morais e religiosos não
escritos frontalmente opostos à tirania das leis escritas.
Muito embora se tenha afirmado que o due process of law, que primeiramente era
conhecido como law of the land, se iniciou em 15.06.1215, na Inglaterra, com a declaração de
direitos conhecida como Magna Carta das Liberdades (Great Chart of Liberties). Tal
declaração foi chancelada pelo então Rei João, chamado “O Sem-Terra”, que se viu obrigado
a apor selo real. A princípio, a finalidade era de atuar como um limite ao poder do rei, uma
defesa contra o Estado.
O documento compunha-se de 63 artigos, e um dos mais importantes era o artigo 39
que estabelecia:
Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou
tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos
contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus
pares, ou pela lei da terra.

Significava que o rei devia julgar os indivíduos conforme a lei, seguindo o devido
processo legal, e não segundo a sua vontade, até então absoluta.
Também estabelecia a Carta Magna que o rei não poderia mais criar impostos ou
alterar as leis sem antes consultar o Grande Conselho, órgão que seria integrado por
representantes do clero e da nobreza. Além disso, nenhum súdito poderia ser condenado à
prisão sem antes passar por um processo judicial.
Nas colônias inglesas da América do Norte esse princípio foi reconhecido e evoluiu
para uma posterior consagração na Constituição dos Estados Unidos. Em 12.06.1776 com a
Declaração de Direitos da Virginia, mais uma vez, se fortalecia a ideia de associação do devido
processo e da duração razoável do processo.

2. DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A duração razoável do processo por ser um direito fundamental consagrado em


diversos documentos internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos, nos impõe
fazer uma breve digressão sobre esses documentos.
A Carta Internacional de Direitos Humanos se destaca na proteção e promoção dos
direitos humanos no mundo e consiste em três documentos: Declaração Universal de Direitos
Humanos, proclamada pela Assembleia-Geral da ONU em 1948, o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ambos também aprovados pela Assembleia-Geral da ONU em 1966.
Os pactos internacionais, uma vez ratificados pelos Estados-membros das Nações
Unidas, possuem força de lei no âmbito interno. O Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos consagra o direito a um processo justo, com inúmeras garantias, entre as quais a de
um julgamento em tempo razoável.
Quanto ao direito ao processo em tempo razoável, embora implicitamente este
princípio já vigorasse em razão do direito ao devido processo, expressamente só ingressou no
ordenamento jurídico em 24.04.1992 quando o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos entrou em vigor no Brasil. Sendo que a EC 45/2004 apenas imprimiu maior
visibilidade a sua existência com o objetivo de garantir efetividade ao incluir o inciso LXXVIII
no artigo 5º da nossa Carta Magna:
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

3. DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO

A questão do tempo no processo filia-se à própria ideia de justiça e é tão difícil de


defini-lo como a justiça, que é vista de diversas formas, seja no campo da sociologia, da filosofia
ou do direito. Para melhor entendermos, ficaremos com a perspectiva aristotélica de justiça
como uma mediania. Ou seja, a justiça é uma virtude e se traduz em uma mediania, a justa
medida (in medios virtus).
Esta concepção aplica-se ao tempo no processo, vez que a prestação jurisdicional
apressada pode significar verdadeira injustiça, pois a jurisdição exige reflexão.
O jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr.1 Adverte que não há nada pior que
a injustiça célere, que é a pior forma de denegação da justiça. Por outro lado o excesso de tempo
na prestação jurisdicional é uma verdadeira sonegação de justiça. Como ensina Rui Barbosa2:
“A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
De certo que a decisão justa não se esgota apenas no conteúdo, mas também na forma
em que é produzida, quer dizer, deve estar consoante com os princípios processuais, aos quais
a atividade jurisdicional deve obediência.
Assim, pode se dizer que uma decisão só é justa quando é formal e materialmente
justa.
A forma da decisão (decisão formalmente justa) refere-se ao tempo. Uma decisão
justa não pode ter o açodamento e a irreflexão, incompatíveis com a atividade jurisdicional,
tampouco pouco pode ter a morosidade destrutiva da efetividade da jurisdição. Quer dizer, há
de se encontrar a justa medida para se fazer justiça.
Assim, percebe-se que o direito a um processo em tempo razoável é um direito
correlato ao direito ao devido processo ou ao processo justo e equitativo. Ou seja, o processo
com duração razoável nada mais é do que uma consequência lógica do devido processo.

1
REALE JR., Miguel. Valores fundamentais da Reforma do Judiciário. Revista do Advogado. vol.24. n.75. p.78-82. São Paulo:
IASP, 2004.
2 Ruy Barbosa de Oliveira foi um extraordinário brasileiro, tendo se destacado principalmente como jurista, político, diplomata,

escritor, filólogo, tradutor e orador.


4. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da razoável duração do processo está intrinsecamente ligado ao princípio


da dignidade da pessoa humana, que é elencado como princípio fundamental esculpido no
artigo 1º, inciso III da nossa Carta Magna. Indispensável à configuração do Estado, o princípio
da dignidade da pessoa humana preconiza que o ser humano é merecedor de consideração e
respeito por parte do Estado e visa lhe conferir condições mínimas de existência digna.
Importantíssimo registrar-se as considerações de Ingo Wolfgang Sarlet3, para quem:

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental atrai o conteúdo


de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção
dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à
pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-
á negando-lhe a própria dignidade.

O princípio constitucional à luz da razoável duração do processo que mais ascende é


o da dignidade da pessoa humana, vez que se ocorrer a duração irrazoável do processo, ocorrerá
a violação desse princípio, não se olvidando que quanto mais demorado for o final do processo,
menos será a justiça.
Por isso, é esperado que o Poder Judicial atue com qualidade e celeridade na prestação
jurisdicional, assegurando a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal.

5. COMO MEDIR A RAZOABILIDADE DA DURAÇÃO DO PROCESSO?

Essa vem a ser a preocupação que ronda há muito os tribunais de todo o mundo. A
duração razoável do processo é um conceito vago e indeterminado, porém segue sendo o objeto
dos TEDH e dos Tribunais Constitucionais dos países europeus há mais de 30 anos. Como
também da Suprema Corte Americana, que reconhece que:

O direito a um julgamento célere é um conceito mais vago do que outros direitos


processuais. É, por exemplo, impossível determinar com precisão quando o direito
foi negado. Não podemos dizer definitivamente o quanto pode ser considerado longo
em um sistema em que a justiça deve ser supostamente rápida, mas prudente.

Apesar de reafirmarmos que a razoável duração do processo é um conceito vago e


indeterminado, isso não pode importar na negatividade de efetividade ao direito até porque é
função do Judiciário interpretar conceitos vagos e indeterminados.

3Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008, p. 88-89. 3.
No entanto, a imprecisão desse conceito poderia nos levar à tentação de se entender
necessária a fixação de prazo para se verificar a razoabilidade e o tempo e, por consequência, o
descumprimento destes indicaria a violação do direito. Seria essa uma saída?
Lopes Jr.4 defende que todos têm direito de saber, antecipadamente e com precisão, o
tempo máximo de duração dum processo concerto, justificando ser inerente às regras do jogo.
É uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir
mão. Ou seja, associa-se desta forma a fixação de prazo com a própria natureza democrática do
processo.
Por outro lado, os que defendem a não fixação de prazo, o fazem embasados no fato
de que o tempo é relativo e subjetivo. Assim, quem teria melhor condição de aferi-lo ao
processo? O legislador, que deve atuar de forma genérica e abstrata ou o juiz que atua no caso
concreto?
A Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH) também perfilha o
entendimento de que não é possível fixar um prazo razoável e que os Estados não estão
obrigados a prescrever um prazo fixo.
É certo que estamos tratando de um conceito vago e indeterminado. Mas, nem por
isso se pode tomar por justificativa a imprecisão do texto para se negar efetividade à norma
constitucional, consagrada também em instrumentos internacionais. Igualmente, não se pode
interpretar esse preceito arbitrariamente sem balizar-se em nenhum critério.
A parte de ser uma matéria por demais polêmica, O TEDH como também os
Tribunais Constitucionais de países europeus, buscando dar objetividade na análise da duração
razoável do processo, destaca alguns critérios. Certo é que tais critérios são igualmente
aplicáveis à realidade brasileira. São eles:

1. Analisar a efetiva duração do processo fixando o período a ser considerado;


2. Considerar os critérios objetivos para aferição da razoabilidade do prazo.
3. Pronunciar-se sobre a violação do direito e sobre o pedido formulado.

De toda a forma, a elaboração destes critérios reflete o esforço de se buscar uma


racionalização que permita uma interpretação coerente fugindo à arbitrariedade.

4
Aury Celso Lima Lopes Junior é um jurista gaúcho, graduado em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio
Grande em 1991, especialista em Direito desde 1993 e obteve seu doutorado em Direito Processual Penal pela Universidade
Complutense de Madrid em 1999.
É importante frisar que a importância concreta do processo para os demandantes é um
fator que deve, indubitavelmente, ser considerado pelo Judiciário na aferição de violação do
direito à duração razoável do processo.
Outro ponto importantíssimo de registro são as justificativas levantadas pelo
Judiciário pelos atrasos questionados: o acúmulo do trabalho, a falta de juízes, a legislação
deficiente, o comportamento das partes, problemas estruturais e conjunturais.
No entanto, o TEDH se mostra intransigente com tais justificativas, alegando que ao
consagrarem a Convenção, os Estados devem efetivamente cumprir seus compromissos.
Concluindo, é necessário rigor na avaliação das justificativas sob pena de se negar a
efetividade do direito ao processo em tempo razoável por deficiência estrutural do Estado que
assumiu o dever de garantir a todos este direito fundamental, seja quando depositou sua adesão
ao pacto internacional, seja quando incluiu o inciso LXXVIII do artigo 5º da CRFB/88.
Afinal, como ensina Canotilho5, viu-se nesta fase que a pessoa não tinha apenas o
direito a um processo legal, mas, sobretudo, a um processo justo e adequado, pois o processo
devido deve ser orientado materialmente por princípio de justiça. Não pode o legislador criar
qualquer procedimento para conduzir as pessoas à privação da liberdade e de outros valores.
Por tal razão passou-se a exigir que o processo seja justo, pautado nos valores e
critérios materiais fixados na Constituição. Isso deve ocorrer desde a criação legislativa e os
Juízes, baseados em princípios constitucionais de justiça, poderiam e deveriam analisar os
requisitos intrínsecos da lei, daí o surgimento do judicial review of legislation.

6. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Não se pode deixar de dizer da responsabilidade civil do Estado por violação ao direito
à duração razoável do processo. Contudo, a via indenização do Estado muita das vezes é
insatisfatória, pois o tema ainda é bem tímido no Brasil. Todavia, começam a surgir as primeiras
decisões de responsabilização do Estado por demora injustificada.
A responsabilidade do Estado por demora na prestação jurisdicional não é um tema
simples. E impõe a discussão de dois pontos muito polêmicos: de um lado, a questão preliminar
e geral sobre os limites da responsabilidade do Estado por dano decorrente da prestação
jurisdicional, o que vale ressaltar que dificilmente em nosso ordenamento jurídico se encontrará
tema de maior contraste.

5
CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003. P. 492-494.
E, por outro lado, a questão da responsabilidade do Estado por comportamentos
omissivos dos seus agentes, que resultam na demora na prestação jurisdicional. A regra geral
na matéria, segundo a jurisprudência amplamente majoritária, é a responsabilidade pessoal do
magistrado, ancorada nas regras do direito civil, vale dizer, a responsabilidade subjetiva e direta
do agente público, exigente de demonstração da culpa, referida em diversas disposições
infraconstitucionais.
Segundo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal e pela jurisprudência
majoritária, o Estado somente responde por danos decorrentes da prestação jurisdicional em
hipóteses expressamente indicadas na lei:

1. erro judiciário em condenação penal (CF, art. 5º, LXXV);


2. quando o condenado ficar preso além do tempo fixado na sentença (CF, art. 5º,
LXXV).

Ou seja, jurisprudência nacional admite a responsabilidade objetiva e direta do Estado


apenas na esfera criminal e para decisões definitivas, condenatórias, objeto de revisão penal.
Na ausência de previsão explícita e específica, há irresponsabilidade do Estado.

7. DA PROBLEMÁTICA DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO NAS


DEMANDAS DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-DOENÇA
ACIDENTÁRIO

O objetivo desse trabalho é informar como a dificuldade da aplicação do princípio da


duração razoável do processo, até mesmo pela inexatidão do conceito, prejudica o andamento
das ações de concessão de benefício de auxílio-doença acidentário pela demora na realização
de perícias médicas na Justiça Estadual.
Tal benefício é requerido pelo segurado que sofre um acidente de trabalho, que de
acordo com o artigo 19 da Lei 8213/91 consiste em:

7.1. CONCEITO DE ACIDENTE DE TRABALHO

Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da
empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do artigo
11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte
ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.
Como o acidente de trabalho é um evento de natureza não programada, incorrendo
em perda da capacidade laborativa do trabalhador, e consequentemente de sua subsistência, o
Estado compreendeu a necessidade de amparo a todo trabalhador nessa situação.
E, também por isso, o auxílio-doença acidentário gera a estabilidade provisória de 12
meses quando o empregado retornar ao trabalho de 12 meses, conforme Sumula 378 do TST,
e seu valor corresponderá a 100 % do salário-de-benefício. E conforme preceitua o artigo 129
da Lei 8213/91, a competência para julgamento de lides acidentárias é sempre da Justiça dos
Estados.

7.2. CONCEITO DE INCAPACIDADE

A incapacidade para o trabalho é a impossibilidade temporária ou definitiva do


desempenho das funções específicas de uma atividade ou ocupação, em consequência de
alterações morfopsiquicofisiológicas provocadas por doença ou acidente para o qual o
examinado estava previamente habilitado e em exercício. O risco de vida para si ou para
terceiros, ou de agravamento, que a permanência em atividade possa acarretar, está
implicitamente incluído no conceito de incapacidade, desde que palpável e indiscutível.
O conceito de incapacidade deve ser analisado quanto ao grau, à duração e à profissão
desempenhada. Ou seja, para fazer jus ao benefício do auxílio-doença acidentário tem de se
estabelecer o nexo causal entre a incapacidade e a atividade laborativa do trabalhador. E esse
nexo causal é feito através de perícia médica.
Nesse trabalho nos deteremos apenas nas perícias médicas incidentes nas ações
judiciais para obtenção do auxílio-doença acidentário na Justiça Estadual, cujo maior entrave é
justamente a demora na sua realização.
Como sabemos, a demora na prestação da tutela jurisdicional pode proporcionar
graves danos àqueles que necessitam se socorrer ao Estado-Juiz, cujo objetivo é obter êxito na
pretensão, principalmente as pessoas mais necessitadas de recursos financeiros e as detentoras
de interesse legítimo.
Em resposta a tal morosidade, o Novo Código de Processo Civil em seu art. 4º inseriu
nova redação , já previsto no inciso LXXVIII no art. 5º da Constituição Federal de 1988, que
assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação.
No entanto, a resolução do problema da morosidade não passaria apenas pela criação
do princípio da razoável duração do processo, mas sim pela elaboração de mecanismos
eficientes que sejam passíveis de tornar tal princípio efetivo.
E assim, a situação mais comum de quem se socorre do Poder Judiciário para fazer
valer o seu direito à concessão do referido benefício, devido à demora entre a realização das
perícias na Justiça Estadual, é a angústia por não poder trabalhar, face a sua incapacidade; o não
recebimento do salário do empregador e ainda, em razão da demora, o não recebimento do
benefício da Previdência Social.

7.3. A DEMORA DAS PERÍCIAS MÉDICAS

O que acontece hoje é que após o ajuizamento da ação, o juiz determina a perícia
médica para se constatar a incapacidade alegada. E isso, por suposto leva algum tempo. Depois
de realizada, o juiz novamente determina outra perícia para o estabelecimento do nexo causal
entre a incapacidade e a atividade laborativa do trabalhador, para que ocorra a concessão o
restabelecimento ou manutenção do benefício decorrente de acidente de trabalho. E,
infelizmente, isso também leva outro tanto de tempo.
Enquanto isso, o trabalhador está sem trabalhar por conta de sua incapacidade, sem
receber do empregador, pois a ele não lhe compete mais essa obrigação, vez que está por conta
do INSS, que também não lhe paga a espera da sentença do juiz.
Ou seja, o trabalhador está totalmente à deriva, sem capacidade de subsistência
própria e de sua família. É uma realidade estrutural que acaba por causar grave prejuízo aos
segurados.

7.4. CONCESSÃO, RESTABELECIMENTO OU MANUTENÇÃO

Os pedidos de ações de auxílio-doença acidentário podem ser de concessão, de


restabelecimento ou de manutenção do benefício. Veremos a seguir cada uma das situações.
Concessão: nos casos de indeferimento de pedido de auxílio-doença acidentário pelo
INSS, após a perícia médica não atestar a incapacidade, pode o trabalhador recorrer ao Poder
Judiciário.
Restabelecimento: quando ocorre do INSS dar alta a um segurado, embora
persistindo sua incapacidade, o segurado, depois de pedido de prorrogação ou de
reconsideração indeferido, também está apto a ajuizar ação judicial.
Manutenção: o objetivo desse pedido é evitar o término do auxílio doença antes da
melhora do estado clínico do segurado, submetendo-o a nova avaliação para que o perito
médico do INSS possa considerar a necessidade da continuidade do afastamento do trabalho.
No entanto, é comuníssimo nos dias de hoje, que a data da nova perícia normalmente ultrapasse
o prazo previsto para o fim do benefício. E, aí, entende o INSS que o segurado deve ficar sem
receber o benefício até que tal perícia possa ser realizada, independente do tempo de espera.
Dado o caráter alimentar do benefício, ao trabalhador não lhe resta alternativa a não ser ir ao
judiciário. Muito embora, lá também haverá espera, apesar de menor.

7.5. CAUSAS DA OBTENÇÃO DO AUXÍLIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO: DOENÇAS


OCUPACIONAIS

As doenças ocupacionais são aquelas deflagradas em virtude da atividade laborativa


desempenhada pelo individuo, que resultando de constante exposição a agentes físicos,
químicos e biológicos, ou mesmo do uso inadequado dos novos recursos tecnológicos, como
os da informática. Dividem-se em doenças profissionais e doenças do trabalho.

7.5.1. DOENÇAS PROFISSIONAIS

Classificam-se como decorrentes de situações comuns aos integrantes de


determinada categoria de trabalhadores, relacionadas como tal no Decreto 3.048/99, Anexo
II, ou caso comprovado o nexo causal entre a doença e a lesão, aquela reconhecida pela
Previdência, independente de constar da relação. As doenças profissionais são chamadas de
idiopatias, tecnopatias ou ergopatias.

7.5.2. DOENÇAS DO TRABALHO

São aquelas adquiridas ou desencadeadas em função de condições especiais em que


o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, estando elencadas no Anexo II do
Decreto 3.048/99, ou reconhecidas pela Previdência. As doenças do trabalho são
denominadas mesopatias.
A prevenção no caso deve ser baseada na limitação do tempo de exposição (duração
da jornada e concessão de pausas regulares), na alteração do processo e organização do trabalho
(evitando excessos de demanda) e na adequação de máquinas, mobílias, equipamentos e
ferramental do trabalho às características ergonômicas dos trabalhadores.
Nas doenças ocupacionais não existem violência nem subtaneidade (como no
acidente de trabalho típico), pois as doenças são previsíveis e não dependem de evento violento
e súbito; são as contingências do trabalho desempenhado ao longo do tempo que estabelecem
o nexo causal entre a atividade laborativa e a doença.

7.6. COMUNICAÇÃO DA EMPRESA

Segundo o art. 22 da Lei 8.213, é obrigação da empresa comunicar o acidente do


trabalho à Previdência Social até o 1º (primeiro) dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso
de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o limite
mínimo e o limite máximo do salário de contribuição, sucessivamente aumentada nas
reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social.
A comunicação não exime a empresa de responsabilidade pela falta do cumprimento
do disposto neste artigo. A multa, contudo, não se aplica na hipótese do caput do art. 21‑A da
lei 8.213/91.
Dessa comunicação receberão cópia fiel o acidentado ou seus dependentes, bem como
o sindicato a que corresponda a sua categoria.
Na falta de comunicação por parte da empresa, podem formalizá‑la o próprio
acidentado, seus dependentes, a entidade sindical competente, o médico que o assistiu ou
qualquer autoridade pública, não prevalecendo nestes casos o prazo previsto neste artigo.
Os sindicatos e entidades representativas de classe poderão acompanhar a cobrança,
pela Previdência Social, das multas previstas neste artigo. A multa de que trata este artigo não
se aplica na hipótese do caput do art. 21-A da lei 8.213/91.

8. A PRECÁRIA CONDUÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO E


JUDICIAL PARA CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS

Embora o foco desse trabalho seja o processo judicial, é bom que se diga que a
precariedade na concessão do benefício de auxílio-doença acidentário por incapacidade laboral,
tanto na esfera administrativa quanto na judicial se deve a demora extrema no agendamento de
perícias médicas. O resultado disso, é a afronta aos direitos fundamentais dos segurados, que
são privados de seu trabalho, e ao mesmo tempo da proteção estatal em forma pecuniária,
seguro social devido a este tipo de risco social.
A solução seria na esfera administrativa tornar obrigatório o deferimento inicial pelas
agências de previdência de todo país tendo por base os pareceres dos médicos assistentes. Uma
vez que pela ausência de efetivo necessário nas agências da Previdência Social, que não
possuem um número de peritos-médicos suficientes para atender, as filas de segurados doentes
se tornam gigantescas.
Em 2012, foram as agências do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) do
Paraná as que mais demoram no país para analisar os pedidos de aposentadoria, auxílio-doença
e auxílio-maternidade, entre outros. Segundo dados do Boletim Estatístico da Previdência
Social, de dezembro de 2011, 47% dos benefícios solicitados naquele mês demoraram mais de
45 dias para serem examinados – quase o dobro da média nacional, que foi de 25%. O que vai
de encontro ao estabelecido no próprio Decreto 3.048/99 do INSS, que estipula que a primeira
parcela do benefício solicitada pelo trabalhador seja paga em até 45 dias após a entrega da
documentação exigida.
Não à toa, o INSS aparece como litigante (uma das partes do processo) em 43,1% das
ações em trâmite na Justiça Federal do país, conforme pesquisa do Conselho Nacional de
Justiça6.
O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) é o maior litigante do País nas justiças
Estadual e Federal. Isso significa que o órgão participa da maior fatia do total de processos,
4,38%, ingressos na Justiça Comum e nos Juizados Especiais, entre janeiro e o fim de outubro
de 2011, último dado disponível. Ao todo são 56 tribunais espalhados pelo País, que integram
o SIESPJ (Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário). Somente na Justiça Federal, o INSS
liderou com 34,35% das ações. A segunda posição nesta área é da Fazenda Nacional, que detém
12,89% dos processos. Os dados são da pesquisa Os 100 maiores litigantes 2012, publicada
pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Boa parte dos processos em tramitação são recursos do INSS contra decisões
favoráveis a trabalhadores que reivindicam benefícios, especialmente aos relacionados a
auxílio-doença. Levantamento do instituto revela que só no Grande ABC, entre janeiro e maio,
as agências da Previdência Social realizaram 75.992 perícias médicas. Sendo elas iniciais ou
recorrentes.

8.1. PERÍCIAS MÉDICAS

Como vimos acima, não vencida a etapa na área administrativa, recorre o trabalhador
à esfera judicial. Aqui, o maior empecilho no processo judicial é a desnecessidade de duas

6
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/
perícias médicas para o estabelecimento do nexo causal entre a incapacidade e a atividade
laborativa do trabalhador. Para que, assim, seja deferida a concessão, restabelecimento ou
manutenção do auxilio-doença acidentário.
O tempo percorrido entre essas duas perícias é longo, fazendo com que a duração do
processo também seja longa. E como se pode aplicar o princípio da duração razoável do
processo num caso assim? Por certo, que como discutido acima a aplicação desse princípio, por
conceito aberto e indefinido, é um desafio aos aplicadores do Direito.
A sugestão abordada nesse trabalho seria de reduzir a uma perícia médica, isto é, logo
na primeira perícia deferida no processo, o perito atestaria a incapacidade e sua conexão com a
atividade laborativa do trabalhador, ou seja, o nexo causal.
Assim, se reduziria o tempo de duração do processo. Não podemos esquecer que esse
trabalhador nesse momento está sem salário do empregador, sem o benefício do INSS e sem
poder trabalhar pela incapacidade.
Na lista de soluções para reduzir a litigiosidade crescente e desatravancar os fóruns e
tribunais brasileiros que julgam ações contra o INSS está o uso do processo coletivo, instaurado
por meio de ações civis públicas, apto a reduzir de forma considerável as milhões de demandas
individuais que discutem questões meramente de direito.

CONCLUSÕES

A evolução dos direitos fundamentais confirma que não mais se pode falar em
liberdade e igualdade sem a existência dos pressupostos materiais que viabilizem tais direitos,
surgindo a necessidade de assegurar meios que possibilitem seu exercício.
Há uma preocupação do Novo Código de Processo Civil em, mais que agilizar,
entregar à demanda um laudo conclusivo para elucidar a causa em questão e entregar a justa
prestação jurisdicional no menor tempo possível. E é justamente disso que trata esse trabalho.
A perícia no Novo Código de Processo Civil é tratada nos artigos 464 a 480 e é aquela
que conta com um especialista em determinada área técnica (perito) para esclarecer certo fato
que interessa à demanda. E se destacam quatro novidades de maior interesse prático: produção
de prova técnica simplificada; apresentação de currículo do perito; perícia consensual; e
requisitos do laudo pericial.
Sem dúvida alguma, trata-se de importante inovação do NCPC, a permitir a
desburocratização em demandas nas quais, embora exista a necessidade da prova técnica, a
baixa complexidade envolvida em nada justifica que as partes se sujeitem à demorada e custosa
produção da prova pericial nos moldes tradicionais, tal como previstos atualmente.
Igualmente importante é ressaltar a necessidade imperiosa, agora prevista em lei, de
que o perito, no prazo de cinco dias de sua nomeação, junte aos autos, além da sua proposta de
honorários e dos seus contatos profissionais, também o seu currículo atualizado com a devida
comprovação de sua especialização, sob pena de substituição, conforme disposto no artigo 462,
parágrafo 2º, inciso II e artigo 468, inciso I do NCPC. O que é muito alvissareiro, pois que não
raro se vê na prática a nomeação de peritos não especialistas na matéria objeto de controvérsia
entre as partes.

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 492-
494.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29.ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p.537-567.

MACHADO, Edinilson Donisete; NAHAS, Thereza Christina; PADILHA, Norma Sueli. Gramática dos Direitos
Fundamentais. 1.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p.21-44.

NICOLITT, André. Razoável Duração do Processo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2014. p.15-40.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 256.

REALE JR., Miguel. Valores Fundamentais da Reforma do Judiciário. Revista do Advogado. vol.24. n.75. p.78-
82. São Paulo: IASP, 2004.
Grupo de Trabalho 15

ENSINO JURÍDICO HOJE

mxxx
O DIREITO E O ENSINO JURÍDICO
SOB A PERSPECTIVA DE MICHEL MIAILLE
E A RECONFIGURAÇÃO DA CIÊNCIA JURÍDICA
A PARTIR DAS OCUPAÇÕES DAS ESCOLAS PÚBLICAS

ABREU, Angélica Kely


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito UFF
Bolsista Capes

RESUMO

O presente estudo objetiva realizar uma abordagem crítica sobre o direito e o ensino jurídico, para tanto,
utilizaremos Michel Miaille e faremos um diálogo entre a emergência de um ensino do direito
transdisciplinar e a necessidade de uma ciência jurídica que coadune prática e teoria com os fenômenos
sociais, isto é, faremos um paralelo entre as críticas de Miaille quanto ao estudo jurídico ofertado nas
instituições de ensino, com os apontamento de Marilena Chauí de um ensino tecnológico e mercantil.
Para percebemos que o direito pode ser entendido e estudado com algo alternativo, distante do que os
manuais impõem, traremos para o debate as ocupações das escolas públicas como lugar onde houve um
estudo crítico do direito, da democracia e da cidadania, na tentativa de ilustrarmos a partir de uma
abordagem empírica como lugares comuns (não tão acadêmico) podem realizar verdadeira explicação
do que é o direito.

Palavras-Chave. Análise crítica do direito; obstáculos epistemológicos; ciência jurídica.

ABSTRACT:

This study aims to make a critical approach to law and legal education, therefore, we will use Michel
Miaille and make a dialogue between the emergence of a school of transdisciplinary law and the need
for a legal science that incorporates practice and theory with social phenomena, that is, we will make a
parallel between the critical Miaille as the legal study offered in educational institutions, with the
appointment of Marilena Chauí a technological and commercial education. To realize that the right can
be understood and studied with something alternative, distant than manual impose, we will bring to the
debate the occupations of public schools as a place where there was a critical study of law, democracy
and citizenship in the try of illustrate from an empirical approach as ordinary places (not so academic)
can hold true explanation of what is right.

Keywords. Critical analysis of the law; epistemological obstacles; legal science.

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ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Este trabalho é um estudo sobre a análise crítica do direito realizada sob a perspectiva
de Michel Miaille (1994). Objetivamos compreender as características das ciências jurídicas,
reconhecendo seus fins e seu lugar como uma instância de um “todo complexo com dominante”
(Miaille, 1994), que se afasta das conceituações abstratas - e se formos mais longe, de cunho
liberal e positivista - que ainda são comumente ensinadas nos cursos e programas de introdução
ao direito.
O estudo do direito apresenta-se como tema de diversas teorias. Dessa forma, diversos
apontamentos sobre as influências sofridas pelos estudos das ciências jurídicas são realizados
na busca pela compreensão da epistemologia destas (epistemologia no sentido de conhecimento
científico) é esse o objetivo principal desta pesquisa: que o direito seja estudado a partir de
concepções científicas, distanciando-se de concepções abstratas que normalmente o circulam.
Para realizar um estudo sobre as ciências jurídicas realizaremos um diálogo entre a
teoria de Miaille com alguns fenômenos sociais, em especial, as ocupações das escolas públicas.
Na tentativa de promover um conhecimento do direito para além do senso comum, tão presente
nos manuais utilizados nas instituições de ensino, questionaremos, portanto, de qual forma o
direito pode se apresentar em uma roupagem mais humanista, conforme ensina Roberto Lyra
Filho: “um direito vivo que não se deixe matar pela dogmática” (FILHO, 1981, p.7).

1. OS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS NO ESTUDO DA CIÊNCIA


JURÍDICA

Miaille inicia sua obra com o conceito de obstáculo epistemológico que são
obstáculos objetivos interligados às condições históricas nas quais a investigação científica se
realiza. Com isso, preleciona que a ciência jurídica se esbarra com tais obstáculos que são
estudados a partir das características da sociedade francesa. O autor realiza a análise do trabalho
sob três eixos:

[...] a falsa transparência do direito ligada a uma dominação do espírito positivista em


França desde há mais de um século; o idealismo profundo das explicações jurídicas,
consequência de uma forma de pensamento que é em muito maior escala a das
sociedades submetidas a um regime capitalista; finalmente, uma certa imagem do
saber onde a especialização teria progressivamente autorizado as compartimentações
que constatamos atualmente. (MIAILLE, 1994, p. 38)

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A falsa transparência do direito para autor é a simplicidade na qual as obras jurídicas


se inserem: “os autores contentam-se em deitar uma olhadela sobre as instituições jurídicas da
nossa sociedade para dela extrair o conhecimento, a ciência do direito”. O autor defende a
necessidade de se conceber o direito através de sua própria experiência.
Miaille tece críticas no sentido de que as regras jurídicas não possuíam autonomia e
se interligavam à teologia (sob uma perspectiva histórica). Desse modo, as regras do direito
seriam uma extensão da vontade de Deus, ou seja, estariam subordinadas a essas. Havia,
portanto, uma abstração metafísica da qual o conhecimento do direito precisava se libertar. Urge
a necessidade de um estudo do direito objetivo que se desconecte ao ideal e à influência da
Igreja Católica.
O empirismo apresenta-se, diante de uma forte ligação entre o direito e as catedrais,
como uma forma de promover um estudo científico através do qual o conhecimento seja
resultado da experiência. Há a necessidade de constituir um conhecimento através do resultado
da observação, das experiências que o próprio direito possa revelar. Assim, a experiência e a
observação tornam-se técnicas indispensáveis para o conhecimento do direito. Dessa forma, a
ciência jurídica precisa ultrapassar a esfera da metafísica, da teologia, ao passo que a
experiência seja constituída para além da observação com aporte dos conceitos teóricos. A
partir dessa observação, o direito criaria um caráter positivista e, por isso, o estudo do direito
passa a ser relativo às regras e limitando-se a elas.
O positivismo apresenta-se como um pensamento contrário ao jusnaturalismo. Este,
por sua vez, é a doutrina que visa estudar origem do direito a partir da Natureza, além de
entender que há direitos naturais que se sobressaem em relação a outros direitos. A teoria
positivista para Miaille não é apenas uma substituição da teoria jusnaturalista, e sim uma
necessidade advinda da “evolução geral da sociedade francesa” (MIAILLE, 1994, p. 44). Como
já mencionamos, Miaille realiza seus estudos a partir da sociedade francesa, havendo diversos
apontamentos em sua obra sobre ela.
Objetivamos promover, como já informamos, uma pesquisa sobre os obstáculos que
impedem o estudo das ciências jurídicas, os quais o autor denomina de obstáculos
epistemológicos. A assimilação de ideias recebidas (pré-noções), por exemplo, sem o
questionamento, ou seja, sem o estudo de seu funcionamento é um dos obstáculos
epistemológicos. É necessário ver para além do direito positivo e se atentando para sua
experiência e para sua especificidade, como já suscitamos.

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Além disso, o idealismo jurídico também se afigura como obstáculo epistemológico.


Tal idealismo causa uma sobreposição da filosofia sobre o materialismo, ou seja, a explicação
do mundo está no campo das ideias. Em paralelo ao mundo jurídico, os juristas realizam o
idealismo quando ignoram o contexto social de um caso concreto e subordinam esse ao seu
pensamento soberano.

[...] a atitude dos juristas resulta de as noções de direito serem sempre apresentadas e
tratadas, nos fatos, fora de um contexto social preciso: o jurista não nega a existência
e o peso das estruturas sociais, subordina-as ao seu sistema de pensamento. Estes
mecanismos intelectuais conduzem a resultados desoladores: os fenômenos, por
vezes os mais evidentes, perdem-se, enquanto que as ideias se tornam o fundamento
da realidade. A introdução ao direito não é senão sempre a aprendizagem insidiosa
desta inversão de perspectivas (MIAILLE, 1994, p. 38).

O idealismo, por sua vez, é uma abstração a partir da representação de alguma coisa,
sendo, portanto, uma abstração ideológica. Em contrapartida, quando se há uma abstração a
partir de uma explicação tem-se uma abstração científica, isto é, noções produzidas de acordo
com os métodos próprios.
Em relação ao mundo jurídico, a partir da percepção de uma abstração ideológica e
uma abstração científica, a ciência jurídica se apresenta como uma imagem do mundo do
direito, quando deveria ser uma explicação.
A ciência jurídica para Miaille (1994), na forma como é ensinada, se funda apenas
nas instituições e nas noções criadas pela sociedade para representar uma ordem social.
Apresenta-se, assim, o Estado que tenta promover a ordem da desordem. E para manter uma
vida social em uma sociedade desigual e dividida em classe criam-se noções que são
representações do mundo real: o idealismo.
Nesse contexto de representação do mundo real surge a ciência jurídica que “vai
tomar como certa a imagem que lhe transmite a sociedade e tomá-la pela realidade”
(MIALLE, 1998, p. 51). Desse modo, temos um ciclo em que a sociedade cria noções que a
representam e as representações se explicam por elas próprias. Como informamos, tudo
constitui abstrações ideológicas, representações.
A noção de direito não se relaciona com o fenômeno social que a produziu, mas com
as idealizações da sociedade: a representação da vida real. Assim os juristas tornam-se grandes
idealistas que reproduzem uma representação da vida e não a explicação e abordagem científica
das noções que os circundam. Surge assim, um universalismo a-histórico e um pluralismo de
explicações.

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A universidade de direito, por exemplo, se acomete por esse idealismo: há uma


pluralidade de explicações que na verdade se remetem a uma unicidade de posição, pois utiliza-
se, majoritariamente, a “melhor teoria” que em regra é aquela que o professor aponta ser a
melhor.
Além dessa unicidade de posição que gera um pluralismo de explicação, que é
marcado por técnicas de oratória e não por pluralidade teórica, há a unidade de pensamento que
dificulta a criação de uma ciência jurídica autêntica e independente.
Para estudar o direito é necessário um aprofundamento das regras jurídicas que
coadune com o estudo das relações econômicas, sociais que influenciaram no seu
desenvolvimento. Miaille (1994) tece crítica sobre o conhecimento “tecnológico” do direito e
reforça a necessidade de interação das ciências jurídicas com matérias entendidas como
complementares: história, sociologia, entre outras.
Contudo, a maioria das faculdades de direito reforçam o isolamento deste. Muito
embora houvesse a necessidade de uma interdisciplinaridade existem obstáculos para sua
concretização frente à visão egocêntrica do jurista, que reforça o isolamento do direito e sua
incomunicabilidade com outras áreas que contribuiriam com o seu desenvolvimento de uma
maneira mais criativa. A estrutura universitária cria um obstáculo epistemológico. O direito é
estudado e apreendido por si, na forma de um hermetismo fechado, que desloca as demais
disciplinas para as margens da produção sobre esse campo do saber, o que acarreta a já
mencionada visão tecnicista do direito.
Nesse sentido, embora necessária, é importante enfatizar que a interdisciplinaridade
não é suficiente para se buscar uma ciência menos dogmática do direito. Nesse caso, Miaille
apresenta como possível caminho a transdiciplinaridade, ou seja, “a ultrapassagem das
fronteiras atuais das disciplinas” (MIALLE, 1998, p. 61), no sentido de romper com a divisão
do saber. Em outras palavras, a necessidade de ter um direito que se comunique com outras
matérias como sociologia e economia, pois todas advêm de uma mesma teoria que é a história.

Ora o que eu proponho mostrar é que direito e economia, mas também política e
sociologia, pertencem a um mesmo continente, estão dependentes da mesma teoria,
a da história. É que direito e economia podem ser reportados ao mesmo sistema de
referências científicas. Para admitir esta nova perspectiva é necessário abandonar o
mito da divisão natural do saber. Este mito não é de papel: é um obstáculo, na medida
em que é preciso forçá-lo, a fim de se conseguir obter os meios de traçar um caminho
científico. (MIAILLE, 1994, p.62).

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Miaille (1994) defende que para termos um estudo científico do direito precisamos
ultrapassar três obstáculos: transparência do objeto de estudo, o idealismo tradicional da análise
jurídica, a convicção da necessidade de isolamento do direito.

Resumamos as conclusões às quais chegávamos agora. Para desenvolver um estudo


científico do direito, temos de forçar três obstáculos tanto mais sólido quando mais
naturais aparecem: a aparente transparência do objeto de estudo, o idealismo
tradicional da análise jurídica, a convicção, finalmente, de que uma ciência não
adquire o seu estatuto senão isolando-se de todos os outros estudos. O
reconhecimento destas dificuldades conduz-nos desde logo a afirmar que temos de
construir o objeto de nosso estudo – e não deixarmos-nos impor a imagem que o
sistema jurídico veicula consigo –, subverter totalmente a pespectiva idealista e
fracionada do saber que domina atualmente. Como facilmente se pode constatar, a
revelação destes obstáculos, quer dizer, a denúncia dos erros que eles fazem pensar
não reveste o caráter gratuito de uma simples crítica negativa: leva-nos positivamente
a constituir de outra maneira a ciência do direito. A crítica radical desta ciência abre-
nos a via de novas hipóteses científicas (MIAILLE, 1994, p.62).

Desse modo, torna-se necessária a construção da ciência jurídica com objetividade,


na medida que seja revestido de cientificidade e não apenas uma representação ideológica. Para
Miaille (1994), os juristas não conseguem realizar a distinção entre objeto de ciência e objeto
real, isto é, um objeto de estudo que reflita o objeto real ao mesmo tempo que realize um estudo
de forma explicativa e não representativa (tais conceitos já foram trabalhados anteriormente).
Os juristas precisam reconhecer que seu estudo é, na verdade, não apenas uma
representação da sociedade, mas um conhecimento sobre as sociedades e as suas
transformações na história, que não poderiam ser bem compreendidas pelo empirismo, nem
mesmo pelo idealismo.

2. A INFLUÊNCIA DA TEORIA MARXISTA NO ESTUDO DAS CIÊNCIAS


JURÍDICAS

O autor defende que a confluência entre prática e teoria leva a uma emancipação, com
isso, procura na teoria marxista a referência para o desenvolvimento de seu estudo sobre as
ciências jurídicas. Não adentraremos, especificamente, na obra de Marx, mas essa teoria
inaugurou uma nova forma de estudo na qual o seu objeto é visto não apenas através de seu
resultado. Assim, para compreendermos o direito precisamos de um estudo prévio da história,
ou seja, “a renovação do estudo do direito não é senão através de uma formulação
completamente nova do estudo da sociedade e das suas transformações na história” (MIAILLE,
1994, p.68).

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A novidade da abordagem de Marx no que diz respeito ao direito não consiste no fato
de ele o tratar como um fenômeno social: estão todos de acordo, os juristas inclusive,
que o direito é um produto da sociedade – ubi societas, ibi jus – onde há sociedade
também há direito, é uma dessas máximas que florescem em todos os manuais – de
preferência na sua formulação latina, o que dá aparentemente mais autoridade. O que
Marx traz de novo é que em vez de deixar esta ideia de produção social inerte, sem
consequências, integra todos os manuais mais autoridade (MIAILLE, 1994, P. 68).

Dessa maneira, para uma cientificidade das ciências jurídicas precisa-se entender “que
tipo de direito produz tal tipo de sociedade e porque é que esse direito corresponde a essa
sociedade” (MIAILLE, 1994, p.68).
Observamos a necessidade de um estudo de direito mais crítico que se distancie de
uma abordagem tecnicista baseada em manuais de juristas que impõem seus pensamentos e
estes se afiguram como a representação da sociedade.
Miaille (1994) desmistifica o conceito de modo de produção criado por Marx, que
não pode ficar restrito ao significado unilateral econômico, e o conceitua como a maneira como
uma sociedade se organiza para produzir a vida social.
O autor sugere que a partir do conceito de modo de produção podemos compreender
o lugar ocupado pelo sistema jurídico na vida social. Dessa forma o direito não estaria
respaldado apenas por si próprio (o direito é o direito) que seria uma percepção positivista, bem
como escaparia do idealismo (o direito é a expressão da justiça).
A explicação do direito não por si mesmo se torna possível a partir do conceito de
modo de produção trazido por Marx, que permite compreender a organização social e o sistema
jurídico. Miaille faz uma análise do conceito “produção social da existência” desenvolvida por
Marx, entendendo que a produção social da existência significa que “a vida social nunca é uma
vida dada pela natureza, pelo ambiente, mas sim que é sempre construída pelos homens, e
construída na totalidade dos seus elementos tanto materiais como espirituais” (MIAILLE, 1994,
p. 70). Reforça, contudo, a ideia de que essa produção ocorra de forma organizada, utilizando-
se de métodos próprios.
Por outra perspectiva, a vida do indivíduo ultrapassa o seu poder individual de
organizá-la, pois é influenciada, ou melhor, organizada pela sociedade por estruturas a ela
pertencentes, seja a econômica, jurídica ou política. A partir do conceito de modo de produção
teria como estrutura de base a economia, e como superestruturas a política, o jurídico e
ideológica. O autor faz um alerta sobre o cuidado de não se criar interpretações um tanto quanto
simplista de tal afirmação, pois a vida social se apresenta de forma complexa.

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As relações sociais são determinadas por múltiplos mecanismos da sociedade, como


já mencionamos, tais mecanismo vão desde a economia até as ideologias e para o
reconhecimento destes é imprescindível o reconhecimento do lugar, dos laços, dos canais onde
se realizam os fenômenos sociais. Assim, a sociedade seria um todo estruturado, através de base
e superestruturas, dividida em três níveis: o nível econômico (base), o nível jurídico e político
e o nível das formas de consciência sociais que seriam as representações, ou seja, um nível
ideológico. A estrutura da sociedade estaria dividida na base econômica e nas superestruturas
jurídico e político e ideológico. Elas se estruturam de forma autônoma: “cada instância possui
uma certa autonomia na medida em que participa no funcionamento global com a sua própria
lógica, os seus próprios mecanismos, as suas próprias instituições” (MIAILLE, 1994, p. 74).
Mas essas instâncias se comunicam e não são independentes.
Miaille (1994) preocupa-se com um estudo da teoria marxista não somente pela
perspectiva econômica e tece comentários sobre teorias da obra de Marx divididas em teorias
materialistas e teorias voluntaristas. As materialistas realizam o estudo marxista sobre uma
perspectiva da supervalorização da estrutura de base, ou seja, do conteúdo econômico. Já a
teoria voluntarista faz o estudo da teoria de Marx com a supervalorização das superestruturas,
ou seja, jurídica-política e ideológica.
Os economistas (materialistas) ressaltam dessa forma a instância econômica, já os
voluntaristas realizam seus estudos a partir da percepção da vontade da classe dominante.
Miaille (1994) propõe uma análise do modo de produção a partir de uma causalidade estrutural
não sendo “o nível econômico, político ou ideológico que explica este ou aquele gesto que faço,
é a estrutura complexa das causalidades e, portanto, das explicações científicas” (MIAILLE,
1994, p.80). Essas estruturas complexas da causalidade fazem com que, na esfera individual,
por exemplo, a natureza na sua materialidade (existência) oponha-se à ação do indivíduo, assim
ensina Miaille:

É a constatação que Marx traduz pelo termo materialismos: há, fora de mim, uma
realidade que não esperou a minha ação ou a minha reflexão para se manifestar. Esta
constatação é de todo cientista. É simplesmente testemunho da necessidade que o
espírito tem de reconhecer a existência e a oposição da matéria. Não há aí nenhuma
declaração acerca do primado da matéria sobe o espírito. Esta seria de natureza
filosófica: não teria qualquer sentido num estado científico. (MIAILLE, 1994, p. 80-
81).

O que Marx propõe de acordo com Miaille é uma construção do pensamento


científico com a relação do objeto e do sujeito, na qual a existência de um depende da existência

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do outro. O pensamento apresenta-se então como uma reflexão do real a partir de percepções
formuladas em conceitos.
O pensamento não deve realizar uma apropriação da realidade e estudá-la de forma
isolada. Como já discutimos, esse isolamento, no caso das ciências jurídicas, torna-se um
obstáculo epistemológico que dificulta uma explicação científica do direito, o qual precisa ser
estudado a partir da história, da sociologia de modo com que haja uma transdisciplinaridade.

A função do pensamento é precisamente apropriar-se do real, não refletindo


passivamente este real (hipótese do realismo ou do materialismo vulgar), não
funcionando de modo isolado (hipótese do idealismo, mas como produto da
elaboração das percepções e das representações em conceitos). O real aparece então
como um todo pensado, um concreto-pensado (MIAILLE, 1994, p.81).

Desta feita, precisa ser vigilante para que o pensamento científico não utilize como
verdades imagens criadas pelo sistema ideológico do indivíduo. Contudo, o indivíduo sofre
influência direta da sociedade, de modo que não passa ileso pelos reflexos das instâncias
econômicas, políticas, jurídicas, em uma palavra, ideológicas.

3. AS CARACTERÍSTICAS DA INSTÂNCIA JURÍDICA

Nesse ponto, o autor realiza uma distinção do sentido do termo direito. Até aqui
utilizava-se direito como um sistema de regras, daqui para frente será utilizado como instância
jurídica. Desmistifica a ideia de um direito imutável e blindado à interferências externas ao seu
campo. Adota-se a percepção de uma instância jurídica que faz parte de um todo e, portanto,
não é dotada de uma autonomia absoluta do modo de produção a qual se insere.

O próprio termo indica que se trata de uma parte de um todo e que portanto não tem
valor ou não é compreensível senão em função deste todo; mas, por outro lado,
significa que este todo, sendo um dos modos de produção teoricamente definidos, dá
a esta instância um lugar, uma função, um eficácia particular. Funcionando o sistema
de regras jurídicas de modo diferente segundo os modos de produção, é pois
necessário abandonar radicalmente a imagem de um fenômeno jurídico que
atravessaria as épocas e as sociedades, sempre igual a si próprio (MIAILLE, 1994, p.
84).

O que propõe o autor nesse tópico é um debate sobre a introdução à instância jurídica
no seio de uma sociedade dominada pelo modo de produção capitalista. Entende-se que as
discussões dos autores das doutrinas tradicionais sobre a definição do direito são genéricas que,

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parafraseando Fernando Pessoa, passam a ser um pedaço de papel pintado com tinta onde há a
indistinta distinção entre nada e coisa alguma, isto é, meras confirmações do senso comum.

4. ANÁLISE CRÍTICA DAS DEFINIÇÕES DO DIREITO

Os manuais de direito buscam a definição da ciência jurídica a partir da distinção aos


“sistemas de obrigações ” (MIAILLE, 1994), ou seja, a moral, a religião, os costumes e os usos.
O autor realiza uma crítica sobre o conceito do dever ser do direito, pois para ele o objeto do
estudo da ciência jurídica é saber o que é a regra do direito, não o que ela deve ser. O que se
encontra nas doutrinas é uma replicação do senso comum.
Assim, o erro se inicia ao tentar tecer uma explicação do direito a partir do conceito
de dever ser ou de sanção (uma coação exercida por meio da força advinda do Estado). Um
sistema jurídico não tem sua existência condicionada a uma sanção repressiva.

Assim, a ideia de que a sanção-repressão é característica do direito é totalmente falsa.


O erro metodológico é portanto grave: não se pode definir cientificamente um
fenômeno pelas suas consequências senão quando elas aparecem ligadas ao
aparecimento do fenômeno (MIAILLE, 1994, p. 89).

Outro erro para a conceituação do direito é o entendimento de que norma é uma


obrigação, um imperativo. No sentido denotativo, norma significa medida. Para Miaille a
norma é um instrumento de medida que institui pessoas, que estabelece um sistema de ligações,
um sistema de relações que cria papéis, possibilidades, lugares para cada indivíduo. As normas
são, portanto, as medidas dessas relações sociais marcadas pelas distinções, como informamos,
de papéis, possibilidades, lugares.
Precisamos compreender também a relação da norma e a pessoa, como propõe o
autor. Para tanto, há uma aproximação da relação da mercadoria na esfera econômica com a
norma na esfera pública.
A mercadoria da esfera econômica faz com que as relações sociais que organizam a
produção e a circulação desapareçam. A mercadoria apresenta-se em um plano econômico que
a matéria e a riqueza se sobressaem às relações individuais, tudo se coisifica.

O feitichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único do


direito, faz esquecer que a circulação, a troca, e as relações entre pessoas são na
realidade relações entre coisas, entre objetos, que são exatamente os mesmos da
produção e da circulação capitalista (MIAILLE, 1994, p.94).

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Em paralelo ao mundo do direito, as relações se dão como se passasse entre as


pessoas, mas em sentido hierárquico, entre os subordinadores e os subordinados, e tudo se
apresenta como originado por decisões, por uma Razão, “jamais aparece a densidade de
relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas
constrangedoras mais invisíveis” (MIAILLE, 1994, p. 94). Ou seja, o sistema jurídico em nossa
sociedade capitalista afigura-se por formas abstratas da norma e através de uma generalização
que representa “a unidade social de maneira ao mesmo tempo real e imaginária” (MIAILLE,
1994, p. 95).
A norma não possui como qualidade intrínseca a obrigatoriedade e a imperatividade,
pois tais características estão associadas à relação social expressa por ela. Então, assim como
“a mercadoria não cria valor, mas o realiza no momento da troca, a norma jurídica não cria
verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais” (MIAILLE, 1994, p.
95).

5. A DEFINIÇÃO DE UMA INSTÂNCIA JURÍDICA

Para o autor a instância jurídica é um sistema de comunicação composto a partir de


normas para criar uma unidade, isto é, um sistema de produção e de trocas econômicas e sociais
determinadas.
A instância jurídica se apresenta então como um sistema de comunicação articulado
em três níveis: ideológico, institucional e prático. O aspecto ideológico se dá através das práticas
dos juristas em tentar qualificar tudo que circunda a sociedade (fenômenos, instituições…). Isso
é um processo que intui colocar o direito no centro e isolá-lo de todas as outras formas de
conhecimento, pois essas são vistas através das definições hegemônicas impostas pelo próprio
direito. Assim, cria-se uma ideologia particular do direito que é sempre utilizada para embasar
as técnicas deste. Essa ideologia também é denominada de forma distinta pelos juristas, deuses
criadores do direito, afigurando-se como fundamentos do direito.
Noutro giro, o aspecto ideológico do direito é revestido pelo sentimento de justiça e
de segurança. A justiça está entrelaçada à concepção de dar a cada um o que lhe é de direito,
um tanto quanto genérica tal premissa. Além do mais a partir dela pode-se concluir que há um
incentivo às lutas (os trabalhadores se rebelariam por seus direitos laborais, as trabalhadoras
pela equiparação salarial em relação aos homens...) daí surge a importância do outro

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sentimento: a segurança. A segurança apresenta-se como ordem, bons costumes, interesse geral
sendo corolário da justiça e como forma de despertar um sentimento que reforça a ideia da real
existência da justiça.
Miaille ao tecer comentários sobre a justiça e a segurança faz uma crítica no sentido
de que estamos inseridos em um sistema jurídico marcado por uma ideologia jurídica que no
campo universitário leva a discussões acaloradas e abstratas e que propõe mudanças que são
distantes dos fundamentos reais das instituições jurídicas, ou seja, um tanto quanto supérfluas.
Por isso o direito é visto como um sistema de comunicação em melhoramento, pois é através
dele que a ideologia jurídica se consubstancia. Há um aperfeiçoamento constante do
vocabulário, por exemplo, pois o que se pretende é “integrar fenômenos novos a esquemas
antigos” (MIAILLE, 1994, p. 98).
Por outro lado, o campo institucional é caracterizado pelo conjunto de técnicas e
métodos que permitem a concretização da ideologia jurídica. As instituições seriam um
conjunto de normas jurídicas que engloba várias relações sociais que se assemelham por
exercerem a mesma função, e podem ser tanto um aparelho quanto uma organização
(Administração, justiça, universidade dentre outras). Nessas instituições o conhecimento é
marcado com princípio e ideias sem valor explicativo, como o autor defende, não passam de
meras representações.
A ciência jurídica tem o poder da dominação sobre a organização social e associa a
isso a expressão ordem jurídica ou ordenamento jurídico, que nós, bacharéis de direito,
aprendemos ser a mais complexa estrutura jurídica que abarca e possui soluções para todos os
eventos da sociedade. Na verdade, o ordenamento jurídico é apresentado nos cursos de direito
como a máxima da ciência jurídica, estruturando-se de forma hierarquizada e coerente, muito
embora não se isente de lacunas.
Quanto à prática jurídica é ela que dá forma às ideologias jurídicas formuladas pelas
instituições. A prática jurídica está compreendida dentro da prática social e esta, por sua vez, é
um “conceito que designa os modos de transformação que sofrem certas relações sociais em
condições históricas determinadas, no seio e em relação com um dado modo de produção”
(MIAILLE, 1994, p.101). As práticas jurídicas são um raciocínio do direito que advém de
algum tipo de transformação que se dá na esfera jurídica devido ao conjunto de leis que
estabelecem que determinado acontecimento se concretizou no mundo do direito.

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O exemplo mais clássico e apontado pelo autor é o do vaso de plantas. Imagine que
você reside em um apartamento e possui em sua casa um vaso de plantas que fica no parapeito
da sua residência. Certo dia o vaso se desequilibra e cai na rua, nada de extraordinário até então.
Não há a incidência de nenhum fato jurídico. Imagine, contudo, que no instante que o caso cai
na rua uma pessoa está passando e é atingida na cabeça pelo vaso. Como ocorreu uma lesão à
integridade física de uma pessoa, há a concretização de um fato jurídico que através de práticas
jurídicas próprias é judicializado e externalizado através de danos físicos e morais. Assim, todos
os eventos sociais, desde os mais banais, são passiveis de se tornarem eventos jurídicos, de
modo que o direito - longe de ser um fenômeno meramente estatal e formal - atravessa e
colabora para constituição das relações sociais no seu conjunto.

6. ANÁLISE PRÁTICA DA CIÊNCIA JURÍDICA SOB UMA PERSPECTIVA


CRÍTICA

O autor faz uma reflexão de que para compreensão do direito é necessária uma análise
da própria sociedade, ou seja, “que tipo de direito produz tal tipo de sociedade e porque é que
esse direito corresponde a essa sociedade” (MIAILLE, 1994, p.68), isto é, uma perspectiva
crítica do direito que se distancia do senso comum tão reproduzido pela visão tecnicista presente
nas faculdades e nas instituições de ensino de um modo geral.
Trago para o debate as percepções de Marilena Chauí, que compartilha do mesmo
entendimento de Miaille ao afirmar que o ensino reproduz uma visão tecnocrata, que não aguça
o senso crítico, mas reitera a hegemonia de certas práticas, que não encontram correspondência
na realidade social.
Uma forma de rompimento e de levante contra um ensino tecnicista (Marilena Chauí
utiliza o termo tecnocrata) e que fez surgir um espírito de coletividade além do debate de ideias
e a luta por conquistas de direitos foram as ocupações das escolas públicas, em 2015-2016, que
chamaram a atenção da sociedade e dos governos para os problemas da educação pública em
diversas frentes – desde as condições básicas de funcionamento às propostas curriculares e
pedagógicas. A partir desse diálogo promoveu-se um verdadeiro estudo das ciências jurídicas,
pois se promovia um debate sobre as normas propostas pelo governo que não correspondiam
aos anseios sociais. Promovendo um questionamento de que norma tem que ser a medida para
a regulação da vida em sociedade e não uma sanção repressiva que se impõe sem qualquer

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diálogo com aqueles que terão suas vidas alteradas por elas. Como ensinou Miaille, as normas
se concretizam assim como a circulação das mercadorias: ignorando as relações sociais que as
originam e coisificando a sua prática.
Alunos do ensino médio das mais diversas escolas, e em distintos estados, em
destaque o estado de São Paulo e Rio de Janeiro no ano de 2015-2016 se mobilizaram para
reivindicar as mudanças políticas e a proposta de reestruturação do Ensino Médio. Só no estado
de São Paulo, 190 (cento e noventa) escolas foram ocupadas (ESTADÃO, 2015)1. As
reivindicações possuíam pontos em comum, como manifestação contra a PEC 241
(congelamentos dos gastos em educação por vinte anos), a Medida Provisória 746/2016
(reforma curricular do ensino médio), com o Projeto de Lei 867/2015 (escolas sem partidos).
Além de reivindicações pontuais, como planejamento dos currículos escolares com
participação democrática da comunidade escolar, maior participação de toda comunidade
escolar nas mudanças a serem instauradas na área da educação, reavaliação do corte de verbas
das instituições públicas, entre outras2.
Ali se promoveu um estudo crítico sobre a ciência jurídica, tão defendido por Miaille,
ou seja, um direito que se insira como parte de um todo que é composto pelos fenômenos sociais
(no caso das ocupações estávamos diante um cenário de reformas, de cortes de verbas públicas
na educação e saúde e de uma proposta de ensino médio consubstanciados por normas que não
traduziam as manifestações da sociedade) influenciado e modificado ao longo da história (tal
influência era o objetivo principal dos estudantes) que tenha uma experiência amparada por
conceitos teóricos e um empirismo real. Nas palavras de Roberto Lyra Filho (1981), o que os
estudantes promoveram foi uma manifestação para que houvesse um “direito vivo, isto é, o
direito que não se deixa matar pela dogmática e embalsamar nas urnas da velho jurisprudência
nunca esteve tão forte, prestante e reclamado como agora” (FILHO, 1981, p. 7).
Os alunos pleiteavam o reconhecimento de seus direitos e a participação deles nas
tomadas de decisão. O que faz questionar se não seria a função da educação a integração dos
alunos no debate, o fomento e construção do senso crítico. Como defende Marilena Chauí, em
Ideologia e Educação (1979) a educação deveria ser “um instrumento de conhecimento e de
transformação do real, graças à sua compreensão crítica”. Vejamos:

1
Disponível em http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,invasoes-em-escolas-recriam-movimento-
estudantil,10000003261. Acesso em 28/07/2016.
2 Essas reivindicações foram feitas pelos alunos do colégio Pedro II na cidade do Rio de Janeiro, e divulgadas nas redes sociais.
Disponível em: <https//m.facebook.com/ocuparCP2real/?locale=pt_BR>. Acesso em 28/07/2017.

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Em geral, costuma-se opor educação como formação e educação como informação,


oposição que reaparece quando se distinguem aprendizagem e treinamento,
conscientização e pragmatismo, espírito crítico e autômatos. Aqueles que privilegiam
o polo formação/aprendizagem/conscientização têm a esperança de que a educação
possa ser um instrumento de conhecimento e de transformação do real, graças à sua
compreensão crítica. Não podemos também ignorar o fato de que tais oposições
implicam uma outra, qual seja, entre uma visão humanista e uma visão tecnocrática
da educação (CHAUÍ, 1979, p.5).

As ocupações são a nova configuração das mobilizações sociais. Estudantes se


organizaram para debater assuntos políticos, econômicos, educacionais. Através de uma
estrutura pautada na solidariedade, e uma reorganização do sistema de ensino com a promoção
de oficinas, debates, encontros, palestras, momentos de troca de conhecimento sob uma
perspectiva coletiva, em que o ideal de comunidade prevalecia. Organizaram-se para debater,
votar, limpar, promover eventos, divulgar suas reivindicações. Fizeram com que nas escolas,
como defende Chauí (1979) houvesse a prevalência de uma visão humanista frente a uma visão
tecnocrática arraigada na educação.
Os alunos do Colégio Pedro II, em dezembro de 2016, ao desocuparem as escolas
elucidaram a importância do convívio coletivo, a redescoberta da democracia, a formação
cidadã e a necessidade da luta. Ou seja, promoveram um estudo crítico do direito, ao debater as
normas que contrariavam as concepções de escola e ensino que comungavam, ao elucidar o
conceito de democracia, justiça, lutas sociais e da necessidade da interdisciplinaridade dentro
das instituições de ensino.
Para melhor ilustrar a importância das ocupações das escolas públicas na construção
crítica do que é o direito e como este é desenvolvido a partir de reivindicações e lutas, apresento
o relato dos próprios estudante que em uma rede social com a denominação “Ocupa CPII Real”
(2016) assim descreveram o que significaram as ocupações:

[...] Democracia, um conceito perdido em breves definições didáticas, foi


redescoberto. Em um período de rápidas reações virtuais, estar fisicamente, em
comunidade nos despertou para o outro, nos ofereceu uma formação cidadã que o
anterior modelo pedagógico nunca pôde. Nossa autogestão permitiu a prática de um
projeto de mundo horizontal e sem injustiças, cujo qual pensávamos ser impraticável
até então. Neste convívio de 63 dias, pudemos viver e experimentar o que matérias
como filosofia, sociologia, artes, educação física já se propunham em meio as lutas
pedagógicas. Mesmo com ameaças e pressões externas, o movimento esteve firme e
convicto de sua importância perante todos os desmontes que o estado brasileiro vem
sofrendo. Desmontes estes que afetam áreas básicas e fundamentais como saúde e
educação. Hoje, desocupamos fisicamente o espaço escolar para seguirmos
ocupando-o ideologicamente, com nossa herança negra e periférica exibida

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orgulhosamente. A luta, por sua vez, não termina aqui. A ocupação teve seu início e
o fim não contempla agora3.

E diante esse relato, encerramos nosso estudo que buscou realizar uma análise crítica
do direito a partir da teoria de Michel Miaille com o objetivo de demonstrar o ensino deficitário
nas instituições de ensino que promove um estudo superficial do direito a partir de técnicas do
senso comum dos juristas. Por outro lado, demonstramos alternativas antissistêmicas, ou
melhor, “fora da caixinha” que derrubam obstáculos epistemológicos e realizam uma análise
crítica do direito que juristas e os manuais de direito não comportam. As ocupações das escolas
públicas, como manifestação contra-hegemônica aos ditames da normatização estatal, nos
parece um caso exemplar de uma concepção de direito que faz a sociedade, na medida em que
é feito por esta, como lembra Pierre Bourdieu (2010). Nesse passo, como uma instância de um
todo complexo com dominante no dizer de Miaille (1994), o direito se expressa e se constitui
em contradição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O autor propõe um estudo científico do direito que se afaste de um empirismo, que se


apresenta como realista quando não o é e de um idealismo tradicional que é uma representação
de pensamentos, isto é, meramente ideológico. Reforça a ideia de um objeto de estudo, a partir
do qual o direito não se isole e que não se projete no centro, mas que haja uma projeção dele no
interior de uma formação social, abandonando, assim, conceituações hegemônicas e
universalizantes e criando conceitos historicamente determinados. Tais mudanças permitirão
que o mundo do direito tenha seu funcionamento e sua existência sendo estudados de uma
maneira explicativas e não mais apenas como mera representação da sociedade a partir do
pensamento de juristas que entendem que suas ideologias são expressões máximas sobre a
realidade.
Podemos concluir que se faz necessário um direito inserido como parte de um todo
que é composto pelos fenômenos sociais, influenciado e modificado ao longo da história, que
tenha uma experiência que coadune os conceitos teóricos com a empiria advinda de uma
formação social, sendo esta consubstanciada pelas mobilizações sociais que os estudantes de
escolas públicas promoveram durante as ocupações.

3
Disponível em: <https//m.facebook.com/ocuparCP2real/?locale=pt_BR. Acesso em 28/07/2017>.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BOURDIEU, P.O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

CHAUI, Marilena. Ideologia e educação. Campinas: Faculdade de Educação Estadual de Campinas: 1979.

FILHO, Roberto Lyra. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília: Editora Obreira, 1981.

MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editora Estampa, 1994.

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PARA ALÉM DAS AULAS EXPOSITIVAS:
UM REPENSAR DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DO
PROTAGONISMO DOS DISCENTES

FERREIRA, Oswaldo Moreira


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Norte Fluminense.
Professor da Faculdade Metropolitana São Carlos – campus Bom Jesus do Itabapoana-RJ.
GOMES, Luciane Mara Correa
Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Ciências Jurídicas e
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora no Centro Universitário Augusto
Motta e Faculdade Mercúrio.
RANGEL, Tauã Lima Verdan
Bolsista CAPES. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo PPGSD-UFF (2013-2015).
Especialista em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro
Universitário São Camilo-ES (2014-2015).

RESUMO

O presente tem por objetivo examinar a experiência de métodos de ensinagem empregados nas
disciplinas ministradas e que auxiliaram no rompimento da tradicional aula expositiva, conferindo aos
discentes, em uma nova perspectiva, maior autonomia na construção do conhecimento jurídico.
Tradicionalmente, o processo de ensino-aprendizagem jurídico tem suas bases assentadas em aulas
meramente expositivas, pautada na premissa de que o docente é detentor do conhecimento e o discente
apenas um receptáculo vazio a ser preenchido pelo conteúdo ministrado. Comumente, a construção do
conhecimento jurídico dá-se com o simples entendimento e memorização de conteúdo, sem que haja a
submersão do discente na (des)construção das bases epistemológicas do conhecimento, limitando-se,
portanto, a reproduzir o que lhe fora ensinado. Contudo, pesquisas apontam que este modelo está
superado, sendo, para tanto, imprescindível o repensar do processo de ensino-aprendizagem jurídico,
notadamente no que toca ao fortalecimento de metodologias ativas que confiram protagonismo ao
discente nos cursos de Direito. O método utilizado é o hipotético-dedutivo, valendo-se de revisões
bibliográficas e estudo de caso das turmas em que a metodologia ativa foi empregada. As conclusões
parciais alcançadas apontam que o empoderamento dos discentes na condução do processo de ensino-
aprendizagem é de preponderante importância para conferir autonomia na apreensão do conteúdo
proposto e, destarte, efetivar caminhos para o processo de emancipação crítica.

Palavras-Chave. Ensino Jurídico; Emancipação Intelectual; Protagonismo Discente.

ABSTRACT

This aims to examine the experience of teaching and learning methods employed in the subjects taught
and helped in breaking the traditional lecture, giving the students in a new perspective, greater autonomy
in the construction of legal knowledge. Traditionally, the legal teaching-learning process has its

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foundations settled in merely lectures, based on the premise that the teacher holds the knowledge and
the student just an empty vessel to be filled by the content taught. Commonly, the construction of legal
knowledge occurs with the simple understanding and memorizing content without submersion of the
student in the (de) construction of the epistemological foundations of knowledge, limited, therefore, to
reproduce what taught you off . However, surveys show that this model is outdated and is, therefore,
imperative to rethink legal education-learning process, notably as regards the strengthening of active
methodologies which give prominence to students in law schools. The method used is the hypothetical-
deductive, drawing on literature reviews and case studies of classes in which the active methodology
was employed. The partial conclusions reached indicate that the empowerment of students in conducting
the teaching-learning process is of major importance to empower the seizure of the proposed content
and, Thus, effect paths to the critical emancipation process.

Keywords. Legal Education; Intellectual Emancipation; Student role.

ENSINO JURÍDICO NO BRASIL: COMENTÁRIOS INTRODUTÓRIOS

Repensar o ensino e a educação no Brasil tornou-se algo imprescindível para que se


concretize a emancipação do conhecimento desde a sua base epistemológica. O paradigma
educacional reclama uma revisão, uma aproximação mais substancial da realidade para
proporcionar, via de consequência, uma formação mais crítica e humanizada. O processo de
ensino-aprendizagem, em especial nos cursos de Direito, ainda é desenvolvido de forma
compartimentada, separada em disciplinas estanques, incapazes de se comunicarem entre si e,
por vezes, alheia a realidade vivenciada. Ao que parece, tal cenário se agrava principalmente
pelo fato de da formação jurídica ainda guardar contornos tradicionais e demasiadamente
formalistas.
Por isso, o Direito ainda forma profissionais herméticos, adeptos ao legalismo1 e ou
seja, preocupados com o império das leis e um tanto distanciados da realidade social que os
envolve. Tal ensino, não raras vezes, é pautado na concepção acumulativa do conteúdo
ministrado, estabelecida a partir de dois sujeitos: o professor e o aluno; o primeiro narra e o
segundo escuta. Muitas vezes, a narração desenvolvida está limitada a uma simples leitura de
códigos e leis como se a dinâmica advinda da vida social e o Direito neles se encerrassem. A

1
Ao utilizar esta expressão, este trabalho faz uma crítica à reprodução automática de definições e conceitos legalistas em
inobservância com a hermenêutica e com finalidade da norma em alcançar a paz social. Nas palavras de Nonet e Selznick (2010)
“o foco nas normas tende a estreitar o leque de fatos juridicamente relevantes, separando com isso a reflexão jurídica da realidade
social. O resultado é o legalismo, uma predisposição a apoiar-se inteiramente na autoridade das leis em detrimento da solução de
problemas práticos. (...) O legalismo custa caro, em parte pelas rigidezes que impõe, mas também porque regras interpretadas in
abstrato são muito facilmente satisfeitas por uma observância formal que pode ocultar importantes omissões substantivas em
matérias de política pública.”

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educação e o ensino jurídico, de forma geral, sofrem com a narração, na qual, uma vez
enunciados, conteúdos se petrificam, permanecendo alheios à realidade.
Neste sentido, Orsini e Silva (2013, p. 13) explica que o ensino jurídico, alicerçado
apenas na sala de aula e que valoriza uma concepção bancária da educação, fomenta uma
formação fundada na realização do depósito, pelo professor, de conteúdo estanques e
compartimentados nos discentes, que se reduzem a meros receptáculos deste conhecimento,
promovendo lacunas no processo de sensibilização social dos discentes e os alienando, por
vezes, do contexto no qual estão inseridos.
“Uma educação pré-fabricada, não adaptada a seu destinatário final, não irá favorecer
a construção de um ensino voltado a despertar nos alunos interesse pelos problemas sociais,
que estão muito além dos conteúdos normativos repassados nas faculdades de direito”
(ORSINI; SILVA, 2013, p. 13). Os docentes, e também os discentes, devem, imperiosamente,
repensar as estruturas do ensino jurídico, de forma a favorecer uma aproximação crítica e
emancipatória da realidade, permitindo, inclusive, sua transformação. Pesquisas apontam, cada
vez mais, que esta concepção de ensino está em crise por não favorecer uma aproximação com
a realidade social além de não permitir o desenvolvimento de uma visão crítica, autônoma e
emancipatória do saber (RODRIGUES, 1992; MORATO, 2001; FREITAS, 2003;
FAGÚNDEZ, 2004; MACHADO, 2006; STRECK, 2006; BITTAR, 2008; GARCEZ, 2012;
FACHIN, 2013)
Em se tratando de educação geral, Freire (1979), em apontamento ainda
contemporâneo, entende que o professor fala da realidade como se esta fosse estagnada, sem
movimento, separada em compartimentos e previsível; ou, ainda, fala de um tema alheio à
experiência existencial dos discentes. Em tal situação, verifica-se que o docente, no processo
de ensino-aprendizagem, desempenha uma tarefa de “encher” os discentes do conteúdo da
narração, conteúdo alheio à realidade, destacado da totalidade que a gerou e poderia conferir
sentido. Santos (2007), ao discorrer acerca dos cursos de Direito, aponta que há uma tentativa
de se eliminar os elementos extranormativos do ensino jurídico, causando indiferença ou
mesmo um não conhecimento das mudanças ocorridas na sociedade e, por consequência, o
distanciamento das preocupações sociais por parte dos operadores do Direito, que se tornam
profissionais descomprometidos com as questões da sociedade. O cenário retratado é mero
reflexo de um Direito formalista e burocrático, e de um ensino desvinculado da extensão e da
pesquisa, instrumentos aptos a permitir uma aproximação da instituição de ensino e dos

1050
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discentes com a comunidade, seus problemas, e sua realidade, além de também promover a
possibilidade de atuação construtiva e transformadora, não inerte e não conformada.
Assim, em consonância com Duarte (2003), Colaço (2006), Machado (2006), Fachin
(2013) e Orsini e Silva (2013), apenas com o fomento de um ensino jurídico preocupado em
associar teoria e prática, doutrina e realidade, é que será viável a formação de operadores do
Direito conscientes do papel que devem desempenhar como dos problemas sociais, que
certamente vindicarão a intervenção de um profissional preparado e contextualizado, não alheio
ao que se passa no meio social. Há que reconhecer que, para a materialização do protagonismo
discente, no processo de ensino-aprendizagem, o modelo tradicional estruturado, pautado em
aula expositiva, requer uma reestruturação.

1 A DIDÁTICA NA CONTEMPORANEIDADE: O PROCESSO DE ENSINO-


APRENDIZAGEM COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO

À luz das ponderações supracitadas, cuida reconhecer que o processo de ensino-


aprendizagem reclama o desenvolvimento de didática fulcrada na prática, compatível com o
conteúdo a ser ministrado. No Brasil, o senso comum entende que didática é a simples reunião
das disciplinas básicas da educação na composição dos processos de “ensino-aprendizagem”
(GHIRALDELLI JÚNIOR, 2000). Por outro lado, a didática pode ser entendida como o
processo peculiar apto a permitir a transformação do pensamento, das atitudes e do
comportamento dos discentes, quando se estreita com a realidade cotidiana Gómez (2000).
Destarte, um “docente com didática” é descrito como um profissional que sabe substancializar
e adjetivar os processos de ensino e aprendizagem para possibilitar ao discente a
experimentação de sua realidade de forma diferenciada, conferindo-lhe autonomia e
emancipação intelectual.
Para Gil (2009b), em termos educacionais, a aprendizagem é a aquisição de
conhecimento e o desenvolvimento de habilidades e atitudes em decorrência de experiências
educativas vivenciadas, ou seja, o processo de aprendizagem viabiliza modificações específicas
das capacidades, que não são atribuídas ao conhecimento adquirido com mero processo do
amadurecimento. O processo de aprendizagem é bastante complexo e, por conseguinte, desafia
a reflexão e implementação de diversas metodologias de ensino. Na perspectiva
contemporânea, a ênfase do processo de aprendizagem deixou de ser o ensino; o professor

1051
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deixou de ser o principal responsável pelos resultados obtidos e os discentes deixaram de ser
vistos com passividade (MACHADO, 2006). “O foco principal, na perspectiva contemporânea,
está na aprendizagem – o papel do professor é ajudar a aprender. Para tanto, é preciso que o
professor adote uma postura técnica em relação ao processo de aprendizagem”. (CÂMARA;
MURARO, 2012, p. 08).
Nesse mote, é imprescindível que o docente reconheça e valorize a diversidade, as
diferenças individuais, podendo fazer uso de informações prévias e avaliação diagnóstica,
objetivando identificar as particularidades discentes e os interesses compartilhados pela turma.
Além disso, visando manter a atenção dos discentes em um momento tão tecnológico, além de
dominar o conteúdo de modo teórico e prático, “deve utilizar recursos auxiliares de ensino
diversificados, deve provocar a participação dos alunos com perguntas simples e deve estimular
reação dos alunos (favorecer anotações, intervenções, depoimentos pessoais dos alunos e
ampliação de ideias)” (CÂMARA; MURARO, 2012, p. 08).
Todavia, o problema repousa no emprego constante e equivocado da aula expositiva.,
e em que pese a pertinência das críticas, há que se reconhecer, porém, que a aula expositiva
materializa estratégia adequada em situações específicas, dependendo, obviamente, do objetivo
estabelecido para determinado momento do processo de ensino-aprendizagem (GIL, 2009b;
SANTOS, 2010; OLIVEIRA 2016). Em linhas gerais, Haydt (1994) esclarece as concepções
dos objetivos na área da educação, que se materializam por meio da descrição do que se
pretende alcançar como resultado da atuação pedagógica do docente. Os objetivos gerais são
aqueles cuja extensão é prevista a longo prazo, geralmente advindo de um determinado ciclo
ou área de estudos. Por seu turno, os objetivos específicos são aqueles definidos para uma
disciplina, unidade de ensino ou aula e que operacionalizam os objetivos gerais, norteando, de
forma mais direta, o processo de ensino-aprendizagem. Com destaque, a definição de objetivos
específicos auxilia o docente a utilizar de estratégias para colaborar na construção de
conhecimentos, conceitos, competências e habilidades, além de identificar a metodologia mais
adequada a ser empregada, considerando a natureza do conteúdo, as características dos
discentes, bem como as condições físicas e o tempo disponível.

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2 A BANALIZAÇÃO DA AULA EXPOSITIVA NO ENSINO JURÍDICO: A


CONFLUÊNCIA ENTRE O DESPREPARO DOS DOCENTES E O ASPECTO
MERAMENTE PROFISSIONALIZANTE DO DIREITO

Conforme expresso alhures, tradicionalmente, a aula expositiva é a estratégia mais


empregada no ensino superior, consistindo, segundo Gil (2009a, p. 133), na “preleção verbal
utilizada pelos professores com o objetivo de transmitir conhecimento” acerca de um tema de
maneira lógica. Trata-se do método mais antigo e o mais utilizado por ser mais facilmente
adequado a classes numerosas. Ao lado disso, é caracterizado por ser flexível, ou seja, pode ser
adaptado, em tempo real, aos mais diversos públicos. (CÂMARA; MURARO, 2012, p. 15).
Entretanto, as aulas expositivas enfatizam o conteúdo e não garantem o efetivo aprendizado:

(...) muitas vezes são atribuídas a especialistas no respectivo campo de conhecimento


que não dispõem de maiores habilidades pedagógicas. Este fator é muito crítico
porque simplesmente “dar aulas” não garante o efetivo aprendizado. A aula
expositiva somente é eficiente quando bem planejada e executada mediante
princípios e técnicas de ensino, o que significa que a aula expositiva pode ser
considerada estratégia tão ou mais difícil de ser implementada quando as discussões,
demonstrações e dramatizações (GIL, 2009a, p. 134-135).

Na seara do Direito, a utilização de aulas expositivas levou em consideração de que


para se montar uma Faculdade ou Curso de Direito basta apenas o quadro-negro e giz
(CÂMARA; MURARO, 2012). Há que se reconhecer que tal concepção prosperou, porquanto
o emprego de outros métodos, corriqueiramente, é obstado pela necessidade, além de
investimentos por parte da instituição, de maior esforço por parte dos docentes e discentes,
reclamando maior entrega, organização, planejamento e dedicação ao Curso de Direito. Isto é,
a aula expositiva materializa a mera reprodução de informação, sem proporcionar um
aprendizado para o discente ou mesmo despertar-lhe continuamente o interesse pelo tema. As
ministrações, comumente, em sede de aulas expositivas, partem da iconografia que o discente
é um receptáculo a ser preenchido de conteúdo, independente se esse é, ou não, apreendido no
processo de ensino-aprendizagem (ORSINI & SILVA, 2013).
A utilização acrítica e exclusiva da aula expositiva, dentre outros fatores,
potencializou a crise no ensino jurídico (RODRIGUES, 1992; MORATO, 2001; FREITAS,
2003; FAGÚNDEZ, 2004; STRECK, 2006; BITTAR, 2008; GARCEZ, 2012; FACHIN,
2013; MACHADO, 2016). Trata-se de consequência danosa na formação dos juristas que
implica em falhas na visão crítica, na autonomia e na emancipação intelectual. Além disso, os

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referidos profissionais, tornam-se meros repetidores do legalismo observado por Nonet e


Selznick (2010). Neste sentido, as ponderações de Fachin (2005) corroboram ao criticar o
modelo de aula ministrada com o método da indiferença utilizado pela “velha aula-douta
Coimbra”2:

O fosso entre a realidade do ensino jurídico atual e o que ela deveria ser são um dos
múltiplos fatores, ao lado de aspectos econômicos, políticos e sociais, que tem
contribuído para a “crise do ensino jurídico” (...). Quem percorre os programas de
ensino de nossas escolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelas se proferem, sob
a forma elegante e indiferente da velha aula-douta Coimbra, vê que o objetivo atual
do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e
sistemático das instituições e normas jurídicas. Poderíamos dizer que o curso jurídico
é, sem exagero, um curso de institutos jurídicos apresentados sob a forma expositiva
de tratado teórico-prático (FACHIN, 2005, p. 56-57).

Grande parte das vezes, a aula expositiva é a única alternativa do docente, seja em
decorrência da falta de preparo técnico do docente, seja pelo número elevado número de
discentes nas turmas, seja por falta de condições materiais nas instituições de ensino ou por
exigência das coordenações dos cursos que optam pela manutenção do caráter exclusivamente
profissionalizante/mercadológico do curso. Segundo Lima (2005), a sociedade impõe aos
cursos de Direito novas realidades, nada obstando que os docentes se desenvolvam,
concomitantemente, em uma consistente formação humanística, reflexiva e crítica, tal como
uma sólida formação profissionalizante. Mais que isso, há que anotar que as formações
mencionadas elas não são incompatíveis ou excludentes; ao reverso, são complementares e
trazem grandes contribuições para a missão formativa que deve orientar os cursos superiores.

3 A SUPERAÇÃO DA TRADICIONAL AULA EXPOSITIVA DOGMÁTICA: A


EDIFICAÇÃO DE AULA DIALOGADA COMO INSTRUMENTO DE
EMANCIPAÇÃO CRÍTICA DOS DISCENTES DO CURSO DE DIREITO

No campo do Direito, o principal cuidado a ser observado, no que toca à utilização do


método, repousa na compreensão de que existem dois modelos antagônicos de aula expositiva,
a saber: a exposição pode ser dogmática e, nesse cenário, a mensagem emitida pelo docente
deve ser aceita pelo discente, sem contestação e para ser repetida de maneira automática por
ocasião das avaliações, ou a exposição pode ser aberta e dialogada, sendo que, nessa situação,

2Um trabalho interessante acerca da história do ensino jurídico brasileiro a partir dos preceitos elencados pela Universidade de
Coimbra/Portugal está presente no trabalho elaborado por RODRIGUES (2000) e WOLKMER (2003).

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o discurso apresentado pelo docente servirá como ponto de apoio para desencadear a
participação dos discentes. (WACHOWICZ, 2001)
Em sede de ensino jurídico, os maiores inconvenientes das aulas expositivas advêm
das exposições meramente dogmáticas, nas quais as mensagens transmitidas não comportam
contestação e são aceitas como verdades absolutas. Assim, a exposição dogmática é aquela
alocada no modelo clássico do ensino bancário (ORSINI & SILVA, 2013), caracterizada pela
docilidade do discente. Por seu turno, a aula dialogada é aquela inserta no contexto
contemporâneo da moderna ciência da comunicação, na qual o processo de comunicação está
vinculado a habilidades na transmissão e com as características da mensagem, com a
conveniência do canal de veiculação e com a disposição do receptor (DUARTE 2003;
MACHADO, 2006; GHIRARDI, 2012).
Na aula dialogada, docentes e discentes são partes integrantes de um processo de
comunicação. Obviamente, isso requer dos professores múltiplos cuidados, conforme
obtempera Gil (2009b), porquanto o professor, na aula expositiva, é a fonte das informações.
Logo, o docente deve cuidar da clareza dos seus objetivos, de maneira que os alunos
compreendam. Ademais, como fonte de informação, os docentes devem cuidar da organização
de ideias, do tom, da altura e do ritmo da voz.
Defensores de uma metodologia dialogada, Câmara & Muraro (2012, p. 18) expõem,
“a mensagem emitida pelo professor deve ser adequada à necessidade e características dos
alunos; deve ser clara e concisa; os tópicos devem ser planejados considerando uma sequência
lógica; a mensagem deve ter um ´colorido emocional´ com a inclusão de momentos bem
humorados e de fatos pitorescos”. A mensagem deve propor situações problematizadas e
apresentar ideias de forma diversa para escapar da monotonia, evitando a tentação de expor o
tempo todo e apresentar um conteúdo engessado e dogmático.
Há que se reconhecer que o diálogo ganha importância, porquanto permite a liberdade
de expressão, ao conceder aos participantes, docente e discentes, no processo de ensino-
aprendizagem o controle da ação. É o que se aproxima dos estudos denominados “sala de aula
invertida” propostos por Oliveira (2016). Segundo Martínez (2005), não há como questionar
sem diálogo, porquanto monólogo significa imposição do conhecimento. Mais que isso,
dialogar significa expor-se em público, combate a imposição de conteúdo e ajustar, a partir de
um viés coletivo, a compreensão dialética do conhecimento problematizado, por novas trilhas
de esclarecimento.

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Em sede de ensino jurídico, dialogar é viável e necessário. Discutir teses doutrinárias,


enfrentar jurisprudências conflitantes, questionar leis com base em princípios constitucionais e
humanitários, sugerir, inquietar e apresentar novas abordagens é algo acessível ao professor do
Direito. Não se trata de o próprio docente apresentar questionamentos e sua solução, mas sim
permitir ao discente, individualmente ou em grupo, buscar a resolução do conflito, edificando
criativamente soluções. Para que a aula expositiva dialogada alcance tal escopo, é ofuscante a
necessidade de dedicação do docente, no que concerne ao prévio planejamento, bem como a
apreensão de um conhecimento prévio, com o fito de auxiliar na compreensão dos discentes
daquilo que será transmitido e sua aplicabilidade no mundo concreto.

A mudança para a ação docente dialógica está na adoção do lema cooperação em


sala de aula, na qual o professor deixa o seu papel de propagandista de regras jurídicas
e passa a desempenhar, lado a lado com seus alunos, uma parceria transformadora da
sociedade, na revisão do sentido de suas regras. Nesse processo, a interação
(cooperação) entre professor e alunos é fundamental para o desenvolvimento das
atividades de ensino dialógicas. Se, na abordagem tradicional ou "educação
bancária", o professor se coloca em um pedestal de autoridade, afastando-se do
contado direto com os alunos, na pedagógica crítica esse contato não pode mais ser
evitado. (MARTÍNEZ, 2005, p. 04).

Com a modificação, o docente dialógico passa acompanhar o desenvolvimento da


histórica educacional dos discentes. É, justamente, em tal ponto que aflora o rompimento com
a tradicional escola jurídica, das aulas magistrais ou expositivas. O surgimento do processo
pedagógico dialógico, senão novo, ao menos ganha contornos mais democráticos, no qual o
docente não é apenas o operador do Direito, mas também educador de fato, fomentando a
formação de profissionais autônomos, críticos e empoderados, capazes de analisarem situações
concretas, a partir do conhecimento teórico ministrado e apresentar possíveis soluções. Rompe
o paradigma de respostas prontas, engessadas e pré-fabricadas, favorecendo, doutro ângulo, o
protagonismo dos discentes na construção do conhecimento. Incumbe, nesse cenário, ao
docente garantir aos alunos o máximo de acesso eficaz e crítico ao conhecimento proposto no
conteúdo programático, alicerçado na realidade existencial do grupo e nos pontos fortes
individualizados. Outra ação dialógica a ser adotada está assentada na organização profissional
da atividade pedagógica, o que se inicia pela preparação do conteúdo programático a ser
ministrado no ano, semestre, bimestre, mês, aula e se finda com o feedback reprogramático das
avaliações realizadas. Em um processo cíclico de auto e heteroconhecimento, obtido por meio
de avaliações, que sejam capazes de orientar o docente a conhecer as aptidões de seus discentes.

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Com destaque, o início da ação dialógica organizadora ocorre antes do contato entre
o docente e o discente e depende, diretamente, da escolha de opções para o conteúdo
programático, a serem debatidas pelos discentes, conferindo-lhes protagonismo no processo de
ensino-aprendizagem. Opções de conteúdo que não devem só permitir aos alunos pensar
criticamente sobre o estudo no semestre ou ano letivo, mas também estar de acordo com sua
percepção da realidade, estabelecendo, portanto, claros contornos a visão crítica sobre a
realidade. Isto é, eleger um conteúdo programático sob a forma de uma pedagogia crítica requer
a dialogicidade da dialogicidade, na construção cooperativa dos conteúdos a serem objeto de
futuro diálogo em sala de aula. Neste ponto, como observa Martínez (2005, p. 04), “um
exemplo bem sucedido de investigação para a elaboração de um conteúdo programático seria
aquele que leva em consideração, por meio de questionários, entrevistas e dissertações, a
realidade daquele determinado grupo de alunos, focando a aprendizagem em tópicos
correlacionados com aquela base vivencial em que estão situados”.

4 AS METODOLOGIAS ATIVAS E O EMPREGO DA PROBLEMATIZAÇÃO


COM ESTRATÉGIA DE FORTALECIMENTO DO PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM

Por todo o exposto, pode-se entender que, as metodologias ativas empregam a


problematização como estratégia do processo de ensino-aprendizagem, com o escopo de
alcançar e motivar o discente, pois, diante do problema, ele se detém, examina, reflete, relaciona
a história e passa a ressignificar as descobertas, ou seja este método cuida da real participação
dos discentes, “invertendo a sala de aula” como preconiza Oliveira (2016). Ademais,
problematização pode levar o discente ao contato com as informações e à produção
epistemológica do conhecimento, notadamente com a finalidade de solucionar os impasses e
promover o seu próprio desenvolvimento, fortalecendo o ideário de protagonistas.
O comprometimento do discente em relação a novas aprendizagens, pela
compreensão, pela escolha e pelo interesse, substancializa condição essencial para ampliar suas
possibilidades de exercitar a liberdade e a autonomia no processo de tomada de decisões em
diferentes momentos do processo que vivencia, preparando-se para o exercício profissional
futuro. Para tanto, deverá contar com uma postura pedagógica de seus docentes com
características diferencias daquelas de controle. Desta feita, como Berbel (2011, p. 30) aponta,

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“educar para a autonomia significa também, consequentemente, um ato político e para o campo
de formação profissional e ou formação de professores, um ato político pedagógico”.
Em tom uníssono, reconhece-se que são muitas as possibilidades de metodologias
ativas, com potencial de levar os discentes a aprendizagens para a autonomia, desenvolvimento
de visão crítica e emancipação intelectual. A título de exemplificação, é possível fazer menção
ao estudo de caso, comumente empregado no curso de Direito. (BERBEL, 2011), em que o
discente é provocado a analisar problemas e construir decisões a partir da conjunção dos dados
informados no caso simulado e o conhecimento teórico ministrado. Os grupos expõem as
conclusões para a classe e ao final são promovidos debates. “O estudo de caso é recomendado
para possibilitar aos alunos um contato com situações que podem ser encontradas na profissão
e habituá-los a analisá-las em seus diferentes ângulos antes de tomar uma decisão” (BERBEL,
2011, p. 31). O processo do incidente é uma variação do estudo de caso e sua caracterização,
como aponta Gil, se dá:

O professor apresenta à classe uma ocorrência ou incidente de forma resumida, sem


oferecer maiores detalhes. A seguir, coloca-se à disposição dos alunos para fornecer-
lhes os esclarecimentos que desejarem. Finda a sessão de perguntas, a classe é
subdividida em pequenos grupos e os alunos passam a estudar a situação, em busca
de explicações ou soluções (GIL, 2009b, p. 84).

Há que reconhecer que esta técnica serve para alertar os discentes sobre a necessidade
de maior número de informações quando se quer analisar fatos não presenciados. Doutro lado,
requer mais preparo do professor, tal como os materiais relacionados. Com o emprego do
processo do incidente algumas vezes pelo professor, é possível que os discentes sejam
orientados ou convidados a preparar situações para desenvolvê-lo em sala com seus colegas,
sob a supervisão do docente. “Desse modo, a criatividade e a responsabilidade são estimuladas
e valorizadas, podendo resultar no desenvolvimento de graus de envolvimento, de iniciativa,
autoconfiança, ingredientes importantes para a autonomia” (BERBEL, 2011, p. 31). Supera-se,
assim, a visão engessada de conteúdos compartimentados e independentes no ensino jurídico,
os quais não usufruem de um liame vinculativo e de uma confluência de abordagem.
Ora, em ambas as exemplificações apresentadas, verifica-se que o escopo da
metodologia ativa, conjugada com uma visão dialogada da abordagem dos conteúdos,
superando a tradicional visão da aula expositiva dogmática, substancializa importante marco
na formação dos profissionais do Direito, porquanto confere protagonismo dos discentes na

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explanação e apreensão do conteúdo teórico e sua vinculação com os fatos sociais, permitindo,
por extensão, a valoração de uma postura autônoma, crítica e emancipatória.

COMENTÁRIOS FINAIS

O Direito sofre um significativo revés em relação às demais áreas das ciências


humanas e sociais, notadamente no que atina ao fomento de um processo de ensino-
aprendizagem que confira autonomia a seus discentes. Logo, contemporâneos métodos de
aprendizagem devem ser repensados, sobretudo em prol da superação da tradicional dogmática
jurídica e com vistas à promoção de um pensamento crítico-reflexivo nos cursos de Direito, em
especial com foco na produção de pesquisas científicas mais complexas e aproximadas dos
fenômenos sociais, trazendo, dessa maneira, relevantes benefícios para a área, permitindo uma
emancipação intelectual dos discentes, na medida em que confere maior visão crítica sobre os
fatos sociais.
Contudo, para que seja viabilizada uma reforma do ensino jurídico há a
imprescindibilidade de uma mudança na mentalidade dos docentes e discentes na trilha do
Direito e o fomento à metodologia ativa proporcionaria uma qualificação diferenciada dos
profissionais. A complexidade das relações e o contínuo processo de transformação dos
fenômenos sociais demandam, com urgência, a adoção de uma processo de ensino-
aprendizagem cuja metodologia seja compromissada com tais fatores, maiormente
desenvolvida sob bases coerentes com a prática reflexiva e questionadora do modelo tradicional
produzido e mantido pelas instituições.
Há que se reconhecer que o ensino jurídico no Brasil vindica muita atenção das
autoridades educacionais, sob diversos aspectos, seja pelo aumento da procura pelos cursos
jurídicos sem que haja um mercado de trabalho favorável para atender tal demanda, seja pelos
altos índices de reprovação no Exame da Ordem dos Advogados, ou mesmo pelo
conservadorismo dos métodos aplicados e matérias repetitivas sem a prática da inter e
transdisciplinaridade nos currículos, sobremodo sem a valorização de uma metodologia
emancipadora e que estabeleça uma clara vinculação entre o conhecimento teórico e as
mudanças sociais, influindo, diretamente, formação do profissional do Direito.
Desta feita, há que se reconhecer que o modelo tradicional de aula expositiva
dogmática não mais encontra assento na contemporaneidade, sendo imprescindível o

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fortalecimento de uma metodologia dialógica, pautada no fortalecimento do processo de


autonomia, de visão crítica e de emancipação intelectual do discente do Curso de Direito.
Assim, o ensino jurídico não mais está encerrado nas salas de aula, mas sim encontra no meio
social arena fértil para a formação mais completa dos futuros juristas.

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1062
AÇÃO AFIRMATIVA, EDUCAÇÃO E JUDICIALIZAÇÃO:
SILÊNCIOS E SENTIDOS

SANTOS, Erli Sá dos

RESUMO

O artigo que segue desenvolve uma reflexão sobre o tema Políticas Afirmativas de Inclusão Racial no
Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, tomando
por base o Edital 2017. Procura estabelecer relações entre a implementação da política, seus
desdobramentos, principalmente, o processo de judicialização do certame e o contexto educacional
inaugurado. Em especial, o texto busca discorrer sobre a categoria silêncio identificada como nas
relações travadas entre os sujeitos envolvidos no processo. O principal interesse é situar essa categoria
como elemento discursivo, portanto, significativo, utilizando-se para isso os referencias teóricos da
Análise de Discurso, vertente francesa, presentes nos estudos realizados por Eni P. Orlandi (1995; 2009).

Palavras-Chave. Pós-Graduação; Política Afirmativa; Judicialização.

ABSTRACT

The following article develops a reflection about Affirmative Politics of Racial Inclusion in the
Prostgraduate of Sociology and Law from Fluminense Federal University, taking for base the 2017
notice. Looks for establish relations between politics implementation, your topics, especially, the
judicialization of competition and the inaugurated educational context. In especial, the text looks to
describe the silence category, it identifies as on relationships between the subjects envolved in the
process. The main interest is to locante this category as a discursive element, significant, using for that
the theoretical references of Law Analysis, presented on studys developed by Eni. P. Orlandi (1995;
2009).

Keywords. Postgraduate; Affirmative Politics; Judicialization.

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INTRODUÇÃO

“... enquanto esperamos em silêncio pelo luxo final do destemor, o peso deste silêncio
nos sufocará. O fato de que estamos aqui e que eu estou dizendo estas palavras é uma
tentativa de quebrar este silêncio e conciliar algumas destas diferenças entre nós,
porque não é a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio. E há muitos silêncios a
serem rompidos.” 1

Este trabalho representa uma leitura, dentre outras possíveis, acerca do tema “Políticas
Afirmativas de Inclusão Racial”. O recorte diz respeito à implementação dessa política pública
no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
(PPGSD).
Ler é atribuir sentido, portanto, interpretar. A interpretação aqui apresentada é
resultado de um exercício de atribuição de sentido ao silêncio identificado no processo de
judicialização do certame de ingresso na pós-graduação do PPGSD (Edital 2017), marcado pela
presença do silêncio como estratégia de manutenção do poder hegemônico.
Conduzem o processo de atribuição sentido ao corpus selecionado para observação,
em especial, os referenciais teóricos da Análise de Discurso (AD), vertente francesa, presentes
em obras de Eni P. Orlandi (1995; 2009). A partir dessa lente teórica é possível atribuir sentidos
às mais diferentes vozes identificadas, bem como aos silêncios, que podem se manifestar nas
mais diversas situações e, como elemento discursivo, significa. Tomar por base um suporte
teórico cujo interesse se volta para o discurso, definido, nas palavras de Orlandi, como “palavra
em movimento, prática de linguagem...” (2009, p.15) constitui um método que conduz o
processo de leitura, a interpretação, tomando o silêncio como categoria significativa já que
discurso 2, porque resultante de um processo histórico, do qual faz parte.
Ora, se a palavra discurso, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de
movimento, essas qualidades possibilitam atribuição de sentido também ao silêncio, eis que
também integra a atividade comunicativa humana, significando, no contexto comunicativo. As
vozes (os ditos) e os silêncios (os não ditos) analisados como elementos linguísticos, numa
perspectiva materialista (Materialismo Histórico), situam-se, de acordo com Orlandi, “em

1 Audre Lord, in “A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação”, palestra proferida no painel “Lesbianismo e Literatura”
da Modern Language Association, em Chicago, Illinois, dezembro de 1977, ... disponível em
https://transformativa.wordpress.com/2017/01/31/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao-audre-lorde/
2 Etimologicamente a palavra discurso representa a idéia de movimento, dinamismo. Qualidades essas que concede permissão

para a atribuição de sentido também ao silêncio, eis que integrante da atividade comunicativa humana, portanto significante.

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pontos de dizer, em regiões historicamente determinadas de relações de força e de sentidos: as


formações discursivas.” (1995, p.20).
A interpretação desse silêncio e do que a ele está relacionado tem relação, portanto,
com ideologia, compreendida, nesse contexto, como a interseção entre, conforme diz Orlandi,
a “materialidade da língua com a materialidade da história” (1995, p. 20), porque

(...) o discurso é o lugar desse encontro, é no discurso (materialidade específica da


ideologia) que melhor podemos observar esse ponto de articulação. (...) As diferentes
formulações de enunciados se reúnem em pontos do dizer, em regiões historicamente
determinadas de relações de força e de sentidos: as formações discursivas. 3

Esse percurso interpretativo observa o homem como ser social, na sua relação com o
outro, exigindo uma abordagem interdisciplinar. Assim, busca-se realizar uma conexão entre
conceitos de diversas áreas do saber.
Contribuem para a abordagem, em alguma medida, como recurso metodológico
interpretativo, conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu, no campo da sociologia da
educação, sendo utilizados como lentes condutoras do olhar sobre os recortes feitos para
realização de uma leitura interessada em busca de elementos para compreensão do recorte feito:
poder simbólico e violência simbólica, capital social e cultural, habitus e reprodução. Esses
conceitos mostram-se fundamentais para a atribuição de sentido às manifestações em
sociedades como a brasileira, em que as relações sociais, e, consequentemente, as relações no
campo da educação sistematizada, são marcadas pelos arbítrios da classe dominante, visando à
manutenção do seu poder e dominação sobre os excluídos.
O conceito de invisibilidade social, de larga utilização nos estudos das sociedades
contemporâneas, mostra-se imprescindível para a abordagem. É essencial para compreender a
negação do acesso ao lugar conquistado pelos alunos autodeclarados aprovados no concurso
do PPGSD-2017. Essa negação pode ser compreendida como manobra institucional de
apagamento do sujeito (também pelo silenciamento), portanto de invisibilização.
Por fim, porém não menos importante, como recurso metodológico de atribuição de
sentido, serão utilizados os referenciais teóricos da Teoria Crítica da Raça que, segundo Pires
& Félix, “compreende o conceito de raça a partir de uma construção social e não sob o viés
biológico. Desta maneira, a referida teoria inova ao questionar o direito sob uma perspectiva
racial, refutando a meritocracia como critério de avaliação...” (2016, p. 362). Seus pressupostos

3
Orlandi, 1995, p.20.

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teóricos fornecem os elementos necessários, no campo do conhecimento, para o domínio de


conceitos básicos relativos à questão da exclusão racial, tais como: racismo e discriminação
estrutural, dentre outros.
Esses pressupostos situam-se como extremamente relevantes para a abordagem dos
silêncios presentes no contexto acadêmico, lugar historicamente não frequentado por alunos
afrobrasileiros.

1. EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Durante muitos anos, no Brasil, o sistema de seleção para o acesso ao ensino superior,
foi marcado pela reprodução do modelo de exclusão social, com a universidade selecionando
os integrantes das camadas privilegiadas, os chamados “mais capacitados”, para integrarem o
seu sistema de ensino. Na pós-graduação, o mesmo modelo. Como estratégia mantenedora da
estrutura, a classe social hegemônica usou e continua usando mecanismos de estabilização de
seu poder hegemônico, garantindo a satisfação de seus interesses. O sistema legal e a educação
inserem-se nesse contexto. A histórica exclusão do processo de educação é parte disso. No
ensino superior, no Brasil, segundo Sader,

(...) ao longo dos séculos, o acesso aos cursos de maior prestígio nas universidades
que, por sua vez, representava o cartão de ingresso aos postos de poder de maior peso,
nos remetia quase que inevitavelmente à imagem de brancos. Médicos, advogados,
engenheiros, por exemplo, Bacharéis, com anéis nos dedos, ‘dotores’, em que
repousava o saber e o poder que advém daí.4

De acordo com a Romanelli, que faz um estudo sobre a educação brasileira a partir da
Revolução de 1930, o quadro em que se situa a educação no Brasil, hoje, pode ser explicado
pelo contexto de expansão do capitalismo, caracterizado pela luta de classes, que influenciou
diretamente o sistema de ensino. Segundo a autora, a

(...) luta assumiu no terreno educacional características assaz contraditórias, uma vez
que o sistema escolar, a contar de então, passou a sofrer, de um lado, a pressão social
de educação, cada vez mais crescente e cada vez mais exigente, em matéria de
democratização do ensino, e, de outro lado, o controle das elites mantidas no poder,
que buscavam, por todos os meios disponíveis, conter a pressão popular, pela

4 Emir Sader, in texto de apresentação do livro “Cotas Raciais no Brasil: A primeira avaliação. 2007, p,7.

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distribuição limitada de escolas, e, através da legislação do ensino, manter o seu


caráter ‘elitizante’.5

Para perpetuar essa estrutura, a classe hegemônica utiliza-se de mecanismos


(instituições/institutos) que impõem a sua cultura – os aparelhos ideológicos – a escola é um
deles. Assim, nas palavras de Durand, “O ato pedagógico, então, só pode ser definido como
ação de violência simbólica que não elimina, mas reforça, descaracterizando os atos de força
pura enquanto atos de força pura” (1979, p. 16).
A educação, que pode figurar como índice de transformação e melhoria da vida
humana, é situada, no ordenamento jurídico brasileiro, como direito fundamental, primando
pelo ideal de igualdade, na prática reproduz a estrutura social de excludente. Porém, nas
palavras de d’Adesky,

(...) para que haja verdadeiramente igualdade e liberdade, o princípio de igual respeito
entre os indivíduos dever ser plenamente aceito e disseminado na sociedade. Esse
princípio traduz-se pela idéia de que a igualdade entre os indivíduos requer que cada
um reconheça a igualdade em dignidade do outro e aja em relação a ele com espírito
de fraternidade, independentemente das diferenças de sexo, raça, nacionalidade,
etnia, religião, etc... 6

Corroboram para isso as políticas públicas educacionais voltadas para a atenção a


demandas sociais históricas ainda não satisfeitas. As Políticas de Ação Afirmativa de Inclusão
Racial caracterizam-se pela

(...) intenção deliberada para corrigir as desigualdades resultantes da racialização já


existente na origem do racismo. Elas não vêm para dividir,pelo contrário, vêm para
aproximar e unir pela redução das desigualdades. Elas não criam a raça, não a reforça
e nem a faz reviver, pois a raça já está bem antes na mente, na cultura, no tecido
social da sociedade como produto de uma longa história da humanidade apesar das
diferentes reformulações, teorizações e usos ideológicos recentes. 7

Ou ainda, quanto à diversidade na unidade (universidade):

O princípio da diversidade se justifica em nodo do bem comum – o bem comum da


própria faculdade e também da sociedade em geral. Primeiro, defende que o corpoo
estudantil como diversidade racial permite que os estudantes aprendam mais entre si
do que se todos tivessem antecedentes semelhantes. Assim como um corpo discente
cujos componentes pertencessem a uma só área do país limitaria o alcance das
perspectivas intelectuais e culturais, o mesmo aconteceria com um corpo estudantil

5
2002, p. 64-65.
6
D’Adesky,2006, p. 48.
7
Moore, 2007, p.16.

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que refletisse homogeneidade de raça, etnia e classe social. Em segundo lugar, o


argumento da diversidade considera que as minorias deveriam assumir posições de
liderança na vida pública e profissional, porque isso viria ao encontro do propósito
cívico da universidade e contribuiria para o bem comum.8

Analisar a política de reserva de vaga para afrobrasileiros, na pós-graduação, que


integra o contexto educativo ainda mais elitizado do que a graduação, apresenta-se como
relevante, pelo dito e também porque são hoje uma política pública de extrema importância.

2. POLÍTICA AFIRMATIVA NO PPGSD, JUDICIALIZAÇÃO, SILÊNCIOS E


SENTIDOS

Em 11 de maio de 2016, antes de sair do governo, a presidenta Dilma Roussef assinou


a Portaria Normativa nº 139, concedendo às Instituições de Ensino um prazo de 90 dias para
apresentar propostas de Políticas de Ações Afirmativas visando à inclusão de negros (pretos e
pardos), indígenas e pessoas deficientes, nos Programas de Pós-Graduação.
Esse processo configura-se uma continuidade ao que já vinha ocorrendo na graduação
das Universidades Públicas Federais, com base na Lei Federal 12.711/ 2012, cuja aplicação
vem provocando mudança no perfil das instituições públicas brasileira nos últimos anos.
Com base na portaria, o colegiado do PPGSD, em votação apertada10, que demonstra
o grau de resistência da academia, decidiu pela implementação da política e, ainda em 2016, o
programa iniciou o processo de seleção com a previsão de reserva de vagas. O Edital de Seleção
PPGSD-2017 estipulou o percentual mínimo de 20% (vinte por cento) das vagas, reservadas
para afrodescendentes, por autodeclaração.
O certame contou com um grande número de inscritos. Até o resultado final tudo
transcorreu com certa normalidade. Não houve registro de impugnação ao edital, embora isso
pudesse ocorrer, administrativa ou judicialmente. No entanto, com a divulgação do resultado,
eis que ocorre a judicialização. Um candidato, não aprovado na fase final da seleção, interpôs
ação judicial, distribuída ao Juízo da 4ª Vara Federal, sob o número 0022396-
03.2017.4.02.5102. Dessa forma, concretizou-se uma busca, pelas vias judiciais, da resolução
de um conflito que, no ponto de vista do canditato, havia se instaurado. Nas palavras do

8
Sandel, 2011, p. 213.
9
O texto da Portaria não estipula índice de reserva de vagas, ficando a critério da instituição a estipulação do percentual de reserva.
10
O registro encontra-se em ata.

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Ministro do STF Luís Roberto Barroso, “judicialização representa em grande parte a


transferência de poder político para o Judiciário, principalmente, para o Supremo Tribunal
11
Federal.
Antes de iniciar o primeiro semestre de 2017, em março desse ano, o juiz da causa,
que, nesse momento, ainda tramitava em 1ª instância, na base do Poder Judiciário, portanto,
proferiu decisão suspendendo o processo seletivo. O conteúdo de sua decisão, em síntese,
questionava a política de cotas raciais no certame, bem como a probidade administrativa dos
componentes da banca avaliadora. Essa suspensão é aqui compreendida como primeira marca
institucional de silêncio, que, conforme define Orlandi, “É o silêncio da opressão”. (1995, p.
104), portanto, violência simbólica que congelou o percurso do processo. Na prática, suspendeu
também o início do período letivo, adiando o início das aulas para os alunos aprovados.
Segundo postagem na página do PPGSD, em nota de esclarecimento na rede social
facebook,

Em decisão desse Juízo, foi suspenso o PPGSD da UFF, em hipótese levantada por
particular, mas também pelo MPF, em Ação Civil Pública. No processo existem
várias questões relevantes, entre elas a aplicação execução de ações afirmativas, a
partir da Portaria 13 do MEC.12

Consta no termo de audiência, realizada em sede judicial, em 17 de março de 2017,


que, para o juiz ,

As duas soluções possíveis aqui a fim de fazer uma moderação de interesses, são: 1a.
) suspender o concurso em face dos erros que contém, ou 2º.) não suspender o
concurso, mas sim manter o autor-candidato no programa na qualidade de “sub-
judice”, assim preservando seu eventual direito e evitando maior prejuízo ao
andamento do Programa. Como já disse, os ônus e responsabilidade da suspensão
não são do Juízo ou do MPF, mas da própria UFF, que, embora alertada pelo MPF,
não melhorou o Edital. Não obstante isso, interessa ao Juízo providenciar a decisão
menos gravosa. A segunda solução não foi dada inicialmente pois, em princípio,
prefere o juízo não determinar isso unilateralmente, ainda mais quando há notícia de
que o projeto do aluno não é satisfatório. Porém, para evitar delongas para quase uma
centena de alunos a melhor solução é a segunda.”13 (Grifei.)

11
http://www.conjur.com.br/2009-mai-17/judicializacao-fato-ativismo-atitude-constitucionalista
12
https: //PT-br.facebook.com/permalink.php
13
Trecho da termo de audiência, disponível em https: //PT-br.facebook.com/permalink.php

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Segundo Kabengele Munanga, ao prefaciar a obra Racismo & Sociedade: novas


bases epistemológicas para entender o racismo14, fazendo uma análise dos argumentos
daqueles que se colocam contra a política pública de ação afirmativa,

Imputar à ação afirmativa as divisões inerentes à história e à estrutura da sociedade é


negar a própria história e a estrutura da sociedade e substituí-las pela mágica da
imaginação criativa de nossos cientistas e jornalistas. É interessante como eles
conseguem, pelo jogo das palavras e dos exemplos propositadamente escolhidos,
agradar a inteligência e inverter a lógica, transformando a busca dos caminhos e das
soluções em fatores causadores dos problemas. 15

Uma Audiência Pública, sob a presidência do juiz da causa, foi realizada no dia 20 de
julho de 2017, nas dependências da Faculdade de Direito – UFF, para o debate de três temas:
ações afirmativas, autodeclaração e nota de corte. Essa diversidade temática diluiu o debate,
invisibilizando a demanda central que deu origem à judicialização do concurso.
Nas palavras do presidente da audiência, na dinâmica da Audiência Pública, cada um
dos inscritos teria 10 minutos para falar, momento seguido de perguntas formuladas pelos
componentes da bancada, com previsão de réplica e tréplica. A primeira testemunha, uma
professora, que explanou sobre autodeclaração e banca verificadora, falou, nas palavras do
próprio juiz, durante 1h10min, entre sua explanação inicial e respostas às questões levantadas.
O segundo orador, que também representava uma fala especializada, não levou menos tempo.
O terceiro, representante cuja fala também pode ser compreendida como especializada no lidar
com a temática, não ficou longe. A “delonga”, retoma-se aqui a seleção vocabular do juiz em
sua primeira decisão judicial, contribuiu significativamente para a diluição ainda maior dos
pontos relevantes para o processo judicial propriamente dito.
Vale ressaltar que essa “aparente democratização” do desenrolar processo, não se
confirma, porque houve cortes, interrupções, imposição de sentidos e isso, como bem diz
Orlandi, tem relação com silêncio, “Poder-se-ia falar do modo como a censura funciona do lado
da opressão. Mas isto não tem nenhum mistério: proíbem-se certas palavras para se proibirem
certos sentidos.” (1995, p. 78).

14
Moore, 2007.
15
Moore, 2007, p. 15-16.

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As palavras enunciadas pela representante do coletivo Quilombo16, aluna preta do


PPGSD, ao fazer uma “pergunta” à testemunha especialista que havia feito uma (de/a)longa(da)
explanação sobre banca de aferição, contribui para “descobrir” o cenário:

A gente tem pouco espaço de fala na audiência e tivemos pouca representação,


inclusive dos estudantes negros da UFF. É importante ressaltar que a luta dentro da
UFF contra as fraudes, contra o racismo, tem sido sofrida e denunciada...

Nesse momento a fala foi interrompida pelo juiz que solicitou sua identificação. E,
feita a devida identificação, a estudante continua seu questionamento:

Nesse momento, gostaria de fazer uma pergunta, na verdade uma complementação


de uma informação que a gente teve essa semana, que na UFF vários programas de
pós-graduação não estão obedecendo ao determinado pela portaria, ao contrário do
PPGSD que se vê arrolado nesta ação judicial... Eu estou aqui há mais de uma hora
e chamei ela (sic) três vezes para saber quando é que a gente poderia ter o direito de
fala, e de fato os colegas da graduação e da pós estão aqui esperando o direito de a
gente poder falar, porque nós somos sujeitos diretamente atingidos, por essas ações
que foram dirigidas de forma extremamente ofensiva aos estudantes cotistas desse
programa e até agora nenhuma decisão do juízo pedindo retratação sobre o que foi
dito das acusações falsas contra os estudantes cotistas, usando inclusive a exposição
dessas pessoas e de professores nas redes sociais, chamando de beneficiados pelo
programa, ou que não houve lisura ao selecionar os estudantes negros. (Grifei.)

A representando do coletivo, ao ser novamente interrompida pelo juiz, que tentou se


justificar diante da fala apontando a dificuldade de se fazer uma Audiência Pública, dizendo
inclusive que “poderia nem ser feita”. A aluna identificou outra marca de silêncio naquele
momento solene:

É que nós temos aqui especialistas que não foram aceitos para falar aqui também. E,
além disso, nós temos os coletivos negros que estão fazendo a denúncia de fraude e
que tem uma ligação direta com os temas debatidos aqui, mas que não estão tendo o
direito de fala.

A justificativa do juízo veio prontamente e baseou-se no grande quantitativo de


pessoas arroladas pela UFF, esclarecendo que a fala da aluna (dos alunos) já estava garantida,
para próxima audiência.
O silêncio imposto pode ser situado no campo do racismo institucional, conceito que,
segundo esclarecem Pires & Félix,

16
Coletivo de estudantes negros da pós-graduação do PPGSD.

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(...) foi pensado com o objetivo de evidenciar a reprodução do racismo, a seletividade


racial, dentro das instituições públicas e privadas, mostrando os marcadores da
diferença ente negros e brancos. Por conseguinte, demonstra a diferença de
tratamento e oportunidades, dentro dos espaços privilegiados, em razão da cor, raça
ou etnia. 17

A ação de silenciamento de vozes pode ser questionada: Quem não diz? Quem não
permite dizer? Por que não se permite dizer? Para quem não se diz? O que não se diz? A
resposta talvez seja a já enunciada por Orlandi: “Essa situação corresponde a uma forma direta
e sem sutilizas da política do silêncio, ou melhor, do silenciamento: se obriga a dizer “x” para
não deixar a dizer “y”. (1995, p.83).
Os silêncios impostos pelo processo de judicialização contribuem para silenciar a
efetiva presença dos alunos cotistas, mas não só, também a dos autodeclarados negros
aprovados na ampla concorrência, apagando o sujeito, invisibilizando sua existência em mais
um espaço institucional, o que configura uma prática de reprodução da estrutura social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

D’Adescky muito contribui para apontar marcas muito significativas nesse processo
ao qual foi submetido o PPGSD. De acordo com o pesquisador, “há ainda uma longa trilha a
ser percorrida, no sentido do encontro de uma sociedade menos desigual. Do mesmo modo,
tanto as políticas de ação afirmativa, como o cenário socioeconômico recente de queda das
assimetrias sociais e raciais estão sujeitos a sérias ameaças. (2015, p. 26).
Ora, mesmo com as transformações que marcam o cenário da graduação em Direito
da UFF, na pós- graduação, cujo processo inicia-se em 2017, as barreiras iniciais ainda não
foram superadas. Por isso a importância de, já neste momento, romper o silêncio institucional,
que tem relação com racismo institucional, apontando o silêncio e significando-o. Mesmo
sendo um enfrentamento difícil, significa movimento no sentido de fazer valer direitos que são
hoje constitucionalmente garantidos.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (organizadores). 13 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

17
2017, 359.

1072
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Souza. Rio de Janeiro: Cassará Editora, 2015, p. 15-69.

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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp,
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ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil: (1930/1973). Petrópolis, Editora Vozes, 2012.

TEIXEIRA, Moema De Poli. Negros na Universidade: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, Pallas, 2003.

WALTENBERG, Fábio; CARVALHO, Márcia de. Cotas aumentam a diversidade de estudantes sem
comprometer o desempenho? Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 7, p. 36-77, 2012. (Disponível em
http://www.proac.uff.br/cede/sites/default/files/TD73.pdf).

______________, Elementos para uma definição de justiça em educação. Outubro, 201. (Publicado nos Cadernos
Cenpec. Pesquisa e ação educacional. V. 3(1), pp. 41-62, 2013. (Disponível em:
http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/).

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ENSINO JURÍDICO NO BRASIL:
A PREPARAÇÃO MULTIFUNCIONAL

SOUZA, Mylena Devezas.


Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito e Sociologia -UFF
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de.
Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida, UVA

RESUMO

A pesquisa visa analisar a questão da preparação do estudante de direito brasileiro em comparação com
a preparação jurídica de outros países, diante da ausência de necessidade de curso de formação específica
para certas atuações profissionais após a conclusão da universidade, como ocorre na advocacia.
Analisam-se ainda os casos em que apesar de ocorrer curso de formação após a aprovação em concurso
público, a duração do curso pode não ser suficiente para a preparação de profissionais que ocuparão
importantes cargos. O objetivo é analisar os problemas gerados por esta formação multidisciplinar e
verificar possíveis impactos no desempenho profissional dos operadores do direito. Como fonte de
pesquisa serão analisados editais de Concursos Públicos e do Exame Nacional da OAB para verificar os
requisitos de ingresso e eventuais necessidades de cursos preparatórios para o exercício da função.

Palavras-Chave. Ensino Jurídico; Curso de Formação; Concurso Público.

ABSTRACT

The research aims at analyzing the issue of the preparation of the student of Brazilian law in comparison
with the legal preparation of other countries, due to the absence of a need for a specific training course
for certain professional activities after the university conclusion, as in the law. It is also analyzed the
cases in spite of the fact that a training course takes place after the approval in public competition, the
duration of the course may not be sufficient for the preparation of professionals who will occupy
important positions. The objective is to analyze the problems generated by this multidisciplinary training
and to verify possible impacts on the professional performance of the operators of the law. As a source
of research, public tender bids and the OAB National Examination will be analyzed to verify entry
requirements and possible needs for preparatory courses for the exercise of the function.

Keywords. Legal Teaching; Graduation course; Public Contest.

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INTRODUÇÃO

O curso de direito é tradicionalmente um dos mais procurados pelos estudantes ao


ingressar na universidade diante da possibilidade de amplo mercado de trabalho após a
formação universitária, fato este comprovado pelas elevadas notas de corte no vestibular para
o ingresso no curso nas Universidades Públicas. Entretanto, o ensino jurídico enfrenta alguns
problemas que precisam ser superados, um deles diz respeito à formação multifuncional.
O bacharel em direito pode se tornar advogado apenas pela aprovação no Exame
Nacional da OAB, pode ainda prestar concurso e se tornar servidor judiciário, seja como
analista ou como técnico, ou seguir carreira como delegado, como docente, como diplomata,
como juiz, como promotor, como procurador, dentre outras possibilidades de carreira pública
jurídica, sem contudo, que haja necessariamente a exigência de formação em um curso
preparatório específico para o cargo almejado.
A ampla possibilidade de cargos e empregos no mercado de trabalho para um bacharel
em direito apesar de ser um dos atrativos pra o ingresso no curso, prejudica a formação do
profissional, já que há apenas uma formação para diversas profissões jurídicas, as quais
possuem práticas diferenciadas. Exemplifica-se com o caso de juízes e advogados, enquanto
estes precisam defender seu cliente buscando a norma que lhe é mais favorável, aqueles
precisam aplicar a legislação mais adequada ao caso concreto a partir de uma imparcialidade.
De acordo com o Censo da Educação Superior o curso de direito é um dos que mais
recebe matrículas e mais acrescenta profissionais no mercado de trabalho, embora não
necessariamente todos sigam a carreira jurídica, o número de bacharéis em direito é cada vez
mais alto, assim como o número de advogados inscritos nos quadros da OAB.
O problema é que após a aprovação no Exame Nacional da OAB o bacharel em direito
pode automaticamente atuar como advogado, sem que ocorra uma preparação específica para
isso. Se enquanto estudante o bacharel não teve contato com a prática de escritórios de
advocacia, o exercício da mesma torna-se complicado, por ser completamente diferente da
prática no serviço público.
Em outros países, como na França, após a aprovação na prova para a advocacia, o
bacharel precisa passar por um curso de formação, preparando-o de uma forma mais adequada
a profissão a ser realizada. No Brasil a ausência de cursos de formação não é exclusiva da
advocacia, sendo poucos os concursos públicos que condicionam a aprovação no curso de
formação para o início da prática profissional.

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Na realidade, na maior parte dos editais de concursos públicos não preveem a


obrigatoriedade de participar de cursos de formação, apesar de existirem, não sendo claro para
o candidato quando do momento da inscrição o período de formação ou sequer as regras dos
cursos.
Analisam-se aqui, editais de concursos públicos para mapear casos em que há ou não
previsão de curso de formação após ou durante o processo seletivo, para por fim, verificar os
possíveis problemas gerados pela formação jurídica multifuncional presente no Brasil
comparando com outros países em que o exercício profissional depende de aprovação em curso
específico para o curso almejado.

1. PANORÂMA DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL

No Brasil existem cerca de 1240 cursos de direito segundo informações do Conselho


Nacional de Justiça1 em 2010, além disso, em 18 de novembro de 2016 a OAB2 registrou um
milhão de advogados inscritos em seus quadros, número esse que não leva em consideração as
inscrições suplementares e as de estagiários. Segundo dados do INEP (2016) o curso de Direito
em 2016 foi o curso com maior número de matrículas, totalizando 862.234, destes 255.128
ingressantes e 107.909 concluintes.
Percebe-se assim a alta procura do curso de direito no Brasil, sendo essa procura
ocasionada pelo elevado número de cargos possíveis após a obtenção do bacharelado em
direito. Afinal, o bacharel em direito possui um alto número de concursos públicos nos quais
se encontra apto a se inscrever, seja para advogado público, promotor, procurador, juiz,
delegado, diplomata, analista de tribunal, juiz federal, juiz do trabalho, juiz do tribunal estadual,
dentre tantos outros.
No Brasil o ensino jurídico se dá a partir do bacharelado em direito com duração de
cinco anos, durante o qual há não somente o curso das disciplinas teóricas em uma carga horária
estabelecida pela universidade, mas ainda a realização de estágio obrigatório a partir do sétimo
período.

1 Fonte: https://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/brasil-tem-mais-faculdades-de-direito-que-china-eua-e-europa-
juntos-saiba-como-se-destacar-no-mercado.ghtml
2
Fonte: https://jota.info/carreira/oab-registra-1-milhao-de-advogados-em-seus-quadros-18112016

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Com a obtenção do bacharelado em direito, o candidato se encontra apto a exercer


diversas carreiras jurídicas, já que não são todos os concursos que exigem outras condições, tais
como pós graduação lacto ou strictu sensu, ou ainda algum período mínimo de prática jurídica.

2. CURSO DE FORMAÇÃO PREPARATÓRIO PARA CARREIRAS JURÍDICAS

O ingresso em carreiras jurídicas na área privada é realizado por meio de processos


seletivos das empresas, onde em sua maioria exige-se apenas certa titulação e a inscrição no
quadro da OAB. Já no setor publica o ingresso é feito por meio de concursos públicos para as
mais diversas áreas.
Para seguir a carreira da advocacia o bacharel em direito precisa ser aprovado no
Exame Nacional da OAB, o qual consiste em uma prova de duas fases, sendo a primeira
objetiva e a segunda discursiva. O exame pode ser prestado a partir do nono período da
faculdade e possui diversas seleções todos os anos. A aprovação na primeira etapa exige o
acerto de pelo menos metade das cerca de 80 questões objetivas, tornando o candidato apto para
a segunda etapa.
Na segunda fase o candidato precisa elaborar uma peça processual e responder quatro
questões discursivas, o erro na identificação correta da peça processual adequada para o caso
apresentado suspende a correção da prova. A aprovação na segunda etapa se dá com a obtenção
mínima do grau seis ao somar a pontuação da peça e das questões. Após a conclusão do
bacharelado e com o certificado da aprovação no Exame Nacional da OAB, o bacharel em
direito pode solicitar a sua inscrição nos quadros da OAB, sem qualquer outra exigência.
Não ocorre, portanto, uma preparação específica para o exercício de advocacia, nem
há a exigência de curso de pós-graduação, sendo o bacharel em direito apto para advogar. O
exercício profissional em outros cargos jurídicos a partir da aprovação em concurso público e
conclusão do bacharelado também são permitidos, como verificamos em alguns editais
analisados.
A Advocacia Geral da União publicou em 27 de agosto de 2013 o edital nº 04
referente ao concurso público para formação de cadastro de reserva e provimento de cargos de
procurador federal de 2ª categoria. O item 16 de referido edital determina a matrícula
obrigatória no curso de formação, o qual possui carga horária de 88horas presenciais, em tempo

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integral, sendo este a segunda etapa do concurso. Ao final do curso há uma avaliação cuja nota
será somada a nota da primeira etapa.
O Ministério Público do Trabalhou publicou o Edital nº 136 em 09 de maio de 2017
sobre o 20º Concurso Público para provimento de cargos de Procurador do Trabalho. O item
2.17 do edital exige que o candidato possua três anos de exercício de atividade jurídica.
Entretanto no edital não há previsão de Curso de Formação para os novos procuradores.
O Ministério Público Federal publicou o Edital nº14/2016 no dia 29 de agosto de 2016
referente ao 29º Concurso Público para provimento de cargos de Procurador da República. O
artigo 6º § 2º prevê a comprovação de três anos de exercício de atividade jurídica após a
obtenção do grau de bacharel. Não há no edital qualquer previsão de Curso de Formação para
os novos procuradores.
O Tribunal Superior do Trabalho publicou o Edital em 29 de junho de 2017 referente
ao 1º Concurso Público Nacional Unificado para ingresso na carreira da Magistratura do
Trabalho. O edital também prevê a comprovação de três anos de exercício de atividade jurídica
após a obtenção do grau de bacharel. Porém, trata-se de mais um edital sem previsão de curso
de formação para os novos juízes.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região publicou o Edital nº TRF2-EDT-
2016/00009 em 17 de novembro de 2016, para Concurso público de provas e títulos destinado
a selecionar candidatos para provimentos de cargos de juiz federal substituto da 2ª região. O
item 2.6 do edital prevê como requisito o exercício de três anos de atividade jurídica após a
obtenção do diploma em direito, mas não há qualquer previsão quanto a obrigatoriedade de
curso de formação para os novos juízes.
Como se vê nos exemplos acima são poucos os cargos que exigem a formação
complementar específica para o cargo, a preparação do próprio professor de direito é por vezes
falha, já que em diversos cursos de direito apenas com o bacharelado é possível o ingresso na
carreira de docência, sem que se exija qualquer curso de pós-graduação, seja lato ou strictu
senso.
O bacharel em direito por diversas vezes não se encontra apto a lecionar, já que por
não ser um curso de licenciatura, não há matérias preparatórias para o exercício da docência.
Além disso, até mesmo em alguns Programas de Pós-Graduação o estágio-docência só é
obrigatório para bolsistas vinculados ao CNPQ, não sendo obrigatório para os não bolsistas,

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que por vezes ao concluir o mestrado já se candidatam como professores, iniciando a docência
sem qualquer preparação prática.
A preparação prática do docente jurídico é importante, de modo que os estágios de
docência precisam proporcionar de fato uma experiência prática da profissão.

Da mesma forma, e tendo isto como supedâneo, os cursos jurídicos de pós-graduação


strictu sensu não podem, em seus estágios de docência, limitar a atuação do estagiário
a aplicar trabalhos, fazer controle de frequência e tomar conteúdos, assim centrando
sua presença principalmente nas denominadas disciplinas propedêuticas. Isso seria
formar auxiliares de cozinha, jeitosos, mas sem criatividade, raciocínio autônomo ou
qualquer compromisso para além de suas panelas (salvo vocacionadas e honrosas
exceções). A instituição de ensino superior deve ter como desiderato formar chefs
jurídicos: surpreendentes, habilidosos, semeadores de novos paradigmas, lastreados
na ciência e na renovação constante de seus saberes e, sobretudo, comprometidos
com “as fomes” do mundo. (FINCATO, 2010, p. 36)

A ausência de cursos específicos de formação para o cargo jurídico não somente


prejudica aquele recém aprovado, como também as pessoas que receberão seus serviços, afinal
a falta de prática e de conhecimento do funcionamento pode gerar erros prejudiciais, como a
perda de um prazo processual ou a apresentação de peça processual errada para a fase do
processo.
O estudante que durante a graduação em direito fez estágio no serviço público
desconhece a rotina dos escritórios de advocacia, e possui dificuldade para lidar com a pressão
dos prazos e elevado número de processos para acompanhamento. Outra questão é que no
serviço público, como na defensoria, os prazos são contados em dobro, ao passo que para
advocacia privada a contagem é simples, podendo ocasionar confusões para o jovem advogado.
Questiona-se assim, a importância da previsão de cursos de formação já nos editais
dos concursos públicos, assim como no edital da AGU, de modo a avaliar a prática e vocação
do candidato para o cargo específico e evitar possíveis prejuízos para os jurisdicionados.

3. DIREITO COMPARADO

No Brasil a formação jurídica se dá a partir da obtenção do grau de bacharelado em


direito, entretanto essa formação não é a mesma que a exigida em outros países, por exemplo
nos Estados Unidos a faculdade de direito é como se fosse uma pós graduação.

Acho que o primeiro fato que precisa ser observado quanto às faculdades de Direito
nos Estados Unidos é que elas fazem parte de uma estrutura de pós-graduação. Após
terminar o Ensino Médio, o estudante norte-americano ingressa no “college”, que

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geralmente integra uma universidade (embora possa existir de forma autônoma) e


outorga títulos equivalentes ao curso superior no Brasil, como o de bacharel.
Após concluir essa etapa, o estudante pode se candidatar ao ingresso em uma
faculdade de Direito. Uma das implicações mais notáveis dessa diferença é que os
alunos são mais “velhos” que nos cursos jurídicos brasileiros. Não é raro encontrar
calouros com 27 anos nos corredores das faculdades nos Estados Unidos. Outra
consequência é que os alunos têm mais experiência profissional, já que muitos
preferem trabalhar após concluir o “college” e só então decidem ingressar na
faculdade de Direito. (DE MACEDO, 2013, p. 21)

A diferença não se encontra apenas na estrutura do ensino, mas até mesmo no formato
aplicado nas aulas para o ensino do direito. Enquanto que no Brasil a maior parte das
Universidades utilizam o estudo baseado nas doutrinas e legislações com explicações pelo
professor podendo ou não haver problematização em sala de aula, para posterior avaliação, nos
Estados Unidos as aulas possuem um formato diferente.

Apenas para deixar claro: a aula consiste em resolver os problemas. Eles não são
complementos ao que o professor ensina.
O que acabo de explicar não se confunde com o “estudo de caso” (algo muito
diferente). Neste há um caso (geralmente um precedente importante) decidido por
um tribunal (talvez a Suprema Corte) e os alunos devem saber o que aconteceu
(entender os fatos), o que o Judiciário decidiu e o fundamentos da decisão. (DE
MACEDO, 2013, p. 24)

O estudo pelos extensos manuais e citações de diversos posicionamentos da doutrina


é uma característica do ensino jurídico brasileiro que não é compartilhada pelo ensino jurídico
americano.

Um aspecto que acho interessante destacar é que, ao estudar para uma disciplina, os
norte-americanos não costumam ler doutrina. Em regra, o estudante se prepará para
uma aula apenas lendo a legislação, a jurisprudência ou um livro básico (só
explicando os conceitos mais rasos). (DE MACEDO, 2013, p. 24)

O ensino jurídico brasileiro também não é similar ao ensino jurídico europeu. Afinal
no Brasil é preciso cursar cinco anos de bacharelado, dois anos de mestrado e quatro anos de
doutorado para que uma pessoa tenha o título de doutor em direito, totalizando onze anos de
estudos.

Na Europa a formatação do ensino também destoa da estrutura brasileira Tendo que


se adaptar ao sistema universitário europeu – sem no entanto deixar de protestar – as
Facultés de Droit oferecem basicamente quatro diplomas: (1) a Licence, obtida após
três anos de curso, (2) o Master 1, constituindo um quarto ano de curso, (3) o Master
2, constituindo um quinto ano de curso, (4) e o Doctorat, após três anos de pesquisas
e a defesa de uma tese. A obtenção do diploma de Master 1 – após quatro anos de
curso – autoriza a candidatura à profissões jurídicas como a advocacia, a magistratura

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ou o comissariado de polícia. Nas Faculdades de Direito, após cinco anos de curso e


a obtenção do Bacharelado, está autorizada a candidatura a todas as profissões
jurídicas, à exceção da docência superior em Direito. Nas Facultés de Droit, um
doutorado é condição essencial para que ocorra a agregação de um profissional à
carreira da docência. (FONTAINHA, 2014, p. 71)

Há ainda diferenças referente à prática profissional. Ao passo que no Brasil o exercício


a docência é raramente exclusiva nos cursos de direito, o mesmo não ocorre na França. No
Brasil o salário de professor exclusivo das universidades públicas não é tão elevado quanto de
outras carreiras jurídicas, de modo que é comum professores que também sejam juízes,
procuradores, promotores ou advogados, além do mais não há incentivo e fomento à pesquisa
científica jurídica, sendo pouquíssimos os professores de dedicação exclusiva.

Talvez a diferenciação profissional entre acadêmicos e práticos do direito na França


(Bourdieu: 1986) seja o contraste mais marcante entre lá e cá. A docência em Direito,
assim como a advocacia e a magistratura, são profissões que se exercem com
exclusividade, sendo raríssimas as exceções. É interessante notar que esta
exclusividade não toca apenas o corpo docente. O processo de formação dos
estudantes por lá também é bastante intenso, em período integral, não sendo raras
inclusive aulas e provas aos sábados. Um estudante de Direito francês tem por
principal ocupação esta condição, e é apenas no quarto ano que a faculdade o autoriza
a estagiar, o que é feito com dura e estrita supervisão da instituição. (FONTAINHA,
2014, p. 72)

Já no Brasil os cursos são oferecidos em sua maioria durante apenas um turno, de


modo que o estudante tenha o outro turno livre para a prática de estágio, que por muitas vezes
é iniciado logo no começo da faculdade, anos antes do período de estágio obrigatório.
Quanto ao exercício da advocacia há também uma grande diferença quando do seu
início, como já abordado em tópico anterior, no Brasil o exercício da advocacia se dá após a
aprovação no Exame Nacional da OAB habilitando o bacharel para o imediato exercício da
advocacia. Já na França a aprovação no exame para o exercício da advocacia apenas permite
ao candidato a inscrição no Centro Regional de Treinamento para a Profissão de Advogado3.

Uma das grandes diferenças entre o Examen d’Admission e o Exame de Ordem é


que a aprovação no primeiro dá direito ao candidato de inscrever-se em um CRFPA
para formação profissional, e a aprovação no segundo dá direito ao candidato solicitar
sua inscrição profissional nos quadros de uma OAB. (FONTAINHA, 2014, p. 77)

A própria aplicação do exame possui grandes diferenças. No Brasil

3
Tradução livre

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(...) o Exame de Ordem é composto por duas provas. A primeira prova é composta
de até oitenta questões de múltipla escolha, sendo habilitado para a segunda prova o
candidato que acertar ao menos metade delas, que versarão sobre as seguintes
disciplinas: Processo Civil, Processo Penal, Direito Civil, Direito Penal, Direito
Comercial, Direito e Processo do Trabalho, Direito Tributário, Direito
Constitucional, Direito Administrativo, Direitos Humanos e Deontologia. A segunda
prova é discursiva e dividida entre a “redação de uma peça profissional” –
comumente uma petição ou um parecer – e a resposta a “questões práticas, sob a
forma de situações-problema”, ambas sobre uma das matérias à escolha dos
candidatos: Direito Administrativo, Direito Civil, Direito Constitucional, Direito
Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Penal e Direito Tributário. Está
definitivamente aprovado no Exame o candidato que obtiver ao menos a nota seis na
segunda prova (FONTAINHA, 2014, p. 79)

Na França o Examen d’Admission também possui duas fases, entretanto as provas


aplicadas em cada uma destoam muito das aplicadas no exame brasileiro.

Há duas fases no exame. A primeira fase é composta de três provas de igual


coeficiente (peso 2): 1) uma prova de cinco horas de duração na qual o candidato
deve redigir uma Nota de Síntese com base em “documentos relativos a aspectos
jurídicos dos problemas sociais, políticos, econômicos ou culturais do mundo atual”;
2) uma prova de cinco horas de duração comportando duas redações visando avaliar
a capacidade do candidato ao “raciocínio jurídico”, uma sobre o Direito das
Obrigações, e outra, à escolha do candidato, sobre Processo Civil, Processo Penal ou
Processo Administrativo; e 3) uma prova de três horas de duração comportando uma
redação de caráter prático, sobre uma das disciplinas à escolha do candidato: Direito
das Pessoas e da Família, Direito Patrimonial, Direito Penal Geral e Especial, Direito
Comercial e dos Negócios, Processos Coletivos e Garantias, Direito Administrativo,
Direito Público das Atividades Econômicas, Direito do Trabalho, Direito
Internacional Privado, Direito Comunitário e Europeu, Direito Tributário dos
Negócios. Os candidatos aprovados para a segunda fase enfrentarão as cinco provas
seguintes, todas realizadas em sessões públicas: 1) uma exposição oral de quinze
minutos, após uma preparação de uma hora, seguida de quinze minutos de arguição
pela banca, sobre tema relativo a “proteção das liberdades e direitos fundamentais,
visando apreciar a capacidade de argumentação e expressão oral do candidato” (peso
3); 2) uma prova oral de quinze minutos, após uma preparação de igual tempo, sobre
tema de uma matéria não escolhida para a segunda prova da primeira fase (peso 2);
3) uma prova oral de quinze minutos, após uma preparação de igual tempo, sobre
uma das matérias seguintes: Processo Civil de Execução ou Processo Comunitário e
Europeu (peso 1); 4) uma prova oral de quinze minutos, após preparação de igual
tempo, sobre uma das matérias seguintes: contabilidade Privada ou Finanças
Públicas (peso 1); e 5) uma arguição oral na língua estrangeira escolhida pelo
candidato, dentre as opções: alemão, inglês, árabe clássico, chinês, espanhol,
hebraico, italiano, japonês, português e russo (peso 1). (FONTAINHA, 2014, p. 78)

Importante ressaltar que a aprovação no Examen d’Admission não garante a inscrição


do candidato nos quadros da equivalente à OAB, mas tão somente lhe dá o direito de se
matricular no CRFPA4. Outra diferença na aplicação dos exames é que na França este só pode
ser realizado em até três vezes, já que após a terceira reprovação o candidato perde o direito de

4
Centres Régionaux de Formation à la Profession d’Avocat

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ter acesso à profissão de advogado. Essa mesma regra é também aplicada na seleção da
magistratura francesa (FONTAINHA, 2014, p. 79).
Já no Brasil não há nenhum limite numérico de tentativas do candidato, seja para o
ingresso nos quadros da OAB ou para ingresso em concurso público, de modo que há aquelas
pessoas que se dedicam a realizar concursos pelo país, os chamados “concurseiros”.
Assim, após a aprovação o estudante francês inicia seu curso de formação profissional
para o exercício da advocacia.

Uma vez aprovados no Examen d’Entrée, os candidatos, doravante élèves-avocats


(alunos-advogados) devem seguir uma formação inicial de dezoito meses no seio dos
CRFPAs, financiados pelas contribuições dos advogados, pelo próprio Estado, e
pelas matrículas pagas pelos seus alunos (FONTAINHA, 2014, p. 80)

Após completos os dezoito meses de formação o aluno-advogado pode se submeter


então ao Examen de Sortie (exame de saída) do CRFPA. A aprovação neste exame
confere o CAPA, certificado necessário para o pedido de inscrição nos quadros do
Barreau e para o efetivo exercício da advocacia na França (FONTAINHA, 2014, p.
80)

A diferença prática não se restringe apenas à advocacia, já que há também um


processo seletivo diferente para o candidato à magistratura francesa, já que a seleção pode
ocorrer por meio de concurso público ou por meio de recrutamento lateral.

(...) para se tornar um magistrado deve ser selecionado em uma das formas dispostas
por lei e depois ter sido escolarizado na ENM, exceto aqueles que são dispensados.
(FONTAINHA, 2014 p. 158)

Além disso, a mera escolarização na ENM não garante o exercício da magistratura.

Isso porque que após a escolarização na ENM, um júri pronuncia-se sobre a


capacidade e a classificação final de cada auditor. Em seguida, este júri pode, para
cada candidato, declarar a capacidade geral, recomendar a repetição (um ano a mais
na escola), declarar a exclusão ou recomendar restrições funcionais (por exemplo: tal
magistrado nunca poderia presidir audiências para crianças). .(FONTAINHA, 2014
p. 159)

Resta claro, portanto, as diferenças existentes entre o ensino jurídico no Brasil e o


ensino jurídico nos Estados Unidos e na Europa, não foi possível aqui realizar uma análise
detalhada de todas as diferenciações, mas pretendeu-se aqui um panorama geral das principais
diferenças, seja na estrutura acadêmica ou na atuação prática após a conclusão do bacharelado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que no Brasil não há uma preparação específica para o cargo jurídico que
se pretende exercer, e quando há um curso de formação para aperfeiçoamento no cargo
raramente esse faz parte do processo seletivo, ou é de alguma forma condicionante ao exercício
da carreira almejada. A falta de uma formação específica para o cargo pode gerar dificuldades
para o ingressante na carreira e prejudicar sua atuação, bem como trazer prejuízos para os
jurisdicionados.
No Brasil criou-se uma indústria de cursinhos preparatórios para concursos públicos
e para o ingresso na OAB, Fontainha faz uma crítica do assunto ao dizer em seu artigo:

A autonomização das seleções e concursos jurídicos no Brasil é um fenômeno tão


possante que sequer os tribunais e as OABs conseguiram instrumentalizá-la
institucionalmente, mas o fazem financeiramente. Que quero dizer com isso? Ao
possuir na preparação boa parte de seus quadros, estas instituições não conseguiram
transformar as seleções em “medidores de vocação”, onde competências em
potencial poderiam ser testadas tendo em vista as necessidades que o trabalho
cotidiano de cada profissão impõe. No lugar de deixar que cada um afira os produtos
financeiros da atividade, as instituições progressivamente criam escolas para
competir neste mercado. Desta forma, muitas Escolas de Magistratura tem
essencialmente a função de preparar para o Concurso da Magistratura7. O mesmo
vem acontecendo com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Desde maio de
2009, quando o exame de ordem tornou-se unificado, tem proliferado pelo país os
cursos preparatórios organizados pelas Escolas Superiores da Advocacia (ESAs),
ligadas as Seccionais das OABs. (FONTAINHA, 2014, p. 77)

Não se faz a defesa aqui de que o modelo de ensino e prática jurídica do Brasil precisa
ser igual ao dos Estados Unidos ou da França, questiona-se apenas os problemas que podem
ser gerados para os jurisdicionados e para os ingressantes na carreira jurídica sem que ocorra a
preparação específica para o cargo a ser exercido.
A alteração do atual modelo de formação jurídica multiprofissional é importante para
que se possa preparar os profissionais de uma maneira mais adequada de modo a evitar
possíveis erros por falta de conhecimento prático, além de se proporcionar uma melhor atuação
profissional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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reavaliação. In Varia hist. [online]. 2017, vol.33, n.62, pp.419-458. ISSN 0104-8775. Disponível em <
http://www.scielo.br/pdf/vh/v33n62/0104-8775-vh-33-62-0419.pdf> Data de acesso: 01/11/2017

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http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2016/censo_superior_tabelas.pdf>
Data de acesso: 16/10/2017

MIAILLE, Michel e FONTAINHA, Fernando de Castro. O ensino do direito na França. In Revista direito GV
[online]. 2010, vol.6, n.1, pp.59-66. ISSN 2317-6172. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v6n1/04.pdf>. Data de acesso: 16/10/2017.

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Grupo de Trabalho 16

ARTE, MÍDIA
E DIREITOS HUMANOS:
O TEATRO, A FOTOGRAFIA,
O CINEMA E A TELEVISÃO

mlxxxvi
A VERDADE DE NIETZSCHE NA OBRA
A LIBERDADE GUIANDO O POVO DE EUGENE DELACROIX,
UMA PERSPECTIVA FEMINISTA

COELHO, Naiara
Estudante de mestrado do Programa de Sociologia e Direito da UFF

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar a obra A liberdade guiando o povo, de Eugene Delacroix a
partir do conceito de verdade apresentado por NIetzche no seu texto intitulado Verdade e mentira no
sentido extramoral, a partir de uma perspectiva feminista. Sem a intenção de faer uma análise artística a
perspectiva apresentado é do caráter representativo das imagens enquanto registros da história e de como
a imagem cria um aspecto de realidade. Para isso, a pesquisa traz as funções da imagem, o contexto da
Revolução Francesa, a atuação das mulheres na Revolução e a análise da obra.

Palavras-Chave. Representação, Mulheres, Veracidade.

ABSTRACT

The objective of this work is to analyze Eugene Delacroix 's The Freedom Guiding the People from the
concept of truth presented by NIetzche in his text Truth and lies in the extramoral sense, from a feminist
perspective. Without intending to make an artistic analysis the perspective presented is the representative
character of the images as records of history and how the image creates an aspect of reality. For this,
the research brings the functions of the image, the context of the French Revolution, the role of women
in the Revolution and the analysis of the work.

Keywords. Representation, Women, Veracity.

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INTRODUÇÃO

Ainda mais do que as palavras, imagens são capazes de nos contar histórias, passadas
ou inventadas repletas de ambiguidades, contradições e invisibilidades. Assim, o presente
trabalho se propõe a observar esses elementos de interpretação na obra de Eugene Delacroix,
intitulada A liberdade guiando o povo.
Essa ilustração hoje entendida como emblema da revolução Francesa nos permite
recontar a história da revolução a partir de uma perspectiva que a história não se empenhou em
fazer, a da luta das mulheres.
Considerado como o primeiro momento do feminismo enquanto movimento
organizado, a imagem símbolo da Revolução pouco e mal tem para nos dizer desse fato de tanta
importância, motivo pelo qual esta pesquisa alia a leitura da obra à perspectiva da história
feminista na Revolução Francesa.
Para melhor compreensão do tema, este artigo se divide em quatro momentos. O
Primeiro consiste na apresentação da imagem como registro da verdade, após contextualiza-se
a situação da França no período de revolução, para então se falar da atuação das mulheres no
período e, enfim, analisar a imagem proposta.
Encerra-se o trabalho apresentando as considerações finais do estudo.

1. A IMAGEM COMO REGISTRO DA VERDADE

Desde as pinturas rupestres, imagens são utilizadas para transmitir às gerações futuras
fatos ocorridos no passado. Seja por lazer, pela necessidade de registrar o cotidiano ou os
grandes acontecimentos, a reprodução de fatos, a partir de imagens, se apresenta como um
recurso visual de aprendizado.
A imagem pode representar ideia políticas, valores morais ou crítica social que se quer
propagar, ou inculcar na mente do público. Contudo, a efetividade das representações
dependem da existência de uma aceitação coletiva, propícia à adesão de ideias ou da construção
de um novo imaginário social. Nesse sentido, Bordieu (2001) nos ajuda a pensar o poder da
criação de uma nova realidade, a partir do conceito de poder simbólico, por meio do qual se
entende que é o “poder sobre o uso particular de sinais (...) sobre a visão e o sentido do mundo
natural e social (...) que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe” (BORDIEU,
2001, p. 72).

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Utilizada como estratégia de ensino para populações não alfabetizadas, as ilustrações


conseguem passar mensagem sem que seja utilizada uma palavra sequer. De forma enfática e
lúdica, a imagem é capaz de traduzir sentimentos e contar histórias, como os documentos
escritos, como fez a Igreja Católica para dissipar a mensagem de seu líder.

Porque o que a escrita (scriptura) proporciona às pessoas que lêem, a pintura oferece
aos iletrados (idioti) que a olham, porque esses ignorantes vêem aí o que devem fazer;
aqueles que não conhecem as letras lêem aí, de modo que a pintura desempenha o
papel da leitura, sobretudo entre os pagãos (gentibus) (MAGNO, 1982).

Assim, a utilização da imagem enquanto método de ensino reforça o fato de que


ilustrações são também registros utilizados para representar épocas em que não se vive, mas
onde é possível se retornar através de sua representação visual. Trata-se, então, da possibilidade
de resgatar a memória visual e do entorno sociocultural, através da análise da interpretação da
vida histórica (KOSSOY, 2001, p.55).
Para a transmissão de fatos antigos, quando não havia fotografia, a captação de
imagens era realizada por artistas, os grandes responsáveis por retratar a realidade e produzir
registro dos grandes acontecimentos. Que mais tarde servem como símbolos e se tornam
emblemas da história.
Muitas vezes financiados, é grande o número de obras que foram encomendadas,
assim, ainda que a as obras tenham como propósito de contar uma história, Kornis (1992), nos
lembra de que a imagem poderá ser a realidade ou uma representação (KORNIS, 1992, p.243),
algo criado não apenas com a intenção de reprodução da realidade, mas de uma reinterpretação
do que se vê.
Para nos ajudar a pensar a observação de Kornis (1992), Nietsche (2001) explica que
a verdade jamais será única, haverá sempre múltiplos pontos de vista que são denominados por
ele como “verdade do rebanho”. Isso porque, a verdade advirá do que cada grupo decidir ter
como real e útil de assim ser mantido.
Para Nistzche (2001), a verdade é uma construção que decorre da vida no rebanho,
grupo de socialização, e da linguagem que lhe corresponde. Onde a verdade é dita a partir do
critério de utilidade e dos interesses a que se propõe (NIETZCHE, 2001, p. 13).
Dessa forma o artigo proposto tem com objetivo analisar a verdade do rebanho de
revoltosos da Revolução Francesa através da análise do quadro A liberdade guiando o povo de

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Eugene Delacroix, a partir do fato de que a Revolução Francesa é considerada um marco do


feminismo como movimento organizado.
Por esse motivo a sessão seguinte se prestara a contextualizar a França no período da
mencionada revolução.

2. A REVOLUÇÃO FRANCESA

Iniciada em 1789, a Revolução Francesa decorreu da revolta dos burgueses contra o


Antigo Regime, onde o poder decorria da hereditariedade e da benção divina concedida aos
monarcas, enquanto a população - majoritariamente miserável, era cada vez mais explorada
pelos governantes e a burguesia, como classe em ascensão, não conseguia gozar dos privilégios
exclusivos da Monarquia e da Igreja Católica.
Neste período a França era o país mais importante, e mais contraditório, da Europa
continental. Quanto ao desenvolvimento econômico, apesar de ter iniciado a industrialização,
ainda era majoritariamente agrário, com uma população significativamente maior do que os
países que se destacavam a época, como a Inglaterra, tendo atingido a marca de 25 milhões de
habitantes, uma população muito superior à de qualquer outro país da Europa ocidental. Paris,
a capital, era a cidade mais populosa do planeta, e já era a capital intelectual de Europa.
No que tange às decisões políticas, a última palavra era do rei. Ainda que dividida em
três ordens ou estados, o topo da hierarquia era do monarca e abaixo dele estavam o clero ou
Primeiro Estado, nobreza ou Segundo Estado, e povo ou Terceiro Estado.
Essa última característica corresponde a um dos grandes motivos da Revolução. Para
Toqueville, francês e parlamentar que estudou a democracia francesa, a centralidade das
decisões se uniformidade administrativa estabelecida na França constituiu um fator de
insegurança da população, que, apesar de ser a maioria, não tinha seus direitos respeitados e
muito menos suas vontades políticas eram ouvidas (TOQUEVILLE, 1979, p. 132).
Dessa questão decorre também outro fator decisivo para a revolução, na França, não
havia liberdade para que a população formasse um corpo político que transmitisse suas anseios
e demandas, tudo devido a grande repressão exercido pelo Estado.
Nem mesmo as classes privilegiadas se apoiavam politicamente para demandar
mudanças na estrutura de poder. Nobreza e burguesia, que detinham grande parte do poder

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econômico não foram aliadas em nenhum momento e, estrategicamente, isso desarticulou


qualquer forma de articulação de poder perante a monarquia.
O grupo que liderou a revolução foi o de burgueses, a classe que, no período
desfrutava da riqueza do comércio, mas não do status de alta sociedade, muito menos dos
privilégios do clero ou da nobreza de não pagar impostos ou ser mantido pelo pagamento dos
impostos da população.
Os burgueses compunham um grupo em que predominavam os comerciantes, mas
também havia intelectuais que juntos lutaram pelo ideal que mais tarde ficou conhecido como
o lema da Revolução: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Conhecida então como uma revolução que pregava a democracia, a Revolução
Francesa, contudo não deu conta de atender aos anseios de todos os cidadãos franceses que
estavam descontentes com o governo monárquico. Robespierre, filósofo e apoiador da
Revolução francesa afirmava que “O governo da Revolução é o despotismo da liberdade contra
a tirania” (SCHILLING, 2017, s.p.), mas essa liberdade não era para todos, metade da
população não teve suas pautas sequer ouvidas: as mulheres.

3. AS MULHERES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

No que se pese a repercussão positiva do fim do Antigo Regime e da monarquia


francesa, abolindo-se a manutenção de privilégios pela hereditariedade ou sangue, existem
críticas importante as serem feitas à Revolução Francesa, como a forma com que se deu a
participação das mulheres e a repercussão da revolução para este grupo específico.
Conforme Toqueville, um dos grandes problemas da Revolução Francesa foi tratar o
cidadão de forma generalizada, não se atentar as demandas específicas e, assim com a religião,
trazer uma proposta que se vende como justa a toda uma população, heterogênea como todas
são.

(...) ela [Revolução Francesa] considerou o cidadão de um modo abstrato, fora de


todas as sociedades particulares, assim como a religião considera o homem. (...) Não
procurou saber qual era o direito particular do cidadão francês, mas quais os direitos
e deveres gerais em matéria política (TOCQUEVILLE, 1979, p.89).

Parte dessa heterogeneidade mencionada por Toqueville, as mulheres, não foram


consideradas em suas individualidades. Além de constituir o grupo de manifestantes,

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estrategistas e burgueses que lutavam intensamente pelos seus direitos, existiram conquistas
importantes realizadas por mulheres e pouco evidenciadas.
Um desses fatos foi a Marcha de 5 de outubro de 1789, considerada a primeira
intervenção da multidão feminina na Revolução, marcou o início da participação política
expressiva das mulheres do povo no processo revolucionário.
Essa manifestação ocorreu principalmente devido a um suposto novo complô dos
aristocratas que queriam derrotar o povo pela fome. Para as mulheres do povo, era o pior dos
mundos: a escassez, os autos preços dos alimentos e o desemprego causado pela retração do
comércio da moda e da criadagem doméstica, afetados seriamente pela crescente emigração
dos nobres. Nessa situação as mulheres começaram a agir de formas não tradicionais (LEVY,
1980, p. 15), saindo em procissões e marchas rituais quase diárias.
No dia 05 de outubro, a continuada falta de pão e as notícias de ofensas ao povo por
parte dos oficiais em um banquete ocorrido em Versalhes foram o estopim de uma insurreição.
Seis mil mulheres de Paris e das regiões próximas, com a ajuda armada de parte da Guarda
Nacional, marcharam até Versalhes para levar o rei até o Palácio de Tulherias (MARAND,
1989, p. 72), onde havia maior vigilância popular.
As mulheres conseguiram alcançar o objetivo que pretendiam e foram retratadas na
ilustração anônima, conhecida como Marcha das Mulheres.

Fonte: Ilustração alusiva à Marcha sobre Versalhes, Museu Carnavalet, Paris.


5 de outubro de 1789

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Para Joan Landes, a Marcha de Versalhes trata-se de uma longa tradição da


participação feminina em protestos populares, especialmente durante crises de subsistência
(LANDES, 1988, p. 110). Isso porque, além de responsáveis pelo orçamento doméstico e pela
alimentação da família, o comércio de alimentos em Paris, era dominado pelo trabalho das
mulheres no mercado central (MERCIER, 1782, p. 241), fato que auxiliou o poder de
autonomia, negociação, interesse político e contato com pessoas importantes da cidade.
Assim, importante ressaltar que, à época mulheres lutavam pela igualdade tanto
quanto seus companheiros homens, de forma organizada, como por meio da Sociedade das
Republicanas Revolucionárias, de Claire Lacombe e Pauline Léon, como as ativistas Théroigne
de Méricourt e Olympe de Gouges, mulheres reivindicavam por direitos políticos dentro e fora
da discussão da constituinte (BIROLI, 2014, p. 20). Contudo, ainda que engajados com a causa
da Revolução e seus três lemas, a maioria dos revolucionários franceses ou eram
desinteressados quanto aos direitos das mulheres ou eram hostis quanto ao assunto.
Muito do machismo dos revolucionários advém da inspiração teórica da revolução:
os estudos de Rousseau. Tendo como objeto de estudo dois dos três lemas da Revolução
Francesa – liberdade e igualdade , Rousseau também afirmava que a liberdade dos homens não
incluía as mulheres, que eram “naturalmente” pretensas à esfera doméstica (PATEMAN, 1989,
p. 26).
Externalizando suas reivindicações das mais diversas formas, Olympe de Gouges
ganhou notoriedade ao escrever a obra “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã”, em
1791, em resposta ao documento elaborado pelos revolucionários intitulado “Declaração dos
direitos do homem e do cidadão” onde, de forma proposital não se inclui os direitos das
mulheres sob qualquer perspectiva (SCOTT, 2002, p. 63). A obra de Gouges se trata da
transcrição da “Declaração dos direitos do homem de do cidadão” para o feminino com
acréscimos importantes para as especificidades da vida das mulheres, como a garantia de que
mulheres podem subir à tribuna e que tem liberdade para indicar o nome do pai de seus filhos.
O ímpeto revolucionário de Olympe não prosperou como o de seus companheiros e
ela foi guilhotinada pela defesa de seus ideais em 1973. Ela que foi também artista e escreveu
diversas peças sobre a vida das mulheres na França, não viu, nem na arte a devida representação
das mulheres se desenvolver.

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4 A REPRESENTAÇÃO DA REVOLUÇÃO FRANCESA

Símbolo da Revolução Francesa, a obra A Liberdade guiando o povo de Eugène


Delacroix, foi feita em homenagem a Revolução de 1830 que conseguiu de forma definitiva
cumprir com o grande objetivo da Revolução Francesa: derrubar o Antigo Regime.

Fonte: A Liberdade guiando o povo, Eugène Delacroix, 1830.

Eugene Delacroix foi um artista da escola romântica de pintura francesa conhecido


por utilizar as cores livres. A imagem foi pintada numa carta ao seu irmão, datada de 21 de
outubro de 1830, onde escreveu: "O meu mau humor está desaparecendo graças ao trabalho
árduo. Embarquei num tema moderno - a barricada. Mesmo que eu não tenha lutado pelo meu
país, pelo menos pinto para ele” (TOUSSANIT, 1982).
Na imagem, é a figura central uma mulher que carrega em sua mão direita a bandeira
da França e na esquerda uma arma. Ela olha para o lado esquerdo, onde homens parecem
caminhar destemidos com ela. À esquerda pode-se identificar quatro homens, onde cada uma
parece representar um grupo de cidadãos franceses e, à direita, há um menino com uma arma

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em cada mão que parece chamar os demais para a caminhada, como faz a mulher no centro da
imagem. Esses personagens masculinos simbolizam as várias camadas da sociedade que agora
tinham voz, como os intelectuais, operários e demais estratos da sociedade.
Todos os personagem estão em cima de corpos, o que simboliza a derrota do governo
absolutista, eles se sobrepõem como se formassem um pedestal onde o lugar de destaque é o
da bandeira da França e da liberdade ali representada apela imagem da mulher.
Essa mulher ao centro aparece em perspectiva maior do que qualquer outro
personagem, ela também leva as cores mais destacadas e destoa dos demais ao apresentar seu
seio a mostra e os pés descalços. É ela quem guia o povo, ela representa a Liberdade que intitula
a obra.
Na imagem ela aparece vitoriosa, lembrando a imagem de uma deusa. A liberdade
vence, tem a França em suas mãos e chama por todas as camadas a lutarem com ela. Com
olhares firmes e determinados, todos caminham a frente, destemidos e certos de seus passos.
Os principais personagens se inscrevem dentro de um triângulo em cujo vértice está
a bandeira. As cores predominantes são azul, branco e vermelho – as cores da bandeira da
França, que se destacam dos tons de cinza e marrom predominantes. O branco que remete a luz
da vitória, o céu em um azul que chama à comemoração e mostra a energia de um dia
ensolarado e o vermelho sangue, cor símbolo de revoltas e sangue.
Tendo entre os personagens, o de maior destaque uma mulher, ao centro, carregando
a bandeira, em uma posição elevada e a frente dos demais, que verdade essa imagem transmite
com relação aos direitos das mulheres na Revolução Francesa¿
A Revolução Francesa, considerada o ponto inicial do feminismo e símbolo da luta
pelo sufrágio no movimento feminista, em sua imagem emblemática, retrata em destaque a
representação de um grupo de indivíduos que não foram por ela considerados enquanto sujeitos
de direitos.
Há contradição em simbolizar a liberdade com uma mulher, já que a única liberdade
de que as mulheres gozaram foi a de servir à luta, mas sem dispor de seus frutos na mesma
proporção.
A verdade para os revoltosos se manteve na imagem idealizada da mulher enquanto
deusa, mas não como cidadã real e sujeita de direitos. O contrassenso da ordem de morte à
Olympe e tantas outras mulheres que foram consideradas transgressoras por defenderem seus

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ideais são escancarados quando o símbolo da Revolução leva o rosto de uma mulher que guia
o povo, enquanto que, na realidade, elas não foram ouvidas, apoiadas ou respeitadas por eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os processos de representação da realidade permanecerão sendo parciais, para a


apresentação de um contexto, algo é evidenciado enquanto outro ponto se apresenta como
ausente. Por isso a necessidade de investigar para além do que se vê.
Durante toda a história da sociedade patriarcal o protagonismo das mulheres foi
invisibilisado em relação aos homens, sejam enquanto líderes ou coletividade significativa, a
luta das mulheres permanece anônima nas representações visuais e escritas.
Se isso é verdade no século XXI, mais ainda será nas representações histórias, em
décadas onde a criticidade em reação à sociedade não abarcada questões como machismo e
feminismo. Assim caberá a nós, mulheres da nova geração reler e recontar a história de qual
sempre fizemos parte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
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LEVY, Darline G e outros. Women in revolutionary paris – 1789-1795. Selected documents translated with notes
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MARAND-FOUQUET, Catherine. La femme au temmps de La Revolution. Éditions Stock/Laurence Pernoud:


1989.

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The Everyday Lives of Parisian Women and the October Days of 1789 – Social History. Vol 24. Nº 3 (oct. 1999).

MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Política e Feminismo. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

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Jul/dez 2001.

PATEMAN, Carole. The disorden of women. Democracy, feminism and Political Theory. Stanford: Stanford
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SCOTT, Joan. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Florianópolis: Mulheres, 2002.

TOUSSAINT, Hélene (1982). La Liberté guidant le peuple de Delacroix. Paris: Editions de la Réunion des Musées
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TOQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Vol 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1979.

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A(R)TIVISMO FEMINISTA:
INTERSECÇÕES ENTRE ARTE POLÍTICA E FEMINISMO

COSTA, Maria Alice Nunes


Professora do Programa de Sociologia e Direito da UFF
COELHO, Naiara
Estudante de mestrado do Programa de Sociologia e Direito da UFF

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar a categoria artística Artivismo, por meio da discussão sobre
as conexões entre arte, política e feminismo. Através da análise do conceito de artivismo, serão
apresentadas artistas e obras que possibilitam visualizar a arte enquanto manifestação política de algumas
das reivindicações feministas, como as produções de Bárbara Kruger, Guerrilla Girls e Márcia X, além
da modificação de uma campanha publicitária brasileira.

Palavras-Chave. Feminismo, Arte política, Ativismo.

ABSTRACT

This work aims to present the artistic category Artivismo, through the discussion about the connections
between art, politics and feminism. Through the analysis of the concept of artivism, artists and works
will be presented that make it possible to visualize art as a political manifestation of some of the feminist
claims, such as the productions of Barbara Kruger, Guerrilla Girls and Márcia X, as well as the
modification of a Brazilian advertising campaign.

Keywords. Feminism, Political art, Activism.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa trazer à discussão a reivindicação de direitos feministas


através da modalidade artística denominada Artivismo. O termo utilizado para designar arte
política e crítica aparece no Brasil após um período longo de repressão as mais diversas formas
de expressão, assim, este trabalho pretende trazer o uso da categoria artística enquanto
manifestação feminista e reivindicação de direitos. Para isso serão utilizadas fontes
bibliográficas que tratem da arte enquanto manifesto político, de demandas feministas e do
conceito e função do direito na sociedade contemporânea.
A arte feminista, assim como as produções de autoria e de conteúdo relacionado às
minorias são menos expostas e valorizadas, por esse motivo, a categoria artística denominada
artivismo, se apresenta de forma mais compatível com a proposta política das obras que, além
de ocuparem espaços públicos e não tradicionais da arte, tem como conteúdo principal o
cotidiano.
Através de revisão bibliográfica e do método indutivo, apresentar-se-á o conceito de
artivismo, suas principais características e representações para, em seguida, apresentar o
artivismo feministas, as artistas de maior destaque, suas especificidades e vertentes. Encerra-se
o trabalho apresentando as considerações finais que lhe cabem.

1. ARTIVISMO

Possuindo sentido amplo, o conceito de Arte tem abarcado cada vez mais variações
dentro de sua concepção principal. Hoje, longe de ser apenas o que remete à Arte Clássica,
como a mera reprodução de retratos de pessoas ou paisagens, à simples diversão das elites e à
distração das massas, a arte encontra também o seu teor político, crítico e reinvindicativo que
ultrapassa a técnica.
A essas variações da arte, principalmente a partir da década de noventa, passam a ser
utilizados diversas nomenclaturas – como ativismo, arte ativista, arte política e artivismo. etc.
(MESQUITA, 2011, p. 36). O termo artivismo surge em 2003, enquanto resposta à crítica
artística de Juliana Monachesi, que tentou relacionar a produção dos coletivos artísticos do
momento às obras dos situacionistas Cildo Meirelles, Helio Oiticica e Artur Barrio, importantes
artistas da década de sessenta e setenta, no Brasil. Segundo Juliana, os novos artistas estariam

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ISSN 2236-9651, n. 7

utilizando dos mesmos meios e técnicas próprios dos situacionistas, correspondendo, então ao
ressurgimento dessa arte, o que ela chamou de “A(r)tivismo” (Mesquita, 2011, p.237).
Ainda que os artistas tenham discordado da crítica e utilizado esse momento para
suscitar o debate acerca da relação da mídia com a arte, do papel político das produções
artísticas e terem reaçizado uma auto crítica dos trabalhos coletivos e pessoais, conforme Boas
(2015, p.39), as categorias possuem mais convergências do que divergências.
Assim, observa-se que os métodos, matérias e procedimentos do ativismo, arte
política, arte ativista e artivismo, são comuns entre eles, pois todos utilizam a arte enquanto
manifesto político. Neste trabalho, a partir de uma perspectiva que busque aproximar os
conceitos de Arte, Política e Ativismo, opta-se pelo uso do termo Artivismo, pelas razões
expostas a seguir.
Assim como o artivismo, conforme Mesquita (2011. p.17) “a arte ativista não significa
apenas arte política, mas um compromisso de engajamento direto com as forças de uma
produção não mediada pelos mecanismos oficiais de representação”, o que ressalta as primeiras
características do artivismo que são a possibilidade de autoria por uma pessoa que não seja,
necessariamente, profissional da arte e, assim, a sua popularização enquanto expressão também
fora das classes elitizadas, outra característica.
Além disso, o artivismo tem como particularidade a possibilidade de autoria por
um/uma não profissional das artes (BOAS, 2015. p. 68), e o uso de meios diversos de
comunicação (MESQUITA,2011. p.17). Isso porque, a titulação de artista e o uso dos meios
tradicionais são considerados espaços engessados e que distanciadores, assim, o artivismo se
faz não apenas nos meios tradicionais e hegemônicos, possibilitando maior liberdade de sua
forma e conteúdo. Para o artivismo, basta que a/o artista ativista se utilize de tecnologias e
mídias diversas, a fim de intervir na sociedade através de ações artísticas.
Além disso, é comum ao artivismo que seu conteúdo seja o cotidiano, sem o crivo
erudito da arte conceitual (BOAS, 2015. p. 70), sua substância encontra proximidade aos temas
de minorias pouco ou mal abordados pelas mídias hegemômicas. Dessa forma o artivismo
possibilita “imprimir maior potencialidade para o indivíduo seguir na sua existência, perante o
poder político ou micropoderes difusos (...) bem como emprestar maior eficiência aos interesses
e programas de instituições e grupos dirigentes do corpo coletivo” (CHAIA, 2007. p.14).

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Enquanto conteúdo e substancia do artivismo, este trabalho propõe pensar o


feminismo, movimento social e político que busca também através da arte reivindicar e
externalizar a luta das mulheres pelo fim das diversas formas de opressão que sofrem.

2. ARTIVISMO FEMINISTA

Apesar de o termo Artivismo surgir de forma mais intensa no Brasil apenas na década
de 90, é possível dizer que todas as ondas feministas brasileiras contaram com manifestações
artísticas do “ser mulher”.
Uma das artistas que se destaca na primeira onda feministas (1920-1930) é Gilka
Machado, poetisa e militante pelo voto das mulheres, escreveu sobre a dura realidade de ser
mulher no século XIX e transgrediu padrões patriarcais ao escrever sobre erotismo. Na década
de 70 – segunda onda feminista, os panfletos organizados pelo Movimento Feminino Pela
Anistia, apresentavam frases marcantes e imagens cheias de simbolismo (PINTO, 2003. p. 65),
já no fim da década de 80/90 os primeiros jornais feministas apresentavam as charges que
mostrava os objetivos dos diversos grupos feministas da época (FERREIRA, 1995/1996. p.
187).
Para ser considerado feminista, o conteúdo do artivismo estará ligado principalmente
a critica do patriarcado, enquanto forma de dominação e subordinação das mulheres. Por esse
motivo, grande parte das obras artivistas questiona a pouca visibilidade dada a mulheres, a
representação deturpada do que é ser mulher, a denúncia o machismo no meio artístico ou do
cotidiano, etc (TAVARES, sd., p. 5).
Helena Cabello e Ana Carceller, artistas que pesquisam a arte feminista, identificam
duas grandes vertentes do movimento feminista no artivismo: a essencialista a vertente
construcionista (2000, p. 31), onde a essencialista tem como foco as especificidades do que é
biologicamente caracterizado como feminino e o construtivismo, partirá da concepção de
gênero, reafirmando que feminino e masculino são construções sociais. Além dessas duas
vertentes, é possível verificar o feminismo radical nos trabalhos de Nikki Craft (FONSECA,
2010, p.766), o feminismo interseccional de Bárbara Kruger (ARRUDA, 2011, p.390) e demais
questionamentos comuns a todas as vertentes do feminismo, como a inferiorização das
mulheres.

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Assim, das mais diversas forma e mais fortemente a partir do século XX, as mulheres,
artista ou não, tem se utilizado dos métodos artísticos para a intervenção e manifestação política
da crítica a subordinação das mulheres no sistema patriarcal, como será visto nos exemplos a
seguir.

3. BARBARA KRUGER

Um exemplo de artivismo feminista são os trabalhos de Bárbara Kruger. Nascida nos


Estados Unidos, em 1945, Bárbara possui um estilo único e permanece até os dias atuais como
um símbolo da Arte feminista.
Seu método consiste na apropriação de imagens vinculadas em revistas, com a
sobreposição de frases, que visam subvertem o sentido original da imagem, trazendo assim, um
olhar crítico. Suas obras utilizam as imagens em preto e branco e a escrita em branco e
vermelho, com fontes semelhantes às utilizadas em jornais e revistas. Nenhuma de suas obras
possui nome, a maioria é identificada pela frase que a compõe (ARRUDA, 2011, p. 394).

KUGER, Bárbara – s.d.: 100% Natural e I Never Wanto To Grow. Acervo Bárbara Kruger.

Uma de suas obras mais famosas é a Your body is a battleground (Seu corpo é um
campo de batalha – tradução livre), criada em 1989 para a passeata em favor do direito de

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escolha das mulheres, no caso de aborto (ARRUDA, 2011, p. 395). A manifestação decorreu
da demanda judicial do caso Roe x Wade, onde um lado defendia o direito a vida dos fetos e o
outro, a escolha das mulheres.

KUGER, Bárbara – 1989: Your body is a battlegroud. Acervo Bárbara Kruger.

Apesar de expor em grandes galerias do Estados Unidos, a arte de Bárbara Kruger é


própria do artivismo, sendo vista muitas vezes em canecas, camisetas, bolsas e outdoors. Assim,
a artista possui prestígio nos espaços hegemônicos e também em espaços populares.

4. GUERRILLA GIRLS

Guerrilla Girls é um grupo de mulheres que tem como principal objetivo questionar
como a mulher é vista no meio artístico e mostra o quão são desvalorizadas e invisibilizadas. A
primeira aparição do grupo se deu em 1987, em Manhattan, quando fizeram uma passeata com
cartazes que expunham de forma irônica “As vantagens de ser uma mulher artista”
(TAVARES, sd., p. 4), como o salário inferior a outros artistas, as múltiplas jornadas de
trabalho e os poucos convites para exposição.
A identidade real do grupo não é conhecida, pois todas utilizam máscara de gorilas e
nomes de artistas famosas já falecidas. Segundo as integrantes do grupo, essa escolha se deu de

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forma estratégica, para que o foco seja mantido nos fatos que elas questionam e para que elas
possam circular e estar em todos os lugares à vontade (GUERRILA GIRLS, s.d., s.p.).

Fonte: GUERRILLA GIRLS: NÃO PRONTO PARA FAZER AGRADECIMENTOS, 30 ANOS E AINDA
CONTAR , Abrons Art Center , NYC, 2015. Pop-up Birthday Exhibition. Acervo Guerrilla Girls

Suas obras utilizam cores fortes, textos pequenos, geralmente acompanhados de


dados oficiais, ou por elas mesmas coletados, além de releitura de imagens de mulheres. A
Bienal de Veneza de 2005, que ficou conhecida como a primeira bienal feminista (TAVARES,
sd., p. 5), recebeu a exposição das Guerrilla Girls que discutiu a ausência de mulheres artistas
em mostras de arte moderna, como reflexo do distanciamento da alta cultura, que é dominada
e administrada pelo gênero masculino.
Conforme, Arruda (2011, p. 399) a interpretação do número alto de frequência dos
nus femininos na arte, com relação aos masculinos, permite apreender a mulher como uma
espécie de objeto culturalmente adormecido, alvo do olhar contemplativo e isenta de
participação como sujeito-social ou agente atuante na cultura moderna e contemporânea.
Em 2017, as Guerrilla Girls estiveram no Brasil expondo no Museus de Arte de São
Paulo (MASP) e, fizeram uma releitura do cartaz já realizado por elas em 1989 – com dados
sobre o Museu Metropolitam, agora com os dados do MASP, onde o texto da imagens
questionava o número de nu femininos expostos em contraposição ao número de artistas
expondo sua sobras.

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ISSN 2236-9651, n. 7

Fonte: GUERRILLA GIRLS: MASP, 2017. Acervo Guerrilla Girls

A exposição foi bem recebida no Brasil e compôs uma série individual que deve ficar
disponível ao público, por três meses. No Brasil, também existem artistas que levam esse tipo
de crítica e conseguem visibilidade na mídia, ainda que em menor intensidade.

6. BRASILEIRAS

No Brasil são comuns as propagandas de cerveja com mulheres vestindo pouca roupa
e geralmente servindo aos homens. Além de falas e textos bastante ofensivos às mulheres. A
campanha de uma marca em específico foi alvo de grandes críticas das mulheres, por
desvalorizar uma resposta negativa, ao que a publicidade dava entender que seria um tipo de
cantada.

Fonte: Folha SP Online, 2016.

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A repercussão negativa fez com que a marca se retratasse com o público feminino que
também conse seu produto e, como estratégia, convidou oito ilustradoras brasileiras para
refazerem seus anúncios de forma respeitosa e positiva. Além da retirada dos anúncios
ofensivos, as novas versões foram publicizadas e a marca assumiu o compromisso de modificar
seu posicionamento.

Fonte: Skol Repost – Camila do Rosário, 2016.

Fonte: Skol – s.d.

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Fonte: Skol Repost – Eva Uivedo, 2016.

Outra artista brasileira de destaque é Márcia X, artista plástica desde 1980, Márcia
através de suas performances questiona estruturas culturais e institucionais de poder, por meio
d eum olhar sensível e crítico da realidade.
É a partir de 200 que Márcia tem sue trabalho reconhecido pela crítica especializada
e passa a expor em grandes evento e espaços artísticos. Suas obras, pelo alto teor crítico já
chegaram a ser inclusive censuradas em alguns espaços, como é o caso da performance
Desenhando com terços.
Nesta obra, a artista utiliza diversos terços para desenhar no chão inúmeros pênis,
numa área indeterminada. A performance, dura de três a seis horas e o público pode
acompanhar o desenvolvimento do trabalho que adquire características específicas,
dependendo da situação em que é realizado.
A proposta tem como objetivo, impactar o espectador através do uso de um objeto
que se liga ao sagrado, formando a imagem de um órgão sexual, possibilitando o
questionamento do sexo dentro da religião, do hierarquização masculina de homens nessa
crença, dos casos não relatos de abuso etc.

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Fonte: Desenhando com terços – 2000/2003. Acervo Márcia X.

Outra performance impactante de Márcia X é Pancake (2001). Nela, a artista


questiona o estereótipo feminino culturalmente construído, ligado a representação da mulher
doce, sensível, enfeitada e passiva.

Fonte: PANCAKE – 2001. Acervo Márcia X.

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Nesta performance, a artista derruba sobre si diversas latas de leite condensado, até
que fique completamente coberta, quando, então, esparrama sobre sim, através de uma peneira,
confeitos coloridos, terminando sua apresentação como se houvesse se transformado em um
tipo de doce.
Assim, podemos verificar que os questionamentos feministas são expostos através da
arte de diversas formas e em muitos países. No Brasil, ainda que com menor visibilidade, o
artivismo existe e vem crescendo com o acesso as discussões feministas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desse estudo é possível verificar que a arte tem sido um meio de manifestação
também política de mulheres que se posicionam contrarias ao padrão machista de grande parte
dos ramos profissionais. Mais especificamente a partir do artivismo feminista, observa-se que
o feminismo se torna lúdico e autoexplicativo através de imagens e performances que
representam o que é a inferiorização das mulheres.
Apesar das obras e artistas escolhidas, percebe-se que o conteúdo das obras não é tema
recente na arte, porém de pouca visibilidade e acesso, o que inclusive é motivo dos
questionamentos recentes. Além disso, muitas artistas de rua tem seu trabalho não divulgado
ou apropriado, por sofrerem de outras opressões que ultrapassam a questão de gênero, como a
questão racial e econômica.
Sendo assim, releva-se possível e pertinente a intersecção entre arte, política e
feminismo enquanto forma de manifestação artística, luta contra opressões e demonstração das
reivindicações e perspectivas dos grupos feministas.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Lina Alves; COUTO, Maria de Fátima Morethy. Ativismo artístico: engajamento político e questões
de gênero na obra de Barbara Kruger. Revista Estudos Feministas, 2011.

BOAS, Alexandre Gomes Vilas. A(r)tivismo: Arte + Política + Ativismo - Sistemas Híbridos em Ação. Instituto de
Artes: São Paulo, 2015.

CHAIA, Miguel. (org)Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.

FERREIRA, Verônica C. Entre emancipadas e quimeras - imagens do feminismo no brasil. Cadernos AEL, n. 3/4,
1995/1996.

FONSECA, Rui Pedro. O activismo estético feminista de Nikki Craft. Revista Estudos Feministas, 2010.

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ISSN 2236-9651, n. 7

GUERRILLA GIRLS. Acervo. Disponível em: < https://www.guerrillagirls.com/> Acesso em: 10 out. 2017.

Helena Cabello e Ana Carceller, “Sujetos imprevistos (Divagaciones sobre lo que fueron, son y serán)”, Zona F,
Espai D’Art Contemporani de Castelló, 3 Febrero – 9 de Abril de 2000, Castelló.

Márcia X. Acervo. Disponível em: < http://marciax.art.br/index.asp> Acesso em: 10 out. 2017.

MESQUITA, André. Insurgências Poéticas: Arte Ativista e ação coletiva. São Paulo: Annablume Editora, 2011.

PINTO, Céli Regina. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. 2003.

TAVARES, Paula. Breve cartografia das correntes desconstrutivas feministas na produção artística da segunda
metade do século XX. Arte Capital, sd.

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INDIVÍDUO, SOCIEDADE E O CINEMA:
A CONTEMPORANEIDADE, O DINHEIRO
E O MOVIMENTO NA CIDADE

RIBEIRO, Wanisy Roncone


Doutoranda em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO

Este artigo busca analisar a influência do dinheiro na contemporaneidade, no sentido da utilização deste
instrumento como fim em si próprio, e demonstrar a maneira de atuação desta ferramenta na
contemporaneidade. O presente estudo tem como base a crítica ao mundo moderno em Georg Simmel,
em relação ao advento da economia monetária, seguida da análise dessas circunstâncias na vida social e
no movimento na cidade, utilizando-se o filme “Medianeras”, dirigido por Gustavo Taretto, e o
documentário “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho, como uma realidade específica onde a cidade é
personagem juntamente com os indivíduos que nela habitam.

Palavras-Chave. contemporaneidade; dinheiro; cidade; cinema.

ABSTRACT

This article seeks to analyze the influence of money in contemporary times, in the direction of the use of
this instrument as an end in itself, and demonstrate how to work this implement in contemporary society.
The present study is based on the criticism of the modern world in Georg Simmel, in relation to the
advent of the monetary economy, followed by the analysis of these circumstances in social life and the
movement in the city, using the film "Medianeras", directed by Gustavo Taretto, and the documentary
"Edifício Master", by Eduardo Coutinho, as a specific reality where the city is character along with the
individuals who inhabit it.

Keywords. contemporaneity; money; city; cinema.

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INTRODUÇÃO

“O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de


pão e muitos mais à fome de abraços”. (GALEANO, 2009, p. 81)

“O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão a serviço das coisas”.
(GALEANO, 2009, p. 129)

A contemporaneidade trouxe com ela relevantes fenômenos, especialmente a nível


social, onde presenciamos historicamente o surgimento de uma nova ordem mundial, transições
políticas, e mudanças culturais a larga escala. Cabe ressaltar, nesse contexto, uma observação
de Jessé Souza, em análise aos postulados de Simmel (2005), na qual diz que, para este autor,
o fator estrutural mais importante da modernidade é o advento da economia monetária.
Nesse sentido, será ponto de partida no presente trabalho a análise da influência do
dinheiro na vida moderna, e o quão importante tal ferramenta se constituiu nas relações
pessoais. O que anteriormente era percebido como aparato facilitador das negociações, hoje é
fim em si mesmo, sendo alvo de ambições cada vez mais gananciosas, acumuladoras e
grotescas, não mais servindo apenas como moeda de troca.
O dinheiro ao mesmo tempo em que favoreceu o desenvolvimento do lado pessoal e
da personalidade, quando assume o papel nas transações econômicas, facilitou, também, o
declínio da vida social e a abertura para uma individualidade exacerbada. É neste contexto que
os postulados de Simmel e suas críticas ao mundo moderno são fontes preciosas para o presente
trabalho.
Com o objetivo de não generalizar a crítica ao mundo moderno já estabelecido em
premissas, mas de inicialmente questionar o papel do dinheiro na contemporaneidade, será feita
uma abordagem metodológica de raciocínio dedutivo, com uma perspectiva que parte do geral
para o particular, visando, nos capítulos seguintes, destacar o resultado da intervenção
econômica nas cidades, sendo estas produtos da economia monetária por excelência, para, ao
final, problematizar a atuação social perante o caos instaurado pelo dinheiro nas arquiteturas
urbanas e nas mazelas sociais.
Como uma realidade específica e fonte de uma narrativa própria, além da pesquisa de
base documental e bibliográfica, será utilizado o cinema que, através de um olhar crítico e ao
mesmo tempo artístico, serve de instrumento para a formulação de percepções gerais e
específicas objetivadas no presente trabalho.

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1. A ERA DO DINHEIRO – A CONTEMPORANEIDADE E A VIDA


ECONÔMICA

O dinheiro tornou-se um dos maiores ícones da era moderna, em especial quando


tratamos da constituição das liberdades. Podemos evidenciar tal afirmativa ao recordar, ainda
no contexto feudal, a substituição progressiva e paulatina das obrigações pessoais por
contraprestações monetárias, tornando um importante símbolo da liberdade quando, então,
pode ser preservada a personalidade pessoal (inalienável) do desempenho (mão de obra
específica, que pode ser comprada em dinheiro).
Nesse contexto de possível liberdade e impessoalidade das relações, a individualidade
é preservada no momento em que o dinheiro dispensa o comprometimento do indivíduo,
possibilitando o desenvolvimento individual, quando, por outro lado, a prestação se
transformou em números, uma realidade comprável.
Ocorreu uma mudança estrutural plena, com qualidades sendo transformadas em
quantidade, quando antes zelava-se pelo valor pessoal, subjetivo, hoje a objetividade dominou
a cena, o dinheiro funciona não mais como uma moeda de troca, mas sim meio e fim em todos
os aspectos da vida.
A frustação é plena quando a permuta, a troca, o escambo, que permitia ainda um
certo valor não monetário do objeto, consequentemente perdeu o seu valor para as moedas de
câmbio, visto que é muito mais fácil circular com notas e moedas, do que com objetos
propriamente ditos. É um exemplo claro ao recordarmos os antigos modos de agricultura e
pecuária, quando pequenas porções de terra, verduras, legumes, ou até mesmo animais, eram
trocados por outras espécies de prestações, outras terras, ou outras produções quaisquer. A
qualidade dos “produtos” ainda não eram números, quantidades, notas, nem moedas.

A cidade grande moderna, contudo, alimenta-se quase que completamente da


produção para o mercado, isto é, para fregueses completamente desconhecidos, que
nunca se encontrarão cara a cara com os verdadeiros produtores. Com isso, o
interesse das duas partes ganha uma objetividade impiedosa, seus egoísmos
econômicos, que calculam com o entendimento, não têm a temer nenhuma dispersão
devida aos imponderáveis das relações pessoais. E isso está, evidentemente, em uma
interação tão estreita com a economia monetária — que domina nas grandes cidades
e desaloja os últimos restos da produção própria e da troca imediata de mercadorias
e que reduz dia a dia o trabalho para o cliente. (SIMMEL, 1903, p. 579)

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A facilidade da compra e venda, e circulação de mercadorias, tornou o mundo


moderno ao mesmo tempo dinâmico e trágico. É o que, para Simmel, podemos chamar de “lado
escuro” desse fenômeno:

O ponto positivamente valorizado por Simmel nesse processo é o de que o dinheiro,


ao separar as esferas subjetiva e objetiva, contribui para o desenvolvimento de ambas,
na medida em que permite que cada qual siga uma lógica imanente. O dinheiro
dispensa, por assim dizer, as formas de solidariedade tradicional, nas quais a pessoa,
o indivíduo enquanto tal, se comprometia. O poder libertário da economia monetária
reside, como vimos, no fato de uma personalidade jamais estar em jogo nas
transações monetárias. Essa distância é o que possibilita o desenvolvimento
individual. O elemento alienante do dinheiro, por outro lado, advém do “lado escuro”
desse mesmo fenômeno, visto que, com o afastamento e o distanciamento de tudo
que é pessoal, desaparece, também, a possibilidade de expressão de qualquer
qualidade específica não-econômica. O papel universalizador do dinheiro como
equivalente geral é de uma uniformização unilateralmente dirigida “para baixo”, ou
seja, com qualidades sendo transformadas em quantidade. (SOUZA, 2005, p. 12)

O desenvolvimento dessa cultura objetiva foi proporcionado pela conjunção da


economia monetária e da divisão social do trabalho, “assim, a época moderna conseguiu separar
e autonomizar o sujeito e o objeto, para que ambos realizassem o próprio desenvolvimento de
forma mais pura e mais rica” (SIMMEL, 2005, p. 24). A partir da divisão laboral e das
especializações, a sensação de preservação da personalidade e individualidade tende a ser mais
intensa, quando o dinheiro se impôs na relação, comprando parte do desempenho do homem,
havendo então uma ponte entre o ser e o objeto, ocasionada pela economia monetária. Todavia,
como nos coloca Simmel, “não podemos morar numa ponte” (2005, p. 33).
O distanciamento do corpo (do homem enquanto ser) da prestação laboral foi o que
tornou possível a substituição do pagamento pessoal pelo pagamento em espécie, quando, de
repente, não era mais a concretude da atividade pessoal que o outro poderia reivindicar, mas só,
e somente só, o resultado nada pessoal daquela atividade, o dinheiro.

A dança do dinheiro afeta decisivamente as economias e a fome por capitais voláteis


(com sua “sensibilidade” para as flutuações econômicas, sociais e políticas dos
“mundinhos” locais) multiplica os dilemas provenientes da globalização. Além do
desaparecimento dos empregos, da supressão de carreiras estáveis no mercado de
trabalho e da readaptação contínua (e cada vez mais solitária) aos novos sistemas
produtivos, assiste-se também ao desmantelamento progresso de referências locais,
comunitárias, de parentesco e de tradições culturais. (FRIDMAN, 2000, p. 51)

É neste viés que podemos perceber uma nova dinâmica monetária, quando, por
exemplo, a indenização por danos morais e materiais seja na ausência na prestação de

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determinado serviço, ou por quaisquer que seja a ofensa, até mesmo em caso de morte, seja em
valores representados pelo dinheiro.
A sensação do “dinheiro como Deus moderno”, assim como trata Simmel, é atingida
porquanto tal “produz a expressão e a equivalência de todos os valores, unindo os contrários e
os estranhos” (SOUZA, 2005, p. 13). Essa onipotência do “Deus-dinheiro” é
circunstancialmente demonstrada quando tudo pode ser comprável e valorizado conforme
critérios monetários, tornando possível, dessa forma, relações econômicas das mais diversas
possíveis, como transações bancárias mundiais simultâneas, constituições de empresas, compra
e venda de ações, dentre outras, como até mesmo as compras feitas pela internet,
transacionando coisas e pessoas que, muitas vezes, nem se conhecem.
Dessa forma, o mundo das quantificações fez heroica a personalidade destacável
dentre as demais, distinta na medida em que foge a regra dos padrões impostos por essa nova
ordem. O que aparentemente faz da distinção “a única saída contra as patologias do cotidiano
instauradas pelo império do dinheiro” (SOUZA, 2005, p. 16), daí vem a moda, e o que
conhecemos como “alternativo”, também. Os modos de vida alternativa aos padrões capitalistas
e metropolitanos tendem a ser a única maneira de se estabelecer isento ao modelo de vida atual
das grandes cidades, porém, fugir dessa nova engrenagem econômica é cada dia mais difícil.

O dinheiro confere às grandes cidades suas duas características mais marcantes: o


intelectualismo e a calculabilidade, por um lado, e a indiferença, por outro. A ênfase
nas faculdades intelectuais, em oposição às relações baseadas no sentimento e na
pessoalidade típicas das pequenas cidades, é produto da necessidade de medidas
objetivas para comparar desempenhos, produzir previsibilidades e regularidades,
sem as quais seriam impossíveis a economia monetária e a manutenção dos serviços
em uma metrópole. A ênfase na pontualidade, previsibilidade, exatidão e competição
impregna o ser do citadino, de tal forma que lhe confere um ritmo próprio, nervoso,
ansioso, repressivo com relação a seus instintos e necessidades. (SOUZA, 2005, p.
18)

As frustações pessoais desempenhadas pelo dinheiro tornaram-se cada vez mais


comum quando este assumiu a forma de finalidade primordial da vida, não mais um meio, quiçá
moeda de troca. A busca apaixonada pela acumulação de riqueza monetária produziu o ritmo
nervoso e acelerado da vida moderna, o stress banalizado, as depressões e os afastamentos
sociais, ocasionando cada vez mais desigualdades amplas e uma sociedade completamente
apartada nas grandes cidades, estas “como grandes palcos onde os efeitos do dinheiro podem
ser mais bem observados” (SOUZA, 2005, p. 16).

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2. “AS GRANDES CIDADES COMO PRODUTO DA ECONOMIA MONETÁRIA


POR EXCELÊNCIA”1 – AS “MEDIANERAS”

Estou convencido de que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso


de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a abulia, a depressão,
os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, as contraturas, a
insegurança, o estresse e o sedentarismo são responsabilidade dos arquitetos e
empresários da construção. Desses males, exceto o suicídio, eu padeço de todos.2

A sociedade apartada presente nas grandes cidades é visível em todos os cantos:


edifícios cada vez mais altos, prédios projetados para suporte a um grande número de
moradores, centro comerciais inseridos a todo custo e publicidade nas medianeras 3. Mas essa
arquitetura moldada para grandes movimentações nas cidades ao mesmo tempo em que faz
presente uma grande soma de pessoas, as afasta, “encaixotando-as” em apartamentos cada vez
menores, e apartando as mesmas, como a palavra “apartamento” 4 já diz.
O conjunto de relações sociais advindo da economia monetária interferiu de forma
abrupta na vida urbana contemporânea, com um aumento das privatizações dos espaços
públicos, como a especulação imobiliária e a poluição visual advinda da publicidade. Tal
interferência se manifesta em modificações graduais da cidade e em nefastas consequências às
pessoas que nela habitam.
O ambiente urbano moderno, resultante desses processos, se caracteriza como um
espetáculo cuja nova ordem mundial capitalista o transformou em uma cenografia, um cenário
completo.

A sociedade que modela tudo o que a cerca construiu uma técnica especial para agir
sobre o que dá sustentação a essas tarefas: o próprio território. O urbanismo é a
tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver

1 Utiliza-se aqui os postulados de Simmel no que tange aos aspectos mais visíveis da economia monetária emergente. É nesse
sentido que ao sinalizar as grandes cidades como produto desta nova ordem, estas são vistas como catalisadoras dos efeitos do
dinheiro sobre a vida social, funcionando como uma espécie de palco.
2 Tradução livre da fala inicial do personagem Martín (Javier Drolas) no filme argentino Medianeras (2011), dirigido por Gustavo

Taretto, ao comparar a construção assimétrica das cidades às subjetivações humanas. Trabalharemos com o longa metragem
mencionado ao longo do presente trabalho.
3 “Medianeras” é a designação dada às paredes costumeiramente sem janelas dos edifícios, também conhecidas como “paredes

cegas”. Essas paredes laterais tornam-se impossibilitadas de qualquer tipo de abertura, como janelas, devido à proximidade com
áreas vizinhas. São comuns na utilização de outdoors ou qualquer tipo de publicidade. Tal termo não se encaixaria tão bem no
contexto do filme se o desenvolvimento das cidades não estivesse intrinsicamente ligado às relações humanas. (Disponível em: <
http://portalarquitetonico.com.br/medianeras/>. Acesso em 16 jul. 2014).
4
Em termos semânticos, a palavra nos remete ao ato ou efeito de “apartar”, separar. E, ainda, no Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa, podemos encontrar sinônimos como ausência, retiro, solidão. Disponível em:
<http://www.priberam.pt/DLPO/apartamento>. Acesso em 15 jul. 2014.

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sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço
como seu próprio cenário. (DEBORD, 1997, p. 112)

Desse modo, o cotidiano moderno na cidade, por sua vez, rege-se agora por princípios
segregatórios, os quais a transformam em uma verdadeira mise-en-scène mercadológica,
turística e consumista. Os citadinos experimentam uma cidade cada vez mais em concreto e em
obras. As suas vivências aceleradas advindas das conquistadas obrigações da vida moderna,
resultaram em um empobrecimento da experiência urbana e social daqueles que habitam, com
o crescimento, por outro lado, das barreiras sociais e dos muros, onde a única coisa que se
compartilha é a solidão.
É o que se passa no filme Medianeras com o personagem Martín, que divide sua vida
em um pequeno apartamento, e sua única interação física é com o cachorro de estimação. O
filme é uma excelente amostra da realidade citadina, onde os indivíduos não mais se conhecem
e interagem, no momento em que se tornou muito mais fácil estar “presente” através de um
sinal wireless.

A modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era


marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases
anteriores da cultura humana. Em meio à turbulência sem precedentes do tráfego,
barulho, painéis, sinais de trânsito, multidões que se acotovelam, vitrines e anúncios
da cidade grande, o indivíduo defrontou-se com uma nova intensidade de
estimulação sensorial. A metrópole sujeitou o indivíduo a um bombardeio de
impressões, choques e sobressaltos. O ritmo de vida também se tornou mais
frenético, acelerado pelas novas formas de transporte rápido, pelos horários
prementes do capitalismo moderno e pela velocidade sempre acelerada da linha de
montagem. A modernidade, em resumo, foi concebida como um bombardeio de
estímulos. Como afirmou Simmel em seu ensaio de 1903, “A metrópole e a vida
mental” [...], a modernidade envolveu uma “intensificação da estimulação nervosa”.
A modernidade transformou os fundamentos fisiológicos e psicológicos da
experiência subjetiva. (SINGER, 2004, p. 96)

A circulação massiva de pessoas nos grandes centros, além do consequente número


de veículos nas ruas e um fluxo de trânsito cada vez mais intenso, com jornadas de trabalho que
equivalem em muito dos casos a um dia inteiro, aponta um crescimento populacional cada vez
maior nas cidades, e uma massa homogênea de seres que comportam-se de uma maneira muito
semelhante. Estas pessoas geralmente trabalham para sustentar uma qualidade de vida ao
menos padrão para aquela sociedade, nem que isso signifique a “venda” de mais da metade do
seu dia, e ao chegarem no “apartamento-apartado”, normalmente cansadas, preferem não
experimentar o espaço em que vivem, e restringem a passos largos sua vivência social.

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A “falta de tempo” cotidiana, o mal do século para alguns, faz levar a crer que não há
mais tempo nem espaço para os vínculos interpessoais no espaço público. E ainda que haja após
o expediente diário, muitos preferem permanecer invólucros e estagnados em seus
apartamentos, sem mais nenhum tipo de interferência externa devido ao stress e cansaço gerado
em meio ao caos urbano.
Ao mesmo tempo em que há uma aparente necessidade de nos constituirmos em
barreiras sociais e físicas levantadas pelas cidades, surge o sentimento de estar só em meio a
multidão. Aqui se apresenta um dos principais elos com a virtualização das relações: como
afirmado anteriormente, a internet trouxe consigo uma sensação de proximidade, porém, vazia,
como é percebido no filme “Medianeras”.
Essas angústias contemporâneas retomam ao pensamento de Simmel quando este
trata da cultura do dinheiro na vida moderna. A partir da nova geração econômica e a garantia
de liberdade preconizada pelo dinheiro, ou seja, quando o homem das épocas anteriores
realizavam negócios de modo pessoal, comprometendo-se com outros individualmente bem
definidos, e hoje podemos permuta-los a nosso bel-prazer, por meio de relações anônimas e
impessoais, conquistamos uma relação de forte individualismo. Desta forma, Simmel ressalta
que

Não é o isolamento em si que aliena e distancia os homens, reduzindo-os a si


próprios. Pelo contrário, é uma forma específica de se relacionar com eles, de tal
modo que implica anonimidade e desinteresse pela individualidade do outro, que
provoca o individualismo. (SIMMEL, 2005, p. 28)

É neste contexto que a libertação da personalidade possibilitou um cerco individual


que reprime rotineiramente o contato com o próximo. A aglomeração típica das grandes cidades
ao mesmo tempo em que aproxima, afasta.

As cidades, é claro, sempre foram movimentadas, mas nunca haviam sido tão
movimentadas quanto se tornaram logo antes da virada do século. O súbito aumento
da população urbana (que nos Estados Unidos mais do que quadruplicou entre 1870
e 1910), a intensificação da atividade comercial, a proliferação dos sinais e a nova
densidade e complexidade do trânsito das ruas [...] tornaram a cidade um ambiente
muito mais abarrotado, caótico e estimulante do que jamais havia sido no passado.
(SINGER, 2004, p. 96)

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Podemos citar como exemplo o caso da Daniela, moradora do Edifício Master em


Copacabana, que em entrevista a um documentário homônimo 5 dirigido pelo cineasta Eduardo
Coutinho, relata sua vivência citadina como uma terrível experiência:

Eu tenho problemas de neurose e de sociofobia, e a aglomeração típica do vai e vem


[sic] em Copacabana faz com que eu chegue em casa muito estressada. [...] Eu não
sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas ou se é uma fusão desagradável
dos dois elementos. Eu sei que pode ser feio, mas eu muitas vezes fico contente
quando eu subo e desço no elevador sozinha, não porque eu não [sic] vou perder
tempo parando num andar, mas porque eu sei que eu não vou ter que ver e nem ser
vista. 6

O edifício cenário desse documentário mostrou realidades muito diferentes, onde


todos vivem próximos, porém, em sua grande maioria, solitários. Nas experiências relatadas
pelas lentes dirigidas por Eduardo Coutinho, o que chama a atenção é que a sociabilidade nos
espaços públicos dos grandes centros urbanos é permeada pelo anonimato, as pessoas circulam
pela cidade, mas não se conhecem, a aglomeração e a diversidade fazem da cidade um palco a
céu aberto, e o trabalho como este realizado pelo documentário, faz com que consigamos
enxergar o outro além do meu próprio espaço individual.
Muitas vezes os limites instalados para a divisão entre o espaço público e a
propriedade privada, criam fronteiras sociais além da física. Sem falar na instigação ao medo e
ao caos público instaurada pela metrópole e pelo sensacionalismo midiático, que suscita ainda
mais a vontade de se estabelecer em muros, criando uma sensação de insegurança, ao passo que
sua liberdade é cerceada com a necessidade de se estabelecer ainda mais limites no espaço
privado com o público, para se “proteger” da cidade.
Lembramos aqui de Guy Debord e seus estudos da “sociedade do espetáculo”, onde
afirma que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção
se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos” (DEBORD, 1997, p.13), de tal
forma que hoje vemos uma vida em sociedade espetacularizada, em especial a violência
pregada pelos jornalismos grotescos que vendem jornais e audiências, instigadores de medo, e

5
“Edifício Master” (2002) é um documentário brilhante que narra a experiência da vida em sociedade sob os olhares dos
moradores do Edifício Master, um antigo e tradicional edifício, que possui em média 500 moradores, com 276 apartamentos
conjugados, 12 andares e 23 apartamentos por andar, localizado em Copacabana, um bairro cartão-postal da cidade do Rio de
Janeiro, conhecida por atrair uma grande soma de pessoas de todos os lugares do mundo, e movimentada por natureza. O cineasta
Eduardo Coutinho e sua equipe alugaram um apartamento nesse edifício por um mês, e filmaram a vida no prédio por uma
semana, e o resultado pode ser visto através das 37 entrevistas que formam o documentário, realizadas com os moradores do
prédio.
6 O trecho citado é parte integrante da entrevista realizada com a Daniela, moradora do edifício Master, que se declara portadora

de neurose e sociofobia, deixando clara a sua intolerância ao modelo de vida dos grandes centros.

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que atualmente funcionam como formadores de uma massa cada vez mais propagadora de
discursos violentos, punitivistas e segregadores. A prova disso é a atual situação carcerária
brasileira.

O caos da cidade instilou na vida um flanco nervoso, uma sensação palpável de


exposição ao perigo. [...] A cidade moderna parece ter transformado a experiência
subjetiva não apenas quanto ao seu impacto visual e auditivo, mas também quanto as
suas tensões viscerais e suas cargas de ansiedade. A experiência moderna envolveu
um acionamento constante dos atos reflexos e impulsos nervosos [...]. (SINGER,
2004, p. 106)

As cidades do caos e dos muros são constituídas de tal forma que permitem a
privacidade e a preservação da individualidade, e, ao mesmo tempo, facilitam o anonimato e o
desinteresse pelo outro que não seja o “eu”, constituindo verdadeiros egoísmos e
individualismos exacerbados.
É o caso de relatos como o da Daniela, que para muitos a fazem soar como “louca”,
mas pode ser percebida como uma simples consequência e resultado dos muros e impactos
causados por esse novo modelo de sociedade imposta pelas grandes cidades. Desta forma,
colocamos a cidade como personagem de uma nova conjuntura social, onde temos como
exemplos desta realidade o documentário mencionado, de maneira semelhante à forma exposta
no filme “Medianeras”.
Assim, a configuração da cidade como personagem no filme argentino conversa com
os “personagens” do documentário brasileiro. Em tempos os quais o olhar sobre o outro é visto
de forma banal, não é difícil afirmarmos que todos nós carregamos consigo as nossas
medianeras portáteis.
Seja pelo uso indiscriminado dos espaços virtuais que afastam ao pregar uma maior
proximidade, como é o caso dos aparelhos celulares, computadores e semelhantes, ou até
mesmo pela busca do elevador vazio, como é o caso da Daniela do edifício Master, o fone de
ouvido ao transitar pelas ruas, ou até mesmo um semblante de poucos amigos, todas essas
ferramentas constituem as nossas medianeras diversas dos muros de concreto.

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3. A INTERVENÇÃO ECONÔMICA NA CIDADE – A “RUA DOS


JUNQUILHOS”7

No livro “A miséria do mundo”, de Pierre Bourdieu, percebemos os conjuntos


habitacionais como espaços onde se desenrolam conflitos específicos muito especiais. Um dos
capítulos trata da Rua dos Junquilhos, localizada em um bairro organizado pela vida industrial
na França, e coabitada por argelinos e franceses, a qual constituiu um dos cenários no qual
Bourdieu coordenou uma pesquisa dedicada a compreender as condições de produção das
formas de misérias modernas.
Tal pesquisa é interessante ao presente trabalho no que tange ao conjunto de
habitações formado devido à instauração de fábricas naquela área, fazendo com que famílias se
estruturassem naqueles ambientes, que se tornaram zonas carentes devido ao declínio
econômico daquelas indústrias, com o consequente aumento na taxa de desemprego, fazendo
com que o desenvolvimento familiar e social se tornasse pobre, e cada vez mais difícil.
Todavia, a Rua dos Junquilhos se tornou um excelente objeto de análise, em especial
no que tange ao desenvolvimento as pressas de uma cidade que surgiu devido às consequências
de uma arbitrariedade do sistema econômico, da proximidade entre a indústria e o indivíduo, e
nas consequências que o capitalismo trouxera a vida em sociedade.
Em entrevista a um casal de moradores desta rua, o senhor e a senhora Leblond,
ambos argelinos, Bourdieu pode perceber uma decadência individual que acompanhou a
decadência coletiva das empresas industriais da região, onde o senhor Leblond, operário,
advindo da Argélia (África do Norte) é um dos poucos que conseguira manter seu emprego na
fábrica da região, e sua esposa, ateve-se as tarefas domésticas.

Os moradores da rua dos Junquilhos são um pouco como os sobreviventes de um


imenso desastre coletivo, e eles sabem disso. Com as fábricas sua razão de ser
desapareceu: eles aí chegaram muito naturalmente, às vezes muito cedo, aos 14 anos,
depois do diploma de escolaridade, acompanhando seus pais, e eles aí destinavam
muito naturalmente a sorte de seus filhos. (BOURDIEU, 2008, p. 16)

7 Rua dos Junquilhos, como bem relata Bourdieu, é o “conjunto de habitações heteróclitas, primeiramente designado por iniciais
burocráticas, ZUP (Zona a urbanizar com prioridade), depois rebatizada 'Vai Saint Martin’, um desses eufemismos pelos quais os
responsáveis pelas ‘operações’ de ‘desenvolvimento social dos bairros’ (DSQ) pretendem ‘mudar a imagem’ dos bairros a
restaurar, é, como as populações que o habitam, o traço visível que as políticas industriais sucessivas têm deixado, como
sedimentos, sobre as antigas terras agrícolas que se estendem ao pé do monte Saint Martin e de sua igreja romana. A torre de 14
andares foi destruída no começo dos anos 90, não resta mais hoje em dia que um arruamento de pequenas casas geminadas, em
‘acesso à propriedade’, ocupadas por famílias de operários qualificados, chefes de equipe ou contramestres da indústria
metalúrgica que, muitas vezes oriundos do estrangeiro, principalmente da Argélia, estão, quase a metade, desempregados ou em
pré-aposentadoria, em consequência das diferentes ‘reestruturações’ da indústria siderúrgica”. (BOURDIEU, 2008, p. 15)

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Os efeitos da coabitação são ainda piores devido à pobreza, tornando o ambiente


intolerável, e a proximidade desagradável, favorecendo ainda mais a individualidade citadina e
a perda no interesse pelo espaço público. Tanto é que, na entrevista com o senhor Leblond,
quando interrogado sobre seus vizinhos, em especial os franceses, ele responde mais ou menos
com os mesmos termos de sua esposa, “sem dúvida porque ele não pode dizer, por razões
diversas, nem que é bom, nem que é mau, e o descreve como nulo, ou neutro, isto é, reduzido
ao ‘bom-dia’, ‘boa-tarde’” (BOURDIEU, 2008, p. 21).
O padrão de vida capitalista exigiu portabilidade dos citadinos. A busca pelo dinheiro
- este não mais como um meio, moeda de troca, mas sim fim em si mesmo – fez com que as
pessoas se deslocassem cada vez mais em busca da sobrevivência. A nova dinâmica econômica
fez a metrópole ser atraente com suas promessas de emprego e garantia de um novo padrão de
vida, ainda que este custe um retrocesso – a perda da personalidade, outrora colocada por
Simmel (2005) como uma das seguranças estabelecidas pelo dinheiro.
A liberdade individual possível, colocada por Simmel (2005) como uma resultante da
substituição da prestação pessoal por contraprestação valorizada em espécie monetária, tende a
8
ruir ao pensarmos o indivíduo moderno como um corpo dócil facilmente domado pelo
dinheiro. As pessoas não se importam mais em deslocar-se continuamente por conta de
emprego, ou vender-se as infinitas horas extras de trabalho, elas são impelidas a isso, fazendo
com que suas vidas sejam substituídas pelo dinheiro, em um cenário que nos faz lembrar um
contexto escravagista – o crachá (cartão de identificação) e o relógio funcionando como um
símbolo de dominação pelo “senhor proprietário” de sua “mão de obra”.
Houve um novo significado dos espaços na cidade. Com o advento da “Revolução”
Industrial e uma sociedade de indústrias, estas passaram a transformar os espaços públicos de
uma forma inimaginável, ao ocupar o mesmo ambiente que as pessoas ao redor, segregando-as
e modificando paulatinamente a vida social.
Hoje as “grandes cidades” são conhecidas como aquelas em que há um grande
número de pessoas por metro quadrado, indústrias, empresas, carros e um modo de vida que se
assemelha às máquinas – agitado, acelerado e incansável, transformando até mesmo os corpos
daqueles inseridos neste mecanismo – assemelhando-se ao personagem Carlitos de Charles

8
“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT,
2008, p. 118). Utilizamos aqui as referências de Foucault para sinalizar um dos desdobramentos da era moderna no contexto
trabalhado no presente artigo, qual seja, a transformação dos corpos conforme a necessidade, sendo modelados e disciplinados
conforme a atuação de poder. Um detalhamento maior de tal conceito pode ser estudado na obra “Vigiar e Punir” de Foucault,
publicado originalmente em 1975.

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Chaplin no filme “Tempos Modernos” 9, onde ele próprio transforma-se em uma engrenagem,
passa a viver como se fosse máquina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os fenômenos da modernidade percebidos no mundo ocidental são estruturados


principalmente pela economia monetária implicada nas relações humanas, como bem
percebidos por Simmel em sua crítica ao mundo moderno. Ao mesmo tempo em que as
relações pessoais de outrora foram substituídas por relações monetárias impessoais, as
consequências destes fatores vão além do viés econômico.
A nova ordem mundial do capital e do liberalismo trouxe com ela mudanças sociais
de cunho relevante na estruturação pessoal e urbana. As cidades foram moldadas através de um
urbanismo que atendeu as ordens do sistema moderno. A questão inicial tomada de base, qual
seja, o homem contemporâneo sendo uma criatura mediada pelo dinheiro, serve de ponto de
partida para análises mais complexas do novo mecanismo social instaurado, dentro deste, estão
as grandes metrópoles e os citadinos.
As obras cinematográficas servem como uma realidade específica. Seja no
“Medianeras”, com a sua solidão compartilhada, da mesma forma em que se percebe no
“Edifício Master”, com suas histórias isoladas e logisticamente separadas por andar. Até
mesmo “Tempos Modernos”, de Chaplin, serve como demonstrativo de uma modernidade
complexa e resultante dos novos modelos econômicos.
Assim, o que podemos perceber é que toda a vida moderna fora moldada pelas mãos
do dinheiro e estruturada mercadologicamente. Se for dessa forma que o fenômeno econômico
se estabeleceu modernamente, o dinheiro é muito mais do que ferramenta de transações, e
materializa-se na própria arquitetura da cidade, a qual serve ao protótipo ideal dos centros
urbanos econômicos, e modela o próprio homem, visceralmente transformado em grades e
concretos.

9
“Tempos Modernos” (Modern Times), filme produzido pelo próprio Charles Chaplin em 1936, nos serve como base para
discussões e críticas ao modo capitalista de produção e ao liberalismo econômico. É considerado hoje um clássico do cinema
moderno, onde Chaplin mostra seu famoso personagem "O Vagabundo" (The Tramp) em meio ao mundo moderno
e industrializado, trabalhando em uma grande fábrica, sofrendo as ingerências do sistema, e transformando-se em um instrumento
mecanizado e rotinizado.

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REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

EDIFÍCIO MASTER. Direção: Eduardo Coutinho. Produção: João Moreira Salles e Mauricio Andrade Ramos.
Roteiro: Eduardo Coutinho. Elenco: moradores do edifício Master. Brasil: Videofilmes; 2002. 1 filme (110 min).

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2009.

MEDIANERAS: Buenos Aires na era do amor virtual. Direção: Gustavo Taretto. Produção: Natacha Cervi e
Hernán Musaluppi. Roteiro: Gustavo Taretto. Intérpretes: Javier Drolas; Pilar López de Ayala; Inés Efron e outros.
Argentina: Eddie Saeta S.A.; Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA); Pandora
Filmproduktion; Rizoma Films; Televisió de Catalunya (TV3) e Zarlek Producciones; 2011. 1 filme (95 min).

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, Out. 2005.
Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132005000200010&script=sci_arttext>. Acesso
em: 5 ago. 2014.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo;
SCHWARTZ, Vanessa R (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p.
95-123.

SOUZA, Jesse & ÖELZE, Berthold (Orgs). Simmel e a modernidade. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2005.

TEMPOS MODERNOS. Direção: Charles Chaplin. Produção: Patríciu Santans. Roteiro: Charles Chaplin.
Intérpretes: Charles Chaplin; Paulette Goddard; Henry Bergman; Stanley Sandford; Chester Conklin e outros.
Estados Unidos: Charles Chaplin Productions; 1936. 1 filme (87 min).

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