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Resumo
O objetivo deste artigo é refletir sobre a violência durante manifestações de rua e o que ela tem
de comunicacional, além de mostrar sob quais enquadramentos os protestos recentes de ação direta contra
o Estado foram retratados pela mídia no Brasil a partir de junho de 2013. A análise é focada na relação
violenta entre manifestantes e o Estado, representado em primeira instância pelo aparelho repressivo.
Uma relação dialética movimenta estes atores sociais, determinando como as performances vão se
adaptando à atuação da polícia, e como os instrumentos e estratégias policiais vão se reformulando de
acordo com investigações sobre os ativistas, unindo contra estes o campo político, jurídico e a grande
imprensa, num raro consenso. Reflete-se também sobre os aspectos identitários que unem estes
manifestantes e os leva a adotar determinado comportamento, aceitando a violência como um elemento
fundamental na sua performance e no processo comunicativo por eles deflagrado.
4 Utiliza-se aqui, conforme Bourdieu (1989), o conceito campo do poder no lugar do de classe
dominante. Dentro deste campo mais amplo, se situariam, entre outros, segundo o teórico francês, os
campos político e econômico. Incluo neste grupo o poder jurídico e o campo do jornalismo.
postos em ação. Alguns os percebem, outros não, Entre os que os percebem, alguns
reagem com participação política, outros não. Entre os que assumem a luta coletiva
através de alguma organização alguns rechaçam a violência como arma, outros não.
Quando a violência simbólica é percebida e gera uma ação social, além da polícia, o
Estado conta com os grandes veículos de comunicação para vencer os inimigos do
sistema:
Com o mecanismo da violência simbólica, a dominação tende a assumir a
forma de opressão mais eficaz e, nesse sentido, mais brutal. E quando
movimentos sociais ou indivíduos se rebelam contra essa sutil violência
simbólica que se manifesta de diversas maneiras no cotidiano, o braço
repressor deste sistema, a polícia, age com força bruta. E os grandes veículos
de comunicação, eles mesmos aparelhos legitimadores e reforçadores dessa
VS, mostram a ação como reação a atos de desobediência civil, tais como a
depredação de propriedades privadas ou públicas. Para isso, invertem a
cronologia dos acontecimentos, ocultam fatos e sobrevalorizam outros
(BOURDIEU, 1996, p.270, grifos meus).
Arendt fala aqui da violência praticada pelo Estado, aquela que vem justamente
do exercício do poder político. Sartre, Voltaire, C. Wright Mills, John Stuart Mill,
Marx... A pensadora alemã os traz para a discussão atribuindo a eles a mesma ideia de
que o poder equivale ao uso da violência, ou à possibilidade de se fazer uso dela.
Discordando desta tese, a autora discorre sobre os conceitos de poder, vigor, força,
autoridade e violência, diferenciando cada um deles. No caso da violência, ela entende
que o que a destaca dos demais conceitos é seu caráter instrumental, ou seja, aquilo que
é criado pela técnica para multiplicar o potencial de vigor dos homens que a utilizam. O
poder, para Arendt, está ligado a uma situação temporária, que inclui um certo consenso
para que determinada pessoa ou grupo desfrute desta condição. E dependendo do caráter
deste ou destes atores sociais em questão, a violência pode jamais ser empregada – ou,
pelo menos, não de uma forma concreta, física. E, no entanto, apesar de distingui-las,
Arendt afirma que nada é mais comum do que encontrar poder e violência associados na
prática social.
À medida que as grandes manifestações de rua foram se sucedendo ao longo da
segunda metade de 2013, uma série de medidas jurídicas foi sendo tomada pelo campo
do poder. Conforme alentado no resumo inicial, os poderes legislativos e executivos
municipal, estadual e federal, apoiados pelo judiciário e pela grande mídia, chegaram
desde o início dos levantes populares a um consenso raro em se tratando da realidade
sócio-histórica brasileira. Agremiações partidárias inimigas abandonaram suas
trincheiras e seus papéis transitórios de situação e oposição. Deixaram de lado rixas que
logo adiante seriam retomadas, em nome de evitar o que consideravam um mal maior,
exceção feita a alguns partidos de esquerda, sem grandes representações legislativas e
ausentes no comando dos poderes executivos. Estes denunciaram o que consideraram
abuso de poder e cerceamento de liberdade democráticas, mas sem força política de
fazer valer a sua voz – e sem a mesma visibilidade midiática proporcionada aos que
defendiam maior repressão. Algumas entidades importantes da sociedade civil, como a
OAB, se pronunciaram contra as leis de emergência criadas e votadas, às vezes, em
tempo recorde. Como será mostrado a seguir, esta aliança entre os distintos instâncias
do Estado e das elites político-econômicas, entre partidos historicamente rivais, vai ao
encontro do que aconteceu em outros países, mostrando um padrão de comportamento
comum dos campos de poder em diferentes nações ao lidar com as recentes ondas de
protesto que ganharam as ruas do mundo.
Conforme as polícias brasileiras iam investigando os ativistas e se preparando
melhor para os protestos, estes também iam mudando a forma de atuação. Entende-se,
assim, que uma relação dialética tem movido a ação destes dois atores sociais:
manifestantes e Estado. Desde a eclosão dos eventos de junho de 2013, assiste-se a um
aperfeiçoamento das forças repressivas, confrontadas que foram por um novo desafio
que, por vezes, assumiu ares de sublevação popular. Pode-se dizer que durante alguns
momentos nestes últimos dois anos, o crime organizado e o narcotráfico geraram menos
dor de cabeça às autoridades do que os manifestantes políticos. Do campo jurídico veio
o amparo legal para uma série de leis e restrições administrativas que têm sido desde
então colocadas para dificultar a realização de protestos de rua.
Povoam hoje o corpo de leis municipais, estaduais e nacionais medidas legais
como a proibição de máscaras e de certos artefatos, como o vinagre, utilizado para
minimizar os efeitos do gás lacrimogêneo. A polícia de São Paulo, particularmente, têm
incorporado novas táticas, tais como o uso de artes marciais no confronto corpo a corpo.
O governo paulista comprou quatorze tanques israelenses, de um modelo utilizado em
conflitos contra os palestinos. Os veículos podem jogar água, gás lacrimogêneo e tinta –
para identificar os manifestantes considerados violentos e facilitar sua captura em meio
aos tumultos que se formam durante os confrontos5.
Muitos entendem que a força desmedida da Polícia Militar de São Paulo contra
manifestantes e jornalistas na noite de 13 de junho de 2013 teria sido o estopim para as
grandes passeatas que acabaram se espalhando pelo Brasil. Da mesma forma, adeptos da
tática Black Bloc e pesquisadores do tema defendem que o aparecimento em cena destes
personagens tão sedutores ao gosto do jornalismo-espetáculo se deu como reação à ação
da polícia, “segundo as suas próprias narrativas, a maioria dos que aderiram à tática
Black Bloc nas ruas de São Paulo o fez depois das manifestações de junho, motivados
pelo que eles consideraram 'ação policial excessiva contra os manifestantes'”
(SOLANO; MANSO; NOVAES, 2014, p. 52). Seriam, portanto, um grupo reativo, uma
resposta à face brutal do Estado. Com o passar dos meses e o aumento da repressão,
envolvendo já não apenas as detenções durante os atos, mas ainda ações de busca e
apreensão nas casas de manifestantes e o uso de escutas eletrônicas em suas ligações
telefônicas, táticas de guerrilha urbana passaram a ser adotadas pelos ativistas, como o
fogo para assustar os cavalos das tropas. Passou a ser comum ver jovens com mochilas
nas costas, não apenas para carregar artefatos como garrafas de vinagre – e mesmo
artefatos de luta – , mas também para atenuar os golpes dos cassetetes. Era o lado
5 SP ou Faixa de Gaza? PM terá blindados israelenses para conter manifestações. SPRESSOSP, São
Paulo, 14 dez. 2014. Disponível em: <http://spressosp.com.br/2014/12/14/sp-ou-faixa-de-gaza-pm-tera
blindados-israelenses-para-conter-manifestacoes/>. Acesso em: 17 dez. 2014.
desafiante dos poderes constituídos tentando se adaptar a batalhas campais bastante
desiguais.
O comportamento do campo do poder no Brasil neste caso segue uma tendência
mundial. Só para citar alguns exemplos, em 2012 o presidente dos Estados Unidos
Barak Obama assinou o Trespass Bill, uma lei que proíbe manifestações nas
proximidades de eventos de importância nacional – como as conferências de
organismos internacionais. A lei proíbe ainda a obstrução de entrada de edifícios onde
estejam autoridades e qualquer tipo de entrave físico a encontros de negociações de
governo. Mais recentemente, na Espanha, uma lei similar foi aprovada, praticamente
inviabilizando a mobilização de centenas ou milhares de pessoas nas ruas. Ucrânia,
Turquia, Canadá, Egito, Chile, entre outros, seguiram o mesmo caminho6,
Cabe ressaltar que instituições como a imprensa e o judiciário, baluartes do
Estado de Direito, apoiam a repressão violenta contra os manifestantes acusados de
serem violentos. Não são, portanto, ideologicamente contrários à violência, e sim à
violência praticada por quem pretende desestabilizar os poderes constituídos. À
imprensa cabe então o papel de angariar apoio popular contra os manifestantes,
mostrando em seus noticiários, por exemplo, a loja de um pequeno comerciante
destruída por jovens mascarados, ou o carro de um trabalhador depredado. Imagens que
praticamente dispensam qualquer enunciado, tal a força emotiva que despertam como
símbolos de uma profunda injustiça pessoal de que é vítima o cidadão comum.
Retomemos então Hannah Arendt e sua reflexão sobre a violência. A autora
destaca a discrepância existente entre as condições do uso da violência por parte do
Estado se comparadas às que dispõem os que se opõem a ele.
O fato é que o vácuo entre os instrumentos de violência de propriedade do
Estado e os que as pessoas conseguem reunir por conta própria – desde latas
de cervejas até os coquetéis Molotov e as armas de fogo – tem sido sempre
tão enormes que as melhorias técnicas fazem pouca ou nenhuma diferença.
As instruções retiradas de manuais versando sobre “como fazer uma
revolução” passo a passo desde a dissensão à conspiração, da resistência ao
levante armado, baseiam-se todas elas na noção errada de que as revoluções
se “fazem”. Em uma competição de violência contra violência a
superioridade do governo tem sido sempre absoluta; porém esta
6 CALIXTO, Bruno; Durães, Natália. As leis anti-protestos no mundo. ÉPOCA, Rio de Janeiro, 31 jan.
2014. Disponível em: <http://blogdainseguranca.blogspot.com.br/2014/02/as-leis-antiprotesto-no-
mundo.html>. Acesso em: 18 nov. 2014.
superioridade só perdura enquanto continuar intacta a estrutura de poder do
governo – isto é, enquanto forem obedecidas as ordens, e o exército ou a
força policial estiverem dispostos a usar as suas armas. No caso contrário, a
situação se transforma abruptamente. Não apenas deixa a rebelião de ser
sufocada, mas as próprias armas passam para outras mãos (ARENDT, 2001,
p. 30).
As chances de vitória do Estado no confronto físico travado nas ruas são sempre
enormes. Como então entender a escolha feita por alguns manifestantes que
deliberadamente optam pela violência para expressar sua raiva, sua crítica, sua não
adaptação e concordância com as normas vigentes da vida social? Estaria a resposta,
conforme frisou Arendt no fim do trecho acima descrito, na esperança de que a
sociedade civil se junte a eles contra as formas de poder constituídas? Em plena
vigência de regimes democráticos representativos?
Referências