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ENSAIOS — III 481 mila; 0 ator da primeira foi morto ha pouco tempo. Se meu semblante no respondesse por mim, € se eu nao revelasse nos olhos € na voz a ino- céncia de minhas intengdes, nao ficara sem ‘putas nem ofensas tanto tempo, dada minha indiscreta maneira de dizer as coisas, a tortoe a direito, e de tudo julgar temerariamente. Essa maneira pode parecer indelicada e contraria aos usos, mas nao encontrei ninguém que a tenha considerado injuriosa ou mal intencio- nada, nem vi quem que? que fosse que minha liberdade magoasse. Isso em relagio a minhas proprias palavras, pois quanto aos diz-que- diz-que, outro é o tom e diferente o sentido. Nao odeio ninguém © ndo me apraz ofender, ‘ainda que com razao. Quando a oportunidade ime foi dada de condenar alguém, sempre prefe- ri faltar ao dever: “Gostaria que nfio cometes- sem crimes, mas nfo tenho coragem de punir 08 que 0s cometeram®? ®,” Censuravam a Aris- 330 Tito Livio. tételes ter sido demasiado benevolente com ‘um perverso: “Fui de fato benevolente”, res- pondeu, “mas com o homem e nao com o crime.” Os julgamentos sio em geral tanto mais severos quanto mais lamentaveis os cri- mes; a impress&io que tenho diante de minhas faltas € diversa: o horror do primeiro crime Jeva-me a temer um segundo, o édio que sinto contra a crueldade cometida induz-me a evitar a repetigio ¢ inclino-me para a dogura. Apli- case a mim, personagem de pouea importan- cia, 0 que se dizia de Carilo, rei de Esparta, isto & que nfo podia ser bom com os bons, pois gue no sabia ser mau com os maus. Mas também fora possivel interpretar tal atitude como faz Plutarco: “Era téo bom que até com os maus 0 ra.” Assim como me desagrada intervir licita- mente contra aqueles a quem isso possa abor- recer, muito mais me desgosta, em verdade, agir ilicitamente contra os que se comprazem no ilicito. CapiruLo XIII Da experiéncia O desejo de conhecimento 6 o mais natural. Experimentamos todos os meios suscetiveis de satisfazé-lo, € quando a razo nao basta apela- mos para a experiéncia, “Através de varias provas, a experiéncia cria a arte e 0 exemplo alhejo mostra-nos 0 caminho#s ®.” Este segun- do processo é menos seguro do que 0 primeiro © menos digno; mas a verdade é tio valiosa gue nada devemos desdenhar, capaz de nos, evar a ela. A razio assume tantas formas que nao sabemos qual escolher. A experiéncia igualmente; ¢ as conseqiiéncias que procura- mos tirar da comparagao dos acontecimentos nao oferecem seguranga, porquanto niio sio Jamais idénticas. O que encontramos nas coi- sas mais semelhantes é a diversidade, a varic- dade. Como exemplo de semelhanga perfeita citamos, com os gregos ¢ 08 latinos, a existente entre 0s ovos; entretanto, houve individuos, em Delfos particularmente, que sabiam néo’ so: mente distinguir de que galinheiro provinha 0 ovo, mas ainda de que galinha. A diferenga introduz-se por si 96 em nossas obras e nenhu- ma arte pode chegar & similitude. Nem Perro- 338 Manilio. zet?*? nem ninguém ¢ capaz de poli ¢ bran- quear o reverso de suds cartas a ponto de um Jogador experimentado nao as reconhecer simplesmente ao vé-las manuseadas. A seme- hanga nao unifica na mesma proporgdo em que @ dessemelhanga diversifica, A natureza parece ter-se esforgado por nao criar duas coi- sas idénticas. Por isso ndo acredito que, como pensava alguém, em se multiplicando as leis reprimi- riamos a autoridade dos juizes, porque pouco teriam que decidir. Nao pensava que a inter- pretagao deixa grande margem para uma intei- Ta liberdade de julgamento. Engana-se quem imagina acabar com nossas discussdes citando um texto preciso da Biblia; nosso espirito des- cobre tantas razdes para criticar a interpre- tagGo alheia quanto para defender a nossa, ¢ tanto comentar como inventar prestam-se as mais acerbas discusses. E bem vemos que a Opinio desse individuo esta errada, pois temos em Franga maior mimero de leis do que os de- mais paises reunidos ¢ mais do que seria neces- sario para governar todos os mundos de Epi- ‘curo: “‘Sofremos tanto das leis como outrora 337 Célebre fabricante de cartas. 482 MONTAIGNE dos crimes***.” Entretanto, nossos juizes opi- ‘nam ¢ julgam com uma liberdade e autoridade poderosas e escandalosas. Que ganharam nos- 508 legisladores com selecionar cem mil espé- cies ¢ Fatos especificos ¢ prové-los de cem mil leis? Esse ntimero nfo esta em proporgao com a diversidade infinita dos atos humanos, nem a multiplicidade de nossas invengdes aleangara jamais a variedade dos exemplos. Acrescentem cem vezes mais leis ¢ nao deixara de suceder que nas ocorréncias vindouras alguma se encontre, em meio as escolhidas e registradas, que requeira ponderagio ¢ juizo diferentes. Pouca relagao existe entre nossos atos, sempre em perpétua transformagio, e as leis que séo fixas ¢ estaticas. O mais desejavel a esse res: peito € que estas sejam as mais simples possi veis ¢ concebidas em termos gerais; ¢ fora ainda melhor nfo as ter do que as possuir tao numerosas. A natureza cria sempre leis melhores do que as nossas. Atestam-no a idade de ouro de que falam os poctas ¢ o estado natural em que vemos viverem os povos que nfo conhecem leis artificiais. Alguns h4 que tomam por juiz 0 primeiro viajante que passa pelas suas monta- rihas; outros elegem, em determinado momen- to, uma pessoa qualquer para dirimir suas di- vidas. Que perigo haveria em que os mais slbios resolvessem as nossas, segundo as circunstancias, sem se aferrar a precedentes, nem a conseqiéncias? Cada pé requer um sapato, cada caso sua solugdio. O Rei Fernan- do, ao enviar colonos para as Indias, muito sabiamente determinou que nfo se mandassem jurisconsultos, a fim de evitar que se introdu- issem demandas no Novo Mundo, pois julga- va com razdo que a ciéncia da justiga gera altercagies e dissensdes. Na sua opiniao, como na de Plato, jurisconsultos e médicos so ‘maus elementos em um pais. Por que nossa linguagem comum, tao cdmo- da e facil, se tora obscura e ininteligivel quan- do empregada em contratos ¢_ testamentos? Por que os que se exprimem tio claramente quando falam ou escrevem, nao acham jeito de no se confundir ou se contradizer em atos desse género? E porque os principes dessa arte se aplicam com especial cuidado em escolher vocbulos solenes, frases artisticamente cons- truldas, e tanto pesam cada silaba, sutilizam cada termo, que nos embaragam e embrulham na multiplicidade das fSrmulas e das minicias; € nao mais distinguimos regras ou prescriges € nio entendemos absolutamente mais nada: “Tudo o que se divide até se reduzir a po, faz- se confuso®?®.” Quem nio viu uma crianga 235 Técito. 339 Séneca. tentar dar forma a uma bola de mercirio? Quanto mais se obstina, tanto mais se frag- menta o metal rebelde ¢ se dispersa em gotas incontaveis. O mesmo sucede na jurispru- déncia, Multiplicando-se as sutilezas, ensina-se aos honiens a aumentarem as dividas, a esten- derem ¢ diversificarem as dificuldades;_am- pliam-se ¢ dispersam-se. Semeando questées € retalhando-as, fazemos com que frutifiquem a incerteza e a dissensdo; assim se torna a terra mais fértil na medida em que mais profunda- mente se remove. “As dificuldades nascem das doutrinas? #°.” Duvidamos com Ulpiano. duvi. damos ainda mais com Bartolo ¢ Baldo. Fora. preciso apagar 3 vestigios dessas inumerdveis opinides, em vez de nos enfeitarmos com clas ¢ transmiti-las ampliadas 4 posteridade. Sabe- ‘mos por experiéncia que a pluralidade de inte pretagSes dissipa e desagrega a verdade. Ari tételes escreveu para ser entendido; se no 0 Iogrou, menos lograré alguém menos habil do que el¢ ¢ menos conhecedor das idéias de quem as cxpés. Fragmentamos a matéria; de um assunto fazemos mil e caimos, multiplicando- 08 € dividindo-os, nessa infinidade de étomos que imaginara Epicuro. Nunca duas pessoas julgaram uma mesma coisa da mesma maneira fe & impossivel observarem-se duas opinides idénticas, nao 36 de individuos diferentes mas, ainda de um mesmo homem em dois momen- tos diversos. Duvido em geral acerca de pontos nao comentados; tropego facilmente onde no ha dificuldades, como certos cavalos que sao menos seguros nos caminhos batidos ¢ pla- nos? 4? Quem ha de negar que as aplicagdes aumen- tam as dividas e a ignorancia, quando vé que 2 interpretacao no dirimiu nenhuma dificul- dade de nenhum texto humano ou divino? O centésimo comentador transmite-o a0 seguinte, mais espinhoso e escabroso do que o recebera de seu antecessor. Quando nos aconteceu con- vir em que determinado livro ja fora suficiente- mente anslisado? Isso se observa melhor ainda na chicana, pois ento outorgamos autoridade legal a intimeros doutores, decisées ¢ interpre- tages. Poremos fim algum dia a essa mania de interpretar? Teremos feito algum progresso no caminho da tranqiiilidade? Precisamos de menos juizes ¢ advogados do que quando essa massa de leis ainda se achava na primeira infancia? Ao contrario, obscurecemos-lhes € 342 Quintiliano. 251 A frase é confusa € parece contraditéria. Ov- tros Ihe deram sentido contririo. Ativemo-nos 4 interpretagio de Michaut. O pensamento de Mon- taigne carece por vezes de ligagao logica ¢ ha que apelar para certas associagdes de idéias para enten- dé-lo.(N. do T) ENSAIOS — Ill abafamos-Ihes & compreensio, que ja no per~ cebemos sendo através de tapumes © barreiras. Os homens desconhecem a enfermidade de seu espirito, o qual ndo faz sendo fugar, conjeturar, chafurdar na sua agitagao até se afogar nela, como 0 bicho-da-seda ov como um camun- dongo no pez. Pensa, de longe, ver certa apa- réncia de luz ¢ de verdade imaginarias, mas 20 acercar-se surgem os obstaculos, as novas pes- quisas, e ei-lo perdido ¢ estonteado, E 0 caso dos cies de Esopo que, vendo um corpo a flu- tuar no oceano e nao o podendo alcangar, resolveram beber a Agua para secar o mar, & morreramm. E Crates dizia dos escritos de Hera- clito, que necessitavam de um leitor bom nada- dor para que nfo se afogasse na profundidade eno peso da doutrina. S6 por fraqueza nos contentamos com 0 que outros ¢ nés mesmos deparamos nessa caga 20 saber; os mais aptos nio se satisfazem e have- r& sempre caminho a percorrer para quem vier depois, ¢ até para nos se agirmos de outro modo. Nossas investigagGes s6 chegaro 20 fim no outro mundo. Contentar-se é sinal de falta de folego ou de lassidio. Nenhum espirito, generoso se detém por si mesmo, antes vai sempre para diante e além de suas forgas. Se nfo se afana, nfo se apressa, nfo acua, nao se choca, no gira sobre si mesmo, € porque nio esta vivo, vegeta. Suas buscas nao tém forma nem fim; alimenta'se de admiragao, de pesqui- sas, de diividas, 0 que demonstrava Apoto falando sempre com duplo sentido, obscura e obliquamente, ndo nos dando satistagao ¢ sim despertando nossa imaginagao, ¢ excitando-a. Trata-se de um movimento irregular, perpétuo, sem molde ¢ sem objetivo, cujas invengoes se estimulam, se sucedem e se criam mutua- mente: “Assim se vé no arroio contem- plando a gua que apds a gua vai corren- do, em uma ordem eternamente igual. A agua perseguc a agua que fore, 2 qual outra persegue igualmente, Uma por outra éempurrada uma precede sempre a outra. A gua segue a agua eé variavel. Mas o rio é sempre © mesmo, imutayel? #2,” Interpretar as interpretagdes d4 mais traba- Tho do que interpretar propria coisa, mas escrevemos mais livros sobre livros do que sobre Os assuntos mesmos; comentamo-nos uns aos outros. Ha excesso de comentadores 342 La Boétie — Parifrase do Orlando Puriaso. mas escassez de autores. A principal ciéncia do século consiste em entender os sébios; nao cesta nisso o fim iiltimo de nossos estudos? Nossas opinides sustentam-se mutuamente, uma serve de degrau & outra ¢ assim acontece que quem sobe mais alto © maior reputagao adguire nfo tem em verdade grande mérito, pois nfo fez senfo superar de um atimo 0 que vyern loge abaixo. Quantas vezes, e quigé tolamente, nao ampliei meu livre fazendo com que falasse de si mesmo? Tolice, mesmo porque devia ter-me lembrado do que digo dos outros: “todas essas olhadelas na propria obra atestam que o cora- go sente por ela muita ternura; e mesmo quando a maltratam e fingem desprezi-la, na realidade nao fazem senao disfarcar 0 amor materno”. E o que diz Aristételes, acrescen- tando que a estima e o desdém de si mesmo se traduzem com o mesmo ar arrogante. Tenho contudo uma desculpa: cabe-me o dircito & maior liberdade, porquanto € precisamente de mim mesmo ¢ de meus escritos que trato neste livros mas no sei se aceitardo a desculpa. Lutero, na Alemanha, provocou mais divi- das e dissensdes acerca de suas idéias do que teve a respeito das Santas Escrituras. Tudo é questo de palavras e se resolve com palavras. Uma pedra é um corpo, mas, se perguntarmos © que 6 um corpo, responderdo: substancia. E que é substincia? etc. Interrogado dessa maneira, qualquer um logo se sente acuado. Muda'se uma palavra por outra, as mais das vezes desconhecida. Sei o que € um homem, ‘mas sei menos 0 que seja um animal, um mor- tal, um ser dotado de razio; para libertar-me de uma divida impingem-me trés; € a cabega da hidra. Sécrates indagou de Ménon em que consistia a virtude, “Ha”, respondeu Ménon, “virtude de homem, virtude de mulher, de magistrado, de particular, de crianca, de velho.” “Otimo”, —_ observou Socrates, “andavamos a procura de uma virtude ¢ dao- nos um enxame.” Fazemos uma pergunta € respondem-nos com um punhado de interroga- Ges. Assim, pois, como nenhum fato nem forma se assemelha inteiramente a outro, tam- pouco difere por completo. Se nossos rostos no se parecessem, nfo podertamos distinguir ‘© homem do bicho; e se fossem idénticos, um individuo nao se distinguiria de outro. Tudo comporta alguma semelhanga, mas a identi- dade com um dado exemplo nunca é absoluta; conseguintemente, a relagao inferida da expe- rigncia € sempre imperfeita, Entretanto, as comparagdes ligam-se entre si por alguma parte; € 0 que ocorre com as leis que, mediante interpretages sutis, forgadas ¢ indiretas, adap- tamos aos casos que se Vo apresentando. a 484 MONTAIGNE Sendo as leis éticas — as que regulam o dever particular de cada um consigo mesmo == tio dificeis de se estabelecerem, no ha como estranhar que as que governam a muitos © scjam mais ainda. Considerai as formas da Justiga que nos rege: so um auténtico testemu- nho da imbecilidade humana, tal o ndimero de contradigées € erros que computam. E 0 fato de depararmos com tanto rigor e tanta indul- géncia ao mesmo tempo na justiga, prova que ‘44 membros enfermos no proprio corpo ¢ esséncia da jurisprudéncia. Neste momento mesmo em que eserevo, alguns camponeses vyém avisar-me de que encontraram a entrada da floresta um homem mojdo de pancadas ¢ que Ihes pedia 4gua ¢ ajuda para ergier-se. Nao ousaram aproximar-se, dizem-me, ¢ fugi- ram com medo de serem presos por policiais (como fazem estes com quem é visto ao lado de um cadaver) e terem de explicar o acidente, © que seria um desastre para eles, sem o dinheiro nem os meios com que provar sua inocéncia. Que podia censurar-lhes? & certo que, atendendo a seu dever de humanidade, se teriam comprometido. Quantos inocentes sabemos terem sido puni- dos, sem culpa sequer dos juizes? E quantos 0 foram que nao conhecemos? Fis um fato ocor- ido ha tempos. Uns individuos sio condena- dos por homicidio, ¢ ja se iaexecutar asentenga quando os juizes s40 inforinados por oficiais de justiga de um tribunal de instdncia inferior de que seus presos acabam de confessar categoricamente a autoria do crime, 0 que esclarece por completo a questéo. Deliberam entio os jutzes sobre se se deve sustar a execu- gio da sentenga ja proferida; ponderam o ine- ditismo do caso, e as conseqiiéncias que podem advir para os julgamentos futuros; ¢ concordam em que a sentenga era valida por- quanto juridicamente certa. E os pobres diabos foram enforcados em holocausto 20 forma- lismo da justiga. Filipe da Macedénia, ou outro qualquer, nio sei bem, resolyeu uma questo semelhante da seguinte maneira: condenara um individuo pagar a outro forte indenizago ¢ tempos de- pois verificou-se que julgara iniquamente. De um lado havia o interesse da causa que era Justa, de outro a razio das formas judiciais {que tinham sido honestamente observadas. Fi- lipe mandou que confirmassem a sentenga e de seu bolso ressarciu os prejuizos sofridos pélo condenado. Mas 0 caso era reparavel, en- quanto na questo precedente os réus perde- ram a vida, Quantas condenagdes mais crimi- nosas do que o crime nio tive a oportunidade de ver! Isso tudo leva-me a recordar antigos princt- pios como este: quem deseja o triunfo do-direi- to nas questdes gerais, é forcado a sacrificé-lo nas coisas de menor importincia; a injustiga no pormenor é necesséria a justica no todo. A justiga é como a medicina: tudo o que é itil é por isso mesmo, honesto e justo. O que corres- ponde as idéias dos estdicos: “a prépria natu- Teza em boa parte de suas obras age contra a justiga”. E admitem os cirenaicos que nada é justo em si; os costumes e as leis € que deter- minam 0 que é justo © 0 que 0 nao é E os teodorianos pensam que o furto, 0 sacrilégio e 08 atos imorais de qualquer espécie se justifi- ‘cam aos olhos do sabio, desde que possam ser iteis. Contra isso nfo hé nada a fazor e, como Alcibiades, limito-me a dizer que nunca, se puder, me entregarei a alguém com direito de vida ¢ morte sobre mim ¢ cuja decisdo se inspi- rar4 muito mais no talento ¢ na habilidade de meu advogado do que na minha inocéncia. Eu sé me arriscaria diante de um tribunal com capacidade para conhecer de minhas boas mas agGes ¢ do qual tanto teria a temer como a esperar. Uma simples absolvigao no pode satisfazer quem tenha feito algo mais do que no cometer um crime. Nossa justiga s6 nos mostra uma de suas maos, e ainda por cima a esquerda; quem quer que seja com ela sai sem- pre perdendo. Na China, as instituigdes e as artes, que divergem consideravelmente das nossas € que conhecemos mal, superam amitide, por sua exceléncia, 0 que ocorre em Franga. Por esses exemplos verificamos a que ponto o mundo & maior ¢ mais variado do que os antigos — e n6s mesmos — imaginamos. Ali so enviados oficiais a todos os recantos do Império, a fim de controlar 0 estado das provincias; e assim como punem os que prevaricam ¢ roubam, recompensam generosamente os que se condu- zem melhor do que os demais e fazem mais do que devem, Desse modo nao comparecem os individuos perante a justia para salvar-se ¢ sim para ganhar alguma coisa, nao esperam unicamente eqiiidade e sim honrarias. Gragas a Deus, nenhum juiz me falou até agora como juiz, nem em causa minha nem em de terceiros, nem no civel nem no criminal. Nunca entrei numa priséo sequer para a visi- tar; minha imaginagao torna a coisa desagra- davel mesmo de fora. Sou tio Avido de liber- dade que, se me proibissem o acesso a algum recanto das Indias, passaria a viver por assim dizer incomodamente; € enquanto houver um lugar em que a terra ¢ o mar sejam livres, nao residirei_onde precise esconder-me. Como sofreria nas condigdes em que vejo certas pes- soas, obrigadas a residir em uma dada regifio do reino, proibidas de utilizar as estradas, de ENSAIOS — lil £85 entrar nas cidades ¢ na corte, porque infrin- giram as leis! Se aquelas sob as quais vivo ameagassem sequer a ponta de meu dedo, iria imediatamente acolher-me & sombra de outras, fosse onde fosse. Toda a minha pequena prudéncia, emprego-a, durante as guerras civis que nos ailigem, em evitar que entravem minha liberdade de locomogao. A autoridade das leis nfo esté no fato de sefem justas e sim no de serem leis. Nisso resi- de o mistério de seu poder; nao tém outra base, @ essa Ihes basta, Foram no raro feitas por tolos; mais vezes ainda'por individuos que, no seu édio A iguaidade, incorriam em falta de eqiiidade; mas sempre por homens ¢ portanto por autores irresolutos fiivolos. Nada ha tao grave, ampla ¢ comumente defeituoso quanto as leis; quem as obedece porque so justas, la- bora em erro, pois é a finica coisa que em ver- dade nfo sio. As leis francesas, pela sua con- fusio e sua deformidade, prestam-se desordem € A corrupgio que se verificam em sua aplicagio, Seu conteddo é tao obscuro & assenta em principios to variaveis, que os que Ihes desobedecem, as interpretam, observam ou aplicam mal so desculpaveis. Qualquer que seja 0 fruto que tiremos da expériéncia, 0 que nos vier do estrangeiro nao servira para as nossas instituigdes enquanto utilizarmos tio mal as leis que nos demos, com as quais esta- mos familiarizados e que por certo sao sufi- cientes para instruir-nos acerca de tudo de que precisamos, Estudo-me a mim mesmo mais do que qualquer outra coisa ¢ esse estudo const tui toda a minha fisica e a minha metafisic “De que medo Deus governa o mundo? Que caminho percorre a lua? Como, reunindo sua dupla foice, se encontra ela cheia todos os meses? De onde vém os ventos que comandam ‘os mares ¢ qual a influéncia do que vem do sul? Quais as @guas que formam as nuvens? Ocorrerd um dia a destruigao do mundo® 492” “Procurai, vés que o desejo de aprofundar os mistérios da natureza atormenta? **.” Nesse grande todo abandono-me despreocupado e ignorante A grande lei geral que rege o mundo; conhecé-1a-ei suficientemente quando lhe sentir 05 efeitos. Meu saber ndo pode afasté-la de seu caminho; néo se modificara por mim, seria Joucura esperé-lo; € maior loucura ainda abor- recer-me, pois necessariamente é ela igual para todos ¢ a todos se aplica. A bondade, 0 poder de quem governa o mundo eximem-nos de qualquer ingeréncia em suas leis. As pesquisas € as contemplagdes dos filésofos server ape- nas de alimento para nossa curiosidade. Tém 343. Propércio, 244 Lucano. Fazio quando nos apontam a natureza; mas de que vale tao sublime conhecimento? Eles falsi- ficam-lhe as regras e no-la apresentam com um rosto pintado e to sofisticado que mal a reco- nhecemos nessa variedade de retratos de um mesmo modelo. Deu-nos a natureza pés para andar ¢ prudéneia para nos conduzirmos na vida. Essa prudéncia nio €, como a imagina- ram, um complexo de finura, forga e ostenta- io; & como disse alguém, facil, tranaiiila, salutar e eficiente para quem 2 empregar com inocéncia e oportunidade, isto é, naturalmente, Entregar-se simplesmente & natureza ¢ a me- thor maneira de confiar nela. Como a igno- rincia e a auséncia de curiosidade constituem ium doce e mole travesseiro para descansar uma cabega equilibrada! Gostaria mais de entender bem o que se verifica em mim do que compreender perfeita- mente Cicero. Na minha experiéncia prépria ja tenho com que me tomar sébio, desde que atente para seus ensinamentos. Quem se lem- bra do papel feio que.fez. quando tomado de c6- lera ¢ a que excessos essa febre o impeliu, ja sabe a que ponto uma tal paixao é lamentavel e nao precisa que Iho diga Aristételes. Quem se recorda dos males de que foi vitima, ou de que se viu ameagado, e das circunstancias sem gravidade que o puderam perturbar, ja se acha preparado para as agitagdes futuras ¢ conhece sua condigao. A vida de César nao nos oferece mais exemplos do que a nossa, porque tanto a de um imperador como a de um homem vulgar so vidas humanas ¢ sujeitas a todos os aci- dentes humanos. Escutemos nossa experiéncia, @ veremos que nos diz tudo aquilo de que temos necessidade especial. Nao € um tolo quem nao desconfia afinal de seu juizo, se ‘econhece ter sido por ele cnganado mil vezes? {Quando me convengo, diante dos argumentos gue me apresentam, de que minha opiniao & errénea, no é tanto a ignorancia que se evi- dencia ‘a meus olhos — seria pouco — & minha fragilidade que constato, € a traigao de minha inteligéncia, e chego & conclusio de que tudo esta a exigir reforma. Em todos os meus outros erros, ajo da mesma maneira e tiro dessa regra grande proveito na vida. Nao olho, mo caso, o fato, como uma pedra em que ocasionalmente tropego; o que ele me revela é que possivelmente tudo precisa ser revisto € reajustado. Saber que dissemos ou fizemos uma tolice, pouca importancia tem; 0 impor- tante € saber que somos tolos. Os maus passos que minha meméria me fez dar, mesmo quan- do mais confiava nela, ndo foram initeis. Hoje pode ela jurar-me que esta segura de si, nao acredito mais, e qualquer objegiio que opo- nham a seu testemunho, pée-me de sobreaviso.

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