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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação – NEPEFE
GRUPO DE ESTUDO HEIDEGGER

Martin Heidegger
Notas introdutórias
Material didático de apoio preparado para o Grupo de Estudo - Heidegger.

Wanderley J. Ferreira Jr
Faculdade de Educação – UFG
wanderleyf4@gmail.com

Goiânia – 2018
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NEPEFE – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e educação
Grupo de Estudo Heidegger

Coletânea de textos que tem como objetivo básico contribuir para iniciar os não iniciados nas sendas
tortuosas abertas pelas obras de Martin Heidegger. São textos elaborados em épocas diferentes com
propósitos diferentes e que sofreram algumas adaptações para atender o público alvo de nosso curso de
extensão.

Os textos, sem cair no jargão heideggeriano ou nos clichês, procuram abordar temas e problemas que
acompanharam Heidegger ao longo de sua vida meditante.

As tarefas e os desafios estão colocados – cabe a nós, homens do crepúsculo da era atômica decidir se
dessa escuridão surgirá uma nova aurora do pensamento. Ou continuaremos desterrados em nossa
própria casa - a terra.

Nós chegamos demasiado tarde para os deuses


e demasiado cedo para o Ser.
Deste, o homem é poema começado [...]
Nós nunca chegamos aos pensamentos.
Eles vêm a nós.
É a hora conveniente para a conversação.
Isto nos dispõe para a meditação em comum.
Esta nem considera o pensar contraditório,
nem tolera o concordar condescendente.
O pensar permanece firme ao vento da coisa.
De uma tal convivência
talvez alguns surjam como companheiros no ofício do pensar.
A fim de que inesperadamente um deles se torne mestre.
(HEIDEGGER M. , L’experience de la pensée. In. Questions III, 1966)
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Grupo de Estudo Heidegger

Sumário
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................................................... 4
Heidegger: caminhos, não obras................................................................................................................................................. 4
1. A vida e a obra – Quem pensa profundamente deve profundamente errar ........................................................................... 5
Capítulo I - O encontro com Husserl e a tentativa de uma nova fundamentação da metafísica .............................................. 15
1. As referências teóricas de Heidegger .................................................................................................................................. 15
2. A busca de uma Ontologia Fundamental nos limites do tempo e a partir da finitude humana ........................................... 18
Capítulo II - Ser e Tempo e os constituintes originários da existência humana ....................................................................... 28
A Dis-posição (Befindlichkeit) ............................................................................................................................................... 30
A Compreensão ..................................................................................................................................................................... 32
Discurso .................................................................................................................................................................................. 34
SER E TEMPO: LEITURA COMPLEMENTAR .................................................................................................................... 35
Capítulo – III - A QUESTÃO DA TÉCNICA ....................................................................................................................... 50
1. A técnica como fase terminal da metafísica ...................................................................................................................... 51
Sobre a Universidade na Era da técnica ................................................................................................................................ 54
Capitulo IV - O fim da filosofia em tempos de indigência ....................................................................................................... 58
1. O perigo e o que salva – o advento do pensamento originário ........................................................................................... 60
Para não concluir: Mas, afinal, o que está em jogo em nossa época?........................................................................................... 65
Referências Bibliográficas: .......................................................................................................................................................... 67
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Grupo de Estudo Heidegger

INTRODUÇÃO
Heidegger: caminhos, não obras1.

Questões, disse certa vez o filósofo Martin Heidegger (1889 – 1976), não se dão à maneira de
coisas que estão simplesmente aí. “Questões são e são apenas enquanto se investigam...”
(HEIDEGGER,1969). Questões, portanto, só existem na medida em que se tornarem caminhos em
direção àquilo que merece ser questionado: o sentido e a verdade do Ser nos limites do tempo. Essa é a
questão-guia da filosofia para Heidegger. Todas as demais questões são envolvidas e se nutrem do pathos
dessa questão fundamental. Ora, que originalidade haveria em re-colocar uma questão tão antiga quanto à
questão do Ser (Seinsfrage) e numa época que já vive a falência dos grandes sistemas metafísicos e das
metas-narrativas de caráter soteriológico? Que sentido teria a questão do Ser num tempo indigente, que
promove a massificação do homem, a fuga dos deuses, a devastação da terra e que não é capaz de pensar
sua própria indigência enquanto tal?
Sob a sombra da “morte de Deus”, que sentido teria falar em Ser, Verdade, Unidade, Finalidade e
Salvação? Entretanto, Heidegger pergunta novamente pelo sentido do Ser e pela sua relação originária e
essencial com o homem mediante o pensar, o falar e o próprio tempo. Evidentemente tal tarefa comporta
grandes equívocos e erros. Mesmo porque, como o próprio Heidegger reconhecerá “quem pensa
profundamente, deve profundamente errar” (HEIDEGGER,1966). O filósofo admitia que seu
modo de dizer e pensar não se harmonizava com o modo de pensar e com a argumentação linear que têm
governado a lógica e a gramática do pensamento Ocidental, desde Platão até Husserl.
Além das dificuldades intrínsecas a todo discurso filosófico, no caso de Heidegger, não podemos
esquecer que estamos diante de um filósofo cujo próprio status filosófico é questionado por aqueles que
insistem na cumplicidade de tal pensamento com o crime extremo, reportando-se ao engajamento
temporário do filósofo na “revolução nacional-socialista” durante seu reitorado na Universidade de
Freiburg em 1933.
O fato é que o pensamento heideggeriano comporta uma dificuldade que lhe é peculiar. Uma
dificuldade que advém da própria natureza do objeto de investigação: um sentido de Ser que se encontra
oculto na existência cotidiana e esquecido na história da filosofia.
O que se observa é que grande parte do esforço de Heidegger tem por objetivo nos mostrar que a
cultura e razão modernas, desde os seus fundamentos metafísicos [a metafísica do sujeito cartesiano, o
projeto matemático de natureza da ciência moderna], não passam de resultados do crescente
esquecimento do Ser que imperou em toda história do Ocidental. Hoje, na Era da técnica, esse
esquecimento-velamento do Ser atinge sua plenitude e dimensões planetárias, na medida em que a
Técnica ordena e planifica a praxis humana por todo planeta.
Nenhuma outra época teve tão grande variedade de conhecimentos acerca do homem e de seu
mundo como a nossa. Nunca o mundo humano e natural foi tão recortado pelo cálculo e reduzida a uma

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Texto elaborado para o Grupo de Estudo Heidegger.
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Grupo de Estudo Heidegger

uniformidade estéril, que tudo apequena. E, contudo, nenhuma outra época soube menos o que é homem e
seu mundo do que a nossa.

O pensamento, enquanto metafísica, e a cultura ocidental, conseguiram marcar a face da terra


através da ciência, da técnica e da arte, mas foram impotentes para questionar o que merece ser
questionado (o sentido e a verdade do Ser), pois nosso pensamento e nossa linguagem não conseguiram
entrar em relação com aquilo que fundamenta todas as grandes vias da verdade. O pensamento e a cultura
Ocidentais nunca chegaram a compreender seu próprio fundamento. Heidegger pretende des-velar esse
fundamento que permaneceu o não dito e o impensado, o filósofo sabe, contudo, que esse des-velamento
do fundamento esquecido nunca será acessível àquele que está sempre a procura do pensamento mais
recente, mais novo, mais moderno.

É certo que o pensar perdeu sua eficácia e força de verdade numa época sem memória para o Ser e
num mundo objetivado pela ciência e uniformizado pela técnica. Em tal mundo, o desenraizamento do
homem chega ao seu cume. Sob a ditadura do Impessoal, um sujeito que é todo mundo e não é ninguém
em particular, o homem moderno afunda-se na banalidade e mediocridade do “mundo-do-todos” nós,
velando a verdade do ser na manipulação dos entes intra-mundanos e na relação com os outros.

É importante observar que essa crítica à cultura moderna enraíza-se nos anos de formação de
Heidegger, durante os quais se delineiam alguns traços marcantes da formação ideológica de nosso
filósofo que irão consubstanciar sua crítica à modernidade e sua aversão ao cosmopolitismo burguês,
entre os quais podemos destacar os seguintes: valorização da pátria local, do sangue e do solo; oposição
ao racionalismo e ao liberalismo burguês, repulsa ao cosmopolitismo e ideais da Revolução Francesa.

Não podemos esquecer que Heidegger em suas aulas, inúmeras conferências e seminários, sempre
fez questão de deixar claro a pouca importância que dava a biografia dos filósofos. O que importa não é a
vida, mas a obra, o trabalho de pensar e dizer o que lhes foi enviado pelo Ser. Assim, contrariando o
próprio estilo de Heidegger pensar com os pensadores, vamos fazer uma breve apresentação do filósofo,
rememorando alguns momentos e fatos importantes de sua vida e itinerário intelectual.

1. A vida e a obra – Quem pensa profundamente deve profundamente errar

O contexto de surgimento da filosofia heideggeriana

Quando Heidegger começa a redação de sua obra principal - Ser e Tempo (1927), a Filosofia alemã
atravessa um momento extremamente confuso. Era uma época em que a Alemanha tinha fome e frio.
Vencida, mas não aniquilada na I Guerra Mundial, a Alemanha sentiu que as convulsões que assolavam a
Europa no início do século exigiam a busca e a invenção de novas formas de relações entre o homem e
seu meio natural e social. A Filosofia é contaminada por essa busca de uma nova fundamentação para o
pensar e o agir. Essa busca por uma nova fundamentação coloca em questão dois ideais essenciais que
haviam movido o século XIX: primeiro, o saber, único em sua essência, devia assegurar por meio de um
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progresso contínuo e infalível o domínio do homem sobre a Natureza e sobre o mundo humano.
Segundo, a razão deve dominar ou exercer sua hegemonia sobre as demais partes da vida humana.
Acreditava-se que mediante o saber, os homens marchavam para uma humanidade racional. Assim, a
imensa massa de sofrimentos, guerras, horrores e atrocidades que se acumulam ao longo da história
humana adquiriam um sentido: elas seriam as convulsões e dores próprias do parto de uma nova era.
Muitos observam que um fato domina o caos social, intelectual e moral de nossa época: a
humanidade inteira se compenetra da experiência existencial do abandono, do desamparo, da impotência
do poder. Ou seja, o homem contemporâneo experiência o sentido de sua finitude radical nas figuras do
desejo, da linguagem e da morte. Não se pode dizer que o pensamento heideggeriano seja a mera
expressão desse caos social e intelectual que assola nossa época. Contudo, tal situação ajuda a entender a
enorme repercussão da filosofia de Heidegger, ainda que de forma distorcida, principalmente entre os
jovens, na medida em que se dava relevância a certos aspectos existencialistas do pensamento
heideggeriano em detrimento da questão que realmente norteou tal pensamento: a questão do sentido e da
verdade do Ser nos limites do tempo...., ou seja, a constituição de uma ontologia fundamental. Nessa
atmosfera de crise intelectual, moral e religiosa, a humanidade procura pensar sob nova luz o destino
humano, o sentido da história e da própria vida.
É nesse contexto que se situa o projeto fenomenológico de Husserl, que colocava como tarefa
infinita a constituição de uma Filosofia rigorosa. Husserl toma como ponto de partida a Dúvida
cartesiana, propõe a não aceitar nada que não tenha passado por um exame. Para Descartes, a verdadeira
ciência objetiva da natureza não deve se interessar pela cor, pelo odor, pela textura, pelo gosto, etc, mas
por aquilo que pode ser quantificado - a extensão, o movimento, a figura, a quantidade. Descartes sabe
que para que a astronomia de Copérnico seja verdadeira, é necessário que os testemunhos dos sentidos
que mostram o sol girando e a terra parada, não passem de meras ilusões. Por seu lado, a Fenomenologia,
a partir de sua palavra de ordem "Voltar às coisas mesmas" procura, não desmentir o dado fenomênico
como mera aparência ilusória, mas Ver o eidós, a essência que está, não por trás do fenômeno, mas no
dar-se das coisas enquanto vivências conscientes de uma consciência doadora de sentido.
Essa volta às coisas mesmas pressupõe a intencionalidade da consciência - a consciência não é
coisa (res cogitans), mas ato, doação de sentido, ela é enquanto visa algo. Sabemos que toda filosofia de
Platão a Descartes foi fundamentada sobre a idéia de uma consciência representativa. A consciência
seria uma interioridade recolhida sobre si mesma, que forma em si, a partir de idéias inatas ou de uma
misteriosa causalidade externa seus conteúdos - as representações e os sentimentos. Ou seja, a
consciência é decodificada como um lugar dentro de outro lugar o mundo, que seria redutível às
representações que pertenceriam à imanência do Sujeito. Postula-se um mundo de coisas fora do Sujeito,
não se investiga o puro dar-se e suas condições de possibilidade.
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A Fenomenologia husserliana realiza uma descoberta fundamental - demonstra que a constituição


do saber científico não pode levar a cabo senão sobre a base de uma relação imediata e natural com o
mundo e com a realidade que aquele saber, uma vez constituído, não pode por em dúvida. O cientista
pressupõe uma fé na existência de um mundo exterior passível de ser conhecido objetivamente, a
Fenomenologia vem colocar em questão essa crença dogmática, própria da atitude natural a ser superada.
Com a Fenomenologia, a razão deixa de ser esse poder absoluto, que não é questionado em sua origem,
seu sentido e seu alcance. A racionalidade precisa ser questionada não como uma faculdade ou atributo
que o homem possuiria, mas como algo a ser realizado por toda humanidade. É nesse esforço que se
insere o pensamento heideggeriano.

XXX

Martin Heidegger nasceu a 26 de setembro de 1889 na pequena cidade de Messkirch, situada entre
o alto vale do Danúbio e o lago de Constança. Os dons intelectuais do jovem Heidegger fizeram com que
o futuro arcebispo de Friburgo Conrad Gröber assumisse os encargos financeiros de seus estudos.
Heidegger fará o segundo grau, inicialmente em Constança (1903-1906), e em seguida em Friburgo
(1906-1909). O filósofo revela-se um aluno brilhante, adquirindo sólida formação nos clássicos,
aprendendo grego e latim.

No ano de 1907 ocorre o “encontro” com Aristóteles através da obra de Franz Brentano “Os
diversos significados do ente segundo Aristóteles” que, segundo o próprio Heidegger, o despertará para a
filosofia. Em 1908, descobre uma pequena antologia de Hölderlin, cujo poetar abriga o mistério inefável
do Ser. O filósofo diz o Ser, o poeta nomeia o sagrado.

Em 1909, favorecido por uma bolsa de estudos, Heidegger entra para a Faculdade de Teologia da
Universidade de Freiburgo, onde será aluno, professor e reitor. Excluindo o período em Marburgo (1923-
28), toda atividade profissional de Heidegger como professor será desenvolvida nessa universidade.
Heidegger faz quatro semestres na faculdade de Teologia, contudo suas pesquisas não se restringem ao
âmbito teológico. Continua e aprofunda suas leituras de Aristóteles, e dá os primeiros passos na leitura
das Investigações lógicas (1900) de Edmund Husserl. O próprio Heidegger relata as condições desse
encontro com a fenomenologia husserliana na obra autobiográfica intitulada Meu Caminho para a
Fenomenologia (1963). Nesse período passado na Faculdade de Teologia, Heidegger aprofunda seus
conhecimentos da Escolástica e dos místicos medievais.

Nessa mesma época ocorre outro encontro que irá marcar Heidegger pelo resto da vida - a obra de
Kierkegaard, que abre uma brecha no universo integralmente católico que cerca nosso filósofo. Na
faculdade de Teologia da Universidade de Freiburgo (1909-1911), Heidegger entrará em contato com
professores como Heinrich Fink e Georg von Bellow, que certamente exerceram influência na atitude que
o pensador assumiria diante da modernidade. Fink, membro ilustre do partido católico, propunha um
engajamento irrestrito a favor do estado nacional alemão, que seria o herdeiro do Império Romano.
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Grupo de Estudo Heidegger

Festejava o imperialismo mundial como a mais elevada obra dos povos germânicos, que ao re-integrar o
princípio nacional à história universal, realiza sua missão histórica como povo-guia da humanidade.

Von Bellow, por sua vez, defendia a tese de que o estado nacional seria o mais importante vínculo
entre os indivíduos e a fonte da cultura que está no espírito do povo(Volkgeist). Insiste no papel central
dos indivíduos na história, alimentando o mito do herói - a história não é feita pelas massas, mas pelos
grandes feitos e ditos de um herói que encarna o espírito do povo, fazendo-o levantar de sua mais
extrema miséria para assumir seu destino histórico no palco da história universal. Nesse sentido, não
poderíamos estabelecer nenhuma lei na história sem considerar a ação exemplar de certos personagens. A
Democracia é vista como pior inimigo da nação. Ela conspira contra as excelências, fazendo prevalecer o
medíocre sob a ditadura do maior número. Na visão de Bellow haveria um setor particular do gênero
humano que deveria ser responsabilizado pelas idéias anti-nacionais, liberais e democráticas - os judeus.

Para alguns intérpretes inescrupulosos fica evidente que o jovem Heidegger recebeu suas primeiras
formações políticas e científicas numa atmosfera que explicaria sua recusa da modernidade e justificaria
sua adesão posterior ao nacional-socialismo, assumindo em 1933 o cargo de reitor da universidade de
Freiburg com o famoso “Discurso de Reitorado” – Auto-afirmação da universidade alemã.

Em 15 de agosto de 1910, aos 21 anos de idade, Heidegger expõe publicamente aquele que seria
considerado seu primeiro escrito - um discurso em homenagem ao monge agostiniano Abrão de Santa
Clara. Esse primeiro escrito de Heidegger dedicado a um monge que elegeu os turcos e os judeus como
arquétipos do mau que ameaçam a cristandade, é utilizado como prova da adesão de Heidegger a ideais
anti-semitas e da cumplicidade de sua obra com o mal extremo.

De fato Heidegger via no monge agostiniano o exemplo do guia energético, um espírito profundo e
inesgotável, um pregador que sempre trabalhou pela saúde do povo e de sua alma. Abraham seria o
arquétipo do gênio ou do herói que forja sua própria lei. Apropriando-se do modo de ser de Abrão de
Santa Clara, Heidegger faz uma crítica mordaz à modernidade e sua inquietação fervilhante pelo mais
novo nos seguintes termos:
“Se nossa época de cultura puramente superficial, amiga de mudanças rápidas, pudesse projetar o
futuro voltando-se mais o olhar para o passado. Essa fúria de inovar que derruba os fundamentos,
essa louca negligência do conteúdo espiritual profundo da vida e da arte, essa concepção moderna
da vida orientada para a rápida sucessão dos prazeres do momento... são indícios que atestam uma
decadência, um triste renegar do caráter transcendente da vida”. (FARIA,1985, p. 76)

O teor da crítica heideggeriana à cultura, já nesse primeiro escrito, vai muito além de uma mera
crítica passadista da modernidade e de um tradicionalismo conservador. Ao colocar oposições tais como:
saúde/doença, passado autêntico/presente liberal e secularizado, Heidegger convida-nos em seu primeiro
escrito para uma contra ofensiva ao modo de ser do homem moderno, marcado pela alienação e pelo
desenraizamento dos valores e fundamentos de sua própria cultura.

Algo importante a ser observado é que a crítica heideggeriana ao cosmopolitismo, ao liberalismo e


ao desenraizamento próprio do homem moderno, assume uma dimensão ontológico-existencial em Ser e
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Tempo(1927), onde o confronto sistemático-crítico com a tradição filosófica torna-se uma exigência
imposta pela questão do Ser. No contexto da analítica existencial realizada em Ser e Tempo, Heidegger ao
distinguir a existência autêntica da existência inautêntica, caracteriza esta como uma existência incapaz
de encontrar outras vias de acesso à comunidade além do ser-em-comum. Enquanto que a existência
autêntica seria a possibilidade de uma vida coletiva cuja submissão quotidiana ao domínio do impessoal
estaria excluída.

Nosso filósofo estabelece um parâmetro para a existência individual e coletiva - a tradição, que
funda existência autêntica na medida em que esta a assume, não apenas como uma herança, mas como
tarefas e desafios a serem realizados. Tradição e herança são apenas duas formas de outra realidade, que
as tornam possíveis: o povo. O destino, que para a existência individual aparece como dependência em
relação ao que uma maioria cega e anônima tem o costume de fazer, apresenta-se, no caso das grandes
irrupções históricas, como o horizonte legítimo, autêntico e verdadeiro do Ser-aí do homem. É somente
através de sua herança histórica que um povo pode conferir a si mesmo seu caráter histórico.

Para assumir suas próprias possibilidades como povo e forjar uma cultura autêntica, o povo tomará
um rumo específico, que não é nem a conservação tradicionalista dos valores herdados do passado, nem a
simples conservação das instituições e costumes vigentes. O ato constitutivo do ser-com-outro autêntico
que supera o simples fato da associação entre indivíduos, é a luta. A luta representa a decisão em ato, e
nela que se apresenta e realiza a resolução através da qual um povo faz seu futuro irromper no seu
presente, tornando-se digno da grandeza de sua herança enquanto povo histórico. Aqui não se propõe um
mero retorno tradicionalista ao passado ou uma impossível re-atualização do que já passou. O passado
transforma-se em tarefa do ponto de vista do futuro. A grandeza dessa herança permanece parada em
nosso futuro, cabe a nós fazermos essa herança irromper no presente através de um passo que retrocede às
fontes originárias da metafísica grega.

Estudos na Universidade de Freiburgo: Crise modernista

Após quatro semestres na Faculdade de Teologia de Freiburgo (1909-1911), abandona os estudos


teológicos para se dedicar inteiramente a Filosofia. Para alguns especialistas, essa passagem de Heidegger
pela teologia representa a primeira fase de um monstruoso trabalho e elaboração que dezoito anos depois
culminará em Ser e Tempo(1927). A seriedade com que Heidegger se dedica aos estudos teológicos
nesses dois anos, não o impede de ampliar e diversificar os campos de suas pesquisas. Como já dissemos,
continua e aprofunda sua leitura de Aristóteles; dá seus primeiros passos na leitura das Investigações
Lógicas(1900-1901) de E. Husserl; esquadrinha em todos os aspectos o cristianismo medieval. Colocado
diante do neotomismo em voga, sua sensibilidade diante da crise modernista o desperta para a leitura de
Maurice Blondel. Contudo, o que agita profundamente o filósofo nessa época é a leitura de Kierkegaard.

Os primeiros escritos de Heidegger por seu tema e inspiração refletem uma grande influência de
algumas teses caras à Escolástica, ainda que posteriormente a metafísica escolástica seja vista como uma
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das principais épocas no processo de velamento-esquecimento do Ser na história da Filosofia. Mesmo


após abandonar a faculdade de teologia, Heidegger continua a seguir os cursos de dogmática do teólogo
Carl Braig, que lhe fez perceber a importância de Schelling e de Hegel para a Teologia Especulativa.
Termina seus estudos de matemática em 1913. Nessa época participa de um Seminário de H. Rickert,
neo-kantiano, onde descobre os escritos de outro neo-kantiano, Emil Lask. Assim Heidegger encontra seu
caminho na Filosofia no período que vai de 1909-11, numa atmosfera domina pelo neokantismo de H.
Rickert(Escola de Baden). A leitura da obra Emil Lask estimula seu apreço pelo pensamento grego e sua
curiosidade pela fenomenologia husserliana. Certamente a preferência por Aristóteles e Husserl iria
determinar de forma indelével o pensamento heideggeriano, mas não o impedia de ler e admirar W.
Dilthey e interessar-se cada vez mais por Schelling e Hegel.

Em férias na pequena cidade natal de Messkirch, Heidegger trabalhava(estudava) de manhã à noite,


como diria Balzac “Já de manhã, apanha pão e livros, e em seguida ia ler e meditar no fundo dos
bosques...”. Nosso filósofo palmilha o caminho do campo com a Crítica da Razão Pura debaixo do braço.
Entre as grandes descobertas dos anos que vão de 1910 a 1914 estão Nietzsche, Dostoievski, Hilke e
outros.

Em 1914, aos vinte cinco anos, Heidegger defende sua tese de doutorado em Filosofia e publica um
pequeno texto intitulado - A Doutrina do juízo no Psicologismo – contribuição crítico-positiva à Lógica,
na qual, sob nítida influência das Investigações lógicas de Husserl, Heidegger ensaia uma refutação do
Psicologismo que reduz a Lógica ao psíquico. Para o psicologismo, a Psicologia seria a ciência
fundamental, na medida em que as leis da lógica são leis do pensar. O psicologismo não percebe que
enquanto a realidade psíquica é um tornar-se, um fluxo de vivências contingentes, a realidade lógica, o
significado é estável - fora do tempo.

Após a conclusão do curso de filosofia, um fato irá marcar a existência e o pensamento de


Heidegger - o encontro com Edmund Husserl. Podemos dizer que em plena 1a Guerra mundial, Friburgo
torna-se a capital mundial da Fenomenologia, quando no outono de 1915, Husserl chega a esta cidade
para substituir a H. Rickert que vai para Heidelberg.

O jovem assistente Heidegger sabe que tem diante de si um grande filósofo que resolveu tomar para
si, implicando toda sua existência nesse projeto, a tarefa de fazer da filosofia uma ciência de rigor.
Husserl queria chegar a uma teoria de todas as teorias, ou seja, a uma dimensão pré-reflexiva onde se
explicitasse as condições de possibilidade de todo dar-se. Por outro lado, Husserl via em Heidegger o seu
aluno mais brilhante - foi um período de aprendizagem para o jovem Heidegger, como ele mesmo afirma
em sua autobiografia intelectual intitulada Meu Caminho para a Fenomenologia. Foram quinze anos de
convivência, até que um abismo teórico acabou por separar mestre e discípulo, inviabilizando qualquer
relação humana a nível ôntico-existencial. Mas houve um dia qualquer em 1924, que Husserl teria
declarado na presença de Gadamer “A Fenomenologia sou eu e Heidegger”.
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Mas antes da chegada do mestre Husserl a Friburgo, Heidegger obteve em 1915 sua habilitação para
o magistério na Universidade de Freiburgo, com uma aula sobre conceito de tempo nas ciências históricas
e publicou A doutrina das categorias e da significação em Duns Scoto”(1915), que o torna um
Privatdozent da universidade de Friburgo. A referência ao neokantismo é explícita, mas a fenomenologia
passa para primeiro plano. Essa é uma primeira tentativa de formular um programa de restauração da
Metafísica sobre novas bases, tal programa deve muito à filosofia do valor de Rickert e à fenomenologia
de Husserl.

O fato é que Heidegger forma-se num ambiente em que o desenvolvimento das ciências havia
gerado uma mentalidade impermeável a tudo que ultrapassasse a experiência sensível. A Filosofia não
passava de um meta-discurso, o discurso segundo sobre o discurso científico. Heidegger dirá “Hume é o
grande inspirador do pensamento contemporâneo.” Por caminhos diversos tentava-se reduzir toda a
realidade aos dados empíricos.

Em Setembro de 1915 o jovem professor Heidegger anuncia o nome de seu primeiro curso:
Parmênides. É importante considerar que Heidegger dedicou ao ensino grande parte de sua existência.
Este ensino se distribui entre cursos e seminários. Os cursos geralmente são pronunciados em auditórios,
tendo como base um texto minuciosamente preparado. Geralmente esses textos apóiam-se nas obras e nos
autores consagrados pela tradição filosófica: Aristóteles, Agostinho, Kant, Schelling, Nietzsche... etc.
Existe um poeta que se destaca entre todos - Hölderlin. Os seminários geralmente são sessões de trabalho
em pequenos grupos onde se estabelece um contato mais íntimo entre professor aluno. Também aqui, há
quase sempre um texto fundamental sobre a mesa. “Um seminário é o que a palavra indica, um lugar e
uma oportunidade de lançar aqui e ali uma semente, um germe de meditação que um dia, à sua maneira,
pode se abrir e frutificar...” Como semeador que talvez jamais veja a haste ou o fruto, e não conhece a
colheita. Heidegger teria passado por seis períodos em sua carreira acadêmica como professor.

De 1915-1923, Heidegger é assistente na Universidade de Friburgo. Seu ensino situa-se


evidentemente no horizonte da fenomenologia husserliana. Apenas alguns cursos dessa época se
conservam. De 1923-1928, o filósofo exerce a docência na Universidade de Marburgo. Sob influência de
Husserl e dos neokantianos da Escola de Marburgo, Heidegger prepara sua obra-prima - Ser e Tempo
[1927]. O jovem professor começa a projetar-se entre os especialistas através de interpretações
desconcertantes e pessoais dos pré-socráticos, particularmente Anaximandro, Heráclito e Parmênides.

Em 1927, Heidegger publica Ser e Tempo [Sein und Zeit], transforma-se num dos principais
representantes da filosofia contemporânea. Tal obra rende-lhe o rótulo de existencialista, o que será
repudiado pelo filósofo, que estaria preocupado não com o indivíduo concreto situado em sua realidade
fática, mas com o sentido do Ser em geral. A analítica existencial não passa de um ponto de partida para
uma ontologia fundamental, ou seja, ela é uma das tarefas impostas pela re-colocação do sentido e da
verdade do Ser nos limites do tempo. Ser e Tempo foi escrito em Todtnauberg, mas foi durante a estadia
em Marburgo que o livro tomou forma - numa época em que a Alemanha tinha fome e frio [República de
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Weimar]. Com a publicação da obra, as relações entre o mestre Husserl e o discípulo Heidegger tornam-
se cada vez mais problemáticas. Para alguns observadores, como Francois Vezin, a radicalização da
fenomenologia, transformada numa hermenêutica da existência e da história da filosofia, levou o mestre
Husserl ao desespero. Definitivamente, exclamaria Husserl, a tarefa da filosofia como ciência de rigor
estava totalmente comprometida. Heidegger preferiu optar pela verdade a amizade com o antigo mestre.
Mas uma coisa é certa, a verdade de seu pensamento, se é que existe alguma nele, deve-se em grande
parte ao ensinamento do velho Husserl.

Em 1928, Heidegger retorna à Universidade de Freiburgo para ocupar o lugar do antigo mestre
Husserl. Em 1929, publica diversos escritos: Que é metafísica? [Was ist Metaphysik?(aula inaugural),
Kant e o problema da Metafísica [Kant und das Problem Metaphysik] e A Essência do fundamento [Die
Wesen des Grunds].

De 1928-1944: Sucede à Husserl em Friburgo. Nessa fase Heidegger já é uma celebridade. São
importantes nessa fase os cursos sobre Nietzsche, que deixam claro que não foi por ter lido Nietzsche, que
os alemães se tornaram nazistas, mas sim porque talvez não o tenham lido suficientemente.

Em 1933, ano de ascensão de Adolf Hitler ao cargo de chanceler da Alemanha, Martin Heidegger
assume o reitorado da Universidade de Freiburgo, Em seu discurso de posse A auto-afirmação da
Universidade Alemã onde expressa seu desejo e esperança de que a revolução nacional-socialista pudesse
transvalorar toda existência germânica impedindo que a Alemanha fosse vítima da uniformidade
idiotizante imposta pela técnica, tanto nos Estados Unidos quanto na Rússia estalinista. Heidegger
permaneceu apenas alguns meses no cargo de reitor. A morte do líder de sua facção no partido nazista e o
triunfo da ala hitlerista, contribuiriam para o afastamento de Heidegger da vida política. Na obra
Introdução à metafísica [1935] Heidegger já denunciava que Rússia e USA, apesar das diferenças
políticas, não passam da expressão da fúria da técnica em planificar e organizar toda praxis humana pelo
planeta. A revolução nacional-socialista seria uma 3ª via entre o americanismo e o comunismo. O fato é
que, a ascensão de Hitler ao poder coloca Husserl e Heidegger em campos opostos. Mas ao contrário do
que sugere alguns comentadores sem probidade intelectual, Heidegger nunca perseguiu o mestre enquanto
reitor em Freiburg e ainda impediu as cerimônias de queima de livros na universidade. O que se pergunta
é como um povo de poetas e filósofos pôde ser conivente e suportar o crime extremo? Diante do horror do
extermínio industrial de pessoas por motivos raciais, restaria como consolo o dizer do poeta...”mas lá,
onde existe o perigo, também brota aquilo que salva.” Hölderlin.

Heidegger já no final da década de 30, ao rememorar seu período de reitorado reconhece que o
nazismo não era uma 3ª via entre o americanismo e o comunismo, mas a mais brutal e bárbara
manifestação do domínio da técnica empregada no genocídio de pessoas por motivos racistas.

É certo que os textos do período de reitorado chocam pela indecente insistência em termos como
Führer. Entretanto, segundo Francois Fédier, amigo do filósofo, para se compreender a atitude de
Heidegger no período hitlerista, é preciso ressaltar seu cuidado de jamais fazer qualquer coisa que o
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condenasse à inatividade. Com uma fé inabalável na Filosofia, Heidegger estava convencido de que
estamos nesse mundo para trabalhar, e na incerteza da travessia de tempos tão tenebrosos, ele trabalhou
imensamente. Não podemos esquecer nesse tempo o encontro com a obra O trabalhador de Ernst Junger
e com a poesia de Hölderlin.

Em 1936, Heidegger publica Hölderlin e a Essência da Poesia. Em 1943, Sobre a Essência da


Verdade. Antes do término da II Guerra Mundial passou a viver quase que isolado em sua casa da
Floresta Negra.

De 1945-1951: O antigo reitor filiado ao partido nacional socialista é obrigado a entrar de férias por
tempo indeterminado. Nesse período publicou: A Doutrina de Platão sobre a verdade [1947]; - Sobre o
Humanismo [1949].

Em 1945, sem notícias de seus dois filhos, o filósofo encontra-se desesperado. É da França que vem
a esperança de continuar seu trabalho. Em Paris é a temporada do existencialismo e as notícias começam
a chegar até o filósofo. A hora de Heidegger na França soou, mas não é a Sartre, mas a Jean Beaufret que
se destina a Carta sobre o Humanismo. Segundo Heidegger, Jean Beaufret foi realmente o leitor que Ser e
Tempo esperava. “Aquele me leu bem”, dirá o filósofo. Jean Beaufret, por sua vez, escreverá durante
trinta anos Diálogo com Heidegger, expondo-nos tudo aquilo de que se fala quando alguém está com
Heidegger. Nesse diálogo, Heidegger detectou em Jean Beaufret um francês que tem com sua própria
língua um tipo de relação original, sem a qual ele não é, nem pensador nem poeta.

Depois de sua aposentaria forçada pelos aliados em 1952, Heidegger passa a dialogar com
seletíssimo grupos de amigos e discípulos.

De 1951 a fevereiro de 1957: Heidegger volta a ensinar como professor emérito. Este é um período
de importantes publicações, tais como: O Caminho do Campo(1953); - Que significa pensar(1954),
Cursos e Conferências(1954); - Que é isto a Filosofia(1956), Sobre a Questão do Ser(1956); Identidade e
Diferença(1957), O Princípio do Fundamento(1957).

De 1957 até sua morte em 1976, é intensa a produção do filósofo, ainda que ele saiba que não
prestaremos contas à Deus de uma biblioteca. Das inúmeras viagens, conferências, colóquios, diálogos e
encontros que pontuaram a existência de Heidegger nesse período, emerge o esboço de velhice ativa e
serena, que não é perturbada nem mesmo pelas calúnias que recaem sobre o pensador e sua obra, ambos
acusados de manterem relações definitivas e essenciais com o mal. A resposta aos ataques sofridos, vem
em parte na publicação de 1961 de seus cursos sobre Nietzsche de 1936 a 1940. Contudo, sua atitude
mais comum diante das calúnias é guardar um insuportável silêncio, acerca de sua adesão ao nazismo e
do horror dos campos de concentração. Aqueles que acusam o silêncio do filósofo, não compreendem que
esse silêncio, segundo Heidegger, pudesse se estender até aqueles que foram sacrificados antes da hora
por ocasião de duas guerras mundiais.(Caminho do Campo).Na França em torno de René Char,
organizam-se os seminários do Thor(1966, 1968, 1969). Nesse período surgem importantes obras tais
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como: Serenidade [1959], Pelos Caminhos da Linguagem[1959]; - Nietzsche[1961]; - A Pergunta pela


coisa [1962]; A Tese de Kant sobre o Ser [1962]; A Questão do Pensar[1969]; 1970 - Heráclito.

O filósofo morre tranqüilamente na madrugada de 26 de Maio de 1976. No cemitério, o prefeito e


um amigo usam da palavra. Um dos filhos lê poemas de Hölderlin escolhidos por Heidegger para essa
ocasião. No silêncio da morte – o filósofo deixa a palavra ao poeta.
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Capítulo I

O encontro com Husserl e a tentativa de uma nova fundamentação da metafísica

1. As referências teóricas de Heidegger


As primeiras investigações de Heidegger situam-se no âmbito da tradição filosófica alimentada pelo
aristolelismo, neo-tomismo e o neo-kantismo. Antes de seu encontro com a fenomenologia husserliana,
Heidegger paga seu tributo à tradição filosófica perpassada pela constituição onto-teo-lógica da
metafísica e alicerçada no paradigma da subjetividade.
A transformação da fenomenologia husserliana numa ontologia hermenêutica aplicada à existência
e à história da metafísica, tornou-se a condição de possibilidade para a realização das duas tarefas
impostas pela re-colocação da questão do Ser - a analítica existencial e a destruição fenomenológica da
Ontologia. A fenomenologia torna-se a única via de aceso às fontes originárias da metafísica e às
estruturas ontológicas daquele ente que compreende o Ser originariamente, o Dasein. Ela é o instrumento
capaz de realizar as duas tarefas impostas pela questão do sentido do Ser. Contudo, tal questão já estava
sendo gestada mesmo antes do encontro entre Heidegger e Husserl.

A vocação de Heidegger para a filosofia foi despertada pela leitura de Franz Bretano Os diversos
significados do ente em Aristóteles (Von der mannigfachen Bedeutung des Seiden nach Aristoteles
(1862). Assim, o primeiro contato de Heidegger com a tradição filosófica deu-se através da metafísica em
suas raízes históricas e filosóficas – Aristóteles, a questão da unidade do Ser na multiplicidade de seus
manifestações, ou seja, o sentido do ser na totalidade de significações que constituem o mundo.

Nos dois anos de formação teológica na Faculdade de Teologia de Freiburgo, Heidegger depara
com a transfiguração do aristotelismo operada pela filosofia Escolástica. As teses fundamentais da
Escolástica constituíram-se no solo, a partir do qual, emergiram os problemas da filosofia heideggeriana
nesses primeiros passos do filósofo. Heidegger apropriou-se de uma tradição que ele superaria mais tarde,
após o encontro com a fenomenologia.

Ao ingressar na Faculdade de Filosofia, Heidegger viu-se exposto à influência direta das correntes
filosóficas que circulavam nas universidades alemãs durante a Segunda metade do século XIX. Após a
queda fulminante dos grandes sistemas idealistas, o ambiente filosófico da segunda metade do século
XIX está impregnado pelo Empirismo positivista. Havia uma mentalidade impermeável a tudo eu
ultrapassava a experiência sensível. A Filosofia reduzia-se a uma mera crítica do conhecimento
científico. Hume, o Empiro-criticismo de E. Mach e R. Avenarius, a Filosofia da imanência de W.
Schuppe, o positivismo de Comte gozavam de uma ampla reputação nessa época. Todas essas tendências
coincidiam na tendência de reduzir toda realidade aos dados empíricos.

Ora, onde reina uma mentalidade positivista, é natural que a Psicologia Experimental arvore-se em
interprete exclusiva dos fenômenos mentais, ou seja, numa ciência que fundamenta todas as outras.
Nesse Era da Psicologia, os métodos da nova ciência eram empregados na literatura, nas artes, na
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pedagogia, na jurisprudência, na explicação da natureza da moral, da Estética, da religião, da linguagem


e, principalmente, na explicação da natureza do conhecimento e da verdade.

A interpretação da verdade a partir de causas psíquicas, responsáveis pela efetuação do juízo,


coloca-nos no centro do Psicologismo, que será combatido por Heidegger. O Psicologismo afirma a
primazia dos princípios, métodos e tipos de demonstração próprias da psicologia no estudo da lógica. A
lógica trata do pensamento. O pensamento dever inserido naquele complexo de fatos, que se apresenta
como o todo dos processos psíquicos. Daí resulta que a psicologia, como a ciência propriamente
fundamental, deve literalmente absorver em si a lógica.

Em sua tese de doutoramento “Die Lehre vom Urteil im Psychologismus “ (1913), Heidegger irá
criticar as teorias do juízo dos principais autores do Psicologismo (W. Wundt, H. Mairer, Th. Lipps, Fr.
Bretano). Para Heidegger, o psicologismo, apesar de seus méritos na investigação dos fenômenos da
consciência, não passa de um tipo de empirismo, dada sua incapacidade de perceber o objeto próprio da
lógica e a sua autonomia em relação aos fatos psíquicos.2
O privilégio de mostrar que a Lógica não trata de fatos psíquicos coube aos neokantianos da
Escola de Marburgo, comandados por H. Cohen e P. Nartop. Reagindo contra a interpretação psicológica
de Kant, propagada por Fries, Herbart e Schopenhauer, eles mostraram que a Crítica da Razão da Pura
não põe o problema da origem psicológica do conhecimento, mas sim do valor lógico de sua verdade. O
nosso conhecimento dos objetos reais contém um elemento que não pode ser reduzido pura e
simplesmente à intuição sensível. Tal conhecimento depende de estruturas transcendentais existentes no
sujeito do conhecimento. Trata-se das formas a priori da intuição sensível (espaço e tempo) e das
categorias a priori do entendimento, que são as condições de possibilidades para que possamos sentir e
pensar as coisas singulares.

Contudo, os neokantianos da Escola de Marburgo conferiam um caráter metafísico às estruturas


transcendentais do sujeito, que era negado pelo próprio Kant. Embora admitindo que o nosso pensar é
determinado pela experiência sensível, que o transcende, Kant rejeitava a possibilidade de conhecermos
o modo de ser das coisas em si mesmas. Podemos conhecer somente as estruturas sob as quais elas
aparecem ao nosso pensar. Tentando superar as aporias da Critica da Razão Pura, os neokantianos
rejeitaram a distinção entre fenômeno e coisa em si (noumeno). As categorias não constituem meramente
o modo de aparecer da realidade ( o fenômeno), mas o seu modo de ser, pois tal realidade não existe
senão enquanto presente à consciência. Uma consciência transcendental, supra-individual capaz de
garantir o caráter absoluto das verdades científicas. Assim, a lógica como estudo das determinações
fundamentais dessas estruturas da realidade, das várias regiões de objetos imanentes à consciência, ocupa,
mais do em que Kant, o lugar reservado antigamente à metafísica.

Escola de Marburgo fundamentou sua teoria do conhecimento na investigação das ciências Fisico-
matemáticas, enquanto que a Escola de Baden (Windelbrand, H. Rickert), sob influência do
espiritualismo de Lotze, reconhecendo os limites das categorias físico-matemáticas, prolongou kantismo
2
Cf. HEIDEGGER, M. Die Lehre von Urteil im Psychologismus. Leipzig: 1914, p. 87. (Cf. MACDOWELL, J. Gênese da
Ontologia Fundamental de Martin Heidegger. SP: EDUSP, 1970, p. 13.
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no sentido de uma elaboração de um Lógica das ciências humanas. Se a natureza pode ser explicada por
leis, a História e a cultura, ao contrário, devem ser entendidas a partir dos valores que nelas encarnam.
Essa filosofia dos valores dominava a Universidade de Freiburgo durante os anos de estudo de Heidegger.

Heidegger reconhece que deve a Rickert a visão e compreensão dos problemas da lógica moderna.
Sua obra visa, fundamentalmente, a refutação do realismo, que afirma a transcendência dos objetos em
relação à consciência, através do estabelecimento do princípio de imanência, e a superação do relativismo
decorrente de uma interpretação psicológica da imanência, através da introdução da noção de verdade
como valor que se impõe absolutamente ao Sujeito Transcendental.

Certas idéias de Rickert tiveram grande influência sobre Heidegger, tais como: os valores lógicos,
éticos, estéticos, religiosos, etc. não são entes que à maneira das coisas singulares sucedem-se no tempo.
Eles pertencem a um plano ideal, objetivo e absoluto. Entre as duas esferas do real e dos valores,
medeiam os atos humanos. Enquanto aptos a reconhecer valores ou imprimi-los no real. Tais atos são
portadores de um sentido que se situa numa esfera especial não entitativa. Este sentido dos atos refere-se
ao sujeito transcendental. Toda realidade, seja física ou psíquica, é totalmente imanente ao sujeito
transcendental, enquanto consciência judicante e representante. Contudo, os valores universais e
necessários, como objetos transcendentais, opõem-se ao Sujeito transcendental, impondo-lhe o dever.

Para Heidegger, a problemática desenvolvida pela Filosofia dos valores, por sua teoria do
conhecimento impunha uma decisão sobre as posições filosóficas mais fundamentais. Mas, juntamente
com o neokantismo surgia no início do século o movimento fenomenológico liderado por Edmund
Husserl, que na opinião de Heidegger vai além do neokantismo na refutação rigorosa e definitiva do
Psicologismo.

Somente Husserl, no entender de Heidegger, estabeleceu e praticou um método seguro para a


exploração da esfera transcendental. A “volta às coisas mesmas” libera o horizonte filosófico dos
resíduos de teorias tradicionais do conhecimento baseadas na dicotomia entre sujeito-objeto e presas à
atitude natural. A tarefa fundamental da Filosofia é a simples ostentação das coisas tal como elas se
mostram, sem projetar sobre elas esquema algum pré-estabelecido por um sujeito que se contrapõe a um
objeto dado.

Entre as leituras de Rickert e Husserl, Heidegger tentava ouvir ou fecundar a leitura de pensadores
gregos. Apoiado em Rickert e Husserl, Heidegger enfrenta o empirismo psicologista, buscando garantir
os direitos da Lógica e da Filosofia como ciências fundamentais. Heidegger insiste na absoluta diferença
entre o conteúdo do juízo, estático e atemporal e os próprios atos de julgar, que sucedem no tempo. Este
conteúdo do juízo é o objeto peculiar da Lógica. Ele distingue-se tanto da realidade psíquica do ato de
julgar, como da realidade física a que se refere o juízo. A Psicologia pode ocupar-se somente da realidade
psíquica do ato de julgar, que aparece e desaparece na consciência. Contudo, ela nada pode dizer sobre o
conteúdo lógico do juízo.
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A partir dessas fontes, a metafísica aristotélica-tomista, o neokantismo e a fenomenologia,


delineava o programa heideggeriano de uma restauração da metafísica, re-colocando a questão do sentido
do ser nos limites do tempo.
O caminho heideggeriano leva-nos da Era da Técnica à grandeza originária da origem grega da
Filosofia. Contudo, tal caminho conduz-nos para nosso futuro, no qual essa grandeza da origem, onde a
totalidade do ente foi posta em questão, espera e apela-nos para ser novamente re-conquistada. Para tanto,
é preciso que re-encontremos com nós mesmos.

2. A busca de uma Ontologia Fundamental nos limites do tempo e a partir da finitude humana

A Ontologia fundamental

Heidegger observa que as diferentes filosofias clássicas estabeleceram uma doutrina do Ser fora de
toda consideração sobre a relação efetiva e vivida do homem com o Ser. O que significa dizer que a
Metafísica não colocou a questão do Ser no âmbito do horizonte intransponível - o Tempo. Já que
devemos partir da compreensão finita que o Dasein tem do Ser. Se o ente humano é definido em seu ser
pela compreensão do Ser, isso significa que a relação que se estabelece entre o homem e o Ser não só
compreende o conhecimento ou a razão humana, senão também o homem todo em seu ser-no-mundo.
Torna-se necessário, portanto, inventariar e descobrir o ser do homem todo, em todos os seus modos de
ser. Torna-se necessário, enfim, fazer preceder a ontologia do geral que visa o sentido geral do Ser, por
uma analítica existencial que terá a tarefa de descrever o ser do homem e a compreensão do Ser que
esses modos de ser definem.
Se admitimos que o homem é sua compreensão do Ser, deve necessariamente ser compreensão, em
primeiro lugar de si mesmo. Essa é nossa primeira tarefa: explicitar a compreensão implícita que o
homem tem de si mesmo. Essa compreensão espontânea que o homem tem de si mesmo é uma
compreensão posta em obra por seu comportamento. Comportamento que de nenhum modo é filosófico,
mas que deve ser explicitado e elevado ao plano filosófico.
A seguir, analisaremos alguns aspectos da existência humana que emergem da Analítica existencial
de Ser e Tempo.

A facticidade:

O ser humano é aquele que não pode ter experiência de si mesmo, senão sentir-se sempre como um
Ser-aí (Dasein), simplesmente ai... Portanto, o homem é o ente para o qual a experiência ou o
conhecimento de seu próprio começo está vedada. Ele descobre-se jogado no rio impetuoso do devir,
impelido a realizar uma vida que ele não escolheu. Uma existência que traz sempre um certo peso, um
certo passado, que não é imutável, mas sempre novamente interpretado e reinventado. Esse impulso para
diante, essa conquista e criação só são possíveis a partir de um ser-aí. Essa facticidade da existência
humana impede uma plena posse do homem sobre si mesmo.
O Homem é relação às coisas exercida de modo efetivo, ele não possui um destino próprio, não é
um si mesmo, senão mediante esse seu ser-no-mundo, que tem de se relacionar com as coisas e com os
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outros seres-aí. A facticidade da existência humana impede-nos de alguma vez recobrar integralmente nós
mesmos. Jamais teremos posse sobre nossa própria existência pelo simples fato de sermos um constante
ainda-não, uma pura possibilidade de ser. O sentimento, por sua vez, longe de ser uma simples qualidade
de minha vida interior, afirma-se como uma maneira de ser através da qual tomo posse da realidade a
minha volta. Todo sentimento é um situar-se em relação à realidade total, irredutível às leis já
estabelecidas pela ciência e pelo cálculo. O ser-sempre-já-aí, lançado para frente de si mesmo e junto aos
outros entes, constitui nossa primeira e original situação no seio da totalidade do ente. Eu me descubro aí,
jogado no rio do devir, sem nada para justificar esse feixe de possibilidades que se escancaram diante de
mim. A tese de Heidegger é que todo sentimento é indiretamente a revelação da situação original de
nossa existência e do sentimento de abandono, derrelição que o acompanha, e que só nos é revelado
diretamente na experiência da Angústia.

A existência humana (a transcendência)

Para o ente humano, ser é sair de si (ex-sistere). Podemos considerar que Heidegger apropria-se da
idéia de intencionalidade da consciência na fenomenologia husserliana, transportando-a para o plano da
existência. O ente humano é transcendentalmente abertura para o outro, para aquilo que ele ainda não é.
Eu não sou senão pelas relações que mantenho com aquilo que não sou. Ser homem é ex-sistir, ser para
mim mesmo ao sair de mim mesmo. Um homem se descobre ao se fazer por seus atos, seus
pensamentos, por seus projetos e seus fracassos, ou seja, um homem se faz por todas essas maneiras de
apontar aquilo com o qual ele não se identifica. Minha mais secreta ipseidade
(mesmidade/autenticidade), desde que dou-me o trabalho de descobri-la, revela-se como uma trama de
relações e referências com as coisas e com os outros. Eu não sou eu mesmo antes dessa irrupção para as
coisas e os outros. Sou na medida em que minha existência é uma eclosão que diz eis me aqui.
Uma das teses fundamentais de Heidegger é que o ser do homem é sua existência. Essa tese implica
em definir o homem por sua finitude mesma, uma finitude que jamais será compreendida em relação a
uma possível infinitude. Para Heidegger, não há possibilidade do homem exercer sua transcendência fora
dos limites de sua finitude radical enquanto ser-para-a-morte. Dizer que o homem necessariamente existe,
não significa dizer que ele é um ser necessário, mas que ele é um ente radicalmente finito. Na verdade o
homem é o único ente para o qual sua finitude, seu ser-no-mundo, sua morte, tem algum sentido. É
importante observar que ao mesmo tempo que sou abertura e compreensão de meu próprio ser e do ser em
geral, sou também uma coisa imersa entre outras, sou um ente particular entre outros, que capta o mundo
numa dada situação e perspectiva. Sou abertura para um mundo-circundante (Umwelt) onde estou
realmente aí. Na figura global de seus atos, de seus interesses, de seus pensamentos, o ser-aí que é o
homem traça em tudo uma nova e radical diferenciação.
Ao falarmos desse desenraizamento intrínseco à existência humana, chegamos a outro existencial
constitutivo da abertura que a existência humana instaura no mundo - a Compreensão(Verstehen).
Existencial que será melhor trabalhado no próximo capítulo dedicado a Ser e Tempo.
O homem como ser-aí, aberto no e para o mundo, é antes de tudo compreensão de si mesmo. Se o
homem, enquanto ser-no-mundo, é luz e compreensão, não é à maneira de um juiz intemporal e divino
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que capta tudo, de uma só vez e fora de todas as perspectivas. Nossa presença efetiva nas coisas e,
portanto, nossa compreensão, é limitada e se distribui em função de um ponto de vista prévio que
elegemos em relação a toda realidade.
Ora, se o homem só compreende a si mesmo e as coisas a sua volta numa determinada perspectiva,
dentro de determinado campo de sentido, como continuar falando em verdade objetiva ou absoluta? O
saber teórico, a compreensão racional são modos de ser, perspectivas de um ente particular que entre
outras coisas faz ciência, música, poesia, guerra, etc. Mas a filosofia é a esperança dessa posse definitiva
de uma verdade e a experiência constante da decepção quando se percebe que essa posse é sempre
precária e provisória.
Apesar do homem ser uma presença que eclode, uma abertura para a manifestação do Ser, ele
sempre está situado numa determinada circunstância, num mundo já aprovado de possibilidades já dadas.
Contudo, o homem instaura uma radical transcendência na imanência do mundo. O homem não é um
simples fato entre outros. Ele necessita transcender a facticidade de sua existência, e é na medida em que
a transcende em direção a um Ser que é antecipadamente tudo, mas que só é na medida em que é dito e
pensado pelo homem.
O homem repousa sobre um fundamento, cuja fundação lhe é impossível instituir... ele talvez seja
esse abismo, essa completa falta de fundamento. Ele não é um fim, mas ponte, não é meta, mas passagem.
O homem é Hermes - o mensageiro dos Ser, que anuncia uma mensagem sem jamais finalizá-la ou
compreendê-la plenamente. Um mensageiro que permanece surdo ao apelo do Ser, que de seu silêncio
convoca-nos para novamente ser posto em questão.
A tradição humanista consolidou a definição grega de homem como animal racional - ratio -
medida. A razão torna o homem racional, ou seja, capaz de discorrer sobre as coisas a partir de uma
medida. A realidade no seu todo, vista na medida da razão é o que se convencionou a chamar mundo.
Mundo - verbo latino mundare - limpar, arejar, purificar. De início os Romanos habitavam as colinas, a
planície era imunda. Aos poucos, foram descendo, limparam a planície e a tornaram mundo - espaço
habitável. O mundo não é o mero espaço físico e geográfico dentro do qual se encontraria o homem. O
mundo emerge como fenômeno, um complexo de significações constituído nas ocupações e
preocupações quotidianas desse ser-no-mundo que é o homem. Não há mundo sem existência humana,
nem existência humana sem mundo.

LEITURA COMPLEMENTAR – Husserl – a origem do movimento fenomenológico


Após a Primeira Guerra Mundial, a Filosofia e a própria Alemanha atravessavam um momento
extremamente confuso e difícil. Uma multiplicidade de correntes irredutíveis entre si propõem projetos de
convivência entre os homens e alternativas para salvar a Europa e o que restou da civilização Ocidental.
Temas acerca da derrocada do Ocidental proliferavam. Ao lado de Max Weber, Marx e Kierkegaard,
surge o movimento fenomenológico como alternativa de superação do mal estar que se abate sobre a
velha Europa.
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Acreditava-se que mediante o conhecimento técnico-científico, os homens marchavam para uma


humanidade racional, fraterna e justa. É nesse contexto, como já dissemos, que se situa o projeto
fenomenológico de Husserl.
Assim, a Fenomenologia com o lema "Voltar às coisas mesmas" procura, não desmentir o dado
fenomênico como mera aparência ilusória, mas ver o eidós, a essência que está no dar-se das coisas
enquanto vivências conscientes de uma consciência doadora de sentido. Procurando cumprir a exigência
de ir ás coisas mesmas, Husserl realizará uma descoberta fundamental que certamente exercerá alguma
influência sobre seu assistente Martin Heidegger - demonstra que a constituição do saber científico
assenta-se sobre a base de uma relação imediata e natural com o mundo e com a realidade, e que aquele
saber, uma vez constituído, não pode por em dúvida. O cientista pressupõe uma fé na existência de um
mundo exterior passível de ser conhecido objetivamente, a Fenomenologia vem colocar em questão essa
crença dogmática própria da atitude natural a ser superada. A razão deixa de ser esse poder absoluto, que
não é questionado em sua origem, seu sentido e seu alcance.
Edmund Husserl (1859-1938) funda o movimento fenomenológico com obras como: Filosofia da
Aritmética(1891); Investigações Lógicas(1900-1901); A Idéia da Fenomenologia(1907); A Filosofia
como Ciência de rigor(1910); Idéia para uma Fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica(1913); Meditações Cartesianas(1931); Crise das Ciências Européias(1935). Em todas
essas obras está expressa a consciência de uma crise nos fundamentos das ciências que a fenomenologia
pretende superar. Pode-se dizer que toda a vida filosófica de Husserl, da filosofia da Aritmética
(1891) às conferências sobre a Crise das ciências européias (1935), é dominada 'pelo sentimento
dessa crise da cultura.
Não é por acaso que desde o seu início a fenomenologia propõe-se a resolver
simultaneamente uma crise da filosofia; uma crise·das ciências do homem e uma crise das·
ciências puras. Uma crise que persiste ainda hoje. É importante observar que os dez últimos anos
do século XIX, período dos primeiros trabalhos de Husserl, na Alemanha foram marcados pela
derrocada dos grandes sistemas filosóficos tradicionais.
A ciência preenche o espaço deixado vazio pela filosofia especulativa. Duas ciências se
destacam entre as demais- as matemáticas e a psicologia. O jovem Husserl, que se formou nas
matemáticas prepara uma tese sobre o cálculo das variações. Quanto à psicologia, busca conforme
a tendência positivista constituir-se como ciência exata tomando como referência o modelo das
ciências da natureza, eliminando assim os aspectos subjetivos e portanto, aparentemente não
científicos, que o uso da introspecção comporta.
A partir de 1880, a segurança do pensamento positivista começa a ser abalada. Cada vez
mais os fundamentos e o alcance da Ciência tomam-se objeto de interrogação: terão as leis que ela
descobre uma validez universal? Qual é o sentido de sua objetividade? Não serão elas somente
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convenções e não dependerão do psiquismo, cujas leis a psicologia por sua vez descobre? Muitos
tentam responder tais questões concebendo um "sujeito puro" que asseguraria a objetividade e a
coerência dos diferentes domínios' do conhecimento objetivo. Mas outras questões começam a se
colocar: O que dizer do sujeito concreto em sua vida psíquica e imediata, em seu·engajamento
histórico que o pensamento objetivo não consegue explicar?
Husserl, por seu lado, abandona em 1884 o posto de assistente de Weiertrass e decide
consagrar-se a solucionar as grandes questões de seu tempo, particularmente aquelas que denotam
uma crise de fundamentos nas ciências. Nessa época o filosofo encontra com Franz Brentano que
em seu trabalho A psicologia sob um ponto de vista empírico propõe um novo método para a
abordagem do psiquismo. De início distingue-se fenômenos psíquicos que comportam uma
intencionalidade [visam um objeto] e os fenômenos físicos. A percepção original que temos dos
fenômenos psíquicos constitui seu conhecimento fundamental. Husserl não esquecerá a formula de
Brentano: Ninguém pode duvidar que o estado psíquico que em si mesmo percebe não existe e não existe
tal como o percebe. A descrição do fenômeno tal como ele é além de ser uma exigência do positivismo
ao mesmo tempo permite ascender ao concreto e a vida que a ciência teria negligenciado.
Nessa época o campo das analises fenomenológicas de Husserl está na exploração do campo da
consciência e suas relações com o objeto. Contudo a escola de Brentano[Stumpf e Meinong] fica na
descrição dos fenômenos psíquicos e não responde as questões fundamentais que Husserl se coloca: pode
um conceito lógico ou matemático, como o conceito de número, se reduzir a operação mental que o
constitui – a numeração? Ciente de que os objetos lógicos e matemáticos não podem reduzir às operações
mentais, Husserl procurará superar a psicologia descritiva de Brentano criando o movimento
fenomenológico.
O movimento fenomenológico tem seu inicio formal com a publicação das Investigações
Lógicas(1900) de Husserl, que concebe a Fenomenologia como ciência descritiva dos fenômenos. Num
primeiro momento, o campo de descrição reduzia-se aos conteúdos lógicos e matemáticos. Já nas Idéias
sobre uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica(1913) a Fenomenologia transforma-se
numa verdadeira Filosofia(ontologia), aplicando as análises intencionais ao mundo em sua totalidade. O
mundo emerge, assim, como fenômeno, como objeto intencional – um conjunto de significados presentes
a uma consciência intencional doadora de sentido.
O fato é que desde o início de suas investigações até o final de sua vida, Husserl falou de uma crise
que afetava todas as ciências, inclusive as chamadas ciências exatas(matemáticas). Todas as ciências,
segundo o filósofo, além de comungarem com a atitude natural ingênua e dogmática diante do mundo,
não conseguem esclarecer seus próprios fundamentos, seus pressupostos e condições de possibilidade. As
ciências padeceriam de uma alienação crônica, pois perderam contato com o mundo da vida (Lebenswelt),
refugiando no mundo estéril dos puros signos. Tal crise exigiria, segundo Husserl, a instauração de uma
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Lógica Pura - uma teoria da ciência que desse conta das condições de possibilidade e dos limites de toda
teoria possível. A Lógica deixa de ser uma ciência entre outras, ela é a ciência das ciências. Ela deve
fundamentar todas as demais ciências por meio de uma concepção crítica da correlação sujeito-objeto
baseada na intencionalidade da consciência.
Na obra Crise das Ciências Européias e da Filosofia transcendental(1935) Husserl coloca a si tal
questão: Por que, apesar do grande progresso da ciência, o homem, depois de um longo caminhar
histórico, encontra-se ameaçado até em sua própria existência corporal, por forças irracionais? Como
era possível que o homem, reconhecido desde aurora da história como ser racional, ao final dela
chegara a ser medido e valorizado a partir de uma zoologia de povos? Ao tentar responder tais questões
Husserl acabou caindo na tentação de todo grande filósofo: apresentar seu pensamento como a
culminação da revelação da razão. Mas no fundo nosso filósofo sabia que a tarefa era infinita.

Crença e distanciamento do Psicologismo

Numa época dominada pelo utilitarismo e que fez da crença nos poderes da ciências uma espécie de
religião, Husserl acreditou, com o psicologismo, que a Psicologia poderia realizar o papel de
fundamentação filosófica da Lógica. Para o Psicologismo as leis lógicas são fatos mentais que podem ser
descritos pelos métodos das ciências naturais. Não há distinção entre fato psíquico e fato físico. O
Psicologismo seria capaz de clarificar e fundamentar a essência de toda a teoria e o significado de todos
os conceitos. A Psicologia experimental seria assim a ciência das ciências, a tão buscada Prote
Philosophie. Toda a atividade científica e filosófica tem sua origem nos fenômenos psíquicos conscientes.
O psicologismo explica tal atividade e desvela as leis naturais de relação entre os atos psíquicos. O
próprio Husserl escreve, anos mais tarde, eu parti da convicção dominante de que por meio do
psicologismo, tanto a Lógica em geral como as ciências dedutivas, devem alcançar sua justificação
filosófica. A questão aqui é: Como é possível que algo possa parecer objetivo e evidente a uma
subjetividade e, ao mesmo tempo, conservar o estatuto de algo transcendente à própria subjetividade?
Em 1898, Husserl alcança uma consciência clara da correlação entre sujeito e objeto - “Todo
trabalho de minha vida esteve dominado pela necessidade de determinar e elaborar sistematicamente
esse a priori da correlação Sujeito-Objeto. Quais as condições de possibilidades(leis a priori) de um
objeto dar-se a um Sujeito com valor de verdade e objetividade? O Psicologismo poderia dar conta dessa
sistematização do a priori da correlação Sujeito-Objeto, mas já em 1900, na introdução ao primeiro tomo
das Investigações Lógicas, Husserl expressa toda sua desilusão com o Psicologismo. O Psicologismo
poderia ser útil para elucidar a conexão dos atos psíquicos, para esclarecer a origem das representações,
mas não poderia dizer nada acerca do conteúdo(significado) dos atos psíquicos e da unidade de uma
teoria. Psicologismo não poderia justificar, portanto, a objetividade das teorias científicas, nem a
existência de uma verdade universal e necessária válida para todos e em todos os tempos. Na realidade ele
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conduz ao relativismo e ao ceticismo: se a consciência é um fato, uma coisa entre outras na natureza,
uma realidade psicofísica submetida às leis naturais, necessariamente as idéias e a objetividade seriam
fatos naturais relativos que impossibilitariam a existência de um saber absoluto. Contra o Psicologismo,
Husserl desvela uma esfera de verdades evidentes, de objetos ideais, cuja validez independe de todo
processo psíquico, o que permitiria a elaboração de uma Lógica Pura. As leis dessa esfera transcendental,
onde acontece a gênese do sentido, não são leis naturais submetidas ao princípio de causalidade que reina
no mundo físico-natural.
Daí o fato do sujeito husserliano não se esgotar no eu empírico-psicológico submetido às leis
naturais. Ele não é uma res cogitans, uma consciência em relação dicotômica com o mundo. Consciência
e mundo não são realidades independentes. A consciência não é um lugar dentro de outro lugar - o
mundo, que por sua vez, seria reduzido às representações que estariam no interior dessa consciência.
Consciência-mundo, Sujeito-objeto, são realidades essencialmente unidas segundo leis apriorísticas. O
fato é que o psicologismo não consegue resolver um problema fundamental da teoria do conhecimento.
Como é possível que o Sujeito cognoscente alcance a objetividade no conhecimento? Como é possível
que o Sujeito cognoscente alcance com certeza e evidência uma realidade que lhe é transcendente e
existe em si? Enfim, como o Sujeito pode sair de sua imanência e dizer algo com valor de verdade de uma
realidade transcendente? As respostas a essas questões na perspectiva fenomenológica exigem a
superação do que Husserl chama de atitude natural que se opõe à atitude crítica nos seguinte termos: a
atitude natural só se interessa pelo uso possível dos conceitos lógicos do ponto de vista do que é
Verdadeiro ou Falso, sem submeter tais conceitos a uma crítica. Na atitude crítica, o lógico deve
perguntar: Que é um conceito? Que é uma Representação? Que é a verdade ou a falsidade? Quais as
condições de possibilidades(critérios) da verdade? Como um objeto transcendente pode dar-se à
imanência do sujeito?. A atitude natural é a atitude do realismo ingênuo: acredita-se que as coisas
exteriores existem tais como a vemos, não distingue entre a existência real do objeto e sua existência
como objeto do conhecimento (realismo crítico). Cada indivíduo pode ter uma "tese" sobre o mundo,
uma posição diante do mundo, vive de forma específica sua visão de mundo. Esse modo de viver
cotidiano, essa atitude natural ingênua e irrefletida precisa ser fundamentada filosoficamente, para tanto
Husserl sugere a epoché [suspensão do juízo] – colocação do mundo entre parênteses e um certo
distanciamento da tradição filosófica.
Não é por acaso que Husserl não buscou na tradição filosófica um sistema a partir do qual pudesse
realizar seu projeto de uma fundamentação da ciência e da lógica?3 O filósofo considera que a tradição
filosófica compartilhava dos dois preconceitos fundamentais da atitude natural: conceber o objeto como
3
Husserl acaba então por conceber uma filosofia nova, que realizaria enfim o sonho de toda filosofia: tomar -se uma
ciência-rigorosa. A ,realização de tal projeto supõe que, em vez de se prender, as. tradições filosóficas:divergentes
que lhe transmitem seu desacordo, o pensamento filosófico retome as suas origens dando -se como ponto de partida,
não mais às opiniões dos filósofos, mas à própria realidade:
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uma realidade objetiva independente de suas manifestações para uma consciência; e a concepção da
consciência como uma região entre outras, contida numa região mundo redutível à representações. Nas
filosofias oferecidas pela história tudo não passa de uma galeria de opiniões sem unidade sistemática.
Cada posição filosófica não passa de um ponto de vista pessoal ou de determinada escola. Nem os
problemas, nem os métodos, nem as teorias foram plenamente delimitados e esclarecidos pela Filosofia
ao longo de sua história. Muitas filosofias buscaram sinceramente uma verdade absoluta, mas nenhuma
realizou o ideal de uma ciência de rigor: a consciência clara do significado da filosofia e de suas relações
com as demais ciências.
É certo que Husserl não propõe uma atitude puramente negativa diante da História da Filosofia,
entretanto afirma, em A Filosofia como Ciência de Rigor, que não é por meio dos filósofos que se chega
a ser filósofo. Não é das filosofias que deve partir o impulso da investigação, mas das coisas e dos
problemas do mundo da vida. Cabe ressaltar que a atitude negativa de Husserl em relação aos filósofos
passados não se refere à intenção desses filósofos que também pretendiam sinceramente constituir a
Filosofia como um discurso universal e necessário - uma ciência de rigor. A razão de seu distanciamento
dos predecessores deve-se principalmente ao seu radicalismo metodológico imposto pela epoché exigida
pelo lema da fenomenologia - voltar às coisas mesmas.

A volta às coisas mesmas e a intencionalidade da consciência

A concepção husserliana da Filosofia como ciência de rigor exige uma epoché [suspensão] sobre
toda teoria, sobre todo sistema, sobre toda crença espontânea e dogmática num mundo natural. A epoché
propõe um ir às coisas mesmas tais como se mostram como conteúdos de vividos de uma consciência
doadora de sentido. O fenômeno para a fenomenologia não é uma cortina atrás da qual se esconderia o
mistério da coisa em si e, no entanto, Husserl fala de uma intuição de essências na medida em que
podemos desvelar o sentido imanente de um fenômeno.”Se todo fenômeno tem uma essência, o que
se traduzirá pela possibilidade de designá-lo, nomeá-lo, significa que não se pode reduzi-lo à
sua única dimensão de fato, ao simples fato que ele tenha se produzido. Através de um fato é
sempre visado um sentido.” (Dartigues, 2005). É a possibilidade de intuir uma essencia no
fenomeno que me permite, por exemplo, identificar a IX Sinfonia de Bethowen, não importa as
condições em que é executada. O que a fenomenologia constata é que há uma essência de cada
objeto que percebemos: árvore, torre, mesa, casa etc., e das qualidades que atribuímos a estes
objetos: verde, rugoso, confortável etc. A essência refere-se ao ser da coisa ou da qualidade,
sendo um puro possível. Um das primeiras tarefas da fenomenologia seria elucidar esse "puro
reino das essências" - segundo os diversos domínios ou "regiões" que elas permitem pensar
independentemente da própria existência dessas regiões: A região natureza - compreendendo os
fenômenos reais ou possíveis de que tratam as ciências da natureza; a região "espírito" -
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compreendendo os fenômenos que tratam as ciências humanas; a região "consciência" -


compreendendo todos os atos da consciência sem os quais nenhum acesso nos seria dado às
outras regiões.
Da mesma forma que a epoché aplicada ao mundo não significa uma pura e simples negação do
mundo, mas sua constituição num nível transcendental, a epoché aplicada à tradição filosófica não
implica uma negação pura da tradição filosófica. O discurso crítico, radical e rigoroso da Filosofia não
nos permite aceitar dogmaticamente nenhum dado prévio, nenhuma tradição como ponto de partida.
Devemos buscar as origens dos problemas - sua intuição originária, sua vivência, sua doação absoluta e
evidente enquanto presente a uma consciência intencional. O naturalismo confunde o físico e o psíquico,
reduzindo a consciência ao fluxo temporal infinito de suas vivências empíricas. Brentano, mestre de
Husserl, já havia distinguido o físico e o psíquico no âmbito da Intencionalidade de uma consciência que
não é um coisa, um res cogitans, mas ato, intenção de ... Só há consciência de algo e só há objeto para
uma consciência doadora de sentido. A peculiaridade da consciência é a capacidade de outorgar
significado às coisas exteriores.
A intencionalidade é uma noção oriunda da filosofia medieval, significa: dirigir-se para ... visar
alguma coisa. O que faz com que a consciência não seja uma coisa, uma substância (alma), mas uma
atividade, um fenômeno constituído por atos (percepção, imaginação, especulação, volição, paixão etc)
com os quais visa um objeto. Se os atos intencionais (percepção, imaginação, recordação, volição)
possuem como correlato uma multiplicidade de essências, torna-se possível distinguir diversas regiões de
ser (Ontologias regionais). Ex.: Um cubo pode ser visado pela percepção, e sua essência perceptiva será
diferente de sua essência quando for visado por um geômetra. Esse mesmo cubo pode ser visado por um
ato de imaginação, distinguindo-se uma terceira essência. Ou seja, há diversas formas do objeto mostrar-
se para a consciência, dependendo do ato intencional que o visa. A Fenomenologia pretende descrever
essas vivências da consciência nas quais os objetos se dão com evidência. Percepção-percebido,
imaginação-imaginado, recordação - recordado, ideação - ideado, etc, constituem o campo de trabalho da
Fenomenologia. Cabe salientar que os correlatos dos atos intencionais são essências transcendentais mas
que pertencem a imanência enquanto fluxo contínuo de vivências. Daí a necessidade da "epoché"
(suspensão) de qualquer postura tética sobre o mundo ou qualquer realidade transcendental, em si, que
independe da consciência.
A Epoché ou redução seria uma operação que coloca a existência do mundo efetivo "entre
parênteses", para que a investigação ocupe-se somente do "vivido" pela consciência sem se perguntar se
o que é "visado" pelos atos intencionais da consciência existe ou não no mundo exterior. A Epoché
opera a passagem da região mundo (realidade transcendente existente em si) para a região da consciência,
procurando descrever a totalidade da paisagem da consciência constituída por um fluxo ininterrupto de
vivências. A epoché suspende qualquer posição ou aceitação de um mundo natural-físico composto de
representada

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coisas existentes em si, entre as quais se encontraria a consciência submetida às mesmas leis naturais do
mundo. A Fenomenologia coloca a tese geral sobre o mundo entre parêntese, para investigar como a
consciência se estrutura e funciona a partir de dois níveis de Redução:
1º - a redução eidética – significação ideal dos objetos empíricos, procura essência e
significados. Toda ciência deve ser precedida por uma investigação eidética que desvela a essência ou a
estrutura necessária o objeto estudado - ontologias regionais.
2º - Redução transcendental - Visa à essência da própria consciência enquanto constituidora
das essências ideais. Desvela as condições de possibilidade (e suas leis) de todo aparecer possível.
O que a fenomenologia quer mostrar é que a consciência é constituída por atos intencionais,
faróis com os quais visam diferentes aspectos do mundo. O que importa é o modo como aparece o objeto
à consciência. O ser desvela-se no seu modo de aparecer para uma consciência que em si mesma não é
nada, senão pura intencionalidade dirigida ao que não é ela. As coisas caracterizam-se pelo seu
perspectivismo, pelo seu inacabamento. São sempre visadas por noesis (atos intencionais) novas que as
enriquecem.
PERCEPÇÃO DOS OBJETOS SENSÍVEIS – ATITUDE NATURAL
Macieira representada Macieira Real

Mas como podem essas duas macieiras constituírem apenas uma só? Será preciso imaginar uma
terceira macieira que permite a identidade das duas outras e assim ao infinito? Não atingimos a
essência mesma da percepção da macieira senão através da análise intencional que não parte da
macieira em si situada fora de, nem da macieira representada, mas da coisa mesma – a
macieira enquanto percebida, do ato de percepção da macieira no jardim, vivência original a
partir da qual chegamos a conceber uma macieira ou uma macieira representada. Como
correlato da consciência intencional, o objeto nunca é um objeto em si, mas sempre um objeto-
percebido, pensado, rememorado, imaginado, desejado, etc. Assim, podemos considerar que a
consciência contém muito mais que a si própria: nela percebemos o sentido mesmo do mundo
em direção ao qual ela não cessa de "explodir" (éclater)[Sartre].
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Capítulo II

Ser e Tempo e os constituintes originários da existência humana

A obra Ser e Tempo (Sein und Zeit) (1927) inicia proclamando que é necessário repetir uma antiga
e velha questão. Uma questão que pela sua originalidade, amplitude, profundidade e simplicidade, tornou-
se a questão-guia da Filosofia: a questão sobre o sentido e a verdade do Ser. Na analítica existencial de
Ser e Tempo, a recolocação dessa questão impõe a realização de duas tarefas: uma analítica
existencial(descrição fenomenológica) dos modos de ser originários do Dasein(Ser-aí) como ser-no-
mundo; e uma destruição da história da ontologia tradicional alicerçada no paradigma da subjetividade e
na dicotomia sujeito-objeto, consciência/mundo. A realização dessas tarefas seria a condição de
possibilidade para a re-colocação da questão do ser(Seinsfrage) nos limites da compreensão finita do
Dasein, que não pode ser confundido com algo meramente presente [Vorhanden], um sujeito psicológico
ou uma subjetividade debatendo-se dentro de um mundo objetivado. O Dasein é uma existência que se
efetiva em comunhão e em relação ao mundo dos entes .

A analítica existencial tornaria, assim, supérflua qualquer teoria do conhecimento que se baseia na
falsa dicotomia entre sujeito-objeto, consciência/mundo. O mundo não é simplesmente um conjunto de
coisas físicas e espaciais, ele é um produto, um correlato da intencionalidade da consciência e das
relações que o Dasein mantém com os outros e com as coisas. Os juízos verdadeiros ou falsos acerca do
mundo exterior, ou qualquer nível de objetificação da realidade externa, só são possíveis porque o
próprio Dasein já se encontra originariamente na verdade e na não-verdade de uma existência autêntica
ou inautêntica. O Dasein, portanto, já deve estar em sua verdade para poder emitir um juízo objetificador,
assim como o ente já deve estar em sua verdade para ser desvelado como objeto [Gegenstand] pelo juízo.

O fato é que a análise fenomenológica dos modos de ser originários do Dasein revela uma dimensão
pré-reflexiva e anti-predicativa que antecipa e desconstrói a relação dicotômica Sujeito/Objeto baseada no
paradigma da subjetividade.

Importa destacar que as descrições fenomenológicas de onde emergem as estruturas ontológicas do


Dasein como ser-no-mundo, a mundanidade do mundo e a instrumentalidade do instrumento (Zeug), não
são inteiramente irreconciliáveis com a atitude que Heidegger irá assumir posteriormente diante da
ciência e da técnica moderna, situando-as no âmbito da história do Ser. Ser e Tempo já está a caminho do
ultrapassamento da metafísica, na medida em que retoma a questão do Ser numa nova base (a existência
humana que compreende o Ser) e num novo horizonte ( o tempo). Por outro lado, Heidegger reconhece
que a fenomenologia de Sein und Zeit, transformada numa hermenêutica da existência finita e da história
da metafísica, não é integrada na história do Ser.
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O fato é que o estatuto de Sein und Zeit na evolução do pensamento Heidegger permanece ambíguo
em relação a Kehre (revira-volta), que teria implicado um abandono do projeto de Ser e Tempo. Em que
medida, portanto, Sein und Zeit ainda permanece no âmbito da gramática e da lógica metafísica, cuja
“destruição” é uma tarefa imposta pela re-elaboração da questão do Ser? Enfim, a leitura heideggeriana
da técnica moderna já seria antecipada pela fenomenologia do instrumento realizada em Sein und Zeit?

O próprio Heidegger tenta jogar uma luz sobre tais questões ao afirmar na Carta sobre o
Humanismo:

“A tarefa de repetir e acompanhar, de maneira adequada e suficiente, este outro pensar que
abandona a subjetividade foi sem dúvida dificultada pelo fato de, na publicação de Ser e Tempo,
eu haver retido a Terceira Seção da Primeira Parte, Tempo e Ser (vide Ser e Tempo, p. 39). Aqui o
todo se inverte. A seção problemática foi retida, porque o dizer suficiente desta reviravolta (Kehre)
fracassou e não teve sucesso com o auxílio da linguagem da Metafísica. A conferência Sobre a
Essência da Verdade, pensada e levada a público em 1930, mas apenas impressa em 1943, oferece
uma certa perspectiva sobre o pensamento da Kehre de Ser e Tempo para Tempo e Ser. Esta Kehre
não é uma mudança do ponto de vista de Ser e Tempo; mas, nesta Kehre, o pensar ousado alcança
o lugar do âmbito a partir do qual Ser e Tempo foi compreendido e, na verdade, compreendido a
partir da experiência fundamental do esquecimento do ser. (Cf. HEIDEGGER, 1979c)
Podemos considerar que a análise do Dasein que comporta uma desconstrução fenomenológica da
relação dicotômica Sujeito/Objeto baseada no paradigma da subjetividade, prepara de certa forma a
crítica posterior à Ciência e à técnica moderna, uma vez que é o próprio Heidegger que designa a
distinção sujeito/objeto como a estrutura filosófica que torna possível a técnica moderna.

Desconcertante e repleto de implicações, particularmente para as chamadas “Ciências Humanas”, o


des-velamento do mundo pertence ao próprio ser do Dasein, enquanto ser que sente, compreende e
comunica o mundo numa totalidade de significações. Consequentemente, o Dasein é ele mesmo essa
abertura que possibilita o fenômeno originário da verdade como alétheia. Nessa abertura desvela-se a
diferença ontológica entre ser e ente. Uma diferença iluminada pela verdade do ser. A tradição falava de
uma luz natural que muitas vezes era confundia com a razão. Na ontologia fundamental de Martin
Heidegger essa luz passa a constituir ontologicamente o Dasein, como ser aberto no e para o mundo.
Assim, o Dasein torna-se a condição de possibilidade para o fenômeno da verdade como
desvelamento(alétheia).

Heidegger aponta três modos de ser originários constitutivos da abertura do Dasein, são eles: A
Disposição, a Compreensão(Verstellung) e o Discurso(Rede).

Encontramos os dois modos constitutivos do ser da abertura do Dasein, igualmente originários, na


disposição e compreensão... Disposição e compreensão são elementos constitutivos determinados
pelo discurso de maneira originária. (...)A análise dos caracteres do ser não são propriedades de
algo simplesmente dado, mas modos de ser essencialmente existenciais. (HEIDEGGER, §28,
1964, p. 187)
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A seguir vamos abordar cada um desses modos de ser originários constitutivos da abertura do
Dasein. Esses modos de ser são existenciais, pois não são categorias que se referem à coisas
simplesmente dadas, mas dizem respeito ao modo de ser daquele ente que é dotado do caráter do ser-aí.

A Dis-posição (Befindlichkeit)
O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é onticamente o mais conhecido e o mais
cotidiano, a saber, o humor, o estado de humor. Antes de qualquer psicologia dos humores, trata-se de ver
este fenômeno como um existencial fundamental e delimitar sua estrutura. O humor designa aqui o estado
e a integração dos diversos modos de sentir-se, relacionar-se e de todo as os sentimentos, emoções e
afetos bem como das limitações e obstáculos que acompanham essa integração. A tradução por humor, na
realidade, empobrece a riqueza conotativa que a palavra alemã Stimmung encerra. (HEIDEGGER, §28,
1964, p. 187)

O que é ontologicamente designado como disposição é o que a nível ôntico se expressa como
humor. Portanto, a disposição repercute a nível ôntico como o mais banal e corriqueiro dos fenômenos, o
humor. O fato de nosso humor poder sempre mudar, aparecer e desaparecer, prova que ele está sempre
conosco: nunca estamos num estado de ausência completa de humor. É nele que o Dasein revela-se a si
mesmo e os entes intramundanos, abrindo-se ao mundo como uma totalidade de significações. Assim, o
humor coloca o Dasein diante de seu próprio ser como abertura. A disposição revela o caráter
ontológico do Dasein de três modos: primeiro revela o caráter de abandono do Dasein, sua faticidade de
ser-lançado no mundo, que não escolhe sua existência mas que, uma vez existindo, deve assumi-la e
responsabilizar-se por ela. Em segundo lugar, a disposição revela a precariedade e indigência originárias
da existência no fato dela nunca ser um fato consumado, mas algo que tem que ser a cada momento
conquistada por uma decisão resoluta. E finalmente, a disposição revela a temporalidade da existência,
sua finitude radical no seu ser-para-morte.

Assim, diz Heidegger:

Esse fato de ser, caráter ontológico do Dasein, encoberto em sua proveniência e destino, mas tanto
mais aberto em si mesmo quanto mais encoberto, chamamos de estar-lançado (Geworfenheit) em
seu pré, no sentido de, enquanto ser-no-mundo, esse ente ser sempre seu pre. A expressão estar-
lançado deve indicar a faticidade de ser entregue à responsabilidade. Esse fato de ser e Ter de ser,
aberto na disposição do Dasein, não é aquele fato que, do ponto de vista ontológico categorial,
exprime a fatualidade pertencente ao ser simplesmente dado. Esse só se faz acessível numa
constatação observadora. Em contrapartida, deve-se conceber o fato aberto na disposição como
determinação existncial deste ente que é, no modo de ser-no-mundo. Facticidade não é a
fatualidade do factum brutum de um ser simplesmente dado, mas um caráter ontológico do
Dasein assumido na existência, embora, desde o início, reprimido. (HEIDEGGER, §29, 1964, p.
189)
Na disposição, o Dasein já se colocou sempre diante de si mesmo e já sempre se encontrou como
um dispor-se no humor... A disposição abre o Dasein em seu estar-lançado e, na maior parte das vezes e
antes de tudo, segundo o modo de um desvio que se esquiva. (HEIDEGGER, §29, 1964, p. 180)
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O abandono é inseparável da responsabilidade e da conquista da existência, que se assume como


ser-para-a-morte. O Dasein, em virtude de sua própria estrutura, é aberto para o ser, na medida em que
sua existência é sempre uma ainda-não , algo para frente de si mesmo.

O humor já abriu o ser-no-mundo em sua totalidade e só assim torna possível um direcionar-se


para... O estado de humor não remete a algo psíquico e não é , em si mesmo, um estado interior
que se exteriorizasse de forma enigmática... Nisso mostra-se o segundo caráter essencial da
disposição: ela é um modo existencial básico da abertura igualmente originária do mundo, da co-
presença e da existência, pois também este modo é em si mesmo ser-no-mundo. (HEIDEGGER,
§29, 1964, p. 191)
A Disposição, além de revelar a facticidade da existência, o estar-lançado, abertura do ser-no-
mundo em sua totalidade, contribui para uma compreensão mais profunda da mundanidade do mundo.
Nesse sentido, diz Heidegger:

“... o mundo que já se abriu deixa e faz com que o ente intramundano venha ao encontro. Essa
abertura prévia do mundo que pertence ao ser-em, também se constitui de disposição. Deixar e
fazer vir ao encontro é uma circunvisão e não simplesmente uma sensação ou observação. Numa
ocupação dotada de circunvisão, deixar e fazer vir ao encontro tem o caráter de ser atingido...”
(HEIDEGGER, §29, 1964, p. 191)
Na Disposição tornamo-nos abertos ao encontro dos entes intramundanos nas ocupações
cotidianas, tornando possível o deixar ser o ente naquilo que ele é e como é. Contudo, na maioria das
vezes e antes de tudo, o Dasein não deixa de ser ente. Esse deixar ser torna-se a essência da verdade,
como um abandonar-se ao desvelamento do ente. Mas somente quando assumirmos nossas originárias
condições de existência, poderemos dar o salto da existência inautêntica da medianidade cotidiana para a
existência autêntica, onde as coisas são postas em suas verdades.

O Dasein esquiva-se de assumir-se como um ser em estado de abandono, um ser lançado no mundo
( assim simplesmente aí), sem razão ou justificativas. Um poder-ser que tende necessariamente a ser. Um
ente que deve responsabilizar-se e conquistar sua existência a cada escolha. O Dasein evita assumir-se
como ser-para-a-morte, prefere não pensar em sua finitude radical imposta pela possibilidade extrema da
morte. Assim, estamos originariamente caídos numa existência inautêntica marcada pelas ocupações e
preocupações cotidianas, imersos num impessoal que tira toda a responsabilidade da escolha.

O Dasein perde-se e deixa-se levar à deriva pelos acontecimentos. Ele foge das condições
originárias de sua existência, que são reveladas pela disposição. Isto gera um sentimento de repulsa à
existência, tornando-a um fardo.

A disposição não apenas abre o Dasein em seu estar-lançado e dependência do mundo já


descoberto em seu ser, mas ela própria é o modo de ser existencial em que o Dasein
permanentemente se abandona ao mundo e por ele deixa-se tocar de maneira a esquivar-se de si
mesmo. A constituição existencial desse esquivar-se será evidenciada no fenômeno da de-
cadência.” (HEIDEGGER, §29, 1964, p. 194)
Assim, a teoria heideggeriana sobre a disposição propõe-se a revelar o fundamento da afetividade,
ao mesmo tempo em que revela nossa condição existencial originária como seres abandonados, lançados
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na existência sem nenhuma razão. A disposição abre um espaço para nosso encontro com o mundo. O
mundo sentido em sua totalidade e posto em sua verdade. Contudo, antes de tudo e na maioria das vezes,
esse espaço aberto torna-se uma clausura, na qual o Dasein move-se em sua cotidianeidade.

A Compreensão
A compreensão é uma das estruturas existenciais que constitui originariamente a abertura do
Dasein. A compreensão é um modo de ser originário do Dasein, que faz parte de seu ser-no-mundo. O
Dasein é aquele ente que é determinado ôntica e ontologicamente pela compreensão pré-ontológica do
Ser em sua cotidianidade. A compreensão, como um modo possível de conhecimento entre outros, deve
ser interpretada como um derivado existencial da compreensão primária. O conhecimento é um modo
derivado de ser do Dasein. Enquanto a disposição revela a ligação afetiva, o pathos primordial do Dasein
ao mundo, a compreensão apreende essa ligação ontológica e originária do Dasein ao mundo. Toda
disposição sempre possui a sua compreensão mesmo quando a reprime. Toda compreensão está sempre
sintonizada como o humor.

Através do que compreende, o ser-no-mundo compreende-se em sua totalidade.

A abertura da compreensão enquanto abertura de função e significância diz respeito, de maneira


igualmente originária, a todo ser-no-mundo. Significância é a perspectiva em função da qual o
mundo abre-se como tal. Dizer que função e significância abrem-se no Dasein , significa que o
Dasein é um ente em que, como ser-no-mundo, ele próprio está em jogo.” (HEIDEGGER, §29,
1964, p. 198)
A compreensão, enquanto articulação dos modos possíveis da existência, é projetiva. Ela explicita
as possibilidades do ser-no-mundo. Assim, na compreensão o ser-no-mundo revela-se como um poder-
ser, uma existência orientada para...O Dasein não é algo simplesmente dado que possui a possibilidade
de ser alguma coisa. Ele é pura possibilidade de ser enquanto existência. A possibilidade essencial do
Dasein diz respeito aos modos característicos de ocupação com o mundo e de preocupação com os outros
e a possibilidade de nesses modos ser para si mesmo, em função de si mesmo. (Cf. HEIDEGGER, §29,
1964, p. p. 198-199)

Dizer que o Dasein é pura possibilidade de ser, não significa um poder-ser solto no ar. O Dasein
como um ser originariamente disposto, um ser em situação, já caiu, foi lançado dentro de determinadas
possibilidades, mas, enquanto o poder-se que ele já é, o Dasein já deixou passar tais possibilidades de seu
ser, assumindo-as ou recusando-as. Isto significa que o Dasein é a possibilidade de ser que está entregue a
sua responsabilidade. Cada um de nós realiza e responsabiliza-se por uma maneira possível de ser.
Assim, o Dasein só poder ser livre quando realiza o seu poder-ser mais próprio. A compreensão sempre
nos conduz às possibilidades, pois, possui a estrutura existencial do projeto. A compreensão sempre nos
conduz às possibilidades, pois, possui a estrutura existencial do projeto. A compreensão projeta o ser do
Dasein para a sua destinação de maneira tão originária como para a significância, entendida como
33
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Grupo de Estudo Heidegger

mundanidade de seu mundo. O projeto é a constituição ontológico-existencial do espaço de articulação do


poder-ser de fato. O projetar-se nada tem a ver com um possível relacionamento frente a um plano
previamente concebido. Como Ser-aí, o existente sempre já se lançou e projetou e só é na medida em que
se projeta.

Assim, a compreensão envolve dois aspectos básicos: a compreensão como poder-ser e a


compreensão como projeto. A compreensão como projeto não deve ser entendida como um ato de
conhecimento, como uma atividade puramente racional que tem como lugar privilegiado a consciência.
Essa compreensão, própria da metafísica tradicional, implica em conceituar um objeto, apreender o
mundo em representações. Esse tipo de compreensão pressupõe a dicotomia entre sujeito-objeto, a
permanência na atitude natural, o predomínio do subjetivismo, apesar de sua obsessão à objetividade. Ao
contrário, na ontologia fundamental de Martin Heidegger, o fenômeno da compreensão é desvelado como
modo de ser originário do Dasein. Uma compreensão que antecipa qualquer tentativa de conceituação
lógica.

O que o fenômeno da compreensão revela é a possibilidade do Dasein como ser-no-mundo. Ela


abrange e antecipa no projeto todos os modos possíveis de ser do ser-no-mundo. O Dasein está sempre
engajado num conjunto de possibilidades, mas lhe é impossível vivê-las todas. Por isso, ele tem de
escolher, e não há nenhum valor e critério que oriente essa escolha. A escolha cria o valor. Assim, o
mundo não se apresenta ao Dasein como um conjunto de objetos justapostos , mas como um conjunto de
articulações possíveis para mim. A compreensão abrange as dimensões do passado, presente e futuro. Ser
possível é existir projetando-se para frente. Nesse movimento do Dasein em relação às suas
possibilidades mais originárias, perfaz-se o projeto compreensivo. Essas possibilidades, que se
escancaram para e no Dasein, abrem a possibilidades dele sempre perder o seu ser, desviar-se do seu
poder-ser mais próprio, alienando-se na publicidade do mundo de todos nós.

Através da compreensão, o Dasein torna-se a visão antecipadora de possibilidade futuras. Essa


visão de totalidade, através da qual o Dasein compreende originariamente o mundo, e chamada por
Heidegger de transparência: compreensão da realização total do ser-no-mundo através de todos os modos
de ser possíveis do Dasein. (Cf. HEIDEGGER, 1964, p. 202). Existindo, o Dasein tem uma visão de si
mesmo. Ele apreende-se na transparência de ser-junto-ao-mundo e de ser-com os outros. Portanto, a
ontologia em Heidegger, só adquire valor a partir da existência que coloca a questão do ser e já se
movimenta numa pré-compreensão originária de ser. É somente porque o Dasein é compreensão, projeto
e poder-ser, é que se pode falar em metafísica, em desvelamento do ser, no espaço aberto pela existência
na plenitude do Ser.
34
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Grupo de Estudo Heidegger

Discurso
Toda disposição mantém-se numa certa compreensão e toda compreensão guarda em si a
possibilidade de interpretação daquilo que se compreende originariamente. Nesse sentido, o discurso
comunica o ser-no-mundo em sua totalidade, articulando os significados que constituem o fenômeno do
mundo (Cf. HEIDEGGER, §34, 1964). Não é nem gramática nem a lógica que estão no fundamento da
linguagem, mas o discurso, base de toda interpretação e proposição, enquanto articulação da
compreensibilidade originária do ser-no-mundo. Assim, a linguagem assume suma dimensão ontológico-
existencial, não se reduzindo a um conjunto de signos ou a uma combinação arbitrária de imagens
mentais cuja chave básica seria a palavra.

“... enquanto articulação da compreensibilidade do aí do Ser-aí, o discurso é um existencial


originário da abertura., constituído primordialmente pelo ser-no-mundo, ele também deve possuir,
em sua essência, um modo de ser especificamente mundano.” (HEIDEGGER, §34, 1964, p. 219)
A compreensão do ser-no-mundo pronuncia-se como discurso, que coloca a totalidade
significativa da compreensibilidade na palavra. As palavras brotam das significações articuladas no
discurso, a partir da compreensibilidade constitutiva da abertura originária do Dasein ao mundo. Afirmar
o discurso como constituição ontológica-existencial da linguagem, implica em deslocar o lugar da
verdade das proposições para as bases existenciais dessas proposições. O mundo é discurso, é
manifestação, que se desvela como um conjunto de significações articuladas. A proposição e o juízo são
meras expressões formais do modo de ser originário do Dasein, enquanto ser aberto no e para o mundo.
Como tal, a enunciação é derivada e não carrega em si o fundamento da comunicação humana.

“Todo discurso sobre... possui o caráter de pronunciamento. No discurso, o Dasein pronuncia-se.


Isso não ocorre porque o Dasein se acharia encapsulado num interior que se opõe a um exterior,
mas porque, como ser-no-mundo, ao compreender, ele já se acha fora. O que se pronuncia é o estar
fora.” (HEIDEGGER, §24, 1964, p. 221)
O discurso possui como momentos constitutivos os seguintes elementos: o referencial do discurso
(Beredete), aquilo sobre o que se discorre como tal (Geredete), a comunicação e o anúncio. Tais
elementos não são propriedades que se podem reunir empiricamente na linguagem. São caracteres
existenciais que constituem originariamente e ontologicamente o Dasein, tornando possível a estrutura
ontológica da linguagem. A escuta e o silêncio pertencem à linguagem discursiva como possibilidades
intrínsecas. Nesses fenômenos é que se torna nítida a função constitutiva do discurso para a
existencialidade da existência finita. A escuta e o silêncio são possibilidades existenciais do discurso, os
modos do discurso manifestar-se onticamente.

“Não é por acaso que dizemos que não compreendemos quando não escutamos bem. A escuta é
constitutiva do discurso. Escutar é o estar aberto existencial do Dasein enquanto ser-com os
outros. O Dasein escuta porque compreende...
É com base nessa possibilidade de escutar, existencialmente primordial, que se torna possível
ouvir.” (HEIDEGGER, §34, 1964, p. 222)
35
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Ouvir, aqui, não tem o sentido de uma mera percepção de sons puros. O ouvir possui o modo de ser
de uma escuta compreensiva. Nós nunca escutamos ruídos e complexos acústicos. Escutamos o carro
rangendo, o pássaro cantando, o fogo crepitando, etc. O ouvir autêntico não constitui a percepção auditiva
de sons e ruídos, mas exprime a atenção do Dasein em relação aos que co-existem com ele, e que são
submetidos à lei dessa atenção. Assim, quando alguém fala comigo, não ouço palavras mas sua
mensagem. O ouvir indica também que Dasein, enquanto ser-no-mundo, encontra-se próximo aos entes
intra-mundanos, familiarizado com eles, antes de qualquer percepção sensível ou intelectual.

“... o fato de ouvirmos primeiramente motocicletas e carros constitui um testemunho fenomenal de


que o Dasein, enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém junto ao que está à mão dentro do
mundo e não junto às sensações, cujo turbilhão tivesse de ser primeiro formado para propiciar o
trampolim de onde o sujeito pulasse para finalmente alcançar o mundo.” (HEIDEGGER, §34,
1964, p. 223)
O silêncio é outra possibilidade constitutiva do discurso autêntico. No silêncio a presença do ser é tão
contundente que sua comunicação prescinde das palavras. Para poder silenciar, o Dasein precisa dispor
de uma abertura autêntica e rica. Ele deve Ter o que dizer, pois, o silêncio comunica mais e melhor do
as palavras. Nos grandes momentos de tristeza o nosso silêncio é nosso discurso.

Silenciar, no entanto, não significa ficar mudo. Ao contrário, o mudo é a tendência para falar...
Quem nunca diz nada também não pode silenciar num dado momento. Silenciar em sentido
próprio só é possível num discurso autêntico. Para poder silenciar, o Dasein deve Ter algo a
dizer... Pois só então é que o estar em silêncio revela-se e, assim, abafa a falação.” (HEIDEGGER,
§34, 1964, p. 224)
Assim, da analítica existencial do Dasein emergem os componentes ontológico-existenciais
constitutivos da abertura originária do Dasein como ser-no-mundo. Através da Disposição o fenômeno do
mundo é sentido em sua totalidade. Na Compreensão, o Dasein articula suas possibilidades num projeto
compreensivo, no âmbito desse projeto compreensivo emerge o fenômeno do mundo como totalidade de
significações expressa no discurso. O descobri-se abandonado na facticidade da existência, através da
disposição, seria impossível sem a compreensão enquanto um poder-ser e projeto. E essa compreensão de
nada valeria se não fosse articulada no discurso.

SER E TEMPO: LEITURA COMPLEMENTAR

No curso do semestre de verão de 1923, Hermenêutica da facticidade, Heidegger já antecipa


muitas das descrições fenomenológicas presentes na analítica existencial de Ser e Tempo (Sein und
Zeit)(1927). Daí a importancia desse curso para se compreender como Ser e Tempo é, na verdade, a
consumação de um processo perpassado de adesões e recusas e que teria começado muitos anos antes. As
descrições fenomenológicas das estruturas ontológicas do Dasein4 do curso de 1923, não apenas

4
Dasein(Ser-aí) - O Dasein não se confunde nem com o homem nem com a humanidade. É no Dasein que o homem constrói
sua história, seu modo de ser, sua existência. O Dasein não é o homem situado, individual, mas condição de possibilidade de
toda humanidade fática e concreta. Daí a analítica existencial de Ser e Tempo não ser uma antropologia, mas o ponto de partida
para uma ontologia fundamental.
36
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antecipam muitas das teses de Sein und Zeit, mas explicitam de forma mais objetiva a relação
Facticidade – Transcendencia, desvelando as estruturas ontólogicas que possibilitariam a emergencia do
sujeito e do objeto do conhecimento (Heidegger, Hermenêutica da Facticidade, §3, p. 9).

Contra a concepção metafísica do homem como animal racional, sujeito do conhecimento que
concebe o ser dos entes a partir dos princípios da razão [Princípio do Eu, Princípio de Não-Contradição e
Princípio da razão suficiente], Heidegger, já em 1923, opõe uma hermenêutica da facticidade da
existência finita. Essa hermenêutica coloca-nos, não diante de um sujeito puro desencarnado que observa
e objetifica o ser das coisas pela via da representação e do cálculo, mas diante da existência humana que
se pergunta por seu caráter de ser com o objetivo de despertar de si para si mesma. O ser da existência
fática realiza no ser-possibilidade de si mesma, no consistir ela mesma em possibilidade. (Heidegger,
Hermenêutica da Facticidade, §3, p. 9).

Dentre as possibilidades da existência finita está o apreender, o penetrar conceitualmente no


representar, o objetificar, etc. Nesse sentido, afirma Heidegger, o Begriff [conceito] não faz referência a
um esquema [Kant], mas a uma das possibilidades de ser da existência de se referir não apenas a si
mesma, mas aos entes intra-mundanos, colocando-se sempre em risco. Concipere, apreender, agarrar,
penetrar conceitualmente possui, segundo Heidegger, um significado derivado, que implica um prae-
habere – um estar já de antemão, um estar na experiência básica a partir da qual pode efetivar qualquer
interpretação ou objetificação do ente. (Heidegger, Hermenêutica da Facticidade, §3, p. 9).

Essa interpretação da existência fática toma como ponto de partida, não a auto-evidencia de um
sujeito puro para si mesmo mediante uma intuição intelectual, mas a faciticidade da existência finita em
sua medianeidade cotidiana. Para Heidegger, esse ambito da compreensibilidade fática é algo que nunca
se poderá medir ou calcular de antemão. A forma que esse ambito de compreensão tem de operar e tornar-
se efetivo não se pode normatizar pela compreensão e comunicação de enunciados matemáticos. Nesse
sentido, dirá Heidegger, a Existenz nunca é objeto [jamais poderá ser objetificada]. Só é aí enquanto é
uma vida, enquanto acontece aí numa vida concreta. (Heidegger, Hermenêutica da Facticidade, §3, p.
19).

A existência não é uma coisa com o pedaço de madeira, tampouco é algo como uma planta, não
consiste em vivências. A existência não pode ser identificada ao sujeito [eu] frente ao objeto [não-eu]. Ela
constitui o modo de ser específico de um determinado ente, que na medida em que é aí assim...
simplesmente jogado no mundo, não possui o modo de ser do objeto [Gegenstand], de algo presente-
subsistente. Enquanto tema de uma consideração teórica, reconhece Heidegger, a existência é certamente
objeto, mas isso não significa que é objeto enquanto é um ser-aí. A existência é, sendo a existência de
cada um. E esse ser a existência a existência de cada um, faz com que ela seja determinada pelo seu hoje,
pela atualidade de suas relações hermenêuticas com o mundo, enfim, por suas condições de lançamento
num determinado complexo de possibilidades e remissões que constitui seu Umwelt. (Heidegger,
Hermenêutica da Facticidade, §10, p. 47).

Originariamente a existência encontra-se imersa na publicidade [Öffentlichkeit] do hoje.


Esse caráter público realiza-se em determinadas formas de falar sobre, em determinados modos de ter
37
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opinião sobre...O falar recai sobre toda classe de coisas, e pode versar sobre aquilo que não está tão
distante da própria existência, que é ela mesma. É no âmbito desse falatório [Gerede] que se define,
segundo Heidegger, o caráter público da existência inautêntica. É através desse Gerede que a existência é
convertida em objeto para si. [Heidegger, Hermenêutica da Facticidade, §10, p. 47]. Cabe pois, a partir
mesmo da banalidade da cotidianeidade, na qual a existência está submetida a ditadura do impessoal,
desvelar as estruturas ontológicas desse ente que nós mesmos somos a cada momento – essa é a tarefa da
analítica existencial de Ser e Tempo (1927)

Ser e Tempo e as estruturas ontológicas do homem como ser-no-mundo

Na perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit [1927], a questão guia da Filosofia, a
questão sobre o sentido e a verdade do Ser nos limites do tempo, impõe a realização de duas tarefas:
uma analítica existencial(descrição fenomenológica) dos modos de ser originários do Dasein(Ser-aí)
como ser-no-mundo; e uma destruição5 da história da ontologia tradicional alicerçada no paradigma
da subjetividade e na dicotomia sujeito-objeto, consciência/mundo. A realização dessas tarefas seria a
condição de possibilidade para a re-colocação da questão do ser(Seinsfrage) nos limites da
compreensão finita do Dasein, que não pode ser confundido com algo meramente presente
[Vorhanden], um sujeito psicológico ou uma subjetividade debatendo-se dentro de um mundo
objetivado. O Dasein é uma existência6 que se efetiva em comunhão e em relação ao mundo dos
entes7.

A analítica existencial tornaria, assim, supérflua qualquer teoria do conhecimento que se baseia
na falsa dicotomia entre sujeito-objeto, consciência/mundo. O mundo não é simplesmente um
conjunto de coisas físicas e espaciais, ele é um produto, um correlato da intencionalidade da
consciência e das relações que o Dasein mantém com os outros e com as coisas. Os juízos verdadeiros
ou falsos acerca do mundo exterior, ou qualquer nível de objetificação da realidade externa, só são
possíveis porque o próprio Dasein já se encontra originariamente na verdade e na não-verdade de
uma existência autêntica ou inautêntica. O Dasein, portanto, já deve estar em sua verdade para poder
emitir um juízo objetificador, assim como o ente já deve estar em sua verdade para ser desvelado
como objeto [Gegenstand] pelo juízo.

5
Essa superação ou destruição fenomenológica da tradição metafísica é vista por Heidegger, não como um aniquilamento ou
supressão da metafísica, mas como uma desobstrução para chegar às fontes originárias da metafísica. Ela é uma recuperação
originária do esquecimento do Ser que, somente a partir de seu velamento na medianidade cotidiana e de seu esquecimento na
história da metafísica, poder ser revelado e lembrado.
6
Existência – Ek-sistência(Exixtenz): Ek-sistere, movimento de dentro para fora. A ex-sistência circunscreve e delimita um
estado e um lugar, uma dinâmica de contínua estruturação em que se trocam os estágios, as passagens e os lugares. Heidegger
reserva existência para designar toda a riqueza de relações recíprocas entre o Ser-aí(homem) e o Ser, entre o Ser-aí e todas as
entificações através de uma entificação privilegiada, o homem. Assim, existência designa o modo de ser específico do homem.
Somente o homem existe, as outras coisas são meramente subsistentes. A pedra é, mas não existe. Mas o homem como ente
privilegiado com o Dom da existência não está autorizado a exercer qualquer espécie de dominação sobre os demais entes. Ele
deve aceirar o Dom da existência como uma tarefa e uma responsabilidade de guardar e habitar o Ser. A resposta a essa
doação dá-se como História, e na História do Ocidente, a resposta dominante tem sido a Era da Metafísica que se consuma na
Era da Técnica.
7
Ente(Seiendes) – Lat. Ens, entis. Ente significa tudo aquilo que simplesmente é, indiferente ao seu modo de ser. Assim, o
homem, as coisas, os acontecimentos, as idéias, tudo, até mesmo o Nada, enquanto é o nada, são entes.
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O fato é que a análise fenomenológica dos modos de ser originários do Dasein revela uma dimensão
pré-reflexiva e anti-predicativa que antecipa e desconstrói a relação dicotômica Sujeito/Objeto baseada no
paradigma da subjetividade.8 Para a analítica existencial do Dasein, não se trata apenas de fixar esse ente
em particular como ente privilegiado a ser primeiramente interrogado na questão do Ser, mas de assegurar
“uma apropriação e asseguramento explícitos do modo devido de se aproximar desse ente. Já se discutiu
que ente deve assumir o papel principal na questão do Ser. Mas como é que esse ente, o Dasein, haverá
de se tornar acessível e deverá ser encarado numa compreensão interpretativa.” (HEIDEGGER, 1964, §
5, p. 42).

A explicitação da estrutura formal da questão do Ser [Cf. HEIDEGGER, Ser e Tempo, §2], deixa
claro que todo questionamento é uma procura, que retira do procurado sua direção prévia.
“Enquanto procura, o questionamento necessita de uma orientação prévia do procurado. Para isso,
o sentido do ser já nos deve estar, de alguma maneira disponível. Já se aludiu: nós nos movemos
sempre numa compreensão do ser. É dela que brota a questão explícita do sentido do Ser e a
tendência para o seu conceito.” (HEIDEGGER, §2, 1964, p. 31)

Mas qual seria esse ente exemplar e em que sentido possuiria ele a primazia na elaboração da
questão do Ser? (Cf. HEIDEGGER, § 2, 1964, p. 32). O Dasein é esse ente, portanto, suas estruturas
ontológicas devem ser explicitadas fenomenologicamente para que a verdade do Ser possa desvela r-se na
compreensão finita e cotidiana que temos do Ser. O Dasein é, pois, o ponto de partida para re-colocação
da questão do sentido do Ser. É ele que interroga e é interrogado em seu ser pelo próprio Ser. A tarefa
consiste, pois, em garantir um acesso ao ser desse ente que compreende pre-ontologicamente o Ser em
seu sendo. É certo que o Dasein possui uma compreensão de si mesmo, contudo, essa compreensão pre-
ontológica não é um fio condutor adequado ao seu ser e ao sentido do Ser em geral. Devido ao modo de
ser que lhe é constitutivo(Ser-no-mundo), o Dasein tende a compreender seu próprio ser a partir daquele
ente com o qual ele se relaciona de modo essencial, primeira e continuamente, este ente é o mundo..

Deve-se, portanto, garantir uma via de acesso aos modos de ser originários do Dasein sem aplicar
de maneira dogmática qualquer idéia de ser e de realidade. A evidência do Cogito cartesiano não autoriza
esse acesso, uma vez que faz do Dasein uma subjetividade debatendo-se num mundo que deve ser
controlado. O Dasein não pode ser identificado com o Cogito cartesiano, que para transcender os limites
de sua subjetividade alcançando um critério objetivo de verdade, precisa afirmar-se na existência de Deus
doadora das Idéias Inatas claras e distintas. A fenomenologia, enquanto um deixar e fazer ver o que se

8
Uma das primeiras recusas de uma hermenêutica da facticidade, já presente no curso de verão de 1923, é o esquema sujeito-
objeto, consciencia-ser, o ser é objeto do conhecimento,a consciencia é o eu penso, nesse polo-eu acontece os atos, persona.
Surge a necessidade de determinar a relação entre o sujeito e o objeto, esse é o tema da teoria do conhecimento.
[HEIDEGGER, Hermenêutica da Facticidade. §17, p. 81]. Para essa teoria do conhecimento baseada no paradigma da
subjetividade surge algumas possibilidades – ou o objeto depende do sujeito, ou o sujeito depende/condicionado do objeto; ou
ambos dependem correlativamente um do outro. Para Heidegger, essa pressuposição acerca do que se trata, acerca do que de
antemão já temos e compreendemos impede por princípio o acesso aquilo que é o como que da vida fática. Nenhuma
modificação do esquema sujeito-objeto [há sujeito/há objetos] pode eliminar a inadequação de tal modelo. É certo que esse
esquema se formou na história da tradição a partir da construção de seus dois polos, que inicialmente surgiram isolados.
Heidegger considera que a fatalidade da irrrupção desse esquema na investigação fenomenológica enraiza-se na situação
histórica que deu origem ao movimento fenomenológico. Na realidade, o predomínio dos problemas da teoria do conhecimento
é próprio de uma forma em que a ciência e a filosofia se mantém vivas. [HEIDEGGER, Hermenêutica da Facticidade. §17, p.
81]
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mostra tal como se mostra, torna-se o único acesso viável ao ser do Dasein em sua medianidade
cotidiana, desvelando a relação ambígua que ele mantém com o Ser. Nesse sentido, afirma Heidegger:
... as modalidades de acesso e interpretação devem ser escolhidas de modo que esse ente possa
mostrar-se em si mesmo e por si mesmo (naquilo que é e como é). Elas têm de mostrar o Dasein
em sua cotidianidade mediana, tal como ele é antes de tudo e na maioria das vezes. Da
cotidianidade não se devem extrair estruturas ocasionais e acidentais, mas sim estruturas
essenciais. Essenciais são estruturas que se mantêm ontologicamente determinadas em todo modo
de ser de fato do Dasein. (HEIDEGGER, 1964, § 5, p. 44)

Do §9 ao §11 de Sein und Zeit, Heidegger expõe a tarefa de uma análise preparatória do Dasein. O
primeiro ponto a ser estabelecido é que o ente a ser analisado somos nós mesmos. E que o ser desse ente
é a cada momento o meu. No existir do Dasein, o Ser está sempre em jogo, encontrando-se velado na
medianidade cotidiana e esquecido na história da filosofia. Se há uma quididade (essentia) do Dasein, ela
deve ser concebida a partir de sua existência. Existência enquanto modo de ser específico do Dasein, não
pode ser confundida com a existentia que se opõe à essentia. No âmbito da ontologia tradicional, a
existência é a essência posta fora de suas causas, designa o fato de ser, a mera efetividade, o ser
simplesmente dado. Ora, ser simplesmente dado não é o modo de ser do ente que tem o caráter de
Dasein. Dizer que o Dasein não é um ser simplesmente dado, mas um existente, implica em dizer que ele
não pode ser apreendido pela via da representação e nem possui propriedades dadas. Suas características
constitutivas são sempre modos possíveis de ser. Outro aspecto importante a ser considerado na
caracterização do Dasein é que o ser que está em jogo no ser desse ente é sempre o meu. Assim, o Dasein
jamais vai poder ser apreendido como um ente simplesmente dado, pois para esses entes o seu existir é
indiferente. Na verdade todos os outros entes são, o Dasein existe.

O Dasein, portanto, não se dá no mundo no modo de ser dos entes simplesmente dados. O Dasein
se determina como ente sempre a partir de uma possibilidade que ele é. Assim, a elucidação do ser desse
ente deve partir de uma explicitação da existencialidade de sua existência. O que não quer dizer conceber
o Dasein a partir de uma idéia preconcebida de existência. Ao contrário, a Analítica existencial dos
modos de ser do Dasein deve partir de sua medianidade cotidiana. Essa indiferença da cotidianidade do
Dasein deve constituir como fato positivo inaugural de sua analítica. “Denominamos os caracteres
ontológicos dão Dasein de existenciais porque eles se determinam a partir da existencialidade. Estes
devem ser nitidamente diferenciados das determinações ontológicas dos entes que não têm o modo de
ser do Dasein, as quais chamamos de categorias.” (HEIDEGGER, 1964, § 9, p. 80). Heidegger
estabelece as estruturas ontológicas do Dasein como modos da temporalidade, fazendo com que a
questão do sentido e da verdade do Ser seja posta nos limites da existência finita. O Ser só poder ser dito
e pensado nos diversos modos de suas manifestações no horizonte do tempo. O ser do Dasein, sua
essência que é sua existência, impõe que o sentido do Ser em geral, e seu próprio ser, só podem ser
atingidos ou desvelados a partir da compreensão cotidiana do Ser, na qual o Dasein já se move desde
sempre e que, na maioria das vezes, vela o sentido do Ser. A ontologia de Heidegger não constitui um
sistema e o Dasein, embora o seu ser seja sempre e cada vez o meu, não é um sujeito. O Dasein não é um
ponto de partida dado, mas construído fenomenologicamente nas relações que mantém com um mundo. A
compreensão finita que o Dasein tem do Ser não é um atributo ou propriedade do intelecto humano, ela
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é uma dimensão ontológica do Dasein como Ser-no-mundo. Nesse sentido, a compreensão do Ser, na
qual se move o Dasein, não é uma mera experiência psicológica de um sujeito empírico, mas uma
repercussão do Ser sobre si mesmo no espaço instaurado pela existência finita. A relação do Dasein com
o Ser significa: ser existência. Ser um constante arrancamento para aquilo que ele ainda não é. Um sair
para fora de si mesmo que abre a possibilidade da perda e do velamento do Ser na articulação com os
entes, mas que também abre a possibilidade da iluminação do Ser dos entes a partir de tal velamento.

O ser-no-mundo como constituição ontológica fundamental do Dasein

O Ser, segundo Heidegger, se diz sempre de um ente, o que resulta que o interrogado na questão do
ser (Seinsfrage) é o ente. Heidegger esclarece que ente é tudo de que falamos. Tudo de que
compreendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós
somos. O Ser está nesse há explicitado na presença do ente. Mas, pergunta Heidegger: “Em qual dos
entes deve-se ler o sentido do ser? Que ente deve ser o ponto de partida para a questão do Ser? Será que
existiria um ente que possuiria primazia na elaboração da questão do Ser nos limites do tempo? Qual
seria esse ente exemplar e em que sentido possuiria ele a primazia na elaboração da questão do Ser?
(Cf. HEIDEGGER, 1964, § 2, p. 32/9)

A elaboração da questão do Ser exige que se escolha corretamente o ente exemplar ao qual vai ser
endereçada tal questão e qual a forma de acesso conveniente ao ser desse ente. Nesse sentido, segundo
Heidegger, elaborar a questão do Ser significa elucidar o ser daquele ente que interroga pelo sentido do
ser, a partir mesmo de sua medianidade cotidiana, âmbito no qual o ser encontra-se antes de tudo e na
maioria das vezes velado. Na elaboração da questão do Ser existiria, pois, o que questiona e é
questionado, que é o próprio Ser; o perguntado, que é o sentido do Ser e um interrogado, que é o ente ao
qual é endereçada a questão do Ser e que é um existente. Ora, esse ente é aquele que possui em seu ser a
possibilidade de questionar o sentido do Ser em geral, implicando o seu próprio ser nessa questão (Cf.
HEIDEGGER, 1964, § 2, p. 41). Esse ente é o Dasein. Portanto, as estruturas ontológicas desse ente
devem ser explicitadas fenomenologicamente para que a verdade do Ser possa desvelar-se na
compreensão finita e cotidiana que ele tem do Ser. Trata-se, pois, de assegurar um acesso aos modos de
ser originários desse ente que nós mesmos somos a cada momento. “O que se exige é uma apropriação e
asseguramento explícitos do modo devido de se aproximar desse ente. Já se discutiu que ente deve
assumir o papel principal na questão do Ser. Mas como é que esse ente, o Dasein, haverá de se tornar
acessível e deverá ser encarado numa compreensão interpretativa?” (HEIDEGGER, 1964, § 5 p. 42.)

É certo que o Dasein possui uma compreensão de si mesmo, contudo, essa compreensão pré-
ontológica não é um fio condutor adequado ao seu ser e ao sentido do Ser em geral. Devido ao modo de
ser que lhe é constitutivo (Ser-no-mundo), o Dasein tende a compreender seu próprio ser a partir daquele
ente com o qual ele se relaciona de modo essencial, primeira e continuamente, este ente é o mundo. Isto
faz com que haja uma repercussão ontológica do modo como o Dasein compreende o mundo sobre sua
compreensão do Ser. Mas por que Heidegger parte da existência cotidiana desse ente, o Dasein, que nós
mesmos somos a cada momento? Porque em cada momento do existir desse ente, ele coloca em questão
não apenas seu próprio ser, mas o ser em geral. O Dasein é o único ente para o qual o existir e o próprio
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Grupo de Estudo Heidegger

Ser constituem um problema. “A compreensão do ser é ela mesma uma determinação do ser do Dasein.”
(HEIDEGGER, 1964, p. 44)

Isso significa que o Dasein tem, enquanto ele é, uma certa relação com o ser. As vias de acesso aos
modos de ser originários do Dasein devem ser explicitadas sem aplicar de maneira dogmática qualquer
idéia de ser e de realidade, nem aprisionar em categorias lógico-formais seus modos de ser. A evidência
do Cogito cartesiano não autoriza esse acesso, uma vez que faz do Dasein uma subjetividade debatendo-
se num mundo que deve ser controlado. O Dasein não pode ser identificado com o Cogito cartesiano, que
para transcender os limites de sua subjetividade alcançando um critério objetivo de verdade, precisa
afirmar-se na existência de Deus doadora das Idéias Inatas claras e distintas. O acesso ao Dasein deve
permitir que este ente possa mostrar-se em si mesmo e por si mesmo. A fenomenologia9, enquanto um
deixar e fazer ver o que se mostra tal como se mostra, torna-se, assim, o único acesso viável ao ser do
Dasein em sua medianidade cotidiana, desvelando a relação ambígua que ele mantém com o Ser. Nesse
sentido, afirma Heidegger:
... as modalidades de acesso e interpretação devem ser escolhidas de modo que esse ente possa
mostrar-se em si mesmo e por si mesmo (naquilo que é e como é). Elas têm de mostrar o Dasein
em sua cotidianidade mediana, tal como ele é antes de tudo e na maioria das vezes. Da
cotidianidade não se devem extrair estruturas ocasionais e acidentais, mas sim estruturas
essenciais. Essenciais são estruturas que se mantêm ontologicamente determinadas em todo modo
de ser de fato do Dasein. (HEIDEGGER, 1964, § 5, p. 44)

Ao expor a tarefa de uma análise preparatória do Dasein (HEIDEGGER, Ser e Tempo, §9 ao §11),
Heidegger afirma que o primeiro ponto a ser estabelecido é que o ente a ser analisado somos nós mesmos.
E que o ser desse ente é a cada momento o meu (jemeinig). Desde a origem de minha existência, meu ser
me é dado como um dever ser (Zu-sein). Enquanto o Dasein é, trata-se para ele de realizar o seu ser em
cada um dos momentos de seu existir, nos quais ele sempre se coloca em risco. A essência desse ente é
ter-que-ser, eis uma tarefa da qual o Dasein não pode escapar. A maneira como cada um de nós irá
assumir essa tarefa, irá decidir da autenticidade ou inautenticidade de nosso ser. Somente o Dasein
existe, na medida em que recebe como tarefa a realização de seu próprio ser. Estritamente falando, não é
possível dizer de um animal, planta ou mineral que existem, tais entes não podem assumir seu ser
próprio, não possuem uma abertura originária em direção aos entes, pois tal abertura pressupõe uma
abertura ao Ser mesmo. Na Einführung in die Methaphysik (1935), Heidegger pergunta: “Que significa
pois existência? Por esse termo nós anunciamos um modo de ser e, precisamente, o ser desse ente que se
tem aberto para o aparecimento do ser.” (HEIDEGGER, 1969, p. 14).

Heidegger quer mostrar que a idéia de ser implicada na frase: “esta rosa é” não tem o mesmo
sentido da concepção de ser expressa na proposição: “o homem existe”. A razão dessa diferença é que os
entes intramundanos não são originariamente aberto no e para o mundo, o que não permitiria, portanto,

9
Devemos atentar aqui para o conceito fenomenológico de fenômeno, enquanto um mostrar que não é um mero aparecer.
Nada há essencialmente por trás dos fenômenos da Fenomenologia, a não se roque deva tornar-se fenômeno por estar oculto. É
porque os fenômenos não estão dados imediatamente é que se necessita da fenomenologia. O fato é que a essência do Dasein,
sua existência, permanece fora da experiência imediata e das tentativas de conhecimento direto. Portanto, podemos considerar,
com Heidegger, que o fenômeno em sentido fenomenológico é aquilo que não se mostra imediatamente, é aquilo que antes de
tudo e na maioria das vezes, está oculto, mas que enquanto oculto pertence por essência ao que se mostra imediatamente,
constituindo seu sentido e seu fundamento. (Cf. HEIDEGGER, 1964, § 7 p. 37).
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um verdadeiro encontro entre as coisas meramente subsistentes, sem a mediação do Dasein. Somente o
homem pode e Ter que tomar atitude diante de seu poder-ser, colocando sempre em risco seu próprio ser.
O Dasein é sempre essencialmente a possibilidade, por isso ele pode sempre escolher-se ou perder-se na
existência. A possibilidade do Dasein perder-se, ou seja, não possuir-se a si mesmo, não nos remete para
um grau inferior de ser. Dois caracteres do Dasein até aqui foram esboçados: o primado da existência
diante da essência e o fato do Dasein ser sempre e cada vez o meu.

O Dasein, portanto, não se dá no mundo no modo de ser dos entes simplesmente dados. Assim, a
elucidação do ser desse ente deve partir de uma explicitação da existencialidade de sua existência. O que
não quer dizer conceber o Dasein a partir de uma idéia preconcebida de existência. Ao contrário, a
Analítica existencial dos modos de ser do Dasein deve partir de sua medianidade cotidiana. Essa
indiferença da cotidianidade do Dasein deve constituir como fato positivo inaugural de sua analítica.
Heidegger observa que a indiferença da cotidianidade do Dasein não é insignificante, mas um caráter
fenomênico positivo desse ente, pois ela é a interpretação comum e frequente do Dasein numa forma
estabilizada.
A relação do Dasein com o Ser significa: ser existência10, ou seja, ser um constante arrancamento
para aquilo que ele ainda não é. Um sair para fora de si mesmo que abre a possibilidade da perda e do
velamento do Ser na articulação com os entes, mas que também abre a possibilidade da iluminação do
Ser dos entes a partir de tal velamento. Podemos não saber o que é ser, mas quando perguntamos o que é
Ser, já estamos inseridos numa compreensão pré-ontológica do é. “Essa concepção mediana de ser é um
fato” (Cf. HEIDEGGER, 1964 § 2, p. 7). E na medida em que o Dasein circunscreve, pela compreensão
do ser, a relação do sujeito com os objetos do conhecimento, ele expressaria, pois, uma adesão pré-
reflexiva ao mundo, anteposta ao Cogito.

Nesse sentido, o Dasein é antes de tudo um ser-no-mundo, expressão que agora deve ser analisada,
antes de explicitarmos seus momentos constitutivos: a mundanidade do mundo e o ser do ente intra-
mundano, que é propriamente o que nos interessa aqui. Segundo Heidegger, constituição apriorística do
Dasein, que já predomina a partir da análise do seu modo de ser cotidiano, é o Ser-no-mundo. No §12 de
Sein und Zeit, Heidegger expõe uma caracterização prévia do Ser-no-mundo a partir do ser-em como tal.
“A expressão composta Ser-no-mundo mostra que pretende referir-se a um fenômeno de unidade.... A

10
Na Carta sobre o Humanismo, Heidegger retoma em longas passagens o termo ec-sistência na tentativa de explicitar melhor
em que sentido se diz em Sein und Zeit que a essência do Dasein é sua existência: “ ... O estar postado na clareira do ser
denomino eu a ec-sistência do homem. Este modo de ser só é próprio do homem. A ec-sistência assim entendida não é apenas
o fundamento da possibilidade da razão, ratio, mas a ec-sistência é aquilo em que a essência do homem conserva a origem de
sua determinação. A ec-sistência somente deixa-se dizer a partir da essência do homem, isto é, somente a partir do modo
humano de “ser”; pois, apenas o homem, ao menos tanto quanto sabemos, nos limites de nossa experiência, está iniciado no
destino da ec-sistência. É por isso que a ec-sistência nunca poderá ser pensada como uma maneira específica de ser entre
outras espécies de seres vivos; isto naturalmente suposto que o homem foi assim disposto que deve pensar a essência de seu
ser e não apenas realizar relatórios sobre a natureza e história de sua constituição e de suas atividades. ... Em Ser e Tempo (pg.
42) encontra-se a frase grifada: “A essência do ser-aí reside em sua existência”. A frase diz: O homem desdobra-se assim em
seu ser (west) que ele é a “aí”, isto é, a clareira do ser. Este “ser” do aí, e somente ele, possui o traço fundamental da ec-
sistência, isto significa, o traço fundamental da in-sistência ec-stática na verdade do ser. (HEIDEGGER, Carta sobre o
humanismo, 1979, p. 144 a 146)
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impossibilidade de dissolvê-la em elementos, não exclui a multiplicidade dos momentos estruturais que
compõem esta constituição” (HEIDEGGER, 1964, § 12, p. 90-91).

Esse achado fenomenal que é o Ser-no-mundo comporta uma tríplice visualização:

A – O Ser-no-mundo impõe a tarefa de indagar a estrutura ontológica do mundo, determinando a


idéia de mundanidade como tal;

B – O ente que sempre é, segundo o modo de Ser-no-mundo. Investiga-se aqui o que indagamos com
a interrogação quem? Deve-se determinar o quem do Dasein no modo de sua cotidianidade mediana
imerso na ditadura do impessoal;

C – Finamente, deve-se expor a constituição ontológica do ser-em como tal, onde se explicitam os
modos de ser originários que constituem a abertura do Ser-no-mundo, e que são: a disposição, a
compreensão e o discurso. (Cf. HEIDEGGER, 1964, § 12, p. 72).

O fato do Ser-no-mundo referir-se a um fenômeno de unidade não impede a explicitação


fenomenológica de seus momentos estruturais. Como objeto primeiro de sua análise, Heidegger toma o
ser-em como tal. O Ser-em um mundo não significa o estar presente de uma coisa dentro da outra. Ser-
no-mundo não quer dizer que o Dasein é um ente simplesmente dado (Vorhanden) dentro do mundo.
Essas relações de lugar são caracteres que Heidegger chama de categorias. As categorias, ao contrário
dos existenciais, referem-se ao ente simplesmente dado ou ao utensílio – entes que não têm o modo de
ser específico do Dasein – a Existência. O ser-em um mundo é o íntimo permanecer junto a ... o
demorar-se junto de alguma coisa, o morar em ..., o ocupar-se com a manualidade, o preocupar-se com os
outros, o correr o risco de perder-se numa existência inautêntica. É nesse sentido que o Dasein só existe
no, para e com o mundo. De alguma forma somos o mundo no qual sempre já nos encontramos. Não há
sentido dizer que a mesa está próxima à cadeira, não há proximidade entre as coisas, os entes que estão
simplesmente aí. As coisas não existem, elas simplesmente são, ano se comportam em relação às outras
coisas, elas não possuem uma relação de familiaridade entre si. Seu ser ou estar no mundo não coloca em
risco seu próprio ser. Devemos, pois, distinguir a proximidade espacial do estar-próximo das coisas da
proximidade do Dasein com o mundo e as coisas, que é uma familiaridade. “O ser-em significa uma
constituição ontológica do Dasein e é um existencial. Com ele não se pode pensar em algo simplesmente
dado de uma coisa corporal dentro de um ente simplesmente dado( o mundo). O em não significa uma
relação espacial dessa espécie. O em indica morar, habitar, deter-se”. (HEIDEGGER, 1964, § 12, p.
92./73)

Para Heidegger, o ente ao qual pertence o ser-em é aquele ente que eu mesmo sou a cada momento.
Eu sou diz: eu moro, detenho-me junto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele
modo, me é familiar. O ser, entendido como infinitivo de eu sou, isto é, como existencial, significa
morar junto a, ser familiar com... O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser do
Dasein que possui a constituição essencial de Ser-no-mundo. (HEIDEGGER, 1964, § 12, p.
92/73)

A partir desse horizonte do mundo instaurado pela existência do Dasein, os entes simplesmente
dados poderão vir ao seu encontro. Assim, o Dasein em todos os seus modos de ser, no conhecimento
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por exemplo, já está no mundo lá fora. E para que ele realize certas possibilidades de ser é necessário que
antes ele já esteja no mundo. Heidegger procura desconstruir a ontologia tradicional que concebe o
mundo como um Cosmos de coisas naturais presentes. Para Heidegger, o que é dado não são coisas
presentes, mas sim, utensílios. As coisas se oferecem para mim como instrumentos, como sendo para
meu uso e, somente na medida em que eu me sirvo delas, é que o mundo adquire sentido para mim. As
diferentes modalidades do Ser-no-mundo não se reduzem às percepções ou conhecimentos que
pressupõem uma dicotomia entre sujeito e objeto. O mundo dá-se para mim e minha consciência dá-se ao
mundo, como um ter-que-fazer-algo, um re-colocar-algo, um empregar-algo, um empeender-algo.

Para essas modalidades de relacionamentos, Heidegger introduz o termo Cuidado (Cura)11.O


Dasein como ser-junto ao mundo e um ser-com os outros, não é um dar-se em conjunto de coisas que
ocorrem. Aqui não há a mera justaposição de um ente a um outro ente. O ser-junto ao mundo pressupõe
um encontro , no qual o mundo é descoberto na presença que eclode. Na Carta sobre o Humanismo
(1947), Heidegger, numa de suas inúmeras referências a Sein und Zeit, retoma a expressão ser-no-mundo
para explicar seu verdadeiro sentido no contexto da analítica existencial. O filósofo ressalta que afirmar o
ser-no-mundo como constituição ontológica fundamental da humanitas do homo humanus não significa
afirmar que o homem é apenas um ser mundano, no sentido cristão, ou seja, um ser sem transcendência,
afundado na imediatez e finitude do dado. Para Heidegger o que sempre foi pensado com a palavra
transcendente foi o ente supra-sensível, que vale como ente supremo, causa primeira de todos os outros
entes.
“Mundo”, todavia, na expressão “ser-no-mundo”, não significa, de maneira alguma, o ente
terreno, à diferença do celeste, nem mesmo o “mundano”, à diferença do “espiritual”. “Mundo”,
naquela expressão, não significa, de modo algum, um ente e nenhum âmbito do ente, mas a
abertura do ser. O homem é e é homem enquanto é o ec-sistente. Ele está postado, num processo
de ultrapassagem, na abertura do ser, que é o modo como o próprio ser é; este jogou a essência do
homem, como um lance, no “cuidado” de si. Jogado desta maneira, o homem está postado “na”
abertura do ser. “Mundo” é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-
jogado de sua essência. O “ser-no-mundo nomeia a essência da ec-sistência, com vistas à
dimensão iluminada, desde a qual desdobra seu ser o “ec” da ec-sistência... A frase: A essência do
homem reside do ser-no-mundo também não contém uma decisão sobre a hipótese se o homem é,
no sentido teológico-metafísico, um ser deste mundo ou do outro. (HEIDEGGER, , 1979b, p. 167-
68)

Contudo, o Dasein pode ser apreendido como algo simplesmente dado, desde que se despreze a
constituição existencial de ser-em. Nesse sentido, diz Heidegger: “ Não se deve confundir essa
possibilidade de apreender o Dasein como um dado e somente como simples dado com um modo de ser
simplesmente dado, próprio do Dasein. Pois, este ser simplesmente dado não é acessível quando se
desconsidera a estrutura específica de Dasein.” (HEIDEGGER, 1964, p. 93-94). Esse ser-simplesmente-
dado de fato, em relação ao qual o Dasein compreende o seu ser mais próprio, difere da ocorrência
fatual de um ente que é dotado do caráter da existência. Este ser-simplesmente-dado do Dasein exprime

11
Cuidado(Besorgen, Sorge): O Dasein sempre se dá num exercício. Os dois planos que, predominantemente, se desenvolve
o exercício do Dasein promovem relações com dois modos de ser da existência: relações com o modo de ser dos entes
simplesmente dados e ralações com os entes dotados do modo de ser do Dasein. O Dasein ocupa-se com aquilo que
simplesmente é, e preocupa-se com aquilo que existe. A estrutura unificante desses modos de ser podemos denominar
aCura(Sorge). Assim, o Dasein ocupa-se com os entes simplesmente dado e preocupa-se com os outros Dasein, que como ele
possuem o caráter da existência.
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um termo técnico na filosofia de Heidegger: a facticidade, que o filósofo define nos seguintes termos:
caráter fatual do fato do Dasein em que, como tal, cada Dasein sempre é. Através da facticidade, o Ser-
no-mundo do Dasein já se fragmentou em diversos modos de ser-em. Heidegger exemplifica a
multiplicidade desses modos de ser-em através da seguinte enumeração: “...ter que fazer algo com
alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aliciar alguma cisa, fazer
desaparecer ou deixar perder-se em alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar,
discutir, determinar...Esses modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação...” (HEIDEGGER,
1964, § 12 p. 95)

O fato do Dasein ser um ente primeiramente ocupado e preocupado com o mundo e com os outros,
não quer dizer que ele seja um ser prático e econômico à maneira do homo economicus de Marx,
significa que o ser do Dasein deve-se tornar visível em si mesmo como Cura (Cuidado). “Esta expressão
Cura nada tem a ver com as penas, tristezas ou preocupações da vida, que do ponto de vista ôntico,
podem ser encontradas em qualquer Dasein. Tudo isso, assim como a jovialidade e a despreocupação só
são onticamente possíveis, porque ontologicamente o Dasein é Cura(Cuidado).”( HEIDEGGER, 1964, §
12 p. 95). Através da estrutura unificante do Cuidado (Sorge) , os entes naturais e os instrumentos dão-se
ao Dasein como utensílios que são manipulados e nessa manipulação do Dasein com os entes, estes são
velados ou desvelados em seu ser e o mundo emerge como algo prenhe de significação para o homem.
O mundo resplandece, assim, na conexão da totalidade dos utensílios, que se apóiam num último para quê
fundado no próprio Dasein. São as possibilidades do ser do Dasein que conferem sentido às coisas, que
na totalidade de suas significações constituem o fenômeno do mundo. Mas o ser-no-mundo não se resume
no ser-em, ele é também um ser-com (Mitsein)12 os outros existentes. Os outros não são para mim meros
objetos de ocupação, mas de solicitude, preocupação. Ao Dasein pertence o ser-com, e somente sendo
com os outros, numa verdadeira comunidade do povo, o Dasein pode ascender, mediante um salto, à
verdadeira existência autêntica.

Nesse sentido, afirma Heidegger:


O mundo do Dasein libera entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas mas
que, de acordo com seu modo de ser de Dasein, são e estão no mundo em que vêm ao encontro
segundo o modo de Ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São
como o próprio Dasein liberador – são também co-presenças. (HEIDEGGER, 1964, p. 169/158)

Os outros não são os demais fora de meu eu isolado. Os outros são aqueles dos quais ninguém se
diferencia, entre os quais também se está. Assim, o mundo do Dasein é sempre um mundo compartilhado
com os outros, que na maioria das vezes assume o certos de uma presença indeterminada sem sujeito. Um
sujeito sem sujeito que nos tiraniza e nivela todas as possibilidades de nossa existência numa
mediocridade que nos tira toda responsabilidade da escolha. Esse deixar-ser, que constitui a liberdade
como essência da verdade é, na maioria das vezes um não deixar ser, que transforma nossa abertura
(Erschlosesenheit) em clausura. Somente o Dasein pode velar e desvelar o ser dos entes, trazendo a

12
Ser-com(Mitsein) – O ser é o seu sendo, ele é sua dinâmica em exercício. O Dasein é o lugar onde se encontram as
possibilidades dos modos de ser. Daí, todas as suas concretizações na existência exercem uma ação expressa pela preposição
mit. Assim, nunca se dá um ser ou modo de ser isolado. Todo ser é sempre ser-com mesmo na solidão e isolamento. O
Dasein é sempre um co-presença. O mundo é sempre um mundo compartilhado(Mitwelt), o viver é sempre con-vivência.
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verdade ao mundo, servido-se dos instrumentos disponíveis e sendo solícito com os outros. Assim, o
mundo como totalidade de significações que constituem o complexo das relações possíveis do Dasein
assume uma dimensão ontológica básica – o mundo torna-se o lugar para o des-velamento do ente em sua
verdade, na qual ele já esse encontra desde sempre.

O mundo revela-se, pois, como fenômeno na relação primordial do Dasein com os entes
intramundanos e não mais através de uma representação abstrata elaborada pelo projeto matemático de
natureza que constitui a essência da ciência moderna. Mundo, Ser e Verdade são projetos do Dasein
enquanto existência finita que compreende o Ser, habita o mundo e desvela a verdade dos entes. Contudo,
na maioria das vezes e antes de tudo, o Dasein encontra-se imerso na ditadura do impessoal, dissimulando
o sentido do Ser em geral na manipulação com os entes intra-mundanos. Como pura possibilidade de
abertura sobre o Ser, como ente que se define em relação ao seu poder-ser, o Dasein pode escolher ou
deixar que escolham por ele, pode torna-se uma clareira para o desvelamento do ser ou uma prisão, pode
ser luz ou sombra, enfim, pode ser ou não ser.

A relação hermenêutica do Dasein com o mundo


Se o conhecimento do mundo é um modo de ser derivado do Dasein, e se considerarmos a técnica o
âmbito no qual se processa esse conhecimento do mundo hoje, então poderíamos afirmar que em Sein und
Zeit a técnica não passa de um dos modos possíveis do Dasein ser e estar no mundo, não possuindo ainda
o caráter de uma época na história da metafísica, ou seja, do próprio ser. Mas como se dá o conhecimento
do mundo? A tradição metafísica sempre pressupôs em tal fenômeno uma relação dicotômica entre
Sujeito-Objeto. Tal relação de conhecimento, contudo, não coincide com a relação hermenêutica que o
Dasein mantém com o mundo circundante, que não é uma relação exterior entre um suposto sujeito
cognoscente e um mundo cognoscível redutível à representações.
Na medida em que o conhecimento não é nenhuma qualidade externa, então ele deve ser um
fenômeno que se dá dentro do homem numa suposta região chamada consciência. Contudo, cabe aqui
colocar a questão crucial para toda teoria do conhecimento: como o sujeito que conhece sai de sua esfera
interna e chega a outra esfera, a externa? Como se deve pensar o objeto de modo que permita alguma via
de acesso ao sujeito, evitando o salto de uma esfera interior para uma esfera exterior? (Cf. HEIDEGGER,
Ser e Tempo. § 13). Ou seja, como o sujeito cognoscente pode sair de sua imanência e dizer algo com
valor de verdade de um mundo supostamente exterior? Certamente Heidegger, juntamente com toda
tradição fenomenológica, não aceita a solução kantiana para tal questão, que transfere essa relação de
transcendência para a imanência de um suposto sujeito transcendental.

Para Heidegger, todas as tentativas de solucionar tal questão não questionaram o modo de ser do
sujeito que conhece, embora sempre esse modo de ser esteja implícito ao se tratar do fenômeno do
conhecimento. Não se explicita como o caráter ontológico deste estar dentro do conhecimento funda-se
no modo de ser do sujeito que já é no e para o mundo. Não se percebe que o conhecer é um modo de ser
derivado do Dasein enquanto Ser-no-mundo. O conhecimento tem seu fundamento ôntico nessa
constituição ontológica do Dasein como Ser-no-mundo. Nesse sentido, devemos admitir que o conhecer
em si mesmo se funda num já-ser-junto-ao-mundo. Ou seja, o conhecimento do mundo funda-se na
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abertura constitutiva do Dasein enquanto Ser-no-mundo, abertura que permite os entes nos virem ao
encontram, fazendo eclodir o fenômeno do mundo. Esse já-ser-junto-ao-mundo não significa observar um
ente simplesmente dado.

Esse já-ser-junto-ao-mundo permite um encontro com o ente intramundano em sua pura


configuração, o que torna possível uma visualização explícita do que assim vem ao encontro. Essa
visualização retira antecipadamente do ente que vem ao encontro um ponto de vista. Nesse deter-se da
visualização junto ao ente intramundano, abstendo-se de todo manuseio e utilização – cumpre-se a
percepção de um ente simplesmente dado. Esse perceber realiza-se no modo de interpelar e discutir algo
como algo. Essa manutenção perceptiva de uma proposição sobre... já é, em si mesma, um modo de Ser-
no-mundo e não um processo a partir do qual o sujeito criaria para si representações. Ao dirigir-se para...
e apreender algo, o Dasein não sai de uma esfera interior na qual ele estaria encapsulado. Em seu modo
de ser originário o Dasein já está sempre fora “...junto a um ente que lhe vem ao encontro no mundo já
descoberto. E o deter-se determinante junto ao ente a ser conhecido não é uma espécie de abandono da
esfera interna... nesse estar fora, junto ao objeto, o Dasein está dentro...ou seja, é ela mesma que, como
Ser-no-mundo, conhece.” (HEIDEGGER, 1964, § 13, p. 101)

Conhecer algo não é voltar à cápsula da consciência com algo na mão após se ter vagado pela
esfera exterior em busca de alguma coisa. Quando em sua atividade de conhecer, o Dasein percebe,
conserva e mantém, ele permanece fora como existente que é. Seja num mero saber algo, num mero
representar a si mesmo, num puro pensar alguma coisa, eu permaneço fora no mundo, junto aos entes e
com os outros. Heidegger esclarece que o Dasein, ao conhecer, adquire uma nova posição ontológica em
relação ao mundo já descoberto. Essa nova possibilidade ontológica pode tornar-se uma tarefa e assumir,
como ciência, a direção do Ser-no-mundo. Contudo, não é o conhecimento o modo de ser originário do
Dasein relacionar-se com e no mundo, ele funda-se no modo de ser do Dasein como ser-no-mundo. Daí
a necessidade de uma interpretação preliminar dessa constituição ontológica fundamental do Dasein
como ser-no-mundo (Cf. HEIDEGGER, 1964, § 13). Mediante o engajamento pré-reflexivo do Dasein
no mundo, este é o que está aí adiante – não apenas as coisas e os objetos em torno de mim, mas também
o campo potencial de percepções deslocando-se de objeto a objeto, de coisa a coisa, como o horizonte
obscuramente consciente de realidade indeterminada que os rodeia, e com o qual, antes de começar o
trabalho do pensamento reflexivo, me acho de antemão relacionado.

O mundo é ainda o que me circunda e com o que entretenho imediato intercâmbio – as outras
pessoas, as coisas usuais, os animais, os valores. Não existe nada de natural nessa relação pré-reflexiva
com o mundo que antecede a relação epistême entre sujeito e objeto. Esse mundo que está aí diante de
nós não é um espaço físico no qual estão coisas e objetos. Ele não é um ente nem um receptáculo de
objetos. A analítica existencial de Ser e Tempo deixa claro que para que haja o confronto entre um sujeito
e um objeto, é necessário que as coisas nos sejam dadas, e que os entes nos tornem acessíveis num
horizonte de realidade indeterminada já abrangido pelo Dasein. O conhecimento só seria possível
mediante a transcendência da conduta do Dasein, que é um ente originariamente comprometido com o
mundo.
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Após tentarmos descrever a natureza da relação hermenêutica originária que o Dasein mantém com
o mundo, relação que antecede qualquer dicotomia sujeito/objeto, devemos agora acompanhar como se
desvela alguns momentos constitutivos do ser-no-mundo, tais como a mundanidade do mundo e o caráter
de instrumento dos entes intramundanos que nos vem ao encontro no mundo circundante. A explicitação
de tais momentos pode nos servir para determinar em que medida a emergência do mundo e dos entes
intramundanos antecipam ou não a concepção técnica de natureza como fundo disponível, ou seja, como
mera subsistência.

O Mundo Como Projeto Do Dasein

Heidegger começa o terceiro capítulo de Sein und Zeit com a frase: ´O ser-no-mundo será
primeiramente esclarecido pelo estudo do elemento estrutural mundo. (Cf. HEIDEGGER, Ser e Tempo, §
14). Mas o que significa descrever o mundo como fenômeno, como complexo de significações e
remissões baseadas nos modos de ser do Dasein? A descrição fenomenológica do mundo não pode
contentar-se em descrever os entes intramundanos tal como eles se dão. Ela não deve permanecer apenas
no nível ôntico.13
“Descrever o mundo fenomenologicamente significa: mostrar e fixar numa categoria conceptual
o ser dos entes que simplesmente se dão dentro do mundo. O entes dentro do mundo são as coisas,
as coisas naturais e as coisas dotadas de valor. O seu caráter de coisa torna-se um problema; e na
medida em que o caráter de coisa das coisas dotadas de valor se edifica sobre o caráter da coisa
natural, o tema primário é o ser das coisas naturais, a natureza como tal. ” (Cf. HEIDEGGER, Ser
e Tempo, § 14, p. 105/85)
O fato é que mesmo se conseguíssemos uma elucidação do ser da natureza, através da física
matemática, tal elucidação nunca alcançaria a elucidação do fenômeno do mundo. E os entes dotados de
valor? Não serão tais coisas que efetivamente revelam o mundo? Tais coisas, contudo, são também entes
dentro do mundo. Nenhum retrato ôntico dos entes intramundanos nem a interpretação ontológica do ser
destes entes alcançariam, como tais, o fenômeno do mundo. Para Heidegger, a resposta mais imediata e
insuficiente para o problema da natureza do mundo é aquela que começa por enumerar o que há no
mundo. Mesmo que conseguíssemos enumerar da forma mais completa possível todos os entes intra-
mundanos, jamais alcançaríamos o mundo como tal, mas somente isto que há no mundo. Podemos até
mesmo discriminar diferentes regiões de entes e fixar os caracteres distintivos de cada região. Pode-se até
mesmo descriminar aquela região fundamental, a natureza.
Mesmo que servíssemos dos últimos resultados das ciências matemáticas da natureza, ainda assim
não teríamos atingido o mundo propriamente dito, pois o mundo é sempre pressuposto por todas essas
tentativas de apreendê-lo em seu ser.

13
Em Da essência do fundamento (Vom Wesen des Grundes) (1929), Heidegger reporta várias vezes a Sein und Zeit na
tentativa de explicitar o conceito de mundo na expressão ser-no-mundo. Mundo seria o horizonte intransponível em direção ao
qual o Dasein exerce sua transcendência. “Nós designamos aquilo em direção do qual o ser-aí como tal transcende, o mundo,
d determinamos agora a transcendência como ser-no-mundo. Mundo constitui a estrutura unitária da transcendência...Mundo
como totalidade não é ente, mas aquilo a partir do qual o ser-aí se dá a entender a que ente pode dirigir-se seu
comportamentos como se pode comportar com relação a ele. O Dasein se dá a entender a parti de seu mundo quer então
dizer: neste vir-ao-encontro-e-se a parti do mundo o Dasein se temporaliza como um esmo, isto, como um ente que foi
entregue a si mesmo para ser... (HEIDEGGER, 1987, p. 114 a 116)
49
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Grupo de Estudo Heidegger

Em Da essencia do fundamento (Vom Wesen des Grundes) (1929), Heidegger, reportando-se a


Sein und Zeit, afirma que:
“O mundo é, enquanto a respectiva totalidade do em-vista-de de um ser-aí, posto por ele mesmo
diante dele mesmo. Este pôr-diante-de-si-mesmo de mundo é o projeto originário das
possibilidades do Dasein, na medida em que em meio ao ente se de poder comportar em face dele.
O projeto de mundo, porém, é, também transprojeto do mundo projetado sobre o ente. Este prévio
transprojeto é o que apenas possibilita que o ente como tal se revele. “ (HEIDEGGER, 1987, p.
116)

O mundo seria, assim, um caráter do ser do Dasein como ser-no-mundo. Tomar o mundo nesse
sentido, faz surgir várias questões: Seria possível o mundo deixar de ser o lugar físico-espacial onde estão
presentes as coisas? Cada Dasein tem ele primeiramente seu mundo? O mundo como complexo de
significações que emerge da lida cotidiana do Dasein com as coisas e os outros, não ficaria limitado à
subjetividade humana?14 Se cada Dasein possui o seu mundo, como então seria ainda possível um
mundo-comum? Contudo, elucidar o mundo como momento estrutural do Ser-no-mundo é interpelar pela
mundanidade do mundo (Cf. HEIDEGGER, 1964, § 14).
“Mundanidade é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo do
Ser-no-mundo... Assim, a mundanidade já é em si mesma um existencial... Do ponto de vista
ontológico, mundo não é determinação de um ente que o Dasein em sua essência não é. Mundo é
um caráter do próprio Dasein.” (Cf. HEIDEGGER, 1964, § 14, p. 105/.86-87).

Na busca de uma melhor caracterização da palavra mundo, Heidegger parte dos diversos
significados do termo:

1o Mundo é usado como um conceito ôntico, significando, assim, a totalidade dos entes que se podem
simplesmente dar dentro do mundo.

2o . Mundo como termo ontológico e significa o ser dos entes mencionados no item 1. Aqui mundo pode
denominar a região que sempre abarca uma multiplicidade de entes. Assim, o mundo dos matemáticos
compreenderia “a região dos objetos possíveis das matemáticas.”

3o . Mundo pode ainda significar, em sentido ôntico, o contexto em que, de fato, um Dasein vive como
Dasein. Aqui, ora o mundo indica o mundo público do nós, ora o mundo circundante mais próximo e
próprio. Essa significação é ôntica, ela se limita a indicar como o Dasein vive realmente, sem tentar
analisar as estruturas que tornam essa vida possível.
4o Por fim, mundo designa o conceito existenciário-lógico da mundanidade. A própria mundanidade pode
transformar-se no conjunto de estruturas de mundos particulares, embora inclua em si a mundanidade
enquanto tal. (Cf. HEIDEGGER, 1964, § 14, p. 87)

O mundano, portando, indica um modo de ser exclusivo do Dasein e nunca o modo de ser de um
ente simplesmente dado no mundo. Se observarmos a tradição metafísica veremos que junto com a
ausência de uma analítica existencial dos modos de ser do Dasein, passa-se por cima da questão da
mundanidade do mundo. Tenta-se interpretar o mundo a partir da natureza. Ora, o conhecimento da
14
Em Vom Wesen des Grundes, Heidegger esclarece que: “No fim o conceito de mundo deve ser assim entendido, que o
mundo realmente seja subjetivo, mas que justamente por causa disso não caia como ente na esfera interna de um sujeito
subjetivo. Pelo mesmo motivo, porém, não é o mundo também puramente objetivo, se isto significa: fazendo parte dos objetos
que são. (HEIDEGGER, 1987,. p. 116).
50
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região chamada natureza tem o caráter de uma desmundanização do mundo (Entweltlichung der Welt).
Portanto, não é a partir da natureza que compreenderemos a mundanidade do mundo. “O Ser-no-mundo
e, com isso também, o mundo devem-se tornar tema da analítica no horizonte da cotidianidade mediana
enquanto modo de ser mais próximo do Dasein. Para se ver o mundo é, pois, necessário investigar o Ser-
no-mundo cotidiano em sua sustentação fenomenal.” (HEIDEGGER, 1964, § 13, p. 107).

Na busca da mundanidade do mundo, Heidegger parte do mundo mais próximo do Dasein em sua
cotidianidade: o mundo circundante. Pois, a mundanidade do mundo só poderá ser elucidada pela
interpretação fenomenológica dos entes que nos vêm ao encontro dentro do mundo circundante (Umwelt).
Trata-se, pois, de mostrar como o problema da mundanidade escapa às noções tradicionais de mundo, e
como se deve proceder para evitar esse erro. A expressão mundo circundante aponta para uma
espacialidade que deve ser esclarecida pela espacialidade do mundo. “Ora, a ontologia tentou justamente
interpretar o ser do mundo como res extensa, partindo da espacialidade. É em Descartes que se mostra a
tendência mais extremada para uma ontologia do mundo desta espécie, ontologia edificada em oposição
à res cogitans, que, porém, não coincide, nem do ponto de visa ôntico nem ontológico com o Dasein.”
(HEIDEGGER, 1964, § 14, p. 107).

Mas qual seria o modo de ser dos entes intramundanos que nos vêm ao encontro no mundo
circundante? Ora, os entes primeiramente aparecem em sua disponibilidade, em sua manualidade, no
âmbito de um complexo de utensílios, a tarefa é, pois, desvelar o ser desse ente com o qual antes de tudo
e na maioria das vezes o Dasein se ocupa em sua existência cotidiana – o instrumento.

Como se desvela o ser do instrumento no mundo-circundante foge aos objetivos desse texto
introdutório, fica o convite ao leitor para degustar a própria obra Ser e Tempo.

Capítulo – III

A QUESTÃO DA TÉCNICA15

Minha intenção é conduzi-los por algumas trilhas abertas pelo pensar heideggeriano tomando como
fio condutor o aparecimento da questão da Técnica em diferentes momentos desse pensamento que se
pretende pós-metafísico. Desde já é preciso deixar claro que ao abordar a questão da técnica, Heidegger
não se interessa em realizar uma leitura antropológico-instrumental de tal fenômeno e de seus efeitos
práticos. Para o filósofo, a tarefa que se imporia no momento seria tentar refletir em que sentido a Era da
Técnica consuma toda história de errância da Metafísica Ocidental e qual a natureza do pensamento apto
a colocar em questão essa essência, até então, impensada da Técnica.
Reconheço que na presente exposição mobilizei textos, conceitos e questões que são motivos de
polêmicas entre os próprios especialistas e estudiosos de Heidegger. Portanto, não tenho a pretensão de
esgotar aqui as inúmeras implicações dos problemas e conceitos que decorrem da questão da Técnica em

15
Esse texto é parte de uma palestra proferida na PUC-GO – Programa de Pós Graduação em Educação – Junho de 2011.
51
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Heidegger. Muitas das questões aqui tratadas permaneceram em aberto para o próprio Heidegger,
constituindo caminhos de um pensamento que se reluta em concretizar-se numa doutrina pronta e
acabada. Um pensar que em cada novo texto repensa o já pensado. Como muito bem observou Hannah
Arendt, o pensar de Heidegger tem uma qualidade de abertura que lhe é exclusiva. Heidegger jamais
pensa sobre alguma coisa, ele pensa alguma coisa, não com o objetivo de descobrir um solo último e
seguro, mas na tentativa de abrir caminhos, propor tarefas (Cf. Arendt, Homens em tempos sombrios. op.
Cit.). Esses caminhos, muitas vezes, como as sendas nas florestas, não levam a
lugar algum. Mas o que importa aqui é o estar a caminho na companhia de um pensador com o qual ainda
se pode aprender a pensar.
Um pensador que numa época cada vez mais dominada pela mentalidade positivista e seu correlato,
o pensamento calculador, ousou retomar a velha e antiga questão do Ser, conferindo-lhe o status de
questão-guia da filosofia. (Cf. HEIDEGGER, 1964). Todas as demais questões, entre elas a questão da
técnica, são envolvidas e se nutrem do pathos dessa questão fundamental. Uma advertência preliminar: ao
tratar de qualquer tema ou questão no âmbito do pensamento heideggeriano, estamos lidando com um
filósofo cujo próprio status filosófico é questionado por aqueles que insistem na cumplicidade de tal
pensamento com o crime extremo, reportando-se ao engajamento temporário do filósofo na “revolução
nacional-socialista” durante seu reitorado na Universidade de Freiburg em 1933.16.
A própria natureza do objeto de investigação da filosofia de Heidegger: um sentido de Ser que se
encontra oculto na existência cotidiana e esquecido na história da filosofia, torna ainda mais obscuro o
pensar e o dizer do filósofo, tornando quase que impossível realizar aquilo que ele exigia de todo
interprete – compreender os autores melhor do que eles mesmos.

1. A técnica como fase terminal da metafísica


Durante meu mestrado sob orientação do professor Zeljko Loparic na Unicamp (1996-1999), pude
aprofundar uma pesquisa que já me ocupava há algum tempo e tinha como objetivo básico delimitar no
vasto conjunto de da obra heideggeriana uma bibliografia básica que reunisse alguns textos nos quais a
questão da técnica e a superação (Überwindung) 17 da metafísica fossem abordadas da forma mais "clara"
possível. Tais textos deveriam, ainda, compreender momentos distintos na evolução do pensamento
heideggeriano, favorecendo uma compreensão mais abrangente da questão da técnica e do próprio
percurso da meditação heideggeriana. Nesse caminho de investigação, no qual ainda me encontro, a

16
Sobre o tema - técnica e política em Heidegger, remeto o leitor às reflexões de Silvio Vietta presentes em sua obra
Heideggers Kritik am Natiosozilismus und an der Technik. Para Vietta, uma análise escrupulosa dos textos demonstra que
existiria uma implicação entre o aprofundamento da reflexão sobre a técnica moderna e a história da ciência e o distanciamento
crítico de Heidegger do nacional-socialismo, que não passaria no plano político de uma forma aberrante do gigantismo e da
violência explicita ou implícita do aparato técnico-científico que estende seu domínio por todo planeta. Cf. VIETTA, Silvio.
Heideggers kritik am Natiosozilismus und na der Technik. Tubingen: Niemeyer, 1989. Conferir também resenha e algumas
considerações críticas acerca da obra de Vietta elaboradas pelo prof. Dr. Oswaldo Giacoia - Cf. GIACOIA, Oswaldo. Notas
sobre técnica no pensamento de Heidegger. Op. Cit. Mar/1998, pp. 97 - 108.
17
Überwindung (Superação/Ultrapassamento) – Windung implica que toda Überwindung (superação) volta-se para aquilo que é
superado e o apreende em sua determinação própria – a metafísica como esquecimento do Ser. Esse voltar sobre a coisa a ser
superada (a metafísica) não significa um permanecer junto a ela. Esse giro enquanto dinâmica da própria superação pressupõe
a elevação história da metafísica a uma outra essência e uma sondagem em seu próprio fundamento. Esse voltar-se para a coisa
a ser superada é uma virada (Wendung). No início de Metaphysik und Nihilismus (GA 67), Heidegger afirma que a superação
(Überwindung) da metafísica deve tornar experienciável o “abandono do ser característico do ente” que tem lugar no interior
do predomínio do ente que vigora na história da metafísica.
52
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questão da técnica é o fio condutor para compreendermos a nós mesmo e nosso tempo sob o domínio do
pensamento calculador.
Entretanto convido desde já os leitores a compreenderem, a ouvirem a expressão “questão da
técnica” da mesma forma que Heidegger nos convida para ouvir e pensar a “Seinsfrage” (A questão do
Ser), ou seja, no duplo sentido do genitivo objetivo e subjetivo. A questão da técnica não é apenas uma
questão que tem a técnica como objeto, mas é a própria técnica, enquanto manifestação epocal do próprio
Ser, que interroga a si mesma nessa questão.
Mas quando a questão da técnica teria surgido de forma explícita no percurso do pensamento
heideggeriano? Se reportarmos à analítica existencial de Ser e Tempo (1927), mais precisamente as
descrições fenomenológicas dos entes intramundanos em sua manualidade/instrumentalidade
(Zeuglichkeit) e do mundo em sua mundanidade (Weltlichkeit) (Cf. HEIDEGGER, 1964, § 14 a §18; §22
a §24), observaremos que a questão da técnica não foi explicitamente tematizada em tal obra.
No mundo constituído pelo homem enquanto ser-aí, esse ocupar-se enquanto um deixar-ser, deixar-
surgir o ente num mundo já previamente descoberto, em nada se assemelharia a intervenção provocadora
que a técnica promove no mundo dos entes. Para questionar a essência ainda impensada da técnica
moderna, buscando ao mesmo tempo uma alternativa ao pensamento calculador que desconstrua o modo
de presentidade (anwesenheit) por ela imposta, Heidegger viu-se obrigado a ultrapassar os limites da
analítica existencial de Ser e Tempo. Isso não significa que na fenomenologia do instrumento já não
estivesse clara e operante a tarefa de uma destruição (Cf. HEIDEGGER, 1964, , § 8) da concepção da
ontologia tradicional.
Assim, uma de minhas hipóteses de trabalho no mestrado foi que as “destruições” tanto da noção
de mundo em Descartes quanto da noção de Verdade (§44), poderiam ser consideradas antecipações das
tentativas posteriores do filósofo de “destruir” o modo de presentidade imposto pela técnica. Pois, a
técnica como fase terminal da metafísica não seria senão a consumação da metafísica do sujeito que
começa com o sujeito puro cartesiano, passa pelo sujeito transcendental kantiano até o além-homem de
Nietzsche. Todas essas épocas da metafísica corresponderam a uma determinada concepção de verdade e
experiência da totalidade do ente.
O que levantamos nas leituras das fontes primárias e literatura crítica é que a técnica só poderá ser
devidamente questionada por Heidegger quando, no início dos anos 30, a partir de seu encontro com
Ernst Jünger, o filósofo percebe que a compreensão do fenômeno da técnica exigiria uma
interpretação/rememoração do Ser e de sua verdade que se desdobra ao longo da história da metafísica.
Heidegger empreendeu essa rememoração de alguns momentos fundamentais da metafísica na tentativa
de compreender como tais momentos e posições metafísicas teriam conduzido à dominação incondicional
da técnica moderna sobre a totalidade do ente.
Mas quais teriam sido as reais motivações que levaram Heidegger a colocar em questão a técnica
moderna? Certamente entre tais motivações estariam algumas idéias centrais de Ernst Jünger defendidas
em obras como Mobilização total (Totale Mobilmachung) (1930) e O trabalhador (Der Arbeiter) (1932),
Jünger concebe a técnica à luz da Vontade de Poder nietzschiana corporificada na figura do trabalhador.
O próprio Heidegger reconhece que a questão da técnica emerge nessa época em seu pensamento sob a
inspiração dessas obras de Jünger. A partir desse contato, o filósofo procurou refletir um fenômeno que
53
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hoje atinge dimensões planetárias - a mobilização total do mundo pela técnica. Tal fato colocou a
necessidade de uma retomada da história da metafísica enquanto história do esquecimento do Ser, com o
objetivo de compreender a possibilidade de ultrapassar o império da técnica moderna.
Já no Discurso de Reitorado (Die Selbstbehauptung der Deutschen Universität) 18 (1933), ainda sob
influência de Jünger, Heidegger fala de um lugar de origem do pensamento do Ser. Entretanto, nesse
momento esse lugar não se articularia mais no âmbito da existência finita do existente humano, mas
mediante uma vontade que teria se manifestado no começo da filosofia grega.
Heidegger não permaneceria por muito tempo nesse caminho de retorno aos gregos proposto no
Discurso de Reitorado. No final da década de 30, o filósofo reconhecerá que o Discurso de Reitorado
teria falhado ao não colocar em questão a essência não técnica da técnica moderna e ao não perceber que
a Vontade de Potência, que caracteriza a técnica e a ciência moderna, já estava presente na origem da
filosofia da grega. No Tudo é água de Tales já imperava um ataque violento, que obriga tudo o que há a
se revelar como algo disponível ao poder provocador da técnica.
Mas que sentido assume o termo técnica no âmbito do pensamento heideggeriano?
Haveria sentido falar em essência não técnica e impensada da técnica? Reportemos ao texto da
famosa conferência pronunciada pelo filósofo em 1953 sob o título A pergunta pela Técnica (Die Frage
nach der Technik.) na tentativa de compreender o fenômeno da técnica para além dos limites de uma
concepção antropológico-instrumental e em sua relação com a téchne grega. O filósofo começa
perguntando pelo ser do instrumento. O que é o instrumento e qual o âmbito no qual algo se desdobra
como um meio e como um fim. Ora, “onde fins são perseguidos e meios são empregados, onde domina o
instrumental, ali impera a causalidade (Ursächlichkeit). (HEIDEGGER, Essais et Conférences, 1958, p.
45). Portanto, perguntar pelo ser do instrumento, leva-nos a questionar o que seja a causalidade. O termo
grego  não significa efetuar, produzir um efeito, mas sim o estar comprometido, o ser responsável,
ser culpável de... algo vir à presença e desvelar-se a partir de um estado de velamento anterior. Os quatro
modos de ocasionar deixam, pois, algo vir à pre-sença (An-wesen), conspiram para o aparecimento de
algo que se encontrava oculto. A poiesis é esse pro-duzir (Her-vor-bringen) que não se limita ao fazer
artístico nem ao fazer técnico-manual, pois nos remete à própria physis. Nesse poder descobrir, trazer à
presença, estaria a essência da téchne que, portanto, manteria uma relação essencial com o fenômeno da
verdade enquanto des-velamento (alétheia) do ente em seu ser.
A herança longínqua da téchne grega é a técnica moderna, que é, também um desabrigar, mas que
não se desdobra num levar à frente, no trazer à presença, no sentido da poiesis. O desabrigar imperante na
técnica moderna é um desafiar (Herausfordern) que estabelece para a natureza a exigência de fornecer
energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Entretanto, esse descobrimento mesmo, no
seio do qual o poder desafiante da técnica se desdobra, nunca é algo feito pelo homem, ao contrário, o
homem é ele também provocado pela essência da técnica - o Ge-stell (Armação). Esse modo de
desabrigar da técnica moderna é um destino (Geschick) que nunca é, porém, a fatalidade de uma coação,
pois o homem se torna livre na medida em que pertence ao âmbito desse destino. Esse destino do
desabrigar traz em si um perigo, que não é em si qualquer perigo, mas é o perigo. A explicitação da

18
Cf. HEIDEGGER, M. A auto-afirmação da Universidade alemã. Trad. Fausto Castilho. Op. Cit. 1997. (Edição Bilíngue).
Cf. HEIDEGGER, M. Die Selbstbehauptung der Deutschen Universität. Op. Cit. GA 19.
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natureza desse perigo e o que significa pensar para além da Metafísica, ou seja, no âmbito de seu
ultrapassamento.
Em minha tese de doutorado “O processo de objetificação na metafísica e na ciência moderna -
perspectivas para uma experiência não objetificante das coisas” tentei a mostrar que a desconstrução
heideggeriana desse processo de objetificação [Vergegenstandlichung] possibilitaria a instauração de uma
dimensão pré-reflexiva na qual se daria o encontro com realidades irredutíveis à objetidade constituída
por um sujeito transcendental ou pelo pensamento calculador a serviço da técnica. Esse processo de
objetificação é inseparável do advento do Sujeito moderno com Descartes, ou seja, do fato de o homem
tornar-se sujeito e do mundo tornar-se objeto redutível a uma imagem pela via da representação o que,
por sua vez, não passaria de uma consequência da essência da técnica no movimento de sua instalação
planetária. Mas seriam as possibilidades e perspectivas abertas pela reflexão heideggeriana na busca de
experiências não objetificantes do ser, da verdade e das coisas. Qual seria o caráter do pensamento apto a
ultrapassar esse processo de objetificação no momento de sua consumação na Era da técnica, instaurando
um novo começo em nossa história de povo Ocidental?
Que tarefas e desafios são colocados ao homem atual também convertido à condição de matéria
prima?
Na tentativa de responder tais Heidegger rememora alguns momentos fundamentais do processo de
objetificação ao longo da tradição Ocidental.
Para concluir falemos um pouco desse lugar que é o nosso – a universidade.

Sobre a Universidade na Era da técnica


Não há como negar a atualidade de uma constatação/diagnóstico feita por Heidegger em 1929 na
conferência Was ist Metaphysik? (Que é metafísica?) sobre essa universidade da era da técnica. Ela não
passaria do resultado da fragmentação da ciência numa diversidade de especialidades e disciplinas que
são artificialmente reunidas em Universidades e Faculdades. Na realidade, constata o filósofo,
desapareceu o enraizamento das ciências, da universidade e do próprio homem no mundo da vida
(Lebenswelt) (Cf. HEIDEGGER, 1979b). O fato é que a universidade na Era da técnica planetária corre o
sério risco de se tornar uma instituição técnica determinada por princípios tais como: funcionalização,
automação, burocratização e informação. A própria concepção de homem que subjaz ao funcionamento
das universidades na chamada Sociedade do conhecimento, o reduz à condição de animal de trabalho
(arbeitendes Tier), ou material humano (Menschenmaterial) (Cf. HEIDEGGER, 1987).

Nesse sentido, veremos que o caráter radicalmente técnico de nossa época faz da universidade um
dispositivo tecnológico semelhante a uma fábrica ou a uma agência prestadora de serviço, que privilegia
em suas grades curriculares uma concepção meramente técnica e científica do mundo natural e humano.
O pior é que nos iludimos de que, sob a mediação da técnica, podemos controlar e dispor da totalidade
das coisas conforme nossa vontade. Ora, constataremos, com Heidegger, que a força que organiza isso
tudo, conferindo coesão à sociedade, é uma vontade de potência cujo único objetivo, como já observou
Nietzsche, seria seu próprio engrandecimento, ou seja, o aumento de seu próprio domínio sobre a
totalidade dos entes.
55
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Infelizmente, essa disponibilidade incondicional de todas as coisas à fúria da técnica faz com que a
universidade deixe de ser um poder espiritual decisivo na constituição de uma verdadeira nação, de um
verdadeiro espírito do povo (Volkgeist). Enquanto instituição organizada tendo as leis de mercado como
condição e a formação de incompetentes sociais(Chauí) como resultado, a universidade tem agora como
missão básica a formação desse animal de trabalho – o homem, que se converte em material humano que
deve ser preparado para render o máximo no processo de produção, ou ser descartado como uma espécie
de ruído que compromete a otimização da performance do sistema.

O fato é que hoje proliferam diversas formas de se falar em crise da razão e seus conceitos
operatórios, o que exigiria uma nova universidade para a formação de um novo tipo de homem adaptado
a uma realidade na qual a única coisa permanente é a própria impermanência e transitoriedade das coisas.
Infelizmente, esses novos paradigmas, que instauram novas formas de adquirir, armazenar e transmitir
conhecimentos, nem sempre são considerados ou compreendidos pelos gestores, professores e alunos em
nossas escolas e universidades. Esse fato torna ainda mais urgente e relevante a questão guia desse artigo:
Que desafios se colocariam à universidade nessa época de emergência de novos paradigmas e no âmbito
da chamada sociedade do conhecimento?19 Em que medida essa universidade pode ser crítica e
inovadora em relação à crescente padronização e especialização do conhecimento num mundo cada vez
mais uniforme e esquadrinhado pelo cálculo?

Como não poderia deixar de ser, a universidade, seja ela pública ou privada, colabora hoje nessa
mobilização planetária que cria o mundo uniforme do cálculo, na medida em que se contenta, ainda que
de forma deficiente, em preparar uma mão de obra bem treinada e qualificada que satisfaça as exigências
desse deus todo-poderoso chamado mercado. Apesar da revolução epistemológica que vivemos nesse
início de milênio, com a emergência de novos paradigmas no campo das ciências, em nossas
universidades prevalece ainda a valorização extrema, quase que obsessiva, da eficácia e eficiência no
funcionamento dos dispositivos tecnológicos, entre os quais se encontraria a própria universidade. A
busca desenfreada por mais eficácia, eficiência e produtividade, exige a prática sistemática da competição
com os outros e consigo mesmo.

Nesse sentido, a eficácia incondicionada e a competição tornam-se critérios últimos de


hierarquização, ordenação e avaliação dos diversos dispositivos tecnológicos, entre eles a universidade e
o próprio homem. O mais inquietante é que não está em nossas mãos mudar tal situação. Nossas formas
de pensar, falar e agir enquanto gestores, professores e alunos podem apenas corresponder e obedecer aos
imperativos impostos pelo domínio planetário da técnica. O fato é que a missão tecnocrática assumida
pelas universidades atuais, que se contentam em preparar mão de obra para o mercado de trabalho, não é
responsabilidade de nenhum sujeito ou instituição determinada, não é fruto de uma decisão arbitrária de
algum tecnocrata. Numa perspectiva heideggeriana, a universidade e todas as dimensões da existência
humana estão hoje sujeitas à manifestação época do próprio ser no domínio planetário da técnica.

19
Sociedade do Conhecimento é a forma brasileira de traduzir Sociedade da Informação ou Super Estrada da Informação,
expressões cunhadas nos anos 90 pela Comunidade Econômica Européia e os Estados Unidos com o objetivo de planejar ou
concentrar esforços na construção de uma infra-estrutura global da informação.
56
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O que seria necessário fazer, dentro das limitações impostas por nossa condição de “funcionários da
técnica”, para que a universidade volte a constituir-se em genuíno e autêntico poder espiritual? Como
fazer da universidade a mais alta escola do povo apta a formar homens a altura das tarefas e desafios de
nosso tempo? A questão da fragmentação da universidade em departamentos, por exemplo, reflexo da
inteligência cega e do predomínio do discurso da competência, sempre foi questionada por Heidegger
quando o pensador se interrogava sobre a missão da universidade.

Hoje observamos perplexos e impotentes os efeitos da redução da razão a condição de “inteligência


cega” (Morin) e à sua dimensão “instrumental”, técnico-científica, que deseja compulsivamente dominar
e controlar a natureza, a sociedade e o homem através do calculo e da planificação. O homem é
transformado numa primeira e fundamental matéria-prima numa época de hiper-realização do real pela
imagem e uniformizada pelo pensamento calculador. Portanto, numa época em que a ciência é obrigada a
reconhecer que uma visão puramente objetiva da realidade é uma ilusão, ainda que essa realidade seja re-
construída ou simulada pelas teorias científicas, nada mais oportuno do que tentar compreender o
fenômeno da técnica e as demais ciências numa perspectiva heideggeriana e a partir de um contexto em
que proliferam discursos e teorias que proclamam a passagem do paradigma cartesiano-newtoniano,
mecanicista e determinista, da “ordem a partir da ordem”, para o modelo da “ordem a partir do
caos/ruído/acaso”. Uma nova concepção da realidade sustentada por uma concepção mais holística,
sistêmica, complexa e interdisciplinar de uma realidade reabitada pelo mistério e processos irredutíveis ao
cálculo.

Cada vez mais se desconfia de um suposto sujeito universal portador de um saber objetivo de uma
suposta realidade apreendida tal como é. As experiências traumáticas de duas guerras mundiais, a
barbárie nazista e o extermínio industrial de pessoas por motivos racistas, fizeram com que os homens do
século XX questionassem se realmente existiria progresso na história conforme leis lógicas que poderiam
ser compreendidas. Entretanto, em meio a essa desconfiança em relação à técnica e às ciências, cada vez
mais as relações entre os homens, o trabalho e a própria inteligência dependem da metamorfose
incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. A Escrita, a leitura, a visão, a audição, a
criação e a aprendizagem são capturados e mediatizados por uma informática cada vez mais avançada
que exige ser pensada e questionada em seus pressupostos e condições de possibilidade.

Mas o que incomoda e inquieta é o fato de cada vez mais, como já havia constatado Heidegger no
início do Século XX, a existência deslizar para um mundo sem profundidade. Todas as coisas escorregam
para um mesmo nível, para uma superfície. Tempo tornou-se instantaneidade. A dimensão dominante
tornou-se a da extensão e do número. Doravante, capacidade quer dizer o exercício de uma rotina,
suscetível de ser aprendida por todos, conforme certo esforço. Essa avalanche uniformizadora da técnica e
das ciências manifesta-se na forma de uma transformação do espírito em inteligência instrumental, uma
mera habilidade ou perícia no exame, no cálculo e na avaliação das coisas, com o objetivo de transformá-
las, reproduzi-las e distribuí-las em massa.

Por fim, cabe ressaltar que Heidegger sempre manifestou a plena consciência da inutilidade de
qualquer espécie de ativismo ou revolta diante da técnica e das ciências, sob pena de cairmos na
57
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armadilha do pensamento calculador. Não temos nada a fazer para evitar ou amenizar os efeitos
devastadores do domínio planetário da técnica e da alienação crônica das ciências no mundo dos signos,
só nos restaria, segundo Heidegger, esperar. Uma espera que não significa submissão ou resignação, mas
ue nos convoca para tomar decisões, assumir tarefas. Que decisões? Que tarefas?
58
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Capitulo IV

O fim da filosofia em tempos de indigência20

Duas questões colocadas pelo filósofo Martin Heidegger[1889-1976] na conferência Fim da


Filosofia e tarefa do pensamento (Cf. HEIDEGGER, 1987) serviram de fios condutores nesse momento
de nossa reflexão: primeiro, em que medida a técnica estende hoje seu domínio por todo planeta fazendo
com que a Filosofia encontre seu fim através de sua realização nas ciências tecnizadas? Segundo, qual
seria a tarefa de uma nova forma de pensar capaz de romper com a lógica e a gramática que governam
toda tradição do pensamento Ocidental? Nossa intenção não é oferecer respostas definitivas para tais
questões, mas tomá-las como caminhos para se compreender melhor os desafios de nosso tempo e a nós
mesmos.

Ao pensar o fim da filosofia na era da técnica, tomamos como pressuposto a concepção


heideggeriana de técnica: a técnica não se reduz a essa parafernália eletrônica e a esse amontoado de
máquinas instaladas a nossa volta. Na realidade, na visão de nosso filósofo, a era da técnica seria a última
época da Filosofia e nos adviria como algo que nos é destinado, enviado, escapando, portanto, ao arbítrio
humano. Isso não significa que a técnica seja uma coisa neutra, tal representação, sustenta Heidegger,
deixa- nos completamente cegos para a essência ainda impensada da técnica, onde se aloja o perigo. (Cf.
HEIDEGGER, 1958)

Paradoxalmente, é justamente nessa situação de extrema indigência e penúria que se abriria a


possibilidade do advento de uma nova forma de ser, pensar e falar a partir mesmo do fim da Filosofia.
Mas em que medida a Filosofia teria encontrado o lugar de seu fim no caráter científico com que a
humanidade se realiza na praxis social? Não podemos esquecer que o caráter específico desta
cientificidade é de natureza cibernética, quer dizer, técnica. Ora, na medida em que a nova ciência
fundamental é a cibernética – teoria do controle, da planificação e de organização do trabalho humano, o
domínio sobre o saber é exercido pelas operações e modelos do pensamento representacional calculador.
Assim, o fim da filosofia mediante sua realização nas ciências tecnizadas poderá significar muitas coisas,
menos o fim do próprio pensamento. Mas qual a natureza desse pensamento meditativo? Estaria ainda
reservada a um tal pensamento uma tarefa que nem a filosofia nem as ciências poderiam realizar? (Cf.
HEIDEGGER, 1987).

Antes de mais nada é preciso esclarecer que, segundo Heidegger, a penúria/indigência de


nossa época está no fato dela estar sob o domínio do pensamento calculador. Nossa época não pensa,
apenas planifica e calcula conforme uma vontade de Vontade que, como já vimos, a semelhança da
vontade de potencia em Nietzsche, tem como único objetivo seu próprio engrandecimento. Contudo, é no
âmbito mesmo dessa indigência e penúria que surge a possibilidade do advento de uma nova forma de

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Resultado de pesquisa realizada em 2009 pela Universidade Estadual de Goiás – UEG sobre o tema UMA ABORDAGEM
HEIDEGGERIANA DO FIM DA FILOSOFIA E DA TAREFA DO PENSAMENTO NA ERA DA TÉCNICA
PLANETÁRIA.
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pensar e dizer mais originárias que poderão nos libertar desse desterramento e sensação de estranhamento
diante de um mundo cada vez mais uniformizado pelo domínio planetário da técnica. Já mostramos que
na perspectiva heideggeriana a técnica transcende a concepção antropológico-instrumental da mesma
concebida enquanto meio/instrumento submetido a vontade humana para atingir fins que o próprio
homem se propõe.

O homem não é o sujeito da técnica, mas seu funcionário. Ele é, na verdade, a primeira e
fundamental matéria prima submetida a mobilização total gerada pela técnica por toda crosta terrestre. A
técnica seria na realidade um princípio epocal/metafísico que determina hoje todas as formas de pensar e
dizer nosso ser e estar no mundo e nossas relações com as coisas. E esse fenômeno do domínio planetário
da técnica marca a ultima época da metafísica na qual o esquecimento do ser atinge sua plenitude e a
filosofia encontra seu fim no mundo objetivado do cálculo e da planificação total. Entretanto, é
justamente em meio a essa extrema indigência que se abriria, segundo Heidegger, a possibilidade de
uma nova tarefa ao pensamento - pensar a essência impensada da técnica e a clareira (Lichtung) na qual
acontece a co-pertença Ser e homem.

Se é verdade que a natureza do saber filosófico é extremamente diferente do caráter de


qualquer outro tipo de conhecimento verificado e confirmado a todo momento por sua eficácia, então
como seria possível o fim da filosofia acontecer mediante sua diluição nas ciências tecnizadas?
Heidegger responde tal questão, constatando que no reino planetário da técnica, a filosofia como
Metafísica teria atingido suas “possibilidades supremas” dissolvendo-se no surto crescente das ciências
que esvaziaram a problemática filosófica (HEIDEGGER, 1987, p. 71). A Filosofia transforma-se em
ciência empírica do homem e de tudo que pode tornar-se objeto disponível para sua técnica, pela qual ela
se instala no mundo. Fim da Filosofia seria, portanto, o lugar onde se concentra o todo de sua história
como metafísica em sua extrema possibilidade. Para Heidegger, esse todo da História da Filosofia é
determinado pelo pensamento de Platão, ainda que em diferentes figuras. “A metafísica é platonismo.
Nietzsche caracterizou sua filosofia como platonismo invertido. Com a inversão da metafísica, que já é
realizada por Karl Marx (1818-1883), foi atingida a suprema possibilidade da Filosofia. A Filosofia
entrou no seu estágio terminal.” (HEIDEGGER, 1987, p. 72).

O crescente domínio dos diversos setores da realidade pelas ciências seria, segundo
Heidegger, um fenômeno essencial que conduziria a filosofia ao seu acabamento: o que seria a tecnologia
senão a metafísica da Era atômica? A Filosofia, portanto, teria encontrado o lugar de seu fim no caráter
científico com que a humanidade se realiza na praxis social. Ora, o caráter específico desta cientificidade
é de natureza cibernética, quer dizer, técnica. Na medida em que a nova ciência fundamental é a
cibernética – teoria do controle de planificação e de organização do trabalho humano, o domínio sobre o
saber é exercido pelas operações e modelos do pensamento representacional calculador. Isso é tão
evidente que:
“Não é necessário ser profeta para reconhecer que as modernas ciências que estão se instalando
serão, em breve, determinadas e dirigidas pela nova ciência básica que se chama cibernética. Esta
ciência corresponde à determinação do homem como ser ligado à praxis na sociedade. Pois ela é a
teoria que permite o controle de todo planejamento possível e de toda organização do trabalho
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humano. A cibernética transforma a linguagem num meio de troca de mensagens. As artes tornam-
se instrumentos controlados e controladores da informação. (HEIDEGGER, 1987, p. 72)

Mas o que mais incomoda na era cibernética é a falta de um questionamento da essência da


técnica moderna, que se impõe cada vez mais através de sua inegável eficácia e utilidade. E essa atitude
consolida-se na exata proporção em que mais decisivamente a técnica marca e orienta todas as
manifestações no planeta e faz imperar o elemento racional e os modelos próprios do pensamento que
apenas representa e calcula. Contudo, essa diluição da filosofia nas ciências tecnizadas não significa o
fim do próprio pensamento. Um questão se insinua aqui: Será que em nossa época foram realizadas
todas as possibilidades em que o pensamento da Filosofia apostou? Ou existiria para o pensamento, além
desta última possibilidade (a dissolução da Filosofia nas ciências tecnicizadas), uma primeira
possibilidade, da qual o pensamento da Filosofia não foi capaz de experimentar e assumir propriamente?
(Cf. HEIDEGGER, 1987, p. 72). Mas qual seria a natureza desse pensamento meditativo que prepara a
superação da filosofia e da técnica planetária? Enfim, estaria ainda reservada a um tal pensamento uma
tarefa que nem a filosofia nem as ciências poderiam realizar?

1. O perigo e o que salva – o advento do pensamento originário

O caráter do pensamento originário

Na essência da técnica impera o perigo (Gefahr) que é desconhecido desse mesmo homem que se arroga
ser o senhor e mestre da natureza e dominador da terra. Contudo, ele não encontra mais a si mesmo, isto
é, não encontra mais a sua essência em nenhum lugar, apesar de se ver em tudo lugar. Entretanto, esse
perigo que se aloja na essência da técnica não deve conduzir a uma condenação moral da mesma ou a sua
pura e simples negação como algo demoníaco, pois existe o mistério de sua essência. O inquietante é que
nenhuma iniciativa humana poderá promover uma mudança capaz de propiciar o ultrapassamento da
técnica. Pois, o perigo não é verdadeiramente, senão quando o homem o olha, senão quando o
pensamento saiba reconhecer, além dos aparentes progressos ou aperfeiçoamentos da realidade, uma
ameaça a própria essência humana. Nós olhamos para o perigo, e nesse olhar vislumbramos ao mesmo
tempo aquilo que salva (HEIDEGGER, 1958, p. 45).

É o próprio poeta Hölderlin quem diz no hino Patmos: “Mas lá onde há o perigo, cresce
também o que salva...” (Hölderlin, Patmos, Apud Heidegger, 1958, p. 36). O poeta nos diz onde o perigo
aparece como perigo, é também já nascido aquilo que salva. Segundo a palavra do poeta, portanto, não
devemos esperar que onde exista o perigo também possamos imediatamente encontrar aquilo que salva. O
perigo é ele mesmo isto que salva, se ele é visto como perigo. Nesse sentido, por mais bem intencionada
que seja, toda salvação que não provenha mesmo do perigo, não livrará o homem da ameaça que lhe
advém como destino. A besta do labor é abandonada à vertigem de suas fabricações, afim de que ela se
dilacere ela mesma, que ela se destrua e caia na nulidade do nada. (HEIDEGGER, 1958, p. 83).

O fato é que nós, homens de hoje, temos que tomar uma decisão – devemos decidir se
estamos aptos para a superação desse tempo de indigência marcado pelo domínio planetário da técnica,
ou se continuaremos a esquecer o Ser das coisas em nossa manipulação cotidiana alimentada pela fúria
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da técnica. Qual seria, portanto, numa perspectiva heideggeriana, o autêntico significado do pensar apto a
ultrapassar a esse domínio incondicional de todas as coisas pelo pensamento calcular? Em primeiro lugar
só compreenderemos o sentido da palavra pensar, quando nós mesmos formos capazes de pensar ou
aprender a pensar. Mas como se sustenta a afirmação de que nós não pensamos ainda, se é crescente o
interesse pela filosofia, ainda que por mera erudição?

Para Heidegger, o interesse do homem dos dias atuais pela filosofia não garante que ele esteja
preparado para pensar. A publicidade atual da filosofia só contribui para nos dar a ilusão de que
pensamos, impedindo assim que nossa atenção se volte para aquilo que realmente merece ser pensado
hoje – o fato de não pensarmos ainda (HEIDEGGER, 1962, pp. 23-24). Assim, paradoxalmente, aquilo
que nos dá a pensar em nossa época é justamente o fato de não pensarmos ainda. Mas seria uma simples
negligência do homem o fato dele não pensar ainda, ou essa ausência de pensamento provém da própria
natureza do ser das coisas, que sempre se desvia e se mostra indiretamente ao homem?

Para Heidegger, só oderemos aprender a pensar se desaprendermos a pensar conforme as


regras da lógica e da gramática. O filósofo constata que o fato de o homem não pensar ainda é um destino
do próprio Ser, enquanto aquilo que deve ser pensado, mas que desde sempre desvia-se e retrai-se diante
do homem. Como pensar esse retraimento do Ser? Como pensar isso que aparece pelo ato mesmo em que
se oculta? Essa retirada do Ser tem o sentido de uma reserva que exige mais atenção do homem que
qualquer outra coisa que o cerca. Esse evento da retirada do Ser é mais presente que qualquer coisa
presente, e mais atual que qualquer atualidade (HEIDEGGER, 1962, p. p. 27).

Afirmar que o que dá a pensar hoje é o fato de não pensarmos ainda, aponta para a indigência
de uma época sem memória para o Ser. Entretanto, o que é mais inquietante é que a desolação expressa na
frase do último metafísico – “O Deserto cresce...” é acompanhada, em nossa época, da conquista de um
aparente bem estar e da organização de um suposto estado de felicidade uniforme para todos os homens.
A desolação oculta-se, portanto, por trás do mito do progresso, da segurança e da eficácia, impedindo que
se veja o perigo como perigo – eis o que é mais sinistro em nossa época. Para Heidegger, resta-nos apenas
uma coisa a fazer: esperar que isso que é necessário pensar se enderece a nós e fale a nós. “Esperar quer
dizer aqui: de todos os modos procurar com o olhar, no interior do já pensado, o não pensado que ainda
jaz oculto. Por uma tal espera/esperança nós já pensamos e estamos em movimento para Isso que deve ser
pensado” (HEIDEGGER, 1962, p. 165).

O pensamento originário assume, portanto, a pretensão de ultrapassar a metafísica sem


recorrer à lógica ou à gramática que governaram sua história até o presente. A lógica não passaria de uma
das explicações da essência do pensamento, aquela que já se funda na experiência do Ser realizado pelo
pensamento grego (HEIDEGGER, 1958, p. 49). Heidegger esclarece que essa experiência do Ser
conhece uma inversão com Platão. Doravante, não é mais o Ser que determina o dizer e o pensar, mas é a
lógica e a gramática que determinam o que é o Ser objetivado na Idéia. É certamente pensando na
experiência do Ser no dizer e no pensar dos pensadores e poetas gregos anteriores à viragem platônica,
que Heidegger considera o pensamento fundamental como aquele cujos pensamentos não apenas
calculam, mas são determinados pelo outro do ente, ou seja, o próprio Ser.
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No Pósfácio (1943) de O que é metafísica? [Was ist Metaphysik?] Heidegger procurou


delinear os traços básicos desse pensamento originário apto a ultrapassar a penúria de nossa época. Esse
pensamento do Ser não procura apoio no ente. Sua atenção está voltada aos lentos sinais do que não pode
ser calculado e neles reconhece o advento do inelutável, que não pode ser antecipado pelo pensamento. O
auxílio que este pensamento presta não prova sucessos porque não precisa de repercussão (HEIDEGGER,
1958, p. 51). Esse pensamento originário está na busca constante da palavra através da qual a verdade do
Ser chega à linguagem. Nessa busca, o pensamento é solícito ao Ser e nessa solicitude para com o Ser,
esse pensamento cumpre seu destino. O dizer desse pensamento originário, sustenta Heidegger, vem de
um silêncio longamente guardado e que também é fonte do nomear do poeta. (HEIDEGGER, 1958, p.
51).)

O fato do acesso a esse pensamento originário possuir o caráter de um retorno às fontes


originárias da metafísica entre os gregos, não pressupõe qualquer espécie de renascimento do pensamento
pré-socrático. “... trata-se, isto sim, de prestar atenção ao advento da ainda não enunciada essência do des-
ocultamento que é o modo como o Ser se anunciou. Entretanto, velada permanece para a metafísica a
verdade do Ser ao longo de sua história, de Anaximandro à Nietzsche.” (HEIDEGGER, 1958, p. 57).

Na conferência Ciência e Meditação [Wissenschaften und Besinnung] (1953), Heidegger


retoma, mais uma vez, a questão da possibilidade de um pensamento originário capaz de ultrapassar a
metafísica e o império da técnica. Tal pensamento certamente não nos conduzirá para nenhum outro
lugar, senão àquele no qual desde sempre já moramos. Esse pensar dócil ao apelo do Ser não se confunde
com o saber objetivante da ciência, nem com a pacífica aquisição de cultura. Esse pensamento originário
percebe a fragilidade das representações exatas do pensamento calculador, que são incapazes de
representar e esgotar o mistério do retraimento do Ser naquilo mesmo que se presentifica – o ente. O
pensamento originário seria, portanto, fundamentalmente a experiência de uma dimensão ante-
predicativa, que Heidegger chama de Clareira (Lichtung) - uma espécie de iluminação, mais existente que
o próprio existente e que é condição de possibilidade de todo dar-se. “Somente esta clareira nos garante a
nós os homens um passo ao existente que nós não somos e o acesso ao existente que somos. Graças a essa
clareira, o existente desvela-se em certa medida” (HEIDEGGER, 1958, p. 44-45).

O pensar originário, portanto, aproxima-se das coisas não através do olhar objetivante que
abole qualquer distância ou proximidade no espaço puro da geometria. Ele sabe que toda presença
(Anwesen) traz em si uma certa reserva, pois a Clareira (Lichtung) em que está o existente é em si mesma
também ocultação, que se oculta e dissimula a si mesma. É justamente ao tentar experiências esse jogo de
retraimento do Ser que se dissimula, que o pensar originário consuma a relação do Ser com a essência do
homem. E somente mostrando isso que se retira e se subtrai, nós conseguiremos ser nós mesmos. Nós
somos na medida em que indicamos isso que se oculta. O homem seria, assim, um signo que indica algo
que se oculta. Um signo, como dirá Hölderlin, vazio de sentido.

A ação do pensar originário, dirá Heidegger em Carta sobre o humanismo[Über den


Humanismus] (1947), não se consuma na mera produção de um efeito facilmente constatável, mas se
volta para a realização da tarefa de libertar a linguagem e o pensamento dos grilhões da Gramática e da
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Lógica, abrindo assim um espaço mais essencial e originário para a manifestação do próprio Ser. E uma
autêntica experiência da essência desse pensar originário, que implica sua própria realização, exige que
nos libertemos da interpretação técnica do pensar, cujos primórdios recuam até Platão e Aristóteles.
Neles, segundo Heidegger, não é mais o Ser que determina o dizer e o pensar, ao contrário, doravante, são
as leis do pensar (Principio de identidade, Não-contradição e da Razão Suficiente) e as regras da
gramática que determinam o que é o Ser, concebido como causa e fundamento do ente. O próprio pensar
é tido, ali, como uma techné , o processo da reflexão é posto a serviço do fazer e do operar
(HEIDEGGER, 1979b, p. 149).

O pensamento futuro deve, pois, passar pela aprendizagem de experienciar e poder dizer que
o Ser não é Deus, nem um fundamento do mundo e é tudo isso ao mesmo tempo. Esse pensar sabe que o
Ser é mais amplo que todo ente sendo, entretanto, mais próximo do homem que qualquer ente. Porém,
para o homem essa proximidade permanece a mais distante. Antes de tudo e na maioria das vezes ele se
atém apenas ao ente. Por sua simplicidade, observa Heidegger, o pensar do Ser se faz para nós
irreconhecível. Nós que estamos habituados com o sucesso e a eficácia do pensamento calculador. Mas
onde um tal pensar encontraria sua medida e sua lei, se ele não se deixa medir por seus possíveis efeitos
no mundo? Esse pensar, dirá Heidegger, está referido ao Ser como aquilo que está em advento.
“O Ser já se destinou ao pensamento. O Ser é como o destino do pensar. O destino, porém, é em si
historial. Sua história já chegou à linguagem no dizer dos pensadores. A única tarefa do pensar é
trazer à linguagem, sempre novamente, este advento do Ser que permanece e em seu permanecer
espera pelo homem. Por isso, os pensadores essenciais dizem sempre o mesmo.” (HEIDEGGER,
1979b, p. 174).

O fato é que pensar para o pensamento originário é co-responder na linguagem ao apelo de


um ser que se manifesta através de sua ausência em tudo que se manifesta. (HEIDEGGER, Essais et
Conférences, 1958, p. 220). Infelizmente, parece que esse homem de um tempo de penúria e indigente
não pode sentir a indigência como tal. Esse homem não reconhece mais esse mundo uniforme do cálculo
como sua morada. Ele se sente estranho em sua própria casa. E enquanto a Clareira, na qual se dá a co-
pertinência entre Ser e homem, não for suficientemente pensada, a dimensão do Sagrado permanece-lhe
fechada. Assim, não mais habitamos a terra numa atitude respeitosa diante das coisas que nos abra a
dimensão do sagrado, ou seja, daquilo que ainda não foi profanado pela manipulação técnica. E é no seio
mesmo do mais familiar que se abre ao homem o que não é familiar - a presentificação do Deus, ou seja, a
dimensão do sagrado. Portanto, o que o pensar originário busca é o mais próximo. Entretanto, para nós,
homens de uma época que aboliu todas as distâncias, o caminho ao mais próximo é sempre o mais árduo.
Conclusão

Durante uma entrevista à revista Der Spiegel em 1966, Heidegger é indagado acerca do que se
trata de questionar na técnica, já que tudo funciona aparentemente bem? O filósofo responde:

Tudo funciona. Isto é o inquietante, que isto funcione, e que este funcionamento exija sempre
um novo funcionamento, e que a técnica sempre separe mais o homem da terra, desarraigando-o. Não sei
se isto lhe aterroriza, a mim, encheu-me de pavor ver agora as fotografias da lua sobre a terra. Não temos
necessidade da bomba atômica, o desarraigamento do homem já está aqui. ... Não dependemos senão de
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condições técnicas. Não é mais uma terra sobre a qual o homem vive hoje... [Heidegger, Der Spiegel,
1966)]

O que fica claro nas reflexões de Heidegger acerca da técnica é que o filósofo quer evitar
qualquer pessimismo ou condenação moral ao fenômeno da técnica e seu domínio planetário. Mais que
uma mera leitura do fenômeno do domínio planetário da técnica, o filósofo convida-nos para mantermos
a serenidade e olhar para o perigo na essência da técnica sem desespero, pois esse simples olhar já é o
começo de nossa salvação. O filósofo evita em apontar um caminho para superação desse desamparo do
homem no mundo objetivado do calculo no qual a filosofia encontra seu fim. Mas coloca-nos diante de
decisões a serem tomadas: Cabe a nós decidir, por exemplo, se da noite desse tempo de penúria e
indigência surgirá um novo começo, uma nova forma de pensar, sentir e dizer para além dos limites da
objetividade científica e das leis do mercado, que faz da Técnica um elemento mediador entre uma
subjetividade ávida em dominar e uma natureza desencantada e uniformizada pelo cálculo e planificação.

Apesar de sua inegável eficácia e eficiência, a técnica e a crescente ordenação que ela impõe
ao mundo dos entes representa um Perigo. Hoje esse perigo que se aloja na essência da técnica não é
sentido/percebido como tal, mas visto como sinal de progresso e bem estar de uma sociedade cada vez
mais bestializada e domesticada. Essa auto dissimulação do perigo é o que há de mais perigoso no perigo.
Assim, podemos constatar que o grande perigo de nossa época não é o apocalipse nuclear, a violência
urbana, a fome ou a poluição de nosso meio ambiente natural ou semântico. Tudo isso não passa de
efeitos do domínio planetário da técnica.

O fato é que a leitura heideggeriana do fenômeno da técnica parece nos conduzir a seguinte
constatação: se é certo que a técnica plenifica o niilismo, o desenraizamento do homem, o desencanto da
Natureza, o esquecimento do Ser e a fuga dos deuses; por outro lado, ela é também o âmbito no qual
emerge a possibilidade de um retorno ao Ser das coisas a partir de um novo começo, que inauguraria uma
época na qual nossas relações com as coisas não se fariam apenas pela mediação da técnica, do olhar
objetivante da ciência. Para o filósofo permanece incerto, por exemplo, se a civilização mundial será em
breve subitamente destruída ou se cristalizará numa longa duração que não resida em algo permanente,
mas que se instale, muito ao contrário, na mudança contínua em que o novo é substituído pelo mais novo.

Contudo, mais uma vez insistimos que não devemos nos deixar levar por nenhum ativismo ou
qualquer espécie de revolta diante da técnica, sob pena de cair na armadilha do pensamento calculador.
Não temos nada a fazer para evitar ou amenizar os efeitos devastadores do domínio planetário da técnica,
só nos resta esperar. Uma espera que não significa submissão ou resignação, é necessário a espera, a
ajuda e a conversão do homem para mudar a época, revertendo o processo de objetificação do mundo
pelo cálculo. Nesse sentido, nenhuma instância ou doutrina de caráter ético-político poderá promover esse
novo começo. Nenhuma vontade humana, individual ou coletiva, poderá controlar ou superar esse
domínio planetário da técnica, pois ele é algo que nos foi destinado.

Não é por acaso que na modernidade assistimos a um colossal e gigantesco processo de


planificação e burocratização, de uniformização de estilos de vida, de instrumentalização da linguagem e
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de esfacelamento do sagrado. A linguagem, ora informatizada, ora simplesmente nivelada pelas mídias,
reduz-se a um veículo de mensagens pré-estabelecidas. Transformada num simples instrumento de
comunicação, a linguagem se insurge contra a palavra, excluindo dela mesma toda capacidade original de
mostração das coisas. Será que a necessidade de uma linguagem poética se faz ela ainda sentir nesse
funcionário da técnica muito bem adaptado a sua tarefa de regulador dos circuitos de produção e de
consumo?

É certo que no mundo de hoje não podemos mais renunciar à técnica e à ciência moderna.
Num certo sentido o projeto baconiano do conhecimento como um poder exercido sobre a natureza é
ainda indispensável. Por outro lado, temos que ter consciência que esse projeto representa um perigo para
a essência do homem que não poderá ser combatido por meios meramente humanos (Loparic, 1996, p.
35). A questão que se colocaria então seria: como preparar novamente o mundo para que o homem possa
novamente nele construir sua casa e morar? Para Heidegger, a filosofia não pode produzir um efeito
imediato que possa fazer mudar o estado presente do mundo. Isto não vale apenas para a Filosofia, mas
para todas as preocupações e aspirações por parte do homem. Resta-nos, como única possibilidade,
preparar, mediante o pensar e o poetar, uma disponibilidade para a aparição do sagrado ou para sua
ausência em nossa decadência. Enquanto isso, errando por uma terra devastada e uniformizada pelo
cálculo, o homem continua surdo ao canto do poeta e ao dizer do filósofo.

Para não concluir: Mas, afinal, o que está em jogo em nossa época?

Heidegger queria que suas obras fossem na verdade caminhos para possíveis alternativas em um
mundo desertificado pelo cálculo, no qual o homem vagueia como um desterrado, estranho em sua
própria casa e reduzido a condição de “besta do trabalho” ou de primeira e fundamental matéria prima. O
filósofo pretende nos mostrar que o pensamento calculador que impera na era da técnica prende-se
unicamente ao cálculo, a organização e planificação das coisas transformadas em objetos. Ele não admite
outra coisa que o enumerável.

Cada coisa é apenas aquilo que se pode enumerar. O pensamento calculador não é capaz de
suspeitar que todo o calculável do cálculo já é num todo, cuja incalculabilidade torna-se manifesta.
Heidegger pergunta se o caráter de revelado daquilo que é esgota-se na desmonstrabilidade? A
insistência da ciência sobre o demonstrável não fecha o caminho para aquilo que realmente é? Para o
filósofo, o que está em jogo em nossa época é a possibilidade da superação do caráter técnico-científico
como única medida da habitação e da ação do homem no mundo. (HEIDEGGER, Conferências e Escritos
Filosóficos, 1987, p. 80). Talvez exista um pensamento mais sóbrio do que a corrida desenfreada da
racionalização e o prestígio da cibernética que tudo arrasta consigo. Talvez exista um pensamento fora da
distinção racional e irracional, mais sóbrio do que a técnica apoiada na Ciência, constituindo uma urgente
necessidade provinda dele mesmo.” (HEIDEGGER, 1987, p. 81).
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O que está em jogo em nossa época técnico-científica é a própria possibilidade do des-


velamento(alétheia) do Ser na abertura instaurada pela existência finita que é o homem. É, repito, a
possibilidade da superação do caráter técnico-científico como única medida da habitação e da ação do
homem no mundo. O fato é que ao longo de sua história, e principalmente na Idade Moderna, o homem
tornou-se Sujeito, e tudo se tornou objeto disponível para seus cálculos. Sua vontade é um sujeitar todas
as coisas ao seu domínio.

A relação do homem com os outros seres é uma relação de dominação. Progresso significa
uma crescente dominação sobre o mundo natural e humano, mediante o poder provocador da Técnica. O
passo final desse progresso fundamentado por uma metafísica humanista, subjetivista e niilista, é o
surgimento da técnica científica moderna.

Nós homens do crepúsculo da Era atômica, perdemos a capacidade de nos admirar desse fato
banal que levava alguns gregos ao espanto – que o ente é; que no fenômeno de ser se manifesta o ente. A
ciência baniu o mistério de toda presença e de todas as distâncias, mas nem por isso nos colocou mais
próximos às coisas e de nós mesmos.

Desde o início do Século XX, observa Heidegger, a existência começou a desligar para um
mundo sem profundidade. Todas as coisas escorregam para um mesmo nível, para uma superfície. A
dimensão dominante tornou-se a da extensão e do número. Doravante, capacidade quer dizer o exercício
de uma rotina, suscetível de ser aprendida por todos, conforme certo esforço. Essa planificação atinge sua
intensificação na Rússia e Estados Unidos, onde vigora o equivalente que destrói toda hierarquia e todo
mundo espiritual. Essa avalanche uniformizadora da técnica manifesta-se na forma de um desvirtuamento
do espírito. (HEIDEGGER, 1969, p. 71-72). Decisiva é a transformação do Espírito em Inteligência
instrumental: a Inteligência instrumental é uma mera habilidade ou perícia no exame, no cálculo e na
avaliação das coisas. Com o objetivo de transformá-las, reproduzi-las e distribuí-las em massa.

O Espírito, falsificado em inteligência instrumental, degrada-se para o papel de um mero


instrumento a serviço de outro, cujo manejo pode ser ensinado e aprendido. Quando se consuma a
desfiguração do Espírito em Inteligência instrumental, assistimos à disposição das potências do Espírito
em regiões (a Arte, a Poesia, o Estado, a Religião, etc.). O mundo do Espírito degrada-se em cultura, onde
cada região torna-se um campo específico de saber. A Ciência emerge dessa degradação do mundo do
Espírito em Inteligência instrumental, fragmentando-se numa multiplicidade de disciplinas que estão a
serviço das profissões.(Cf. HEIDEGGER, 1969).

A questão é: estaríamos nós, filhos de uma época uniformizada pelo cálculo, aptos a resgatar
uma relação mais originária com os outros e com as coisas? Vale a pena vender tão caro nossa liberdade
por todo esse aparato de segurança e certo bem estar, que só nos tornam mais indolentes e alienados em
relação às nossas mais autênticas necessidades e capacidades? Pensadores, como Nietzsche e Heidegger,
ousaram desconstruir o império da razão, desmascarar os dogmas da fé, subvertendo os discursos
legalizados pela Lei, legitimados pelo Contrato e instituídos e conservados pela Instituição. O preço para
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Nietzsche foi afundar-se na escuridão da loucura. Heidegger, por sua vez, conheceu em vida a glória e o
desprezo dos caluniadores, ex-alunos e colegas – havia sérias suspeitas de certa cumplicidade de seu
pensamento com o Crime extremo e o Mal.

Mas o que se trata de questionar na técnica, já que tudo funciona aparentemente bem? Tudo
funciona. Isto é o inquietante, ponderou certa vez Heidegger. Que isto funcione, e que este funcionamento
exija sempre um novo funcionamento, e que a técnica sempre separe mais o homem da terra,
desarraigando-o. Não é mais uma terra sobre a qual o homem vive hoje e o pior é que a filosofia não pode
produzir um efeito imediato, fazer mudar o estado presente do mundo. Resta-nos preparar, mediante o
pensamento e a poesia, uma disponibilidade para a aparição do sagrado ou para sua ausência em nossa
decadência. Em último caso, cabe a nós decidir se da noite desse tempo de penúria e indigência surgirá
uma nova aurora do pensamento. Enquanto isso, o “deserto cresce...” (Nietzsche). E errando por uma
terra devastada e uniformizada pelo cálculo, o homem continua surdo ao canto do poeta – Lá onde brota o
perigo, nasce também o que salva.[CF. HORDERLIN, Patmos].
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.Qu’est-ce que’une chose? Trad. par Rebout et alii Paris: Gallimard, 1971e.
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1966.
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