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OBRAS I
Direcção de
João Barrento
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Robert Musil
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AS PERTURBAÇÕES
DO PUPILO TÕRLESS
Robert Musil
AS PERTURBAÇÕES
DO PUPILO TORLESS
OBRAS I
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DOM Q!JIXOTE
Publicações Dom Quixote
Edificio Areis
Rua Ivone Silva, n.º 6-2.0
1050-124 Lisboa Portugal
·
ISBN: 972-20-i854-5
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Introdução
JOÃO BARRENTO
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ROBERT MUSIL: UM AUTOR SEM BIOGRAFIA
A alma é um enigma
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João Barrento
' O romance maior de Musil ocupará os quatro tomos do terceiro volume desta edição, e
terá uma introdução própria no primeiro desses tomos. Será a primeira publicação integral
em língua portuguesa deste romance fragmentário (apesar das mais de duas mil páginas do
original), que incluirá, para além dos conhecidos Livros I e II publicados em vida do autor,
as mais de mil páginas dos vinte capítulos que ficaram em provas (e que entrariam no tercei
ro volume a publicar) e de todos os materiais do espólio.
Afigura-se, no entanto, necessária já aqui uma nota sobre a manutenção deste título, vul
garizado pelas traduções (parciais) portuguesa e brasileira anteriores a esta edição. A questão
dos sentidos e das versões possíveis do alemão Eigenschaften (qualidades, em sentido neutro,
atributos, particularidades) tem sido debatida. Quase todas as traduções existentes, nas lín
guas românicas e em inglês, usam «qualidades», à excepção da tradução castelhana de José
M. Sáenz, que prefere verter o título por E/ hombre sin atributos. À primeira vista, esta solução
poderia parecer preferível também para o português, mas duas razões maiores me levaram a
manter a versão, já instalada no espaço de língua portuguesa, O Homem sem Qualidades. Em
primeiro lugar, o facto de o termo «qualidades», usado sem adjectivação, como no original,
permitir, afinal, manter em português o fundo de ambiguidade que também está presente no
título alemão, e que traduz melhor o perfil e a demanda do protagonista do romance; em se
gundo lugar, e decorrente do primeiro argumento, o facto de as alternativas disponíveis se
rem claramente menos felizes como título, e insuficientemente fundamentadas para destro
narem aquele que já entrou no universo de referências literárias do leitor culto. Alterá-lo
sem uma razão convincente seria sinal de um pedantismo deslocado e arbitrário.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Robert Musil escreveu parte deste romance, a sua obra de estreia, já
durante o período de assistente livre no Instituto Superior Técnico de
Estugarda (Outubro de 1902 a Outubro de 1903). O começo do traba
lho iniciou-se, segundo o autor, em 1902, e o romance estaria concluí
do em 1905, ano em que Musil o terá enviado a três editoras, que aca
baram por não publicar a obra, identificada pelo autor como «um
romance anómalo» e «O livro de um escritor ainda desconhecido».
A primeira edição sairá em 1906, na editora vienense Wiener Verlag, e
posteriormente nas editoras Georg Müller (1911), S. Fischer (1914)
e Rowohlt (1931). Esta última edição, que serve de base à tradução por
tuguesa, foi ainda revista e corrigida em várias passagens por Musil.
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Assim que dizemos qualquer coisa, degradamo-la estranhamente. Julgamos ter
descido às profandezas dos abismos, e quando voltamos de novo à superfície a
gota de água na pálida ponta dos nossos dedos já não se parece com o mar de
onde proveio. Imaginamos ter descoberto um esconderijo com tesouros maravi
lhosos, e quando regressamos à luz do dia vemos que só trouxemos pedras falsas
e pedaços de vidro; e, apesar disso, o tesouro continua a refulgir no escuro,
inalterado.
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pudessem cada vez mais tomar conta dele. Mas eles assalta
vam-no precisamente quando se julgava mais sensato e mais
liberto. Poderia dizer-se que se tratava de uma reacção a tais
momentos, em que adivinhava um saber de emoções que já se
anunciavam, embora ele fosse ainda muito novo para elas. No
desenvolvimento de toda a força moral de excelência existe
um tal ponto prematuro, em que ele enfraquece a alma, para
a qual poderá vir a ser um dia a mais ousada experiência -
assim como se as suas raízes tivessem primeiro de mergulhar
fundo, revolvendo o solo que depois irão consolidar. É por
isso que os jovens com grande futuro têm geralmente um pas
sado cheio de humilhações.
A predilecção de Tõrless por determinados estados de
alma era o primeiro sinal de um desenvolvimento anímico que
mais tarde se revelou como talento da estupefacção. Mais tar
de ainda, seria dominado por uma capacidade muito particu
lar. Sentia-se muitas vezes forçado a relacionar-se com acon
tecimentos, pessoas, coisas, até consigo próprio, como se em
tudo isso houvesse simultaneamente um enigma insolúvel e
uma afinidade inexplicável e não totalmente justificável. Tudo
lhe parecia compreensível como se fosse palpável, mas sem se
deixar traduzir por completo em palavras e pensamentos. En
tre os acontecimentos e o seu eu, e mesmo entre os seus pró
prios sentimentos e um qualquer eu mais íntimo que ansiava
por compreendê-los, havia sempre uma linha divisória que
recuava como um horizonte diante do seu anseio, quanto mais
ele dela se aproximava. Quanto mais rigorosamente apreen
dia as sensações com os pensamentos, quanto mais familiares
elas se tornavam, tanto mais pareciam, ao mesmo tempo, ser
-lhe estranhas e incompreensíveis; já nem parecia que elas lhe
fugiam, era como se ele próprio delas se afastasse sem poder
desfazer a ilusão de se estar a aproximar.
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bem que o Beineberg .. .' Ele não ficou nem vermelho nem pá
lido, parecia apenas esperar pelo esclarecimento de um mal
-entendido. 'Bom, para abreviar as coisas', disse eu então, 'o
dinheiro com que me pagaste a dívida tiraste-o esta noite do
cacifo do Beineberg! '
«Recostei-me na cadeira, para ver a impressão que as mi
nhas palavras causavam. Ele ficou vermelho como uma cereja;
as palavras, que o deixavam engasgado, traziam-lhe a saliva
para os lábios; finalmente, lá conseguiu falar. Foi uma chuva
de acusações contra mim, como é que eu me atrevia a dizer
uma coisas destas; onde é que eu queria chegar com uma tal
suspeita caluniosa; que eu só queria brigar com ele por ele ser
o mais fraco; que eu só fazia aquilo por irritação, por ele se ter
livrado de mim ao pagar a dívida; mas que ia falar disto à tur
ma, ... ao tutor, ... ao director; que Deus era testemunha da sua
inocência, e assim por diante, e nunca mais acabava. Eu já es
tava a ficar com medo de ter sido injusto com ele e de o ter
magoado sem motivo, e ele tão lindo e coradinho ali à minha
frente ... ; parecia um animalzinho maltratado, indefeso. Mas
eu não estava disposto a ceder assim sem mais. Mantive o sor
riso trocista - de facto, quase só por embaraço - com que ti
nha escutado toda a sua conversa. De vez em quando, abanava
apenas com a cabeça e dizia: 'Mas eu sei tudo.'
«Passado algum tempo também ele acalmou. Eu continua
va a sorrir. Tinha a sensação de fazer dele um ladrão apenas
com aquele sorriso, mesmo que ele ainda o não fosse. 'E para
fazer as pazes', pensei, 'ainda há tempo depois'.
«Ao fim de mais algum tempo, durante o qual ele de vez
em quando me olhava de soslaio, empalideceu de repente.
Deu-se uma mudança estranha no seu rosto. Desapareceu a
graciosidade inocente que antes tinha posto no semblante, e
que o tornara belo. Foi-se, ao que parecia, com a cor. Agora,
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Tinha ido uma vez visitar Bozena, apenas para fazer ver
que era homem. O seu desenvolvimento um tanto retardado
não deixava adivinhar nele ainda um verdadeiro desejo. Para
ele, era antes uma necessidade, algo que se esperaria dele, um
dever de dar a entender que conhecia o perfume de vivências
amorosas. O mais belo momento era o da hora em que se des
pedia de Bozena, porque o que contava para ele era apenas
ficar com a lembrança dessa experiência.
De vez em quando mentia também, por vaidade. Assim,
depois de cada período de férias, regressava com recordações
de pequenas aventuras - fitas, madeixas de cabelo, cartinhas.
Mas quando um dia trouxe na mala uma liga, bonita, peque
na, perfumada, azul-celeste, e depois veio a saber-se que a liga
era da sua irmãzinha de doze anos, toda a gente se riu dele
por causa destas suas bazófias.
O complexo de inferioridade moral que revelava e a sua
estupidez eram filhos da mesma cepa. Não era capaz de resis
tir a nada do que lhe vinha à cabeça e era sempre apanhado
de surpresa pelas consequências. Nisto, era como aquelas mu
lheres com belos caracóis caídos para a testa, que dão veneno
aos maridos, em pequenas doses a cada refeição, e depois fi
cam muito assustadas e se admiram das palavras estranhas e
duras da acusação e da sentença de morte.
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podia ... Acho que ainda hoje ficaria muito contente por se
livrar de mim. Estás a ver o que eu posso fazer estando de
posse deste segredo?
Torless assustou-se. Mas de maneira tão estranha como se
o destino de Reiting o afectasse também a ele. Olhou assusta
do para Beineberg. Este tinha os olhos fechados, deixando
apenas uma pequena fresta aberta, e parecia uma grande ara
nha misteriosa, quieta, à espreita na sua teia. As suas últimas
palavras soaram frias e claras como as frases de um ditado aos
ouvidos de Torless.
Não tinha acompanhado o que o outro dissera antes, só
sabia que Beineberg devia estar de novo a falar das suas
ideias, que não tinham nada a ver com a realidade; e agora
não sabia como tinham chegado àquele ponto.
A teia, que, pelo que se lembrava, teria começado algures
lá fora, no abstracto, devia ter-se fechado subitamente com
uma velocidade vertiginosa. Porque de repente era concreta,
real, viva, e uma cabeça debatia-se nela ... com um nó na gar
ganta.
Não se podia dizer que gostasse de Reiting, mas agora
lembrava-se da maneira amável, atrevida, descuidada com que
ele aproveitava todas as intrigas. Comparado com ele, Beine
berg parecia-lhe infame pelo modo como, a frio e com um
sorriso malicioso, enredava o outro na teia tentacular, cinzen
ta e repulsiva dos seus pensamentos.
Torless reagiu involuntariamente:
- Não podes fazer uso disso contra ele. - Talvez também
estivesse em jogo a sua má vontade de sempre contra Beine
berg.
Mas foi o próprio Beineberg quem, depois de uma breve
reflexão, respondeu:
- Tens razão . Para quê ? Seria mesmo uma pena.
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que antes não conhecia. Era uma coisa quase onírica, miste
riosa. Devia ter-se desenvolvido nele discretamente sob a
influência dos acontecimentos dos últimos tempos, e agora
batia-lhe à porta com dedos imperiosos. Sentia-se como uma
mãe que se apercebe pela primeira vez dos movimentos impo
sitivos do fruto do seu ventre.
Foi uma tarde maravilhosa, plena de prazer.
Tõrless tirou da gaveta todas as suas tentativas poéticas.
Sentou-se com elas diante do fogão e ficou sozinho e escondi
do atrás do grande guarda-fogo. Foi folheando um caderno
atrás do outro; rasgava-os lentamente em pedacinhos, lançan
do-os no fogo, enquanto saboreava uma a uma as doces emo
ções da despedida.
Queria deitar para trás das costas todo o lastro que trazia
do passado, como se o importante agora fosse, sem quaisquer
obstáculos, concentrar toda a atenção nos passos a dar em di
recção ao futuro.
Por fim, levantou-se e foi ter com os outros. Sentia-se livre
de todos os olhares angustiados, de soslaio. O que fizera
acontecera de forma apenas instintiva; nada, a não ser a sim
ples existência daquele impulso, lhe oferecia a garantia de a
partir de agora se poder tornar outra pessoa. «Amanhã», disse
para consigo, «amanhã vou fazer uma revisão pormenorizada
de tudo, e há-de fazer-se luz».
Andou um pouco pela sala entre as várias carteiras, olhou
para os cadernos abertos, para os dedos que corriam, diligen
tes, deixando atrás de si pequenas sombras escuras, escreven
do sobre as folhas de um branco cru - olhava para tudo isso
como alguém que de repente acorda com olhos novos, para os
quais tudo tem um significado mais sério.
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Mas a tinta há muito que secara e ele ainda não tinha vol
tado a pegar na caneta. Alguma coisa o mantinha imóvel. Era
o ambiente hipnótico criado pelas grandes lâmpadas quentes,
o calor animal que emanava daquela massa de gente. Sempre
fora sensível a este tipo de situações, que nele podia até pro
vocar estados febris e estava sempre ligado a uma extraordiná
ria sensibilidade anímica. Era o que estava a acontecer agora.
Durante o dia, tinha já planeado tudo o que queria anotar: to
da a série de experiências de determinado tipo que começara
na noite em casa de Bozena e continuara até estes últimos
acessos de sensualidade indefinida. Quando tudo isso estives
se ordenado, anotado facto a facto, esperava chegar à versão
correcta e racionalmente compreensível, tal como a forma de
uma linha circundante se destaca da imagem confusa de cen
tenas de curvas que se cruzam. E mais não queria. Mas até
agora acontecera-lhe como ao pescador que sente, no repuxar
da rede, que tem peixe grosso no anzol, mas, apesar de todos
os seus esforços, não consegue trazê-lo à luz.
Torless começou então realmente a escrever - mas preci
pitadamente, sem atender já à forma. «Sinto», anotou «algo
em mim, mas não sei bem o que é.» Mas riscou depressa a fra
se e escreveu em seu lugar: «Devo estar doente ... , demente!»
Sentiu um arrepio, pois a palavra era agradavelmente patética.
«Demente - senão, o que será que me faz ver como estranhas
coisas que para os outros são normais? E por que me ator
menta essa estranheza? Por que é que ela provoca em mim a
tentação da carne?» - escolheu deliberadamente esta expres
são de ressonâncias bíblicas, porque lhe parecia mais obscura
e consistente. «Antes, encarava isso como qualquer rapaz, co
mo todos os meus colegas ... » Mas aqui deteve-se. «Será que é
assim?», pensou. «Com a Bozena, por exemplo, já foi assim es
tranho; então, quando é que começou? ... Tanto faz», pensou,
«foi um dia, como sempre». Mas deixou a frase por acabar.
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Volta toda a tua atenção para dentro ... Fixa a chama ... o teu
pensamento é como uma máquina girando cada vez mais
devagar. . . cada vez mais devagar. . . Olha para dentro ... até
encontrares o ponto em que te sentes a ti próprio, sem um
pensamento, sem uma sensação ...
«O teu silêncio servir-me-á de resposta. Não desvies o
olhar do teu interior ... !»
Decorreram alguns minutos.
- Sentes o ponto ... ?
Nenhuma resposta.
- Basini, ouve! Conseguiste?
Silêncio.
Beineberg levantou-se e a sua sombra esguia cresceu ao la
do da trave. Lá em cima, o corpo de Basini, hipnotizado pela
escuridão, oscilava nitidamente para cá e para lá.
- Volta-te de lado - ordenou Beineberg. - O que agora
obedece é já só o cérebro - murmurou -, que ainda funciona
um pouco mecanicamente, até se apagarem os últimos vestí
gios que a alma nele deixou. Ela própria está algures - na sua
próxima existência. Libertou-se dos grilhões das leis da natu
reza ... - agora voltou-se para Torless -, já não está condenada
ao castigo de tornar pesado um corpo, de o sustentar. Basini,
inclina-te para a frente ... Isso ... devagarinho ... o corpo cada
vez mais para a frente ... Assim que o último vestígio se apagar
no teu cérebro, os músculos cederão e o corpo vazio cairá so
bre si próprio. Ou ficará a levitar, não sei. A alma deixou o
corpo, não se trata da morte habitual, talvez o corpo fique a
pairar no ar, porque nada, nenhuma força, nem da vida nem
da morte, o sustenta ... Inclina-te para a frente ... mais ...
Nesse momento, o corpo de Basini, que por medo tinha
seguido todas as ordens, caiu com estrondo aos pés de Beine
berg.
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- Sim.
- Só isso, simplesmente dor? Sentes que sofres e queres
fugir a isso? Só isso, sem mais complicações?
Basini não sabia que responder.
- Bom, estou só a perguntar assim por alto. Mas também
não importa. Já não tenho nada a ver contigo, corno te disse.
Já não sinto nada na tua companhia. Faz o que entenderes ...
Torless ia a sair.
Basini tirou rapidamente a roupa e agarrou-se a Torless.
Tinha o corpo cheio de marcas de cinto, urna coisa repugnan
te. Os movimentos, tristes corno os de urna prostituta desajei
tada. Torless voltou-lhe as costas, enojado.
Mas mal tinha dado os primeiros passos no escuro quando
deu de caras com Reiting.
- Que é isto, tens encontros secretos com o Basini?
Torless seguiu os olhares de Reiting e olhou de novo para
Basini. Precisamente no lugar onde ele se encontrava caía a
claridade do luar que entrava por urna clarabóia. A sua pele
azulada, com as marcas das feridas, parecia a de um leproso.
Torless procurou involuntariamente urna desculpa para esta
cena.
- Foi ele que me pediu.
- O que é que ele quer?
- Quer que eu o proteja.
- Ah, é? Então escolheu o homem certo.
- Talvez eu o fizesse, mas esta história já me aborrece.
Reiting ergueu os olhos, ressentido. Depois, virou-se para
Basini:
- Já te vamos ensinar a tramar intrigas contra nós! E o teu
anjo da guarda Torless vai assistir e divertir-se um bocado.
Torless já se tinha afastado, mas esta piada maldosa que
lhe era dirigida fê-lo parar quase sem pensar:
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- Ouve, Reiting, não vou fazer nada disso. Para mim, a coi
sa acabou, tudo isso me mete nojo.
- Assim, de repente?
- Sim, de repente. Porque antes ainda procurava qualquer
coisa por trás de tudo isto ... - Por que razão voltava aquilo a
insistir dentro dele?
- Ah, o segundo rosto.
- Sim, mas agora vejo que tu e o Beineberg são vulgares e
grosseiros.
- Ah, não! Queremos que vejas como o Basini vai comer
esterco.
- Já não me interessa.
- Mas interessou-te ...
- Já te disse, só enquanto a situação do Basini foi para
. .
mim um emgma.
- E agora?
- Já não vejo enigmas nenhuns. Tudo acontece simples-
mente: a sabedoria é só esta. - Torless admirou-se por lhe
ocorrerem de novo comparações vindas daquele círculo de
sensações que se tinha perdido. Quando Reiting respondeu,
com ar de troça, que «não era preciso ir muito longe para en
contrar essa sabedoria», Torless ficou irritado e sentiu uma
superioridade que o fez usar palavras mais duras. Por um mo
mento teve tanto desprezo de Reiting que sentiu ganas de lhe
dar pontapés.
- Podes fazer a troça que quiseres, mas o que vocês agora
fazem não passa de tortura irracional, sem sentido, nojenta!
Reiting deitou um olhar a Basini, que escutava.
- Vê se tens tento na língua, Torless!
- Nojento, sujo, foi isso mesmo que eu disse.
Agora foi Reiting quem ficou furioso.
- Proíbo-te de nos insultares na presença do Basini!
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- Não!
- Meu caro Torless, se te voltares contra nós e não vieres,
vai-te acontecer o mesmo que ao Basini. Sabes bem em que si
tuação o Reiting te encontrou lá em cima. Isso basta. Se nós
fizemos mais ou menos, isso vai-te servir de pouco. Vamos vi
rar tudo contra ti. E nestas coisas tu és um parvo e um atado,
não vais saber defender-te.
«Se não te decidires a tempo, a turma vai ficar a saber que
tu estás metido nisto com o Basini. Depois, ele que te proteja.
Estamos entendidos?»
A torrente de ameaças, ora de Beineberg, ora de Reiting,
parecia uma tempestade a abater-se sobre Torless. Quando os
dois se foram embora, esfregou os olhos, como se tivesse so
nhado. Mas conhecia Reiting; irritado, seria capaz das maio
res baixezas, e parecia muito ofendido com os insultos e a re
belião de Torless. E Beineberg? Parecia que estava a tremer,
com um ódio contido há anos ... E tudo só porque se tinha
posto a ridículo diante de Torless.
No entanto, quanto mais trágicos eram os acontecimen
tos, tanto mais indiferentes e mecânicos lhe pareciam. Tinha
medo das ameaças, sim, mas mais nada. O perigo tinha-o
arrastado para o meio do torvelinho da realidade.
Foi-se deitar. Viu Beineberg e Reiting a sair, e ouviu o
arrastar dos pés cansados de Basini. Mas não foi.
Sentiu-se torturado por fantasias terríveis. Pela primeira
vez voltava a pensar nos pais com algum afecto. Percebeu que
precisava desse terreno calmo e seguro para consolidar e ama
durecer tudo o que até aí o tinha perturbado.
Mas, concretamente, o quê? Não tinha tempo para pensar
nisso nem para meditar sobre os acontecimentos. Sentia ape
nas uma forte nostalgia de sair daquela situação confusa e
perturbadora, um desejo de tranquilidade, de livros. Como se
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a sua alma fosse uma terra negra sob a qual se agitam já as se
mentes, sem que se soubesse como iriam brotar. Veio-lhe a
imagem de um jardineiro que rega os seus canteiros todas as
manhãs, com uma bondade constante e dedicada. A imagem
não o deixava, a segurança calma que dela emanava parecia
concentrar em si toda aquela nostalgia. É assim que tudo tem
de ser. Só assim, pensava Torless. E venceu nele, para lá de to
do o medo e de todas as dúvidas, a convicção de que tinha de
fazer tudo para atingir esse estado de alma.
Apenas não tinha ideias claras sobre o que iria acontecer a
seguir. A sua nostalgia de paz, porém, reforçou nele a repug
nância pela trama de intrigas que estavam a preparar. E tinha
de facto medo da vingança que espreitava. Se os dois realmen
te tentassem denegrir-lhe a imagem diante de toda a turma,
reagir contra isso ia custar-lhe muito esforço e energia, que já
lamentava ter de desperdiçar. E vinham-lhe náuseas só de
pensar nessa confusão, na necessidade de enfrentar forças
que lhe eram estranhas e desprovidas de valores mais eleva
dos.
Lembrou-se então de uma carta que há muito tempo ti
nha recebido de casa. Era a resposta a uma outra sua, dirigida
aos pais, e em que lhes dava conta do seu estranho estado de
alma, ainda antes de surgir o episódio da sensualidade. Era
mais uma daquelas respostas moralizadoras, cheia de uma en
fadonha ética da rectidão, e em que o aconselhavam a con
vencer Basini de que se devia entregar, para acabar com aque
la situação degradante e perigosa da sua dependência.
Torless voltara a ler esta carta mais tarde, quando Basini
estava deitado a seu lado, nu, nos cobertores macios do cubí
culo. E causara-lhe um prazer especial deixar desfazerem-se
-lhe na boca aquelas palavras graves, simples e sóbrias, en
quanto pensava que os pais, na sua existência demasiad o
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dois rostos, era em mim que havia um segundo eu que não via
estas coisas com os olhos do entendimento. Do mesmo modo
que eu sinto que um pensamento ganha vida em mim, assim
também sinto que alguma coisa em mim vive ao contemplar
as coisas, quando os pensamentos se calam. Há qualquer coi
sa de obscuro em mim, sob os pensamentos, e que eu não
posso avaliar com o pensamento, uma vida que não se deixa
traduzir em palavras e que, apesar disso, é a minha vida ...
«Esta vida silenciosa oprimia-me, forçava-me constante
mente a olhar para ela. E eu sofria com medo de que toda a
nossa vida fosse assim e eu só aqui e ali me apercebesse de al
gum fragmento ... Ah, tive muito medo ... , fiquei desvairado ... »
Estas palavras e comparações, nada habituais na idade de
Torless, nasciam nele, naquele momento de excitação, num
momento de quase inspiração poética, de uma forma fácil e
quase natural. Agora, baixou o tom de voz e, como que atingi
do pelo seu sofrimento, continuou:
- ...Agora, tudo iss o passou. Sei que me enganei. Já não
tenho medo. Sei que as coisas são as coisas e assim será sem
pre, e que eu as verei sempre, ora de uma maneira, ora de ou
tra. Ora com os olhos da razão, ora com os outros ... E nunca
mais tentarei comparar as duas coisas ...
Calou-se. Achou que era perfeitamente natural sair agora,
e ninguém o impediu.
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