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A ação como um texto na obra

de Paul Ricoeur

Action as a text in Paul Ricoeur's work

Resumo O artigo objetiva discutir, a partir de Ricoeur, a relação en-


tre hermenêutica, ação humana e texto. Reflete-se, ainda, sobre a
relevância da linguagem e da criatividade para o método herme-
nêutico. Destacamos as categorias de interpretação, distanciação,
mundo da obra e o conjunto discurso-obra-escrita, que se desen-
volve como núcleo ordenador da questão hermenêutica. O texto
conclui que a fenomenologia efetiva-se como hermenêutica.
Palavras-chave ação; discurso; hermenêutica; fenomenolo-
gia; texto.

Abstract This paper discusses Ricoeur from the standpoint of


the relationship between hermeneutics, human action and text.
It also shows the importance of language and creativity to the
hermeneutic method and highlights the categories of interpre- Élsio José Corá
tation, distancing, world of the work and the set work-speech- Universidade Federal da
-writing, which sets itself as the originating core from which the Fronteira Sul (UFFS)
hermeneutical question springs; the text concludes that pheno- cora@uffs.edu.br
menology is made effective in hermeneutics.
Keywords action; speech; hermeneutics; phenomenology; text. Luzia Batista
de Oliveira Silva
Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP)
Ação, mundo do texto-hermenêutica

A
lzosilva@unimep.br
hermenêutica de Ricoeur possui como traço distintivo
a atenção voltada ao caráter conflituoso da experiência
humana. Na obra O conflito das interpretações (1978), o
autor reúne uma coleção de ensaios de hermenêutica, escritos
da década de 1960, marcando uma característica de seu pensa-
mento – a pesquisa “ecumênica” –, ou seja, a mediação entre
diversas posições filosóficas. Para o autor, por trás dos textos
e das obras de literatura existem homens que agem e sofrem,
sendo os textos e os discursos as expressões da ação desses
homens (JERVOLINO, 1996).
Por isso, uma análise crítica da ação humana constitui-
-se como tentativa de compreensão do humano, que se realiza
por meio e a partir da ação. Além disso, essa ação não é objeto
de uma exaltação narcisista ou irracional, haja vista apresentar-
-se, concomitantemente, criativa e finita, englobando sujeitos
constituídos de carne e osso, exprimindo, ao mesmo tempo, a
pluralidade destes. Essa ação é atravessada de lado a lado pela
linguagem, dado que é pela linguagem que se atribuição dos eventos, da responsabilidade
apreende a finitude, a criatividade e a singula- individual, ou seja, aos sujeitos singulares, a
ridade carnal dos sujeitos, bem como por ela história pode parecer um jogo complicado
se promove a abertura ao outro e ao mundo. entre atores que não conhecem a trama com-
Todavia, o nexo originário e essencial plexa em que são chamados para recitar (JER-
entre fazer e dizer, que permeia a novidade VOLINO, 1996).
do texto ricoeuriano, constitui o primeiro e O texto supera a “referencialidade” os-
grande benefício de uma hermenêutica da tensiva – a possibilidade de indicar, na mesma
ação, embora não somente na descoberta de situação de diálogo, o que é que se fala – para
que o texto é ação, mas também uma força abrir a possibilidade de referência mais am-
decisiva pela qual as ações podem ser lidas pla e desacoplada das situações dos sujeitos
como um texto para decifrar e interpretar o falantes. Além disso, a importância da ação
mundo e a nós mesmos. supera sua relevância em relação à situação
Nesse contexto, para Jervolino (1996), imediata (JERVOLINO, 1996). Isso quer dizer
considerar a ação um texto significa encon- que as ações importantes, ricas em significa-
trar os traços constitutivos do discurso na do, transcendem as condições nas quais são
modalidade própria ao discurso escrito – do produzidas: seu sentido pode ser retomado
discurso como fenômeno temporal e inter- em outra situação na qual perdura, ou vem
subjetivo –, que faz referência a um mundo reativado em sua eficácia.
possível. Como um texto, a ação tem um con- Finalmente, as ações, como os textos,
teúdo de sentido, um significado que é inde- desde que legíveis, são abertas a novas in-
pendente do evento e da ação, e que consis- terpretações: a história passada nunca está
te, não apenas em “conteúdo proposicional” concluída, e o que está faltando ainda tem
(a matéria da ação, por assim dizer), mas tam- um futuro. O sentido das ações e de cada
bém da “força ilocucionária”. Afirma-se que ação humana não é decidido de uma vez por
certa ação deixa um traço que pode marcar todas. Se cada ação inclui, como seu último
o curso dos acontecimentos. As ações assim referimento, um horizonte de possibilidades
concebidas inscrevem-se no tempo e passam inexploradas, que pode ser reprisado na tra-
a pertencer ao gênero de coisas que precisam ma intersubjetiva das interpretações futuras,
ser lidas como os textos, os quais se separam o mundo histórico aparece como a unidade
de seus autores; bem como as ações, que se – unidade na qual se destacam as possibilida-
desprendem daqueles que agem e produzem, des de interpretação e de realização prática.
inclusive, suas consequências. Como o texto que, por meio do trabalho de
Essa automação constitui a dimensão interpretação, dá vida a novos textos, assim
social da ação, não somente porque represen- as ações criam uma nova prática: esta seria a
ta o trabalho de agentes, mas também por- última consequência de levar o paradigma do
que os atos escapam de seu autor e possuem texto como modelo da ação sensata. Pode-
efeitos, por vezes, inesperados. A distância -se pensar no sentido de resgate da história,
entre a experiência almejada e a intenção do na possibilidade de interpretar aquilo que foi
autor, de um lado, e o que um texto significa, esquecido, negligenciado ou excluído na his-
de outro, reproduzem-se na distância entre o tória dos vencedores. Então, torna-se viável
agente que se encaixa em um contexto, em a possibilidade de escolha de alguém para
um curso de eventos. Graças a uma espécie colocar-se do lado dos vencidos da história,
de sedimentação no tempo social, as ações a fim de ler a história passada com os olhos
humanas tornam-se “instituições”, sendo das vítimas, dos esquecidos, dos excluídos, e,
que, em virtude das causas desses processos ao olhar para o futuro, assumir a ótica de uma
de separação, de automações e de sedimen- história em aberto, a ser interpretada (JERVO-
tações, tais ações podem tornar complexa a LINO, 1996).

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Sendo assim, a relação entre texto e 62). A resposta a essa interrogação é a de que
ação é absolutamente central, uma vez que a fenomenologia, contrariando o princípio de
o texto, como discurso, pressupõe o agir e a intencionalidade que a originou, não perma-
ação, polimórfica e múltipla como os discur- neceu em sua descoberta maior, isto é, a de
sos dos homens, pode ser considerada um que a consciência tem seu sentido fora de si
texto. O resultado disso é que a metodologia mesma, porque, para Ricoeur:
das ciências humanas, que tomam por obje-
to a ação sensata, tem a possibilidade de ti- É com o tema da intencionalidade
rar lições valiosas de uma hermenêutica dos que a fenomenologia transcen­
textos que não se opõem, mas pretendem den­tal se afirma como filosofia
integrar explicação e compreensão. Os textos do sentido: a exclusão do mundo
dizem algo sobre o mundo e, ao mesmo tem- não suprime a relação com o
po, podem ser considerados a projeção de um mundo, mas faz com que ela surja
mundo. Dessa forma, o significado do texto, precisamente como superação do
em sua integridade, não é algo que está por Ego em direcção a um sentido “que
trás da intenção que se oculta, mas algo que transporta dentro de si”. Reciproca-
está diante daquilo que interpela o indivíduo. mente, é a redução transcendental
Nesse sentido, para Jervolino (1996), essa si- que interpreta a intencionalidade
tuação também se aplica às ações sensatas e como objectivo de um sentido e
aos fenômenos sociais em geral. não como um contacto com um ex-
A hermenêutica do texto em Ricoeur terior absoluto. (1986, p. 173).
(1989) pode arremessar o leitor, não como
os objetos manipuláveis, mas de outro modo, Esse equívoco acarreta, para a fenome-
como o próprio horizonte da vida e do projeto nologia, um legado de ameaças, limitando-a
de cada um. Em resumo, somos jogados no le- em um subjetivismo transcendental, o que
benswelt, como “ser-no-mundo” que marca significa redundância, cuja solução pode cair
nossa existência. em uma espécie de armadilha, como o exem-
Nesse procedimento, não se trata de es- plo do mito de Sísifo, que somente pode ser
tabelecer a hermenêutica como uma investi- oferecida na condição de deslocar-se a inter-
gação das intenções psicológicas escondidas pretação do campo da subjetividade, pura e
no texto, mas como a explicitação do ser-no- transcendental, centrada em si mesma, para
-mundo revelado pelo texto, porque o proces- o mundo descoberto pelo texto. Diante dis-
so de compreensão não pode atrelar-se numa so, Ricoeur explicita que, “sem leitor que o
investigação de cunho meramente psicológi- acompanhe, não há ato configurante nem
co, mas ao mundo aberto do texto. obra no texto, e sem leitor que se aproprie
O que se explicita nesse mundo aberto dele, não há mundo desenrolado diante do
do texto é o problema do mundo como ho- texto” (1985, p. 239). A ampliação do horizon-
rizonte da vida. A unidade explicitada pelo te do sujeito por meio da mediação do símbo-
texto, que faz nascer imediatamente a ne- lo, do signo e do texto possibilita descartar o
cessidade de uma interpretação, somente é pensamento solipsista ou monádico, por ser
possível pelo aspecto da distanciação, seja ela este semelhante a uma casa sem portas e sem
de conotação temporal, geográfica, cultural janelas. Acrescentaríamos, nesse contexto,
ou espiritual, para tornar o distante (mundo) que as portas e as janelas abrem-se para que
próximo e habitável. Nesse ponto, Ricoeur é o “morador” possa ver o mundo à sua volta
incisivo em relação a Husserl, pois é a ele que (CORÁ, 2004, 2010).
tem em mente ao perguntar: “Qual será o Nessa perspectiva, a compreensão de si
choque desta hermenêutica centrada na coisa não é mais realizada de forma imediata, mas
do texto, no idealismo husserliano?” (1989, p. implica compreender-se por intermédio do tex-

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to. Com essa mudança, Ricoeur substitui o eu, tido dialético, ou seja, é “o princípio de uma
aquele que diz respeito ao si mesmo, pelo si, luta entre a alteridade, que transforma toda
aquele que se constitui como discípulo do tex- a distância espacial e temporal em alienação
to. Consolida-se, dessa maneira, a subjetivida- cultural, e a ipseidade, pela qual toda a com-
de como compreensão mediatizada pelo tex- preensão visa à extensão da autocompreen-
to, ou, como bem define Ricoeur, por meio do são” (1987, p.46).
“mundo da obra”. Ricoeur (1998) acentua que Conforme Ricoeur, “a espiral hermenêu-
a linguagem descreve mais que a realidade: tica concretiza-se na solução narrativa para a
revela e cria. Nesse sentido, esclarece Jardim problemática temporal, por uma passagem
(2005), nossa relação com o real não é direta, da pré-compreensão do mundo da ação à
mas sempre mediatizada pelas configurações transformação do mundo do leitor” (1986, p.
e refigurações, as quais criam congruência e 11), ou seja, muda o agir, no qual a passagem
dão forma e sentido à experiência humana. somente é possibilitada pela ação cruzada da
Certamente por isso, a transmissão e ficção e da historiografia. Dessa maneira, a
a tradição assumem um papel primordial função narrativa será compreendida como
em relação ao processo da imaginação em
sua reformulação da realidade. Aquilo que, ambição de refigurar a condição
tanto as narrativas de ficção como as obras histórica e de a elevar ao estatuto
historiográficas refazem (configuram) criati- de consciência histórica, surgindo
vamente, é o mundo da ação humana e sua como uma mediação entre o futuro
dimensão temporal profunda. Desse modo, enquanto horizonte de expectati-
a ficção reformula a realidade prática. O vas, o passado como tradição e o
mundo do texto intervém, por meio da leitu- presente como surgimento. (JAR-
ra, em nosso mundo de ação para figurá-lo, DIM, 2005, p. 7).
esclarecendo-o e transformando-o (JARDIM,
2005). Com isso, está delineada a maravilho- Edifica-se, por meio dessa interpreta-
sa contribuição da narrativa no processo de ção, uma nova concepção do presente e da
reconhecimento de si e, consequentemente, ação como iniciativa, que engendram no ho-
do outro. Nesse processo, esclarece ainda mem a capacidade de começar ou dar um
Jardim (2005), imaginação não é uma função novo rumo aos acontecimentos; de, literal-
puramente mimética; é também projetiva, mente, metamorfosear-se na dinâmica da
correspondendo ao dinamismo da ação. vida e da narração.
Conforme Saldanha (2009), na procura Segue-se, a partir disso, que a distancia-
e no desejo de reconhecimento de si, a alter- ção não é um fenômeno quantitativo, mas é
nativa à ideia de luta deverá ser procurada a contrapartida dinâmica da necessidade, do
nas experiências pacíficas de reconhecimento interesse e do esforço do indivíduo em supe-
mútuo, as quais, embora revestidas de caráter rar a alienação cultural, podendo, inclusive,
excepcional, mostram que, apesar de tudo, o surpreender no processo de escrever e ler
reconhecimento pode ter efetivamente lugar, na luta cultural. A leitura será o pharmacon,
considerando que o desejo de ser reconheci- o “remédio”, pelo qual a significação do tex-
do pode desempenhar uma função determi- to pode ser “resgatada” do estranhamento
nante no querer viver com o outro. da distanciação e posta em uma nova proxi-
Entretanto, para esse “querer viver”, midade que suprime e preserva a distância
é fundamental compreender o conceito de cultural e inclui a alteridade na ipseidade
distância para além de um fato, de um dado (CORÁ, 2004, 2010).
ou um efetivo hiato espacial e temporal, cujo Essas novas aberturas originadas no
aparecimento em uma obra de arte ou em um texto tornam-se um problema de interpre-
discurso, permite a Ricoeur defini-los em sen- tação. Além desse problema, Ricoeur (1989)

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admite, como consequência da própria estruturas […]. Responderei: in-
emancipação da coisa escrita em relação à terpretar é explicitar o modo de
condição dialogal do discurso, a impossibili- ser-no-mundo exposto diante do
dade de colocar a relação entre escrever e texto. (RICOEUR, 1989, p. 121).
ler como sendo apenas um caso particular da
relação entre falar e ouvir. Nesse contexto, Portanto, o ato de compreender não se
pode-se entender melhor a frase basilar de encontra mais ligado à compreensão do ou-
Ricoeur: “a hermenêutica começa onde o di- tro, mas é uma estrutura do ser-no-mundo. O
álogo acaba” (1996, p. 43). que permanece desse processo na teoria do
Pelo caráter revelador, o “mundo da texto é que o que é preciso interpretar em um
obra” permite ao sujeito reconhecer-se pe- texto é uma proposta de mundo que possa
rante a obra e tornar a subjetividade um pon- ser, ao mesmo tempo, habitável e que possa
to de chegada, e não apenas um ponto de par- projetar-se nele uma das quase infinitas possi-
tida para o conhecimento de si. Para Jardim bilidades contidas no texto.
(2005), o conjunto de valores e de crenças Nessa medida, aquilo que é interpretado
que pautam a conduta, a vivência temporal em um texto é a proposta, ou o surgimento, de
de uma realidade histórica, é transfigurado um mundo no qual se vive e no qual se podem
por meio do encontro entre a pessoa e a obra criar possibilidades pessoais. O que o autor de-
que lê. A nova ordem estabelecida passa a de- nomina “mundo do texto” é o mundo próprio
signar que o compreender é compreender-se a esse texto único em que todos se encontram.
diante do texto. Dessa maneira, o sujeito, não Essa expressão (texto único) pode dar margem
mais constitui, mas é constituído pelo mundo a confusões: de que modo Ricoeur poderia es-
da obra, e dela recebe um si mais amplo, cons- tar propondo um texto único se sua herme-
tituído pela coisa do texto. nêutica dependesse do conflito das interpre-
Segundo Gagnebin, o processo herme- tações? Acredita-se que, a partir do tema do
nêutico desapropria duplamente o indivíduo conflito, pode-se explorar a noção de mundo
da interpretação, “obriga-o a uma ascese pri- do texto, quando interpretações conflitantes
meira diante da alteridade da obra; e, num apresentam mundos conflitantes. Nesse senti-
segundo momento, desaloja-o de sua iden- do, Ricoeur pontua: “direi […] na linha de uma
tidade primeira para abri-lo a novas possibi- hermenêutica a partir do texto e da ‘coisa’ do
lidades de habitar o mundo” (1997, p. 4). O texto, que é, em princípio, à minha imaginação
sujeito mostra-se, ao mesmo tempo, nesse que o texto fala, propondo-lhe os ‘figurativos’
dinamismo, como leitor e escritor de sua vida, da minha libertação” (1986, p. 138).
ou seja, a história de uma vida não cessa de Diferentemente da linguagem cotidia-
ser refigurada e examinada, tornando-se, o na, o mundo do texto possibilita um distancia-
conhecimento de si, uma história efetiva, se- mento do real em relação a si mesmo – é o
melhante ao texto. aspecto da distanciação da apreensão da re-
Diante disso, o problema hermenêutico alidade empregada por meio da ficção – que
apresenta-se de forma basilar, pois precisa- sempre abre novas possibilidades ao ser-no-
rá responder ao que permanece para ser in- -mundo. Essa mudança é possível graças ao
terpretado pela hermenêutica, se já não se que Ricoeur designa como variações imagi-
pode defini-la nativas, que habilitam e viabilizam a literatura
para atuar na realidade. O tema das variações
como a investigação de outrem imaginativas em Ricoeur também merece ser
e das suas intenções psicológicas explorado para tornar compreensível de que
que se dissimulam atrás do texto modo o mundo do texto é sempre um mundo
e se já não queremos reduzir a in- projetado, dando ensejo a novas possibilida-
terpretação à desmontagem das des de ser-no-mundo.

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A hermenêutica como explicitação hermenêutica, esta se engaja em um movi-
de sentido mento que toma o texto como paradigma da
O primeiro dos pressupostos da análise condição carnal e finita do homem – condição
ricoeuriana diz respeito ao sentido do ser, que remete para além do texto: a ação, a exis-
resgatado por Husserl. A fenomenologia, tência, a ipseidade e a vida, no pleno significa-
mantendo-se pura e se abstendo-se da po- do humano (JERVOLINO, 1998).
sição existencial da natureza, não pode ser Ricoeur conduz o leitor à meditação so-
mais que uma investigação da essência (HUS- bre a existência – com suas características pa-
SERL,1992). Por meio desse pressuposto, po- radoxais, enigmáticas, misteriosas, que con-
de-se explicar sua atitude contrária ao natura- vergem nos problemas do mal e do sagrado
lismo-objetivista e ligá-la à hermenêutica. É a –, ao mesmo tempo tomada na esfera de uma
partir dessa preocupação de cunho ontológi- fenomenologia rigorosa das experiências que
co, reclamada por Husserl e dirigida contra a constituem a essência da humanidade e que
ciência moderna, que a fenomenologia aspira encontra um equilíbrio frágil no sentimento,
novamente a uma unidade de sentido. no qual seu discurso filosófico supõe e exige
Para Jervolino (1998), a conciliação pre- uma relação constante e constitutiva do pen-
cisa ser procurada na existência. A filosofia sar. Assim, a filosofia não é origem e nem se
não é a voz do ser, mas é a hermenêutica da pode compreendê-la em sua inteireza sem
vida, vida de seres humanos de carne e osso, pressuposições. Ela implica o conhecimento
seres de desejo e de discurso, plurais e frá- da dor humana e da culpa, bem como a busca
geis, capazes de agir e de sofrer, de interagir e de sentido no discurso fenomenológico.
de compartilhar. É sobre o fundo opaco, ator- A culpa pode ser interpretada, confor-
mentado e problemático do viver que se des- me os textos ricoeurianos, como uma estru-
taca a linguagem, com suas múltiplas formas tura contingente e histórica que se encontra
e usos: prática social, expressão das necessi- relacionada com todos os aspectos que carac-
dades e dos sentimentos, como os de cantar, terizam a finitude humana. O discurso feno-
orar, narrar e, finalmente, interrogar e procu- menológico-hermenêutico, por sua vez, con-
rar pelo sentido das coisas. Ricoeur encontra forme explicita Jervolino (1998), não elimina
no espaço da vida e da linguagem, em uma fi- a densidade problemática da vida, da qual
losofia sem absoluto, o discurso sensato com recebe novos materiais e impulsos, enquanto
a capacidade de ouvir e de decifrar os traços ele introduz elementos de compreensão e de
múltiplos e pluriformes da alteridade que pos- discernimento que não são necessariamen-
sibilitam ao autor reencontrar continuamente te identificáveis com a luz ofuscante de uma
o coração inquieto do si. razão absoluta e autotransparente, que seria
A poética tomada como figuração per- seu próprio fundamento, mas, antes, com a
manece, mas o eros secreto da pesquisa de luz viva, uma conquista parcial e sempre re-
Ricoeur construiu seu organon sob a forma novada de uma verdade no concreto, que é
de uma “fenomenologia hermenêutica”, isto sempre humana.
é, de uma reflexão que, passando pela me- A fenomenologia procura recuperar a
diação dos signos, dos símbolos e dos textos, perda de sentido, erigida pela própria crise
localiza seu objeto e o mais adequado no “si” interna da filosofia, em que esta perdeu a
que cada um é chamado a ser em uma relação diretriz, ou seja, o logos não é mais diretor,
essencial com seu outro. O desejo é de que pois o homem ocidental perdeu a confian-
a condição hermenêutica da razão filosófica ça na razão. Essa perda de sentido também
não seja ultrapassada por um discurso espe- é um dos fatores da própria crise de iden-
culativo; caracteriza-se como um espelho do tidade da filosofia, por isso a retomada de
ser na condição de ser sensato. Todavia, se sentido implica a crença na razão. Liga-se,
a filosofia é, radicalmente, como um tipo de portanto, ao conceito de constituição feno-

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menológica, a tarefa de realização de senti- Considerações finais
do da própria existência. O mundo da obra, tomado em seu
O conceito de distanciação, como se conjunto como “discurso-obra-escrita”, de-
observou, é o pressuposto para que a her- senvolve-se de tal maneira que se torna o
menêutica retroceda à fenomenologia. Além núcleo ordenador da questão hermenêutica
disso, o conceito de distanciação possui a ricoeuriana. O papel do texto passa a ser cen-
propriedade de corrigir dialeticamente o con- tral, pois é por intermédio dele que se abre
ceito de pertença. Por meio da maneira de se a perspectiva denominada mundo da obra.
fazer parte ou de se pertencer a uma tradição É em face do texto que a obra “desenvolve,
histórica, sempre se está, ao mesmo tempo, descobre, revela” (RICOEUR, 1989, p. 124)
em uma condição de pertença e em uma re- um si mais amplo e capaz de compreender-se
lação de distância que, de modo semelhante diante do texto. A importância de estabelecer
ao movimento de um pêndulo, marca a rela- uma releitura e uma compreensão mediatiza-
ção de afastamento e de proximidade. A ca- da pelos signos, pelos símbolos e pelos tex-
racterística peculiar da interpretação é a de tos, é que estes permitem a explicitação, a
aproximar o distante, para que o texto possa interpretação e a formação stricto sensu da
se tornar a ponte dessa edificação. De modo identidade da pessoa, tanto no nível particu-
sucinto, pode-se afirmar que essa é a via para lar quanto no nível coletivo.
a compreensão de si como um texto a ser in- Cabe recordar a necessidade que a feno-
terpretado, e não como uma subjetividade a menologia possui de gerar uma explicitação
ser conhecida. ou uma interpretação. É na relação entre fe-
O momento de distanciação já estaria nomenologia e egologia que o mundo passa a
contido na consciência de sentido, como in- ter sentido ao ego. O grande desafio da feno-
terpretação do “vivido”. menologia sempre foi o de explicar o sentido
É este gesto filosófico que a herme­ do outro e sua constituição em mim e a par-
nêutica prolonga na região que é a sua, a tir de mim. Além disso, parece contraditório
das ciências históricas e, mais amplamente, conceber um outro quando se acredita no eu
a das ciências do espírito. O “vivido” que ela como sendo uma existência única.
procura trazer à linguagem e elevar ao sentido Essa contradição avança mais ainda na
é a conexão histórica, mediatizada pela trans- tensão a partir da e pela qual se busca cons-
missão dos documentos escritos, das obras, tituir o outro em mim. É nessa tensão perma-
das instituições, dos monumentos, que tor- nente entre os egos, que também são cons-
nam presente para nós o passado histórico. tituídos em si, e a minha própria constituição
É por isso que a distanciação hermenêutica é solitária, que Husserl elabora seu conceito de
para a pertença o que, na fenomenologia, a “tornar presente” em mim um outro corpo,
epoché é para o vivido (RICOEUR, 1989, p. 67). em uma espécie de acoplamento ou, como
De acordo com Corá (2004, 2010), na ela- ele designa, em uma modificação intencional
boração do conceito de hermenêutica da dis- do meu eu. Nesse sentido, permite-se, por in-
tanciação, Ricoeur estabelece o texto como termediário da interpretação, resolver esse
forma de comunicação inter-humana, ou seja, aparente paradoxo entre um “projeto de des-
como modelo de distanciação. Procura mostrar crição de transcendência e um projeto na ima-
que, por meio desse conceito, revela-se um as- nência” (RICOEUR, 1989, p. 78).
pecto importantíssimo da experiência histórica A fenomenologia tem a característica de
humana, a saber: “que ela é uma comunicação encontrar o mundo como um (pré) dado, ou
na e pela distância” (RICOEUR, 1989, p. 110). É seja, ela não cria nada de novo, mas encontra
por meio dessa noção que ele confirma o papel o mundo em “carne e osso”. Segundo Ricoeur
positivo e produtor da distanciação no interior (1954), isso se constata por meio do conceito
da experiência histórica humana. de evidência, que é central para a fenomeno-

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logia husserliana. A evidência é descrita por constituído em “mim” e, por outro lado, per-
Husserl como a presença da coisa mesma, de manece um outro. O enigma da constituição
modo “original”, em mim. É nesse “encon- do outro em mim necessita de interpreta-
trar”, e nesse estar “presente” diante de, que ção. A constituição liga o indivíduo a um ho-
exige da fenomenologia uma constante expli- rizonte sempre aberto e infinito que, a partir
citação de sentido (do eu, do outro, da natu- disso, requer sempre uma constante expli-
reza, da história) que o mundo tem para mim. citação entre o sujeito e o mundo. É em vir-
Conforme Ricoeur, portanto, “é a consciência tude dessa necessidade que a hermenêutica
que doa sentido, mas é a coisa que se doa a si- infiltra-se na fenomenologia. Dessa forma, o
-mesma” (1954, p. 100). Esse “ver inicial” (voir grande mérito de Husserl, reconhecido e as-
initial) da fenomenologia não é tomado como sumido por Ricoeur (1989), consiste em que:
um corpo estranho na vida da consciência, a) o que ele apercebeu, sem daí tirar todas
desde que ele não seja considerado presença as consequências, foi a coincidência da intui-
do outro, mas presença de si mesmo. Desse ção e da explicitação; b) toda a fenomeno-
modo, insere-se no caminho da fenomenolo- logia é uma explicitação na evidência e uma
gia husserliana a redução da presença de algo evidência na explicitação; c) que a experiên-
ao presente da consciência temporal. cia fenomenológica é uma evidência que se
O conceito de interpretação é central explicita e uma explicitação que desenvolve
na compreensão da fenomenologia, pois, uma evidência. Ricoeur, então, conclui que a
por meio dele, o sujeito constitui-se e é cons- fenomenologia não pode efetuar-se senão
tituído, ou seja, pela interpretação, o outro é como hermenêutica.

Referências
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Dados autorais:

Élsio José Corá


Graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
mestrado em Filosofia pela UFSM (2004) e doutorado pela PUCRS (2010),
com estágio de doutorado na Università degli Studi di Napoli Federico II.
Membro do Grupo de Pesquisa: Ética e Ética Aplicada (UFSM/CNPQ)
e Ética e Política (UFFS/CNPQ). Professor Adjunto da Universidade
Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó, SC.

Luzia Batista de Oliveira Silva


Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Graduação
em Filosofia pela PUC/SP (1994), mestrado em Filosofia pela PUC/SP (1997)
e doutorado em Educação pela FE/USP (2004). É docente
do PPGE-UNIMEP; Líder do Grupo de Pesquisa:
Walter Benjamin, Filosofia, Educação (UNIMEP/CNPq).

Recebido: 13/11/2013
Aprovado: 06/02/2014

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