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de Paul Ricoeur
A
lzosilva@unimep.br
hermenêutica de Ricoeur possui como traço distintivo
a atenção voltada ao caráter conflituoso da experiência
humana. Na obra O conflito das interpretações (1978), o
autor reúne uma coleção de ensaios de hermenêutica, escritos
da década de 1960, marcando uma característica de seu pensa-
mento – a pesquisa “ecumênica” –, ou seja, a mediação entre
diversas posições filosóficas. Para o autor, por trás dos textos
e das obras de literatura existem homens que agem e sofrem,
sendo os textos e os discursos as expressões da ação desses
homens (JERVOLINO, 1996).
Por isso, uma análise crítica da ação humana constitui-
-se como tentativa de compreensão do humano, que se realiza
por meio e a partir da ação. Além disso, essa ação não é objeto
de uma exaltação narcisista ou irracional, haja vista apresentar-
-se, concomitantemente, criativa e finita, englobando sujeitos
constituídos de carne e osso, exprimindo, ao mesmo tempo, a
pluralidade destes. Essa ação é atravessada de lado a lado pela
linguagem, dado que é pela linguagem que se atribuição dos eventos, da responsabilidade
apreende a finitude, a criatividade e a singula- individual, ou seja, aos sujeitos singulares, a
ridade carnal dos sujeitos, bem como por ela história pode parecer um jogo complicado
se promove a abertura ao outro e ao mundo. entre atores que não conhecem a trama com-
Todavia, o nexo originário e essencial plexa em que são chamados para recitar (JER-
entre fazer e dizer, que permeia a novidade VOLINO, 1996).
do texto ricoeuriano, constitui o primeiro e O texto supera a “referencialidade” os-
grande benefício de uma hermenêutica da tensiva – a possibilidade de indicar, na mesma
ação, embora não somente na descoberta de situação de diálogo, o que é que se fala – para
que o texto é ação, mas também uma força abrir a possibilidade de referência mais am-
decisiva pela qual as ações podem ser lidas pla e desacoplada das situações dos sujeitos
como um texto para decifrar e interpretar o falantes. Além disso, a importância da ação
mundo e a nós mesmos. supera sua relevância em relação à situação
Nesse contexto, para Jervolino (1996), imediata (JERVOLINO, 1996). Isso quer dizer
considerar a ação um texto significa encon- que as ações importantes, ricas em significa-
trar os traços constitutivos do discurso na do, transcendem as condições nas quais são
modalidade própria ao discurso escrito – do produzidas: seu sentido pode ser retomado
discurso como fenômeno temporal e inter- em outra situação na qual perdura, ou vem
subjetivo –, que faz referência a um mundo reativado em sua eficácia.
possível. Como um texto, a ação tem um con- Finalmente, as ações, como os textos,
teúdo de sentido, um significado que é inde- desde que legíveis, são abertas a novas in-
pendente do evento e da ação, e que consis- terpretações: a história passada nunca está
te, não apenas em “conteúdo proposicional” concluída, e o que está faltando ainda tem
(a matéria da ação, por assim dizer), mas tam- um futuro. O sentido das ações e de cada
bém da “força ilocucionária”. Afirma-se que ação humana não é decidido de uma vez por
certa ação deixa um traço que pode marcar todas. Se cada ação inclui, como seu último
o curso dos acontecimentos. As ações assim referimento, um horizonte de possibilidades
concebidas inscrevem-se no tempo e passam inexploradas, que pode ser reprisado na tra-
a pertencer ao gênero de coisas que precisam ma intersubjetiva das interpretações futuras,
ser lidas como os textos, os quais se separam o mundo histórico aparece como a unidade
de seus autores; bem como as ações, que se – unidade na qual se destacam as possibilida-
desprendem daqueles que agem e produzem, des de interpretação e de realização prática.
inclusive, suas consequências. Como o texto que, por meio do trabalho de
Essa automação constitui a dimensão interpretação, dá vida a novos textos, assim
social da ação, não somente porque represen- as ações criam uma nova prática: esta seria a
ta o trabalho de agentes, mas também por- última consequência de levar o paradigma do
que os atos escapam de seu autor e possuem texto como modelo da ação sensata. Pode-
efeitos, por vezes, inesperados. A distância -se pensar no sentido de resgate da história,
entre a experiência almejada e a intenção do na possibilidade de interpretar aquilo que foi
autor, de um lado, e o que um texto significa, esquecido, negligenciado ou excluído na his-
de outro, reproduzem-se na distância entre o tória dos vencedores. Então, torna-se viável
agente que se encaixa em um contexto, em a possibilidade de escolha de alguém para
um curso de eventos. Graças a uma espécie colocar-se do lado dos vencidos da história,
de sedimentação no tempo social, as ações a fim de ler a história passada com os olhos
humanas tornam-se “instituições”, sendo das vítimas, dos esquecidos, dos excluídos, e,
que, em virtude das causas desses processos ao olhar para o futuro, assumir a ótica de uma
de separação, de automações e de sedimen- história em aberto, a ser interpretada (JERVO-
tações, tais ações podem tornar complexa a LINO, 1996).
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Sendo assim, a relação entre texto e 62). A resposta a essa interrogação é a de que
ação é absolutamente central, uma vez que a fenomenologia, contrariando o princípio de
o texto, como discurso, pressupõe o agir e a intencionalidade que a originou, não perma-
ação, polimórfica e múltipla como os discur- neceu em sua descoberta maior, isto é, a de
sos dos homens, pode ser considerada um que a consciência tem seu sentido fora de si
texto. O resultado disso é que a metodologia mesma, porque, para Ricoeur:
das ciências humanas, que tomam por obje-
to a ação sensata, tem a possibilidade de ti- É com o tema da intencionalidade
rar lições valiosas de uma hermenêutica dos que a fenomenologia transcen
textos que não se opõem, mas pretendem dental se afirma como filosofia
integrar explicação e compreensão. Os textos do sentido: a exclusão do mundo
dizem algo sobre o mundo e, ao mesmo tem- não suprime a relação com o
po, podem ser considerados a projeção de um mundo, mas faz com que ela surja
mundo. Dessa forma, o significado do texto, precisamente como superação do
em sua integridade, não é algo que está por Ego em direcção a um sentido “que
trás da intenção que se oculta, mas algo que transporta dentro de si”. Reciproca-
está diante daquilo que interpela o indivíduo. mente, é a redução transcendental
Nesse sentido, para Jervolino (1996), essa si- que interpreta a intencionalidade
tuação também se aplica às ações sensatas e como objectivo de um sentido e
aos fenômenos sociais em geral. não como um contacto com um ex-
A hermenêutica do texto em Ricoeur terior absoluto. (1986, p. 173).
(1989) pode arremessar o leitor, não como
os objetos manipuláveis, mas de outro modo, Esse equívoco acarreta, para a fenome-
como o próprio horizonte da vida e do projeto nologia, um legado de ameaças, limitando-a
de cada um. Em resumo, somos jogados no le- em um subjetivismo transcendental, o que
benswelt, como “ser-no-mundo” que marca significa redundância, cuja solução pode cair
nossa existência. em uma espécie de armadilha, como o exem-
Nesse procedimento, não se trata de es- plo do mito de Sísifo, que somente pode ser
tabelecer a hermenêutica como uma investi- oferecida na condição de deslocar-se a inter-
gação das intenções psicológicas escondidas pretação do campo da subjetividade, pura e
no texto, mas como a explicitação do ser-no- transcendental, centrada em si mesma, para
-mundo revelado pelo texto, porque o proces- o mundo descoberto pelo texto. Diante dis-
so de compreensão não pode atrelar-se numa so, Ricoeur explicita que, “sem leitor que o
investigação de cunho meramente psicológi- acompanhe, não há ato configurante nem
co, mas ao mundo aberto do texto. obra no texto, e sem leitor que se aproprie
O que se explicita nesse mundo aberto dele, não há mundo desenrolado diante do
do texto é o problema do mundo como ho- texto” (1985, p. 239). A ampliação do horizon-
rizonte da vida. A unidade explicitada pelo te do sujeito por meio da mediação do símbo-
texto, que faz nascer imediatamente a ne- lo, do signo e do texto possibilita descartar o
cessidade de uma interpretação, somente é pensamento solipsista ou monádico, por ser
possível pelo aspecto da distanciação, seja ela este semelhante a uma casa sem portas e sem
de conotação temporal, geográfica, cultural janelas. Acrescentaríamos, nesse contexto,
ou espiritual, para tornar o distante (mundo) que as portas e as janelas abrem-se para que
próximo e habitável. Nesse ponto, Ricoeur é o “morador” possa ver o mundo à sua volta
incisivo em relação a Husserl, pois é a ele que (CORÁ, 2004, 2010).
tem em mente ao perguntar: “Qual será o Nessa perspectiva, a compreensão de si
choque desta hermenêutica centrada na coisa não é mais realizada de forma imediata, mas
do texto, no idealismo husserliano?” (1989, p. implica compreender-se por intermédio do tex-
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to. Com essa mudança, Ricoeur substitui o eu, tido dialético, ou seja, é “o princípio de uma
aquele que diz respeito ao si mesmo, pelo si, luta entre a alteridade, que transforma toda
aquele que se constitui como discípulo do tex- a distância espacial e temporal em alienação
to. Consolida-se, dessa maneira, a subjetivida- cultural, e a ipseidade, pela qual toda a com-
de como compreensão mediatizada pelo tex- preensão visa à extensão da autocompreen-
to, ou, como bem define Ricoeur, por meio do são” (1987, p.46).
“mundo da obra”. Ricoeur (1998) acentua que Conforme Ricoeur, “a espiral hermenêu-
a linguagem descreve mais que a realidade: tica concretiza-se na solução narrativa para a
revela e cria. Nesse sentido, esclarece Jardim problemática temporal, por uma passagem
(2005), nossa relação com o real não é direta, da pré-compreensão do mundo da ação à
mas sempre mediatizada pelas configurações transformação do mundo do leitor” (1986, p.
e refigurações, as quais criam congruência e 11), ou seja, muda o agir, no qual a passagem
dão forma e sentido à experiência humana. somente é possibilitada pela ação cruzada da
Certamente por isso, a transmissão e ficção e da historiografia. Dessa maneira, a
a tradição assumem um papel primordial função narrativa será compreendida como
em relação ao processo da imaginação em
sua reformulação da realidade. Aquilo que, ambição de refigurar a condição
tanto as narrativas de ficção como as obras histórica e de a elevar ao estatuto
historiográficas refazem (configuram) criati- de consciência histórica, surgindo
vamente, é o mundo da ação humana e sua como uma mediação entre o futuro
dimensão temporal profunda. Desse modo, enquanto horizonte de expectati-
a ficção reformula a realidade prática. O vas, o passado como tradição e o
mundo do texto intervém, por meio da leitu- presente como surgimento. (JAR-
ra, em nosso mundo de ação para figurá-lo, DIM, 2005, p. 7).
esclarecendo-o e transformando-o (JARDIM,
2005). Com isso, está delineada a maravilho- Edifica-se, por meio dessa interpreta-
sa contribuição da narrativa no processo de ção, uma nova concepção do presente e da
reconhecimento de si e, consequentemente, ação como iniciativa, que engendram no ho-
do outro. Nesse processo, esclarece ainda mem a capacidade de começar ou dar um
Jardim (2005), imaginação não é uma função novo rumo aos acontecimentos; de, literal-
puramente mimética; é também projetiva, mente, metamorfosear-se na dinâmica da
correspondendo ao dinamismo da ação. vida e da narração.
Conforme Saldanha (2009), na procura Segue-se, a partir disso, que a distancia-
e no desejo de reconhecimento de si, a alter- ção não é um fenômeno quantitativo, mas é
nativa à ideia de luta deverá ser procurada a contrapartida dinâmica da necessidade, do
nas experiências pacíficas de reconhecimento interesse e do esforço do indivíduo em supe-
mútuo, as quais, embora revestidas de caráter rar a alienação cultural, podendo, inclusive,
excepcional, mostram que, apesar de tudo, o surpreender no processo de escrever e ler
reconhecimento pode ter efetivamente lugar, na luta cultural. A leitura será o pharmacon,
considerando que o desejo de ser reconheci- o “remédio”, pelo qual a significação do tex-
do pode desempenhar uma função determi- to pode ser “resgatada” do estranhamento
nante no querer viver com o outro. da distanciação e posta em uma nova proxi-
Entretanto, para esse “querer viver”, midade que suprime e preserva a distância
é fundamental compreender o conceito de cultural e inclui a alteridade na ipseidade
distância para além de um fato, de um dado (CORÁ, 2004, 2010).
ou um efetivo hiato espacial e temporal, cujo Essas novas aberturas originadas no
aparecimento em uma obra de arte ou em um texto tornam-se um problema de interpre-
discurso, permite a Ricoeur defini-los em sen- tação. Além desse problema, Ricoeur (1989)
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admite, como consequência da própria estruturas […]. Responderei: in-
emancipação da coisa escrita em relação à terpretar é explicitar o modo de
condição dialogal do discurso, a impossibili- ser-no-mundo exposto diante do
dade de colocar a relação entre escrever e texto. (RICOEUR, 1989, p. 121).
ler como sendo apenas um caso particular da
relação entre falar e ouvir. Nesse contexto, Portanto, o ato de compreender não se
pode-se entender melhor a frase basilar de encontra mais ligado à compreensão do ou-
Ricoeur: “a hermenêutica começa onde o di- tro, mas é uma estrutura do ser-no-mundo. O
álogo acaba” (1996, p. 43). que permanece desse processo na teoria do
Pelo caráter revelador, o “mundo da texto é que o que é preciso interpretar em um
obra” permite ao sujeito reconhecer-se pe- texto é uma proposta de mundo que possa
rante a obra e tornar a subjetividade um pon- ser, ao mesmo tempo, habitável e que possa
to de chegada, e não apenas um ponto de par- projetar-se nele uma das quase infinitas possi-
tida para o conhecimento de si. Para Jardim bilidades contidas no texto.
(2005), o conjunto de valores e de crenças Nessa medida, aquilo que é interpretado
que pautam a conduta, a vivência temporal em um texto é a proposta, ou o surgimento, de
de uma realidade histórica, é transfigurado um mundo no qual se vive e no qual se podem
por meio do encontro entre a pessoa e a obra criar possibilidades pessoais. O que o autor de-
que lê. A nova ordem estabelecida passa a de- nomina “mundo do texto” é o mundo próprio
signar que o compreender é compreender-se a esse texto único em que todos se encontram.
diante do texto. Dessa maneira, o sujeito, não Essa expressão (texto único) pode dar margem
mais constitui, mas é constituído pelo mundo a confusões: de que modo Ricoeur poderia es-
da obra, e dela recebe um si mais amplo, cons- tar propondo um texto único se sua herme-
tituído pela coisa do texto. nêutica dependesse do conflito das interpre-
Segundo Gagnebin, o processo herme- tações? Acredita-se que, a partir do tema do
nêutico desapropria duplamente o indivíduo conflito, pode-se explorar a noção de mundo
da interpretação, “obriga-o a uma ascese pri- do texto, quando interpretações conflitantes
meira diante da alteridade da obra; e, num apresentam mundos conflitantes. Nesse senti-
segundo momento, desaloja-o de sua iden- do, Ricoeur pontua: “direi […] na linha de uma
tidade primeira para abri-lo a novas possibi- hermenêutica a partir do texto e da ‘coisa’ do
lidades de habitar o mundo” (1997, p. 4). O texto, que é, em princípio, à minha imaginação
sujeito mostra-se, ao mesmo tempo, nesse que o texto fala, propondo-lhe os ‘figurativos’
dinamismo, como leitor e escritor de sua vida, da minha libertação” (1986, p. 138).
ou seja, a história de uma vida não cessa de Diferentemente da linguagem cotidia-
ser refigurada e examinada, tornando-se, o na, o mundo do texto possibilita um distancia-
conhecimento de si, uma história efetiva, se- mento do real em relação a si mesmo – é o
melhante ao texto. aspecto da distanciação da apreensão da re-
Diante disso, o problema hermenêutico alidade empregada por meio da ficção – que
apresenta-se de forma basilar, pois precisa- sempre abre novas possibilidades ao ser-no-
rá responder ao que permanece para ser in- -mundo. Essa mudança é possível graças ao
terpretado pela hermenêutica, se já não se que Ricoeur designa como variações imagi-
pode defini-la nativas, que habilitam e viabilizam a literatura
para atuar na realidade. O tema das variações
como a investigação de outrem imaginativas em Ricoeur também merece ser
e das suas intenções psicológicas explorado para tornar compreensível de que
que se dissimulam atrás do texto modo o mundo do texto é sempre um mundo
e se já não queremos reduzir a in- projetado, dando ensejo a novas possibilida-
terpretação à desmontagem das des de ser-no-mundo.
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A hermenêutica como explicitação hermenêutica, esta se engaja em um movi-
de sentido mento que toma o texto como paradigma da
O primeiro dos pressupostos da análise condição carnal e finita do homem – condição
ricoeuriana diz respeito ao sentido do ser, que remete para além do texto: a ação, a exis-
resgatado por Husserl. A fenomenologia, tência, a ipseidade e a vida, no pleno significa-
mantendo-se pura e se abstendo-se da po- do humano (JERVOLINO, 1998).
sição existencial da natureza, não pode ser Ricoeur conduz o leitor à meditação so-
mais que uma investigação da essência (HUS- bre a existência – com suas características pa-
SERL,1992). Por meio desse pressuposto, po- radoxais, enigmáticas, misteriosas, que con-
de-se explicar sua atitude contrária ao natura- vergem nos problemas do mal e do sagrado
lismo-objetivista e ligá-la à hermenêutica. É a –, ao mesmo tempo tomada na esfera de uma
partir dessa preocupação de cunho ontológi- fenomenologia rigorosa das experiências que
co, reclamada por Husserl e dirigida contra a constituem a essência da humanidade e que
ciência moderna, que a fenomenologia aspira encontra um equilíbrio frágil no sentimento,
novamente a uma unidade de sentido. no qual seu discurso filosófico supõe e exige
Para Jervolino (1998), a conciliação pre- uma relação constante e constitutiva do pen-
cisa ser procurada na existência. A filosofia sar. Assim, a filosofia não é origem e nem se
não é a voz do ser, mas é a hermenêutica da pode compreendê-la em sua inteireza sem
vida, vida de seres humanos de carne e osso, pressuposições. Ela implica o conhecimento
seres de desejo e de discurso, plurais e frá- da dor humana e da culpa, bem como a busca
geis, capazes de agir e de sofrer, de interagir e de sentido no discurso fenomenológico.
de compartilhar. É sobre o fundo opaco, ator- A culpa pode ser interpretada, confor-
mentado e problemático do viver que se des- me os textos ricoeurianos, como uma estru-
taca a linguagem, com suas múltiplas formas tura contingente e histórica que se encontra
e usos: prática social, expressão das necessi- relacionada com todos os aspectos que carac-
dades e dos sentimentos, como os de cantar, terizam a finitude humana. O discurso feno-
orar, narrar e, finalmente, interrogar e procu- menológico-hermenêutico, por sua vez, con-
rar pelo sentido das coisas. Ricoeur encontra forme explicita Jervolino (1998), não elimina
no espaço da vida e da linguagem, em uma fi- a densidade problemática da vida, da qual
losofia sem absoluto, o discurso sensato com recebe novos materiais e impulsos, enquanto
a capacidade de ouvir e de decifrar os traços ele introduz elementos de compreensão e de
múltiplos e pluriformes da alteridade que pos- discernimento que não são necessariamen-
sibilitam ao autor reencontrar continuamente te identificáveis com a luz ofuscante de uma
o coração inquieto do si. razão absoluta e autotransparente, que seria
A poética tomada como figuração per- seu próprio fundamento, mas, antes, com a
manece, mas o eros secreto da pesquisa de luz viva, uma conquista parcial e sempre re-
Ricoeur construiu seu organon sob a forma novada de uma verdade no concreto, que é
de uma “fenomenologia hermenêutica”, isto sempre humana.
é, de uma reflexão que, passando pela me- A fenomenologia procura recuperar a
diação dos signos, dos símbolos e dos textos, perda de sentido, erigida pela própria crise
localiza seu objeto e o mais adequado no “si” interna da filosofia, em que esta perdeu a
que cada um é chamado a ser em uma relação diretriz, ou seja, o logos não é mais diretor,
essencial com seu outro. O desejo é de que pois o homem ocidental perdeu a confian-
a condição hermenêutica da razão filosófica ça na razão. Essa perda de sentido também
não seja ultrapassada por um discurso espe- é um dos fatores da própria crise de iden-
culativo; caracteriza-se como um espelho do tidade da filosofia, por isso a retomada de
ser na condição de ser sensato. Todavia, se sentido implica a crença na razão. Liga-se,
a filosofia é, radicalmente, como um tipo de portanto, ao conceito de constituição feno-
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menológica, a tarefa de realização de senti- Considerações finais
do da própria existência. O mundo da obra, tomado em seu
O conceito de distanciação, como se conjunto como “discurso-obra-escrita”, de-
observou, é o pressuposto para que a her- senvolve-se de tal maneira que se torna o
menêutica retroceda à fenomenologia. Além núcleo ordenador da questão hermenêutica
disso, o conceito de distanciação possui a ricoeuriana. O papel do texto passa a ser cen-
propriedade de corrigir dialeticamente o con- tral, pois é por intermédio dele que se abre
ceito de pertença. Por meio da maneira de se a perspectiva denominada mundo da obra.
fazer parte ou de se pertencer a uma tradição É em face do texto que a obra “desenvolve,
histórica, sempre se está, ao mesmo tempo, descobre, revela” (RICOEUR, 1989, p. 124)
em uma condição de pertença e em uma re- um si mais amplo e capaz de compreender-se
lação de distância que, de modo semelhante diante do texto. A importância de estabelecer
ao movimento de um pêndulo, marca a rela- uma releitura e uma compreensão mediatiza-
ção de afastamento e de proximidade. A ca- da pelos signos, pelos símbolos e pelos tex-
racterística peculiar da interpretação é a de tos, é que estes permitem a explicitação, a
aproximar o distante, para que o texto possa interpretação e a formação stricto sensu da
se tornar a ponte dessa edificação. De modo identidade da pessoa, tanto no nível particu-
sucinto, pode-se afirmar que essa é a via para lar quanto no nível coletivo.
a compreensão de si como um texto a ser in- Cabe recordar a necessidade que a feno-
terpretado, e não como uma subjetividade a menologia possui de gerar uma explicitação
ser conhecida. ou uma interpretação. É na relação entre fe-
O momento de distanciação já estaria nomenologia e egologia que o mundo passa a
contido na consciência de sentido, como in- ter sentido ao ego. O grande desafio da feno-
terpretação do “vivido”. menologia sempre foi o de explicar o sentido
É este gesto filosófico que a herme do outro e sua constituição em mim e a par-
nêutica prolonga na região que é a sua, a tir de mim. Além disso, parece contraditório
das ciências históricas e, mais amplamente, conceber um outro quando se acredita no eu
a das ciências do espírito. O “vivido” que ela como sendo uma existência única.
procura trazer à linguagem e elevar ao sentido Essa contradição avança mais ainda na
é a conexão histórica, mediatizada pela trans- tensão a partir da e pela qual se busca cons-
missão dos documentos escritos, das obras, tituir o outro em mim. É nessa tensão perma-
das instituições, dos monumentos, que tor- nente entre os egos, que também são cons-
nam presente para nós o passado histórico. tituídos em si, e a minha própria constituição
É por isso que a distanciação hermenêutica é solitária, que Husserl elabora seu conceito de
para a pertença o que, na fenomenologia, a “tornar presente” em mim um outro corpo,
epoché é para o vivido (RICOEUR, 1989, p. 67). em uma espécie de acoplamento ou, como
De acordo com Corá (2004, 2010), na ela- ele designa, em uma modificação intencional
boração do conceito de hermenêutica da dis- do meu eu. Nesse sentido, permite-se, por in-
tanciação, Ricoeur estabelece o texto como termediário da interpretação, resolver esse
forma de comunicação inter-humana, ou seja, aparente paradoxo entre um “projeto de des-
como modelo de distanciação. Procura mostrar crição de transcendência e um projeto na ima-
que, por meio desse conceito, revela-se um as- nência” (RICOEUR, 1989, p. 78).
pecto importantíssimo da experiência histórica A fenomenologia tem a característica de
humana, a saber: “que ela é uma comunicação encontrar o mundo como um (pré) dado, ou
na e pela distância” (RICOEUR, 1989, p. 110). É seja, ela não cria nada de novo, mas encontra
por meio dessa noção que ele confirma o papel o mundo em “carne e osso”. Segundo Ricoeur
positivo e produtor da distanciação no interior (1954), isso se constata por meio do conceito
da experiência histórica humana. de evidência, que é central para a fenomeno-
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logia husserliana. A evidência é descrita por constituído em “mim” e, por outro lado, per-
Husserl como a presença da coisa mesma, de manece um outro. O enigma da constituição
modo “original”, em mim. É nesse “encon- do outro em mim necessita de interpreta-
trar”, e nesse estar “presente” diante de, que ção. A constituição liga o indivíduo a um ho-
exige da fenomenologia uma constante expli- rizonte sempre aberto e infinito que, a partir
citação de sentido (do eu, do outro, da natu- disso, requer sempre uma constante expli-
reza, da história) que o mundo tem para mim. citação entre o sujeito e o mundo. É em vir-
Conforme Ricoeur, portanto, “é a consciência tude dessa necessidade que a hermenêutica
que doa sentido, mas é a coisa que se doa a si- infiltra-se na fenomenologia. Dessa forma, o
-mesma” (1954, p. 100). Esse “ver inicial” (voir grande mérito de Husserl, reconhecido e as-
initial) da fenomenologia não é tomado como sumido por Ricoeur (1989), consiste em que:
um corpo estranho na vida da consciência, a) o que ele apercebeu, sem daí tirar todas
desde que ele não seja considerado presença as consequências, foi a coincidência da intui-
do outro, mas presença de si mesmo. Desse ção e da explicitação; b) toda a fenomeno-
modo, insere-se no caminho da fenomenolo- logia é uma explicitação na evidência e uma
gia husserliana a redução da presença de algo evidência na explicitação; c) que a experiên-
ao presente da consciência temporal. cia fenomenológica é uma evidência que se
O conceito de interpretação é central explicita e uma explicitação que desenvolve
na compreensão da fenomenologia, pois, uma evidência. Ricoeur, então, conclui que a
por meio dele, o sujeito constitui-se e é cons- fenomenologia não pode efetuar-se senão
tituído, ou seja, pela interpretação, o outro é como hermenêutica.
Referências
CORÁ, E. J. Hermenêutica e teoria da ação em “O si-mesmo como um outro” de Paul Ricoeur.
2004. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,
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Dados autorais:
Recebido: 13/11/2013
Aprovado: 06/02/2014
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DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v24n59p15-23 23