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FACULDADE DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO

Danielle de Souza Neto Amancio

A LEI Nº 10.639/2003 E A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA: NUMA PROPOSTA


HISTÓRICA E CULTURAL EDUCACIONAL

RIO DE JANEIRO
2016
FACULDADE DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO

A LEI Nº 10.639/2003 E A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA: NUMA PROPOSTA


HISTÓRICA E CULTURAL EDUCACIONAL

Danielle de Souza Neto Amancio

Monografia apresentada ao Programa de Pós-


graduação Lato Sensu da Faculdade de São Bento do
Rio de Janeiro (FSB/RJ) para obtenção do Certificado
de Especialização Ciências da Religião.

Orientador: Dom Anselmo Nemoyane, OSB

RIO DE JANEIRO
2016
AMANCIO. Danielle de Souza Neto. A LEI Nº 10.639/2003 E A RELIGIÃO AFRO-
BRASILEIRA: NUMA PROPOSTA HISTÓRICA E CULTURAL EDUCACIONAL. Rio
de Janeiro: FSB/RJ, 2016.

40 páginas

Monografia do Curso de Especialização em Ciências da Religião apresentada ao Programa de


Pós-graduação Lato Sensu da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

Orientador: Dom Anselmo Nemoyane, OSB

Palavras-chave: História. Cultura Afro-brasileira. Religião. Educação. Lei nº 10.639/2003.


Dedico este trabalho a todas as crianças e jovens afro-brasileiros
que fazem parte do Sistema Educacional Brasileiro! Por um mundo
mais humano e com respeito as diversidades culturais.
Agradecimento

Agradeço à Deus, em primeiro lugar, por me permitir chegar até aqui na luta em prol da
justiça social e disseminação da cultura afro-brasileira nas redes educacionais de ensino.
Também, aproveito para agradecer enormemente a dedicação e confiança da minha mãe
Abigail que nunca me deixa desisti dos meus ideais, a minha filha Sophia Victória minha
fonte de inspiração, meu marido Glaucio e a todos os amigos e parentes que me incentivaram
de alguma forma para a concretização deste trabalho, em especial amigo Anderson
Rodrigues e a Mãe Palmira de Oya.
.
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a
amar.
Nelson Mandela
RESUMO

Esta monografia tem como principal objetivo apresentar o estudo da cultura afro-brasileira
nas escolas abordando o debate em torno de suas perspectivas e desafios como forma de
efetivar a valorização do patrimônio histórico-cultural e religioso afro-brasileiro. O tema
concerne na implantação da Lei nº 10.639/2003 que instituiu o ensino obrigatório da história
e da cultura africana e afro-brasileira em todas as escolas de Educação Básica no Brasil.
Tem, portanto, como finalidade reparar danos cometidos, durante muitos anos, contra uma
parcela da população que se viu excluída de um processo histórico e que observou, com o
passar do tempo, um discurso prejudicialmente hegemônico que promoveu no Brasil uma
onda de preconceito, racismo, discriminação e intolerância acerca da cultura africana. Assim,
o debate do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira, especialmente no ensino
fundamental e no ensino médio, tem como perspectiva promover a igualdade entre as etnias
nos currículos e nas práticas pedagógicas utilizando como instrumento as inúmeras
expressões culturais que traduzem os vínculos das populações negras brasileiras com as
práticas culturais africanas. Esta monografia, no entanto, traz elucidações a respeito da
religiosidade afro-brasileira como forma de expressão cultural africana. Assim sendo, o
estudo da religião de matriz africana se demarca na compreensão dos costumes iorubás
trabalhados dentro do culto e da prática religiosa, a partir dos ensinamentos da cosmogonia
dos mitos das divindades iorubanas e suas filosofias. Deste modo, busca-se investigar como
o terreiro de candomblé de um espaço direcionado aos cultos dos orixás, se transformou num
espaço de transmissão de saberes que por meio da oralidade e da prática comunitária de
divisões de tarefas se tornou um instrumento disseminador de diversos valores para a
sociedade brasileira. Portanto, ao analisar a valorização dos mitos africanos, sua história,
cultura, filosofia e religiosidade, como meio de resgatar a identidade afro-brasileira, procura-
se problematizar as questões de preconceitos e intolerâncias, na tentativa de almejar uma
nova configuração da realidade pautada em princípios de equidade.

Palavras-chave: História. Cultura Afro-brasileira. Religião. Educação. Lei nº 10.639/2003.


ABSTRACT

This paper aims to present the study of African-Brazilian culture in schools addressing the
debate on their perspectives and challenges as a way to carry out the development of the
historical-cultural and religious African-Brazilian heritage. The theme concerns the
implementation of Law nº. 10.639/2003 instituted the compulsory teaching of history and
African culture and African-Brazilian in all schools of basic education in Brazil. Is therefore
intended to repair committed damage for many years, against a portion of the population that
saw excluded from a historical process and observed, over time, a detrimentally hegemonic
discourse which promoted in Brazil a wave of prejudice, racism, discrimination and
intolerance about the African culture. So the debate the teaching of history and African
culture and African-Brazilian, especially in elementary school and in high school, has the
perspective to promote equality between the ethnic groups in the curriculum and in teaching
practices using as a tool the many cultural expressions that translate the bonds of Brazilian
black populations with African cultural practices. This paper, however, brings clarifications
regarding the African-Brazilian religion as a form of African cultural expression. Therefore,
the study of African-based religion marks the understanding of Yoruba customs worked
within the worship and religious practice, from the cosmogony of the teachings of the myths
of the Yoruba deities and their philosophies. Thus, it seeks to investigate how the yard of
Candomblé a space directed to the worship of deities, became a knowledge transmission
space through orality and community practice of task divisions became a disseminator
instrument of various values for Brazilian society. Therefore, when analyzing the
enhancement of African myths, its history, culture, philosophy and religion as a means to
rescue the African-Brazilian identity, looking to problematize the issues of prejudice and
intolerance, trying to aim for a new configuration of guided reality on principles of equity.

Keywords: History. Afro-Brazilian Culture. Religion. Education. Lei nº 10.639/2003.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 09

2 O ENSINO DA CULTURA AFRICANA NAS ESCOLAS 11


2.1 A trajetória da Lei nº 10.639/2003 11
2.2 A Lei nº 10.639/2003 16
2.2.1 Uma visão multiculturalista da Educação 16

3 RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA: NUMA DIMENSÃO


FILOSÓFICA-PEDAGÓGICA 22
3.1 Cosmogonia Iorubá: Igbádù – a cabeça da vida 22
3.2 Costumes e valores do Candomblé Nagô 28
3.2.1 Cultura Negra na educação 28

4 CONCLUSÃO 35

REFERÊNCIAS 36

ANEXO 39
9

1 INTRODUÇÃO

É notório que o ensino da história e da cultura africana nas escolas brasileiras tem
passado por inúmeras dificuldades no que diz respeito a sua aplicabilidade de forma
contundente. Isso ocorre, principalmente, em função dos valores de vida padronizados e do
desconhecimento sobre o assunto. Optando-se, portanto, pelo silêncio perante o obscuro. O que,
no geral, propicia o aumento da discriminação étnica, social e religiosa nas escolas. Esse ritual
pedagógico, que ignora as relações raciais estabelecidas no espaço escolar, pode comprometer
o desempenho e o desenvolvimento da personalidade de crianças e jovens negros, bem como
contribuir para a formação de crianças e adolescentes brancos com um sentimento de
"superioridade".
Assim, o estudo da história e da cultura afro-brasileira, bem como suas manifestações
culturais encontra nas religiões de matriz africana subsídios importantes da identidade dos
africanos e afrodescendentes e, através delas, um movimento de resistência contra o escravismo
cruel e a dominação dos europeus, no passado e, mais atualmente, contra a discriminação, o
racismo e a intolerância. Assim sendo, os aspectos da formação da identidade histórica e
cultural da população brasileira são ligados também às religiões de matriz africana. No passado,
as moradias de africanos nas cidades e no campo eram também lugares de práticas religiosas
que muito colaboraram para a criação de consciências coletivas manifestadas por meio de
revoltas, de ações de resistência e de libertação do povo negro. As religiões afro-brasileiras,
como por exemplo o candomblé, fazem parte da ação da consciência social assimilada de forma
significativa por movimentos negros na atualidade, encontrando-se inseridas na consciência
política existente na história da população afro-brasileira.
Logo, o candomblé é considerado parte do patrimônio cultural, material e imaterial,
do povo brasileiro, de tal maneira que está integrado na formação histórico-social que deve ser
apresentada de forma elucidativa pela educação brasileira. Ao se almejar fazer uma escola
democrática e inclusiva, é imprescindível trabalhar a parte da cultura africana e afro-brasileira
que se refere a manifestação religiosa, para quebrar os estereótipos cristalizados no senso
comum que afetam implícita e explicitamente a religião e seu grupo de adeptos. Trabalhar o
candomblé, seus valores, cosmogonias, mitologias, cantos e contos (ítans1) em sala de aula

1
A palavra nagô ìtàn designa não só qualquer tipo de conto, mas também essencialmente os ìtàn àtowódówó,
histórias, mitos, transmitidos oralmente de uma geração a outra, particularmente pelos babaláwo, sacerdotes do
oráculo de Ifá. Os ìtàn-Ifá estão compreendidos nos 256 "volumes" ou signos chamados Odú, divididos em
"capítulos" denominados ese. (SANTOS, 1984, p.54)
10

pode ser um ponto de partida para desconstruir velhos conceitos, revelar a importância das
religiões afro-brasileiras para a constituição dos universos cultural, filosófico e religioso do país
e reconhecer a identidade cultural dos afrodescendentes brasileiros.
Portanto, exercitar a pratica da Lei nº 10.639/03 e levar os ensinamentos éticos do
candomblé e a sua história para o cotidiano escolar propicia aos alunos a percepção da história
dos afrodescendentes e suas lutas no Brasil, como viés de saída do sistema escravista para
defesa de sua identidade étnica. Ressignificar a história do candomblé numa perspectiva de
manifestação cultural, logo um instrumento de resistência da afrobrasilidade é uns dos
primeiros passos para combater os preconceitos em torno de uma população marginalizada que
usou de várias estratégias para vencer sua condição provocada por instituições “dominantes”,
como o Estado e a Igreja Católica e, assim, resguardar sua cultura e sustentar o elo com o
continente africano e sua história.
11

2 O ENSINO DA CULTURA AFRICANA NAS ESCOLAS

2.1 A Trajetória da Lei nº 10.639/2003

Art. 1º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida


dos seguintes arts. 26A, 79A e 79B:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História
do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3º (VETADO)
Art. 79A (VETADO)
Art. 79B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia
Nacional da Consciência Negra”.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, nove de janeiro de 2003; 182º da Independência e 115º da República.
(BRASIL, Lei 10.639/03, 10 de janeiro de 2003).

A implantação da Lei nº 10.639/03 estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da


história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e privadas do ensino
fundamental e médio de todo Brasil, são políticas de ações afirmativas, que demonstram as lutas
do Movimento Negro para o reconhecimento do Estado em relação ao racismo existente na
nossa sociedade e, uma tentativa de traçar estratégias para combatê-lo. Posteriormente, as
conquistas recentes propostas pela Constituição Federal de 1988 viabilizaram os avanços do
ensino da disciplina História, principalmente quanto à valorização da cultura indígena e afro-
brasileira e que se consolidou a partir da LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
nº 9.394/96 em 2007, pelos PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais (História), o Parecer do
CNE/CP 03/2004 que aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas e
pela Resolução CNE/CP 01/2004, que detalha os direitos e as obrigações dos entes federados
em âmbito nacional.
Tais prerrogativas constitucionais compõem um conjunto de normas legais que são
considerados precursores de uma política educacional voltada para a afirmação da diversidade
cultural e da concretização de uma educação das relações étnico-raciais nas escolas de todo
Brasil. Assim, o governo federal convida as instituições de ensino para se envolverem com a
luta antirracismo no Brasil. Esta proposta de reparação à população negra presente na Lei nº
12

10.639/03 e nas Diretrizes demarcam a construção de um currículo que atenda a essas


demandas.
Fruto das lutas do Movimento Negro, a Lei nº 10.639/03 surge para derrubar o mito
da democracia racial, que por muito tempo permeou o imaginário social brasileiro. A ideia da
democracia racial foi utilizada pela primeira vez por Gilberto Freyre em sua obra Casa Grande
& Senzala com o intuito de transformar o conceito de miscigenação, que deixou de ter uma
conotação pejorativa para se tornar uma característica nacional positiva e o símbolo mais
importante da cultura brasileira (TELLES, 2003, p. 50). Desta forma, Freyre destacou o sadismo
da casa-grande personificado no senhor de engenho e o masoquismo da senzala materializado
na figura do escravo (BERNARDINO, 2002, p. 251). Nesse processo de equilíbrio de
antagonismos, segundo o autor: a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes antagônicas,
de cultura, tem como resultado positivo (evolucionista) de equilíbrio a figura do mulato que
visa representar a harmonia racial e promover a ideia de unidade nacional. Não se pode acusar
de rígido, nem falta de mobilidade vertical o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um
dos mais democráticos, flexíveis e plásticos. (FREYRE, 1992, p. 52)
Nesse sentido, observamos de acordo com Schwarcz (1993) que o contexto nacional
nos fins do século XIX era de verdadeira nostalgia, pois com o fim da escravidão e a construção
de um novo modelo político republicano havia uma forte contradição entre uma visão
determinista pessimista, que considerava a sociedade brasileira eternamente fadada ao "atraso"
graças a presença de "raças2 inferiores" e, uma visão positiva, progressista, que tentava enxergar
alguma maneira de se fazer a sociedade brasileira progredir, evoluir, por meio da miscigenação
(branqueamento). Segundo a autora, o país era descrito como uma nação composta por raças
miscigenada, porém em transição. Essas, passando por um processo acelerado de cruzamento,
e depuradas mediantes uma seleção natural levariam a supor que o Brasil seria algum dia,
branco (SCHWARCZ, 1993, p. 12).
Logo, embranquecer era uma alternativa para que o país se tornasse uma verdadeira
nação nos moldes europeus e, tal fator transcendeu de um fenômeno biológico como a
mestiçagem para um campo político-ideológico que padronizou a construção da identidade
nacional. Para Stuart Hall em seu artigo Raça, o significante flutuante o conceito de raça é uma
construção discursiva, ou seja, uma linguagem que configura o pensamento sócio-histórico e
cultural de um povo. Assim, a função de raça como significante é construir um sistema de
equivalência entre natureza e cultura (HALL, 2013, p. 6). Hasenbalg, ainda nos explica que, o

2
Etimologicamente raça significa em italiano razza que veio do latim ratio dando origem as palavras sorte,
categoria e espécie. (MUNANGA, 2004, p. 17)
13

mito da democracia racial brasileira é indubitavelmente o símbolo integrador mais poderoso


criado para desmobilizar os negros e legitimar as desigualdades raciais vigentes desde o fim do
escravismo (HASENBALG, 1979, p. 241). Portanto, raça é um sistema cultural, político e
social que nos vicia na preservação do traço biológico (HALL, 2013, p.9).
Entretanto os anos transcorreram, o branqueamento (eugenia) não se constituiu, na
década de 1920 a imigração foi proibida e a partir daí a preocupação com o futuro racial do
Brasil foi tomando outra conotação. Após um período de silenciamento das massas no período
da ditadura militar (1964-1985) novos debates fomentaram as discussões em torno dos
movimentos sociais que no período da redemocratização, mas especificamente, no ano de 1988
viram eclodir através da Constituição Federal novas esperanças para conquistas de equidade
social, política e cultural das minorias expropriadas desses bens.
Deste modo, o artigo 3º, inciso 4º da Constituição de 1988 busca “promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Já, no artigo 215 da Constituição, na
seção II – da Cultura, o Estado reconhece a pluralidade cultural dos povos que contribuíram
para formação da sociedade brasileira (indígenas, europeus, africanos e de outros grupos), além
de assegurar datas comemorativas dos diferentes segmentos étnicos que compõem o país:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e difusão
das manifestações culturais.
§1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
§2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação
para os diferentes segmentos étnicos nacionais. (Ibid.)

Portanto, mais uma vez, o artigo 242, inciso 1º, contempla o ensino da História do
Brasil com as contribuições das diferentes etnias na formação do povo brasileiro: “Art. 242 -
§1º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro” (Ibid.).
Todos esses ordenamentos jurídicos atendem o ciclo de propostas levantadas desde a
década de 1950, quando os temas sobre racismo, preconceito e discriminação racial foram
condenados legalmente pela Lei nº 1.390 de 03 de julho de 1951, conhecida como a Lei Afonso
Arinos que buscou efetivar a igualdade de tratamento e de direitos iguais a todos os cidadãos
brasileiros. (CRUZ, 2014, p. 11) A partir de tal dispositivo legal, qualquer prática de
discriminação racial seria categorizada como contravenção penal. Todavia, tais situações de
14

preconceito de raça e de tantas outras não foram extintas na nossa sociedade, tendo por isso, de
serem asseguradas no artigo 5º, inciso 62: “o racismo é uma prática de crime inafiançável e
imprescritível, sujeito à pena de reclusão” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).
Assim, após os anos 80 do século XX ocorreram vários avanços que promoveu a
política educacional voltada para a afirmação da diversidade cultural e da concretização de uma
educação das relações étnico-raciais nas escolas. No ano de 1995 o Movimento Negro trava um
debate com governo federal para a instauração de políticas de reparação e reconhecimento da
história e cultura afro-brasileira e africana como um dos percussores da história desse país, bem
como medidas de combate ao racismo e a discriminação racial. A apelação não foi atendida
pelo governo federal, apesar disso, essa discussão trouxe importantes avanços, pois o
Movimento Negro conseguiu desmascarar a ideologia de branqueamento que sustentava a ideia
de democracia racial brasileira e a sociedade passou a reconhecer que vivemos em um país
racista (SILVA, 2012, p. 108).
A partir de 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais agregaram vários temas
transversais e, aqui especificamente o relativo à diversidade cultural. Portanto, os PCNs para o
ensino e para a formação discente, destaca dentre eles:

Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como


aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer
discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo,
de etnia ou outras características individuais e sociais (PCN, 1997).

Neste contexto de transformações que o país passava, em aspectos das reformas


educacionais, o ano de 1999 foi categórico, pois nesse momento surge um novo projeto de lei
que tornava obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira, num claro
reconhecimento à proposta de uma luta antirracista e discriminações contra afrodescendentes
no Brasil. Mais tarde, tal projeto se transformou na Lei nº 10.639/03 aprovada em 2003 pelo
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (CRUZ, 2014, pp. 13-14). Já em 2008, ocorreu uma nova
modificação na Lei nº 10.639/03, ao ser sancionada a Lei nº 11.645/08 que busca garantir o
ensino da história e da cultura indígena na Educação Básica Nacional juntamente com o ensino
da História da África e da Cultura Afro-brasileira:

Art. 1º O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar


com a seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira
e indígena.
15

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos


aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira,
a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos
africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena
brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187º ano da Independência e 120º ano da
República. (BRASIL, Lei 11.645, 10 de março de 2008)

Entretanto, o ponto primordial desta pesquisa é discutir as perspectivas e desafios


lançados após a implantação da Lei nº 10.639/03 no que se refere a visibilidade ou não no
Currículo Mínimo de História da rede de ensino nacional. Assim, a importância da Lei nº
10.639/03 é que esta concebeu, como afirma Oliveira: mais um passo nas políticas de ações
afirmativas e de reparação referidas à educação básica. Nos fundamentos teóricos da legislação
afirma-se que o racismo é estrutural no Brasil (OLIVEIRA, 2012, p. 69). Em outras palavras o
Parecer do CNE/CP 03/2004 que aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas
afirma:

O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à


demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas,
isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história,
cultura, identidade. Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões
históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca
combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros.
Nesta perspectiva, propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de
atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento
étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de
europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática,
em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade
valorizada. (BRASIL, 2004.)

Assim, a ação por política de reparação e reconhecimento do aparato histórico e


cultural africano implica em garantir aos afro-brasileiros o ingresso e permanência com sucesso
na educação escolar, garantindo o fim das discriminações em todas as esferas sociais, políticas
e econômicas que os mantinham fora do contexto escolar. Portanto, resgatar a história e a
cultura de matriz africana é viabilizar justiça e igualdade de direitos, ou seja, é valorizar a
diversidade.
Finalmente, debater e problematizar as consequências do mito da democracia racial na
sociedade brasileira é apontar as questões sobre racismo e, como esse debate ressalta os
16

questionamentos, frente as relações étnico-raciais, que foram sustentadas por muitos anos
baseadas em preconceitos e discriminações direcionados aos grupos negros estereotipados e
marginalizados pela sociedade brasileira. Enfim, é descolonizar olhares e pensamentos em
relação as folclorizações que ainda permeiam o imaginário popular cultural afro-brasileiro e,
consequentemente, produzir nas instituições educacionais uma nova relação entre os diferentes
grupos étnico-raciais (BRASIL, 2004.).

2.2 A Lei nº 10.639/2003

2.2.1 Uma visão multiculturalista da Educação

Os(as) educadores(as) não poderão ignorar, no próximo século, as difíceis questões


do multiculturalismo, da raça, da identidade, do poder, do conhecimento, da ética e
do trabalho que, na verdade, as escolas já estão tendo de enfrentar. Essas questões
exercem um papel importante na definição do significado e do propósito da
escolarização, no que significa ensinar e na forma como os(as) estudantes devem ser
ensinados(as) para viver em um mundo que será amplamente mais globalizado, high
tech e racialmente diverso que em qualquer outra época da história.

Henry Giroux

O desafio lançado desde aprovação da Lei nº 10.639/03 está relacionado ao


desenvolvimento e prática do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira numa
visão multicultural da educação. Tais paradigmas visam a consolidação do processo em torno
de uma discussão mais ampla e democrática dos conteúdos a serem abordados nas escolas.
Assim, temos que nos questionar o que é o multiculturalismo e qual sua importância para o
ensino?
Para Vera Maria Candau (2008) o termo multiculturalismo se explica a partir de dois
pontos de vista: de forma descritiva e de forma propositiva. A primeira perspectiva, trata o
multiculturalismo como representatividade das sociedades contemporâneas, em seus aspectos
histórico, político e sociocultural. Do passo que, a segunda perspectiva, engloba o
multiculturalismo como instrumento capaz de modificar de maneira atuante toda uma dinâmica
social. Portanto, segundo a autora, o multiculturalismo se define como “um projeto político-
cultural, de um modo de trabalhar as relações culturais numa determinada sociedade, de
conceber políticas públicas na perspectiva da radicalização da democracia, assim como de
construir estratégias pedagógicas nesta perspectiva” (CANDAU, 2008, p. 20).
17

Nesta direção, a Lei nº 10.639/2003, objetiva incluir nos currículos escolares uma
atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural, promover a redução de
preconceitos e discriminações e uma maior contextualização e compreensão da produção das
diferenças culturais brasileiras. Neste universo multicultural da educação que visa promover
debates em torno dos contextos socioculturais, se faz necessário identificar os princípios
norteadores educacionais para promoção da democracia em um mundo marcado pela
globalização e o pluralismo cultural. Nesta perspectiva multiculturalista educacional, Vera
Maria Candau dialoga com diversos autores especializados nesta temática como Peter McLaren
que no seu livro Multiculturalismo Crítico (2000) define “quatro grandes tendências de
educação multicultural. São elas: multiculturalismo conservador ou empresarial,
multiculturalismo humanista liberal, multiculturalismo liberal de esquerda e multiculturalismo
crítico e de resistência” (Ibid.).
Assim, o multiculturalismo conservador ou empresarial segundo McLaren são as
diferentes formas de visões coloniais de europeus e norte-americanos têm em relação aos povos
colonizados encarados como escravos, serviçais, etc. Tais paradigmas são pautados em teorias
evolucionistas que justificaram, por muito tempo, as práticas nefastas das políticas imperialistas
reforçando a ideia de supremacia branca (Ibid.). Ainda, de acordo com o autor, “tal postura
retrata a África como um continente selvagem e bárbaro, ocupado pelas mais inferiores das
criaturas, que eram privadas das graças salvadoras da civilização ocidental” (MCLAREN,
2000, p. 111). Resumindo, era necessário assimilar a todos à ordem social dominante. “Um pré-
requisito para juntar-se à turma é desnudar-se, desradicar-se e despir-se de sua própria cultura”
(Ibid.).
Já, a concepção do multiculturalismo humanista liberal parte da afirmação da
igualdade intelectual natural entre as pessoas de diferentes populações raciais. Esta
universalização cognitiva permite a competição igualitária entre as raças em uma sociedade
capitalista (CAPUTO, 2012, p. 251). Porém, para McLaren esse humanismo liberal
etnocêntrico privilegia somente a camada dominante da sociedade, tornado-se assim, um
opressor universal.

Sob o ponto de vista do multiculturalismo humanista liberal, a igualdade está ausente


nos Estados Unidos não por causa da privação cultural das pessoas latinas e negras,
mas porque as oportunidades sociais e educacionais não existem para permitir a todos
competir igualmente no mercado capitalista. Diferente das concepções conservadoras,
esta outra postura multicultural acredita que as relações econômicas e socioculturais
existentes podem ser modificadas e reformadas com o objetivo de se alcançar uma
igualdade relativa. (MCLAREN, 2000, p. 119)
18

O terceiro tipo de multiculturalismo denominado por McLaren de liberal de esquerda


reconhece as diferenças culturais existentes e enfatiza que privilegiar a igualdade das raças pode
sufocar aquelas diferenças culturais importantes entre elas, as que são responsáveis por
comportamentos, atitudes, gênero, e práticas sociais diferentes (CAPUTO, 2012, p. 251). Para
entendermos melhor esta concepção, segue as palavras do autor: “esta posição pode tender a
"essencializar" as diferenças e não ter presente que estas são construções históricas e culturais,
permeadas por relações de poder” (Ibid.).
A última e quarta tendência do multiculturalismo é a crítico e de resistência. Nesta
perspectiva McLaren argumenta que o multiculturalismo precisa estar contextualizado com a
política de transformações, sem a qual poderá acomodar-se à ordem social vigente. Assim, o
autor posiciona-se frente a cultura “dentro de uma política de crítica e compromisso com a
justiça social” (MCLAREN, 2000, p. 123). Ainda, nesse enfoque do multiculturalismo crítico,
McLaren aprofunda seus estudos ao publicar no ano de 2000 sua obra denominada
Multiculturalismo revolucionário - pedagogia do dissenso para o novo milênio. Neste livro, o
autor faz alusões e críticas em torno da sociedade discriminatória. Porém, não chega traçar
diferenciações palpáveis entre o multiculturalismo crítico e revolucionário. Na verdade,
McLaren busca enfatizar a luta contra o sistema capitalista vigente e defende o socialismo
revolucionário (CAPUTO, 2012, p. 252).

O multiculturalismo revolucionário é um multiculturalismo feminista-socialista que


desafia os processos historicamente sedimentados, através dos quais identidades de
raça, classe e gênero são produzidas dentro da sociedade capitalista.
Consequentemente, o multiculturalismo revolucionário não se limita a transformar a
atitude discriminatória, mas é dedicado a reconstruir as estruturas profundas da
economia, da cultura e do poder nos arranjos sociais contemporâneos. Ele não
significa reformar a democracia capitalista, mas transformá-la, cortando suas
articulações e reconstruindo a ordem social do ponto de vista dos oprimidos. (...)A
luta por libertação com base em raça e gênero não deve permanecer desligada da
luta anticapitalista. (MCLAREN, 2000, p. 284)

De acordo com Candau (1994; 1998) o multiculturalismo está impregnado de


diferentes experiências sociais cotidianas na qual convivem diferentes grupos culturais. Dessa
forma, a tomada de consciência da presença de diferentes grupos culturais numa mesma
sociedade é motivada por fatos concretos que explicitam diferentes interesses, discriminações
e preconceitos presentes no meio social. Portanto, “uma atitude considerada ‘normal’ e ‘natural’
se revela como permeada por relações de poder, historicamente construídas, e marcada por
desigualdades e estereótipos raciais e culturais (CANDAU, 2002, p. 97).
19

Tomando como exemplo o depoimento de Tauna realizado em março de 2011, jovem


negra e candomblecista, extraído do livro de Stela Guedes Caputo Educação nos terreiros - e
como a escola se relaciona com as crianças de candomblé vemos que como a cor da pele e o
cabelo são vistos no imaginário social brasileiro como expressões de domínio de classificações
raciais aqui desenvolvidos.

É claro que importava o que a professora pensava. Importava o que todos pensavam.
Quanto mais ela dizia que minha religião era ruim, mais eu tinha vergonha da
religião que eu amava e amo. E não era só isso. Eu tinha vergonha do meu cabelo,
me sentia mal por ser negra. O preconceito machuca em tudo. O racismo engloba
tudo. Hoje as coisas mudaram e digo com firmeza e o máximo de orgulho: Sou Ekedi,
negra, tenho cabelo crespo e sou percussionista! Quando me assumo do candomblé,
assumo minha cor, meu cabelo, minha raça. Meu problema hoje é tirar a química que
eu usava no meu cabelo na adolescência, quando eu queria que ele fosse liso. Hoje
assumo meu cabelo crespo, a música que gosto, os grupos que gosto, a dança que
gosto, a religião que tenho. (CAPUTO, 2012, p. 263)

Como destaca Gomes (2008):

O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, como tal, comunica e


informa sobre as relações raciais. Dessa forma, ele também pode ser pensado como
um signo, uma vez que representa algo mais, algo distinto de si mesmo. Assim, como
o mito da democracia racial é discursado como forma de encobrir os conflitos raciais,
o estilo do cabelo, o tipo de penteado, de manipulação, e o sentido a eles atribuído
pelo sujeito que os adota podem ser usados para camuflar o pertencimento
étnico/racial, na tentativa de encobrir dilemas referentes ao processo de construção
da identidade negra. Mas tal comportamento pode também representar um processo
de reconhecimento das raízes africanas assim como de reação, resistência e denúncia
contra o racismo. E ainda pode expressar um estilo de vida. (GOMES, 2008, p. 26-
27)

Portanto, a Lei nº 10.639/03 visa atender as expectativas do multiculturalismo crítico


e revolucionário no qual nos leva a refletir quais os caminhos que o sistema educacional deve
traçar para alcançar uma dinâmica social pautada em processos interculturais. Assim, Candau
destaca e defende algumas características que definem a interculturalidade como ação
deliberada inter-relacional entre os diferentes grupos socioculturais como forma de favorecer
“os processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas, assim como as
perspectivas assimilacionistas que não valorizam a explicitação da riqueza das diferenças
culturais” (CAPUTO, 2012, p. 253). Nesta perspectiva, a interculturalidade tem o papel de
romper barreiras da visão essencialista das culturas e das identidades culturais levando aos
diferentes grupos sociais a conscientização das relações de poder presentes nas relações grupais
nos quais permite evitar uma perspectiva ingênua e fortemente culturalista da perspectiva
intercultural (CANDAU, 2002, p. 97).
20

A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o


reconhecimento do "outro", para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e
culturais. Uma educação para a negociação cultural que enfrenta os conflitos
provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas
nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo
qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas. (Ibid.)

Desse modo, a autora nos convida a recontextualizar nossas práticas diante dos
desafios levantados pela educação intercultural. Assim, observa-se que a Lei nº 10.639/03 está
inserida no projeto da interculturalidade ao buscar manter um diálogo com as diferentes etnias
que representam o Estado brasileiro, sobretudo resgatar as origens histórico-culturais de matriz
africana e sua importância para formação sociocultural nacional. Logo, pautada no
reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e
desigualdade social, tanto a interculturalidade quando a Lei nº 10.639/03 tenta promover
relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a universo culturais
diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade (Ibid.). Portanto, a Lei nº
10.639/03 numa visão multiculturalista da Educação têm por finalidade promover uma relação
democrática entre os diversos grupos envolvidos dentro de uma sociedade heterogênea para a
promoção da solidariedade e o combate contra opressão social hegemônica. Logo, Candau
enumera os critérios básicos para se promover processos educativos na forma da Lei em uma
perspectiva intercultural. São eles:

1) O ponto de partida dever ser uma perspectiva em que a educação é vista como
prática social em íntima relação com as diferentes dinâmicas presentes numa
sociedade concreta. A educação intercultural é sempre histórica e socialmente situada.

2) É importante articular ao nível das políticas educativas, assim como práticas


pedagógicas, o reconhecimento e valorização da diversidade cultural com as questões
relativas à igualdade e ao direito à educação como direito de todos(as). Estas duas
exigências mutuamente se reclamam e não podem ser vistas como contrapostas. A
atenção às diferentes identidades é inerente à construção da igualdade e da
democracia.

3) A educação intercultural não pode ser reduzida a algumas situações e/ou atividades
realizadas em momentos específicos ou por determinadas áreas curriculares, nem
focalizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos sociais. Trata-se de um
enfoque global que deve afetar a cultura escolar e a cultura da escola como um todo,
a todos os atores e todas as dimensões do processo educativo, assim como a cada uma
das escolas e ao sistema de ensino como um todo.

4) Esta perspectiva questiona o etnocentrismo que, explícita ou implicitamente, está


presente na escola e nas políticas educativas e coloca uma questão radical: que
critérios utilizar para selecionar e justificar os conteúdos - no sentido amplo, que não
podem ser reduzidos aos aspectos cognitivos - da educação escolar?

5) A educação intercultural afeta não somente aos diferentes aspectos do currículo


explícito - objetivos, conteúdos propostos, métodos e estilos de ensino, materiais
didáticos utilizados, etc. - como também o currículo oculto e as relações entre os
21

diferentes agentes do processo educativo - professores(as), alunos(as),


coordenadores(as), pais, agentes comunitários, etc. Neste sentido trabalhar os ritos,
símbolos, imagens, etc., presentes no dia-a-dia da escola e a autoestima dos diferentes
sujeitos e construir relações democráticas que superem o autoritarismo e o machismo
tão fortemente arraigados nas culturas latino-americanas, constituem desafios
iniludíveis.3 (CANDAU, 2002, p. 100)

3
Esta parte está baseada no artigo Interculturalidade e Educação Escolar. In: Candau, V.M. Reinventar a escola.
Rio de Janeiro, 2000.
22

3 RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA: NUMA DIMENSÃO FILOSÓFICA-


PEDAGÓGICA

3.1 Cosmogonia Iorubá: Igbádù - a cabaça da vida

Os mitos são histórias sobre a sabedoria de vida. O que estamos aprendendo em


nossas escolas não é sabedoria de vida. Estamos aprendendo tecnologias, estamos
acumulando informações.
Joseph Campbell

O estudo da cosmogonia Yorùbá ou Nàgô4 em conformidade com a proposta da Lei nº


10.639/03 visa contemplar a manifestação cultural dos povos africanos em seus princípios
míticos dos quais se ocupam em explicar o fundamento do universo. Assim, como em toda
cultura, estudar a história da gênese religiosa de um clã se faz necessário para a compreensão
do ethos daquela sociedade. Portanto, trabalhar as noções basilares da ética cultural dos povos
nagôs na educação através dos mitos iorubanos é valorizar o patrimônio histórico-cultural
material e imaterial do candomblé brasileiro. E, tais perspectivas ajudam a desenvolver no meio
social um ambiente menos preconceituoso e intolerante, onde as leis do respeito frente as
diversidades multiculturais afro-brasileiras são respeitadas, e acima de tudo, exercitadas nos
princípios fundamentais da política de direitos humanos, da cidadania e da democracia.
Para iniciarmos nossa viagem pelo universo iorubá nos localizaremos na versão de Ifé,
.
pois essa foi considerada a capital mítica dos iorubás (JAGUN, 2015, p. 97). Assim, a partir
dos mitos nagôs revelados, em épocas remotas, o àiyé e o òrun
. estavam unificados. Segundo
Juana Elbein dos Santos em seu livro Os Nàgô e a morte entende-se por àiyé, o mundo, isto é,
compreende o universo físico concreto e a vida de todos os seres naturais que o habitam,
particularmente os ará-àiyé ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. Já o órun, o além,
isto é, o espaço sobrenatural, o outro mundo. É uma vastidão ilimitada - ode òrun
. - habitada
pelos ara-òrun,
. habitantes do òrun,
. seres ou entidades sobrenaturais. (SANTOS, 1984, pp. 53-
54). Assim temos, como o grande Deus da criação do universo iorubá sendo Olódùnmarè ou
Olòrun
. . (Senhor do Céu). Nota-se, portanto, que o candomblé é uma religião monoteísta, pois
acredita em um Deus Supremo que age acima dos demais orixás (Òrìsà)
. (JAGUN, 2015, p. 97).

4
O termo corresponde aos sudaneses os quais englobam os grupos originários da África Ocidental e que viviam
em territórios hoje denominados de Nigéria, Benin (ex-Daomé) e Togo. São, entre outros, os iorubás ou nagôs
(subdivididos em queto, ijexá, egbá, etc.), os jejes (ewe ou fon) e os fanti-achanti. Entre os sudaneses também
vieram algumas nações islamizadas como os haussás, tapas, peuls, fulas e mandingas. Essas populações se
concentraram mais na região açucareira da Bahia e de Pernambuco, e sua entrada no Brasil ocorreu sobretudo
em meados do século XVII, durando até meados do século XIX. (SILVA, 2005, p. 26-28)
23

Imediatamente, fazendo uma pausa para reflexão a respeito do monoteísmo iorubá,


percebe-se que a crença que circunda o senso comum da nossa sociedade está bem equivocada.
Visto que, a maioria dos brasileiros acreditam que o candomblé é uma religião politeísta. Ora,
percebemos que tal discurso religioso está impregnado por um conceito de crença
hegemonicamente judaico-cristão e eurocêntrico. Além do mais, notamos que, tal pensamento
religioso é moldado desde o primeiro contato do indivíduo com a educação escolar, pois a
maioria dos livros paradidáticos de História e de outras disciplinas, como a de Ensino Religioso,
traz informações errôneas sobre a religiosidade dos povos africanos, onde afirmam existir um
politeísmo dentro da religião de matriz africana. Nas palavras do Reverendo Bowen que
escreveu sobre o Deus iorubá:

Todo o povo iorubá acredita em um Deus universal, criador e guardião de todas as


coisas, a quem, em geral, denominam Olòrun
. (O li òrun),
. proprietário ou senhor do
céu. Algumas vezes dão-lhe outros nomes, como Olódùnmarè, aquele que sempre é
justo, Ògá
. Ògo, o glorioso que é elevado, Olúwa, senhor etc. (JAGUN, 2015, p. 102)

Esse aspecto é de extrema relevância, pois percebemos que a cultura ocidental como
todo não tem uma clara compreensão do conceito de Deus. Ou ainda, está tão enraizada por
uma filosofia catequizante da crença judaico-cristã que simbolizam muitas crenças a cultos a
seres malévolos (Ibid.). Na verdade, temos que perceber que o conceito de Deus não é um
monopólio da sociedade ocidental tradicional. Deus está presente em toda parte, ou seja, em
qualquer religião. Porém, devido a essa crença é que algumas denominações religiosas
ocidentais (neopentecostais) se julgam possuir o privilégio exclusivo da personalidade de Deus
com argumentos do tipo "meu Deus é único e verdadeiro", sendo por isso superior. Enquanto
isso, menosprezam ou "demonizam" as demais religiões, classificando-as de "falsas crenças" e
"falsos deuses", ou seja, inexistentes ou mesmo inferiores. São essas pequenas falhas que geram
os fundamentalismos religiosos, a fortificação da intolerância religiosa e a discriminação racial
no nosso país e no mundo de forma geral.
Para compreendermos um pouco esse exclusivismo do monoteísmo judaico-cristão,
no qual é predominantemente forte na crença da maioria dos povos cristãos ocidentais, se faz
necessário observar a explanação de Paul Veyne em sua obra Quando o nosso mundo se tornou
cristão, onde o autor parte da concepção de Javé como Deus único do povo hebreu (monoteísta)
procedente de concepções de crenças politeístas sobre a existência de outros deuses,
classificados num primeiro momento de inferiores. Javé não nega a existência de outros deuses.
Segundo Veyne, o profeta Miqueias por volta de 730 declarou: “todos os povos caminham cada
24

um em nome de seus deuses, quanto a nós, caminhamos em nome de Javé, nosso Deus”
(VEYNE, 2011, p. 247).
No primeiro momento da história religiosa do povo hebreu, para que não se perdesse
a concepção monoteísta de Javé, tais deuses estrangeiros foram classificados como anjos do
Senhor (os eloim), abaixo de Javé e este, passou a ser o Deus verdadeiro, o incomparável, o
único, o superior, dando sentido ao monoteísmo judaico que teve como base religiosa uma
motivação política, pois monolatria e/ou patriotismo sempre foram nomenclaturas de sentido
próximo. Assim, Israel chega ao monoteísmo e a um universalismo, onde Javé ser torna o Deus
mais forte, enquanto os outros deuses são rotulados como inexistentes, pedaços de pau e pedra
e por volta do ano 500 a. C. Javé se tornou o deus do universo (Ibid.). Concluindo, pois, que
os povos iorubás creem que os orixás não podem existir independentes de Olódùnmarè. Para
estes as divindades são como seres espirituais e intermediários entre o homem e o Ser Supremo.
Assim, podemos compará-los aos anjos de Deus (os eloim), que são os intermediários do Javé,
de acordo com os conceitos cristãos.
Voltando aos ìtàn da gênese nagô, de acordo com a tradição oral, contam que a
representação do universo que engloba a unidade que constitui o àiyé e o òrun é simbolizada
por uma cabaça formada de duas metades unidas, a metade inferior representando o àiyé, a
metade superior o òrun,
. e contendo em seu interior uma série de elementos fundantes do
universo. Dá-se o nome igbá-odù ou igbádù (SANTOS, 1984, p. 58). A história oral nos
informa que nos primórdios existia nada além de ar; Olòrun
. . era uma massa infinita de ar;
quando começou a mover-se lentamente, a respirar, uma parte do ar transformou-se em massa
de água, originando Òrisànlá,
. o grande Òrisà-Funfun,
. òrìsà
. do branco. O ar e as águas
moveram-se conjuntamente e uma parte deles mesmos transformou-se em lama. Dessa lama
originou-se uma bolha ou montículo, primeira matéria dotada de forma, um rochedo
avermelhado e lamacento. Olòrun
. . admirou essa forma e soprou ar divino (òfurufú) sobre o
montículo, insuflando-lhe seu hálito (èmí) e dando-lhe vida. Essa forma, a primeira dotada de
existência individual, um rochedo de laterita, era Èsú, ou melhor o proto- Èsú, Èsú Yangí (Ibid.).
Assim, da relação entre o ar e a terra, passou a existir Odùduwà (JAGUN, 2015, p. 97).
Em relação a divindade Odùduwà existem divergências nos mitos e textos litúrgicos
nagôs. Em um dos ìtan sobre Odùduwà, este é correspondido por Òsàlá,
. conhecido igualmente
com o nome de Obàtálà
. e Odùduwà. Respectivamente, princípio masculino e princípio
feminino do grupo dos òrìsà funfun, do branco (SANTOS, 1984, p. 59). Assim, os seres divinos
são representados simbolicamente pela cabaça ritual - o igbá-odù - que representa o universo,
25

sendo a metade inferior Odùa e a parte superior, Obàtálà.


. Portanto, segundo Juana Elbein dos
Santos em Os Nàgô e a morte:

O àiyé é o nível de existência ou o âmbito próprio controlado por Odùduwà, poder


feminino, símbolo coletivo dos ancestrais femininos, enquanto o òrun
. é o nível de
existência ou o âmbito próprio controlado por Obàtálà,
. símbolo coletivo do poder
ancestral masculino. (SANTOS, 1984, p. 60)

Porém, de acordo com Pierre Verger em sua obra Orixá o autor sentenciou
definitivamente a controvérsia em relação a figura de Odùduwà como divindade feminina.
Assim, o autor relata:

Precisamos falar aqui das extravagantes teorias do Padre Baudin e dos seus
compiladores, encabeçados pelo Tenente-Coronel A. E. Ellis, sobre as relações
existentes entre Obàtálà
. e Odùduwà. Mal informado e dotado de uma imaginação
fértil, o reverendo padre expôs no seu livro sobre as religiões de Porto Novo (que não
é um país iorubá) informações erradas, às quais nos referimos nos capítulos sobre
Xangô e Iemanjá. O Padre Baudin feminiliza Odùduwà para fazer dele a
companheira de Obàtálà (ignorando que este papel era desempenhado por Yemòwo).
Fechou esse casal Obàtálà- Odùduwà (formado por dois machos) numa cabaça e
construiu, partindo desta afirmação inexata, um sistema dualista, recuperado com
proveito por posteriores estruturalistas, onde Obàtálà
. (macho) é tudo o que está em
cima e Odùduwà (pseudofêmea), tido o que está embaixo; Obàtálà é o espírito,
Odùduwà a matéria; Obàtálà é o firmamento e Odùduwà é a terra. (...) Mas,
insistimos, eles correspondem ao casal Òrìsàálá e Yemowo, e não Obàtálà . e
Odùduwà. (VERGER, 2002, p. 258)

Portanto, o papel desempenhado pelos Òrisà-funfun na criação do universo é ilustrado


pela história-mítica sobre a criação do mundo representado pelo Ìtàn ìgbà-ndá àiyé, revelado
através do mito odù-Ifá Òtúrúpòn-Òwónrín (SANTOS, 1984, p. 60). Dessa forma temos, o
início da criação5:
Olòrun
. . decidiu então criar o mundo para os novos seres. Para tal, convocou Òsàlá
. ea
ele entregou o saco da existência (àpò-iwà). O Deus Supremo, conhecendo todas as coisas,
advertiu Obàtálà,
. seu primogênito, a procurar Òrúnmìlà
. (o Senhor da Sabedoria e do Destino)
a fim de que este lhe desse as orientações para obter êxito na incumbência. Obàtálà
. seguiu o
conselho e foi até Òrúnmìlà,
. o grande olúwo. Este consultou o rosário de Ifá e apareceu Èjì
Ogbè, o primeiro dos 16 odú. Òrúnmìlà
. então disse que Obàtálà
. teria muita dificuldade e que
estaria sendo testado por Olòrun.
. . Recomendou que, antes de partir, Obàtálà
. fizesse uma
oferenda a Èsù,
. contendo uma corrente de dois mil elos, cinco galinhas de cinco dedos em cada
pé, cinco pombos e um camaleão. Advertiu-o também a não ingerir bebida alcoólica até a

5
Versão extraída do livro Orí: a cabeça como divindade - história, cultura, filosofia e religiosidade africana de
JAGUN, 2015, p. 98-100.
26

conclusão do trabalho. Obàtálà,


. no entanto, movido por sua vaidade e prepotência, contestou
Òrúnmìlà.
. Questionou o diagnóstico do sábio, alegando que ele (Obàtálà)
. seria mais importante
e mais velho que Èsù,
. razão pela qual, se Èsù
. quisesse algo, que fosse atrás de Obàtálà
. na
missão.
Obàtálà
. foi teimoso, pois esqueceu que Òrúnmìlà
. não se equivocava. Foi prepotente
por pensar ser mais importante que Èsù.
. Foi arrogante por esperar que Òrúnmìlà
. devesse
explicações do destino a qualquer um. Deveria saber que ninguém pode ver o rosto de
Òrúnmìlà,
. assim como não pode conhecer as razões do destino. Obàtálà
. foi também negligente.
Desdenhou da predição e partiu no cumprimento da missão, sem atender as predições. No
percurso, deparou-se com Odùduwà e o convidou para a empreitada. Contudo, Odùduwà
recusou-se a acompanhar Obàtálà,
. pois este não teria cumprido as recomendações do oráculo,
nem tampouco realizado as obrigações rituais necessárias à tarefa. Obàtálà
. não deu ouvidos a
Odùduwà e seguiu sozinho, até encontrar Èsù. na via (ònà-òrun).
. . Este, já empossado como
olònà
. (senhor dos caminhos), perguntou a Obàtálà
. se o Òrisà
. branco havia feito as oferendas
para a jornada. Obàtálà,
. esbanjando superioridade, não deu atenção a Èsù; reuniu as divindades
que o auxiliaram na tarefa - Osàlúfón, Etékó, Olùorógbo, Olùwòfin, Òsàgiyán e os demais Òrisà
funfun - e seguiu adiante. Irado, Èsù
. resolveu se vingar de Obàtálà.
.
Obàtálà
. ao longo da viagem, desacostumado àquele ambiente inóspito, sentiu muita
sede. Parou ao pé de uma palmeira de dendê (igi òpe)
. . e fincou seu cajado (òpá
. .sóró) no tronco
para sorver a seiva refrescante, o chamado vinho de palma (emu). Porém, como a bebida é
fermentada, possuindo alto teor alcoólico, Obàtálà
. acabou adormecendo. Os Òrisà . que
acompanhavam Obàtálà
. ficaram atônitos, pois não conseguiam acordar o líder. Èsù,
. então,
pegou o saco da criação e o levou e volta às mãos de Olòrun,
. . atestando a falha de Obàtálà.
.
Olòrun
. . chamou Odùduwà, deu-lhe uma pequena cabaça contendo terra e pediu que este fosse
realizar a incumbência antes conferida a Obàtálà,
. que havia falhado na missão. O Deus
Supremo mostrou a Odùduwà o lugar determinado para a criação do mundo (òrun
. àkàsò. -
fronteira entre o Céu e a Terra).
Fazendo um parêntese, antes de continuarmos nossa viagem pela cosmogonia iorubá,
nessa questão do "centro" da criação do mundo determinada por Olòrun
. . à Odùduwà, temos
segundo Eliade em sua obra o Sagrado e o Profano o entendimento do Sagrado na sua
totalidade, onde o autor parte do confronto entre o espaço Sagrado e o espaço profano. A partir
deste conceito, o autor propõe um estudo do fenômeno religioso, ou seja, a experiência vivida
pelo indivíduo através dos ritos praticados em suas religiões. Classifica todo conhecimento do
homem frente ao Sagrado como manifestação que legitima sua presença, denominada de
27

hierofania. A terminologia hierofania exprime a própria manifestação da realidade sagrada


revelada pelo homem (ELIADE, 1992, p.12). Este fator é fundamental para distinção de um
objeto que se tornou Sagrado por ter exteriorizado a essência de “algum” misterioso que não
pertence ao nosso mundo físico, do objeto puramente profano, sem a manifestação do mesmo.
Nesta perspectiva o homo religiosus vai mover meios de se distanciar do espaço
profano, fixando-se em um “ponto fixo” onde houve uma manifestação da hierofania revelada
no eixo central para sua orientação no ambiente sociocultural, o Centro do Mundo (Ibid.).
Assim, portanto é a partir de tal homogeneidade do espaço profano que se configura o Caos em
oposição ao Cosmos, espaço sagrado. Cosmos é o espaço habitado e organizado que por ter sido
criado pelos deuses, sendo por isso cosmizado, ou seja, o canal de manifestação entre os homens
através da vida cósmica, e do outro, o espaço desconhecido que o cerca que é povoado pelas
estranhezas, o Caos, uma espécie de outro mundo (Ibid.).
Desta maneira Eliade, classifica três categorias cósmicas: a Terra, o Céu e as regiões
inferiores que se comunicam, por meio da imagem de uma coluna universal (Axis mundi – pilar
do mundo; árvore cósmica) e que tem a função de ligar e sustentar a comunicação entre o Céu
e a Terra. Acredita-se que a sua base está localizada nas regiões inferiores, a coluna cósmica no
Centro do Universo e o mundo habitável no Centro do Mundo. Enfim, a partir dessa
interpretação conclui-se que, o Centro do Mundo associa-se ao Cosmos, seguramente fundado
e, as camadas inferiores correspondem ao Caos e a regressão ao amorfo efetuada pela morte.
(Ibid.).
Retornando ao mito de criação iorubá temos que Odùduwà, de forma mais prudente
foi a Òrúnmìlà,
. antes de iniciar sua marcha. O Senhor da Sabedoria consultou Ifá e viu Òyèkú
. .
Méjì, o segundo Odù no sistema de Ifá, que é a contraparte de Èjì Ogbè (o primeiro signo).
Òrúnmìlà
. orientou Odùduwà a fazer o mesmo ebo (oferenda) antes prescrito a Obàtálà.
.
Odùduwà atendeu e ofereceu a Èsù
. a cadeia de dois mil elos, as cinco galinhas de cinco dedos,
os cinco pombos e o camaleão. Èsù,
. mostrando a generosidade que tem com aqueles que o
respeitam, retirou um elo da corrente e o pôs no braço (de onde jamais retiraria para mostrar
sua ligação com a gênese). Devolveu a Odùduwà o restante da corrente e ainda uma galinha,
um pombo e o camaleão, avisando-lhe que tais materiais seriam muito úteis à criação do mundo.
E Odùduwà partiu na expedição. Chegando diante do pilar que une o Òrun
. ao Àiyé (òpá-òrun),
. .
lançou a cadeia de dois mil elos e desceu até o ponto exato da criação do mundo (òrun .
àkàsò).
. .
Em seguida, ainda pendurado, jogou a terra e mandou que a galinha de cinco dedos (etù)
. a
espalhasse; determinou que o pombo (eiyelè)
. . a semeasse e fez com que o camaleão (agemo),
. .
28

com sua prudência, caminhasse cuidadosamente e verificasse se a terra estava segura e firme.
Aí, sim, Odùduwà pisou no mundo. Sua primeira pegada foi chamada de esè
. . ntàiyè Odùduwà.
Odùduwà fundou desta forma a cidade de Ilé Ifè,
. o berço da civilização iorubá, o
umbigo do Universo, que se espalhou para o resto do mundo. Só depois disso Obàtálà .
despertou. Atônito, foi a Olòrun
. . e este, após repreendê-lo, delegou-lhe a tarefa consoladora de
criar os seres vivos. Obàtálà
. criou os homens, as mulheres, as árvores, os peixes e tudo que
habita a Terra. Mas entre Obàtálà
. e Odùduwà surgiu uma rixa. Olòrun,
. . com sua sabedoria, fez
mostrar que os dois eram de fundamental importância para a Criação, e a sobrevivência do
mundo dependeria da harmonia entre ambos. Olòrun
. . convenceu-os, assim, a celebrar um
acordo (Odù Ifá Ìwòrì-Òbèrè) e chamou Obàtálà
. para sentar-se à sua direita (òtún)
. e Odùduwà
para sentar-se à sua esquerda (òsì). Instituiu, assim, a possibilidade de equilíbrio e de
convivência harmônica entre os dois. (...) Para representar a gênese e o útero primordial, os
iorubás utilizaram o igbá-odù ou igbádù: uma cabaça pintada de branco, cortada
horizontalmente ao meio em duas metades que devem manter-se sempre unidas, trazendo em
seu interior quatro pequenos recipientes de casca da noz do coco cortado ao meio, contendo,
cada qual, um elemento que simboliza os três sangues do àse. 6: o efun
. (branco), o osùn
(vermelho), o wájì (preto) e ainda erè
. . (lama - matéria prima do homem). Esses elementos
significam também os quatro Odù principais: Èjì Ogbè, Òyèkú Méjì, Ìwòrì Méjì e Òdí Méjì.
Separar as duas metades de igbádù significa a própria destruição do mundo. Assim, portanto, a
parte de cima de igbádù representa Obàtálà,
. e a parte de baixo, Odùduwà. (JAGUN, 2015, p.
98-100.)

3.2 Costumes e Valores do Candomblé Nagô

3.2.1 Cultura Negra na Educação

Do Brasil de hoje se faz a África de ontem, África simbólica que é memória e


identidade possíveis dos afro-brasileiros.
(Prandi, 2005, p. 172)

A ascendência africana e a presença do negro na cultura brasileira está marcada pelos


valores que permeiam o ethos da comunidade negra. Seja na linguagem, na música, nos

6
Vide Os Nàgô e a morte de Juana Elbein dos Santos, 1984, p. 41-42.
29

costumes ou nas religiões, descortinar a história dos afro-brasileiros nas instituições escolares
é oferecer possibilidades de identificação e incentivar a construção de um conhecimento sobre
o que é "ser negro" e sua contribuição no espaço histórico-cultural brasileiro. Desta forma, as
novas diretrizes curriculares têm como objetivo contemplar a "riqueza cultural" negra que se
faz presente no comportamento do povo brasileiro, combatendo a descaracterização de seus
valores e um discurso hegemônico de inferioridade. Portanto, veremos alguns costumes,
provérbios, mitos e tradições que revelam o universo sociocultural e religioso dos iorubás e,
consequentemente, dos candomblecistas brasileiros e, como tais costumes e valores podem ser
abordados nas escolas como forma de atender as expectativas em torno da Lei nº 10.639/03.
Neste sentido, as histórias míticas mantêm as tradições do pensamento africano que
são consideradas práticas educacionais que chamam atenção para os princípios responsáveis
por inserir as crianças e os jovens na própria história de suas vidas cotidianas. Assim, para o
africano a oralidade se configura na orientação para a vida. “A palavra é vida, é ação, é jeito de
aprender e de ensinar” (MACHADO, 2015, p.3). Contar mitos faz parte da tradicional educação
das crianças africanas, que mesmo antes de ir às escolas, estudam os acontecimentos do
passado, as histórias de sua comunidade, onde aprendem a respeitar os valores de convivência
e solidariedade grupal. Abaixo, segue alguns princípios basilares da educação nagô transmitidas
através dos mitos africanos:

1) saber sobre si mesmo (autoconhecimento);


2) reconhecimento e manutenção de valores de convivência comunitária;
3) reverência aos ancestrais e aos espíritos dos familiares;
4) apreço à figura da mãe, venerada quase como uma entidade;
5) reverência aos velhos e velhas, como portadores de conhecimentos;
6) preservação dos fazeres e saberes, costumes e histórias das comunidades;
7) atenção para a educação de crianças e jovens, com os princípios e valores da
comunidade;
8) manutenção da família, enquanto instituição básica da sociedade. (MACHADO,
2015, p.4)

Assim, como exemplo dos mitos que são vivenciados, inspirados em valores e
compartilhados como patrimônios da herança ancestral, temos:

Conta-se que um velho, percebendo que a morte se aproximava, chamou os filhos um


por um para apresentar-lhes a herança. Todos reunidos, pediu ao filho mais velho que
lhe trouxesse uma vassoura. Um tipo de vassoura utilizada na Nigéria, por exemplo,
não tem cabo e é feita com muitas fibras tiradas das folhas de palmeiras e amarradas
num feixe bem firme. O velho pai tomou algumas das fibras e distribuiu entre os
filhos, pedindo que as quebrassem. Todos fizeram a mesma experiência com
facilidade. O velho tomou o feixe de fibras e novamente pediu que os filhos
experimentassem quebrar todas as fibras juntas. Todos tentaram e não conseguiram,
30

obviamente. Os filhos colheram os últimos suspiros do ancião que deixou como maior
bem o sentido da união que fortalecem as famílias7.

Portanto, a relação entre o homem africano e a palavra é muito intensa, ao passo de ser
tornar sagrada. Conforme Regiane Augusto de Mattos, em História e cultura afro-brasileira
(2007), para as comunidades africanas, a oralidade têm um sentido ímpar acerca da vida, do
homem e do universo social em que vive. Ou seja, a palavra é de origem divina. “A fala é um
dom, não podendo ser utilizada de forma imprudente, leviana, de qualquer jeito ou sem critério.
Ela tem o poder de criar, mas também o de conservar e destruir. Uma única palavra pode causar
uma guerra ou proporcionar a paz” (MATTOS, 2007, p. 19).
Assim, o papel dos griots8 ou contadores de histórias exercidos pelos anciões africanos
é de fundamental importância para disseminação dos valores e dos conhecimentos sobre a moral
e a ética, o papel do homem no universo, o respeito ao meio ambiente, respeito aos mais velhos,
a figura da mulher e a existência dos vivos e dos mortos. Na África tradicional, os griots ou
Doma são considerados os guardiões dos segredos da gênese cósmica e das ciências da vida e
mestre de si mesmo (BÂ, 1982, p.186). Na verdade, o Doma é conhecedor de todas as histórias
que circundam a esfera social do clã. Antes de iniciar as histórias, ele evoca os ancestrais com
todo respeito, dizendo-lhes o que pretende falar com seus ouvintes. Quando se trata de
transmitir conhecimentos para jovens e crianças, ele o faz considerando os conhecimentos mais
antigos. O conhecimento considerado é o conhecimento dos ancestrais e está expresso nos mitos
criados para uma educação que pode durar toda a vida (MACHADO, 2015, p. 5). Tudo é
ensinado, contado em forma de narrativas, em forma de histórias míticas.

Na cultura africana, tudo é “História”. A grande História da vida compreende a


História da terra e das Águas (geografia) a História dos vegetais (botânica e
farmacopeia), a História dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia e metais,) a
História dos astros (astronomia, astrologia), e assim por diante. (...) Por exemplo, o
mesmo velho conhecerá não apenas a ciência das plantas (as propriedades boas e más
de cada planta), mas também “as ciências da terra” (as propriedades agrícolas ou
medicinais dos diferentes tipos de solo), a ciência das águas, astronomia, cosmogonia,
psicologia, etc. Trata-se de uma ciência da vida, cujos conhecimentos sempre podem
favorecer uma utilização prática. E quando falamos de ciências “iniciatórias”ou
ocultas, termos que podem confundir o leitor racionalista, trata-se sempre, para a
África tradicional, de uma ciência eminentemente prática que consiste em saber como
entrar em relação apropriada com as forças que sustentam o mundo visível, e que
podem ser colocadas a serviço da vida. (BÂ, 1982, p.195.)

7
Mito adaptado por Vanda Machado e Carlos Petrovich, para capacitação de educadores da Secretaria Municipal
de Lençóis com a ONG Grão de Luz Griô.
8
Os griots ou animadores públicos também são tradicionalistas responsáveis pela história, música, poesia e contos.
Existem griots músicos, tocadores de instrumentos, compositores e cantores, os griots embaixadores, mediadores
em caso de desentendimento entre as famílias, e os griots historiadores, poetas, genealogistas (que trabalham a
árvore genealógica, origem das famílias) este são contadores de histórias. (MATTOS, 2007, p. 19)
31

Desta maneira, o mito é capaz de criar uma relação respeitosa entre o indivíduo e a
natureza e com o mundo do qual faz parte. O mito traz em sua essência o valor significativo de
aprendizagem sobre a vida. Portanto, vale apresentar o mito da "Transformação da Conquén"
do qual busca valorizar a relação do homem frente a comunidade da qual faz parte e se
relaciona.
Era uma vez, no início do mundo, quando todos os bichos falavam. Os bichos, as
árvores e as pessoas. Todos procuravam se comunicar e se entender do melhor jeito possível.
Sendo assim, muita coisa podia ser resolvida com uma boa conversa. No princípio do mundo,
era uma vez uma conquén que vivia ciscando e olhando apenas para o que fazia, sem se envolver
com ninguém. Passava o dia todinho a reclamar: Tô fraco! Tô fraco! Tô fraco. A sua cor era
cinzenta e não tinha graça nenhuma. Pobre conquén, nada de novo acontecia na sua vida. E
cada dia ela estava mais insatisfeita. Ela ficava cada dia mais zangada.
Certo dia, ela mesmo compreendeu que estava demais. Era necessário transformar
aquela situação. A conquén, então, lembrou que ali perto morava um oluwo. O oluwo era uma
pessoa que vivia dando conselhos a todos que o procuravam. Ela resolveu ir procurá-lo também,
para receber orientação sobre o que estava acontecendo em sua vida. Ela vivia muito nervosa.
De longe, ouviam-se seus gritos: Tô fraco! Tô fraco! Tô fraco. O oluwo a recebeu. Depois de
ouvir atentamente as suas queixas, falou pausadamente: Todo seu problema é este seu jeito
horrível de tratar as pessoas. O meu conselho é que você mude os seus hábitos e suas atitudes
imediatamente. Tratar bem as pessoas traz alegria e bem-estar. Preste atenção às pessoas,
principalmente àquelas que você encontra pela primeira vez. Vou lhe ensinar umas palavras
mágicas. Você vai ver como tudo vai se transformar. A conquén estava muito mal mesmo,
pensava e gritava: eu quero me transformar. Eu vou mudar. Eu vou mudar. Agradecida, deu um
punhado de kauri (búzios) ao oluwo e partiu.
Já na manhã seguinte, quando despertou, foi olhando para a cajazeira e
cumprimentando-a: kaaró. A cajazeira espantada respondeu: kaaró ô! Mais adiante, ela
encontrou dois patinhos que estavam no seu caminho. Ela falou antes de passar entre eles: agô!
Eles deram passagem à nova amiga, respondendo como de costume: agô ya. Um grupo de
conquéns passou apressado para o trabalho e ela desejou simpaticamente: Ku ixé! O grupo todo
agradeceu em coro: Adupé ô! Na verdade, aquele dia parecia completamente diferente de todos
os dias de sua vida. Ela parou um pouco, já no caminho de casa. Era noite, todos a olhavam
como se a vissem pela primeira vez. Ela foi logo cumprimentando a turma, com a maior
cortesia: Kaalé! Todos responderam: Kaalé ô! Depois de um pouquinho de prosa, na hora da
despedida, a conquén falou com alegria: Adolá! E todos responderam em coro: Adolá ô!
32

Foi tanta transformação que, no dia seguinte, ela encontrou um velhinho que
caminhava bem devagar na sua frente. O velhinho era Oxalá. Acostumada a não dar atenção às
pessoas, nem o reconheceu. Mas ela tratou Oxalá com ternura e educação. De tudo que ela
trazia consigo entregou para o velho Oxalá. Imagine como Oxalá ficou contente em receber
tanta atenção da conquén. Foi aí que, para demonstrar seu agrado, ele tirou de sua bolsa um pó
mágico e pintou a conquén todinha com umas bolinhas brancas. E pegou um montinho de barro
e colocou no cocuruto da conquén. Assim, ela ficou marcada para sempre como um bicho da
predileção de Oxalá. A partir daquele dia, todos buscavam a sua companhia e conversavam
muito com ela. E sempre se despediam com muita alegria. E percebeu-se que todas as conquéns
do mundo apareceram com um pitombinho na cabeça e as pintinhas brancas dadas por Oxalá9.
Assim, Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido enfatiza o poder da palavra e a
importância do diálogo exercido entre os agrupamentos sociais para uma aprendizagem
significativa. Aprender a dizer a palavra, por meio de histórias, fábulas e mitos, vai muito além
de passar conhecimentos prévios a respeito dos costumes e valores do clã, pode se transformar
em um instrumento de emancipação e resistência de uma classe oprimida e silenciada, por uma
elite dominante, que por unanimidade, monopoliza a palavra, ou seja, mantêm como padrão
cultural seus costumes e valores tradicionais, dando-lhes poder político e econômico perante a
sociedade da qual domina hierarquicamente. Como aponta Fiori “a prática da liberdade só
encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de,
reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica”
(FREIRE, 1996, p. 9).
Ora, o que vemos no sistema educacional vigente brasileiro é uma universalização dos
currículos e conteúdos programáticos (educação bancária10) que teimam em valorizar histórias
da elite socialmente pré-estabelecida, construída as margens de acontecimentos e fatos heroicos
que retomam as grandes personalidades do continente europeu, branco e cristianizado,
relegando as demais culturas afro-brasileiras o obscurantismo. Criticamente, observamos um
fracasso na prática da Lei nº 10.639/03 no espaço escolar, pois além do despreparo do corpo
docente e seu desconhecimento em relação a história e a cultura africana, temos como agravante
uma sociedade racista que oculta com grande fervor as manifestações culturais negras como
forma de tolher a libertação política-social dessa camada oprimida historicamente. Portanto, é

9
Texto extraído de Mitos afro-brasileiros e vivências educacionais de Vanda Machado, 2015, p. 8-9.
10
Segundo Paulo Freire entende-se por educação bancária aquela que a educação tem o ato de depositar, de
transferir valores e conhecimentos padronizados como modelos a serem seguidos pela sociedade oprimida.
(FREIRE, 1996, p. 59)
33

necessário que haja uma mobilização radical frente a aplicabilidade de forma contundente da
Lei nº 10.639/03 nas escolas brasileiras, pois o racismo e a intolerância devem ser banidas da
nossa história urgentemente. Precisamos, divulgar os mitos e as histórias africanas nas
instituições educacionais, para que todos tomem consciência que o afrodescendente também
produz histórias e filosofias de vida e, almejam contribuir a partir de suas referências éticas a
construção de um Brasil com mais equidade e justiça social. Nas palavras de Freire (1996):

O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um


favor que podemos ou não conceder uns aos outros. (...) É nesse sentido também que
a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na
diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente
exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente
éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista
como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte: que
alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como
transgressor da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas,
sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da
branquitude sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os
empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais
que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. (FREIRE, 1996)

Para finalizar tal debate, segue abaixo os valores filosóficos, pedagógicos, religiosos e
culturais do universo iorubá transcritos dos poemas sobre educação e honra e respeito aos pais
e aos mais velhos. Vamos conhecê-los:

Educação e Honra:

Cuide de suas maneiras11

Cuide de suas maneiras, meu amigo!


A honra pode abandonar sua casa,
e a beleza, às vezes, acaba.
O rico de hoje pode ser o pobre de amanhã.
A honra é como o mar,
e também a onda da riqueza;
ambas podem escapar de nossa casa.
Mas as boas maneiras acompanham-nos
até o túmulo.
O dinheiro não é nada,
As boas maneiras é que são
A beleza da humanidade.
Se você têm dinheiro, mas não se comporta bem,
Quem irá confiar em você?
Ou, se você é uma mulher muita linda,
Mas não se comporta de maneira adequada,
Quem desejará tê-la como esposa?

11
Poema extraído do livro Orí: a cabeça como divindade - história, cultura, filosofia e religiosidade africana de
Márcio de Jagun, 2015, p. 133-134.
Versão de COUTO DE ALMEIDA, Maria Inez. Cultura Iorubá - costumes e tradições. Rio de Janeiro: Dialogarts,
2006.
34

Ou, ainda, se você é muito educado,


Mas engana as pessoas,
Quem confiará em você para negócios?
Cuide de suas maneiras, meu amigo.
Sem bons modos, a educação não tem valor.
Todos amam uma pessoa que sabe se comportar.

Respeito aos pais e aos mais velhos:

O poema do Odù Ìrètè Egúntán12

Respeite sua mãe e seu pai,


que você pode viver muito tempo na terra (vida longa).
Ifá diz para oferecer sacrifício (ebo) a sua mãe e seu pai,
o sacrifício de justiça, cuidado e humildade.
Você pode se regenerar.
Ifá diz oferecer sacrifício a sua mãe e seu pai, o sacrifício da obediência
cega,
de cuidados, para que as maldições nunca possam cair sobre você.
Pois as maldições de seu pai e sua mãe são as maldições do Todo-
Poderoso.
Ifá diz oferecer sacrifícios ao seu pai e sua mãe,
o sacrifício da ajuda, do amor, da justiça, que você possa ter descanso,
que você possa ter conforto.

Portanto, vemos que a educação e a honra são bens patrimoniais da cultura iorubá.
Assim, Olá bàbà ni ìmú yan gbéndeke - é a honra do pai que permite ao filho caminhar com
orgulho. A honra é, então, um bem quase hereditário. Um homem desonrado não conseguirá
transmitir esses princípios à sua prole e criará uma descendência inteira sem honra (JAGUN,
2015, p. 134). Assim como, em relação ao respeito aos pais e ao mais velhos é de extrema
importância, pois os pais e os anciões são a primeira e mais significativa referência ancestral,
devendo os mais jovens tratá-los com carinho, gratidão e verdadeira devoção (Ibid.).

12
Poema extraído do livro Orí: a cabeça como divindade - história, cultura, filosofia e religiosidade africana de
Márcio de Jagun, 2015, p. 133-134. (IFÁ DIVINATION POETRY, WANDE ABIMBOLA)
35

4 CONCLUSÃO

O contexto educacional vigente frente a Lei nº 10.639/03 busca enfatizar uma


discussão pertinente em relação as demandas históricas advindas de um processo de formação
sociocultural sobre o qual as manifestações negras brasileiras ficaram relegadas ao
obscurantismo por muitas décadas. Desta forma, têm-se a intencionalidade de construir um
currículo nas bases do multiculturalismo crítico para que se efetue um debate mais amplo e
democrático dos conteúdos programáticos a serem abordados nas escolas.
Logo, o currículo escolar em consonância com as normais legais atuais visam
contemplar as ações de Políticas de Reparação, de Reconhecimento e Valorização e de Ações
Afirmativas as quais almejam a transformação da educação em vias mais includentes. Assim,
de acordo com o Parecer nº 03/2004 do Conselho Nacional de Educação: “é importante salientar
que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional,
expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva,
seus pensamentos”.13
Portanto, se faz necessário a divulgação dos estudos sobre a África e a cultura afro-
brasileira nas escolas para que tais desconfianças sejam quebradas em prol da construção de
uma sociedade justa, igual e equânime e que possamos reescrever a história das populações
negras brasileiras, com objetivo de construir alicerces contra os discursos hegemônicos
pautados em um modelo teológico-litúrgico branco que dissipam as memórias e as identidades
tradicionais negras. Que a religião afro-brasileira e seus ensinamentos seja um instrumento de
militância cada vez maior, a fim de proporcionar a afirmação sociorreligiosa e identitária do
afrodescendente, resgatando sobretudo, a real ancestralidade africana em nossa terra.

13
BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, 2009, p. 75.
36

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39

ANEXO
40

ANEXO 1

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