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EGA DE QUEIROS E A PERSONAGEM COMO FICGAO EGA DE QUEIROS AND THE CHARACTER AS FICTION Carlos Reis Universidade de Coimbra/CLP 1. A questo que me proponho abordar nao é exatamente aquela que © titulo, na sua aparéncia quase simplista, pode sugerir. Para ser mais claro: ao tratar a personagem como ficcdo em Ega, nao pretendo analisar as figuras ficcionais que povoam os romances e os contos queirosianos, com intuito meramente descritivo ou com propésito hermenéutico. Bem conhecidas so as personagens queirosianas. Conhecidas, analisadas, interpretadas, reinterpretadas e discutidas, umas vezes elogiadas, outras abominadas, A luz de paradigmas diversos, com- plementares ou antagénicos: da histéria literdria 4 psicandlise e ao estruturalismo, passando pela estilistica, pela sociologia literdria, pelos estudos femininos, pelos estudos pés-coloniais, pelos estu- dos comparados ou pelos estudos narrativos, para tudo e para algo mais tém servido as personagens de Ega. Herdis e vildes, miséginos e sexualmente ambiguos, edipianos e, quando calha, anti-edipianos, reflexo do seu tempo e desmentido do que esse tempo foi, romanti- cos, tardo-romAnticos e pré-modernistas, assim so os seres humanos que habitam os relatos de Ega. Neste aspeto, a vasta bibliografia quei- rosiana tem-se alimentado gulosamente da complexidade do mundo Rovista do Estudos titrdrios 6 (2016): 29-60, DDO: ht: doi orp/10.14195/2183-B47X_ 61 20 | CARLOS REIS ficcional de Eca. E, no caso em aprego, da abundancia de uma ementa de carateres que desafia ¢ 4s vezes assusta quem dela se aproxima: c’est lembarras du choix! Nao vou por ai, porque, tal como muitos outros, por esse cami- nho ja fui e por ele voltei. Quando me refiro aqui a personagem como ficcio, aludo, em geral, 4 vocacao queirosiana para inscrever e tema~ tizar a literatura nas suas narrativas e nos discursos das figuras que nelas encontramos; 0 que, com perdao pela invocagao do dbvio, me parece ser uma forma de langar uma ponte que vai do realismo 4 modernidade, na passagem do século XIX para o século XX. De forma mais clara, reporto-me a varios aspetos deste tema to amplo como, para mim, fascinante. Por exemplo, ao facto de perso- nagens literdrias de outros escritores comparecerem nos relatos de E¢a, mencionadas pelos seus narradores ou pelas personagens quei- rosianas propriamente ditas. Num outro plano, o conceito de perso- nagem emerge pontualmente na ficgao de E¢a, por forga das historias contadas e no raro com intuito argumentativo. Para além disso, a ficgo pode ser lida nao como um “espago” fechado, mas como um campo sem fronteiras rigidas, campo “invadido” por seres (por personagens) que nele penetram sem grandes restrig6es. Desponta aqui, naturalmente, a nogio que é uma das estrelas mais brilhantes da constelagdo dos modernos estudos narrativos: a metalepse. Nao dissertarei agora sobre tal conceito, mas nao posso ignorar 0 poten- cial heurfstico que ele envolve e os significados que dele podemos deduzir. Fica, previsivelmente, para o final. Aquilo que sobre tudo 0 mais me interessa € mostrar que a refic- cionalizagio (ou a refigurac&o, como prefiro dizer ¢ ja veremos por- qué) de personagens alheias em ficgSes queirosianas no acontece por acaso, nem de forma inocente. Menos ainda para exibir uma cultura literaria que, evidentemente, o esctitor oitocentista possuia de forma exuberante e que ndo podia cancelar, quando compunha as suas fic- EGA DE QUEIROS E A PERSONAGEM COMO FICGAO | 31 g6es. No proceso (ou processos) de que me ocupo, nao cabe falar, como no modernismo pirandelliano, de personagens 4 procura de autor, mas sim de personagens que passam de um autor para outro. Ou de personagens acolhendo personagens. “Vinha dos bragos de um qualquer, passou para os meus...” (Queirds, 2016: 498), declarou Cas- tro Gomes, com ponderada crueldade, a Carlos da Maia, quando lhe revelou quem era (ou quem ele julgava que era...) Maria Eduarda. Nio direi, com perversidade semelhante de Castro Gomes, que é disso que se trata aqui, mas 0 movimento existe. S6 que as persona- gens alheias que a ficodo queirosiana nos mostra nao vém “dos bragos de um qualquer”; normalmente elas tém identidade prépria, autoria conhecida e sentido coerente com 0s contextos em que so integradas; ou, sendo apenas esbogadas pelas préprias personagens dos relatos de Ega, so reconhecidas como figuras inscritas numa tradigSo literé- ria, numa meméria coletiva e num quadro cognitivo que as sustenta. 2. As razBes que explicam as referéncias metaficcionais a perso- nagem na ficgdo de Ega ficam para depois, no desenvolvimento desta reflexdio e para além dela, se for 0 caso. Mas avango desde ja com 0 seguinte: o tempo de E¢a foi aquele em que a literatura, pouco antes institucionalizada como produgao e como fenémeno com larga pro- jecao social, ganhou a dimensao ¢ a dignidade de uma atividade que merecia lugar de destaque na propria literatura. Noutros termos: como tema inscrito na ficg’io, fosse em si mesmo, fosse através de uma personagem-tipo que conheceu vasta circulacao, particularmente no tempo do realismo: o escritor e, com ele, o sarau, o jantar literario ou a declamagio em cendrio burgués, por vezes com suporte musical, a0 piano ou 4 guitarra. A literatura nao podia, entdo, encenar-se sem apelar a literatura. Um tal gesto, quase narcisista e de autovalorizagio, diz muito acerca da proeminéncia do escritor; foi ele quem, a partir da posi¢ao assu-

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