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Conselho editorial: Marcelo Bizar, Marco Trindade, Sônia Elã, Kátia Botelho
Secretária-geral: Sônia Elã
Revisão: a revisão dos textos é feita pelo próprio autor, não sofrendo alteração pela
revista (a não ser tão-somente quanto à correção de erros materiais).
Capa: Concepção: Marcelo Bizar e Marco Trindade; Arte e Grafismo: Marcelo Bizar
Al l a h - L a Ô
(Haroldo Lobo / Nássara)
Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô
Mas que calor ô ô ô ô ô ô
Atravessamos o deserto do
Saara
O sol estava quente
Queimou a nossa cara
Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô
Mas que calor ô ô ô ô ô ô
Viemos do Egito
E muitas vezes
Nós tivemos que rezar
Allah! Allah! Allah, meu bom
Allah!
Mande água pra ioiô
Mande água pra iaiá
Allah! Meu bom Allah!
SUMÁRIO
02 - Expediente
03 - Editorial
04 - Sumário
05 - Hoje enterrei minha mãe
06 - Alaíde e Áurea
07 - Nesse ano que passou
09 - A morena do decote
10 - Dez anos sem Luiz Carlos da Vila (última parte)
17 - De doer a alma
20 - Jenner Menezes
22 - O samba, eterno mensageiro da alegria
23 - Era uma vez, em Madureira...
27 - Preço da ambição
28 - Mulher preta violentada na roda de samba
30 - Museu Imagens do Inconsciente
32 - Poema
33 - Atirei o pau no gato
34 - Afropictosofia
36 - Temposiçao das Almas Íncubas - 2º Pentakapitel: IV. Paladar
39 - Da Abolição ao Pechincha
41 - Um lugar no subúrbio
42 - Viu-se finalmente
43 - Biblioteca Suburbana
44 - Um quilo bem pesado
47 - Vitrolinha Suburbana
48 - Noturno Suburbano
49 - Política, cerveja e a melhor moela com batata do mundo
52 - Blog do Tiziu
Hoje enterrei minha mãe
Mãe.
Hoje enterrei minha mãe. Há alguns meses foi meu pai, e agora ela. Partiu
serena, dormindo em sonho de paz.
Há algumas semanas nos encontramos e pude sentir o quanto ela sentia falta
do meu pai, ela ansiava encontrá-lo de novo.
A história deles é linda e para conta-la tenho que começar com a minha.
Nasci com um karma de culpa e sofrimento, pois em meu nascimento minha mãe
morreu.
Não lembro muito da minha primeira infância, mas lembro bem quando meu
pai me apresentou a Angélica, era um colo gostoso, um sorriso doce.
Sua luz iluminava a casa, seus olhos seus gestos carinhosos, foi minha mãe,
confidente, amiga.
Carreguei por muito tempo a culpa da morte de minha mãe. Angélica me
escutava e dizia: só viva, nunca se culpe. A culpa é a pior desculpa pra não viver.
Meu primeiro namorado, minha primeira desilusão, meus 15 anos, quando ela fez
uma surpresa convidando minhas 3 melhores amigas para passar um final de
semana na praia. Minhas bombas no vestibular. Pra tudo sabia que podia contar
com seu apoio. Sua sopinha pra febre, seu bolinho de chuva no final da tarde pra
acalmar o estresse de meu pai. Tudo se acomodava em seu colo de Mãe e mulher
de meu pai.
Ela não me deixava abater. Assim; fui morar com amigas durante a faculdade,
trabalhar pra pagar meus estudos. Quando eu reclamava, ela ria e dizia: Minha filha
querida, você pode fazer tudo, você nunca precisará ser rica, mas nunca há de lhe
faltar nada. E no seu coração há de sempre ter a alegria de viver, mesmo que doa.
Angélica nunca ficava doente, estava sempre disposta e conhecia os desejos, os
caprichos, e a nobreza de meu pai.
Devo a ela o apoio ao enfrentar um casamento desastroso, na dor de me
descobrir estéril.
Hoje enterrei minha mãe Angélica que viveu com meu pai por 35 anos, que
me adotou como filha.
Coloquei na coroa de flores: a melhor mãe do mundo – Saudades eternas.
Sua certidão de óbito, guardei comigo:
Morreu no dia 24 de junho de 2010, José Antonio Morais no Rio de Janeiro....
Minha Mãe Angélica
Do r i n a G u i m a r ã e s
Alaíde e Áurea
Orl a n d o Ol i v e i ra
1- “Áurea Martins – a invisibilidade visível”, Lúcia Neves, RJ, Folha Seca, 2017, pg. 65/ 66.
Ne s s e a n o q u e p a s s o u !
Junior da Prata
A morena do decote
A menina do decote
É um poema dissoluto,
É cantiga de luxúria
Lindamente desvairado.
A mulher do ar de malícia
Bebe assim como dois homens,
Nunca sonha, apenas vive,
Nunca chora, mas se alegra
E é a estrela das biroscas,
A princesa das bodegas
E a rainha do sambão.
A mulher exuberante
Faz parar inteira a Penha,
Faz luzir a madrugada,
Faz sorrir o homem mais triste,
Faz sambar a multidão
Ba r ã o d a M a t a
Dez anos sem Luiz Carlos da Vila (última parte)
Apesar de ter sido uma operação bastante complicada, Luiz renasceu para a
vida e, como diria depois no CD que lançaria, deu um salto mortal sobre a morte.
Passou a ser acompanhado de perto por dois médicos de esquerda, que viraram
seus amigos, doutor Bigu e doutor Lauro. A preocupação dos médicos com Luiz
passou a ser controlar os excessos da boemia, seu principal adversário a ser
superado.
E lá estava Luiz, maio de 2003, na casa da cantora Luiza Dionisio, entre Vila
da Penha e Irajá (Vila Rangel para ser exato),feliz da vida, cantando músicas
inéditas para os amigos, como "Benza, Deus!" (parceria com Moacyr Luz),
"Chorando de Saudade" (com Mauro Diniz). Essas duas músicas fariam parte
daquele que é considerado o seu melhor disco na carreira, o CD "Benza Deus",
lançado em 2004. Neste trabalho, Luiz incluiu parcerias suas com João Nogueira
("Como eu te quero bem"), com Magno e Maurílio do Quinteto em Branco e Preto
("A agulha e o dedal"), com Claudio Jorge ("Em nome do amor"), com Wilson das
Neves ("Ao nosso amor maior"), com Nelson Sargento ("Lara", em homenagem a
Ivone Lara), com Bira da Vila ("Vem pra roda sambar", música que acabou não
entrou entrando no segundo disco do grupo feminino Roda de Saia), com Gilmar
Simpatia ("A Luz do Axé", que poderia ter sido a segunda música de LCV no
segundo disco do grupo Toque de Prima, mas não foi) e com Riko Dorileo
("Universo"). Gravou um samba enredo seu derrotado na Quilombo ("Solano, Poeta
Negro"), em parceria com Nei Lopes e Zé Luís do Império, que considero o melhor
que ele fez. E uma parceria com Wanderley Monteiro "Pra conquistar seu coração",
o samba mais famoso do disco, que ouvimos de forma inédita, com ele e
Wanderley, no quintal da sua casa. A música seria seria logo gravada por Beth
Carvalho.
Sua marca em todas as composições é gritante: sempre elementos
contrapostos, contraditórios, no mesmo verso, na mesma estrofe, porém fazendo
um todo harmonioso na obra. Mas, a música mais bonita do disco, que retratava o
momento difícil que tinha passado, era "A Cigarra e o Samba", que interpretou de
forma emocionante no lançamento do disco, em um Teatro Rival lotado. Os versos
"Em tempos de pouca alegria/ Se é para morrer morrerá com melodia" davam a
dimensão da sua batalha contra a morte. O CD recebeu grandes elogios da crítica
especializada, com destaque para a análise de Hugo Suckman feita para o jornal "O
Globo".
Paralelamente, Luiz (Vila da Penha), junto com a cantora Dorina (Irajá) e
Mauro Diniz (Oswaldo Cruz), lançava o movimento "Suburbanistas", no sentido de
valorização das coisas do subúrbio, além de ser uma brincadeira bem humorada
com o midiático "Os Tribalistas", de Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo
Antunes, que estourou nas rádios, em 2002 e 03. Luiz, Dorina e Mauro Diniz
passaram a fazer apresentações conjuntas, divulgando os "Suburbanistas".
Do movimento cultural da Vila da Penha, da segunda metade da década de
noventa e início dos anos 2000, pouco tinha ficado: a Rádio Comunitária seguia
fechada; Chico Pereira tentou comprar a casa, perto do bar, onde fazia atividades
culturais, mas não conseguiu; eu, Luiz Carlos Máximo e Luiz Carlos Patropi
seguíamos tocando o Bloco do Rabugento, afastados do Bar Papo de Esquina, em
função de considerarmos a visão de Luizinho, o dono do bar, mercantilista em
relação à cultura. Isso nos afastou dos demais ativistas culturais que continuavam a
frequentar o botequim. Para "Das Vilas" tinha gente que era "Luizinho de
carteirinha".
Uma das tentativas para combater a dispersão foi a construção do Centro
Cultural Octávio Brandão, em uma casa de fundos na residência da cantora Luíza
Dionísio. O CCOB era uma iniciativa de militantes de esquerda, da União Comunista,
do PSTU e do PSOL. Por outro lado, Sérgio do Carmo, Chico Pereira, Graça Schitinno
e Kokito (irmão do Luizinho) seguiam promovendo encontros de poetas e músicos
no bar, regularmente. Os grupos se frequentavam e LCV passou a frequentar os
dois espaços, naturalmente. Assim como ia no Centro Cultural, dava apoio ao
pessoal que agitava culturalmente o bar. Curtia Johnny Maestro ("Dúvida/ da
dúvida, duvidar") e principalmente Ibys Maceioh ("Bolero Made In"). Apesar de não
ter paciência para ler poesia (mesmo tendo ganhado de Martinho da Vila a coleção
completa de livros de Carlos Drummond de Andrade) LCV gostava de ouvir,
particularmente poemas curtos, como os feitos pelo poeta gaúcho Mário Quintana.
Foi no Centro Cultural, que Luiz Carlos da Vila cantou de forma inédita a sua
nova parceria com Bira da Vila ("Então Leva", gravada anos depois por Zeca
Pagodinho) e "Brasileirice" (com Luiz Carlos Máximo, que daria o nome do CD de
2010 da cantora Dorina). Foi nesse dia que LCV me perguntou porque o nome do
Centro Cultural se chamava Octávio Brandão e não Pixinguinha, figura histórica do
subúrbio da Leopoldina que ele tanto admirava. Tive que lhe explicar que Octávio
Brandão, vereador comunista duas vezes cassado, que tinha como apoiador o
jornalista e botafoguense João Saldanha, além de ter sido poeta, lutara muito pela
educação e cultura pública no Rio de Janeiro. Não o convenci.
No Centro Cultural também foi organizado uma roda só de samba inéditos,
como se fazia na Quilombo. Estavam lá nesse dia, além de "Das Vilas", Wanderley
Monteiro, Ratinho, Bira da Vila, Riko Dorileo, Marquinho China, entre outros. Mas, o
CCOB teve vida curta naquele endereço: Luiza Dionízio teve que vender a casa e o
Centro Cultural passou a fazer suas atividades provisoriamente em Ramos, na
residência de Nélson Marques e Lúcia Trevisan (perto da antiga casa do
Pixinguinha), até se instalar em Maria da Graça. Meus contatos com Luiz Carlos da
Vila passaram a ficar mais esporádicos. Ele tinha até topado que eu e Luiz Carlos
Máximo fizéssemos uma biografia dele (eu ia incluir mais dois parceiros
historiadores, Cristiano Borges e Fernando Peixoto), mas a ideia não foi adiante.
Ainda no ano de 2004, Luiz voltou para a Vila Isabel e disputou com Agrião,
Claudio Jorge e Jonas o samba-enredo da agremiação para o ano seguinte. A Vila da
Penha se mobilizou pela vitória do seu poeta. Fui em um dos "cortes" e ele até ficou
meio chateado comigo e com Marcão Souza por termos também gostado do samba
de Vilani Silva, o Bombril, defendido por Anderson Baiaco. Na final, Luiz e os
parceiros perderam injustamente para André Diniz. Nos bastidores da disputa,
muitos integrantes da Vila acusavam Luiz ter se afastado da escola, quando a
escola esteve por alguns anos no grupo de acesso.
No ano de 2005, LCV tentou novamente ganhar o samba na Vila, agora em
parceria com Martinho da Vila. Considero essa obra superior a do ano anterior.
Íamos para a Vinte e Oito de Setembro, esperávamos Analimar (filha de Martinho)
distribuír as senhas e entrávamos na quadra para fazer o coro e a torcida. O samba
era muito melhor do que o do André Diniz, mas que acabou novamente vencedor.
Essa composição seria gravada pelo cantor argentino Fito Paez e também por
Martinho, no disco "Enredo", de 2014.
Dois mil e cinco foi um ano tranquilo para Luiz Carlos. Menos agitado, fora
uma cicatriz que ficou um bom tempo no seu rosto, em função de uma queda,
provocada por uma labirintite. Foi um ano em que produziu o disco "Matrizes",
bastante elogiado pela crítica, com Claudio Jorge, com todos os tipos de gêneros
musicais brasileiros, com influência negra. De sua autoria, LCV só registrou no disco
"Das Origens" e "Singrando os Mares Bravios", o samba derrotado na Vila, de 2004
para 2005. No disco, "Das Vilas" regravou o empolgante samba do seu afilhado
musical, Bira da Vila, com Serginho Meriti, "O Daqui, o Dali, o de lá", que era para
ter entrado no disco de Zeca Pagodinho de 2002, mas acabou perdendo a vaga
para "Deixa a vida me levar" , música também de Serginho Meriti e Eri do Cais.
Também em 2005, finalmente saiu o CD ao vivo de Luiz, "Um cantar à
vontade" e ele acabou entrando mais uma vez no disco de Zeca Pagodinho, "À
Vera", com "Dizer não pro adeus", belíssimo samba, em parceria com Ivone Lara, de
quem era fã, e Bruno Castro. Segundo Luiz Carlos Máximo, o raio de parceiros do
xará estava aumentando: além de Ivone Lara, tinha também Ivan Lins, Francis
Hime...
O bom momento na carreira de Luiz Carlos foi comemorado no bar, em
atividade organizada por Sérgio do Carmo, Chico Pereira, Kokito, apoiados por
Graça, Antônio Schittino e Horácio, com direito a um belo poema feito por Kokito
("Poeta da Vila"), dedicado ao sambista. Mais de 700 pessoas compareceram, no
pequeno Papo de Esquina, com a canja de Monarco e presença de Ubirany do Fundo
de Quintal e do médico Drauzio Varella. Os organizadores fizeram até uma camisa
com o Pelicano, símbolo do Papo de Esquina, abraçando o vira-lata Rabugento,
numa tentativa de nos reaproximar. Mas, continuávamos intransigentes com
Luizinho: fomos lá, abraçamos Luiz Carlos e acompanhamos tudo, de frente ao bar,
na casa do Patropi.
Dias depois, por coincidência, Luiz foi chamado, com outros compositores
gravados no disco "À Vera" de Zeca Pagodinho, para participar do programa do
Faustão, na Globo. Novo rebuliço no Papo de Esquina e nova atividade, com 700
presentes. Depois, na comemoração do seu aniversário, em uma quadra lotada do
Cacique de Ramos, o produtor Fernando Gama deu a ideia daquilo que seria a
principal atividade profissional de Luiz, nos próximos anos: o "Caldos e Canjas", na
esteira do sucesso do "Samba do Trabalhador", organizado por Moacyr Luz, no
Clube Renascença do Andaraí. No CD do "Samba do Trabalhador", "Das Vilas"
regravaria "A Luz do Vencedor" e entraria com uma inédita, "Cabô, meu pai", em
parceria com Moacyr Luz e Aldyr Blanc, música que estouraria três anos depois com
Zeca Pagodinho.
No carnaval de 2006, foi a única participação de Luiz no Bloco do Rabugento,
que ele ajudara a fundar compondo a primeira música. Bastante animado e
inspirado em uma das músicas que estavam sendo apresentadas pelo bloco (de
autoria de Manoel o Audaz), Luiz tentou fazer uma de improviso, sacaneando o
evento organizado pela prefeitura do Rio, em pleno carnaval, com a presença dos
Rolling Stones: "Au, au, au,au, au! Mick Jagger não é pedra pro meu carnaval!",
dizia o refrão final.
Ainda no início de 2006, nova atividade no Papo de Esquina, agora dos
"Suburbanistas", comandada por Dorina. Luiz não pode comparecer por ter
compromissos profissionais. Bem menos gente, mas ainda sim público numero para
o simpático pé-sujo: duzentos presentes que assistiram a "canja" de Arlindo Cruz.
Já o "Caldos e Canjas", a princípio no quintal da casa de "Das Vilas" teve que ir para
a Lona Cultural de Vista Alegre: a casa começou a ficar pequena para tantas
pessoas. Só que como tinha ocorrido com o forró comandado pelo amigo Jonas
Ribbas e o Bando Trololó, anos antes, LCV fez o ponto no espaço para depois ser
alijado do mesmo. Acabou Jane e ele parando com o "Caldos e Canjas" no Bohêmios
de Irajá.
Meus encontros com Luiz, afora o "Caldos e Canjas", passaram a escassear.
Foram poucos, nos dois derradeiros anos: na Copa de 2006, na casa de Luiz Carlos
Máximo e Luíza Dionísio no Flamengo, depois da estreia do Brasil na Copa. Outro
encontro foi indo para uma Oficina de música de jovens em Duque de Caxias, que
Bira da Vila incentivava: saltei do carro no meio do caminho e ainda ouvi ele descer
o pau no compositor Toquinho: ´"È um Toquinho, mesmo!", sem saber que doze
anos depois, o parceiro de Vinícius ia virar simpatizante do Bolsonaro. Em outra
oportunidade, estivemos na casa do compositor Ratinho, na "Toca do Rato". Sempre
bem humorado, "Das Vilas" deu uma canja, com uma das versões que cantava de
"Sábado em Copacabana", regravação de Nana Caymmi, que abria a novela
"Paraíso Tropical" da Globo: "Um bom lugar/ Pra se fumar/Marijuana..."
Outro encontro foi por acaso no restaurante Capela, quando ele chegou com
Fernando Gama e me apresentou Zózimo Bulbul, com a mesma naturalidade que de
outras vezes tinha me apresentado Nélson Sargento, Beth Carvalho, intérprete de
tantos sambas seus, Seu Jorge, que gravara "Samba que nem Rita adora". Afinal,
seus amigos eram também amigos dos seus amigos. E lembrar que anos passados,
poucos dias antes dele ir a primeira vez no Papo de Esquina, estávamos eu e Luiz
Carlos Máximo no mesmo Capela, no aniversário de Mariozinho Lago e Osvaldo
Tatagiba, observando de longe a presença de LCV, Darcy da Mangueira, Beth
Mendes, Galotti, Dorina e Didu Nogueira.
Mas, um desses poucos encontros foi especial: Luiz apareceu no meu
aniversário de 42 anos, em 2007, no Centro Cultural Octávio Brandão, já
funcionando em Maria da Graça. Com roda de samba comandada por Rogerinho
"Família", "Das Vilas" me pediu para cantar com ele, "Chico Rei", samba enredo do
Salgueiro de 1964, feito por Geraldo Babão. Nessa, eu o deixei na mão: não sabia
cantar o samba todo. Aliás, LCV tinha particular apreciação pelos sambas enredos
passados, afinal era esse o seu aprendizado. Me lembro dele, no quintal da sua
casa, tocando ao violão, "Samba, festa de um povo", belíssima e desconhecida
composição de Darcy, Hélio Turco, Odir, Luís e Batista, que levou a Mangueira
vencer o desfile de 1968.
No carnaval de 2008, o Bloco do Rabugento decidiu voltar para o Papo de
Esquina, após Luisinho ter passado o ponto do bar. O enredo do Bloco também
homenageava Luiz Carlos. Fiz um esboço de letra, Manoel o Audaz melhorou
bastante e botou melodia. Cantei para ele, o refrão do meio: "É Bicão lá na Cetel/ é
Bicuda na Anatel/ Da Travessa da Amizade/ Vem Luiz Carlos, o menestrel". Ele
tomou um gole de cerveja e exclamou: "Maravilha!". Não sabia ele que tive que
mexer na terceira estrofe do refrão, que era inicialmente "Com Brandura e
Coragem...": em razão da sua parceria com Luiz Carlos Máximo, em homenagem a
Vila da Penha "Vila do meu coração", a ideia de falar do nome das ruas (Brandura,
Coragem, Amizade, Inspiração, Justiça) já tinha sido usada na composição que seria
gravada em disco por Luísa Dionísio, dois anos depois. Depois, LCV fez algumas
considerações sobre a composição que eu lhe apresentara, achando que a mesma
caía no final. Como se eu fosse compositor! Bom, ganhei nesse dia dele uma camisa
dos "Suburbanistas" em homenagem ao Xangô da Mangueira, a segunda que ele
me dava de presente (a primeira foi a da Verde e Rosa). Os Suburbanistas que,
naquele carnaval de 2008, foram enredo da Unidos de Santa Tereza.
"Das Vilas" seguiu na sua generosidade, dando força para a nova geração do
samba. Foi-se a época em que sentia ciúmes, gerando, às vezes, atritos com jovens
sambistas. Sua composição "Eminência Negra" (parceria com Wilson das Neves) foi
gravada pelo novato grupo Galocantô. A mesma atitude LCV tinha para os "filhos"
da Vila da Penha: quis terminar um samba de Luiz Carlos Máximo com Jorge Ribeiro
Pinto, homenageando Martinho e Noel, coisa que infelizmente não ocorreu. Também
entrou no disco de Moyseis Marques, com "Profissão" e prefaciou o livro "`Papo de
som com amigos na esquina" (Poemas e Canções), do movimento cultural que
persistia no Papo de Esquina. No penúltimo encontro que tive com LCV, no
Bohêmios de Irajá, ele já estava de cinta, achando que era uma hérnia. Foi no dia
que inauguraram um enorme mural desenhado por Floriano, com ele ao centro,
cercado por intérpretes e parceiros. Também estavam pegando depoimentos de
amigos sobre ele e eu dei o meu, contando a história que ele tinha me passado
sobre como tinha sido a sua vitória no Festival de Avaré.
Na verdade, não era hérnia: Luiz tinha retornado aos excessos da boemia e o
câncer tinha voltado com muita força. Encontrei pela última vez no show do 1º de
maio de 2008, na Cinelândia, no ato-show organizado pela central sindical
CONLUTAS. JR (que chegou a ter um bar arrendado na Lapa com uma roda de
samba comandada por Ivan Milanez, sua esposa Romana e o grupo de jovens do
"Além da Razão", base do futuro Galocantô) agitou para ele fazer a principal
apresentação do show. Ao final, nos encontramos e ele, ao ver que eu estava com
jornais do coletivo União Comunista, fez um comentário contraditório , após realizar
uma apresentação para a comunista Conlutas: "Dom Alex, comunismo é coisa de
velho!". Retruquei na hora: "Mas, eu sou velho!". Acabamos sorindo. Foi a nossa
despedida.
Antes de ser internado, "Das Vilas" passou pela casa de Luiz Carlos Patropi e
chamou o amigo para ir na feira do IPASE, beber cerveja e comer ova de peixe, em
frente a tradicional Adega Duas Nações, onde tinha criado o lema preso na parede
do restaurante: "Duas nações, um só coração". Segundo Patropi, LCV estava
angustiado. Foi internado em meados de 2008. Passou os seus 59 anos no hospital.
Não viu o lançamento do livro que tinha prefaciado, nem o sucesso que os seus
sambas "Cabô, meu pai" e "Então leva" fariam no disco "Prova de Amor" de Zeca
Pagodinho. Também não ouviu o CD da sua amiga Dorina, que tinha um samba seu
em parceria com Riko Dorielo ("Sonhava"). E nem soube do resultado da disputa
interna da Vila Isabel, em que concorria com uma composição longe das suas
tradições em parceria com Arlindo Cruz ("Uma merda, neguinho!", teria dito para
ele o amigo Sérgio do Carmo).
Infelizmente, dessa vez não deu para dar o "salto mortal sobre a morte": no
dia 20 de outubro de 2008, falecia Luiz Carlos Baptista, aos 59 anos, suburbano de
Ramos e da Leopoldina, mas cidadão do mundo como Luiz Carlos da Vila; ex-
funcionário do SERPRO e da Escola Nacional de Ciências e Estatística (ENCE, na rua
André Cavalcanti, Centro); que passou por mais dois vestibulares, mas não cursou,
filho de um aeroviário e uma dona de casa, sambista por dom e profissão. Casado
com o grande amor da sua vida, Jane Pereira; que assumiu a paternidade de
Maiana, segunda filha de Jane Pereira, num registro em cartório agitado por seu
amigo e parceiro, Amarildo Silva. Estandarte de ouro em 1988 e campeão do
carnaval daquele ano, prêmio Sharp também de 1988 (com "Além da Razão",
concorrendo com "Kizomba", dele mesmo). Autor de mais de 300 músicas
gravadas, com grandes parceiros e intérpretes, um dos maiores nomes do samba
de todos os tempos e como escreveu no JB de 21/10/2008, o jornalista Álvaro da
Costa e Silva, o "Marechal", o mais talentoso da geração do Cacique de Ramos.
Seu velório foi na quadra da Via isabel: Jane chorando muito, Dona Esmerilda
desconsolada, presença relâmpago de Zeca Pagodinho, e Beth Carvalho e Dorina
tentando segurar o gurufim, cantando os seus sambas. Seu enterro, no cemitério de
Inhaúma (onde foram enterrados tantos sambistas), mesmo com as pessoas
cantando as suas composições, foi muito triste. Até que um arco-íris apareceu no
céu: foi como ele estivesse ali. Ou como ele mesmo escreveu no samba "Graça da
Vila" foi "o canto mais negro que passarinhou no céu".
Depois da sua morte, a primeira homenagem foi a criação do Instituto Luiz
Carlos da Vila. Depois, o Bloco do Rabugento, em 2009, sairia com música de
Kokito, em homenagem ao poeta da Vila da Penha. Além disso, LCV viraria nome de
escola em Manguinhos, em 2009. Lembrei do dia que eu, estudante de História da
UERJ, junto com os colegas de curso, levei ele para uma palestra que contava horas
de estágio para nós, na escola Barcelona, onde lecionava Graça Schittino. "Das
Vilas" foi com grande prazer. Os estudantes riam do seu jeito às vezes ingênuo de
falar, mas todos silenciaram e viram que estavam diante de uma personalidade,
quando ele começou a tocar "O Show tem que continuar" e "Kizomba". Todos
conheciam esses sambas.
Em 2013, Dorina gravou "Sambas de Luiz", somente com a obra do grande
sambista. E, em 2015, Gustavo Clarão juntou o empolgante "Nas veias do Brasil" e
"Um dia de graça" e colocou como samba enredo da Unidos de Viradouro. Foi como
se a escola de Niterói estivesse pagando uma dívida com Luiz Carlos da Vila, que
em 1996 tentara emplacar o samba da escola, mas fora prejudicado na final pelo
presidente da agremiação, o bicheiro Monassa e pelo carnavalesco Joãosinho Trinta,
por quem LCV não nutria simpatias, desde que Joãosinho fizera comentários
depreciativos ao desfile de "Kizomba", em 1988. Se a intenção da Viradouro foi
essa, acabou não funcionando: a escola foi rebaixada para o grupo de acesso.
Em início de 2018, Marcelo Bizar e Marco Trindade fizeram a música do Bloco
Rabugento, novamente engrandecendo "Das Vilas" e sua obra. E, no final de 2018,
saiu a biografia de Luiz Carlos, "Princípio do Infinito" (nome de um samba de LCV
com Claudio Jorge), que é um perfil de Luiz Carlos da Vila, de autoria de Luiz
Antonio Simas e Diego Cunha. Uma biografia correta, que corrige até algumas
imprecisões cometidas por mim, sendo duas essenciais: quem deu a melodia de
Candeia para Luiz letrar e se tornar "A Luz do Vencedor", foi João Baptista de
Medeiros Vargens e não Lena Frias; e que Luiz chegou a estar pessoalmente com
Candeia, uma única vez. Mas, faltou na biografia amigos importantes que
conviveram com o homem Luiz Carlos Baptista e não com o artista Luiz Carlos da
Vila, como Sérgio do Carmo, Graça Schittino, Luiz Carlos Patropi, Jonas Ribbas, Luiz
Carlos Máximo, Lício Viola, Horácio, Luísa Dionísio. Foram eles e o movimento
cultural da Vila da Penha, do qual faziam parte ou somente apoiavam, pessoas
chaves no momento mais intenso e brilhante na carreira de Luiz Carlos da Vila.
*Historiador, que depois de quatro longos artigos sobre Luiz Carlos da Vila, vai "tomar um ar" e volta
em abril.
De d o e r a a l m a
Não tinha vinte e cinco anos, mas agia e tiritava como se tivesse noventa.
Praguejando aquele frio todo. Ah o verão, isso sim é viver! Corpo disposto, mente
em estado de graça. Crianças, vendedores de sorvetes, mais crianças: _ pai, só
mais um? _ Não! Ah a grama, dimensionando o estado de espírito da estação! Ali,
bem próximo, casais trocam juras embaixo de copas de árvores cheias de
cumplicidade.
_Olha o algodão doce! _ Moço, quanto custa? Eram assim os dias de verão,
mas não para todos! À beira mar, a disputa milimétrica por um espaço na areia
quase virava caso de polícia. Porém, os verdadeiros casos: _ minha bolsa, minha
bolsa! _Alguém viu a minha bolsa? A dita cuja, passeava a trezentos metros dali,
deslizando suavemente entre as mãos de dois pivetes agraciados com um maço de
cigarros, um batom usado, duas pulseiras do calçadão de Copacabana e, a
recompensa mais valiosa por tamanha ousadia para um domingo de praia
lotadíssima, a carteira!
É razoável supor que tal símbolo do capitalismo fosse o que de fato importava
na “operação rato de areia” daqueles descolados amigos da distração alheia.
Porém, quando se depararam com aquelas surradas duas notas de dez reais, as três
moedas de um e mais quarenta e cinco centavos bem trocadinhos, logo concluíram:
muito esforço por pouco.
Entretanto, um olhar mais apurado, revelou ao mais velho “roedor” (ainda
assim muito novo), uma agradável surpresa: estavam ali, no porta moedas,
grudados um no outro, um par de brincos reluzentes sob o Sol abrasador das 15:00
horas ( 14:00h no horário dos inconformados com a mudança institucional da
natureza)._ É ouro, cumpadi!
Assim, se vê um dia típico de verão! _Mas, por que me dou a esses delírios?
Meus ossos pesam quatro toneladas! Câimbras se espalham por todo o corpo.
Agrido-me, socando os ombros tenazmente, dentes serrilhando num bruxismo
capaz de intimidar o mais inabalável dos exorcistas.
Homem e natureza medem forças. O primeiro ostenta a falsa glória de ser o
maior e mais nocivo dos predadores. A segunda, com muita frequência, nos
apequena e fragiliza diante da sua fúria._ Mas, por que meu cérebro nesse
momento crucial e glacial ainda se permite fazer reflexões filosóficas? Justamente
na hora em que tudo ao redor é puro gelo, onde o mercúrio do termômetro mostra-
se derrotado em muitos tracinhos abaixo de zero.
É o limite da falsa supremacia humana. Dedos congelados, pálpebras
recusam-se a se levantarem e a coriza cristaliza-se em milésimos de segundo._
Agora percebo com o pouco que me resta de energia, o real significado da
expressão “morrer de frio”!
_Os segundos e minutos eternizam-se no relógio digital. Que consolo, se fosse
um daqueles analógicos, os ponteiros certamente estariam parados. Minha mente
está tão cansada, não diviso bem o espaço. Tudo tão gélido! A lanterna começa a
falhar. Será esse o meu fim, congelado e na mais profunda escuridão? De repente,
ao longe, sons incompreensíveis se repetem. Engrenagens estridentes se
aproximam do que resta de mim. Tudo terrivelmente estranho, meu medo e a
minha ansiedade não se refletem nos batimentos cardíacos. Talvez, eu já não os
tenha mais.
_Penso, enlouqueci? Ao redor, mesmo no negrume do local, percebo
movimentos. Mas como, se estou sozinho nessa imensidão gelada? Correntes se
arrastam, sons estranhos se repetem e tornam-se pavorosos. Tento erguer-me
inutilmente. Esse ato levou as minhas últimas forças.
_Engrenagens, correntes, metais e metais estalando! Então julgo: deve ser
alguém a ajudar-me! Como? Quem saberia que eu estava ali? No limite da
exaustão, mal conseguia respirar, sequer pedir socorro.
Entretanto, nos estertores da tenuíssima existência, aquele homem fez um
último movimento com a mão direita para cima, alongada pela lanterna, que tal
como o dono, produzia um fraco feixe de luz e esbarrando numa coisa maciça cai
esgotado. O corpo, decúbito dorsal, estava inerte no chão.
De repente, as pontas dos dedos se mexem quase imperceptíveis. Abre-se
lentamente um olho. Ele vê a luz da lanterna voltada para si: _ mas, em que
esbarrei? Será uma máquina ou uma pessoa? Quem será esse desalmado que não
me acode? Será que estamos na mesma situação? Diante do silêncio, virou-se
lentamente para a direita, arrastando a lanterna que havia desligado sobre o gelo.
Braço curvado, bate o objeto luminoso no chão uma, duas, três vezes! _ Funciona
bosta de lanterna! Sabia, não devia confiar nessas geringonças made in ...! Bate
mais uma vez.
No entanto, contrariando a sua análise preconceituosa sobre as “maravilhas”
de R$ 1,99, a lanterna religou. Mas, para o seu bem, melhor seria que continuasse
desligada. _ Deus! O que é isso? _ Estou delirando? Mas, como posso se estou com
os olhos abertos?
Diante de si, avoluma-se uma enorme coisa de uns trezentos quilos! _ Estou
perdido! Nesse exato momento, a luz da lanterna diminui, diminui e apaga. _ É o
meu fim! Correntes arrastavam - se, barulho de peças retorcidas. _ Ah, as minhas
pernas! Câimbra maldita! Sinto a presença da morte! O frio lhe congela todos os
poros. _ Que monstro será esse? E por que eu?
_Mas, o que adianta tais indagações se ninguém pode salvar-me! Por que este
monstro não me ataca? O que está esperando? Predador e presa a poucos metros
um do outro! _ Já sei, está esperando que vencido pelo frio e pelo cansaço, me
torne presa fácil!
_ Senhor, é justo que eu morra aqui, no meio do nada? Não! Não será tão
simples assim! Morrerei lutando, contra quem quer que seja! Arrasta-se pelo chão
gélido, lanterna na mão, procura freneticamente afastar-se dos sons macabros.
Segue em frente, tenta mais uma vez com a lanterna, nada! Tenta
desesperadamente mais e mais e, quando já estava desistindo, deixa cair o braço
com a mesma e esta, ao bater no chão, religa-se outra vez milagrosamente.
Com a fraca luminosidade da lanterna buscou orientar a sua visão. A mente e
os olhos procuravam um rumo, inútil. Os sons assombrosos tornam-se mais
próximos e ele, mesmo cambaleante, esforça-se em ficar de pé e a cena se torna
mais aterradora. Não mais teria a preciosa ajuda do fraquíssimo foco de luz da
lanterna, que desligara de vez._ O que foi isso que esbarrou em mim? Quem está
querendo me derrubar?
E, toda vez que tentava se levantar era golpeado por todos os lados! Parecia
que os seus espancadores faziam fila para bater-lhe mais e mais. Terríveis e frios
golpes, que o faziam sangrar. Seus torturadores na sanha de espancá-lo, não
deixavam reerguer-se. Misturavam-se aos golpes, sons de ganchos deslizando
sobre o metal frio. Era uma sádica tortura.
Desfalecido, corpo ao chão e respiração fraca, reage com um movimento de
cabeça ao barulho de metal rangendo. Percebe que lhe sacodem várias vezes,
batem-lhe no rosto, mas não consegue voltar a si. Pouco tempo depois, abre
lentamente os olhos e observa a movimentação de alguns homens vestidos de
branco dos pés à cabeça, pronunciando coisas inaudíveis. _ Quem são vocês? Por
que me bateram tanto? Articula lentamente.
Em seguida, é arrastado pelo chão frio, quase não sentindo o próprio corpo.
Indo em direção a uma enorme porta de metal semi aberta. Dois homens o apóiam
sobre os ombros até um gigantesco pátio, onde raios solares quase lhe cegam os
olhos.
_ Num instante, ainda apoiado pelos dois homens, olho para trás tentando
entender tão macabra experiência e, com a visão ainda meio embaralhada, leio
num gigantesco letreiro: “FRIGORÍFICO NOVO MUNDO”!
Nesse ínterim, um vigilante velho e barrigudo resolve vasculhar os bolsos do
casaco do insólito cidadão e encontra um crachá, onde se lia: AUXILIAR DE..., uma
receita amassada com a assinatura indecifrável e, por último, uma caixa de
NARCOLEPSOL 50mg.
Silvio Silva
J en n er M en ez es
Trigo Sarraceno
Jenner Menezes
Kaju Filho
O samba, eterno mensageiro da alegria
Elaine Morgado
Era uma vez, em Madureira...
Esta crônica foi inspirada nos diversos bate papos com meus parceiros de
boteco, os camaradas suburbanos felizes e convictos, Danilo Firmino, Ivan Milanez,
Onésio Meireles, Ivan Lima, Cláudio Cruz, Rodolfo Caruso e tantos outros, sem
deixar de citar a influência do admirável samba “Subúrbio” de Marcelo Bizar e Sílvio
Marcelo. Foram essas as mesmas lembranças que citei num encontro que tive com
Zé Keti, para quem contara coisas dos tempos idos num bairro que, embora já
houvesse chorado pela sua vedete principal, Zaquia Jorge, a estrela pioneira do
teatro rebolado do subúrbio da Central, era um reduto de prazer, não só da
Serrinha, mas também para mim.
Eu quero falar de um dos mais tradicionais bairros desta cidade, aquele que
possui uma cara bem carioca, principalmente em se tratando de cultura popular
nesta Cidade que continuou snedo maravilhosa, mesmo depois de ter deixado de
ser capital federal. Eis então a Madureira do final dos anos 50 e início dos anos 60,
num tempo de menos violência e um pouco mais de paz e alegria. Essa Madureira
era outra, mais provinciana, mais romântica, mais folclórica e boa de samba, aliás,
muito boa de samba e de bambas.
No mapa elaborado na cabeça de um garoto que batia perna por toda a
redondeza, aquele era um bairro divido geograficamente por duas vias férreas (da
Central do Brasil e da linha auxiliar, em Magno, hoje estação Mercadão). Era
também servido pela linha de lotação Madureira-Monroe (depois Madureira-Mauá).
Seu Manoel, um vizinho português, tinha dois lotações nessa linha e sua esposa,
Dona Maria, vivia aborrecida, às voltas com os furtos de mangas, de goiabas, de
caquis, de cajás-manga, de amoras, enfim, tantas frutas roubadas mais gostosas do
que as do meu quintal. Lembro os disputados jogos de botões sobre as calçadas
(como o saudoso Ataulfo Alves cantara). As “peladas” de rua com bola meia ou de
borracha vermelha que ardia nos pés a cada chute. Lembro ainda do radinho de
pilha que anunciava de longe que o Brasil ganhava pela segunda vez o campeonato
mundial de futebol. Depois o bi campeonato cujas imagens dos jogos só eram
possíveis de serem conferidas no dia seguinte, em “vídeo-tape”. Esse radinho
anunciou também as vitórias da nossa tenista maior, a meiga Maria Ester Bueno,
nas quadras da Europa, e ainda as vitórias do galo Eder Jofre, além do bi-
campeonato mundial de basquete (Amaury, Rosa Branca, dentre outros). Tempos do
Sputnik, de Yuri Gagarin e da cadelinha Laika viajando pelo espaço, mostrada nas
manchetes dos jornais com sua expressão de desentendida. Dentre as aventuras
dos meninos do lugar, uma delas era a de brincar de assombração, à noite, de
lanterna em punho e sustos constantes, pelas dependências escuras do velho
prédio de um frigorífico desativado. Havia também as excursões ao morro da Bica,
até a pedra rachada ao meio de cujo cimo se avistava toda a cidade. Os rapazes
desbocados colocaram nessa pedra um apelido chulo aqui impublicável. Contava
uma lenda que originalmente a pedra era compacta, mas que certo caçador
apontara a espingarda para o céu dizendo que iria matar deus e que, ao atirar, a
pedra se rachou e ele morreu preso na grande fenda que se formou. Diziam até que
o fantasma dele vagava por lá. Havia outros medos também. Medos bobos e medos
sérios. Os medos bobos eram, por exemplo, os que tínhamos do Gigante da Fábrica
de Balas, de pés e mãos enormes e voz alta e cavernosa. Nessa loja comprávamos
as famosas balas “Futebol”, com figurinha dentro e álbum para colecioná-las. Ficava
na rua Domingos Lopes que ainda era dividida por compridos canteiros repletos de
tamarineiras, as mais gostosas da minha adolescência. Os medos sérios eram as
diversas vítimas das quedas dos trens que perdiam partes dos membros, quando
não a vida, e atraíam muitos moradores curiosos pelo espetáculo da dor e da
desgraça alheia. Ou o receio do ladrão invadir a casa, andando agachado e se
escondendo debaixo da cama. O temor de passar em frente à vila onde se
postavam os supostos assaltantes do supermercado Peg-Pag. O medo de ser pego
por alguma “fera da Penha”, por algum “Cara de Cavalo” ou por algum “Mineirinho”
das redondezas.
Mas haviam coisas curiosas e divertidas, como a frota de táxis que fazia a
ligação com um lugar chamado de Fontinha (em Osvaldo Cruz) com a inscrição na
lataria: “Lotação: 4 passageiros”, que chamávamos de “Intocáveis” devido à
semelhança com os carros de um seriado policial da tevê. Curioso é que naqueles
tempos, quem não tinha televisão, assistia na casa ao lado e eram apelidados de
“televizinhos”. Haviam apenas quatro canais an época: as tevês Rio, Tupi, Excelsior
e Continental que transmitiam os desenhos animados do Titio Hélio (Pica-Pau,
Popye, Tom e Jerry), Noites Cariocas, o piano da Tia Amélia, Virgínia Lane, o
coelhinho da Phillips, o Circo Bom-Bril, dos palhaços Carequinha, Fred, Zumbi e o
anão Meio-Quilo, o espadachim Falcão Negro, o humorístico Ali Babá e os Quarenta
Garçons, Times Square e o Grande Teatro Tupi. Os muitos comerciais bastante
artesanais, porém muito interessantes com os simpáticos porquinhos das Casas da
Banha, das Casas Pernambucanas, da Tonelux, da Galeria Silvestre (depois do sol,
quem ilumina seu lar é a Galeria Silvestre). No rádio, os seriados apresentavam os
heróis que reproduzíamos nas brincadeiras, como “Jerônimo, o Herói do Sertão”, “O
Sombra”, “Radar, o Homem do Espaço”. O peixeiro ao pé da ponte para o qual
vendíamos jornais, com malandragem tola de colocar as revistas Fatos e Fotos e O
Cruzeiro, mais grossas, para fazer mais peso nos lotes de papéis para pesar mais e,
logicamente, custar mais, até ser descoberto e levar tremendo esporro do raivoso
vendedor. Inesquecível a emoção de assistir pela primeira vez a uma partida de
futebol ao vivo em Conselheiro Galvão (América x Madureira. Que belas cores nos
uniformes!). Aos domingos ficávamos fissurados para assistir aos jogos. Então
postávamo-nos à entrada do estádio para ver a chegada dos ônibus dos clubes com
os jogadores, muitos craques da época como Castilho, Telê, Belini, Vavá, Dida,
Zagalo, Garrinhca, Didi, Nilton Santos, Quarentinha, Parada, Paulo Borges e
Bianchini. Risonhos e simpáticos, passavam a mão nas cabeças da garotada
encantada que gritava seus nomes. E depois assistir aos jogos do alto do morro
próximo, entre perigosas torres de alta tensão. Curioso é que dali se via somente a
metade do campo. As compras no antigo mercado (hoje quadra de ensaios da
escola se samba Império Serrano). O Clube dos Caçadores.
A correria atrás de doces no dia de Cosme e Damião. Os cinemas com barulhentas
cadeiras de madeira: Cine Coliseu, Cine Alfa, o Cine Madureira com sua tela que
ficava às costas, ao entrar, o “poeirinha” Cine Colorado, com a tela na parede
lateral e que estremecia à passagem do bonde, o inacabado cine Beija-Flor. Os
primeiros passos do adolescente metido a homem feito na boemia e na
malandragem, que ainda não era tão barra pesada, atuando desastrado nas mesas
de sinuca. Os bares-cafés Haia e Amorim. O medo da polícia e da mal afamada
Invernada de Olaria e até da dupla de PMs apelidada de Cosme e Damião. As
filmagens de “O Boca de Ouro” pelas ruas do bairro. O primeiro supermercado com
auto serviço, o Disco. A escola Carmela Dutra, a saudosa escola pública Paraná, o
curso de admissão no colégio Madureira, as ousadas travessuras de ginasiano do
Colégio Lemos de Castro, aterrorizando alunos, professores, inspetores e até
diretores, dada a transgressão e rebeldia. O pioneirismo do cabelo grande antes da
beatlemania, bastante criticados em casa, na rua e no colégio. As arranhadas no
aprendizado de violão desafinado por meio das canções da Bossa Nova, dos Beatles
e da Jovem Guarda. A primeira amada platônica, lourinha de olhos verdes (ou azuis?
Ah, eterna dúvida!). As primeiras saudades de amores correspondidos e não
correspondidos. Os primeiros poemas ingênuos, repletos de erros de gramática, de
rimas pobres e versos de pé-quebrado.
E, então a explosão de alegria no Carnaval! O coreto reproduzindo a torre
Eifel. Os inúmeros blocos de sujos se espalhando animados pelo percurso
constante: Avenida Edgard Romero, Rua Carolina Machado, Rua Maria Freitas, Rua
Carvalho de Souza e novamente Avenida Edgard Romero, ou pelas Galerias Avatar e
Maria Freitas. As fantasias de Clóvis ou Bate Bola, de Nega Maluca, Boneca de
Pano, Carrasco, Diabo, Morcego e Caveira, o Pierrô solitário cuja lira era uma tampa
de vaso sanitário. As fantasias criativas, inventadas na última hora, como os índios
de toalhas e tamancos, foliões com os cabelos tingidos de anilina colorida, linhas de
crochê agarradas nos cabelos das pernas dos homens, formando círculos
multicores. Os bailes proibidos do clube Rosetá. Os bailes permitidos no clube
Imperial e no Madureira Tênis Clube. A antiga sede da querida e gloriosa Portela,
carinhosamente chamada de Portelinha. O ensaio geral e o desfile da Portela com a
presença e comando forte de Natal. O impressionante desfile no bairro da escola de
samba Império Serrano com belíssimo samba de Silas de Oliveira, tendo Mestre
Marçal nos tímpanos. A observação à distância dos bambas portelenses em papos
nos botequins. A presença tímida, quase imperceptível de um rapazola que viria a
ser um dos maiores compositores da nossa música popular mais autêntica, o
grande e querido Paulinho da Viola. Os primeiros contatos, frente à loja Ducal, com
os comunistas (muitas vezes decepcionados ao nos surpreenderem farreando nos
blocos carnavalescos, vestidos de mulher, achando que não se devia esperar muito
da juventude alienada). A campanha política, o comício na vila onde funcionava o
jogo de bicho de Natal, espremidinho na multidão para ver e ouvir de perto os
discursos dos candidatos a presidente e vice presidente, general Lott e João Goulart.
O comício na Praça do Patriarca com Jânio Quadros e Carlos Lacerda. A decepção
com a vitória de Jânio. A tristeza com a derrubada de Jango e o início da longa dor
nos longos e tristes anos de chumbo da inadmissível “Ditadura” que atingiu até o
carnaval de rua, proibindo fantasias e composições musicais que satirizassem o
Governo, tolhendo a criatividade do povo carioca festeiro, espontâneo e sarcástico.
Por fim, a importante participação como o último remanescente da criação
espontânea do bloco das Piranhas, na esquina da rua Firmino Fragoso com a
estrada do Portela, junto com o amigo Moisés, o duro beque do Bonsucesso e, anos
depois, jogador do Vasco e de outros times do Rio, bem depois, técnico do Bangu,
time pelo qual ele torcia.
Ah, querida e saudosa Madureira, quantas lembranças mais me assaltam
enquanto escrevo agora!… Pena que todas as lembranças que guardo com carinho
não caibam aqui, porque se for falar do meu passado, hoje eu não vou terminar. Em
tempo, o caro leitor deve ter notado que a violência aqui não foi tanto citada.
Depois veio a mudança de bairro, de amigos, de saudades, de ideologias, de
comportamentos e de atitudes, o amadurecimento, a vida dando voltas, os velhos
amigos, camaradas e colegas se afastando, seguindo outros caminhos… Tudo isso
sem nunca esquecer os bons tempos da querida e inesquecível Madureira, que já
chorou sim, mas que na minha época, sorria mais, muito mais
*Lula Dias é escritor, dramaturgo, compositor, produtor cultural e saudosista sim, com muito
orgulho, porque sabe guardar na memória muito mais alegrias do que tristezas e tem o prazer de as
contar e as recontar para os velhos amigos e para as novas gerações, seja no papel ou na mesa de
bar, de preferência nos botecos suburbanos, em divertidos papos regados a cervejas geladas e
tremoços.
Preço da ambição
Vivia eu
Em terras bem distantes
Junto a meu povo feliz
Quando chegaram homens dominantes
Pra me tirar
Aquilo que eu sempre quis
Liberdade
Era a vida simples de uma nação.
Que teve o seu povo dominado
Escravizado
Pelo preço da ambição.
Assim começa a história
Que o meu antepassado descreveu
Não foi favor nenhum
A liberdade assinada
De um povo que suas raízes
Perdeu
Pois é olha, o preço que os descendentes deste povo ganhou com a tal liberdade
Direitos desiguais
Sem oportunidade de subir na escala social, bem marginalizado, quando se fala em
cotas a elite pula, pois não quer
os negros no mundo que eles imaginam só deles
Vamos lutar sempre pela cultura, pois através dela, aumentaremos nossa chance de
ver os nossos irmãos afro
descendentes um dia ser considerados também como cidadãos de primeira classe
Competência nao falta.
A discriminação que eles têm sobre os nossos é pra isso
Nós considerar inferiores
Mas já provamos que não é assim.
Viva a negritude
Onesio Meirelles
Mulher preta violentada na roda de samba
Márcia Lopes
*Este fato se deu mês passado em um lugar que convivi muito, liderado por uma mulher
maravilhosa que já não esta entre nós, no subúrbio Carioca meus respeitos para todas as Tias que
nos acalentaram em seus braços e nos protegeram de todos os males.....materiais e espirituais.
M u s e u I m a g e n s d o I n c o n s c i e n te
J o n a ta n M a g e l l a
Atirei o pau no gato
Rodolfo Caruso
Afropictosofia
É na presenaça e no tom
meios e formas compartilhados,
no riso e no jeito de rir
na ginga do andar,
na de sair e também de voltar são
as imagens d'África em nós
No subúrbio carioca,
desde criança é assim:
as ruas sem calçamento,
a pelada na lama,
os piões e gudes marcando
os chãos de terra batida,
os doces compartilhados
por todos igualmente
a molecada viva, acesa, ensinando
as imagens d'África em nós
No traço marcado
em pontos no chão riscados a giz
na corrente de oração
firmada em pontos de Umbanda e Condomblé
no passinho do Funk ou no pular
cantando a marchinha de carnaval
no altinho, no cara-ou-coroa,
no despacho de encruzilhada, no bar
de esquinha cheio de papo e cerveja,
no debicar a pipa sem medos,
no pequeno Doum ente Cosme e Damião
as imagens d'África em nós
É nossa verdade
suburbanamente carioca
O Rio de Janeiro que é
urgente, valente, mais quente
carregado de imagens de Áfricas
mesmo que alguns não queiram,
ainda as arremessando distante
fingindo não ser tatuagens na alma carioca
e ainda que as removam a laser
se utilizem da mais avançada tecnia
não saem, não sairão de nossas peles
as sabedorias de imagens d'África
Marcelo Bizar
Temposição das Almas Íncubas - 2º Pentakapitel
IV. Paladar
“Ninkasi, você é a única que estica a pasta assada em largas esteiras de palha,
A frieza domina,
Você é a única que segura com ambas as mãos o magnífico e doce sumo,
Fermentando-o com mel e vinho
(Você, o doce mosto da caldeira)”
Posso ver também que na parede do vovô continuam pendurados um ofá e
damatás (arco e flechas), símbolos de um filho de Otolu.
Otolu é um Vodun.
É difícil explicar o que seja um Vodun. Assemelha-se a um Orixá de certa
forma.
Esperaíúltimavez… vou pedir a bênção a meu vovô Zuzim. *
Pazuzu Silva
Irritação foi o mínimo que senti quando li a frase citada acima retirada de um
texto no site.
Então quer dizer que não há nada de interessante nas Zonas Norte e Oeste
que não mereçam atenção turística1?
O turismo começa com conhecimento. A partir do conhecimento há o
interesse pelas peculiaridades de cada local, o que como consequência vira
visitação, passeios, hospedagem, resumindo: turismo.
Peço licença aos editores da revista e a seus leitores para começar a partir de
janeiro de 2019 uma coluna contando um pouco dos bairros do subúrbio carioca.
Nossa ideia é compartilhar informações e conhecimento mostrando que nossa
História é rica, nosso lugar é genuinamente turístico e que vale muito visitar o
subúrbio carioca.
Para termos uma ideia, cheguei em Anchieta pra morar um tempo, lá pelos
idos dos anos 1990, vindo lá de Paraty, ao conhecer Madureira, fazendo turismo
numa maravilhosa feijoada com samba na quadra da Portela, perguntei se a praia
ficava distante: é que tinha achado, pela enormidade que é Madureira, que já
estávamos na região oceânica da cidade.
Não sou historiadora ou geógrafa, melhor ir avisando para não acharem que
se trata de artigos científicos em forma de crônica, longe disso. É só informação que
colhemos em pesquisas pessoais. Fiquem à vontade para nos ajudar e até mesmo
fazer aquela crítica construtiva que será sempre lida com cuidado.
Então, vamos passear pelo subúrbio carioca.
Apresentamos os bairros por ordem alfabética. Entretanto, isso não quer dizer
que vamos seguir à risca o ordenamento do nosso elenco. Vamos procurar fazê-lo
na medida do possível. Outra coisa, às vezes optaremos por reunir alguns bairros de
acordo com a proximidade e peculiaridade da região. Será arbitrária tal divisão, não
seguindo critério pré-determinado.
Começaremos no próximo mês com o bairro Abolição.
Opiniões, informações, contato, ou outra coisa mais, é só enviar pro e-mail da
revista, queremos sinceramente saber da sua opinião, pesquisa, crítica, elogio
também pode. O e-mail é sarausuburbio@gmail.com.
Malkia Usiku
· U m l u g a r n o s u b ú rb i o
Viu-se finalmente!
A estaca de madeira lhe rendeu uma dor intensa. O corpo tremia devagar
guiado pela tensão repetina que a madeira atravessada pelo peito esquerdo lhe
proporcionou.
Fora pego quase de surpresa.
Cambaleante apoiou-se na mesa ao lado e sentou no banco frio de tampo em
mármore. A lua cheia do Méier brilhava em seus caninos pontiagudos, afiados.
Só a imagem do forasteiro do Itanhangá aparecia refletida no espelho à sua
frente.
Talvez tenha sido por pura vaidade que se deixou ferir. Mais do que sua
vaidade, sabia que suas noites sombrias chegavam ao fim.
Ele se desenhava lentamente no reflexo, ele via-se então. Quanto mais fraco
se sentia, melhor ficavam seus contornos.
Um frio correu-lhe a coluna. Sua imgem se refletia finalmente. Viu-se por
segundos antes do último suspiro. Logo depois de um largo sorriso com gosto de
sangue.
Antero Catan
· Bi b l i o t e c a S u b u r b a n a
Mas aí é que está a magia, o que aquele feirante falou é carregado de tanta
sagacidade matemática que eu fiquei meses pensando naquela frase.
Foi engraçada a frase, alguns diriam. Outros poderiam pensar que o peixeiro
não sabe de nada pois não existe esta coisa de "um quilo bem pesado".
Quando falo que temos que estudar a matemática suburbana tem gente que
torce o nariz, não é mesmo!?
Pois o feirante não disse nada engraçado ou absurdo: ele sabe das coisas!
Até hoje em dia cientistas e matemáticos (se bem que na minha visão
matemáticos são cientistas, mas esta é outra discussão) buscam saber quanto pesa
um quilo.
O quilo é uma das quatro unidades de medida básicas, temos ainda o
ampere, o Kelvin e o mol (lembra das aulas de Química!?).
O valor de um quilograma (kg) é baseado num cilindro que é composto por
90% de platina e 10% de irídio.
Ele está guardado sob uma redoma de vidro pertinho de Paris, no Escritório de
Pesos e Medidas de Sèvres, tendo sido fabricado em Londres no ano de 1879.
Acontece que o cilindro emagreceu. Um quilo já não indica a mesma medida
de antigamente. Sua massa "perdeu" 50 microgramas, o que equivale ao peso de
uma impressão digital ou de um grão de areia de 0,4 mm de diâmetro.
Parece pouco!? Mas, pra cálculos científicos que precisam ser extremamente
precisos é um valor bastante considerável.
E a comunidade científica mundial não ficou de braços cruzados. Estudaram
uma definição que fosse baseada não mais em objetos físicos. Passaram a usar uma
constante fundamental da natureza, medida por uma balança incomum, a balança
de watt.
Balança de Watt
O instrumento em questão, a balança de watt, mede a massa utilizando a
força produzida por uma corrente e tensão elétricas.
E se preparem amigos leitores o quilograma mudará no ano de 2019. Isso
mesmo, será este ano, precisamente dizendo: no próximo mês de maio, no seu dia
20.
A importante decisão foi tomada em novembro de 2018 durante a 26ª reunião
da Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM) em Versalhes, na França.
Assim, o nosso bom e desgastado PIQ - Protótipo Internacional do Quilograma,
o cilindro de platina e irídio quase totalmente conservado em Paris, usado como
definição do quilograma por quase 130 anos será aposentado compulsoriamente,
sendo substituído por uma "definição baseada na constante de Planck – a constante
fundamental da física quântica", de acordo com o IPEM-SP, o Instituto de Pesos e
Medidas de São Paulo.
Aqui na feira de Ricardo de Albuquerque, subúrbio carioca, acredito que isso
não vai prevalecer e o peixeiro continuará por muitos anos vendendo seus peixes
pela medida que criou: o quilo bem pesado. Ainda bem!
H e r a l d C o s ta
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