Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
A maioria dos seres humanos, por ser dominada pela afetividade, poderia ter sua
existência moldada conforme as exigências da doutrina social do “progresso dentro da
ordem”
1
projeto do planejamento da economia), entrecruzadas a conceitos já propriamente do
relativismo positivista. Esse projeto foi abandonado por Comte logo em 1819, mas
iniciava-se ali a autêntica história da filosofia positivista.
Ainda naqueles anos de juventude, Comte escreveu outro ensaio, bem mais célebre, no
qual são desenvolvidos princípios positivistas. Intitulava–se Plano dos Trabalhos
Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade (1822) ou, simplesmente,
Opúsculo Fundamental. Desenha-se, nesse ensaio, um vasto plano para reorganizar a
sociedade francesa mergulhada na crise e na anarquia posteriores à Revolução Francesa.
Após aprofundadas reflexões sobre a natureza espiritual da crise europeia, Comte
procura se fazer escutar pelos cientistas que, conforme pensava, constituíam a única
autoridade respeitada na Europa decadente, sendo o único poder capaz de dirigir a
reorganização social, para convencê-los a tomar em mãos o poder social ou, nas
palavras de Comte, ensinar-lhes “a tratar a política de maneira positiva”.
Elabora então Comte, pela primeira vez, o mais célebre de todos os seus conceitos, a
teoria ou lei dos três estados. Segundo o positivismo, o espírito humano
necessariamente se desenvolveu no decorrer de três fases ou estados: o teológico, o
metafísico e o positivo. A expressão “o espírito humano” significa, bem restritamente,
“conhecimento científico”. Assim sendo, ao se referir aos três estados do espírito
humano, Comte nos remete, acima de tudo, a certas fases da história das ciências. A lei
dos três estados, assim concebida, seria um conceito filosófico “compreensível para os
cientistas”. De forma sintética, Comte expõe-lhes a história do espírito humano, como
se segue: “Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos
conhecimentos está necessariamente obrigado, em sua marcha, a passar sucessivamente
por três estados teóricos diferentes; o estado teológico ou fictício; o estado metafísico
ou abstrato; enfim, o estado científico ou positivo”.
O estado teológico permaneceu enquanto a humanidade, por meio de seus sábios, fazia
poucas observações realmente positivas, ou seja, fundadas em observações efetivas dos
fenômenos naturais. Como então os fatos conhecidos eram poucos, somente era possível
ligá-los por meio de “fatos inventados”. Desse modo, naquele estágio inicial das
ciências, para explicar as leis que regem os fenômenos naturais, os sábios recorreriam a
“agentes sobrenaturais”. Mas, de qualquer modo, ao menos provisoriamente, as
explicações teológicas ajudaram a inteligência humana a sair do estado de torpor e
debilidade, próprio da ignorância primitiva, e se aventurar em novas observações, em
busca de novos conhecimentos.
2
a absurda pretensão de tudo conhecer, restringindo-se aos fatos observáveis, ainda assim
tem injustificáveis ambições de conhecer “pelas causas absolutas”.
O que caracterizaria o último estado teórico – o estado positivo – seria que, em sua
vigência, os sábios passam a admitir que há limites intransponíveis para a capacidade
humana de conhecimento. Imbuídos de tal genuíno espírito positivo, explica-nos Comte,
os sábios pretendem, no exercício da ciência, apenas conhecer o que está dado – os fatos
e suas leis positivas –, sem se preocupar com a explicação pelas causas e os fins
últimos. Desse modo, o conhecimento científico não poderia avançar além de limites
claramente estabelecidos, ou seja, nada se poderia conhecer senão as leis de coor-
denação e sucessão dos fenômenos naturais, deduzidas dos fenômenos observáveis.
Com base nos conceitos condorcetianos, vinha construindo uma das pedras
fundamentais do abrangente campo teórico do positivismo, o conceito de desigualdade.
Mas o olhar comtiano, de qualquer modo, manifestava a gênese do declínio do século
18. Segundo comenta Comte, seria necessário abandonar as teses revolucionárias de
Condorcet sobre o desaparecimento da desigualdade, por meio de novas revoluções,
posteriores à Revolução Francesa. Na verdade, escreve Comte, os seres humanos são,
entre si, naturalmente desiguais e assim deve permanecer a sociedade por eles formada,
em todas as épocas.
3
Mas esse “natural”, que determina o caráter de imutabilidade da desigualdade, é muito
mais a manifestação de um dado fisiológico do que uma constatação pura e simples de
uma realidade social. Na verdade, para Comte, a desigualdade tem sua fonte na natureza
fisiológica do homem e assim se torna objeto privilegiado de uma nova ciência. Até
agora, existiu uma “física dos corpos brutos” (ou seja: a astronomia, a física
propriamente dita, e, em certo sentido, a química) e uma “física dos corpos
organizados” (ou seja, a biologia, como história natural, fisiologia e anatomia).
Contudo, no século 19, transpassado por permanente anarquia política, se colocava uma
física social como estudo das leis imutáveis da sociedade, ou seja, as “leis do progresso
dentro da ordem”.
Desde a juventude, nas cartas ao amigo Valat, Comte manifestou grande entusiasmo
pela obra de Gall e acreditou que, com o advento da teoria frenológica, começava se
4
apagar o último vestígio da metafísica ocidental, de Descartes em diante. Com as
descobertas frenológicas, também o estudo das faculdades intelectuais e morais do
homem teria chegado ao seu estado positivo, escreveria Comte nas obras de maturidade,
ou seja, no Curso de Filosofia Positiva e também no Prefácio do Sistema de Política
Positiva (1851-1854).
De acordo com os estudos anatômicos de Gall, tinha sido possível saber, sobretudo, que
as faculdades propriamente humanas – as faculdades intelectuais –, se comparadas ao
restante da escala animal, seriam as mais fracas entre todas. Segundo a frenologia, como
nos explica Comte, a porção mais volumosa e animal do cérebro humano localiza-se na
parte posterior do crânio. Ora, exatamente como ocorreria nos outros animais
superiores, aquela parte maior do cérebro seria o simples prolongamento da coluna
vertebral. Com essa descoberta frenológica, seria possível concluir que, nos seres
humanos, como ocorre nos outros animais superiores, a sede dos sentimentos morais ou
afetividade localiza-se na região cerebral posterior e mais volumosa. Em contrapartida,
a parte do cérebro “mais humana”, que se localizaria na região frontal do crânio, além
de menos volumosa, seria também, segundo a expressão de Comte, a menos enérgica.
Segundo Gall e seu discípulo Comte, naquela região cerebral de menor extensão e de
atividade mais fraca é que estariam localizadas as faculdades intelectuais superiores.
Não é estranho, portanto, que, pouco a pouco, entrelaçando verdades positivas desse e
de todo tipo, a sociologia comtiana tenha se transformado em religião da humanidade,
5
nos anos posteriores a 1848. O começo contraditório abandonado afinal se relacionou
com o fim dogmático, ou como escreveu Alfred de Vigny, o poeta predileto de Comte:
“O que é uma grande vida? É um pensamento da juventude realizado na idade madura”.
O período mais fecundo para a atividade filosófica de Auguste Comte situa-se ente 1830
e 1842. Durante esse tempo, publicou os seis volumes de seu Curso de Filosofia
Positiva, que lhe deram fama não somente na França, mas sobretudo na Inglaterra.
Conta-se que ele produziu essa obra sem notas nem outras leituras. Terminada a
reflexão, ele redigia e enviava os trabalhos para a impressão. Contudo, o Curso de
Filosofia Positiva não serviu para que ele fosse nomeado professor titular na Escola
Politécnica, tal como esperava. Ao contrário, os matemáticos dessa instituição,
ofendidos porque a obra não reconhecia à sua ciência uma posição de privilégio, o
fizeram mesmo perder o cargo de examinador. Comte, assim, viu-se novamente
obrigado a viver de suas aulas particulares. Nos últimos anos, alguns amigos e
admiradores franceses e ingleses – entre eles John Stuart Mill (1806-1873) – aliviaram
suas condições precárias com uma pequena pensão.
Essas duas obras representam a última fase do pensamento de Comte. Nelas, ele se
dedica a fundar uma nova religião, mas no sentido de uma religião da humanidade.
Alguns dos que haviam acolhido com entusiasmo sua filosofia positivista seguiram-no
na evolução “religiosa” de seu pensamento. Logo se levantou o incômodo problema de
saber se a “religião da humanidade” deveria ser tomada como mero produto de uma
mente exaltada ou como uma consequência efetiva das concepções filosóficas
sustentadas pelo autor no período precedente.
6
Comte faleceu em 5 de setembro de 1857, em Paris.
Marx e a sociologia
Para Marx, o proletariado pode desempenhar um papel equivalente ao exercido pela
burguesia
Publicado em 12 de janeiro de 2011
Ricardo Musse
Ilustração: André Toma
7
filosofia pós-hegeliana (…) Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos,
tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a autocompreensão”.
A Ideologia Alemã tornou-se desde então um texto essencial do corpus marxista. Nela
delineia-se pela primeira vez de forma nítida o que pode ser considerado o programa do
materialismo histórico, gestado por meio de uma crítica incisiva dirigida
simultaneamente à filosofia, à teoria política, à historiografia, à economia política, à
teoria social etc.
Por conseguinte, a tarefa mais urgente e impostergável para Marx, naquele momento,
era delinear uma nova concepção, materialista, da história e da sociedade. Teoria essa
que, não custa repetir, nasceu da convivência com e da crítica à filosofia pós-hegeliana,
mas que, de certo modo, pode ser estendida a grande parte da tradição cultural e
intelectual burguesa.
8
engendradas. Esse programa, ao qual Marx se ateve ao longo de sua trajetória, foi
levado adiante submetendo à crítica – imanente e transcendente – aquelas que são
comumente apresentadas como as três fontes do pensamento marxista: a teoria social
alemã, tal como configurada no idealismo alemão e no movimento dos jovens
hegelianos; a teoria social inglesa, consubstanciada na economia política; e as vertentes
da sociologia francesa iniciadas por Saint-Simon, com seus desdobramentos no
socialismo utópico de Fourier e Proudhon.
O Manifesto pode ser lido então como uma espécie de “dialética da modernidade”,
salientando a contradição entre o dinamismo inerente ao desenvolvimento das forças
produtivas (destacado na metáfora “tudo que é sólido desmancha no ar”) e a estática
inerente às relações de produção, que reproduzem a cada momento as formas desiguais
de apropriação da riqueza e de dominação social.
Luta de classes
Dito em termos drásticos, de A Ideologia Alemã, bem como de seus inúmeros estudos
sobre história, Marx tomou como pressuposto no Manifesto apenas um esquema
mínimo, a tese de que “a história de todas as sociedades até o presente é a história das
lutas de classes”. Trata-se, portanto, de trazer para o centro do relato da história humana
o conflito, a “luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta”, entre oprimidos e
opressores.
9
Na descrição de Marx, a “moderna sociedade burguesa não aboliu os antagonismos de
classe”, mas antes colocou novas classes, novas condições de opressão, novas formas e
estruturas de luta, sintetizadas no conflito entre burguesia e proletariado.
10
Essas duas “expansões” são assinaladas, ao mesmo tempo, como expedientes a que a
burguesia recorre para tentar superar as crises do capitalismo. Marx indaga: “Por quais
meios a burguesia supera as crises? Por um lado, pelo extermínio forçado de grande
parte das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e da
exploração mais metódica dos antigos mercados”.
O proletariado
A exposição do proletariado, no decorrer do Manifesto, embora possa ser remetida ao
quadro histórico-econômico próprio do mundo moderno, não privilegia as mediações
econômicas, mas antes a história de sua formação política. De modo geral, Marx
salienta que, na mesma medida em que a burguesia, ou melhor, o capital se desdobra,
também o proletariado se desenvolve.
No Manifesto, Marx determina, de modo genérico, o proletariado como aqueles que “só
subsistem enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto seu trabalho
aumenta o capital”. Esse modo de compreender a inserção social do proletariado destaca
a submissão do mundo do trabalho à lógica econômica do mercado: os “operários, que
têm de vender-se um a um, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de
comércio e, por isso, igualmente expostos às vicissitudes da concorrência e às
oscilações do mercado”.
11
pela burguesia. Vale dizer que, para Marx, a classe operária tem a possibilidade de
posicionar-se como agente determinante do destino histórico do mundo moderno.
12
Em 1864, Marx fundou a Internacional dos Trabalhadores (conhecida, mais tarde, como
a Primeira Internacional). Graças a esse êxito e ao grande prestígio adquirido no campo
científico, a autoridade de Marx, como pensador e como organizador, consolidou-se
cada vez mais, até sua morte, em 1883. A publicação dos volumes segundo e terceiro de
O Capital, assim como de vários outros escritos de Marx, só foi possível graças à
dedicação de Engels, que, depois da morte do amigo, recolheu cuidadosamente seus
escritos, os reordenou e os preparou para a publicação.
Caso os autores aos quais atribuímos hoje o epíteto de pai ou fundador da sociologia
soubessem da posição que a posteridade lhes reconheceu na gênese de uma disciplina,
Durkheim talvez fosse o único que tomasse isso como o sinal de que seu projeto
intelectual foi, de alguma forma, bem-sucedido.
13
de batalha mais geral alinhava argumentos de ordem filosófica e metodológica em um
discurso que abordava, do ponto de vista da fundamentação da sociologia, o problema
clássico do conhecimento: a definição do objeto a ser estudado e da relação que o
sujeito do conhecimento deveria manter com esse objeto. As Regras do Método
Sociológico, publicado em 1894, é o coroamento desse esforço. A definição do fato
social como maneiras de agir, pensar e sentir que se impõem ao indivíduo delimita o
domínio da sociologia. Durkheim exige do sociólogo uma atitude de desconfiança em
relação ao saber anterior de que todos dispomos sobre a realidade social, pelo mero fato
de participarmos dela.
Permeia todo o livro uma ideia cara a Durkheim: há fatos que são o que são porque a
sociedade tem as características que tem. Durkheim explorou de forma sistemática os
atributos do meio social em suas explicações: o poder de atração que o grupo exerce
sobre seus membros, o poder de regular a conduta do indivíduo, a frequência de
interações são exemplos de fatores que caracterizam o meio social e que Durkheim
empregou em seu clássico estudo sobre o suicídio.
Mas o discurso metodológico não era suficiente aos olhos de Durkheim. No seu
entender, a reflexão metodológica não é anterior à ciência, sendo apenas uma
explicitação e articulação de procedimentos já empregados pela prática científica. Ou
bem a ciência existe, ainda que pouco consciente de seus princípios e de seus
fundamentos, ou não existe e não será a reflexão metodológica que decretará sua
existência. Daí Durkheim afirmar, em seus ensaios metodológicos, que a sociologia é
um ponto de vista que vem se afirmando nas diversas ciências sociais, que desponta nos
bons trabalhos de história do direito, da religião ou da economia. Não basta, portanto, a
sustentação filosófica ou metodológica da sociologia; é preciso praticá-la, é preciso
mostrar, por meio de resultados substantivos, por meio da explicação de problemas bem
delimitados, que o método preconizado é fértil. A Divisão do Trabalho Social (1893),
tese anterior a Regras do Método Sociológico, O Suicídio (1897) e As Formas
Elementares da Vida Religiosa (1912) são as três grandes obras em que Durkheim
desenvolveu, na prática da pesquisa, seu método.
14
Exemplo dessa preocupação é a pergunta que orienta seu estudo sobre a divisão do
trabalho social. Trata-se de saber se o ideal moderno da especialização, isto é, o ideal
segundo o qual devemos nos especializar e nos tornar indivíduos capazes de
desempenhar de forma satisfatória uma função determinada – indivíduos que se
realizam cumprindo um papel especializado e limitado, sacrificando, portanto, algumas
de nossas faculdades – seria um ideal em consonância com o avanço cada vez maior da
divisão do trabalho social.
Quase um século depois, a nova ordem social iniciada com a revolução estava não só
inconclusa como corria o risco de ser desfeita. Os conservadores ainda dispunham de
posições-chave no exército, na burocracia estatal, na universidade e na Igreja. Eram
adversários do regime republicano e dos valores mais caros à ordem liberal – a razão
científica, o individualismo, a indústria – e não abriam mão, é claro, dos alicerces da
ordem social conservadora: o domínio cultural da Igreja, um Estado autoritário e uma
hierarquia social rígida e refratária aos influxos das ideias igualitárias.
15
sociologia como escola de pensamento foi um dos resultados da revista. Dividida em
várias seções que mapeavam o território da disciplina – sociologia jurídica, moral,
religiosa, econômica –, a revista resenhava a literatura sociológica e publicava artigos
originais (vários artigos de Durkheim foram publicados aí pela primeira vez).
A aplicação dessa visão de sociedade ao mundo moderno exige que Durkheim conteste
a visão de sociedade presente na economia clássica. Durkheim precisa mostrar que não
é suficiente, para dar conta da coesão que a sociedade moderna apresenta, considerá-la
como resultado de uma miríade de ações egoístas, em que os indivíduos agem
orientados apenas pela maximização de seus interesses. É contra essa visão,
predominante na economia e no liberalismo clássicos, que Durkheim se volta em A
Divisão do Trabalho Social. Sua ideia é que a divisão do trabalho não é apenas um
fenômeno econômico, como queriam os economistas, mas um fenômeno social e,
portanto, gerador de vínculos de solidariedade. A divisão do trabalho não gera apenas
interdependência objetiva, no sentido de que em uma sociedade em que o trabalho
social está dividido dependemos uns dos outros para a satisfação de nossos interesses.
Durkheim quer ir além dessa ideia, já devidamente explorada pelos economistas
clássicos. A divisão do trabalho teria um efeito muito maior, alcançando as camadas
mais profundas da consciên- cia moral: além de fazer com que os homens se ajudem
mutuamente, quer queiram quer não, faz com que se respeitem, gerando um sistema de
obrigações morais. Participando da divisão do trabalho social, cada membro da
sociedade sente a importância dos demais, compreende que ninguém basta a si mesmo e
que são todos parte de um todo maior. É esse efeito moralizador que Durkheim ressalta
em sua reação à interpretação econômica da divisão do trabalho, que enfatizava muito
mais os aspectos materiais, como o aumento de produtividade.
16
A divisão do trabalho é um processo que atravessa a história da sociedade humana, que
não começa em um momento preciso, mas vem se afirmando ao longo do tempo e
atinge na sociedade moderna um ponto culminante. Como fonte de moralidade e,
portanto, de ordem social, cabe esperar que a sociedade moderna, que testemunha o
auge desse processo, se beneficie de suas virtudes morais. Durkheim sabe, porém, que a
sociedade moderna é permeada por conflitos e que o conflito entre capital e trabalho é
um dos mais ameaçadores à ordem social.
Uma das formas anormais de divisão do trabalho é a que Durkheim chama de divisão
forçada do trabalho. A divisão do trabalho social envolve dois princípios estruturais que
variam historicamente e que podem se tornar fonte de instabilidade. De um lado, há uma
classificação social que confere recompensas materiais e simbólicas distintas às
diferentes ocupações, classificação que, em cada momento histórico, emprega critérios
mais ou menos consensuais. De outro lado, há um princípio que organiza a distribuição
dos indivíduos nas diversas ocupações. Se no passado critérios vinculados ao
nascimento presidiam essa distribuição, para a sociedade moderna o único critério
legítimo seria o mérito. Assim, quando um indivíduo não ocupa, no interior da divisão
do trabalho social, a posição que melhor corresponderia às suas capacidades naturais e,
portanto, às suas aspirações – e o vínculo entre capacidades e aspirações é um dos
pressupostos duvidosos em todo esse raciocínio de Durkheim –, então teríamos uma
divisão forçada do trabalho, no sentido de que ela é experimentada como ilegítima e só
pode ser sustentada pela força. Nas condições modernas, a igualdade de oportunidade é,
assim, crucial para que a divisão do trabalho social seja fonte de coesão e não de
insatisfação. A instituição da herança, ao instaurar condições iniciais desiguais na busca
pelas ocupações mais valorizadas, condições desiguais que não refletem o mérito do
indivíduo, seria um arranjo institucional contrário aos valores da sociedade moderna. Há
vários pressupostos complicados nesse raciocínio de Durkheim. A ideia de
desigualdades naturais, que nada deveriam aos processos de socialização, é um deles,
mas não o único nem o mais duvidoso. A crença no caráter consensual da classificação
social parece desconsiderar a possibilidade de os valores que presidem essa
classificação não serem mais do que a expressão de preconceitos de classe. Cabe
perguntar ainda se Durkheim não desconsiderou o conflito potencial entre as tendências
igualitárias que atribuiu à sociedade moderna e a proliferação de posições desiguais e
distinções de prestígio alavancada pelo avanço da divisão do trabalho.
17
Alexandre Braga Massella é professor da USP
18
Existe uma sociedade weberiana?
Independentemente da resposta, a influência de Weber ultrapassou seus próprios
cálculos
Publicado em 12 de janeiro de 2011
Michel Misse
Ilustração: André toma
19
uma escola, sua obra não produziu influência dessa maneira, mas de outra, mais difusa,
e também mais coerente com o sentido que a distinguia das demais.
Weber não formou uma escola, como aconteceu com Marx e Freud, e mesmo com
Durkheim. Não teve discípulos diretos, com os quais precisasse retificar
constantemente o desenvolvimento de seu próprio paradigma. No entanto, é indubitável
que no desenvolvimento da sociologia, tal como vem se realizando desde o início do
século, a contribuição weberiana é decisiva, fundamental mesmo, por demarcar um de
seus principais paradigmas. Curiosamente, embora Durkheim tenha uma posição
análoga à de Weber por ter também contribuído com outro paradigma fundamental, e ao
mesmo tempo divergente do dele, não é usual falar atualmente de sociólogos
“durkheimianos” ou de uma sociologia “durkheimiana”, e isso quando se sabe que a
influência de Durkheim foi mais sistemática que a de Weber, a ponto de ter existido
uma “escola durkheimiana” na França, o que nunca ocorreu com Weber, nem mesmo na
Alemanha.
A influência da obra de Weber, embora crescente ainda quando ele estava vivo, não era
do tipo que possibilitasse uma escola. Mesmo essa influência foi drasticamente
interrompida, na Alemanha, 12 anos após sua morte, pela chegada dos nazistas ao
poder. Suas principais obras, com exceção de A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, permaneceram esgotadas e sem reedições durante quase 20 anos, e em
grande parte espalhadas em revistas e periódicos de pouco acesso ao público não
germânico. Apesar disso, sua influência foi decisiva em obras que foram publicadas
antes da Segunda Guerra, algumas das quais vieram conformar grande parte do quadro
atual da sociologia. Entre essas obras, basta citar Ideologia e Utopia, de Karl
Mannheim; História e Consciência de Classe, de Georg Lukács; Estrutura da Ação
Social, de Talcott Parsons; e Fenomenologia do Mundo Social, de Alfred Schutz.
Para cada uma dessas posições, enfatiza-se um aspecto da obra de Weber. Pode-se dizer
que são Webers diferentes os que saem dessas posições: um Weber subsumido no
marxismo hegeliano de Lukács; um Weber que retifica e modera Marx, na sociologia do
conhecimento de Mannheim; um Weber fenomenológico, intuicionista, neoidealista, na
“síntese” de Shutz. No campo substantivo da influência, a abrangência e a variedade
não são menores. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é o rosto mais
badalado da influência, mas não é nem a principal nem a mais duradoura, apesar de ter
produzido um dos grandes veios polêmicos do século. Weber trabalhou sobre campos
extraordinariamente diversos e sua influência acompanha essa diversidade, que vai do
direito à sociologia da música, da história econômica à sociologia das religiões, da
filosofia da ciência à política alemã. Conceitos como “tipo ideal”, “ação social”,
“compreensão”, “autoridade”, “dominação”, “carisma”, “vocação”, “racionalidade”,
20
“burocracia”, “estamentos”, “legitimidade” e muitos outros estão inteiramente
orientados, na sociologia contemporânea, pela influência de Weber.
O peso das interpretações pioneiras de Weber, em especial por sua influência sobre toda
a sociologia acadêmica mundial, aquela que veio da obra de Talcott Parsons, vem
passando por ampla reavaliação crítica há quase cinco décadas. Os resultados dessa
reavaliação, que incluiu um renovado interesse dos marxistas por sua obra, têm
possibilitado – 90 anos após sua morte – o conhecimento de um Weber muito mais
profundo e contemporâneo do que as primeiras interpretações poderiam fazer supor.
Não é exagerado afirmar que sua influência, hoje, é comparativamente mais abrangente,
mais sistemática e mais rigorosa do que em sua própria época ou em qualquer outra, não
obstante manter sua característica de não formar escola. O propalado “weberianismo” é
um contrassenso com a própria perspectiva científica de Weber, e o próprio Weber
testemunha contra esse equívoco: “Na ciência, sabemos que nossas realizações se
tornarão antiquadas em dez, vinte, cinquenta anos. É esse o destino a que está
condicionada a ciência: é o sentido mesmo do trabalho científico… Toda realização
científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada. Quem
deseja servir à ciência tem de resignar-se a tal fato”.
A influência de Weber, apesar disso, ultrapassou seus próprios cálculos e merece uma
reflexão porque é isso que ainda legitima o emprego de expressões como
“weberianismo”. A ciência social carrega a bendita maldição filosófica de sua origem: a
política. E como a filosofia e a política, o marxismo e a psicanálise, a sociologia precisa
desenvolver-se renovando sempre suas relações teóricas com seus pais-fundadores: a
reinterpretação das obras clássicas acompanha e indica esse desenvolvimento, tanto
quanto os avanços obtidos nos campos substantivos (empírico e teórico). Não é
impossível escrever uma história da sociologia com base na sucessão das
reinterpretações de seus clássicos. Essas reinterpretações são tão inesgotáveis quanto
sua tendência para avançar para além do que estava originalmente escrito, conferindo-
lhe uma nova dimensão, só possível pelo avanço substantivo efetivamente realizado. O
que define uma obra como “clássica” é exatamente isto: manter-se contemporânea.
A influência disseminada
Talcott Parsons, cuja obra dominou a sociologia norte-americana por mais de duas
décadas (1950-1960) e exerceu – e ainda exerce (embora seja declinante) – influência
sobre toda a sociologia acadêmica mundial, travou contato com a obra de Weber ainda
nos anos 1930, na Alemanha. Sua tese de doutoramento versava sobre o conceito de
capitalismo em Weber e Sombart, o que lhe permitiu preparar o terreno teórico sobre o
qual desenvolveria, em 1937, uma original tentativa de síntese sociológica, a primeira
elaboração de sua teoria geral da ação. O livro, um grosso calhamaço de mil páginas,
intitulado Estrutura da Ação Social, dedicou quase um terço das páginas à interpretação
parsoniana de Weber. No entanto, sua apropriação de Weber caracteriza-se pela ênfase
posta sobre as normas e valores sociais, em função de sua preocupação em construir as
bases de uma teoria da integração social. Se isso lhe permitiu aproximar Weber de
Durkheim muito mais facilmente do que é efetivamente possível, facilitou, no entanto,
uma apropriação da obra de Weber nos Estados Unidos que, além de incorreta e
problemática, enfatizava excessivamente sua utilização conservadora. No entanto, a
influência de Weber na sociologia norte-americana, até então pequena, pegou carona no
funcionalismo parsoniano e cresceu, até que no fim dos anos 1960 a revisão
interpretativa de suas contribuições começasse a ser feita, resgatando-o contra Parsons.
21
Quanto a isso, o pioneiro foi C. Wright Mills, cuja obra reflete uma influência
weberiana bastante diferente daquela encontrada em Parsons e sua escola.
22
no seu “idealismo”, na sua “sociologia compreensiva” e nas minuciosas questões
metodológicas.
Uma verdadeira história das reinterpretações de Weber e de suas disputas teria, agora,
que descer ao campo temático e conceitual. Acompanhar a disputa dos conceitos, a
detecção de suas ambiguidades originais, o aparecimento de novos problemas sobre os
escombros de problemas que pareciam resolvidos, enfim, teria de ser uma história da
constante reatualização de Weber, como a feita brilhantemente por Wolfgang Schluter
nas últimas décadas. Aqui entrariam, por exemplo, a penetrante e nem sempre admitida
influência de Weber sobre as obras seminais de Norbert Elias e Michel Foucault, apenas
para citar dois nomes que continuam em evidência. Naturalmente, isso não pode ser
feito aqui. De qualquer modo, será feito por cada sociólogo, em sua área específica de
atuação. Isso será inevitável sempre que se descobrir que o sociólogo “weberiano” se
dedica a uma coisa “que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar, ao fim”.
O jovem Max, entediando-se na escola e tendo pouco contato com os colegas de sua
idade, tornou-se um leitor insaciável. Suas leituras (Cícero, Maquiavel, Kant etc.)
testemunham sua grande precocidade intelectual. Terminada sua formação básica,
Weber inscreve-se na Faculdade de Direito de Heidelberg, seguindo igualmente cursos
de economia política, filosofia, história e teologia.Em 1889, Weber conclui seu
doutorado sobre o desenvolvimento das sociedades comerciais nas cidades italianas da
23
Idade Média. Em 1891, termina o trabalho A Importância da História Agrária Romana
para o Direito Público e Privado, que o qualifica para ser professor na universidade.
Esses anos foram decisivos na formação de Max Weber, porque o fizeram se interessar
pelos problemas sociais de sua época.Aos 29 anos, em 1893, assume o cargo de
professor de história do direito romano e de direito comercial na Faculdade de Berlim.
Casa-se com Marianne Schnittger, ícone da causa feminista e intelectual engajada em
questões políticas. Ela terá um papel decisivo na edição da obra de Weber,
supervisionando principalmente a publicação dos escritos póstumos de seu marido, em
especial de sua obra magna Economia e Sociedade.
De 1897 a 1903, Weber sofre de uma grave depressão nervosa, sendo obrigado a
interromper seu magistério. Em 1903, retomando suas atividades intelectuais, reorienta
suas pesquisas para a sociologia. É nesse contexto que ele publica A Ética Protestante e
o Espírito do Capitalismo. Em 1909, funda a Sociedade Alemã de Sociologia.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Weber inicia a redação de seu vasto projeto de
sociologia comparada das religiões mundiais. Em 1919, muda-se para Munique, a fim
de ocupar a cátedra de sociologia que a universidade havia criado especialmente para
ele. É nessa ocasião que ele pronuncia duas de suas mais conhecidas conferências: “A
Ciência como Vocação” e “A Política como Vocação”.
24