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ARGUMENTAÇÃO

JURÍDICA
Curso de Hermenêutica Jurídica
Prof. Denis Domingues Hermida
1) ASUBSUNÇÃO NORMATIVA

Conceito: enquadramento do caso concreto ao antecedente da norma jurídica

FATO CONCRETO + Descrição Abstrata de As características do caso concreto


comportamento enquadram-se perfeitamente à
(antecedente da NJ.) descrição abstrata de comportamento

•^Resultado: Aplicação do conseqüente da norma jurídica ao caso concreto

í \ ^
Formação de relação jurídica entre as partes
(fixação de direitos e obrigações das partes)
V J
2 - ELEMENTOS NECESSÁRIOS À SUBSUNÇÃO NORMATIVA

LEI FATO CONCRETO

Interpretaçãojurídica

( Antecedente!
^ ^ ^ ^ — ^ ^ ^ ^ — ^ ^ % â

\ Conseqüente
L .1

Descrição Abstrata
De comportamento
3- DESENVOLVIMENTO DO RACIOCÍNIO NA SOLUÇÃO DA LIDE

Não ocorrência de subsunção normativa

2 possibilidades
de solução
Ocorrência da subsunção normativa

Discussão acerca dos contornos da relação jurídica


(conteúdo dos direitos e obrigações de cada parte)
5- APLICAÇÃO DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

CONVENCIMENTO (Persuasão) relacionado a:

Ocorrência do Conteúdo do Conteúdo do


FATO CONCRETO Antecedente da NJ Conseqüente da NJ.
(quais os direitos e
\ obrigações das partes)

Discussão Discussão do FUNDAMENTOS JURÍDICOS


dos FATOS (ocorrência da subsunção normativa e do
conteúdo dos direitos e obrigações das
partes )
Capítulo II
O argumento
Para compreender a argumentação deve-se abandonar
o conceito binárío de certo/errado, No Direito concorrem te-
ses diferentes, e não necessariamente existe uma verdadeira
c outra falsa. O que existe é, no momento da decisão, uma
lese mais convincente que as demais.

Vimos que a argumentação é necessária àquele que tra-


balha com o Direito, pois o conhecimento jurídico desen-
volve-se por meio de argumentos.
Mas o que são os argumentos? Sem nenhuma diívida,
definir o argumento de u m modo bastante simples terá para
nós efeito prático.
Acompanhemos, então, essa definição.

O s três tipos de discurso

(cativa,Argumentar é a arte de procurar, em situação comuni-


os meios de persuasão disponíveis. "
r A argumentação processa-se por meio do discurso, ou
Iseja, por palavras que se encadeiam, formando u m todo
Jcoeso e cheio de sentido, que produz u m efeito racional no
jouvinte. Quanto mais coeso c coerente for o discurso, maior
será sua capacidade de adesão à mente do ouvinte, por-
quanto este o absorverá com facilidade, deixando transpa-
recer menores lacunas.
Desde Aristóteles, adota-se uma divisão tripartite en-
tre os tipos de discurso. O critério de diferenciação entre eles
é o auditório a que se dirige, ou seja, quem são os destinatá-
rios finais das mensagens transmitidas pelo discurso. l?ara
cada tipo de auditório, urna maneira distinta de compor o
/exto que lhe será levado a conhecimento.
ARGUMENTAÇÃO lURÍDICA
O ARGUMENTO 15

Pode-se citar Aristóteles: aqui mais nos interessa, na medida em que nos pro-
pomos a tratar da argumentação jurídica,
São três os gêneros da retórica, dò mesmo modo que c) Q_digçursoj'£Ídjçrico ou demonstrativo é aquele co-
três são as categorias dc ouvintes dos discursos. Com efeito, locado a uma platéia para louvar ou censurar deter-
um discurso comporta três elementos: a pessoa que fala, o
minada pessoa ou fato, não se interagindo com o o u -
assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala. O fim do
discurso refere-se a esta última, que eu chamo o ouvinte. O vinte a ponto de este necessitar tomar posição sobre
ouvinte é, necessariamente, um espectador ou um juiz, Se o que lhe é relatado. Esse é o tipo de discurso, por
exerce a função de juiz, terá de so pronunciar ou sobre o pas- exemplo, dos comícios políticos atuais, a que com-
sado ou sobre o futuro. Aquele que tem de decidir sobre o parecem apenas os eleitores daquele a quem cabe a
futuro é, por exemplo, o membro da assembléia. O que tem fala principal, diante de uma enorme platéia, enalte-
de se pronunciar sobre o passado é, por exemplo, o juiz pro- cendo seus próprios predicados.
priamente dito. Aquele que só tem que se pronunciar sobre
a faculdade oratória é o espectador.'
Mesmo no discurso demonstrativo, cm que não existe
contraditório, está presente a arte retórica, de valorizar os
São os tipos de discurso em Aristóteles: pontos favoráveis àquele que fala. Por exemplo, é porque
a) O discurso deliberativo é aquele cujo auditório é uma em u m comício político u m candidato não encontra, em
assembléia tal qual u m senado - atual ou da Grécia número relevante, opositores a quem discursar que sua fala
antiga. A assembléia é chamada a decidir questões pode deixar de trilhar u m caminho argumentativo que leve
futuras: u m projeto, uma lei que deverá ser aplicada, à adesão de seus ouvintes às idéias que são momentanea-
o direcionamento de u m ou outro plano para se atin- mente proferidas.
gir uma meta. Enfim, questões políticas, em que se Veja-se que curioso o trecho de Arte retórica, de Aristó-
discute o que é útil, conveniente ou adequado. teles, intitulado "Habilidade em louvar o que não merece
b) 0_disaj^sojMdia'qrrb é aquele que se dirige a u m juiz louvor":
ou a u m tribunal. Nele decidem-se questões que d i -
zem respeito ao tempo pretérito. Tudo o que está d o - Convém igualmente utilizar os traços vizinhos daque-
cumentado em u m processo qualquer são, evidente- les que realmente existem num indivíduo, a fim de os con-
mente, questões do passado, ainda que possam tra- fundir de algum modo, tendo em mira o elogio ou a censura;
por exemplo, do homem cauteloso, dir-se-á que é reservado
*zer como resultado eventos futuros. Tais fatos pas-
e calculista; do insensato, que é honrado; daquele que não
sam por u m esclarecimento, para que se comprove reage a coisa alguma, que é de caráter fácil [,..]. Importa
sua ocorrência de determinada forma, e depois vão igualmente ter em conta as pessoas diante das quais se faz o
a julgamento, quando são atingidos por u m juízo de elogio, pois, como d k Sócrates, não custa louvar os atenien-
valor, para que sc lhes aplique determinada c o n - ses na presença de atenienses.^
seqüência.
Pára Aristóteles, o discurso judiciário pode ser a O que têm em comum os três tipos dc discurso vistos?
acusação ou a defesa. É esse o tipo de discurso que A resposta é simples: todos procuramconvencer. Ainda no

— — - p
1. Arte retórica. Capítulo III. 2. Idem, p. 63. "^x "^Ç •
16 ARGUMENTAÇÃO jURÍDiCA o ARGUMENTO 17

discurso demonstrativo, cuja única finalidade é enaltecer ou N o Direito, quando se fala em disputa havida por meio
criticar determinada pessoa ou atitude, procura-se conven- da argumentação, surge, primariamente, sempre a idéia do
cer os ouvintes a respeito daquilo que se falar-que determi- justo. Se duas partes debatem, é natural que se entenda que
nada pessoa é importante, que só tem'qualidades etc. ao menos uma delas não deva estar com a razão, não seja
Mas a platéia que temos, quando nos voltamos à ativi- acobertada pelo Direito, pois não é possível que duas idéias
dade principal do operador do Direito, é o juiz o u Iribunal, contrárias estejam certas.
e, se o Poder Judiciário existe para pacificar contendas, t e m - Sob tal ótica, a argumentação ou a retórica seriam u m
se duas partes debatendo. Quando se argumenta nas ativida- instrumento de fazer com que aquele que não tem razão se
des forenses, na acusação ou na defesa, não se tem como valha de artifícios formais para enganar o julgadori. Q u e m
fim principal a deliberação ou o elogio, mas sim a vitória em nunca viu um advogado ser chamado de velhaco porque
uma controvérsia. disfarça a verdade através de truques, de falácias em seu
E a idéia de controvérsia nos conduz a alguns outros discurso?
comentários u m tanto pertinentes. Como a disputa é con- Essa idéia não é rara, mas bastante tragicômica. Em u m
dição do discurso judiciário, este reveste-se de qualidades evidente prejulgamento, entende-se a argumentação como
que lhe são peculiares, que vale compreender. um debate entre u m certo e um. errado. Ora, se duas teses são
conflitantes, uma é correta, outra não, e a disputa da argu-
mentação somente viria a revelar quem é essa parte que
A disputa entre dois certos procura fazer uma comprovação impossível. Assim, o de-
bate argumentativo poderia ser comparado àquelas i m a -
Participar do discurso judiciário é envolver-se em uma gens dos desenhos animados: a personalidade do protago-
demanda, em uma disputa entre partes. Cada uma das par- nista divide-se em dois pólos diferentes: à esquerda, sua
tes, como bem se sabe, procura obter para si o melhor re- imagem travestida de demônio o tenta a uma atitude eviden-
sultado: a sentença e o acórdão favorável. Para isso, têm de temente má, enquanto a mesma figura, travestida de anjp,
fazer vingar uma tese, que envolve questões relativas à pro- tenta dissuadi-lo, mostrando-lhe o caminho do bem. Fácil sa-
va dos fatos alegados e à incidência de determinado insti- ber quem tem a razão, qual o melhor caminho, apenas dê-
tuto ou conseqüência previstos por lei, para que se aplique cidindo-se procurar a forma angelical.
o Direito ao efetivo caso concreto. Por isso as partes se d i -
Alguns tentam ver as lides processuais com a mesma
gladiam, afinal, seria desnecessário u m juiz se não houves-
obviedade que o jocoso discurso entre o anjo e o demônio,
se controvérsia: poderia ser fechado u m acordo de vontades,
afirmando fazer uso do conceito de justiça. A disputa argu-
tal qual ocorre na assinatura de u m contrato. Mas não é as-
mentativa seria uma lide em que se daria a oportunidade
sim, naturalmente: cada uma das partes, quando se socorre
do Poder Judiciário, entende estar com a razão, às vezes de retirar o véu que ericobre a divisão entre o justo e o i n -
lançando sobre a realidade u m olhar por demais compro- justo: aquele que tem o direito e a justiça a seu lado reforça
metido com seus próprios interesses. Na justiça criminal sua razão, mostrando, por meio de argumentos, que seu ra-
assim também ocorre, pois, ainda que u m réu venha a re- ciocínio é o único correto porque decorre dc premissas vá-
conhecer seu erro pelo cometimento de um delito, sempre
entenderá merecer reprimenda mais leve que a que seu per-
3. "Fnctn. twti verba" - Fatos, não palavras! Frase latina que indica que a
secutor lhe deseja. argumentação é dispensável porque visa turbar a realidade.
18 ARCUMEmAÇÃO JURÍDICA O ARGUMENTO 19

lidas. Qualquer comportamento está em acordo ou em de- afastanieDia das condutas humanas às prescrições juridi^;
sacordo com o Direito e, portanto, se existe alguma diver- casT^as isso não importa em dizer que, sempre que duas
gência entre duas partes, somente uma delas pode estar partes se encontram em litígio, uma necessariamente de-
agasalhada pelo direito e/ou pela justiça. •' fende uma conduta justa ou legal e a outra está afastada da
Veja-se como Kelscn, cuja lição sempre constitui uma norma jurídica, ou longe da justiça.
aula de raciocínio, defende, ao analisar a justiça no concei- Vale a pena ler o texto abaixo, adaptado do filme Um
to de Aristóteles, a idéia de que dos fatos somente se pode violinista no telhado', em que o protagonista, Tevie, escuta a
fazer dois juízos: adequados ou inadequados ao ordena- discussão entre Perchik e outro aldeão, ambos contrapon-
mento jurídico: do-sc cm suas opiniões:

A afirmação de que uma virtude é o meio entre um ví- Perchik - A vida é mais do que conversa. Deviam saber o
cio de deficiência e um vicio de excesso, como entre algo que acontece com o mundo lá fora.
que é pouco e algo que é muito, implica a idéia de que a re- Aldeão - Por que esquentar a cabeça com o mundo? Que o
lação entre virtude e vício é uma relação de graus. Mas, mundo esquente a própria cabeça!
como a virtude consiste na conformidade, e o vício na não- Tevie (apontando para o aldeão) - Ele tem razão. O Livro
conformidade de uma conduta a uma norma moral, a rela- Sagrado diz: "Cuspindo para o alto, cairá em você,"
ção entre a virtude e o vício não pode ser uma relação de Perchik - Não pode fechar os olhos para o que passa no
graus diferentes. Pois, no que diz respeito à conformidade mundo.
ou à nlo-conformidade, não há graus possíveis. Uma con- Tevie (apontando para Perchik) - Ele tem razão.
duta não pode ser muífo ou pouco, só pode ser conforme ou Avram - Um e outro têm razão? Ambos ao mesmo tempo
não conforme uma norma (moral ou jurídica); só pode con- não podem estar certos.
tradizer ou não contradizer uma norma. Se pressupomos a Tevie - Você também tem razão.
norma: os homens não devem mentir, ou - expresso positi- (Risos.)
vamente - os homens devem dizer a verdade, uma afirma-
ção definida feita por um homem é verdade ou não é verda- Em obra de qualidade, como o citado filme, é evidente
de, é mentira ou não é mentira. Se for verdade, a conduta o teor ilustrativo de cada diálogo. O personagem Aviam-
do homem estará em conformidade com a norma; se for faz, no trecho recortado, observação final que pode ser tra-
uma mentira, a conduta do homem estará em contradição duzida como: se dois personagens discutem e argumentam
Scom a norma.* em teses antagônicas, ambos não podem estar certos! O
pensamento do personagem rechaça a idéia de dois discor-
O ordenamento jurídico prescreve modelos de condu- dantes ao mesmo tempo terem razão, porque aceitá-la se-
tas e sanções àquelas que aparecem em desacordo com a ria assentir com a impossível idéia de que duas verdades
norma. Dele surgem problemas intrínsecos, como a hierar- opostas coexistam.
quia entre as normas, as antinomias e as lacunas. Daí a ne- Quantas dificuldades isso pode trazer! Imaginemos u m
cessidade do djscurso ludiciário, qu^_pqde_ser çarâdierizâdD juiz que prolate uma sentença dizendo que as teses de a m -
corno aquele que procura comprQvar-ai:Dii£Qirnidade_5iLri bas as partes estão corretas; forçosamente nenhum litígio

A. o que é justiça?, p. 118. 5. A fidler on the roof. Warner Brother South Inc., 1971.
20 ARGUMENTAÇÃO lURÍDICA 21
o ARGUMENTO

seria resolvido, porque é impossível uma conclusão como O matemático lida com números, e estes representam,
essa. Uma das teses deve estar errada. antes de tudo, exatidão. Na matemática ou em outras ciên-
De fato, duas verdades opostas não coexistem. O u uma cias exatas não existem opiniões ou posicionamentos, porque
conduta é contrária à lei ou não é, pois nãõ se pode ser os números não o permitem. São linguagem artificial. Mas
meio contrário à lei, como já visto. Quer dizer, é até possível é u m erro tentar aplicar ao Direito essa mesma premissa.
que uma conduta seja permitida por uma norma jurídica c Quem argumenta não trabalha com a exatidão numéri-
proibida por outra, mas aí entraríamos cm conflito de nor- ca, por isso se afasta^dô"Tóríceito binariríde vêfdadet rõ/falso,
mas, que não é nosso assunto aqui. O que de fato se tem é sim/não^ Quem argumenta trabalha cófnõãparentementever-
que um juiz não pode aceitar duas teses opostas como ver- dadeiro, com o talvez seja assim, com aquilo que é provável. É
dadeiras, porque nesse caso seu julgamento seria inócuo, diante dessa carga de probabilidade com a qual se opera que
motivo pelo qual aponta como verdadeira apenas uma das surge a possibilidade de argumentos combinados comporem
teses, aquela vencedora em seu julgamento, em sua decisão. teses totalmente diversas, sem que se possa dizer que umade-
Mas se duas yerdadgs opostas não podem coexistir, las esteja certa ou errada, mas apenás^pòdendu-se aftrtfíárque
duas argumentações opostas não significam necessariamen- uma delas seja mais ou menos convincente. ' '
te que alguma delas seja incorreta^ ' Vejamos um exemplo:
' Como ISSO podê ácÕntecer? Conta-se que, em u m plenário do júri, u m promotor
exibia aos jurados as provas processuais. Procurava, por-
tanto, na prática de um discurso judiciário, convencer os j u -
Argumento e verdade rados a respeito de sua tese. Mostrava a eles, com muita pro-
priedade - argumentando - , que o laudo elaborado pela po-
A argumentação não se confunde com a^lógicaJorinal, lícia técnica concluía que havia 99% de chance de que o
riãosendÕ então equíválente à demonstração ana^fica, ab- projétil encontrado no corpo da vítima fatal houvesse sido
soluta, como acontece, por exemplq^jim jama equa.çãa ma.- disparado pelo revólver de propriedade do réu. Queria d i -
têrnaTÍCin '—' "~ ^ zer o acusador que o réu não poderia, diante daquela prova
Em uma equação matemática verdadeira, somente se concreta, negar a autoria do crime. • "
admite u m resultado, fixando-se as variáveis. Sua resolução, Diante de tal fortíssimo argumento, a probabilidade
passada em uma demonstração analítica, quaisquer que se- matemática, o defensor, em tréplica, formulou aos jurados
jam Ss métodos válidos pelos quais ocorra, sempre chegará a seguinte pergunta retórica: "Suponhamos que eu tivesse
a u m mesmo resultado. u m pequeno pote com cem balinhas de hortelã. E que eu,
Imaginemos dois matemáticos discutindo o resultado então, pegasse uma delas, tirasse do papel celofane que a
de uma equação bastante complexa. Cada u m deles utiliza envolve e, dentro dela, injetasse uma dose letal de u m ve-
um método de resolução, mas chegam a resultados dife- neno qualquer. Em seguida, que eu embrulhasse novamen-
rentes: o matemático A demonstra que a proposição resul- te o caramelo letal, colocasse dentro do pote com outras 99
ta em 350, enquanto o B demonstra que ela, em vez disso, balinhas idênticas e misturasse todas. Teria algum dos jura-
traz forçosamente o resultado de 700. O que se deduz des- dos coragem de tirar do pote u m caramelo qualquer, desem-
se contexto? Evidentemente, u m dos matemáticos, A ou B, brulhá-lo e saboreá-lo? Certamente que não. Pois, se n i n -
está erradol guém se arrisca à morte ainda que haja 99% de chance de
o ARGUMENTO 23
22 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA

de balística não pode ser levado em consideração para a


apenas se saborear u m caramelo de hortelã, ninguém pode
constituição da culpa do acusado.
condenar o acusado, ainda que haja 99%-de chance de ha-
Porque o processo não é matemático, mas matéria h u -
ver disparado sua arma contra a vítima!" • •- -
mana, não existe uma conclusão única: acusação e defesa
Conta-se que, lançando mão desse argumento, o de-
estão, ao mesmo tempo, certas e erradas! O a r g u m e n t c ^ n -
fensor conseguiu a absolvição de seu cliente.
tão, a n t e s j j ç ser u m modo de comprovação da iJer^aa[cÇ_é.ap.e.-
Analisemos o exemplo. Trata-se de u m discurso em que
nas u m elemento lingüístico déstinaãõ~àf>érsuasão.
duas partes defendiam posicionamentos contrários, cada
Argumento c elemento lingüístico porque se exterioriza
qual com seu argumento. A acusação procurava comprovar
ser o réu o autor de u m crime, enquanto a defesa negava tal por meio da linguagem. É, por isso, elemento que aparece
autoria. Daí que, quando a acusação trouxe u m argumento inserto em u m processo comunicativo, que deve ser o mais
forte, a defesa procurou enfraquecê-lo perante os jurados. eficiente possível.
Argumento é destinado à persuasão porque procura fa-
Assim se esquematiza a argumentação:
zer com que o leitor creia nas premissas e na conclusão, do,
Acusação: argumento forte, com uma prova concreta -
99 chances em 100 de que a arma que efetuara os disparos retor, ou seja, daquele que argumenta.
fosse a do acusado, o que o colocaria indiscutivelmente
como autor do crime.
Defesa: argumento mais fraco matematicamente: uma O s objetivos e os meios da argumentação
chance em 100 de que a arma não fosse a que efetuara os
disparos. Todavia, esse 1 % não autoriza a certeza, como de- Qual é o objetivo da argumentação? Quem argumenta
monstrou seu exemplo dos caramelos de hortelã. tem, como objetivo final, fazer_comque o destinatário da
Note-se que, nessa argumentação, cada qual tinha sua arguj]3£ritaçã.o creía_eiP alguma çfiisa, ja dissemos.
parcela de razão, embora ambos procurassem comprovar Tal idéia, no entanto, não é unânime, pois há quem
teses totalmente opostas. afirme que o objetivo principal da ar^mentação vai além
Porém, ao mesmo tempo que valorizavam sua razão, de levar o leitor a crer em algo, uma vez que o escopo últi-
ambos os argumentantes t i n h a m sua parcela de falta de ra- tQpjdppÊtopseria o de fazer com que o destinatário vie^sea
zão: ao argumento acusatório faltava revelar que realmente agir da rnaneira como se prescreve. E a diferença é relevante.
existia uma probabilidade de a arma letal não ser a do acu- Q u e m defende que argumentar é primordialmente le-
sado, enquanto ao argumento de defesa faltou dizer que, var o ouvinte a agir de maneira determinada, no discurso
apesar da falta de certeza, as probabilidades apontavam far- judiciário, tem uma visão, curiosamente, ao mesmo tempo
tamente para a razão da acusação. pragmática e utópica. Pragmática - explicamos já - porque
lA boa argumentação consistiu, no caso concreto, em é destinada ao resultado de modo bastante imediato. Defen-
yaiqrirar para. p ouvinte, no caso os juradris, aquTlÕ~qué'é
meramente provável copio se verdadeiro fosse, Tanto não é ver-
6. João Mendes Neto (Rui Barbosa e a lógica jurídica, p. 27) comenta que
dade que daquela porcentagem pertinente à criminalística a verdade é a conformidade do intelecto e da coisa {conformitas intelectas et
se possa inferir ser u m acusado real autor de u m crime rei). Entendemos que, para a argumentação, a definição é bastante válida, na
(porque 99% não são 100%), quanto não é de todo verdade medida em que o intelecto somente assume a coisa como um significanle.
uma representação.
a conclusão que a defesa pretende inferir: a de que o teste
24 ARGUMENTAÇÃO jURÍDlCA o ARGUMENTO 25

de, com sua parcela de razão, que o objetivo de quem argu- de redigir um voto, imprcsclndivclmente bem fundamen-
menta é uma ação específica do ouvinte: o advogado que tado por dissuadir de seus colegas. O comodismo indevido
arrazoa u m recurso, sustentando certa tese, intenciona que o assola o julgador, e ele, contrariamente a seu dever, deixa
magistrado - seu destinatário - pratique uma açãó determi- seu livre convencimento e sua independência funcional de
nada por ele: julgar a causa a seu favor. De nada adiantaria lado, e, embora creia na tese defendida pelo argumentan-
- defende essa corrente aparentemente pragmática - o ma- te, não age da maneira como lhe fora prescrito. Acaba por
gistrado crer nas razões do advogado argumentante, mas acompanhar o voto dos colegas.
não agir deferindo-lhe o pedido. Assim, para definir a argumentação não se pode apartar
Porém os defensores dessa corrente tropeçam em u m m u i t o da realidade, devendo-se reconhecer que existe, en-
elemento da realidade que não se pode ignorar, sejam eles tre o crer e o fazer, u m intervalo que a argumentação deveria
os casos em que fogem do alcance do trabalho argumenta- alcançar, mas nem sempre o consegue, por mais eficiente
tivo os motivos que ensejam a ação do ouvinte. Entre a cren- que seja.
ça do ouvinte e sua ação determinada existe u m claro em Essa idéia tem valor prático, pois todas as vezes que ar-
que, infelizmente, a argumentação não pode interferir. gumentamos precisamos ter em mente que o leitor deve ser
Pode-se, com bons argumentos, convencer u m fuman- levado a crer em algo. Fazê-lo crer na tese representa o obje-
te de que muito maior do que o prazer que o cigarro pro- tivo da argumentação.
porciona seriam os benefícios que imediatamente lhe viriam E quais são os meios utilizados para esse objetivo?
se deixasse o vício. Ele pode vir, por meio de elementos não F^ra que o leitor creia na tese é necessário que ela lhe
raros de persuasão, a crer que é necessário abandonar o ci- seja transmitida de forma que seu raciocínio venha aderir ao
garro. Mas elementos exteriores à comunicação argumen- percurso transmitido pelo leitor. Nesse ponto, a atividade fo-
tativa interferem na realidade - a exemplo da necessidade rense (o discurso judiciário) tem algumas peculiaridades.
química de nicotina do fumante - e podem fazer com que Quando u m renomado jogador de futebol aparece na
ele não aja da maneira como se lhe prescreve. Melhor se o í televisão e, em u m comercial, afirma utilizar determinada
fizesse, mas a argumentação não pode, por si só, garanti- marca de chuteiras, não há dúvida dè que ele exerce u m
lo. O fumante crê, porém não age. i efeito de persuasão em seus espectadores. Em u m anúftcio
Outro exemplo: u m advogado defende excelentemen- como esse existe u m argumento que não está expresso,
te uma tese perante o tribunal. Dos três julgadores do caso, mas pode ser resumido em: se esse atleta usa tal chuteira,
relator e revisor não lhe dão razão, fundamentando a tese • é porque esse calçado é o melhor de sua categoria; afinal,
da parte contrária. O terceiro juiz, entretanto, pensando so- - u m jogador desse gabarito só pode usar produtos de p r i -
bre os argumentos que lhes foram dirigidos, crê que a tese •^meira linha.
do nosso argumentante, a despeito da opinião de seus co- Dúvidas não existem de que a figura daquele atleta re-
legas, é a correta. Todavia, uma questão exterior à argumen- •nomado, no comercial, funciona como uma forma ác fazer
tação se lhe coloca: se agir da maneira como prescreve o ar- iirer na qualidade do produto anunciado. A figura do joga-
gumentante, terá de discordar de seus colegas. Isso lhe trará i d o r é, então, parte de uma argumentação que dispensa u m
- pensa o magistrado - duas conseqüências desagradáveis, raciocínio complexo a ser transmitido, mas que ali existe sim-
sendo a primeira delas o próprio fato de discordar de uma ;ples e implícito, caso contrário o comercial não teria ne-
turma que há tempos é uníssona, e a segunda a necessidade = n h u m efeito prático nas vendas do produto. Pode-se afir-
26 ARGUMENTAÇÃO lURÍDICA O ARGUMENTO 27

mar que, no anúncio, foram predominantes a imagem e o Fazemos hipertrofias com freqüência, e elas não são mo-
conceito do jogador, sendo o raciocínio lógico um elemento nopólio do discurso jurídico. Desde a propaganda de uma
imprescindível, porém dc menor importância. De qualquer famosa doçaria que diga que seus produtos propiciam sabo-
modo, existiam argumentos. rosa energia ou doces momentos, em vez de dizer, obviamen-
Se u m indivíduo vai comprar u m tênis esportivo, é fá- te, que seus alimentos engordam demais, até um elogio a um
cil (e muito provável) que valorize imagens associadas aos colega de trabalho, afirmando-sc que ele é muito compcne-
ídolos dos esportes. Mas quando u m juiz avalia uma tese j u - ^ trado em vez de lento em suas funções. Evidentemente, a
rídica, pouco (mas não nada)' lhe importa a figura do argu- ^ argumentação jurídica desenvolve-se por meios mais com-
mentante, mas sim o raciocmio que lhe apresentam as partes, V picxos, mas dc mesma natureza: a^^alorizaçaodos aspectos
pois é u m raciocínio desse tipo, em u m percurso determi- favoráveis à tese defendida.
nado, que deve refratar-se cm sua sentença. O advogado que defende uma tese em juízo procura
O fator de persuasão mais válido no discurso judiciário é, um percurso argumentativo eficiente naquilo que c mais
então, o raciocínio jurídico, seja na interpretação da lei, seja na persuasivo a seu leitor: o ja.clpcmiqJurídicoyálÍdP-
análise das provas. Acontece que esse raciocínio não é unidi- Fortalecer o raciocínio jurídicõvalido^ a tarefa de quem
recionado, como já explicamos, pois a lógica jurídica não é procura chegar a u m resultado efetivo.
1 exata". Ele depende dos argumentos para ser exteriorizado.
E, ao se fazer essa exteriorização do raciocínio, o argu-
mentante procura valorizar o que lhe é favorável, e isso se Características da argumentação
faz por meio de técnicas de argumentação.
Assim, pode-se dizer que, se o objetivo da argumenta- b<íç>' Visto o que se entende por argumento e os meios da
ção é fazer crer em uma afirmação, seus meios são ahipertro_- ú'^argumentação, cabe sistematizá-los em algumas breves ca-
fia dos elementos favoráveis, o u seja, a valorização deles. >T racterísticas, que serão retomadas com maior profundidade
no decorrer dos capítulos posteriores.
7. Não deve causar espanto ao iniciante o fato de se afirmar que o julga- f A argumentação rjjfprnnria-QP Ha' ppera demonstração
dor é persuadido, ainda que em menor grau, por elementos externos aos pró- jTQrque tem o ouvinte, o interlocutor como alvo. A demofis-
prios argumentos que fazem parte do aqui chamado raciocínio jurídico. O que
tração é absolutamente impessoal e, exagerando, poderia
não se deve é retirar deste trabalho o objetivo prático, e para isso é necessário
observar a realidade. Por exemplo, é impossível negar que quando se cita, ser realizada por uma máquina, como já foi aqui afirmado,
para fundamentar uma peça, a doutrina de um famoso jurista, em parte se está tal qual o computador resolve qualquer equação matemáti-
valendo dc sua imagem, tal qual faz o esportista de nosso exemplo ao anun- ca. E, assim, axiomática c segue u m percurso definido por
ciar a marca de chuteiras.
sistemas formais de raciocínio.
8. Vale conhecer como o professor Alaôr Caffé Alves expõe esse tema:
"Por isso, a Lógica formal jamais poderá orientar a ação dos homens. Por con- í^ra que possa hãver u m raciocínio demonstrativo for-
seqüência, ela não pode ser a lógica dominante nos assuntos humanos, de- mal, em sistema fechado, como aponta Olivier Reboul, é ne-
vendo ser, a teoria da argumentação retórica, a única forma de justificar os va-
lores e os atos morais dos homens. A argumentação retórica, ao contrário da cessário que coexistam três condições: a) que não haja am-
lógica simbólica ou Matemática - caracterizada por universal c, por isso, im- bigüidades na significação dos signos - por isso a matemá-
pessoal, neutra e monológica -, supõe sempre o embate (dialético) dc opiniões tica se utiliza de uma linguagem artificial (o número um, o
ou o confronto das ideologias e consciências no interior de situações e cir-
cunstâncias históricas determinadas c particulares" (Lógica, pensnnicnlo formal
zero, o dois... são meros conceitos); b) o sistema deve ser
c argumentação, elementos para o discurso jurídico, p. 165). coerente - não se pode afirmar dentro dele sua proposição e
28 ARGUMENTAÇÃO jURÍDiCA
O ARGUMENTO 29

duzimos seu contexto, para fixar pontos de partida impres-


negação: assim os sistemas de raciocmio formal progridem
cindíveis ao início da construção do discurso. Esses pontos
de modo único e não encontram contradições e quebra de
de partida, como os demais argumentos, não são prova de
coerência; c) o sistema deve ser c o m p l e t o . - vale dizer que
verdade, mas sim elementos de demonstração de probabili-
para cada proposição formada c m u m sistema deve-se ter
dade. Mais convincente o argumento quanto mais verossí-
condições de demonstrar sua verdade ou falsidade. Em o u -
mil for, e nisso também se enquadra a forma, a enunciação.
tras palavras, cada proposição feita no sistema axiomático
deve trazer uma resposta única, u m resultado inequívoco e d) A progrcssãQ_dPpende do o r a d ^ >
não pode haver proposições, se aceitas pelo sistema, que não Quando se argumentàseTaz constante seleção de ele-
encontrem resultado seguro. mentos lingüísticos que podem vir a compor o discurso. Co-
gitamos o melhor argumento, as melhores palavras, as cita-
Todas essas características de u m sistema formal em
ções mais adequadas, formulam-se introduções, conclusões,
muito se afastam de nosso esquema argumentativo. A ar-
prolongam-se ou encurtam-se exemplos... Tudo à livre es-
gumentação traz, ainda aproveitando-nos dc Reboul, cinco
colha daquele que constrói seu discurso, quer seja oral, quer
< ^ características que devemos compreender, para aprofundá-
escrito. Quem defende que, por exemplo, para a constru-
,, '<y Ias em momentos seguintes do nosso estudo. São elas:
ção de u m recurso judicial exista u m padrão de progressão
•'^•N a) A argumentação dirige;:se.aj-im auditório.
argumentativa indeclinável está evidentemente ocultando
Sempre argumentamos para alguém, diante de alguém.
do estudante uma visão realista da atividade suasória, nes-
V • Os argumentos e a progressão do discurso devem variar de
se caso no contexto jurídico.
\ ' ./ acordo com aquele a quem este é direcionado. Tal caracte-
-of rística é objeto de nosso estudo, principalmente quando Fazer progredir u m discurso é atividade do intelecto
humano.
Í \ N tratarmos a intertextualidade.
b) n]jli7,a-se de língua natural.
Ponto muito importante. Q u a n d o argumentamos, u t i -
A progressão da argumentação será abordada nos capí-
tulos que tratam da coerência e da ordem dos argumentos.
e) As conclusões são controvertidas.
lizamo-nos da mesma linguagem com que nos c o m u n i -
camos no dia-a-dia. E isso sujeita a construção a r g u m e n - A o contrário da lógica formal, a argumentação permite
tativa a diversas regras, que são as mesmas da comunica- conclusões controvertidas. Veja-se: a lógica formal, GCftno
ção em geral. Se, por u m lado, a língua natural dificulta o lembra Atienza, move-se no terreno da necessidade. U m
tratq com os argumentos, já que eles não podem vir dis- raciocínio demonstrativo ou lógico-dedutivo importa neces-
sociados de uma enunciação, por outro confere-lhes uma sariamente que a passagem de uma premissa para a conclu-
série infindável dc recursos: o trato com a palavra. Assim, são seja determinada. Mas a argumentação move-se na
os mesmos recursos da enunciação em geral, da lingua- mera probabilidade. Os argumentos, na retórica, não de-
gem como u m todo, aplicam-se integralmente à constru- monstram provas evidentes, por isso é possível chegar-se a
ção argumentativa. Tais características serão exploradas conclusões controvertidas, quando se avança em raciocínios
neste livro, principalmente quando tratarmos de competên- retóricos por trilhas distintas. Nenhuma conclusãoé, por
cia lingüística. fim, absoJjutam.enl£-Yeidadeira, ainda que o orador a anun-
çie como verdademipar, como único raciocínio aceito^ Üm'
c) Suas premissas são verossímeis.. orador jamais afirmará que seu discurso é composto de afir-
Essa característica foi matéria do presente capítulo, por- mativas em mera probabilidade. Porém, na realidade, qual-
que contida na classificação do argumento. Da realidade re-
30 ARGUMENTAÇÃO lURÍDICA

quer raciocínio retórico é meramente razoável. Mas não está


aí a beleza da argumentação?
Compreendidas essas características do argumento e
da argumentação, pode-se passar a uma leitura mais espe-
cífica de cada uma delas, já com novo alcance prático.
Capítulo VII
Argumento de autoridade:
apelando para a opinião do experto

Uma assertiva pode ser considerada válida^apenas por-


que provem de fonte confiável. Entretanto, não. se podÊSi-
peívalortzarò argumento "de autoridade: eíe deve submeter-
se^ algüri5"erttéitõs"pãrãTqíiè?t'jd üigiiu Uy íiunflâbilidadíy

Apresentação: os tipos de argumento

Até aqui trouxemos questões genéricas da argumenta-


ção jurídica: a apresentação da função do argumento, a es-
trutura argumentativa, a coerência, a intertextualidade e a
narrativa. São todos pontos importantes, mas sem qual-
quer dúvida o leitor deseja aprofundar-se em aspectos mais
práticos.
É hora de apresentar fípos de argumento usuais àquele
que argumenta em juízo. Somente nos vale, nesta introdu-
ção, dedicar algumas palavras ao método de seleção desses
argumentos e à utilidade de seu estudo.
„SeTSãò os argnmeritM^ieios lingüísticos de^pgrsuasão,
eíes têm uma gama e n o r m e o è tipos. Sua classificação se-
gue pontos de vista distintos, dependendo do teórico e do
método utilizado para sua validação. Seria impossível apre-
sentá-los todos, porque uma classificação criteriosa tenderia
ao infinito, já que infinitos são os modos de persuadir pela
linguagem. Qualquer classificação é inexoravelmente obso-
leta: quando construída, já deixou de abarcar uma série de
recursos que a linguagem comum inventa a todo tempo.
Nosso método, aqui, seguirá um caminho muito sim-
ples: apresentaremos os tipos de argumento mais comuns,
mais usuais no Direito, procurando deixar bem claro seu
aspecto eminentemente prático. Todavia, preocupamo-nos
108 ARGUMENTAÇÃO jURÍDlCA
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 109
com a apresentação de u m mínimo de embasamento teóri- expertos em meteorologia, para que nos passem u m diag-
co, caso o leitor tenha algum interesse mais aprofundado ou, nóstico que, sozinhos, com nosso conhecimento leigo, não
ainda, precise utilizar, em u m caso seu, dá discussão da ade- somos capazes de obter. Do mesmo modo, se temos u m
quação do valor de cada u m dos argumentos oü ifuhdamen- problema de saúde, consultamos u m médico especialista,
tos expendidos pela parte adversa. procurando nos fiar em suas conclusões e recomendações,
Preocupamo-nos em que o leitor desta obra, ao co- diante do quadro clínico que ele nos estabelece, após pedir
' nhecer ou aprofundar-se em cada tipo dé argumento jurí- exames, submetidos à avaliação de outros especialistas que
dico, tanto acrescente cada u m dos tipos de argumento a o realizam. Acreditamos na opinião do médico e do meteo-
seu discurso, refletindo a respeito de seu valor, como t a m - rologista porque confiamos, de algum modo, que eles so-
bém conheça técnicas de desarticulá-lo, quando utilizado mente venham a lançar manifestações oriundas de obser-
pela parte contrária. Então, por esse contexto nosso traba- vações científicas aplicadas à realidade colocada à sua frente:
lho não foge à veridicidade científica: estabelece as vanta- o corpo do paciente, as condições climáticas de uma região
gens de cada argumento na persuasão humana ao mesmo a uma época específica.
tempo que - pretendemos - ficará fixado em que medida
Dentro desse conceito, em u m mundo em que, cada
cada argumento pode tender ao sofisma, à falácia ou ao en-
vez mais, nosso conhecimento estreita-se em aprofunda-
godo em u m discurso.
mento sobre áreas tão mais específicas {non multa, sed mul-
Veremos, em capítulos posteriores, que a grande utilida-
tum), muito do que acreditamos nos foi passado por meio
de de conhecer tipos novos de argumento consiste n o fato
de manifestações de autoridades. Quando crianças, experi-
de o melhor discurso não ser aquele que trazargumentos
mentamos sensações diversas, desconfiando das afirmações
em Quantidade, mas sirn~DTTnetprincipaimerit£em_aud
que nos são transmitidas por quem já as viveu: colocamos o
nÕs heterogenèo5/-afhettlar"argüTfrentos QiversiHcadQsTevá-
dedo na tomada e sentimos o primeiro choque, e é raro
fãndo-se a repetição da técnica e seu esgotamentQ]7
aquela criança que teme u m cachorro sem que algum já
Iniciaremos, então, com o argumento de autoridade.
não lhe haja ao menos ameaçado u m ataque. N o transcor-
Este merece considerações mais aprofundadas, aqui por dois
rer do tempo, entretanto, vimos, pela impossibilidade de
motivos: primeiro, porque traz fundamentos que se apli-
experimentar e conhecer todas as áreas do saber humano,
cam quanto a outros tipos dele dependentes, que veremos
repousando nossa fidelidade em pronunciamentos estabe-
adiante; segundo, por tratar-se de u m dos mais relevantes
lecidos por aqueles que são, no senso COTium, reconhecidos
argumentos do discurso judiciário atual. Por assumir tal va-
como dotados de conhecimento que autorize a convincen-
lor, merecerá também algumas críticas, que se farão sem
te manifestação de opinião a respeito de assuntos determi-
querer ofuscar a importância ímpar que ele revela em nos-
nados: cremos que a luz tem massa e caminha em direção
so cotidiano. J J J z
curvilínea porque assim assentou Einstein, ainda que - ao
menos a este cidadão leigo - não conheçamos os meios de
colocar à prova essas afirmações.
A autoridade
Esse conhecimento técnico baseado apenas em decla-
Muitas das verdades que aceitamos estão baseadas no rações de autoridades consegue, refletindo em u m panora-
conhecimento de autoridades. Se procuramos saber a pre- ma mais amplo, criar uma verdadeira ditadura de autorida-
visão do tempo, confiamos na opinião de autoridades, de des, porque parece pouco sensato que um ser humano lo-
ARGUMENTAÇÃO fURÍDíCA
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 111
110
Q argumento de autoridade éjajribém chamado de ar-
gre refrear todas as colocações pronunciadas por aqueles
gumentum magister dixit ou ad verecimduim. Esta última d e -
que se estabelecem como dotadas de conhecimento apro-
nominação foi criada por John Locke^ Ele o definiu como
fundado. Por u m lado, o saber humano amplia-se c, por o u -
uma espécie de argumento utilizado para fazer prevalecer
tro, reduz-se o tempo das pessoas para que possam estabe-
seu posicionamento Í J U silenciar u m opositor. Significaria
lecer conhecimento e colher dados suficientes a respeito utilizar-se da opinião de uma terceira pessoa, que "construí-
das origens de cada matéria o u problema abordado, restan- ra seu nome" e ganhara sua reputação no senso comum
do a cada interessado a alternativa de estabelecer premis- como pessoa de certa autoridade. Segundo Locke,.^mapes-
sas ou conclusões baseadas naqueles que sejam donos de soa, quando adquire certa reputação ou autoridade na so-
uma experiência arraigada, ou que tenham reconhecidamen- cicdade, realça a modéstia dos terceiros, que pouco quesno-
te se dedicado a estudar determinada matéria em questão. nam o posiciótíaménto daqmrlos que Tem ossrqualificaçaó"
São eles os especialistas ou expertos. específíc3rDêSãlrianeira, qualquer um que não conheces-
Como aponta Douglas Walton', o estereótipo do pro- se a opinião das autoridades poderia ser colocado, em uma
blema da autoridade nos dias atuais tem sido composto discussão, como imprudente ou ignorante, fazendo com
pela figura do Big Brother, a criação de Orwell, em que uma que u m discursante adverso gozasse de maior crédito, se de
oligarquia fixava pensamentos e conceitos, por u m sistema acordo com a opinião daqueles que construíram bom nome.
de controle ferrenho, ditando às pessoas o m o d o de agir e Utilizar-se do argumentum ad verecundiam significa tra-
pensar. Exageros à parte, a força que tem o conceito das au- zer, em uma discussão, a opinião de um experto, que se pre-
toridades estabelecidas, por influência de fatores como ciên- suma tenha conhecimento aprofundado sobre determina-
cia, religião, mídia c imprensa em geral e cultura de massa d o assunto. Vejamos o exemplo abaixo:
contemporânea, faz com que o argumento de autoridade as-
suma, nas mais diversas áreas do conhecimento, força i n i - O réu não pode figurar no pólo passivo desta demanda,
gualável, em que vale nos aprofundar. porque, como mero entrevistado, não é legítimo autor de
Antes, porém, de fazê-lo, é necessário compreender o crime contra a honra em lei de imprensa. Se um jornalista
transcreve no jornal a entrevista com determinado persona-
conceito de argumento de autoridade. \ gem público e, nela, redige ofensas a terceiros, atribuindo
p' sua autoria à pessoa entrevistada, é ele, jomalista, o único
T responsável por eventual delito contra a honra, enquanto
mentuítuulM£ie£undiam ii não fizer inequívoca prova de que copiara, no texto publica-
do, fielmente aquilo que o entrevistado dissera. Ademais, o
Argumento de autoridade^é aquele que se utiliza d a l i - ^, entrevistado deve autorizar a publicação das ofensas proferi-
das - se é que as proferira -, caso contrário continua o jorna-
çãQ..de pessoa conhecida e reconjiecida em determir^Qa
f lista sendo responsável por todas as ofensas publicadas na
/rea do saber para corroborar a tese do argumentante. / imprensa. É assim que pontifica Darcy Arruda Miranda:
I^-I - •
' 1, Cf. W A L T O N , Douglas S. Appeal tn Expcrt Opinion, p. 2: "...Instead we
, 2. W A L T O N , Douglas S. Informa! D>gic a Handhook for Criticai Argumen-
have Io assume and guess and, very often, trust or reiy on the opinion of those «fiofi, pp. 172-3: " A denominação 'argumentam ad verecundiam' literalmente
who have presumably taken the efforl to study the matter - the experts. So Significa 'o argumento da modéstia' e foi John Locke quem pela primeira vez
we have to fix on or accepl certain npinions or bcliefs as the best informalion a usou para referir se a uma tática ou técnica que pode ser usada por uma
or advice we have to act on for the moment. But there is also a widespread P « s o a contra outra."
tendency to fix onto thcse beliefs that cannot be qiiestioned."
112 ARGUMENTAÇÃO lURÍDlCÃ ARGUMENTO DE AUTORIDADE 113

"[...] se nos conceitos emitidos pelo entrevistado hou- 1 seje comprovar) e o posicionamento da autoridade, o argu-
ver ofensa à honra de alguém, o ofendido deverá agir contra mento ad verecundiam aperfeiçoa-se.
o diretor ou redator-chefe do jomál. ou periódico [...! res- Mas o que fundamenta seu efeito suasório, sua capaci-
ponsável pela divulgação, tal seja a hipótese, caso não se dade de convencer?
prove, desde logo, que o entrevistado autorizara a divulgação
Grosso modo, a autoridade invocada apresenta u m aval
(...). A responsabilidade do entrévistado só se fixaria se t i -
para a veracidade do posicionamento sustentado pelo ar-
vesse dado a entrevista por escrito e 3 I Í apusesse a sua assi-
gumentante. A o citar Arruda Miranda, o argumentante do
natura. Ninguém pode ser responsabilizado pelo que não escre-
veu e não disse. E o repórter ou jornalista que publica ou exemplo acima acresceu ao seu discurso a opinião daquele
transmite uma entrevista, sem a cautela de sua autenticação que tem vasto conhecimento jurídico; o argumentante usa,
pelo entrevistado, principalmente quando nela se contêm então, da presunção de que qualquer manifestação do cita
expressões ofensivas a qualquer pessoa, assume a responsa- do jurista seja reflexo de seu saber reconhecido, e então o
bilidade pela divulgação se seu nome constar da publicação toma de empréstimo para fundamentar sua tese, se seus po-
[...], como autor da entrevista e, caso contrário, responsável siáonamentns forem de fato coincidentes.
será o diretor ou redator-chefe" {Comentários à Lei de Impren- Mas há outra vantagem no uso do argumento ad vere-
sa: 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. II, p. 681; II, cundiam, e ela se aplica muito mais especificamente ao
p. 681).
discurso judiciário. Trata-se da presunção de imparcialida-
Pela lição do eminente professor, indiscutível se faz a
de. Todayezjque u m autor expõe seu argurnento na 3X3dé-
ausência de responsabilidade criminal do entrevistado, ao
tícaprõcessual, parte déTãin p o n t o deTl5ta~cnmprümetido
menos no estágio probatório atual.
com os interesses que defende, porquanto, comDTáTárèse-
rhra comprovar a veracidade de sua tese, o autor da ar- |nos em lições anteriores, assume acondição de parteAsso
não condiciona sua argumentação à falácia, mas sempre
gumentação judiciária recortou lição de professor conheci-
com que o interlocutor, que deve ser convencido, v i n -
do e reconhecido em sua área de atuação. Talvez as idéias do
le de certa maneira essa parcialidade à possibilidade de
argumentante fossem pouco aceitas se não apelasse à au-
stência de uma argumentação que leve ao engodo,
toridade do jurista citado, e não há dúvidas de que o poten-
cial suasório de seu discurso aumentou incrivelmente alu- lando o argumentante lança mão do posicionameato
Hrtoridade7-piiiR'Ípalinente aoTecortar trecho de
dido argumento. Se aumenta a capacidade suasória, não há
JfftJJüblicada havendo"ãIgúrri~térripo, em grande medida
c^úvidas de que se trata de u m eficiente recurso e, portanto,
rsá" impiessaDT^poTsysabe ò ]ekbjDqu£^qüelã~õpri
seu uso é recomendável.
lo> deíendidã'pêIã~autoridÍde, não atende a interesses
Adtacão da doutring representa o usojnais c o m u m de
itros que naõ a veracidade cieritíficá, ao menos presumi-
argumento de autoridade em nosso discursõTíítense alüal.
RèTPrrtrg^gTTrim^sél^iofes^^^^
obrãs~3é"notório vaíorciêntífico, buscam-se manifestações I^iTaTito, o fortíssimo efeito suasório do argumentum
suas que estejam de acordo com a..teÊÓóstãbeleada^Jilo (^dverecundiam repousa em u m duplo efeito: db u m lado, a
argumenta/ite, de tal modo que prevaleça sua opinião con- '^*^^ÍíiiÇüu de conheciment_o e, de outro, a presunção de ímpaf-
trária em relação^' parte adversa. ,^^«^í^^_da^utoridade e de seus posicionamentos acerca
Quando se estabelece essa coerência entre a tese esta- ria tese que sé pretende comprovar.
belecida pelo autor (ou ao menos u m ponto forte que se de-
114 ARGUMENTAÇÃO fURÍDlCA ARGUMENTO DE AUTORIDADE 115

Ciência e verdade Crossen é a mania de farelo de aveia {oat bran) da década de


1980. Em uma época em que as pessoas estavam começando
O que se busca no (bom) argumento de autoridade é, a preocupar-se com as influências do colesterol nas doenças
principàmêntè7"qüê~êT^^ cardíacas, os resultados de uma pesquisa parcialmente pa-
trocinada pela Quaker Oats Company foram publicados por
éõri^yel e cientitico. Fm nossa socieaade mpdemaj os m o -
uma equipe da Northwestern Üniversity no Journal of the
delos d è n f i F i c õ r i s t ã o espalhados por todas as áreas do American Dietetic Association. O estudo mostrou que, de 208
conhecimento, e as reflexões subjetivas, ainda que sorra- casos, adicionar o farelo de aveia a sua dieta resultava em
teiramente apareçam em considerações de lógica informal, significativa queda da taxa de colesterol. A Quaker, conse-
são rechaçadas como depoimentos apaixonados, de pouca qüentemente, passou a anunciar seu cereal com farelo de
técnica. Descartes procurou modelos geométricos de ra- aveia como um alimento redutor de colesterol, que baixava
ciocínio, iniciando com premissas indubitáveis e represen- os riscos de ataque cardíaco, e a mídia acatou tal alimento
tando inferências unicamente por etapas que não poderiam como um miraculoso ingrediente na comida. Farelo de aveia
foi adicionado a mais de trezentos produtos, incluindo bata-
levar do certo ao falso; assim, u m raciocínio poderia tender
tas fritas, alcaçuz e cerveja. Em janeiro de 1990, um novo es-
ao infinito sem que se afastasse de uma veridicidade c o m - tudo foi publicado por dois pesquisadores de Harvard, con-
provada. cluindo que o farelo de aveia não funciona quase nada no
Ocorre, aparentemente, que, em nossa técnica diária, combate às doenças cardíacas.
não temos tempo, espaço ou conhecimento hábil para de-
senhar essas mesmas etapas, então nos contentamos em f i -
Fhra o consumidor leigo, que desconhece até mesmo a
xar raciocínios já prontos, de fontes seguras. Não é difícil,
essência do colesterol, a seriedade de u m estudo publicado
entretanto, imaginar que essas fontes seguras, as autorida-
em jornal especializado, com a chancela de uma universi-
des, ainda que representem o raciocínio científico tão an-
dade norte-americana, com certeza representa autoridade
siado por nossa sociedade imediatista e tecnológica, p o -
: 0u ciência. Não interessa saber, no exemplo, se o farelo de
dem constituir uma falácia: a de impor u m raciocínio como
;àveia tem ou não efeito na prevenção das doenças cardía-
verdadeiro apenas porque ele provém de uma fonte segura
yças, mas é importante notar que os dois estudos, cienflfi-
ou renomada.
yps, contrapuseram-se frontalmente. A busca da opiniãa de'
Em primeiro lugar, é necessário deixar evidente que, '"^ma autoridade, ainda que em estudo aparentemente cien-
mesmo em bases científicas seguras, as fontes podem trazer ;Jí&co - fixe-se - não é cem por cento segura.
resultados equivocados e contraditórios. Vale a pena copiar, I Mas ainda que longe da exatidão, a ciência a persegue.
neste ponto, o exemplo pertinente fixado por WaltonL ' A s ciências humanas estão em franca desvantagem nessa
. busca, porém continuam na batalha. Por isso é natural que
Muitas pessoas acatam essas descobertas científicas e o raciocínio do magistrado guie-se, na atividade jurídica e
opiniões com tamanha seriedade, e agem conforme elas, na interpretação do Direito, pelo raciocínio que se aproxime
mesmo lembrando que essas opiniões freqüentemente m u -
da construção científica e, daí, da exatidão. Esta, evidente-
dam com rapidez e podem ser frontalmente contrapostas
por outros cientistas. Um caso excelente descrito por Cynthia mente, não é plenamente alcançada, ao menos no Direito,
. mas o argumentante, quando lhe aprouver, defenderá a
exatidão do raciocínio científico jurídico e, não podendo re-
3. Appeal, cit., p. 6. construí-lo todo, etapa por etapa, até a premissa mais re-
116 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ARGUMENTO DE AUTORIDADE 117

mota do ordenamento jurídico, apresenta u m texto com fica, e, portanto, vale também na argumentação jurídica
presunção de veracidade científica. como meio de convencimento objetivo, que procura impor
Na interpretação e aplicação do Direito, como ciência, ao leitor, desde que adequada a opinião da autoridade à tese
o julgador vai sempre procurar o embasamento com maior defendida, a validade do raciocínio exposto.
quantidade de provas, o que permite lembrar a advertência
de Kant^em Crítica do juízo*: ^-
A confiabilidade da opinião da autoridade:
Tpda argumentação..• nãodeve somente persuadir, se- quia nominor leo
não convencer ou ao menos contribuir a convicção... porque
de outra forrnàõnmêlêcto fiça^e convencido^ Alfredo Gaspaiydefíne_grgumento de autoridade como
sendo "àrgütfíêritopsicológícode grande peso (e"fãntoqúe
Para contribuir para a convicção, a argumentação, q u a n - a!güns~ãutores o tratam"Vomo argumento quase^lógicõou
d o se imiscui na ciência, busca seus modos de convenci- mesmo lógico), aquele em que o orador abona sua opinião
mento. E a ciência recomenda a localização e a indicação de rio êrísinamefTfcrde urrrãutor renomado. ou de urp tpxtn
boas fontes para que se exponha u m raciocínio válido em _c'5risaffl"ãdã"Fõrã de qualquer suspgiçáo"". Como argumen-
seu âmbito, como ensina Marchi, dissertando sobre a veri- to, não há dúvida de que o melhor é sempre aquele que
dicidade científica^: conta com maior aceitação do auditório, mas é pouco pro-
vável que se possa definir o argumento magister dixit como
Esta interpretação ou entendimento da fonte, todavia, sendo apenas aquele que provém de fonte fora de qualquer
deve quase sempre ser comprovada substancialmente pela suspeição. Suspeitas sempre existem, ainda que consagra-
citação ou referência a outro (ou outros) autor, cuja opinião dos os textos citados.
embase (parcial ou inteiramente) aquela interpretação.
Por isso, não basta u m texto de uma autoridade para
Este outro autor, porém, não pode ser qualquer um.
comprovar u m a tese, devendo ser ela apenas parte de u m
Deverá ele constituir-se, de preferência, em um cientista-ju-
rista renomado, já reconhecido e legitimado como tal na co- raciocmio mais complexo e aprofundado do próprio ar-
munidade científico-jurídica. gumentante. A nossa praxe judiciária, entretanto, t e m j i i - .
A exigência desta prova substancial se justifica pela na- pertrofiado o valor do argumento magister dixit, transfor-
^ tureza da ciência jurídica. mando-se ele, indevidamente, algumas vezes, em único
Não sendo ela uma ciência exata, isto é, inexistindo uma recurso persuasivo de discursos judiciários, fonte e f i m de
prova inquestionável do resultado proposto (como 2 + 2 = 4), todas as discussões jurídicas práticas, conforme exemplo
não há como se provar uma solução (ou afirmação) propos- a seguir.
ta a não ser embasando-a nos "resultados" (= interpretações Conta-se que o leão estava faminto e procurava caçar
ou opiniões) de autores já legitimados cientificamente. a zebra, mas não conseguia. A zebra embrenhava-se na
mata, corria e corria; volta e meia a caça, na fuga, invadia
Não resta então nenhuma dúvida de que a opinião do o rio, onde, com pernas mais longas, escapava do rei da
experto é reiteradamente necessária na metodologia cientí- floresta. Furioso, o felino, sob os conselhos sábios da leoa,

4. Apud C A S Q O , Vincenzo. Gramática dc Ia argumentación, p. 250


5. Guia de nwindologia, cit., p. 38. 6. Instituições dc retórica forense, p. 63.
118 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 119
propôs ao crocodilo uma união dc esforços: o crocodilo e
maior acesso à mídia': o médico, o advogado, o professor, o
sua esposa espreitariam a zebra na água, enquanto o leão
nutricionista que mais aparece na televisão ou que é mais d i -
e a leoa a pcrseguiriam em terra. Não haveria escapatória.
vulgado pela editora por ser autor de best-sellers da área téc-
C o m a união de esforços, foi realmente impossível, e a ze-
bra sucumbiu à boca do crocodilo. Chegou o momento, nica, com pouquíssima originalidade científica. Acontece.
então, de dividir a presa entre os quatro caçadores, e o leão Fbr isso, ainda que seja absolutamente funcional, na ar-
anunciou: " D i v i d i m o s a zebra em duas metades. A p r i - gumentação, o apelo à autoridade, aproveitando-se da h u -
meira metade será dividida igualmente: u m terço ao cro- mildade do interlocutor a reconhecer seu desconhecimento,
codilo, por ter matado a caça; outro terço a sua esposa, por ou, ao menos, um conhecimento menor a respeito da maté-
ter feito a tocaia; o último, à leoa, por haver planejado t u d o ria sobre a qual a autoridade disserta, alguns princípios de-
com perfeição... e a outra metade é minha, porque meu vem ser observados para que não se tome (apenas) a fonte
nome é Leão." como absoluto meio de atribuição de valor a uma conclu-
são, já que até essa fonte pode ser algo duvidosa.
Quia nominor leo. A autoridade do leão determinou-lhe
a razão, ainda que sua explicação não fosse lá a mais razoá- Quando o argumento de autoridade desvirtua-se de sua
vel. Se pensarmos em argumentação como modo de levar à função de p r e ^ n ç á o razoável de certeza da o p i n i ã o o e u m
persuasão a qualquer preço, podemos nos aproveitar de verBadeiro cxpert parabuê se de maior credíto^a umajmse,
uma única opinião de u m autor consagrado para sustentar passa a constituir a falãciá dá aüTondããê.
nossa tese, como absoluta dispensa de nos aprofundarmos
em o que levara a autoridade a concluir desta ou daquela
maneira. Estabelecendo a validade do argumento
Se u m médico consagrado me prescreve certo remé-
dio, eu o tomarei sem questionar: uso o remédio porque A regiade validade do argumento de autoridade é esta*:
me foi recomendado por u m profissional reconhecido da
Medicina. Mas, se ele não me faz nenhum exame, clínico X (alguma pessoa ou organização que deve sabê-lo) disse
ou laboratorial, se sua consulta é rapidíssima e eu posso jqueY. ~
Portanto, Y é verdade. *
perceber que sequer deu-se conta de meu estado de saúde,
poderia aceitar aquele mesmo medicamento sem exigir do
profissional explicação minimamente aprofundada a res- 7. o acesso à mídia, que coloca com grande agilidade nomes em evi-
peito dos motivos que o levaram a recomendar-me o trata- dência, conduz (ou pode conduzir) à falácia da popularidade, pois com facili-
mento? Parece evidente que não. dade as pessoas embarcam nas crenças da maioria, como explica Govier
Trudy: "A claim may be widely belleved only because it is a common preju-
O problema agrava-se quando se nota que, nos dias de dice. Thus, the fact that it is-widely believed ís irrelevant to its rational accep-
hoje - permita-nos que seja dito - algumas empresas e meios tabUity. Argumentsin wich there is a fallacious appeal to popularity are based
on prcmises that describe the popularity of a thing ('Everibod/s doing it',
de comunicação elegem ou até mesmo criam autoridades
'Everibody believes it'), and the conclusion asserts that the thing is gook or
que estão longe de ser equiparadas a outros especialistas, sensible. The arguments are fallacious because the popularity of a product
estes com alto gabarito e conhecimento em suas áreas de or a bielief is in itseíf irrelevant to the question of ils real merits. The fallacy of
estudo e atuação. Não é raro que os grandes sábios, real- appealing to popularity is also sometimes called the bandwagon fallacy, or the
fallacy of jumping on a bandwagon" (A Pracliail S/iídy of Argument, p. 189).
mente especialistas, sejam preteridos por outros que têm
8. Cf. WESTON, Anthony. Lis claves de Ia argumentació)}, p. 55.
120 ARCUMENTAÇÁO lURÍDICA
ARGUMENTO DE AUTORIDADE
121
C o m o argumento, então, vale a afirmação porque p r o -
güonlc, em consonância com sua tese. U m argumento de
vém de alguém que deve sabê-lo. Mas há várias maneiras
autoridade, para que seja válido, deve ter respondidas afir-
de pôr à prova o argumento dc autoridade;^ para que ele
mativa ou satisfatoriamente a todas estas questões:
não se transforme em uma falácia. Apenas a título de exem-
1. A questão do experto: Q u a l é o crédito de E como
plo: sabe-se que, quando se faz a citação de determinado uma fonte científica?
' autor em u m texto jurídico, indica-se o ano da edição da obra
2. Questão da área: E é experto na área em que se en-
transcrita. Fbr que isso é feito? Ftirque a autoridade pode contra A ?
mudar seu posicionamento^ c m obra posterior, retificando-o,
admitindo u m engano ou uma ilusão passageira. Assim, u m a 3. Questão da validade da opinião: O que E disse que
realmente implica A ?
citação de pessoa famosa pode constituir u m posiciona-
mento cientificamente errado, mas se tal falha não é a p o n - 4. Questão da confiabilidade: E é pessoalmente confiá-
vel como uma fonte?
tada no contraditório, passa como boa afirmação, argumen-
to persuasivo. 5. Questão da consistência: A está de acordo com as
afirmações de outros expertos?
Q u e m se depara com o argumento de autoridade u t i l i -
6. Questão das provas: A assertiva A é baseada em
zado pela parte contrária deve colocá-lo à prova, estabele- provas?
cendo sua validade. Mas não só: para aquele que, mais que
seduzir, pretende realmente convencer com técnica, é reco- A resposta a essas questões garante a validade do ar-
gumento ad verecundiam, afastando-o da falácia, do engodo
mendável que também questione a validade do argumento
do pronunciamento sem validade científica. Analisemos ra-
de autoridade que utiliza.
pidamente cada uma delas.
Faremos mais algumas considerações importantes a
respeito desse tipo de argumento e de sua validade porque,
como já adiantamos no início deste capítulo, dessas carac-
terísticas do argumentum ad verecundiam outros tipos de
argumentos também se aproveitam, c então nos poupare-
mos, mais adiante, de dissertar sobre elas. Vale já, entretanto,
considerarmos o modo de aferição de validade da conside-
raçSo da autoridade, por meio de seis perguntas, de Walton,
que apresentam cada uma u m dos requisitos para a validade
pretendida.
Imaginemos que u m experto (E) apresente determina-
da afirmação (A), que é aproveitada c m discurso de u m ar-

9. "If |the cited expert) is a great authority and the consensus of autho-
rities is large, then the argument becomes sironger. But it's never 100 percent
conclusive. AII the aulhorities in the world might agree on somcthing that
they later discovcr to be wrong. So we shouldn't think that something must
be so because the aulhorities say it is" (GENSLER, Harry. Logic: Aitalyzingand
Appraismg Arguments. Apud W A L T O N , S. Appeal. cit., p. 234).
Capítulo VIII
Argumento por analogia:
o uso da jurisprudência
A regra da justiça impõe que se concedam soluções
idênticas para casos essencialmente semelhantesTMais per-
suasiva a analo^aquanto mais esti'elra'3 proximidade entre
o caso concreto e o paradigma, '

A analogia e a ilustração

O argumento por analogia é aquele.ejri que se transita


de u m caso concreto a outro, arrazoando-se que^_deyido30
fato de serem ambüs DSTasos^serTrelRãntes em alguns aspec-
tos, são também serríelFiãntes^i qutiosTSãísiE^gdScgsJ.,
Vejamos o exemplo abaixo, de texto de Chico Buarque-:

Oh, pedaço de mim


Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um batco
Que aos poucos descreve um arco
£ evita atracar no cais.
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade, é arrumar o quarto
Do filho que já morreu.
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim

1. Cf. W E S T O N , Anthony. Ias claves, cit., p. 47.


2. Ópera do malandro, pp. 171-2.
144 ARGUMENTAÇÃO lURfOlCÃ ARGUMENTO POR ANALOGIA 145

Leva o que há de ti No contexto jurídico fazemos uma distinção entre a ana-


Que íi saudade dói latcjada logia'pFopriamcnte dita e o exemplo e a ilustração, sendo a
É assim como uma fisgada primeira mais específica, tratada neste capítulo. No próximo,
No membro que já perdi'.. • , , . abordamos exemplo e ilustração, também relevantes.
N o discurso judiciário, o argumento por analogia assu-
Na conhecida ietra, para enunciar a dor causada pela me relevância ainda maior, porquanto tem-se como regra
saudade, o autor utiliza metáforas e comparações, demons- evidente a dc que o fundamento da justiça é o de tratar de
trando semelhanças entre aquele sentimento e as imagens maneira idêntica situações essencialmente semelhantes.
por ele criadas. A dor da perda é muito bem revelada pela
imagem daquele que arruma o quarto do filho que já morreu,
ou da fisgada no membro que já perdi. Condições poéticas à Jurisprudência: analogia e autoridade
parte, é certo que o enunciador tem expressivo recurso a seu
favor, transmitindo sua mensagem com força que jamais A jurisprudência representa fonte do Direito, como
alcançaria se não sc utilizasse dessas imagens. construção contínua de entendimentos pelo Poder judiciá-
C o m as semelhanças havidas entre, de u m lado, a sau- rio. Sua utilidade repousa principalmenteno princípio^d.^
dade e, de outro, as imagens ali destacadas, pode-se dizer eqüidade, pnrgnpaJg^Hra H P V P transpnrTesuTfadPsequIva-
que o autor persuade a respeito da intensidade da dor que /Ientes a casos que, em essência, sejam semelhantes.
sente, o que era, finalmente, sua intenção. Ta! como no tex- O uso da iuriaprudência transtorma-se^eirTargumcnto
to abaixo (que tem cunho argumentativo), a imagem, cria- a simili (ou por ana!ggia)nã^TTTedttía]^ qué^ determinado
da pela descrição lingüística, seduz muito mais que qualquer julgado é utilizadiLçqmo parâmetro ou paradigma para o rp-
outra explicação que se possa conceber a respeito do tema suitado gire se pretende alcançar. Abaixo temos um exem-
que se desenvolve: plo desse tipo ae argumentei
r
Anoiteceu e faz frio. Merde, voilà VHiver, é o verso que, Ao Órgão acusatório, que é, por (jefinição, pardal, não
segundo Xenofonte, cabe dizer agora. Aprendi com ele que se pode dar o poder de, por intervenção única sua, determi-
palavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa. Sou nar a prisão processual, pelo simples acréscimo de qualifica-
mulher, togo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, doras ao homicídio, antes de qualquer apreciação maior - e
^ se possível, fazendo parte de um poema.' imparcial - do Puder Judiciário.
Nesse sentido, colocar-se ao talante apenas da acusa-
ção a capitulação legal, e, por via de conseqüência, chegar-se
O ser humano raciocina muito pela semelhança, pela
à prisão processual obrigatória, representa total ilegalidade.
analogia. As comparações são sempre constantes, na con- Por isso, as decisõeg reiteradas do Supremo Tribunal Fede-
versa do dia-a-dia, na exemplificação (ainda que o exemplo ral, no sentido de que a capitulação por crime hediondo não
seja uma questão u m pouco mais específica), e, nesse con- vincula a prisão processual, a exemplo do quanto assentou o
texto, .g^rgumento_fljiüra/É por analogia, assume papel re- ministro Celso de Mello, no recente julgamento do Habeas
levante em qualquer discurso suasório. Corpus n' 80.719-4, que se recorta em trecho:
"[...j Entendo - tal como pude enfatizar na decisão que
concedeu a medida liminar - que os fundamentos subjacen-
3. T E L L E S , Lygia Fagundes Arttes do baile verde, p, 35. tes ao ato decisório emanado da ilustre magistrada da Co-
146 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA ARGUMENTO POR ANALOGIA 147

marca de Ibiúna/SP, que decretou a prisão cautelar do ora que não c coerente que, com u m mesmo ordenamento j u -
paciente, conflitam com os estritos critérios jurisprudenciais rídico a aplicar, situações idênticas sejam submetidas a tra-
consagrados pelo Supremo Tribunal Federal, em tema de tamentos diversos. Juridicamente,.é claro, pode-se defen-
prisão preventiva. der que a independência funcional do julgador permite que
Impende assinalar, desde logo, qüè á-configuração jurí-
ele faça de cada situação a interpretação que bem entenda,
dica do delito de homicídio qualificado como crime hedion-
do não basta, só por si, para justificar a privação cautelar da desde que devidamente arrazoada e, assim, justificável do
liberdade individual do réu. ponto de vista do Direito e da persuasão racional. Mas o ar-
O Supremo Tribunal Federal, a esse propósito, tem ad- gumento da jurisprudência, que se recorre da similitudc dos
vertido que a natureza da infração penal não se revela cir- casos, vai além: o desejo, inatingível, da homogeneidade da
cunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do aplicação do Direito, o que representa, antes de tudo, segu-
sfíííws libertatis daquele que sofre a persecução criminal ins- rança aos jurisdicionados. O anseio por essa segurança é
taurada pelo Estado. reconhecido em nosso ordenamento jurídico, a partir da
Esse entendimento vem sendo observado em sucessi-
própria Constituição Federal, que prevê (art. 105, I I I , c) a
vos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, ainda que
o delito imputado ao réu seja legalmente classificado como solução, pelo Superior Tribunal, do dissídio pretoriano, o u
crime hediondo (HC n!' 80.064-SP, rei. Sepúlveda Pertence, seja, a divergência entre os tribunais.
RHC n " 71.954-PA, rei. Min. Sepúlveda Pertence, RHC nl* Mas a jurisprudência reveste-se também, em certa me-
79.200-BA rei. Min. Sepúlveda Pertence) [...]."
dida, da forçada_£utoridade. Não a autoridade jurisdiciõnal
É reiterado o entendimento, tanto no Supremo quanto
nesse Superior Tribunal, que a lei dos crimes hediondos não apenas^.maS-a autoridade científica, tal qual exposta na lição
pode sobrepujar o princípio da presunção de inocência, sob anterior, _do argumento ad verecundiam.^E\a tem também,
pena de utilizar-se a capitulação da denúncia para, parafra- como fator suasório, a presunção de que o relator do julga-
seando o ministro Celso de Mello, presumir-se a culpabilidade do invocado como paradigma bem conheça o Direito (jura
do réu, assim antecipando-lhe a prisão penal, o que seria novit cúria) e, como conseqüência, tenha pouca probabili-
construir, per saltum, ilegal antecipação, por óbvio aleatória, dade de construir u m mau pronunciamento em questões
do veredito do órgão competente para julgar o mérito da jurídicas. ^
ação, neste caso um Conselho de Sentença popular, que
nem sequer está formado. Conforme se sabe, tem em tese maior efeito suasqjio •
um julgado de u m tribunal superior que a decisão de u m
Recortando o julgado, o argumentante, sem necessitar único magistrado de primeiro grau de jurisdição, porquan-
er^nciar - porque essa é a força do próprio argumento a si- to presume-se (como ocorre quase sempre em matéria de
mili - , requer a seu caso tratamento idêntico àquele que i n - argumentação) que o arcabouço científico-jurídico do m i -
voca como paradigma: se o ministro do STF, em julgamen- nistro do Judiciário seja maior que o do magistrado em iní-
to de u m processo específico, decide que a capitulação legal cio de carreira.
não é suficiente para a decretação da prisão cautelar, esse Se a jurisprudência tem como um de seus prismas o
princípio deve alcançar todos aqueles que se encontram nas argumento magister dixit, especialmente quando recortada
mesmas condições, caso contrário o Direito se afastaria de dos tribunais superiores, está ela, como argumento, atrela-
seu ideal maior, a isonomia. da às condições de validade elencadas na lição anterior,
Essa analogia é, portanto, implícita ao recorte da juris- para o pronunciamento ad verecundiam. Mas prevalece a
prudência na argumentação e muito segura, na medida em analogia.
148 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ARGUMENTO POR ANALOGIA 149

Uso da jurisprudência: quantidade e qualidade dos procedimentos, uma vez que o computador ocuparia o
lugar do homem no mero processamento de dados.
Como ocorria com o argumento de autoridade, o uso A essência da analogia é a aproximação desses valores
do argumento a simili pode seguir, regfcfs para maior efi- díspares, para que seja eficiente, persuasiva ao interlocutor
ciência. Cumpre esclarecer que essas regras, antes de bus- a proporção que se pretende fixar.,Daí que a qualidadedes-
carem a lógica formal, continuam na esteira do quanto nos sa comparação de distintos importa muito mais que suy'
propusemos desde o início deste trabalho: preocuparmo- quantiÜãde.y
nos com a persuasão do discurso. E o discurso persuasivo é Quando tratamos, então, da citação da jurisprudência
o discurso sólido, aquele em que se afastam as falácias, os como argumento, temo-na por dois prismas diversos: se
enganos, seguindo-se u m percurso que, embora possa sem- compreendida como persuasão ad verecundiam, como ex-
pre ser contestado, faz-se coerente. plicamos no momento oportuno, é muito valorosa que se-
A analogia, conforme ensina Perelman*, estabelece uma jam, em uma argumentação, expostos vários julgados, de
proporção: íí está paraTí, assim como cbStâ parãíí. E5sá~pro- tribunais diversos, para demonstrar que u m julgado, que
porção é assimétrica, portanto dístihgue-se da matématica, se elege como opinião de autoridade, tem apoio em p o -
em qüe~são sempre estabelecidas proporções de'5imetna, sicionamento de autoridades diversas. Busca-se então a
de valores iguais, entre elementos homogêneos. Chama idéia de unanimidade do posicionamento defendido, na
se, na lógica informal,/oro a relação conhecida (entre c e d, mesma medida em que se persuade o julgador, qualquer
no exemplo) e tema a relação menos conhecida, objeto da que seja, que decidir de forma diversa seria ir contra uma
discussão. maioria, o que nunca é recomendável, ao menos no senso
Ibla assimetria dos valores existentes na proporção es- comum.
tabelecida pela analogia (como relacionar, diretamente, para Entretanto, ainda que se possa firmar o entendimen-
nos utilizarmos do primeiro exemplo deste capítulo, figuras to de que é relevante encarar o uso da jurisprudência como
tão díspares como a dor da saudade e uma fisgada no membro argumento de autoridade, o excesso de julgados recorta-
que já se perdeu"?), rpr^n^r^Ptig^ fjpp H P argurppnff^^^Ãõ vg?^ dos em u m discurso judiciário (como se vê em petições que
série de idéias menores, que comprovejjia proporção '^As- abusam do utilíssimo recurso de repertório de julga<jós
tente em campos diferentes^. armazenados em C D - R O M ) raramente contribui para a
^ Mesmo que alguns leigos possam sustentar o contrá- persuasão. Em u m auditório mais selecionado, sabe-se
rio, não existe em nossos foros dois processos, dois casos que o trabalho intenso do Poder Judiciário produz decisões
idênticos. Melhor para nós, operadores do Direito, pois se em grande número, e então não é bem a quantidade que
assim não fosse a inteligência humana seria dispensável representa fator de convencimento no recorte da juris-
prudência.
Ela persuade ppl.i nutoridnfin Hn órgão prolat^)- (tribu-
4. Cf. Lógica jurídica, pp. 176 ss.
5. " O que faz a originalidade da analogia e o que a distingue de uma nal mais respeitado - como argumento de autoridade), gor
identidade parcial, ou seja, da noção um tanto corriqueira de semelhança, é sua atualidade e pela proximidade entre foro e tema, em que
que em vez de ser uma relação de semelhança, ela é uma semelhança dc relação. estas últimas caractensricas^ffltüfl/ídflde e proximidade) são
E isso não é um mero trocadilho, pois o tipo mais puro da analogia se encon-
tra numa proporção matemática..." (CRAZALS, M. Apud P E R E L M A N , C . Tra-
,valores intrínsecos ao argumento por analogia.^
tado, cit., p. 424).
150 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ARGUMENTO POR ANALíX'.lA 151

Segue: valor e uso da jurisprudência Imaginemos que u m professor entre em sala de aula e
diga aos seus alunos que, como seu livro-texto tom toda a
Portanto, o melhor elemento do.uso da jurisprudência matéria daquele dia exposta em detalhes, melhor do que
é o nível de proximidade entre foro e temcL. ou seja, entre o ele poderia recriar em nova elaboração, poupar-se-á de dar
caso que se discute e a solução que a ele se pretende dar, uma aula convencional e passará, durante cinqüenta m i n u -
refletida em u m acórdão paradigma, isso serve de alerta aos tos, a ier o livro de sua autoria, conclamando a atenção dos
argumentantes mais afoitos, que muitas vozes constróem estudantes. O que estes fariam? Certamente se distrairiam
discursos escritos repletos de recortes de ementas, que pou- ou abandonariam a aula. Embora o conteúdo do livro seja o
co contribuem para a efetiva persuasão do destinatário. mesmo ou até melhor do que aquele que o professor pode-
As ementas são resumíí do julgado, que geralmente vêm ria recriar em aula, a leitura da transcrição é desinteressan-
em letras em destaque, nos acórdãos dos tribunais. Permi- te. Por isso toda citação longa é pouco recomendável. Todo
tem, e bem, a pesquisa para o interessado, mas raras vezes ouvinte ou leitor merece a cortesia da originalidade.
são eficientes no discurso argumentativo em si, salvo em ca- Dosar a citação na jurisprudência c mais um trabalho
sos especiais. Em geral a ementa de julgado toma-se recurso de coerência argumentativa. Se muito curta, ela perde seu
persuasivo em dois casos diversos: quando o julgador é lei- valor de analogia e não persuade o interlocutor. Se muito
go e não se interessa por entender mais que o perfunctório longa, desestimula a leitura o u a atenção do ouvinte, e, por
necessário para sua decisão {no caso de questões eminen- mais detalhada que seja, cairá no vazio (muito provavel-
temente jurídicas no tribunal do júri) ou quando a questão é mente, no texto escrito, o leitor não terá o menor escrúpulo
tão incontroversa que não merece, na coerência do discur- de pulá-la, partindo para o próximo texto).
so, maior aprofundamento, reservando-se então mais espa- O mais recomendável, no uso da jurisprudência, é que
ço para temas de menor certeza ao interlocutor. se escolha o acórdão paradigma e este seja transcrito em
Mas u m p o n t o discutível para aquele que usa a juris- detalhes, o quanto for imprescindível para a comprovação
prudência é a questão de sua extensão. Se, pois, desacon- do paralelismo. Mede-se essa necessidade pelo nível de
selha-se o uso de meras ementas e recomenda-se grave- aproveitamento que as idéias copiadas têm no próprio dis-
mente a comprovação da estreita relação entre tema e foro, curso do argumentante, antes ou depois da citação. ,
ou entre caso concreto e acórdão paradigma, entende-se
que o julgado paradigma deva ser transcrito na íntegra, o u ,
ao menos, em longo trecho seu, para que se possa com- Combatendo o argumento de analogia
preender a relação de paralelismo atinente a esse tipo de ar-
gumento. Essa idéia seria contraposta a uma grave recomen- Ibra combater o uso da analogia deve-se desconstituir
dação dos professores de redação, os quais sempre aconse- yri nn^jjnjii príralfrl/smo entre foro e.tema que a p.irtf r n n -
lham a que se evitem longas transcrições. .trária apresenta^
Realmente, qualquer transcrição ou citação ipsis litteris Pode-se assim proceder ao cobrar se da parte contrária
conta com mínima atenção do leitor. Todo interlocutor pre- demonstração eficiente do paralelismo que pretende com-
tende originalidade, e, por assim dizer, não gosta de ter o provar. Quem recorta jurisprudência em ementas raramen-
trabalho de ler (ou ouvir) aquilo que o autor/argumentante te faz a proximidade suficiente que devem ter caso e para-
não teve o trabalho de elaborar, mas apenas de copiar. digma para que se aceite o julgado. Todavia, essa ausência
152 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

de requisitos suficientes tem de ser mostrada àquele que


* deve ser persuadido, caso contrário, poí.inércia da argu-
mentação oposta, a analogia acaba se perfazendo em efi-
ciência.
Também é possível, em busca da desconstituição da-
.quele paralelismo, demonstrar cabalmente a própria dispa-
ridade entre foro e tema. E isso não é nada raro: há excesso
de recortes de julgados que se aproximam tão pouco do efe-
tivo conteúdo do argumentante que não é difícil demons-
trar que há u m mero tangenciamento ou até mesmo contra-
dição entre o julgado citado e a tese que se pretende fazer
prevalecer. Se, por exemplo, u m autor recorta uma juris-
prudência que diz: "Age em estado dc necessidade quem,
sem maus antecedentes, necessitando de calçados, subtrai
u m par em estabelecimento comercial"^ traz efetivamente
poucos dados para permitir a analogia, pois não informa se
o necessitar de calçados do julgado significa não ter o que cal-
çar ou então necessitar de calçados mais novos, em melhores
condições. Se o julgado, na íntegra, esclareceu ser lícita a
primeira interpretação e o retor pretendia comprovar a se-
gunda {calçados mais novos), evidentemente estabeleceu
falha em sua argumentação.
O último meio de se combater o argumento a shnili é
achaFoutra analogia que possa lazer frente à p r i m e i r a n ^ o
exemplo da jurisprudência, vários julgados existem, defen-
dendo posicionamentos díspares, e os bons repertórios já
preparam suas antíteses. É meio desgastado, porém útil, i n -
dicando que também deva ser hora de realçar o aspecto a
verecundiam de que se reveste a jurisprudência.

6, TACrim - SP - Ap, Crim, Rei. Nelson Schiesari - JUTACRIM 68/387.


Capítulo IX
Exemplo, figuratividade
e üusira^gsLdo-disairso
o recurso à nguratiyida(je^cxemplos e ilustrações)
pode ser fator de eficiente aproxirnãçâO 30 uuviiiH', desde
que conhecidos séiis limites na progressão aT^pitnêntativa.
Uma figura inci-i^v'^+^a:s-4j^rpfaê fi mti''" Tais pre-
sente ao inTetlõcütpr que um conceito ou uma progressão lo-
'gica alinhavada como argumento.

O exemplo

O argumento pelo exemplo é largamente conhecido. E


comum que, nas discussões qúe mais envolvem o senso co-
mum, os discursantes procurem exemplos. Certa vez um alu-
no bem observou: "Preste atenção às conversas que saem
n u m bar, quando os argüentes já têm o pensamento turba-
do pelo álcool; o que mais se ouve, nas exaltadas argumen-
tações, é o famoso 'por exemplo...'"
Os quase ébrios reteres de botequim sabem, ou ao
menos intuem, que o exemplo serye^para confirmar uma
regra e é efetivamente u m excelente recurso para o con-
vencimento, ainda que naquele ambiente esse resultado
seja alcançado mais pelo t o m de voz e pela disposição do
ouvinte de manter ou não amigável o necessário diálogo.
Mas o exemplo, bem colocado, funciona em grandes ar-
gumentações, como se pode ler no texto de Bernardino
GonzagaL

Ora, a Inquisição equiparou-se a uma Justiça Penal, de


sorte que naturalmente adotou os rnodelos que vigiam nos
tribunais laicos. Eram métodos processuais que mereciam
total beneplácito dos mais renomados juristas e que estavam

1, A iH^uísiçflo cm seu mundo, pp. 120-1,


154 ARCUMENTAÇÁO JURÍDICA EXEMPLO. FlGURATIVIDAnE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 155

de acordo com os costumes. Os homens que compunham a no caso da leitura do Evangelho, tanto melhor, porquan-
Igreja eram homens daquele tempo c não podiam deixar de to sua aceitação (se perfeito o exemplo) é ainda mais
submeter-se às suas influências, |-..J imediata.
Km todo o desenvolvimento da humanidade, até mui- ^Exemplo é espécie de argumento que vai do fato à re-
to recentemente, as práticas repressivais sempre foram se- ^gra^Ê, então, modo do argurnentaçao diterente da analogia,
veríssimas. Crisío morreu entre ãois ladrões. Ao penalista porquanto esta compara dois casos para destes extrair uma
não passa despercebido o fato c que dois homens, um dos
pretensão ou regra final. O exemplo pode servir ora ape-
quais aliás na última hora mostrou ter boa índole, sofre-
ram o tremendo castigo da crucifixão, apenas por serem nas como uma ilustração - como diremos mais adiante ora
ladrões. como efetivo meio de sc comprovar regra útil ao discurso.
O procedimento dos tribunais inquisitoriais é, para a Fhra que u m argumento desse tipo efetivamente ctim-
mentalidade atual, inaceitável. Mas, apesar disso, represen- provc a regra ao leitor, é necessário que ele cumpra alguns
tou um abrandamento perante o que se passava nos seus requisitos.
congêneres do Estado. Não podemos julgar o que eles fize-
ram sem focalizá-los como órgãos condizentes com certo
teor de vida, investidos de uma missão sobrenatural e social
Requisitos do exemplo
a cumprir, que se ocupavam de crimes a seus olhos gravíssi-
mos e que terão agido, em regra, com zelo, equilíbrio e ho-
nestidade. O exemplo exige que exista falta de consenso entre a
regra que se pretende comprovar, caso contrário deixa He
^er pxemjTlo para ser mpr^qt;tmç^Õ/tFn^ Ijnguagpm
A tese do autor, grosso modo, é a de que, se entende-
rOp-iqiiPirr"rh;irqp aifibos pelo mesmo nome. .
mos os procedimentos inquisitoriais hoje como inaceitáveis
do ponto de vista penal e processual, em sua época eles re- Assim como a ilustração, o exemplo é figurativo', o u
presentavam abrandamento da crueldade. Ibra isso, traz seja, apresenta u m fato concreto e não apenas a relação en-
como forte arg;umento, maior, o fato de que os outros pro- tre conceitos. Por isso diz-se que é argumento que vai do
cedimentos criminais, até o f i m da Idade Média, eram ain- fato à regra. Na denominação de Perelman, elemento l i n -
da mais draconianos. Na intenção de confirmar essa regra, güístico que fundamenta a estrutura do real. <
apresenta u m caso particular, a crucifixão de Cristo, ao lado A questão mais natural que se coloca a respeito do
de dois bandidos. exemplo é se ele pode mesmo confirmar a regra. As ciên-
^ Cristo não aparece, ali, como modelo de conduta, porque cias geralmente procuram, antes de formular uma regra
não é esse o realce que faz o autor. Mas utiliza-se de fato, qualquer, pescar uma série de exemplos distintos, para que
de conhecimento, pode-se dizer, de todo o público a que se se possa buscar uma generalização que evite a falácia.
destina o livro, ou seja, o bom ladrão e a grave pena que re- Veja-se como c formulado o exemplo no texto abaixo, co-
cebera. A regra é confirmada: não se pode dizer que o pro- nhecida (e brilhante) argumentação de Luis Fernando Ve-
cesso penal era brando c racional sequer sob as luzes do ríssimo*:
Império Romano, tendo em vista a reprimenda impingida
aos ladrões; a morte com sofrimento.
2. Cf, REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, pp. 181 ss,
O exemplo confirma a regra que se pretende provar. 3. Vide Capítulo V,
Se o exemplo encontra imediato feedback no leitor, como 4. " O gigolõ das palavras", In: O nam e outras histórias, p. 77.
156 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EXEMPLO. FICURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 157

Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um Todavia, o exemplo que efetivamente confirma a regra,
meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente no discurso judiciário, deve ser mais que uma ilustração,
como tal. Respeitadas algumas regfas básicas da gramática, que uma observação da realidade fugaz, hipótese em que
para evitar os vexames mais gritantes, as.outras são dispen- será facilmente desconstituído. Ibra que o exemplo funcio-
sáveis. A sintaxe é uma questão, de uso, não de princípios. Es- ne como fator de persuasão eficiente, a principal recomen-
crever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por dação é a de que venha seguido de vários outros, que pos-
exemplo: dizer escreiter claro não. é certo, mas é claro, certo? O
sam confirmar a mesma regra. Nesse sentido, manifesta-se
importante é comunicar, (E quando possível surpreender,
Perelman':
iluminar, divertir, comover,.. Mas aí entramos na área do ta-
lento, que também não tem nada a ver com gramática.)
A gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas Quando são evocados fenômenos particulares uns em
línguas mortas, e aíé de interesse restrito a necrólogos e professo- seguida dos outros, mormente se oferecem alguma similitu-
res de latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria de, ficaremos inclinados a ver neles exemplos, ao passo que
gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos mem- a descrição de um fenômeno isolado seria tomada mais por
bros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Por- uma simples informação.
tuguês ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados,
que o Português morra para poderem carregar o cabcão e es- Recomenda-se gravemente que se articule mais de um
crever sua autópsia definitiva. exemplo na argumentação, para que ele não se aproxime da
mera ilustração, e possa vir a confirmar uma regra. Sem
Verissimo aproveita o consenso de que a gramática é o apresentar mais de u m exemplo, como ressalta Weston*, o
esqueleto da língua (argumento de senso comum) para des- exemplo pode ser apenas a exceção que, como se diz no sen-
virtuar a argumentação: o esqueleto, como imagem de esíru- so comum, existe para que a regra seja confirmada. E desse
tura, passa a ser imagem de morte, pois só predomina em modo o exemplo surte efeito reverso.
línguas mortas^. Assim chega a seu exemplo principal, que se O exemplo, como recurso à figuratividade, deve ser
desenvolve contrario sensu, a confirmar sua regra: gramática curto, pois se apresenta, como já tratamos em lição anterior,
não é essencial à comunicação. Exemplo: professores de latim tal qual fuga ao eixo temático da lógica argumentativa, a i n - .
são excelentes gramáticos, mas péssimos comunicadores. da que vá reforçá-la. N o exemplo longo, o interlocutor pode,
A o utilizar o exemplo dos professores de latim, o e n u n - ao procurar compreender seus detalhes, perder a idéia de
ciador confirma sua regra. Claro que o tom humorístico do sua pertinência, no caso a relação entre a ilustração e a idéia
texto permite-lhe deixar de apresentar dados mais concre-
tos, que mais pertenceriam à ciência, como u m a pesquisa
que demonstrasse que efetivamente os professores de la- gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui
péssimo em Português, Mas - isso eu disse - vejam vocês, a intimidade com a
t i m mal se comunicam, mas o fato é que o exemplo foi gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha
persuasivo''. total inocência na matéria,"
7. Tratado da argumentação, cit,, p. 400,
8. "Um exemplo simples pode ser usado, às vezes, para uma ilustra-
5, Vide Capítulo XIII, em comentário sobre o mesmo texto, em relação à ção, O único exemplo de Julieta pode ilustrar os matrimônios júvenes, Mas
argumentação so/isríKÍ(ícíí. só um exemplo não oferece praticamente nenhum apoio para uma generali-
6, A seguir, Verissimo coioca-se também como exemplo, dessa vez po- zação, Pode ser um caso atípico, a 'exceção que confirma a regra," (Lds cla-
sitivo, a confirmar a mesma tese: "... E adverti que minha implicância com a ves, cit,, p, 35),
158 ARGUMENTAÇÃO ÍURJDICA EXEMPLO, FiGURATIViDAnF F ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 159

que se pretende provar. A coerência é preservada na argu- Melhor o exemplo quando feito por fato notório. Nada
mentação que reforça a relação entre exemplo e regra, pois pior que u m exemplo dc que o interlocutor duvide. O fa-
assim o orador ilustra seu texto com aquilo que realmente moso "já aconteceu uma vez comigo" é volátil e banal como
colabora para a persuasão. Veja o discursa abaixo, retirado (agora sim) o papo de botequim que iniciou este capítulo.
de sustentação em plenário: Os bons argumentos são notórios e eruditos, fatos de do-
mínio público ou ao menos do público a que o texto é dirigido.
A acusação afirma que o réu deve ser responsabilizado Novamente, a intertextualidade.
pelo homicídio, admitindo que sua participação foi apenas Quando, no texto aqui recortado, ao dissertar a respei-
a de vender a arma ao verdadeiro executor. Afirma que to da Inquisição o professor citou o calvário de Cristo, não
pouco importa se conhecia o motivo para o qual a arma se-
se pode dizer que algum leitor ignore o exemplo, e por isso
ria usada, já que a venda era ilegal. Para tanto, apresenta o
artigo 13 do Código Penal, considera-se causa a ação ou omis- ele c efetivamente persuasivo. Fatos históricos dão ótimos
são sem a qual o resultado não teria ocorrido. Sustenta a acu- exemplos, assim como elementos da realidade atual: o últi-
sação, então, que, se a arma não fosse vendida ao executor, m o crime amplamente noticiado, a situação atual dos paí-
ele não poderia matar a vítima, e portanto o resultado não ses mais pobres, o golpe militar do país latino ocorrido na
teria ocorrido. última semana.
A regra que a acusação pretende fazer valer não é acei- O exemplo isolado e o exemplo subjetivo, que não u l -
tável. Ora, se ela fosse verdadeira, um motorista de ônibus que trapasse os limites daquele que o profere, raramente confir-
transporta, dentre outras dezenas de passageiros, um executor de m a m uma regra.
um delito, sem saber de quem se trata, deveria responder pelo
evento, pois sem o ônibus o facínora não chegaria ao local do
crime e assim não haveria o resultado. Claro, é necessário
querer aquele resultado, conhecê-lo ou saber de suas possi- Representatividade do exemplo
bilidades, ou então se regressará ao infinito.
A questão principal do argumento pelo exemplo é sa-
O exemplo utilizado (o caso do motorista de ônibus) é ber se ele é capaz de confirmar a regrâ que sc propõe. Se
curto, mas confirma a regra porque é retomado pelos ele- proponho como exemplo, real, o fato de fulano de tal, pobre
mentos temáticos do discurso argumentativo, que a exibem e analfabeto, ter se tornado milionário achando u m bilhete
coçT toda a sua pertinência. de loteria premiado ou sendo descoberto pela mídia e se
É interessante notar no texto acima outro ponto impor- transformado em u m popstar, não posso apresentar a regra
tante da argumentação pelo exemplo: percebe-se que o ar- segura de que nossa sociedade dá'a todos a oportunidade
gumentante utilizou u m caso particular, mas não u m fato; de alcançar excelente padrão de vida. Posso, isso sim, con-
era algo hipotético, fruto de sua criação. Ora, para que se firmar com esse exemplo que alguns têm muita sorte, ou que
possa confirmar uma regra, o mínimo que se espera é que o há casos interessantíssimos de grandes fortunas que surgi-
caso particular apresentado seja verídico. O caso anterior ram do zero. Não mais que isso.
não era verídico, mas funcionou no exemplo porque era ex- Pois todo exemplo tem seu nível de representativida-
tremamente verossímil, ou seja, trata-se de seqüência de fatos de. Ele não pode extrapolar seus limites, ou seja, o alcance de
tão comum e corriqueira que o ouvinte não lhe cria a menor determinada regra, pois, se assim o fizer, atingirá a falácia,
dúvida. podendo chegar às raias do absurdo ou do preconceito.
160 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
161
EXEMPLO, f/GURAT/VIDADE EILEISTRAÇÃO DO DISCURSO

Nesse contexto, o grave conselho de que p exemplo, dia me debruçara sobre o abismo do Inexplicável. Faltava-
salvo^Jiipótese de g r a n d e ^ não deve vir me o essencial, que é o estímulo, a vertigem...
isolado de outros tipos de argumentos que confirmem a p r p - Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões
posiçâo trazida, a não ser se o n í v e l d e b o e r é n c i a o p erm i ti r, de um cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distin-
como temos sempre revelado, coricedendò-sèlfrenor i m - guia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleirei-
portância à regra proposta, ff- ros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não
enfadava nunca, Eíe intercalava as penteadelas com muitos
motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor...
Não tinha outra filosofia. Nem eu.
Falando em ilustração
Brás Cubas quer demonstrar a seu leitor que jamais
O ouvinte trabalha com imaginação e, já dissemos, com se preocupara com a morte, porque lhe faltava o estímulo.
u m ritmo de interpretação dos elementos a ele lançados. Até aquele momento, não pensava esse ilustre persona-
Toda atenção, em certo momento, esvai-se, pois o h o m e m gem em questões filosóficas. Poderia descrever amplamente
t e m como uma de suas misérias o cansaço e a conseqüente essa situação de ceticismo ou despreocupação com várias
distração. O que se faz por demais abstrato cansa e dificul- palavras, mas preferiu uma imagem. Descrevendo a figura
ta o entendimento". do cabeleireiro de Módena e sua ocupação estrita com o
O professor que leciona a matéria sabe que seu aluno trabalho, a ilustração transmitiu (está certo que com a arte
se distrai depois de certo tempo de explicação, e o advogado descritiva machadiana), também como em uma analogia
d o tribunal d o júri tem conhecimento de que as duas horas bastante imperfeita, mas m u i t o eficiente, a pouca inquie-
que tem para a primeira sustentação não podem ser gastas tação do personagem com a morte. Era esse o objetivo
integralmente na explicação do processo; é necessário va- do texto.
riar, distrair. N o discurso machadiano, a imagem do cabeleireiro de
U m dos modos de rapidamente distrair o auditório ou Módena teve, então, dupla função; a didática, de facilitar o
o leitor é a ilustração. A ilustração é a parte figurativa da ar- entendimento, o que traz por conseqüência direta o p o u -
fiumentação que, senpse afastar do tema detendido, porquê par de outras explicações mais enfadonhas, caso a ifha-'
ê intrinsecarnente ligado a ele, fortalece-o, semque neÔéssÕ^ gem não ficasse arraigada diretamente no leitor; e a se-
riqpmite compra^ uma regra. Vejamos como isso ocorre em gunda função, também m u i t o comum à figuratividade do
Machado de Assis'°: discurso - a própria distração do leitor, que subjetivamente
tem muito maior estímulo a i m a ^ n a r a peculiar figura do
Curto, mas alegre cabeleireiro que a receber explicações objetivas ou técni-
Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um cas sobre o estado de espírito do cético narrador-persona-
fiel compêndio de trivialidade e presunção. Jamais o proble- gem. Aliás, essas duas características refratam-se no pró-
ma da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse prio título do capítulo, denominado "Curto, mas alegre".
Curto porque a imagem do cabeleireiro tornou possível
melhor coerência, dispensando o narrador de dizer mais a
9. "Cito rumpes arcum, sempersi tenum habueris" - Logo romperás o arco,
se o mantiveres sempre teso. respeito de seu estado à época, e alegre porque, efetiva-
10, Memórias póstumas de Brás Cubas. Capítulo XXIV, p. 62. mente, sabia ser inesperada e, assim, digna de humor a f i -
162 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EXEMPLO. FIGURATIVIDADE E iEUSTRÃÇÃO DO DISCURSO 163

gura de u m barbeiro discreto e sem opiniões, o que é de- Na comparação estabelecida pelo autor, a imagem do
veras raríssimo. homem que se relaciona com a natureza como uma criança
Talvez o mais importante dê se perceber em relação à se relaciona com um bolo de chocolate ultrapassa os limites da
figuratividade ou ilustração do discurso é que cia, apesar compreensão e do divertimento. O leitor do texto já havia,
de assemelhar-se ao exemplo e à analogia, que são argu- obviamente, compreendido que o autor discursava sobre a
mentos mais complexos, não tem as mesmas pretensões. O consciência ecológica, ou mais propriamente sobre o trato
exemplo do barbeiro lacônico de Brás Cubas não compro- do homem com a natureza, o respeito. A necessidade de
vou, à evidência, que os barbeiros são pessoas que têm freio à avidez na relação homem-natureza for reforçada, e
pouca opinião a respeito do mundo, pois a generalização muito, pela imagem da criança que come o bolo, indiscrimi-
era impossível. N ã o era, portanto, exemplo no sentido es- nadamente, com gula e sem pensar em guardar para de-
trito que a argumentação lhe confere, mas mera imagem. pois. Não precisou entrar nesses detalhes, aliás, porque tudo
Todavia, de u m p o n t o de vista mais abrangente, a i m p o r - ficou subentendido na força da imagem.
tância daquela imagem no discurso pode ser por vezes Essa ilustração, curta, tem força evidentemente persuasi-
maior que a de u m exemplo ou analogia perfeita, sempre va. Sua função no texto, mais do que ser claro ou quebrar o
em estrita dependência com o leitor e o m o m e n t o e m que ritmo filosófico que se desenvolvia, é aumentar a presença dos
é produzido. argumentos na consciência do ouvinte ou leitor. Fbrcebe-se que,
sem o acompanhamento dos argumentos temáticos que já
se haviam desenvolvido, a comparação não surtiria nenhum
Ilustração e argumento efeito, até porque sequer seria compreendida. Mas a imagem
que o ouvinte faz da criança e do bolo, após entender no dis-
A importância didática e, por assim dizer, lúdica da ilus- curso a crítica sobre a relação homem-natureza, retoma todos
tração, como vimos no exemplo de Machado, também está os argumentos anteriores de modo breve e claro.
presente na argumentação. Mas a boa ilustração assume i m -
Se uma pessoa fosse colocada para ouvir o texto intei-
portância ainda maior quando utilizada com senso de opor-
ro de Lorda, talvez não se lembrasse do teor de todos osar-
tunidade. Vejamos o fragmento de Juan Luis Lorda";
gumentos temáticos, mas certamente repetiria a figura, a
imagem a que foi convidado a construir em sua mente -
^ Em outras épocas, especialmente na imediatamente
a criança e o bolo. Não se trata apenas de u m truque de
anterior à nossa, durante a Revolução Industrial, muitos
trataram a natureza como se pudessem explorá-la indefini- memória, mas um efeito persuasivo: guardando a ilustração,
damente, como se não se gastasse ou não se estragasse. no momento em que ela foi transmitida, o ouvinte capta
Esta mentalidade que ainda está espalhada na prática, em- todos os seus elementos periféricos, o discurso que o levará
bora não tenha tantas manifestações externas, tende a con- à aceitação da conclusão que se lhe pretende impingir.
siderar a natureza como res nuliius, isto é, como propriedade A ilustração, repita-se. nãn é tãp rriteringa r ^ m p n
de ninguém; e relaciona-se com as coisas com uma avidez exemplo, porque não pretende credibilidade ou represen-
sem medida, tal como uma criança se relaciona com um bolo de
tatiyidadej_mas apenas alcançar o leitor para queele aceite
cJiocolate.
com maior ênfase uma ideia^ue conta com mainf r n n ^ -
SQ,..mas necessTfá ser reforçada^^corriprppnrliHa E a com-
n . Moral: a arte de viver, p, 98. preensão é u m elemento essencial no discurso, porque, en-
164 ARGUMENTAÇÃO lURÍDICA EXEMPLO. FlCURATÍViDADE F ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 165

quanto não existe o entendimento de uma idéia que deva locutor não atingiria o leitor do modo necessário para p o -
ser fixada como premissa, o argumentante não pode passar der dar continuidade a sou discurso, sem lançar mão de ex-
ao elemento efetivamente persuasivo, que atinge aquilo que plicações mais longas e, talvez, muito monos persuasivas.
em seu discurso goza de menor consenso. Quem desperdiça o efeito suasório das imagens abre
Daí que a ilustração é u m excelenfè meto de estabele- mão de grande parte da conquista de adesão de espíritos que
cimento de coerência no texto argumentativo. Ela prepara é pretendida na argumentação. Os paradoxos, as antíteses,
o ouvinte para a apreensão de outros argumentos mais corr- as comparações, as sinestesias são recursos corriqueiros na
víncêntes, e a mterlooüpr pode trazê^la à tona toda vez argumentação, que têm valor ilustrativo evidente e aproxi-
que for preciso para estabelecer a impréscífidfvel lígãçao cofh m a m o texto da realidade do leitor, fazendo-o compreen-
os elementos que compõem seu percurso/ ObservêmòS der e aceitar o que lhe está sendo proposto. Nos discursos
como, neste texto dc Einstein", o elemento figurativo é i m - orais, os momentos de ilustração, como em uma compara-
prescindível para a compreensão do discurso que ele inicia ção, servem ao interlocutor em grande medida, pois é prin-
a desenvolver: cipalmente ao ouvir a ilustração que o ouvinte mais mani-
festa, em sua expressão corporal, o nível de aceitação do
O que mostra o relógio?
quanto lhe está sendo transmitido; ri, assente com a cabe-
Os conceitos físicos são criações livres do espírito hu- ça, abre mais os olhos ou permanece impassível. Esta últi-
mano e não são, como se poderia acreditar, unicamente de- ma reação, claro, é mau sinal.
terminados pelo mundo exterior. No esforço que fazemos De qualquer modo, aquele que argumenta deve levar
para compreender o mundo, assemelhamo-nos um pouco
em consideração que tem a seu alcance opções expressivas d i -
ao homem que tenta compreender o mecanismo de um re-
ferentes. Tais opções passam pela escolha das ilustrações do
lógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movi-
mento, ouve o tique-taque, mas não tem meio algum de texto, das diversas maneiras de se expor uma mesma idéia,
abrir o relógio. Se for engenhoso, poderá formar alguma de modo mais ou menos concreto, mais ou menos próximo
imagem do mecanismo, que ele tomará responsável por tudo da mente de cada leitor, de cada ouvinte. Essas opções de
o que observa, mas jamais estará seguro de que sua imagem expressão refletem-se tanto na importância da ilustração
seja a única capaz de explicar suas observações. Jamais terá (efeito da concretude)" quanto na possibilidade de varia-
condições de comparar sua imagem com o mecanismo real,
e não pode imaginar a possibilidade ou a significação de ta!
comparação. 13 Sobre o lema, comenta Elisa Guimarães: ' O pressuposto de que há
duas maneiras básicas e equivalentes de dizer as coisas - uma própria e outra
figurada - levou a análise retórica a uma visão paradigmática do sentido figu-
O discurso inicia-se com a comparação com a imagem rado, pois este resultaria da substituição de dois significantes entre si, no
do relógio, e nele continua, como figura essencial para sua caso das figuras. O problema das opções expressivas era ponto importante
compreensão. É patente que apenas a comparação não faz para a retórica e dizia respeito a um princípio mais geral compreendido iio
conceilo aptum, ou, na forma grega, prepon, isto é, a virtude de harmonizar as
com que o leitor aceite as idéias elencadas, que continuam partes de um todo, conferindo-lhes unidade. Por esse princípio, as várias for-
muito além d o fragmento recortado, mas sem elas o inter- mas de linguagem deveriam estar de acordo com as diferentes situações em
que são empregadas: pessoa, lugar, gênero literário etc. Daí a necessidade de
se ter ã disposição um léxico amplo e diferenciado para atender aos múltiplos
12. EINSTEIN, Albert e INFELD, Léopold. In: IDE, Pascal. Ã arte de pen- contextos" ("Figuras de retórica e argumentação", In: Retóricas de ontem e de
sar, pp. 143-4. hoje. p. 151).
166 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 167

ção semântica, com o acesso a u m léxico diferenciado e cri- Inté parece. Pafunça,
terioso, o que é tema d o Capítulo X i . Aqueles elevador
Que tá escrito "não fununça"
E a gente sobe a pé, •
E pra me judiar
M a u uso da ilustração
Pafunça,
Nem meu nome tu pronunça.
A ilustração representa o recurso à figuratividade, em_
que não se comprova u m a regra específicã, mas taz-se pa- Mas o argumentante não pode abusar das figuras de
ridade-.entreo<4ue existe de.temático - as idéias defendidas comparação, pois o leitor percebe sua imperfeição. A analo-
- e as figuras nela ermnciadas. gia entre Fhfunça e o elevador que não "fununça" é frágil, se
Ela é importante, mas seu uso é também restrito. Não colocada do ponto de vista lógico, ainda que informal. Bas-
se pode abusar da ilustração como não se pode abusar de tante persuasivo, reconheça-se, mas não funciona como
nenhum argumento. Novamente, repetimos a regra que vale exemplo, à ausência de regra a ser confirmada.
para todos eles: a ilustração deve ser consciente, por isso a Quando o argumentante abusa da ilustração, constrói
estudamos. Em outras palavras, o discursante deve utilizar discurso inconsistente. O ouvinte está acostumado a acei-
a ilustração respeitando suas limitações, conhecendo seu tá-la apenas como reforço, mas não como razão em si mes-
verdadeiro alcance. ma. Ademais, se o exemplo já deve ser curto, por se tratar
O erro mais c o m u m no mau uso da ilustração é ser ela de figuratividade, a ilustração deve ser mais sucinta ainda.
empregada a título de argumento ad exempla. Neste tópico, O prolongamento da ilustração no texto argumentativo des-
ao início da explanação sobre argumento pelo exemplo, fez- via o leitor do raciocínio persuasivo e lhe desfavorece a coe-
se claro que o requisito do exemplo é que ele procure confir- rência, como já analisamos com outros argumentos.
mar uma regra sobre a qual não há consenso, por isso ne-
cessita ser representativo. Contrario sensu, a ilustracãosomente
pode ser utilizada se existem outros argumentos que trazem Tendência atual da figuratividade ' ^
/^cpncr^ à íHpjq giiP prnriirfj jjiKitrar. pcÒS à tlguratividã-^
de por si só não convence ninguém^a não ser por pura A proposta deste livro, como frisamos desde o início, é
emotividade, em casos excepcipuaia,. > a de investigar os métodos atuais de persuasão. Isso impor-
* A ilustração, portanto, não é exemplo. É criação figura- ta dizer que não voltaremos a uma retórica antiga, como tan-
tiva do autor e não pode ter a menor pretensão de confirmar tos fazem, revisitando apenas os grandes clássicos - sempre
uma regra, mas apenas de deixar claro aquilo que já é de co- importantíssimos - da Antigüidade, pois seu efeito prático,
nhecimento do leitor. Adoniran'* faz isso com maestria: para esta proposta, não seria tão representativo; tal propos-
ta, todavia, tampouco importa em nos afastarmos de ins-
Pafunça trumentos teóricos de grande valia.
O teu coração sem amor, Retoma-se essa proposta porque a figuratividade é a
Se esfriou, se desligou. grande tendência de nossos discursos atuais, pois a articu-
lação temática do discurso hodierno tem pedido cada vez
14. Transcrito de Meus momentos: Adoniran Barbosa, EMI Music. mais a ilustração. As crônicas que se vêem nos jornais são
168 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EXEMPLO, FIGURATIVIDADC E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 169

textos de conteúdo eminentemente argumentativo, pois de- plexidade. Mas pode-se dizer que no Brasil o discurso jun'-
fendem uma tese essencial, mas não dispensam uma histó- dico é capaz de flexibilizar-se tanto cm linguagem - como
ria, figurativa, que inicia e termina o texto. Se não houvesse será exposto ao tratarmos do argumento de competência
essa história inicial certamente o destinatário se desinteres- lingüística - como no competente uso da figuratividade.
saria de lê-la; o recurso de que se utiliza o escritor, para de- Discussões jurídicas fechadas, que parecem discur-
fender uma idéia e ao mesmo tempo atrair para a leitura, é sos prontos, fazendo da argumentação nos processos ape-
o de inserir a figuratividade no texto, iniciando-o, por exem- nas uma alternância entre doutrina e jurisprudência (às
plo, com a narrativa de u m fato que ocorrera com ele mes- vezes tão pouco pertinentes), dão lugar, em nome da so-
mo. Os ensaios, por seu lado, expõem questões por vezes briedade, somente à pobreza do discurso e ao desinteres-
de cunho científico ou filosófico, mas fazem predominar o se do interlocutor, que muitas vezes pula leitura de lon-
estilo'^ não raro com recursos lúdicos, porque caso contrá- gos trechos de textos de petições, e com todo o direito, pois
rio a leitura toma-se desinteressante. Assim, o texto exposi- já sabe seu conteúdo. Exemplos, ilustrações e pequenos
tivo-argumentativo mescla-se a modernos recursos literá- trechos narrativos são u m m o d o de tornar o competente
rios, na tentativa de livrar-se do enfadonho. discurso jurídico atraente e adequado, ainda que seja ne-
Em obra publicada sobre redação, defendemos grave- cessário ousar.
mente que não se deve buscar a literatura no discurso j u - Mas que (bom) argumentante não é ousado?
rídico, mas deve-se utilizar dos recursos necessários para
convidar à leitura o u à audição atenta do discurso, mesmo
aos que tenham constitucional obrigação de apreciar t o - A imagem e sua importância: a questão da presença
dos os pedidos relacionados a possível lesão o u ameaça a
direito.
Anteriormente afirmamos que as ilustrações têm o po-
Par isso recomendamos o uso do texto figurativo, da der de aumentar a presença de algum tema importante na
ilustração no discurso jurídico, dentro de seus estreitos l i - mente do interlocutor.
mites, como fixado n o tópico anterior. É a saída que o jor-
É de Perelman a lembrança de u m relato da cultura .
nalismo e a literatura científica e filosófica encontram na crô-
oriental que interessa ilustrar neste tópico. Narra que üm
nica e no ensaio e que, embora não sejam gêneros novos e
rei via passar, diante de si, u m boi que seria levado a i m o -
passam ter tipologia pouco definida, representam efetiva-
lação, em certa cerimônia presidida pelo monarca. Sen-
mente uma tendência. Ora, se é atraente ao interlocutor, é
tiu piedade do animal e assim, de imediato, ordenou que
eficiente argumento.
não o matassem, mas o substituíssem por u m carneiro.
Não se pode defender a banalização que a mídia ofere-
Posteriormente, o monarca foi indagado sobre o motivo da
ce a seu discurso gerai: notícias curtas, imagens substituin-
substituição. Sua resposta foi simples: mandara salvar o
do palavras, aversão a qualquer percurso mais aprofundado
boi porque o vira. Como não v i u o carneiro, seria ele o sa-
ou raciocínio logicamente arquitetado com alguma com-
crificado.
O relato serve a Perelman para demonstrar que "a pre-
15. Cf. ÂLVAREZ, Míriam. Cuademos de íengua espanola, p. 40; " E l ensa- sença atua de modo direto sobre nossa sensibilidade". Quan-
yo, por tanto, queda definido como vehículo de ideas, intentando siempre
(como senala su etimologia) fijar su identidad entre Io rigurosamente científi- do argumentamos, selecionamos elementos da realidade
co y el predomínio de Io estético." que devemos fazer presentes à mente de interlocutor.
170 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EXEMPLO. FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 171

Quando o promotor de justiça, em plenário, mostra aos ainda que correto, não se encontra tão arraigado no inter-
jurados a fotografia do cadáver da vítima, transfigurado, pre- locutor no momento de tomar sua decisão.
tende que essa imagem se torne presente àqueles que estão Faça, leitor, esse pequeno exercido: quantas vezes você
encarregados da decisão. Claro, todos os jurados que saibam não ficou influenciado o u comovido não por dados estatís-
estar julgando u m crime de homicídio consumado concluem ticos da realidade, mas por pequenas cenas, imagens ou
pela existência inequívoca de u m cadáver, e, m u i t o prova- máximas criadas pela ficção de u m escritor ou diretor de ci-
velmente, se invocados a imaginar o corpo sem vida do v i t i - nema, captadas pelas lentes de u m fotógrafo ou ditas por
mado, não formulariam imagem muito diferente da que u m cidadão comum em u m momento de especial inspira-
lhes é mostrada pela acusação. Mas o promotor bem sabe ção? Por que, então, temer que seu interlocutor utilize esses
que, ao mostrar a fotografia, ela se faz presente. recursos, por exemplo, anexando aos documentos de uma
Não é necessário raciocínio m u i t o elaborado para com- peça uma importante fotografia, acreditando estar se afas-
provar que uma guerra entre nações é praticamente irracio- tando do quanto seja "jurídico"?
nal, mas a foto da capa dc jornal que mostre uma mãe Com boa dose de comedimento, as imagens e as ilus-
chorando ao ver o lar e a família dizimados por u m ataque trações podem ser recurso muito eficiente no percurso dis-
militar; ou a imagem de uma criança correndo nua, f u g i n - cursivo.
do das armas químicas; ou aquela imagem do oriental
que, sozinho, faz parar u m comboio de tanques de guerra
em protesto contra a ditadura em seu país; o u o disco do Conclusão
cantor americano que traz como tema o regime de segre-
gação racial sul-africano - todos comovem o m u n d o : fa- O exemplo confirma uma regra, e por isso é submetido
zem a realidade, que existe independentemente da ilus- a condições de validade; já a ilustração tem outros atrativos
tração, presente ao interlocutor. M o t i v a m u m a reação mais (como ser didática, aumentar a presença de outros argu-
forte de todos os cidadãos. C o m o o olhar d o boi tornou mentos na mente do leitor, fazer pausa em discussão que
presente a crueldade d o sacrifício ao rei que conduzia a se toma enfadonhamente temática, pejanitir a retomada
cerimônia. após explicações paralelas ou mais aprofundadas etc), m^s
Por isso a argumentação pode ser encarada também não consegue confirmar nenhuma regra, pois não tem re-
como a arte de tornar os elementos mais importantes pre- presentatividade.
seíites na mente do leitor. Não se trata apenas de imagens Ambos são figurativos e parecem müito próximos, mas
visuais, embora seja inegável que elas tenham maior poder, têm funções verdadeiramente distintas, que não podem ser
como ilustração, de atingir a mente do ouvinte. U m recurso confundidas.
lingüístico, uma citação literária, u m toque de humor, uma Ffrra combater o exemplo, o melhor é atacar sua repre-
fotografia, os documentos que são juntados, embora pos- sentatividade, tratando-o como caso isolado, o que não é raro.
sam dizer o que já se sabe (existe uma vítima de homicídio, Assim, achar u m contra-exemplo, ou seja, u m caso diferente
o sacrifício é cruel, a guerra é injusta, a segregação racial é que não confirme a regra, é o melhor meio de fazê-lo.
inaceitável...), podem, sem que o interlocutor note, aumen- ^.A^ilustraçãqjião-necessita^ poiséapenas um
tar-lhe a presença de determinado argumento e, assim, tor- recurso retórico, que pode ceder ^Íntê"gé^gurnentos mais
ná-lo preferível a u m arrazoado da parte contrária, o qual. sólidos. Apontar a ilustração utilizada pela parte contraria
172 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA

como mero recurso didático, sem nenhum compromisso com


a verdade ou com a coerência lógica, pode ser também útil,
em u m ou outro caso. Se a ilustração é utilizada como se fos-
se exemplo, por erro ou malícia da parte contrária, pode-se,
então, apontar sua falta de poder para confirmar qualquer
regra, como já é sabido.
Capítulo X
Estrutura lógica^ argumenjOL
a fortiori, ad ábsuráumj^ridículo
A l ^ n s tipos de arRurnPntn. purgue constituem racio-
anios comuns iTO~Direito, fazem-se típicos do discurso judk.
ciário e, portanto, são muito persuasivos nesse contexto, se
'ênunciadrecoíTTCSeF&ncter

O argumento jurídico

Não se ppdÊ- üize^que exista u m argumento jurídico


propriamente dito, porque, como miloTíngüisticò quê"5ü^-
cã ã persuasão, todo tipo de argumento pode sérTifíTizada
n o discurso forense. Entretanto, há argumentos criadõs"è
fomentados com maior intensidade no discurse) judiciánôll
seja por se relacionarem ao trabalho probatório, seja por se
fundamentarem em princípios jurídicos, da interpretação-
da norma.
O argumento de autoridade e o argumento a simili t i -
n h a m também sua especificidade no discurso judiciário,
mas nesta lição procuramos agrupar técnitas argumentati-
vas u m pouco mais específicas e também usuais. Os racio-*
cínios contrario sensu, a fartiori e ad absurdum são corriquei-
ros do discurso judiciário.

O argumento contrario sensu

Tem como principal fundamento o conhecido princí-


pio da legalidade, que em nossa Constituição encontra-se
no inciso I I do artigo 5?: "Ninguém está obrigado a fazer o u
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da l e i . "
174 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 175

Sua origem como argumento, no âmbito judiciário, Correto o raciocínio? Não. N e m todos os maiores de de-
está na invocação ao interlocutor de que, se a normajurídi- zoito anos são penalmente imputáveis, pois os doentes men-
ca prescreve uma conduta e a sua transgressão u m a sanção tais inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito de
,(dir"etá~ou inJiÍÊÍsmente), devem-se éxctüTr de sua incidên- seus atos, ainda sendo maiores de dezoito anos, também
cia todos os sujeitos que'não sejam alvojiternl daquele pi;p- são agradados pela inimputabilidade.
ceito. Dessa rriáriêTralTéD artigo 29 do Código Penal dispõe
que " q u e m , de qualquer modo, concorre para o crime inci- Diz o famoso autor que "o funcionário público que se
de nas penas a este cominadas...", tem-se, contrario sensu, apropria dc bens, móveis ou imóveis, comete crime". Por-
que quem não concorre para o crime não pode incidir nas tanto, aquele que se apropria de bens alheios, não sendo fun-
suas penas. cionário público, não comete crime.
O argumento contrario sensu (de interpretação inversa)
não é utilizado apenas para interpretar dispositivos legais, Novamente inaceitável o raciocínio. Somente o f u n -
pois ele pode ser articulado quando afirmações em sentido cionário público, na definição criminal do termo, comete o
inverso são invocadas em favor da tese que o argumentan- crime de peculato, o que não significa que a atitude de apro-
te precisa comprovar. É usual o raciocínio contrario sensu, priar-se indevidamente de bens alheios somente seja con-
como forma de persuasão, n o aproveitamen'tCJ~da dSüTrmã" duta criminosa para o agente funcionário público.
é da jurisprudência, quando tratam dè casos distintos, de
sentido oposto à pretensa analogia^ Assim, se a jurispru- Diz a Súmula n? 282 do Supremo Tribunal Federal que:
dência afirma ser lícita a prisão cautelar quando houver fortes "É inadmissível o recurso extraordinário, quando não venti-
lada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada." Por-
indícios de autoria, pode-se defender, contrario sensu, que, à
tanto, se, como ocorre no caso concreto, o v. acórdão recor-
ausência desses fortes indícios, a prisão cautelar torna-se
rido faz expressa menção à questão federal objeto do pre-
ilegal. Assim também no exemplo abaixo: sente recurso extraordinário, deve ser ele admitido.

A testemunha afirmou em plenário que, porque não t i - Raciocínio inválido. Fbde-se dizer qye, se o acórdão em
vera aula naquela noite, chegara cedo a casa. Disso infere- tela faz menção à questão federal suscitada n o recurso i n -
se, contrario sensu, que era seu costume chegar tarde a casa, terposto, este não pode deixar de ser admitido com base no
nos dias de aula. preceito da súmula citada. N o entanto, vários outros requisi-
tos são necessários para essa admissibilidade, que não es-
Entretanto, a validade do argi i men tnmntrarin sensu tão eiencados no preceito interpretado ao contrário.
deve ser aferida_caso a caso, pois não raro eie_pòde tender à O reducionismo é falácia c o m u m ao argumento contra-
Tãlacia,^sêhrio o que torna seu poder de persuasão m u i t o rio sensu, e deve ser evitado, pois o íníerlocutorqüe:pfiteebe
menor. Veja como isso ocorre no caso abaixo: aTalãcia não é persuadido. Consiste o reduâonismo em se
retirarem da argumentação élementos^ssèriciais a ela', i m -
O artigo 27 do Código Penal dispõe que os menores de prescindíveis à sua validade, poiTõdiscuriòmmimenta 11 vo
dezoito anos são penalmente inimputáveis. Assim, contrario
tem, como já sè expÔs," úm serio comprometimento com .a
sensu, os maiores de dezoito anos são criminalmente res-
ponsáveis.
1. Vide Capítulo XIU.
176 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 177

realidade: ainda que a interpretação dos fatos observáveis O exemplo é ilustrativo. Percebe-se que, submetendo a
nunca possa ser abrangente o bastante para descrever e con- proposição da parte contrária {a prisão cautelar do réu de-
siderar todos os fenômenos atinentes a eles, pode-se ofen- vido à gravidade do delito) à aplicação de outras regras ló-
der o interlocutor caso sc deixe de considerar elementos gicas e elementos verossímeis da realidade, induz-se a u m
que como premissa já entenda essenciais. resultado absurdo que o interlocutor não aceita (que se trans-
Portanto, o raciocínio contrario sensu é válido recurso forme o maior bairro da cidade em presídio para alocar aque-
argumentativo, até porque tem comprovada origem lógico- les que praticam o mesmo delito). Trouxe-se ao discurso
formal, desde que não tenda ao reducionismo. uma premissa verossímil (embora não comprovada em u m
texto oral) de que existam em São Ihulo 1 milhão de armas
clandestinas. Logo em seguida, protestou-sc pela aplicabi-
O argumento ad absurdum y />^^^.jp ,-- lidade do princípio jurídico básico dc que a justiça deve dis-
pensar privilégios, sendo aplicável a todos que cometeram o
O argumento do absurdum é outro típico do discurso j u - delito. O resultado desse raciocínio, como lá construído, é
rídico. Também denominado argumento apagógico, é aque- inaceitável: a prisão de quase dez por cento da população
le que procura demonstrar a falsidade de uma proposição da metrópole.
estendendo-se seu sentido e aplicando-lho regras lógicas Talvez haja nesse exemplo algum exagero nos núme-
do Direito, até alcançar u m resultado que o interlocutor en- ros, mas é certo que é persuasivo. Percebe-se que o ouvinte
tenda como impossível. A impossibilidade do resultado faz não acredita necessariamente na viabilidade do resultado
com que o interlocutor rechace sua gênese, o que c o p r i n - absurdo, mas certamente é levado a concluir que a premis-
cipal objetivo do discursante. sa que se pretende destruir é pouco razoável. N o exemplo,
Exemplifica-se com o texto abaixo u m tipo de argumen- existe u m substrato de que o argumentante se utilizou sem
to ad absurdum de construção bem singela: necessitar enunciar: a tolerância ao delito de porte ilegal de
arma, seja por parte do Estado ou da sociedade paulistana,
O réu está preso por porte ilegal de arma de fogo. A faz com que o crime não possa, em tese, ser entendido
acusação quer que se lhe negue o direito à liberdade provi- como gravíssimo.
sória, pois afirma que o crime c grave e a lei não lhe permite
0 benefício. Mas, pensemos: estatística recente assenta que A aplicação de premissas verossímeis até chegar a re-
perambulam, nesta cidade de São Paulo, aproximadamente sultados inaceitáveis tem aplicação brilhante no texto "Usos
1 milhão dc armas ilegais, Se existem 1 milhão de armas ile- da casemira inglesa", de Scliar, transcrito no Capítulo I I I
gais, há a mesma quantidade de pessoas cometendo o mes- deste livro. Recomenda-se que o leitor, para um exercício
mo delito que o ora acusado. Sendo a justiça igual para to- ilustrativo, retorne, ao fim deste tópico, à leitura desse tex-
dos - e isso parece inegável -, deveria haver, neste momento, to e reveja como vários argumentos ad absurdum encadeiam-
1 milhão dc paulistanos presos cautelarmente, sob a mesma se para desconstituir, na mente da ínterlocutora, sua pre-
acusação. Isso importa em afirmar que, pelo mais sensível e tensão de conseguir para o pai u m corte de casimira como
banal princípio jurídico, nem se o maior bairro de São Paulo presente de aniversário.
fosse transformado em um presídio haveria como alocar to-
dos os presumidos detentos! Mas, para que sigamos as reflexões sobre o argumen-
to ad absurdum, é importante deixar estabelecido: o que se-
178 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 179

riam premissas verossímeis? Q u a n d o o argumentante, necessária a presença de u m sujeito para quem o enuncia-
no texto anterior, disse que na metrópole paulistana have- do em questão seja verossímil, ou seja, está presente a ne-
ria 1 milhão de armas de fogo ilegaisf ou guando, no aludi- cessidade de uma atitude de crença (por alguém) de que
do texto de Scliar, o marido assentou que o velho sogro u m enunciado seja verdadeiro'.
não passaria dos cem anos, trouxe premissas verossímeis, Essa questão é aqui colocada com maior ênfase porque
ou seja, que são aceitas pelo ouvinte no decorrer da argu- é na argumentação apagógica que o ouvinte (e a parte con-
mentação. trária, no caso da dialética produção de sentido do discurso
judiciário) questiona-se sobre a validade das premissas que
O transcurso argumentativo aceita o verossímil (que
lhe são colocadas à reflexão, porquanto depara-se com u m
não é o mesmo que o verdadeiro) como aquilo que funcio-
resultado que lhe ofende o bom senso (resultado, aliás, em
na tal qual o apoio do percurso argumentativo sem que lhe
que repousa toda a força do argumento).
represente u m entrave, sem que seja questionado naquele
momento da argumentação pelo ouvinte, ou, em outras Claro, a força do argumento apagógico está mesmo na
palavras, o verossímil é qquiku^íe^pam:e-wme-veiriadefmjw pouca aceitabilidade do resultado que se propõe como f i -
nal. Entretanto, o interlocutor deve ficar suficientemente
transcorrer do percurso armimentatipo,
convencido de que é o percurso apagógico lícito para con-
Reboul funda merUaBem esse conceito, e é útil trans-
duzir àquele resultado inaceitável, ou, em outras palavras,
crevê-lo':
que o que há de inaceitável no raciocínio é a premissa i n i -
cial*, e não qualquer daquelas idéias acessórias que levam
O que é então o verossímil? Para encurtar: tudo aquilo
em que a confiança é presumida. Por exemplo, os juizes nem ao resultado, pois todas elas devem ser verossímeis.
sempre são independentes, os médicos nem sempre capa- A progressão do argumento ad absurdum é matéria de
zes, os oradores nem sempre sinceros. Mas presume-se que grande atenção também do interlocutor, pois ao perceber o
o sejam; e, se alguém afirma o contrário, cabe-lhe o ônus da resultado inverossímil, sua primeira reação é a de procurar
prova. Sem esse tipo de presunção, a vida seria impossível; e no percurso argumentativo u m dado não-verdadeiro que
é a própria vida que rejeita o ceticismo. tenha permitido o desvio do raciocínio. 'No exemplo, o i n -
terlocutor questionaria os números apresentados e, se fos-
Para os juristas, que conhecem todos os conceitos de sem patentemente exagerados, rejeitaria o argumento por
praesumptio júris tantum, fica muito acessível a explicação completo. A possibilidade de construção de silogismos con-
Reboul para a verossimilhança, Pois ela é mesmo uma tínuos, como em uma verdadeira demonstração científica
espécie de presunção, aquilo que o orador sabe que pode aproximando-se do raciocínio exato, é a maior arma da-
utilizar sem que conte diretamente com a contestação do quele que argumenta ao absurdo.
ouvinte, pois caso contrário a argumentação não se aper-
Embora a argumentação como u m todo tenda a traba-
feiçoa. Esse é u m dos elementos constituintes do compro-
lhar mais com a verossimilhança que com a verdade (ape-
misso que o argumentante tem com a verossimilhança.
sar de esta última aparecer em dados indubitáveis no dis-
É importante notar que, como observa Caffé, a verossi-
milhança depende da aceitação do interlocutor, porque é
3. ALVES, Alaôr Caffé. IJi^pca, cit., pp. 397-9.
4. "Nihil est in effectu quod non sit in causa" - Nada está no efeito que não
2. Introdução à retórica, cit., pp. 95-6. esteja na causa.
180 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 181

curso argumentativo, como quem diz que um homem é mor- Demonstra-se o absurdo de um texto restabelecendo-
tal) e mais com o provável que com o certo, já foi dito que a se a verdade que nele deva estar contida.
aparência de demonstração exata sempre permeia o discur- Para isso, partindo do texto julgado absurdo, apresen-
so. Fbr isso, o cuidado ao enunciar p arguinento ad absurdum ta-se o sentido eqüitativo, criterioso, reto, a que o princípio
deve ser redobrado, fixando-sé com vagar todas as premis- que o inspirou deverá levar e, após, ressaltam-se as conse-
sas utilizadas, com ritmo lento, para que o interlocutor per- qüências absurdas não previstas pelo legislador nem admiti-
ceba sua verossimilhança, que lhe soe como absoluta ver- das na sistemática jurídica. É, pois, uma argumentação indi-
dade. O raciocínio lógico sempre seduz, ainda que possa reta e tem por fundamento o princípio lógico de que duas
desviar-se da demonstração absoluta. idéias contraditórias não podem ser simultaneamente ver-
dadeiras e falsas.
N o exemplo da posse ilegal de arma, perceba-se que há
dados que podem tomar-se pouco verossímeis, ainda que o
Fbra combater o argumento ad absurdum basta demons-
argumento como u m todo seja excelentemente persuasivo:
trar que existem regras aplicadas à pretensão q u e j i ã o c o r -
o número de 1 milhão de armas parece exagerado e, se h o u -
respondem à verdade, eaúíoxa rarêçáyíí verdadeiras. Assim,
ver, muitas delas devem estar sem condições de uso. A l g u -
"rio exemplo da arma de fogo, bastaria pedir-se uma prova
mas pessoas podem ser proprietárias de várias dessas armas,
o que diminuiria sensivelmente o número de criminosos; de que houvesse 1 milhão de revólveres clandestinos na ci-
ademais, algumas delas podem sequer ter donos, estando à dade; mas, como se percebe, corre-se o risco de o ouvinte
deriva ou nos depósitos oficiais, de m o d o que tampouco continuar entendendo a premissa verossímil, e então a con-
seriam computadas para o fim que se lhe pretendeu. Entre- tra-argumentação funcionaria ao revés, fortalecendo a idéia
tanto, essas idéias não puderam aparecer na construção do que se pretendia destruir. Aliás, na argumentação vale a re-
discurso, pois são de responsabilidade da parle contrária, e gra: o argumento que não persuade, prejudica.
assim o raciocínio tornou-se forte. Altgmativa para combater o argurnento apa^giwéj^mz.
bém uma espécie de argumento de fuga, muito c o m u m j i o _
A argumentação ad absurdum é, por f i m , excelente-
discürSD" pofílíço atual, rtiis íragiT ao ouvinte mais~ateritq._ J
mente persuasiva. N o discurso judiciário há predileção pelo
Ãproxima-se do estratagerrià~33^e Schopenhauer*: •
racioanio que parece bem conduzido, mas verdadeira oje-
riza à possibilidade de chegar a resultados inaceitáveis, que
"Isto pode ser correto na teoria; na prática é falso."
ofendam a lógica jurídica, ainda que esta seja fruto da cria-
Com esse sofisma admitem-se os fundamentos, porém ne-
rão suasória do argumentante. Deve-se, entretanto, cuidar
gam-se suas conseqüências, em contradição com a regra a
para que todas as premissas pareçam verossímeis, pois fora
ratione ad rationatutn valet consequcntia [de uma razão ao
disso toda a construção argumentativa enfraquece o u mes- seu efeito vigora a conseqüêncial. A afirmação citada gera
mo desaba. uma impossibilidade: o que é correto na teoria deve valer
também na prática: se isso não se ctHifirma é porque há al-
É nesse sentido que, comentando o argumento ad ab- guma falha na teoria; algo passou despercebido e não foi
surdum, João Mendes Neto afirmava^: levado em consideração e, por conseguinte, é falso também
na teoria.

5. Rui Barbosa e a lógica jurídica: ensaio de prática da argumentação, p. 77. b. A arte de ter razão, p. 68.
182 ARGUMENTAÇÃO JURÍDiCA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 183

Todo estudo jurídico é construído para que possa valer Elevar ao ridículo é parte do argumento ad absurdum, e
absolutamente, não se podendo - " a o menos no próprio pode-se dizer que o humor bem colocado tem o condão de
discurso jurídico - construir u m abismo . ^ t r e teoria e prá- ser mais persuasivo - pela questão da presença, que já tra-
tica, porque isso representa evidente fuga à discussão jurí- tamos - do que criticas longas à argumentação da parte con-
dica que muitas vezes o raciocínio ad absurdum procura trária, pois, ^osso modo, o ouvinte que tem seu humor ele-
entabular. A i n d a que o estudo da realidade pelo prisma j u - vado pela argumentação sempre tende a aderir ao orador
rídico sempre deixe a desejar na explicação de muitos fe- que o alegra.
nômenos, é certo que a discussão dogmática tem lugar e Fbra ilustrar, leia o trecho da "Fábula dos dois leÕes", de
deve ser enfrentada, mesmo que chegue a resultados pouco Stanislaw Ponte Preta. Nele, o cronista conta que dois leões
críveis. Mais fácil é, como expôs Schopenhauer, achar uma fugiram do zoológico, sendo encontrados tempos depois.
falha na teoria, algo que passou despercebido e não foi levado U m , magro e maltratado, e o outro, gordo e vigoroso,
em consideração. voltaram ao cativeiro e então encontraram-se. O fragmen-
E como há fatos ocultos nos argumentos! Pois se eles to que segue é seu trecho final, o diálogo entre os dois
são fruto da redução simbólica da realidade que deve haver animais*:
para a construção d o próprio texto discursivo, muito, como
já se viu, há de ficar subentendido ou invocado como pre- Mal ficaram juntos dê novo, o leão que fugira para as
missa. Questões da argumentação. . ^ y florestas da Tijuca disse pro coleguinha: - Puxa, rapaz, como
é que você conseguiu ficar na cidade esse tempo todo e ain-
da voltar com essa saúde. Eu, que fugi para as matas da Tiju-
ca, tive que pedir arrego, porque quase não encontrava o que
.O^so^a^ridiculariz^^ ^^JiP '^^^ comer, como é então que você... vá, diz como foi.
O outro leão então explicou: - Eu meti os peitos e fui
O uso d o argumento ad absurdum leva-nos à breve me esconder numa repartição pública. Cada dia eu comia
referência ao uso da ridicularização também como meio de um funcionário e ninguém dava por falta dele.
persuasão. O j a c i o c í n i o ridículo é aquele que merece a re- - E por que voltou pra cá? Tinhaín acabado os funcio-
provação_óouÍ£Q!lÊ2jg"^^^^^"^^ ^ ""^ níveTde riag^^Hcefr^ nários? •
tabilidade huinorístiçarQuando êxisTè"consen^ou v e r o s ^ - Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário
^únilhança em d é t e m u n a d ã ^ f í ^ a ç ã o , qualquer o u t r q j ^ ^ público. É que eu cometi um erro gravíssimo. Comi o dire-
ciocíriio que a contrarie pode fêvãr^o r i d í c u l o ^ tor, idem um chefe de seção, funcionários diversos, ninguém
O"ridiClilo-leva atnTSó, e o riso é humorístico. Ridendo dava por talta. No dia em que eu comi o cara que servia o ca-
fezinho... me apanharam.
castigat mores, aponta a máxima latina, e então o h u m o r é
eficiente meio de repreender aquilo que não s e d e s ç f a
desaHa f ffõritaTmente, sqãpõf^séngnsgtlVõIj^eja p õ r n ã Qualquer u m que leia o texto percebe a critica à inefi-
se poder fazê-lõ p o r t e m o r m o p o r não se desejar, na coe- ciência do funcionalismo público com grande efeito de per-
rência do discurso,'prolongar-se naquilo que n ã q j y t g m a suasão, talvez maior que u m discurso repleto de estatísticas
central. e de repetição de informações conhecidas sobre o mau sis-

7. Cf. P E R E L M A N . Tratado da argumentação, cit., p. 233. 8. Primo Altamirando e elas, p. 154.


184 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 185

tema burocrático. C o m o humor, a argumentação ultrapas- incompatíveis, supõe a existência de uma regra que perrnL:.
sa o que seria o teor meramente expositivo para alcançar o Jc descartar uma das duas disposições que provocam a arv .
resultado suasório. t i n o m i a " " ' ^ argurnento prêfendé demonstrar que, na exis-
Aí está, mais do que evidente, o efeito persuasivo do tência de duas normas jurídicas que aparente"mente "regulam
humor, somado à figuratividade alegóríea com que o cro- o/mesrho Fato, deve haver_.um^ifêrencia]_que taça com giTé
nista trabalha. apenas uma delas incida sobre u m caso concretoTEvidente
Bem, mas trata-se de uma crônica, de autoria de u m ver- mente, o argumento tende a demonstrar que a norma jurí-
dadeiro personagem social da época, Stanislaw Ponte Preta. dica que incide sobre o caso é aquela mais benéfica à parte
Características suas permitiam criar um ambiente e u m gru- cujo interesse se defende.
po de interlocutores (seus leitores fiéis) que aceitam de bom
O texto abaixo dá conta desse tipo de argumento;
grado o efeito humorístico fino e anseiam pelo h u m o r ao
lerem seus textos.
O réu, segundo diz a inicial do Ministério Público, ha-
No discurso judiciário, o papei do h u m o r é bastante veria feito propaganda enganosa de produto. Isso porque o
discutível, e talvez estes breves estudos não possam ousar inculpado c proprietário de uma loja de móveis e, querendo
aconselhar quando o toque humorístico pode ser eficiente, divulgar a oferta de seu produto, veiculou propaganda em
e em qual ambiente. O que se pode dizer é que o ar sorum- jornal local, anunciando a venda de estantes padrão mogno, a
bático de alguns operadores do Direito não se justifica, pois um preço muito baixo.
o bom h u m o r nunca retira a seriedade de n e n h u m traba- Policiais da Delegacia do Consumidor, em diligência no
lho; entretanto, o aprofundamento e a respeitabilidade d o local, verificaram que a estante anunciada não era de mogno
ambiente em que se desenvolve o discurso judiciário auto- maciço, mas de madeira de inferior qualidade, apenas reves-
riza reprovação severa a bobices que sejam inoportunas, que tida com uma película que imita a cor da madeira de mogno.
suqam como verdadeira fuga a uma discussão mais apro- Em virtude da existência de tal publicidade enganosa,
fundada da matéria colocada sob a dialética suasória. Ade- entende a acusação que o ora réu deve estar incurso na pena
mais, a generalização é a grande tendência do humor, e pode do artigo 7? da Lei n? 8.137, que dispõe que:
ir de encontro a princípios éticos seguros, o que nunca é
desejável. Art. 7° Constitui crime contra a relação de consumo:*
VII. induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de
Mal colocado, o ridicularizador toma-se ridículo^.
indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza,
qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer
meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária.
Pena - detenção, de 2 a 5 anos, ou multa.

O argumento a coherentia é, nos dizeres de Perelman, No entanto, a defesa tem visão muito diversa da aplica-
aquele "que, partindo da idéia de que u m legislador sensa- ção do ditame legal retro recortado. Na verdade, se for ad-
tó - e q u g ] ^ suggHfríbêrnpérfeitamente p r e v i d e n í £ . ^ ã o . mitida que a propaganda objeto da presente ação é de fato
pode regulamentarlTrriãfnésmXsituãção de duas maneiras enganosa, o réu deveria estar incurso em outro dispositivo

9. 'Incidit in Jóveam qui primus fecerat illam' - Cai na cova quem a cavara. 10. Lógica jurídica, pp. 78-9.
186 ARGUMENTAÇÃO JURÍDÍÇA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 187

legal, qual seja o artigo 66 do Código de Defesa do Consu n h u m operador do Direito está predisposto a admitir que o
midor, que assim dispõe: legislador, em sua tarefa, caia em contradição. É tarefa her-
menêutica dirimi-la, pela unidade e harmonia do ordena-
Art. 61. Constituem crimes contra ás relações de consu- mento. Desse modo, qualquer argumento que invoque jus-
mo previstas neste Código, se.m prejuízo do disposto no Có- tificativa para configurar como ilusória a contradição do le-
digo Penal e leis especiais, as condutas tipificadas nos arti- gislador, reforçando a coerência do ordenamento jurídico, é
gos seguintes. persuasivo.
Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir
Tem-se como máxima jurídica que quem exerce direito
informação relevante sobre a natureza, característica, qualida-
de, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, pre- seu a ninguém prejudica. Desse modo, denunciar u m deli-
ço ou garantia de produtos ou serviços: to cometido por alguém não pode constituir dano moral ao
Pena - detenção de três meses a um ano e multa. delinqüente, pois, se a denúncia é direito garantido pelo or-
denamento, este mesmo não pode impor-the sanção, ainda
Ora, como pode haver dois dispositivos legais vigentes, que meramente civil, uma vez que se presume seja o orde-
cominando pena para a mesma conduta, a de publicidade namento coerente, e qualquer antinomia ou conflito entre
enganosa? Como um cânone legai pode impor a pena máxi- normas é mera aparência, passível de ser resolvida por re-
ma de cinco anos para uma conduta enquanto outro, para a gras gerais de hermenêutica ou princípios gerais de Direito.
mesma conduta, impõe pena máxima de apenas um ano? Trata-se de u m raciocínio a coherentia.
Teria cochilado o legislador?
Entendemos que não: o artigo 7? da Lei nf 8.137 deve fera combater o argumento a coherentia nâp. há rpgXô
ser aplicado quando exista um consumidor lesado, enquanto PvidpntpjTnig^rjp^P ''P'" J^Pêlisado caso a caso Ern gpraj^ o ar-
o artigo 66 do Código do Consumidor, com reprimenda me- gumento a coherentia implica comparação^e valores diver-
nos grave, tem cabível sua aplicação quando a publicidade sos, e a doutríriã""é ã Jurisprudência tratam de resolver anti-
enganosa não causa dano efetivo, mas a mera pontenciaii- nomias do próprio ordenamento, o que está mais.próiüilia
dade dele. Ou seja, quando nenhum consumidor é efetiva- da hermenêutica e de suas regras clássicas..
mente levado a erro.
No presente caso, como não houve prova de a publici-
dade enganosa haver logrado algum consumidor, deve-se
aplicar o artigo de menor reprimenda, qual seja o do CDC. L e i ou brechas da lei?

* Diante de dois artigos de lei que reprimiam a mesma Quando tratamos da coerência do ordenamento j u i
conduta, a publicidade enganosa, com penas muito diferen- dico, sob o ponto de vista da argumentação, fazemos u
tes, o argumentante procurou a aplicação da lei mais bené- breve parêntese para abordar uma questão que com fre-
fica à parte que defendia. Não admitiu que o legislador h o u - qüência se coloca: o trabalho do operador do Direito com as
vesse prescrito duas normas para o mesmo fato e, então, "brechas" da lei.
encontrou u m diferencial: a efetiva lesão do consumidor. fera quem já lida com o Direito freqüentemente, o te-
Assim, procura persuadir o leitor pela aplicação do artigo ma pode parecer pueril: conhece do sistema jurídico suas
que prescreve menor sanção. antinomias e resolve lacunas ou conflitos de normas sem
O efeito persuasivo desse tipo de argumento é bastan- grandes dificuldades. Mas a alguns ainda resta a visão - l u -
te contundente, na medida em que, até subjetivamente, ne- gar-comum, ao certo - de que o operador do Direito, e n o
188 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ESTRUTURA lÔGlCA E ARGUMENTO 189
ra ao corpo de Polinice, acreditando que o sepuitamento era
mais das vezes o advogado, trabalha com as aludidas "bre-
um dever sagrado, foi condenada à morte. Estabelece-se,
chas": procura falhas na enunciação do conjunto normativo
assim, o conflito entre duas ordens: a lei religiosa, que A n -
para criar argumentos que, à evidência, contrariam a v o n -
tade da lei. tígona pretende seguir, e a proibição secular, fruto do gênio
do rei Creonte. O trecho recortado é uma das falas mais
Pois é a observação de que ainda subsiste a alguns essa
contundentes da obra:
idéia de desvirtuamento do contexto normativo por meio
da argumentação que faz com que tal tema seja aqui nova-
mente invocado. U m dos entraves à busca da boa argumen- CREONTE - E, contudo, tiveste a ousadia de desobedecer a
tação, e do próprio trato com o Direito, é observar a lei essa determinação?
como dogma inatingível, indiscutível ou impossível de alte- ANTÍGONA - Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Justi-
rar-se. Em u m sistema dogmático, certo é que a lei deve ser ça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, ja-
observada, pois a decisão judicial é a aplicação do Direito, e mais estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco
este como direito posto. Todavia, a complexidade d o siste- acredito que lua proclamação tenha legitimidade para con-
ma normativo cria nele, sim, contradições e interpretações ferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, nunca
das mais diversas, próprias do raciocínio h u m a n o . Novas escritas, porém irrevogáveis; não existem a partir de ontem,
tendências doutrinárias, peculiaridades do caso concreto, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém pode dizer desde
interpretações jurisprudenciais, combinação com valores quando vigoram! Decrelós como o que proclamaste, eu,
maiores - por vezes até do próprio sistema normativo - i m - que não temo o poder de homem algum, posso violar sem
põem que uma norma específica deva ter seu significado fle- merecer a punição dos deuses! Que vou morrer, bem o sei;
xibilizado ou agudizado, de acordo com a coerência de u m é inevitável; e morreria mesmo sem o teu decreto. E para di-
raciocínio, u m percurso argumentativo. E, assim, isso que os zer a verdade, se morrer antes do meu tempo, será para
leigos chamam de trabalhar com brechas da lei nada mais é mim uma vantagem! Quem vive como eu, envolta em tanto
do que assumir como premissa que a lei é u m objeto de luto e desgraça, que perde com a morte? Por isso, a sorte
criação do raciocínio humano; e, porque humano, sujeito à que me reservas é um mal de bem pouca monta; muito mais
submissão a outros percursos que a combinem, interpre- grave seria aceitar que o filho de min/a mãe jazesse inse-
tem ou relativizem. A norma não aparece, no sistema argu- pulto; tudo o mais me é indiferente! Se julgas queJxmc^H
mentativo, como uma verdade absoluta, mas como u m a d i - um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa
retriz dogmática da decisão do juiz, sujeita a construção ar - de loucura!
^m^itativa^
V ^5Bsefveo texto a seguir, retirado da peça Antígona, de Antígona discute com o tio a legitimidade de sua or-
Sófocles" (em tradução de ] . Meiville), escrita quatro sécu- dem. Observa nela a obra do arbítrio humano, no caso cor-
los antes de Cristo. Antígona, filha de Édipo e Jocasta, pre- rompido por momentâneos interesses, e assim a sopesa,
tendia enterrar seu irmão Polinice. Entretanto, Creonte, tio diante de outros valores que estabelece para si: invoca a ine-
de Antígona e rei de Tebas, proibira, por norma sua, tal se- vitabilidade da morte e o que a pena estabelecida pelo rei
pultamento, porque Polinice houvera combatido contra sua lhe significa, particularmente.
pátria. Antígona, por desobedecer a Creonte e dar sepultu- Ilustrativo o trecho: a lei não é feita para ser desobede-
cida, mas sua origem humana impõe que seja sempre ana-
lisada fl coherentia, e por isso o Direito reserva o dever de
W Antigma. p. % .
190 A/íc;t;M£NTAÇÃO JURÍDICA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 191
fundamentação e a possibilidade constante de argumenta- cionamento ainda mais incisivo que aquele que se pretende
ção na aplicação de qualquer norma. Não existe por detrás demonstrar. Veja como isso ocorre no exemplo abaixo:
da lei uma vontade insuperável, que permita dizer que u m
raciocínio completo, razoável e persuasivo de sua interpre- O contrato trazido à execução não serve para alicerçar a
tação seja u m injusto aproveitamento de suas "brechas". ação executória pretendida. Isso porque falta ao contrato a
Dentro, claro, dos limites da razoabilidade, da progressão assinatura de duas testemunhas, um dos requisitos do título
executivo extrajudicial, de acordo com o artigo 585, inciso 11,
aceitável de u m contexto argumentativo.
do Código de Processo Civil. A jurisprudência pátria tem en-
Daí o grande valor dos argumentos apresentados nes-^ tendido, ademais, que o documento meramente rubricado
te tópico. í ^ \ por duas testemunhas não preenche os requisitos do título
executivo, como se lê no julgado abaixo:
"(.-1 A rubrica não permite identificar-se quem é que a
lavrou no documento. Assim não atende ao escopo do artigo
585 do CPC, que é o de trazer duas outras pessoas que fir-
O argumento a fortiori é típico do raciocínio jurídico mem a validade do documento. [...]"
porque impõe a distinção entre normas proibitivas e per- Ora, se tem-se entendido, como acima provamos, que
missivas. E muito difundido, pois é c o m u m na dialética fo- a mera rubrica da testemunha não serve para conferir ao do-
rense. A fartiori significa com maior razão. A r g u m e n t a n d o a cumento particular o status de título executivo, porquanto a
lei exige seja ele assinado, um título em que sequer consta a
fartiori, o discupante impõe uma analogia comTum plUsTò
rubrica das testemunhas deve ser entendido, com mais ra-
de que sèu'raciociniò tem ainda maior rãzãõ gara valer do
zão, como inapto para sustentar ação de execução.
que aqude_£ue_sena^fruto da analogia perfeita.^. Veremos
casos mais concretos.
O trecho mostra a aplicação de argumento a minori ad
Ele divide-se em dois tipos distintos: o argurnento a mi- maius. Se existe o entendimento de que a norma proíbe a
nori ad maiuse o a maiori aafmtyius. Em aTnfíoshá^õlhèsrno executoriedade do documento meramente rubricado por
princípio de que, se umaJionnaJu.ríBícãlITTpSeTrma çQndu- duas testemunhas - porque rubrica não é o mesmo que as-
ta a alguém, com ainda mais razão determina u m a conduta sinatura - , com mais razão ge deve entender que ela proflje a-
qúe tenha as mesmas características, mas com a i n d a ^ j í õ r executoriedade do título sem assinatura e sem rubrica. /
intensidade,gravidade o u razão. .O segundo t i p o d e argumento a fortiori éo argumento
' CTargumento a minori ad tnaius aplica-se n o C ^ ^ Q a maiori ad minus, o qual é bem enunciado no brocardo quem
píescriçõesj\egatiya*r Formulemos a seguinte hipótese: £ode ofamajsjpode o menos. Seu raciocínio é análogo ao tipo
se uma lei prescreve que não se pode trafegar de noite com exposto acima, frias com aplicação para normas permissi-
os faróis do veículo apagados, a fartiori deve-se entender vas em vez de proibitivas: sg^ lei cqnçpdp rpi-tq henefício a
que é proibido trafegar de noite com u m veículo sem fa- alguém, coju certeza concede u m benefícicMnenor, que esfá
róis. Se a leiproíbe o menor, evidentemente deyç proihfr cõhTíririnele. Se uma jurisprudência recortada em u m dis-
Qjnaior curso defende que aquele que cometeu crime com abuso
O argumento a minori ad maius tem aplicação prática de violência possa responder a processo cm liberdade, com
quando se investiga a jurisprudência e a doutrina, e se en- mais ramo deve livrar-se solto aquele que cometeu o mes-
contra, em julgados o u em obras da literatura jurídica, posi- mo delito sem o uso da violência.
192 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA
ESTRUTURA LÕCICA E ARGUMENTO 193
U m argumento a maiori ad minus é exposto no exem-
corporal leve depende da condição da representação, a for-
plo abaixo, que, ainda que longo, demonstra evidente e per- tiori deve exigir para a contravenção de vias de fato, que nada
suasivo raciocínio a fortiori: mais é que a agressão sem lesãa Assim, se a efetiva lesão é
agraciada com a condição da representação, o mero perigo de
O réu é acusado pela contravenção de vias de fato, por- lesão - as vias de fato - também rnerece o mesmo benefício,
que haveria empurrado sua ex-esposa para fora de casa, des- a medida despenalizadora.
ferindo-lhe também leve bofetada, no intuito de fazer cessar Dessa forma, a presente ação deve ser condicionada à
seus berros descontrolados. existência de representação do ofendido.
É certo que o delito de vias de fato se configura pela
briga sem lesão corporal, conforme assenta toda a doutrina O argumento do peticionário é simples e bastante
e a jurisprudência, como se lê, por exemplo, na lavra do de-
persuasivo: se a lei concede u m benefício para u m delito
sembargador Munhoz Gonçalves, com destaques nossos:
mais grave, a lesão corporal leve, com mais razão {a fortio-
" A agressão a socos e pontapés, de que não resulta ferimentos
ri) deve conceder o mesmo benefício a u m crime menos
na vítima, caracteriza contravenção de vias de fato" (RT
451/466). grave, a contravenção de vias de fato. Esse argumento tem
Em virtude da animosidade momentânea que houve por base a lógica jurídica, a proporcionalidade entre as pe-
entre o casal, no momento da ação contraventora, a viti- nas e, assim, os benefícios legais devem também resguardar
mada queixou-se na delegacia, dando azo ao início da um mínimo de proporcionalidade. Q u e m pode o mais pode
persecução criminal que redundou no presente processo. o menos.
Entretanto, a vitimada, agora já passada a emoção passio- O argumento a fortiori é extremamente persuasivo,
nal daquele momento, não pretende de forma alguma dar porque seu arcabouço lógico é incontestável e cabível e m
continuidade ao presente processo, conforme declarou inúmeros casos. Sua construção, entretanto, leva por ve-
em juízo. zes à falácia, porquanto se procura ampliar ou restringir
Ainda assim, o Ministério Público pretende levar adian- interpretação da lei vedada explicitamente pelo próprio
te a ação penal, por entender ser ela de natureza pública, Direito.
não condicionada à representação, como ocorre com todas
N o entanto, argumentar a fartiori hão significa apenas
as contravenções penais.
Ocorre que a Lei dos Juizados Especiais Criminais, estender o sentido da norma jurídica. Significa, sim, estên-
em seu artigo 88, inseriu, para determinados crimes de dê-lo com maior razão, como ocorre no exemplo acima.
menor monta, uma medida despenalizadora específica, f^ra c m n h ^ t p T ^ g r g i i m e n t r i ^ / o r i f o r / basta buscar
^ qual seja a exigência de representação do ofendido. Assim imperfeição na analogia, já que é a analogia seu primeiro
dispõe o aludido artigo de lei, abaixo copiado, com desta- subsTfãtrt: N o T x è m p l õ da"di5firição entre vias de fato e
ques nossos: lesão corporal leve, basta recorrer ao princípio da reser-
Art. 88: Além das hipóteses do Código Penal e da le- va legal para demonstrar-se que os favorecimentos jurí-
gislação especial, dependerá de representação a ação pe- dicos devem ter interpretação estrita e, assim, se a lei não
nal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões fizer exata alusão às vias de fato, aquele que as praticou
culposas. não merece o favor iuris. Mas isso não descarta a validade
Mas o que é a lesão corporal dolosa leve? Nada mais e a força persuasiva do raciocínio lógico desse tipo de ar-
que a contravenção de vias de fato de que adveio resultado, gumento.
a lesão. Então, se a lei determina que a ação penal para lesão
194 ^ /PT ARGUMENTAÇÃO/UR/DÍCA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 195

O corax Não deixa de ser curioso que a perfeição tome-se alvo


de crítica, mas o córax fundamenta-se na vaidade o na ga-
O argumento do córax é aquele que, conforme Reboul", nância da mente humana, tão complexa e impenetrável que
consiste em dizer que uma cqisaé inverossímil^or ser veros- sempre representa material argumentativo riquíssimo ao
símirdemais. Argumento corriqueiro para osoperadores d o argumentante: quando existe a simulação ou a mentira, apa-
Direito penal, embora esteja vivo e m outras searas. rece a tendência da hipervalorização do aparente, que su-
Os operadores do Direito que têm experiência em lides pera a própria realidade. Assim, o relógio falso é - aos olhos
forenses sabem quão complexa é a produção probatória, do leigo - mais bonito que o verdadeiro, mas essa beleza
como é difícil encontrar uma construção dc uma versão s ó - denuncia ao cxpert a falsidade do produto, do mesmo m o d o
lida em m è i o ã p r o v a s que a p o n t ã m ^ r a s c n t i d o s j s v é z e s que a testemunha que guarda detalhes extremos daquilo que
diametralmêrite o p o s t o s j ) o c u m e n t o s q u e faltam, versões diz ter presenciado mais parece, na verdade, não ter visto
diferenterparã"cã3ãléstemunha, insegurança em reconhe- absolutamente nada.
cimentos, lapsos de memória, intimidações, troca de n ú -
fera combater o argumento d o x ó r a x ^ b e apenas refor-
meros, tudo isso forma lacunas preenchidas pela argumen-
çar as provasj)erfeitas, demor\aiiaDdp que o argumentante
tação, pelo raciocínio lógico, pela razoabilidade.
que invoca o córax o encontrou comq^única saída,~fãiaaò-
O argumento d o córax_procurademonsri^ que, à a u - sa, óianTè"dácontúndêncTa~tra prova que deveria entrerifãr.
sência dessaslãcunas, apãrecèri imperFeição da vüisau apH?-
Mas não se pode negar que, em certos casos peculiares, o
sentada_. feradoxal_porque_â ^StSSa^3Í:!s:ssxiéB=^:S^^
argumento do córax aparece como raciocmio absolutamen-
âa imperfeição, mas naverdade a pseudoperfeição é apenas
te persuasivo. \
o rhbriõpêTóqúáí se manitestariêugenüidrnentridojer h u -
mano, manipulãncío a própria realidaóri.
' " "NSíTtõram nem serão poucas as vezes que os defenso-
res do tribunal do júri demonstrarão que depoimentos pres- Argumento ad hominem
tados em delegacia por várias testemunhas foram escritos
pela mesma pena incriminadora, apenas porque descrevem Toda argumentação, porque direcionada a u m auditó-
o mesmo fato sem qualquer contradição. De tão pouco rio, ainda que não determinado especificamente, podq-se-
contraditórios, os depoimentos passam a ser inverossímeis. dizer dirigida ad hominem, aos homens, a não ser que se tra-
Do mesmo modo funciona o argumento daquele que jura, te de uma argumentação ad humanitatem, buscando-se u m
aos brados, na mesa do bar, que matará Tício, e Tício apa- auditório universal". Entretanto, d i z - s p a r g i j m e n t n ad hn-..
rece morto no dia seguinte. A incriminação daquele que j u -
rara a morte é tão evidente que chega a ser mais provável
todo o povoado conhece o fato de a personagem Santiago Nasar estar na imi-
que outro inimigo do vitimado, mais oportunista, tenha se nência de ser assassinado, como no trecho que ora transcrevemos: ' ...Victória
aproveitado da ameaça para cumprir seu intento crimino- Guzmân, por sua vez, foi terminante na resposta de que nem ela nem a filha
so". A o menos é disso que se vale esse tipo de raciocmio. sabiam que estavam esperando Santiago Nasar para matá-lo. Mas, ao longo
de seus anos, admitiu que ambas já o sabiam quando ele entrou na cozinha
para tomar café. Disse-lhe uma mulher, que passou depois das cinco para pe-
dir um pouco de leite por amor de Deus, e revelou também os motivos e o lu-
12. introdução, cit,, p. 3. gar onde o estavam esperando. 'Não o preveni porque pensei que era conver-
13. Exempiu literário de morte tão evidente que parece inverossímil está sa de bêbado', disse" (p. 23).
na obra Crônicíi de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez, em que 14. PERELMAN. Tratado, cit. p. 125.
196 A R G U M E N T A Ç Ã O JURÍDICA ESTRUTURA LÓGICA L ARGUMENTO 197

minem aquele^ue_bi^ca_criticar mais determinado h o m e m preconceito, injustificáveis, portanto. Desse modo, o argu-
dò que as idéias que ele profere", j mento ad hominem só pode realmente ser entendido como
Muitos autores'assentam ser esse tipo de argumento insulto, sendo desde logo acatado pelo interlocutor como uma
uma falácia, porquanto os ataques pessoais não desquali- fuga à verdadeira discussão que se trava.
ficam suas fontes, e, portanto, não se' poderia construir Entretanto, quando tratamos longamente do argumen-
uma argumentação sólida corri base em ataques às pes- to ad verecundiam, fizemos várias recomendações a respeito
soas que proferem argumentos fortes. Os argumentos va- da propriedade de se questionar da autoridade suas qualifi-
lem por sua materialidade lógica e seu confronto com a cações pessoais para figurar em tal posto, de modo a poder
realidade, e não pelas boas ou más características d o ora- fazer presumir que seus pronunciamentos são todos corre-
dor que a profere. tos. Ora, então a argumentação ad hominem pode ser licita-
Todavia, seria exagero qualificar o argumento ad homi- mente levantada em um discurso sem que importe, de i m e -
nem somente como ofensa pessoal, falta de decoro que deve diato, em levar o discurso às raias da ofensa pessoal e da
ser evitada a qualquer custo, pois há breves exceções que falta de brio, como acontece corriqueiramente nos debates
transformam esse tipo de argumento em elemento lingüís- políticos mais acalentados.
tico oportuno, verdade que em ocasiões excepcionais. Walton divide tal tipo de argumento em três classes d i -
A regra, de fato, é a de que os ataques pessoais à parte versas. O primeiro deles, o argumento ad hominem abusivo,
contrária apenas prejudicam aquele que os profere, porque em que se centra o ataque diretamente à pessoa do argu-
no mais alto grau de discussão, mormente no discurso j u - mentante, incluindo-se o vilipêndio a sua confiabilidade
diciário, aquele que pretende julgar pouco se interessa pe- como pessoa ou a seu próprio caráter. Esse tipo de argu-
las figuras dos argumentantes, mas vê (ou deveria ver) maior mento é aquele em que se tende à ofensa pura, como que
representatividade no conteúdo de seu discurso. Weston cita puxando à discussão elementos que efetivamente nela não
o bom exemplo de von Mises, explicando os ataques ilegíti- cabem, tal como no exemplo anterior, em que a nacionali-
mos à pessoa do economista Ricardo'": dade ou a origem étnica do autor foram trazidas ao discur-
so como meio de combater as idéias objetivas levantadas
A teoria de Ricardo é espúria aos olhos dos mandslas pelo professor Ricardo. É corriqueiro n o (mau) discurso p o -
porque Ricardo era um burguês. Os racistas alemães conde- lítico, quando se ouvem falas como "Você é u m ladrão e,
nam a mesma teoria porque Ricardo era judeu, e os naciona- portanto, não deveria sequer falar de corrupção na políti-
listas alemães porque era um inglês... Alguns professores ca", como se a má reputação do argüente fosse causa bas-
^ alemães formulam conjuntamente esses três argumentos
tante para apagar toda uma série de razões objetivas que
contra a validade das lições de Ricardo.
demonstram uma efetiva denúncia de corrupção. O u então
colocações do tipo: " u m candidato que foi traído pela m u -
É evidente que os ataques à pessoa de Ricardo não bas-
lher não merece meu voto", furtando-se a discutir ou ouvir
tam a qualquer professor para que possa desqualificar suas
seu programa de governo, ou "quem é aquele professor, bê-
lições, notadamente se envolvem questões originárias dc
bado famoso, que acha que pode me ensinar Direito, se não
sabe nem zelar pela própria bebedeira?", como se o possí-
15. Cf. W A L T O N , Douglas, informal legk. cit, p 134: "is the kind trfar-
vel alcoolismo afastasse totalmente a possibilidade de ser
gument that criticizes the arguer rather than his argument". uma autoridade em determinada matéria.
16. EflS claves, cit., p. 64.
198 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 199

O argumento ad hominem abusivo" - pode-se perceber frentar, desviando-se de u m coerente percurso para a fuga
por sua própria denominação - não se justifica em n e n h u - às idéias objetivas colocadas pela parte contrária.
ma hipótese que não a retorsão a uma ofensa pessoal (mas Porém há excepcionais momentos em que o argumen-
nesse caso, entendemos, afasta se o eslúdb-da argumenta- to ad hominem não representa uma má argumentação, uma
ção, que não pode oferecer nenhüma teoria em momentos falácia. A pessoa que argumenta é em regra elemento peri-
em que a discussão passa a exceção absoluta). férico, circunstancial, mas às vezes é de tamanha relevância
O segundo tipo de argumentação ürf hominem, na con- o que ocorre com essa pessoa que ela pode se transformar,
cepção de Walton, é o argumento ad hominem circunstan- licitamente, em objeto da própria discussão. O terceiro tipo
cial. É aquele em que se infere ou se demonstra que a posi- de argumento ad hominem, então, é o não-falacioso.
ção do argumentante não é compatível com o teor das idéias Vejamos os versos que se declamavam à época do
ou argumentos que ele apresenta. Nessa circunstância, o império'*:
argumento ad hominem passa a ter certo valor, sem que cons-
titua ofensa grave, em termos de discurso. Assim, se alguém Nós temos um rei
se coloca em posição de aconselhar que u m governo não Chamado João...
possa endividar-se (o que representa uma idéia correta e Faz o que lhe mandam.
objetivamente apresentada), pode-se dizer que aquele que Come o que lhe dão.
defende essa idéia não deveria sustentá-la, pois sua gestão E vai para Mafra
criara grande dívida ao Estado. O argumento continua sen- Cantar cantochão.
do direcionado ad hominem, ou seja, mais à pessoa que pro-
priamente às idéias que profere, mas o reforço da incompa- Diante do endurecimento de Napoleão em suas rela-
tibilidade entre estas e aquela serve como excelente meio ções com Portugal e à subserviência dessa metrópole ao rei-
de persuasão. no inglês, dom João, regente português em fuga no Brasil,
governando em lugar de dona Maria I , a Viradeira, estabe-
É natural que se espere consistência daquele que advo-
leceu o domínio inglês no mercado brasileiro, abriu os por-
ga determinada idéia, embora sempre se procure evitar o
tos àquela nação e depois retomou a Lisboa, atendendo à
envolvimento das pessoas que argumentam na matéria dis-
vontade de Carlota Joaquma, rainha. Demonstrou sua fra-
cutida. Assim, age em argumento ad hominem circunstancial
queza, seja diante do império francês, do reino inglês ou dos
o promotor de justiça do tribunal do júji que diz aos jurados
próprios governantes estabelecidos em-Fbrtugal. ferece evi-
que o advogado só defende as barbaridades que o acusado
dente que a fraqueza pessoal do governante, demonstrada
cometera porque ganhara de seu cliente uma vasta quantia
por episódios dessa monta, expanda-se a seu governo; as-
em dinheiro a título de honorários, e que portanto não esta-
sim se faz tremendamente lícito, nesse contexto, a cobran-
ria intimamente convencido daquilo que diz. Ainda que
ça do povo dirigida diretamente à personalidade do seu
possa ser verdade, a argumentação ad hominem toma-se fa-
pretenso chefe de Estado.
laciosa, pois não combate os argumentos que deveria en-
Quando a crítica, como nos versos satíricos do Brasil
colônia, apontam diretamente à pessoa do rei, não se pode
17. Pode-se traçar um paralelo entre o argumento ad hominem abusivo e
o que Perelman chama de argumento ad personam, a pura ofensa pessoal (cf.
Tratado, cil., p. 127). 18. ROCHA, Jucenir. 6rasi7 cwi (rês tempos: a história é essa?, p. 40.
200 ARGUMENTAÇÃO fURlDlCA ESTRUTURA LÓGiCA E ARGUMENTO 201

dizer que não seja objetiva a argumentação em face da sua A argumentação então algumas vezes tangencia as pes-
conduta diante d o governo que exerce. Ele, pelo papel so- soas envolvidas no debate, oral ou escrito; basta lembrar que
cial que representa, deve responder por seus atos pessoais é p e l a argupientação qd jnmjnem qijp^pj-pfi,itaj^^^r^rppn-
que impliquem conseqüências em relação à sua conduta to de autoridade". Fbrtanto, é cabível esse tipo de argumenta-
com o governo. Nesse mesmo, contexto não se faz falácia çãojriesde que não represente inBe\a3Í5.ga
uma referência ad hominem como a abaixo reproduzida: fonte (talvez em raras vezes) de grande força suasória, cotnõ
- usa-se para concluir - aparece na ficção de WesE°, narran-
A defesa (ou o defensor) leu vários depoimentos ten- do a resposta de Giordano Bruno aos cardeais inquisidores
tando conduzir à inocência do acusado. Não leu aos senho- gerais do Santo Ofício, que sob a acusação de heresia fora
res jurados, entretanto, os depoimentos mais isentos, pois expulso de todas as ordens eclesiásticas:
essa leitura não interessa ao posicionamento que a defesa
advoga. Frei G. Bruno:
Neste exato momento penso
A referência a interesses é tão explícita que não chega Que maior do que o medo que vos tenho
a ser ofensiva, mas pode ser extremamente útil no caso do É o medo que tendes, senhores.
discursante, se ele entender ser hora de reforçar aos inter- De mim.
locutores, os jurados, as diferenças de conduta entre acusa-
ção e defesa.
Aludir às pessoas pode não ser recomendável, mas, Conclusão
como se vê, há momentos em que se torna razoável, princi-
palmente quando a parte contrária utiliza-se de valores pes- Os argumentos que se desenvolvem com maior espe-
soais em seu favor, como ao dizer "sou mais velho, conheço cificidade no discurso judiciário têm características diversas
bem mais a vida que o outro advogado", ou " m e u conheci- e poderiam ser agrupados de modo mais ortodoxo, que se-
mento é muito maior porque sou especialista nessa área". ria entretanto menos funcional. Este Jjvro seria uma cópia
Em suma, não se pode absolutamente recomendar a de outros, caso se restringisse a uma reprodução da s^gte-
argumentação ad hominem, pois o ideal seria a argumenta- matização argumentativa feita com o brilhantismo de A r i s -
ção que jamais recaísse nas pessoas que se digladiam. Fbr o u - tóteles ou com o estudo de renomados estrangeiros que n o
tro lado, não se pode pretender, em uma obra de objetivos contexto hodierno realçam suas teorias com grande apro-
tftmbém práticos, alcançar uma separação total entre o ar- fundamento, ainda que suqam objas inteiras de paráfrases
güente e suas idéias, pois isso seria uma quimera. A r g u m e n - de u m ou outro estudo mais denso.
tação e argumentante estão, na prática, indissociavelmente Nossa preocupação não é enumerar tipos de argumen-
ligados, e não é raro que o interlocutor atente para as carac- tos em grande quantidade, o que seria simples buscando
terísticas físicas daquele que fala, sua roupa, seu modo de se
expressar, e todos esses detalhes que fazem parte da orató-
ria; ou até mesmo para a assinatura daquele que propõe u m 19. "There are two ways of undermining your opponenfs use of autho-
rity, eilhet by an ad hominem attack on his specific authorities, or by providing
pedido ou argumentação escrita, como se essa valesse mais counter aulhorities..." (CAPALDI, Nicholas. The Art of Ekceptian: an Introduc-
que o próprio conteúdo da petição. N o último capítulo, tra- tion to Criticai Thinking, p. 101).
tando de estilo, voltaremos a este assunto. 20. O f i e r ^ , p. 195
Capítulo X!
Argumentação fraca:
fuga e senso comum
Argumentar pelo senso comum não é, claro, a melhor
técnica jurídica. Mas haverá momentos em que será necessá-
rio enunciar o óbvio na progressão discursiva.

A argumentação corriqueira

A argumentação tem altos e baixos. Existem m o m e n -


tos tópicos da construção de u m discurso, em que idéias
complexas se combinam para levar o interlocutor a aceitar
determinado resultado: argumentos encontram-se e se-
param-se, convergem para uma mesma conclusão por u m
mesmo caminho ou por trilhas diversas, dependendo da
estratégia do orador. Por vezes, percorrem raciocínios
complexos, como o córax o u o argumentum ad absurdum;
mas também há momentos em que o discurso não pode
pretender alcançar grande profundidade, por desviar-^e
da pretensão do discursante, de uma coerência que beire a
perfeição.
A cozinheira que faz u m b o m arròz com feijão não é
melhor nem pior, na culinária, que u m c/ie/estrangeiro que
prepare uma sofisticada lagosta com molhos de ervas. A p e -
nas cada u m se presta a seus momentos e sua realidade, e
aplica-se a fazer bem aquilo a que se propôs: uma boa co-
mida caseira ou um prato top de u m restaurante caro. Mas
(continuando na culinária), em contrapartida, o cliente do
nosso refinado restaurante não suporta comer todos os dias
a mesma lagosta com ervas, e pode u m dia achar esplêndi-
do u m baião-de-dois, que talvez o requintado chef não sai-
ba preparar.

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