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Coisas que quase todo mundo imagina errado sobre o domínio dos espanhóis do continente
Beto Gomes
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Cortez em Tenochtitlan, em quadro de 1848 | Crédito: Wikimedia Commons
Nem bem o sol iluminou o lago Texcoco, no imenso Vale do México, os dois maiores líderes do
Novo Mundo colocaram-se frente a frente. Era 8 de novembro de 1519 e havia anos que
Apesar da expectativa de um encontro amigável, a tensão era tão óbvia quanto inevitável.
Espanhóis e astecas trocavam olhares, até que Montezuma desceu de sua pequena tenda e foi
em direção aos invasores. Cortez repetiu o gesto. Saltou do cavalo e seguiu ao encontro do
imperador. A tensão aumentava a cada passo. Olhos nos olhos, eles esboçaram saudações de
respeito mútuo, mas não trocaram mais do que poucas palavras, com a ajuda de um intérprete.
Tenochtitlán, a capital do império asteca. Alguns meses depois, os dois lados voltariam a se
encontrar. Mas, desta vez, numa sangrenta batalha que culminaria com a morte de Montezuma
entre dois continentes. E não por acaso. Pela primeira vez, um imperador nativo acolheu em
suas terras o representante de um povo que estava ali justamente para conquistá-las. Além
disso, as diferenças culturais entre os dois grupos nunca estiveram tão expostas quanto
naquela manhã de novembro. Estas diferenças, além das idiossincrasias do século 16,
ajudaram a perpetuar pelos séculos o que o historiador americano Matthew Restall, professor
Esses mitos podem ser identificados na figura de Cortez, até hoje citado por sua genialidade
militar, pela forma como usou e inovou a tecnologia disponível na época, pela maneira astuta
como manipulou “índios supersticiosos” e pelo modo heróico com que levou algumas centenas
de espanhóis à vitória, contra um império de milhares de guerreiros. Mas a história não foi bem
assim. Desde a primeira vez que Cristóvão Colombo pisou nas ilhas do Caribe, os homens
Cristóvão Colombo estava em algum lugar do Atlântico, em 1504, quando a rainha da Espanha
enviou uma esquadra para prendê-lo e levá-lo acorrentado para a Europa. Desde sua primeira
viagem pelo Novo Mundo, seu prestígio já não era o mesmo. Sua insistência na mentira de que
havia achado uma nova rota para as Índias, fato que lhe rendeu títulos e status, havia deixado
a coroa espanhola irritada depois que Vasco da Gama contornou o Cabo da Boa Esperança e
deu aos portugueses a liderança na corrida por um caminho mais curto para o Oriente.
pária. Mas como, depois de morto, ele se tornaria um herói? Para Restall, a idéia de que ele foi
Unidos. Colombo foi tomado como símbolo dessa nova terra: aventureiro, destemido, um gênio
a frente de seu tempo. “Mas a coisa mais espetacular sobre a visão geográfica de Colombo era
a de que estava errada. A percepção de que a Terra era redonda, fato geralmente citado para
imputar-lhe a condição de visionário, por exemplo, era comum a qualquer pessoa escolarizada
Esse é só um exemplo do mito de que a conquista da América só foi possível graças à coragem
e à genialidade de meia dúzia de conquistadores e que surgiu desde os primeiros relatos dos
colonizadores enviados à Espanha. Para obter a permissão de explorar novas terras, eles
precisavam provar que a colonização era rentável e, para tanto, escreviam qualquer lorota:
Pizarro, responsáveis pelos tombos dos impérios asteca e inca, respectivamente, foram
cronistas e religiosos que participaram das expedições ajudaram a construir esta imagem, por
meio das cartas enviadas à coroa, chamadas de probanzas de mérito (ou “provas de mérito”).
Pelo menos num ponto, porém, os relatos tinham razão: a desvantagem numérica dos
espanhóis – fato que os levou a derrotas freqüentemente ignoradas nas tais probanzas de
nenhum momento eles apresentaram novas táticas de guerra e, na maior parte do tempo o que
fizeram foi seguir rotinas adotadas em conflitos anteriores ao descobrimento. Uma das mais
importantes foi a aliança com os nativos (que veremos mais adiante). Mesmo assim, eles não
abriram mão de procedimentos igualmente eficientes, mas que nada tinham de inventivos: o
uso da violência indiscriminada para intimidar os resistentes. Nos casos extremos, pessoas
eram decepadas ou queimadas vivas em praça pública, tinham braços e mãos amputados e
suas famílias recebiam seus corpos, o que costumava garantir a submissão de outros nativos.
potentes armas da época e aguardavam apenas a ordem de seu capitão para marchar em
direção às terras do Novo Mundo. Disciplinados, estavam prontos para enfrentar o inimigo.
Faziam parte de uma grande operação militar. Afinal, eram soldados. Esta cena jamais
aconteceu, mas passa a idéia, constantemente repetida em filmes, ilustrações e livros, de que
os conquistadores eram militares enviados pelo rei e faziam parte de uma máquina de guerra.
Mas, então, quem eram eles? Nobres aventureiros ou plebeus em busca da terra prometida? A
rigor, nem uma coisa, nem outra. Em sua maioria, os espanhóis eram artesãos, comerciantes e
viagens desse tipo e sem qualquer treinamento militar. Armavam-se como podiam e entravam
na primeira companhia que pudesse lhes render a quantia necessária para investir em outras
seja, o direito de cobrar taxas e impostos sobre a produção de uma determinada área
A maioria dos conquistadores não recebia ajuda financeira da coroa. Em geral, viajava por sua
conta e risco em busca de status e dinheiro. Ou, no máximo, tinha um vínculo com eventuais
qualquer forma, eles não eram pagos, tampouco obrigados a viajar. E muito menos soldados
3. Guerreiros invisíveis
O mito de que poucos soldados brancos venceram milhares de guerreiros índios
Quando o conquistador Bernal Díaz de Castillo viu a capital asteca pela primeira vez, não
conseguiu descrever a visão que teve do alto do Vale do México. A metrópole pontilhada de
pirâmides, irrigada por canais navegáveis, engenhosamente construída para ser a referência
de outras grandes cidades do império, poderia ser comparada às maiores capitais européias.
Uma pergunta talvez lhe tenha surgido: como poucos de nós poderemos subjugá-la? Seguindo
o mesmo raciocínio, como apenas centenas de europeus poderiam vencer os milhões de índios
espalhados pelo continente? Nem a “genialidade” de seus líderes, a pólvora ou o aço espanhol
A primeira é que os espanhóis sempre foram minoria nos campos de batalha da América, mas
jamais lutaram sozinhos. Os nativos nunca formaram uma unidade política, nem no caso de
aproveitaram, desde muito cedo, dessa desunião, conseguindo formar verdadeiros exércitos
índios, dispostos a eliminar seus inimigos. Na primeira vez que Cortez chegou a Tenochtitlán,
mais de 6 mil aliados davam cobertura aos espanhóis, que eram cerca de 200. Na batalha final,
alguns meses depois, ele conseguiu reunir mais de 200 mil homens para tomar a capital
asteca. “As pessoas tendem a imaginar que os povos americanos eram unidos em torno de
América, encontraram várias tribos rivais, que não precisavam de mais que um empurrãozinho
Além disso, no final do século 16, cerca de 100 mil africanos desembarcaram na América. A
princípio, eles trabalhavam como serventes e auxiliares dos espanhóis, mas, sempre que
necessário, recebiam armas para lutar contra os inimigos. Como recompensa, ganhavam a
O mito de que, em pouco tempo, toda a América estava sob jugo espanhol
mil guerreiros e 50 cidades. Todos estes nativos têm sido e continuam sendo fiéis vassalos de
Vossa Majestade. E acredito que eles sempre serão”. A carta de Cortez enviada ao rei da
Espanha dá uma boa idéia de como funcionava a burocracia da conquista. Para o monarca,
não bastava o conquistador encontrar uma terra e reivindicar o direito de explorá-la. Ele
precisava convencê-lo de que aquela região era economicamente viável, de preferência com
minas de ouro e prata, e contava com mão-de-obra para tirar dali tais riquezas. Como resultado,
os líderes espanhóis não pensavam duas vezes antes de carregar seus pedidos com
informações exageradas.
Essa combinação de fatores contribuiu para a criação do mito de que a conquista total dos
povos americanos foi alcançada logo nos primeiros anos da presença espanhola. Muitas
independentes só foram dominados depois de 1570, após a morte de líderes como Túpac
Amaru. Quando os espanhóis fundaram Mérida, em 1542, boa parte da península de Yucatán,
na América Central, permaneceu sob a influência dos maias – e muitas políticas elaboradas por
eles sobreviveram até 1880. A experiência espanhola na atual Flórida, nos Estados Unidos, foi
ainda mais desastrosa. Pelo menos seis expedições foram enviadas para lá entre 1513 e 1560,
quando a região finalmente foi controlada pelos europeus. Mas um dos exemplos mais curiosos
vem da bacia do Prata, onde os fundadores de Buenos Aires, em 1520, viraram jantar de tribos
canibais.
Outro aspecto que mostra que a conquista não foi total era a relativa autonomia que alguns
nativos mantiveram em relação aos seus dominadores – condição sancionada pelos próprios
oficiais espanhóis, que procuravam não intervir nas regras que vigoravam antes de eles
chegarem. E não por acaso. Esta era mesmo a melhor forma de garantir a manutenção das
fontes de trabalho e da produção agrícola. Além disso, membros da elite nativa participavam
dos conselhos das cidades coloniais, onde eram tomadas as decisões mais importantes. Ou
seja, além de continuar influenciando politicamente, eles mantiveram o status que tinham antes
da descoberta.
5, As palavras de La Malinche
O mito de que a falta de comunicação levou ao massacre indígena
Foi na praça central da cidade inca de Cajamarca que Pizarro e Atahualpa se viram pela
primeira vez, em 1532, numa espécie de versão peruana do encontro entre Montezuma e
Cortez. Ao lado do conquistador, menos de 200 homens armados pareciam não temer os mais
de 5 mil nativos leais ao imperador. E, de fato, eles não tinham porque se intimidar: a maioria
dos locais não possuía uma arma sequer. O primeiro espanhol a se aproximar de Atahualpa foi
um frei dominicano que segurava uma pequena cruz numa das mãos e a Bíblia na outra. Em
Há várias versões sobre os motivos que causaram a briga e sobre como a batalha de
Cajamarca começou. Francisco de Jerez, presente no local, escreveu que o imperador atirou a
Bíblia ao chão, porque não a entendia. A blasfêmia teria sido o motivo para Pizarro dar o sinal
de ataque. Na versão inca, no entanto, a ofensa partiu dos espanhóis, que teriam se recusado a
É praticamente impossível saber o que aconteceu de fato naquele dia, mas o encontro
comunicação serviram para justificar as ações dos europeus e, por conseqüência, a própria
conquista. Mas estas falhas não eram tão freqüentes assim. O diálogo entre Montezuma e
Cortez, por exemplo, apesar de ter gerado diferentes interpretações, mostra que os dois lados
podiam se entender muito bem. Isso graças a uma figura central durante todo o processo de
colonização: os intérpretes. O papel deles foi tão importante que um dos principais
tradutores se deram tão bem que alcançaram status inimagináveis para um nativo. Receberam
encomiendas e chegaram a ser citados nas cartas enviadas ao rei. O exemplo mais famoso é o
de La Malinche, a amante e intérprete que acompanhou Cortez durante anos e esteve presente
A derrota de Cortez era inevitável. Havia horas que ele e seus guerreiros lutavam contra a
união de três exércitos inimigos na grande praça central de Tlaxcala, uma comunidade nativa
ele seria vencido. E foi mesmo. Ainda no chão, Cortez pôde ouvir os aplausos efusivos da
platéia. Aquela encenação do dia de Corpus Christi ficou conhecida como o evento teatral mais
O Corpus Christi de Tlaxcala não foi o único festival do século 16 no Novo Mundo. A imensa
maioria das colônias da Mesoamérica e dos Andes encenou, dançou e até representou as
batalhas contra os espanhóis. Muitas dessas manifestações culturais sobrevivem até hoje. Mas
o curioso é que o objetivo não era reconstruir a conquista como algo traumático. Ao contrário.
cultural. “Eram eventos que transcendiam aquele momento histórico particular e não estavam
associados à lembrança de algo ruim. Até porque o sentimento de derrota não era algo comum
Manifestações desse tipo eram apenas uma das formas pelas quais os nativos mostravam que
o impacto da conquista não foi tão traumático quanto sugere boa parte da retórica comum.
Muitas comunidades mantiveram seu estilo de vida e outras tantas evoluíram rapidamente com
Aprenderam novas formas de contar, construir casas, planejar cidades e, sobretudo, guerrear.
Assim, houve nativos que enriqueceram com o comércio de alimentos e com o aluguel de
mulas. O povo Nahua, por exemplo, depois de lutar ao lado dos espanhóis por anos,
organizaram campanhas militares próprias e expandiram seus domínios para além das terras
“Os espanhóis têm a governar estes bárbaros do Novo Mundo. Eles são em prudência,
ingenuidade, virtude e humanidade tão inferiores aos espanhóis quanto as crianças são para os
1547. O mito da superioridade espanhola é visto em todos os relatos do período colonial. Para
Restall, ele vem desde as primeiras expedições e está ligado à justificativa de que os europeus
tinham a aprovação divina para conquistar novas terras. Eles acreditavam que eram os
Existem outros fatores, no entanto, que ajudaram a perpetuar este mito. Um deles combina a
crença de que os nativos seriam incapazes de evitar a invasão dos europeus porque eles (os
nativos) também acreditavam que os espanhóis eram deuses. De fato, os povos americanos
mesmo nos relatos dos cronistas do período colonial – os nativos comparam os espanhóis a
seres supremos, ou deidades. Além disso, a diferença brutal entre as armas dos dois grupos
Mas Deus não foi o principal aliado dos espanhóis. A expansão dos europeus só foi possível
graças a três fatores. O primeiro e mais determinante foram as doenças que os estrangeiros
trouxeram. Sem oferecer nenhuma resistência para varíola, sarampo e gripe, os nativos
morreram tão rápido que em poucas décadas tribos inteiras foram extintas. O impacto das
epidemias foi tão devastador que, um século e meio após a chegada de Colombo, a população
de nativos havia caído mais de 90%. Os astecas sentiram o poder desses males. “As ruas
estavam tão cheias de gente morta e doente que nossos homens caminhavam sobre corpos”,
O segundo aliado foi a desunião dos nativos. A rivalidade entre diferentes grupos étnicos e
intrigas entre vizinhos levou dezenas de milhares de pessoas a lutarem ao lado dos espanhóis.
As armas que os conquistadores trouxeram para estas batalhas são o terceiro fator mais
importante. Nas primeiras expedições, várias delas fizeram diferença. Cavalos e até cachorros
acabaram entrando nos campos de batalha. Mas a mais eficiente foi mesmo a espada, mais
longa e resistente que os machados dos nativos. No campo da guerra, Matthew Restall
considera ainda um outro fator. Os nativos lutavam em sua própria terra. Precisavam, portanto,
proteger a família, defender suas casas, pensar no plantio, calcular a colheita e fazer o possível
para não deixar que a guerra prejudicasse e interferisse no seu dia-a-dia. Por isso, eles sempre
espanhóis não tinham muito a perder. Basicamente, precisavam se preocupar apenas com
suas próprias vidas. E com o que teriam de fazer para continuar conquistando novas cidades e
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