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CHARLES BAUDELAIRE

PEQUENOS POEMAS EM PROSA


O SPLEEN DE PARIS
XXIX.
SUMÁRIO XXX.
XXXI.
XXXII.
A ARSÈNE HOUSSAYE............................................................ XXXIII.
XXXIV.
I. O ESTRANGEIRO...................................................................4 XXV.
II. O DESESPERO DA VELHA.................................................4 XXVI.
III. A CONFISSÃO DO ARTISTA............................................4 XXVII.
IV. UM GOZADOR.....................................................................4 XXVIII.
V. O QUARTO DUPLO..............................................................5 XXIX.
VI. CADA UM COM SUA QUIMERA.....................................7 XXX.
VII. O LOUCO E A VÊNUS......................................................8 XXXI.
VIII. O CÃO E O FRASCO.......................................................9 XXXII.
IX. O MAU VIDRACEIRO.......................................................10 XXXIII.
X. À UMA HORA DA MANHÃ...............................................12 XXXIV.
XI. A MULHER SELVAGEM E A PEQUENA-AMANTE..13 XXXV.
XII. AS MULTIDÕES...............................................................15 XXXVI.
XIII. AS VIÚVAS.......................................................................16 XXXVII.
XIV. O VELHO SALTIMBANCO...........................................18 XXXVIII.
XV. O BOLO..............................................................................20 XXXIX.
XVI. O RELÓGIO.....................................................................22 XL.
XVII. XLI.
XVIII. XLII.
XIX. XLIII.
XX. XLIV.
XXI. XLV.
XXII. XLVI.
XXIII. XLVII.
XXIV. XLVIII.
XXV. XLIX.
XXVI. L. OS BONS CÃES
XXVII.
XXVIII.
III. A CONFISSÃO1 DO ARTISTA
I. O ESTRANGEIRO Como os fins dos dias de outono são penetrantes! Ah! penetrantes
- Que tu mais amas, homem enigmático, diz? teu pai, tua mãe, tua até a dor! Pois há certas sensações deliciosas das quais a vagueza não
irmã ou teu irmão? exclui a intensidade; e não há ponta mais aguda que a do infinito.
- Não tenho nem pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. Grande delícia esta de afogar seu olhar na imensidão do céu e do
- Teus amigos? mar! Solidão, silêncio, incomparável castidade do azul! uma pequena vela
- Você se serve de uma palavra cujo sentido me permanece até este tremulante ao horizonte, e que, por sua pequenez e seu isolamento, imita
dia desconhecido. minha irremediável existência, melodia monótona das ondas, todas essas
- Tua pátria? coisas pensam por mim, ou eu penso por elas (pois na grandeza do
- Ignoro sob qual latitude ela está situada. devaneio, o eu se perde depressa!); elas pensam, digo eu, mas musical e
- A beleza? pitorescamente, sem argúcias, sem silogismos, sem deduções.
- De bom grado a amaria, deusa e imortal. Todavia, esses pensamentos, que saem de mim ou se lançam das
- O ouro? coisas, tornam-se tão logo intensos demais. A energia na volúpia cria um
- Eu o odeio como você odeia a Deus. mal-estar e um sofrimento positivo. Meus nervos por demais tensos não
- Eh! Que amas então, extraordinário estrangeiro? rendem senão vibrações estridentes e dolorosas.
- Eu amo as nuvens... as nuvens que passam... por lá... por lá... as E agora a profundeza do céu me consterna; sua limpidez me
maravilhosas nuvens! exaspera. A insensibilidade do mar, a imutatibilidade do espetáculo, me
revoltam... Ah! será preciso eternamente sofrer, ou fugir-se eternamente do
belo? Natureza, feiticeira sem piedade, rival sempre vitoriosa, deixe-me!
Cesse de tentar meus desejos e meu orgulho! O estudo do belo é um duelo
II. O DESESPERO DA VELHA em que o artista grita de pavor antes de ser vencido.
A pequena velha emurchecida se sentiu toda contente vendo sua
bela criança a quem todos faziam festa, a quem todos queriam aprazer; esse
belo ser, tão frágil como ela, a pequena velha, e, como ela também, sem
dentes e sem cabelos. IV. UM GOZADOR
E ela se aproximou dele, querendo fazer-lhe graças e caras Era a explosão do ano novo: caos de lama e de neve, trespassado
agradáveis. por mil carruagens, cintilantes de brinquedos e balas, fervilhante de
Mas a criança apavorada se debatia sob as carícias da bondosa cupidezas e desesperos, delírio oficial de uma grande cidade feito para
mulher decrépita, e enchia a casa com seus ganidos. atormentar o cérebro do solitário o mais forte.
Então a bondosa velha se retirou em sua solidão eterna, e chorava Em meio a essa algazarra e a esse clamor, um burro trotava com
num canto, dizendo a si: “Ah! para nós, desgraçadas velhas fêmeas, a idade
de aprazer passou, mesmo aos inocentes; e horrorizamos as criancinhas que 1
Confissão é a tradução de confiteor. A definição da palavra é uma prece católica que começa
queremos amar!” por essa própria palavra pela qual aquele que a entoa se reconhece como pecador. Mais do que
uma simples confissão, o sentido do termo remete também à religiosidade, à oração e ao
reconhecimento católico do ato de pecar inerente ao espírito humano, o qual se perde,
infelizmente, na tradução.
vivacidade, molestado por um brucutu com um chicote em punho. cama; desabafa em cascatas nevoentas. Sobre essa cama está deitada a
Como o burro fosse dobrar a esquina de uma calçada, um belo Ídola2, a soberana dos sonhos. Mas como ela está aqui? Quem a trouxe?
senhor enluvado, lustrado, cruelmente engravatado e aprisionado nesses que poder mágico a instalou sobre esse trono de sonho e de volúpia? Que
hábitos novos, se inclinou cerimoniosamente frente à humilde besta e lhe importa? está aqui! Eu a conheço.
disse, tirando seu chapéu: “Desejo-lhe boa felicidade!” então se virou para Vê-se bem seus olhos cuja flama atravessa o crepúsculo; essas sutis
não sei que camaradas com um ar de fatuidade, como a pedir-lhes que e terríveis retinas, que reconheço devido à sua assustadora malícia! Elas
acrescentassem sua aprovação a seu contentamento. atraem, elas subjugam, elas devoram o olhar do imprudente que as
O burro não viu este belo gozador, e continuou a correr com zelo contempla. Eu muito as estudei, essas estrelas negras que comandam a
para onde seu dever o chamava. curiosidade e a admiração.
A mim, fui pego subitamente de uma incomensurável raiva contra A qual demônio benevolente devo eu de estar assim volteado de
esse magnífico imbecil, que me parece concentrar em si todo o espírito da mistério, de silêncio, de paz e de perfumes? Oh beatitude! o que nomeamos
França. geralmente a vida, mesmo em sua mais feliz expansão, não tem nada de
comum com essa vida suprema da qual tenho agora conhecimento e que
saboreio minuto por minuto, segundo por segundo!
Não! não há mais minutos, não há mais segundos! O tempo
V. O QUARTO DUPLO desapareceu; é a Eternidade quem reina, uma eternidade de delícias!
Um quarto que se assemelha a um devaneio, um quarto Mas um golpe terrível, pesado, retiniu na porta, e, como nos sonhos
verdadeiramente espiritual, onde a atmosfera estagnante é ligeiramente infernais, pareceu-me que eu recebia um golpe de picareta no estômago.
tentada de rosa e de azul. E então um Espectro entrou. É um meirinho que vem me torturar
Onde a alma toma um banho de preguiça, aromatizado de nostalgia em nome da lei; uma infame concubina que vem bradar miséria e unir as
e desejo. É algo de crepuscular, de azulado e de rosado; um sonho de trivialidades de sua vida às dores da minha; ou o mensageiro de um diretor
volúpia durante um eclipse. que reclama a continuação do manuscrito.
Os móveis têm formas alongadas, prostradas, lânguidas. Os móveis O quarto paradisíaco, a ídola, a soberana dos sonhos, a Sílfide,
têm o ar de sonhar; dir-se-ia que são dotados de uma vida sonâmbula, como dizia o grande René, toda essa magia desapareceu ao golpe brutal
como o vegetal e o mineral. Os tecidos falam uma língua muda, como as desferido pelo Espectro.
flores, como os céus, como os sóis poentes. Horror! eu me lembro! eu me lembro! Sim! esse pardieiro, essa
Nas paredes nenhuma abominação artística. Relativamente ao morada de eterno tédio, é bem a minha. Aqui estão os móveis sem espírito,
sonho puro, à impressão não analisada, a arte definida, a arte positiva é empoeirados, disformes: a chaminé sem flama sem brasa, manchada de
uma blasfêmia. Aqui, tudo tem a suficiente clareza e a deliciosa escarros; as tristes janelas onde a chuva traçou sulcos na poeira; os
obscuridade da harmonia. manuscritos, rasurados ou incompletos; o almanaque onde o lápis marcou
Um aroma infinitesimal da mais requintada escolha, à qual se as datas sinistras!
mistura uma leve umidade, nada nessa atmosfera, onde o espírito sonhador E esse perfume de um outro mundo, do qual eu me embriago com
é embalado por sensações de estufa quente.
A musselina chove abundantemente frente às janelas e frente à 2
Embora essa palavra em português seja masculina, respeitamos o tom feminino dado a essa
imagem no poema.
uma sensibilidade perfeccionista, ai! é substituído por um odor fétido de terror do inimigo.
tabaco misturado a um não sei que nauseabundo bolor. Respira-se aqui Eu questionei um desses homens, e perguntei-lhe aonde eles iam
agora o ranço da desolação. assim. Ele me respondeu que não sabia de nada, nem ele, nem os outros;
Nesse mundo estreito, mas tão pleno de nojo, um único objeto mas que evidentemente eles iam a alguma parte, pois estavam tomados por
conhecido me sorri: o frasco de láudano; um velho e terrível amigo, como uma invencível necessidade de marchar.
todos os amigos, ai!, fecundo em carícias e em traições. Coisa curiosa a notar: nenhum desses viajantes tinha o ar irritado
Oh! sim! o Tempo reparou: o Tempo reina soberano agora, e com o contra a besta feroz suspensa a seu pescoço e colada a seu busto; dir-se-ia
hediondo velho retorna todo seu demoníaco cortejo de Lembranças, de que ele a considerava como fazendo parte de si mesmo. Todos esses rostos
Lamentos, de Espasmos, de Medos, de Angústias, de Pesadelos, de Cólera cansados e sérios não testemunhavam nenhum desprezo; sob a cúpula
e de Neuroses. spleenética do céu, os pés mergulhados na poeira de um solo tão desolado
Eu lhes asseguro que os segundos agora são forte e solenemente quanto esse céu, eles caminhavam com a fisionomia resignada daqueles
acentuados, e cada um, jorrando do pêndulo, diz: “- Eu sou a Vida, a que são condenados a esperar sempre.
insuportável, a implacável Vida!” E o cortejo passou ao lado de mim e adentrou na atmosfera do
Há apenas um Segundo na vida humana que tem por missão horizonte, ao lugar onde a superfície arredondada do planeta se esquiva à
anunciar uma boa nova, a boa nova que causa a cada um um inexplicável curiosidade do olhar humano.
medo. E durante alguns instantes obstinei-me em querer compreender esse
Sim! o Tempo reina, ele retoma sua brutal ditadura. E ele me mistério; mas logo a irresistível Indiferença se abateu sobre mim, e fui por
possui, como se eu fosse um boi, com seu duplo aguilhão. – “E vá então! ela mais pesadamente assolado do que foram eles por suas esmagadoras
burrego! Então sue, escravo! Então vive, danado!” Quimeras.

VI. CADA UM COM SUA QUIMERA VII. O LOUCO E A VÊNUS


Sob um grande céu cinza, numa grande planície empoeirada, sem Que dia admirável! O vasto parque se pasma sob o olho ardente do
caminhos, sem relvado, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei muitos sol, como a juventude sob a dominação do Amor.
homens que marchavam curvados. O êxtase universal das coisas não se exprime por nenhum ruído; as
Cada um deles trazia sobre o torso uma enorme Quimera, tão próprias águas estão como adormecidas. Bem diferente das festas humanas,
pesada quanto um saco de farinha ou de carvão, ou a provisão de um esta aqui é uma orgia silenciosa.
infante soldado romano. Dir-se-ia que uma luz sempre crescente faz de mais a mais cintilar
Mas a monstruosa besta não era um peso inerte; ao contrário, ela os objetos; que as flores do céu pela energia de suas cores, e que o calor,
envolvia e oprimia o homem com seus músculos elásticos e potentes; ela se tornando visíveis os perfumes, os faz subir ao astro como fumaças.
agarrava com suas duas vastas unhas ao busto de sua montada; e sua Contudo, em meio a esse regozijo universal, eu percebi um ser
cabeça monstruosa sobrelevava a fronte do homem, como um desses afligido.
capacetes horríveis pelos quais os antigos guerreiros esperavam unir ao Aos pés de uma colossal Vênus, um desses loucos artificiais, um
desses bobos voluntários encarregados de fazer rir os reis quando o vezes com uma rapidez da qual elas próprias se creriam incapazes.
Remorso ou o Tédio os atordoa, fantasiados de um figurino vistoso e Como quem, temendo encontrar junto ao zelador uma notícia
ridículo, coberto de chifres e sinetas, todo amontoado junto ao pedestal, desoladora, ronda covardemente sua porta sem ousar entrar, como quem
ergue os olhos cheios de lágrimas à imortal Deusa. guarda há quinze dias uma carta sem abri-la, ou só se resigna ao fim de seis
E seus olhos dizem: “Eu sou o último e o mais solitário dos meses a efetuar um empreendimento necessário desde há um ano, se
homens, privado de amor e de amizade, e bem inferior nisso ao mais sentem bruscamente precipitados à ação por uma força irresistível, como a
imperfeito dos animais. Contudo sou feito, eu também, para compreender e flecha de um arco. O moralista e o médico, que pretendem tudo saber, não
sentir a imortal Beleza! Ah! Deusa! tenha piedade de minha tristeza e de podem explicar de onde vem tão subitamente uma tão louca energia a essas
meu delírio!” almas preguiçosas e voluptuosas, e como, incapazes de executar as coisas
Mas a implacável Vênus olha ao longe não sei o que com seus olhos mais simples e mais necessárias, encontram a um certo minuto uma
de mármore. coragem de luxo para realizar os atos mais absurdos e freqüentemente mais
perigosos.
Um de meus amigos, o mais inofensivo sonhador que existiu, ateou
fogo uma vez a uma floresta para ver, dizia ele, se o fogo pegaria com tanta
VIII. O CÃO E O FRASCO facilidade quanto geralmente se afirma. Dez vezes seguidas, a experiência
“Meu belo cão, meu bom cão, meu querido totó, aproxime-se e falhou; mas, à décima primeira, ela prosperou mais até do que devia.
venha respirar um excelente perfume comprado na melhor perfumaria da Um outro acendeu um cigarro ao lado de um barril de pólvora, para
cidade”. ver, para saber, para tentar o destino, para constranger a si mesmo a uma
E o cão, abanando o rabo, o que é, creio eu, nesses pobres seres, o prova de energia, para fazê-lo jogador, para conhecer os prazeres da
signo correspondente do riso e do sorriso, se aproxima e pousa ansiedade para nada, por capricho, por desocupação.
curiosamente seu focinho úmido sobre o frasco destampado; então, É uma espécie de energia que jorra do tédio e do devaneio; e
recuando subitamente com pavor, ele late contra mim, com ar de aqueles em quem ela se manifesta tão inopinadamente são, em geral, como
reprovação. o disse, os mais indolentes e os mais sonhadores dos seres.
“Ah! miserável cão, se eu lhe tivesse oferecido um pacote de Um outro, tímido a tal ponto que baixa os olhos mesmo diante dos
excrementos, você o teria farejado como delícias e talvez o devorado. olhares dos homens, a tal ponto que lhe é preciso juntar toda sua pobre
Assim, você mesmo, indigna companhia de minha triste vida, você se vontade para entrar em um café ou passar em frente ao balcão de um teatro,
assemelha ao público, a quem não se pode jamais presentear com perfumes onde os fiscais lhe parecem investidos da majestade de Minos, Éaco e
delicados que o exasperam, mas de imundícies cuidadosamente Radamanto, se jogou bruscamente ao pescoço de um velho que passou ao
escolhidas”. seu lado e o abraçou com entusiasmo frente à multidão apavorada.
Por quê? porque... porque essa fisionomia era-lhe irresistivelmente
simpática? Talvez; mas é mais legítimo supor que ele mesmo não sabe por
IX. O MAU VIDRACEIRO que.
Há naturezas puramente contemplativas e inteiramente impróprias à Eu fui vítima mais de uma vez dessas crises e desses ímpetos, que
ação, que, contudo, sob uma impulsão misteriosa e desconhecida, agem por nos autorizam a crer que Demônios maliciosos penetram em nós e nos
fazem realizar, sem nos darmos conta, suas mais absurdas vontades. sempre pagar caro por elas. Mas que importa a eternidade da danação a
Uma manhã eu me levantei aborrecido, triste, cansado de quem encontrou num segundo o infinito do júbilo?
ociosidade, e inclinado, parecia-me, a fazer alguma coisa de grande, uma
ação esplendorosa; e abri a janela, hélas!
(Observem, peço-lhes, que o espírito de mistificação que em
algumas pessoas não é o resultado de um trabalho ou de uma combinação, X. À UMA HORA DA MANHÃ
mas de uma inspiração fortuita, participa muito, não fosse senão pelo ardor Enfim! Só! Não escutamos nada mais que o andar de alguns fiacres
do desejo, desse humor, histérico segundo os médicos, satânico segundo os retardados e extenuados. Durante algumas horas, possuiremos o silêncio,
que pensam um pouco melhor que os médicos, que nos impele sem senão o repouso. Enfim! A tirania da face humana desapareceu, e já sofro
resistência a uma multidão de ações perigosas ou inconvenientes). somente por mim mesmo.
A primeira pessoa que percebi na rua foi um vidraceiro cujo grito Enfim! Já me é concedido, então, descansar num banho de trevas!
agudo, dissonante, subiu até mim através da pesada e imunda atmosfera Primeiro, uma dupla volta à fechadura. Parece-me que esse giro de chave
parisiense. Ser-me-ia, de longe, impossível dizer por que eu fui preso ao aumentará minha solidão e fortalecerá as barricadas que me separam
olhar desse pobre homem, de um ódio tão súbito quanto despótico. atualmente do mundo.
“Eh! Eh!” e eu lhe gritei que subisse. Contudo eu refleti, não sem Vida horrível! Cidade horrível! Recapitulemos o dia: ter visto
algum júbilo, quanto a que, estando o quarto no sexto andar e a escada diversos homens de letras, dos quais um me perguntou se era possível ir à
muito estreita, o homem deveria provar de alguma pena a realizar sua Rússia por via de terra (ele devia pensar, sem dúvida, que a Rússia é uma
ascensão e esbarrar em numerosos lugares os ângulos de sua frágil ilha); ter discutido generosamente com o diretor de uma revista, que a cada
mercadoria. objeção respondia: “Aqui é o partido das pessoas honestas”, o que implica
Enfim ele parou; eu examinei com curiosidade todos os seus vidros, que todos os outros jornais são redigidos por velhacos; ter saudado umas
e disse-lhe: “Como? você não tem copos de cores? copos rosas, vermelhos, vinte pessoas, quinze delas desconhecidas; ter distribuído apertos de mão
azuis, vidros mágicos, vidros de paraíso? Impudente você! ousa caminhar na mesma proporção, e isso sem ter tido a precaução de comprar luvas; ter
pelos bairros pobres, e não tem nem mesmo vidros que fazem ver a vida subido para matar o tempo, durante uma enxurrada, à casa de uma saltarela
em sua beleza!” E o empurrei vivamente pela escada, onde ele tropeçou, que me pediu que lhe desenhasse um traje de Venustre; ter cortejado a um
grunhindo. diretor de teatro, que disse a mim, ao despedir-se: “Você faria bem, talvez,
Aproximei-me da sacada e me servi de um vasinho de flores, e em dirigir-se a Z...; é, de todos os meus autores, o mais grosseiro, mais tolo
quando o homem reapareceu à saída da porta, deixei cair e mais célebre; com ele você poderia conseguir alguma coisa. Fale com ele,
perpendicularmente meu engenho de guerra sobre a borda superior de suas e depois veremos”; ter me gabado (por quê?) de várias ações vis que jamais
forquilhas; e o choque o derrubando, ele acabou de estilhaçar sobre seu cometi, e ter covardemente negado alguns outros males que levei a cabo
dorso toda a pobre fortuna ambulante que originou o barulho escandaloso com prazer, delito de fanfarronada, crime de respeito humano; ter recusado
de um palácio de cristal destruído por um relâmpago. a um amigo um serviço fácil, e dado uma recomendação escrita a um
E, bêbado da minha loucura, eu lhe grite furiosamente: A vida em perfeito trapaceiro; Ufa! Acabou?
sua beleza! A vida em sua beleza! Descontente de todos e descontente de mim, bem gostaria de me
Essas gozações nervosas não são desprovidas de perigo, e pode-se redimir e de me vangloriar um pouco no silêncio e na solidão da noite.
Almas daqueles que amei, almas daqueles que cantei, fortalecei-me, desenroladas permanecem um instante penduradas nos dentes da besta
sustentai-me, afastai de mim a mentira e os vapores corruptores do mundo; feroz, da mulher, quero dizer.
e você, Senhor, Deus meu! Concedei-me a graça de produzir alguns belos “Vamos! um bom golpe de vara para acalmá-la! Pois ela dardeja
versos que provam a mim mesmo que não sou o último dos homens, que seus olhos terríveis de cobiça sobre o alimento dela retraído. Grande Deus!
não sou inferior àqueles que desprezo. a vara não é uma vara de brincadeira, você escutou ressonar a carne, apesar
da pele postiça? Também os olhos lhe saltam agora do rosto, ela uiva mais
naturalmente. Em sua raiva, ela cintila inteirinha, como o ferro em que se
bate.
XI. A MULHER SELVAGEM E A PEQUENA-AMANTE “Tais são os costumes conjugais desses dois descendentes de Eva e
“Certamente, minha cara, você me fatiga desmedida e de Adão, obras de vossas mãos, Oh meu Deus! Essa mulher é
impiedosamente; pode-se dizer, escutando-a suspirar, que você sofre mais incontestavelmente infeliz, embora depois de tudo, talvez, as alegrias
que as respigadeiras sexagenárias e que as velhas mendigas que esmolam agradáveis da glória não lhe sejam desconhecidas. Há infelicidades mais
migalhas de pão à porta dos cabarés. irremediáveis, e sem compensação. Mas no mundo no qual ela foi jogada,
“Se ao menos seus suspiros exprimissem o remorso, fariam a você não pôde jamais crer que a mulher mereceria um outro destino.
alguma honra; mas eles traduzem apenas a saciedade do bem-estar e a “Agora, a nós dois, cara preciosa! Vendo os infernos dos quais o
languidez do repouso. E depois, você não para de derramar-se em palavras mundo está povoado, o que você quer que eu pense de seu belo inferno,
inúteis: “Ame-me muito! preciso tanto disso! Console-me por isso, você que apenas repousa sobre os tecidos tão doces quanto sua pele, que
acaricie-me por aquilo!” Pois escute, tentarei curá-la; talvez encontremos o apenas se alimenta de carne cozida, e para quem um hábil doméstico tem o
meio para tanto, por dois tostões, em meio a uma festa, e sem ir muito cuidado de cortar os pedaços?
longe. “E que podem significar para mim todos esses pequenos suspiros
“Consideremos bem, peço-lhe, essa sólida gaiola de ferro dentro da que incham seu busto perfumado, robusta coquete? E todas essas afetações
qual se agita, uivando como um danado, sacudindo as grades como um aprendidas nos livros, e essa infatigável melancolia, feita para inspirar ao
orangotango exasperado pelo exílio, imitando, em sua perfeição, tanto os espectador um sentimento inteiramente diferente da piedade? Na verdade,
saltos circulares do tigre, quanto os bamboleares estúpidos do urso polar, às vezes tenho vontade de lhe ensinar o que é a verdadeira infelicidade.
esse monstro peludo cuja forma imita um tanto vagamente a sua. “Vendo-a assim, minha bela delicada, com os pés no lodo e os olhos
“Esse monstro é um desses animais que chamamos geralmente vaporosamente voltados para o céu, como a rogar-lhe um rei, qualquer um
“meu anjo!” quer dizer, uma mulher. O outro monstro, aquele que grita diria, plausivelmente, tratar-se de uma pequena rã a invocar a sublimação.
com toda a força, com uma vara na mão, é um marido. Ele acorrentou sua Se você despreza a viga (o que sou eu agora, como você bem sabe),
legítima mulher como uma besta, e a expõe nos arrabaldes em dias de feira, cuidado com o guindaste que há de trincá-la, tragá-la e matá-la, a seu bel
com permissão dos magistrados, bem naturalmente. prazer!
“Prestem bem atenção! Vejam com que voracidade (talvez não “Por mais que eu seja poeta, não sou tão tolo quanto gostaria de
simulada!) ela estripa coelhos vivos e aves a piar que lhe atiram seu crer, e se você me cansar demais com seus preciosos choramingos, lhe
cornaca. “Vamos, diz ele, não se deve comer todo o seu bem em um dia”, e, tratarei como mulher selvagem, ou vou atirá-la janela afora, como uma
por essas sábias palavras, ele lhe arranca cruelmente a presa, cujas tripas garrafa vazia”.
agitada e de sua vida tão casta.

XII. AS MULTIDÕES
Não é dado a qualquer um tomar um banho de multidão: gozar das XIII. AS VIÚVAS
aglomerações é uma arte; e somente ela pode, às despensas do gênero Diz Vauvenargues que nos jardins públicos há alamedas
humano, provocar uma fartadela de vitalidade, a quem uma fada insuflou freqüentadas principalmente pela ambição frustrada, pelos inventores
em seu berço o gosto pelo disfarce e pela máscara, a raiva do domicílio e a infelizes, pelas glórias abortadas, pelos corações partidos, por todas essas
paixão pela viagem. almas tumultuosas e impenetráveis, nas quais ainda balbuciam os últimos
Multidão, solidão: termos iguais e convertíveis para o poeta ativo e suspiros de uma tempestade, e que se afastam do olhar insolente dos
fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão, tampouco sabe estar só em ditosos e ociosos. Nesses refúgios sombrios se encontram os aleijados da
uma multidão atarefada. vida.
O poeta goza desse incomparável privilégio, de que ele pode, à sua É, sobretudo, a esses lugares que o poeta e o filósofo gostam de
guisa, ser ele mesmo e outrem. Como essas almas errantes que procuram dirigir suas ávidas conjecturas. Há ali um alento certo. Porque se algum
um corpo, entra quando quer na personagem de cada um. Somente para ele lugar desdenham visitar, como insinuei há um momento, é, sobretudo, a
tudo é vacante; e se alguns lugares lhe parecem estar fechados, é que a seus alegria dos ricos. Tal turbulência no vazio não possui nada que os atraia.
olhos não valem a pena serem visitados. Ao contrário, sentem-se irresistivelmente arrastados pelo que é débil,
O viandante solitário e pensativo obtém uma singular embriaguez arruinado, contristado, órfão.
dessa universal comunhão. Este que desposa facilmente a multidão, Um olhar apurado jamais se engana. Nesses traços rígidos ou
conhece regozijos febris, dos quais serão eternamente privados o egoísta, abatidos, nesses olhos cavos e ternos, ou brilhantes com os últimos
trancado como um cofre, e o preguiçoso, internado como um molusco. Ele lampejos da luta, nessas rugas profundas e numerosas, em seu andar tão
adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias lento ou tão brusco, ele logo decifra as inumeráveis lendas do amor
que a circunstância lhe apresenta. enganado, da abnegação não reconhecida, dos esforços não
O que os homens chamam amor é bem pequeno, bem restrito e recompensados, da fome e do frio humilde e silenciosamente suportados.
débil, comparado a essa inefável orgia, a essa santa prostituição da alma Você, alguma vez, já viu sobre esses bancos solitários viúvas
que se dá toda ela, poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao pobres? De luto ou não, é fácil reconhecê-las. Ademais, há sempre no luto
desconhecido que passa. do pobre algo que falta, uma ausência de harmonia que torna mais
Às vezes é bom ensinar aos bem-aventurados desse mundo, senão angustiante. Ele é obrigado a poupar sua dor. O rico ostenta a sua
para humilhar por um instante seu orgulho tolo, que há felicidades integralmente.
superiores às suas, mais vastas e mais refinadas. Os fundadores de Que viúva é mais triste e entristecedora, a que traz nos braços uma
colônias, os pastores de povos, os sacerdotes missionários desertados nos criança com quem ela não pode partilhar seus devaneios, ou a que está
confins do mundo, sem dúvida conhecem algo dessas misteriosas totalmente só? Não sei... Certa vez cheguei a seguir durante longas horas
embriaguezes; e, no seio da vasta família que seu gênio para si formou, uma aflita velha dessa espécie; tesa, erguida, num xale desgastado, trazia
devem eles, por vezes, rir dos que se compadecem de sua fortuna tão em todo seu ser uma altivez de estóica.
Estava evidentemente condenada, por uma absoluta solidão, a pessoa. Seu rosto, triste e emagrecido, casava perfeitamente com o enorme
costumes de um velho celibatário, e o caráter masculino de seus hábitos luto de que estava vestida. Também ela, como a plebe à qual estava
acrescentava à sua austeridade um toque misterioso. Não sei de que modo e entremeada sem ver-la, mirava o mundo luminoso com um olhar profundo,
em que miserável bar ela almoçou. Segui-a até o gabinete de leitura e a e, com a cabeça docemente abaixada, escutava.
espiei durante longo tempo enquanto ela procurava nas gazetas, com olhos Singular visão! “Certamente – pensei – essa pobreza, se pobreza há,
vivazes, outrora queimados pelas lágrimas, notícias de interesse poderoso e não deve admitir a economia sórdida; um rosto tão nobre mo garante. Por
pessoal. que, então, ela permanece voluntariamente em um meio no qual é mancha
Enfim, à tarde, sob um céu de outono encantador, um desses céus tão vistosa?”
de onde descendem em multidão lamentos e recordações, sentou-se Mas passando curiosamente junto a ela, pensei ter adivinhado a
distante em um jardim, para ouvir, longe do gentio, um concerto desses razão. A grande viúva trazia nas mãos uma criança vestida, como ela, de
cuja música dos regimentos gratifica o povo parisiense. negro; por módico que fosse o preço de entrada, talvez bastasse para pagar
Sem dúvida, essa é a pequena consolo dessa pequena velha inocente alguma das necessidades do pequeno ser, ou, melhor ainda, uma
(ou dessa velha purificada), a consolação bem ganha de um desses dias superfluidade, um brinquedo.
lodosos sem amigo, sem conversa, sem alegria, sem confidente, que Deus E voltará para casa a pé, meditando e sonhando, só, sempre só; pois
deixava cair sobre ela, desde há anos, quiçá! trezentos e sessenta e cinco a criança é travessa, egoísta, sem doçura e sem paciência, e não pode,
vezes por ano. tampouco, como o puro animal, como o cão e o gato, servir de confidente
Uma outra ainda: às dores solitárias.
Nunca pude conter um olhar, senão universalmente simpático, ao
menos curioso, sobre a multidão de párias que se amontoam em torno do
recinto de um concerto público. A orquestra lança através da noite cantos
de festa, de triunfo ou de volúpia. Os vestidos arrastam reluzindo; os XIV. O VELHO SALTIMBANCO
olhares se cruzam; os ociosos, exaustos por não fazerem nada, se Por toda a parte se ostentava, se espalhava, se divertia o povo em
balançam, fingem saborear, indolentes, a música. Aqui nada que não seja férias. Era uma dessas solenidades com as quais contam, com muita
rico, ditoso; nada que não respire e inspire a despreocupação e o prazer de antecedência, os saltimbancos, os prestidigitadores, os domadores de
se deixar viver; nada, exceto o aspecto daquela turba que se apóia lá por animais e os vendedores ambulantes, para compensar os maus tempos do
sobre o cercado externo, apanhando grátis, a mercê do vento, um resquício ano.
de música, e olhando a cintilante fornalha interior. Em dias assim, me parece que o povo esquece tudo, a dor e o
É sempre interessante esse o reflexo da alegria do rico ao fundo dos trabalho; se torna como as crianças. Para os pequenos é um dia de sueto, é
olhos do pobre. Mas nesse dia, através desse povo vestido de blusas e de o horror da escola adiado por vinte e quatro horas. Para os maiores, é um
chita, avistei um ser cuja nobreza fazia um vistoso contraste com toda a armistício concluído com as potências maléficas da vida, uma trégua na
trivialidade em seu entorno. contenda e na luta universais.
Era uma mulher alta, majestosa, e tão nobre em todo seu porte que Até o homem do mundo e o homem dado a trabalhos espirituais
não me recordo de ter visto semelhante a ela nas coleções das aristocráticas escapam dificilmente à influência desse jubileu popular. Absorvem sem
belezas do passado. Um perfume de altaneira virtude emanava de toda sua querer sua parte dessa atmosfera de despreocupação. Quanto a mim, um
verdadeiro parisiense, nunca deixo de passar revista a todas as barracas que Mas que olhar profundo, inesquecível, perpassava sobre a multidão
se pavoneiam nessas épocas solenes. e sobre as luzes, cujo fluxo movediço se detinha a alguns passos de sua
Faziam-se, em verdade, concorrências formidáveis: berravam, repulsiva miséria! Senti a mão terrível da histeria apertar minha garganta, e
bramiam, uivavam. Era uma mistura de gritos, detonações de cobre e me pareceu que me ofuscavam os olhos lágrimas rebeldes que não se
explosões de foguetes. Titereiros e palhaços convulsavam os traços de seus negam a cair.
rostos queimados e enrugados pelo vento, pela chuva e pelo sol; lançavam, O que fazer? Para quê perguntar ao infortunado que curiosidade,
com aprumo dos comediantes seguros de seus efeitos, piadas e brincadeiras que maravilha poderia esconder naquelas trevas malcheirosas detrás da
de uma comicidade sólida e densa como a de Molière. Os Hércules, cortina esfarrapada? Não me atreveria, na verdade; e ainda que a razão de
orgulhosos da enormidade de seus membros, sem fronte e sem crânio, minha timidez possa provocar risos, confessarei que temi humilhá-lo.
como os orangotangos, se espreguiçavam majestosamente sobre as malhas Acabara por fim de resolver-me a deixar, ao passar, algum dinheiro numa
lavadas na véspera para a circunstância. As bailarinas, formosas como daquelas tábuas, esperando que adivinhasse minha intenção, quando um
fadas ou princesas, saltavam e cabriolavam ao fulgor das lanternas a lhes grande refluxo de gente, causada não sei por que perturbação, arrastou-me
encher de chispas as saias. para longe dele.
Tudo era senão luz, poeira, gritos, gozo, tumulto; uns gastavam, E, ao ir embora, obcecado por aquela visão, procurei analisar minha
outros ganhavam, todos igualmente alegres. As crianças se dependuravam súbita dor, e disse a mim: acabo de ver a imagem do literato velho, que
nas saias de suas mães para conseguir uma barra de caramelo, ou subiam sobreviveu à geração da qual foi brilhante animador; do velho poeta sem
nas costas de seus pais para ver melhor um escamoteador resplandecente amigos, sem família, sem filhos, degradado por sua miséria e pela
como um deus. E por toda a parte circulava, dominando todos os perfumes, ingratidão pública, e na barraca de quem o mundo esquecido já não quer
um odor de fritura que era como o incenso dessa festa. mais entrar!
Ao extremo, ao último extremo da fila de barracas, como se,
envergonhado, se houvesse ele mesmo exilado de todos aqueles
esplendores, avistei um pobre saltimbanco, encurvado, caduco, decrépito, XV. O BOLO
uma ruína de homem, recostado num dos mourões de sua choça; uma Eu viajava. A paisagem em meio à qual me situava era de uma
choça mais miserável que a do mais embrutecido selvagem, cuja desolação grandeza e nobreza irresistíveis. Algo delas decerto passou, nesse
era fartamente bem iluminada, todavia, por dois tocos de vela, que momento, à minha alma. Meus pensamentos esvoaçavam com uma
escorriam e fumegavam. ligeireza igual à da atmosfera; as paixões vulgares, como o ódio e o amor
Por toda a parte, alegria, lucro, leviandade; por toda a parte, certeza profano, agora apareciam a mim tão distantes quanto as nuvens que
do pão de amanhã; por toda a parte, explosão frenética da vitalidade. Aqui desfilavam ao fundo dos abismos sob meus pés; minha alma me parecia tão
a miséria absoluta, a miséria embuçada, para cúmulo de horror, de cômicos vasta e pura quanto a cúpula do céu que me envolvia; a lembrança das
farrapos, onde a necessidade, bem mais que a arte, introduzira o contraste. coisas terrestres não chegava ao meu coração senão debilitada e diminuída,
Não ria, o miserável! Não chorava, não dançava, não gesticulava, não como o som do rufo dos rebanhos imperceptíveis que passam longínquos,
gritava; não cantava nenhuma canção, alegre nem lamentável, não bem longínquos, por sobre a encosta de uma outra montanha. Sobre o lago
implorava tampouco. Estava mudo, imóvel. Havia renunciado, abdicado. pequeno, negro por sua imensa profundeza, por vezes passava a sombra de
Seu destino estava cumprido. uma nuvem, como o reflexo da capa de um gigante aéreo voando a cruzar o
céu. E me lembro que essa sensação solene e rara, causada por um grande pareciam prometer as forças infantis? O bolo viajava de mão em mão e
movimento perfeitamente silencioso, me enchia de uma alegria mesclada mudava de bolso a cada instante; mas, ai! mudava também de volume; e
com medo. Assim, senti-me, graças à entusiástica beleza que me rodeava, quando, por fim, extenuados, ofegantes, ensangüentados, detiveram-se por
em perfeita paz comigo mesmo e com o universo; creio até que, em minha impossibilidade de continuar, não havia mais, a bem dizer, nenhum motivo
perfeita beatitude e total esquecimento de todo o mal terrestre, chegara a de batalha; o pedaço de pão tinha desaparecido, e estava espalhado em
não julgar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem tenha migalhas, semelhantes aos grãos de areia com que se misturavam.
nascido bom; – quando, renovadas as exigências da matéria implacável, Esse espetáculo enchera de bruma a paisagem, e o gozo tranqüilo
pensei em reparar a fadiga e em aliviar o apetite causados por uma tão em que fruía minha alma antes de ter visto esses homenzinhos desaparecera
longa ascensão. Saquei do bolso um bom pedaço de pão, uma xícara de totalmente; fiquei muito tempo triste, repetindo-me sem cessar: “Então há
couro e um frasco de certo elixir que os farmacêuticos vendiam naqueles um país soberbo onde o pão se chama bolo, guloseima tão rara que basta
tempos aos turistas para ser misturado oportunamente com água de neve. para engendrar uma guerra perfeitamente fratricida!”
Parti tranquilamente meu pão, quando um ligeiríssimo ruído me fez
erguer os olhos. Ante a mim estava uma criaturinha maltrapilha, negra,
desgrenhada, cujos olhos fundos, ferozes e suplicantes, devoravam o
pedaço de pão. E o ouvi suspirar, com uma voz baixa e rouca, a palavra: XVI. O RELÓGIO
bolo! Não pude conter o riso ao ouvir a apelação com a qual se dignava a
honrar meu pão quase branco, e cortei para ele uma boa fatia que lhe
ofereci. Aproximou-se lentamente, sem tirar os olhos do objeto de sua
cobiça; então, agarrando o pedaço com a mão, retrocedeu vivamente, como
se temesse que minha oferta não fosse sincera ou que logo me arrependesse
dela.
Mas no mesmo instante foi derrubado por outro pequeno selvagem,
saído não sei de onde, e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se
poderia tomá-lo por seu irmão gêmeo. Juntos rolaram sobre o chão,
disputando a preciosa presa, sem que nenhum deles quisesse, é certo,
sacrificar a metade a seu irmão. O primeiro, exasperado, segurou o
segundo pelos cabelos; este lhe agarrou a orelha com os dentes, e cuspiu
um pedacinho ensangüentado com uma soberba maldição dialetal. O
legítimo proprietário do bolo tratou de fincar suas unhas nos olhos do
usurpador; este, por sua vez sobrepôs todas as forças para estrangular seu
adversário com uma mão, enquanto com a outra tentava pôr no bolso o
prêmio do combate. Mas, reanimado pelo desespero, o vencido se reergueu
e fez rolar pelo chão o vencedor com uma cabeçada no estômago. Para quê
descrever uma luta horrorosa que durou, na verdade, mais tempo do que

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