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XII. AS MULTIDÕES
Não é dado a qualquer um tomar um banho de multidão: gozar das XIII. AS VIÚVAS
aglomerações é uma arte; e somente ela pode, às despensas do gênero Diz Vauvenargues que nos jardins públicos há alamedas
humano, provocar uma fartadela de vitalidade, a quem uma fada insuflou freqüentadas principalmente pela ambição frustrada, pelos inventores
em seu berço o gosto pelo disfarce e pela máscara, a raiva do domicílio e a infelizes, pelas glórias abortadas, pelos corações partidos, por todas essas
paixão pela viagem. almas tumultuosas e impenetráveis, nas quais ainda balbuciam os últimos
Multidão, solidão: termos iguais e convertíveis para o poeta ativo e suspiros de uma tempestade, e que se afastam do olhar insolente dos
fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão, tampouco sabe estar só em ditosos e ociosos. Nesses refúgios sombrios se encontram os aleijados da
uma multidão atarefada. vida.
O poeta goza desse incomparável privilégio, de que ele pode, à sua É, sobretudo, a esses lugares que o poeta e o filósofo gostam de
guisa, ser ele mesmo e outrem. Como essas almas errantes que procuram dirigir suas ávidas conjecturas. Há ali um alento certo. Porque se algum
um corpo, entra quando quer na personagem de cada um. Somente para ele lugar desdenham visitar, como insinuei há um momento, é, sobretudo, a
tudo é vacante; e se alguns lugares lhe parecem estar fechados, é que a seus alegria dos ricos. Tal turbulência no vazio não possui nada que os atraia.
olhos não valem a pena serem visitados. Ao contrário, sentem-se irresistivelmente arrastados pelo que é débil,
O viandante solitário e pensativo obtém uma singular embriaguez arruinado, contristado, órfão.
dessa universal comunhão. Este que desposa facilmente a multidão, Um olhar apurado jamais se engana. Nesses traços rígidos ou
conhece regozijos febris, dos quais serão eternamente privados o egoísta, abatidos, nesses olhos cavos e ternos, ou brilhantes com os últimos
trancado como um cofre, e o preguiçoso, internado como um molusco. Ele lampejos da luta, nessas rugas profundas e numerosas, em seu andar tão
adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias lento ou tão brusco, ele logo decifra as inumeráveis lendas do amor
que a circunstância lhe apresenta. enganado, da abnegação não reconhecida, dos esforços não
O que os homens chamam amor é bem pequeno, bem restrito e recompensados, da fome e do frio humilde e silenciosamente suportados.
débil, comparado a essa inefável orgia, a essa santa prostituição da alma Você, alguma vez, já viu sobre esses bancos solitários viúvas
que se dá toda ela, poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao pobres? De luto ou não, é fácil reconhecê-las. Ademais, há sempre no luto
desconhecido que passa. do pobre algo que falta, uma ausência de harmonia que torna mais
Às vezes é bom ensinar aos bem-aventurados desse mundo, senão angustiante. Ele é obrigado a poupar sua dor. O rico ostenta a sua
para humilhar por um instante seu orgulho tolo, que há felicidades integralmente.
superiores às suas, mais vastas e mais refinadas. Os fundadores de Que viúva é mais triste e entristecedora, a que traz nos braços uma
colônias, os pastores de povos, os sacerdotes missionários desertados nos criança com quem ela não pode partilhar seus devaneios, ou a que está
confins do mundo, sem dúvida conhecem algo dessas misteriosas totalmente só? Não sei... Certa vez cheguei a seguir durante longas horas
embriaguezes; e, no seio da vasta família que seu gênio para si formou, uma aflita velha dessa espécie; tesa, erguida, num xale desgastado, trazia
devem eles, por vezes, rir dos que se compadecem de sua fortuna tão em todo seu ser uma altivez de estóica.
Estava evidentemente condenada, por uma absoluta solidão, a pessoa. Seu rosto, triste e emagrecido, casava perfeitamente com o enorme
costumes de um velho celibatário, e o caráter masculino de seus hábitos luto de que estava vestida. Também ela, como a plebe à qual estava
acrescentava à sua austeridade um toque misterioso. Não sei de que modo e entremeada sem ver-la, mirava o mundo luminoso com um olhar profundo,
em que miserável bar ela almoçou. Segui-a até o gabinete de leitura e a e, com a cabeça docemente abaixada, escutava.
espiei durante longo tempo enquanto ela procurava nas gazetas, com olhos Singular visão! “Certamente – pensei – essa pobreza, se pobreza há,
vivazes, outrora queimados pelas lágrimas, notícias de interesse poderoso e não deve admitir a economia sórdida; um rosto tão nobre mo garante. Por
pessoal. que, então, ela permanece voluntariamente em um meio no qual é mancha
Enfim, à tarde, sob um céu de outono encantador, um desses céus tão vistosa?”
de onde descendem em multidão lamentos e recordações, sentou-se Mas passando curiosamente junto a ela, pensei ter adivinhado a
distante em um jardim, para ouvir, longe do gentio, um concerto desses razão. A grande viúva trazia nas mãos uma criança vestida, como ela, de
cuja música dos regimentos gratifica o povo parisiense. negro; por módico que fosse o preço de entrada, talvez bastasse para pagar
Sem dúvida, essa é a pequena consolo dessa pequena velha inocente alguma das necessidades do pequeno ser, ou, melhor ainda, uma
(ou dessa velha purificada), a consolação bem ganha de um desses dias superfluidade, um brinquedo.
lodosos sem amigo, sem conversa, sem alegria, sem confidente, que Deus E voltará para casa a pé, meditando e sonhando, só, sempre só; pois
deixava cair sobre ela, desde há anos, quiçá! trezentos e sessenta e cinco a criança é travessa, egoísta, sem doçura e sem paciência, e não pode,
vezes por ano. tampouco, como o puro animal, como o cão e o gato, servir de confidente
Uma outra ainda: às dores solitárias.
Nunca pude conter um olhar, senão universalmente simpático, ao
menos curioso, sobre a multidão de párias que se amontoam em torno do
recinto de um concerto público. A orquestra lança através da noite cantos
de festa, de triunfo ou de volúpia. Os vestidos arrastam reluzindo; os XIV. O VELHO SALTIMBANCO
olhares se cruzam; os ociosos, exaustos por não fazerem nada, se Por toda a parte se ostentava, se espalhava, se divertia o povo em
balançam, fingem saborear, indolentes, a música. Aqui nada que não seja férias. Era uma dessas solenidades com as quais contam, com muita
rico, ditoso; nada que não respire e inspire a despreocupação e o prazer de antecedência, os saltimbancos, os prestidigitadores, os domadores de
se deixar viver; nada, exceto o aspecto daquela turba que se apóia lá por animais e os vendedores ambulantes, para compensar os maus tempos do
sobre o cercado externo, apanhando grátis, a mercê do vento, um resquício ano.
de música, e olhando a cintilante fornalha interior. Em dias assim, me parece que o povo esquece tudo, a dor e o
É sempre interessante esse o reflexo da alegria do rico ao fundo dos trabalho; se torna como as crianças. Para os pequenos é um dia de sueto, é
olhos do pobre. Mas nesse dia, através desse povo vestido de blusas e de o horror da escola adiado por vinte e quatro horas. Para os maiores, é um
chita, avistei um ser cuja nobreza fazia um vistoso contraste com toda a armistício concluído com as potências maléficas da vida, uma trégua na
trivialidade em seu entorno. contenda e na luta universais.
Era uma mulher alta, majestosa, e tão nobre em todo seu porte que Até o homem do mundo e o homem dado a trabalhos espirituais
não me recordo de ter visto semelhante a ela nas coleções das aristocráticas escapam dificilmente à influência desse jubileu popular. Absorvem sem
belezas do passado. Um perfume de altaneira virtude emanava de toda sua querer sua parte dessa atmosfera de despreocupação. Quanto a mim, um
verdadeiro parisiense, nunca deixo de passar revista a todas as barracas que Mas que olhar profundo, inesquecível, perpassava sobre a multidão
se pavoneiam nessas épocas solenes. e sobre as luzes, cujo fluxo movediço se detinha a alguns passos de sua
Faziam-se, em verdade, concorrências formidáveis: berravam, repulsiva miséria! Senti a mão terrível da histeria apertar minha garganta, e
bramiam, uivavam. Era uma mistura de gritos, detonações de cobre e me pareceu que me ofuscavam os olhos lágrimas rebeldes que não se
explosões de foguetes. Titereiros e palhaços convulsavam os traços de seus negam a cair.
rostos queimados e enrugados pelo vento, pela chuva e pelo sol; lançavam, O que fazer? Para quê perguntar ao infortunado que curiosidade,
com aprumo dos comediantes seguros de seus efeitos, piadas e brincadeiras que maravilha poderia esconder naquelas trevas malcheirosas detrás da
de uma comicidade sólida e densa como a de Molière. Os Hércules, cortina esfarrapada? Não me atreveria, na verdade; e ainda que a razão de
orgulhosos da enormidade de seus membros, sem fronte e sem crânio, minha timidez possa provocar risos, confessarei que temi humilhá-lo.
como os orangotangos, se espreguiçavam majestosamente sobre as malhas Acabara por fim de resolver-me a deixar, ao passar, algum dinheiro numa
lavadas na véspera para a circunstância. As bailarinas, formosas como daquelas tábuas, esperando que adivinhasse minha intenção, quando um
fadas ou princesas, saltavam e cabriolavam ao fulgor das lanternas a lhes grande refluxo de gente, causada não sei por que perturbação, arrastou-me
encher de chispas as saias. para longe dele.
Tudo era senão luz, poeira, gritos, gozo, tumulto; uns gastavam, E, ao ir embora, obcecado por aquela visão, procurei analisar minha
outros ganhavam, todos igualmente alegres. As crianças se dependuravam súbita dor, e disse a mim: acabo de ver a imagem do literato velho, que
nas saias de suas mães para conseguir uma barra de caramelo, ou subiam sobreviveu à geração da qual foi brilhante animador; do velho poeta sem
nas costas de seus pais para ver melhor um escamoteador resplandecente amigos, sem família, sem filhos, degradado por sua miséria e pela
como um deus. E por toda a parte circulava, dominando todos os perfumes, ingratidão pública, e na barraca de quem o mundo esquecido já não quer
um odor de fritura que era como o incenso dessa festa. mais entrar!
Ao extremo, ao último extremo da fila de barracas, como se,
envergonhado, se houvesse ele mesmo exilado de todos aqueles
esplendores, avistei um pobre saltimbanco, encurvado, caduco, decrépito, XV. O BOLO
uma ruína de homem, recostado num dos mourões de sua choça; uma Eu viajava. A paisagem em meio à qual me situava era de uma
choça mais miserável que a do mais embrutecido selvagem, cuja desolação grandeza e nobreza irresistíveis. Algo delas decerto passou, nesse
era fartamente bem iluminada, todavia, por dois tocos de vela, que momento, à minha alma. Meus pensamentos esvoaçavam com uma
escorriam e fumegavam. ligeireza igual à da atmosfera; as paixões vulgares, como o ódio e o amor
Por toda a parte, alegria, lucro, leviandade; por toda a parte, certeza profano, agora apareciam a mim tão distantes quanto as nuvens que
do pão de amanhã; por toda a parte, explosão frenética da vitalidade. Aqui desfilavam ao fundo dos abismos sob meus pés; minha alma me parecia tão
a miséria absoluta, a miséria embuçada, para cúmulo de horror, de cômicos vasta e pura quanto a cúpula do céu que me envolvia; a lembrança das
farrapos, onde a necessidade, bem mais que a arte, introduzira o contraste. coisas terrestres não chegava ao meu coração senão debilitada e diminuída,
Não ria, o miserável! Não chorava, não dançava, não gesticulava, não como o som do rufo dos rebanhos imperceptíveis que passam longínquos,
gritava; não cantava nenhuma canção, alegre nem lamentável, não bem longínquos, por sobre a encosta de uma outra montanha. Sobre o lago
implorava tampouco. Estava mudo, imóvel. Havia renunciado, abdicado. pequeno, negro por sua imensa profundeza, por vezes passava a sombra de
Seu destino estava cumprido. uma nuvem, como o reflexo da capa de um gigante aéreo voando a cruzar o
céu. E me lembro que essa sensação solene e rara, causada por um grande pareciam prometer as forças infantis? O bolo viajava de mão em mão e
movimento perfeitamente silencioso, me enchia de uma alegria mesclada mudava de bolso a cada instante; mas, ai! mudava também de volume; e
com medo. Assim, senti-me, graças à entusiástica beleza que me rodeava, quando, por fim, extenuados, ofegantes, ensangüentados, detiveram-se por
em perfeita paz comigo mesmo e com o universo; creio até que, em minha impossibilidade de continuar, não havia mais, a bem dizer, nenhum motivo
perfeita beatitude e total esquecimento de todo o mal terrestre, chegara a de batalha; o pedaço de pão tinha desaparecido, e estava espalhado em
não julgar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem tenha migalhas, semelhantes aos grãos de areia com que se misturavam.
nascido bom; – quando, renovadas as exigências da matéria implacável, Esse espetáculo enchera de bruma a paisagem, e o gozo tranqüilo
pensei em reparar a fadiga e em aliviar o apetite causados por uma tão em que fruía minha alma antes de ter visto esses homenzinhos desaparecera
longa ascensão. Saquei do bolso um bom pedaço de pão, uma xícara de totalmente; fiquei muito tempo triste, repetindo-me sem cessar: “Então há
couro e um frasco de certo elixir que os farmacêuticos vendiam naqueles um país soberbo onde o pão se chama bolo, guloseima tão rara que basta
tempos aos turistas para ser misturado oportunamente com água de neve. para engendrar uma guerra perfeitamente fratricida!”
Parti tranquilamente meu pão, quando um ligeiríssimo ruído me fez
erguer os olhos. Ante a mim estava uma criaturinha maltrapilha, negra,
desgrenhada, cujos olhos fundos, ferozes e suplicantes, devoravam o
pedaço de pão. E o ouvi suspirar, com uma voz baixa e rouca, a palavra: XVI. O RELÓGIO
bolo! Não pude conter o riso ao ouvir a apelação com a qual se dignava a
honrar meu pão quase branco, e cortei para ele uma boa fatia que lhe
ofereci. Aproximou-se lentamente, sem tirar os olhos do objeto de sua
cobiça; então, agarrando o pedaço com a mão, retrocedeu vivamente, como
se temesse que minha oferta não fosse sincera ou que logo me arrependesse
dela.
Mas no mesmo instante foi derrubado por outro pequeno selvagem,
saído não sei de onde, e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se
poderia tomá-lo por seu irmão gêmeo. Juntos rolaram sobre o chão,
disputando a preciosa presa, sem que nenhum deles quisesse, é certo,
sacrificar a metade a seu irmão. O primeiro, exasperado, segurou o
segundo pelos cabelos; este lhe agarrou a orelha com os dentes, e cuspiu
um pedacinho ensangüentado com uma soberba maldição dialetal. O
legítimo proprietário do bolo tratou de fincar suas unhas nos olhos do
usurpador; este, por sua vez sobrepôs todas as forças para estrangular seu
adversário com uma mão, enquanto com a outra tentava pôr no bolso o
prêmio do combate. Mas, reanimado pelo desespero, o vencido se reergueu
e fez rolar pelo chão o vencedor com uma cabeçada no estômago. Para quê
descrever uma luta horrorosa que durou, na verdade, mais tempo do que