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A igreja em células
Eu comecei a me dar conta disso alguns anos depois, quando a
primeira igreja da qual fui membro iniciou uma transição para
um modelo litúrgico e de evangelismo chamado MDA, sigla
para Modelo de Discipulado Apostólico. Esse modelo é muito
parecido ao que fazem as empresas de marketing multinível,
conhecidas popularmente por pirâmide. De acordo com ele, a
igreja deve ser dividida em pequenos grupos, chamados
células, contendo cada uma um líder, que reúne seus liderados
semanalmente na casa de um
deles, para ensiná-los de
acordo com um roteiro pré-
estabelecido e, assim, formar
novos líderes para que surjam
novas células a partir dali.
Os montes da sociedade
As afirmações da nova ministra “Não é a política que vai mudar
esta nação, é a igreja” e “É o momento de a Igreja governar”,
extraídas de sermões religiosos nos anos de 2013 e 2016 –
período em que já atuava como assessora parlamentar – estão
se tornando realidade. Sem contar o papel decisivo do voto
evangélico nas últimas eleições, no monte do governo e
política. Em 2016, o PRB, partido dominado por membros da
Universal, elegeu 105 prefeitos, incluindo Marcelo Crivella
para a prefeitura do Rio.
No monte da mídia e comunicação, a igreja já exerce influência
desde as concessões das rádios gospel que foram fundamentais
para levar (e manter) no poder nomes como o de Anthony
Garotinho, Eduardo Cunha e Arolde de Oliveira. Um estudo da
Ancine constatou que 21% da programação da TV Aberta no
Brasil em 2016 era de conteúdo religioso.
Quando Damares diz que, no governo Bolsonaro, “meninas
seriam chamadas de princesas e meninos de príncipes”, e que
“meninas vestiriam rosa e meninos azul”, como metáforas para
ilustrar seu posicionamento avesso ao que chama de ideologia
de gênero, estamos diante, na verdade, de uma demonstração
da intenção de dominar o que eles chamam no livro de monte
das artes e do entretenimento.
Conforme esclarecido pelo apóstolo Fernando Guillen, este
monte diz respeito a tudo que envolve
“Música, artes, esportes, pintura, escultura, dança, fotografia
literatura, poesia, dramatização, teatro, filmes, roupas e
vestuário, design, cores, vídeo games, ou seja, tudo o que
expressa a criatividade e beleza de Deus, que é usado pela
sociedade para celebrar, entreter ou para desfrutar a vida”.
Trata-se, portanto, de uma evidente intenção de adequar
elementos culturais de uma sociedade ao que entende por
princípios cristãos. Veja a crescente produção de novelas e
filmes voltados ao público gospel, e exemplos como as Nights
Gospel voltado para jovens, e Cultos à Fantasia para servir de
contraponto ao Dia das Bruxas.
A princípio, não é nenhum problema que determinado
segmento social se comporte, se vista ou se entretenha
conforme o que aprecia ou acredita. É até bem normal que as
coisas sejam dessa forma. O problema é querer que essa forma
de ser seja a única válida e universal e lançar mão de censura a
manifestações artísticas que não se enquadram nas regras
cristãs como tem sido feito com o carnaval no Rio de Janeiro,
com o corte de subvenções das escolas de samba, e medidas
que cerceiam as liberdades individuais e não reconhecem o
direitos das minorias.
No âmbito da família, que inclusive integra o nome da pasta
ocupada pela ministra, a visão do livro é a de que existe certa
hierarquia conjugal entre homem e mulher que seria instituída
por Deus:
“Mulheres emergirão no ministério, um poderoso exército de
mulheres que entendam a importância de respeitar a ordem
sacerdotal do varão, serão levantadas com muita ousadia e
poder.” (pág. 131)
Não se sabe ainda o tipo de políticas públicas que se pretende
com a criação desse Ministério da Família, mas é importante
notar que a ministra Damares já disse que “mulher nasceu pra
ser mãe”, e que se preocupa com a ausência da mulher na casa,
além de fazer questão de afirmar que é “feminina e não
feminista”.
No que tange à ciência e educação, sem entrar no mérito das
especulações que rondam o novo governo, imbuídas de
anticientificismo e avessas ao debate crítico em sala de aula, o
livro do apóstolo Fernando Guillen aborda o tema da seguinte
forma:
“A educação, próxima da religião cristã, é um elemento
indispensável das instituições republicanas, a base sobre a qual
os governos livres devem se apoiar. O Estado deve se apoiar na
base da religião, e deve preservar esta base, ou ele mesmo irá
ruir. Mas o suporte que a religião dá ao Estado irá obviamente
terminar no momento em que a religião perder seu alcance na
mente do povo. O próprio fato de que o Estado precisa da
religião como um suporte para a sua própria autoridade exige
que alguns meios para o ensino da religião sejam empregados.
O melhor que se pode fazer é desistir das instruções de que a
religião não deve ser ensinada em suas escolas.” (pág. 175)
Note como o discurso no livro é alinhado com as declarações
de Damares quando ela diz que a igreja teria perdido espaço
nas escolas quando “deixou” que a teoria da evolução entrasse
sem questionar a ciência. Assim, travestidos de uma luta
contra uma inexistente doutrinação marxista nas escolas, os
interesses por trás do programa Escola sem Partido, com
amplo apoio da ala conservadora da sociedade, o que inclui os
evangélicos, têm o cunho de eliminar o debate crítico e
progressista, baseado em crenças humanísticas das salas de
aula, e podem abrir espaço para implantação de métodos de
ensino baseados numa cosmovisão cristã, e significar um
danoso retrocesso científico a longo prazo.
O fator Melquisedeque
Note também que ao mesmo tempo que Jair Bolsonaro
defende a “integração dos índios à sociedade” – como se os
índios precisassem se adequar ao homem urbano e não fossem
gente –, de rever a demarcação das terras indígenas e de
enfraquecimento da Funai, a nova ministra dos Direitos
Humanos demonstra uma grande preocupação em alcançar
esses povos indígenas e resgatar os que precisam de ajuda.
Mas que ajuda é essa?
Ao final de seu discurso de posse, Damares, que no início se
autointitulou “terrivelmente cristã”, fez referência ao “Grande
Tupã”, uma demonstração que pareceu ser de tolerância à
cultura dos povos indígenas. Mas não se engane.
Curiosamente, foi exatamente essa, a de fazer alusão ao Deus
Cristão. uma das ferramentas dos primeiros jesuítas na
catequização dos índios.
O neopentecostalismo
cultural
É importante frisar, que a grande maioria das pessoas que
chega às igrejas evangélicas sequer se dá conta da interferência
dessas relações de poder da igreja na sociedade. Geralmente, as
pessoas procuram a igreja para se sentir acolhida e
encontrarem alguma esperança em meio ao caos que pode ser
na sua intimidade, vida financeira, relações com a família etc.
Lembro-me de uma vez indagar um pastor muito íntegro sobre
por que ele apoiava um candidato à prefeitura de reputação
conhecidamente péssima. De um modo puro, ele me
respondeu: “Ele está aqui próximo da gente. Posso entrar em
contato com ele facilmente pra ajudar um irmão a conseguir
uma internação ou o enterro de alguém. Infelizmente, a nossa
comunidade têm necessidades desse tipo e ele pode nos
ajudar.”
Recentemente, membros da bancada evangélica se
manifestaram com grande entusiasmo sobre o posicionamento
pró-Israel do governo por acreditar ser esse um dos sinais do
Apocalipse. Tenho certeza que muitos crentes sequer se dão
conta de todas as circunstâncias que envolvem o
conflito árabe-israelense e não estão pensando no assunto
sob a ótica da política externa. Eles só sabem que Israel é o
“povo escolhido”, então deve ser bom apoiá-lo.
Minha crítica não é aos crentes nem ao cristianismo. Na
verdade, eu vivi alguns dos momentos mais felizes e
importantes da minha vida dentro da religião, fiz grandes
amigos e o interesse na leitura depois da conversão foi
fundamental pra me motivar a voltar a estudar e ter
conseguido passar num dos vestibulares mais difíceis e
concorridos do país, que é o do Direito da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, a UERJ, onde devo me formar
neste ano.
Esse não é o manifesto de uma alma magoada, muito pelo
contrário. É um desabafo de preocupação de alguém que é
grato e não gostaria de ver a religião sendo usada para fins
distintos daquilo que entendeu pela mensagem do evangelho
do Cristo, que é levar fé, esperança e amor e não domínio sobre
os homens.
Aliás, essa é a lição bíblica da Torre de Babel (Gênesis 11).
Quando Ninrode quis construir uma estrutura “que chegasse
aos céus” para governar sobre os homens de modo que todos
estivessem no mesmo lugar e falassem a mesma língua, Deus
não se agradou, e espalhou todos e confundiu suas línguas.
Entendo que o proselitismo é um dos fundamentos do
cristianismo. Desde sempre, é uma crença que se propõe a
conversão de outras pessoas. O que, a princípio, não é nenhum
problema, desde que não se utilize de mentiras, abusos ou
violência. Também entendo que é até natural que a
representação política de determinado segmento da sociedade
aumente se a população que a ele pertence também aumenta
de forma expressiva. Mas a laicidade do Estado precisa ser
respeitada para que violações dos direitos das minorias não
sejam legitimadas em nome de uma imposição moral de viés
religioso.
Dentre as muitas comparações possíveis feitas com a figura do
presidente Jair Bolsonaro, espero que não estejamos diante de
uma espécie de Imperador Constantino do século 21
responsável pela neopentecostalização da República. Quanto a
Damares, não a menosprezem. Ela sabe muito bem o que quer
dizer.