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KALEVALA

Poema Épico Finlandês


Cantos I ao XVII
I
Nasce Vainamoinen

Nasce-me na mente a ideia,


Surge em mim este desejo...
De começar a cantar,
De iniciar a declamar
Uns versos do nosso povo,
Uns cantos da nossa gente.

Na boca fundem-se os ditos


E precipitam-se as frases;
Da língua fogem os tons
E contra os dentes se afoitam.

Meu maninho adorado,


Na infância amigo doirado,
Vem cantar comigo estórias,
Vem dizer comigo lendas,
Agora que estamos juntos,
De diferentes trilhos vindos.
Raro é virmos pra cantar,
Raro é pra ti e pra mim,
Sobre a terra triste e fria,
A pobre terra do Norte.

Agarremos mãos nas mãos,


Dedos nas covas dos dedos
Para que bem recordemos
E melhor inda cantemos;
Pra que os nossos nos escutem
E que quem queira nos ouça,
Desta geração crescente,
Entre este povo emergente.

Vieram estas cantigas,


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Vieram estas cantigas,
Foram lendas aprendidas
Do cinto de Vainamoinen,
Sob a forja de Ilmarinen,
Da espada de Lemminkainen,
Da besta de Joukahainen,
Do confim terra do Norte,
Dos campos da Kalevala.

Meu paizinho mas cantava,


Gravando a pega de uma acha;
M'nha mãezinha as ensinava,
Rodando o fio no fuso,
Enquanto eu no chão, criança,
Rebolava aos seus joelhos,
Pobre barbicha-de-leite,
Pequeno boca-de-peixe.

Não faltava o Sampo cantos


Nem encantamentos Louhi;
Em cantos rucou-se o Sampo,
Caiu Louhi em encantos,
Em versos morreu Vipunen,
E em seus jogos Lemminkainen.

Há ainda outras canções,


Mais magias aprendidas,
Arrancadas do caminho,
Recolhidas dos arbustos,
Quebradas dos arvoredos,
Raspançadas dos colmeiros,
Aos brotos novos tiradas,
Destacadas dos sendeiros,
Enquanto pastor andava,
Como criança pelos pastos,
Sobre colinas de mel,
Sobre doirados outeiros,
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Sobre doirados outeiros,
Acompanhando a Farrusca
E seguindo a Malhadinha.

Recitou-me o frio um poema,


Declamou-me a chuva cantos,
Versos os ventos trouxeram,
Canções as vagas cargaram;
As aves juntaram runas
E as copas cantigas mágicas.

Enrolei-as numa bola,


Enleei-as num novelo.
Meti-o no meu trenó,
Pu-lo no carro de neve.
Levei-o pra minha casa,
Trouxe-o de trenó à quinta.
Enfiei-o no palheiro
Dentro dum baú de cobre.

Em lugar escuro e frio


Longo tempo as canções tive.
Devo-las do frio tirar,
Puxar do gelo pra fora,
Trazer o baú a casa,
À ponta do banco longo,
Debaixo da viga fina,
Sob o acolhedor telhado?
Devo o meu baú de lendas,
Caixas de canções abrir?
Quebrar a ponta da bola,
Abrir o nó do novelo?

Vou linda canção cantar,


Uma bem bela entoar,
Depois do pão de centeio,
Da cerveja de cevada.
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Da cerveja de cevada.
Se ninguém trouxer cerveja,
Se não se servir cerveja,
Cantarei de boca magra,
Entoarei então com água
Pra alegrar a nossa noite,
Honrar este lindo dia
Ou contentar o amanhã,
Começar a nova aurora.

Assim ouvi a canção,


Soube ser composto o verso:
Sós nos vêm as noites todas,
Sós também brilham os dias
E só nasceu Vainamoinen,
Emergiu o bardo eterno
DA virgem que o deu à luz,
Da sua mãe, Ilmatar.

Era uma menina-d'ar,


Deidade de natura,
Guardou a sua pureza,
Para sempre a virgindade,
Nos espaçosos confins,
Nos suaves campos do ar.

Com tempo se aborreceu,


Estranha achava a sua vida
Por sempre sozinha estar,
Como donzela vivendo,
Nos espaços confins,
Nos vastos vazios de ar.

Vem ela agora mais baixo,


Acomoda-se nas vagas,
Na largura desse mar,
Na amplidão do oceano.
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Na amplidão do oceano.

Veio um forte vendaval,


De Leste um mau tempo veio,
Erguendo o mar em espuma,
Espalhando o mar em vagas.
O vento abanou a moça,
A vaga empurrou a virgem,
Através do mar azul,
Através das ondas brancas.
O vento soprou-a cheia,
O mar encheu-a de filho.

Carrega ela um duro ventre,


Bem pesada barrigada,
Por cem anos sete vezes,
Por vidas nove de um homem,
E contudo nada nasce,
Criatura não é criada.

A virgem, ora mãe-d'água,


Nada Levante e Jusante,
Nada Noroeste e Sul.
Nada todo horizonte,
Em terríveis dores de parto,
Com pontadas pelo ventre,
E contudo nada nasce,
Criatura não é criada.

Ela chora, ela soluça,


Balbucia, diz assim:
"Ai! Coitadinha de mim,
Triste é este meu andar,
Estou em sarilhos metida,
Para sempre sob o céu
Balançada pelo vento,
Carregada pelas águas,
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Carregada pelas águas,
Nestas largas vastas vagas,
Nestas ondas infindáveis!

"Bem melhor teria sido


Continuar menina-d'ar
Que pra sempre vaguear
Qual mão-d'água a flutuar.

"Aqui faz por demais frio,


Triste é ter que cá ficar,
Ter de nas ondas viver,
Nas águas me emparedar.

"Ó Ukko, deus nas alturas,


Tu, que todo o céu suportas,
Anda aqui quando és preciso,
Anda cá quando és chamado.
Salva a moça de um aperto,
A mulher das dores de parto.
Vem depressa sem demora,
Bem depressa que é preciso."

Algum tempo então passou,


Um momento decorreu.
Do ar veio uma olho-d'oiro,
Por ali esvoaçou,
Em busca de onde aninhar,
Procurando onde viver.
Voou Levante e Jusante,
Voou Noroeste e Sul.
Não encontra bom lugar
Nem sequem um sítio mau
Onde construir seu ninho,
Onde morada tomar.

Então plana e esvoaça,


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Então plana e esvoaça,
Então pensa e considera:
"Devo ao vento construir,
Entre as vagas aninhar?
Casa o vento partirá,
Ninho a vaga arrasará."

E foi então que a mãe-d'água,


Mãe-d'água, menina-d'ar,
Do mar o joelho ergueu,
Das ondas o ombro alçou,
Pra olho d'oiro bom lugar,
Sítio doce onde aninhar.

A graciosa olho-d'oiro
Então plana e esvoaça.
Acha o joelho da mãe-d'água
No oceano azulado.
Pensa que é um ilhéu
Verdejante de relvado.

Então esvoaça e plana


E se assenta no joelho.
Ali seu ninho constrói,
Ali seus ovinhos põe.
São seis deles de oiro puro
E o sétimo é de ferro.

Começa ela a chocar


E o joelho a aquecer.
Choca um dia, choca dois,
Cedo choca um terceiro.

E por isso é que a mãe-d'água,


Mãe-d'água, menina-d'ar,
Sente que lhe pegam fogo,
Que lhe está a pele a arder.
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Que lhe está a pele a arder.
Pensa o seu joelho em chamas,
Sua carne derretendo.
Logo abana o seu joelho,
Faz os seus membros tremer;
Caem os ovos na água,
São levados pelas ondas;
Estilhaçam-se esses ovos,
São partidos aos pedaços.

Mas nela não se dissolvem,


Não se perdem os pedaços.
Tornam-se em peças bem finas,
Mudam-se em coisas bem belas:
De um ovo a parte de baixo
Em baixo se torna terra;
De outro ovo a parte de cima
Em cima se torna céu;
O topo de uma das gemas
Torna-se em Sol cintilante;
O topo de uma das claras
Muda-se em Lua luzente;
As pintas de cor num ovo
Tornam-se no céu estrelas
O que era preto num ovo
Torna-se em nuvens no céu.

Longas se passam as eras,


Longos mais ainda os anos,
Enquanto o novo Sol brilha
E a nova Lua lucila.

A menina-d'ar, mãe-d'água,
Continua ela a nadar
Nessas águas tão gentis,
Pelas vagas nebulosas.
Diante dela água corrente,
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Diante dela água corrente,
Atrás dela claros céus.

Chega então o ano nono,


Chega então o décimo verão,
Do mar ergue ela a cabeça,
Alça a fronte sobre as ondas.

Começa a sua criação,


Inicia seu trabalho
Na largura desse mar,
Na amplidão do oceano.

Onde ela passou a mão


Promontórios foram feitos;
Fundo onde seu pé tocou
Fez-se de peixe repleto;
Donde borbulhas subiram
Cavou ela profundezas;
Rodou ela contra a terra
E ali jorraram salmões;
Trouxe a testa contra a terra,
Por ali esculpiu baías;
Nadou pra longe da terra,
Estendeu-se no mar alto;
Lá formou pequenas ilhas,
Criou secretos recifes
Para um barco abalroar
E no mar homens matar.

Então as ilhas arranjadas,


Ilhotas no mar criadas,
Os pilares do céu erguidos,
Terras e lugares cantados,
Padrões nas rochas pintados,
Traços em pedra esculpidos,
Mas não nasceu Vainamoinen
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Mas não nasceu Vainamoinen
Ainda espera o bardo eterno.

Firme velho Vainamoinem


Andou no ventre da mãe
Durante trinta verões
E a mesma conta de Invernos,
Nessas águas tão gentis,
Pelas vagas nebulosas.

Então pensa e considera


Como ser, como viver
Nesse escuro esconderijo,
Nesse apertado recanto
Onde nunca viu a Lua
Nem jamais o Sol olhou.

Fala então estas palavras,


Estas frases pronunciadas:
"Livra, Lua! Solta, Sol!
Ó Grande Ursa, guia o homem
Para fora destas portas,
Destes estranhos portais,
Destes bem pequeno ninho,
Deste apertado recanto.
O viajante a terra escolta,
Ao ar livre, o filho de homem
Para olhar no céu a Lua,
Para contemplar o Sol,
Para a Grande Ursa mirar,
Prás estrelas escandir."

Quando nem Sol o soltou


Nem a Lua o libertou,
Pareceu-lhe a vida estranha,
Começou-se a impacientar;
Moveu a porta do forte,
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Moveu a porta do forte,
Usando o seu dedo médio,
Destrancou o trinco de osso
Com o dedo do pé esquerdo.
De unhas ao átrio saiu,
De joelhos, a porta fora;
De cabeça ao mar se fez,
Água adentro se meteu;
Assim entrou ele na água,
O sujeito no oceano.

Vagou vagas cinco anos,


Seis e sete até chegar
Ao Outono do oitavo;
Por fim veio a terra firme,
A uma terra sem nome,
Um país sem arvoredo.
Com seus joelhos se ergueu,
Com seus braços se voltou,
Ergueu-se pra olhar a Lua,
Para contemplar o SOl,
Para a Grande Ursa mirar,
Prás estrelas escandir.

Assim nasceu Vainamoinen,


Foi criado o bravo bardo
Da virgem que o deu à luz,
Da sua mãe, Ilmatar.

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II
Semeando a Terra

Levantou-se Vainamoinen,
Pôs os pés em terra seca...
Num ilhéu no mar aberto,
Num país sem arvoredo.
Ali passa muitos anos,
Ali vive a sua vida
Num ilhéu abandonado,
Num país sem arvoredo.
Então pensa e considera,
De mão na cara pondera
Que as terras semeará,
Quem fará férteis as lavras.

O campestre Pellervoinen,
Sampsa, rapaz pequenino,
Ele as terras semeará,
Ele fará férteis as lavras.

Pôs-se lesto a semear,


Semeou terras e lameiros,
Semeou clareiras de areia,
Semeou campos pedregosos,
Semeou cumes com pinheiros,
Semeou montes com abetos,
Moitas em terreno rijo,
Brotos novos pelos vales.

Em lameiros plantou bétulas,


Amieiros em solos leves,
Ginjeiras em tremedais,
Vimeiros em solos frescos,
Sorveiras em solos sacros,
Salgueiros em terras altas,
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Salgueiros em terras altas,
Zimbros em secos lugares,
Carvalhos ao pé dos rios.

Vão crescendo bem as árvores,


Vão-se erguendo os novos brotos:
Os abetos vão florindo;
Os pinheiros vão frondando.
Nos lameiros crescem bétulas,
Amieiros nos solos leves,
Ginjeiras nos tremedais,
Zimbros, nos secos lugares.
Nos zimbros é boa a baga,
Na ginjeira é boa a fruta.

Firme velho Vainamoinen


Foi inspeccionar aonde
Sampsa tinha semeado,
Pellervoinen tinha arado.
Tinham bem crescido as árvores,
Tinham-se os brotos erguido.
Só não rebentava o carvalho,
Pé não ganha a planta sacra.

Deixou só a pobrezinha,
Recolhida à sua sorte,
Esperou três noites mais
E de dias outros tantos.
Foi ver o que acontecera,
Mas não rebenta o carvalho,
Pé não ganha a planta sacra.

Então vê quatro donzelas,


Vê cinco noivas na água.
A urze estão a aparar,
Na margem da ilha de névoas,
Na ponta da ilha de brumas
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Na ponta da ilha de brumas
E o que cortam amontoam,
Acumulam numa pilha.

Do mar vem besta feroz,


Vem das vagas o gigante:
Pões fogo ao fascal de feno
E da flama nua a força
Tudo faz arder em cinzas,
Tudo faz em fino pó.
Ergue-se um monte de mofa,
Um fumo de cinza seca.

Ali surge bela folha,


Bela folha e uma bolota,
Da qual um bom botão brota,
Donde vem rebento verde
Da terra como um morango,
Cresce de dois talos gémeos.
Estende aí sua ramagem,
Espalha aí sua folhagem.
Sobe a copa céu-avante,
Lança as folhas ar-avante;
Trava as nuvens de vogar,
Trava o vapor de molhar,
Impede o Sol de brilhar
E a Lua de luzir.

Vem então o velho Vaino,


O qual pensa e considera:
"Onde haverá um lenhador,
Pró carvalho um cortador?
Triste é pró homem viver,
Fusco pró peixe nadar
Sem ver o Sol brilha
Nem a Lua luzir."

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Mas não há ainda homem
Nem sujeito corajoso
Para o carvalho tombar
Ou cem-folhas lenhar.

Firme velho Vainamoinen


Em palavras isto pôs:
"Mulher, mãe que me pariste,
Filha-d'ar que me criaste:
Faz que este povo das águas
(Muita gente na água habita)
Deite abaixo este carvalho,
Retire estes ramos maus
Da frente do Sol brilhante,
Longe da Lua luzente."

Emergiu do mar um homem,


Veio um sujeito das vagas.
Não era lá muito grande
Nem também dos mais pequenos:
Alto qual polegar de homem,
Grande qual de mulher palmo,
De cobre é o seu chapéu,
Cobre, as botas nos seus pés,
Cobre, as marcas nas suas luvas,
Cobre, o cinto nas suas calças,
Sobre, o machado no cinto.
Pega grande com um dedo,
Lâmina alta como unha.

Firme velho Vainamoinen


Então pensa e considera:
"É este homem de seus ares,
Este tipo me parece
Alto qual polegar hirto,
Grande qual casco de boi!"
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Grande qual casco de boi!"

Isto então pés em palavras,


Assim disse e declarou:
"Que espécie de homem és tu,
De que triste raça vens?
Pouco mais do que um esqueleto,
Não mais forte que um finado!"

O homenzinho do mar disse,


Respondeu o tipo da água:
"Sou eu bastante bom homem,
Curto e do povo das ondas.
Vim pra quebrar o carvalho,
Vim partir essa árvore frágil."

Firme velho Vainamoinen


Em palavras isto pôs:
"Não creio que fosses feito,
Nem feito nem designado,
Quebrador deste carvalho,
Partidor desta azinheira."

Isto acaba de dizer,


Olha o homem outra vez:
Vê o tipo bem mudado,
Vê sujeito renovado!
Com o pé esmaga o chão,
Sua cabeça apoia as nuvens;
Passa a barba do joelho,
O cabelo chega ao pé;
Vão dois metros de olho a olho,
Dois de largo vão na calça,
Metros três vão ao joelho,
Quatro à borda dos calções.
Manuseia seu machado,
Afia a lâmina lisa
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Afia a lâmina lisa
Em seis pedras de amolar,
Sete pontas de penedos;
E andar se balanceia,
Assobia enquanto vai
Nessas suas largas calças,
Nesses seus vastos calções.

Calca uma vez ao de leve


Na areia fina da praia;
Duas vezes se moveu
No terreno cor-de-fígado;
Terceira se arrastou
Até chegar ao carvalho.
Com machado lhe bateu,
Atacou-o com sua acha.

Atacou uma vez, duas,


Cedo ataca uma terceira.
Faísca fogo do machado,
Sai faúlha do carvalho:
O carvalho quer dobrar,
Quer cair do mundo o freixo.

Então à terceira vez


Tombou por fim o carvalho,
Partiu o freixo do mundo,
Pôs abaixo o cem-folhas.
Atirou pra Leste o pé,
Lançou topo pra Noroeste,
As folhas pró vasto Sul,
Os ramos pra meio Norte.

Quem então pegou num ramo


Pegou alegria eterna;
E quem o topo partiu
Partiu eterna magia;
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Partiu eterna magia;
Quem cortou galhos folhosos
Cortou eterna paixão.

Quantas lascas que voaram,


Quantas raspas que saltaram,
Sobre os claros altos mares,
Sobre as largas vastas vagas,
Essas o mar atraiu,
Pelas ondas ondularam
Como barcos no mar alto
E navios sobre as vagas.

O vento levou pró Norte.


Uma moça desse Norte
Os seus lenços vai lavando,
Vestimentas enxaguando,
Numa rocha ao pé da margem
Sobre uma língua de terra.

Uma lasca viu boiando,


Recolheu-a no seu saco;
No seu saco a casa a trouxe
Pró seu pátio as alças longas,
Pra fazer setas de bruxa,
Fazer armas de encantar.

Com o carvalho partido


E a má árvore caída,
Estão sóis soltos pra brilhar,
Luas livres pra luzir,
As nivens para vogar,
Arcos do céu pra curvar
No fim da terra de brumas,
Na ponta da ilha de névoas.

Então o mato floriu,


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Então o mato floriu,
Brotou alegre a floresta,
No chão relva na árvore folha.
Cantam as aves nos ramos,
Festejam os tordos todos
E no topo cuco cuca.

Do chão nasceram mirtilos,


Flores doirados pelos prados;
Cresceu todo o tipo de erva,
De muitas formas nasceu.
Só cevada não se ergueu,
Não cresceu a rica safra.

Então velho Vainamoinen,


Deambula e considera
Na margem azul do mar,
Nos grandiosos bancos de água.

Cinco grãos aí achou,


Seis sementes descobriu
Sobre a costa desse mar
Na fina areia da praia
E as guardou em pele de marta,
Num pé de esquilo de estio.

Foi semeá-las pela terra,


Prá semente difundir
Pelo poço de Kaleva,
Pelos fundos campos de Osmo.

Um chapim chilreou deum choupo:


"Não se ergue a cevade de Osmo
Nem aveia de Kaleva,
Se não se prensar a terra,
SE não se baixar a clareira
E deitar à lenha fogo."
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E deitar à lenha fogo."

Firme velho Vainamoinen


Fez fazer uma acha afiada.
Logo abriu uma grande clareira
E prensou a terra débil;
Cortou as árvores todas,
Todas menos uma bétula,
Para as aves descansarem,
Para o cuco aí cucar.

Adejou águia no céu,


Vogou ave pelo ar,
Veio Vaino vigiar;
"Porque foi essa deixada,
A bétula preservada,
A bela árvore não cortada?"

Disse o velho Vainamoinen:


"Por isto foi preservada:
Para as aves descansarem,
Para a águia do céu pousar."

Assim disse a águia do céu:


"Muito bem fizeste tu!
Preservaste a bela bétula,
Poupaste essa fina árvore
Para as aves escansarem,
Para que eu possa pousar."
A ave do céu fez fogo,
Fez fulgurar uma flama.
Vento Norte ardeu a clara,
O Nordeste a consumiu;
Fez as árvores em cinza,
Reduziu tudo a poeira.

Firme velho Vainamoinen


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Firme velho Vainamoinen
Em seis grãos então pegou,
Sete sementes tirou
Da sua pele de marta,
Da sua perna de esquilo,
Da sai pata de arminho.

Foi semear os grãos na terra,


A semente difundir;
Em palavras isto pôs:
"Eu ponho-me a sementar
Entre os dedos do Senhor,
Por mão do Todo-Poderoso
Em terra que vai crescendo,
Clareira que vai subindo.

"Ó velha do subterrâneo,


Madre do solo e da terra,
Faz erva germinar,
Faz a terra palpitar!
À terra força não falta,
Nunca, nunca neste mundo,
Se a graça for concedida,
Pelas damas prometida.

"Ergue-te da cama, ó terra!


Turfa do Senhor, acorda!
Faz os caules pulular,
Faz os talos espetar,
Levanta rebentos mil,
Ramos aos centos espalha
Do meu semear e lavrar,
Do fruto do meu suor!

"Ó Ukko, senhor dos deuses


E do firmamento pai,
Guarda do brumento reino,
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Guarda do brumento reino,
Das névoas governador;
Junta nas nuvens a corte,
Nos altos pede conselho!
Gera do Leste um vapor,
Traz nuvens do Noroeste,
Manda também as de Oeste
E as do Sul faz vir depressa!
Esparrama águas do céu,
Das nuvens borrifa mel
Nos rebentos a crescer
Nas colheitas a bulir!"

Então Ukko, deus dos deuses,


Soberano pai dos céus,
Juntou nas nuvens a corte,
Nos altos pediu conselho
Gerou um vapor do Leste,
Trouxe nuvens do Noroestee,
Mandou também as Oeste
E as do Sul fez vir depressa.

Empurrou-as todas juntas,


Fê-las chocar entre si.
Esparramou águas do céu,
Das nuvens borrifou mel
Nos rebentos a crescer,
Nas colheitas a bulir.

Um rebento espevitou,
Um cor-de-tronco cresceu
Na terra mansa do campo
Onde Vaino trabalhara.

E ali, no segundo dia,


Ao fim de duas, três noites,
Mas não mais que uma semana,
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Mas não mais que uma semana,
Firme velho Vainamoinem
Foi inspeccionar aonde
Semeado e lavrado tinha
O fruto do seu suor.
A cevada ia crescendo;
Espigas de seis orelhas,
Os caules com três junções.

Ali o velho Vainamoinen


Olha à volta e então repara
Que se aproxima um cuco,
Vendo a bétula crescendo:
"Porque foi esta deixada,
Essa árvore não cortada?"

Disse o velho Vainamoinen:


"Essa árvore foi deixada,
Essa bétula crescendo,
Pra que tu possas cucar!
E chilreia, peito fino!
Tine lá, peito de prata
E chocalha, peito ornado!
Cuca noites e manhãs,
Uma vez ao meio-dia;
Canta dos céus a beleza,
Do meu bosque a macieza,
Dos meus rios a pureza,
Dos meus campos a riqueza!"

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III
O Duelo

Firme velho Vainamoinen


Vai o seu tempo passado...
Pelos bosques da Vainola,
Nos campos da Kalevala.
Vai os seus versos cantando,
Suas artes praticando.

E cantou dia após dia,


Recitou noite após noite,
As memórias mais antigas,
As origens mais profundas,
Que as crianças já não cantam,
Só os velhos as entendem
Nesta idade de maldade
Em que os tempos se terminam.

Vão-se as novas longe ouvido,


Fora se espalha a notícia
Dos cantos do velho Vaino,
Do saber desse sujeito;
Viaja a fama pra Sul,
Vai a nova até ao Norte.

Era o jovem Joukahainen


Filho esguio da Lapónia.
Uma volta deu à vila
E ouviu a estranha nova;
Que canções eram cantadas,
Que eram versos recitados
Nas florestas da Vainola,
Nos campos da Kalevala,
Dos melhores do que os seus,
Dos que o seu pai lhe ensinara.
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Dos que o seu pai lhe ensinara.

Ele aquilo a mal levou,


Mordeu-se todo de inveja;
Vainamoinen ser achado
Melhor bardo do que ele!

Foi então à sua mãe,


À sua honrada mamã,
Anunciar que viajava,
Dizer que queria ir
Às cabanas da Vainola
Para Vaino desafiar.

O seu pai logo o proíbe,


Proíbe o pai, nega-lhe a mãe,
De viajar à Vainola
Para Vaino desafiar:
"Serás tu por lá cantado,
Serás cantado e rimado,
De cara na neve enfiada,
De cabeça nua ao frio,
Até às mãos não mexeres,
Até aos pés não moveres."

Disse o jovem Joukahainen:


"O meu pai é muito sábio
E a minha mãe inda é mais,
Mas sei eu mais que os dois;
Se eu me quero comparar
Cantarei a quem me canta,
Citarei o meu citador.

"Cantarei o melhor bardo


Até que o faça o pior;
Em seus pés, botas de pedra,
Nas pernas, calças de lenha,
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Nas pernas, calças de lenha,
Ao peito, âncora de rocha,
Prancha de rocha nos ombros,
Luvas de rocha nas mãos,
Na cabeça, elmo de rocha."

E saiu sem mais cautelas,


O seu capão foi buscar,
Cujo nariz fumegava,
Cujas coxas faiscavam,
Esse capão equipou
Em frente ao trenó doirado.

No carro de neve senta,


No seu trenó se acomoda,
Bate a besta com flagelo,
Com seu chicote lhe acerta;
Faz o corcel galopar,
Faz o cavalo correr.

Vai sulcando o seu caminho;


Corre um dia, corre dois
E cedo corre um terceiro.
Então ao terceiro dia
Chega aos bosques da Vainola,
Aos campos da Kalevala.

Firme velho Vainamoinen,


Sempiterno feiticeiro,
Seu caminho atravessava,
Sua estrada percorria
Pelos bosques da Vainola,
Nos campos da Kalevala.

Vem o jovem Joukahainen


De encontro a Vaino na estrada:
Eixo em eixo se engancha,
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Eixo em eixo se engancha,
Rédea em rédea se emaranha,
Canzil em canzil se encrava,
Arreio em arreio prende.

Ali e então se estacaram,


Uma pausa pra pensar...
Suor dos arreios caía,
Vapor das rédeas subia.

Indagou o velho Vaino:


"Quem és tu, de que família,
Que te enfias à maluca,
De forma desaustinada,
Esmagando o meu canzil
Trabalhado em boa lenha,
Meu trenó fazendo em lascas,
Meu carro em cacos partindo?"

Então jovem Joukahainen


Disse um dito e assim falou:
"Meu nome é Joukahainen!
Mas diz tu de tua casa:
De que raça é que nasceste,
De ralé qual, desgraçado?"

Firme velho Vainamoinen


Então disse de quem era
E depois mais declarou:
"Se és tu jovem, Joukahainen,
Sai da frente um bocadinho!
Entre nós és o mais novo."

Ora o jovem Joukahainen


Disse um dito e assim falou:
"Não é cá uma questão de idade
Nem de quem é mais novo ou velho!
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Nem de quem é mais novo ou velho!
Quem for melhor na magia,
Mais poderoso na lembrança,
Esse fique pela estrada
E se chegue o outro ao lado.
Se és o velho Vainamoinen,
O famoso bardo eterno,
Comecemos a cantar,
Iniciemos recitando,
Um homem testando o outro,
Um ao outro derrotando!"

Firme velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"Como serei eu cantor,
Sapiente encantador?
Eu que sempre aqui vivi,
Nestes bosques solitários
Pelos campos sempre atento
Às cantigas do meu cuco?
Mas seja lá como for,
Faz ouvir minhas orelhas
Daquilo que melhor sabes,
Daquilo que mais conheces."

Disse o jovem Joukahainen:


"Pois sei cá umas coisinhas!
Isto sei eu claramente
E muito bem compreendo:
Sobe o fumo até ao tecto,
Arde a chama na lareira.

"Vive a foca vida fácil.


Rola ocioso o cão do mar;
Ao pé de si tem salmão,
Tem coregono sempre à mão.

28
"Suave é casa de coregono,
Do salmão é o tecto plano;
Ova o lúcio em noite fria
E o baboso no mau tempo.
Acanhado peixe é perca;
No Outono nada fundo,
No verão ova em terra seca
E de encontro às costas malha.

"Se só isso não bastasse,


Outras artes também sei,
Doutras coisas estou ciente:
Lavra-se o Norte com rena,
Arada-se o Sul com égua
E a Lapónia com boi bravo.

"Sei de Pisa o arvoredo,


Da Escarpa de Horna os abetos,
Longas as árvores de Pisa,
Altos na Escarpa os abetos.

"Feros rápidos três há,


Também três os grandes lagos,
Três são as altas montanhas
Sob ogiva deste céu:
São em Hama as Quedas de Halla,
Em Carélia é a de Katra,
Mas ninguém venceu Vuoksi
Nem sobre Imatra passou."

Disse o velho Vainamoinen:


"Saber de petiz ou dona
Não é para homens barbados
Nem pra tipos já casados!
Diz-me das fundas origens,
Diz-me de coisas eternas!"
29
Diz-me de coisas eternas!"

Ora o joven Joukahainen


Disse um dito e assim falou:
"Sei da origem do chapim,
Que o chapim é passarinho,
Que é víbora serpente,
Que é perca um peixe de água.

"Sei que o ferro é quebradiço,


Sei que a terra é negra e dura,
Sei que água quente magoa,
Sei que é má a queimadura.

"Água é o mais velho unguento,


É remédio a espuma lesta,
Dos videntes é senhora,
Dos curandeiros é deusa.

"Da água é a montanha origem


E provém do céu o fogo;
Fonte é do ferro a ferrugem,
E raiz do cobre a rocha.

"Prima terra foi torrão,


Prima árvore foi salgueiro,
Prima casa, o pé de abeto,
E o primeiro pote pedra."

Firme velho Vainamoinem


Em palavras isto pôs:
"Lembras mais alguma coisa
Ou paraste de palrar?"

Disse o jovem Joukahainen:


"Lembro ainda mais um pouco!

30
"Lembro ainda mais um pouco!

Lembro-me agora do tempo


Em que lavrava no mar,
Sachando o fundo do oceano,
Cavando as valas dos peixes,
Profundando as profundezas,
Buscando lugar pra lagos,
As colinas acordando,
Os penedos empilhando.

"E mais: fui o sexto homem,


Sétimo de entre os sujeitos,
Quando a terra foi criada,
Quando foi gerado o ar,
Fixado o pilar celeste,
Montado o arco do céu,
Traçado o trajecto à Lua,
Puxado o Sol pró seu rumo,
Mostrado o trilho à Grande Ursa,
Decorado o céu de estrelas."

Disse o velho Vainamoinen:


"A verdade é que tu mentes!
Não foste tu por lá visto
Quando foi lavrado o mar
Sachado o fundo do oceano,
Cavadas valas dos peixes,
Profundadas profundezas,
Buscados lugares pra lagos,
Acordadas as colinas,
Empilhados os penedos.

"Nem foste tu por lá visto,


Nem lá visto nem achado,
Quando foi o ar gerado,
Fixado o pilar celeste,
Montado o arco do céu,
31
Montado o arco do céu,
Traçado o trajecto à Lua,
Puxado o Sol pró seu rumo,
Mostrado o trilho à Grande Ursa,
Decorado o céu de estrelas."

Então jovem Joukahainen


Em palavras isto pôs:
"Se me falta tanta manha,
Tenho manha a minha espada;
Vem cá velho Vainamoinen,
Ó bardo de boca larga!
Deixa a espada decidir,
Deixa a lâmina julgar!"

Disse o velho Vainamoinen:


"Não me fazem muito medo
Tuas espadas e manhas,
Teus espetos e teus truques:
Seja lá por onde for
Não vou espada levantar,
Contra ti, mau rapazinho,
Contra ti, meu pobrezinho."

Então jovem Joukahainen


Torce a boca e vira a cara,
Torce o seu bigode preto
E em palavras isto põe:
"A quem espada não respeita
E à lâmina não segue,
Em um porco o cantarei,
Farei em nariz-redondo;
E a um fulano desses
Que muita fala e faz pouco,
Farei em pilha de esterco,
Despejo de vacaria."

32
E é então que Vainamoinen,
Se enfurece e se enrubesce
E começa ele a cantar,
Inicia a recitar;
Não é canção de petiz
Nem de mulher palração,
Mas de tipo bem barbado,
Que as crianças já não cantam
Nem metade dos rapazes
Nem entre os noivos um terço
Nesta idade de maldade
Em que o tempo se termina.

Cantou velho Vainamoinen,


Lagos e terras tremeram,
Vacilaram as montanhas,
Ribombaram os calhaus
E quebraram-se as encostas
E nas praias os rochedos.

Vaino cantou Joukahainen,


Cantou brotos nos arreios,
Um salgueiro no canzil,
Ramos das rédeas brotando;
Cantou seu trenó doirado
Troco em terreno alagado;
Cantou seu chicote ornado
Em canavial pelas margens,
Cavalo de fronte ardente
Em rochedos na corrente.

Bainha de oiro na espada


Canta faísca no céu;
Arco de ponta brilhante
Canta arco-íris sobre as águas;
Suas setas emplumadas
33
Suas setas emplumadas
Em falcões de lesto voo;
Seu cão de focinho em gancho
Canta em pedras pelo chão;
Canta o capuz na cabeça
Em brando banco de nuvens;
Canta as luvas da mão fora
Lírios numa poça de água;
Canta seu casaco azul
Em vapores vogando o céu;
Seu fino cinto à cintura
Faz no firmamento estrela.

Então canta Joukahainen


Até à cinta num pântano,
Num prado até à virilha,
Em moita até ao sovaco.

Ora o jovem Joukahainen,


Ele nota e se apercebe,
Sabe que aqui tinha vindo,
Viajado esta viagem,
Pra defrontar e cantar
Esse velho Vainamoinen.

Conseguiu o pé soltar,
Não o pode levantar;
Tentou o outro pé também,
Mas de pedra bota tem.
Então para Joukahainen
Fica a coisa bem difícil,
Fica a coisa muito preta.

Balbucia e diz assim:


"Ó astuto Vainamoinen,
Ó eterno feiticeiro;
Re-enrola esse teu canto,
34
Re-enrola esse teu canto,
Desdiz lá a tua frase.
Salva o moço de um aperto,
Livra-me desta aflição,
Que eu te darei um bom preço,
Pagarei real resgate."

Disse o velho Vainamoinen;


"Pois bem, que me darás tu
Se meu canto re-enrolar,
Minha frase desdisser
E do aperto te salvar,
Desta aflição te livrar?"

Disse o jovem Joukahainen:


"Pois bem, eu tenho dois arcos,
Tenho duas belas bestas:
Uma tem rápido ataque,
Outra boa pontaria.
Escolhe dentre essas uma!"

Disse o velho Vainamoinen:


"Não me interessam tuas bestas
Nem teus arcos, ó malvado!
Tenho desses que me cheguem,
Às carradas nas paredes,
Pendurados nos cabides;
Vão eles sem homem caçar,
Sem sujeito trabalhar."
E mais cantou Joukahainen,
Mais no fundo o enterrou.

Disse o jovem Joukahainen:


"Pois bem, eu tenho um batel,
Barcos dois dos bem bonitos;
Um é leve pra correr,
O outro é bom a carregar.
35
O outro é bom a carregar.
Escolhe dentre esses um!"

Disse o velho Vainamoinen:


"Não me interessa o teu batel,
Os teus barcos não invejo!
Tenho desses que me cheguem,
Ancorados nos seus cais,
Repousando em suas angras.
Um no vendaval é firme,
O outro avança na borrasca."
E mais cantou Joukahainen,
Mais no fundo o enterrou.

Disse o jovem Joukahainen:


"Eu tenho dois garanhões,
Tenho dois belos cavalos;
Um, ligeiro, corre mais,
Outro pula pela pista.
Escolhe dentre esses um!"

Disse o velho Vainamoinen:


"Não me interessam teus cavalos,
Os teus garanhões não choro!
Tenho desses que me cheguem,
Atados em manjedouras,
Vivendo nos meus estábulos
Com água claro nos dorsos,
Com a pele cheia de lustre."
E mais cantou Joukahainen,
E mais no fundo o enterrou.

Disse o jovem Joukahainen:


"Bom e velho Vainamoinen,
Re-enrola esse teu canto,
Desdiz lá a tua frase.
Dou-te em elmo cheio de oiro,
36
Dou-te em elmo cheio de oiro,
Um chapéu cheio de prata,
Que o meu pai ganhou na guerra,
Que das pelejas portou."

Disse o velho Vainamoinen:


"Não me interessa a tua prata
Nem teu oiro, desgraçado!
Tenho disso que me chegue
Atafulhado em alpendres,
Armazenado em caixotes.
Oiro eterno como a Lua,
Prata antiga como o Sol."
E mais cantou Joukahainen,
Mais no fundo o enterrou.

Disse o velho Joukahainen:


"Bom e velho Vainamoinen
Salva o moço de um aperto,
Livra-me desta aflição!
Dar-te-ei as minhas medas,
Os meus campos arenosos
Pra salvar a minha pele,
Pra ganhar a salvação."

Disse o velho Vainamoinen:


"Não me atraem tuas medas
Nem teus campos, meu malandro!
Tenho desses que me cheguem,
Campos tenho em toda a parte,
Medas em toda a clareira.
São meus campos bem melhores,
São mais doces minhas medas."
E mais cantou Joukahainen
Já não sabe o que tentar,
Seu queixo enterrado em lama,
Sua barba em mau lugar,
37
Sua barba em mau lugar,
Sua boca em tremedal,
Presos seus dentes num tronco.

Disse o jovem Joukahainen:


"Ó astuto Vainamoinen,
Ó eterno feiticeiro:
Cante teu canto pra trás,
Poupa minha fraca vida,
Tira-me deste lugar!
Puxa-me a corrente os pés
E a areia mói-me os olhos.

"Se o teu canto re-enrolares,


Se teu dito desdisseres
Aino dou-te, minha irmã,
Dou-te a filha da mãe minha,
Pra limpar tua cabana
E varrer o chão também,
Enxaguar o teu soalho,
Lavar canecas de leite
Tecer-te capa doirada
E cozer-te pão de mel."

Então velho Vainamoinen


Maravilhado ficou:
Ter irmã de Joukahainen
A cuidar sua velha idade!
Sobre a pedra da alegria,
Na rocha do seu cantar
Canta um tempo, canta dois
E cedo canta um terceiro;
O seu canto re-enrola
E sua frase desdiz.

Fica livre Joukahainen


Seu queixo fora da lama,
38
Seu queixo fora da lama,
Sua barba livre do aperto;
Sai seu cavalo da cheia,
O seu trenó sai do tronco,
Do canavial seu chicote.

Trepou logo ao seu trenó


Atirou-se pra seu carro;
Foi-se embora mal disposto,
Com seu coração pesado,
À sua mamã querida,
À progenitora honrada.

Corre a estrada com ruído,


Vai aos esses para casa;
Manda o trenó contra os fornos,
Quebra os eixos nos degraus.

Então sua mãe suspeita


E o seu pai diz as palavras:
"Sem motivo te esbarraste,
De propósito bateste!
Porque vens pra casa aos esses,
Porque vens armado em parvo?"

Então jovem Joukahainen


Chora uma cheia de pranto,
Triste e de cabeça baixa.
Seu elmo torno, inclinado,
Com sua boca crispada,
Com lábios esbranquiçados.

Corre a mãe a demandar,


Vem depressa questionar:
"Porque choras, meu filhinho,
Fruto dos meus verdes anos?
Porquê a boca crispada
39
Porquê a boca crispada
E os lábios esbranquiçados?"

Disse o jovem Joukahainen:


"Mãe que em ti me carregaste,
Não fiz isso sem razão;
Sucedeu magia estranha,
Causa essa pra chorar,
Razão pra me lamentar!

"Toda a vida chorarei,


Prantearei todos meus dias;
Prometi eu minha irmã,
Aino, da minha mãe filha,
Pra tratar de Vainamoinen,
Ser a mulher do cantor,
Apoio do vacilante,
Abrigo do encostado,"

Esfregou a mãe as mãos


Juntas, uma palma noutra;
Disse um dito e assim falou:
"Não chores, filhinho meu,
Não há nada que chorar,
Nada há a lamentar;
Toda a vida desejei,
Esperei todos meus dias
Ser do clã o grande homem,
Ter o bravo em minha tribo,
Quis ter Vaino como genro,
O cantor pra teu cunhado."

A irmã de Joukahainen
No seu canto ia chorando.
Chorou por um dia dois
No vão da escada escondida.
Chorou com grande tristeza,
40
Chorou com grande tristeza,
Cheio o peito de amargura.

Repetia-lhe sua mãe:


"Porque choras, Aino minha,
Se cais ter um grande noivo
E uma casa reputada
Pra te sentares à janela
E nos assentos palrares?"

Pôs a filha isto em palavras:


"Mãe que em ti me carregaste,
Muito tenho eu que chorar;
Quõ belas as minhas tranças,
Quão espessas as madeixas
E quão fino o meu cabelo.
Devo-o eu já esconder,
Cobrir enquanto ainda cresço?
Chorarei eu para sempre
A doçura deste Sol,
O encanto deste céu,
Se tão jovem for partir
E em criança os deixar
Na oficina do meu mano,
Nas janelas do meu pai."

Diz ainda a velha mãe,


Assim diz à sua filha:
"Vai-te tola, com os teus ais,
Imprestável, com teus prantos!
Não há razão pra tristezas
Nem motivos de aflições;
Também brilha o Sol de Deus
Noutras partes que há além
Das janelas do teu pai,
Dos portões do teu irmão.

41
"Outras bagas noutros montes,
Outros morangos também,
Que tu colhas, minha triste,
Noutras terras há além
Das clareiras do teu pai,
Das terras do teu irmão."

42
IV
O Destino de Aino

Um dia Aino, jovem moça,


A irmã de Joukahainen,...
Vai buscar vassoura ao bosque,
Vai colher galhos prá sauna.
Faz um ramo para o pai
E um ramo para a mãe,
Colhe um terceiro também
Para o corajoso irmão.

Já voltava para casa


Pelo bosque de amieiros
Quando veio Vainamoinen,
Viu a moça no arvoredo,
Em finas vestes pela erava,
Proferiu e assim falou:
"Não pra outros, jovenzinha,
Que só pra mim, jovenzinha,
Usas contas ao pescoço,
Ornes o peito com cruzes,
Faças tranças no cabelo
Com bela banda de seda!"

Pôs a moça isto em palavras:


"Nem pra ti nem pra ninguém
Usarei eu cruz ao peito,
Atarei seda ao cabelo.

"Não me interessa roupa cara,


Pão de trigo não procuro.
Vivo com modestas vestes,
Cresci de comer migalhas
Pela casa de meu pai,
Com minha querida mãe."
43
Com minha querida mãe."

Ela arranca a cruz do peito,


Dos seus dedos os anéis,
Solta do pescoço as contas,
Da cabeça os fios rubros
Pra dar de proveito ao solo,
Pra dar de gozo á floresta;
Corre pra casa chorando,
À moradia gemendo.

O seu pai estava à janela,


Adornando um cabo de acha:
Porque choras pobrezinha,
Minha pobre menininha?"

"Razões tenho eu pra chorar


Muitos ais a lamentar!
Choro por isto, papá,
Choro por isto e lamento:
Soltou-se a cruz do meu peito,
E o enfeite da cintura;
Do meu peito, a cruz de prata,
Da cintura, o cinto em cobre."

Seu irmão pelos portões


Entalhava um ramo curvo:
"Porque choras, pobrezinha,
Minha pobre menininha?"

"Razão tenho eu pra chorar


Muitos ais a lamentar!
Choro por isto, maninho,
Choro por isto e lamento:
Cai-me o meu anel de oiro
E as contas do pescoço;
Perdi o meu anelzinho
44
Perdi o meu anelzinho
E minhas contas de prata."

Sua irmã ao pé da porta


Vai tecendo cinta em oiro;
"Porque choras, pobrezinha,
Minha pobre menininha?"

"Razão tenho eu pra chorar


Muitos ais a lamentar!
Choro por isto, maninha,
Choro por isto e lamento:
Caiu-me oiro da cabeça
E prata do meu cabelo;
Dos meus olhos, seda azul,
Da cabeça, fita rubra."

A mãe estava na dispensa,


A tirar a nata ao leite;
"Porque choras, pobrezinha,
Minha pobre menininha"

"Ó mamã que me criou!


Mãezinha que me aleitou!
Ele há causas muito negras,
Muitos amargos pensamentos!
Pobre mãe, por isto eu choro,
Mamã, por isto eu me queixo:
Fui buscar vassoura ou bosque,
Fui colher galhos prá sauna;
Fiz um ramo pra meu pai,
Um ramo pra minha mãe,
Colhi terceiro também
Pra meu corajoso irmão.

"Já tornava para casa,


Andando pelo arvoredo,
45
Andando pelo arvoredo,
Quando do vale, da terra,
Veio o de Osmo e assim me disse:
"Não pra outros, pobrezinha,
Que só pra mim, pobrezinha,
Usas contas ao pescoço,
Ornes o peito com cruzes,
Faças tranças no cabelo
Com bela banda de seda!"

"Arranquei a cruz do peito,


Soltei do pescoço as contas,
Dos olhos os fios azuis,
Da cabeça as fitas rubras
Pra dar de proveito ao solo,
Pra dar de gozo à floresta.

"Isto assim pus em palavras:


"Nem pra ti nem pra ninguém
Usarei eu cruz ao peito,
Atarei seda ao cabelo.
Não me interessa roupa cara,
Pão de trigo eu não procuro.
Vivo com modestas vestes,
Cresci de comer migalhas
Pela casa de meu pai,
Com minha querida mãe."

A mãe pôs isto em palavras,


A velha à filha falou:
"Não chores, minha filhinha,
Fruto dos meus verdes anos!
Um ano come manteiga;
Serás que outras mais roliça;
Noutro ano come porco:
Serás que outras mais macia;
Come ao terceiro panquecas:
46
Come ao terceiro panquecas:
Serás que outras mais lustrosa.

"Sobe à dispensa no monte,


Abre o rico armazém;
Lá há caixa sobre caixa
E baú sobre baú.
Abre dessas a mais bela,
Atira a tampa pra trás;
Dentro há seis cintos de oiro
E sete saias azuis
Por filha da Lua feitas,
Por filha do Sol ornadas.

"Uma vez, quando era moça,


Vivendo como menina,
Fui às bagas na floresta,
Às framboesas sob o monte.
A da Lua ouvi tecer,
A do Sol senti fiar
Debaixo da mata azul
Na margem do doce bosque.
Fui lá cima ter com elas,
Cheguei perto, aproximei-me,
Comecei-lhes a pedir,
Proferi e disse assim:
"Dá cá, Lua, do teu oiro,
Dá cá, Sol, da tua prata
À moça que nada tem,
À criança que vos pede!"

"Deu-me a Lua do seu oiro,


Deu-me o Sol da sua prata:
Pus oiro nas sobrancelhas,
Na cabeça boa prata.
Voltei a casa uma flor,
Alegria de meu pai.
47
Alegria de meu pai.

"Usei-as um dia, dois,


Até que ao terceiro dia
Tirei dos meus olhos oiro,
Da cabeça a boa prata.
Levei ambos prá despensa,
Ambos pus dentro da caixa.
Ali pousam desde aí,
Todo este tempo esquecidos.

"Liga sedas sobre os olhos,


Oiro põe nas sobrancelhas,
Puras contas, no pescoço;
Põe cruz de oiro nos teus seios;
Veste uma camisa em linho
De finíssimo tecido;
Puxa saia de bom pano,
Cinge-la de cinto em seda;
Pura seda, as finas meias
E de couro os sapatinhos!
Tece trança no cabelo,
Ata-a com fita de seda;
Nos dedos põe anéis de oiro
E nas mãos de oiro pulseiras!

"Assim voltarás a casa


Virás do alpendre no monte,
Para o teu clã alegrares,
Para o teu sangue orgulhares;
Como flor caminharás,
Como framboesa virás,
Mais graciosa do que foras,
Melhor que antes tinhas sido."

A mãe pôs isto em palavras,


Assim disse à sua filha,
48
Assim disse à sua filha,
Mas a filha não ligou,
Sua mãe não escutou.
Foi chorar para o quintal,
Lamentar-se para a quinta.

Disse ela com estes ditos,


Falou ela este discurso:
"Como sentesm os felizes,
Como pensam os benditos?
Assim sentem os felizes,
Assim pensam os benditos:
Como as águas enrugadas,
Como ondulação em vala.

"Mas como sentem os tristes,


Como pensam os sombrios?
Assim se sentem os tristes,
Assim pensam os sombrios:
Como água em poço profundo,
Neve dura pelos montes.

"O meu triste coração,


Já que sou triste criança,
Quer andar por ervas mortas,
Rastejar na erva rasteira,
Vaguear por esses prados,
Pelo meio dos arbustos,
Sem mais cor que o alcatrão
Nem mais branco que o carvão.

"Melhor se teria feito,


Bem melhor teria sido,
Se não tivesse nascido,
Se não tivesse crescido
Nesta idade de maldade,
Neste mundo de tristezas.
49
Neste mundo de tristezas.
Fosse eu às seis noites morta,
Às noites oito perdida,
Muito não precisaria;
Um painho de lençol,
Um torrão pequenininho,
Pouco pranto da mamã,
Inda menos do papá,
Quase nada do irmão."

Chora um dia, chora dois


E a mamã a perguntar-lhe
"Porque choras, menininha,
Que lamentas, pobrezinha?"

"isto eu choro, pobrezinha,


E lamento o quanto posso:
Que infeliz me tenhas dado,
Tua filha prometido,
Ao velhote como jóia,
Alegria pró idoso,
Pró vacilante suporte,
Cobertor pró friorento.

"Bem melhor terias feito


Se às ondas do mar me desses,
Como irmã dos coregonos,
Para mana dos peixinhos.

"Melhor era no mar estar,


Sob as ondas habitar,
Como irmã dos coregonos,
Como mana dos peixinhos,
Que sustento ser do velho,
Suporte do vacilante,
Que tropeça em suas meias
E em ramagens se estatela."
50
E em ramagens se estatela."

A colina então correu,


E despensa adentro entrou;
Abriu a caixa mais bela,
Pra trás atirou a tampa.
Encontrou seis cintos de oiro,
Sete vestidos azuis
E com estes se vestiu,
O seu corpo ornamentou;
Na fronte aplicou os oiros,
No cabelo pôs as pratas;
Sobre os olhos, seda azul,
Fitas rubras no cabelo.

E daí ela partiu,


Foi por um bosque e por dois,
Errou em campos, pauis,
Errou em matas sombrias.

Enquanto andava cantava,


Andando ia assim dizendo:
"No meu coração há dor,
Há um peso em minha mente,
Mas a dor não doeria
E o peso não pesaria
Se eu, miseravelmente, morresse,
Fosse eu, malvada, cortada
Destas enormes tristezas,
Destes acres pensamentos.

"Agora era bem o tempo


De u partir deste mundo,
Tempo de me ir para a morte,
Tempo de ir pra Tuonela:
Não me chorava meu pai
Nem a mãe levava a mal;
51
Nem a mãe levava a mal;
Não molhava a mana a face
Nem molhava o mano os olhos,
Mesmo que ao mar me atirasse,
Mesmo que no mar caísse,
Sob as ondas mais profundas,
Sobre a lama mais escura."

Caminhou um dia, dois,


Até que ao terceiro dia
Chegou à beira-mar,
Perto da costa juncosa;
Aí a surpreende a noite,
Aí o escuro a detém.

Chora a moça o serão todo,


Choraminga toda a noite,
Na costa em rocha molhada,
No largo fim da baía.

Cedo na manhã seguinte


Viu dum promontório a ponta
Onde andavam três donzelas
E se banhavam no mar.
Seria Aino delas quarta
E moça pequena a quinta!
Pôs a blusa num salgueiro,
Sua saia numa faia,
Suas meias no chão nu,
Seus sapatos sobre a rocha,
Suas contas pela costa,
Seus anéis sobre o cascalho.

Brilhava uma rocha na água,


Luzia um rochedo de oiro;
Tentou nadar para a rocha,
Fugir para esse rochedo.
52
Fugir para esse rochedo.
E quando enfim lá chegou,
Sentou-se em cima da rocha,
Sobre o rochedo brilhante,
Nesse penedo luzente;
A rocha enfiou-se na água,
O rochedo se afundou
E a donzela no rochedo,
Aino em cima dessa rocha.

Aí se perdeu pintinha,
Morreu a pobre menina.
Disse ela enquanto morria,
Falou quando se afogava:
"No mar eu me vim banhar,
Cheguei pra na água nadar;
Pintinha, aqui me perdi,
Ave, cruel morte morri.
Que ao meu pai não se permita,
Nunca, nunca neste mundo,
Alguns peixes aqui pescar
Nestas águas poderosas!

"Na margem me vim lavar,


No mar eu me vim banhar;
Pintinha aqui me perdi,
Ave, cruel morte morri:
Que à mãe minha não se deixe,
Nunca, nunca neste mundo,
Água pôr nas suas padas
Desta bem larga baía!

"Na margem me vim lavar,


No mar eu me vim banhar;
Pintainha, aqui me perdi,
Ave, cruel morte morri.
Que ao meu irmão não se deixe,
53
Que ao meu irmão não se deixe,
Nunca, nunca neste mundo,
Água dar a seu corcel
Nestas costas arenosas!

"Na margem me vim lavar,


No mar eu me vim banhar;
Pintinha, aqui me perdi,
Ave, cruel morte morri.
Que à minha irmã não se deixe,
Nunca, nunca neste mundo,
Os seus olhos vir lavar
Neste cais de acostar!

"Quanta da água deste mar,


Quanto é sangue do meu sangue;
Quantos peixes deste mar
São da minha carne carne;
Quanta madeira da costa
É costela da coitada;
Quanta da relva da margem,
Seu cabelo desmanchado."
Assim morreu a donzela,
Assim finou-se a pequena.

Quem as novas levará,


Quem será o mensageiro,
À morada da donzela,
À sua casa de bom nome?

Levará o urso as novas,


Será ele o mensageiro?
Porém o urso não fala,
Perdeu-se numa vacada.

Quem as novas levará,


Quem será o mensageiro,
54
Quem será o mensageiro,
À morada da donzela,
À sua casa de bom nome?

Levará o lobo as novas,


Será ele o mensageiro;
Porém o lobo não fala,
Perdeu-se por um rebanho.
Quem as novas levará,
Quem será o mensageiro,
À morada da donzela,
À sua casa de bom nome?

Um raposo as levará,
Será ele o mensageiro?
Mas o raposo não fala,
Entre os gansos se perdeu.

Que as novas levará


Quem será o mensageiro,
À morada da donzela,
À sua casa de bom nome?

Uma lebre as levará,


Será ela o mensageiro!
Firme disse assim a lebre:
"Aqui não se perdem novas!"
Pois a lebre se apressou,
Andou a de orelhas longas,
Correu a de pernas tornas,
Saltou a de boca em cruz,
Para casa de bom nome,
À morada da donzela.

Correu ao átrio da sauna


Na entrada se agachou.
Então na sauna muitas moças;
55
Então na sauna muitas moças;
Galhos nas mãos, a saúdam:
"Vieste pra ser cozida,
Ser assada, esbugalhada,
Pra jantar do senhor,
Pra repasto da senhora,
Para merendas das filhas,
Para almoço do filho?"

Consegue a lebre dizer,


Discursar, a esbugalhada:
"Metam mas é o Diabo
Na panela de estufar!
Eu venho cá trazer novas,
Venho como mensageiro:
Caiu a bela donzela,
A adornada se perdeu,
Foi-se a fivela de prata,
Sorveu-se o cinto de cobre,
Ida no mar buliçoso,
Rumo às vastas profundezas,
Para irmã do coregono,
Para mana dos peixinhos."

Desatou em choro a mãe,


Fez que pranto em rio rolasse
E começou a dizer,
Pobre assim se lamentou:
"Nunca mais, mães desgraçadas,
Nunca, nunca neste mundo,
Nunca embalem vossas filhas,
Nunca balancem vossas moças
A casar contra a vontade
Como eu fiz, mãe desgraçada,
Embalei minhas filhinhas,
Criei minhas pintainhas."

56
Do chorar da mãe rolou
Uma lágrima mais grossa,
Caiu dos olhos azuis
Sobre as faces desoladas.

Uma lágrima rolou,


Outra lágrima mais grossa,
Dessas faces desoladas,
Sobre os seios generosos.

Uma lágrima rolou,


Outra lágrima mais grossa,
Desse seios generosos,
Sobre distintas bainhas.

Uma lágrima rolou,


Outra lágrima mais grossa,
Dessas distintas bainhas,
Sobre suas meias rubras.

Uma lágrima rolou,


Outra lágrima mais grossa,
Dessas suas meias rubras,
Sobre os sapatos ornados.

Uma lágrima rolou,


Outra lágrima mais grossa,
Desses sapatos ornados,
Para o chão sob os seus pés;
Para gozo desse chão,
Para proveito das águas.

As águas ao chão chegado


Foram riacho formando
E cresceram rios três
Dos prantos que ela chorou,
57
Dos prantos que ela chorou,
Que vieram da sua cara,
De debaixo da sua testa.

Cresceram em cada rio


Três cascatas buliçosas;
Na espuma dessas cascatas,
Três penedos germinaram;
E nas beiras dos penedos
Cresceram cumes doirados;
E nos picos desses cumes
Cresceram três vidoeiros;
Cada um dos vidoeiros,
Tinha três ninhos de cuco.

Começam cucando os cucos:


Cucou um "Amor amor!",
O segundo "Noivo noivo!",
Outro "Alegria alegria!".
O que "Amor amor!" cucou,
Cucou durante três meses
Por menina sem amor
Que repousava no mar.

O que cucou "Noivo noivo!"


Cucou durante seis meses
Pelo noivo mal-amado
Que sofria de saudade.

O que cucou alegrias


Cucou toda a sua vida
Pela mãe sem alegrias,
Chorando todos seus dias.

A mãe pôs isto em palavras,


Escutando aquele cuco:
"Não deve a mãe desgraçada
58
"Não deve a mãe desgraçada
Daquele cuco muito ouvir!
Quando o cuco está cucando,
O meu coração aperta,
Lágrimas vêm-me aos olhos,
Águas correm-me das faces.
Correm mais grossas que ervilhas,
Correm que feijões mais gordas:
De uma vara passa a vida,
Ruça a carcaça de um palmo,
Todo meu corpo é maldito
Quando aquele cuco escuto."

59
V
Vainamoinen e a Sereia

Já a nova se espalhara,
Já se sabia a notícia,...
Do fim da bela menina,
Da donzela adormecida.

Firme velho Vainamoinen


Sofre muito a morte dela,
Chora à tarde e de manhã,
Chora mais ainda à noite,
Que seja perdida a bela,
A menina adormecida
Dentro do mar buliçoso,
Debaixo das fundas vagas.

Anda triste pensativo,


Com o coração pesado,
Olhando o azul do mar,
Proferindo estas palavras:
"Diz-me Untamo do teu sonho,
Tu que dormes sob a terra!
Onde é Ahto? Onde no sonho
Estão as filhas de Vellamo?"

O seu sonho disse Untamo,


O dormente sob a terra:
"Ahto é ali, e acolá
Estão as filhas de Vellamo,
Sobre a ponte tenebrosa
Daquela ilha nebulosa;
Sob as vagas estão,
Sobre a lama negra vão.

"Ali é de Ahto a morada


60
"Ali é de Ahto a morada
E das filhas de Vellamo,
Na salinha pequenina,
No quartinho respeitável
Perto da pedra brilhante
No sopé da espessa rocha."

Então velho Vainamoinen


Arrastou-se até ao cais.
Olhou as linhas de pesca,
Inspeccionou os anzóis,
Colocou no bolso anzol,
Meteu no seu saco um gancho.
Põe os braços a remar;
Logo alcança o fim da ilha,
Ponta do cabo de névoas,
Orla da ilha de brumas.

Lá se afoitou com anzol,


Labutou com sua linha,
Preparou a sua rede.
Atirou a rede ao mar,
Pescou, moveu sua rede:
Tremeu a cana de cobre,
Vibrou a linha de prata,
Soou o fio de oiro puro.

Foi num dia como os outros,


Numa manhã entre muitas,
Que um peixe mordeu o anzol,
Que o gancho ganchou truta.
Ele puxou-a pró seu barco,
Aterrou-a em sua chata.

Olhou-a de um lado e doutro,


Proferiu e assim falou:
"Ora aí está um peixinho
61
"Ora aí está um peixinho
O qual nunca, jamais vi.
Suave para coregono,
Claro demais para truta,
Nédio demais para lúcio,
Galha a menos para fêmea,
Estranho demais pra ser gente,
Face a menos pra ser moça,
Cinta pouca pra ser sereia,
Sem orelhas pra columba,
Calma demais pra salmão
Ou perca das profundezas."

No seu cinto Vainamoinen


Tem faca de ponta de prata,
Tira a faca da cintura,
Da bainha, a prateada.

Vai dividir o peixe,


Vai cortar o salmão
Pra repastos da manhã,
Para pequenos-almoços,
Para lanches de salmão
E para grandes jantares.

Aprontava-se a cortar,
A esventrá-lo com a faca;
O salmão ao mar saltou,
Fugiu o peixe brilhante,
Pra fora da barca rubra,
Do barco de Vainamoinen.

Alçou o peixe a cabeça


Mais o seu ombro direito,
Ao quinto sopro do vento,
À sexta das altas ondas.
Levantou a mão direita,
62
Levantou a mão direita,
Revelou o pé esquerdo,
Depois da sétima vaga,
Sobre a nona ondulação.

Então pôs isto em palavras,


Declarou, tagarelou:
"Ó bem velho Vainamoinen!
Não fui eu feita pra ser
Um salmão que tu cortasses,
Um peixe que dividisses
Pra repastos da manhã,
Para pequenos-almoços,
Para lanches de salmão
Ou para grandes jantares."

Disse o velho Vainamoinen:


"Pra que foste então tu feita?"

"Pois fui feita pra ser


Pássaro sob o teu braço,
A que se ia sentar sempre
Esposa no teu regaço,
Pra fazer a tua cama,
Pra te pôr a almofada,
Pra limpar a tua cabana,
Pra te varrer o soalho,
Pra te manter viva a lareira,
Pra acender a tua luz,
Pra fazer o teu grosso pão,
Pra cozer broas de mel,
Dar-te copos de cerveja
Cozinha tua comida.

"Não era eu salmão do mar


Nem perca das profundezas,
Mas moça, jovem donzela,
63
Mas moça, jovem donzela,
A irmã de Joukahainen,
Que toda a vida caçaste,
A quem muito desejaste.

"Seu velhote desgraçado,


Vainamoinen descucado,
Que não soubeste manter
A menina de Vellamo
De Ahto a filha sem igual!"

Disse o velho Vainamoinen


Cabisbaixo e malogrado:
"Ó irmã de Joukahainen
Volta só mais uma vez!"

Mas ela não mais voltou,


Nunca, nunca neste mundo,
Retirou-se e afundou-se,
Perdida da superfície
Dentro da rocha brilhante
Na fenda da cor do fígado.

Firme velho Vainamoinem,


Pois pondera e considera
Como ser, como viver.
Teceu de seda uma rede
E a água enxadrezou
Sobre um ou dois estreitos.

E dragou as ondas calmas


Entre as fenda de salmões,
Pelas águas de Vainola,
Nos pontões da Kalevala.

Dragou funduras sombrias


E os vórtices do mar,
64
E os vórtices do mar,
AS correntes da Joukola
E as baías da Lapónia.

Outros peixes pescou ele,


Todo o tipo de pescado,
Mas não apanhou o peixe
Que o coração lhe pedia:
A menina de Vellamo,
De Ahto a filha sem igual.

Então velho Vainamoinen,


Cabisbaixo e malogrado,
O elmo triste, inclinado,
Isto assim pôs em palavras:
"Ó que doido, que idiota,
Homem de pouco juízo!
Dantes eu tinha uma mente
E com ela pensamentos,
Um coração sempre cheio;
Mas foi isso há muito tempo.
Agora, nos dias de hoje,
Nesta idade de maldade
Em que a vida se termina,
A mente está como há-de ir,
São sem valor as ideias
E o bom senso já se foi!"

"Esperei-a tanto tempo,


Metade da minha idade,
A menina de Vellamo,
A mais jovem das sereias
Pra passar comigo vida,
Pra ser minha companheira.
Prendia-a no meu anzol,
Atirei-a pró meu barco,
Mas não a soube manter
65
Mas não a soube manter
E levá-la para casa.
Deixei-a cair nas ondas,
Afundar nas profundezas."

Fez da estrada um bocadinho,


Andou cheio de cuidados,
Arrastou-se para casa
Proferiu e assim falou:
"Ai, quando os cucos cucavam,
Cucos da minha alegria,
Cucavam noites, manhãs
E uma vez ao meio-dia.
Quem abafou suas vozes?
Quem calou vozes tão belas?

"Silenciou-as minha dor,


Calou-as meu sofrimento,
E assim não ouço cucar
Nem cantar ao pôr-do-sol
Pra meus serões alegrar,
Pra manhãs me contentar.

"Nem sei eu de todo como


Ser nem de como viver,
Como morar neste mundo,
Como vagar nesta terra.

"Se vivesse minha mãe


E velasse ainda a casa,
Poder-me-ia dizer
Como me fortalecer,
Como às dores resistir,
Suportar os sofrimentos,
Nesta idade de maldade
E de amargos pensamentos!"

66
Da sua cova sob as águas,
A mãe acordou e disse:
"Tua mãe ainda é vivente,
Vela inda a tua parente;
Ela te pode dizer
Como viver mais tranquilo,
Como às dores resistir,
Suportar os sofrimentos,
Nesta idade de maldade
E de amargos pensamentos.

"Vai ver as filhas do Norte!


São lá belas as meninas,
Duas vezes mais bonitas,
Cinco, seis mais animadas,
Que as tristonças da Joukola,
Que as tolinhas da Lapónia.

"Arranja por lá mulher,


Do norte a melhor das filhas,
Que tenha olhos bonitos,
De admirar, bela figura,
Que tenha pernas esbeltas,
Prontas a correr e saltar!"

67
VI
A Vingança de Joukahainen

Firme velho Vainamoinen


Tinha na mente a ideia...
De ir até à fria aldeia,
Até à pobre Pohjola.

Tomou cavalo de palha,


Corcel de talos de ervilha,
Pôs arreios ao doirado,
Cabeçada ao prateado.

No seu dorso se sentou,


Se montou e se ajustou,
E seu caminho trotou,
Sem grandes pressas se foi,
Montado em corcel de palha,
Montado em talos de ervilha.

Passou da Vainola os bosques


E da Kalevala os campos;
Acelera e o corcel corre;
Fica a casa e a estrada encurta.

Corre agora no mal alto,


Sobre a larga vastidão,
Sem se molharem os cascos,
Sem que o boleto se afunde.

Quanto ao jovem Joukahainen,


Filho esguio da Láponia,
Guarda ainda grão rancor,
Uma inveja bem profunda,
Desse velho Vainamoinen,
Desse bardo sempiterno.
68
Desse bardo sempiterno.

Preparou besta de fogo,


Construiu um belo arco.
O arco era em ferro forjado,
Dorso em cobre reforçado,
Com oiro puro frisado
E com prata trabalhado.

Mas onde encontrar um fio,


Onde arranjar uma corda?
Nos tendões do alce do Diabo,
Dos fios de linho do Demo!
Pôs o arco em boa forma,
Fez a besta preparada.

Era o arco bem bonito,


A besta bastante cara:
No dorso tinha um corcel,
Sobre o arco havia um potro,
Moça na pega sentava,
Lebre no suporte andava.

Cortou um monte de flechas,


Um montão das três penas;
Faz as hastes de carvalho,
Faz as pontas de pinheiro,
Logo que estão preparadas,
Assim penas lhe coloca,
Penazinhas da andorinha
E da cauda de um pardal.

Endurece as suas setas,


Esses seus dardos tempera
Com veneno de víbora,
Com de cobra mortal sangue.
Assim seus dardos prepara,
69
Assim seus dardos prepara,
Besta apronta pra atirar.

Longo tempo esperou Vaino,


Longamente em cansaço,
Ora sentado à janela
Ou guardando do telhado,
Ora a estrada escutando
De vigia no terreno,
Com aljava cheia às costas,
Arco debaixo do braço.

E mais longe inda esperou,


Mais ao de lá doutra casa
No promontório de fogo
Sobre o cabo flamejante,
Ao pé da cascata ardente
Perto do rio sagrado.

Foi num dia como os outros,


Numa manhã entre muitas,
Que pra Noroeste olhou,
Debaixo do Sol mirou;
No mar pinta preta avista,
Algo azulado entre as ondas:
"É no Leste aquilo nuvem
Ou alvorada a Nordeste?"

Não era no Leste nuvem


Nem a Nordeste alvorada;
Era o velho Vainamoinen,
Esse bardo sempiterno,
Indo à Terra do Norte,
Indo para a Terra Negra,
Montado em corcel de palha,
Montado em talos de ervilha.

70
Então jovem Joukahainen,
Moço esguio da Lapónia,
Prepara a besta de fogo,
Aponta o seu belo arco
À testa do velho Vaino
Pra matar o de Suvanto.

Sua mãe vem perguntar,


Vem correndo inquirir:
"Pra quem armas essa besta,
Pra que preparas o arco?"

Então jovem Joukahainen


Disse um dito e assim falou:
"Está a minha besta armada,
O meu arco preparado
Pra testa do velho Vaino,
Pra matar o de Suvanto.
Matarei o velho Vaino,
Baixarei o bardo etero;
Pelo coração e fígado
Racharei a carne do ombro."

A mãe de atirar proíbe,


A mãe proíbe e rejeita:
"Não abatas Vainamoinen,
Não baixe o de Kaleva,
Vaino é de bom sangue; é filho
Da irmã do meu cunhado
O bardo da Kalevala.

"Se abateres o velho Vaino,


Se baixares o de Kaleva,
Perde este mundo alegria,
Perde cantos esta terra.
Melhor é que alegria haja,
71
Melhor é que alegria haja,
Melhor é canto na terra,
Que no reino da Manala,
Nos salões da Tuonela."

Isto jovem Joukahainen


Considera agora um pouco
E pondera um bocadinho:
A mão implora, outra rejeita,
Doem seus dedos nervosos.

Por fim pôs isto em palavras,


Declarou e disse assim:
"Fossem dobro essas maleitas,
Perdida mais alegria,
Ainda assim eu preferia
Ver o velho Vaino morto!"

Esticou a besta ardente,


Puxou a corda de cobre
Contra o seu joelho esquerdo,
Debaixo do pé direito.
Dardo da aljava tirou,
Uma flecha com três penas;
Tirou a mais lesta seta,
Escolheu a melhor haste,
Colocou-a na ranhura,
De encontro à corda do arco;
Alinhou a besta ardente
Sobre o seu ombro direito.

Colocou-se pra atirar,


Pra Vainamoinen matar,
E então pôs isto em palavras:
"Fere, ponta de vidoeiro!
De pinho haste, agora pune!
Corda de cânhamo, bate!
72
Corda de cânhamo, bate!

Se baixa a mão a mandar,


Possa-se essa seta alçar!
E se a mão alta a lançar,
Possa-se a seta baixar!"

Então premiu o gatilho,


Lançou a primeira flecha:
Voou essa alto demais,
Sobre a cabeça, pró céu;
Nas nuvens se foi perder,
No vapor rodopiante.

Não ligou e outra atirou,


Mais uma das suas setas:
Andou esta muito baixo,
Pelas entranhas da terra;
Fez a terra desabar,
Fez a colina quebrar.

Logo disparou terceira;


Foi direita desta feita
Ao ombro do alce azul
Sob o velho Vainamoinen;
Feriu o corcel de palha,
Corcel de talos de ervilha,
Através da carne do ombro,
Pela sua pata esquerda.

Então velho Vainamoinen.


Mergulhou no mar de dedos,
Com mãos pra dentro da onda,
Punhos à escuma esticados,
Do dorso deste alce azul,
Corcel de talos de ervilha.

73
Então veio um vento forte,
Rijo vendaval do mar,
Arrastou o velho Vaino,
Puxou-o para mais longe,
Para a imensidão das águas,
Para a vastidão do mar.

Então jovem Joukahainen


Alardeou-se com sua língua:
"Nunca, velho Vainamoinen,
Nunca mais com vivos olhos,
Nucnca, nunca neste mundo,
Nem que as pintas ganhem dentes,
Passarás pela Vainola,
Nos campos da Kalevala!

"Por aí bóia seis anos,


Balança sete verões,
Move-te por oito anos
Nessa imensidão das águas,
Nessa vastidão das vagas.
Por eis anos, qual abeto;
Por sete anos, qual pinheiro;
Por oito anos, como um cepo."

Para casa recolheu,


Sua mãe lhe perguntou:
"Disparaste sobre Vaino,
Sobre o filho de Kaleva?"

"Já atirei e já perdi


Esse filho de Kaleva.
Fi-lo perde-se no mar,
Fi-lo afundar-se nas ondas.
Dentro do mar buliçoso,
No meio das fortes vagas,
74
No meio das fortes vagas,
Mergulhou no mar com dedos,
Revirou-se em suas palmas,
Então descaiu pró lado,
Pra ser por ondas levado,
Pela corrente arrastado."

A mãe pôs isto em palavras:


"Fizeste mal, desgraçado,
Atirando sobre Vaino,
Sobre o filho de Kaleva,
O grande homem de Suvanto,
Da Kalevala o mais belo!" Ver mais

75
VII
Vainamoinen e Louhi

Firme velho Vainamoinen


Nada pelas vastas vagas,...
Vai como um tronco de abeto,
Qual cepo podre de pinho,
Por seis dias de verão,
Por eis noites de seguida;
Tem à frente água fluente,
Atrás dele o claro céu.

Nada por mais duas noites,


Por dois dias muito longos,
Até que na nona noite,
Acaba o dia oitavo,
Sente uma grande maleita,
Dá-lhe uma dor desmedida,
Pois dos pés perdeu as unhas,
Dos dedos perdeu as juntas.

Firme velho Vainamoinen


Pronunciou estas palavras:
"Aí, pobre de mim, coitado!
Aí, tipo de triste sina!
Que parti das minhas terras,
Das terras onde morava,
Para sempre sob o céu
Vaguear de noite e dia,
Balançando pelo vento,
Carregado pelas águas
Nestas largas vastas vagas,
Nesta imensidão de mar.

"Aqui faz por demais frio,


76
"Aqui faz por demais frio,
Triste é para mim ficar,
Ter de nas ondas viver,
No mar alto flutuar.
Nem sei como hei-de ser,
Como ser, como viver
Nesta idade de maldade
Em que os tempos se terminam.

"Devo ao vento construir,


Fazer na água uma cabana?
Se no vento construir
No vento não há refúgio;
Se cabana fizer na água,
Então água a levará."

Da Lapónia ave voou,


Uma águia do Nordeste,
Não era águia muito grande
Nem era das mais pequenas:
Uma asa roçou no mar,
Outra asa o ar varreu,
A sua cauda o mar tocou,
Seu bico em rochas raspou.

Ele flutua e plana,


Olha à volta e vira à volta.
Vê o velho Vainamoinen
No plano azul do mar alto:
"Porque estás no mar, ó homem,
Ó sujeito, entre essas vagas?"

Firme velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"Estou eu, homem, neste mar,
Eu, sujeito, entre estas vagas,
Buscando moça do Norte,
77
Buscando moça do Norte,
Menina da Terra Escura."

"Galopava em meu cavalo


Através do mar inquieto
Até que, num dia entre outros,
Numa manhã como muitas,
Cheguei junto à Luotola,
Às correntes da Joukola,
Onde o meu corcel mataram,
Mas era a mim que queriam.

"Então na água eu me afundei,


Caí directo nas ondas,
Pra vento me balançar,
Pra vaga me carregar.

"Veio um vento do Noroeste,


Veio um vendaval de Leste;
Carregou-me para longe
E mais me afastou da terra."

"Muitos dias fui levado


E muitas noites nadei
Nestas vastíssimas vagas,
Nesta larga vastidão;
Eu não posso nem saber,
Prever ou compreender,
Qual a morte que há-de vir,
Qual primeiro há-de chegar;
Será rendição à fome
Ou afogamento na água?"

Disse a águia, ave do ar:


"Não te deves preocupar!"
Salta para as minhas costas,
Monta-me as pontas das asas!
78
Monta-me as pontas das asas!
Vou-te deste mar levar
Para onde queres chegar.
Ainda me lembro do dia,
Recordo tempos melhores,
Quando o bosque de Kaleva,
A mata de Osmo abateste:
Deixaste viçar vidoeiro,
Poupaste essa árvore amada,
Para as aves descansarem,
Para que eu pudesse pousar".

Firme velho Vainamoinen


Sua cabeça levanta;
Ergue-se o homem do mar,
Sai o sujeito das vagas,
Nas asas da águia se instala,
Na ponta das asas da águia.

Essa águia, ave do ar,


Carregou o velho Vaino
Pelas veredas do vento e pelos trilhos da brisa
Para o mais distante Norte,
À temida Sariola.
Aí deixa Vainamoinen
E se lança no ar em voo.

Aí chorou Vainamoinen,
Aí chorou e gemeu,
Sobre essa margem marinha
Cujo nome não sabia.
Cem feridas tem no flanco;
Ventos mil o fustigaram;
Está sua barba muito longa,
Seu cabelo emaranhado.

Chorou duas e três noites


79
Chorou duas e três noites
E a mesma conta de dias;
Não sabia ele aonde ir
Nem a estrada, o estrangeiro,
Para retornar a casa,
Para voltar aos seus campos,
Aos lugares onde nasceu,
Às terras onde morara.

Uma menina do Norte,


Moça de pele muito bela,
Fez um pacto com o Sol,
Com o Sol e com a Lua,
Pelo qual ao mesmo tempo
Quando eles se erguem, ela acorda;
Mas ela acordou primeiro,
Antes do Sol e da Lua,
Sem que nem galo cantasse
Nem pinta cacarejasse.

Cinco velos tosquiou,


Rompeu seis pêlos de ovelha,
Fez de lã tecido grosso;
Trabalhou todos em roupa
Antes que o Sol levantasse,
Antes de haver luz do dia.

E lavou as longas mesas,


Varreu os largos soalhos,
Com uma escova de ramos,
Com vassoura de folhagem.
Ela o lixo recolheu
Numa caixa em cobre feita,
Que transportou porta fora
Ao campo perto do pátio,
Fora, no final do campo,
Fora, na borda da cerca.
80
Fora, na borda da cerca.

Sobre a pilha da lixeira


Virou-se ela ao escutar.
Ouviu vindo do mar choro,
De além do rio gemido.
Retorna logo a correr,
Volta depressa pra dentro.

Disse ela quando chegou,


Anunciou assim que entrou:
"Vindo, do mar ouvi choro,
De além do rio, gemido."

Louhi, dama da Pohjola,


Mulher velha e desdentada,
Ao quintal se escapuliu
Ao portão repentinou;
Ouve aí com seus ouvidos,
Disse um dito e assim falou:
"Não é pranto de petiz,
Não é queixa de mulher,
Mas choro de homem barbado,
Pranto de um queixo peludo."

Então lançou um batel,


Um de três pranchas nas ondas,
E começou a remar,
A remar e a acelerar:
Remou para Vainamoinen,
Para o homem que chorava.

E aí chorava Vaino,
O de Suvanto gemia.
Perto dum triste ribeiro
E dum bosque de salgueiros;
Boca e barba lhe tremiam,
81
Boca e barba lhe tremiam,
Mas o queixo não mexia.

Disse a dama da Pohjola,


Proferiu e comentou:
"Ó tu, velho miserável,
Estás agora em terra estranha!"

Firme velho Vainamoinen


Levantou sua cabeça,
Disse um dito e assim falou:
"Lá isso, já eu bem sei.
Estou de facto em terra estranha,
De todo desconhecida.
No meu lar era mais rico,
Era em casa mais estimado."

Louhi, dama da Pohjola,


Disse um dito e assim falou:
"Se falar me é permitido,
Poderei eu perguntar
Que tipo de homem és tu
E que espécie de sujeito?"

Firme velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"De mim muito se falava,
Em tempos era estimado
Como animador à noite
Qual cantor em toda a parte
Nas planícies da Vainola,
Nos campos da Kalevala;
Mas o que seja eu agora,
Eu próprio não sei dizer."

Louhi, dama da Pohjola,


Disse um dito e assim falou:
82
Disse um dito e assim falou:
"Ergue-te, homem, do lameiro,
Toma, tipo, m trilho novo,
Pra narrastes tuas maleitas,
Pra contares tuas desgraças!"

Tirou o homem do choro,


O sujeito do gemido;
Levou-o para o seu barco;
Fê-lo sentar-se na popa,
Instalou-se ela nos remos
E remou com grande força
Através da Pohjola,
Levando o estranho pra casa.

Fez comer o esfomeado,


Fez o molhado secar;
Muito tempo o esfregou
Esfregou e aqueceu;
Fez sentir-se bem o homem,
Fez melhor estar o sujeito.

Indagou ela e falou,


Proferiu e disse assim:
"Que choravas, velho Vaino,
Que gemias, ó de Uvanto
Nesse lugar de maldade,
Pela margem daquele mar?"

Firme velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"Tenho causas pra chorar
E tristezas pra gemer!
Muito tempo os mares nadei
E as ondas escavei
Nessas largas vastas vagas,
Nas amplas larguezas de água.
83
Nas amplas larguezas de água.
Todos os dias chorei,
Todo esse tempo sofri,
Por nadar das minhas terras,
Vir do prado familiar
Pra estas portadas estranhas,
A estes portões estrangeiros.

"Aqui as árvores mordem:


Tudo os paus de abeto batem,
Todos os vidoeiros malham,
Todos os amieiros cortam;
Só o vento reconheço
E este Sol já antes vi
Nestas terras estrangeiras,
Nestas portas tão diferentes."

Louhi, dama da Pohjola


Lembrou-se então de uma coisa:
"Mas não chores, Vainamoinen,
Não gemas, homem de Uvanto.
Bom é para ti cá estar,
Deixa-te aqui demorar,
Degustar nosso salmão,
Provar do nosso presunto."

Então velho Vainamoinen


Em palavras isto pôs:
"Comida estranha cai mal
Mesmo em casa hospitaleira;
No seu lar mais rico é homem,
Em sua casa, mais estimado.
Se o Criador me concedesse,
SE o Deus gentil me deixasse
Às minhas terras voltar,
Às terras onde eu vivia!

84
"Melhor é na tua terra
Beber água em tua bota
Que, num país estrangeiro,
Mel duma tigela de oiro."

Louhi, dama da Pohjola,


Disse um dito e assim falou:
"Então que me darás tu
Se eu te levar destas terras
De volta aos teus próprios campos,
De retorno à tua sauna?"

Fez o velho Vainamoinen:


"E o que é que me pedirás
Se me levares destas terras,
De volta aos meus próprios campos
Por onde cuca o meu cuco,
Por onde a minha ave canta?
Um barrete pleno de oiro?
Um chapéu cheio de prata?"

Louhi, dama da Pohjola,


Disse um dito e assim falou:
"Ó sabedor Vainamoinen,
Ó eterno feiticeiro:
O teu oiro não me interessa,
Tua prata não desejo:
Moedas de oiro são brinquedos,
Moedas de prata, berloques.
Se puderes forjar o Sampo,
Malhar colorido tampo,
Com pena branca de cisne,
Leite de vaca machorra,
Com um só grão de cevada,
Com o velo de uma ovelha,
Dou-te minha menininha,
85
Dou-te minha menininha,
De prémio minha mocinha;
Retorno-te às tuas terras
Onde o teu pássaro canta,
Onde o teu cuco se escuta,
De volta aos teus próprios campos."

Firme velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"Não sei eu forjar o Sampo,
Ornar colorido tampo.
Retorna-me às minhas terras,
Que eu te envio Ilmarinen.
Ele te forjará o Sampo
Malhará o claro tampo;
À tua moça convirá,
Feliz tua filha fará.
É ferreiro muito bom,
Artesão habilidoso,
Que o firmamento forjou,
Arco estrelado malhou,
Sem deixar marca do malho
Nem donde a tenaz trincou."

Louhi, dama da Pohjola,


Disse um dito e assim falou:
"Darei mão da minha moça,
Jurarei minha menina,
Àquele que forjar o Sampo,
Ornar colorido tampo
Com pena branca de cisne,
Leite da vaca machorra,
Com um só grão de cevada
E penugem de uma ovelha."

A um porto pôs arreios,


O alazão em frente ao carro;
86
O alazão em frente ao carro;
Disse adeus ao velho Vaino,
Fê-lo sentar no trenó.
Então proferiu palavra,
Declarou e assim falou:
"Não levantes a cabeça
Nem a tua testa ergas
Sem o corcel se cansar
Ou o pôr-do-sol chegar;
Se a cabeça levantares
Ou a tua testa ergueres,
Virá certa a ruindade,
Vira dia de maldade."

Então velho Vainamoinen


Fez galopar o corcel,
Correr o crina-de-linho.
Vai pelo trilho rangendo,
Da penumbrenta Pohjola,
Da sombria Sariola.

87
VIII
A Menina da Pohjola

Bela era a moça do Norte,


Afamada em terra e mar....
Estava em arcada do céu,
Num arco-íris brilhando.
Usava roupagens puras,
Vestimentas muito brancas.
Tecia tecido de oiro,
Fazia pano de prata
Em lançadeira doirada
Com sarrafo prateado.

Cantava o tear nas mãos,


Nelas corria o carreto;
Tremiam liços de cobre,
Batia a ripa de prata,
Enquanto a moça fazia.

Firme velho Vainamoinen


Vai pelo trilho rangendo
Da penumbrenta Pohjola,
Da sombria Sariola.
Conduziu algum caminho,
Andou ele um bocadinho.
Ouviu do tear o som
Por cima da sua cabeça.

A cabeça levantou,
Para o firmamento olhou.
Há belo arco-íris no céu
E uma virgem nesse arco-íris
Que tece tecido de oiro.
Ágil tece um pano em prata,
Firme velho Vainamoinen
88
Firme velho Vainamoinen
Logo pára o seu cavalo.

Então disse estas palavras,


Comentou e assim falou:
"Vem cá pró meu carro, virgem.
Desce ao meu trenó, donzela!"

Pôs a moça isto em palavras,


Comentou e perguntou:
"pra que há-de ir virgem contigo,
E entrar moça em teu trenó?"

Firme velho Vainamoinen


Com estas lhe respondem:
"A virgem virá comigo
E entrará em meu trenó
Pra cozer meu pão de mel,
Pra fermentar a cerveja,
Pra cantar em cada banco
E à janela alegremente
Pelas quintas da Vainola,
Nos campos da Kalevala."

Pôs a moça isto em palavras,


Assim disse e comentou:
"Andava em prado de ruivas,
Plantando em urze amarela
Ontem ao final da tarde
Na altura do pôr-de-sol.
Cantava um tordo no bosque,
Chilreava um passarinho;
Cantava o desejo virgem
E o desejo de uma nora.

"Com esse tordo falei,


A essa ave eu perguntei:
89
A essa ave eu perguntei:
"Ó tordinho, canta lá,
Canta pra que eu te possa ouvir,
Qual de ambas é melhor ser,
Qual é a mais estimada;
Moça em casa de seu pai
Ou nora em lar de marido?"

"Pois o tordo me informou,


Chapinzinho chilreou:
"Claro é o dia de verão,
Mais clara a vida de virgem;
Frio é o ferro em tempo frio,
Ainda mais frio é ser nora.
Donzela em casa de pai
É qual baga em boa terra.
Nora em lar de seu marido
É qual cão acorrentado.
Raro é dar a escravo afecto
E à nora nunca se dá."

Firme velho Vainamoinen


Disse então estas palavras:
"Tolas são canções de tordo,
Chilreados de chapim!
Em casa a filha é criança,
Só é mulher quando esposa.
Vem ao meu trenó, donzela,
Anda cá para o meu carro.
Não sou homem sem valor
Nem fraco empreendedor."

Ela respondeu cansada,


Disse um dito e assim falou:
"Chamava eu homem a ti,
Estimava a tua pessoa,
Se tu rachasses um cisne
90
Se tu rachasses um cisne
Com uma faca sem ponta
E mais atasses um ovo
Com um laço invisível."

Firme velho Vainamoinen


Logo vai cisne rachar
Com um faca sem ponta,
Faca sem ponta nenhuma,
E lá vai um ovo atar
Com um laço invisível.

Ordenou que ela viesse,


Que trepasse ao seu trenó.
Ela respondeu cansada:
"Talvez até aí vá,
Caso a pedra a casca saques
E mastros ao gelo arranques,
Sem bocado algum lascar,
Sem lasca algum saltar.

Firme velho Vainamoinen


Disso não faz grande drama:
Sacou casca a uma pedra,
Um mastro ao gelo arrancou,
Sem bocado algum lascar,
Sem lasca alguma saltar.

Ordenou que ela viesse


Que trepasse ao seu trenó.
Respondeu ela cansada,
Disse então estas palavras:
"Eu iria com pessoa
Que uma barca fabricasse
Das lascas da minha roca,
Dos fragmentos do meu fuso;
Que metesse a barca à água,
91
Que metesse a barca à água,
Uma nova nau nas ondas,
Sem com o joelho empurrar,
Sem com a mão a tocar,
Sem com o braço a virar,
Sem com o ombro a dirigir."

Então velho Vainamoinen


Proferiu estas palavras:
"Não há na terra ou no mundo,
Debaixo do firmamento,
Construtor naval como eu,
Quem melhor faça navios."

Pegou nas lascas da roca,


Nos fragmentos desse fuso.
Foi a uma montanha de aço,
A um penedo de ferro
Para a barca fabricar,
O navio de mil tábuas.

Moldou com bravata o barco,


Fez a nau com arrogância.
Talha um dia, talha dois,
Logo talha um terceiro;
Machado não toca a rocha
Nem a ponta de acha a pedra.

Então, ao terceiro dia,


Vira a pega da acha o Demo,
Mexe o Diabo um poucochinho:
Faz o cabo escorregar,
Bate o machado na rocha,
A ponta de acha na pedra;
Foge o machado da rocha,
Desliza a acha carne adentro
No joelho do capaz,
92
No joelho do capaz,
No dedo do pé de Vaino.

O Diabo a cola à carne,


O Demónio prende às veias;
Começa o sangue a correr,
Desata o sangue a espirrar.

Firme velho Vainamoinen,


Esse eterno feiticeiro,
Então disse estas palavras,
Comentou e assim falou:
"Ó acha de fio afiado!
Ó tu, de guerra machado!
Pensas ter cortado arbusto,
Abatido sempre-verde,
Acertado num pinheiro,
Ou tombado um vidoeiro,
Quando em carne deslizaste
E minhas veias cortaste?"

Começou a exorcizar,
A falar palavras mágicas:
Bem disse encantos de origens,
Os ditos magos em ordem,
Mas não lembra bem de certos
Graves encantos do ferro
Donde pode ganhar trinco,
Arranjar um bom ferrolho
Contra essas fendas de ferro,
Rachas de azul boca de aço.

Já corria o sangue em rio,


Gorgolava qual cascata
Nos caules cheios de bagas,
Sobre as flores da charneca.
Não houve nem um dos tufos
93
Não houve nem um dos tufos
Que não tivesse alagado
Por esse excesso de sangue,
Por essa linfa jorrando
Do joelho do tipo sério,
Do dedo do pé de Vaino.

Firme velho Vainamoinen


Raspou algas a rochedo,
Tirou musgos a lameiro,
Arrancou tufo do solo
Pró mau buraco tapar,
Pró duro dique estancar,
Mas não tapa nem um pouco,
Nem um bocadinho estanca.

Então sente-se angustiado


E muito preocupado;
Firme velho Vainamoinen
Desata a choramingar.

Põe os arreios ao potro,


O alazão em frente ao carro;
Lança-se no seu trenó,
Acomoda-se no cesto;
Bate o corcel com chicote,
Faz estalar na ponta as contas.

Vai corcel, a viagem passa;


Trenó vai e a estrada encurta.
Cedo chega a uma aldeia
Onde três trilhos se encontram.

Firme velho Vainamoinen,


Vai pelo mais baixo trilho
Para a mais baixa das casas,
Sobre a soleira pergunta:
94
Sobre a soleira pergunta:
"Haverá cá nesta casa
Curador dos males do ferro,
Sabedor de feridas de homem,
Mitigador de maleitas?"

Havia um moço no chão,


Ao fogo um rapazinho,
É este que lhe responde:
"Não há neste casa aqui
Curador dos males do ferro,
Sabedor de feridas de homem,
Ninguém pra prender a dor,
Nenhum mago tratador,
Mas há um na casa ao lado.
Vai lá tu, à casa ao lado."

Firme velho Vainamoinen


Bate o corcel com chicote,
Faz estalar na ponta as contas,
Vai rangendo pela estrada,
Toma o caminho do meio,
Para a morada do meio.

Perto da soleira indaga,


Sob a janela pergunta:
"Haverá cá nesta casa
Curador dos males do ferro,
Trinco pra rio de sangue,
Fecho pra fluxo das veias?

Havia velha de capa,


Uma gralha na lareira.
Uma velha assim respondeu,
Com seus três dentes grunhiu:
"Não há nesta casa aqui,
Curador dos males do ferro,
95
Curador dos males do ferro,
Sábio da origem do sangue,
Ninguém pra caçar a dor,
Mas há um na casa ao lado,
Vai lá tu, à casa ao lado."

Firme velho Vainamoinen


Bate o corcel com chicote,
Faz estalar da ponta contas.
Vai rangendo pela estrada,
Toma o trilho mais acima,
Para a casa mais em cima.

Sobre a soleira pergunta,


Diz detrás dum poste à entrada:
"Haverá cá nesta casa
Curador dos males do ferro,
Um tampão para este sangue,
Quem pare este preto sangue?"

Ao fogão um velho estava,


Barba-cinza sob a viga,
Gritou do fogão o velho,
Resmungou o barba-cinza:
"Coisas bem maiores fecharam,
Coisas mais largas venceram
Do Criador as três palavras,
Decretos de origens fundas;
Rios na boca, na cabeça,
Lagos, rápidos na nuca,
Baías no ponto extremo,
Pontões no ponto mais fino."

96
IX
A Origem do Ferro

Então velho Vainamoinen


Levantou-se do trenó,...
Ergueu-se sem ser içado,
Pôs-se em pé sem ter ajuda,
Dali foi para a cabana,
Pra debaixo do telhado.

Um copo de prata vem,


É trazido jarro de oiro,
Mas só leva um bocadinho,
Nem sequer porção pequena,
Do sangue de Vainamoinen,
Da linfa desse grande homem.

Gritou do fogão o velho,


Resmungou o barba-cinzenta:
"Que espécie de homem és tu
E que tipo de pessoa?
Seis barcas cheias de sangue,
De sangue oito baldeiradas,
Foram no chão, miserável.
Do teu joelho jorradas.
Posso lembrar muitos cantos,
Mas não conheço o primeiro:
DE onde originou o ferro,
Nasceu metal de lameiro."

Então velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"Sei a origem do ferro,
Conheço do aço o principio,
"Foi o ar a mãe primeira,
Água foi o irmão mais velho,
97
Água foi o irmão mais velho,
Ferro foi o irmão mais novo,
Fogo foi o irmão do meio.

"Ukko, criador no alto,


Deus de todo o firmamento,
Separou água do ar
E da água fez a terra,
Mas não nasceu pobre ferro,
Não nasceu e não cresceu.

"Ukko, deus do firmamento,


Esfregou as suas mãos
E às duas pressionou
Contra o seu joelho esquerdo.
Daí três virgens nasceram,
Três espíritos naturais,
Para mães do ferro serem,
Mães do boca de aço azul.

"Dançaram ágeis as virgens


Pela ponta de uma nuvem,
Com os seus peitos bem cheios,
Com os seus mamilos doendo,
Seu leite no chão espremeram,
Deixaram jorrar seus peitos;
Jorraram em chão, paul,
Jorraram nas águas calmas,

"Uma delas, a mais velha,


Derramou um leite negro;
A segunda, irmã do meio,
Leite branco derramou;
A terceira, irmã mais nova,
Derramou leite vermelho.

"Da que entornou leite preto,


98
"Da que entornou leite preto,
Barra de ferro nasceu;
Da que entornou leite branco,
Liga de aço se formou;
Da que entornou rubro leite,
Filão de ferro cresceu.

"Um tempinho se passou


E o ferro quis conhecer,
Quis o irmão mais velho ver,
Quis ao fogo se mostrar.

"Mas o fogo foi malvado,


Tornou-se bastante horrível;
Quase queimava o coitado,
Pobre ferro, seu irmão.

"Conseguiu-se esconder ferro,


Se esconder e se salvar
Das mãos desse fero fogo,
Dessa boca furiosa.

"Então ferro se fintou,


Se escondeu e se salvou,
Numa lama movediça,
Numa fonte derramante,
Por sobre um largo paul,
No topo de um rude monte,
Onde cisnes põem ovos,
Onde o ganso cria as crias.

"Ferro jaz em tremedal,


No lameiro se espreguiça;
Esconde-se um ano e dois,
Logo se esconde um terceiro,
Entre tocos de arvoredo,
Aos pés de três vidoeiros.
99
Aos pés de três vidoeiros.

"Mas não fugiu com a fuga


Às mãos severas do fogo,
Teve de se ir vez segunda;
Foi à morada do fogo,
Pra ser em arma forjado,
Pra ser em espada malhado.

"Corre lobo no lameiro


Vagueia urso pela urze:
Bule a lama onde anda o lobo,
Mexe a urze onde anda o urso.
Aí ferro se levanta,
Um lingote de aço cresce,
Em marcas de unha de lobo,
Em pegadas de pé de urso.

"Mestre Ilmarinen nasceu,


Nasceu e cresceu também.
Nasceu em carvoento monte
Cresceu em de carvão urze;
Na mão, martelo de cobre;
No punho, tenaz pequena.

"Ilmari nasceu de noite,


Forja fez no dia seguinte.
Procurou lugar pra forja,
Sítio bom pra pôr seu fole.
De paul viu fina língua,
Torrão de terra molhada;
Aí foi inspeccionar,
Mais de perto examinar,
E ali seu fole enfiou,
A sua forja fincou.

"Chamou ao rasto do lobo,


100
"Chamou ao rasto do lobo,
Chegou às pegadas de urso,
Viu uns rebentos de ferro,
Viu também bocados de aço,
No grande rasto do lobo,
Nas marcas da pata de urso.

"Diz então estas palavras:


"Ai de ti pobre ferrinho,
Estás em fraca situação,
Em bem baixa posição
Nas marcas de unha de lobo,
Nas pegadas de pé de urso."

"Então pondera e reflecte:


"Com efeito, que faria,
Se eu no fogo te enfiasse,
Se eu na forja te metesse?"

Pobre ferro teve medo,


Teve medo e apavorou-se,
Ao ouvir falar do fogo,
Ao mencionar do malvado.

"Disse o artesão Ilmarinen:


"Não fiques tão preocupado!
Fogo não ataca amigo,
Não abusa seu parente.
Quando fores a sua casa,
À morada do fulgente,
Lá te tornarás mais belo,
Te erguerás em condição,
Pra seres de homem boa espada,
De cinto de mulher ponta."

"Durante esse mesmo dia,


Ferro foi do paul solto,
101
Ferro foi do paul solto,
Do lameiro separado,
À oficina levado.

"O artesão pô-lo no fogo,


Forçou ferro em funda forja,
Soprou fole uma, vez duas,
Mais soprou uma terceira.

"Ferro fico feito em papa


E espuma como escória,
Qual pasta de trigo estica,
Como massa de centeio
Nos grandes fogos do mestre,
No fulgor da forte flama.

"O pobre ferro gritou:


"Ó artesão Ilmarinen,
Por favor daqui me leva,
Destas dores do rubro fogo!"

"Disse o artesão Ilmarinen:


"Se eu te retirar do fogo,
Talvez te tornes terrível,
Entre em estado de raiva
E mais cortes eu irmão,
Trinches de tua mãe filho."

"Então jurou pobre ferro:


Jurou um voto solene,
Pela forja e por bigorna,
Por martelo e pelo malho.
Disse então estas palavras,
Isto assim ele proferiu:
"Dá-me lenha para eu morder,
Dá-me rocha pra eu partir,
Irmão não atacarei
102
Irmão não atacarei
Nem filho da minha mãe,
Melhor será existir,
Mais alegre meu viver,
Morando entre companheiros,
Ferramenta de artesão,
Que comer a parentela,
Que abusar a minha gente."

"Então Ilmarinen mestre,


Esse eterno artesão,
Retirou do fogo o ferro,
Pô-lo sobre a sua bigorna.
Trabalha até suavizá-lo,
Fá-lo em armas pontiagudas,
Fá-lo em lanças e machados,
Todo o tipo de ferragens.

"Qualquer coisa inda faltava,


DE algo o ferro precisava.
Sua língua não sibila,
Não se forma a boca de aço:
Ferro não será temperado
Sem ser em banho molhado.

"Então Ilmarinen mestre


Em tal assunto pondera.
Misturou algumas cinzas
E juntou uma lixívia
Em veneno de temperar,
Em banho de aço fazer.
Testou o mestre na língua,
Provou tanto quanto queria.
Pronunciou estas palavras:
"Não são estes bons pra mim
Banhos para aço fazer,
Poções pra ferro temperar."
103
Poções pra ferro temperar."
"Veio uma abelha do chão,
Uma asa azul de um torrão,
Ela plana e esvoaça
À volta da oficina.

"Põe o ferreiro em palavras:


"Ó abelha, fulaninho,
Traz-me mel na tua asa,
Em tua língua mel do mato,
Das seis pontas de seis flores,
De sete topos de relva,
Pra coisas de aço fazer,
Pró ferro forjado ser!"

"Mas a vespa, ave do Demo,


Está a olhar e a escutar;
Do beiral de um telhado olha,
Sob a casca de um vidoeiro,
Coisas de aço a serem feitas,
Ferro pronto a ser forjado
Põe-se a zumbir por aí,
Espalha os terrores do Demo:
Pões venenos de serpente,
Peçonha preta de réptil,
De formiga, ácido suco,
De sapo, o ódio secreto,
No veneno de temperar,
No banho de aço fazer.

"Então Ilmarinen mestre,


Esse eterno artesão,
É iludido e imagina
Que a abelha já regressou
E que já lhe trouxe o mel,
Esse mel de que precisa.

104
"Disse um dito e assim falou:
"Ora é isto que me agrada
Pra banhos de aço fazer,
Para o ferro temperar!"

"Então aço levantou,


Pobre ferro mergulhou,
Depois de o tirar do fogo,
Depois de o tirar da forja.

"Então ferro fez-se mau,


Ferro ficou furioso,
Não cumpriu sua promessa,
Como um cão manchou a honra,
Pois seu mano mordeu,
O seu parente atacou,
Faz o seu sangue sair
Em ferida qual torrente."

Rosnou do fogo o velho,


Cantou barba, abanou testa:
"Sei do fero ora a origem,
De aço os males agora entendo."

"Ó tu, ferro desgraçado,


Triste ferro de paul,
Pobre ferro enfeitiçado;
Foi pra isto que foste feito,
Pra malvado te tornares
Quando crescente em poder?

"Não eras dantes tão grande,


Nem tão grande nem pequeno,
Nem olhado por beleza
Nem notado por maldade.
Quando leite te criaram
105
Quando leite te criaram
E doce leite jorraste
Dos peitos das jovens virgens,
Desses seios muito cheios
Em margens de longa nuvem,
Sob o suave firmamento.

"Não eras então tão grande,


Nem tão grande nem pequeno,
Quando em lama descansavas,
Água clara, te afundavas
Sobre um vasto tremedal,
No sopé de áspero monte,
E em terra te tornavas,
Em solo bem ferrugento.

"Não eras então tão grande,


Nem tão grande nem pequeno.
Quando alces por ti corriam,
Renas te calcorreavam;
Quando o lobo te calcava,
Quando o urso te pisava.

"Não eras então tão grande,


Nem tão grande nem pequeno,
Quando a paul te tiraram,
Do solo te levantaram,
Te levaram pra oficina,
Para a forja de Ilmarinen.

"Não eras então tão grande,


Não eras grande ou pequeno,
Quando em escória sibilaste,
Mergulhado em água foste
E na flama da fornalha;
Quando a jura tu fizeste,
Pela forja e por bigorna,
106
Pela forja e por bigorna,
Por martelo e pelo malho,
Onde estava esse ferreiro
No lugar da sua forja.

"Agora que bem cresceste


Numa fúria te puseste
E quebraste a tua jura,
Pois feriste tua gente,
Pois mordeste o teu parente!

"Quem te fez tão mal fazer,


Te levou a tal maldade?
Talvez teu pai, tua mãe,
O teu mais velho dos irmãos,
A mais nova das irmãs
Ou um outro teu parente?

"Não foi teu pai nem tua mãe,


Nem o teu irmão mais velho,
Nem a tua irmã mais nova,
Nem um outro teu parente;
Tu próprio teu mal fizeste,
Mal mortal tu cometeste.

"Vem tua maldade olhar,


Vem teu mal remediar,
Antes que eu conte à tua mãe,
Que ao teu pai me vá queixar;
Mau será pra tua mãe,
Grande angústia pra teu pai,
Que seu filho tão mal faça,
Que cometa tais tolices.

"Pára sangue, de correr,


Pára, linfa, tua cascata;
Em mim o meu peito não jorres!
107
Em mim o meu peito não jorres!
Como muro o sangue prende,
Como cercado protege,
Como lâmina no mar,
Como cana sobre o musgo,
Como marco em milheiral,
Como rochedo em cascata!

"Mas se quiseres realmente


Correr mais rapidamente,
Na carne deves fluir
E nos ossos deslizar.
É melhor pra ti lá dentro,
Sob a pele mais agradável,
Fazeres teu trilho nas veias,
Pelos ossos te moveres,
Que sobre a terra tombando,
Que sobre a poeira pingando.

"Pelo chão não fluas, leite,


Sangue não sujes o solo
Nem prado, adornes do homem,
Nem monte, oiro da pessoa.
No coração viver deves,
E nas caves do pulmão;
Para lá foge depressa,
Corre já, que se faz tarde.
Não és rio pra correr
Nem poça pra te estender,
Não és lama gorgolhante
Nem és navio arrombado.

"Pára lá, meu queridinho,


Sangue rubro, não mais pingues.
Se não parares, seca à mesma,
Como as cascatas da Tirja,
E em Tuonela o rio sombrio;
108
E em Tuonela o rio sombrio;
Como o lago e como o céu
Nas grandes secas de estio,
No ano mau da mata em chamas.

"Se não me quiseres ouvir,


Outra maneira inda sei,
Outros cantos tentarei:
Chamo o caldeirão do Demo,
E com ele o sangue cozo,
E com ele a linfa fervo,
Sem um só pingo perder
Dessa substancia vermelha,
Sem mais sangue derramar,
Sem mais linfa esparramar.

"Mas se não for eu o homem


Nem filho certo de Ukko
Pra parar inundação,
Bloquear venal torrente,
Vem u, paizinho do céu,
Deus senhor, que as nuvens mandas,
Tu és bem forte que chegue,
Tu és dos mais fortes tipos.
Fecha ao sangue os seus portões,
Pára o sangue de escapar.

"Ukko, grande criador,


Deus senhor que estás no céu,
Anda aqui quando és preciso,
Anda cá quando és chamado;
Põe teu grosso dedo aqui,
Aperta cá teu polegar,
Pra fechar a escura fenda,
O portal donde o mal vem;
Folha terna nele espalha
De lírio de água doirado,
109
De lírio de água doirado,
Pró trilho ao sangue tapar,
Para a torrente parar,
Que mais não me molhe a barba
Nem em meus trapos goteje!"

Fechou ao sangue a saída,


Ao sangue o curso tapou.
Mandou seu filho ao ferreiro
Para unguento preparar
Das folhas de certa erva,
Das flores do milefólio,
De mel do monte pingando,
Caindo em lágrimas doces.

Foi o rapaz ao ferreiro


Pra unguento preparar;
Passou carvalho a caminho
E ao carvalho perguntou:
"Tens tu mel nesses teus ramos,
Néctar debaixo da casca?"

E o carvalho respondeu:
"Na verdade, ontem à noite,
Escorreu mel dos meus ramos,
Se espalhou mel em meu topo,
Gentil das nuvens caiu,
Das nuvens esfarrapadas."

Levou galhos do carvalho,


Da árvore frágil pegou lascas,
Tirou plantas das melhores,
Juntou muitos tipos de erva,
Que em nossa terra não há,
Mas que lá muito bem crescem.

Então pôs pote no fogo


110
Então pôs pote no fogo
E a mistura fez ferver,
Que é de casca de carvalho
E das mais finas das ervas.

Esteve o pote a bem ferver


Por três noites de seguida,
Três dias de primavera,
Então ele olhou o unguento
Pra ver se era eficaz
Nem pronta a maga pomada.

Mais plantas lhe adicionou,


Outras ervas lhe juntou,
Que trouxe doutros lugares,
A cem dias de viagem,
Por nove magos cortadas,
Por oito sábios ceifadas.

Mais três noites fez ferver,


Nove noites de seguida;
Tirou o pote de fogo
E o unguento inspeccionou
Para ver se era eficaz
E pronta a maga pomada.

Crescia ali uma faia


Na margem do milheiral.
Essa partiu ele em duas,
Essa fez ele em bocados,
Nessa o unguento esfregou,
Nela a pomada testou.

Proferiu estas palavras:


"Se houver neste unguento a cura,
O remédio das feridas,
Medicina para as pragas,
111
Medicina para as pragas,
Que fique esta faia inteira,
Ainda melhor do que dantes."

Logo a faia se curou,


Indo melhor do que dantes,
Sua c'roa inda mais bela,
O seu tronco em boa forma.

E então pegou seu unguento


E a pomada mais testou.
Testou em pedras partidas,
Untou rochedos rachados
E pedra em pedra coseu,
Rocha em rocha colou.

Veio o rapaz do ferreiro,


Quando o unguento estava pronto,
Com pomada preparada,
E nas mãos do velho pôs:
"Aqui vem um bom unguento,
Maga pomada completa:
Pôde coser montes juntos,
Uni-los numa só rocha."

O velho tentou com língua,


Com sua boca provou,
O sabor era perfeiro,
E o unguento eficaz.

Então untou Vainamoinen


E curou o sofredor;
Ungiu por baixo e por cima,
Esfregou também no mio,
E falou estas palavras,
Fez seguinte comentário:
"Eu meus músculos não movo,
112
"Eu meus músculos não movo,
Mas os move o Criador;
Minha a força não trabalha,
Mas a força do Poderoso.
Com a minha boca não falo,
Mas com a boca de Deus,
Sé é doce o meu discursar,
O de Deus inda é mais doce,
Se minhas mãos são bonitas,
As do Criador são mais belas."

Quando o unguento foi untado,


E lhe foi posta a pomada,
Fê-lo quase desmaiar:
Vainamoinen contorceu-se,
Virou para um lado e outro,
Mas conforto não encontra.

Bane então o velho a dor,


Ora longe manda a agonia,
Pró centro do Monte Dor,
Pró cume do Monde Dor,
Pra encher rochas de agonia,
Pra magoar os pedregulhos.

Pegou em peça de seda


Que logo cortou em fitas.
Da ponta cortou pedaços,
Fê-los logo em ligaduras.
Pegou nos pensos de seda
E com cuidados os atou,
À volta do bom joelho,
Em torno do pé de Vaino.

Então disse estas palavras,


Fez seguinte comentário;
"De Ukko penso de seda uso,
113
"De Ukko penso de seda uso,
Do criador o manto enrolo
À volta do bom joelho,
Em torno do firme pé!
Olha agora, ó bom Deus,
Dá-me ajuda, ó Criador,
Que não caia eu em desgraça,
Não seja eu mal tomado!"

Então velho Vainamoinen


Aliviado se sentiu,
Depressa teve melhoras;
Sua carne enrijeceu
E tornou-se mais saudável;
Não tinha no corpo dores
Nem nos flancos qualquer ferida.
Nem em cima cicatriz;
Mais forte era do que fora,
Melhor que em prévias estações.

Pelo seu pé ora andava


E seus joelhos dobrava,
Não sofre nem dor menor
Nem um pouco de penar.

Firme velho Vainamoinen


Seus olhos ergue pra cima,
Olha o bom Deus gracioso,
Levanta a cabeça ao céu,
Proferiu estas palavras,
Este comentário fez:
"De lá vêm boas coisas,
Daí chega um bom auxilio,
Do céu que nos cobre a todos,
Do Poderoso Criador.

"Ó bom Deus, muito obrigado,


114
"Ó bom Deus, muito obrigado,
Criador, sejas louvado,
Por me teres auxiliado,
Concedido protecção,
Quando eu estava em sofrimento
Devido ao ferro afiado."

Então velho Vainamoinen


Mais disse estas de cautela:
"Ó geração emergente,
Ó gente agora crescente,
Não fazei barco em bravata
Nem armação em alarde,
Vê Deus onde devereis ir,
O Criador tudo comanda;
Não é do tipo o saber
Nem do mais forte o poder!"

115
X
Ilmarinen Forja o Sampo

Firme velho Vainamoinen


Tomou seu corcel castanho,...
Ao seu potro pôs arreio,
O castanho em frente ao carro.

O trenó então montou


E no assento se assentou.
Bate o corcel com chicote,
Faz estalar na ponta a conta.

Vai corcel, a viagem passa;


Trenó vai, a estrada encurta;
Tinem os patins de abeto,
Range o arco de sorveira.

Faz depressa o seu caminho,


Passa pauis, passa campo,
Passa por vastas estepes.
Viaja um dia, viaja dois,
E, pelo terceiro dia,
Chega a um longo pontão,
Aos campos da Kalevala,
Ao confim do campo de Osmo.

Ali ao pé assim disse,


Assim falou esconjuro:
"Lobo como o sonhador,
Doença, mata esse lapão,
Que disse que nunca em vida,
Nunca a casa eu voltaria:
Nunca, nunca nesta vida.
Enquanto a Lua luzisse,
Veria os prados da Vainola,
116
Veria os prados da Vainola,
Os campos da Kalevala."

Então velho Vainamoinen,


Cantou canto de magia,
Cantou abeto florido
Com ramos todos doirados.
Seu topo subiu aos céus,
Às nuvens se levantando.
Os seus galhos se estenderam
E o firmamento tocaram.

Cantou Vaino canção maga,


Fez um Lua brilhante
Sobre o abeto doirado,
Fez nos ramos uma Ursa.

Continuou veloz viagem,


Rumo à sua bela casa,
Cabisbaixo, malogrado,
O elmo torto, inclinado,
Porque o ferreiro Ilmarinen,
O primeiro artesão,
Prometera por resgate
Para o seu pêlo salvar
Das mil brumas da Pohjola,
Da sombria Sariola.

Já seu corcel fez parar


No novo milheiral de Osmo.
Firme velho Vainamoinen
Do trenó ergue a cabeça;
Vem barulho da oficina,
Ruído da casa das brasas.

Firme velho Vainamoinen


Entra naquela oficina
117
Entra naquela oficina
E encontra mestre Ilmarinen
Empunhando seu martelo.
Diz Ilmarinen ferreiro:
"Ó tu, velho Vainamoinen,
Por onde é que tens andado
E o que é que tu tens feito?"

Firme velho Vainamoinen


Isto pôs em palavras:
"Longe muito tempo estive.
Todo esse tempo passei
Nas mil brumas da Pohjola.
Na sombria Sariola,
Esquiando esquis lapões
Nas terras dos feiticeiros."

Ilmarinen artesão
Disse um dito e assim falou:
"Ó tu, velho Vainamoinen,
Ó eterno feiticeiro,
Diz-me da tua viagem,
Conta-me esse teu retorno."

Disse o velho Vainamoinen:


"Muito tenho eu pra contar:
Há uma virgem no Norte,
Uma moça em fria aldeia,
Que rejeita os pretendentes,
Que até dos melhores faz pouco.
Meio Norte a elogia,
Louva-lhe a grande beleza:
Luz a Lua em sua face,
Nos seus seios brilha o Sol,
Em seus ombros fulge a Ursa,
Pelas costas, Sete Estrelas.

118
"Vai tu, ferreiro Ilmarinen,
Vai lá, primeiro artesão!
Vai a moça cortejar,
Vai as tranças de oiro olhar!
Se puderes forjar o Sampo
Com seu colorido tampo,
Ganharás a bela moça,
A menina como prémio."

Disse Ilmarinen ferreiro:


"Eh lá, velho Vainamoinen!
Será que me prometeste
À triste terra do Norte
Para o teu pêlo salvares,
Para a ti mesmo pagares?
Pois jamais, em tempo algum,
Luza sempre a Lua de oiro,
Irei eu à Pohjola,
Pra sombria Sariola,
Onde homens são devorados
E sujeitos afogados!"

Então velho Vainamoinen


Isto assim pôs em palavras:
"Mas há outra maravilha;
Um abeto, em flor seu topo,
Topo em flor, folhas doiradas,
Na margem do campo de Osmo;
Em sua c'roa brilha a Lua,
Nos seus ramos pousa a Ursa."

Diz o ferreiro Ilmarinen:


"Não posso em tal coisa crer
Se não for lá para olhar,
Se com meus olhos não vir."

119
Disse o velho Vainamoinen:
"Se não podes nisso crer,
Ambos juntos lá iremos,
Ver se a história é vera ou falsa!"

Então juntos foram ver


Abeto de topo em flor;
Primeiro ia o velho Vaino,
Segundo era o mestre Ilmari.

Quando o sítio alcançaram


Na margem do milheiral,
O ferreiro ali estacou,
Espantado com o abeto,
Que tinha a Ursa em seus ramos
E a Lua em sua c'roa.

Então velho Vainamoinen


Falou este dito exacto:
"Ó ferreiro, irmão querido,
Trepa agora e pega a Lua,
Traz também a brilhante Ursa,
Do topo em oiro do abeto!"

E Ilmarinen artesão
Trepou bem alto o abeto,
Subiu ao clarão no céu;
Trepou pra agarrar a Lua,
E também a brilhante Ursa,
Do topo em oiro do abeto.

Disse esse topo de abeto,


Falou o de muitos ramos:
"Ó forte homem, que és tão tolo.
Ó tu, tipo que não pensa!
Meus ramos trepaste, ó tolo,
120
Meus ramos trepaste, ó tolo,
Qual petiz vieste ao topo
Pra pegar a falsa Lua,
Ver de estrelas o reflexo!"

Então velho Vainamoinen,


Sua voz cantou baixinho;
Seu canto ergueu vendaval,
Levantou furioso vento,
Disse um dito e assim falou,
Isto assim pôs em palavras;
"Leva-o em teu barco, ó vento,
Trá-lo na barcaça, ó brisa!
Leva-o pra regiões distantes,
À triste terra do Norte!"

Ergueu-se então vendaval,


Levantou-se um vento em fúria,
Levou o mestre Ilmarinen,
Pra distantes regiões,
Às mil brumas da Pohjola,
À sombria Sariola.

Então o mestre Ilmarinen,


Foi em frente e foi avante,
Planou naquele vendaval,
Nos caminhos desses ventos,
Sobre a Lua e sob o Sol,
Sobre os ombros da Grande Ursa,
Até chegar à Pohjola,
À sombria Sariola,
Mas nem os cães lhe ladraram
Nem os mastins lhe rosnaram.

Louhi, dama da Pohjola.


Mulher velha e desdentada,
Em casa estava e ouviu
121
Em casa estava e ouviu
E disse ela estas palavras:
"Quem és tu entre os mortais.
Que espécie de homens serás,
Vindo no trilho do vento,
Vindo na estrada das brisas,
Sem estes cães te ladrarem,
Sem os mastins te rosnarem?"

Disse o ferreiro Ilmarinen:


"Decerto que aqui não vim
Pra que os cães me envergonhassem,
Pra que os mastins me mordessem
Trás de portões forasteiros,
Trás de cercas estrangeiras."

Então a velha do Norte


Pergunta ao recém-chegado:
"Durante as tuas viagens,
Não encontraste ou ouviste
Desse ferreiro Ilmarinen,
Mais capaz dos artesões?
Muito temos esperado,
Muito temos desejado,
Cá na sombria Pohjola,
Que pra nós forje ele o Sampo"

Então ferreiro Ilmarinen


Proferiu estas palavras:
"Encontrei em meu andar
Esse ferreiro Ilmarinen;
Sou eu próprio Ilmarinen,
Mais capaz dos artesões."

Louhi, dama da Pohjola,


Mulher velha e desdentada,
Correu de retorno a casa,
122
Correu de retorno a casa,
Disse um dito e assim falou:
"Vem, filhinha, tu, mais nova,
Mais bela das minhas filhas,
Veste-te em roupa bem fina,
Põe a mais brilhante cor,
O melhor dos teus vestidos,
Contas brilhantes no peito,
No pescoço as mais bonitas
Sob o teu rosto brilhando;
Dá cor às maças do rosto
E alegra o teu parecer!
Está aqui ferreiro Ilmari,
O primeiro artesão,
Que nos forjará o Sampo
Com o seu colorido tampo."

E a bela moça do Norte,


Na terra e no mar famosa,
Pegou seus melhores vestidos,
Suas brilhantes roupagens,
E o quinto escolheu por fim.
Ajustou sua tiara,
Cingiu seu cinto de cobre,
Sai cintura doirada.

Voltou ela do armazém,


Pelo pátio foi dançando,
E os seus olhos cintilavam,
E os seus brincos chocalhavam.
Era alegre o seu parecer,
Róseas as maças do rosto;
Brilhava oiro no seu peito,
E prata em sua cabeça.

Então a dama do Norte


Levou o mestre Ilmarinen
123
Levou o mestre Ilmarinen
Para a quinta da Pohjola,
À sombria Sariola.
Aí lhe deu refeição,
Deu-lhe muito que beber
E ainda mais de que comer;
Disse um dito e assim falou:
"Ó tu, ferreiro Ilmarinen,
Ó tu, primeiro artesão!
Se tu nos forjares o Sampo,
Com seu colorido tampo,
Com pena branca de cisne,
Leite de vaca machorra,
Com um só grão de cevada,
Com o velo de uma ovelha,
Levarás minha menina,
Como prémio a pequenina."

Então ferreiro Ilmarinen


Proferiu estas palavras:
"Eu vou forjar esse Sampo,
Malhar colorido tampo,
Com pena branca de cisne,
Leite de vaca machorra,
Com um só grão de cevada,
Com o velo de uma ovelha,
Pois forjei o firmamento
E ogiva do ar malhei,
Quando nada existia,
Nada ainda estava assente."

E foi o Sampo forjar,


Colorido tampo ornar.
Perguntou onde era a forja
E se havia ferramentas,
Mas ali não tinham forja,
Não tinham forja nem fole,
124
Não tinham forja nem fole,
Nem fornalha nem bigorna,
Nem martelo, nem tenaz.

Então Ilmarinen mestre


Proferiu estas palavras:
"Só as velhas desesperam,
Só malandras não trabalham;
Homem não, mesmo que fraco,
Mesmo o mais madraço tipo"!

Procurou lugar pra forja,


Lugar largo pra seu fole
Pela terra toda à volta,
Por trás da Terra do Norte.

Procurou um dia e dois,


Cedo procurou terceiro;
Pedra marmórea achou,
Um grande bloco de rocha;
Ali o mestre assentou,
A fornalha preparou;
Fixou fole no dia primo,
Fixou no segundo a forja.

Então Ilmarinen mestre,


Esse primeiro artesão,
Atirou coisas ao fogo,
Para a forja as empurrou;
Pôs seus servos a soprar,
Com o fole a trabalhar.

Então os servos sopraram,


Com o fole trabalharam
Por três dias de verão
E por três noites de estio,
Calos nos calcanhares crescem,
125
Calos nos calcanhares crescem,
Bolhas nos dedos dos pés.

Assim, ao primeiro dia,


Ilmarinen artesão
Se abaixou para espreitar,
Fundo da fornalha olhar;
Quem sabe se desse fogo
Algo bom não sairá?

Das chamas veio uma besta,


Da fornalha, um arco em oiro.
Arco em oiro, ponta em prata,
Eixo de cobre brilhante.

É belo de ver este arco;


Mas de fraca inclinação:
Quer por dia uma cabeça
E até duas num bom dia.

Ilmarinen artesão
Não está lá muito contente:
Partiu aquele arco em dois
E atirou-o prá fornalha.
Pôs seus servos a soprar,
Com o fole a trabalhar.

De novo, no dia seguinte.


Ilmarinen artesão
Se abaixou para espreitar,
Fundo da fornalha olhar;
Veio das chamas um barco,
Do calor rubro, um batel;
A proa era doirada,
E de cobre as toleteiras.

É belo de ver o barco,


126
É belo de ver o barco,
Mas de fraca inclinação:
Vai por nada para a guerra
E peleja sem razão.

Mestre Ilmarinen com isso


Não ficou muito contente:
Fez o batel em pedaços
E atirou-o prá fornalha.
Pôs seus servos a soprar,
Com o fole a trabalhar.

De novo, ao terceiro dia,


Ilmarinen artesão
Se abaixou para espreitar,
Fundo da fornada olhar:
Das chamas veio bezerra,
Cornos com brilho doirado
Das estrelas da Grande Ursa;
Na testa o disco do Sol.

É bela de ver a vaca,


Mas de fraca inclinação:
À floresta vai dormir,
Gastando o leite no chão.

Mestre Ilmarinen com isso


Não ficou muito contente
E cortou a vaca em postas
Atirou-a prá fornalha.
Pôs seus servos a soprar,
Com o fole a trabalhar.

Outra vez, no quarto dia,


Ilmarinen artesão
Se abaixou para espreitar,
Fundo da fornalha olhar:
127
Fundo da fornalha olhar:
Vem das chamas um arado
Com relha de oiro a brilhar;
De cobre é a armação,
E a ponta da pega em prata.

É belo de ver o arado,


Mas de fraca inclinação:
Põe-se a arar os milheirais,
Lavra campos cultivados.

Mestre Ilmarinen com isso


Não ficou muito contente;
Partiu arado em pedaços
E atirou-o prá fornalha.
Chamou ventos pra soprar,
Vendaval foi invocar.

Ergueram-se em fúria os ventos,


Sopraram o Leste e o Oeste,
E mais forte o Sul soprou,
O Norte uivou e gritou.

Sopraram um dia, dois,


Cedo sopraram um terceiro:
Fogo gira da janela,
Saltam da porta faúlhas,
Sobe o pó até ao céu,
Funde-se o fumo nas nuvens.

Outra vez mestre Ilmarinen,


Noite é do dia terceiro,
Se abaixou para espreitar,
Fundo da fornalha olhar:
Vê então que nasce o Sampo,
Surge o colorido tampo.

128
Então ferreiro Ilmarinen,
O primeiro artesão,
Solda o Sampo e nele martela,
Bate-lhe em cima com força,
Forja o Sampo com perícia:
Num lado tem mó de milho,
Noutro lado, mó de sal,
No terceiro, mó de moedas.

A moer desata o Sampo,


Anda à roda a cor do tampo.
Cestos cheios mói num dia:
Primeiro um para comer,
Depois um para vender
E um terceiro pra guardar.

Louhi estava delirante:


Levou o Sampo pra montes
Pedregosos da Pohjola,
Dentro de montanha em cobre
E por trás de nove trancas.
Lá raízes enraizou,
Com nove braças de fundas:
Uma na terra enterrada,
Outra na praia plantada,
Terça ao lado da morada.

Então ferreiro Ilmarinen


Foi pedir sua menina,
Disse um dito e assim falou:
"Casas comigo, menina,
Visto que está feito o Sampo
Com seu colorido tampo?"

E a bela moça do Norte


Respondeu estas palavras:
129
Respondeu estas palavras:
"Quem no próximo verão,
Em três anos que virão,
Vai escutar cucar o cuco,
Vai ouvir cantas as aves,
Se eu me for pra terra estranha,
Eu, baga, pra outros campos?

"Se a pintinha assim partisse,


Se a gansinha vagueasse,
Se desviasse a filha amada,
Se perdesse a uva-do-monte,
Os cucos desapareciam,
Os rouxinóis sairiam
Dos topos destas montanhas,
Dos cumes destes planaltos.

"Pra mais não posso deixar


Minha doce vida de virgem:
Tenho tarefas diárias
Durante o quente verão:
Estão bagas não colhidas,
Beiras-lago não cantadas,
Nem os prados visitados
Nem os bosques passeados."

Então ferreiro Ilmarinen,


Ele, o primeiro artesão,
Cabisbaixo e malogrado,
O elmo torto, inclinado,
Começou a ponderar,
Na cabeça a meditar
Como de ir pra casa havia,
Às terras que conhecia,
Das mil brumas da Pohjola,
Da sombria Sariola.

130
Disse a dama da Pohjola:
"Ó ferreiro, ó Ilmarinen,
Porque estás tão malogrado,
O elmo torto, inclinado?
Pensas como viajar,
Como à terra voltar?"

Diz o ferreiro Ilmarinen:


"Gostaria de ir pra casa,
Ao meu lar pra lá jazer
E em minhas terras morrer."

Então a dama do Norte


Deu-lhe comida e bebida,
Pô-lo na popa de um barco
Pra operar a pá de cobre;
Disse ao vento pra soprar,
Ao do Norte pra rosnar.

Então ferreiro Ilmarinen,


Esse primeiro artesão,
Viajou pra suas terras
Sobre a face azul do mar.

Viaja dia, viaja dois,


Logo viaja terceiro.
Chega a casa o artesão,
Às terras onde cresceu.

E pergunta Vainamoinen
Ao ferreiro Ilmarinen:
"Ilmarinen mestre, mano,
Grande primeiro artesão,
Forjaste tu novo Sampo
Com seu colorido tampo?"

131
Respondeu o mestre Ilmari,
Disse o próprio construtor:
"Já bem mói o novo Sampo
E anda `roda a cor do tampo,
Cestos cheios mói num dia:
Primeiro um para comer,
Depois um para vender
E um terceiro pra guardar."

132
XI
Lemminkainen e Killikki

É tempo de dizer de Ahti,


De contar desse safado....

Ahti, de Ilha morador,


Malvado moço do Amor,
Em boa casa educado
Pela sua mãe querida
Na baía que se espraia
Em ponta do pontão longo.

Ganhou Ahti, Mente Errante,


Estatura a comer percas;
Cresceu tipo bem parecido,
Bem corado e arrojado;
Tem também boa cabeça
E é uma bela figura.

Não há belo sem senão:


É de meter-se em sarilhos,
Gosta de rabos de saia
E toda a noite vadia
Quando as moças se divertem,
De tranças soltas dançando.

Killi, moça bela da Ilha,


Moça de Ilha, de Ilha flor,
Em boa casa educada,
Cresceu pra ser formosa,
Na morada do seu pai,
Sentada em boa cadeira.

Chega longe a sua fama,


Vêm de longe os pretendentes,
133
Vêm de longe os pretendentes,
À morada dessa moça,
À boa casa da bela.

Qui-la ao Sol para o seu filho,


Mas ao Sol quis ela ir não,
Para no Sol esturrar
Durante os calores de verão.

Qui-la a Lua pró seu filho,


Mas à Lua ela foi não
Pra na Lua lucilar,
Vaguear na vastidão.

Qui-la Estrela pró seu filho,


Mas à Estrela ela foi não,
Pra piscar no breu eterno,
Num firmamento de inverno.

E da Estónia pretendentes
Vieram e de Íngria também,
Mas não foi com eles a moça,
Todos levaram resposta:
"Vosso oiro estroinam pra nada
E pra nada a prata gastam.
Nunca hei eu de ir para a Estónia,
Nem agora nem mais tarde,
Pra remar águas da Estónia,
Pra abandonar esta Ilha,
Pra da Estónia comer peixe
Ou da Estónia caldeirada.

"Nem pra Íngria abalarei


Nem verei costas, encostas;
Lá há fome e nada mais,
Falta de arvores e madeira,
Falta de água e de milheiras,
134
Falta de água e de milheiras,
Falta de pão de centeio."

Turbulento Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante
Prometeu então partir,
Cortejar a flor da Ilha,
Noiva como não há outra
Com as belas tranças soltas.

Tenta-lhe a mãe proibir,


Tenta-lhe a velha avisar:
"Não tentes, meu caro filho,
Casar com gente elevada:
Ninguém te vai estimar
Nesse forte clã da Ilha."

Disse o ousado Lemminkainen,


Esse belo Mente Errante,
"Se não sou tão elevado
Nem é meu sangue estimado,
Na aparência ganharei,
Meu encanto empregarei."

Mas a mãe inda se opõe


A que Lemminkainen vá
À elevada gente da Ilha,
A esse clã poderoso:
"De ti farão pouco as moças,
As mulheres te gozarão."

Não se ralou Lemminkainen!


Em palavras isto pôs:
"As mulheres eu calarei
E os risinhos das meninas:
Meto-lhes filhos nos ventres,
Ponho-lhes bebés nos braços,
135
Ponho-lhes bebés nos braços,
E a ver ser então fazem pouco,
Ou se os seus risinhos param!"

Então a mãe respondeu:


"Ai de mim, que triste vida!
Se gozares as mulheres de Ilha,
Desgraçares as puras moças,
Meter-te-ás em mau sarilho,
Numa grande zaragata:
Pois todos os pretendentes,
Mais de cem de espadas em punho
Sobre ti se atirarão,
Sobre ti, homem sozinho."

Que se ralou Lemminkainen


Dos avisos da sua mãe!
Pega o melhor garanhão,
Arreia seu bom cavalo
E se vai com grande estrondo,
À famosa vila de Ilha,
Pra Flor de Ilha cortejar,
Noiva como não há outra.

Mas as mulheres gozam dele,


Dele as moças fazem pouco,
Quando vem pla estrada torto,
Conduz para a quinta aos esses;
Trenó pára às três pancadas
E capota plo portão.

Turbulento Lemminkainen
Torce o lábio, baixa a testa,
Cofia o bigode preto
E profere estas palavras:
"Nunca isto alguma vez vi,
Nunca vi e nunca ouvi,
136
Nunca vi e nunca ouvi,
Que mulheres de mim se rissem,
Que moças pouco fizessem."

Que se ralou Leminkainen!


Disse um dito e assim falou:
"Em Ilha há lugar ou não,
Em Ilha, em firme chão,
Onde possa eu ir brincar,
Campo onde eu possa dançar,
Com alegres moças de Ilha,
De doiradas tranças soltas?"

As virgens lhe responderam,


As moças de Ilha falaram:
"Muito espaço há em Ilha,
Em Ilha, no firme chão,
Onde possas ir brincar,
Campo onde possas dançar
Com as vacas pelos prados,
Dançando como pastor.
Que as crianças são cá magras.
Mas os potros são bem fortes."

Que se ralou Lemminkainen!


Como pastou se empregou:
Passava no prado os dias
E as noites com as meninas,
Dançando com as mais bonitas.
Brincando com as tranças soltas.

E o ousado Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante,
Das mulheres parou o riso,
Das moças, as risadinhas:
Não havia uma só filha
Nem a mais pura menina,
137
Nem a mais pura menina,
Que ele não tivesse tocado,
Que ele não tivesse deitado.

Virgem entre elas havia


No poderoso clã da Ilha
Que noivo não escolhera,
Que bons homens não quisera:
Era a fina Killikki,
Da Ilha a graciosa flor.

Turbulento Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante,
Gastou mais de botas cem,
Mais de cem remos partiu
Para a menina ganhar,
Pra Killikki conquistar.

Killikki, menina fina,


Proferiu estas palavras:
"Porque erras aqui, ó pobre?
Porque vens, triste pernalta,
Indagando destas moças,
Das moças de cinto em lata?
Não tenho eu tempo pra isso,
Sem que parta a pedra a mó,
Sem meu pião se esmagar,
Sem almofariz quebrar."

"Não me convém um pacóvio,


Um pacóvio, um impostor;
Quero um corpo firme e forte;
Quero um marido bem feiro,
Pois sou eu também bem feita,
E um marido bem-parecido,
Pois bem-parecida sou eu."

138
Mas algum tempo mais tarde,
Nem mês meio era passado,
Num certo dia ocorreu,
Certa noite aconteceu,
Que as moças se divertiam,
Belas meninas dançavam
Num bosque perto das estepes,
Num cantinho em campo aberto.
Estava entre elas Killikki,
Da Ilha a mais formosa flor.

Veio o rosado patife,


Veio o ousado Lemminkainen,
Com seu melhor garanhão,
Com cavalo de eleição.
Entra plo meio da dança,
Plo meio das belas moças,
Killikki agarra e leva,
Puxa-a para seu trenó,
Senta-a sobre uma pele de urso,
Sobre o assento do trenó;
Bate o corcel com chicote,
Faz estalar na ponta as contas,
Começa a sua viagem.

Gritou ele enquanto ia:


"Ó virgem, nunca dizei,
Nunca traí o segredo!
Não contai de como vim
E levei esta donzela!"

"Mas se não me obedecerdes,


Desgraça em vós cairá:
Canto-vos noivos pra guerra,
Canto os moços prá espada,
Nunca mais deles ouvireis,
139
Nunca mais deles ouvireis,
Nunca mais vós os vereis,
Entre os rebanhos andando,
Pelos prados pastoreando."

Killikki bem se queixou,


De Ilha a flor se lamentou:
"Liberta-me agora mesmo,
Solta já esta criança,
Pra voltar pra sua casa,
Para a sua mãe chorosa.
Se não me deixares ir,
Voltar para minha casa,
Tenho ainda cinco irmãos,
Sete filhos do meu tio,
Pra pista de lebre achar,
De volta a moça levar."

Quando ele não a libertou,


Desatou ela a chorar,
Disse um dito e assim falou:
"Em vão nasci, pobrezinha,
Nascida e crescida em vão,
E vivendo a vida em vão,
Para nas garras cair
De um inútil, imprestável,
Nas mãos de um zaragateiro,
Nas mãos de um fero guerreiro."

Disse o ousado Lemminkainen,


Esse belo Mente Errante:
"Killikki, coraçãozinho,
Minha doce bagazinha!
Não fiques tão preocupada;
Que eu bem te trate é provável;
Hei-de beijar-te ao comer,
Hei-de abraçar-te ao andar,
140
Hei-de abraçar-te ao andar,
Sentado esteja ou em pé,
Sempre perto ao descansar!

"Porque tão triste hás-de estar?


Porque estás a suspirar?
Estás assim triste por causa,
Suspiras ansiosa e pensas
Na falta de vacas, pão,
Na falta de provisão?

"Não te rales tu com isso


Porque eu tenho muitas vacas,
Muitas dessas que dão leite:
No paul está a Pretinha,
No monte tenho a Morango,
Na clareira anda a Mirtilo;
São lustrosas, sem comida,
São finas sem ser tratadas;
À noitinha não as prendem
E à noitinha não se perdem;
Não se lhes dá de comer,
Nem sal pela madrugada.

"Ou estás triste por causa,


Suspiras assim tu porque
Não é alta a minha gente,
Não é fina a minha casa?
Se não sou de grande estirpe
Nem é fina a minha casa,
Tenho espada flamejante,
Tenho gume bem brilhante.
Essa é de boa família,
Duma estirpe essa bem fina:
Foi forjada pelo Demo,
Pelo bom Deus polida;
Com essa posso crescer,
141
Com essa posso crescer,
Posso espalhar minha gente,
Com a espada temperada,
Com seu fio flamejante."

Chorou a pobre menina,


Proferiu estas palavras:
"Ó Ahti, moço do Amor:
Se queres menina como eu
Para tua eterna esposa,
Como pintinha ao teu lado,
Juro promessa pra sempre
Que não irás tu à guerra,
Mesmo que de oiro precises,
Mesmo que a prata cobices."

E o ousado Lemminkainen
Proferiu estas palavras:
"Jurarei pra sempre
De que não irei pra guerra
Mesmo que o oiro me chame,
Mesmo que a prata eu deseje,
Se jurares tu a promessa
De que não irás à vila,
Mesmo que a dança te chame,
Mesmo que brincar desejes."

Juraram seus juramentos,


Promessas pra sempre feitas;
Na presença do bom Deus,
À vista do mais poderoso:
Ahti não deve ir à guerra
Nem Killi deve ir à vila.

E o ousado Lemminkainen
Bate o corcel pra correr,
Mexe as rédeas pra apressar,
142
Mexe as rédeas pra apressar,
E isto assim põe em palavras:
"Adeus aos prados da Ilha,
Aos pinheiros e aos abetos,
Onde o verão vagueei,
Onde o inverno todo errei,
Me escondi em noites negras,
Me abriguei das tempestades,
Quando caçava as pintinhas,
Cortejava essas gansinhas!"

Conduz com facilidade


Até ver perto a sua casa.
Então disse a moça assim,
Isto pôs em palavras:
"Vejo uma cabana em frente,
Parece lugar de fome;
De quem será tal barraca,
Quem vive em tão pobre casa?"

E o ousado Lemminkainen
Isto assim pôs em palavras:
"Não te queixes do casebre,
Não suspires a cabana,
Outras casas construiremos,
Melhores moradas faremos,
Usando a melhor madeira
E as mais finas das árvores.

E o ousado Lemminkainen
Chegou por fim ao seu lar,
Encontrando a mãe querida,
Sua velha mãe amada.
A mãe pôs isto em palavras,
Disse um dito e assim falou:
"Muito tempo tu faltaste,
Em terra estrangeira andaste."
143
Em terra estrangeira andaste."

Disse o ousado Lemminkainen,


Estas palavras falou:
"As mulheres que desonrei,
Com puras moças brinquei;
Paguei por fazerem pouco,
Paguei os risos que deram.
No trenó a melhor trouxe,
Na minha manta a sente,
Entre os patins a deitei,
Por trás da manta a escondi;
Pago o riso é das mulheres,
As piadinhas das donzelas.

"Mãezinha, que me fizeste,


Minha mãe, que me criaste,
Ganhei aquilo que queria,
Logrei o que desejava!
Traz a melhor almofada,
O mais suave travesseiro,
Pra que eu possa descansar
Com minha nova donzela!"

Então sua mãe falou,


Isto pôs em palavras:
"Louva agora esse bom Deus,
Louva agora o Criador
Pla filha que me trouxeste,
Que pode atiças as chamas,
Que é destra para tecer,
Que é também hábil como roca,
Que sabe como lavar,
Como as roupas branquear!"

"A tua sorte agradece,


Boa coisa tu achaste,
144
Boa coisa tu achaste,
Bem pelo Criador dado,
Pelo bom Deus ofertado;
Belo é pássaro na neve,
Mais bela é esse ao teu lado;
Branca é espuma sobre a água,
Mais branca é tua nobre dama;
Querido é patinho em lago,
Mais querida é tua querida;
Brilhante é estrela no céu,
Mais brilhante é tua bela."

"Faz agora chãos mais largos,


Faz janelas bem maiores,
Levanta novas paredes,
A casa toda melhora!
Constrói uma nova entrada,
Na entrada põe portas novas,
Prá jovem noiva a teu lado,
De todas ela a mais bela,
Ela, a melhor das donzelas
E a mais nobre da sua raça."

145
XII
Lemminkainen Na Pohjola

Então Ahti Lemminkainen,


Esse belo Mente Errante,...
Viveu algum tempo quieto
Com a noiva que escolhera
E não foi ele pra batalhas
Nem foi ela para a vila.

Mas um dia aconteceu:


Bem cedinho de manhã,
Fora o Ahti Lemminkainen,
Aonde os peixes desovam;
E não veio até à noite,
Chegou já de madrugada.
E Killi correu à vila,
Pra dançar com as donzelas.

Quem a nova levará,


Quem será o mensageiro?
Ainikki, irmã de Killi,
Ela a nova foi entregar:
"Ahti, meu irmão querido,
Killikki correu à vila,
Entrou lá portas de estranhos,
Onde brincam as donzelas
E de tranças soltas dançam."

E Ahti, esse garoto,


Turbulento Lemminkainen,
Ficou triste, bem zangado,
Pôs-se muito irritado.
Isto assim pôs em palavras:
"Ó minha mãe, minha velha,
E se veste me lavasses
146
E se veste me lavasses
Em baba de cobra negra
E bem depressa a secasses,
Pra que eu pudesse ir à guerra,
Desafiar jovens do Norte,
Derrotar os da Lapónia?

"Killikki correu à vila,


Entrou lá portas de estranhos,
Pra brincar com as donzelas,
Dançar com as tranças soltas."

Killikki disse depressa,


Ao seu homem respondeu:
"Ahti querido, meu marido,
Não te vás para a batalha!
Enquanto dormia vi,
Durante o mais profundo sono,
Faiscar flama de lar,
Com grande brilho luzir,
Por debaixo da janela,
Ao longo de uma parede,
Fera pela casa ardendo,
Qual catarata furiosa,
Do soalho até ao tecto
E de janela em janela."

Mas o ousado Lemminkainen,


Isto assim pôs em palavras:
"Não creio em sonhos de moça
Ou em visões de mulher.
Mãezinha que me criaste,
Traz minha veste de guerra,
Traz-me a malha da batalha:
Tenho inclinação de me ir,
Beber cerveja de guerra,
Provar do combate o mel."
147
Provar do combate o mel."

Respondeu-lhe a sua mãe:


"Ó meu filho querido Ahti,
Não te vás para a batalha!
Em casa há cerveja a rodos
Nos barris feitos de amieiro,
Trás das bicas de carvalho,
E é tempo de beber,
Podes beber todo o dia."

Disse o ousado Lemminkainen:


"Nossa cerveja eu não quero,
Mais prefiro água do rio,
A de um remo resinoso,
Bebida pra mim mais doce
Que a cerveja em nossa adega.

"Traz minha veste de guerra,


Traz-me a malha da batalha!
Irei às casas do Norte
Jovens lapões derrubar,
Ao seu povo de oiro sacar,
Sua prata demandar."

Disse a mãe do Mente Errante:


"Ó meu filho, querido Ahti,
Temos nós oiro que sobre,
Prata a mais no armazém.
Ainda ontem ocorreu,
Cedinho, de manhãzinha:
Andava servo a arar campo
Cheio de cobras coleantes,
Quando o arado abriu baú,
A relha encontrou dinheiro.
Tinha moedas aos centos
E milhares bem empilhados.
148
E milhares bem empilhados.
No armazém pus o baú,
No sótão a caixa pus."

Disse o ousado Lemminkainen:


"Não quero oiro armazenado,
Quero moedas da guerra!
São melhores tesoiros ganhos
Que o teu oiro armazenado,
Que essa tua prata achada.

"Traz minha veste de guerra,


Traz-me a malha de batalha,
Que eu para o Norte me vou,
Destruir jovens lapões!
Cá na mente tenho a ideia,
Trago intento na cabeça
De ouvir com os meus ouvidos,
De olhar com estes meus olhos
Se há donzela na Pohjola,
Se há virgem na Terra Escura,
Que noivo não tenha ainda,
Que por bom homem aguarde."

Disse a mãe de Lemminkainen:


"Ó meu filho, querido Ahti,
Killikki está ela aqui
E é nobre dona de casa;
Duas mulheres é bem horrível
Na cama de um só marido!"

Disse o ousado Lemminkainen:


"Killikki correu à vila.
Deixa-a ir às suas danças,
Ir dormir em todo lado
Onde as moças se divertem
Nas danças de soltas tranças!"
149
Nas danças de soltas tranças!"

A mãe tentou proibir,


A mãe muito lhe avisou:
"Acautela-te, ó meu filho,
Não vás tu para a Pohjola
Sem magia conheceres,
Sem experiencias teres
Para os jovens desafiar,
Para os lapões conquistar!

"Serás por lapão cantado


E por um deles atirado
Fronte em pó, boca em carvão,
Pra dentro das cinzas quentes,
Prás rochas rubras e quentes."

Lemminkainen respondeu:
"Já bruxos me enfeitiçaram,
Cobras praga me rogaram;
Três lapões isso tentaram
Numa noite de verão
Todos nus de pé na rocha,
Sem roupas e sem cintura,
Sem sequer trapo enrolado.
O que eu tinha para dar,
Isso esses tristes tomara;
O mesmo que a acha da rocha,
O mesmo que a pua à pedra,
Que a bota de pau em gelo,
Que a morte em casa vazia.

"Duma forma ameaçaram,


Doutra forma aconteceu:
Queriam-me eles deitar,
Ameaçaram-me afundar,
No pântano onde eu andava,
150
No pântano onde eu andava,
Como madeira em paul;
Pôr-me em lama até ao queixo,
Pôr-me lixo até à barba,
Mas sendo eu o homem que sou,
Não muito isso me assustou;
Eu mesmo pus-me a cantar,
Disse então minhas magias:
Cantei bruxos com suas setas,
Os arqueiros com suas armas,
Feiticeiros com usas facas,
Videntes com seus espetos,
Para as cascatas de Tuoni
Onde é mais forte a corrente,
Debaixo da maior queda,
Sobre o pior dos redemoinhos.

"Lá dormem agora os bruxos,


Por lá devem repousar,
Até que erva por eles cresça,
Pelas testas, pelos gorros,
Pelos sovados dos bruxos,
Pelos músculos furando
Dos magos adormecidos,
Dormindo desprotegidos."

Inda assim a mãe protesta


Da viagem de Lemminkainen;
A mãe seu filho proíbe,
A mulher o homem pára:
"Não vás, oh, não te aventures
Nessa aldeia triste e fria,
Na pobre terra do Norte!
Lá te espera destruição,
Mal te espera, miserável,
Ruína, ousado Lemminkainen!

151
"Se cem bocas tu tivesses
Ainda não me convencias
Que tuas magas canções
Os lapões confundiriam.
Não sabes tu da Turja a língua
Nem os cantos da Lapónia."

E o ousado Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante,
Arranjava sua cabeça,
Penteava seu cabelo;
Mandou a escova à parede,
Atirou o seu pente no chão,
Disse um dito e assim falou,
Assim disse e proferiu:
"Seja então ruína de Ahti,
Mal ocorra ao desgraçado
Quando a escova em sangue escorra,
Quando o pente em sangue ensope."

Foi-se o ousado Lemminkainen


À triste Terra do Norte
Contra os avisos da mãe,
Contra os conselhos da velha.

Apetrechou-se e armou-se,
Vestiu sua veste em ferro,
Cintou o seu cinto de aço
E então pôs isto em palavras:
"Mais forte é tipo em couraça,
Homem com malha de ferro;
Mais poderoso em maga cinta
No meio dos feiticeiros,
Pra que nada o preocupe,
Pra que nenhum mal o assuste."

152
Então agarrou a espada,
Pegou faiscante gume,
Que o Demónio afiara
E que o próprio Deus polira,
No seu lado a embainhou,
Pô-la em bainha de couro.

Com que se arma homem de encantos,


Com k magias se guarda?
Arma-se ele com um pouco agora,
Vai-se guardando um bocado
Sob a viga da entrada,
Pela ombreira da cabana,
No quintal ao pé da estrada
E nos portões mais distantes.

Ali vai armar-se o homem


Contra encantos de mulher.
Mas artes dessa não chegam
E tal cautela não basta,
Pois também se deve armar
Contra os feitiços dos homens
Onde dois trilhos se cruzam,
Num cume de rocha azul,
Sobre areias movediças,
Onde as ondas andas lestas,
Onde as cataratas correm,
Nos rápidos em redemoinho.

E o ousado Lemminkainen
Em palavras isto pôs:
"Erguei-vos, espadachins,
Vós, mais antigos dos homens!
Erguei do poço, guerreiros!
Erguei dos rios, arqueiros!
Ergue teus anões, ó bosque!
153
Ergue teus anões, ó bosque!
Vem, floresta, com tua gente,
Velho do monte, com força,
Dama da água, com terrores,
Dama de água, com o teu povo,
Pai de água, com teus poderes,
Dos teus vales, as virgens todas,
Dos lameiros, damas finas
Proteger homem sozinho,
Proteger rapaz famoso;
Falhem as setas dos magos,
Quebrem as espadas dos bruxos,
As facas de encantadores,
As armas de arqueiros magos!

"Se isto não for suficiente,


Ainda sei doutras cautelas,
Àquele deus mais alto imploro,
A Ukko que está nos céus,
Que das nuvens é soberano,
Condutor de nuvens soltas.

"Ukko, ó mais alto dos deuses,


Velho pai que estás nos céus,
Tu, que entre as nuvens respiras,
Tu, que entre as nuvens discursas!
Dá-me uma espada de fogo.
Guarda-me com gume em chamas:
Possa eu resistir à ruína
E evitar destruição.

"Derrota bruxos da terra,


Derrota bruxos das águas,
O do ar à minha frente
E também nas minhas costas,
Mais os sobre e baixo a mim
E também em ambos flancos.
154
E também em ambos flancos.
Magos mato com suas setas,
Feiticeiros, com suas facas,
Bruxos, com suas armas de aço
Velhacos, com suas espadas!"

E o ousado Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante,
Ao seu cavalo chamou;
Pões brida ao seu bom corcel.
Ruivo entre os eixos põe;
No trenó então se assenta,
Começa o carro a ranger.

Bate o corcel com chicote,


Faz estalar na ponta as contas,
Faz o cavalo correr.
Treme o trenó, passa a viagem,
Espalha a areia prateada,
Restolha a urze doirada.

Conduziu um dia e dois,


Cedo conduziu terceiro
E ao fim do terceiro dia
Chega ele a uma aldeia.

Turbulento Lemminkainen
Então vai pelo caminho,
Pela rua mais comprida
À casa mais afastada;
Sobre a soleira pergunta,
Fala detrás da janela;
"Ele há nesta casa alguém
Que me possa abrir as correias,
Possa as hastes retirar
E o arco desmontar?"

155
Não se rala Lemminkainen!
Bate o corcel com chicote,
Faz estalar na ponta as contas;
Vai rangendo pela estrada,
Toma o caminho do meio,
Rumo à morada no meio.

Sobre a soleira pergunta,


Fala de fora da entrada:
"Ele há nesta casa aqui
Quem possa abrir as correias
E as fivelas desapertar?"

A mulher respondeu torto,


Do forno de pedra a gralha:
"Aqui? Certamente que há
Quem possa as rédeas tirar,
Quem possa abrir-te as correias
E as fivelas desapertar.

"De facto, temos dezenas


-Que digo eu? – temos centenas
Que pra ti trabalharão,
Um bom corcel te darão,
Para ires pra casa, velhaco,
Fugires pra tua terra, ó pulha,
Prá morada de teu pai,
Prá soleira da tua mãe,
Pró portão do teu irmão,
Prós degraus da tua irmã,
Antes que se acabe o dia,
Antes que se ponha o Sol."

Não se ralou Lemminkainen!


Disse um dito e assim falou:
"Devia a mulher matar
156
"Devia a mulher matar
Com uma flecha pelo queixo."
Bate o corcel com chicote,
Vai rangendo pela estrada,
Toma trilho mais acima,
Rumo à casa mais em cima.

Então chega perto,


Esse ousado Lemminkainen,
Isto põe ele em palavras,
Faz ele este comentário:
"Fecha, Demo, a boca ao perro,
Diabo, aperta ao cão o queixo;
Faz fecho em frente à sua boca,
Uma tranca entre os seus dentes,
De forma a quem som não saia
Antes do homem passar."

E então foi até à quinta,


Bateu o chão com chicote:
Subiu do chão fina névoa
E surgiu um homenzinho;
Foi ele que abriu as correias
E que as hastes retirou.
E o ousado Lemminkainen
Escutou com atenção,
Sem que alguém o descobrisse,
Sem ninguém o encontrar.

De fora ouviu as canções,


Canto entre as lenhas musgosas,
Músicos pelas paredes,
Cantores magos à janela.

Dali a casa observou,


Discretamente espiou;
De sábios é cheia a casa,
157
De sábios é cheia a casa,
Bancos cheios de cantores,
Muitos músicos em linha,
Muitos sábios à entrada,
Videntes num banco alto,
Magos no banco do lar;
Cantam encantos lapões,
Gritam as runas do Demo.

Turbulento Lemminkainen
Arriscou-se e transformou-se
Mudou-se em algo diferente;
Do seu canto foi à casa,
Do esconderijo pra dentro
E pôs ele isto em palavras:
"Boa é canção acabada,
Bela a canção quando é breve,
Melhor é parar por si
Do que ser interrompido."

A senhora da Pohjola
Ia andando por ali,
Arrastando os pés no chão.
Disse um dito e assim falou:
"Andava aqui um mastim,
Cão de pêlo cor ferro,
Comedor de carne e osso,
Bebedor de sangue fresco,
Quem serás tu entre os teus,
Quem dentre essa gente tua,
A esta casa chegando
E nesta cabana entrando,
Sem que nem o cão te escute,
Nem o mastim te repare?"

Disse o ousado Lemminkainen:


"De forma alguma aqui vim
158
"De forma alguma aqui vim
Sem saber ou sem magia,
Sem poderes ou aptidão,
Sem os poderes do meu pai,
Sem as suas ferramentas,
Pra ser comido por cão,
Mastigado por mastim.
A minha mãe me levava
Enquanto rapaz pequeno
Durante o verão três vezes,
Nove vezes no Outono,
Pra ser mago em toda a parte,
Competente em toda a terra,
Em casa de mago cantor
E lá fora sabedor."

E o ousado Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante,
Sortilégio começou,
Cantar mago desatou:
Cuspi fogo o seu casaco,
Chamas seus olhos mandaram,
Enquanto Ahti ia cantando,
A magia recitando.

Cantou os cantores melhores,


Até que os fez os piores:
Meteu pedras nas suas bocas,
Empilhou-lhe rocha em cima,
Nos melhores desses cantores,
Nos feiticeiros mais hábeis.

Então os homens cantou,


Um aqui, outro acolá,
Pra clareiras desoladas,
Pra campos abandonados,
Para lagoas sem peixe,
159
Para lagoas sem peixe,
Pra lagos sem perca alguma,
Prás quedas fortes da Rutja,
Para redemoinhos raivosos;
Cantou-os na corrente espuma,
Cantou-os em cascata pedra,
Pra como fogo queimarem,
Como brasas faiscarem.

E o ousado Lemminkainen
Cantou-os com suas espadas,
Aos homens com suas armas,
Cantou os jovens e os velhos,
Cantou os de meia idade.
Um deixou ele não cantado;
Um pegureiro malvado,
Um velho cego e safado.

Chapéu Molhado, pastor,


Isto assim pôs em palavras:
"Ousado moço do Amor,
Cantaste jovens e velhos,
Cantaste os de meia idade,
Porque não fui eu cantado?"

Disse o ousado Lemminkainen:


"Por isto te toco eu não:
Porque és triste de se ver,
Mesmo sem cantado seres.
Quando ainda quase novo,
Ó pegureiro malvado,
De tua mãe filha comeste,
Com tua irmã dormiste;
Os cavalos violavas
E dos potros abusavas
Em charnecas, em confins,
Sobre a água lamacenta."
160
Sobre a água lamacenta."

Chapéu Molhado, pastor,


Ofendeu-se irritou-se.
Saiu pela porta fora,
Foi da quinta para o campo;
Correu ao rio da Tuonela,
Para o remoinho sagrado;
Lá embosca Mente Errante,
Lá espera Lemminkainen,
Que regresse da Pohjola,
Que retorne a sua casa. Ver mais

161
XIII
O Alce Do Demónio

Turbulento Lemminkainen
Disse à dama da Pohjola:...
"Dama, dá-me uma donzela,
Traz-me uma das tuas filhas,
Traz-me delas a melhor,
A maior das tuas virgens."

A senhora da Pohjola
Disse um dito e assim falou:
"Virgem eu não te darei,
Nenhuma moça trarei,
Nem a melhor, nem a pior,
Nem a mais alta, nem a mais baixa.
Já tens tu mulher casada,
Já tens uma dama dedicada."

Disse o ousado Lemminkainen:


"Killilli está presa à vila,
Aos degraus que estão à entrada
Dos portões de casa estranha;
Cá melhor mulher arranjo:
Traz-me agora a tua filha,
A mais doce das donzelas,
A que tem mais belas tranças."

Disse a dama da Pohjola:


"Decerto filha não dou
A um homem sem valor
A um sujeito imprestável.
Pede apenas minha filha,
Pergunta por minhas flores,
Quando o alce tu caçares
Pra lá dos campos do Demo."
162
Pra lá dos campos do Demo."

E o ousado Lemminkainen
Afiou as suas lanças,
Pôs corda em suas bestas,
Arranjou as suas setas.

Isto põs ele em palavras:


"Tenho as lanças afiadas,
Tenho as setas arranjadas,
Tenho a besta já com corda.
Falta esqui canho a empurrar,
Falta esqui dentro a apontar."

Turbulento Lemminkainen
Pois pondera e considera,
Onde esquis pode arranjar,
Quem lhos pode fabricar.

E foi à quinda de Kauppi,


Oficina de Lyylikki:
"Ó velho sábio do Norte,
Belo Kauppi da Lapónia!
Faz-me lá uns bons esquis,
Faz-me esquis do melhor coiro,
Pra caçar alce do Demo
Pra lá dos campos do Demo."

Lyylikki falou de pronto,


Kauppi disse uma palavra:
"Por nada vais, Lemminkainen,
Caçar o alce do Demo:
Ganharás um galho podre
E mão cheia de miséria."

Não se ralou Lemminkainen!


Isto assim pôs em palavras:
163
Isto assim pôs em palavras:
"Faz canho esqui pra empurrar,
Faz destro esqui pra apontar.

Vou esquiar pra alce caçar


Além dos campos do Demo."

Lyylikki molda esquis canhos,


Kauppi faz destros esquis,
Fez no Outono um esqui canho,
No Inverno um esqui destro;
Num dia vara cortou
E noutro um disco moldou:
Fez canho esqui pra empurrar,
Fez destro esqui pra apontar;
Varas de haste preparou,
Nelas discos encaixou.
Custou a vara uma lontra.
O desço pele de raposa.

Unta os esquis com gordura,


Unta-os com banha de rena.
Ele então pondera bem
E isto assim pôs em palavras:
"Há neste grupo mais jovem,
Entre esta gente crescente,
Quem empurre o canho esqui,
Com calcanhar chute o destro?"

Disse o ousado Lemminkainen,


O safado bem rosado:
"Ele há neste grupo jovem,
Entre esta gente crescente,
Quem empurre o canho esqui,
Com calcanhar chute o destro."

Firmou sua aljava às costas,


164
Firmou sua aljava às costas,
Pôs a sua besta aos ombros,
Agarrou vara na mão;
O canho esqui empurrou,
O destro esqui calcanhou,
Isto assim pôs em palavras:
"No firmamento de Deus,
Sob a abóbada celeste,
Não se acha em nenhuma mata
Nada que ande em quatro patas,
Que não possa ser caçado
E facilmente apanhado
Pelos esquis do de Kaleva,
Pelo esquiar de Lemminkainen."

Os demónios isto ouviram,


De isto os malvados trataram.
Construíram eles um alce,
Fabricaram uma rena:
Cabeça de cepo podre,
Cornos de paus bifurcados,
Pernas de brotos molhados,
Tíbias, talas de paul,
Dorso de estacas de cerca,
Tendões de erva velha seca,
Olhos de fulvo nenúfar,
Orelhas de brancos lírios,
Pele de casca de abeto
E o resto de árvore podre.

O Demo disse ao seu alce,


Conselhou à sua rena:
"Agora, alce dos demónios,
Mexe as pernas, rena nobre,
Ao prado onde nascem renas,
Para os campos da Lapónia.
Esquia os homens em suor,
165
Esquia os homens em suor,
Mais que todos Lemminkainen!"

Correu o alce do Demo


E acelerou essa rena,
Sob cabanas do Norte,
Pelos prados da Lapónia;
Atirou com as bacias,
Fez as chaleiras tremer,
Fez sujar carne nas cinzas,
Entornou no fogão sopa.

Grande algazarra cresceu


Nesses campos da Lapónia:
Pôs cães lapões a ladrar,
Miúdos lapões a chorar
Damas lapas gargalhando,
Outra gente resmungando.

E o ousado Lemminkainen
Foi esquiando atrás do alce
Sobre atóis e sobre campos,
Sobre clareiras abertas.
Fogo salta dos seus esquis,
Fumo das pontas das hastes,
Mas não logrou ver o alce,
Nem o viu nem o ouviu.

Deslizou por montes, pontes,


Deslizou além do mar;
Esquiou os matos do Demo,
Pelos campos do Fantasma;
Esquiou a boca da Morte.
Trás da quinta do Fantasma.

Abre a Morte a sua boca,


Ergue o Fantasma a cabeça,
166
Ergue o Fantasma a cabeça,
Para capturar o homem,
Para engolir Lemminkainen;
Mas a Morte o não apanha,
Pois não tem tempo que chegue.

Não fora um canto esquiado,


Estava um espacinho intocado,
Nas mil sombras da Pohjola,
Nas campinas da Lapónia:
Preparou-se pró esquiar,
Preparou-se pró tocar.

Quando chegava ao destino,


Ouviu bastante algazarra
Das mil sombras da Pohjola,
Das campinas da Lapónia.

Ouviu os cães a ladrar


E as crianças a chorar;
Ouviu damas gargalhando,
Outras gentes resmungando.

E o ousado Lemminkainen,
Para aí foi a esquiar,
Para donde os cães ladravam,
Às campinas dos lapões.

E, chegando, ele assim disse,


Quando surgiu, inquiriu:
"Que gargalhavam as damas,
Que choravam os miúdos?
Que é que os velhos resmungavam?
A quem é que os cães ladravam?

"Disto as damas gargalhavam,


Isto os miúdos choravam,
167
Isto os miúdos choravam,
Isto os velhos resmungavam,
A isto é que os cães ladravam:
Veio aqui o alce do Demo,
Galopou com o pernas-altas;
Atirou com as bacias,
As chaleiras fez tremer,
Carne fez sujar em cinzas,
Sopa entornou no fogão."

E o safado bem rosado,


Esse ousado Lemminkainen
Puxou na neve o esqui canho,
Como cobra em erva seca,
Empurrou o esqui de pinho,
Como uma serpente viva.

E disse enquanto ia indo,


Falou ele de haste equipado:
"Quantos homens que aqui haja,
Venham alce carregar,
Quantas mulheres que aqui haja,
Venham chaleiras lavar;
Quantos miúdos que aqui haja,
Venham alce cozinhar."

E aprontou-se e esforçou-se
Preparou-se e empurrou-se:
À primeira pontapeou-se
Mais longe que o olho vê;
À segunda empurrou-se
Mais longe que a orelha ouve;
À terceira acelerou-se
E alcançou do alce o flanco.

Pegou em estaca de ácer


E em de bétula coleira;
168
E em de bétula coleira;
Pois com essa o alce laça,
Prende em cerca de carvalho:
"Fica aí, de alce o Demo,
E vai-te empinando, ó rena!"

E no dorso lhe fez festas,


Dá-lhe palmadas no pêlo:
"Hei-de gostar de cá estar:
Convém-me muito deitar
Com uma bela menina,
Com pintinha inda crescente."

Pois o alce enfureceu-se,


Pôs-se a dar coices a rena,
Disse um dito e assim falou:
"Possa o Diabo arranjar-te
Virgens com quem te deitares,
Filhas de alguém com quem ires!"

E aprontou-se, e esforçou-se,
E partiu logo a coleira,
Estaca de ácer partiu,
Quebrou cerca de carvalho.

Começou logo a correr,


Começou a acelerar
Por atóis e por planícies,
Por encostas cheias de urze,
Mais logo que o olho vê,
Mais longe que a orelha ouve.

Esse rosado safado,


Ficou danado, irritado,
Furioso e ensandecido.
Esquiou atrás do alce:
À primeira que empurrou,
169
À primeira que empurrou,
O esqui canhoto estalou;
O esqui na palma quebrou;
No calcanhar, o direito,
Haste no espigão partiu,
Vara no disco quebrou.
Alce do Demo correu,
Sinal de si não deixou.

E o ousado Lemminkainen,
Cabisbaixo, malogrado,
Olha a sua equipagem,
Isto assim põe em palavras:
"Nunca, nunca nesta vida,
Deixem outro caçador
Ir confiante à floresta
Pra caçar alce do Demo
Como eu, coitado, fui:
Dei cabo de bons esquis,
As finas varas quebrei,
Boas hastes esmaguei."

170
XIV
Os Trabalhos de Lemminkainen

Turbulento Lemminkainen
Ponderou e reflectiu...
Por qual trilho havia de ir,
Por qual vereda descer;
Se devia desistir
Do alce do Demo, ir pra casa,
Ou continuar a tentar,
Deslizar mais relaxado,
Do bosque a dama agradar,
Virgens do mato alegrar.

Isto assim pôs em palavras,


Isto assim ele recitou:
"Ó Ukko, deus das alturas
E do firmamento pai:
Faz-me esquis de confiança,
Faz-me esquis que sejam leves,
Com os quais mais fácil seja
Esquiar por pauis e campos,
Pelas terras do Demónio,
Nas campinas da Pohjola,
Em trilhos do alce do Demo,
Pelo rasto dessa rena."

"Vou-me só para a floresta,


Sozinho pró campo aberto,
Pelos domínios de Tapio,
Para as quintas da Tapiola.

"Salve, montes e montanhas!


Salve, bosques reboantes!
Salve, amieiros verdes-claros,
Saúdem o que vos saúda!
171
Saúdem o que vos saúda!

"Bosques e mata, concedei;


Sê gracioso, caro Tapio!
Do paul a lugar seco,
Ao cume homem encaminha,
Onde a presa é pra apanhar
E a caça é pra caçar.

"Nyyrikki, filho de Tapio,


De chapéu rubro pontudo:
Deixa marcas pelo campo,
Fez sinais a indicar montes,
Possa o pobre ver onde ir,
Saiba o leigo o seu caminho,
Mentes sua presa busca,
Enquanto a caça procura.

" Mielikki, dama do bosque,


Bela dama da floresta!
Diz ao oiro pra seguir,
Diz à prata pra partir,
Prá frente do buscador,
Pró trilho do explorador.

"Pega essas chaves doiradas


Desse anel na tua cinta;
Abre o alpendre de Tapio,
O seu castelo na mata,
Para meu dia de caça,
Enquanto eu presa procuro.

"Se não me puderes ser guia,


Traz então as tuas aias,
Obriga as tuas criadas,
Manda essas em quem mandas;
Talvez nem sejas senhora
172
Talvez nem sejas senhora
Se tuas servas não controlas;
Manda cem moças serventes,
Mil que a ti estejam sujeitas,
Das que do teu gado tratam,
Das que toda a caça guardam.

"Pequena aia da floresta,


Boquinha-de-Mel de Tapio!
Tua flauta de mel toca,
O teu doce tubo sopra
Ao ouvido da senhora,
Fina rainha do bosque,
Pra que ela meu cante escute,
Se levante do repouso,
Visto que agora não ouve,
Não a acorda o meu pedido,
Nem pedindo em ditos belos,
Implorando em língua de oiro."

Turbulento Lemminkainen,
Todo esse tempo sem presa,
Esquiou pauis, campinas,
Esquiou bosques bem bravos,
De Deus, montes chamuscados,
Do Demo, urzes calcinadas.

Deslizou um dia e dois


E pelo terceiro dia
Chegou à alta montanha,
Subiu rocha muito grande;
Virou olhos a Noroeste,
Pelos pântanos a Norte,
E viu as quintas de Tapio
Com portas de oiro brilhando,
Sobre os pântanos a Norte,
Na encosta junto à mata.
173
Na encosta junto à mata.

E o ousado Lemminkainen
Lesto se achega ao local,
Atravessa o seu caminho,
Chega às janelas de Tapio.
Pára então para olhar
Pela sexta das janelas:
Lá dormiam as dadoras,
Damas do bosque em repouso,
Em seus trajes de trabalho,
Cobertas com sujos trapos.

Disse o ousado Lemminkainen:


"Porquê, damas da floresta,
Vestis trajes de trabalho,
Sujos trapos de debulha?
Sois bem pretas de se ver,
Sois de horrível aparência,
Vossos peitos são nojentos,
Vossas formas bem mal feitas.

"Quando antes bosques trilhei,


Três castelos contemplei,
Um de madeira, outro de osso,
E o terceiro em pedra feito.
Seis janelas de oiro havia
No lado de cada forte;
Dei olhada em cada uma,
Debaixo ao muro onde estava.
Vi o senhor e a senhora,
Da casa de Tapio e vi
Tellervo aia de Tapio
Outros da casa de Tapio
Todos de oiro carregados,
Todos de prata empilhados.

174
"Pulseiras de oiro nas mãos
Da senhora da floresta,
Doce dama destes bosques;
Anéis de oiro nos seus dedos,
Jóias de oiro na cabeça.
No cabelo, argolas de oiro,
Brincos de oiro nas orelhas,
Belas contas no pescoço.

"Bela dama da floresta


Senhora doce dos bosques,
Larga os sapatos de palha,
Deixa os sapatos de casca;
Tira os trapos da debulha,
Tira a blusa de trabalho;
Veste-te de boa sorte,
Põe-te em blusas de dar caça
Nos meus dias de caçar,
Quando por presa procuro.

"Vagueio longe cansado,


Cansado sigo meu trilho,
Mas vagueio aqui pra nada,
Todo este tempo sem presa.
Se presa tu não me deres
Nem meu labor compensares,
Triste serei à tardinha,
Logo dia o meu sem caça.

"Velho, barba gris do bosque,


Chapéu-folha, capa-musgo,
Veste as matas ora em linho,
Cobre os matagais de lã,
Em cinzento pano as faias,
Em bela roupa amieiros;
Veste os pinheiros de prata;
175
Veste os pinheiros de prata;
Com oiro adorna os abetos
E os velhos pinhos com cobre;
Cinta os abetos de prata,
Vidoeiros em brotos de oiro,
Troncos com sinos doirados.

"Faz como em eras passadas,


Veste como em melhores dias;
Ramos de abeto em luar,
Paus de pinho em luz solar,
A madeira como mel doce,
O azul da mata como néctar,
Aroma do mato em malte,
De pauis manteiga escorre!

"Formosa virgem do bosque,


Tuulikki, filha de Tapio:
Guia a caça para aqui,
Para esta campina aberta.
Se essa anda em pesados passos
Ou se no correr preguiça,
Toma bastão de arvoredo,
Do vale pau de vidoeiro,
Bate-lhes de ambos os lados,
Dos dois flancos a fustiga;
Condu-la depressa avante,
Fá-la correr lestamente
Para o homem que a espera,
Ao caçador no caminho!

"Se a caça ao caminho vem,


Condu-la ao longo do trilho.
Usa tuas duas mãos,
Põe-lhe uma de cada lado,
Pra que a presa não me fuja,
Não se vá ao lado errado,
176
Não se vá ao lado errado,
Puxa-a ao trilho pela orelha,
Trá-la ao trilho pelos chifres.

"Se ele há troncos no caminho,


Tira-os da frente da presa;
Se eles há arvores pelo chão,
Pega-lhes, parte-as em duas;
Se ele há cerca no caminho,
Deita essa barreira abaixo
De cinco em cinco estacas,
De sete em sete postes;
Se ribeiro vier a meio,
Se no trilho passar riacho,
Põe lá uma ponte em seda,
Pano rubro como estada.

"Traz caça por trilhos estreitos,


Por trementes tremedais,
Sobre os largos rios do Norte,
Por cachoeiras escumosas.

"Senhor da casa de Tapio,


Velho barba gris do bosque,
Rei da floresta doirada,
Mimerkki, dama da mata,
De tesoiros a dadora,
Mulher azul do arvoredo,
Pantanosas meias-rubras:
Vinde oiro regatear,
Vinde a prata negociar;
Meu oiro é luar antigo,
Minha prata é velho sol.
Os quais ganhei na batalha,
Nos concursos dos ousados;
Jeitosas são na algibeira
Donde tinem pelo escuro;
177
Donde tinem pelo escuro;
Se oiro regatear não quereis,
Talvez prata me troqueis."

Turbulento Lemminkainen
Esquiou semana inteira,
Cantou canção pelo bosque,
Nos cantos fundos do mato;
A dama do bosque aplaca,
O senhor do mato acalma;
As donzelas delicia,
Às moças de Tapio agrada.

Conduziram alce avante,


De seu lar, alce do Demo
Por montes verdes de Tapio,
De orla do monte do Demo
Ao homem que o esperava,
À emboscada do mago.

E o ousado Lemminkainen
O seu laço enrola e lança
Aos ombros do alce do Demo,
Em torno do seu pescoço,
Que não mais lhe dará coices
Quando lhe bater no lombo.

Turbulento Lemminkainen
Isto assim pôs em palavras:
"Senhor do bosque e da terra,
Belo senhor das campinas,
Mielikki, dama do bosque,
Bela dadora de caça:
Pegai o oiro que eu jurei,
Vinde escolher vossa prata.

"Colocai no solo o linho,


178
"Colocai no solo o linho,
Estendendo o melhor linho,
Sob o oiro que cintila,
Sob a prata que lucila,
De forma a que em chão não cai
Nem se espalhe pela lama!"

Então ao Norte se foi


E disse à chegada:
"Cacei alce do Demónio
Nos planos confins do Demo.
Dá-me, dama, tua moça,
Dá-me a jovem noiva!"

Louhi, dama da Pohjola,


Disse um dito e assim falou:
"Só darei minha menina,
Se ao capão tu puseres rédeas,
Do Demo corcel castanho,
Do Demo cavalo espúmeo,
Da orla do prado do Demo."

E o ousado Lemminkainen
Logo pega em rédea de oiro,
Pega a brida toda em prata,
E vai buscar o corcel,
Vai buscar crina-amarela
Na orla do prado do Demo.

Sua jornada correu,


Avançou lesto o caminho
Pelo prado aberto e verde,
Pelo campo santo em frente;
Aí pelo corcel busca,
Procura o crina-amarela;
No cinto cargava brida,
Levava no ombro arreio.
179
Levava no ombro arreio.

Procurou um dia e dois,


Logo procurou um terceiro;
Veio ter a alta montanha,
Trepou rocha muito grande.
Virou olhos Este-avante,
Virou olhos Sul-avante.
Na areia viu o cavalo,
Crina-amarela entre bétulas,
Faísca flama em seu pêlo,
Sobe-lhe fumo da crina.

Então rezou Lemminkainen:


"Ó Ukko, senhor dos deuses,
Ó Velho, mestre das nuvens,
Deus das nuvens condutor!
No firmamento abre fendas,
Abre as janelas no céu,
Faz cair chuva de ferro,
Manda abaixo massa em gelo,
Na crida do bom corcel,
No dorso desse capão!"

Ukko então, o Criador,


Deus entre as nuvens louvado,
Bem ouviu e o ar partiu,
Fez em dois o firmamento,
Lançou gelo e gelo em blocos,
Lançou granizo de ferro,
Menor que de corcel crânio,
Maior que cabeça de homem,
Na crina do bom corcel,
No dorso desse capão.

E o ousado Lemminkainen
Avante foi para olhar,
180
Avante foi para olhar,
Avançou para observar,
Isto assim pôs em palavras:
"Poderoso capão do Demo,
Da montanha, crina em espuma:
Dá-me teu focinho de oiro,
Cabeça de prata estica,
Mete-a na brida doirada,
Põe-na nos sinos de prata!

"Nunca te tratarei mal,


Não guiarei com dureza;
O nosso caminho é curto,
É bem pequena a viagem,
À pobre terra do Norte,
Ver minha sogra cruel.
Não te baterei com corda
Nem te guiarei com pau,
Mas sim com fios de seda
Ou com bandas de tecido."

Castanho corcel do Demo,


Cavalo de crina em espuma,
Deu o seu focinho de oiro,
Esticou nuca de prata;
Pra tomar brida doirada,
Brilhantes sinos de prata.

Turbulento Lemminkainen
Pôes as rédeas ao corcel;
Na boca ajustou arreio,
Brida em cabeça de prata
E montou no largo dorso,
Nas costas do bom corcel.

Sobre o capão brande açoite,


Bate com pau de salgueiro.
181
Bate com pau de salgueiro.
Vai andando um bocadinho,
Correndo a serrania,
As vertentes Norte-avante
Sobre as montanha nevadas,
À triste terra do Norte.

Do quintal ao salão foi,


Disse assim quando chegou,
Quando a Pohjola alcançou:
"Pus rédeas ao bom corcel,
Trouxe o do Demo bridado,
Desse aberto e verde prado
E do campo mais além."

"De esquis lhe segui a pista


Nos confins planos do Demo,
Dá tua menina, ó velha,
Dá-me a minha jovem noiva!"

Louhi, dama da Pohjola,


Isto assim pôs em palavras:
"Só te darei a menina,
A jovem noiva que buscas,
Se cisne do rio caçares,
A grande ave do ribeiro,
No rio turvo da Tuonela,
No sagrado remoinho,
Em uma só tentativa,
Usando uma flecha apenas."

Turbulento Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante,
Foi com seu arco sonante
Buscar o pescoço-longo,
No rio turvo da Tuonela,
Na funda Casa dos Mortos.
182
Na funda Casa dos Mortos.

Avante em passadas lestas,


Lá foi andando veloz,
Ao rio largo da Tuonela,
Ao sagrado remoinho,
Sob o braço a bela besta,
Às costas bem cheia aljava.

Chapéu Molhado, o pastor,


Cego barba gris do Norte,
No rio largo da Tuonela,
No sagrado remoinho,
Muito tinha ele esperado
Lemminkainen ser chegado.

E um dia aconteceu,
Veio o ousado Lemminkainen
Se apressando, aproximando
Do rio fundo da Tuonela,
A mais medonha das quedas,
O sagrado remoinho.

Das ondas chamou serpente,


Qual das vagas vindo vime,
Corta o coração do homem
Fura fígado de Ahti,
O sovaco ataca à esquerda,
Mata à direita no ombro.

E o ousado Lemminkainen
Sentiu-se muito ferido,
Disse um dito e assim falou:
"Agi muito tolamente
Não pedindo informação
Da mamã que me pariu.
Dois ditos me chegariam,
183
Dois ditos me chegariam,
Três, se tanto precisava:
Como agir, como viver
Nesta idade de maldade.
Dragão não posso cantar
Nem dos vimes sei as runas.

"Ó mamã que me pariste,


Que com labor me criaste,
Se soubesses, se sonhasses
Onde o teu filho definha,
Decerto correrias
A assistir o teu pobre filho,
E ao triste lhe pouparias
De morrer neste lugar,
De morrer enquanto novo,
De finar inda rosado."

Chapéu Molhado, o pastor,


Cego barba gris do Norte,
Deita o filho de Kaleva,
Ao rio turvo da Tuonela
No pior dos remoinhos.

Turbulento Lemminkainen,
Voga catarata abaixo,
Desliza rápido abaixo,
À medonha Tuonela.

O feroz filho de Tuoni


Mata com a espada o homem;
Com sua lâmina brilhante
Cortou lesto faiscante;
Cortou em cinco bocados,
Em oito peças cortou
E no rio as atirou,
Para a profunda Manala.
184
Para a profunda Manala.
Matando cisnes no rio,
Aves de água pelas margens!"

E assim morreu Lemminkainen,


Morreu bravo pretendente
No rio turvo da Tuonela,
Nas funduras da Manala.

185
XV
A Mãe de Ahti Procura o seu Filho

Era a mãe de Lemminkainen


Em casa e estava pensando:...
"Onde pára Lemminkainen,
Meu rapaz, meu Mente Errante,
Que não o ouço chegando
Da viagem pelo mundo?"

Não sabia a pobre mãe


Nem a triste imaginava
Onde a sua carne andava,
Onde o seu sangue escorria:
Se caminhava as campinas,
Em montes cheios de abetos,
Ou se dobre o mar andava,
Entre as vagas escumosas;
Se em guerras guerreava
No mais terrível tumulto,
Com sangue pelas canelas,
Rubro sangue em seus joelhos.

Killikki, a bela esposa,


Vira à volta e olha à volta,
Na casa de Lemminkainen,
Pelo lar do Mente Errante.
O pente olhava à noitinha,
A escova de madrugada;
E um dia aconteceu,
Foi de manhã, bem cedinho,
Sangue do pente pingou,
Sangue da escova escorreu.

Killikki, a bela esposa,


Isto assim pôs em palavras
186
Isto assim pôs em palavras
"Ai, meu marido partiu,
Foi-se belo Mente Errante
Ao continente sem casas,
Pelo deserto sem trilhos.
Sangue do seu pente pinga,
Sangue da sua escova escorre."

E a mãe de Lemminkainen
Vê também sangrar o pente,
Começa logo a chorar:
"Ai que dia, pobre de mim,
Minha vida é desgraçada!
Meu filho teve má sorte!
Meu rapaz desprotegido
Em mau dia foi crescido!

"Veio-lhe destruição,
É perdido o meu filhinho:
Sangue do meu pente pinga,
Sangue da escova lhe escorre."

Com as mãos tomou a saia,


Vestido ergueu com os braços,
Começou sua jornada,
Apressou sua viagem.
Passos seus ribombam montes,
Erguem vales, caem cumes,
Faz baixar as terras altas,
Faz subir as terras baixas.

Para a Pohjola partiu,


Foi perguntar do seu filho,
Foi isto pôr em palavras:
"Diz-me, dama da Pohjola,
Mandaste onde Lemminkainen,
Onde enviaste o meu filhinho?
187
Onde enviaste o meu filhinho?

Louhi, dama da Pohjola,


Com estas lhe respondeu:
"Do teu filho nada sei,
Onde foi, onde sumiu;
No trenó pus-lhe um corcel,
Canguei-lhe um capão capaz.
Talvez caísse no gelo
Indo por gelado lago;
Talvez caísse entre lobos,
Ou que um urso o devorasse."

Disse a mãe de Lemminkainen:


"A verdade é que tu mentes!
Nenhum lobo o tocaria,
Nenhum urso, a Lemminkainen!
Lobos com seus dedos quebra,
Ursos com as mãos vazias.
Se a verdade não disseres,
Que fizeste a Lemminkainen,
Partirei o teu celeiro
E as dobradiças do Sampo."

Disse a dama da Pohjola,


"Dei-lhe muito de comer,
Também muito de beber,
Até ele estar saciado.
Na popa de um barco o pus
E à corrente logo foi,
Mas não te posso eu dizer
Que ocorreu ao miserável
Nessa corrente espumosa,
Nas voltas do redemoinho."

Disse a mãe de Lemminkainen:


"A verdade é que tu mentes!
188
"A verdade é que tu mentes!
Diz ora a verdade certa,
Pára agora de mentir!
Mandaste onde Lemminkainen,
Onde jaz o de Kaleva?
Ou morta serás tu mesma,
Ou a morte a ti te espera."

Disse a dama da Pohjola:


"A verdade agora digo:
Mandei-o à caça de alces
A pelar ena de escolha,
A bridar grandes capões,
A redear os garanhões.

"Então mandei caçar cisne,


Buscar pássaro sagrado,
Mas não te posso dizer
Que má sorte o encontrou,
Ou que azar lhe aconteceu;
Não ouvi dele retornar
À noiva que me pediu,
À moça que cortejava."

Muito busca ela o perdido,


Temendo o que acontecera,
Como um lobo nos pauis,
Como um urso pelos ermos,
Como lontra pelas águas,
Qual texugo pelos prados,
Qual ouriço nas encostas,
Qual lebre os lagos orlando.

Tira rochas do caminho,


Arranca árvores das encostas,
Corta arbustos da estrada,
Limpa galhos dos seus trilhos.
189
Limpa galhos dos seus trilhos.

Muito busca ela o perdido,


Muito busca, mas não acha;
E às árvores pergunta,
Buscando o desvanecido.

Disse uma árvore suspirando,


Respondeu sábio o carvalho:
"Tenho meus próprios problemas
Sem me ocupar do teu filho:
Pra má sorte fui criado,
Feito fui pra dias ruins,
Partido em lenha de lar,
Quebrado em feixes de lenha,
Pra morrer numa lareira
Ou em queima de clareira."

Muito busca ela o perdido,


Muito busca, mas não acha.
Sempre que uma estrada encontra,
Para a estrada ela se curva:
"Ó estrada, por Deus criada,
Viste meu filho passar,
Viste minha maça de oiro,
Viste meu ceptro de prata?"

Mas responde a estrada sábia,


Isto assim põe em palavras:
"Tenho meus próprios problemas,
Sem me ocupar do teu filho:
Pra má sorte fui criada,
Feita fui pra dias ruins,
Pra ser corrida por cães,
Por ginetes galopada,
Por bota dura calcada
E por tacão esmagada."
190
E por tacão esmagada."

Muito busca ela o perdido,


Muito busca, mas não acha.
E quando a Lua ela encontra,
Para a Lua ela se curva:
"Ó Lua, por Deus criada,
Viste meu filho passar,
Viste minha maça de oiro,
Viste meu ceptro de prata?"

A Lua, por Deus criada,


Responde com sábios ditos:
"Tenho meus próprios problemas,
Sem me ocupar do teu filho:
Pra má sorte fui criada,
Feita fui pra dias ruins,
As noites sozinha passo,
Brilho pra sempre no gelo,
No Inverno vigiando,
No Verão desaparecendo."

Muito busca ela o perdido,


Muito busca, mas não acha.
E quando o Sol ela encontra,
Para o Sol ela se curva:
"Ó Sol, tu, por Deus criado,
Viste tu o meu rapaz,
Viste a minha maçã de oiro,
Viste meu ceptro de prata?"

E o Sol algo sabia,


Bem no disse sem rodeios:
"Teu filho, esse desgraçado,
Já caiu e pereceu,
No rio turvo da Tuonela,
No rio fundo da Manala.
191
No rio fundo da Manala.
Vogou catarata abaixo,
Vogou pra baixo do rápido,
À funda Terra dos Mortos,
À medonha Tuonela."

A mãe de Lemminkainen
Aí desatou em pranto,
Foi à forja do ferreiro:
"Ó Ilmarinen ferreiro,
Forjaste antes, forjaste ontem;
Forja então hoje também.
Pões em pega em de cobre ancinho,
Mete-lhes dentes de ferro,
Forja dentes de cem braças,
Forja pega de quinhentas."

E o Ilmarinen ferreiro,
Ele, o artesão primeiro,
Pôs pega em cobre ancinho,
Meteu-lhes dentes de ferro,
Forjou dentes de cem braças,
Forjou pega de quinhentas.

E a mãe de Lemminkainen
Pega o ancinho de ferro,
Corre ao rio da Tuonela
E assim ao Sol implora:
"Ó Sol, tu, por Deus criado,
Do Criador criação brilhante,
Brilha demais por uma hora,
Brilha pouco na segunda,
Na terça com toda a força.
Faz dormir a raça ruim,
Cansa os da Casa dos Mortos,
Faz dormir os da Tuonela."

192
Esse Sol, por Deus criado,
Voou pra trás duma bétula,
Bateu asas a caminho,
Trás de um galho de amieiro;
Brilhou demais por uma hora,
Brilhou pouco na segunda,
Na terça com toda a força.
Fez dormir a raça ruim,
Cansou a Casa dos Mortos.
Dormiam de espada os novos
E os velhinhos de cajado,
De lança os de meia-idade.

Aí voou de volta ao cimo,


Para as alturas do céu,
Para o seu antigo posto,
Para a sua prima casa.

E a mãe de Lemminkainen
Toma o ancinho de ferro,
Busca com forte draga
No remoinho enraivecido,
Na torrente furiosa;
Procura, mas nada encontra.

Então vai ela mais fundo,


Ainda mais fundo no mar,
Até às ligas no mar,
Até à cinta nas águas.

Busca o filho com ancinho,


Por todo o rio de Tuoni;
Contra a corrente ele draga,
Draga uma vez, draga duas,
Acha a camisa do filho,
Encontra a camisa e sofre.
193
Encontra a camisa e sofre.

Draga então uma vez mais,


Acha as meias e o chapéu;
Acha as meias, muito sofre;
Acha o chapéu, angústia.

Então vai ela mais fundo


Na funda Casa dos Mortos.
Draga uma vez na corrente,
Draga segunda através
E terceira de través
E à terceira com efeito
Acha de espiga um feixe
No seu ancinho de ferro.

Não era de espigas feixe,


Mas ousado Lemminkainen,
Esse belo Mente Errante,
Preso nos dentes do ancinho,
Pelo seu dedo anelar,
Pelos dedos do pé esquerdo.

Assim pescou Lemminkainen


Descendente de Kaleva,
No ancinho feito em cobre,
À luz pra cima das aguas.

Mas umas coisinhas faltam:


A mão e meia cabeça
E mais outros bocadinhos,
Como a vida, por exemplo.

Sua mãe então pondera


E a chorar isto assim diz:
"Pode homem disto ser feito,
Criado um novo sujeito?"
194
Criado um novo sujeito?"

Veio um corvo para ouvir,


Em palavras isto pôs:
"Não há homem nesta coisa,
Não naquilo que encontraste.
Coregono olhos comeu,
Lúcio os ombros partiu.
Deita esse homem a água,
Lança-o ao rio da Tuonela,
Talvez bacalhau se torne
Ou pra ser baleia cresça."

Mas a mãe de Lemminkainen


Não lança o seu filho à água,
Mas recomeça a dragar
Com seu ancinho de ferro
No rio fundo da Tuonela
Ao longo e de través.

Achou mão, achou cabeça


E os pedaços da coluna;
Achou costelas partidas
E muitos outros bocados;
O seu filho ela refaz,
Monta ousado Lemminkainen.

Então carne em carne encaixa,


Osso em osso ela vai pondo,
Membro em outro membro instala,
Veias juntas ela empurra.

Então atou veias juntas,


As pontas coseu unidas;
Com cuidado fios cantou,
Isto assim pôs em palavras:
"Ó bela deusa das veias,
195
"Ó bela deusa das veias,
Suonetar, bela mulher,
Cara tecelã de veias,
A bela roca rodando,
Com teu fuso todo em cobre,
Com a roda toda em ferro.

"Vem cá tu quando és precisa,


Vem depressa onde és chamada,
Com punhados de tendões,
Sob os teus braços um maço,
Pra atar as veias unidas,
Pra coser as pontas juntas,
Onde as feridas fendem fundas
E se abrem largos os lanhos!

"Se não for isto que chegue,


Senta no ar uma virgem
Num tal barco em cobre ornado,
Num barco de rubra popa.
Desde do céu, ó donzela;
Virgem, vem do firmamento;
Rema teu barco nas veias,
Move o barco pelos membros,
Conduz por ossos partidos,
Conduz por juntas quebradas!

"Ata firme as veias juntas,


Põe-nas na posição certa,
Ponta em ponta as mais compridas;
Junta juntas as artérias.
Dobra os vasos mais pequenos,
Junta as pontas dos vasinhos!

"Pega ora a mais fina agulha,


Fia-a com fio de seda;
Cose com a fina agulha,
196
Cose com a fina agulha,
Ponteia agulha de estanho,
Junta as pontas dessas veias,
Junta-as com bandas de seda.

"Se não for isso que chegue,


Salva tu, ó Deus divino:
Canga teus capões velozes,
Brida teus fortes corcéis:
Em teu trenozinho vem,
Pelos ossos, pelas juntas,
Pela carne lacerada,
Pelos vasos untuosos;
Com a carne o osso aperta,
Junta um vaso à ponta de outro
Na fenda do osso argênteo,
Ruptura da veia de oiro!"

"Onde está a pele rasgada,


Faz pele aí crescer;
Onde a veia está partida,
Faz a veia estar cosida;
Onde está sangue a pingar,
Faz o sangue aí parar;
Onde os ossos estão partidos,
Deves os ossos grudar;
Onde a carne está rasgada,
Deve a carne ser colada
Com uma bênção ajustada
Na posição certa posta;
Osso em osso e carne em carne,
Junta em junta junta firme!"

Assim mãe de Lemminkainen,


Formou homem, fez o tipo,
À sua vida o restaura,
À forma que dantes tinha.
197
À forma que dantes tinha.
Estão cantadas veias todas,
As pontas cosidas juntas;
Ainda está mudo o homem
Nem fala ainda a criança.

Pôs então ela em palavras,


Comentou e assim falou:
"Onde haverá um unguento,
Onde haverá gotas de mel,
Que eu no doente possa untar
E a maleita curar,
Para que ele possa falar,
Possa de novo cantar?

"Ó abelha, ave de mel,


Deus das flores da floresta!
Vai depressa e traz-me mel,
Vai veloz e traz-me néctar,
Da terra dos doces bosques,
Do feliz povo de Tapio,
Da c'roa de muitas flores
E da pluma de ervas muitas,
Como unguento pró doente,
Remédio pró paciente.

E a abelha, ave lesta,


Voou longe em sua viagem,
À terra dos doces bosques,
Ao feliz povo de Tapio,
Flores nos prados sondou,
Com a língua o mel chupou,
Das pontas de seis flores claras
E das plumas de ervas cem;
Veio a zumbir bem alto,
Apressando o seu retorno,
Asas em néctar molhadas,
198
Asas em néctar molhadas,
Penas em mel ensopadas.

E a mãe de Lemminkainen
Dele tomou unguento mago,
Para untar seu paciente,
E lhe curar a fraqueza,
Mas disso não veio cura,
Continuava o homem mudo.

Então pôs isto em palavras:


"Ó abelha passarinho,
Voa em nova direcção.
Sobre nove lagos voa,
Até chegares à doce ilha,
À terra de muito mel,
À nova casa de Tuuri,
Essa casa sem telhado.

"Há lá muito mel do bom,


Há um unguento refinado,
Bom para os vasos juntar,
De todo as juntas curar.

"Esse unguento traz-me então,


Traz-me essa maga pomada,
Para eu pôr numa ferida,
Para untar nos ferimentos."

E a abelha, tipo magro,


Lá se foi mais uma vez;
Voou sobre nove lagos,
Voou metade do décimo.

Voou dia, voou dois,


Voou um terceiro dia,
Sem dormir nos canaviais,
199
Sem dormir nos canaviais,
Sem repousar numa folha,
Até chegar à doce ilha,
À terra de muito mel,
Até ir a uma torrente,
A um remoinho sagrado.

Lá o mel era cozido,


O unguento preparado,
Em vasinhos de Barreiro,
Em bonitas caldeirinhas
Com espaço de um polegar,
Do tamanho de um dedinho.

Essa abelha, tipo magro,


Recebeu essas pomadas.
De bons unguentos repletas.

E a mãe de Lemminkainen
Unta o filho com pomadas,
Com aqueles nove unguentos,
Com essas oito poções,
E contudo não há cura.
Inda não há solução.

Então pôs ela em palavras,


Disso um dito e assim falou:
"Ó abelha, ave do ar,
Voa lá terceira vez,
Sobe tu ao firmamento,
Sobe até ao firmamento,
Sobe até ao nono céu.

"Há lá muito mel do bom,


Mel para dar e vender,
Onde disse o Senhor runa,
Onde o puro Deus soprou,
200
Onde o puro Deus soprou,
Mel com Ele untou feridas
Que o mal nos seus filhos fez.

"Molha no mel tuas asas,


Traz plumas no melaço,
Traz o mel nas tuas asas,
Traz o doce em tua capa
Qual poção para o doente,
Como unguento para as feridas."

Mas a abelha, sábia ave,


Isto pôs em palavras:
"Com hei eu de lá chegar,
Eu, tão fraco homenzinho?"

"Podes tu ledo montar,


Podes tu feliz voar
Sobre a Lua, sob o Sol,
Pelas estrelas do céu:
Por um dia adejarás
Na fronte do firmamento;
Ao segundo subirás
Pelos ombros da Grande Ursa;
Ao terceiro alcançarás
As costas das Sete Estrelas.

"Logo é bem curta a viagem


E a distância bem pequena,
À casa do Deus sagrado,
Ao lar do Abençoado."

Do chão levantou-se a abelha,


Dum torrão asas-de-mel.
Com efeito esvoaçou,
Com asinhas deslizou.
Voou por anel da Lua,
201
Voou por anel da Lua,
Vogou na margem do Sol,
Pelos ombros da Grande Ursa,
Nas costas das Sete Estrelas.

Voou às caves do Criador,


Foi aos salões do Poderoso.
Aí são as poções feitas,
OS unguentos temperados
Em panelas prateadas
E em chaleiras doiradas.

No meio o mel vai fervendo,


Dos lados manteiga doce;
No Sul néctar vai cozendo,
No Norte unguentos fervendo.

E a abelha, ave de ar,


Tomou mel em abundância,
Tanto quanto desejou.
Um tempinho se passou,
Ora a abelha vem depressa,
Vem ora rodopiando,
Com cem copos nos seus braços
E mil outros contentores,
Alguns de mel, alguns de água,
Outros do melhor unguento.

E a mãe de Lemminkainen
Provou esses na sua boca,
Com a língua ela os testou,
E achou que bem sabiam:
"Esta é a pomada da boa,
É poção do Mais Poderoso,
Pelo Deus mais alto usada,
Por Criador que tudo cura."

202
Untou o homem cansado,
Remendou o doentado:
Untou ossos nas fracturas,
Untou membros nas fissuras;
Untou por cima e por baixo,
Esfregou também no meio.

Então pôs isto em palavras,


Comentou e assim falou:
"Ergue-te do sono, filho,
Acorda do teu sonhar,
Destes lugares de maldade,
Dessa cama de má sorte!"

E do sono ergueu-se o homem,


Do seu sonho ele acordou,
Seu falar recuperou,
De sua língua falou:
"Muito dormi, miserável,
Tanto jazi como inútil,
Dormi um sono sereno,
Sono profundo dormi."

Disse a mãe de Lemminkainen,


Isto pôs em palavras:
"Muito mais tu dormirias,
Muito mais repousarias,
Sem a tua triste mãe,
Se não viesse a desgraçada!

"Diz lá filho miserável,


Diz lá pra que eu possa ouvir:
Quem foi que na Terra Morta
Te empurrou ao rio de Tuoni?

Disse o ousado Lemminkainen


203
Disse o ousado Lemminkainen
E assim respondeu à mãe:
"Chapéu Molhado, o pastor,
Velho velhaco de Untamo,
Levou-me prá Terra Morta,
Empurrou-me ao rio de Tuoni,
Chamou da água uma serpente,
Alado dragão das águas,
Contra mim, tão desgraçado,
Que não me pude guardar,
Que de dragões nada sei
Nem de venenos odiosos."

Disse a mãe de Lemminkainen,


"Pobre do homem estouvado!
Alardeaste cantar magos,
De banir os da Lapónia,
Mas de dragões nada sabes
Nem de venenos odiosos."

"Dragão de água nasce de água,


E seu veneno das vagas,
Dos bons miolos de uma velha,
De uma andorinha do mar.

"A Ogra cuspiu nas águas,


Deitou saliva nas vagas,
E a água a espalhou,
E o sol a suavizou;
Ora o vento a abanou,
Brisa do mar atirou,
Ondas à costa a levaram,
Espuma para a terra a trouxe."

E a mãe de Lemminkainen
Embalou o seu querido
De volta ao seu velho estar,
204
De volta ao seu velho estar,
De retorno à velha forma,
Tanto que estava melhor,
Mais em forma do que fora,
Então ela perguntou
Se algo lhe fazia falta.

Disse o ousado Lemminkainen:


"Ainda há muito que me falta:
Há lá o meu coração,
O desejo inda persiste
Nas donzelas da Pohjola,
Nas tranças das belas moças;
Mas a de orelhas mofentas
Não me dará sua virgem
Sem que um pato seja morto,
Sem o cisne ser caçado
No rio turvo da Tuonela,
No sagrado remoinho."

Disse a mãe de Lemminkainen,


Disse assim e assim falou:
"Deixa o raio desses cisnes,
Deixa em paz os patos todos
No rio turvo da Tuonela,
No ardente remoinho!

"Tu agora vais pra casa


Com a tua pobre mãe!
Agradece a boa sorte
E ao Deus que tão bem conheces,
Visto que tanto ajudou,
Que a vida te restaurou
Da estrada certa de Tuoni,
Das casas da Terra Morta.

"Nada poderia eu fazer,


205
"Nada poderia eu fazer,
Nada se fosse eu sozinha,
Sem a graça do bom Deus,
Sem ajuda do Criador."

Turbulento Lemminkainen
Foi então de volta a casa,
Com a sua mãe querida,
Com a parente estimada.

Deixo agora o Mente Errante,


Tiro o ousado Lemminkainen
Da canção por algum tempo.
Entretanto viro o canto,
Levo a estória pra outro trilho,
Ponho-a em nova direcção.

206
XVI
Vainamoinen na Terra dos Mortos

Firme velho Vainamoinen,


Sempiterno feiticeiro,...
Andava a esculpir num barco,
Nova barca construía
Na margem da ilha de névoas,
Na ponta da ilha de brumas,
Mas faltavam-lhe madeiras,
Precisava de tabuado.

Quem irá buscar,


Um carvalho irá trazer
Pró barco de Vainamoinen,
Para a quilha do cantor?

O campestre Pellervoinen,
Sampsa, rapaz pequenino,
Ele uma árvore achará,
Ele um carvalho trará,
Pró barco de Vainamoinen,
Para a quilha do cantor.

Caminhou por uma senda,


Lá nos lados do Nordeste:
Sobe um monte, sobe dois,
Logo sobe ele um terceiro,
Com machado de oiro ao ombro,
Acha com pega de cobre.

Chega-se ela a uma faia,


Com três braças de comprida.
Tentou na faia tocar,
Com seu machado a cortar,
Mas a faia fala e diz
207
Mas a faia fala e diz
E com sua língua palra:
"Homem, que queres tu de mim?
Que coisa é que tu desejas?"

Jovem Sampsa, Pellervoinen,


Isto assim põe em palavras:
"Assim eu de ti demando,
Isto desejo e procuro:
Um barco pra Vainamoinen,
Tábuas pró mestre cantor."

E a faia então responde,


Consegue essa de cem ramos:
"Eu dou barco de água entrar
E navio de afundar.
Meu tronco é oco no fundo:
Três vezes neste verão
Comeu-me o coração verme,
Devorou-me a raiz larva."

Jovem Sampsa, Pellervoinen,


Então viaja inda mais longe,
Caminhando, pensativo,
Lá nos lados mais a Norte.

Chega-se ele a um abeto


Com seis braças de comprido.
Com a acha ataca a árvore,
Manda-lhe com seu machado;
Pergunta assim e assim fala:
"Está tu pronto, ó abeto,
Pra ser o barco de Vaino,
Tábuas do mestre cantor?"

Lesto o abeto respondeu,


Um grande bramido deu:
208
Um grande bramido deu:
"De mim não virá navio,
Nenhum dos de seis cavernas!
Sou abeto bem nodoso:
Três vezes neste verão
Gralho em meus ramos gralhou,
Corvo em c'roa crocitou."

Jovem Sampsa, Pellervoinen,


Inda mais longe viaja,
Caminhando, pensativo,
Lá nos lados mais a Sul.

Chega-se ele a um carvalho,


Com nove braças de largo.
Pergunta assim e assim fala:
"Serás de navio quilha,
Virá de ti, ó carvalho,
Quilha de barco de guerra?"

Respondeu sábio o carvalho,


Bem sabia o que dizer:
"Em mim só já há madeira
Para a quilha de um navio:
Não sou abeto nodoso
Nem sou eu oco por dentro;
Três vezes neste verão,
Um verão maravilhoso,
O Sol circulou meio meio,
Luziu-me a Lua na c'roa,
Cucou cuco nos meus ramos,
Dormiu pássaro em meus galhos."

Jovem Sampsa, Pellervoinen,


De ombro tomou seu machado,
Deu no tronco com a acha,
Com a ponta lhe bateu.
209
Com a ponta lhe bateu.

Cedo fez cair a árvore,


Nobre carvalho tombou.
Primeiro tirou a copa
E a base decepou;
Então corou muitas pranchas,
Tábuas tantas que incontáveis,
Materiais para o cantor,
Barco para Vainamoinen.

Então velho Vainamoinen,


Sempiterno feiticeiro,
Fez o barco habilmente
E cantou-o com magia,
Dos restos de um só carvalho,
Das lascas da frágil árvore.

Com um canto fez o fundo,


Juntou tábuas com segundo;
Cedo um terceiro cantou,
As cavilhas foi cortando,
As cavernas acabando,
E as tábuas sobrepondo.

Depois das cavernas feitas


E das tábuas sobrepostas,
Inda faltavam três cantos
Pra fixar as amuradas,
Pra pôr mastro em proa e ré,
E a popa terminar.

Firme velho Vainamoinen,


Esse eterno feiticeiro,
Disse um dito e assim falou:
"Ai, meus dias desgraçados!
Não chegou meu barco à água,
210
Não chegou meu barco à água,
Nem novo navio às ondas!"

Então pensa, então pondera,


Onde achar os ditos magos,
Encontrar os bons encantos:
"Seria das andorinhas,
Da nuca de cisnes voando,
De ombros de gansos em bando?"

Foi então cantos caçar:


Bandos de cisnes tombou,
Piaras de gansos matou,
E andorinhas às centenas:
Não ganhou nenhum encanto,
Nem encanto nem metade.

Então reflecte e pondera:


"Pode haver encantos cem
Sob a língua de uma rena,
Em boca de esquilo branco!"

E foi ele cantos caçar,


Ditos magos foi buscar;
Abre de renas pastagem,
Abre de esquilos ramagem,
Dali saca muitos cantos,
Mas nenhum lhe faz serviço.

Então reflecte e pondera:


"Haverá encantos cem
Lá nas casas da Tuonela,
Nos Choupos da Terra Mortal!"

Vai buscar ditos, encantos


À Tuonela, à Terra Morta.
Vai a andar silencioso:
211
Vai a andar silencioso:
Anda semana entre arbustos,
Segunda sobre abrunheiros,
Uma terceira entre zimbros;
Surge a ilha da Manala,
Os claros montes de Tuoni.

Firme velho Vainamoinen


Então bem alto gritou
No rio fundo da Tuonela,
Pelo abismo da Manala:
"Barco traz, filha de Tuoni,
Rema tu, filha de Mana,
Pra que eu passe a esse lado,
Pra que eu atravesse o rio!"

De Tuoni filha enfezada,


De Mana a moça enguiçada,
Agora as roupas lavava,
Sua barrela batia
No rio turvo da Tuonela,
Na funda água da Manala.

Disse um dito e assim falou,


Declarou, tagarelou:
"Virá um barco buscar-te,
Se a razão for explicada:
Que te traz à Terra Morta,
Sem que a doença te matasse,
Sem ser causa natural,
Sem que má sorte tivesses?"

Firme velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"Tuoni trouxe-me pra cá,
Mana arrastou-me de casa."

212
De Tuoni filha enfezada,
De Mana a moça enguiçada,
Isto assim pôs em palavras:
"Ora achei uma mentira!
Pois se Tuoni te trouxesse,
Mana te desalojasse,
Tuoni contigo viria,
Com Mana aqui chegarias,
Com seu chapéu em teus ombros,
Suas luvas em teus dedos.
Diz verdade Vainamoinen!
Que te trouxe à Terra Morta?"

Firme velho Vainamoinen,


Então disse estas palavras:
"Ferro trouxe-me à Manala,
Aço arrastou-me à Tuonela."

De Tuoni filha enfezada,


De Mana a moça enguiçada,
Disse um dito e assim falou:
"Ora achei uma mentira!
Pois se o ferro te trouxesse,
Te arrastasse aço à Tuonela,
Sangue a roupa verteria,
Sangue teu espirraria.
Diz a verdade Vainamoinen,
À segunda fala vero!"

Firme velho Vainamoinen


Proferiu e assim falou:
"Água trouxe-me à Manala,
Onde arrastou-me à Tuonela."

De Tuoni filha enfezada,


De Mana a moça enguiçada,
213
De Mana a moça enguiçada,
Disse um dito e assim falou:
"Reconheço um mentiroso!
Se água a Mana te trouxesse,
Se onda a Tuoni te arrastasse,
Água a roupa verteria,
Da gola água pingaria.
Diz ora a verdade exacta:
Que te trouxe à Terra Morta?"

Então velho Vainamoinen,


Mentiu ele uma vez mais:
"Fogo trouxe-me à Tuonela,
Flama levou-me à Manala."

De Tuoni filha enfezada,


De Mana a moça enguiçada,
Isto assim pôs em palavras:
"Adivinho um mentiroso!
Se fogo a Tuoni trouxesse,
Flama a Mana te levasse,
Terias pêlo chamuscado,
Terias a barba queimada.

"Ó tu, velho Vainamoinen!


Se queres ter barco daqui,
Fala ora a verdade exacta,
Pára de dizer mentiras
Sobre como vens a Mana,
Sem que doença te matasse,
Sem ter causa natural,
Sem que má sorte encontrasses."

Disse o velho Vainamoinen:


"Se um bocadinho menti,
Se fui falso à vez segunda,
Ora direi eu verdade:
214
Ora direi eu verdade:
Estava a construir um barco,
Cantando mago navio;
Cantei dia, cantei dois,
Até que ao terceiro dia
Partiu-se o trem da canção,
Quebrou-se o patim do poema.

"Vim a Tuoni tomar trado,


Vim a Mana buscar broca,
Pra terminar meu trenó,
Acabar canção-treno.
Ora traz teu barco aqui,
Prepara tua jangada,
Pra que eu passe a esse lado,
Pra que eu atravesse o rio!"

Goza-o a filha de Tuoni,


Grita a moça da Manala:
"Tolo, que grande tolice,
Homem, que falta de senso!
Vens sem causa à Tuonela,
Vens sem doença à Manala!
Bem melhor farias tu
Em voltar Às tuas terras,
Que muitos aqui vieram,
Mas não muitos retornaram."

Disse o velho Vainamoinen


"Talvez isso assuste velhas,
Ma não homem, mesmo fraco,
Nem sequer um pouco ousado!
Barco traz, filha de Tuoni,
Jangada, moça de Mana."

Ela então um barco trouxe


E pegou o velho Vaino;
215
E pegou o velho Vaino;
Através do estreito o leva,
À outra margem o porta.

Isto assim pôs em palavras:


"Ai de ti, ó Vainamoinen:
Sem morrer vens à Manala,
Vens vivente à Tuonela"

A boa dama de Tuoni,


A velha da Terra Morta,
Serviu cerveja em caneca,
Trouxe algumas em duas pegas,
E isto assim pôs em palavras:
"Bebe, velho Vainamoinen!"

Firme velho Vainamoinen


Olha o fundo da caneca:
Vê umas rãs desovarem,
Vê uns vermes ondularem.

Então põe isto em palavras:


"De certo não vim aqui
Beber taças da Manala,
Lamber garrafas de Tuoni.
Beber cerveja embebeda,
Copo entornar faz tombar."

A dama de Tuoni disse:


"Fala, velho Vainamoinen,
Pra que vieste tu a Mana,
Pra quê às casas de Tuoni,
Sem que Tuoni desejasse,
Sem que Mana te chamasse?"

Fala o velho Vainamoinen:


"Em meu barco trabalhava
216
"Em meu barco trabalhava
E, enquanto o barco moldava,
Três palavras me faltaram,
Para a popa arredondar,
Para a proa levantar;
Quando em lado algum achei,
Nem nas terras nem nos céus,
Tive de à Tuonela vir,
De à Manala viajar,
Para aqui ditos buscar,
Para as runas aprender."

Então a dama de Tuoni


Disse um dito e assim falou:
"Tuoni Não oferece ditos
Nem Mana o poder partilha!
Daqui não sairás tu
Nunca, nunca neste mundo:
A tua casa não irás
Nem ao lar te arrastarás."

Então fez homem dormir,


Fez viajante deitar
Sobre uma cama de pele;
Aí o homem se estende,
Vai o tipo adormecendo,
Homem dorme e roupas guardam.

Na Tuonela há uma velha,


Bruxa de queixo pontudo,
Que fios de ferro fia
E cordéis de cobre cria:
Teceu rede de cem malhas,
Ficou mais de malhas mil,
Numa noite de verão,
Sobre uma rocha molhada.
Na Tuonela ele há um velho,
217
Na Tuonela ele há um velho,
Feiticeiro com três dedos,
Que redes de ferro fia
E redes de cobre cria:
Teceu rede de cem malhas,
Fiou mais de malhas mil,
Na mesma noite de estio,
Na mesma rocha molhada.

De Tuoni filho com dedo


Encarquilhado e de ferro,
Da rede espalha as cem malhas
Sobre o rio da Tuonela;
Através e de traves
E a todo o comprimento,
Pra Vaino não escapulir,
Pró de Uvanto não fugir
Nunca, nunca neste mundo,
Nem que as pintas ganhem dentes,
Das terras da Tuonela,
Da casa eterna de Mana.

Firme velho Vainamoinen


Disse um dito e assim falou:
"Será esta minha ruína
E meu dia de desgraça,
Nas moradas de Tuonela,
Nas vis casas da Manala?"

Então mudou sua forma,


Tornou-se algo diferente;
Foi como algo preto ao mar,
Como lontra pelos juncos,
De ferro cobra coleando
Ou licanço rastejando
Pelo rio Tuonela,
Por essa rede de Tuoni.
218
Por essa rede de Tuoni.

De Tuoni filho com dedo


Encarquilhado e de ferro,
Andou de manhã bem cedo
A inspeccionar a rede:
Lá encontra cem salmões,
Mais de mil miúdos peixes,
Mas não acha Vainamoinen,
Não achao o velho de Uvanto.

Quando o velho Vainamoinen


Voltou do reino de Tuoni,
Falou com estas palavras,
Proferiu este discurso:
"Nunca, nunca, Deus Poderoso,
Nunca deixes um mortal
Viajar à terra de Mana,
Chegar ao reino de Tuoni!
Muitos foram lá chegados,
Mas escassos retornados,
Da terrível Tuonela,
Da sempiterna Manala."

Mais acrescentou eles estas,


Proferiu e disse assim,
Para a geração crescente,
Para esse povo emergente:
"Oiçam bem, filhos dos homens!
Nunca, nunca neste mundo
Façam mal a inocente,
Magoem quem não tem culpa:
Recompensa será paga
Na terrível Tuonela!

"Aí moram os culpados,


Aí jazem pecadores,
219
Aí jazem pecadores,
Em camas de pedra quente,
Em rochedos flamejantes,
Baixo a cobertores de vermes,
De sujas cobras de Tuoni."

220
XVII
Vainamoinen e Antero Vipunen

Não achou o velho Vaino


As magias que precisa...
Na escura casa de Tuoni,
No reino eterno de Mana.
Então pensa e considera,
Mão na cara, ele pondera
Onde achar essas palavras,
Onde arranjar tais magias.

Então encontra um pastor


Que lhe diz estas palavras:
"Ganharás palavras cem
E mais de mil versos magos
Daquele Antero Vipunen,
De sua boca e barriga;
Mas é preciso lá ir,
Tens de escolher o caminho.
Não é viagem muito boa,
Mas também há bem pior:
Primeiro tens de correr
Sobre agulhas de mulher;
Depois tens de caminhar
Sobre a ponta de uma espada;
E mais tens que atravessar
Pelo fio de uma acha de homem."

Firme velho Vainamoinen


Mesmo assim queria ir.
À oficina correu
E disse ele estas palavras:
"Ó Ilmarinen, ferreiro!
Forja sapatos de ferro
E forja luvas de ferro;
221
E forja luvas de ferro;
Faz de ferro uma camisa,
Faz grande bastão de ferro,
Faz-me um ferro, que eu pago,
E põe aço no seu cerne,
Põe-lhe ferro a toda a volta.

"Parto pra arranjar palavras


Pra buscar uns cantos magos,
Boca de Antero Vipunen."

E o Ilmarinen ferreiro
Disse um dito e assim falou:
"Vipunen há muito é morto,
Antero há muito finou,
Deixou de pôr armadilhas,
Deixou de enredar ciladas,
Dele não esperes palavras
Nem sequer meia magia."

Firme velho Vainamoinen


Ainda assim não desistiu:
Andou leve por um dia
Sobre as pontas das agulhas;
De coração leve noutro
Sobre as pontas das espadas;
Terceiro em grandes passadas
Sobre os fios de um machado.

Está p versado Vipunen


Cheio de antiga magia,
Com suas runas enterrado,
Dormindo com seus segredos.
Crescia-lhe faia ao ombro,
Vidoeiros das sobrancelhas,
Da ponta do queixo amieiro,
Na sua barba salgueiro;
222
Na sua barba salgueiro;
Da sua testa abeto vem
E dos seus dentes pinheiro.

Chega agora Vainamoinen,


Saca a espada, pega o ferro
Da sua bainha de pêlo,
Do seu cinto em coiro feito.

Deita abaixo a faia ao ombro,


Vidoiros das sobrancelhas,
Da ponta do queixo amieiro;
Da barba corta o salgueiro,
Da testa corta o abeto
E dos dentes o pinheiro.

Enfia o bastão de ferro


Pela boca de Vipunen
Entre as gengivas ridentes,
Entre os maxilares trementes
E para o despertar grita:
"Escravo do homem, acorda
De teu sono subterrâneo,
Desse teu tão longo sonho"

Logo o versado Vipunen


Do seu sonhar acordou,
Sentiu toque agoniante,
Sentiu toque devastante.

Mordeu o bastão de ferro,


Trincou esse ferro duro,
Mas não consegue partir
Nem comer caroço férreo.

Esperava o velho Vaino


Ao lado da boca aberta
223
Ao lado da boca aberta
E o pé destro lhe escorrega,
E o pé canho lhe desliza
Aos maxilares do gigante,
Para a boca de Vipunen.

Logo o versado Vipunen


Abriu sua boca mais,
Alargou os maxilares;
Engoliu homem e espada;
Deglutiu o velho Vaino
Para dentro da garganta.

Logo o versado Vipunen


Estes ditos pronunciou:
"Já comi eu várias coisas:
Como cordeiro, cabrito,
E comi vaca machorra,
E comi varrão do mato,
Mas nunca nada qual isto,
Nunca tal coisa provei!"

Firme velho Vainamoinen


Foi então que lhe disse assim:
"Ora é talvez minha ruína,
Chega inesperado meu fado
Na caverna deste diabo,
Em cova de alma penada."

Então pensa e considera


Como ser, como viver,
Tem no seu cinto uma faca,
Cabo em vidoeiro enrolado
Do qual um barco constrói,
Fabrica com seu saber.
Rema e desliza ao de leve
De ponta a ponta das tripas,
224
De ponta a ponta das tripas,
Todos os estreitos rema,
Todos os cantos visita.

Velho e versado Vipunen


Com ele não se quis ralar
E assim foi que o velho Vaino
Em ferreiro se tornou,
Fez-se moldador de ferro.
Fez da camisa oficina
Fez das suas mangas fole,
Casaco em assoprador
Calças em tubo de fole,
As meias fez em boquilhas;
Serve o joelho de bigorna,
Serve o ombro de martelo.

E martelou fortemente,
E trabalhou lestamente
Toda a noite sem parar
E o dia sem respirar
No ventre do rico em runas,
No peito do grande mago.

Logo o versado Vipunen


Isto assim pôs em palavras:
"Quem és tu entre os teus homens,
Quem és tu entre o teu povo?
Já comi mais de cem tipos
Destruí mais de homens mil,
Mas nunca outro como tu!
Estão-me a vir brasas à boca,
Tenho na língua tições,
Na goela escória de ferro.

"Vai-te embora, coisa estranha,


Foge, criatura malvada,
225
Foge, criatura malvada,
Antes que a mãe te procure,
Que te tente achar parente,
Se eu contar à tua mãe,
Se à parente eu for dizer,
Será duro pra mamã,
Doloroso pra parente,
Que o filho tão mal se porte,
Que a criança tão mal aja.

"Estou agora sem saber


E nem sequer compreendo
Donde diabo, me agarraste,
Donde, peste, me vieste
Pra me morder e roer,
Pra trincar e mastigar.
És doença do Criador,
Morte trazida por Deus?
Ou és tu por homem feito,
Por outrem feito e criado,
Aqui vindo por um preço
Ou com dinheiro comprado?

"Se és doença do Senhor,


Morte trazida por Deus,
Pois que o Senhor me proteja,
Que em Deus tenha confiança:
Não despreza Deus o bom
Nem destrói justo o Senhor.

"Mas se és tu por homem feito,


Mal causado por outrem,
Tua gente encontrarei
E o lugar onde nasceste.

"Antes males me atacaram,


Males magos me vieram
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Males magos me vieram
Dos reinos de feiticeiros,
Dos prados dos cantadores,
Das casas dos malfeitores
E das planícies dos magos
Das covas de almas penadas,
Debaixo da terra firme,
Das moradas dos finados,
Das regiões dos falecidos,
Das dunas escorregantes,
Dos terrenos derrocantes,
Dos cascalhos chocalhantes,
Das areias tilintante,
Dos fundeiros afundados,
Dos pauis cheios de musgo,
Dos fundidos tremedais,
Dos jorrantes mananciais,
Das cavernas do Dem+onio,
De cinco desfiladeiros,
Das encostas de montanhas
Com cumes feitos de cobre;
Dos pinheiros sussurrantes,
Dos abetos murmurantes,
Das copas de pinho podres,
Dos topos de abetos podres,
Donde ganem as raposas,
Donce os alces são caçados,
Dessas cavernas rochosas
Donde vão espreitando os ursos;
Dos confins da Pohjola,
Das lonjuras da Lapónia,
De ermos onde nada cresce
De terrenos nunca arados
E dos campos de batalha,
Campos onde os homens morrem,
Prados de erva murmurante
E de sangue fumegante,
227
E de sangue fumegante,
Da face do mar azul,
Do rosto do oceano,
Da lama preta do mar,
Da fundura de mil braças,
Das torrentes mais ferozes,
Dos remoinhos fervilhantes,
Das cataratas da Rutja,
Onde a corrente é mais forte,
Do mais afastado céu,
Pra lá das nuvens sem chuva,
Do trilho do vento verno,
Do berço das tempestades.

"Dessas zonas viajaste,


Vieste daí bruxedo,
Ao meu coração sem culpa,
Ao meu inocente ventre,
Pra roer e devorar,
Pra me morder e rasgar?

"Vai-te perro do Demónio,


Submisso mastim de Mana,
Sai do meu corpo, diabo,
Sai-me do fígado, ó peste!
O coração não me roas
E meu baço não mais raspes;
Meu estômago não estiques,
Meus pulmões não mais me torças;
Não me mordas o umbigo
Nem me agarres a virilha;
Pára de esfolar-me a espinha,
De me esburacar os lados.

"Se eu não for homem que chegue,


Cantarei homens melhores,
Para esta praga expulsar,
228
Para esta praga expulsar,
Para este horror extirpar.
Da terra erguerei espíritos,
Fêmeas e machos dos campos,
Os espadachins do solo,
Os cavaleiros da areia,
Como meu poder e força,
Como suporte e defesa,
Neste árduo sarilho,
Nesta tão grave agonia.

"Se nem isso obedecer,


Nem um pouquinho ceder,
Ergue, bosque, do teu povo,
Zimbral, chama tua gente,
Pinheiral, chama a família,
Brejo, chama as tuas crias,
Cem homens de espada à cinta,
Mil guerreiros couraçados,
Pró demónio erradicar,
Pró maldoso ser esmagar.

"Se nem isso obedecer,


Nem um pouquinho ceder,
Ergue-te da água, senhora,
Dama das vagas coberta,
Com fina saia do charco,
Bela emergindo da lama,
Pra ser poder do pequeno,
Pra ser força do humilde,
Pra que sem razão ou doença
Não me comam nem me matem.

"Se nem isso obedecer,


Nem um pouquinho ceder,
Vem, dona da Natureza,
Dama de áurea beleza,
229
Dama de áurea beleza,
Tu, mais velhas das mulheres,
Tu, que entre as mães és primeira,
Vem saber as agonias,
Vem banir estes maus dias,
Tira esta minha aflição,
Leva esta minha doença."

"Se nem isso obedecer,


Nem um pouquinho ceder,
Ukko, em teu arco do céu,
Aureolado de trovoada,
Vem aqui quando és preciso,
Anda cá quando és chamado,
Pra me livrar de trabalhos,
Pra me tirar as maleitas,
Com tua espada afiada,
Com teu gume faiscante.

"Prepara-te agora, ó monstro,


Pra fugir, ó mal da terra.
Não há cá lugar pra ti,
Mesmo se tal precisares;
Leva daqui a morada,
Instala o covil mais longe
Nas terras do teu senhor,
Nas pegadas da senhora.

"E quando tu lá chegares,


O teu destino alcançares
Nas terras de quem te fez,
No lugar do teu senhor,
Dá sinal de que vieste,
De chegar secreto aviso:
Ribomba como trovão,
Como relâmpago estala.
Chuta do quintal a porta,
230
Chuta do quintal a porta,
Escancara as persianas,
Entra pela casa adentro,
Como tormenta de neve;
Põe teu é firme lá dentro,
Por calcanhar e jarreta;
Puxa os donos dos seus cantos,
Puxa as donas das ombreiras;
Vaza olho ao senhor da casa,
Esmaga a cabeça à senhora,
Torce-lhes todos os dedos,
Faz-lhes rodar as cabeças.

"E se isso não for que chegue,


Voa à estrada feito galo,
Pró quintal feito galinha,
Direito ao monte de estrume.
Solta o gado do curral,
Enfia chifres no estrume,
Puxa-lhes pró chão as caudas,
Faz-lhes os olhos virar
E os pescoços partir.

"Sejas doença trazida


Pelo vento ou pela cheia,
Vinda com o vento verno,
Conduzida por ar gélido,
Segue o trilho ao vento frio,
Rasto de trenó do verno,
Sem sob árvores sentares,
Sem sobre amieiro folgares,
Rume ao cume da montanha,
Ao topo dessa de cobre,
Para o vento te embalar,
O verno de ti tratar.

"Mas se vieste tu dos céus,


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"Mas se vieste tu dos céus,
De trás das nuvens sem chuva,
Vai de volta para os céus,
Sobe para o firmamento,
Às nuvens de gentis gotas,
Às estrelas cintilantes,
Para como fogo arderes,
Pra faúlha fulgurares,
No caminho rumo ao Sol,
Na estrada que leva à Lua.

"Se és de água praga nascida,


Nas águas do mar trazida,
Volta à água gentilmente,
Vai-te pra baixo das ondas
Entre os castelos lodosos,
Pelos montes aquosos,
Pra que sejas balançado
Na rebentação pulsante.

"Se vieres de urze da tumba,


Onde os mortos sempre dormem,
Volta pra donde vieste,
Prás covas de almas penadas
Sob a terra lamacenta,
Para os solos movediços
Em que se perdem as gentes
E se afundam nações fortes.

"Se, patife, dessas vieres,


Covas do Demo dos bosques,
Dos antros entre os pinheiros,
Dentre os altos velhos pinhos,
Pra lá te ordeno que vás,
Volta ao covil do Demónio,
Vai-te aos antros nos pinheiros,
Entre os altos velhos pinhos,
232
Entre os altos velhos pinhos,
Pra lá viveres solitário,
Até que os teus solos se eivem,
Fungos nas paredes trepem,
Até que desabe o tecto.

"Pois vou-te eu exorcizar,


Malvado, vou-te enviar
Pró covil do urso velho,
Pra casa da velha ursa;
Pra os abismos profundos,
Para gelados atóis,
Prás areias movediças.
Pra mananciais transbordantes,
Para as lagoas sem peixe,
Bastantes falhas de perca.

"Se lá não achares lugar,


Então vou-te exorcizar
Para os confins da Pohjola,
Prás vastidões da Lapónia,
Para as clareiras sem moita,
Para as terras não aradas,
Onde não há Lua ou Sol
Nem há aurora no Leste.
Lá será bom pra ti estar,
Alegre pra ti andar;
Alces colgados das árvores,
Grandes renas abatidas
Há, pró faminto comer,
Pró carenciado trincar.

"Vou-te banir mais ainda,


Vou-te ordenar e mandar,
Lá prós rápidos da Rutja,
Pró remoinho fervente,
Por lá, onde as árvores caiem,
233
Por lá, onde as árvores caiem,
Pinhos rolam desterrados,
As raízes mergulhando,
Suas copas afundando.
Nada pra lá, traidor,
Pelos rápidos violentos,
Às voltas no mar aberto
E em águas estreitas mora!

"Se lá não achares lugar,


Então vou-te exorcizar
Para o rio negro de Tuoni,
Pró curso eterno de Mana,
Donde não te livrarás
Nunca, nunca neste mundo,
A menos que eu te liberte,
Que eu te decida soltar,
Pagando nove capados,
Todos filhos de uma ovelha;
Pegando nove vitelos,
Todos filhos de uma vaca;
E também nove potrinhos,
Todos filhos de uma égua.

"Se precisares de boleia,


Pedires corcéis de tracção,
Com gosto te acho boleia,
Com prazer te acho corcéis.
Tem o Demo um bom cavalo,
Crina-ruiva na montanha;
Salta fogo do focinho,
Suas narinas flamejam;
OS seus cascos são de ferro
E em aço construídos.
Pode montanhas montar,
Subir encostas em vales,
Com gonete experiente
234
Com gonete experiente
E cavaleiro exigente.

"E se isso não for que chegue,


Leva os esquis do Demónio,
Leva as raquetas do Diabo,
Leva os bastões do Malvado;
Nas terras do Demo esquia,
Erra os bosques do Diabo,
Corre as terra do Demónio,
Desce os trilhos do Malvado.
Se encontrares rocha na frente,
Que ela se esmague em pedaços;
Se houver pinho atravessado
No trolho, que parta em dois,
Se há topo no meio da estrada,
Atira com ele pró lado.
"Parte então, ó imprestável,
Faz-te ao caminho, malvado,
Antes do nascer do dia,
Antes que aurora lampeje,
Antes que o Sol de Deus se erga,
Antes do galo cantar.
Hora é de inútil partir
E do mau se pôr a andar,
Com luar pra alumiar,
Pró caminho te mostrar.

"Se acaso não desistires,


Não saíres, perro sem mãe,
Arranjarei presas de águia,
Dentes de um que suga sangue,
Garras de ave de rapina
Mais as presas de um falcão
Pra apanhar um tal canalha,
Pra sempre o biltre prender,
Que nem a cabeça mexa
235
Que nem a cabeça mexa
Nem respirar mais consiga.
"Antes o diabo partia,
Perdia-se o filho da mãe,
Quando a hora de Deus vinha
E a ajuda se mostrava;
Não vais tu, ó sem-mãe,
Não partes tu, ó aborto,
Não te somes, cão sem dono,
Não te sais, perro do Demo,
Com o findar dessa hora,
Com o sumiço da Lua?"

Firme velho Vainamoinen


Então disse estas palavras;
"É bom pra mim cá estar,
Agradável preguiçar,
Serve-me de pão teu fígado,
O teu ventre de acepipe,
Os teus pulmões de guisado,
Tua gordura de comida."

"Vou instalar a bigorna


Fundo no teu coração,
Meu malho bater com força
Nos teus pontos mais tenrinhos,
Por forma a que não te livres,
Nunca, nunca neste mundo,
A menos que ouça eu os cantos,
Que aprenda eu os bons feitiços,
Ouça eu runas que cheguem,
Milhares de receitas magas,
Que nenhum canto me escondas
Nem ocultes por magia;
Que na terra não se percam,
Mesmo se os magos morrerem."

236
Logo o versado Vipunen,
Esse velho rico em cantos,
Boca cheia de saber,
Peito cheio de poder,
Abriu seu baú de ditos,
Sua caixa de canções
Pra cantar bem boas coisas,
Cantar umas bem bonitas,
Cantos das origens fundas,
Cantos do início de tudo,
Que as crianças já não cantam,
Só os velhos os conhecem,
Nesta idade de maldade
Em que os tempos se terminam.

Canta encantos das origens,


Canto certos os feitiços,
Como quis o Criador,
Como disse o Poderoso,
Que o céu se criasse a si mesmo,
Que a água do céu se apartasse,
Da água a terra se formasse,
Da terra coisas crescessem.

Cantou o nascer da Lua


E como foi o Sol feito,
O ar em pilares erguido,
E as estrelas no céu postas.

Logo o versado Vipunen,


Cantou parte cantou todo.
Nunca foi visto ou ouvido,
Nunca, nunca neste mundo,
Melhor cantor do que aquele,
Mago mais sábio que ele;
Da boca fugiam ditos,
237
Da boca fugiam ditos,
Da língua corriam frases,
Lestas quais pernas de potro,
Cascos de corcel veloz.

E cantou dia após dia,


Entoou noite após noite.
O Sol parou para ouvir,
E a Lua para olhar;
Fixaram-se ondas no mar,
Param vagas na baía,
Deixam de correr torrentes;
De Rutja, rápidos ferozes,
De Vuoksim quedas velozes,
Paralisa-se o Jordão.

Então velho Vainamoinen,


Tendo ouvido os cantos todos
E aprendido encantos baste,
Colectado os bons feitiços,
Preparou-se pra partir
Da boca desse Vipunen,
Do ventre do rico em versos,
Do peito do sábio mago.

Disse o velho Vainamoinen:


"Ó tu, Antero Vipunen,
Podes abrir mais a boca,
Esticar teus maxilares,
Pra que do teu ventre eu saia
E a minha casa volte."

Logo o versado Vipunen


Pronunciou estas palavras:
"Muito como e bebi,
Mil coisas eu consumi,
Porém nunca tal comera,
238
Porém nunca tal comera,
Um tal qual o velho Vaino,
Bem fizeste tu em vir,
Melhor farás tu em partir!"

Então Antero Vipunen


Riu-se, mostrando as gengivas,
Boca enorme escancarou,
Os maxilares esticou.
Logo o velho Vainamoinen
Saiu da boca do sábio,
Do ventre do rico em versos,
Do peito do grande mago.
Lesto desliza da boca,
Salta e rola pela urze,
Como um esquilo doirado,
Como marta de áureo peito.
E daí pôs-se a caminho,
Chega enfim à oficina.
Disse o ferreiro Ilamarinen:
"Achaste os ditos que querias,
Aprendeste os bons encantos,
Pra ajustar lados ao barco,
Juntar as tábuas da popa,
Mastros pôr em ré e proa?"

Firme velho Vainamoinen


Proferiu estas palavras;
"Tenho agora cem encantos,
Mil feitiços de magia,
Cantos secretos eu sei,
Os mais ocultos feitiços."

Ao estaleiro foi depressa,


Pôs-se logo a trabalhar
Pró seu barco completar;
Tábuas dos lados juntou,
239
Tábuas dos lados juntou,
Popa a ponta terminou
E mais a proa montou;
Fez o barco sem martelo,
Sem remover uma lasca.

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