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QUERO SER LEANDRO

KARNAL
Ex-jesuíta, pianista nas horas vagas, professor e celebridade na internet. O
pensador Leandro Karnal é o entrevistado da vez nas Páginas Negras da Trip

Leandro Karnal está habituado com plateias, acostumado a entretê-las, a quase hipnotizá-
las. Suas ideias alcançam diariamente dezenas de alunos nas turmas da Unicamp, milhares
de pessoas em palestras por todo o país e ultrapassam a fronteira do milhão de espectadores
no Facebook e em programas de televisão como o Café filosófico, da TV Cultura.

Karnal é um fenômeno erudito pop da atualidade. Aos 53 anos, o especialista em história da


América e autor de sete livros é um pensador com uma didática ímpar: relaciona La Boétie
com 50 tons de cinza e explica a visão de Sartre sobre a nadificação da vida com uma
metáfora sobre pizzas. "Eu gosto de dizer coisas que tirem as pessoas das zonas de conforto
mentais", provoca. "Ao escrever, ao dar aula, me vem a ideia de desinstalar as pessoas.
Acredito muito nessa transformação."

Em tempos de intensa polarização, Karnal vai ao ringue digital sem medo do confronto.
Alfineta, provoca, argumenta e aponta caminhos, sempre de forma inclusiva e
desassoberbada. E se aventura por temas complexos e fundamentais como a felicidade, a
liberdade e a democracia. Frequentemente identificado com o pensamento "de esquerda",
Karnal costuma explicar que posição política não é uma questão absoluta, mas relacional.
Se comparado com o pensamento da extrema direita – que, segundo o professor, vem
ganhando visibilidade com a internet, embora sempre tenha existido –, suas ideias sobre
direitos humanos certamente o colocam do lado oposto. "Sempre achei que minha postura
política fosse de centro, continuo com essa ideia."
Alunos do colégio FAAP no final dos anos 80. Karnal está sentado no primeiro degrau à
direita, com gravata abertaCrédito: Arquivo pessoal
Noviço rebelde
Gaúcho de São Leopoldo, cidade da Grande Porto Alegre com tradição alemã, Karnal, o
terceiro de quatro irmãos, dedica boa parte da sua erudição à influência do pai, um
advogado, político, professor de latim, inglês e português que morreu em 2010. Da mãe, se
recorda da dedicação profissional à família. "Meu avô bateu inclusive com chicote no meu
tio… Então minha mãe considerava que a diferença entre a geração dela e a nossa, em que
podíamos conversar à mesa, é que havia essa liberdade enorme." Das histórias da infância
se recorda, por exemplo, de seus primeiros dias de aula, quando se recusou a voltar para
casa depois da escola. Com o humor ácido que é um traço de sua presença, dispara: "Isso
deve pesar contra a biografia da minha mãe, quer dizer, o colégio de freiras era mais
agradável do que meu próprio lar. Me grudei na irmã Antônia e quase arranquei sua roupa
porque não queria ir embora".

Católico praticante em toda a infância e parte da juventude, Karnal foi jesuíta e parte de sua
formação em filosofia foi feita na Companhia de Jesus. Depois, concluiu os estudos na
Unisinos. Acostumou-se aos pai-nossos e ave-marias até o dia em que não fez mais
cabimento. "Não foi um clique, uma iluminação, não foi um momento. Não caí do cavalo
indo pra Damasco, mas deixou de fazer sentido." Aos 24 anos, trocou o Rio Grande do Sul
por São Paulo, onde fez doutorado na USP e começou a lecionar em escolas como o recém-
inaugurado Colégio FAAP. E não parou mais. A seguir, o professor fala sobre sua vida
pessoal e sua carreira, crise política, haters, fãs, vaidade e explica o ônus e o bônus de ser
Leandro Karnal.

Trip. Leandro Karnal é um sucesso nas redes sociais. O que atrai seus
seguidores?Leandro Karnal: Todas as pessoas que usam ferramentas midiáticas têm um
denominador comum: uma aspiração a um Narciso projetado. Todos buscam a
comunicação, querem essa importância. Eu gosto de dizer coisas que tirem as pessoas das
zonas de conforto mentais e indico obras que levem as pessoas a pesquisar por si. Quando
eu indico que as pessoas escutem o "Concerto em lá menor" de Schumann, que morreu
louco, e digo que sua esposa Clara Wieck arrastava asa para Brahms, eu tô tentando puxar
pra um campo que geralmente a televisão não puxa, que os jornais não puxam. Eu tô
tentando fazer com que as pessoas descubram essa melodia fabulosa. Há um diálogo entre a
vaidade de quem assiste e de quem posta. Eu acho o seu texto muito legal e, porque eu
concordei, tô me elogiando. Significa que só existe um "eu" que mede esse mundo e este é o
meu.

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Como você lida com haters? Ou com gente que te acusa de receber dinheiro do PT, de
ser marxista... Dependendo do inimigo que você faz, é uma honra. Acho que se você
estiver na França invadida pelos nazistas e for da Resistência, ter o ódio dos invasores é
legal. Não tê-lo seria um defeito de caráter. Eu não acompanho essas críticas. Tentei ouvir
algumas, mas como só tinha adjetivos achei que não cresceria nada, então parei. Nunca
chegou a mim uma análise tranquila de alguém dizendo: "Discordo do seu ponto de vista".
Essa acusação de ser marxista é falsa, porque eu não sou marxista, nem metodologicamente
nem como identidade política. Marx é um autor insuperável no Ocidente, como Santo
Agostinho, Engels, Adam Smith, como Stuart Mill, como Montesquieu. Eu li Marx
sistematicamente e, nem na época em que isso era moda e quase obrigatório, eu fui
marxista. Também nunca recebi dinheiro do PT. Como eu trabalho numa Universidade
Estadual Paulista, que é administrada pelo PSDB, a rigor eu poderia ser acusado
indiretamente de receber deste partido, mas eu acredito que recebo do imposto do povo
paulista. O mais preocupante é que dizer "fulano é marxista" não deveria ser um
xingamento. Ter ideias não é um xingamento.

Acima, à esq., no aniversário de 1 ano com a mãe, o pai e a irmã Rose; abaixo, no Colégio
São José, em São Leopoldo; ao lado, no colégio jesuíta em CuritibaCrédito: Arquivo pessoal
Com quem você se alinha politicamente? Sempre achei que minha postura política fosse
de centro, continuo com essa ideia. Mas postura política é posicional, e não absoluta.
Comparado com algumas pessoas, eu me torno de esquerda. Sou alguém que acha que
existe uma cultura de estupro no Brasil, que não deve haver pena de morte, que aborto deve
ser uma questão discutida essencialmente por mulheres. Quando alguém me diz que não há
cultura do estupro e que isso é coisa de "feminazi", aí eu me torno de esquerda. Sou uma
pessoa perfeitamente adepta da propriedade privada, gosto da ideia de eleições regulares,
livres e em ambiente pluripartidário, gosto do império da lei, acho que todas as pessoas têm
direito de expressar suas opiniões, inclusive as opiniões idiotas e limitadas, já que liberdade
de expressão não é liberdade da minha expressão.
Há algo de bom nessa intensa polarização que vivemos? A polarização fez aumentar a
consciência das pessoas. Ela é notável a partir de 2013 e cresceu nos últimos três anos.
Grupos estão sendo desfeitos, amigos estão se separando, porque identificam no outro um
inimigo mortal por pensar diferente – este é o lado mais aparente. Não tenho certeza se
realmente pensam diferente. No século 19 se dizia que nada era mais conservador do que
um liberal no poder. Não vejo uma diferença brutal de método, por exemplo, nos governos
FHC e Lula, porém as pessoas veem em um o perfeito antípodo do outro, sua oposição
imagética perfeita. É sinal de que estamos buscando identidade nesse momento, e ela se dá
pela constituição de um inimigo. Isso não é novidade. O que também aconteceu foi o
ressurgimento de uma coisa que talvez nunca tenha desaparecido, mas que vivia nas
sombras, que é a extrema direita.

O que esse ódio "coxinha x petralha" diz sobre a gente? Pegando uma ideia que acabei
de ler no livro do Leonardo Sakamoto, O que aprendi sendo xingado na internet, "o ódio é
um lugar quentinho" – é uma expressão dele. E sendo um lugar quentinho, ele é uma
posição fácil de ser ensinada. Por que é que o Brasil não vai pra frente? Cada uma das
metades do Brasil tem sua resposta clara pra isso. Nenhum dos dois lados identifica no
outro a sinceridade de um brasileiro querendo a melhoria do país. Se o outro é o puro mal e
eu sou o bem, isso me dá uma posição muito confortável. Em segundo lugar, a coisa que
mais provoca identidade é o ódio. Eu não sou exatamente – isso é uma metáfora –
corintiano, eu sou um antipalmeirense. Eu não sou exatamente um hétero, mas eu sou um
antigay. Eu não sou exatamente um paulista, mas sou um antinordestino. A negação pelo
outro é absolutamente tranquilizadora, porque se eu tiver que reconhecer a igualdade, a
isonomia, vou ter que entrar num campo discursivo muito complexo e inacessível pra
maioria.

Estamos mais agressivos, mais violentos? Nós sempre fomos violentos, a história do
Brasil é de extrema violência. As pessoas se horrorizam com a ação do Estado Islâmico e eu
venho de um estado que fez uma revolução federalista no início da República cujo
codinome era Revolta da Degola, porque os inimigos tinham a cabeça arrancada, aquilo que
hoje a gente olha no Iraque e diz "que horror, que barbárie". A destruição de Canudos, o
bombardeio com aviões às aldeias do Contestado, no oeste de Santa Catarina e do Paraná, o
uso de deportação pro Acre, como no caso do Mestre Sala dos Mares, líder da Revolta da
Chibata, as técnicas de tortura e violência que têm uma parte e origem na nossa tradição
escravista... O que acho mais perigoso hoje é que a violência e a caracterização do mal se
dão em nome do bem, tal como ocorreu na Inquisição e no Nazismo. Dirigir todo o ódio
contra o outro faz com que eu não precise ficar pensando se sou canalha ou uma pessoa
limitada. Ou se a minha vida medíocre e imbecil não encontra apenas no ódio uma
iluminação. Raciocinar é difícil. Adjetivar é fácil, insultar é imediato.

E qual é o papel da internet nessa história? O empoderamento que a internet dá ao


indivíduo fazendo-o crer que é um ser autônomo e cheio de ideias respeitáveis é uma
armadilha. Cada vez mais as pessoas acham que expressar ideias é algo absolutamente
indispensável e que todos devem fazer.

Qual é a visão do professor de história sobre a atual crise econômica, política e social
do país? Crises são cíclicas, tanto no capitalismo em geral quanto no Brasil em particular.
São crises de expansão e retração que dizem respeito a uma dinâmica interna e a uma crise
mundial. Elas já existiram antes, inclusive com alguns aspectos mais graves. Na crise atual
havia um tal descrédito com o Estado brasileiro que talvez as Olimpíadas tenham servido
pra mostrar que, sim, somos capazes de, em meio a problemas, organizar um evento de
porte mundial. Eu fui um dos que talvez tivesse confundido ineficácia do Estado com a da
nação brasileira. Quando os americanos falaram do assalto, nós acreditamos que tivesse
ocorrido, porque isso tudo faz parte de um discurso narrativo.

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Parte do empresariado e da classe política brasileira parece ter dificuldade em olhar


para o país de forma menos individualista. Há algum tipo de razão histórica que ajude
a entender essa questão? Isso aí se reclama desde o período colonial. Os nossos primeiros
cronistas, ao analisarem a Bahia, já diziam que o brasileiro era pouco repúblico. Ou seja,
pensava e agia pouco em função da questão pública. Num país acostumado longamente que
ao Estado cabe espoliar
o indivíduo e ao indivíduo cabe, mediante o jeitinho, escamotear o máximo possível desta
espoliação, cria-se uma relação de duplo merecimento. Em que o Estado pensa em si e em
seu projeto de poder, e em que o indivíduo pensa em si e em seu projeto de sucesso. O que
unia os comunistas e os militares, apesar da perseguição, é que ambos tinham a crença no
Estado. O que une hoje anarquistas e liberais é que ambos desconfiam desse Estado. Não
conseguimos formar um Estado de bem-estar social, não conseguimos, certamente, formar
um Estado liberal e obviamente, apesar da histeria da direita, não tem nada de socialista no
Estado brasileiro.

Ao piano, em 2016; à dir., acima, com o afilhado Davi Karnal; abaixo, com a mãe Jacyr, e a
sua irmã Rose, em 2015Crédito: Arquivo pessoal
Por que os brasileiros não conseguem se unir em um projeto para transformar o
país? Existem pessoas empenhadas, mas não temos mais porque o aqui e agora, hic et nunc,
é muito forte para todos nós. É uma maneira muito clara e direta de você conseguir a
solução. A minha necessidade material e imediata é superior ao planejamento de médio e
longo prazo. Sobreviver é mais imperativo e categórico do que gerir o bem público.
Sobrevivendo, é melhor tratar bem à minha família do que ao coletivo, e assim por diante.
O prazo está muito curto hoje. Para a maioria da população brasileira, encerrar o mês sem
estar muito negativo financeiramente, chegar até as férias, ou conseguir acabar de pagar
uma conta são os prazos reais. Falta-nos planejamento biográfico, existencial e material.
Somos um país sem orçamento.

Esta é uma edição que fala sobre causas. Qual é a sua? Eu não sei se tenho essa clareza.
Sei as coisas que mexem comigo, uma delas diz respeito a ser um bom professor. Talvez a
minha vaidade esteja nessa causa. Ao escrever, ao dar aula, palestra ou entrevista, ao
escrever nos jornais, me vem a ideia de desinstalar as pessoas. Acredito muito nessa
transformação. Então a minha causa é a educação: eu sou um professor público.

E você é um bom professor? Eu me tornei um professor melhor quando decidi que só


poderia oferecer o prato, não poderia forçar a comer. Quando dava aula no ensino médio, na
FAAP [quando tinha em torno de 30 anos], eu dava o prato e forçava a comer. Isso causava
efeitos positivos em alguns e resistência em outros. Hoje o meu Narciso é um pouco mais
domado do que quando eu era mais jovem. Ofereço o melhor prato possível; o que vai ser
aproveitado dele foge ao meu controle.

Você se coloca muito nessa posição, como uma porta aberta para o acesso das pessoas.
Qual é a sensação de saber que alguém começou a ler Shakespeare – ou Dostoiévski ou
Nietzsche – depois de acompanhar uma dissertação sua? É similar a um atleta que ganha
uma medalha de ouro. Quer dizer, eu fiz pra isso. Foi uma luta para que chegassem a essas
coisas. Não tem nenhum demérito nas coisas que vou dizer agora: eu sou muito mais um
professor do que um intelectual – apesar de ser bem difícil definir onde termina uma coisa e
começa a outra. A grande vocação que tenho é a de abrir as pessoas para essa descoberta
que me transformou. A partir de um Café filosóficoalguém ler o Hamlet, a partir de uma
fala d’ Os irmãos Karamazov em que o cardeal apresenta a Jesus o futuro do cristianismo...
A partir disso, fazer a pessoa pensar da forma mais ampla e questionadora possível...

Quando e por que você saiu da sua cidade natal, São Leopoldo? Eu fiz o curso de
história lá. Interrompi o curso para ir a Companhia de Jesus, fui jesuíta, depois voltei e
concluí a faculdade. Comecei a dar aula em colégio estadual no Rio Grande do Sul e na
universidade aos 23 anos. Tinha uma vida estável, o dinheiro que eu ganhava, morava na
casa dos meus pais. Mas veio a chance de fazer a pós-graduação e decidi – talvez por
vaidade, talvez por desafio – que queria tentar longe dali. E optei por vir para a USP, há 30
anos. Mas você não faz uma escolha porque "dali a dez anos acontecerá algo". Tomei uma
decisão de fazer uma pós em um lugar que eu considerava maior e melhor. Imaginar o que
aconteceria depois não existia. Ao longo da minha vida eu considerei muitas carreiras, a de
músico, por exemplo. Aconteceu que essa acabou dando certo.

Como foi sua chegada a São Paulo? Aqui comecei a carreira absolutamente de baixo,
porque de professor universitário e estável no Estado eu fui dar aula num supletivo no
Largo da Batata, para uma quinta série no Colégio Sion e fui morar numa pensão na rua
Bahia [em Higienópolis], que, apesar do endereço nobre, era uma pensão! Cheguei a São
Paulo cheio de energica, com pouquíssimo dinheiro no início. Acabei entrando para o
recém-fundado Colégio FAAP, onde fiquei por uma década.

De que maneira a experiência de passar pela Companhia de Jesus foi importante para
você? Eu fui jesuíta, fiz o noviciado, minha filosofia é jesuítica. Aprendi muito e devo uma
parte importante daquilo que sou como intelectual à Companhia de Jesus, uma parte
importante ao meu pai e outra ao Colégio São José. Os jesuítas também me educaram na
universidade, porque a Unisinos, onde eu fiz a graduação em história, é uma instituição
jesuítica. A grande subversão daquela época pra hoje é que a ideia religiosa deixou de fazer
sentido para mim. Não foi um clique, uma iluminação. Não caí do cavalo indo pra
Damasco. Mas deixou de fazer sentido, começou a parecer que não tinha ninguém do outro
lado. Foi um processo bastante natural, não foi angustiante. Primeiro é uma falta de hábito,
você deixa de frequentar a missa. Depois você vai descobrindo que ficaram coisas em você
mesmo que tenha deixado de ser religioso. É um processo longo. Mas tenho pela religião
uma enorme admiração. Não acho que a religião seja culpada ou inocente de nada ou mais
do que são todas as coisas.
Você fala do ideal de felicidade relacionado à família e também que a família é um dos
principais motivos de infelicidade. Sua família levou você ao divã também? Sem
dúvida. Não vou ao divã por causa da taxa de câmbio do dólar. Mas é uma dialética. Como
a família é central, ela também provoca grandes alegrias. Leva um tempo pra você perceber
que família é afeto e desafeto permanentes. E ao formar, a família também deforma. É
quase Deus e o Diabo reunidos na mesma questão. Não é à toa que as sociedades que
pressupunham uma socialização maior, como foi o caso dos kibutz, em Israel, dissolviam
um pouco a ideia de família, as crianças eram criadas por educadores e dormiam separadas
das casas dos pais. E que Jesus, no Evangelho, a todo momento mete o pau na família.
Porque a ideia do amor cristão é o amor universal. Se você amar mais seu pai, sua mãe e
seus filhos do que ao grupo, você deixa de ser um cristão, afinal os pagãos também amam
aos seus filhos, as serpentes também amam aos seus filhos. Sim, família é a causa de quase
toda disfunção e também de quase toda estabilidade afetiva. O buraco de não ter sido amado
por pai e mãe é um buraco muito difícil de preencher.

Você faz análise? Terapia desde os 18. Com o Contardo [Calligaris] já faz três ou quatro
anos.

O terapeuta tem prazo de validade? Tudo tem prazo de validade, porque tanto o que eu
posso dizer quanto o que ele pode dizer tem limite. É como eu digo aos meus alunos em
orientação: "Orientação e casamento devem ser de três a quatro anos, porque depois disso
não tem mais nada pra dizer".

Acima, à esq., em Fernando de Noronha (2015); abaixo, Karnal na África do Sul (2016); ao
lado, visita a uma escola em Myanmar (2015)Crédito: Arquivo pessoal
Você já disse que, quando alguém se casa, é como se virasse para a Gisele Bündchen
ou Brad Pitt e dissesse: "Ó, não vai mais rolar". Você já foi casado? Eu já fui casado
duas vezes, quer dizer, em relações prolongadas sem casamento formal. E o significado
dessa frase é o seguinte: toda a escolha tem um ônus e a gente só quer o bônus da escolha.
O contexto da frase é suscitar nas pessoas que a escolha tem um ônus. Não é o discurso
meritocrático liberal de que tudo que você faz tem um custo. Eu olho o resultado e imagino
que é bom ter aquele resultado, não olho o custo. Há um ônus em estar solteiro e há um
ônus em estar casado e quando você consegue dizer qual é o ônus e o bônus que você quer
de cada uma dessas relações você dá um salto muito grande. É a defesa particular que faço
hoje, aos 53 anos. A opção tem que ser clara pra você. Então, quando você casa, case.
Quando você não casa, não case.

LEIA TAMBÉM: Quem é Contardo Calligaris

Mas não é quase paralisante viver a vida sob este dilema? Você nunca terá certeza de
um caminho certo. Nietzsche diz, e eu adoro, que praticamente todos os caminhos darão
errado; portanto você tem que achar um caminho que dê errado, mas que a caminhada cause
mais prazer que dor. Todos os caminhos são o fracasso. Há uma coisa de Sartre que
influenciou muito a minha juventude, que é quando ele explica que a morte nadifica – nem
existe essa palavra em português – a vida. Torna-a destituída de sentido. E tornar a vida
destituída de sentido nos dá uma liberdade enorme.

Liberdade é uma ideia enganosa, um produto que vende, mas que não consegue
entregar? Isso é difícil para um historiador dizer, mas para o mundo entre a essência e a
aparência, a diferença é muito pequena. Em outras palavras, placebo é científico. Acreditar
na liberdade ou exercer a liberdade... Distinguir entre crime doloso ou culposo só faz
diferença jurídica, pra vítima tanto faz: quem foi atropelado de forma dolosa ou culposa foi
atropelado do mesmo jeito. O que vale para o atropelamento é Newton, e não a concepção.
Então se há ou não liberdade... Funciona muito a ilusão que nós temos.

A gente confunde liberdade com sucesso? Exposição midiática, dinheiro e fama são os
pontos que a sociedade lhe ensina a buscar. Como diz o Nizan Guanaes, "ninguém quer ser
Alexandre, o Médio. Todos querem ser Alexandre, o Grande", especialmente na construção
da nossa sociedade capitalista, que estabelece o sucesso a partir do indivíduo. A sociedade
mais perfeitamente capitalista do mundo, que é a americana, ao criar as categorias
de winner e looser estabeleceu uma dicotomia de que tudo isso depende só do indivíduo. A
sociedade socialista, ao tentar criar uma socialização do fracasso ou do sucesso, criou uma
outra categoria que também fracassou historicamente, levando àquela velha piada de Guerra
Fria segundo a qual o capitalismo é a exploração do homem sobre o homem e o socialismo
é o contrário. A felicidade individual é projetada sobre outros e é muito difícil elaborar um
caminho autônomo, ser alguém que nada contra o main-stream. Então é melhor seguir o
caminho que os outros vão reconhecer: o da estabilidade financeira, do sucesso e assim por
diante.

Se nós tivéssemos apenas cinco sabores de pizza no cardápio, seríamos mais


felizes? Difícil eu saber. Sartrianamente, liberdade vem acompanhada de angústia. Quanto
maior a liberdade, maior a angústia. Nós achamos que somos felizes por poder optar. Então,
escolhemos o tipo de café expresso que a gente quer e achamos que a liberdade está nessa
variedade de cores e embalagens. Um equívoco. É inevitável: liberdade significa angústia.
Por isso tanta gente se entrega prazerosamente à dominação, tema analisado por Étienne de
La Boétie no século 16 e por 50 tons de cinza no século 21.

Por que a felicidade é tão fugaz? Os budistas têm uma resposta que acho brilhante:
o eu não cessa de desejar. E ao não cessar de desejar, este eu se torna tirânico. Fui à China
várias vezes de classe econômica e a viagem de 24 horas na cadeira curta é um sacrifício.
Quando fui de executiva foi uma descoberta. Pensei: "Como consegui ficar um dia inteiro
naquela cadeira?". Aí veio uma terceira experiência, na primeira classe, numa volta ao
mundo que fiz recentemente. "Como é que aguentei aquela classe executiva apertada?"
Voltando do Japão de Etihad Airways, recebi o folheto da nova classe Residence, com
chuveiro, cama king, um butler treinado no Ritz de Londres e um lounge pra você
confraternizar com seus amigos milionários. Olhei aquela primeira classe acanhada, sem
lounge e sem mordomo... Esse é o problema do desejo: ele remete a um novo desejo. Você
tem que negar o desejo para ser feliz.

Quando a gente está feliz, a gente simplesmente está, não problematiza sobre isso. É
por aí? Sim, em primeiro lugar, porque o tempo é ressignificado. Você não olha o relógio
quando está boiando no mar em uma praia paradisíaca ou no meio de um orgasmo.
Ninguém quer interromper o tempo quando o tempo está bem. O tempo é medido pela dor,
como disse Schopenhauer. A alegria da ovelha é quando o lobo come a do lado. A ideia de
felicidade depende de entender uma coisa: para a praia do Nordeste ser boa eu tenho que
trabalhar em São Paulo, e trabalhando em São Paulo, jogado naquele ambiente paradisíaco,
tudo me parece fabuloso.

Como você consegue, com o ritmo que segue, ter seus orgasmos, suas boiadas em
praias paradisíacas? Tenho tido férias regulares, tenho viajado por meu próprio prazer.
Isso representa bastante pra mim. E tenho grande prazer em escrever, em ler, em fazer o que
faço profissionalmente. Aquela necessidade de dar breaks porque tá pesado é mais forte
para quem exerce uma atividade taylorista do que pra alguém que tem que exercer a
criação.

Como é a sua rotina de professor, intelectual e celebridade? Ao longo de um dia, vou


encontrar umas 3 mil pessoas, às vezes mais. Dei uma palestra no Paraná para mais de 6
mil. Quando entro no quarto do hotel e o silêncio é absoluto, tenho uma paz que é difícil
explicar. Não é o amor à solidão, mas é o conforto de não precisar falar, de ficar comigo
mesmo, de ler. Eu tô cercado de gente interessante o tempo todo. Talvez o cozinheiro
profissional não queria chegar em casa e fazer um prato sofisticado, mas queira encomendar
uma pizza. Quando eu digo isso parece que eu sou um misantropo. O público demanda à
personagem, e quando você pode ficar com você, você é mais você. Hoje tenho imenso
prazer na solidão, porque não é solidão, é encontro comigo.

Falando da personagem: você se apresenta sempre bem alinhado, ternos bem


ajustados, o cabelo raspado. É uma construção? Acho que sim, no sentido de que tenho
aquilo que em arte a gente chama de estilema, ou seja, uma característica com a qual você
se identifica, como o pega-rapaz nas estátuas do Aleijadinho. Devo raspar a cabeça há dez
anos porque tornou a minha vida prática e, claro, cria uma identidade visual. Essa
personagem dialoga com coisas que eu realmente acredito. À medida que envelhecemos,
devemos nos apresentar bem; à medida que o quadro perde cor, a moldura deve ser mais
chamativa. Eu gosto de encontrar e conhecer pessoas que têm um certo apuro. Gosto muito
de terno, de gravata. Não ando desleixado nem quando estou sozinho em casa. É uma
personagem, mas sou eu, porque essa distinção entre personagem e o real "eu" é muito
cristã. É muito da ideia de que existe uma essência. Não acho que a gente tenha uma
essência; a gente é, também, isso.

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