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GOVERNO FEDERAL

Sumário
© Copyrigth 2010 Associação Nacional de História – Seção Piauí
Apresentação – 5
organizadoras
Áurea da Paz Pinheiro
Sandra C. A. Pelegrini
Parte I
créditos Ensino de História – 7
Este livro integra as atividades do Grupo de Pesquisa “Memória, Ensino e Patrimônio As imagens dos negros: dos museus à sala de aula
Cultural” e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Piauí. Foi produzido com recursos do Iphan e do projeto de pesquisa “Memória, Cultura,
Ana Cristina de S. Mandarino – 9
Identidade e Patrimônio Cultural” CAPES/MEC
Memória, ensino de história e patrimônio cultural
Áurea da Paz Pinheiro – 29
Universidade Federal do Piauí
reitor Por um ensino que deforme: o docente na pós-modernidade
Prof. Dr. Luiz de Sousa Santos Júnior Durval Muniz de Albuquerque Júnior – 55
vice-reitor
Edwar Alencar Castelo Branco A função social dos arquivos e o patrimônio documental
conselho editorial
Heloísa Liberalli Bellotto – 73
Prof. Dr. Ricardo Alaggio Ribeiro [Presidente]
Des. Tomaz Gomes Campelo
Experiências negras na formação da cultura piauiense
Profª. Drª. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz Solimar Oliveira Lima – 87
Prof. Dr. José Renato de Sousa
Profª. Iracildes Maria Soares Mendes
Profª. Francisca Maria Soares Mendes Parte II
Prof. Dr. João Renôr Ferreira de Carvalho
Políticas Preservacionistas – 101
capa, projeto gráfico e editoração eletrônica
765 comunicação Patrimônio, história e sociedade
Luiz Fernando Almeida – 103
revisão
Janice Batista
A convenção da UNESCO e a diversidade
das expressões culturais
foto capa
Cássia Moura Jurema de Sousa Machado – 115
editora Rede do patrimônio cultural do Piauí
EDUFPI Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho – 125
“O estado da arte”: as pesquisas arqueológicas e o desenvolvimento
regional na região do Parque Nacional Serra da Capivara
Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco – 141
A tutela do patrimônio cultural no Brasil
Guilherme Cruz de Mendonça – 173
Patrimonializacion y apatrimonializacion del arte rupestre
en el Sitio de Patrimonio Mundial Ischigualasto-Talampaya Apresentação
Lorena Ferraro – 197
Direito e Patrimônio: entre a materialidade e a imaterialidade
do patrimônio do mundo da vida e do sistema do direito
Maria Sueli Rodrigues de Sousa – 217
Memórias, identidades e políticas preservacionistas
Sandra C. A. Pelegrini – 233
Esta obra reflete a construção de redes de sociabilidades,
fruto de um esforço coletivo de pesquisadores e instituições dos
Parte III mais variados recantos do Brasil e do Exterior. É o resultado
de discussões iniciadas ainda em 2007 quando da constituição
Memórias e Sociabilidades – 249
do Grupo de Pesquisa/CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio
Entre sambas e bambas: vozes destoantes no “Estado Novo” Cultural”, que ao longo desses anos tem realizado encontros,
Adalberto Paranhos – 251 diálogos, investigações e intervenções no campo do Ensino, da
Cultura, da Memória, da História e do Patrimônio Cultural.
Usos do passado e fragmentação da memória:
Os textos aqui reunidos nos permitem refletir sobre
história em imagens digitais
novas sensibilidades e condições de existir em uma sociedade
Ana Maria Mauad – 271
cada vez mais dinâmica e fluída, onde os diálogos entre culturas
História, religião e ética: considerações sobre nos informam sobre a complexidade das relações sociais no que
o papel da religião na sociedade global diz respeito aos bens culturais, sua apropriação, circulação e
André Luiz Caes – 289 salvaguarda.
Devoção negra nas irmandades católicas Historiadores, antropólogos, arqueólogos, arquitetos,
no Piauí do SéculoXIX juristas, autores dos textos, que ora divulgamos, trazem para
Ariane dos Santos Lima – 311 discussões temáticas como o Ensino de História, Políticas
Preservacionistas, Memórias e Sociabilidades. Dentre uma
Candomblé na tradição e na modernidade: diversidade de temas e abordagens, esses autores nos permitem
preservação e identidades compreender o papel que o tempo, a memória e o patrimônio
Estélio Gomberg – 337 cultural assumem na atualidade; como o ensino de História pode
ser um instrumento valioso na promoção de ações educativas,
Império das águas parnaibanas: identidade
e globalização no Piauí que envolvam a rede escolar e as organizações locais: as famílias,
Gercinair Silvério Gandara – 357
as empresas e as autoridades responsáveis; ações que podem vir
a minimizar a massificação e a homogeneização de comunidades
marcadas pela invasão midiática, falam sobre o papel da escola
e do educador, de políticas culturais, do direito de agentes e
sujeitos históricos, sobre uma sociedade de classes que exclui
parte de seus cidadãos do direito à criação e à fruição das obras
do pensamento e das obras de arte.
Os diálogos estão centrados em um tempo em que há
a necessidade premente das sociedades humanas preservarem,
salvaguardarem uma variedade de cultura materializada e
ressignificada cotidianamente em tradições que suscitam o
interesse de cientistas sociais, autoridades políticas, organismos
internacionais e entidades não-governamentais; agentes
históricos que se reúnem para refletir sobre políticas públicas de Parte I
proteção de bens culturais materiais, imateriais e naturais. Esses Ensino de História
encontros e discussões, essas trocas de saberes, experiências e
práticas aqui socializadas revelam desejos de compartilhar e
firmar redes de sociabilidades.
Áurea da Paz Pinheiro
Sandra C. A. Pelegrini
As imagens dos negros:
dos museus à sala de aula
Ana Cristina de S. Mandarino*
O presente texto é fruto das reflexões acerca da imagem
e do papel destinado às representações sobre o negro nos
acervos museais e em espaços similares no Brasil. Se os espaços
dos museus são pensados prioritariamente como um espaço de
preservação da memória, estes devem possuir mecanismos que
possam contribuir para a transformação desta memória exposta,
cujo papel destinado por aqueles responsáveis por organizá-la
nem sempre condiz com seu desempenho e papel histórico.
Se fizermos uma análise sobre os acervos dos museus
brasileiros, iremos encontrar com mais constância representações
iconográficas e religiosas, além de algumas poucas peças de
uma rotina cotidiana, em que os grupos que aqui chegaram
no processo da diáspora são retratados como se apenas fossem
homens religiosos, desprovidos de qualquer outro papel social
que o valha ser lembrado.
Assim, o que vemos com frequência é a marca da fatalidade
e do exotismo que identificou por muitos anos as leituras esparsas
e ocasionais desta produção material, as quais raramente eram
conduzidas por pessoas habilitadas a credenciá-las, sobre o que

Antropóloga. Doutora em Comunicação e Cultura, Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Bolsista CNPq - DCR do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, Universidade Federal da Bahia.
10 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 11
produziam os diversos grupos de negros e seus descendentes no ingênua’, uma forma de se expressar característica de
artistas sem uma formação acadêmica e sistematizada.
âmbito da sociedade africana e local, seja como homem religioso,
Assim, a maior frequência de oportunidades para artistas
seja como um simples agente social. de cor ocorreria quando estes se identificam a um
[...] as coisas de negros, comodamente vistas como determinado tipo de produção permitido e aplaudido
secundárias, inferiores num país sem preconceitos raciais, pelo público consumidor.
ficaram caracterizadas, em especial aquelas de função
religiosa, genericamente como fetiches ou objetos de
feitiçaria. Essas categorias, abastecidas de elementos da Outro aspecto que se deve ressaltar em relação à produção
dominação e moral cristã, delimitam a cultura material de material dos grupos negros, seja religiosa seja não religiosa, diz
sofisticados grupos sociais como dos candomblés, xangôs, respeito a um outro espaço destinado pelo imaginário social
casas mina-jeje e mina-nagô e ainda na tradicional
para estes. Paradoxalmente é após a Abolição da Escravatura
umbanda carioca (LODY, 2005, p. 22).
que a memória tanto material quanto social do negro é posta à
prova. Nos anos que sucederam este episódio, o que vimos foi
Os grupos dominantes, aqueles que historicamente uma brutal perseguição aos espaços religiosos por parte de uma
representam os vencedores em qualquer lugar, ainda se encontram polícia organizada, que, a título de zelar pela moral e pelos bons
em sua maioria reticentes quanto à elaboração de acervos que costumes, invadia, destruía e prendia indiscriminadamente
venham a demonstrar, e assim caracterizar a grandiosidade de (MANDARINO, 2003). O espólio destas invasões viria a tornar-
homens que, por determinada condição histórica, se encontram se posteriormente o acervo de institutos históricos, museus e
em situação de desprestígio – no nosso caso os escravos – e que laboratórios de etnografia e etnologia e até mesmo integrantes de
estes não eram só agentes religiosos, mas sim artesãos dos diversos coleções particulares. Entretanto, salvo a intenção muitas vezes
ofícios e materiais, como a madeira, o ferro, o cobre e o ouro; não tão lícita assim, graças a estes ainda hoje podemos observar
homens que demonstravam conhecimento da medicina e da flora um vasto material, que durante anos habitou indiscriminadamente
africana, das elaboradas formas de construção pelos diversos porões e salas de órgãos de repressão do Estado.
espaços de um enorme e inóspito território. Conforme o exemplo a seguir:
Embora representem a maioria dos elementos constantes A partir da segunda década do presente século
dos acervos, contraditoriamente há certa restrição quanto ao verificou-se a recrudescência da perseguição de caráter
policial, punitivo e destruidor que se prolongou nos
valor da cultura material oriunda dos grupos religiosos negro- Estados do Norte até a quarta década. Perseguição
africanos, sendo caracterizados quase sempre como fetiches, à base de forças armadas, geralmente da cavalaria,
elementos causadores de malefício ou prova da pouca “arte” do com demasiada agressividade, apesar da diminuta
negro. Ainda segundo Lody (2005, p. 22): resistência, ou desinteresse de luta, por parte dos
candomblés. Esta circunstância explica serem raras as
[...] sobre o artista negro ainda recai um outro estigma, peças remanescentes do culto afro-brasileiro. Na Bahia,
o de ver sua arte reduzida a uma qualidade naive. Esta Estado que concentra o maior índice de religiosidade,
variação artística pode ser caracterizada como ‘arte a perseguição e a destruição perduraram até quase
12 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 13
1930. Do nosso conhecimento, podemos indicar Em relação à preservação e divulgação de uma produção
alguns objetos do ritual, conservados no Museu do
Instituto Feminina da Bahia e obtidos por solicitação
material dos grupos negros, podemos considerar como uma
dos depósitos da polícia; instrumentos musicais de primeira iniciativa o I Congresso Afro-brasileiro, realizado,
percussão (atabaques), originais da nação Ketu e em 1934, em Recife, tendo como organizador Gilberto
pertencentes ao Candomblé do Alaketo da Bahia, Freyre e outros intelectuais nordestinos, que, já nessa época,
foram encontrados e devolvidos a seus herdeiros em
1956 (VALLADARES, 1956).
assinalavam a importância de se resgatar a cultura material de
origem africana.
Seguindo na contramão desta história e para É interessante ressaltar que este movimento
preservacionista não esteve restrito somente ao Estado de
entendermos melhor esta discussão, precisamos voltar um
Pernambuco, alastrando-se por outros Estados do Nordeste
pouco no tempo, mais precisamente ao final do século XIX.
e posteriormente para o Sudeste também. No Estado de
Este século vai assinalar um interesse diferente pelo papel da
Alagoas, vamos encontrar três personagens de extrema
História, seus eventos e vultos proeminentes, que, burlando os
importância para a preservação patrimonial afro-brasileira: são
espaços acadêmicos, parece invadir os espaços da vida social,
os médicos e antropólogos Abelardo Duarte, Théo Brandão
configurando novas possibilidades de sentido para as sociedades e Artur Ramos. Cada um a sua maneira, serão importantes
modernas. A consciência da existência de um passado histórico divulgadores do patrimônio negro, embora egressos da Escola
e a necessidade se fazer conhecer seus desdobramentos, de Medicina da Bahia, por conseguinte de forte influência
e, portanto, seus significados para a atualidade tornam-se dos postulados de Nina Rodrigues. Irão se destacar em sua
necessárias para encaminhar as ações visando um futuro. época como precursores da necessidade de um resgate deste
Desta maneira, desde o final do século XIX, as sociedades patrimônio negro, estendendo os limites de um entendimento
ocidentais vão debruçar-se na busca pela coletânea de materiais de significado cultural para além dos tratados convencionais
disponíveis que venham a formar os futuros acervos de museus ora estabelecidos.
que começam a instalar-se em várias cidades do mundo. E o Embora percebamos a importância de tais resgates, não
Brasil, pródigo em criar condições de semelhanças às nações podemos nos furtar, assim como outros autores, de distinguir
europeias, vislumbra a possibilidade de resgatar sua história e certa preferência por parte dos organizadores das coleções de
representá-la na criação do primeiro Museu Histórico Nacional, uma exaltação pelo “exotismo fetichista” contido nos traços
em 1922, no Rio de Janeiro, em uma conjuntura específica da religiosos negro africanos. Seria isto um resquício da influência
época – as comemorações do Centenário da Independência. ninarodriguiana? Esta preferência, a nosso ver, é estigmatizante,
Havia, entretanto, uma demanda do Estado que já não era nova, pois, ao ressaltar apenas um aspecto da cultura dos grupos
datando do final do século anterior, que era a preservação de negros, diminuímos sua capacidade de interação junto ao
itens relacionados à memória da formação e consolidação da meio social. O ourives negro não se dedicava apenas a uma
nação brasileira. ourivesaria religiosa, assim como o ferreiro também. A religião
14 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 15
foi e é apenas um dos aspectos destes grupos; então, não deve máscaras dos festivais Geledés, oxês (machado ritual do orixá Xangô)
ser exaltada como uma manifestação única. e esculturas de orixás divididas por diversos grupos étnicos.
Aos olhos menos treinados, a exposição de um acervo pode Ressalte-se que as peças dos acervos dos Estados da Bahia,
dar a entender que se encontram expostas várias faces de uma Pernambuco e Alagoas foram, no passado, espólio de invasões aos
determinada cultura, no entanto, estas em sua maioria vão celebrar terreiros e da conseguinte prisão de seus membros.
constantemente os aspectos religiosos. Por exemplo, os itens
Sem dúvida, a religião e a religiosidade do homem africano
constantes do acervo da coleção do Estado de Alagoas encontram-
são elementos importantes para a compreensão de um ethos e de
se assim descritos: fetiches e insígnias; esculturas de oxês e imagens;
uma visão de mundo específicas. Mas será que podemos inferir
instrumentos musicais; indumentárias; paramentos (panos de
que terá sido somente essa a contribuição dos grupos africanos à
culto) e diversos (COLEÇÃO PERSEVERANÇA, 1950).
cultura e ao desenvolvimento da nação? Acreditamos que não. O
Segundo Lody (2005, p.34), o que se tem em questão é que nos incomoda, e provavelmente a muitos outros estudiosos
“uma suficiência de representação” aclamada pelos órgãos oficiais; e visitantes, é o aparente descompromisso com outros aspectos
esses acreditam que somente o campo religioso é capaz de dar relevantes da cultura negra que não aparecem em destaque. Por
conta de todo um campo de manifestações materiais. exemplo, o uso e o manuseio do ferro já eram de domínio de
Comprovando nossas suspeitas segue relação de algumas alguns grupos africanos há pelo menos 900 anos antes da era
das coleções dedicadas à cultura negra: cristã. Significa dizer que isto lhes garantia não só a possibilidade
de transformarem-se em grupos sedentários, como também lhes
- Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas – desde garantia a expansão da agricultura. Instrumentos rudimentares
1950, abriga a Coleção Perseverança (supracitada), além de ser o de ferro para uso doméstico demonstram a habilidade do homem
primeiro museu público do Estado.
negro no manuseio deste material, sua posse significando poder
- Museu do Estado de Pernambuco – desde 1940, abriga e prestígio, logo, de uso restrito. Portanto, era somente após a
307 peças relacionadas ao xangô pernambucano. confecção de instrumentos de uso doméstico e agrícola que se
partia então para a confecção de utensílios rituais (KI-ZERBO,
- Instituto Histórico e Geográfico da Bahia – abriga, desde
1982, cerca de 450 peças de uso ritual de diversos grupos étnicos 1978; COSTA E SILVA, 1996; PRIORE, 2005).
que compõe o panteão afro-baiano. Os deuses dos iorubás, grupo étnico de maior expressão
- Museu do Homem do Nordeste – aberto em 1979, em a chegar ao Brasil, a partir do primeiro terço do século XIX, se
Recife, abriga peças do Xangô pernambucano associadas as do fazem presentes tanto em cidades africanas como em cidades
Maracatu Elefante. brasileiras, compartilhando do cotidiano de milhares de pessoas
que, em memória de uma lembrança cultural e étnica, conseguiram
- Museu Nacional de Belas Artes – Coleção Arte Africana, transplantar e reelaborar um conjunto de manifestações culturais
notadamente da África Ocidental; reúne 111 peças, entre elas e religiosas, sendo esta última, elemento de coesão e unidade entre
16 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 17
as demais. Assim, determinados pelo signo religioso, os papéis Mesmo que não se possuam dados estatísticos, são muitas
sociais são projetados além-templos, atuando decisivamente na as pessoas que consideram os museus como lugares de “coisas
constituição desta complexa sociedade, notoriamente constituída antigas”. E os museus de história? Depósitos de coisas ainda
por múltiplas relações interétnicas de grupos da África Ocidental, mais antigas! E o que importa se acontecem mega exposições,
África Austral e África Oriental, levando-nos então a imaginar, com museus se associando e exibindo suas coleções sob luzes
além de uma enorme diversidade de papéis, que estes também feéricas, grandes telões, cores e muita ação? Em um passe de
tenham vindo a contribuir de distintas maneiras. mágica deixam de ser “museus depósitos”, e se transformam
em “museus espetáculos”, em grande e popular atração
Além do que, outro ponto que se impõe é no sentido
(BENCHETRIT, 2002, p.12).
de estarmos atentos às questões conceituais quando falamos
de “África” (APPIAH, 1997). As revisões historiográficas Embora para a maioria os museus estejam associados à
contemporâneas vão revelar que a noção de África está carregada ideia de passado, ligados à ideia de instituições decadentes e
de estereótipos, que ora oscilam entre uma visão romântica ora desaparecidas, estes, na realidade, são organismos vivos, que,
entre uma visão cruel, sanguinária e atrasada, ambas surgindo atualmente, têm múltiplas funções, que podem ser percebidas
de um processo de elaboração detalhadamente construído pelo através do tratamento dado à cultura e à história do homem,
Ocidente, assim como a própria noção determinista e biológica buscando sempre adequar-se à realidade e às exigências dos
de raça, que serviu e serve para indicar o fenótipo de quem não tempos atuais.
é branco.
Surgidos a partir da ideia original de serem espaços para a
Além disso, é preciso desconstruirmos a ideia de uma preservação de obras dispostas pelo homem, que evidenciassem
unidade africana. O que significa pensar o continente
africano não como uma unidade homogênea, mas em
sua origem e destino, além de informar sobre o meio físico e social
suas diferenças regionais e culturais. Interessa-nos por deste homem, os museus servem ainda para o resgate de dados
exemplo das diferenças e das especificidades da África cronológicos, bem como o de fornecer informações sobre sua
e de sua histórica relação com o passado escravista do função e inserção em contextos socioculturais diferenciados.
Brasil; bem como da África pré-colonial e suas diferentes
contribuições culturais, econômicas e políticas; da África Os museus de História e suas coleções acabam por ter uma
das especificidades dos colonialismos europeus, nos séculos
semelhança, cujo recolhimento de seus acervos foi estabelecido
XIX e XX; da África dos processos de descolonização;
da África contemporânea em suas particularidades no início do período dos “museus públicos”, na segunda metade
nacionais,étnicas, religiosas e culturais; dos trânsitos, do do século XIX. Em meados do século passado, essas instituições
tráfico, da diáspora e dos diálogos contemporâneos com começaram a modernizar seus conceitos, o que implicou não
o Brasil (MARCON, 2007, p. 20).
apenas na mudança do conceito de “objeto histórico, mas
também na releitura dos acervos existentes, venerando objetos
Nesta perspectiva, cabe-nos perguntar, em primeiro lugar: veteranos com longa trajetória em coleções de museus. Todo
O que é um museu? um reordenamento de forma e função dos museus, na Europa e
18 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 19
nos EUA, refletiu-se na forma de tratamento dos acervos, assim grande número de personagens que revelam o que a história
como na forma de exposição desses universos” (BENCHETRIT, oficial não enfatiza ou projeta em feitos e ações, e que, por não
2002, p.13). assumirem o estigma do heróico ou do histórico, em uma visão
que esteja comprometida com os grandes acontecimentos, acabam
Se, no passado, os museus eram apenas locais onde se
por não se incluírem na lista dos que devem ser consagrados e
depositavam artefatos da vida cotidiana de determinados grupos,
lembrados.
resquícios de civilizações e animais extintos, atualmente estes
buscam demonstrar a história de sua relação entre os objetos e Acreditamos que, ao se tentar revelar a carga simbólica
com o público a quem estão destinados, relação que se expressa contida nos testemunhos no que concerne a criação, recriação
nas categorias de objetos predominantes nas coleções, na maneira e adaptação, sem esquecer que a cultura é dinâmica, somos
como são coletados, na forma como têm suas informações capazes de proporcionar diferentes possibilidades de tratar esses
construídas e sistematizadas além da forma como são exibidos. conteúdos que convencionalmente não estão nos museus, e que,
certamente uma vez trabalhados, aproximarão as comunidades
Desde então, conforme diversos autores (ANTONIO, 2000;
da Instituição.
GUIMARÃES, 2002; LODY, 1984, 2000), a noção e o conceito
acerca de museus vêm sofrendo profunda transformação. Enaltece- Se o homem é, em todas as suas possibilidades, por
se e preserva-se para se dar a conhecer o que é do homem e da excelência, aquele que conceitua, e por conseguinte simbólico,
sociedade. Mas não sobre todos os homens ou toda a sociedade. devemos admitir que sua memória é, um patrimônio que
A escolha de fatos, de objetos e principalmente de personagens pertence a ele e a seu grupo – seja produtor e consumidor – e aos
que devem pontuar com suas presenças estes espaços obedece museus cabem não apenas o papel de catalizador e depositário
a uma ideologia da sociedade vigente. O universo dos museus puro e simples de seus testemunhos, mas sim o de junto com as
é o mundo da cultura material, o mundo no qual as relações comunidades buscar mecanismos que possam aproximar tanto
sociais se cristalizam na matéria transformada pelo trabalho. O a Instituição quanto o público – porém sem o caráter tutelar –
mundo das relações sociais é um mundo histórico, que aponta em uma tentativa na qual seja possível educar os grupos sociais
para temporalidades múltiplas e os objetos, fatos e personagens através da operacionalização dos conceitos de patrimônio, bem
novamente expressam essas múltiplas matrizes e interesses. cultural, preservação e comunicação. Desta forma, caberia aos
museus um papel educativo no desempenho de resgate daqueles
Seguindo a perspectiva deste novo papel que os museus
testemunhos que nem sempre, por força dos contornos políticos
vêm assumindo, este trabalho insere-se na complementação deste;
e sociais, são lembrados.
busca entender o papel destinado ao negro nas coleções atuais, e se
estas são capazes de colocá-los em um lugar onde possam, de fato, Embora a discussão sobre este tema possa em princípio
demonstrar sua participação no processo de desenvolvimento do parecer inócua, visto que, pela própria dinâmica dos estudos
país. Então, nos perguntamos quais caracterizações e tratamento de museologia e história mais recentes que apregoam a
dado pelos museus aos testemunhos do outro lado – ou seja, ao transformação e a renovação como o caminho a ser buscado,
20 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 21
assim como uma nova função para os espaços dos museus – uma que as coleções ocupam nos museus e o quanto de prejudicial
renovação de espaço e conteúdo – ainda podemos perceber esse fato representa para a memória dos vários grupos étnicos
o pouco espaço ou importância que o negro e todas as suas que aqui chegaram, legando sua contribuição para a formação
possibilidades de inserção possuem nas coleções e publicações da sociedade brasileira.
que tratam das questões de preservação da memória nas
A primeira coleção encontra-se na mais antiga instituição
documentações e espaços das Instituições públicas.
científica do país, criada por D. João VI, em 1818, como Museu
Ao buscar e selecionar material pertinente que pudesse Real, renomeada como Imperial e Nacional após a Independência,
contribuir para a elaboração deste trabalho, deparamo-nos e depois incorporada à Universidade do Brasil (UFRJ) em 1946, e
com reduzida quantidade de artigos e trabalhos que tratassem desde então conhecida como Museu Nacional. Segundo o autor,
da inserção do negro nas várias Instituições de preservação a seção dedicada à África encontra-se no setor de Antropologia:
da memória, com exceção dos anteriormente citados. Apenas [...] A África localiza-se em um espaço composto por dois
exemplificando, em duas coletâneas recentes, uma do Museu halls que configuram um corredor e está conectado à sala
da República, no Rio de Janeiro, em 2005, e outra do Museu da Polinésia, ao salão de etnografia regional conforme
Histórico Nacional, caracterizada como Anais, em edição abaixo; e os halls que dão acesso à Sala do Trono, à Sala
dos Embaixadores e a um pequeno cômodo que contém
comemorativa pelos 80 anos de sua fundação, em 2002, duas pequenas escadas laterais que conduzem ao restante
encontramos, em cada uma, apenas um texto que tratava do do museu. A África está representada em cinco vitrines
negro ou de questões afins (CONDURU, 2002, p.114). (CONDURU, 2002, p.114).
Mais surpreendente entre as duas é a coletânea do
Museu Histórico; dentre seus três volumes e sessenta e seis As peças em exposição lembram a África romântica, com
artigos, divididos entre as seções de fotografia, historiografia, seus exemplares mumificados de animais selvagens, alguns já
museografia, indumentária, coleções, patrimônio, numismática extintos, lanças, escudos, adornos pessoais de uso diário e festivo,
e seção luso-brasileira, apenas um artigo contempla a temática do enfim uma África alegórica, pouco importante, representada mais
negro. Acreditamos que esse fato não é por acaso (MANDARINO, como uma excentricidade de grupos “não civilizados”. A falta de
2007). consciência, por parte daqueles que arrumaram os acervos, pode
ser sentida na forma equivocada em que as peças foram dispostas,
O artigo em questão trata da disposição de duas coleções “[...] a terceira vitrine exibe peças arrumadas como instrumentos
dedicadas à África: uma exposição permanente do Museu musicais: dois atabaques, um opaxorô, um aguê, uma flauta,
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e outra quatro chocalhos e um abebê, além de duas fotos, uma com um
o módulo de origens africanas na Galeria Permanente Mario músico” (CONDURU, 2002, p.115).
Pedrosa do Museu Nacional de Belas Artes do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O autor Certamente o exemplo suprarrelatado não pode
revela sua preocupação ao perceber o lugar de menos destaque ser considerado uma generalidade em relação aos acervos
22 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 23
disponíveis, no entanto, este fato não pode passar despercebido, As identificações presentes nos museus ou aquelas que
pois se trata da coleção do primeiro Museu Nacional da Nação. eles podem oferecer, com as representações decodificadas pelo
Isto só vem demonstrar a importância da formação de quadros público, devem estabelecer uma comunicação mais íntima,
treinados e capacitados de diversas áreas do conhecimento, pois a e, assim, possibilitar o reconhecimento e o fortalecimento
importância e qualidade do trabalho, a competência com que este das identidades. De forma educativa, os acervos expostos
é transformado em produção, bem como as marcas que deixa em devem propor uma conscientização dos valores e motivos,
sua área de atuação, depende exclusivamente do entendimento entre outros que venham a atender e a auxiliar em projetos
que o Estado faz da Instituição e da relação que esta pode vir a extramuros.
desempenhar junto ao público.
Como parte integrante deste projeto de reatualização dos
Seguindo este viés, acreditamos que um dos mecanismos conteúdos museais, e pensando estes espaços como prioritários
capazes de diminuir a distância entre o público e as Instituições na busca de uma nova concepção acerca do papel do homem
estaria no aproveitamento dos espaços e de seus conteúdos, negro na sociedade nacional, algumas estratégias de ensino
como um suporte educativo que viesse a corroborar a didática devem ser seguidas, capazes de priorizar as vivências do
utilizada no ensino da disciplina História da África. Embora com cotidiano social dos alunos e da própria escola, onde processos
as modificações que as novas administrações vêm imprimindo
interativos mediadores de aprendizagem (professor – aluno
aos espaços dos museus, promovendo o intercâmbio entre as
– comunidade) sejam acionados no sentido de proporcionar
escolas públicas e municipais, através do incentivo à visitação e
o entendimento de uma identidade cidadã. Neste sentido, o
à gratuidade, percebemos que as visitas acabam por se tornar
mais um passeio que possibilita a fuga das salas de aulas por vezes senso comum, elemento estruturante das relações entre os
monótonas, do que um passeio educativo propriamente dito. Isso indivíduos, deve ser relativizado em função de uma aquisição
a nosso ver seria justificado por dois motivos: primeiro, os alunos de conceitos capazes não só de se tornarem acessíveis a estes,
não são instruídos de forma que sua curiosidade seja aguçada a mas também capazes de respeitar sua alteridade.
descobrir, perguntar, e entender o papel da memória na formação Contudo, para que estas medidas se efetuem alguns
do indivíduo e de suas tradições; segundo, os personagens que procedimentos devem ser adotados. Em primeiro lugar,
repousam e são consagrados nos espaços públicos estão longe de deveremos decidir sobre qual África ou áfricas vamos
ser atraentes para a maioria do público. E, neste contorno, os
falar; em segundo lugar, aqueles incumbidos de serem os
negros e afro-descendentes raramente estão representados.
multiplicadores deste empreendimento de resgate de uma
Para empreender uma mudança, é necessário levarmos identidade devem eles próprios se sentirem orgulhosos de
em conta o respeito às especificidades dos grupos, e tomarmos partilhar dela, pois a autoestima é parte integrante de um
consciência de que estamos de fora, observando a cultura do processo identitário, e sem ela não há verdade ou sentimento
outro; portanto, nos deparamos com a alteridade, e isso é um capaz de driblar o desânimo que se instala ao falar-se daquilo
ponto fundamental para a tentativa de entendimento. que se desconhece e não partilha.
24 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Cristina de S. Mandarino 25
É preciso que os professores, nossos griots de uma Embora esse depoimento não possa ser generalizado,
verdade pouco conhecida, primeiro abasteçam-se de conteúdos ele não está muito distante de um pensamento que ainda
– eles próprios – que se sintam estimulados e gratificados ao permeia o discurso de grande número de professores do ensino
descobrirem as nuances de um passado ainda envolto em básico, que, por desconhecimento, acabam por tomar posturas
“escuridão” e descaso. Se estes e só estes decidirem pela desastrosas, que são frutos de um processo histórico, em que o
transformação é que poderemos de fato imprimir uma grande negro foi sempre visto como nocivo, menor, em um país que,
mudança não só no conteúdo, mas também na forma como desesperadamente, precisava justificar seu atraso econômico
este é passado e percebido. Se os espaços museais merecem ser como tendo sido causado por uma improdutiva miscigenação,
transformados, a mentalidade daqueles que são os primeiros que híbrida, como acreditavam alguns, teimava em nos manter
mestres a apresentarem um mundo de possibilidade e desafios presos ao atraso de uma nação “misturada”. Na tentativa de
também precisa mudar. É necessário o envolvimento conjunto implementar uma nação desenvolvida, negros e índios não
de sociedade e Estado, e aí se entende uma cooperação de tinham lugar.
todas as camadas da sociedade civil organizada, para que
Nos dias atuais, já percebemos uma clara tentativa por
empreendimentos deste vulto se concretizem.
parte do Estado em ampliar sua leitura em relação ao patrimônio
A queixa que mais percebemos ao discutir a aplicabilidade cultural sem hierarquizá-lo ou classificá-lo como mais ou menos
de um conteúdo que contemple a disciplina História da África importante; e, nesse caso, os museus como continuidade desta
diz respeito, em primeiro lugar, ao que ensinar, o que, por si nova política em expansão vêm modificando paulatinamente sua
só, já demonstra uma falha de conteúdo pedagógico. Segundo, visão, buscando aproximar-se dos grupos e das comunidades. E
a falta de material disponível e de qualidade. E terceiro, e mais ao buscar refazer sua postura este mesmo Estado vem enfatizando
estarrecedor, é que os professores não veem a necessidade de as relações entre produtores e produções no âmbito da cultura.
se informarem sobre o assunto, pois, segundo uma professora, Assim, o que temos é a busca de uma visão mais antropológica
“isto não seria tão necessário assim, pois o escravo não tem nada do patrimônio cultural, rompendo com os padrões estéticos
para dar, além de sofrimento ou de macumba!!” (SANTANA, de uma historiografia que busca valorizar o heróico que tanto
2006, p.47). conduzia e ainda conduz a organização dos acervos.
Estas três considerações surgiram durante pesquisa
realizada por uma aluna para a conclusão do Curso de Graduação
em Pedagogia, sob minha orientação, no ano de 2006, no Estado
de Sergipe. Seu tema buscava perceber e analisar como era
ministrada a disciplina de Introdução à Religião no âmbito de
uma escola pública e de periferia.
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Memória, ensino de história e
patrimônio cultural
Áurea da Paz Pinheiro*
O patrimônio cultural de natureza imaterial norteia
minhas reflexões sobre a memória, o ensino e a constituição de
identidades. Procuro destacar que, no Brasil, ações de educação
patrimonial são realizadas em diferentes contextos e localidades,
e têm mostrado resultados surpreendentes ao trazer à tona
a autoestima das comunidades. Em alguns casos, promovem
o desenvolvimento local e indicam soluções inovadoras de
reconhecimento e de salvaguarda do patrimônio cultural para
muitas populações. Mostro como o ensino de História pode ser
um instrumento valioso na promoção de ações educativas, que
envolvam a rede escolar e as organizações locais: as famílias, as
empresas e as autoridades responsáveis; ações que podem vir a
minimizar a massificação e a homogeneização de comunidades
marcadas pela invasão midiática e por um turismo histórico-
cultural não planejado.
* Doutora em História Cultural pela Unicamp. Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em História da UFPI. Presidente da Associação Nacional de
História [ANPUH- Seção Piauí]. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Ensino,
Memória e Patrimônio Cultural”. Coordenadora do Projeto Memória, Cultura,
Identidades e Patrimônio Cultural, financiado com recursos do Programa Pró-
Cultura CAPES/MinC.
30 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 31
As reflexões sobre o ensinar História já preocupavam individuais são influenciadas pelos grupos a que os indivíduos
Voltaire no século XVIII: “[...] depois de ter lido três ou quatro pertencem [...] (BURKE, 1992, p. 238).
mil descrições de batalhas, e o teor de algumas centenas de
Para Edgar Morin (2001), o pensamento dos educadores
tratados, percebi que, no fundo, quase não estava mais instruído.
deve ser reformado, vez que vivemos um contexto permeado por
Só apenas acontecimentos [...]” (VOLTAIRE, 1744).
mudanças rápidas, tão rápidas que não conseguimos acompanhar
Tais inquietações marcam o cotidiano dos professores de os ritmos; momento de mudanças tecnológicas com suas
História, que, nas últimas décadas, têm experimentado mudanças interferências no cotidiano da família, da escola e da sociedade.
significativas no dia-a-dia das salas de aula. Os educadores forjam Os indivíduos precisam perceber esses movimentos e criar formas
perspectivas e possibilidades para o trabalho docente. Buscam de adaptação à cartografia que se desenha e que exige de pais,
saídas para uma realidade marcada pelo desencanto, para uma filhos e mestres uma leitura de mundo que não é a mesma de
estrutura educacional que não os emociona. outros tempos.
Vivemos uma época marcada por transformações rápidas Nesse contexto, observamos as dúvidas, inquietações e
e profundas, em uma sociedade que valoriza a informação, o incertezas dos professores, mas, sobretudo, sonhos. Com educadora,
conhecimento e exige uma nova cultura profissional. resolvi, nos limites deste texto, refletir sobre experiências, saberes
Os educadores procuram trabalhar com temas, e práticas possíveis de serem desenvolvidos no cotidiano da escola,
problemas, interpretações e metodologias capazes de atender da sala de aula e no interior das comunidades, por acreditar que
às demandas emergentes de uma sociedade pós-industrial, o educador deva estar, diariamente, avaliando suas práticas,
marcada pela modernidade com todas as suas implicações e desenvolvendo competências e construindo habilidades. É preciso
complexidades. que tenhamos mestres capazes de articular, mobilizar e colocar
em ação conhecimentos que suscitem nos alunos competências
Em uma visão tradicional, a função do historiador era e habilidades que lhes possibilitem ser leitores competentes do
lembrar, guardar a memória de grandes acontecimentos públicos, mundo em que vivem.
oficiais; dar fama e prestígio a reis, generais, grandes nomes da
história da humanidade, “manter viva a memória de grandes O movimento dos Annales (1929) trouxe mudanças
feitos e de grandes acontecimentos”. Essa visão tradicional da significativas para o ofício do historiador e para a produção
história, de que é preciso relatar o que “realmente aconteceu historiográfica, apontando objetos, problemas e interpretações
no passado” tornou-se, claramente, simples e ingênua. O que se (BURKE, 1991). Para Marc Bloch (2002), a História nos oferece a
propõe é a necessidade de problematizar a história e a memória. possibilidade de compreender que somos possuidores de saberes
“Lembrar o passado e escrever sobre ele já não parecem poder culturais, de um acervo de conhecimentos, entendimentos,
ser consideradas atividades inocentes”, afirma Burke. Não realizações, progressos, regressões, utopias, desencantamentos,
há objetividade nem nas recordações nem nas histórias, “[...] que resultam da aventura construída nas inter-relações sociais.
não nos apercebemos das diferentes maneiras como as ideias Ensinar História não mais pode ser uma atividade inocente,
32 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 33
na qual o professor informa sobre uma quantidade infinita de professores, populações localizadas no entorno da escola possam
nomes, datas, causas e consequências, que não têm sentido ou usufruir de tecnologias e linguagens diversas, possam registrar e
significado para os alunos. Logo, se o olhar de Clio mudou e refletir sobre a diversidade cultural brasileira. Será muito difícil,
voltou-se para outras questões e problemas, para outros campos a partir de agora, fazermos qualquer proposta para o cotidiano
e temas, nossa perspectiva de escrever e ensinar História deve escolar sem considerar essas reflexões e conjuntura, pois não
ser outra, que valorize a cultura como um conjunto de signos acreditamos que a sociedade da informação possa solucionar
e significados a serem partilhados e construídos pelos homens todos os nossos problemas, e, nesse sentido, novamente, o grande
para explicar o mundo. A realidade tornou-se mais complexa e desafio será inserir a pesquisa no cotidiano da escola, fazermos a
aquilo que um dia foi norma, naturalizado como verdade, não é reconstrução de uma construção já existente, partindo do que já
mais o que move as perguntas que fazemos diante do real. Não está disponível, do conhecimento elaborado para, a partir dele,
mais buscamos nos documentos as verdades definitivas, não refazermos, juntos, conhecimentos novos, em que seja possível
mais nos guiamos por leis e modelos que regeram a sociedade perceber o caráter individual e plural das comunidades.
em outro tempo, mas vivemos uma época de dúvidas, de
Na condição de educadores devemos compreender
suspeitas. Caso não consigamos ver na História a possibilidade
que os Outros têm conhecimentos, habilidades que precisam
de compreender a nós mesmos e aos outros, de nada valerá o
ser considerados, vez que os saberes são produções histórico-
nosso ofício, como historiador, como educador. Precisamos de
culturais, conjuntos complexos, que, se acionados de forma
um ensino de História que valorize o aprendiz como sujeito
competente, metódica, podem permitir que sejam superados
capaz de propor, de questionar, e, para tanto, devemos repensar
desafios impostos pela sociedade que vive sob o signo da
a nossa prática docente, inserir a pesquisa no cotidiano de
aceleração, uma sociedade que pretende uniformizar costumes,
nossas salas de aula, pois é pela elaboração do conhecimento por
valores, tradições; o fim da história-memória referenciado por
alunos, professores e comunidade, de forma metódica, dialética
Nora (1993, p.7):
e cotidiana que conseguiremos tornar o ensino de História
agradável, interessante e significativo para nossas vidas. Aceleração da história. Para além da metáfora, é preciso
ter a noção do que a expressão significa: uma oscilação
Nesse cenário, a aula expositiva tradicional terá um cada vez mais rápida de um passado definitivamente
papel coadjuvante, pois o indispensável será a orientação, o morto, a percepção global de qualquer coisa desaparecida
– uma ruptura de equilíbrio. O arrancar do que sobrou de
acompanhamento atento do professor às atividades de pesquisa vivido no calor da tradição, no mutismo do costume, na
desenvolvidas pelos alunos em suas comunidades. Não queremos repetição do ancestral, sob o impulso de um sentimento
dizer com isso que as aulas expositivas devam ser suprimidas, histórico profundo. A ascensão à consciência de si mesmo
mas repensadas, para fazermos a transposição do monólogo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa sempre
ameaçada. Fala-se tanto de memória porque ela não
ao diálogo. A sala de aula deve ser compreendida como uma existe mais.
multiplicidade de espaços educativos, como lugar de investigação,
de argumentação e organização do pensamento, onde alunos,
34 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 35
Neste momento particular, precisamos de um ensino de diferentes, de diminuir discriminações e de acrescentar afetos.
História que não nos afaste da imaginação, mas que nos faça Essa proposta pode parecer utópica e distante da realidade da
reaprender a conviver e a dialogar com os outros, escutá-los com educação brasileira, mas os educadores que desejam trabalham
atenção analítica, mediar saberes. Necessitamos de um sujeito do para realizar utopias, porque entendem que educar é caminhar,
conhecimento que reconheça o papel das tecnologias no contexto é seguir sempre à busca das possibilidades, é substituir certezas
da sociedade da informação, mas também que compreenda a e teorias deterministas pela dúvida criativa que impulsiona o
força das múltiplas criações, conservando e não destruindo, conhecimento aberto e livre (FREIRE, 1996).
cooperando e não competindo, partilhando e não concentrando, Para Edgar Morin (2001), a educação do futuro, para mim,
incluindo e não excluindo, colocando a solidariedade no lugar da a educação do desejo, centrada na contextualização e integração
xenofobia, buscando a afetividade e a solidariedade. dos saberes, que se deve preocupar em criar estratégias que
Pensar o ensino de História é aprender a aprender, é permitam enfrentar o inesperado, o imprevisto.
criar possibilidades de saber, conhecer, fazer, viver juntos e ser A produção historiográfica aponta para problemas e
mais humano. Uma relação de ensino- aprendizagem deve ser interpretações, e as fontes ganharam dimensões mais amplas,
construída pensando-se a sala de aula como espaço privilegiado permitindo que a mão do historiador desenhe textos diversos,
para perceber tensões, disputas; acima de tudo, um campo em formatos variados, com personagens e lugares antes
de possibilidades para discutir e construir saídas de forma inimagináveis. A história é multicor, traz para a cena principal
inteligente, criativa, planejada. Acreditamos que os mestres negros, mulheres, índios, interesse atual de Clio; os métodos e
devam formar sujeitos criativos, aptos a lerem o mundo de os conceitos, antes monocromáticos, agora, são policromáticos,
forma competente e crítica. poliédricos, apontando para várias possibilidades narrativas, com
linguagens diversas.
Talvez eu não esteja apresentando nenhuma novidade do
ponto de vista teórico, mas o novo é propor que os professores O desejo é nos permitir conhecer culturas diversas;
repensem suas práticas, por meio de atividades interdisciplinares, procurar por todos os lugares vestígios de histórias nos álbuns de
que indiquem metodologicamente as condições de possibilidades fotografias, cartas de amor, diários, crônicas de jornais da cidade,
de comunicabilidade entre a História e as outras ciências, entre pinturas rupestres, filmes etnográficos, vozes e gestos de histórias
a escola e a comunidade. Seguindo a trilha proposta por Edgar de infância etc.
Morin (2001), precisamos aprender a religar a parte e o todo, o
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, p.35)
texto e o contexto, o global e o local, o universal e o planetário.
apresentam uma série de questões que envolvem a construção
Precisamos de um professor que não seja uma caixa fechada nem
de uma Educação do Tempo Presente; por isso, a incorporação
uniformizada, mas uma caixa de Pandora.
no ensino de História de temas que envolvam a vida coletiva
Busco uma educação do desejo. Desejo de conhecer, nacional, regional e global: cidadania, ética, diferenças culturais
de informar, de respeitar, de valorizar, de aproximar culturas e étnicas, identidades, diversidade, cultura afro-brasileira e
36 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 37
indígena, patrimônio cultural. As propostas dos educadores um ou mais problemas para estudo em dimensões
históricas. A partir daí, selecione conteúdos da História
devem contemplar as reflexões dos alunos e da comunidade
brasileira, da História da América, da Europa, da
sobre: África e do Oriente, e articule-os em uma organização
[...] os valores e suas práticas cotidianas e relacioná-los que permita ao aluno questionar, aprofundar, analisar
com problemáticas históricas inerentes ao seu grupo e refletir sobre as amplitudes históricas da realidade
de convívio, à sua localidade, à sua região e à sociedade atual e como são construídos os processos dinâmicos e
nacional e mundial. Uma das escolhas pedagógicas contraditórios das relações entre as culturas e os povos
possíveis, nessa linha, é o trabalho favorecendo a (PCNs, 1997, p. 68).
construção, pelo aluno, de noções de diferença,
semelhança, transformação e permanência. Essas são
noções que auxiliam na identificação e na distinção Pensar o ensino dessa forma é permitir que a História
do ‘eu’, do ‘outro’ e do ‘nós’ no tempo; das práticas do Piauí seja discutida e relacionada com a história nacional e
e valores particulares de indivíduos ou grupos e dos global, incluir sujeitos sociais diversos como vaqueiros, índios,
valores que são coletivos em uma Época; dos consensos
e/ou conflitos entre indivíduos e entre grupos em sua
negros, posseiros, artesãos, pescadores etc., bem como questões
cultura e em outras culturas; dos elementos próprios históricas que não são abordadas pelos conteúdos estruturados
deste tempo e dos específicos de outros tempos de forma tradicional. A proposta é utilizar os conteúdos
históricos; das continuidades e descontinuidades não como fim, mas como pretexto para pensar o local, para
das práticas e das relações humanas no tempo; e da
diversidade ou aproximação entre essas práticas e
desnaturalizar conceitos e construir outros discursos sobre o que
relações em um mesmo espaço ou nos espaços. é ser piauiense em uma sociedade cada vez mais globalizada. Os
educadores devem buscar métodos, procedimentos, estratégias
e abordagens que permitam uma aprendizagem para a vida
Ao compreendermos que a História é um instrumento e que possibilite aos alunos pensar criticamente o mundo,
de reflexão sobre nós mesmos, não mais faz sentido um ensino sabendo posicionar-se diante de várias situações-problemas.
centrado apenas nos conteúdos de forma exclusivamente Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, p.77) está clara a
informativa. O desafio para o ensino é selecionar os conteúdos ideia da necessidade de reconhecer:
com a finalidade que se deseja alcançar: saber, saber fazer e
[...] costumes, valores e crenças em suas atitudes e hábitos
saber ser.
cotidianos e nas organizações da sociedade; identificar
O professor deve selecionar os conteúdos de acordo com os comportamentos, as visões de mundo, as formas de
trabalho, as formas de comunicação, as técnicas e as
o diagnóstico que faz dos conhecimentos, domínios e atitudes tecnologias em épocas datadas; e reconhecer que os
dos alunos, além de considerar as questões contemporâneas sentidos e significados para os acontecimentos históricos
pertinentes à realidade socioeconômica, política e cultural. e cotidianos estão relacionados com a formação social e
intelectual dos indivíduos e com as possibilidades e os
[...] Além disso, o professor não deve ter a preocupação limites construídos na consciência de grupos e de classes.
de estudar todos os exemplos apresentados. A ideia
é que problematize a realidade atual e identifique
38 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 39
As estratégias educacionais devem criar duas possibilidades ou seja, a maneira como determinados sujeitos ocupam
esse solo, utilizam e valorizam os recursos existentes,
que são fundamentais para o tipo de ensino de História que
como constroem sua história, como produzem
proponho: capacitar o aluno para entender e analisar vários tipos edificações e objetos, conhecimentos, usos e costumes.
de linguagens: escrita, computacional, audiovisual e imagética; (LONDRES, 2000, p.123).
e incluir no cotidiano da sala de aula o hábito, o gosto pela No Piauí, desde 2002, a cidade de Oeiras (primeira capital)
pesquisa, motivando os alunos a produzirem conhecimentos a é um dos municípios elegíveis pelo Monumenta (Programa
partir da investigação. de recuperação do patrimônio cultural urbano brasileiro,
executado pelo Ministério da Cultura e financiado pelo BIRD
Penso que é urgente estruturar atividades que incentivem
– Banco Interamericano de Desenvolvimento). A partir de
a reflexão sobre a realidade dos alunos e de sua comunidade,
então, ações de intervenção para conservação, preservação e
comparando-a com outras realidades, em outros tempos e espaços,
restauro de bens culturais são realizadas. Dentre elas: o restauro
a fim de identificar as relações entre o particular e o geral, o local
da Ponte do Riacho da Mocha; das cinco capelas dos passos
e o global; é preciso perceber as diferenças e as semelhanças, as
da paixão; do Sobrado Major Selemérico, do Café Oeiras, e,
continuidades, as descontinuidades, os conflitos, as contradições
mais recentemente, ainda em execução, a restauração das vias
e as transformações, para que os alunos possam compreendê-la,
públicas do centro histórico da cidade.
identificar problemas, manifestar opiniões, elaborar conclusões,
propor e desenvolver ações, participando como sujeitos ativos No entanto, essas intervenções ocorrem sem o
do processo de construção de conhecimento. acompanhamento de ações educativas, importantes para a
ampliação do conhecimento e valorização do Patrimônio Cultural
A partir dessas reflexões, tomo o patrimônio cultural
da comunidade, ações reconhecidamente importantes para
como temática para pensar o ensino de História, reflito sobre
revitalizarem Sítios Históricos Urbanos Nacionais e Conjuntos
as possibilidades temáticas diversas que apontam para questões
Urbanos de Monumentos Nacionais, de maneira sustentada.
recorrentes na sociedade atual. Penso que trazer para a discussão
As ações educativas permitem às populações a compreensão,
com os alunos o patrimônio cultural brasileiro é fazê-los reconhecer
o reconhecimento, a valorização e a preservação dos aspectos
e respeitar a diversidade cultural dos povos e de sua própria
ligados ao patrimônio material e imaterial de suas localidades;
localidade. Temáticas relacionadas ao patrimônio cultural podem
contribuem economicamente para a melhoria das condições
ser significativas para se pensar a cultura local, a globalização.
socioculturais das comunidades.
[...] quando se trata de solo virgem, inexplorado, mas
de regiões que têm história, tradições, ou seja, quando O ato de apreender ‘referências culturais’ pressupõe
se trata de um solo ‘cultivado’, que tem cultura inscrita não apenas a captação de determinadas representações
nele, pensar em uma intervenção, mesmo que seja com simbólicas como também a elaboração de relações entre
o objetivo de ‘preservar o patrimônio’, implica em uma elas, e a construção de sistemas que ‘falem’ daquele
reorientação do uso desse solo. Trata-se de levar em contexto cultural, no sentido de representá-lo [...]. Nessa
conta um ambiente, que não se constitui apenas de perspectiva, os sujeitos dos diferentes contextos culturais
natureza [...] mas, sobretudo, de um processo cultural – têm um papel não apenas de informantes [grifo da
40 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 41
autora] como também de intérpretes de seu patrimônio O patrimônio cultural não pode ser considerado somente
cultural [...]. Conhecer é o primeiro passo para ‘proteger’
como um conjunto de bens móveis e imóveis, que representam
(LONDRES, 2000, p.124).
a memória de uma nação e seja protegido por leis e instituições
No Brasil, inúmeras experiências e atividades educativas em nível governamental, mas, para além disso, caracteriza-se
se realizam em diferentes contextos e localidades, e se mostram por tantas outras formas de expressão cultural de uma região.
surpreendentes na recuperação da memória coletiva, no ato de A herança imaterial de uma localidade se manifesta na
trazer à tona a autoestima das comunidades, no desenvolvimento interação da comunidade com o ambiente, com a natureza e
local e no encontro de soluções inovadoras de preservação do com as condições de sua existência. O patrimônio cultural
patrimônio cultural. deve ser a alma de uma localidade, expressa através de saberes,
O ensino de História permite a realização de ações lugares,celebrações e formas de expressão, visíveis no artesanato, nas
educativas, que contemplem bens de natureza tangível e maneiras e modos do fazer cotidiano da comunidade: culinária,
intangível, material e imaterial; permite a valorização do danças, músicas, rituais, festas religiosas, populares etc. É
conhecimento e aprendizado na educação formal e informal. É preciso que as pessoas participem do processo de construção
preciso refletir sobre instrumentos de formação que permitam o e de enraizamento, que aprendam a respeitar e conservar o
efetivo trabalho docente, com a temática do patrimônio cultural patrimônio cultural da região (GONÇALVES, 2002). É preciso
nos currículos e disciplinas do sistema formal de ensino; ou envolver a comunidade em ações de natureza educativa para se
ainda pensar em ações que sirvam de motivação, individual e construir uma postura crítica, consciente, e, acima de tudo, ativa
coletiva, que despertem para a prática da cidadania e para o no desenvolvimento e vivência de ações cidadãs.
estabelecimento de um diálogo enriquecedor entre as gerações.
As temáticas ligadas ao patrimônio cultural são pouco
As ações educativas devem ser elaboradas pelo tratadas nas escolas, estão ausentes e distantes da maioria da
professor; após um diagnóstico de realidade, ele deve levantar população brasileira. Contudo, é preciso pensar a Educação
questionamentos: como uma comunidade pode valorizar o Patrimonial como um instrumento importante na construção de
patrimônio cultural sem conhecê-lo, sem se orgulhar de sua ações e práticas de reconhecimento, valorização, preservação e
memória, de sua história e de suas referências culturais? conservação do patrimônio cultural de uma determinada região,
Nesse sentido, acredito que o envolvimento direto de por possibilitar a interpretação dos bens culturais, tornando-os
professores e comunidade do entorno da escola, na exploração um instrumento de promoção e vivência da cidadania.
de temáticas relacionadas ao Patrimônio Cultural, em suas Sugiro aos professores de História que realizem oficinas
atividades pedagógicas cotidianas, pode ser um caminho com os alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental,
possível. É preciso que os educadores conheçam as metodologias utilizem metodologias de educação patrimonial para
de educação patrimonial, que têm como princípio básico a compreender e valorizar o Patrimônio Cultural. Nessas
experiência direta dos bens e fenômenos culturais. oficinas, a experiência dos facilitadores (professores) pode ser
42 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 43
enriquecida pela contribuição de cada aluno em diferentes ter a pretensão de apresentar roteiros metodológicos fixos
contextos. Proponho metodologias que privilegiem o diálogo e definitivos, mas ser capaz de dialogar com os alunos, o que
com a comunidade local, que formem sujeitos capazes de permitirá a construção, desde o início do trabalho, de uma
promover o reencontro da comunidade com ela própria, com responsabilidade mútua entre o público-alvo (alunos e pais de
seus valores e suas tradições culturais. alunos) e os facilitadores.
É preciso reconhecer que só uma ação dialógica permite Os facilitadores devem construir com os alunos o registro
ações coerentes e voltadas para o crescimento e despertar da das atividades ao longo das oficinas, o que permitirá a produção,
comunidade, pela interação, troca e confiança estabelecida em processo, de um material didático de apoio impresso, um
entre alunos, professores e família. Nessas oficinas, alunos, guia de educação patrimonial e de um vídeo participativo, para
professores e pais podem fazer o registro de vivências, saberes, as futuras atividades cotidianas do professor (facilitador) em sala
experiências e práticas, para compor um material de apoio de aula e na comunidade.
didático-pedagógico construído ao longo do trabalho para
Proponho que, ao longo das oficinas, sob a orientação
uso futuro dos professores em sala de aula e comunidade. A
dos professores, se construam conceitos, roteiros de passeios
construção de um vídeo registro-participativo e de um guia
pela cidade, a partir de patrimônios culturais indicados pelos
impresso de educação patrimonial produzido por professores
alunos. O que apontamos é uma possibilidade de trabalho com
e alunos poderá servir futuramente como material de apoio
o ensino de História, em que os educadores colaborem, para que
didático para multiplicação de ações de educação patrimonial,
se compreendam, valorizem e preservem os aspectos ligados ao
com outros professores, alunos e com a comunidade em geral.
patrimônio material e imaterial, por meio de uma metodologia
Acredito que essas ações permitem aos professores de educação patrimonial a ser desenvolvida nas escolas, tornando
(facilitadores) disseminar a noção de patrimônio cultural de alunos e pais de alunos multiplicadores em questões referentes
modo a contribuir para a sua compreensão, reconhecimento, ao Patrimônio Cultural, colaborando, assim, para a valorização e
valorização e preservação da cultura e identidades locais, preservação da história, memória e cultura locais.
além de tornar o tema patrimônio cultural mais conhecido
As oficinas podem ter como mote norteador o patrimônio
na comunidade, incorporando a temática como elemento
cultural local e permitir que os alunos, futuros multiplicadores,
efetivo do currículo e não apenas como tema ilustrativo;
fortaleçam as relações que mantêm com a sua herança cultural,
é possível que essas ações colaborem na recuperação da
criando uma atitude mais próxima com os bens culturais.
memória coletiva, da autoestima, do desenvolvimento local,
As oficinas permitirão, ainda, que os alunos e pais de alunos
e para o encontro de soluções inovadoras de preservação do
reconheçam nos bens culturais locais aspectos de suas identidades
patrimônio cultural.
e passem a perceber a sua responsabilidade com a valorização
É preciso deixar claro que o facilitador, ao privilegiar e preservação do Patrimônio, fortalecendo a cidadania e a
uma metodologia possível de educação patrimonial, não deve inclusão social.
44 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 45
Ao longo das oficinas, as atividades devem ser orientadas desvendamento das relações que se estabelecem entre os
e registradas em palavras e imagens (fotografias e vídeos) de grupos humanos em diferentes tempos e espaços” (KARNAL,
modo que se produzam documentos para um Guia impresso 2003, p.42). O ensino de História e os conhecimentos
de educação patrimonial e um registro audiovisual. O guia históricos propõem uma reflexão sobre os diferentes tempos
impresso deve conter, além de informações sobre os bens e relação com os grupos humanos.
culturais locais, orientações didáticas para trabalho pedagógico
Assim, a partir do ensino de História, é possível se
em sala de aula com o tema Patrimônio Cultural.
desenvolver uma temática transversal e interdisciplinar no âmbito
Entendo que a escola não pode servir como mera escolar, elegendo como tema o Patrimônio e as Referências
reprodutora de conteúdos, dissociados da realidade dos Culturais. A transversalidade e a interdisciplinaridade apontam
educandos. Nas propostas apresentadas nos PCNs (1997, p. para mudanças nas práticas pedagógicas, rompendo, assim, com
45), os conteúdos “[...] revelam um compromisso da instituição a limitação dos professores e das atividades formais.
escolar em garantir o acesso aos saberes elaborados socialmente,
pois estes se constituem como instituição para o desenvolvimento, Nesse sentido, é importante destacar o Patrimônio e as
a socialização, o exercício da cidadania democrática”. Referências Culturais, propondo aos professores uma reflexão
sobre a importância dessas temáticas por meio de metodologias
Desse modo, os conteúdos devem estar em consonância de Educação Patrimonial, inserindo-as nos currículos escolares,
com as questões sociais e culturais recorrentes no cotidiano, ou como forma de desenvolvimento da prática de reconhecimento,
seja, “[...] os alunos devem aprender mais do que conteúdos e valorização, conservação e divulgação do Patrimônio Histórico-
incorporar a reflexão crítica” (KARNAL, 2003, p.63). Cultural.
A instituição escolar tem que “[...] desenvolver um A educação patrimonial é elemento a ser considerado
projeto de educação comprometido com o desenvolvimento de no processo de salvaguarda das referências culturais. É
capacidades que permitam intervir na realidade para transformá- preciso que os educadores assumam esse compromisso e criem
la” (PCNs, 1997, p.27). Portanto, deve contribuir para a formação possibilidades de trabalhos teóricos e de campo para auxiliar
de cidadãos críticos, que elaborem seus próprios conceitos e sejam a comunidade no processo de interlocução com a memória,
capazes de refletir livremente. com os lugares de memória, com a história local. É preciso
Nesse sentido, o ensino de História atua com o despertar as populações para a percepção e valorização de
objetivo de “[...] orientar o aluno a desenvolver uma leitura lugares, saberes, celebrações, por meio de apreensões visuais
crescentemente objetiva da realidade social, uma leitura que dos bens da comunidade. A educação patrimonial poder ser
deverá ser, necessariamente, mediada pelos conceitos das um instrumento pedagógico interessante no ensino formal
ciências sociais” (NIKITIUK, 2004, p.55). Deve-se refletir e não-formal; além de ser um instrumento de inclusão e
também sobre o conhecimento histórico que objetiva “[...] cidadania, na medida em que as pessoas forem sensibilizadas
a compreensão dos processos e dos sujeitos históricos, o para a autoleitura e a autoconscientização.
46 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 47
A noção de patrimônio está ligada à ideia de herança importância do reconhecimento e da valorização do patrimônio
paterna, bens de família, dotes ordinários, complexos de bens cultural brasileiro.
materiais ou não, direitos, ações, posses; enfim, tudo o que
A Educação Patrimonial pode ser compreendida, nesse
pertença a uma pessoa e seja suscetível de apreciação econômica.
contexto, como “[...] um processo permanente e sistemático de
Pode-se pensar ainda o patrimônio como bem ou conjunto de
bens naturais ou culturais de importância reconhecida num trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como
determinado lugar, região, país ou mesmo para a humanidade, fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual
que possa vir a ser objeto de tombamento para que seja protegido e coletivo” (HORTA, 1996, p.6). A preocupação com a temática
e preservado. Os legisladores, na Constituição Federal de 1988, da Educação Patrimonial teve início no Brasil a partir de 1983,
ampliaram a noção de Patrimônio Cultural, que passou a ser com a realização do 1º Seminário de Educação Patrimonial, no
“[...] todos os bens materiais e imateriais que sejam portadores Museu Imperial, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, inspirado
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes no trabalho pedagógico desenvolvido na Inglaterra. Com base
grupos formadores da sociedade brasileira”. A Organização naquele encontro, algumas ações relacionadas à Educação
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura define Patrimonial passaram a ser desenvolvidas pelo poder público,
Patrimônio Cultural como sendo “[...] os sítios arqueológicos, com a discussão e futura inserção da temática da Educação
os monumentos e grupos de edifício e locais históricos que Patrimonial nos currículos escolares.
tenham valor estético, arqueológico, científico, etnográfico ou
O Guia Básico de Educação Patrimonial (1996) apresenta
antropológico”.
conceitos, critérios, objetivos, metodologias, sugestões de
Ao considerar esses conceitos, é possível dizer que a noção de atividades e referências que orientam a elaboração e o
Patrimônio Cultural refere-se aos bens materiais e imateriais que desenvolvimento de ações, que podem auxiliar e contribuir
caracterizam um povo, nação ou região, levando em consideração para a Educação Patrimonial. Para Horta (1996, p.5), “[...] a
o valor histórico-cultural, para a preservação da memória e expressão Educação Patrimonial vem se tornando cada vez mais
identidade da humanidade como para sua posterioridade. familiar e frequente no trabalho dos museus e dos responsáveis
Portanto, é o produto da cultura. pela preservação, identificação e valorização do Patrimônio
Nesse contexto, cultura é entendida como “[...] processo Cultural em nosso país”.
eminentemente dinâmico, transmitido de geração em geração, O importante, nesse momento, é refletir sobre a necessidade
que se aprende com os ancestrais e se cria e recria no cotidiano do de desenvolver estudos e atividades relacionadas à educação
presente na solução dos pequenos e grandes problemas que cada patrimonial nas escolas de ensino básico, ampliando referências
sociedade ou indivíduo enfrenta” (HORTA, 1996, p.7). e metodologias para uma parcela maior de educadores, alunos
Quando falo em cultura, não posso esquecer que o Brasil e famílias, que, em sua maioria, desconhecem as temáticas e
é um país marcado por uma enorme diversidade cultural, daí a metodologias associadas ao tema.
48 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 49
No Brasil, a destruição do Patrimônio Cultural, infelizmente, A Educação Patrimonial, como proposta transversal
é uma realidade. É preciso que a temática e as metodologias e interdisciplinar para o ensino de História, objetiva o
associadas à Educação Patrimonial estendam-se às escolas, e que as desenvolvimento de habilidades para alunos e professores, além
crianças, desde cedo, tenham contato com o Patrimônio Cultural. de auxiliar as escolas no seu papel educacional, comprometida
Assim, a escola, a família, os alunos e os educadores assumirão com a realidade histórico-cultural da sociedade.
a responsabilidade para com o conhecimento e a preservação
patrimonial em suas comunidades. É possível afirmar que a Analisar a temática da Educação Patrimonial é uma ação
Educação Patrimonial estimula e valoriza a apropriação da herança necessária, que permite uma relação de autoconhecimento dos
cultural pela sociedade, sendo uma apropriação que orienta a atores sociais e dos bens culturais das comunidades. É através
preservação sustentável dos bens, fortalecendo os sentimentos de do conhecimento que se criam perspectivas de conservação
identidade e de cidadania de um povo, de uma nação. e preservação. A inserção efetiva da Educação Patrimonial
nos currículos escolares aponta para uma solução concreta,
O processo educativo, em qualquer área do conhecimento, proporcionando o conhecimento do patrimônio cultural. A
tem como objetivo proporcionar aos alunos a utilização de Educação Patrimonial é um instrumento que já vem sendo
capacidades intelectuais para a aquisição e uso de conceitos e adotado pelas escolas brasileiras como um meio capaz de alcançar
habilidades, na prática, em sua vida diária e no próprio processo a sociedade e sensibilizá-la de sua responsabilidade para com os
educacional. O uso leva à aquisição de novas habilidades e bens patrimoniais.
conceitos. Para Horta (1999, p.3):
A Educação Patrimonial consiste em provocar situações de
Os municípios brasileiros precisam participar ativamente
aprendizagem sobre o processo cultural e, a partir de suas dessas discussões, desse processo de divulgação do Patrimônio
manifestações, despertar, no aluno, o interesse em resolver Cultural, despertando nas crianças o interesse pela cultura
questões significativas para sua própria vida pessoal e local. É preciso, portanto, analisar as questões relativas ao
coletiva. O patrimônio histórico e o meio ambiente em que
está inserido oferecem oportunidades de provocar nos Patrimônio Cultural e à Educação Patrimonial: conceitos,
alunos sentimentos de surpresa e curiosidade, levando-os referências e metodologias; identificar e analisar políticas de
a querer conhecer mais sobre eles. Nesse sentido, podemos preservação do Patrimônio Cultural; propor ações educativas
falar na ‘necessidade do passado’, para compreendermos
para a conservação e preservação do Patrimônio Histórico-
melhor o ‘presente’ e projetarmos o ‘futuro’. Os estudos dos
remanescentes do passado motivam-nos a compreender e Cultural; analisar as metodologias de Educação Patrimonial
avaliar o modo de vida e os problemas enfrentados pelos como contribuição significativa para o reconhecimento de
que nos antecederam, as soluções que encontraram para bens culturais, como elementos da memória e de identidade de
enfrentar esses problemas e desafios, e a compará-las com
as soluções que encontramos para os mesmos problemas comunidade; identificar acervos documentais como fontes de
(moradia, saneamento, abastecimento de água etc.). conhecimento para o desenvolvimento de ações de preservação
Podemos facilmente comparar essas soluções ideais para o e conservação de bens culturais.
futuro, um exercício de consciência crítica e de cidadania.
50 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 51
A produção de inventários, documentários e oficinas pode de ensinar História deve ser outra, que valorize a cultura como
ser valiosa para o processo de educação patrimonial. No Piauí, um conjunto de signos e significados que devem ser partilhados
há uma experiência com a produção do Inventário Nacional de e construídos por nós, para que possamos explicar o mundo
Referências Culturais (INRC). Os pesquisadores identificaram, onde vivemos.
documentaram e registraram a Arte Santeira na categoria ofício
Em várias partes do mundo encontramos monumentos,
e modos de fazer. O trabalho foi realizado pelos pesquisadores
sítios históricos e paisagens culturais; entretanto, não só de bens
do Grupo de Pesquisa do CNPq/UFPI “Ensino, Memória e
culturais materiais se constitui a cultura de um povo. Existem
Patrimônio Cultural”.
outras referências, tais como: tradições, folclore, saberes, festas,
Além de oficinas, de inventários que envolvam alunos e que são exemplos de aspectos e manifestações, transmitidos
professores de Graduação e Pós-Graduação, é possível pensar oralmente, materializados em ofícios e modos de fazer, que são
também em uma pesquisa histórico-etnográfica que tenha como recriados individual e coletivamente, modificados ao longo do
produto um documentário. Podemos tomar como referência a tempo, de geração em geração.
Procissão de Bom Jesus dos Passos, na cidade de Oeiras, no Piauí,
por referenciar crenças e rituais emblemáticos da religiosidade Ao considerar essas reflexões, apontadas neste texto,
do Nordeste brasileiro. acredito que um ensino de História no qual os professores
utilizem metodologias de educação patrimonial pode promover
As celebrações permitem conhecer, divulgar, reconhecer as interfaces entre história, memória e patrimônio cultural,
e salvaguardar manifestações culturais brasileiras. Sabemos possibilitando, assim, o reconhecimento e a preservação de
da necessidade de preservar saberes, experiências e práticas manifestações culturais significativas para a cultura local. É
tradicionais, que divulguem e estimulem o fortalecimento de importante recuperar, conhecer e saber preservar elementos
identidades e referências culturais e permitam a melhoria das importantes do patrimônio cultural brasileiro, não apenas para
condições de vida cotidiana da comunidade. apreciar, mas para democratizar o acesso e sugerir políticas de
Trabalhar com Educação Patrimonial é lançar mão de uso sustentável desse patrimônio para as gerações futuras e
diversas atividades, linguagens e suportes. Enquanto professora para a melhoria das condições de vida e de trabalho de seus
de História, tenho sentido a necessidade de trabalhar mais produtores.
com temáticas ligadas à História local: objetos, problemas e Atualmente, diversas instituições governamentais e não-
interpretações que privilegiem a História do Piauí. governamentais, pesquisadores e especialistas em patrimônio
Reafirmo que ensinar História não mais pode ser uma cultural alertam para a importância da conservação de bens
atividade inocente, em que o professor enumera uma quantidade imateriais, e sugerem pesquisas no sentido de estudar a natureza
infinita de nomes, datas, causas, consequências, que não fazem histórica, antropológica e etnográfica dessas produções, para
sentido para os alunos. Se o olhar de Clio mudou e volta-se, garantir o reconhecimento e a valorização de produções
hoje, para outros problemas e linguagens, a nossa perspectiva culturais.
52 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Áurea da Paz Pinheiro 53
É necessário propor ações que contribuam para a Referências
preservação, proteção e promoção do patrimônio cultural
brasileiro, que utilizem instrumentos que possibilitem a
ampliação de ações junto à sociedade, especialmente entre as
comunidades menos privilegiadas, que há muito tempo anseiam
BARROS, José D’Assunção. O campo da História. Petrópolis - RJ: Vozes,
por um reconhecimento de suas contribuições para a formação
2004.
do patrimônio cultural brasileiro.
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BURKE, Peter. A escola dos Annales. 1929-1989. A revolução francesa
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 31. ed. São Paulo: Paz e
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ed. São Paulo: Cortez, 2004.
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temas transversais ética / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:
MEC / SEF, 1997.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: introdução aos
54 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC / SEF, 1997.
Por um ensino que deforme:
o docente na pós-modernidade
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: pluralidade cultural /
Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1997. Durval Muniz de Albuquerque Júnior*
PINHEIRO, Áurea. Passos de Oeiras. Documentário Etnográfico. Rio
de Janeiro: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular /Associação
Cultural de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro / Minc /
Iphan / Petrobras, 2007.
______. Inventário Nacional de Referências Culturais: arte santeira do Caso aceitemos que a pós-modernidade é nossa condição
Piauí (INRC). Teresina: Ministério da Cultura / Iphan, 2008. histórica, como enunciam autores de tradição filosófica tão
distintas, como Jean-François Lyotard (2002), David Harvey
PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Congos: ritmo e devoção.
(1992) e Frederic Jameson (1987), que estamos deixando de
Documentário Etnográfico. Brasília: Momumenta / Minc / Iphan / BIRD,
2009. ser modernos, ou que jamais fomos modernos, como defende
Bruno Latour (1994), podemos nos interrogar qual o lugar
PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Celebrações / Celebrations. que ainda ocupam as instituições sociais que surgiram com
Brasília: Momumenta / Minc / Iphan / BIRD, 2009.
o mundo moderno e que continuam ainda entre nós? Caso
PINSKI, Carla (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006. aceitemos que, como enuncia Gilles Deleuze (1992), estamos
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos. deixando a sociedade das disciplinas, tão bem analisada por
Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Michel Foucault (1992), e vivemos agora uma sociedade do
controle, que papel ainda pode exercer as instituições que
______. Memória e identidade social. Estudos históricos. Rio de Janeiro,
CPDOC-FGV, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. aquela sociedade disciplinar deu origem? A que mutações estão
sujeitas para continuarem a funcionar em nossa sociedade?
Caso estejamos em uma nova configuração histórica, a que
mutações estão submetidos os lugares de sujeito, as identidades,
as subjetividades, neste novo tempo e a que modalidades de
processos de subjetivação estamos submetidos?
* Doutor em História pela Unicamp, Professor da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte e Presidente da ANPUH – Associação Nacional de História.
56 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 57
Entre todas as instituições que a modernidade fez emergir, que a instituição escolar já não gozava da irrestrita legitimidade
entre todas aquelas que a sociedade disciplinar proporcionou a social que ainda se acreditava possuir. Este desprestígio social do
constituição, a escola é uma das mais exemplares, entre outros professor não se materializa, apenas, na redução progressiva de
motivos, por ser destinada à produção de subjetividades, à sua remuneração, em todos os níveis de ensino, mas no próprio
produção de sujeitos, à construção e veiculação de identidades, desprestígio da profissão, na perda de status, de valor simbólico
à definição de lugares de sujeito. A escola é uma das instituições da profissão na vida social.
sociais da modernidade que continua existindo entre nós nestes
Caberia, portanto, perguntar-se: o que provoca esta
tempos pós-modernos. Instituição que ainda goza de prestígio
crise da instituição escolar e, por extensão, da profissão
social, se comparada com outras instituições modernas, como o
docente? Se a transição para uma sociedade pós-moderna
manicômio e a prisão, cada vez mais contestados e defrontados
implicou uma crise da escola, por que isto ocorre? E, diante
com propostas imediatas de extinção ou reforma radical. Ainda
deste quadro, caberia também indagar se ainda é possível
não se imagina a possibilidade de uma sociedade sem escola, da
ser professor ou o que poderia ser ensinar nesta sociedade
mesma forma que achamos possível viver sem manicômios. Como
pós-moderna. Tentarei neste texto esboçar algumas análises
é característica das instituições sociais, a escola, quase sempre,
e levantar algumas possíveis respostas para estas questões.
nos aparece naturalizada, como se sempre tivesse existido, como
Questões difíceis, notadamente para nós historiadores, que,
se não fosse uma criação social e histórica recente, como se não
por muito tempo, fomos treinados para ignorar o tempo
fosse pensável o seu desaparecimento. Ao mesmo tempo, vozes
presente, nos refugiando no passado, que seria pretensamente
de todos os lugares da sociedade enunciam a crise da escola e,
uma temporalidade concluída, fechada, da qual poderíamos
como também é comum na história das instituições modernas,
apanhar uma verdade de conjunto. Fomos aconselhados
propõem a sua urgente e necessária reforma.
sempre a não nos aventurarmos na análise do presente, porque
Nesta anunciada crise da instituição escolar, um tema que este ainda está em fluxo, ainda está em movimento. Estamos
se debate, cada vez com mais vigor, é o lugar do professor. Como misturados e implicados nele, e isto dificultaria a pretensa
fica o professor nesta realidade escolar que parece tornar-se cada abordagem objetiva e distanciada desta realidade. Princípio
vez mais hostil às suas pretensões de ensinar, de ser o sujeito da alienação dos historiadores, regra que facilitava a estes
da formação dos alunos? Atravessada e sitiada por mudanças profissionais tornarem-se agentes da legitimação, justamente
econômicas, políticas, sociais e culturais diversas, a escola e com dos poderes do presente, esta deve ser abandonada para que
ela a profissão docente, tal como foi definida na modernidade, possamos ter uma função social que não seja a da conservação
parece estar em processo de se inviabilizar, ou, no mínimo, e da manutenção do status quo. A desnaturalização do presente,
de perder a importância e a centralidade social que já teve. O a sua colocação em uma perspectiva temporal, e sua conexão
desprestígio social do professor, da profissão docente, talvez aos devires são a nossa tarefa. Enunciar os pontos de fuga, os
tenha antecedido o próprio desprestígio social da escola, do pontos de sutura, as virtualidades que habitam nosso tempo
ensino escolar; talvez tenha sido um dos primeiros indícios de podem ser tarefas que ainda temos a cumprir.
58 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 59
A escola moderna foi ideada como uma instituição que pode atender. Embora seja mantida, em nível dos discursos, a
deveria formar o cidadão burguês, que deveria educar sob os responsabilidade das famílias em relação à educação das crianças, à
princípios da razão, que deveria explorar as potencialidades medida que se torna uma tarefa de Estado, leva a um afastamento
das faculdades humanas para tornar o homem um ser superior, progressivo dos pais da escola e à crescente entrega da educação
sendo capaz de torná-lo um ser livre, dono de si próprio, dos filhos ao aparato escolar, que tende a expandir-se para
consciente de si, da natureza e da sociedade que o cercava. A atendê-las cada vez mais precocemente, desresponsabilizando os
escola tinha, seja na versão iluminista, seja na versão romântica, pais de tal tarefa, processo que atinge todas as camadas sociais. A
a tarefa humanista de fazer do homem o senhor do mundo e chamada crise da escola pública se dá, justamente, no momento
de si mesmo. Aí se devia transmitir o saber que iria fazer a em que os filhos das camadas populares adquirem o direito e as
criança sair de seu estado de menoridade e atingir o estado de condições mínimas de nela ingressar. Elitista em sua formulação,
maioridade, pelo domínio racional do mundo, superando os pensada para a formação das elites dirigentes, embora desde o
mitos, as mistificações, as superstições, o estágio pré-científico de começo o discurso a destine ao povo, a escola se vê inviabilizada
domínio do mundo e da sociedade. A escola prometia preparar quando grupos sociais com valores, comportamentos, hábitos,
cidadãos, pessoas que amassem a pátria, que amassem a espécie, costumes os mais diversos vêm aí encontrar-se. A cultura escolar,
que estivessem dispostas a se sacrificar em nome do bem público, uma cultura marcada por valores burgueses, por valores de classe
em nome de sua pátria, em nome da humanidade. A escola média, vê-se confrontada com alunos que têm comportamentos,
surge, pois, como uma maquinaria destinada a produzir sujeitos, valores, costumes, formas de ser, cada vez mais difíceis de conviver
a produzir subjetividades, a produzir corpos treinados e hábeis, a pacificamente. Os conflitos entre pessoas com concepções sobre
produzir formas de pensamento e de sensibilidade adequados à o mundo bastante diversas, com experiências de vida bastante
ordem social burguesa. A escola surge como uma das instituições diversificadas tornam-se inevitáveis. Mesmo nas escolas privadas,
destinadas a disciplinar corpos e mentes, a disciplinar o próprio nas escolas onde o púbico é mais homogêneo quando se refere
saber, sua produção e transmissão. A escola surge como local de à origem social, o choque vai se dar, principalmente, com os
produção de subjetividades serializadas e massificadas, ao mesmo professores, originários, quase sempre, de outra realidade social,
tempo em que prometia formar indivíduos. à medida que o desprestígio da profissão atrai para ela pessoas das
camadas populares. O desnível social entre alunos e professores
Nascida do processo de solapamento da centralidade da dará origem a uma inversão da hierarquia de poder tradicional
família no processo de educação da criança, nascida do processo na sala de aula. Em uma sociedade da mercadoria, do espetáculo,
de governamentalização que leva o Estado a interferir, cada do status sinalizado por símbolos externos de riqueza, o professor
vez mais, na vida doméstica, a substituir muitas das atribuições proletarizado vai, cada vez mais, destoar de sua clientela. Pensada
antes reservadas a pais, preceptores, tutores, governantas, amas como instituição disciplinadora, a escola passa a viver uma crise da
etc., a escola assume tarefas que, à medida que a sociedade se disciplina. As atitudes de delinquência, tal como entende Michel
complexifica cada vez mais, que se massifica, com a entrada de de Certeau (2000), vêm cada vez mais habitar o espaço ordenado,
indivíduos pertencentes a todas as camadas sociais, não mais disciplinado da sala de aula. O aluno rebelde, mal comportado, o
60 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 61
aluno problema torna-se uma norma, e não uma anormalidade, sem que a preocupação seja primordialmente com a aquisição
uma anomalia a ser cercada, reprimida, extirpada. Os sistemas de saberes e habilidades.
classificatórios que imperavam na escola, apanágio de toda
No Brasil, uma sociedade profundamente hierárquica e
instituição moderna, seus códigos internos de funcionamento,
excludente, a escola foi, durante muito tempo, um privilégio de
seus códigos que marcavam fronteiras, que instituíam hierarquias,
classe, de etnia e de gênero. A escola estava destinada à formação
que definiam inclusões e exclusões, que decidiam o prêmio e
a punição, que definiam excomunhões e comunhões, parecem de uma dada elite que se dizia branca, notadamente dos homens
entrar em ruína. A escola, uma instituição voltada a reproduzir filhos destas elites. Pensar que só a partir dos anos cinquenta do
e ensinar a ordem, vê-se tomada pela desordem. E no meio século XX o ensino começa a massificar-se no Brasil, a chegar à
destas mutações, atônito, encontra-se o agente principal de toda zona rural, outra realidade comumente excluída, a ser acessível
esta maquinaria, o responsável pela aplicação, quase sempre às mulheres, a dar acesso às camadas médias e a alguns elementos
irrefletida e mecânica destes códigos, o professor, que vê sua da raça negra, que ainda lutam hoje em dia por pleno acesso a
autoridade tradicional contestada, que vê sua centralidade no ela, tudo isso dá a medida do caráter excludente desta escola.
processo ensino-aprendizagem questionada. Normalmente lamenta-se a perda de qualidade do ensino público
no Brasil, mas poucas vezes se diz que isto ocorreu, justamente,
Nascida do discurso humanista, do pensamento político quando este deixou de ser voltado para a formação das elites
liberal, a escola é inicialmente pensada como uma atividade sociais. Estamos assistindo a este processo nas Universidades, em
inerente às atribuições do Estado, que deve preparar a elite nossos dias. Da mesma forma, não podemos deixar de associar
dirigente que vai ocupar os postos da administração pública, o declínio do prestígio social da profissão de professor, com o
que deve ser racionalizada e gerida profissionalmente. A processo de feminilização da profissão, notadamente, no ensino
burocratização do Estado moderno, como definiu Weber básico, ou ao fato de esta profissão ter passado a ser demandada,
(2004), depende da formação de técnicos pelo ensino escolar. preferencialmente, por pessoas advindas dos setores de classe
Este também deve, já no começo do século XX, prover de mão- média baixa ou mesmo dos setores populares. Isto gera uma
de-obra especializada as empresas capitalistas em expansão cada espécie de círculo vicioso; por ser uma profissão desqualificada
vez mais acelerada. Inicialmente pensada como uma instituição no mercado de trabalho, ela atrai, no momento do acesso através
distanciada dos interesses imediatos do capital, ao longo do dos exames vestibulares, pessoas advindas das camadas populares,
século XX, as escolas se tornaram lucrativo ramo de negócios,
que tiveram uma formação escolar deficiente, e estas podem
em que poderosas empresas vieram atuar. As boas intenções
demandá-la, justamente, por seu menor prestígio.
definidas no projeto que deu origem à escola moderna se veem
assim atravessadas por interesses mercantis, que a tornam um Em uma sociedade na qual a informação circula em
simples investimento, tanto da parte do empresário, como, em abundância através de várias centrais de distribuição de sentido,
muitos casos, por parte dos próprios alunos, que ali vão buscar em que a produção de subjetividades e de sujeitos, em que a
apenas um título que lhes dê acesso ao mercado de cargos e produção de identidades se veem cada vez mais descentradas da
funções no Estado, nas empresas ou nas profissões liberais, escola, em que as mídias, as tecnologias de informação, a circulação
62 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 63
eletrônica do saber, a própria diversidade das possibilidades de ressocializar aqueles que vêm para seu interior, nunca foi capaz de
experimentação e de aprendizado trazidas pela vida urbana, cada fazê-lo; no entanto, sua existência é pouco contestada, justamente
vez mais complexa e diversificada, o espaço escolar tradicional foi, porque sua funcionalidade se destina propriamente a quem está
cada vez mais, desinvestido de significação, de desejo, de sedução no seu exterior: ela serve para amedrontar, para fazer a ordem e
para os alunos e, mesmo, para professores, muito desmotivados o poder funcionarem junto àqueles que ainda estão fora dela. A
e quase sempre encarando o ensino como uma mera obrigação, ameaça de ir para a prisão paira sobre todos nós e nos faz adotar
um trabalho assalariado como outro qualquer: alienado, tedioso, atitudes conforme a ordem social requer.
repetitivo, massificado, pouco criativo, uma tarefa que dela se Talvez possamos pensar que o fracasso da escola também
tenta livrar o mais rápido possível. O desencantamento da escola, seja funcional à sociedade em que vivemos, embora todos os
e o desinvestimento social na vida escolar trazem para seu interior discursos políticos, pedagógicos, midiáticos tratem a escola e
alunos e professores desmotivados, perdidos, sem objetivos seu bom funcionamento como uma verdadeira panaceia que vai
claros, preocupados apenas com a chancela que esta oferece resolver os mais diversos problemas sociais. Realmente, parecemos
para investimentos futuros na vida, seus títulos e prebendas que acreditar que a educação escolar resolveria os problemas sociais,
passam ser o fim em si mesmo da vida escolar. A escola é cada os problemas políticos, os problemas de cunho moral e ético pelos
vez mais um espaço desinteressante, um espaço que revela toda quais passamos. Da mesma forma que receitamos o trabalho
a engrenagem disciplinar que a fundamenta, sem oferecer em como um poderoso antídoto contra o que consideramos ser os
contrapartida nenhuma compensação simbólica, imaginária, para problemas de nossa sociedade, sempre fazemos o mesmo com a
o seu existir. A escola, como vários projetos modernos, diante de educação. Embora saibamos que a escola que temos não agrada a
seu aparente fracasso, poucas alternativas tem a oferecer. ninguém que está dentro dela, continuamos contraditoriamente
Mas será que a escola é mesmo um fracasso, será mesmo achando que ela é a solução para os problemas de quem dela está
excluído. Nunca nos perguntamos se esta forma de funcionamento
que ela está em crise? Michel Foucault (2007) ao estudar a prisão,
da escola não é adequada a esta ordem social, produtora de
outra instituição moderna, vai chamar a atenção para o fato de
hierarquias, de desigualdades, de exclusões, de segmentações que
que desde que surgiu a prisão é contestada quanto à sua eficácia,
temos. Talvez o estado social em que vivemos tivesse dificuldade
quanto à sua capacidade de atender a seus objetivos. Desde que
de se reproduzir se a escola fosse diferente do que é.
a prisão emergiu como forma privilegiada de punir no Ocidente,
que já se enuncia seu fracasso e se propõe sua reforma. Mas, nos Provavelmente, por mais contraditório que possa parecer,
alerta Foucault, que reside, justamente, no seu alegado fracasso a primeira atitude que nós professores possamos tomar para
a funcionalidade da prisão, sua razão de existir, seu sucesso em modificar as formas e maneiras de ensinar seja questionar a própria
reproduzir as relações de poder, a ordem social da qual surgiu. escola, o ensino escolar, a escolarização, seja a problematização
A prisão, ao contrário do que trombeteiam os discursos que a da própria ideia de formação escolar, que naturalizamos. A
legitimam, desde o princípio, não está destinada àqueles que própria ideia e formação deve ser problematizada, como faz
caem em suas grades. A prisão, embora prometa recuperar e Michel Serres (1997). Ideia de matriz naturalista, surgida com
64 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 65
Rousseau (2007) no século XVIII, ainda no século XIX, a ideia pensada como formação vai propor-se a ser uma educação integral,
de formação transporta para o campo do humano, para o campo que dá conta de todos os aspectos da vida, que prepara física,
do saber um raciocínio evolucionista que começava a surgir no mental e moralmente o futuro cidadão. Apanágio da vitória final
campo da História Natural e que seria apropriado por campos da ordem burguesa, a educação como formação pretende moldar
de saber tão distintos como a Biologia, a Economia, a Sociologia os sujeitos para que se incorporem perfeitamente à ordem social.
e a História. Esta ideia, que aparece ainda em Lineau, no seu Quando isto não ocorre, aparecerá o que se chama de fracasso
estágio inicial, como aquilo que dá uma ordem às espécies animais escolar, e o aluno marcado com esta identidade será cercado
e vegetais, que as organizam como árvores, como ramificações por uma maquinaria de práticas e discursos da pedagogia, da
nascidas de raízes e troncos comuns, que está presente na própria psicologia, que visam corrigi-lo, recuperá-lo, discipliná-lo, puni-
semente, promessa de desenvolvimento posterior, de germinação lo, visando seu sucesso e seu retorno à ordem escolar.
de um ser que se vai formar, ganhar forma progressivamente, A ideia evolucionista de formação tem como característica
com o tempo, vai aparecer com força privilegiada no discurso central pensar a educação como um processo contínuo no tempo,
pedagógico e psicológico. A ideia que somos seres que se formam, como um processo contínuo no espaço social. A escola que forma,
que ganham forma com o tempo, a ideia de que cabe ao processo forma para a sociedade da qual provém, a escola se coloca como
educacional, que cabe à escola, e nela ao professor dar forma a um espaço de continuação, de reprodução da ordem social, do
esta matéria disforme, esta matéria plástica, esta matéria infante tempo social em que está situada. Embora muitas pedagogias que
que é a criança. A escola seria assim lugar de modelagem de se nomeiam de críticas tenham pensado a instituição escolar como
corpos e espíritos, de construção de perfis, de personalidades, de um lugar onde se poderiam formar agentes críticos da realidade
caracteres, de almas e mentes (2007). social, sujeitos descomprometidos com a ordem vigente, sujeitos
capazes de transformar a realidade social esbarravam na própria
A formação sendo comumente pensada como o processo
aporia de se pensar uma pedagogia crítica: uma pedagogia
pelo qual a criança seria socializada, integrada à ordem social,
crítica é possível? Como uma maquinaria de práticas e discursos
assimilaria os códigos sociais e culturais hegemônicos. A formação
que visam enformar ou formar alguém, como um conjunto de
escolar mostra assim, de saída, sua dimensão conservadora.
prescrições pode levar alguém a ser crítico, se a crítica nasce da
Formar-se seria incorporar os valores da ordem burguesa que
possibilidade de ser deseducado, mal-educado, da capacidade de
se tornava vitoriosa. A educação é pensada como formação,
se deformar, de propor e adquirir novas formas de subjetividade
desde pelo menos o final do século XIX, substituindo a educação
em descompasso com as modelizações subjetivas, as subjetividades
pensada como instrução, como mero acúmulo de saberes, como
pret-à-porté, como diz Rolnik (2006), que a escola, que os modelos
a memorização e aquisição de uma grande quantidade de
pedagógicos nos tentam ensinar?
informações, como erudição, que será criticada por não atender
imediatamente o interesse social, e concentrar-se na dimensão Por isso venho aqui propor que precisamos de um
intelectual da educação, negligenciando aspectos como a educação professor que deforme e não que forme, um professor que ponha
física ou a educação técnica, voltada para o trabalho. A educação em questão, primeiro em sua própria vida, em sua práticas e
66 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 67
discursos, os códigos sociais em que foi formado. Professor que acabar com a instituição escolar. Como toda instituição moderna, a
pense o ensinar como uma atividade de autotransformação, escola vive sua crise terminal. As reformas não conseguirão, como
como uma atividade diária de mutação do que considera ser sua nunca conseguiram, modificar sua estrutura, que tende a tornar-
subjetividade, sua identidade, seu Eu. O ensinar como a abertura se cada vez mais desinteressante, insuportável, desinvestida de
para se deixar afetar pelas forças e matérias sociais que o convocam valor, de sedução, de desejo. Ela se torna, cada vez mais, o que é
a elaborar-se permanentemente, a escreverem a si próprio, a em essência: um aparelho burocrático, um lugar de rotina, uma
cuidarem de si mesmos, em uma atividade ética que pressupõe repartição pública, e sabemos o quanto existe de criatividade e
abrir-se para o outro, para o diferente, para o estranho, para o de investimento subjetivo numa repartição pública. A escola
estrangeiro, para o não-sabido, o não-pensado, o não-valorado. está se tornando, como previra Kafka (2005), afrontado com a
Ensinar não como uma atividade centrada na transmissão de burocratização da sociedade, um lugar de zumbis, de professores
verdades, do que é a certeza, o aceito, o já pensado, o consensual, e alunos autômatos, que não sabem direito por que estão ali,
o que se dá como inquestionável. Ensinar como o ato de se abrir mas que apenas executam rotinas, como peças de uma grande
para questionar as certezas, as verdades, o aceito, o consenso, o máquina, que, assim como na fábrica moderna, não sabem sequer
que não se questiona. Ensinar pensado não como uma atividade qual o produto final que estão produzindo. A desmotivação, a falta
que supõe uma hierarquia, uma desigualdade de saber entre de adesão às atividades escolares, a falta de se colocar à disposição
professor e aluno, mas como uma atividade relacional, em que para o que aí ocorre demonstram claramente esta robotização da
alunos e professor têm o que aprender um com o outro. atividade escolar.
O ensino que deforma seria aquele que investe na O ensino que deforma é aquele que investe na
desconstrução do próprio ensino escolarizado, rotinizado, desmontagem dos sujeitos, dos modelos de subjetividades, das
massificado, disciplinado, sem criatividade, monótono, o ensino identidades dos que chegam à escola, tanto de professores quanto
profissional, o ensino obrigatório, o ensino como máquina de de alunos. É aquele que questiona, descontinua os valores que
salvação ou de moralização. O ensino que deforma é aquele que formam a sociedade circundante. Um ensino que problematiza
aposta em formas novas, maneiras novas de praticar as relações de as verdades que constituem nossa realidade, que põe em questão
aprendizagem. Ensino no qual não teria lugar a rotina, a mesmice, a as verdades que articulam as imagens de sujeito que cada um
homogeneidade dos saberes e procedimentos, em que a disciplina tem de si mesmo. É um ensino que desorienta, que desmonta,
ou as disciplinas não seriam o fundamental, mas a criatividade, a que torna problemática a relação de si para consigo mesmo e
capacidade de pensar coisas novas, de formular novos conceitos, para com os outros, com a sociedade de que participam seus
de praticar atividades desrotinizadas, lúdicas, atividades capazes agentes. Um ensino que não fornece certezas, verdades, mas
de estimular a sensibilidade, práticas e formas de pensamento que cria dúvidas, instaura o impasse, põe em questão o dogma
capazes de oferecer às crianças matérias e formas de expressão e o que é tido como natural, justo, certo, belo, bom. O ensino
para elaborarem subjetividades, subjetivarem distintas formas de que desvaloriza os valores, que tenta pensá-los como produtos
se dizer Eu. Talvez este ensino para existir tenha que começar por de dados interesses, que estes têm uma história. Um ensino que
68 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 69
desarruma o arrumado, que gera a indisciplina no pensar e no educados de forma obsoleta, ao chegarem às escolas, constatam
agir. Para isso a escola deveria não ter medo de rebeldia nem desiludidos e desestimulados que são muito inovadores e criativos
de contestação; mas é tudo que seus agentes temem. Os agentes para a escola que encontram. A tendência é que rapidamente
da vida escolar adoram o aluno quieto, disciplinado, certinho, incorporem a cultura escolar, esqueçam os modelos moderninhos
autista, catatônico, deserotizado. O aluno padrão, que não se que aprenderam nas aulas de Prática de Ensino e se conformem
singulariza, aquele que não se importa de ser apenas mais um, às demandas e regras desta cultura escolar rotineira e que tem
uma cifra, um número de matrícula, um nome a mais na lista de pouco lugar para o professor contestador ou inovador. A maneira
chamada. Os agentes escolares adoram alunos que não querem como os professores de História utilizam os livros didáticos é um
aparecer, que não querem se destacar, ou que se destacam exemplo significativo disto. Após ouvirem durante sua Graduação
por serem obedientes, por seguirem todas as ordens, por não inúmeras críticas ao uso do livro didático como material único
reclamarem, por serem bem adaptados à cultura escolar. e exclusivo para o ensino da História, ao chegarem às escolas,
pressionados pela cultura escolar que consagra o livro didático
Considero que o papel do professor na sociedade pós-
como o único e principal recurso didático a ser usado, passam a
moderna, se ainda terá algum, está sendo irremediavelmente
reproduzir esta atitude, até porque ela é mais fácil, ela evita maior
modificado. O professor vai perdendo a centralidade no
trabalho, para um profissional já normalmente sobrecarregado
processo ensino-aprendizagem, que pelo menos pensava ter na
por diversos turnos de trabalho.
modernidade, para assumir uma função auxiliar ou coadjuvante.
O aluno assume agora a centralidade do seu próprio processo de Vive-se no País a ilusão de que a escola será salva pela
aprendizagem. Tendo a sua disposição um cem número de centrais inversão de maior volume de recursos no pagamento de salários
de distribuição de saberes, o aluno não mais depende tanto da para os professores e no aparelhamento e modernização dos
escola para se socializar, ter acesso a informações e conhecimentos, espaços físicos das escolas. Da mesma forma que se considera que
que pode adquirir com a ajuda crescente de máquinas e mídias. O os presídios de segurança máxima, com câmeras de vídeo para
professor que não se atualiza, que não está a par com o que ocorre vigiar os presos e com bloqueadores de celulares vão resolver o
nestes contextos midiáticos, rapidamente torna-se um professor problema das prisões. Não resolverão, porque o problema está nas
obsoleto, um professor tão amarelado como sua ficha de aula, que próprias instituições, nas concepções modernas que as forjaram e
costuma repetir todos os anos para seus alunos, que tenderão a as sustentam. A escola não é só constituída de paredes, máquinas,
considerá-lo uma relíquia da natureza como o celacanto. Neste funcionários, professores e alunos. A escola é uma cultura, um
aspecto, nossos cursos universitários de Licenciatura podem ser conjunto de concepções filosóficas, políticas, pedagógicas, éticas,
chamados de fábricas de celacantos, porque formam professores econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é
já completamente obsoletos, professores para uma sociedade uma rede de relações humanas com todas as dimensões que estas
que não mais existe, para uma escola que só os admite porque compreendem. Aumentar salários não é garantia de professores
é mais atrasada do que eles próprios. Este círculo vicioso está mais engajados na vida escolar, mais motivados, mais criativos,
pondo fim à escola e à profissão docente. Licenciandos que já são menos dóceis em relação à cultura escolar. Talvez mais bem pagos
70 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Durval Muniz de Albuquerque Júnior 71
se tornem, na verdade, mais dóceis, mais conformados, mais justificada pela remuneração insuficiente, sua falta de empenho,
adaptados à ordem, mais rotineiros, mais satisfeitos com o status sua pouca criatividade, seu baixo investimento subjetivo em suas
quo. Os melhores equipamentos em nada modificarão o ensino, se atividades, não fazem tudo continuar como está? Então, para que
sua concepção não se modificar, pois depende do uso que deles se preocupar com eles? As atitudes dos professores legitimam até
será feito. Uma boa biblioteca em uma escola não é garantia de o pouco que ganham, então para que dar a eles remuneração
melhor ensino, se os professores e os alunos não se dispuserem a digna, se eles não desempenham dignamente as atividades que
fazer dela uso criativo e singular. lhes são conferidas? Os professores esperam ter melhores salários
para melhorarem como professores, e sendo ruins legitimam que
Nunca pensamos porque o Estado, as elites, aqueles que
os salários sejam baixos. Os alunos são ruins porque os professores
dominam apresentam a escola como sendo a salvação para todos,
e a escola são ruins, e assim se justifica que assim continuem, já
embora a abandonem muitas vezes a um estado de penúria
que tanto os professores quanto a administração da escola terão
financeira. Isso demonstra que a escola não os incomoda, que
um álibi para continuar ruins, já que os alunos seriam também,
a escola tem se comportado bem em seu papel de reproduzir
a culpa seria, portanto, deles. Este jogo de empurra demonstra
a ordem, de reproduzir a exclusão social, de reproduzir os
a falência da instituição escolar e a necessidade de que pensemos
preconceitos e conceitos que sustentam esta ordem social.
outras formas de educar, outras formas de ensinar, outras formas
Talvez, por isso mesmo, não tenha atraído a atenção, tenha
de sermos professores e alunos, talvez livres da escolarização,
sido relegada ao segundo plano. Não porque se comporte mal,
desta instituição moderna em via de desaparecimento.
seja um perigo para o poder e para a dominação como certos
discursos advogam. As esquerdas sempre adoraram a escola e a
educação, considerando-as formas de libertação e da produção
da consciência crítica. Nos países em que conquistaram o poder
de Estado, investiram maciçamente em educação, escolarizaram
toda a população, fazendo de toda a rede de ensino uma fabulosa
maquinaria de reprodução ideológica dos regimes. Nestes países,
como nos nossos, as escolas também têm-se comportado muito
bem, têm desempenhado seu papel de reprodutoras da ordem,
de fabricadoras de subjetividades massificadas e em série, corpos e
mentes dóceis e a serviço dos regimes, seja de que extração política
for. Talvez por isso sejam esquecidas, abandonadas, deixadas
entregues ao seu cotidiano rotineiro e empobrecido em todos
os aspectos. Já que não incomodam, para que se preocupar com
elas? Os professores mal pagos não continuam desempenhando
o seu papel de não questionar a sociedade? Sua negligência
72 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
Referências A função social dos arquivos e
o patrimônio documental
Heloísa Liberalli Bellotto*
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes,
2000. v. 1.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In:
Conversações. Rio de Janeiro: 34, 1992. p. 219-226.
Sabemos que os arquivos públicos [quando permanentes ou
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. históricos] existem com a função precípua de recolher, preservar e
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. organizar fundos documentais originados na área governamental.
Compete a essas instituições elaborarem instrumentos de pesquisa
JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo que descrevam, em menor ou maior abrangência, ou mesmo
tardio. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.
grau de detalhe, as informações contidas nos documentos por
KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. elas custodiados. O usuário desses acervos pode ser a própria
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. administração, o historiador, e/ou pesquisador em geral e o
cidadão, à busca de seus direitos, deveres ou conhecimento do
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: 34, 1994. passado da sociedade em que vive e atua. É a esse usuário que
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 7. ed. Rio de esses arquivos públicos devem atender preferencialmente, pois
Janeiro: José Olympio, 2002. tais instituições foram criadas para atender às necessidades da
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental. Porto Alegre: Sulina, 2006. administração e do cidadão. Como tal, o arquivo, ou melhor, os
documentos de arquivo, quando produzidos e usados, na sua
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Lisboa: Edipro, 2007. primeira idade, tendo valor de prova, constituem o arsenal da
SERRES, Michel. Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo. Lisboa: administração e, na fase permanente, quando já cumpridas as
Instituto Piaget, 1997. razões pelas quais foram criados, tendo agora valor de informação
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São e testemunho histórico, constituem a “consciência histórica” da
Paulo: Companhia das Letras, 2004. mesma administração e da sociedade em geral. Em primeira
* Professora da Universidade de São Paulo e do Curso Anual de Maestría
en Gestión de Documentos y Administración de Archivos da Universidad
Internacional de Andalucía [Espanha], consultora do Projeto Resgate do
Ministério da Cultura do Brasil.
74 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Heloísa Liberalli Bellotto 75
instância, o documento serviu de prova administrativa e jurídica; permitir que esta seja conhecida e reconhecida através dele”
em uma segunda, servirá ao historiador à procura dos dados (GARCÍA BELSUNCE, 1982).
do passado, e também poderá ser a “consciência histórica” da
Ora, esses produtos – capazes de, por sua caracterização,
comunidade, caso essa saiba utilizar bem todas as potencialidades
traçar uma unicidade e personalização do perfil da comunidade
que, nesse sentido, lhe oferecem o acervo dos arquivos.
que os produz – podem ser, desde as composições musicais, as
Esse conjunto de documentos, considerados de valor danças, as lendas, os livros, os filmes, os objetos artísticos e de
permanente, e, portanto, “salvos” da eliminação criteriosa que se artesanato até os produtos da vida científica, os da tecnologia
deve processar nos documentos, cujas informações são acessórias até os testemunhos escritos da vida política, social, econômica,
e repetitivas, esse conjunto constituirá o arquivo histórico, mental, administrativa, religiosa etc. Enquanto portadores
passando a fazer parte do patrimônio documental, incluído no de informação, estão em suportes diversos, que os tornam
patrimônio cultural, seja de uma comunidade, cidade, estado/ documentos comprobatórios de seus respectivos objetivos. Esses
província ou país. produtos, passado o seu uso primário, funcional e utilitário,
segundo a razão pela qual foram criados, serão armazenados, por
A preservação do patrimônio cultural significa a preservação
seleção [segundo criteriosas tabelas de temporalidade] ou por
da memória de uma dada sociedade que tenha produzido e
amostragem, para sua devida preservação e fruição em seu uso
acumulado aquele patrimônio, que é a soma dos saberes, fazeres,
secundário, científico, cultural.
comportamentos e experiências, a partir de seus objetos, registros
e produtos concretos, produzidos ao longo da história dessa Os bens culturais podem ser bens imóveis [edifícios
sociedade. Na verdade, o patrimônio se constitui de “restos” ou públicos, igrejas, monumentos, casas particulares etc.] ou bens
“traços” [mesmo se conservando íntegros e inteiros, porque serão móveis [documentos, livros, esculturas, quadros etc.]. Esses
amostragens] daqueles elementos, quando, passada a utilização últimos irão, seletivamente, segundo suas origens e finalidades,
que motivou a razão de ser de sua criação, são preservados por para os museus, bibliotecas, arquivos, centros de documentação,
essa mesma sociedade. ou vão constar, como informação devidamente codificada, dos
bancos e das bases de dados. Todos são documentos que, se
Os bens culturais de natureza imóvel serão devidamente
atinentes ao passado, possibilitam a reconstituição histórica,
conservados em seus lugares; se móveis e portáteis, devidamente
o conhecimento e a explicação da sequência dos fenômenos,
recolhidos às instituições culturais, formando o conjunto
orientando, pois, os estudos da linha evolutiva de uma
integral do patrimônio cultural. Comecemos, portanto, por
sociedade. Caso os documentos sejam atinentes ao presente,
definir o que é bem cultural, para chegarmos, dentre eles, aos
acompanham/testemunham a vida em curso desta sociedade
documentos de arquivo.
que os produz, dando ampla visão horizontal de como se inter-
Os bens culturais formam o “[...] conjunto de relacionam as pessoas/fatos/acontecimentos dentro dela. São
processos criadores e dos produtos criados que evidenciam bens culturais móveis e imóveis diversos, produtos econômicos,
as características distintas de pertencerem a tal sociedade, e criações artísticas, relatórios científicos etc., que informam,
76 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Heloísa Liberalli Bellotto 77
ensinam, testemunham; são documentos, desde que a expressão neste momento]. Esta diferenciação pode advir do material de
manifestada esteja registrada em um suporte. O exemplo é claro. seu suporte, da forma, formato, gênero e espécie, do sistema de
O samba é um bem cultural brasileiro, enquanto documento, signos usado para registrar-se a informação, da finalidade de sua
deve estar registrado em uma partitura musical, num disco ou criação e do público que a utiliza e consome.
fita gravada, em vídeo, na trilha sonora de um filme etc., para
As instituições armazenadoras/referenciadoras de
que possa ser conhecido, fruído, usado.
documentos – bibliotecas, arquivos, museus, centros de
Há autores que consideram três as categorias de bens documentação, bancos de dados – lidam com a primeira categoria
culturais, porque, além dos bens móveis e imóveis, consideram os desses bens culturais, os “documentos” móveis; já para os imóveis
elementos da natureza, tais como os recursos naturais, as paisagens são registrados por meio de reproduções em pequena escala de
[porém esta, em seu habitat, já que as coleções paleontológicas e volume e tamanho, fotografias, desenhos, filmes etc., inclusive
geológicas estariam entre os bens móveis]. em suporte eletrônico e em formas virtuais. Os documentos de
biblioteca são resultados de criações individuais ou coletivas,
O mais usual é que sejam levadas em conta as duas
espontâneas, sejam de natureza científica, técnica, artística,
categorias supramencionadas de bens culturais documentados,
filosófica, humanística, de entretenimento etc., como resultado de
definindo claramente:
manifestação, pesquisa ou reflexão realizada com a finalidade de
1 Os bens móveis, tais como livros, documentos textuais informar, instruir, ensinar, entreter ou divulgar, e são, geralmente,
ou gráficos sobre as formas tradicionais de suporte: papiro, registrados em suportes tradicionais ou eletrônicos, sob a
pergaminho ou papel; objetos de interesse artístico, arqueológico, forma de livros, revistas, mapas, gravuras etc. São acumulações
histórico, ecológico, científico, incluindo-se as coleções científicas. seletivas, formando, portanto, coleções. Os documentos de
museu, também formando coleções, são resultados de criações
2 Os bens imóveis, monumentos, obras de arquitetura ou
artísticas espontâneas ou são de origem funcional social ou ainda,
urbanizações inteiras com interesse histórico ou artístico e sítios
funcional da natureza, cuja característica básica é o de serem
arqueológicos.
objetos em duas ou três dimensões, com a finalidade de informar,
Um bem cultural registrado é um documento que pode instruir, ensinar, entreter ou divulgar. Também são acumulações
ser definido como toda experiência humana, ou manifestação seletivas, constituindo, assim, coleções. Os documentos de
da natureza, que esteja registrada em um suporte de onde arquivo são resultados das atividades jurídicas, administrativas e
a informação possa ser conhecida e transferida a qualquer funcionais das pessoas ou das entidades públicas ou privadas, no
momento em que dela se necessite. Documento é, portanto, uma decorrer de suas atividades. Seus suportes são os tradicionais ou
unidade indivisível formada por informação e suporte onde ela os eletrônicos, apresentados em forma de processos, documentos
esteja registrada. Não obstante aparente simplicidade e harmonia avulsos, livros/códices ou desenhos técnicos, sempre com a
há uma gama de diferenciação entre os tipos de documentos finalidade de informar, dispor, provar e testemunhar. São
armazenados [porque é dos armazenados que nos ocupamos acumulações naturais, portanto, organizam-se por fundos e não
78 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Heloísa Liberalli Bellotto 79
são coleções. Os centros de documentação e as bases eletrônicas algo inerente à sociedade que produz/usa/consome o documento
de dados receberão as características das especificidades dos de arquivo, seja ele normativo, testemunhal seja informativo,
documentos que armazenam e reproduzem, no primeiro caso não deixa de ser, antes, elemento do integrante do patrimônio
ou referenciam ou reproduzem, no segundo. Assim emprestarão cultural. Portanto, tanto da perspectiva de uma conceituação
as características do material com que lidam, sejam os típicos de ou de outra, o documento de arquivo, seu conjunto, enfim, o
bibliotecas, de museus ou de arquivos, podendo mesmo lidar com patrimônio documental estará, certamente, presente.
todos ao mesmo tempo, já que não guardam os originais.
Dentro de um sistema de arquivos, constituem o patrimônio
Essa breve caracterização dos três tipos de instituições documental não os documentos de primeira e segunda idade,
documentárias teve a finalidade de traçar um perfil do arquivo, mas os que ainda poderão ser submetidos à eliminação, somente
em comparação com outras instituições, que lhe são paralelas aqueles documentos que já:
e igualmente se ocupam do processo de informação, seu
1 Cumpriram sua função imediata, ligada à razão pela qual
armazenamento, processamento e recuperação para uso de
público variado. No caso dos arquivos, há, ainda, que lembrar a foram gerados.
especificidade das idades arquivísticas, isto é, o fato de existirem 2 Não tramitam mais.
os arquivos correntes, intermediários e permanentes/históricos,
em conformidade com o chamado ciclo vital dos documentos. 3 Passaram pelo arquivo corrente.
Esse traduz as etapas que passam os documentos administrativos 4 Foram submetidos às tabelas de temporalidade, foram
e jurídicos desde a sua criação, tramitação, uso primário e avaliados como de valor permanente, pela densidade de seu
destinação [eliminação ou permanência para uso secundário]. valor informativo testemunhal, tanto para a história institucional
Sem entrar na discussão de que o patrimônio histórico da entidade que os produziu/recebeu/acumulou, quanto para
abrange “[...] somente um segmento de um acervo maior, que é a sociedade, em cujo contexto viveu e atuou a instituição que o
o chamado patrimônio cultural de uma nação ou de um povo” produziu/recebeu/acumulou.
(LEMOS, 1981), restringindo-se aos artefatos ou se podemos Esses conjuntos documentais, portanto, reunidos nos
confundir as duas noções, distinguindo apenas a sutil diferença arquivos permanentes, também chamados históricos, vêm a
de que os elementos do patrimônio cultural estão sempre “em constituir o patrimônio documental institucional, municipal,
andamento”, em produção e uso imediato e de que os elementos provincial/estadual ou nacional.
do patrimônio histórico são produtos acabados, são, mais que
tudo, testemunhos, provas e, por isso mesmo, frequentemente, No sentido do patrimônio documental, isto é, aqueles
amostragens do que já foi utilizado na sua finalidade imediata de documentos que não mais servem para efeitos jurídicos e
criação, vamos tratar do patrimônio documental, que é referente administrativos, os arquivos passam a ter outras utilidades
ao conteúdo dos arquivos permanentes/históricos, e é parte por meio da ação cultural, social e educativa, traduzidas no
bastante significativa do patrimônio histórico. Porém, enquanto atendimento aos alunos do ensino elementar e básico, na realização
80 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Heloísa Liberalli Bellotto 81
de exposições abertas ao grande público, na editoração, não só USP, Marilena Chauí, em 1992, quando era Secretária Municipal
de material histórico e arquivístico, mas também publicações de Cultura em São Paulo, em evento que discutia a questão das
que incentivariam a literatura e o folclore locais, na realização políticas culturais municipais, afirmava:
de espetáculos de poesia, dança e teatro, a partir, sempre, dos Ao definirmos a política cultural como cidadania cultural
elementos da própria cidade e de suas comunidades. e a cultura como direito, estamos operando com os dois
sentidos de cultura: como um fato ao qual temos direito
Essas atividades, há bem pouco tempo, não eram muito como agentes ou sujeitos históricos; como um valor ao
bem aceitas no meio arquivístico nem no meio propriamente qual todos têm direito numa sociedade de classes que
administrativo, em cuja jurisdição se encontram as instituições exclui uma parte de seus cidadãos do direito à criação
e à fruição das obras do pensamento e das obras de arte
arquivísticas. Afinal, para os administradores mais desavisados, [...] a cultura é simultaneamente um fato e um valor, a
o arquivo deveria ser instituição totalmente voltada para o seu enfrentar o paradoxo no qual a cultura é o modo de ser
trabalho em torno do processo informativo, servindo às áreas dos humanos e, no entanto, precisa ser tomada como
governamentais, aos pesquisadores e aos cidadãos! Realmente um direito daqueles humanos que não a podem exercer
plenamente [...] (CHAUÍ, 1992).
o são. Mas, para além de tudo isso, podem também cumprir
uma missão cultural e social. Para aqueles administradores, a Os serviços culturais e educativos nos arquivos expandem-
documentação do arquivo lá se acha organizada para fins de se, na direção do acesso do cidadão ao universo de informações
informação administrativa, jurídica, quando muito histórica, mas de cunho cultural, social, e mesmo de lazer que o arquivo lhe
nunca para aprimoramento cívico, cultural, e muito menos para pode oferecer, ademais de ser o “guardião” dos seus direitos e
entretenimento ou lazer do cidadão. O arquivo deveria servir para deveres cívicos. São os arquivos municipais os mais adequados
a satisfação de suas necessidades civis: comprovação de direitos, para levar avante esse empreendimento, justamente por serem os
consulta a atos legislativos etc., enfim, uma serventia mais jurídica que mais de perto acompanham a vida do cidadão. Até se pode
e administrativa que qualquer outra coisa. demonstrar que esse serviço não extrapola as suas finalidades,
Hoje, entretanto, em alguns setores mais cientes das como se pensava. Chega mesmo a ombrear-se com os demais,
verdadeiras funções sociais dos arquivos, bibliotecas e museus, já se como “função administrativa”. Esse atendimento diferenciado
pensa e se age diferentemente. A verdade é que “[...] as instituições para alguns administradores, juristas e historiadores, entendido
que atuam nas áreas de preservação do patrimônio histórico e como menos importante, mas a “perfumaria” deve ser legitimado
cultural devem promover uma política de divulgação de suas oficialmente como uma ampliação administrativa do aparato
atividades e de esclarecimento de suas práticas e instrumentos arquivístico. A verdade é que os programas educativos e culturais
de ação a fim de estabelecer amplos canais de comunicação são ampliações para fora da sala de leitura/consulta, do serviço
com todos os segmentos da sociedade, de modo claro e direto” normal de referência, isto é, o atendimento normal ao usuário.
(DOCUMENTO FINAL, 1992). O cidadão, sua qualidade de Basta que os arquivistas reconheçam que o público vai além dos
vida e seu aperfeiçoamento em todos os campos devem estar que vêm ao recinto do arquivo, sobretudo, os historiadores, e
presentes nos objetivos das políticas culturais. A professora da perpassam por todos os componentes da comunidade, mesmo
82 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Heloísa Liberalli Bellotto 83
aqueles que nem sequer sabem o que seja o arquivo. Há todo um Contudo, ainda que alguns possam ter a noção, uns mais
público potencial a conquistar (FREEMAN, 1984). outros menos, de que o arquivo é tudo isso, dificilmente eles
pensarão o arquivo como um local onde possam refinar seus
Ademais, há que, também, antes mesmo de instruí-lo,
conhecimentos, entreter-se de forma rica e produtiva para sua
quanto ao serviço educativo, fazer esse público reconhecer o
cultura, obter informações de caráter cultural e artístico. De
que é o arquivo, em geral, e o que é o arquivista. Entidade e
outro lado, muitos gestores desconhecem o quanto o arquivo
profissional desconhecidos na sociedade! Tem-se apenas a vaga
pode fazer para tornar o ensino da História mais prazeroso e
ideia que os arquivos são repositórios de informações, mais ou
compreensivo para os alunos, para os cidadãos. Nem mesmo
menos fidedignas, e que ali existem registros válidos em torno dos
os professores do Ensino Fundamental e Médio, os de História,
direitos e deveres do cidadão para com o Estado e vice-versa; a
inclusive, têm conhecimento dos bons frutos pedagógicos que
população sabe, muito por alto, mais ou menos, que as empresas
poderiam obter junto aos arquivos públicos históricos. Ora,
têm arquivos, que ali estão fixadas as provas da sua existência legal
essa imagem pouco conhecida do arquivo na sociedade pode
e do andamento de suas atividades internas e de sua produção,
mudar, se as instituições arquivísticas e os profissionais por
assim como suas relações com o governo e com outras entidades.
elas responsáveis souberem encaminhar bons programas de
Isto porque, de uma forma ou de outra, uns mais frequentemente,
atividades culturais e educativas em conjunto com os agentes e
outros menos, todos os cidadãos já se depararam ou se depararão
as autoridades da área da Educação.
com a necessidade de fazer uso de registros acumulados, para
terem em mãos provas jurídicas, trabalhistas, militares etc. O sistema de colaboração entre arquivo e escola pode
necessárias à sustentação de seus direitos. Por outro lado, a iniciar-se, por outro lado, com o destacamento, em tempo integral
população termina por ter consciência de que o arquivo, pelos ou em sistema de acumulação com a escola, de um professor
registros juridicamente válidos, é um meio de que a sociedade se da rede oficial para servir no arquivo. Em colaboração com os
vale para cobrar de pessoas e instituições os deveres que elas têm arquivistas, o educador pode planificar e organizar exposições,
a cumprir (BELLOTTO, 1996). montar as aulas e visitas ao arquivo, encarregando-se também
da elaboração de textos pedagógicos. De um lado, a educação
Até a função memória, mesmo que imprecisa, pode ser
não pode perder potencialidades didáticas do arquivo: tornar a
compreendida. Para alguns autores, mesmo
História, de uma vez por todas, uma disciplina prazerosa, que
[...] a percepção do arquivo como depositário da se entende e se acompanha, e não que se decore e tudo se aceite
memória, é provavelmente, a atribuição mais comum e
imediata, já que os políticos, gestores e, inclusive, boa
sem indagações. De outro lado, o arquivo, se não contemplar a
parte dos cidadãos, valorizam a função dos arquivos como importante força social que lhe oferece o mundo escolar, estará
elementos que garantem a possibilidade de promover perdendo uma oportunidade de participar da melhoria das
ou, conforme o caso, recuperar a memória coletiva condições do ensino. Haverá, no jovem, um interesse maior
(ALBERCH E FUGUERAS, 2001).
pela História, seja como aluno, seja como cidadão atuante. Caso
84 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Heloísa Liberalli Bellotto 85
tenha a oportunidade de ter uma apreensão direta e concreta do Referências
conteúdo dos documentos será mais fácil, mais tarde, “encontrar
o caminho” dos arquivos, tornando-se um historiador; senão, ao
menos, como um profissional seja lá de que área for, conhecerá
sua existência e missão, sabendo que deve preservar as fontes ALBERCH I FUGUERAS, Ramon et al. Archivos y cultura: manual de
históricas, mesmo nas entidades privadas (BELLOTTO, 1991). dinamización. Gijón: Trea, 2001.
Como centro armazenador do patrimônio documental, BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Difusão editorial, cultural e educativa em
que é parte do patrimônio histórico e cultural de uma arquivos. In: ______. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2.
ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.
comunidade, de uma cidade, Estado ou país, o arquivo histórico
público define sua posição no contexto administrativo e assegura ______. A imagem do arquivista na sociedade e o ensino da arquivologia.
seu papel no contexto social que integra. Sua função principal é Revista Arquivo & História, Rio de Janeiro, n. 2, p.7-16, 1996.
servir à Administração e à História, mas não se deve descuidar CHAUÍ, Marilena. Política cultural, cultura política e patrimônio
da sua função social. Deve haver um engajamento dos arquivos histórico. In: O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São
em programas de cooperação com as escolas, no sentido de Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 37-46.
ilustrar, animar e aprofundar o ensino da História local, regional
DOCUMENTO FINAL do Congresso Patrimônio Histórico e Cidadania
e mesmo nacional, o que possibilitará a construção de uma In: O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo:
incomparável aura de excelência àquelas suas funções precípuas: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 229-232.
o arquivo histórico público estará contribuindo para formar um
FREEMAN, Elsie. Education Programs: Outreach as na Administrative
cidadão mais apto a compreender o passado da sociedade em
Functions. In: A GARCÍA BELSUNCE, Cesar. Legislación sobre
que vive. As instituições devem empenhar-se na elaboração de protección documental cultural. Seminário Interamericano sobre
programas como palestras, exposições, representações teatrais, Arquivos. Brasília, 1982.
apoio ao turismo local, interesse pelas histórias e documentos
pessoais e familiares da sociedade a que serve. O arquivo, GARCÍA BELSUNCE, J. El uso de los archivos. IX Internacional
Congress on Archives, London, 1980.
incontestavelmente, estará colaborando para forjar um futuro
melhor para esta mesma sociedade. LEMOS, Carlos. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense,
1981.
Experiências negras na
formação da cultura piauiense
Solimar Oliveira Lima*
Iniciar um texto com considerações, um tanto quanto,
impertinentes intenciona provocações. Ciente de que escrevo
para a formação de opiniões, especialmente no campo do ensino
de História, confesso que é este o propósito diante do crescimento,
nos últimos anos, do interesse, na academia, sobre a presença
negra na sociedade brasileira. Duas frentes predominantes
abrem-se quase que concomitantemente no cenário institucional
da educação superior, repercutindo nos diferentes espaços
midiáticos: leituras sobre o passado e presente. Enquanto em
uma predominam as análises tendentes à defesa de um suposto
conforto social entre classes, em outra esforçam-se para arrefecer as
diferenças étnico-raciais e suas decorrentes desigualdades sociais.
Em rigor, este esforço político-acadêmico não é recente entre nós.
Chama a atenção, entretanto, a sua contemporaneidade a serviço
do Estado Democrático de Direito. Neste contexto, as leituras
apontam, no passado e presente, tensões sociais como estratégias
para acordos entre classes, criando-se assim oportunidades
igualitárias para todos os que, em harmonia, comprometem-se,
baseados nas diretrizes constitucionais,”na solução pacífica das
controvérsias”(BRASIL, 1988, p.1).
* Prof. Dr. do Departamento de Ciências Econômicas, Programa de Pós-Graduação
em História, Programa de Pós-Graduação em Politicas Públicas, pesquisador do
NEAB-IFARADÁ da Universidade Federal do Piauí.
88 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Solimar Oliveira Lima 89
Esforçam-se pesquisadores(as) desta tendência, cada vez e visibilidade de sua contribuição, na formação cultural do
mais presentes nos cursos de História, em deformar o processo Brasil. O discurso construído encontra eco bem mais entre os
de desmistificação do paraíso das raças. Parecem, deliberadamente, movimentos organizados e bem menos no Estado. A busca por
recriar experiências, imagens e representações, tidas e apresentadas participação política e cidadania tem referenciado a luta popular
como sociais, que servem ao projeto político de aproximação de no País, especialmente, após a Constituição Federal de 1988,
diferentes sujeitos marcadamente separados por classe, gênero encontrando na reafirmação das diferenças a defesa de políticas
e raça. Creio que devam ter consciência de seus atos, até porque específicas para a igualdade.
muitos exigem consciência de classe por parte dos trabalhadores
No que respeita à população negra, as políticas tornaram-se
no enfrentamento do capital, no fortalecimento do domínio da
até instituídas legalmente no ensino, através da Lei 10.639/2003
população que historicamente esteve mantida sob o julgo da
e, posteriormente, da Lei 11.645/2008. Em que pesem algumas
submissão e exploração das diferentes frações de elite.
iniciativas, limites e inúmeros desafios para a efetivação da
A sociedade capitalista, ainda que em crise, repercutida proposta, é consenso, de Norte a Sul, o seu não cumprimento.
sobremaneira na academia, firma-se ainda mais como experiência O próprio Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
de um modo de produzir, mas também como modo de existir. Este Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais
agonizar do capital por uma nova hegemonia, que também pauta e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana,
a necessidade de uma nova cultura, tem produzido, infelizmente, do Ministério da Educação, reconhece o problema ao tempo em
fôlego e capacidade de renovação. Em uma perspectiva interna, que parece desconhecer a realidade, quando se propõe a ser um
esta renovação precisa de transformações no agir, no processo colaborador do sistema de ensino e suas diferentes instituições,
produtivo, mas necessita desesperadamente no pensar. Em um no cumprimento da legislação para o enfrentamento de “todas as
sentido, pode-se mesmo afirmar que é ao idealismo que o capital formas de preconceito, racismo e discriminação para garantir o
recorre como estratégia de comunicação com a sociedade para direito de aprender e a equidade educacional, a fim de promover
legitimar as mudanças na sua base efetiva de acumulação. Assim, uma sociedade mais justa e solidária” (BRASIL, 2009, p. 23).
como princípio, o capital estabelece as condições de criação e
O objetivo, por si só, no mínimo, parece discutível Deixando
reprodução ampliada das ideias que o legitimam, enquanto
de lado questões extremamente importantes como estruturas e
elas forem relevantes para a proteção de seus interesses.
burocracias de entes federativos (União, Estados e municípios),
Quando as ideias não mais servem, são descartadas, assim como
o Estado finge desconsiderar o processo político que envolve a
idealizadoras(es), defensoras(es), e profissionais aposentadas(os)
questão. Dele resulta ser o capitalismo, na prática, antidemocrático,
pobres, e aí se inclui a maioria das professoras e professores do
embora tenha na sua estrutura ideológica a defesa da igualdade.
Ensino Fundamental e Médio.
Se é apenas para ficar na retórica, então o Plano para a promoção
Dentre as várias iniciativas de intelectuais contemporâneos da educação das relações étnico-raciais mostra-se eficiente. Além
(as), destacam-se as leituras sobre identidades diversas, e no que disso, a concepção do Estado sobre a contribuição da população
respeita as étnicas, aumenta a defesa, em particular, da valorização negra para a cultura brasileira parece desconhecer a história,
90 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Solimar Oliveira Lima 91
embora proponha implementar o ensino de história e cultura historiografia, a rota predominante desde o período de ocupação
afro-brasileira para a consolidação da democracia, certamente e que se constitui na principal rota de comercialização de gado,
também racial. com Pernambuco e Bahia. Trata-se da fronteira do devassamento.
O ocupante Domingos Afonso Mafrense, o Sertão, ratifica o
A Resolução n. 1/2004 do Conselho Nacional de Educação,
percurso e a presença negra na ocupação, em seu testamento, em
que institui as diretrizes curriculares para o tema em questão, 1711, quando se refere a terras devassadas com “gados e escravos”
em seu Art. 2, apresenta a busca por “relações étnico-sociais originários do deslocamento do litoral para os sertões (PEREIRA
positivas”, e complementa no paragrafo 1º, “bem como de atitudes, DA COSTA, 1974, p. 45).
posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade
O final do século XVII, bem como as primeiras décadas
étnico-racial”, para tornar estes cidadãos “capazes de interagir e
do XVIII são marcados pelo deslocamento de ocupadores
de negociar objetivos comuns que garantam a todos respeito aos oriundos da zona açucareira, que se faziam seguir quase que
direitos legais e valorização de identidade”, visando a “busca da exclusivamente por homens escravizados. Esses trabalhadores
consolidação da democracia brasileira” (BRASIL, 2009, p.70). têm duas origens, ou seja, tanto podiam ser os chamados crioulos
A valorização estatal, lamentavelmente endossada por parte do (nascidos no Brasil) como os de nação africana, considerados
movimento social, volta-se com vigor para reabilitar a população ladinos (adequados culturalmente ao novo território). Podemos
negra que negocia no ontem e hoje. constatar por arrolamentos em testamentos do século XVIII
que predominariam trabalhadores crioulos nas propriedades
O Estado aponta para um sistema de ensino que apague a rurais. É crível que os trabalhadores habitavam fazendas dos
marca da população negra sob o domínio da escravidão, e retire senhores em Pernambuco e Bahia, sendo pois priorizados para os
do cenário político contemporâneo e futuro as possibilidades de deslocamentos, provavelmente por estarem estes mais habituados
enfrentamento radical das desigualdades. Sobre o passado, sem às condições para as entradas pelos sertões com o pastoreio.
compreender a resistência negra e o seu movimento de negação
Outra rota de entrada de escravizados no Piauí, ainda
da ordem escravista, é impossível perceber a presença negra na
pouco explorada pela historiografia, foi a marítima, ao Norte, na
cultura brasileira; e para isto é fundamental a História. A História
Vila de Parnaíba. Documentos da Alfândega indicam o lucrativo
que defendemos nos mostra a presença negra e nos revela o lugar
comércio negreiro no que respeita à captação de impostos
das experiências negras no modo de ser do brasileiro.
(APEP, 1697-1833). Nesse caso, além da presença de escravizados
No que respeita ao Piauí, referência onde me sinto mais considerados de nação, predominaria também os trabalhadores
confortável para um diálogo, uma reflexão inicial volta-se para crioulos. Embora não haja referência ao tráfico direto da África,
a origem dessa presença. Tenho desenvolvido esforços, a partir a documentação aponta como origem dos africanos o Maranhão,
de fontes como correspondências oficiais, para (re)construir Ceará, Salvador e Rio de Janeiro, o mesmo valendo para os
um percurso, um caminho da entrada de trabalhadoras(es) crioulos. Essa presença de escravizados indica, portanto, que a
escravizadas(os) no Piauí. Neste aspecto, ganha destaque na exemplo de outros, o porto do Piauí também fez o tráfico negreiro,
92 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Solimar Oliveira Lima 93
especialmente no final do século XVIII. Salvo engano, mas ainda comprometidos, a julgar pela Capital. Segundo uma descrição do
necessitando de comprovação documental, é provável que os Ouvidor Antonio José de Morais Durão, de 1772, Oeiras contava
principais e mais importantes negociadores de trabalhadores com 157 fogos e 692 almas não tem relógio, casas da
escravizados em Parnaíba fossem os charqueadores do Porto das Câmara, cadeia, açougue, ferreiro ou outra qualquer
Barcas (LIMA, 2003, p.10-11). oficina pública. Servem de Câmara umas casas térreas e
sobre o que corre litígio. A cadeia é coisa indigníssima,
Para o século XIX, em que pese o acentuado deslocamento sendo necessário estarem os presos em troncos e ferros,
de trabalhadores para outras regiões, especialmente a partir da para segurança. A casa de açougue é alugada e de mais
coisa nenhuma. As casas da cidade todas são térreas, até o
segunda metade para o Centro-Sul, predominaria, também, próprio palácio do governo. Tem uma rua inteira, outra
a presença de escravizados crioulos. É crível que, embora de uma só face, e metade de outra. Tudo o mais são
predominasse a população masculina, esta característica, neste nomes supostos; o de cidade, verdadeiramente, só goza o
período, se explique pela reprodução vegetativa interna nos nome (MOTT, 1985, p. 74).
domínios senhoriais (NUNES, 2007, p.250-251). A constatação
da predominância de escravizados crioulos nos séculos de Os relatos sobre a cidade no início do século XIX indicam
escravismo no Piauí parece ter relevância. Se a presença negra poucos avanços. Segundo Francisco Xavier Machado, em 1810,
contribuiu para a formação da cultura piauiense foi a partir, Oeiras era “verdadeiramente uma pequena aldeia, sem forma,
predominantemente, das experiências dos homens negros, sem ordem, e pareceu-me não ter, a exceção da câmara, uma
escravizados e libertos, crioulos. única casa de sobrado” (MACHADO, 1854, p.56). Maiores
Uma segunda reflexão nos remete ao espaço das investimentos em infraestrutura foram realizados na cidade nas
experiências negras. A mão-de-obra escravizada, crioula ou décadas seguintes, porém o início da segunda metade do século
africana, como vimos, e ao que tudo indica predominantemente seria marcado pela transferência da capital, em 1852. Haviam sido
masculina crioula, entrando pelo Norte ou pelo Sul, vai se construídos alguns prédios públicos e reformados outros poucos,
distribuir nas estruturas produtivas existentes. Neste particular, entretanto, a saída do governo para Teresina havia deixado a
é possível constatar, tradicionalmente, duas configurações vila “quase em abandono, justamente quando havia começado
espaciais: a urbana e a rural. A categoria urbano deve ser utilizada a respirar ares de desenvolvimento. Nas ruas principais havia
com cautela para o contexto dos séculos iniciais e mesmo para iluminação com lampiões e o calçamento se expandira para além
o XIX. Tratava-se, em rigor, de uma estrutura frágil. Ainda no da praça da Matriz” (LIMA, 2005, p. 63).
final do século XIX, predominariam vilas pequenas, com poucos
domicílios térreos em ruas mal organizadas (BN, I-33, 014-18). Teresina, por sua vez, não se apresenta até o final do século
XIX como uma referência em urbanidade. Apesar dos massivos
Somente em 1762 foram criadas oficialmente vilas em investimentos, alguns prédios públicos só seriam efetivamente
cada uma das sete freguesias existentes na então Capitania. As concluídos no século XX. Na fase inicial, a administração
descrições coevas apontam núcleos populacionais seriamente funcionaria em casas alugadas ou cedidas por particulares. A
94 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Solimar Oliveira Lima 95
cidade se concentraria às margens do rio Parnaíba e em torno das nestas áreas de concentração de pobreza, configurando-se um
duas freguesias, Nossa Senhora do Amparo e Nossa Senhora das arranjo específico das relações sociais, tendo em vista o rígido
Dores. As cercanias do largo do Amparo abrigavam as repartições controle social exercido pelo conjunto da sociedade. As descrições
públicas, as residências principais e os comércios para a classe da ambiência das ruas e dos bairros negros revelam condições de
senhorial. No último quarto do século amplia-se o processo de vida seriamente comprometidas materialmente. Nestas mesmas
crescimento da cidade, em população e ocupação de novas áreas áreas podiam-se também encontrar, de forma predominante, as
com a instalação de moradias, em especial da população pobre, chamadas sociabilidades negras (SILVA [19??], p. 97-123).
brancos, libertos e escravizados (CHAVES, 1994).
Nessa perspectiva, vale pontuar que as experiências entre
O lugar da população negra nas cidades de Oeiras e iguais continuavam a ser reproduzidas como tal mesmo fora destes
Teresina era o destinado ao trabalho escravizado e liberto. A teia espaços cativos. Não havia, portanto, uma interação, tampouco
dominante nos espaços de produção específicos do ambiente integração com as experiências senhoriais, ainda que presentes
citadino imprimia o ritmo possível às relações sociais. Considerando no mesmo espaço, como, por exemplo, as festas públicas, cívicas
as duas principais referências urbanas – especialmente Oeiras e religiosas. As representações sociais das manifestações culturais
pela longa temporalidade de influência na formação social e a da população negra eram intimamente associadas a experiências
fragilidade de suas atividades produtivas, pode-se perceber o típicas, específicas e particulares dos negros. Esta constatação
contexto da inserção da mão-de-obra negra. Como em muitas parece também relevante. Nas vilas, se a presença negra contribuiu
outros espaços citadinos do mesmo porte, o trabalho vinculava-se, para a cultura piauiense foi a partir, sobremodo, das experiências
direta e essencialmente, à satisfação de necessidades das famílias negras em um mundo à parte, incluindo nele todos os segmentos
senhoriais. Nas maiores cidades piauienses, com caráter político- empobrecidos, nos quais o único elemento de comunicação entre
administrativo, que podem ser apontadas como referências na os dois mundos criados era o trabalho, isto é a mão-de-obra de
formação social, as experiências negras estavam, enfatize-se, centenas de trabalhadoras e trabalhadores.
direta e predominantemente, vinculadas ao tempo das exigências
Nas vilas piauienses, incluindo a antiga Oeiras e recente
de submissão e disciplina senhorial. Neste particular, não havia
Teresina, as relações entre a população negra e senhores eram
diferenciação entre escravizados e libertos. A população negra
estabelecidas pelos aprendizados das fazendas. Nas demais
seguiu submetida às mesmas tarefas e serviços, mesmo quando
vilas, o quadro era agravante, uma vez que, em geral, e até a
libertos (SOUSA, 2009, p. 38-59).
segunda metade do século XIX, os proprietários mais abastados
O contexto citadino forjava a materialização das das moradias nestes espaços preferiam residir na zona rural. No
necessidades de submissão e disciplina, criando um mundo à campo, pôde-se constatar, inicialmente, uma característica da
parte para negros, do ponto de vista espacial e social. As áreas ocupação territorial: a dispersão de grandes propriedades com
destinadas, entretanto, não eram exclusivas, eram partilhadas reduzidíssima densidade demográfica. Quadro que só começa
com brancos pobres. Em Oeiras e Teresina podia-se encontrar efetivamente a alterar-se no final do século XVIII. É, portanto,
a existência de permissão senhorial de moradia aos escravizados neste ordenamento estrutural em formação que será introduzida
96 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Solimar Oliveira Lima 97
a mão-de-obra negra escravizada. Deste momento em diante, o não raro instrumentos em péssimo estado de conservação. As
trabalho escravizado será continuamente inserido, até o início da condições de trabalho consumiam rapidamente o trabalhador.
segunda metade do século XIX, de acordo com as necessidades dos Era comum taxar de “velho” um trabalhador com 30 anos.
proprietários. É importante reforçar a ideia de que escravizados Nesta perspectiva, a média da referência existencial, incluindo a
vieram para o Piauí para trabalhar, como foram para todas as capacidade produtiva, para os homens era de 20 anos. Não raro
partes do mundo onde o trabalho compulsório foi condição da os meninos eram introduzidos nas labutas aos sete anos de idade
organização social. (FALCI, 1991, p 39-40).
Onde os proprietários requeriam escravizados, eles estavam, Associado a essas características, como uma decorrência,
na condição que lhes eram impostas. Assim, desenvolveu-se uma pode-se constatar um quadro essencialmente vinculado às
vasta possibilidade de utilização em diferentes tarefas e serviços. experiências negras, quando se tratam de condições gerais
Fontes, como relatórios e correspondências oficiais, indicam que de vida dos escravizados. Jornais coevos, quando descreviam
uma jornada de trabalho diária em uma fazenda podia chegar fugitivos, apontavam, muito nitidamente, o quanto o teor das
a 12 horas, tendendo a aumentar nos períodos de safra. Havia relações sociais e as condições de trabalho comprometiam
portanto, diversificação na utilização do trabalho e prolongadas seriamente o estado físico dos trabalhadores. As caracterizações
jornadas. A tendência ao aumento do tempo de trabalho reduzia vizibilizam negras e negros com curvaturas no corpo e pernas,
as margens de horas destinadas ao trabalho criativo, inclusive membros quebrados, falta de orelhas, dedos, mãos e aleijões nos
daquele que poderia resultar na ampliação da capacidade pés, dentre outros comprometimentos. Além disso, havia grande
produtiva. Através da apropriação do volume e do uso do privação de necessidades consideradas básicas à sobrevivência.
trabalho o sistema escravista tendeu a controlar socialmente não Os trabalhadores, em geral, viviam em condições precárias de
só os trabalhadores, mas também as possibilidades de recriação ou habitabilidade, privados de convivência familiar, alimentavam-se
de reinvenção de experiências. Esta constatação parece também mal, eram mal vestidos, e morriam com facilidade. Predominavam,
relevante. Nas fazendas, se a presença negra contribuiu para a portanto, condições de vida marcadas por fragilidades e aridez.
formação da cultura piauiense, foi a partir, predominantemente, Este terreno árido das relações sociais escravistas parecia pouco
das experiências negras limitadas, reproduzidas com reduzidas fecundo para manifestações duradouras e sistemáticas de vínculos
variações criativas. pessoais e coletivos (COSTA, 2009; LIMA, 2006). Esta constatação
parece também relevante. Nas fazendas, se a presença negra
Nas fazendas, o trabalho se concretizava em condições
contribuiu para a formação da cultura piauiense foi a partir das
muito exaustivas, não só do ponto de vista da jornada de trabalho.
experiências negras em um tempo breve.
A base material de execução das tarefas era extremamente rude, a
começar pela utilização das ferramentas de trabalho. Predominava As condições de trabalho e vida a que estavam submetidos
a força física das trabalhadoras e dos trabalhadores, o que fazia os trabalhadores escravizados na sociedade escravista, portanto na
com que se desgastassem muito, e muito cedo. A base técnica formação cultural do Piauí, parecem indicar que as experiências
além de simples se caracterizava pela disponibilidade do essencial, negras foram condenadas às sombras, postas à margem do modo
98 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Solimar Oliveira Lima 99
de ser do branco de cabedais. Certamente este foi o projeto da
elite dominante para as experiências negras enquanto vigeu o
escravismo. Contudo, a ordem era sistematicamente enfrentada
pela capacidade dos escravizados em resistir ao domínio senhorial. Referências
A resistência tinha, portanto, um cunho de transformação das
relações sociais e recriação de novas possibilidades de vida.
A forma típica de resistência no Piauí foi a individual, travada
no cotidiano, no dia-a-dia, que vai se pautar muito mais em APEP. Oeiras. Contadoria Geral de Tesouraria do Piauí. 1697-1833.
manifestações espontâneas do trabalhador, sobretudo durante a BN. Divisão de manuscritos. I-33, 014-18.
jornada de trabalho. Era comum, afinal, que diante das pressões
BRASIL. Constituição: república Federativa do Brasil. Brasília: Senado
e exigências, as trabalhadoras e trabalhadores se manifestassem Federal, 1988. p. 1.
com ações muito precisas.
______. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
A partir dessas ações espontâneas individuais, que Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino
solapavam a estrutura dominante, travadas no cotidiano, podem- de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: Ministério da
se encontrar as ações aglutinadoras de trabalhadores, conferindo- Educação, 2009. p. 23.
lhes características mais coletivas. Neste particular ganha significado ______. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
especial não o rotineiro ajuntamento para a realização do processo Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino
de trabalho, mas o ajuntamento pontual e sistemático, destinado de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: Ministério da
ao partilhamento das estratégias de reorganização existencial, Educação, 2009. p.70.
no qual eram socializadas diferentes e específicas habilidades e
CHAVES, Monsenhor. Obra completa. Teresina: Fundação Cultural
aprendizagens. Neste tipo de experiências reproduzia-se o sentido Monsenhor Chaves, 1998.
que marcava as ações individuais: em grupos e em diferentes
formas, os trabalhadores estavam resistindo à ordem escravista. COSTA, Francisca Raquel da. Escravidão e conflitos: cotidiano,
resistência e punição de escravos no Piauí na segunda metade do século
Esta constatação parece ser fundamental. Se a presença negra
XIX. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação
contribuiu para a formação da cultura piauiense, foi a partir das
em História, Universidade Federal do Piauí, 2009.
experiências negras de resistência para superação da condição de
escravizados. FALCI, Miridam Britto. A criança na Província do Piauí. Teresina:
APL; São Paulo: USP, 1991. p. 39-40.
FREITAS, Clodoaldo. História de Teresina. Teresina: Fundação
Cultural Monsenhor Chaves, 1988.
LIMA, Solimar Oliveira. Condenados ao trabalho: trabalhadores
escravizados nas fazendas públicas do Piauí (1822-1871). Revista do
100 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
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Patrimônio, história e sociedade
Luiz Fernando Almeida*
Gostaria de parabenizar os organizadores do evento e de
dizer que é um prazer muito grande estar em Teresina. Vim
ao Piauí duas outras vezes, mas não tive a oportunidade de
conhecer a sua capital, pois passei por aqui a caminho de Oeiras.
Tenho um amigo em Brasília que diz o seguinte: “aqueles que
fazem política pública federal se dividem entre os que conhecem
e os que não conhecem Oeiras”. Mas, eu estava devendo uma
visita a Teresina, cidade que não conhecia, apenas a via de cima,
do avião.
Tinha escrito uma palestra para apresentar aqui. Mas, em
razão do perfil do público presente, achei que não deveria ler um
texto previamente preparado, mas sim ajustar a conversa a quem
está aqui, pois raras vezes tenho a oportunidade de falar em um
seminário com essa diversidade de pessoas da Universidade, da
sociedade, do governo. E como é a primeira vez que estou em
Teresina1 vou optar por um discurso mais genérico, para dizer
o que penso sobre o tema da minha conferência, que abrange a
política de cultura e a política de patrimônio no Brasil.
* Presidente do Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
1
Este texto é a transcrição da conferência de abertura da primeira edição
do Congresso Internacional de História e Patrimônio Cultural, realizado na
Universidade Federal do Piauí, em Teresina, em agosto de 2008. O Congresso foi
uma iniciativa da ANPUH, Seção Piauí, e da Superintendência Estadual do Iphan
no Piauí. Transcrição de Adriana Pinheiro Moura, copidesque Áurea Pinheiro.
104 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Luiz Fernando Almeida 105
Os indicadores de cultura no Brasil são absolutamente Além desse isolamento da política cultural, o Ministério
lamentáveis. Temos o pior índice de leitura de livros em comparação da Cultura tinha praticamente 90% de suas ações concentradas
aos países da América Latina. Menos de 5% das cidades brasileiras no Rio de Janeiro e São Paulo. Por quê? Porque o modelo de
têm salas de cinema e menos de 1% da população no Brasil financiamento era aquele que favorecia a produção cultural
frequenta museus. Nossos indicadores culturais são ainda piores associada ao marketing das grandes empresas. Era como se
que os indicadores sociais. Mas há um grande paradoxo porque o Estado tivesse abdicado de seu papel fomentador da cultura
temos, por outro lado, um povo absolutamente culto, o que pode e deixado essa função nas mãos dos interesses empresariais,
ser observado dentro do que entendemos como universo cultural, concentrados nas duas maiores capitais do Sudeste – uma vez que
composto por numerosas manifestações simbólicas e materiais. foi nelas que a economia alcançou maior desenvolvimento nos
últimos anos.
Então, o que temos de inculto é a nossa política pública de
cultura, que é incipiente, limitada. Foi exatamente esse o contexto Esses eram os desafios gerais a serem enfrentados pelo
que encontramos ao entrar no Ministério da Cultura junto com o Ministério da Cultura. Frente a ele, a nossa proposta sempre
ex-ministro Gilberto Gil, no começo de 2003. Ante o diagnóstico foi trabalhar com a cultura [com as políticas de patrimônio,
encontrado, o ministro Gil apresentou dois objetivos ao presidente de audiovisual, das artes etc.] em três âmbitos, absolutamente
Lula. Primeiro, ele pensava, e deixou isso claro para sua equipe, equivalentes. A cultura é um fator de agregação social, pois as
que a cultura deveria fazer parte, teria de ser integrada ao novo comunidades encontram um enlace social profundo por meio de
projeto de desenvolvimento nacional. Segundo, ele defendia que suas manifestações simbólicas. Essa é a primeira dimensão da cultura
o Ministério da Cultura tinha de estar em todo o Brasil, porque [a simbólica]. Já a segunda dimensão [a de cidadania] indica que o
a cultura deve ser entendida dentro de uma lógica que deve trabalho do Ministério deve atender a toda a sociedade brasileira.
interessar a todos, ter uma base transversal. Ou seja, quem faz Então, nem a produção do Ministério, nem a da Secretaria, nem a
cultura não é a instituição pública de cultura, é o povo brasileiro, produção cultural no Brasil devem privilegiar uma ou outra fatia
que deve ser foco da atenção de toda ação governamental. da população. Daí a política de editais, por exemplo, garantindo
o acesso democrático às políticas públicas. Por fim, em sua terceira
Por exemplo: construímos, hoje, cidades como se
dimensão, a cultura se apresenta como fator de desenvolvimento
estivéssemos construindo estradas. Quase não há mais diferença
econômico e humano.
entre uma ponte dentro de uma cidade e uma ponte em uma
rodovia. Parece perdida a compreensão de que a cidade é o lugar Vocês têm um exemplo no Piauí, que é o trabalho feito
onde moramos, onde vivemos e estabelecemos as nossas relações na Serra da Capivara. Ele tem uma peculiaridade: é muito
sociais. Nela, temos que ter o prazer da fruição estética, da vida. difícil trabalhar no campo da arqueologia no Brasil. Isso parece
Mas parece que nos esquecemos disso. Então, o universo da completamente paradoxal, porque aquilo que é antigo deveria
cultura limitou-se ao trabalho setorial das Secretarias de Cultura, ter um significado maior, na medida em que é mais perceptível
das Fundações, do Ministério, como se ele não fosse do interesse como nossa história. No entanto, ocorre o contrário, há um maior
de toda a comunidade e de toda ação do Poder Público. distanciamento com o que é antigo. Porém, existem dentro dessa
106 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Luiz Fernando Almeida 107
história remota experiências quase épicas de uma comunidade. Poderíamos citar como exemplos daquele período a derrubada
Há histórias que ficam para a História, como a de uma pessoa que da Catedral da Sé de Salvador e a da Sé de Diamantina, em Minas
se envolve e empresta a sua vida a uma causa. Gerais, e o desmonte do Morro do Castelo, no Rio de Janeiro.
Enfatize-se, contudo, que há um vínculo que explica Nesse contexto, iniciou-se uma reação de intelectuais
exatamente o terceiro âmbito ou dimensão da cultura, que brasileiros contrários à destruição do patrimônio cultural. Pois
nos faz entendê-la como fator de desenvolvimento econômico. havia, no Estado Novo, uma situação paradoxal: tinha-se uma
Pois a ocorrência da carga épica da ação de preservação do estrutura autoritária que, ao mesmo tempo, incorporava um
Parque Nacional da Serra da Capivara é acompanhada por uma conjunto de intelectuais, entre eles o ministro da Educação
equivalente valorização do patrimônio arqueológico. Que nos Gustavo Capanema. Este se cercou de um grupo muito grande
faz entender que esse patrimônio pode ser um determinante de pensadores e criadores e acabou, na verdade, trazendo para
para o desenvolvimento da região de São Raimundo Nonato. o Poder Público Federal pessoas como Carlos Drummond de
Então, as três dimensões [simbólica, de cidadania e econômica] Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade.
permeiam a ação que temos empreendido no Parque desde o
Em 1936, Rodrigo foi quem encomendou a Mário de
Ministério da Cultura.
Andrade o anteprojeto de criação da Secretaria de Patrimônio, o
No campo do patrimônio, entretanto, temos algumas Serviço de Patrimônio Cultural Brasileiro. Mário era um intelectual
especificidades ligadas à elaboração de uma política pública de para além de seu tempo que estabeleceu um campo de reflexão
cultura no Brasil. São singularidades que considero importante e de conhecimento sobre o Brasil e os brasileiros. Foi ele quem
destacar. Primeiro, a política de patrimônio responde preparou o projeto do Serviço de Patrimônio Histórico Brasileiro,
inicialmente a uma situação de crescimento desenfreado das que certamente era um documento avançado em comparação
cidades brasileiras nos anos 1930. Naquela época, o Estado Novo com a ideia que se tinha do patrimônio até aquele momento em
começava um processo de mudança do eixo econômico, das todo o mundo. Sua proposta incorporava, por exemplo, a ação
estruturas econômicas e sociais. Apareciam, então, outros agentes de preservação tanto do patrimônio material quanto daquilo que
no cenário político, que não mais se restringia à aristocracia rural ele chamava das artes populares, além dos acervos dos grandes
que sustentou a República e o Império. museus nacionais e das peças das artes gráficas - um projeto de
extrema envergadura e abrangência.
O país começava a experimentar um sopro de
desenvolvimento, que se verificava na formação das grandes A partir desse anteprojeto, Rodrigo Melo Franco de
cidades e gerava um choque no mundo estabelecido das nossas Andrade fez suas opções para publicar o Decreto-Lei que
velhas cidades coloniais e imperiais. Houve aí um processo de institucionalizou a política nacional de patrimônio. Rodrigo adotou
demolição, de perda de um patrimônio muito rico no Brasil. as ideias defendidas por Mário de Andrade que, de certa maneira,
Algo que, certamente, é cumulativo, pois não foi encerrado nos respondiam às questões colocadas pela situação social dos anos
anos 1930, ainda que a situação da época fosse emblemática. 1930. Assim, foi estabelecida a instituição do tombamento, que,
108 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Luiz Fernando Almeida 109
dentro da organização social do Estado brasileiro, pela primeira escrava. Ou seja, simbolizava também a mistura, a miscigenação
vez, estabelecia, dentro do regime legal, a possibilidade de que do povo brasileiro. Dessa forma, ao se estabelecer uma política de
um interesse público se sobrepusesse a um interesse privado, algo patrimônio nacional no Brasil, aquilo que se projetava tinha uma
absolutamente inovador. Pois as políticas públicas tradicionais relação muito direta com a construção do projeto da civilização
europeias trabalhavam com o instrumento da desapropriação, da brasileira, da ideia do que é o Brasil, da singularidade na relação
exclusão. Por outro lado, o que estava no projeto do Iphan? Era que estabelecemos em nosso espaço territorial, que nos distingue
a possibilidade de convívio, de compartilhamento de valores, de dos demais países.
conciliação entre o público e privado.
Outra especificidade da criação do Iphan é que parte
Existia no projeto outra singularidade, a criação do significativa dos intelectuais que criaram a instituição não eram
primeiro Conselho de Estado com a presença da sociedade. Um conservadores, eram arquitetos modernos, pensadores, literatos,
órgão destinado a discutir que bens o país deveria proteger, sob faziam literatura moderna. Era algo distinto do processo ocorrido
o ponto de vista de seus valores. Ou seja, havia uma percepção na Europa, onde as políticas de preservação do patrimônio
de que o problema era amplo. Esse instrumento de participação estavam ligadas a ideias saudosistas ou conservadoras.
sustentou avanços quanto ao instrumento do tombamento, ainda
A nossa situação era de reconhecimento de uma
que não incluísse outras dimensões perceptíveis ao patrimônio, o
singularidade étnica, mestiça, impulsionada por um grupo de
que só aconteceu muito tempo depois.
pessoas completamente contemporâneas, que entendia que a
Mais duas circunstâncias precisam ser abordadas para que construção de um projeto novo para o País implicava tanto a
compreendamos o assunto. Fomos uma colônia que se tornou construção de uma arte nova – uma arquitetura, uma arte visual,
mais importante do que a metrópole já no século XVIII. Nos uma arte gráfica nova – quanto a conservação do patrimônio
processos de afirmação da identidade brasileira, surgiu então cultural do país. Algo que é importante para entendermos os
a ideia de que uma arte e uma cultura singular haviam se desafios da política de patrimônio, os desafios que estão colocados
desenvolvido no Brasil. Identificar essa cultura com o Barroco para essa política. Pois, com relação aos limites de abrangência
foi um dos eixos que nortearam essa ação pioneira do Serviço da política de patrimônio, só começamos a superá-los quando
do Patrimônio da União, de modo distinto de outros países que compreendemos e nos apropriamos de instrumentos que nos
tiveram um processo de independência em que o patrimônio possibilitam projetar uma dimensão maior para nossa ação, que
construído era reconhecido como patrimônio da metrópole e não incorpora o que pensamos sobre a cultura brasileira.
da singularidade vivida por aquele povo.
Os novos instrumentos de reconhecimento do patrimônio
No nosso caso, Aleijadinho talvez seja a figura mais imaterial brasileiro são inovadores. O reconhecimento do
emblemática desse processo, porque ele fez um Barroco diferente patrimônio imaterial tem se tornado praticamente uma
do Barroco europeu, com extremo domínio da linguagem, do unanimidade. Reconhecer, por exemplo, que a Capoeira é
estilo. Além disso, ele era mestiço, filho de um português e de uma patrimônio cultural brasileiro, todos concordamos. O que é
110 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Luiz Fernando Almeida 111
fundamental nessa história? É que o Estado incorpora em sua a formulação e reflexão sobre uma política de patrimônio, uma
política uma responsabilidade perante aquela manifestação política de cultura. A primeira questão não resolvida é que uma
cultural. Para além de uma ideia de compensação, de falar que política de preservação cultural do passado deve ser equivalente
a manifestação foi perseguida, que a capoeira foi perseguida, a uma política de criação de um novo patrimônio, quanto ao seu
que o Jongo foi perseguido, reconhecemos e estabelecemos uma conteúdo, instrumentos e formas de fomento. Na mesma medida
política de suporte, de apoio, para a reprodução daquela forma em que conseguimos conservar uma cidade barroca, devemos
de expressão. ter a capacidade de construir uma cidade contemporânea, de
qualidade. Trata-se de um grande desafio para que evitemos o
O Estado brasileiro que considerava apenas as linguagens
processo de empobrecimento que vivenciamos. Todo o Brasil está
tradicionais e estabelecia uma política restritiva, excluindo parte
ficando igualzinho. Você olha as cidades todas do alto e se observar
significativa das manifestações culturais da população, era um
Teresina, ela ficou igual a Maceió. É um conjunto urbano que se
Estado que não tinha diálogo com o povo do país. Rompendo
verticaliza, sob o ponto de vista da linguagem arquitetônica, de
com isso, vivemos um processo novo que é preciso compreender.
maneira idêntica a de qualquer outro centro - Recife, Teresina,
Se olharmos o mapa do que é o patrimônio cultural protegido,
Belém. Tudo o que se constrói hoje não tem mais singularidade.
veremos uma grande concentração em áreas próximas do litoral,
Estamos perdendo a dimensão da nossa diferença, que é a riqueza
na Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco. Esses
da nossa singularidade.
quatro estados concentram em torno de 80% do patrimônio
protegido no Brasil. Portanto, se o nosso olhar busca hoje uma Por isso, devemos ter na área de criação a mesma capacidade
leitura mais ampla, devemos mudar a nossa relação com o nosso de intervenção que temos na área de conservação. Precisamos
território. ter uma política para a arquitetura, que ainda não existe no
Brasil. Também falta investir na educação. Caso realizemos um
Citemos um caso que não é do Piauí, mas sim da região
processo de tombamento de uma cidade, de um edifício, em uma
Norte. Essa região constitui quase 50% do território nacional e
escala estadual ou municipal [algo que ainda imagino acontecer
possui uma grande riqueza de patrimônio imaterial e material.
e estimulo para que aconteça], estaremos afirmando que uma
Mas, até bem pouco tempo atrás, tínhamos apenas duas áreas
coisa vale mais do que a outra. De uma maneira muito rasteira,
protegidas no Norte e em nenhum dos seus estados havia
diremos o seguinte: estamos preservando e tombando uma
escritórios do Iphan. Até agora, não existe nenhum inventário
manifestação, que fará parte de um universo de casos a partir do
sobre a habitação indígena, sobre a arquitetura dos índios dessa
qual conseguiremos contar a nossa história. Todo o patrimônio
região do Brasil. Então, o grande desafio para a política do
construído no século XIX é patrimônio cultural, entretanto nem
patrimônio é conseguir estabelecer uma dinâmica com relação à
todo patrimônio cultural do século XIX é protegido pelo órgão
própria política que a antecede.
federal ou estadual ou municipal. Seguindo essa lógica, devemos
Creio que isso tudo deve ser considerado para que possamos considerar aquilo que nos ajuda a contar a história que queremos
refletir sobre o Piauí. Devo dizer ainda que há outras questões para do nosso país, do nosso estado, do nosso município.
112 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Luiz Fernando Almeida 113
A segunda questão que está colocada para a política de É preciso estabelecer uma relação de sustentabilidade
patrimônio e de cultura é que precisamos trabalhar com o com o patrimônio. Para isso, devemos compreender que, ao
significado das coisas. Ficamos dizendo: “ah, não temos dinheiro ser reconhecido como patrimônio, um bem apresenta um
para fazer tudo, para restaurar, conservar, todo o patrimônio valor compartilhado. De certa maneira, no que diz respeito
cultural brasileiro”. Mas nossas ações não dão a devida atenção ao à elaboração da política do território, ao que está sendo
seu próprio significado. Se a política de preservação do patrimônio construído como território no Brasil, acho que a demanda da
cultural não é contada na escola, se ela não faz parte da lógica sustentabilidade se repete aqui no Piauí. Não porque, do ponto
de como se ensina história e geografia, estamos realizando uma de vista histórico, observemos o patrimônio do Piauí como algo
política setorial limitada. Portanto, é necessário compreender diferente do patrimônio de Pernambuco, que teria menor valor
que a cultura e o patrimônio são atividades de interesse comum nessa comparação. Por isso, é preciso estabelecer um trabalho de
e devem ser apropriados por toda a comunidade. No exemplo valorização, das singularidades daqui. Isto é política pública.
citado das pontes, as Secretarias de Obras, ao implantar uma
O Piauí é a única capitania, território colonizado a partir
ponte dentro da cidade, está produzindo cultura dentro da
do interior do Brasil, com uma história extremamente rica. Este
cidade, e não só o sistema viário da cidade.
trabalho que está sendo feito aqui é um trabalho de pactuação
Essas duas questões estão postas de igual modo para que o Iphan está trabalhando para estabelecer. Estamos fazendo
todos os entes federados. Não conseguimos resolvê-las nem na isso em vários estados para criar uma política de proteção ao
escala federal, nem na estadual, nem na municipal. Temos que patrimônio compartilhada. O Piauí é um deles, e esta pode
transformar ainda um problema que nos une de compreensão ser uma oportunidade para discutirmos, de fato, os problemas
do novo processo de desenvolvimento em curso. Se quisermos existentes e conseguirmos compartilhar um pouco as estratégias.
que esse processo seja singular, não devemos repetir o que Só vamos sair dessa situação e elevar a política de cultura a um
aconteceu nos anos 1970 - último momento em que tivemos uma patamar diferente e mais qualificado do que o atual, se inserirmos
série acumulada de índices de crescimento econômico no Brasil. essa área na agenda política do país.
Precisamos estar em outro patamar de discussão e de elaboração
Para isso, precisamos carregar o sentido daquilo que dizemos
em conjunto com a sociedade.
e empregar a lógica na maneira como analisamos os problemas.
Precisamos compreender a realidade que enfrentamos e Temos de estar juntos e coesos para estabelecer fóruns que, cada
ter a sensibilidade de tratá-la com base na decodificação dos fatos. vez mais, incorporem novos componentes e novos agentes sociais.
Não podemos ficar parados, limitados pela ausência crônica de São muitos os agentes com os quais não temos dialogado. Porque
recursos – “a Secretaria de Cultura é pobre, o Iphan é pobre; não o patrimônio só tem sentido, como um fato social, na medida em
dá para restaurar o patrimônio brasileiro”. Não há e nunca haverá que é compartilhado.
orçamento suficiente. Porque a conservação do patrimônio cultural
não deve ser resolvida por um Estado forte e intervencionista que
recupera todo o patrimônio cultural brasileiro.
A convenção da UNESCO e a
diversidade das expressões culturais
Jurema de Sousa Machado*
Em outubro de 2005, 148 países presentes à Conferência
Geral da UNESCO aprovaram a Convenção para a Proteção
e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, contra
apenas dois votos contrários e quatro abstenções. O momento foi
de justificada euforia. Além da maioria incontestável, alcançava-
se um instrumento normativo cuja preparação havia-se iniciado
no final dos anos 1990, e exigido extensas discussões, com a
participação de redes de ministros de Cultura, especialistas de
todo o mundo e organizações não governamentais.
Ao ser trazido para o foro da UNESCO, o debate sobre
a chamada “exceção cultural”, tema vinculado à problemática
de defesa de mercados, havia-se ampliado para o conceito de
Diversidade Cultural. Foi fundamental conceber um instrumento
que não se limitasse às questões de disputa de mercados, mas que
criasse o espaço necessário à implementação de políticas culturais
ativas em defesa da diversidade cultural e da interculturalidade.
Desde o dia 18 de março de 2007, a Convenção encontra-
se em vigor e já conta com a ratificação de 80 países, distribuídos
de forma equilibrada por todo o mundo, dentre os quais o Brasil,
e outros 11 da América Latina.
* Arquiteta e Coordenadora de Cultura da UNESCO.
116 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Jurema de Sousa Machado 117
A Convenção propôs inovações importantes ao criar Meio Ambiente, ao relacionar os conhecimentos tradicionais à
instâncias próprias de gestão: a Conferência das Partes; o diversidade biológica e à diversidade cultural.
Comitê Intergovernamental e um mecanismo de financiamento,
Não é exagero afirmar que o tema da diversidade permeia o
o Fundo Internacional para a Diversidade Cultural. Além disto, pensamento e a ação da UNESCO desde a sua criação. Mais do que
é a primeira das Convenções da UNESCO aberta à participação isso, está na raiz da sua criação. De uma abordagem inicial ainda
de organismos multilaterais – como já ocorreu com a União muito ancorada na ideia de produção artística e de conhecimento
Europeia de organizações do setor privado e, principalmente, histórico, a concepção e o tratamento da Cultura na UNESCO
da sociedade civil. Essas inovações exigem mecanismos de evoluem para uma crescente conexão com a Política, com os
operação ainda não experimentados, que vêm sendo discutidos Direitos Humanos e com os processos de Desenvolvimento.
em reuniões do Comitê Intergovernamental em Paris.
De forma correlata, a abordagem da Cultura também se
Tendo em vista que a Convenção se baseia no apoio deslocou das macrounidades geopolíticas para níveis cada vez
mútuo entre os Estados-parte, cabe a todos assegurar o mais próximos do nível local; ou seja, dos dois grandes blocos em
compartilhamento e a transparência de informações, fornecendo que se dividia o Mundo no pós-guerra (Oriente e Ocidente); para
à UNESCO, a cada quatro anos, um relatório sobre as medidas os Estados-Nação, durante muito tempo vistos como entidades
tomadas para a proteção e a promoção da diversidade. Mais do coesas e unitárias, sob o ponto de vista da diversidade, e, desses,
que nunca, é relevante produzir estatísticas culturais, analisar e para as diferenças culturais internas aos países.
disseminar informações e criar, na UNESCO, um banco de dados
sobre os diversos setores e organizações do campo cultural. Visando dar consequência prática a seus princípios
programáticos, a UNESCO vem enfatizando, cada vez mais,
Apesar do apoio político e de todo esse conjunto a responsabilidade dos governos e a necessidade de políticas
de mecanismos e estratégias, não é simples o desafio que culturais no nível de cada país. Atuar cada vez mais próximo da
a Convenção estabelece para a UNESCO e para os países agenda dos países é hoje uma recomendação não apenas para o
signatários. Trata-se de um instrumento de caráter vinculante, campo da Cultura e para a UNESCO, mas uma orientação basilar
ou seja, um instrumento jurídico que cria compromissos. Não da Reforma do Sistema das Nações Unidas.
é meramente uma carta de princípios, mas diz respeito a temas
concretos, para os quais há um marco de referência e regras a O contexto internacional que gerou a Convenção da
compartilhar. Diversidade caracteriza-se pela crescente interdependência
entre cultura e economia, e por sociedades cada vez mais
A diversidade cultural, por sua vez, é um objeto multiculturais, fragmentadas e complexas. Pode-se afirmar que a
multifacetado, por essa razão, encontra vínculo com um Convenção representou um esforço de humanização do processo
grande número de instrumentos normativos já adotados pela de Globalização e, por essa razão, colocou a Cultura em lugar
UNESCO, não só na área da Cultura, mas na área da Educação, de destaque na agenda política, pela primeira vez na história do
das Ciências Sociais, da Comunicação e, mais recentemente, do direito internacional.
118 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Jurema de Sousa Machado 119
Esse novo instrumento representa a consolidação de – e outros programas que favoreçam o equilíbrio do acesso e da
um conjunto de instrumentos jurídicos que a UNESCO já oferta em relação a produções que venham de fora do País.
possui na área da Cultura. Dentre as áreas de atuação da
Um princípio fundamental é a cooperação internacional, e
UNESCO, a Cultura é das mais regulamentadas e dispõe de
também, por esta razão, os países em desenvolvimento são o foco
sete Convenções que correspondem, em última instância, a
privilegiado da Convenção.
sete campos de ação em favor da diversidade. A estratégia
que une Patrimônio, Diversidade e Desenvolvimento fica O texto legal busca o equilíbrio entre Direitos e Obrigações,
bem sintetizada pelo artigo 7º da Declaração Universal sobre o instrumento não pode servir apenas para que os países tenham
a Diversidade Cultural que diz: um suporte jurídico e ético para a proteção de seus mercados de
Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, bens culturais. Mais do que isso, deve servir para que assumam,
porém se desenvolve plenamente em contato com outras. com o mesmo vigor, compromissos para com a diversidade
Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas internamente ao seu território. Nesse aspecto, sabemos que
formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido especialmente os países em desenvolvimento possuem um
às gerações futuras como testemunho da experiência e
das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade considerável “dever de casa” a cumprir no que se refere à proteção
em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro e à promoção da diversidade.
diálogo entre as culturas.
É importante ter em mente que o Brasil, por diversas
A Convenção parte do princípio de que a diversidade razões, é um país que expressa com precisão o foco pretendido
cultural é um valor universal. Considera bens e serviços culturais pela Convenção de 2005:
como portadores de valor e sentido; ou seja, merecedores de um - Em desenvolvimento, como prioriza a Convenção.
tratamento diferenciado em relação aos demais bens e serviços no
ambiente do comércio internacional. - Portador de ricas expressões culturais, poucas delas visíveis
e disseminadas no mundo global. Essa grande diversidade está
A começar por seu título, a Convenção trata a “proteção” fundada, principalmente, nas tradições de seus povos autóctones
de forma indissociável da “promoção”; qual seja, proteger não e populações afro-americanas, sobre as quais avança o processo
significa fechamento ao diálogo com outras culturas, mas sim de homogeneização e de perdas culturais irreversíveis.
encontrar meios de promover sua própria cultura, de forma
a reduzir hegemonias e distorções, possibilitando assim uma - É um país onde, mesmo diante de índices mais favoráveis,
polifonia de manifestações. dos últimos anos, ainda permanecem altos índices de desigualdade
social, ameaçando a fruição plena da Diversidade.
Outra ideia-chave é a da soberania dos países para propor
e implementar políticas de proteção e promoção da diversidade. Esse é o contexto que se deve ter em mente ao conceber
É o caso, por exemplo, das políticas de financiamento público as estratégias para o Patrimônio. Tais estratégias se baseiam
da cultura – (como as leis Rouanet e do Audiovisual, no Brasil) em princípios já bastante consensuais, e, em grande medida, já
120 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Jurema de Sousa Machado 121
contemplados pelas políticas de patrimônio no Brasil. O papel A relação do Patrimônio com o desenvolvimento social e
da Convenção deve ser, portanto, o de integrá-los a uma agenda humano, corolário da relação entre Cultura e Desenvolvimento,
comum da Cultura e respaldá-los política e institucionalmente. preconizada desde, pelo menos, a Conferencia Mundial de Cultura
Cabe refletir sobre como, no contexto brasileiro, a preservação do México, em 1982, torna-se agora, com o reforço da Convenção
do patrimônio cultural brasileiro se relaciona com os princípios de 2005, a principal tendência dos projetos de preservação em
da Convenção de 2005. todo o mundo. Representam a efetiva integração do Patrimônio
às demais políticas sociais e, sobretudo, à agenda das Cidades.
O primeiro princípio comum diz respeito à necessidade
de diversificação de critérios de seleção e da natureza dos bens Programas e ações que tenham como foco a relação entre
a preservar. No caso do Brasil, desde pelo menos os anos 1980, cultura e desenvolvimento devem, no entanto, evitar práticas de
registra-se o rompimento com o critério de seleção de bens absorção imediatista dos valores culturais. Ao contrário, devem
estritamente centrado no juízo estilístico, estético e ideológico partir de um tratamento sólido dos conceitos a serem transmitidos
que vigorou nas primeiras décadas das políticas de patrimônio, pelo patrimônio, não lhe conferindo um tratamento infantilizado
fazendo com que, até então, o reconhecimento se concentrasse e efêmero, reconhecendo os centros históricos não como meros
nos remanescentes da arquitetura colonial e do modernismo. cenários, mas como lugares que abrigam relações sociais e
A ampliação da perspectiva histórica proposta pela nova culturais indissociáveis do patrimônio edificado. O aprendizado
historiografia levou à re-conceituação dos valores artísticos e sobre como alcançar a efetiva apropriação, seja material, seja
possibilitou a inclusão, no patrimônio a ser protegido, de bens simbólica, dos bens preservados é hoje essencial às políticas de
capazes de representar processos, mais do que fatos isolados. preservação no Brasil.
Essa diretriz vem sendo adotada pela Convenção do Ainda à luz da Convenção de 2005, ressalta-se a importância
Patrimônio Mundial, mais intensamente a partir dos anos 1990, da capacitação e da cooperação entre países e entre diferentes
resultando na diversificação da Lista do Patrimônio Mundial e na regiões de um mesmo país, especialmente quando essas regiões
utilização de novas categorias de bens, como é o caso das Rotas e são tão diversas, como é o caso do Brasil. Nesse aspecto, destaca-
das Paisagens Culturais. se a necessidade de pesquisa e formação profissional mais
atualizadas, transdisciplinares e compatíveis com as necessidades
Como decorrência da diversificação do objeto e da busca de
contemporâneas da gestão do Patrimônio.
um sentido para o patrimônio cada vez mais próximo da vida das
pessoas, adquire maior vulto o papel dos indivíduos e dos grupos Os indicadores de acesso e produção cultural no Brasil
na seleção e gestão dos bens. Esse princípio ganhou aplicação refletem diretamente as desigualdades presentes no território.
concreta na política brasileira de salvaguarda do patrimônio Muito desse problema tem origem nos diferentes níveis de
imaterial, e está claramente expresso na Convenção da UNESCO acesso à informação e à formação especializada, que colocam
para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, com em desvantagem as regiões mais pobres, mesmo quando os
reflexos nas políticas correspondentes adotadas pelos países. valores culturais em jogo são essenciais e insubstituíveis. Quando
122 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Jurema de Sousa Machado 123
políticas e ações de fomento, ainda que visando à equidade na Referências
distribuição dos recursos, não levam em conta esse problema,
os resultados têm-se mostrado muito aquém das intenções. A
adesão das universidades a uma formação transdisciplinar, como ACORDO sobre a Importação de Bens Educacionais, Científicos e
requer a agenda atual da preservação do patrimônio, é essencial Culturais, 1976. (Também conhecido como Acordo de Florença).
para reverter esse quadro. Ferramentas inovadoras e de baixo
custo, como a Educação a Distância, são outro instrumento a CONVENÇÃO para a Proteção de Propriedade Cultural em caso de
Conflito Armado, 1954.
ser considerado. Estamos experimentando, na Representação
da UNESCO no Brasil, oferecer cursos a distância, de pequena CONVENÇÃO para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático,
duração, voltados diretamente à implementação das políticas 2001.
de cultura e patrimônio; e os primeiros resultados, pelo menos CONVENÇÃO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial,
no que se refere à demanda e ao interesse gerado, são muito 2003.
animadores. Uma medida de maior fôlego deverá ser a criação do
CONVENÇÃO sobre a Proibição e Prevenção à Importação, Exportação
Centro de Formação em Patrimônio, proposto pelo IPHAN em e Transferência Ilícita de Propriedade Cultural, 1970.
cooperação com o Centro do Patrimônio Mundial da UNESCO,
para instalar-se no Edifício Gustavo Capanema, no Rio. CONVENÇÃO sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural da
Humanidade, 1972.
Trata-se, no seu conjunto, de uma agenda extensa e
CONVENÇÃO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de
complexa, mas já em curso, embora de forma muito heterogênea
Expressões Cultural, 2005.
e sob permanentes descontinuidades. Sua solidez e incorporação
permanente às políticas públicas exige, dos gestores da preservação, CONVENÇÃO Universal sobre Copyright, 1952.
maior capacidade de avaliação qualitativa e quantitativa dos INSTRUMENTOS Normativos da Cultura.
resultados das ações na área. Essas avaliações devem, sobretudo,
buscar demonstrar a centralidade das políticas de cultura e, em
especial, de patrimônio, no contexto das políticas sociais e de
desenvolvimento, o que será tão mais possível quanto mais a
formulação dos projetos tiver um foco abrangente.
Instrumentos como a Convenção da Diversidade, como
de resto todos os instrumentos normativos da UNESCO, são o
retrato do “estado da arte” do pensamento e da capacidade de
influenciar políticas públicas nos diversos países. Não existem de
per si, mas tornam-se efetivos na medida da nossa capacidade de
traduzi-los em projetos e compromissos nos países onde atuamos.
É o que se espera.
Rede do patrimônio cultural no Piauí
Diva Maria Freire Figueiredo*
Dalmo Vieira Filho**
O presente texto apresenta a experiência iniciada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN
no Piauí, de colocar em funcionamento uma rede de patrimônio
cultural no estado, formada por núcleos históricos de seu
território, articulados entre si e aos demais integrantes de uma
rede maior do patrimônio cultural brasileiro.
A seleção dos núcleos urbanos para tombamento é aquela
que, segundo Santana (2000), considera o valor documental
dos testemunhos dos processos sociais e econômicos do espaço
construído, por meio da leitura de uma identidade urbana
historicamente construída tanto pelos traços físico-arquitetônicos,
urbanísticos e paisagísticos - quanto pelas formas de uso e ocupação
do espaço, pelas práticas sociais e cultura local, que estabelecem
vínculos afetivos e simbólicos com o sítio.
Embora o conceito de rede prescinda de integração e
complementaridade entre as formas de proteção e as ações
de preservação do patrimônio cultural de natureza material
e imaterial destes núcleos, privilegia-se a discussão da prática
* Arquiteta e urbanista pela UFMG; mestre em Desenvolvimento Urbano pela
UFPE; técnica e superintendente da Representação do IPHAN no Piauí.
** Arquiteto, professor da UFSC, superintendente da Representação do IPHAN
em Santa Catarina, diretor do Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização
do IPHAN.
126 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho 127
de proteção tradicional iniciada pelo IPHAN em 37, ou seja, a patrimônio, além do fortalecimento institucional nos três níveis
constituição da rede do patrimônio cultural brasileiro no Piauí de governo, para sua implementação.
por meio do instituto do tombamento.
Quando se busca desenvolvimento, entendido como meio
Para Fonseca (2002) apud Araújo et al, o conceito de de articulação das dimensões econômica, social e ambiental - e
redes possui um sentido de formação de malhas, através do nesta última incluída a patrimonial, vistas como indissociáveis, a
entrelaçamento de fios e nós: “Nos estudos de redes urbanas, diversidade de situações existentes nas cidades piauienses e suas
normalmente vinculam-se os nós aos centros que funcionalmente regiões desaconselha generalizações, pois depende da iniciativa
se articulam via fios, que são estradas de ferro e de rodagem, rios, de inúmeros agentes privados e públicos.
por onde ocorrem os fluxos.” (FONSECA, 2002, p. 2)
Contudo, uma avaliação particular de cada cidade e de
Tanto Santos (1997) quanto Santana (2004) apud Araújo seu entorno regional, revelam a existência de recursos naturais
et al abordam as concepções das redes urbanas considerando- e culturais que podem se constituir em vantagens comparativas
as dependentes da estrutura material e do dado social. Para e competitivas e possibilitar estratégias de ação baseadas na
Santos a estrutura material da rede é representada pela infra- colaboração/parceria entre cidades afins e atores sociais que têm
estrutura de transporte de matéria, energia ou informação se revelado mais férteis e promissoras.
(rede técnica), e analisada pela perspectiva social (rede social)
Mas como isto se relaciona com o tombamento, ou seja, com
referem-se às pessoas, mensagens e valores que se utilizam da
a preservação que se propugna para as cidades históricas do Piauí,
estrutura material. Para Santana as redes se constituem como
que desde o século XVIII vem consolidando particularidades
elementos espaciais concretos, sólidos, tangíveis com presença
culturais que as credencia a compor o grande mosaico do
sobre o território e que fazem parte da estrutura espacial de uma
patrimônio cultural brasileiro
sociedade. Ao mesmo tempo são sócio–espaciais porque podem
agilizar os processos sociais de reprodução da sociedade, sendo Em primeiro lugar, é a partir do tombamento que o Estado
parte do espaço geográfico e suporte das relações sociais. Assim, as assume a proteção destes lugares através da ordenação jurídica,
duas concepções de redes são dependentes da estrutura material instituindo as áreas protegidas, delimitando-as oficialmente e
e da dinamicidade dos aspectos sociais, determinadas pela forma regulamentando seu uso e ocupação. (MILET, 1988:18) A partir
e pela função. da tutela do Estado um legado cultural passa a ser protegido para
o usufruto atual e das gerações futuras, conforme propugna o
Acompanhando estas duas matrizes de concepções a
conceito de desenvolvimento sustentável, um dos pressupostos
formação da rede do patrimônio cultural visa à cooperação
do planejamento estratégico e do urbanismo contemporâneo.
mútua dos lugares e de seus agentes sociais, públicos e privados,
na preservação das representações culturais dos diferentes grupos Em segundo lugar, a cidade tradicional, com sua
formadores da sociedade brasileira, favorecendo a inclusão de diversidade de funções e de perfis de habitantes convivendo lado
grupos sociais até então marginalizados pela política pública de a lado, num modelo de convivência equilibrado pelas diferenças,
128 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho 129
volta à evidência com o esgotamento do racionalismo, da cidade professores e alunos das universidades, profissionais das diversas
dividida em funções e das grandes vias de circulação que áreas do saber, de técnicos e dirigentes de organismos públicos
fundamentam o urbanismo modernista. O planejamento urbano e civis ou cidadãos interessados em verem reconhecidas suas
racionalista e totalizante dá lugar ao planejamento estratégico referências culturais na multifacetada formação da identidade
local que usa os recursos naturais e culturais e se baseia nas brasileira, as expectativas em relação ao tema é crescente no seio
experiências do passado para construir um futuro melhor para da sociedade brasileira e piauiense.
os habitantes das cidades, considerando suas práticas sociais e
Portanto, estávamos diante de desafios que ainda
sua identidade com o lugar.
permanecem e que apontam para o papel fundamental das
Assim, a rede de patrimônio é uma resposta às demandas universidades e centros de pesquisa no estímulo, apoio e adoção
sociais que emergem de um momento de crise no mundo, não de linhas de investigação e discussões sobre o estado da arte do
só financeira, mas de revisão de paradigmas hegemônicos, que patrimônio, enriquecendo a produção de conhecimento sobre esta
constrói um novo conceito de desenvolvimento que valoriza a abrangente e complexa tarefa de preservar os bens culturais.
dimensão ambiental e cultural; e coloca a cultura como estratégica
no projeto de futuro do país dentro das mudanças em curso da A preservação do patrimônio, é necessário salientar,
política nacional. não é uma tarefa exclusiva dos organismos preservacionistas
instituídos pelos três níveis de governo, mas da sociedade e
Para o seu estabelecimento é imprescindível a articulação de toda a administração pública por meio de uma política
interinstitucional e foi o estreitamento de relações com transversal que dialoga com todas as demais políticas públicas,
pesquisadores em torno de estudos e inventários de referências estimulando e criando oportunidades e mecanismos de
culturais de grupos sociais específicos, iniciados para atender às participação social. A realização de congressos voltados para o
demandas destes grupos colocadas para o IPHAN do Piauí, que tema coloca em prática este pressuposto, à medida que estimula
propiciou várias parcerias. a análise e a crítica sobre a eficácia das diversas políticas públicas
Pela sua importância estratégica no contexto de formação em relação ao patrimônio.
da rede no Piauí é necessário destacar a realização, em 2008, Atualmente, as ações da Superintendência do IPHAN no
do congresso, cujo tema foi História e Patrimônio Cultural, Piauí são múltiplas e procuram refletir a diversidade da demanda,
uma iniciativa da Associação Nacional de História, Seção Piauí como se verificou pelos vários trabalhos apresentados nos
[ANPUH–PI] e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico GTs, palestras, mesas-redondas, exposições e fóruns realizados
Nacional por meio da Superintendência do Piauí. durante o primeiro Congresso de 2008, que expressam apenas
O congresso teve como objetivo ampliar e consolidar linhas parte da riqueza do patrimônio de nossa gente. Esta abrangência,
de discussões em torno das diversas abordagens de pesquisas e bem como o caráter transversal do patrimônio, multiplicam
ações que articulam estes dois temas indissociáveis e suscitam as possibilidades de estudos e reitera o papel estratégico do
interesse dos mais variados atores. Sejam de pesquisadores, Congresso Internacional de História e Patrimônio ao representar
130 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho 131
um estímulo à participação dos pesquisadores das várias áreas brasileiro até setembro de 2008 eram apenas alguns bens isolados
do conhecimento no processo de estabelecimento da rede do em Oeiras (3), Piracuruca (1) e Campo Maior (1) e Teresina (1),
patrimônio cultural no Piauí. tombados ainda nas primeiras décadas de funcionamento do
IPHAN. Em Oeiras, foram a Igreja Nossa Senhora da Vitória,
Constata-se que o perfil da rede do patrimônio do Piauí deve
Sobrado João Nepomuceno ou Palácio dos Bispos e a Ponte
acrescentar à vasta paisagem cultural do complexo arqueológico
Grande sobre o Rio Mocha; em Piracuruca a Igreja Nossa
da Serra da Capivara, em 1991 reconhecido pela UNESCO
Senhora do Carmo; em Campo Maior o Cemitério do Batalhão,
como patrimônio da Humanidade e em 1993 tombado pela
um tributo aos que lutaram aqui pela Independência do Brasil;
União, inúmeros outros sítios desta natureza e sítios históricos em
em Teresina a Igreja de São Benedito.
muitos municípios piauienses, a exigir um olhar atento visando
a sua preservação e quanto ao licenciamento ambiental dos Algumas explicações para o fato dos acervos históricos,
empreendimentos impactantes. Os sítios do Parque Nacional de arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos dos núcleos históricos
Sete Cidades, os processos de registro do ofício da Arte Santeira do Piauí ter permanecido tanto tempo à margem da política de
e da produção tradicional da Cajuína, o inventário de referências proteção exercida pelo IPHAN durante os quase 70 anos de sua
culturais das comunidades quilombolas, o mapeamento do existência podem ser procuradas. Certamente esta ausência de
tambor de Crioula da região dos Cocais e ações de fomento às suas deve a uma conjunção de fatores que merecem um primeiro
principais manifestações culturais são também itens relevantes da exercício de análise.
rede do patrimônio cultural no estado do Piauí.
As circunstâncias do meio físico e do contexto do criatório
O IPHAN tem feito um esforço para atender diferentes extensivo de gado, que retardaram o desenvolvimento dos
demandas dos atores sociais que hoje se apresentam e elaborar núcleos urbanos, determinou as características da arquitetura
uma política com diretrizes adequadas a este novo momento, e urbanismo do sertão colonial. Ao contrário dos sítios de São
sobretudo quanto à legitimidade social de sua atuação. A criação Luís e Alcântara, que apresentam obras monumentais e de
da Superintendência do IPHAN no Piauí é fruto da nova maior apuro técnico como resultado de uma economia mais
ordem em construção que valoriza a cultura no processo de dinâmica e geradora de divisas, no sertão do Piauí predominou
desenvolvimento do país e tem conseguido, por meio da rede a rusticidade e a singeleza de um acervo não menos denso de
do patrimônio cultural, colocar um expressivo acervo das nossas significado simbólico e de valores histórico e artístico, apesar da
cidades históricas (Parnaíba, Oeiras, Piracuruca, Campo Maior, simplicidade.
Pedro II, Teresina e Amarante) na pauta da instituição.
A política declarada da Coroa Portuguesa de promover a
A pequena representatividade do Piauí no mapa de bens ocupação e controle do território através da fundação de vilas
patrimoniais brasileiros era notória quanto aos sítios históricos, e cidades oficiais, a partir das povoações existentes, manifestada
urbanos e rurais. Os bens materiais que testemunham o processo explicitamente na ordenação da Carta Régia de 1761, associada à
de colonização do território, reconhecidos como patrimônio rusticidade da vida no sertão dominado pela atividade pecuária
132 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho 133
deu origem a um padrão arquitetônico despojado nas cidades carecem da proteção, que só agora, com a atual proposta de
que viveram seu apogeu durante o ciclo do gado. implantação da rede do patrimônio cultural no Piauí, passam a
ser contempladas.
São poucas diferenças entre a arquitetura urbana e rural,
quanto à tecnologia construtiva, contudo Rodrigo Melo Franco Apesar do reconhecimento dos valores históricos,
de Andrade, em artigo da revista do Rotary Club, do Rio de arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos das áreas tradicionais
Janeiro, de 17-01-1964, observa que o Piauí apresenta “singelas de várias cidades dos séculos XVIII e XIX, a demora da sua
casas de fazenda”, com “longos alpendres acolhedores”, de inclusão na pauta política do IPHAN deve-se a uma deficiência
maior interesse arquitetônico que as igrejas matrizes de Oeiras estrutural do Estado no gerenciamento de uma política de
e Piracuruca. A forma esparramada e agradável dos grandes preservação permeável a todos os grupos sociais dispersos pelo
telhados da morada inteira do Piauí se harmonizar com seu grande território brasileiro. Tanto no governo federal quanto
ambiente natural, numa perfeita simbiose colaboram na estadual as estrutura administrativa, logística e financeira para
caracterização do jeito de morar e viver no sertão, sugerindo o estabelecimento de uma política consistente de patrimônio
práticas e costumes seculares. sempre foram muito reduzidas.
Paradoxalmente, estas duas igrejas, obras de maior vulto As modificações havidas, principalmente nos anos 70
da metade do século XVIII no interior do Piauí, mais um sobrado e com a promulgação da Constituição de 1988, que ampliou o
e uma ponte em Oeiras, permaneceram, durante muito tempo, objeto da preservação, não mudaram este quadro de deficiência
desde a década de 40 do século XX, como as únicas edificações na administração pública federal, que permaneceu durante
protegidas por lei federal. Em Oeiras, apenas os imóveis que muito tempo com uma política não declarada de tratamento
vão se diferenciar dos demais por ter sido a cidade a capital da preferencial e quase exclusivo, frente à exiguidade de recursos
capitania e posteriormente da província, até a mudança da sede disponíveis, emprestado a conjuntos de maior visibilidade como
administrativa para Teresina, no século XIX, recebem o olhar os de Ouro Preto - MG, do Pelourinho –Bahia, Olinda-PE, de
protecionista do órgão federal. São Luís e de Alcântara –MA, ficando para um segundo plano o
acervo representado por conjuntos como os do Piauí.
Apesar da singularidade da arquitetura do sertão ser
reconhecida pelos intelectuais à frente do órgão federal de Por outro lado, a sociedade piauiense acompanhou a visão
preservação, a prática protecionista oficial terminou por monumentalista que presidiu esta definição técnica das prioridades
enfatizar a monumentalidade e os padrões estéticos associados de preservação do patrimônio cultural no Brasil. A indiferença e
ao barroco. Talvez pela maior facilidade de compreensão pela descaso traduziam a crença de que não havia bens a preservar
população da necessidade de se preservar edificações de sistemas porque nosso acervo não se compara àqueles existentes nesses
construtivos mais duradouros e, por conseguinte, mais antigos. sítios de maior visibilidade. A preservação no Piauí enfrentou,
A arquitetura de terra, a taipa de sebe ou de mão, as estruturas portanto, durante muito tempo o desafio adicional de mostrar a
de carnaúba, essências da arquitetura tradicional do Piauí, ainda relevância do próprio patrimônio.
134 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho 135
Diante dos desafios atuais do patrimônio, na sua implantação desta rede. Pretende-se ainda contribuir para a
amplitude, complexidade e diversidade, o planejamento de formação de um conjunto maior de bens culturais protegidos em
políticas públicas voltadas para sua preservação e promoção, todo o Brasil e para a implantação de uma rede do patrimônio
descentralizadas e democráticas, tornou-se imprescindível. O cultural brasileiro, que incorpore novos significados.
interesse crescente do homem comum pelos temas da história
O objetivo final desta política é qualificar o desenvolvimento
e do patrimônio cultural revela um momento privilegiado
das cidades e agrupamentos rurais, melhorando suas condições de
de intercâmbio de saberes, experiências e práticas e o saber
vida, mas, principalmente consolidando seu direito à memória, ao
acadêmico; entre os produtores culturais, sujeitos dos
acesso e à fruição dos recursos naturais e culturais. É importante
ofícios e modos de fazer e os cientistas sociais, enriquecendo
zelar pela administração e gestão dos patrimônios culturais e
pesquisas e discussões de várias tendências. Este intercâmbio
ambientais, explorando economicamente suas possibilidades,
articula parcerias, aproxima pessoas e vários agentes sociais e
mas garantindo e promovendo a sua preservação, integridade e
instituições para a defesa das fontes e manifestações culturais
assimilação pelos diversos grupos sociais.
de comunidades e grupos diversos.
Iniciá-la pelo Piauí tem sentido. Sinaliza para a própria
A maior penetração na sociedade foi decisiva para a
Instituição e para a sociedade mudanças de paradigmas. O que
consecução também de um maior aporte de recursos para a
pretende é exatamente oferecer oportunidade para que todos os
política de patrimônio assim como para a de cultura nos últimos
brasileiros se sintam representados pelos bens culturais, materiais
anos. O resultado foi o fortalecimento institucional do IPHAN,
e imateriais reconhecidos como patrimônios culturais brasileiros.
que no Piauí adotou a estratégia de fazer a proteção federal
Este é um dos estados que mais ficaram à margem do processo
entendendo o território a partir da rede do patrimônio cultural,
de preservação desenvolvido pelo IPHAN nas sete décadas de
constituída de paisagens culturais, de cidades e de influências
sua existência, praticada principalmente por meio do instituto do
culturais interligadas entre si e pouco exploradas até então, mas
tombamento.
que guardam uma vinculação lógica, consideradas as dimensões
de tempo e lugar, de respaldo arqueológico, histórico, paisagístico A rede do patrimônio cultural no Piauí se insere na nova
e urbanístico. concepção de desenvolvimento e credencia estes municípios
a participarem de programas de fomento à preservação do
Um dos exemplos seria a própria ordem de El-Rei D.
patrimônio, como o iniciado pelo projeto Monumenta em 26
José, em 1759, a João Pereira Caldas, para que se instalassem
cidades históricas brasileiras, que incluiu Oeiras aqui no Piauí.
em território da Capitania do Piauí, novas vilas, visando ao
Agora, este programa é substituído e estendido para todas as
estabelecimento “sólido” dos domínios do Governo.
cidades históricas brasileiras através do Plano de Ação das Cidades
As propostas de proteção que o IPHAN vem elaborando Históricas, ou PAC das cidades históricas. A recente criação da
se inserem numa maneira sistêmica e abrangente de entender Associação das Cidades Históricas Brasileiras, da qual fazem parte
a proteção e a preservação de bens culturais, que objetiva a Oeiras e Parnaíba, tem fortalecido ainda mais o desenvolvimento
136 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho 137
do programa, com o respaldo político e o incremento da sua Piracuruca e estão em sendo propostos os de Campo Maior,
penetração social. Pedro II e Amarante.
Os acordos de preservação previstos no Plano de Ação A partir do tombamento federal, o IPHAN passa a
das Cidades Históricas estão para ser assinados com as cidades administrar as duas áreas delimitadas em cada um destes núcleos,
de Parnaíba, Pedro II, Teresina e Oeiras, que atenderam ao de tombamento e de entorno, em parceria com as Prefeituras
chamado do IPHAN para planejar a preservação do seu Municipais, visando preservar os patrimônios protegidos e
patrimônio cultural. As demais cidades históricas do Piauí dialogar com o dinamismo inerente às cidades, levando em conta
citadas, por ser objeto de estudos para tombamento federal as possibilidades de adensamento dentro das áreas tombadas, a
estão credenciadas também para o processo de planejamento, criação de zonas de expansão integradas aos centros, o estímulo
num esforço de estabelecimento de um sistema do patrimônio à função habitacional, a valorização do comércio e dos pequenos
cultural que promova o desenvolvimento econômico e social. serviços, a mobilidade, etc. Busca-se também complementaridade
com os municípios e o estado, estimulando seus engajamentos e
A proteção do conjunto histórico e paisagístico de evitando sobreposições.
Parnaíba, além do seu próprio significado cultural, foi o ponto
de partida, o arranque na implantação da rede do patrimônio Essa administração propõe-se a avaliar e qualificar as
cultural no estado do Piauí. Junto com Parnaíba estão propostos propostas de intervenção nestas áreas promovidas tanto pelo
os tombamentos Oeiras, Piracuruca, Campo Maior, Amarante, poder público quanto pelos particulares, verificando sua coerência
Pedro II e Teresina, como parte do conjunto de Cidades do Piauí em relação às visuais dos vários setores que formam os conjuntos
testemunhas da ocupação do interior do Brasil durante o século XVIII históricos e paisagísticos destas cidades, com suas peculiaridades
e XIX, além de outros bens em Floriano, Campinas com outras históricas e morfológicas, em especial nos logradouros públicos e
abordagens, mas que se somarão a bens já reconhecidos ou que nos principais monumentos; a adaptabilidade quanto a questões
ainda virão a sê-lo, formando um sistema de patrimônio cultural como densidade populacional desejável, fluxos viários, serviços
no estado do Piauí. e capacidade de carga, disciplina de engenhos publicitários etc.
Por meio do levantamento de uma quantidade Atualmente está em curso a instituição de normas de
significativa de informações de natureza histórica, geográfica, fiscalização que, entre outras coisas, estabelece graus de recurso e o
arquitetônica, urbanística e paisagística sobre o município atendimento às seguintes premissas que devem nortear o trabalho
de Parnaíba, com o respaldo do poder público local e de com as cidades históricas no Brasil, entres as quais se incluem os
organizações da sociedade civil, se fundamentou a proposta de núcleos históricos que estruturam a rede do patrimônio cultural
do Piauí:
tombamento de uma área urbana de alta densidade de valores
culturais, delimitada em dois perímetros de proteção: de 1) a de que a cidade é um organismo em permanente
tombamento e de entorno. Da mesma forma foram propostos mutação e que o “engessamento” dos núcleos históricos não é
os perímetros de proteção dos núcleos urbanos de Oeiras e compatível com o caráter dinâmico da vida urbana atual;
138 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Diva Maria Freire Figueiredo / Dalmo Vieira Filho 139
2) que o adensamento dos núcleos urbanos históricos, Referências
principalmente para o fomento da função residencial, é possível
e muitas vezes desejável, como forma de estimular sua utilização
e adequar as condições de uso e ocupação à vida contemporânea
nas cidades; ARAÚJO, Ângelo Moura et al. Discussão teórica sobre o conceito de rede
urbana. In: +Geografia’s, n. 1, PL 25-29, maio/Nov, 2008. Freira de
3) de que o tombamento, mais do que um instrumento Santana
de restrição, deve ser compreendido como um instrumento de
planejamento urbano e regional; FIGUEIREDO, Diva M. F. Preservação do patrimônio cultural brasileiro
no Piauí. In: Cadernos de Estudo do PEP. Rio de Janeiro: IPHAN/
4) de que para a construção de normatizações e planos COPEDOC, 2008.
de preservação é fundamental o caráter propositivo do trabalho ______. Os sítios históricos do Piauí no panorama da preservação
técnico e a averiguação in loco das proposições desenvolvidas em do Patrimônio Cultural no Brasil. In: Apontamentos para a História
cada etapa, acelerando o processo de compatibilização com a Cultural do Piauí. SANTANA, R. N. M (Org). Teresina: FUNDAPI,
realidade e, eventualmente, corrigindo distorções; 2003, p. 397-412.
5) de que nenhuma normatização é capaz de abarcar a MILET, Vera. A teimosia das pedras. Olinda: Prefeitura de Olinda,
totalidade das demandas apresentadas nas áreas protegidas e é um 1988
instrumento em permanente construção e aperfeiçoamento, que SANT’ ANNA, Márcia. Algumas notas e considerações sobre a restauração
deve ser complementado por formas permanentes de consultas de sítios Históricos Urbanos. In: Cadernos Técnicos, n.1. Brasília: Grupo
técnicas, a comissões, etc. Tarefa / Programa MONUMENTA – BID, 2000.
VIEIRA FILHO, Dalmo. IPHAN - Documentos Internos, 2010.
“O estado da arte”: as pesquisas arqueológicas
e o desenvolvimento regional na região do
Parque Nacional Serra da Capivara
Niéde Guidon*
Cristiane de Andrade Buco**
Introdução
O Parque Nacional Serra da Capivara se localiza no
Nordeste do Brasil, na região Sudeste do Estado do Piauí.
Sua superfície é de 130.000 ha, com 214 km de perímetro.
Está situado entre quatro municípios: Coronel José Dias, São
Raimundo Nonato, João Costa e Brejo do Piauí. Sua gestão é
realizada em regime de cooperação entre o Instituto Brasileiro
* Doutora em Pré-História [Panthéon-Sorbonne]. Pós-doutorado pela Université
de Paris I. Pesquisadora da Fundação Museu do Homem Americano. Diretora
presidente da Fundação Museu do Homem Americano. Professora visitante
da Universidade Federal de Pernambuco. Diretora presidente da Associação
Brasileira de Arte Rupestre.
** Doutoranda em “Quaternário, Materiais e Cultura” da Universidade de Trás-
os-montes e Alto Douro (UTAD), Portugal – Bolsista Capes de Doutorado Pleno
no Exterior. Mestre em História [UFPE], especialidade Arte Rupestre e Música.
Pesquisadora e membro da FUMDHAM e da ABAR. Em Portugal pertence
ao grupo “Quaternário e Pré-história” do Centro de Geociências. Atualmente
desenvolve pesquisas em Arte Rupestre [perspectiva multidisciplinar], Música e
Arte-Educação.
142 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 143
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis -
IBAMA, do Ministério do Meio Ambiente e pela Fundação
Museu do Homem Americano (FUMDHAM), uma organização
da sociedade civil, declarada de interesse público e sediada
em São Raimundo Nonato. Um termo de cooperação entre a
FUMDHAM e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan) rege os trabalhos de conservação e defesa dos
sítios arqueológicos da região.
O parque foi criado em 1979, a pedido da equipe de
cooperação científica franco-brasileira, chefiada por Niéde
Guidon, que realizava pesquisas na área desde o início dos
anos 1970. Solicitava-se ao governo federal a criação de uma
unidade de conservação, visando garantir a preservação do
bioma da caatinga e os sítios arqueológicos. Da preocupação com
a presença de posseiros, dos incêndios que destruíram vários
sítios com pinturas rupestres, da caça ilegal e do desmatamento
Figura 1 - Mapa dos sítios arqueológicos da região Sudeste do Estado do Piauí.
descontrolado de espécies nobres nasceu a Fundação Museu Fonte: Arquivo FUMDHAM
do Homem Americano (FUMDHAM) em 1986.
No Parque Nacional Serra da Capivara e seu entorno, Com a criação do parque, surgiu também a necessidade da
há uma concentração de sítios arqueológicos, totalizando 1158 implantação de um sistema intensivo de preservação patrimonial,
sítios, a maioria com registros rupestres. Mais de 100 sítios estão no qual os cuidados com o meio ambiente e o desenvolvimento
preparados para visitação, sendo que, dezesseis deles foram de uma política auto-sustentável, visando o desenvolvimento
adaptados para portadores de deficiências em uma parceria econômico e social da comunidade, foram de extrema importância
entre a FUMDHAM e o Iphan. Devido à sua importância pela para o resultado que temos hoje. A infra-estrutura interna
antiguidade da presença humana na região, o parque nacional do Parque compreende trilhas e estradas de acesso aos sítios
foi inscrito pela UNESCO, na Lista do Patrimônio Mundial a arqueológicos, sinalizações, guaritas, bases de apoio, centro de
título cultural em 1991, como consequência de uma solicitação visitantes, passarelas para permitir o acesso de visitantes aos sítios
oficial do governo do Brasil. Foi tombado como Patrimônio arqueológicos, áreas de descanso e piquenique, reservatórios de
Nacional pelo Iphan em 1993, com registro no Livro do Tombo água e o anfiteatro ao ar livre da Pedra Furada, com capacidade
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. para 1.300 pessoas.
144 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 145
Cinco escolas foram construídas na área do entorno
originando um projeto de educação integral, que foi premiado,
em 1995, pela UNICEF, como uma das quinze melhores
experiências na área pedagógica. Atualmente, as escolas não mais
funcionam por falta de recursos. A Fundação mantém um centro
de artes conhecido como Pró-arte FUMDHAM, premiado pelo
Instituto Ayrton Senna em Arte-Educação em 2001, escolhido
como um dos finalistas do prêmio Cultura Viva em tecnologia
social em 2006, prêmio Criança-Esperança e prêmio Itau-Unicef
regional e nacional em 2007.
A sede está centralizada em um campus na cidade de São
Raimundo Nonato e compreende: o Centro Cultural Sérgio
Motta, onde estão localizadas as reservas técnicas, biblioteca
especializada, laboratórios, escritórios e depósitos, e o Museu
do Homem Americano, com um teatro de arena, auditório,
exposição permanente do acervo arqueológico e um conjunto
de salas onde atualmente funciona o Curso de Graduação em
Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal
do Vale de São Francisco - UNIVASF. Pesquisa e preservação
patrimonial caminham lado a lado há mais de 35 anos nesta
região, engendrando um notável desenvolvimento científico,
cultural, econômico e social.
Figura 2 - Museu do Homem Americano, FUMDHAM, SRN, Piauí, Brasil.
Fonte: Arquivo FUMDHAM
146 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 147
O parque nacional serra da capivara Nos paredões da cuesta e nos vales interiores, encontra-se a
concentração de sítios arqueológicos, em sua maioria, portadora
de painéis com registros gráficos pré-históricos, pinturas e
Está localizado na fronteira entre duas formações
gravuras. Distribuídos na planície e na chapada, próximo aos
geológicas, a planície pré-cambriana da depressão periférica
abrigos pintados, há sítios arqueológicos a céu aberto, repletos de
do rio São Francisco e a bacia sedimentar do rio Parnaíba,
peças líticas, ferramentas em pedra lascada e polida, fragmentos
separadas por uma cuesta muito pronunciada. O Parque faz
cerâmicos, urnas funerárias e vestígios paleontológicos da micro
parte do domínio das caatingas, sertão semiárido do Polígono
e macro fauna.
da Seca. A caatinga constitui a cobertura vegetal endêmica
de todo o interior do Nordeste brasileiro; a fauna é muito
diversificada, mas reduzida pela caça intensiva, que hoje está
A pesquisa arqueológica
parcialmente controlada pela fiscalização do IBAMA.
Após 35 anos de pesquisa interdisciplinar na região,
podemos inferir resultados que nos permitem avançar no
conhecimento científico de diversas áreas.
Os trabalhos realizados propiciaram a descoberta de mais
de 1158 sítios arqueológicos, dos quais 800 com arte rupestre
muito diversificada, incluindo pinturas e gravuras. Sítios com
sepultamentos e sítios de antigas aldeias, a céu aberto também
foram identificados e cadastrados. Nos últimos quatro anos,
realizamos prospecções arqueológicas em todo o Sudeste do
Estado do Piauí, incluindo as áreas do Parque Nacional Serra da
Capivara, Parque Nacional Serra das Confusões e o Corredor
ecológico (área localizada entre os dois parques). Somos cientes
de que, para compreender questões diretamente associadas
ao povoamento americano, é necessário conhecer um amplo
território, caminhos percorridos através dos tempos, para
adentrar o sertão nordestino e chegar até o sítio do Boqueirão da
Pedra Furada.
Figura 3 - Vista aérea da região da Serra Branca, norte do Parque Nacional Serra da Capivara.
Fonte: Arquivo FUMDHAM
148 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 149
Figura 4 – Arte rupestre da Toca do Estevo III, Parque Nacional Serra da Capivara.
Fonte: Arquivo FUMDHAM
Em épocas pré-históricas, as condições ambientais na
Figura 5 - Fósseis da preguiça gigante in situ, na Toca do Barrigudo, CJD, Piauí, Brasil.
região eram muito diferentes. As escavações demonstraram Fonte: Arquivo FUMDHAM
que, até cerca de 10.000-9.000 anos BP, grandes rios
corriam na região, coberta pela floresta tropical úmida. Uma
vegetação abundante assegurava a alimentação para a fauna, Na região existem evidências de presença humana que
majoritariamente herbívora e de grande porte. As espécies mais remontam a 100.000 anos BP. O sítio Toca do Boqueirão
comuns da megafauna eram a preguiça gigante (Catonyx cuvieri da Pedra Furada, escavado de 1978 a 1988, forneceu a mais
e Eremotherium lundi), o tigre-dente-de-sabre (Smilodon populator), completa estratigrafia até agora encontrada nas Américas.
o mastodonte (Haplomastodon waringi), o tatu gigante (Glyptodon Hoje, podemos afirmar que a entrada do Homo sapiens para o
clavipes), as lhamas (Palaeolama major e Paleolama niedae) e cavalos continente americano fez-se em vagas que, saindo de diferentes
(Hippidion bonaerensis e Hippidion sp.).(Guérin,1991) lugares, seguiram diferentes caminhos em períodos diversos.
A escavação sistemática forneceu 63 datações radiocarbônicas -
Uma nova espécie de preguiça, a Scelidodon piauiense,
C14, realizadas em laboratórios da Europa, América e Austrália,
encontrada na Toca do Barrigudo, na região dos afloramentos
que permitiram o estabelecimento de uma coluna crono-
calcários foi descoberta há poucos anos. Junto dessa fauna
estratigráfica que vai de 58.000 até 5.000 BP. (Parenti,2002)
gigante existiam também as espécies de médio e pequeno porte,
que foram fontes de alimentação das populações que ali viviam. A datação de 100.000 anos foi obtida pela técnica da
(Guérin&Faure,2004) termo-luminescência, utilizando os seixos e blocos rochosos
150 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 151
encontrados em fogueiras estruturadas (Valladas et.all.,2003).
Reavivou-se a polêmica.1
Houve críticas a essa datação sob pretexto de que o
aquecimento teria ocorrido em razão de fogos naturais. Cumpre
informar que, para evitar possíveis erros, todos os seixos e blocos
encontrados na camada que se encontrava sobre a base rochosa,
portanto correspondente à primeira ocupação humana, foram
enviados para o laboratório do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS) de Gif-sur-Yvette, que analisou todos e
afirmou que somente os seixos e blocos provenientes das fogueiras
estruturadas haviam sido aquecidos.
Outra prova de que esses blocos e seixos foram aquecidos
nas fogueiras de origem antrópica e não em fogos naturais foi
obtida por sondagens feitas por Gisele Daltrini Felice, descendo
a vertente desde o sítio até o fundo do vale. Caso tratasse de um
incêndio florestal natural deveria haver carvões em toda a área. Figura 6 - Vista geral do Sítio Boqueirão da Pedra Furada adaptado ao turismo.
Mas somente em alguns locais é que foram encontrados carvões e Fonte: Arquivo FUMDHAM
material lítico. Uma datação de 18.660 foi obtida. (Felice,2000)
É importante salientar que no II Simpósio sobre o na região ficou demonstrada e comprovada pela antropologia
Povoamento Americano, realizado em dezembro de 2006, 13 física. Atualmente, estão sendo realizados estudos detalhados da
anos após o primeiro, também em São Raimundo Nonato, houve morfologia craniana pelo Dr. Walter Neves e sua equipe com
consenso sobre a datação radiocarbônica de 58 mil anos. resultados significativos. (Hubbe et all.2007)
Ossos humanos encontrados nas tocas da Janela da Barra Outras evidências atestam a antiguidade e a passagem por
do Antonião, do Garrincho2, dos Coqueiros e do Elias, também outras vias de acesso. Por exemplo: coprólitos humanos foram
conhecida como Cerca ou Caldeirão do Elias, foram datados entre encontrados próximos a uma fogueira, datada de 7.230 anos
12.000 e 10.000 anos BP. A antiguidade da presença humana BP no Sítio Boqueirão da Pedra Furada. Nelas, pesquisadores
do Instituto Oswaldo Cruz descobriram ovos de Ancilostoma
duodenalis, que, para chegar até a região, inferem a existência
de migrações de povos que saíram e atravessaram somente
1
Guidon et all.,1996; Guidon et all.,2002a; Guidon et all. 2002b; Santos et
all.2003 regiões quentes até aqui chegar, pois a transmissão do verme
2
Guidon et all.2000 passa por estágios larvares no solo, exigindo uma temperatura
152 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 153
mínima de 25ºC. Essa descoberta exclui a possibilidade de
esse grupo ter passado pelo Norte da Ásia e pelo Estreito de
Behring. (Araújo,1996)
A arte rupestre – um sistema de comunicação
Desde o princípio da pesquisa na região, os registros
rupestres são estudados; inicialmente foram levantados com
técnicas tradicionais de decalque. Atualmente, são registrados
por fotografias digitais. São mais conhecidas duas tradições de
pinturas rupestres, a Tradição Nordeste, predominante nesta
região e a Tradição Agreste também muito frequente. As gravuras
são minoria até hoje conhecidas. (Guidon,1991)
Este costume de se exprimir, registrando figuras
pintadas em uma parede, é uma manifestação de um sistema
de comunicação social. Trata-se de uma verdadeira linguagem3,
na qual o verdadeiro significado perdeu-se no tempo por não
conhecermos o código de interpretação dos realizadores. Cada
grupo étnico possui um sistema de comunicação gráfico-visual
diferente, com características próprias. Os conjuntos gráficos
permitem o reconhecimento de figuras e de composições
temáticas, nos quais podemos identificar somente os elementos do
mundo material que foram escolhidos para serem representados, Figura 7 – Arte rupestre da Toca da Subida da Serrinha I, Parque
conhecido segundo nossos referencias sociais. 4 Nacional Serra da Capivara - cena de caça coletiva.
Fonte: Arquivo FUMDHAM
3
Quando dizemos linguagem não estamos querendo dizer escrita.
4
Pessis & Guidon, 1992; Buco,1999; Guidon&Pessis,2000; Pessis,2003
154 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 155
Foram definidas tradições e subtradições, segundo critérios Quatro temas principais aparecem durante os seis mil anos
ligados a diferenças na representação gráfica de um mesmo tema atestados de existência desta tradição: dança, práticas sexuais,
e à distribuição geográfica. Na área do Parque Nacional domina caça e manifestações rituais em torno de uma árvore.
a Tradição Nordeste de pinturas rupestres. Ela é caracterizada
O estudo detalhado da gestualidade, mostrada pelas
pela presença de grafismos reconhecíveis (figuras humanas, animais,
figuras que compõem as diferentes cenas, tem permitido inferir a
plantas e objetos) e de grafismos puros, que não podem ser
permanência de ritos, principalmente quando comparados com
identificados, a não ser por sua forma geométrica.(Pessis, 1993)
a gestualidade dos índios atuais. Como exemplo, temos as cenas
As figuras são, muitas vezes, dispostas de modo a de dança coletiva, nas quais os movimentos das pernas e braços
representar ações, cujos temas podem ser identificáveis ou não, e mantiveram-se semelhantes por, pelo menos, seis mil anos. (Buco,
se relacionam, seja com cenas da vida de todos os dias, o universo 1999)
cotidiano, seja com o mundo cerimonial, o universo simbólico.
Tais ações são numerosas e constituem a especificidade da
Tradição Nordeste. (Pessis, 2003)
Figura 8 – Arte rupestre da Toca do Girau, Parque Nacional Serra da Capivara. Figura 9 – Prancha comparativa entre estilos da Tradição Nordeste evidenciando comparações gestuais.
Fonte:Arquivo FUMDHAM Fonte: Arquivo FUMDHAM
156 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 157
Em certos sítios, ao lado da Tradição Nordeste, aparece, há Nesse abrigo, temos uma datação de um fragmento de
10.000 anos, a Tradição Agreste caracterizada pela predominância parede com um pedaço de uma pata de um cervídeo pintado, em
de figuras humanas, sendo raros os animais. As figuras uma profundidade de 317 cm abaixo do solo atual do sítio, que
representando ações são raras e retratam unicamente caçadas. Ao se encaixa a uma figura de um painel que estava enterrado. O
contrário da tradição Nordeste, as figuras são representadas sem resultado (Beta-207267) é 7.410 +/- 60 BP (idade radiocarbono
movimento, sem nenhum dinamismo. Não se conhece até agora o convencional) sendo o resultado calibrado (2 sigma) de 8.360 a
foco de origem da Tradição Agreste que parece ter desaparecido 8.110 BP e 8.090 a 8.060 BP. Esta é a datação mais antiga de
da região entre 4.000-3.000 anos antes do presente. pinturas na região da Serra Branca. Estes cervídeos fazem parte
de um painel com figuras de emas da classificação estilística Serra
Hoje se discute, mundialmente, o conceito de Tradição e
Branca, corpo preenchido geometricamente, portanto o estilo que
os critérios utilizados para uma classificação estilística, adotados
se acreditava corresponder a um período mais recente também
para vestígios arqueológicos. No âmbito mundial, o repertório
está presente em um período intermediário, mais antigo.
gráfico-visual da arte rupestre aumentou, atualmente há um
grande conjunto de representações e não podemos continuar
a usar critérios vigentes há 20 anos. Novas pesquisas estão
sendo realizadas, mas salientamos que, independentemente de
interpretações que refletem a opinião de indivíduos e não da
Instituição, investimos sempre na qualidade da documentação
com técnicas antigas e modernas, como o levantamento de
toda a superfície pictórica de um sítio arqueológico através do
escaneamento 3D, um dos projetos atuais da FUMDHAM sob
a coordenação da pesquisadora Anne-Marie Pessis e financiado Figura 10 - Fragmento datado e
encaixa da Toca do Pica-pau, Parque
pela FINEP. Nacional Serra da Capivara.
Nesta região há muitos sítios arqueológicos com pinturas
próximas ao solo atual. Este dado é um dos critérios da escolha do
sítio para campanhas de escavação. Nos últimos cinco anos foram
encontradas placas rochosas caídas, com figuras pintadas e painéis
enterrados, que permitiram, por datação relativa, confirmar a
necessidade de uma revisão nas classificações estilísticas utilizadas
nesta região, principalmente no que se refere à Tradição Nordeste
e ao estilo Serra Branca. Um exemplo é o caso da Toca do Pica- Figura 11 - Emas do painel enterrado
da Toca do Pica-pau, Parque
pau na região da Serra Branca. (Guidon et all. 2006b) Nacional Serra da Capivara.
Fonte: Arquivo FUMDHAM
158 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 159
Outro caso que merece destaque é a Toca do João A situação mais controversa associada à arte rupestre é a
Leite, onde duas massas de pigmentos, encontradas durante a da Toca da Bastiana. Este sítio é um abrigo calcário, localizado
escavação, tendo ao lado a lasca que havia sido utilizada para na região dos serrotes, na planície pré-cambriana, no entorno
raspá-las, inclusive com restos coloridos no gume, foram datadas do Parque Nacional Serra da Capivara. Nesse pequeno sítio, há
relativamente; ou seja, carvões que estavam ao lado foram pinturas das Tradições Nordeste e Agreste, nas cores vermelha,
analisados pelo método de Carbono 14. O resultado (Beta-220088) amarela e preta, e, também, gravuras. Desde 1991, este sítio é
para o ocre amarelo foi 10.800 +/- 70 BP e o resultado (Beta- estudado. Inicialmente, o Prof. Oswaldo Baffa do Departamento
218506) para o ocre vermelho foi 3190 +/- 40 BP. Como pode de Física da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, através
ser observado, inclusive na fotografia abaixo, a cor amarela está da técnica EPR, datou uma amostra de calcita, que cobria duas
por baixo da cor vermelha. Antes desta constatação acreditava-se pequenas figuras humanas, em 17.000+/-2000BP. O Prof.
que o uso da cor amarela estava associado ao complexo estilístico Shigueo Watanabe, do Departamento de Física da Universidade
Serra Talhada, o período intermediário, e não a um período de São Paulo-Capital, em 2001, também, através da Ressonância
mais antigo, como essa data confirma atualmente. São muitas eletro-paramagnética (EPR) e a termoluminescência, datou uma
questões que fazem com que seja necessário rever as classificações amostra de calcita que estava sobre uma grande figura humana
estilísticas. Esperamos poder, dentro em breve, fazer datações da Tradição Agreste (conhecida como bonecão) e sobre duas
diretas de pinturas com o uso de novas tecnologias. figuras humanas pequenas da Tradição Nordeste, entre 33 e 35
mil anos antes do presente. (Guidon et all.2002b)
Figura 13 - Painel pictórico das Tradições Nordeste
Figura 12 - Painel pictórico bicromático da Toca do João Leite, Parque Nacional Serra da Capivara. e Agreste da Toca da Bastiana, CJD, Piauí, Brasil.
Fonte: Arquivo FUMDHAM Fonte: Arquivo FUMDHAM
160 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 161
Na parede lateral do abrigo foi feita uma limpeza, retirando anos, muito trabalho foi realizado, e constatamos que o trabalho
uma espessa camada de calcita. Sob ela apareceu uma grande preventivo tem se tornado fundamental para a não degradação
figura humana da Tradição Agreste. A calcita que a cobria foi desse patrimônio. As ilustrações seguintes são dois exemplos: A
datada pelo Prof. Shigueo Watanabe em 48.286 a 39.442 BP. Esses reconstituição de placas caídas, descobertas na escavação da Toca
resultados contribuem para confirmar o povoamento antigo, mas do Pinga do Boi, e a limpeza, retirada de ninhos de vespas sobre
apresenta um novo problema: o da antiguidade da arte. a pintura.
Rowe e Steelman dataram amostras de pigmentos
vermelhos de figuras da Tradição Nordeste desse mesmo sítio e
obtiveram pelo Carbono 14 datas entre 2.490+/-30 BP e 3.730+/-
BP. Mas, como esses autores dataram amostras do mono-hidrato
do oxalato de cálcio contemporâneo à formação da camada de
calcita e, também, material superficial da rocha com o pigmento,
podem ter tido uma mistura com material orgânico de micro-
organismos que se desenvolvem no arenito e cujos restos ficam
aderentes à rocha. Mas estas datações divergentes exigem que
novas pesquisas e novas tentativas sejam feitas para resolver,
definitivamente, a questão. Faz-se necessário ampliar a análise
dos conjuntos pictóricos independente das Tradições; o mais
importante é perceber as diversas variáveis contextuais ambientais
e culturais que podem interferir no conhecimento do grupo
cultural realizador dessa arte.
Atualmente há uma equipe de pesquisadores
interdisciplinares estudando esse sítio e outros próximos,
coletando e analisando cuidadosamente novas amostras.
Faz mais de 10 anos que a FUMDHAM mantêm, com o
apoio do CNPq, FINEP e do Ministério da Cultura, um grupo
de jovens das comunidades da região, aprendendo atividades
técnicas associadas diretamente à Arqueologia, conservação e
preservação patrimonial. Associada à arte rupestre há uma equipe,
formada e coordenada pela arqueoquímica Conceição Lage,
Figuras 14 e 15 – Fotos de antes e depois da intervenção da equipe de conservação da
especializada na limpeza e conservação dessa arte. Nestes últimos FUMDHAM na Toca do Pinga do Boi, Parque Nacional Serra da Capivara.
Fonte: Arquivo FUMDHAM
162 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 163
Desenvolvimento regional programa excepcional que deixou de existir quando o Ministério da
Educação, em 2000, decidiu que não mais repassaria diretamente
à FUMDHAM os recursos necessários para manter essas escolas,
Desde o início, percebemos a necessidade de construir repassando-os às três prefeituras dos municípios onde estavam
uma estrutura auto-sustentável, e, com o auxílio do Banco localizadas as escolas. Segundo o Ministério, tudo estava montado e
Interamericano de Desenvolvimento e dos governos da França as prefeituras manteriam as escolas. Imediatamente, as professoras
e da Itália, foram feitos estudos para definir quais as atividades devidamente capacitadas foram substituídas e as escolas passaram
economicamente rentáveis. Os técnicos chegaram à conclusão a ter, como todas as escolas públicas da região, 2 a 3 horas de
de que o turismo era a única alternativa que permitiria um aula por dia. As crianças não recebiam mais alimentos, os postos
desenvolvimento mais amplo, regional, no qual preservação de saúde desapareceram e, finalmente, tudo se transformou em
patrimonial e desenvolvimento da comunidade fossem escola pública. A FUMDHAM recuperou então os prédios, cujas
concomitantes. instalações e equipamentos estavam em péssimo estado.
Sabíamos que, para chegar a ser um polo turístico, Hoje, desenvolvemos atividades educacionais para 170
precisávamos investir na formação do pessoal, incluindo a formação crianças e 40 jovens, no Centro de Artes em São Raimundo
básica, praticamente inexistente nos povoados dos arredores do Nonato, Programa conhecido como Pró-Arte FUMDHAM, que
Parque e na infra-estrutura de acesso e hotelaria. Nos primeiros proporciona atividades de Arte-Educação e reforço escolar para
anos, a dedicação foi total na pesquisa e na formação básica; cinco as crianças de 6 a 12 anos; tem um coral, uma banda e um grupo
escolas foram construídas na área do entorno, recebendo mais de de teatro com os jovens e também oferece aulas de artes visuais,
mil crianças. Em regime integral, os alunos entravam às 7 horas capoeira e instrumentos musicais para os adolescentes. Nesse
da manhã e saiam às 17 horas. Pela manhã assistiam às aulas, espaço, há um Cine Clube, conhecido como Cine Art7, gerido pelos
e à tarde realizavam atividades artísticas e esportivas. Todas as jovens da própria comunidade. Das 5 escolas, 4 estão fechadas, e
escolas tinham um Posto de Saúde, com o atendimento médico em uma delas, no Barreirinho, funciona um albergue e a Fábrica
realizado pela FIOCRUZ, que capacitou enfermeiros locais para de Cerâmica Serra da Capivara, construída, com financiamento
o trabalho preventivo de saúde. Nos povoados onde funcionavam do Banco Interamericano, no início dos anos 1990, essa cerâmica
essas escolas a mortalidade infantil desceu a zero. produz peças, principalmente utilitárias, com representações das
diferentes figuras rupestres dos sítios arqueológicos, um sucesso
Nos anos 1990, em uma parceria com o Instituto de Artes
entre os turistas. Essa cerâmica já está sendo exportada e criou
de São Paulo (IA), da Universidade Estadual Paulista (UNESP),
mais de 20 empregos no povoado.
investimos na capacitação dos professores locais que educavam
utilizando uma metodologia contextualizada, e educação pela Percebemos também que precisávamos voltar a fazer o
arte: meio ambiente, valorização cultural e disciplinas básicas que o homem da Pré-História fazia. Conviver em harmonia
se entrelaçavam ludicamente para que houvesse um maior com a natureza, respeitando a biodiversidade, garantindo assim
envolvimento dos educandos com o conteúdo programático. Um a continuidade dos recursos naturais, fonte necessária de nossa
164 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 165
sobrevivência. Nós não concebemos a preservação ambiental
separada da preservação cultural, elas são indissociáveis. Se ainda
há caçadores na região do Parque Nacional Serra da Capivara
é principalmente porque há compradores, e, para eles não há
penalidades. A FUMDHAM também atua no manejo ambiental
do Parque. Hoje, é comum vermos animais, a vegetação se refez
em zonas que haviam sido incendiadas e em zonas com processos
de erosão, do tipo vossorocas.
O trabalho social que a FUMDHAM vem realizando
é reconhecido. Os técnicos de conservação de arte rupestre,
de escavação, topografia, informática e dos laboratórios
arqueológicos e paleontológicos foram treinados por nós e pelas
instituições parceiras. São jovens, senhoras e senhores que não
precisam migrar para garantir o sustento de sua família. Temos
a certeza de que não há desenvolvimento regional sem educação
de qualidade, desenvolvimento humano e sem criação de postos
de trabalho.
Para os trabalhos de construção da infra-estrutura do
Parque, para sua manutenção, sempre empregamos pessoas das
comunidades mais próximas. Das 28 guaritas e bases de apoio
hoje somente 14 estão abertas, as outras foram fechadas por
falta de recursos. Nelas trabalham 56 mulheres, assegurando o
controle das entradas no Parque. Somos considerados o Parque
Nacional com a melhor infra-estrutura da América do Sul, como
também a melhor infra-estrutura de um parque arqueológico do
mundo. Em 2008, a revista Quatro Rodas deu à Serra da Capivara Figura 16 - Aula de Educação Patrimonial (parceria Iphan/FUMDHAM/Comunidades
locais) com crianças do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara, no Sítio do Meio.
o prêmio do mais belo parque do Brasil. Fonte: Arquivo FUMDHAM / Iphan 19ª.SR
166 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 167
Infraestrutura Figura 17 – Boqueirão da Pedra Furada sítio.
Fonte: Arquivo FUMDHAM
O acesso aéreo para o Parque Nacional Serra da Capivara O sítio Boqueirão da Pedra Furada tem iluminação para
pode ser feito pelo aeroporto de Petrolina, no Estado de visitação noturna, locais para descanso e piqueniques, Centro
Pernambuco, ou o Aeroporto de Teresina, capital do Estado do de Visitantes, com auditório, exposição dos ossos dos animais da
Piauí. A primeira opção fica a 300 km de distância e a estrada megafauna, terraços para descanso, sanitários e lanchonete, e o
de acesso está em péssimo estado de conservação; a segunda anfiteatro da Pedra Furada, onde foram realizadas três edições
fica a 540 km de distância, com estrada em melhor estado de do Festival Interartes com espetáculos internacionais de Teatro,
conservação; em ambas há animais soltos pela estrada sendo, Dança e Música.
portanto, necessário ter muito cuidado. Nas possibilidades de
acesso indicadas, chega-se à cidade de São Raimundo Nonato, a São 14 circuitos turísticos que englobam 128 sítios, paisagem
mais desenvolvida na região, que já tem diversos hotéis, pousadas diversificada, com a presença de diversas espécies da fauna. Para
e restaurantes típicos. Em 1997 foram liberados recursos para visitar toda a área preparada seriam necessários cerca de vinte
a construção de um aeroporto internacional, na vizinhança do dias. A FUMDHAM, junto com o IBAMA e o Iphan asseguram a
Parque Nacional. Hoje a pista esta terminada mas as obras do formação dos guias turísticos, que, obrigatoriamente, acompanham
terminal estão praticamente paradas. os visitantes, para evitar a depredação do patrimônio.
Para vigilância, manejo e pesquisa, contamos com cerca de
No Parque Nacional contamos com três acessos públicos,
200 km de estradas de serviço, de acesso restrito, mas que serão
exclusivos para visitantes. Neles foram instaladas guaritas que
à medida que tenhamos recursos, transformadas em estradas de
dispõem, além das comodidades necessárias para as agentes, sala
visitação turística.
para descanso dos turistas e sanitários com dispositivo para uso
por deficientes físicos. Dentro do Parque há mais de 300 km de Até os anos 1980, a fauna do Parque Serra da Capivara
estradas e trilhas abertas aos turistas, 128 sítios arqueológicos migrava para a Serra das Confusões durante a época da seca,
preparados para receber visitantes, sendo que 16 deles foram porque na Serra das Confusões havia água o ano todo. Quando
adaptados para deficientes, tornando-os acessíveis para todos, chovia, voltavam para a Serra da Capivara. Mas com a invasão
fruto de uma parceria com o Iphan. do território entre os dois Parques essa migração não mais
168 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 169
pode ser realizada, os animais são mortos. Por isso construímos Conclusão
reservatórios para armazenar água pluvial com capacidade
estimada em 12 milhões de litros. Deste modo os animais podem
sobreviver dentro da Serra da Capivara. Acreditamos que desenvolvimento regional e preservação
são possíveis quando a prioridade da preservação cultural está
A sede da FUMDHAM engloba o Museu do Homem
associada à proteção e manejo do meio ambiente, à valorização
Americano e o Centro Cultural Sérgio Motta, o primeiro com uma
da pesquisa multidisciplinar, à utilização auto-sustentável do
exposição permanente interativa sobre as pesquisas dessa região,
patrimônio, culminando com desenvolvimento social e econômico
e o segundo com laboratórios técnicos e depósitos que abrigam
regional, o todo baseado em um sistema educativo de qualidade
mais de um milhão de peças e uma biblioteca especializada em
associado ao turismo. Educação e Turismo são reconhecidos
Arqueologia.
como a maneira mais segura de mudar a realidade da região do
Hoje, o parque é uma realidade. São raros os atos de Parque Nacional Serra da Capivara.
vandalismos em seu interior. As obras para a construção do
Faz-se necessário pensar, conjuntamente, em uma estratégia
aeroporto internacional, licitadas desde 1997, passaram por
de preservação, de modo que as ameaças possam ser sanadas, as
momentos de crise, sendo impossível ainda definir uma data para
leis cumpridas e as oportunidades de aprendizagem vivenciadas
sua inauguração.
por todos, só assim poderemos auxiliar na construção da futura
Tivemos, há dois anos, problemas com a implantação de memória brasileira. O estado da arte é a arte de estar sempre
assentamentos agrários na área do entorno, junto aos limites do acreditando que tudo é possível, quando, frente à realidade
Parque. Houve desmatamentos e queimadas próximo aos sítios, da vida, temos força e determinação, descobrindo coragem e
ameaçando o patrimônio. Boa parte dos Sem Terra assentados esperança no sorriso das crianças que têm oportunidades, elas
hoje passa fome, vivem na cidade e pedem trabalho, pois a seca são o futuro desta nação.
dos últimos anos foi intensa e a colheita foi nula.
Em 2005, em uma ação conjunta com o Iphan, protegemos
34 sítios arqueológicos do entorno que ficavam em lugares de fácil
acesso, ou que haviam sido ocupados por caçadores. Em 2008,
protegemos mais 24, em alguns casos o processo foi doloroso,
porém conseguimos chegar a um entendimento.
170 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Niéde Guidon / Cristiane de Andrade Buco 171
Referências GUIDON, N.; PEYRE, E.; GUERIN, C.; COPPENS, Y. 2000.Resultados
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PESSIS, A-M. 2003.Imagens da pré-história.Parque Nacional Serra da
Capivara. São Paulo: FUMDHAM-Petrobras O objetivo deste artigo é traçar um panorama dos
instrumentos jurídicos de preservação do patrimônio cultural.
SANTOS,G.M.; BIRD,M. I.; PARENTI,F.; FIFIELD,L.K.; GUIDON,N.; Pretende delinear os principais instrumentos atualmente
HAUSLADEN, P.A. 2003. A revised chronology of the lowest occupation
existentes, destacando suas finalidades e seus efeitos jurídicos.
layer of Pedra Furada Rock Shelter, Piauí, Brazil: the Pleistocene peopling
of the Americas. Quaternary Science Reviews, n. 22, p. 2303-2310
Ao final, deseja-se que o leitor tenha noção das relevantes
funções do Direito no campo do patrimônio cultural.
VALLADAS, H.; MERCIER,N.; MICHAB,M.; JORON,J.L.; REISS,
J.L; GUIDON, N. 2003. Datações por Termoluminescência de Seixos Desde já, esclareço que o enfoque adotado não é o do
de Quartzo Queimados da Toca do Boqueirão da Pedra Furada (Piauí, Direito Ambiental, mas sim o dos direitos culturais. Na contramão
Nordeste do Brasil), FUMDHAMENTOS III, p.35-56 da maioria, compreendo que cultura e patrimônio cultural
são objetos dos direitos culturais, um ramo distinto do Direito
Ambiental, com o qual não se confunde. Entre ambos, existem
múltiplas relações. Todavia, cultura e natureza possuem suas
diferenças ontológicas, razão pela qual o tratamento jurídico
de tais objetos, tanto do ponto de vista conceitual, quanto
instrumental, devem ser diferenciados.
* Advogado. Mestre em Direito pela UERJ. Ex-bolsista do Programa de
Especialização em Patrimônio IPHAN/UNESCO. Membro da Comissão de
Direito Ambiental OAB/RJ e do Comitê de Patrimônio Cultural da International Law
Association.
174 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 175
Cabe ressaltar que, tendo em vista os limites deste artigo, ourivesaria, mobiliário e outras modalidades de bens produzidos
não serão objeto de análise a totalidade dos instrumentos. Optou- até o fim do período monárquico. Esses bens podem ter sido
se pela análise daqueles tradicionalmente identificados e utilizados produzidos no Brasil ou em Portugal, desde que incorporadas ao
na seara patrimonial. Cumpre esclarecer ainda que a análise será meio nacional durante os regimes colonial e imperial.
feita conforme a divisão tripartite do Estado brasileiro e terá como
Interessante destacar que obras de pintura, escultura e
foco principal a esfera federal.
artes gráficas que, embora produzidas no estrangeiro no decurso
do período supramencionado, tratem da historia e cultura
brasileiras (personalidades, costumes, paisagens, dentre outros)
Os instrumentos do poder legislativo para a
estão igualmente protegidas pela Lei 4.845/65 e, portanto, estão
preservação do patrimônio cultural
proibidas de sair do país.
A única exceção feita pela lei é o intercâmbio cultural
Tendo em vista o papel de elaborar as normas gerais e temporário. Assim, desde que para exposições temporárias, o
abstratas, o Poder Legislativo tem o poder-dever de editar leis órgão federal competente poderá autorizar a saída temporária
cuja finalidade seja a preservação do patrimônio cultural. Aqui é das obras de arte acima mencionadas.
preciso distinguir duas situações distintas. Na primeira a proteção
A mesma lógica está presente na Lei 5.471 de 9 de julho
é decorrente diretamente da lei, ou seja, a proteção é ex vi legis.
de 1968, que dispõe sobre a exportação de livros antigos e
A outra situação é aquela em que a lei institui um instrumento
conjuntos bibliográficos brasileiros. A lei veda a exportação
administrativo ou judicial de proteção do patrimônio cultural.
de bibliotecas e acervos documentais constituídas de obras
Neste tópico será abordada apenas a situação na qual a lei é o
brasileiras ou sobre o Brasil, editadas no século XVI a XIX,
instrumento em si.
além de periódicos com mais de dez anos de publicação e
Em nível federal, há casos em que a lei figura como originais e cópias de antigas de partituras musicais. Em casos de
instrumento de proteção. Podem ser citadas como exemplos a intercâmbio cultural, a autoridade federal competente poderá
Lei 4.845 de 19 de novembro de 1965; e a Lei 3.924 de 26 de autorizar a saída temporária dos bens protegidos.
julho de 1961.
Outro exemplo de proteção ex vi legis do patrimônio
A Lei 4.845/65 proíbe a saída, para o Exterior, de obras de cultural brasileiro é a Lei 3.924/61, que dispõe sobre monumentos
arte e ofícios produzidos no país, até o fim do período monárquico. arqueológicos e pré-históricos.1 Primeiramente, a lei estabeleceu
A lei estabeleceu uma proteção genérica a uma determinada que os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer
categoria de bens culturais. A proteção se traduz na proibição da natureza, existentes no território nacional, ficam sob a guarda e a
saída dos bens especificados na lei. Conforme o artigo primeiro, o proteção do Poder Público. Em seguida, define o que considera
objeto da proteção são pinturas, desenhos, esculturas, gravuras e como “monumentos arqueológicos e pré-históricos”,2 isto é, o
elementos de arquitetura, como também obras de talha, imaginária, objeto da proteção.
176 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 177
Conforme visto, a Lei 3.924/61 protege diretamente os No âmbito federal, são encontrados os seguintes
bens de natureza arqueológica. Ocorre que a citada lei criou um instrumentos administrativos de preservação do patrimônio
Cadastro de bens arqueológicos, de responsabilidade do IPHAN, histórico artístico nacional: Tombamento, Registro de bens de
sendo um instrumento administrativo de proteção. Daí, a dupla natureza imaterial, Cadastro de monumentos arqueológicos,
natureza dos instrumentos de proteção na seara da arqueologia. Registro de comércio de obras de arte e inventários.
Assim, a lei constitui um relevante instrumento de proteção Tendo em vista a ampliação conceitual do patrimônio,
do patrimônio cultural. Para dar continuidade, torna-se necessário de “histórico artístico nacional” para “cultural”, tem ocorrido
avançar para a análise dos instrumentos administrativos. dois fenômenos já apontados que possuem relação entre si.
Os instrumentos do Poder Executivo para a preservação Primeiramente, novos olhares sobre categorias de patrimônio
do patrimônio cultural têm gerado discussões sobre os meios mais adequados
para a proteção destes bens. É o que tem ocorrido com a
Considerando suas funções constitucionais, o Executivo
paisagem cultural, os conhecimentos tradicionais associados à
possui instrumentos específicos para a preservação do patrimônio
biodiversidade, os vestígios materiais dos antigos quilombos,
cultural.
geoparques, dentre outros. O segundo fenômeno diz respeito
Na seara dos instrumentos administrativos, não se pode a releituras de instrumentos já existentes que passam a ser
confundir a lei que institui o instrumento com o ato administrativo considerados como instrumentos de proteção do patrimônio
em si. Neste sentido, a lei estabelece os parâmetros para a atuação cultural. Em outras palavras, se o conceito foi ampliado, aquilo
do Executivo na aplicação do instrumento. Daí, a necessidade que não era considerado como patrimônio passou a ser, e,
de lei específica para instituir o instrumento, em respeito ao portanto, os instrumentos de proteção destes bens se tornaram
princípio da legalidade. Se a lei for omissa, a lacuna deverá instrumentos de proteção do patrimônio cultural. É o caso de
ser preenchida pelos critérios oferecidos pela Teoria Geral do arquivos digitais, sentenças trabalhistas etc. Há que se mencionar
Direito. O que não se admite é o Executivo inovar a lei ou atuar ainda o parágrafo primeiro do artigo 216 da Constituição da
em desconformidade com os parâmetros legais previamente
República de 1988. Este dispositivo constitucional estabelece
estabelecidos, de modo que qualquer ato praticado com desvio
que a proteção do patrimônio cultural é feita “por meio de
de finalidade deve ser atacado pelos meios mais adequados.
inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação,
Considerando que os instrumentos do Poder Executivo e de outras formas de acautelamento e preservação”.
para a proteção do patrimônio cultural são concretizados
mediante atos administrativos, não se pode olvidar da teoria Em virtude das limitações de espaço existentes nos
dos atos administrativos, principalmente dos elementos do ato propósitos deste artigo, não serão objeto de análise a totalidade
administrativo. São eles: a competência, o objeto, a forma, o dos instrumentos, mas apenas aqueles que são relevantes para
motivo e a finalidade. os fins deste trabalho.
178 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 179
Tombamento tombamento é ato vinculado ou discricionário. Considerando os
propósitos deste artigo, tais questões não serão abordadas.
Todavia, é preciso apontar a discussão sobre o modo de
O tombamento é o primeiro instrumento de proteção
instituir o tombamento: se por lei ou por ato administrativo. Sobre
do patrimônio cultural criado no Brasil e também o mais
o assunto há duas correntes. A primeira advoga a tese de que o
conhecido. Possivelmente o tombamento é o instrumento mais
tombamento é um ato do Poder Executivo e, portanto, só pode
controvertido e polêmico dentre o rol dos instrumentos.
ser instituído mediante ato administrativo. A segunda corrente
Para a análise do tombamento, há múltiplas abordagens entende que não há nenhum óbice para que haja o tombamento
possíveis, provenientes de diferentes áreas do saber. No campo mediante lei. Esta corrente apresenta como argumentos o fato de
do Direito, a perspectiva tradicional é a do Direito Administrativo. que não há nenhuma vedação expressa, além da vantagem de o
Neste sentido, geralmente se aborda o tombamento como destombamento só poder ser feito através de lei.
instrumento administrativo, de modo que são discutidas as
Para a compreensão do debate, é preciso resgatar as
características do instituto à luz das teorias, princípios, conceitos e
definições de tombamento expostas no início deste tópico, assim
práticas administrativas. Há ainda aqueles teóricos que buscam a
como a estrutura do Estado brasileiro, com a respectiva divisão de
análise do tombamento enquanto instrumento para a concretização
poderes. Sonia Rabello assinala que:
dos direitos culturais. Mais recentemente, os ambientalistas têm
analisado o tombamento pelo Direito Ambiental. Partindo de um Aplicando-se estes conceitos à matéria de proteção
por ato legislativo, formulam-se duas hipóteses: a
conceito amplo de meio ambiente, os ambientalistas abordam o primeira seria aquela através da qual o ato legislativo
tombamento não como um instituto do Direito Administrativo, mas protege, automaticamente, toda uma categoria de bens.
como um instituto próprio do Direito Ambiental. Todavia, a análise A segunda seria a hipótese na qual o ato legislativo
aqui proposta é delinear o instituto dentro de uma perspectiva protege um bem certo e determinado. No primeiro
caso, não vemos qualquer dificuldade em admitir
culturalista, isto é, como um instituto dos Direitos Culturais. sua constitucionalidade – a lei, como fonte de direito,
A primeira observação a ser feita diz respeito ao conceito que restringiu o exercício de direitos relativos a um
grupo de bens, tendo, no mínimo, a característica de
de tombamento. Não há um conceito único de tombamento, generalidade porque opera em relação a todos os
uma vez que variados autores escreveram sobre o assunto.3,4,5,6 quantos forem titulares de direitos em relação àquela
Em tais conceitos, os teóricos que se debruçaram sobre o instituto categoria de bens. É o que comumente acontece nas leis
concordam que o tombamento é o instrumento de proteção de de preservação florestal, de arqueologia, saída de bens
de valor cultural do País, já mencionadas.7
bens culturais de natureza material. A exposição dos diferentes
conceitos serve também para explicitar os principais debates que
cercam o tombamento: a natureza jurídica do instituto (limitação Para corroborar o entendimento da ilustre jurista, de que
administrativa, servidão ou modalidade própria de intervenção o tombamento é ato administrativo do Poder Executivo, existem
do Estado na propriedade), a sua indenizabilidade e, ainda, se o acórdãos que seguem a mesma linha de raciocínio.8
180 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 181
Portanto, o tombamento como ato administrativo que Superintendências Regionais e Procuradoria) quem possui
é reveste-se de características próprias. Seus requisitos são: competência para tombar é o Conselho Consultivo do IPHAN
competência, objeto, forma, motivo e finalidade. Quanto à (art. 9 do Decreto-lei 25/37). É este Conselho, composto por
competência, em nível federal, a decisão do ato do tombamento representantes da sociedade civil, que emite decisão sobre o
cabe ao Conselho Consultivo do Patrimônio, e deverá ser tombamento ou não de um determinado bem.
homologado pelo ministro da Cultura, conforme o disposto no
Uma vez inscrito no Livro do Tombo respectivo, o bem
Decreto-Lei 25/37 c/c Lei 6.292/75. Entretanto, tal atribuição
passa a integrar a categoria de Patrimônio Histórico Artístico
legal não exclui do processo de tombamento a participação dos
Nacional.9 Deste modo, o ato do tombamento passa a produzir
servidores do órgão preservacionista na instrução processual. A
os efeitos legais,10 isto é, a natureza jurídica do bem se altera,
forma é referente ao procedimento pelo qual o bem material,
pois recai sobre o mesmo a proteção legal. Os efeitos jurídicos
imóvel ou móvel (objeto) será preservado. Já a finalidade
do tombamento são de extrema relevância, uma vez que criam
consiste genericamente no interesse público de preservação e
obrigações oponíveis contra todos: proprietário, poder público e
especificamente na conservação para a proteção do bem cultural e
terceiros.
o que motiva o tombamento é a existência fática de valor cultural
no bem que poderá ter conteúdo histórico, artístico, arqueológico, Tais obrigações, de fazer ou de não-fazer, estão previstas
bibliográfico, etnográfico ou de qualquer outra categoria, ainda nos artigos 11 a 21 do Decreto-lei 25/37.11
que não presente na Constituição da República de 1988 e no
Há ainda outro efeito do tombamento em relação a
Decreto-Lei 25/37.
terceiros, mais precisamente a vizinhança do bem tombado,
No tocante ao procedimento, é preciso tecer três no caso de bem imóvel (artigo 18 do Decreto-lei 25/37).12 É o
comentários importantes. O primeiro é referente à legitimidade chamado entorno de bem tombado. Os efeitos do tombamento
para requerer o tombamento. Qualquer pessoa física ou jurídica se espalham também para a vizinhança do bem. Observe-
pode se dirigir ao IPHAN e requerer o tombamento do bem. se que a lei utiliza os vocábulos “vizinhança” e “visibilidade”.
O segundo comentário diz respeito à questão dos estudos Tais conceitos foram ampliados para as noções de “entorno”
técnicos necessários para a instrução do processo de tombamento. e “ambiência”. Esta ampliação ocorreu a partir das práticas de
O Decreto-Lei 25/37 não exige a realização de estudos prévios para preservação, pois a atuação institucional passou a considerar que
o tombamento. Os estudos, todavia, se impõem pela necessidade “vizinhança” e “visibilidade” teriam caráter restritivo, enquanto
de conhecimento do bem. Esta necessidade foi positivada na “entorno” e “ambiência” seriam mais apropriados.
Portaria 11 de 11 de setembro de 1986. Estes efeitos são os mecanismos criados pelo Decreto-lei
Outro aspecto procedimental relevante diz respeito 25/37 que, do ponto de vista jurídico, buscam garantir a proteção
a competência para tombar. Embora todo o procedimento dos bens tombados. Outros mecanismos podem ser instituídos,
seja atribuição do IPHAN e seus departamentos (DEPAM, tais como isenções fiscais, índices e parâmetros urbanísticos.
182 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 183
Após o tombamento, o outro instrumento administrativo para inscrição de rituais e festas; Livro de Registro das Formas
objeto de análise é o Registro de bens de natureza imaterial. de Expressão, concernente às manifestações literárias, musicais,
plásticas, cênicas e lúdicas; e o Livro de Registro dos Lugares, a
registrar os espaços onde se concentram e reproduzem práticas
Registro de patrimônio imaterial culturais coletivas.
O patrimônio imaterial, embora seja de alta relevância,
não está isento de críticas de diferentes naturezas. Considerando
O registro de bens culturais pertencentes à dimensão
os propósitos deste artigo, aqui o foco será restrito a análise
imaterial é o instrumento de maior relevância à salvaguarda destes
jurídica do Decreto 3.551/00, enquanto instrumento adequado
bens. Entende-se por salvaguarda o conjunto de medidas que
para a salvaguarda dos bens de natureza intangível. Em que pese
visam a identificação, o registro e incentivo dos bens de natureza
a aplicabilidade do registro, devem ser discutidos, contudo, os
imaterial. A identificação é realizada através dos inventários, outro
limites do instituto. Por rigor metodológico, serão observados os
instrumento administrativo que será objeto de análise ainda neste
aspectos formais e materiais do registro.
artigo. Uma vez identificado e conhecido, o bem imaterial pode
ser passível de Registro, isto é, receber o título de Patrimônio Do ponto de vista jurídico, a primeira questão que se destaca
Cultural do Brasil. Além disso, os bens imateriais podem receber é a forma adotada para o instrumento: Decreto do Presidente da
ações de incentivo e fomento, como medidas necessárias para a República. A adoção de um Decreto tem sido objeto de severas
sua preservação. críticas que recaem sobre o registro do patrimônio imaterial.
O Decreto n. 3.551, de 4 de agosto de 2000, criou o Programa Conforme a Teoria Geral do Direito, o Decreto é um
Nacional do Patrimônio Imaterial e regulamentou, ainda, o ato normativo do chefe do Poder Executivo para regulamentar
registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem a lei e fazer com que esta seja exequível. Aqui, aparecem dois
patrimônio cultural brasileiro. O registro já estava previsto no problemas. Primeiramente, considerando que, de um lado, o
texto constitucional, contudo somente foi regulamentado com registro foi instituído pela Constituição da República de 1988;
o Decreto n. 3.551/00, no ano de 2000. Em 1997, o Seminário e, de outro, sua regulamentação se deu por um Decreto, há um
de Fortaleza lançou as bases conceituais e metodológicas para a vácuo legislativo, ou seja, um espaço decorrente da ausência de
regulamentação pelo Executivo. uma lei em sentido estrito, capaz de legislar sobre os direitos e
O registro é o instrumento administrativo que tem por deveres dos diversos atores envolvidos na seara do patrimônio
objetivo registrar e descrever em meio físico os bens de natureza imaterial. O segundo problema é diretamente relacionado ao
intangível. No âmbito federal, o registro é feito em pelo menos primeiro. Como dito anteriormente, o Decreto regulamenta a lei
um dos quatro livros previstos no Decreto 3.551/00: Livro de e não pode substituir ou inovar a lei. Nos termos do artigo 5, II
Registro dos Saberes, dedicado aos conhecimentos e modos da Constituição da República de 1988, só a lei em sentido estrito
de fazer das comunidades; Livro de Registro das Celebrações, pode criar direitos e obrigações. O Decreto não.
184 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 185
Para os críticos, quais as consequências práticas disso? O Ministério Público na Defesa do Patrimônio Cultural em 2003,
Decreto 3.551/00 não teria força jurídica para criar direitos e estabelece que o “Ministério Público pode provocar a instauração
obrigações. Portanto, não seria apto para garantir a proteção13 do do processo de registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial
bem imaterial, pois juridicamente não obriga ninguém a respeitar que constituem Patrimônio Cultural Brasileiro”.
as normas de preservação do bem. Daí, seria juridicamente Em relação ao indivíduo, no processo de elaboração do
equivocado se falar em proteger o bem registrado. Por isso, o Decreto 3.551/00, muito se discutiu sobre a possibilidade de sua
registro não possui efeitos jurídicos como o tombamento, sendo inclusão no rol dos legitimados. Sobressaiu a visão de que os bens
um título de reconhecimento do valor patrimonial do bem, mas de natureza intangível são coletivos e que o pedido de Registro
isso não significa que seja juridicamente vedado alterá-lo. deveria ser previamente acordado com a comunidade.
Ocorre que a Convenção UNESCO sobre a Proteção e O exercício dos direitos culturais, aqui incluídos os
Promoção da Diversidade das Expressões Culturais trouxe um direitos à memória, à identidade e à diversidade, possuem uma
novo conceito de proteção, eliminando as discussões a respeito dupla natureza: coletiva e individual. Ademais, não se pode
deste problema. Para a Convenção, proteção significa “a adoção olvidar os dispositivos constitucionais referentes à matéria.
de medidas que visem à preservação, salvaguarda e valorização Neste sentido, é imperioso trazer os comandos constitucionais
da diversidade das expressões culturais”. Levando em conta relacionados à matéria.14
o posicionamento do STF no sentido de que uma Convenção,
Assim, no ordenamento jurídico brasileiro o direito de
ao ser ratificada pelo Brasil, é internalizada como uma Emenda
petição constitui um direito fundamental. Logo, na defesa de
Constitucional, o novo conceito de proteção oferecido pela
direito ou contra a ilegalidade ou abuso de poder, o indivíduo
Convenção de 2005 dá a base jurídica ao Decreto 3.551/00. Logo,
tem o direito de peticionar ao Poder Público para que este
a discussão se torna superada.
tome todas as medidas necessárias para cessar a ilegalidade.
Outra questão, de ordem formal, é a legitimidade para Ademais, segundo o artigo 5º do texto constitucional, “é
solicitar o registro. Conforme o artigo 2º do Decreto n. 3.551/2000, plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de
o rol dos legitimados são: I - O ministro de Estado da Cultura; II - caráter paramilitar” (inciso XVII). Ademais, o mesmo artigo
Instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; III - Secretarias estabelece que “ninguém poderá ser compelido a associar-se
de Estado, de Município e do Distrito Federal; IV - Sociedades ou a permanecer associado” (XX).
ou associações civis.
Em suma, o indivíduo não consta do rol dos legitimados
Observa-se, deste modo, que a legitimidade para solicitar o para solicitar o Registro nos moldes do Decreto 3.551/00. A razão
registro não é universal, como ocorre no tombamento. Pela leitura apresentada é a natureza coletiva dos bens intangíveis e, portanto,
do dispositivo supramencionado, foram excluídos o indivíduo e o apenas associações e sociedades organizadas estão legitimadas.
Ministério Público como legitimados. No que tange ao Ministério Ocorre que a legitimidade para solicitar o Registro é distinta do
Público, a Carta de Goiânia, fruto do I Encontro Nacional do consentimento prévio informado. Outrossim, o que se observa
186 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 187
é a existência de dispositivos constitucionais que asseguram ao A segunda atribuição é dirigida ao Ministério da Cultura,
indivíduo o direito de solicitar o Registro. que deve assegurar ao bem registrado a documentação por
todos os meios admitidos e a ampla divulgação e promoção. Esta
Além disso, mesmo no nível comunitário, é necessário que a
atribuição é um dos vetores do Programa Nacional do Patrimônio
comunidade esteja organizada na forma de sociedade ou associação
Imaterial, que visa à implementação da política de inventário,
civil. Como se sabe, são altos os custos para registrar sociedade
registro e valorização do patrimônio imaterial.
civil. Por outro lado, o bem imaterial pode estar localizado em área
desprovida de recursos financeiros. A soma destes dois fatores Há, ainda, uma terceira atribuição específica para o IPHAN.
pode desencorajar a comunidade a não se organizar na forma de Trata-se da criação e da manutenção de banco de dados com o
sociedade civil. Isto seria negativo sob o aspecto da participação material produzido durante a instrução do processo de Registro.
popular na preservação do patrimônio imaterial. Neste sentido,
Para finalizar a análise deste instrumento no âmbito federal,
deve haver uma interpretação extensiva para considerar como
vale mencionar que até junho de 2008 foram registrados 13 bens
legitimados não só o indivíduo mas igualmente a comunidade ou
de natureza imaterial.15
grupo social, ainda que não organizada sob a forma de sociedade
ou associação civil. Cabe destacar ainda que Estados também têm criado
instrumentos administrativos voltados para o patrimônio imaterial.
Ultrapassada a análise formal do Registro, o objeto de
Interessante notar os reflexos do Decreto 3.551/00 nos Estados,
análise passa a ser o aspecto material do Registro. O Decreto
que, nas suas iniciativas, têm se inspirado na experiência federal.
3.551/00 estabelece dois critérios para que o bem seja registrado.
Para citar alguns exemplos, os Estados de Minas Gerais,16 Santa
O primeiro critério é o da “continuidade histórica” do bem. O
Catarina,17 Bahia18 e Rio de Janeiro19 desenvolveram legislação
segundo critério diz respeito ao valor nacional do bem, uma
para a salvaguarda do patrimônio imaterial.
vez que o Decreto 3.551/00 trata do patrimônio imaterial do
Brasil.
Após o Registro do bem, o Decreto 3.551/00 estabelece duas Cadastro de arqueologia
ordens de atribuições para o IPHAN e Ministério da Cultura. A
primeira delas concerne a obrigação de reavaliar o bem registrado.
Em um prazo de até dez anos, o IPHAN é obrigado a reavaliar O Brasil possui um grande patrimônio arqueológico e
se o bem ainda possui os valores que justificaram o seu registro. diversificado. No que tange aos bens arqueológicos, existem em
Em caso afirmativo, o bem será revalidado. Caso contrário, perde nosso território inúmeros sambaquis, poços sepulcrais, inscrições
o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”, restando o registro rupestres, dentre outros. Ademais, merece destaque o farto
“como referência cultural de seu tempo”. Considerando que o conjunto de bens arqueológicos históricos, tais como fazendas,
primeiro Registro ocorreu em 2002, até o presente momento quilombos, casas, conjuntos urbanos, assim como os bens
ainda não ocorreu nenhuma reavaliação. submersos que constituem o objeto da arqueologia subaquática.
188 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 189
A magnitude do Patrimônio Arqueológico brasileiro seja em O artigo 27 da lei 3.924/61 estabelece que o IPHAN
quantidade, distribuição geográfica, variedade, complexidade, manterá um Cadastro dos monumentos arqueológicos do
peculiaridade, sem contar com os sítios ainda não conhecidos, Brasil. Este Cadastro constitui um banco de dados que contém
revela o vasto tamanho da empreitada que é sua preservação. as fichas de registro de sítios arqueológico. A relevância das
No âmbito federal, o Instituto do Patrimônio Histórico fichas reside no conjunto de informações sobre determinado
Artístico Nacional (IPHAN) é responsável pela preservação do sítio arqueológico. Informações como localização, classificação,
patrimônio arqueológico pátrio. Esta atribuição foi conferida usos do terrenos, ameaças dentre outros são importantes não só
pelo Decreto-Lei 25 de 30 de novembro de 1937, que, além para os aspectos científicos e pedagógicos do sítio, mas também
de ser o primeiro diploma legal no País acerca da preservação para a proteção, pois para proteger é preciso conhecer. Assim,
sistemática do patrimônio cultural, criou a então Secretaria de tais informações podem constar de Sistemas de Informações
Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN). Como visto Geográficas, com o objetivo de prevenir potenciais usos do solo
anteriormente, com o Decreto - Lei 25/37, surgiu no Direito que causem a destruição dos sítios.
brasileiro a figura do tombamento, que é o reconhecimento pelo
Conforme o Cadastro nacional de sítios arqueológicos, até
Estado do valor cultural do bem, impondo ao proprietário, a
31 de dezembro de 2004 há 9.930 sítios cadastrados, sendo 7
sociedade civil e ao próprio Estado, o dever de preservá-lo, o
tombados em nível federal e 2 inscritos na Lista do Patrimônio
que o torna insuscetível de modificação, destruição e mutilação.
Mundial da UNESCO.21
Considerando que muitas vezes as pesquisas arqueológicas
implicam na destruição do bem, o tombamento não é o Assim sendo, o cadastro de arqueologia é um dos
instrumento jurídico mais adequado à preservação dos bens instrumentos administrativos de proteção do patrimônio cultural
arqueológicos. brasileiro.
Por tal razão surgiu, posteriormente, a Lei 3.924 de 26 de
julho de 1961, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos
Considerações finais
e pré-históricos, e ratificou a atribuição do IPHAN na esfera da
Arqueologia. De acordo com a legislação em vigor, é atribuição
do IPHAN conceder a permissão ou autorização20 necessária
Este texto buscou caracterizar de forma panorâmica
ao licenciamento de projetos de pesquisa arqueológica, com
o ordenamento jurídico de proteção do patrimônio cultural
base em parecer emitido pelas Superintendências Regionais,
brasileiro. O objetivo foi demonstrar os instrumentos de proteção
bem como acompanhar, por meio das Superintendências,
do patrimônio cultural, assim como as principais características
as pesquisas arqueológicas realizadas em território nacional,
e finalidades de cada um. A perspectiva não foi a do Direito
além de manter um cadastro dos monumentos arqueológicos
Ambiental, mas sim a dos direitos culturais.
existentes no Brasil.
190 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 191
Observou-se que desde a criação da Proteção do Patrimônio Referências
Histórico e Artístico Nacional em 1937, o conceito de patrimônio
cultural sofreu muitas ampliações. O Direito, no papel de
instrumentalizar a proteção, acompanhou a trajetória conceitual, ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de
ofertando os instrumentos jurídicos necessários à proteção. 1988. São Paulo: Atlas, 2005.
Assim, a principal consideração a ser feita é no sentido de que há
um conjunto de instrumentos que compõem o quadro legal de CASTRO, Sonia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais
– o tombamento. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.
proteção do patrimônio, independentemente da sua relação com
o Direito Ambiental. COSTA, Rodrigo Vieira da. A proteção jurídica do patrimônio cultural
na Constituição da República de 1988: o tombamento e o registro sob
Todavia, o fato de existir o instrumento não significa a ótica dos direitos culturais. Monografia de Conclusão (Graduação em
necessariamente a proteção e preservação do patrimônio cultural. Direito). Universidade de Fortaleza, UNIFOR. Fortaleza, 2007.
É preciso assegurar a eficácia do instrumento. Para tanto, é
FARIAS, Paulo José Leite. Competência federativa e proteção ambiental.
necessário o respeito ao Estado Democrático de Direito, assim
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.
como à sinergia de esforços para a preservação. E, sobretudo, a
participação consciente e informada da população. KRELL, Andreas. Discricionariedade Administrativa e proteção
ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a
competência dos órgãos ambientais – um estudo comparativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
LIMA, Tania Andrade; SILVA, Regina Coeli Pinheiro da. O conceito de
sítio arqueológico histórico e suas implicações legais. Revista do CEPA.
Santa Cruz do Sul, v.26, n.35/36, p.12- 20, jan./dez. 2002.
MACHADO, Paulo Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo:
Malheiros, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. Malheiros: São Paulo,
1994.
MORAES, Ulpianao Bezerra de. Anais de mesa-redonda. Revista de
Patrimônio, IPHAN, n. 22, 1987.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
MOTTA, Lia; SILVA, Maria Beatriz Resende (Org.). Inventários de
Identificação. Rio de Janeiro: IPHAN, 1998.
192 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 193
RICHTER, Rui Arno. Meio ambiente cultural: omissão do Estado e c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado
tutela judicial. Curitiba: Juruá, 2003. ou de aldeamento, “estações” e “cerâmicas”, nos quais se encontram vestígios
humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico;
ROCHA, Fernando Antonio Nogueira Galvão da. Atuação do Ministério
d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e
Público na proteção do patrimônio cultural imaterial . Jus Navigandi,
outros vestígios de atividade de paleoamenríndeos.
Teresina, ano 11, n. 1472, 13 jul. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.
com.br/doutrina/texto.asp?id=10104>. Acesso em: 3 jun. 2008. 3
Para Sonia Rabello, o tombamento é “ato do Executivo: ato administrativo
decorrente de seu poder de polícia administrativa, já que, por ele, a administração
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: pública restringirá direitos de particulares, com o fim de resguardar o interesse
Malheiros, 2002. público da preservação”. CASTRO, Sonia Rabello de. O Estado na preservação de
bens culturais – o tombamento. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. p. 35.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995. 4
Semelhante é o entendimento de Carlos Marés que afirma ser o tombamento um
“ato administrativo da autoridade competente, que declara ou reconhece o valor
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, bibliográfico, cultural ou científico
cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. de bens que por isso, passam a ser preservados” SOUSA FILHO, Carlos Marés.
Bens culturais e sua proteção jurídica. Curitiba: Juruá, 2006. p. 83.
SOUSA FILHO, Carlos Marés. Bens culturais e sua proteção jurídica.
Curitiba: Juruá, 2006.
5
O festejado administrativista Hely Lopes Meirelles conceitua o tombamento
como “a declaração pelo Poder Público do valor histórico, artístico, paisagístico,
turístico, cultural ou científico de coisas ou locais, que, por essa razão, devam ser
preservados, de acordo com a inscrição em livro próprio”. MEIRELLES, Hely
Notas Lopes. Direito de Construir. Malheiros: São Paulo, 1994. p.151.
6
Na visão do ambientalista Paulo Leme Machado, “o tombamento é uma forma
de implementar a função social da propriedade, protegendo e conservando o
patrimônio privado ou público, através da ação dos poderes públicos, tendo em
1
Para a Sociedade Brasileira de Arqueologia – SAB, a arqueologia “é uma vista seus aspectos históricos, artísticos, naturais, paisagísticos e outros relacionados
ciência que se dedica ao estudo das sociedades humanas através de seus vestígios à cultura, para a fruição das presentes e futuras gerações”. MACHADO, Paulo
materiais e das modificações que imprimiram no meio em que viveram, alterando Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 915.
a paisagem, fauna e flora”. Sociedade Brasileira de Arqueologia Cf. < http://www.
sabnet.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=36&Itemid=5 7
Segue a autora: “É importante esclarecer que a proteção de uma categoria
3>. Acesso em: 2 jun. 2008. genérica de bens, por via legislativa, há de prever os efeitos relativos a esta
proteção, uma vez que, não sendo ato emanado do Executivo, pelo processo
2
Art. 2° - Consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos:
referido no Decreto-Lei 25/37, não se pode chamar de tombamento esse tipo de
a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem proteção. A lei que prevê a proteção de uma categoria genérica de bens poderá,
testemunhos da cultura dos paleoamenríndeos do Brasil, tais como sambaquis, eventualmente, equiparar os efeitos de sua proteção aos efeitos do tombamento,
montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e mas, ainda assim, não se inserirá na categoria de bens tombados, mas sim naquela
quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significados idêntico, a juízo da de bens preservados, cujos efeitos jurídicos podem até se equivaler. Uma lei
autoridade competente; que apenas diga que determinados bens estão protegidos, sem estabelecer a
b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos consequência desta proteção, é inócua; se a lei objetivar que seus efeitos venham
paleoamenríndeos, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha; restringir direitos, ao menos a previsão genérica dos efeitos dessa restrição deverá
194 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Guilherme Cruz de Mendonça 195
estar nela indicada, para que se obedeça ao princípio constitucional da legalidade”. 15
1 Ofício das Paneleiras de Goiabeiras; 2 Kusiwa – Linguagem e Arte Gráfica
CASTRO, Sonia, op. cit., p. 37. Wajãpi; 3 Círio de Nossa Senhora de Nazaré 4 Samba de Roda do Recôncavo
Baiano; 5 Modo de Fazer Viola-de-Cocho; 6 Ofício das Baianas de Acarajé; 7
8
Independência e harmonia dos Poderes. Violação. Tombamento de imóvel. Jongo no Sudeste; 8 Cachoeira de Iauaretê – Lugar sagrado dos povos indígenas
Matéria de estrita competência do Poder Executivo. Por mais louváveis que sejam dos rios Uaupés e Papuri; 9 Feira de Caruaru; 10 Frevo; 11 Tambor de Crioula
os propósitos do Poder Legislativo Municipal, ao pretender preservar prédio de do Maranhão; 12 Samba do Rio de Janeiro; 13 Modo artesanal de fazer queijo
significativo valor histórico e cultural, tem-se como inconstitucional lei de sua de Minas.
iniciativa, determinando o tombamento do imóvel, por afrontar o princípio de
independência e harmonia entre os Poderes, previsto no parágrafo 2º, art. 1º, da 16
Decreto Estadual n. 42.505, de 15 de abril de 2002 - Institui as formas de
Constituição da República de 1988 do Estado da Bahia. (Tj-Ba, Ac. Dir. Inconst. Registros de Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível que constituem
47.309-8/00, Trib. Plen., Rel. Des. Paulo Furtado, J. 09/06/00, Procedência/Un. patrimônio cultural de Minas Gerais.
Ac. 5857). 17
Decreto n. 2.504, de 29 de setembro de 2004 - Institui as formas de Registro de
9
Artigo 1º § 1º do Decreto-lei 25/37. Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível que constituem o Patrimônio
Cultural de Santa Catarina.
10
Com a notificação do proprietário, o bem passa a estar tombado provisoriamente,
ou seja, já se iniciam os efeitos legais do tombamento. Com a inscrição no Livro do 18
Decreto Estadual n. 10.039 de 3 de julho de 2006 - Regulamenta a Lei n.
Tombo ocorre o tombamento definitivo e, portanto, os efeitos são reafirmados. 8.895, de 16 de dezembro de 2003, que instituiu normas de proteção e estímulo
à preservação do patrimônio cultural do Estado da Bahia e criou a Comissão de
11
Em síntese: Não destruir, mutilar ou demolir em caso algum; Não restaurar, Espaços Preservados, e dá outras providências.
reformar, pintar, salvo com autorização do IPHAN. É vedada a saída do bem
para o exterior, salvo para intercâmbio. Restrições a alienabilidade: - Se for bem 19
Lei Estadual n. 5113/2007 - Institui o registro de bens culturais de natureza
público: o bem se torne inalienável, com possibilidade de transferência entre os imaterial que constituem patrimônio cultural fluminense.
entes federativos. - Em caso de bem privado: é possível a alienação, desde que haja 20
Autorização é o ato administrativo discricionário e precário pelo qual a
comunicação ao IPHAN para o exercício do direito de preferência para aquisição
Administração consente que o indivíduo desempenhe atividade de seu exclusivo
do bem.
ou predominante interesse, não se caracterizando a atividade como serviço público.
12
Art. 18 - Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Permissão é o contrato administrativo através do qual o Poder Público transfere
Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que a um particular a execução de certo serviço público nas condições estabelecidas
lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob em normas de direito público, inclusive quanto à fixação do valor das tarifas.
pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de
multa de cinquenta por cento do valor do objeto. Janeiro: Lumen Júris, 2004. p. 347.
13
Há que se distinguir a preservação da proteção. “Preservar é o conceito genérico. 21
Os sítios arqueológicos tombados pelo Conselho Consultivo do IPHAN são:
Nele podemos compreender toda e qualquer ação do Estado que vise conservar Sambaqui do Pindaí em São Luis-MA; Parque Nacional da Serra da Capivara, no
a memória de fatos ou valores conceituais”. (Castro, Sonia, op. cit., 1991. p. 5). município de São Raimundo Nonato-PI; Inscrições Pré-Históricas do rio Ingá, em
Proteger é espécie do gênero preservação. A proteção decorre de um ato legal, Ingá-PB; Sambaqui da Barra do rio Itapitangui – Cananeia-SP; Lapa da Cerca
administrativo ou judicial que individualiza e resguarda o bem. Assim, é possível Grande – Matozinhos-MG; Lapa Vermelha de Lagoa Santa, no Município de
restaurar (preservar) um bem que não esteja protegido por nenhuma lei, ato Lagoa Santa-MG; e Ilha do Campeche, Florianópolis-SC.
administrativo ou decisão judicial.
14
XXXIV - É a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a)
o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade
ou abuso de poder.
Patrimonializacion y apatrimonializacion
del arte rupestre en el Sitio de Patrimonio
Mundial Ischigualasto-Talampaya
Lorena Ferraro*
La piedra siempre acogió la memoria (CANDAU: 2002; 1996:93)
Introducción
El objetivo del presente trabajo es tomar un caso de estudio
que muestra dos movimientos divergentes, por un lado el de la
patrimonialización y, por el otro, el de la apatrimonialización
(CANDAU: 2002[1996]), quizás ambas como modalidades de
construcción del patrimonio a través de la ejercitación de la
memoria.
El foco estará puesto, entonces, en este proceso
“patrimonialización-apatrimonialización” a partir del que
podríamos denominar como lugar de memoria1 (sensu NORA
1984, 1998) y a la vez como lugar de la amnesia (CANDAU:
2002 [1996]): sitio arqueológico con arte rupestre “Puerta de
Talampaya” (Parque Nacional Talampaya y Sitio del Patrimonio
Mundial Ischigualasto-Talampaya, Argentina). El sitio posee
manifestaciones plásticas que responden a un “estilo” regional
en el que diferentes momentos de ejecución y uso (FERRARO,
* Administración de Parques Nacionales de Argentina
198 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 199
2006) son plausibles de ser interpretadas como la condensación conceptualización del arte rupestre como información y conciben
de memorias plurales que interactúan entre sí y que pueden tanto a un emisor que lo ejecuta y transmite como a un receptor
manifestarse, sobre determinados aspectos, como conflictivas. –contemporáneo u extemporáneo- que lo recibe, lo apropia o lo
Mientras que, a pesar de todo, sus motivos rupestres pueden ignora. Entonces, tal como plantea Candau (2002 [1996]), tanto
leerse como un tipo primordial de expresar, dejar huella, firmar la memoria como el olvido son indispensables para un análisis
o rubricar, tal como lo concibe Candau. de este tipo.
Así, retomamos la idea de que los lugares de memoria
pueden ser aquellos en los que el ejercicio de esta memoria se ha
Patrimonializacion y apatrimonializacion
ido sedimentando en sucesivas capas a lo largo del tiempo hasta
el punto de saturarlos de sentido, significación que proviene de la
compleja relación entre sus elementos (NORA: 1984). Desde este
La concepción moderna de patrimonio se refiere al vínculo
punto de vista, Puerta de Talampaya esta cargado de memorias
electivo de ciertas huellas o herencias del pasado que se vinculan
múltiples, aportadas por los pobladores locales de la comunidad de
Pagancillo (ubicada a 15km. del límite norte del parque nacional, tanto con lo cultural como con lo natural, con lo material y lo
dentro de la provincia de La Rioja), los arqueólogos que trabajan en inmaterial (saberes y formas de hacer las cosas, lenguas) a través
el lugar desde hace 40 años (CÁCERES FREYRE, 1966, DECARO, de las cuales las comunidades se reconocen y son reconocidas
2003, DE LA FUENTE Y ARRIGONI, 1975, FERRARO, 2005, (MOLINARI et al. 2000)2. El patrimonio es el producto de la
GIORDANO Y GONALDI, 1991, SCHOBINGER, 1966, ver memoria que, en el proceso de patrimonialización, selecciona
también PODESTÁ Y ROLANDI, 2000 y 2001, PODESTÁ et determinados elementos del pasado y los convierte en objetos
al. 2003 y ROLANDI et al. 2003 para un análisis sobre el arte patrimoniales. Por lo que ninguno de ellos tiene sentido salvo
rupestre del Parque Provincial Ischigualasto y REVUELTA 2008 por el vínculo que la sociedad establece con ellos.
para otros casos en La Rioja, entre otros) e incluso los visitantes Pero lo más interesante de retomar aquí son los efectos
(ya que el sitio se encuentra abierto a la visitación desde c.1975) que Candau (2002 [1996]) resalta con respecto al proceso de
que al poner en movimiento la propia memoria, agregan algo al patrimonialización, y que también se han analizado desde otras
capital de la memoria del lugar. En el otro extremo, los lugares perspectivas (p. e. WALSH 1992): la museificación del pasado
de memoria de hoy pueden llegar a ser lugares de amnesia del (para un análisis similar de la realidad examinar el concepto
mañana por lo que también es factible analizar en este caso la de cosificación desarrollado por Luckacs). Candau recuerda la
apatrimonialización de determinados elementos del sitio a partir
clasificación hecha por Pomian quien propone que existe una
del marco propuesto por Candau (2002 [1996]).
secuencia patrimonial a partir de la cual un objeto primero es
Si bien este enfoque parte de la antropología, algunos “cosa”, cuando tiene valor de uso en un contexto determinado,
desarrollos teóricos arqueológicos -inscriptos tanto en luego es “desecho” cuando deja de tener esa función porque está
marcos procesuales como postprocesuales- apuntan a una deteriorado o viejo y puede transformarse en “semiófora”, que
200 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 201
es un objeto que puede recibir significaciones (o miradas de los responsable del desarraigo y del trastorno de amplios sectores
“otros”) pero que no puede ser percibido como lo era en su forma de la población a partir de la destrucción de estilos de vida.
y contexto original. Así, para Nora (1984), desde que hay huella, Fue, en parte, como resultado de esta imposición de pérdida
distancia, ruptura, mediación, ya no hay memoria verdadera sino de raíces que se produjo la pérdida del sentido del lugar y del
historia porque la memoria es un lazo vívido y en permanente pasado de ese lugar.
evolución mientras que la historia (y podríamos agregar la
Según Walsh (1992, ver también NORA: 1984), la
arqueología) es la petrificación del pasado (NORA: 1984, ver
conciencia de las sociedades pre-industriales del pasado era
también RIEGL: 1984).
mucho más orgánica que la forma de entender el pasado
A este respecto, podríamos aportar una lectura que se desarrollada en el mundo urbano moderno. En el contexto
dirige hacia esa misma dirección sobre el modelo de cadenas rural o pre-industrial parece haber habido una valoración de
operativas explicitado por Schiffer (1992) quien intenta mostrar los procesos que influían en la vida cotidiana. El pasado era
la historia de vida de los objetos arqueológicos. El autor asume algo que estaba presente en la construcción del sentido del
que existe un contexto sistémico (en el que el uso, mantenimiento, lugar. Esta puede considerarse como una manera más orgánica
reciclaje y reclamación son acciones posibles) y un contexto de ver la historia (o la memoria, en los términos de Nora:
arqueológico en el que el objeto en cuestión sólo tiene existencia 1984), que reconoce la implicancia crucial de los procesos del
en tanto vestigio arqueológico y todas las operaciones que pasado en las situaciones presentes. Para superar esta crítica al
sobre él se realizan (que incluyen la sustracción de su lugar pensamiento moderno (ROMERO: 1987) podemos oponer una
de depositación, su conservación física, su almacenamiento postura más constructiva como la que se desarrolla actualmente
en institutos de investigación o museos y / o su exhibición en acerca del concepto de patrimonio viviente3, en sintonía con
estos últimos) sólo pueden ser vistas como una acción de los Walsh (1992) y Candau (2002 [1996]).
profesionales que se ocupan de los restos del pasado. Para
Por otra parte, en el extremo opuesto a la patrimonialización,
nosotros, esto se relaciona fundamentalmente con una ruptura
se encuentra el proceso de apatrimonialización (CANDAU:
conceptual entre el pasado y el presente que se plantean desde
2002 [1996]) en el que la memoria activa la depuración y
ciertos sectores intelectuales (PHILLIPOT: 1972) y en la
liberación de aquellos recuerdos penosos, como por ejemplo
sociedad moderna en general (ROMERO: 1987).
oficios que implican sufrimiento y esfuerzo, y que llevan a
Quienes se focalizan en esta ruptura sostienen que destruir o ignorar sus huellas materiales. Ese proceso llevaría
es parte de un proceso general de las sociedades modernas a un ejercicio de (des)valorización de determinadas prácticas
que están signadas por la fragmentación en la forma de y sus vestigios. Un correspondencia en los relatos de vida, es
conceptualizar toda la realidad (BOHM: 1998). Esto es lo que la activación de la “memoria reservada” que se vincula con
anula el concepto de largo plazo y continuidad temporal en la una separación entre la modalidad de vida actual y la pasada
ocupación humana del espacio y el sentido del lugar (WALSH: haciendo que el narrador piense que a nadie puede importarle
1992). Walsh (1992) propone que la revolución industrial fue la su historia o la de sus antepasados.
202 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 203
A lo anterior se une la idea de lugares de amnesia que son e historia; mientras que la primera es vehiculizada por grupos
aquellos que podrían haberse convertido en lugares de memoria, de gente viva y está abierta a la dialéctica del recuerdo y de la
de acuerdo con su pasado, pero que finalmente no lo han hecho. amnesia, inconciente de sus deformaciones sucesivas y abierta a
Por lo tanto, Candau sostiene que estos lugares de amnesia se manipulaciones, deformaciones, latencias y revitalizaciones, la
relacionan directamente con una censura que la comunidad se historia (y podemos agregar aquí a la arqueología) sólo se ocupa
impone. Esta última idea se puede relacionar con la propuesta de de manera crítica de la continuidad temporal, la evolución y los
Yerushalmi (1989) que trata sobre los usos del olvido. vínculos entre las cosas –sus relaciones causales-, manteniendo
una vocación de universalidad. Además, para que memoria e
historia se contrapusieran tuvo que existir una ruptura entre
La multivocalidad en las representaciones el pasado y el presente porque lo que prevalecía antes era un
del pasado: ciencia y comunidad pasado que no era vivido como tal (cuestión ya analizada en el
acápite anterior). Sin embargo, y tal como apunta lúcidamente
Candau (1996), la ciencia también es una estrategia selectiva
Como hemos visto, en las cuestiones de la antropología de producto de la manipulación –los materiales arqueológicos
la memoria suele asociarse a esta con la comunidad mientras que o cualquier evidencia u objeto de estudio en cuestión, son
a la historia, en el otro extremo de la fórmula, a una disciplina interrogados en relación con el presente del científico y no
científica “pura” (NORA: 1984). siempre en función de su contenido- por lo que memoria e
Según Candau (2002 [1996]), la historia –y podríamos historia son complementarias y emplean las mismas estrategias.
ampliarnos a otras disciplinas científicas cuyo objeto de estudio A la vez que nuestro pensamiento salvaje (sensu LEVI STRAUSS
es el pasado, como la arqueología- busca revelar las formas 1970) tiene la vocación de clasificar y ordenar, trátese de
del pasado mientras que, por otro lado, la memoria es la ciencia o no.
que modela esas formas, siendo ambas representaciones del Según Nora (1984), dado que no se sabe de qué esta
pasado. Así, a primera vista, se podría plantear una polaridad hecho el pasado –a partir de la discontinuidad planteada
entre la ciencia (la expertise) y la gente. En general, la ciencia, anteriormente-, la incertidumbre transforma todo en huella o
fundamentalmente aquella positivista, se podría definir como posible indicio sospechoso de historia. Entonces, en presencia
clasificadora y organizadora mientras que la memoria podría de huellas profusas cada individuo o grupo puede realizar un
ser definida como emotiva y afectiva. ejercicio de patrimonialización que se vuelve como una manera
De acuerdo a la distinción de Halbwach (1994 [1925] y de darse legitimidad. Así, los investigadores otorgan por su
1997 [1950]), habría una separación entre la memoria-historia y cuenta valor a determinados vestigios en el marco de una
la memoria colectiva4 que por definición es vivida, oral y plural. ideología patrimonialista y no siempre admiten que haya entre
De la misma manera, Nora (1984) opone radicalmente memoria la comunidad un movimiento de apatrimonialización.
204 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 205
La comunidad de pagancillo y los Actualmente, el sitio se encuentra dentro del Parque
arqueólogos en puerta de talampaya Nacional Talampaya (provincia de la rioja) bajo dominio,
administración y jurisdicción de la Administración de Parques
Nacionales. El que además posee un reconocimiento por parte
El caso de estudio que nos ocupa se refiere a la de la UNESCO que lo ha declarado como Sitio del Patrimonio
construcción de un lugar de memoria y de olvido, a la vez, en Mundial junto con el Parque Provincial Ischigualasto (provincia
el sitio arqueológico con arte rupestre Puerta de Talampaya, de San Juan). En la zona de influencia o amortiguamiento del
en el parque nacional homónimo. El lugar posee algunos parque nacional, se encuentra la localidad de Pagancillo, que es
rastros de ocupación humana como estructuras circulares la más cercana a Puerta de Talampaya.
de piedra y una profusión de motivos de arte rupestre. La
Si nos remontamos un poco en el tiempo (FERRARO:
mayor antigüedad que puede atribuirse a la ocupación de este
2005), vemos que a mediados del siglo pasado, las tierras que hoy
espacio es de 2.500 años, de acuerdo con las investigaciones
conforman el parque nacional pertenecían al estado provincial
arqueológicas (GIORDANO Y GONALDI: 1991). Cabe destacar
y estaban tituladas como territorio fiscal bajo la designación de
que, sin embargo, este fechado se ha realizado sobre materiales
Campo de Talampaya.
orgánicos provenientes de otro sitio arqueológico próximo y
representa una edad relativa mínima para el comienzo de la La comunidad de Pagancillo, establecida en el sector
ocupación de toda esta zona. probablemente en el siglo XVIII o XIX, comenzó a involucrarse
tempranamente con el Campo de Talampaya. A través de
Asimismo, los grabados rupestres de Puerta de Talampaya
la historia, la arqueología y la memoria oral, sabemos que al
son absolutamente significativos, los bloques rocosos decorados
principio, realizaban actividades productivas en la zona además
que se disponen en el piedemonte de los farallones que
de establecer algunos puestos para tareas específicas. Una de
conforman el cañón se extienden por casi cuatro kilómetros.
las principales actividades económicas que se desenvolvía en
De estas manifestaciones plásticas los arqueólogos no pueden
esa zona era el arreo de ganado a través de sus cañones para el
tener más que una idea relativa con respecto a su antigüedad
aprovechamiento de pasturas de los campos altos y bajos, según
ya sea a través de una evaluación de la tonalidad de la pátina
la época del año, y aún los pobladores adultos más jóvenes relatan
que rellena el surco de los grabados (ASCHERO: 1979) o del
en sus historias de vida la ayuda que ellos brindaban a sus abuelos
tema5 representado en los paneles. Así, se ha podido distinguir la
en estas tareas.
presencia de escenas que indican el vínculo con la domesticación
de camélidos (cuyos inicios en la zona se remontan también En tiempos recientes –e incluso actuales (ESCOLAR: 1996-
a 2.500 años atrás) y la ejecución de signos asociados con las 1997) - el arreo se vincula al traslado de vacunos a campos de
marcas de ganado (ver más adelante) de los pobladores criollos invernada y veranada con el fin de satisfacer las demandas del
locales desde fines del siglo XIX (PODESTÁ Y ROLANDI: 2000 grupo familiar, que a una actividad productiva a gran escala.
y 2001, REVUELTA: 2008, entre otros). Sin embargo, a fines del siglo XIX, un movimiento comercial
206 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 207
más general en toda esta región, incluido el actual Parque El gran interés de los pobladores creó dos movimientos que
Provincial Ischigualasto, establecía el traslado de vacunos hacia comenzaron a entrelazarse en el proceso de patrimonialización.
la zona de Córdoba desde donde se exportaban para abastecer Por un lado, su gran preocupación, unida a los intereses científicos,
a los emprendimientos mineros del norte de Chile (PODESTÁ llevó a que las autoridades provinciales declararan al Campo
Y ROLANDI: 2000 y 2001, entre otros). Este proceso regional de Talampaya como área protegida. Más tarde este espacio se
involucró a una cantidad de gente importante que se trasladaba nacionalizó y se fundó el parque nacional que hoy constituye. Para
por varios días a través del desierto. concluir, su valoración llegó a una escala internacional gracias a
Desde la arqueología, Podestá y Rolandi (2000 y 2001, la designación como sitio de patrimonio mundial. Por otro lado,
entre otros), han desarrollado un interesante trabajo que consigna sus iniciativas con respecto al lugar los llevaron a desarrollar
este proceso económico y lo han anclado en la producción de incipientes actividades turísticas en la zona. Así, los baqueanos de los
manifestaciones plásticas en las rocas que se asocian a los caminos, científicos se convirtieron en los primeros guías de visitantes del
las aguadas, los alojos y otros puntos destacados en el espacio para lugar y también en maestros de guías: sus propios hijos y nietos.
estos arrieros. Este arte rupestre histórico esta constituido por Estos, más tarde, establecieron una cooperativa y asociación de
una serie de manifestaciones como leyendas –incluidas algunas guías de sitio y actualmente son los únicos autorizados por la
fechas- y, fundamentalmente, motivos que reproducen las marcas Administración de Parques Nacionales, a través de una empresa
de ganado. Estos últimos son diseños que elaboran las familias concesionaria del servicio de excursiones al Cañón de Talampaya,
o los individuos que poseen hacienda para poder señalar, y así a conducir a los grupos de visitantes. Entonces, con respecto
identificar, que el vacuno marcado con ese figura les pertenece. al proceso de patrimonialización que aquí analizamos, y lo que
Este era un ejercicio común y estandarizado en aquella época, que Candau (2002 [1996]) propone como el culto al patrimonio,
se institucionalizaba a través de las oficinas de marcas y registros. podemos dar cuenta del “turismo de la memoria”(CANDAU:
2002 [1996]: 68) elaborado por esta comunidad.
Más allá de las actividades socioproductivas descriptas, la
comunidad de Pagancillo también estableció otros vínculos con Volviendo específicamente al tema de la Puerta de
el Campo de Talampaya tendientes hacia su patrimonialización Talampaya, desde el año 2001 se implementa en el parque
y así, desde las primeras décadas del siglo pasado emprendieron nacional un plan de manejo (APN: 2001a) que establece un
la tarea de guiar a los estudiosos y exploradores que comenzaban ordenamiento territorial, metas y directrices para la conservación,
a construir el enorme acervo científico sobre los aspectos manejo, control, vigilancia, educación, visitación y otras áreas
geológicos, paleontológicos, y más recientemente, arqueológicos temáticas que configuran el núcleo del desenvolvimiento del
de la zona, gracias a sus grandes conocimientos del lugar. área protegida. Así, con respecto a los recursos culturales, se
Asimismo, se estableció una relación de retroalimentación con establecieron una serie de acciones a seguir con respecto a la
los científicos, y los pobladores comenzaron a apropiarse y investigación, conservación y uso público a partir de una serie de
reinterpretar los conocimientos que se desarrollaban en el seno lineamientos específicos del Sistema Nacional de Áreas Protegidas
de esas disciplinas. (APN: 2001b y c). De esta manera, se planteó la necesidad de
208 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 209
aumentar la calidad de la visitación en Puerta de Talampaya, a conocimiento científico en la patrimonialización y a la vez reforzar
través de un museo de sitio o eco-museo, de una capacitación a y dejar explícitos sus propios mecanismos de patrimonialización.
los guías y de un acondicionamiento del lugar a través del vallado Para ello se apeló a la valoración de las cosas actuales / pasadas
y entarimado del sector abierto al público. y a un intento de reconstrucción desde los relatos de vida de su
pasado cercano (tratando de recordar el pasado para cuestionar
Toda esta tarea se realizó en estrecha colaboración e
críticamente el presente) y así comenzar a reconstruir el pasado
intercambio de conocimientos y experiencias con los guías locales
remoto (involucrado con el tiempo arqueológico). También se
-respetando los usos previos del patrimonio- con quienes se
planteó como ejercicio práctico, que los guías enunciaran algunos
discutieron, a través de la modalidad de talleres, los contenidos de
temas que desarrollan generalmente cuando acompañan a los
la cartelería interpretativa y los principales temas que atañen a la
visitantes en el recorrido por Puerta de Talampaya. Los conceptos
arqueología. La cartelería quedó instalada en septiembre de 2005.
que más nos interesan se refirieron a la “libre interpretación del
De un diagnóstico preliminar se obtuvo la idea de que los mensaje y necesidad de vincularse con el pasado”, “testimonio
pobladores habían aprehendido y reinterpretado de manera sui del pasado del hombre”, “lugar sagrado y lleno de mensaje”,
generis algunas nociones de la arqueología en el desarrollo de “testimonios de nuestros antepasados”.
su soporte táctico a terreno, y que estas habían sido traspasada
Asimismo y tal como propone Candau (2002 [1996]),
de padres a hijos y nietos, y que algunos de los contenidos
siguiendo a Young (1993), ya que la actividad de hacer memoria
que transmitían a los visitantes carecían absolutamente de que no se formule preguntas sobre sus propios fines y que no se
verosimilitud. Aquí es interesante retomar una idea de Ricoeur inscriba en un proyecto presente equivale a no recordar nada, se
(citado por Candau 2002 [1996]) quien sostiene que la memoria planteó la necesidad de evaluar el museo de sitio de Puerta de
transmitida por los antepasados (como los abuelos) contribuye a Talampaya y establecer un monitoreo a futuro para asegurar la
la construcción de un tiempo anónimo que se encuentra entre el supervivencia del recurso cultural y la sostenibilidad de su uso
tiempo vivido por una persona y un tiempo público relacionado público, introduciendo a los guías en la gestión del patrimonio
con el pasado histórico, permitiendo establecer un puente con un que realiza la Administración de Parques Nacionales. También se
tiempo que esa persona no pudo conocer. De esta manera, en los evaluó la cartelería interpretativa ya instalada y de qué manera la
trabajos que hemos realizado con ellos, logramos constatar que habían incorporado como una herramienta para la interacción
el tiempo remoto de los pueblos indígenas del lugar carecía de con los visitantes en una búsqueda de mejoramiento de la calidad
profundidad temporal siendo, para estos pobladores actuales, el de visitación y de los propios carteles.
mismo desarrollo societario aquel de las primeras como el de las
últimas ocupaciones originarias. El resultado más estremecedor y que ha servido como
disparador para la elaboración de este trabajo ha sido que en la
De esta manera se planteó, también a demanda de ellos, evaluación de uno de los carteles interpretativos, específicamente
una capacitación –realizada en abril de 2006 - que tuvo como el que se refiere a la profundidad y continuidad temporal en la
objetivos trabajar sobre los problemas de apropiación del ejecución del arte rupestre de Puerta de Talampaya (desde hace
210 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 211
2500 años hasta hace 100 años), los guías comentaron que les pueden ser constructoras de memorias e identidades y esta
aseguran a los visitantes que existe un error de tipeo en el cartel propia reivindicación patrimonial se piensa como un elemento del
y que la fecha máxima se refiere a 1000 años y no a 100 años. patrimonio y es considerada como una “inversión identitaria” a
esto definitivamente demuestra un proceso de apatrimonialización transmitir. Mientras que, la transmisión de la memoria es, a la vez,
con respecto a las representaciones de marcas de ganado que sus una producción por parte del receptor, ya que las informaciones
antepasados en general, y hasta sus propios abuelos realizaron sobre adquiridas son transformadas por el grupo o el sujeto que las
las rocas, y que se vinculan con una actividad económica realizada recibe que, de esta manera, puede innovar y crear.
por los arrieros de la comunidad –en algunas circunstancias asistidos
Por lo tanto, lo que vemos en este caso de estudio es un
por ellos mismos-. Ésta valoración se contrapone, entonces, con el
movimiento divergente sobre un mismo espacio como lugar de
relato construido desde la arqueología.
memoria y también de amnesia, en un proceso de patrimonialización-
apatrimonialización. Con respecto a la comunidad local observamos
la apatrimonialización de las representaciones artísticas de las
Conclusiones
labores de sus predecesores (que no son seleccionadas o se
prefieren olvidar) y la patrimonialización generada por la memoria
genealógica de lo que les fue transmitido por los mayores acerca
Hay cada vez más individuos que se proclaman custodios
del lugar en términos del pasado remoto (definido como aquel
de la memoria de su grupo de pertenencia y es por eso que la
pasado anónimo relacionado con el tiempo prehistórico) a través
producción de lugares de memoria se torna profusa y dispersa.
de un proceso que busca y fabrica huellas a partir de las cuales el
Así, podemos identificar portadores, custodios y difusores de la
grupo puede encontrarse y que, a la vez, retoma una porción del
memoria. En el caso bajo estudio, tratamos con una memoria
discurso científico mientras desestima otro.
genealógica que obedece al arraigo a los lugares, por parte de la
comunidad local, y otra que operando a través de mecanismos Por lo tanto, al analizar ambas posturas, podemos decir
críticos y estandarizados (y que en algunos casos apuesta a un que, en presencia de huellas profusas cada individuo o grupo
proceso de museificación) intenta explicar lo sucedidos en el puede realizar un ejercicio de patrimonialización que se vuelve
pasado a través de la arqueología. una manera de darse legitimidad a sí mismo. Así, vemos como la
ciencia patrimonializa las representaciones de marcas de ganado,
Los lugares de memoria son estructuras de recuerdo para
retomando la ideología patrimonialista por su cuenta, mientras la
la identidad de los grupos o individuos. La identidad es una
comunidad las ignora como tales.
construcción social permanentemente redefinida en el marco
de una relación dialógica con el otro (CANDAU: 2001 [1998]). Entonces, con respecto a la producción y praxis científica,
Así, la identidad también puede predisponer a la selección de es necesario recalcar la necesidad de no desestimar los usos
ciertos aspectos particulares del pasado a través de elecciones en previos del patrimonio y los procesos de patrimonialización que
la memoria. A la inversa, ciertas acciones de patrimonialización las comunidades locales desarrollan.
212 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Lorena Ferraro 213
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El concepto de patrimonio viviente entraña un enfoque en las personas –de
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5
Aschero (1994) define metodológicamente dentro de la arqueología del arte
rupestre a este concepto como la ejecución aislada o agrupada de determinados
Antropología Americana 22: 81-93, 1990. motivos recurrentemente posicionados y vinculados entre sí y / o con
determinados espacios.
Direito e Patrimônio: entre a materialidade e a
imaterialidade do patrimônio do mundo
da vida e do sistema do direito
Maria Sueli Rodrigues de Sousa**
Introdução
Considero com Habermas (2002) que o sujeito participa
de dois domínios simultaneamente: o mundo da vida e o sistema,
sendo o mundo da vida o pano de fundo, o que precede, com
valores, ideais, sonhos, utopias, verdades a que pertencem a
informalidade, as ações comunicativas, motivadas pelo desejo inato
de compreensão mútua entre indivíduos, compondo objetivos
comuns que, na medida em que a vida se pluraliza, ampliam suas
dinâmicas, possibilitam a diferenciação funcional, originando o
sistema orientado pelas ações instrumentais do indivíduo, sejam
elas econômicas [por dinheiro], políticas [por poder] ou outras
finalidades que operam, tendo o mundo da vida como a esfera
onipresente do mundo da vida como condição de linguagem.
* Reflexões feitas no âmbito o Inventário Nacional de Referências Culturais –
INRC – de comunidades quilombolas no Estado do Piauí, 2007.
** Doutora em Direito, Universidade de Brasília-UnB; Mestre em
Desenvolvimento e Meio Ambiente – PRODEMA/TROPEN – UFPI; bacharela
em Ciências Sociais [UFPI] e Direito [UESPI]. Professora do Departamento de
Ciências Jurídicas da UFPI.
218 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Maria Sueli Rodrigues de Sousa 219
O sistema emerge para o mundo da vida, na medida em que vez, apenas se reproduz por intermédio de ações
comunicativas. O que nos interessa no presente contexto
dinâmicas sociais se desenvolvem e passam a exigir a ampliação de
acerca do conhecimento de fundo típico do Mundo da
suportes para as decisões e produção, fazendo relações informais Vida é o seu caráter peculiarmente pré-predicativo
produzirem as demandas para funcionalização de processos pela e pré-categorial, o que já havia chamado a atenção de
institucionalização. Por exemplo, as autoridades eleitas assumem Husserl em suas investigações acerca desse “esquecido”
fundamento de significação que habita a prática e a
as funções de redes de confiança do mundo da vida.
experiência cotidianas do mundo (HABERMAS, p.16).
Mundo da vida tanto está atrás do sujeito quanto à sua
frente, é o pano de fundo e também horizonte para as situações
A pré-compreensão referida por Habermas é tecida
de linguagem e fonte em que se aprimora a interpretação e se
em narrativas, mitos, semimitos que aproximam as histórias
reproduz por meio de ação comunicativa e define-se como:
pessoais em torno de eventos compartilhados, produzindo
Um complexo comunicativamente reproduzido do assim a dinâmica que compõe e recompõe identidades pessoais
entrecruzamento de tradições culturais, que legitima
e coletivas como parte que integra as funções comunicativas da
ordens sociais e identidades pessoais [...] mundo da vida
[...] não somente forma o contexto para os processos de reprodução cultural, da coordenação das ações e da socialização,
entendimento mútuo, mas também fornece os recursos tomadas como correspondentes às estruturas do mundo da vida
para isso. O mundo da vida comum em cada caso já referidas como cultura (conhecimento), sociedade (ordem
oferece uma provisão de obviedades culturais donde
legítima) e personalidade (identidade individual) (INGRAM,
os participantes da comunicação tiram seus esforços
de interpretação nos modelos de exegeses consentidos 1987, p. 155).
(HABERMAS, 1989, p. 166). Os grandes riscos de dissenso, que são continuamente
realimentados pela experiência e por suas
Importante frisar que o mundo da vida aqui não se surpreendentes contingências, tornariam o uso da
confunde com totalidade, nele se destacam três ordens: sociedade, linguagem orientado para o entendimento uma rota
improvável de integração social se a ação comunicativa
cultura e subjetividade, em que cultura é tomada como a dinâmica
não estivesse enraizada nos contextos do Mundo da
que dá origem às interpretações e sentidos que os participantes Vida que provêem o suporte para um massivo consenso
dão a seus vínculos com seus pares e com o mundo da vida; de fundo (HABERMAS, p. 16).
sociedade são as ordens consideradas legítimas, através das quais
os participantes regulam sua pertença ao grupo; e a subjetividade A categoria é utilizada por Habermas para explicar a
é o que possibilita a atuação social por meio das identidades esfera de reprodução social, material e simbólica no contexto de
pessoais, sendo que o mundo da vida ganha materialidade através ação comunicativa, diferente do contexto de ação estratégica do
de simbologias, valores, normas, práticas e identidades pessoais. complexo sistêmico, colocando as pessoas, as famílias e as esferas
O Mundo da vida constitui tanto o horizonte para
de acesso público no mundo da vida, e as empresas e órgãos
as situações de linguagem quanto a fonte dos do Estado no referencial sistêmico, considerando que essas
aprimoramentos interpretativos, enquanto, por sua dimensões se cruzam, sobrepõem-se. E Habermas reconhece isso,
220 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Maria Sueli Rodrigues de Sousa 221
considerando que não se pode dissociar as funções reprodutivas origem a movimentos sociais e suas organizações, que emergem
materiais da família, ou as funções reprodutivas simbólicas da da esfera pública do mundo da vida para o sistema.
comunidade empresarial. Habermas reconhece essa sobreposição
No mundo da vida, as normas e a realidade se mesclam,
de funções. Para ele, o sistema é gerado dentro do mundo da e a tensão entre ambas é enfrentada ao mesmo tempo, através
vida como uma consequência inesperada da ação, na medida das verdades preconcebidas, produzindo estabilização de
em que esse se complexifica e uma determinada demanda se expectativas frustradas por meio dos vínculos com o sagrado, com
diferencia por sua funcionalização, requer a institucionalização o parentesco, com mitos e narrativas da oralidade comunitária,
e permanece ancorado no mundo da vida no sentido normativo que valorizam o que promove os ligamentos sociais; criando,
(INGRAM, 1987). dessa forma, o conjunto do que tem valor para a existência
A racionalização do mundo da vida na relação com os daquele grupo, o que é tomado como patrimônio pelo sistema. É
sistemas produz em suas estruturas maior diferenciação estrutural, patrimonializado às vezes com valor simbólico; às vezes ao valor
separação entre forma, conteúdo e reflexão, produzindo simbólico se mescla um valor econômico, embora elementos e/
possibilidades de diferenciação entre visão místico-religiosa e ou aspectos vinculantes do mundo da vida, em regra, não sejam
instituições normativas; fornece maior liberdade para rever as cognominados como patrimônio. Visto ser esta uma categoria
do sistema do direito, é tratado como tal. É valorado simbólica
tradições e potencializa a participação nas relações interpessoais
e/ou materialmente, é transmitido de geração a geração.
e autorrealização.
Na medida em que os mundos da vida se pluralizam, se
Faz-se importante frisar que a relação entre mundo da
complexificam, passam a demandar a atuação do sistema em
vida e sistema não os torna inconfundíveis, mesmo sabendo que a
forma de políticas públicas, direito e de controle; o sistema vai
complexidade sistêmica das estruturas institucionais acompanha,
cada vez mais se infiltrando nas malhas do mundo da vida, o que
em grande medida, a racionalização do mundo da vida, cabendo
favorece a superposição de patrimonialização: o que é patrimônio
destacar que o emergir dos sistemas ocorre com a pluralização
no mundo da vida ganha funcionalidade como patrimônio para
de mundos da vida e, consequentemente, sua complexificação,
o sistema, sob a alegação de protegê-lo. Trata-se de figura do
permanecendo independentes, embora em relação visceral. Na
patrimônio imaterial.
medida em que áreas inteiras da vida são transferidas para o
sistema, mais o mundo da vida vai se configurando como uma
espécie de satélite do sistema (INGRAM, 1987).
Patrimônio imaterial – a superposição de
Importante frisar que o mundo da vida não é fixo, sua patrimônios e a separação do que não se separa
relação com o sistema produz alterações em sua dinâmica,
especialmente, na sua esfera pública, através da qual o mundo
da vida pode confrontar o sistema, em uma relação comunicativa No Brasil, os primeiros elementos indicadores da
que produz alteração em ambos. A partir da esfera pública preocupação de proteger o patrimônio imaterial remontam
é possível observar, analisar e contestar o sistema, o que dá à década de 1930, com Mário de Andrade na elaboração do
222 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Maria Sueli Rodrigues de Sousa 223
Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional, universal excepcional do ponto de vista histórico, estético,
etnológico ou antropológico (Convenção Relativa à
o qual propunha a criação de um órgão no Ministério da
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de
Educação, mais especificamente o Serviço do Patrimônio 1972, art. 1º).
Artístico Nacional (SPAN).
A inclusão da dimensão imaterial do patrimônio cultural
No referido anteprojeto, a concepção de patrimônio
teve lugar no âmbito internacional na Convenção para a
era bastante ampla, incluía os monumentos e bens históricos e
Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003, e
arqueológicos e manifestações da cultura popular e indígena,
também o documento Recomendação sobre a Salvaguarda
como: músicas, contos, lendas, medicina, culinária e outros;
da Cultura Tradicional e Popular de 1989, ambos do âmbito
portanto, a preocupação com os dois aspectos do patrimônio,
da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
a materialidade e a imaterialidade, não é tão recente, encontra
Cultura (UNESCO).
apoio em Mário de Andrade (2000, p. 7) nos idos de 1930.
A Convenção de 2003 aborda o patrimônio cultural a partir
Embora a proposta de Mário de Andrade tenha servido de
de duas vertentes: o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio
base para a elaboração do Decreto-Lei n.25/37, responsável por
cultural material e natural.
organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional,
este não deu ênfase à proteção das expressões da cultura popular No Brasil, somente com a CF-1988 foi ressaltada a
e indígena conforme a proposta de Mário de Andrade. Sobressaiu importância da proteção do patrimônio imaterial, que, seguindo a
a concepção de patrimônio material. tendência internacional, identifica formalmente os bens imateriais
como parte do patrimônio cultural da nação:
Patrimônio material é definido como se fosse patrimônio
cultural de modo amplo: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente
Para fins da presente Convenção serão considerados ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
como patrimônio cultural: à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
- os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou sociedade brasileira, nos quais incluem:
de pintura monumentais, elementos ou estruturas de I- as formas de expressão;
natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de II- os modos de criar, fazer e viver;
elementos, que tenham um valor universal excepcional III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais
- os conjuntos: grupos de construções isoladas ou espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
ou integração na paisagem, tenham um valor universal paisagístico, artístico, arquitetônico, paleontológico,
excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ecológico e científico (Art. 216 – CF-88).
ciência;
- os lugares notáveis: obras do homem ou obras
A garantia de proteção do patrimônio material e imaterial
conjugadas do homem e da natureza, bem como as
zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor tem suporte em parágrafos do mesmo artigo:
224 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Maria Sueli Rodrigues de Sousa 225
§1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, Brasil a partir de critérios como continuidade histórica do bem,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro,
relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da
por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento
e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e sociedade brasileira (Art. 1º, § 2º).
preservação.
§2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a
No âmbito internacional, também há a preocupação com
gestão da documentação governamental e as providências aplicação de legislações de proteção ao patrimônio cultural. O
para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. documento da UNESCO Recomendações sobre a Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular, de 1989, recomenda aos países
A feitura de registros, documentação e inventários previstos signatários: proteger a privacidade dos portadores de tradição;
nos parágrafos acima foi regulada pelo Decreto n. 3551/2000. adotar medidas para salvaguardar as informações reunidas de
O referido decreto cria o Programa Nacional do Patrimônio apropriações indevidas e maus usos; atenção aos direitos de
Imaterial e institui o Registro de Bens Culturais de Natureza
propriedade intelectual.
Imaterial, que constituem patrimônio cultural brasileiro a partir
da documentação em quatro livros específicos: No Brasil, a proteção ao direito de imagem está garantida
I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos
no art. 5º, CF-88, quando garante a inviolabilidade em relação à
conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano imagem, assegurando o direito à indenização pelo dano material
das comunidades; ou moral decorrente da violação desse direito.
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão
inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do A tematização das duas dimensões do patrimônio cultural,
trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras a material e a imaterial, pela CF-88 tensiona para a superação
práticas da vida social; da dicotomia produzida no bem jurídico cultural para tomar o
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde
serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, bem no seu conjunto e não por partes, o que indica a necessidade
cênicas e lúdicas; de vê-lo de modo integrado para uma adequada aplicação
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos constitucional.
mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços
onde se concentram e reproduzem práticas culturais Enquanto aplicação, a metodologia do Inventário
coletivas (Decreto 3551/00, Art.1º, § 1º). Nacional de Referências Culturais-INRC do IPHAN, ao propor
a documentação de lugares e edificações, abre espaço para a
A instauração de processo de registro está prevista no art. superação da separação entre as dimensões materiais e imateriais
2º, podendo ser solicitada pelo ministro de Estado da Cultura; dos bens culturais, de significante e significado.
instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; Secretarias
de Estado, de Município e do Distrito Federal; sociedades ou Importante considerar que os grupos sociais gestam
associações civis, dependendo de avaliação do Conselho Consultivo sua vida através da cultura e das normas que conduzem a vida
do Patrimônio Cultural, que decidirá em última instância pela comunitária. E, como já referido, o que promove a liga social é
inscrição do bem e a sua titulação como Patrimônio Cultural do valorizado, é patrimonializado simbólica e/ou economicamente.
226 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Maria Sueli Rodrigues de Sousa 227
Embora elementos e/ou aspectos vinculantes do mundo da vida, de patrimonialização: o que é patrimônio no mundo da vida
em regra, não sejam cognominados como patrimônio, visto ser ganha funcionalidade como patrimônio para o sistema, sob a
esta uma categoria sistêmica, é tratado como tal. Tem valor alegação de protegê-lo. É a patrimonialização do mundo da
simbólico e material, é transmitido de geração a geração. vida pelo sistema.
O patrimônio do mundo da vida faz parte das dinâmicas
que produzem o tecido social e das garantias de produção e
É proteger sem a inclusão dos pertencentes?
reprodução social; não é monetarizado; produz os vínculos
sociais; enraíza a vida comunitária; o que o Estado cognomina
como estratégia de inventariar é feita na vida comunitária através
É importante destacar, tanto na convenção quanto na CF-
da oralidade; o lugar de guarda é a memória, especialmente,
88, a preocupação com o envolvimento e o consentimento das
a dos mais velhos, e faz parte da teia simbólica que produz a
populações locais no que se refere à realização, divulgação e ao
vinculação social e está inserido nas estratégias que produzem o
acesso aos bens culturais imateriais; a interface entre patrimônio
pertencimento.
material e imaterial e os direitos de autoria coletiva e individual
São formas de proteção, guarda e salvaguarda: a sobre as produções culturais.
experienciação; ensinar aos mais novos; enquadrá-lo em vivências
Enfim, vale ainda frisar que o patrimônio cultural imaterial
do prazer, do lúdico, da espontaneidade; a não padronização,
constitui um direito fundamental de natureza difusa, relacionado
o que permite que cada lugar traduza a sua identidade através
com a identidade e a história de um povo, que se traduz em
de seu patrimônio cultural; expressão de identidades coletivas
manifestações de natureza fluida e imaterial como formas de
e individuais; fazer intercâmbio; não monetarizar; protegê-lo
saber, fazer, criar relacionadas a bens materiais da vida social,
diante de ameaça, através de estratégia de ocultamento ou mescla
através do patrimônio tangível que lhe sustenta, que foi elevado
com outra expressão que não se encontra sob ameaça.
ao patamar de patrimonialização constitucionalizada, passando a
No mundo sistêmico, o patrimônio é identificado e se constituir em direito-dever.
reconhecido pelas instituições culturais; é categorizado de modo
Como já referido, antes da patrimonialização realizada
diverso do mundo da vida; é categorizado como patrimônio
pelo Estado, as populações locais adotam historicamente formas
cultural em uma alusão à monetarização; é dividido em patrimônio
de proteção ao que foi posteriormente patrimonializado, de
material e imaterial.
modo que o patrimônio resiste ao tempo. Quando o Estado,
Na medida em que os mundos da vida se pluralizam, ao patrimonializar, não busca as formas existentes de proteção,
se complexificam, passam a demandar atuação do sistema incorre no risco de produzir com isso a desagregação,
em forma de políticas públicas, dinheiro, poder, direito e desintegração entre patrimônio imaterial e patrimônio material;
de controle; o sistema vai cada vez mais se infiltrando nas patrimônio imaterial para o Estado e patrimônio para a vida
malhas do mundo da vida, o que favorece a superposição comunitária.
228 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Maria Sueli Rodrigues de Sousa 229
Quais os riscos e potencialidades dessa intervenção do populações tradicionais e quilombolas, que, ao invés de serem
Estado? patrimonializadas são criminalizadas, produzindo conflitos e
violando direitos fundamentais.
Os riscos são muitos, vão desde o abuso do direito no fazer,
justificar e aplicar as leis, como, por exemplo, no processo de feitura Não obstante o que foi apontado, há potencialidade na
das leis não considerar os dois lugares de patrimonialização e a patrimonialização institucional. É a proteção da riqueza como um
importância de cada riqueza patrimonializada para as instituições acervo do mundo da vida protegido pelo sistema para continuar
(sistema) e para a vida das pessoas (mundo da vida) nos discursos informando os modos de vida nos mundos da vida do futuro.
de justificação da feitura de leis, fazendo com que a superposição Para que isso ocorra, há que sempre partir da concepção de que a
da patrimonialização seja a negação da forma já existente, o ação institucional é para favorecer a vinculação social das pessoas
que pode se repetir na aplicação e na operação com o Direito aos seus contextos de mundo da vida; ou seja, proteger aquilo
positivado. que a comunidade já protege, não como forma de substituição,
Isso potencialmente traz consigo o risco de a mas de potencialização das formas de proteção já existentes.
patrimonialização institucional anular a funcionalidade do bem Fazer isso é constitucionalizar a aplicação do Direito positivado,
patrimonializado para a comunidade pela quebra dos vínculos dotando-o de uma perspectiva hermenêutica constitucional, que
entre a vida comunitária e o bem cultural. integra os princípios constitucionais que protegem bens culturais
materiais e imateriais (art. 215 e 216 da CF-1988) e ambientais
A funcionalidade do bem pode se acabar e se limitar ao (art. 225). Quero afirmar com isso que a aplicação do direito que
ambiente institucional. Desse modo, o sistema do direito que protege isoladamente um bem de cada vez é inconstitucional.
guarda a funcionalidade de estabelecer a vinculação social acaba Concretamente, afirmo que, por exemplo, os atos administrativos
por produzir o contrário: a desvinculação das pessoas com o meio de gestão dos Parques Nacionais que aplicam os princípios
sociocultural e ambiental. E o bem patrimonializado passa a ser constitucionais de modo desintegrado são inconstitucionais.
uma riqueza só para o Estado e os turistas, deixando de o ser para
a comunidade. Desse modo, o sistema que guarda a funcionalidade de
estabelecer a vinculação social acaba por produzir o contrário: a
O outro risco potencial é o da tensão entre materialidade desvinculação das pessoas com o meio sociocultural e ambiental. E
e imaterialidade dos bens a serem patrimonializados. O Brasil o bem patrimonializado passa a ser uma riqueza só para o Estado,
já tem tradição na patrimonialização do material, o imaterial deixando de o ser para a comunidade e/ou passando a ser uma
foi inovação da CF-88. A institucionalização dessa norma riqueza sem a funcionalidade de vinculação social comunitária.
constitucional no que diz respeito à imaterialidade do patrimônio
cultural ainda não está colada à realidade brasileira. E não goza de É o que ocorre com o reconhecimento de determinado
tanta visibilidade. A proteção imaterial tem sido preterida quando bem cultural pelo Estado, como ocorreu com a instauração
o bem está colado a um bem material. É o caso das Unidades do Parque Nacional da Serra da Capivara, município de São
de Conservação de proteção integral e as práticas culturais das Raimundo Nonato, Estado do Piauí. Os desenhos rupestres
230 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Maria Sueli Rodrigues de Sousa 231
foram transformados em patrimônio da humanidade, numa Referências
sobreposição da “patrimonialização” local, o que a anulou; e, com
isso, quebraram-se os vínculos de pertencimentos ou os mesmos
foram atenuados.
BOURDIEU, Pierre. 1974. A economia das trocas simbólicas. São
Para que a potencialidade da patrimonialização institucional Paulo: Perspectiva.
como proteção da riqueza da vida comunitária como um acervo
______. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, R. (Org.). A
do própria comunidade protegida pela comunidade e pelo Estado
sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003. p. 39-
para continuar informando as formas de vida nos mundos da 72.
vida do futuro, há que sempre partir da concepção de que a ação
institucional é para favorecer a vinculação social das pessoas a seus BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo:
contextos; ou seja, proteger aquilo que a comunidade já protege, Companhia das Letras, 2003. 484 p.
não como forma de substituição, mas de potencialização das HABERMAS, Jürgen. Faticidade e validade: uma introdução à teoria
formas de proteção já existentes. Fazer isso é integrar princípios discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito. Tradução
constitucionais que protegem bens culturais materiais e imateriais Carvalho Neto, Menelick. Tradução provisória e não autorizada,
(art. 215 e 216 da CF-88). exclusivamente para uso acadêmico, 2008. (Mimeo).
INGRAM, David. Habermas e a dialética da razão pura. Brasília:
Universidade de Brasília, 1994. 298p.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
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BRASIL. IPHAN. INRC das comunidades quilombolas do Estado do
Piauí. Teresina: IPHAN, 2008.
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Cultural. Prêmio Culturas Populares 2008. Formulário de Inscrição
Grupos Tradicionais Informais.
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Caps (Org.). Direito das minorias e dos povos autóctones. Brasília:
UnB, 2004. 614p.
Memórias, identidades e
políticas preservacionistas
Sandra C. A. Pelegrini*
A valorização do patrimônio cultural brasileiro depende,
necessariamente, de seu conhecimento. E sua preservação, do
orgulho que possuímos de nossa própria identidade.
Luiz Antonio Bolcato Custódio
A emergência de novas sensibilidades tornou o homem
capaz de refletir sobre as relações entre as sociedades e seus bens
culturais materiais ou imateriais e lhe impôs um significativo
desafio: como salvaguardar o patrimônio? Para uns, a questão
parece centrada nos paradoxos existentes entre a preservação e
a utilização dos bens culturais como atrativos turísticos, legados
identitários ou referenciais de distintas memórias coletivas.
Para outros, o problema vai além da necessidade de conservar
monumentos, conjuntos arquitetônicos, formas de expressão,
costumes ou tradições, abrange ações urgentes no sentido de
revitalizar o Planeta. No entanto, para ambos, o ponto nodal a
ser resolvido diz respeito às políticas de gestão do patrimônio.
Estas, por sua vez, se deparam com as dificuldades financeiras
relativas à manutenção e restauro, e, ainda, com os efeitos que
a atribuição de novos usos aos patrimônios pode causar para a
sua conservação.
* Doutora em História Social. Pós-doutorado desenvolvido no Núcleo de Estudos
Estratégicos, da Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Centro
de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural (CEAPAC/UEM). Desenvolve
pesquisas junto ao Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE-UNICAMP).
234 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Sandra C. A. Pelegrini 235
Esse complexo tema envolve também a tentativa de que se indivíduos como pessoa ou como grupo social, e, por outro, os
busquem soluções relacionadas ao turismo cultural e aos impasses diferencia dos demais. Logo, conclui-se que as sociedades são
circunscritos à emergência de um número cada vez maior de plurais e os indivíduos são múltiplos.
grupos que reivindicam o reconhecimento social e a preservação
Essa perspectiva, por sua vez, implica perceber a dinâmica
de suas tradições. Em tempos de globalização, multiplicam-
das memórias, bem como suas relações com a história. E, embora
se os reclamos em defesa da diversidade cultural, ou seja, da
essa problemática deva ser contextualizada, entende-se que as
preservação de memórias de distintos segmentos sociais, minorias memórias possam ser pensadas em suas dimensões individuais,
étnicas e religiosas, entre outras. desde que se admita que muitos de seus referenciais são sociais
Em meio ao crescimento desenfreado das metrópoles, e espaciais (HALBAWCHS, 2004). Se assim for, deduz-se que a
da devastação das florestas e da poluição das águas e do ar, o interpretação das práticas culturais conjuga memórias e sentidos
homem moderno parece lentamente atentar para a necessidade de pertença de indivíduos e grupos. Elas fortalecem vínculos
de retomar suas tradições e antigas práticas, e, ainda, criar novas identitários e tendem a valorizar os bens culturais e naturais
formas de promover o desenvolvimento econômico sem colocar de suas comunidades. Aliás, o próprio conceito de identidades
em risco a sobrevivência da espécie. Ao perceber que deixou culturais alude a um conjunto de relações, crenças, valores e
escapar heranças culturais e desrespeitou as regras básicas da motivações existentes no centro de toda a cultura que produz
interação do homem com o meio, dá-se conta que não soube lidar laços sociais! O sentido de pertencimento também fortalece
com contínua fragmentação do sujeito e com a degradação da as singularidades territoriais, permitindo que as populações
natureza, provocada principalmente por estratégias equivocadas residentes em dadas localidades primem pela transmissão
de práticas por várias gerações (PELEGRINI, 2008). Logo, a
de desenvolvimento – “equivocadas” porque foram incapazes de
acepção de identidade cultural pressupõe a existência de relações
prever os limites da exploração dos recursos naturais.
estabelecidas entre o individual (eu) e o coletivo (outro), num
Não obstante, uma harmoniosa gestão dos bens culturais e dado espaço e temporalidade.
naturais deve implicar a busca de saídas plausíveis para debelar tais
O intenso interesse em sondar as memórias individuais,
contradições. O primeiro passo nessa direção talvez deva pressupor
coletivas, históricas e sociais remete à problemática das lembranças
a compreensão das intrínsecas articulações entre a preservação
e das construções discursivas da histórica, colocando em
do patrimônio, o respeito às memórias e o reconhecimento
evidência outro desafio: a tentativa de retomar essas memórias
de identidades diversas. Para tanto, se faz necessário tratar as
poderia constituir uma história alternativa? A revisão dos legados
acepções que envolvem cada um desses conceitos.
registrados na história da humanidade e a cisão entre a memória
Diante do exposto, qual seria a relevância de se pensar e a história produziram diferentes significados para alguns
sobre as relações entre sociedade e patrimônio, entre memórias historiadores. A expectativa de que a história não mais se referia
e identidades? A compreensão das identidades culturais evoca apenas ao passado, mas unificava o tempo e o sentido atribuído
a apreensão, por um lado, dos elementos que caracterizam os ao presente acabava por conceber o passado como algo vivo.
236 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Sandra C. A. Pelegrini 237
Interessa a essa reflexão frisar que a memória é “construída” Apesar disso, Pierre Nora não deixa de ter razão quando
por indivíduos, mas é essencialmente “social” porque pode insiste em postular que a necessidade de a sociedade moderna
ser compartilhada (PORTELLI, 2001, p.127). Cabe, contudo, definir os “lugares” para perpetuar memórias (particulares e
ponderar sobre o fato de que, se por um lado, a memória se coletivas) se concretizaria na voraz criação de “arquivos”, eleição
materializa nas reminiscências dos sujeitos e se torna coletiva de efemérides, entre outras formas de celebração do passado.
quando abstraída do indivíduo (mediada por ideologias, linguagens
Certo é que a salvaguarda dos bens imateriais exigiu
ou senso comum), por outro, traz consigo visões contraditórias
mudanças nos paradigmas clássicos das políticas preservacionistas
do passado, pois as memórias da coletividade são múltiplas e
e impuseram o reconhecimento de diferentes suportes da
envolvem embates, conflitos nem sempre explicitados.
memória, bem como a criação de mecanismos capazes de lidar
Le Goff admite que a memória coletiva, embora seja com a pluralidade de bens que necessariamente não conjugam
“essencialmente mítica, deformada, anacrônica” [...] constitui o elementos perfilhados a chamada “identidade nacional”. A
“vivido” da “relação nunca acabada entre o presente e o passado” definição ampliada de patrimônio tornou imperiosa a adoção de
(1996, p.29). Por essa via, o autor atribui à história o dever de novos instrumentos de proteção. Nesse contexto, a postura dos
“esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros” (Id. constituintes brasileiros de 1988 foi capital, uma vez que impôs ao
ibid.), e, ainda, salienta que o “exercício da memória” pressupõe Estado a função de resguardar “[...] as manifestações das culturas
certa seletividade, resultante dos filtros do “pensamento populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
simbólico”. Ademais, afirma que a “memória histórica” constitui participantes do processo civilizatório nacional”, fixando também
“uma das formas mais poderosas de dominação e de hegemonia “[...] datas comemorativas de alta significação para os diferentes
do poder”. segmentos étnicos nacionais”. O reconhecimento da presença e
No âmbito do patrimônio, a ressonância dos embates importância desses grupos seguramente legitimou os reclamos no
pela preservação das memórias tendeu, por longo período, a sentido do “[...] pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às
dissimular conflitos e unificar representações de um “passado fontes da cultura nacional”.
glorioso” por meio de monumentos nacionais. Mas as pressões Tanto é que no Brasil, embora a “figura jurídica do
sociais impuseram uma revisão dos critérios que definiam os bens tombamento” continue em vigor, o Ministério da Cultura e o
a serem preservados e estenderam as noções de salvaguarda e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
tipologias patrimoniais. Atualmente, se reconhecem não apenas responsabilizou o Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial
os exemplares da cultura material dos segmentos dominantes, (1998) pela sistematização de ideias que culminou na criação de
mas também os bens tangíveis e intangíveis significativos para
outro instituto jurídico para a proteção dos bens imateriais: o da
minorias étnicas, religiosas, entre outras. Ora, sonoridades,
“figura jurídica do registro”.
aromas e sabores transportam homens e mulheres para tempos
pretéritos e os levam a reviver emoções, pois o passado não pode O patrimônio cultural do País foi definido, segundo a
ser cindido do presente! Constituição Federal brasileira (1988), como conjunto de bens
238 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Sandra C. A. Pelegrini 239
de natureza material e imaterial (tomados individualmente ou Tais características não dissimulam as alterações decorrentes
em sua totalidade), portadores de referência à identidade, à das mudanças nas formas como os sujeitos são interpelados ou
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade representados na contemporaneidade (PELEGRINI e FUNARI,
brasileira. Entre tais bens se incluem: as formas de expressão; os 2008). Como sustenta Roger Chartier (1990), as identidades não
modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e configuram heranças de ordem natural ou genética, elas derivam
tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais de práticas socioculturais. Elas perfazem artifícios historicamente
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; sítios de utilizados por segmentos que criam determinadas designações
valor histórico, urbanístico, paisagístico, artístico, arqueológico, para explicar racionalmente as relações humanas, organizando-
paleontológico, ecológico e científico. as e hierarquizando-as.
Esse procedimento implicou a idealização do “Registro de
bens culturais de natureza imaterial” no país como instrumento
A proteção do patrimônio: Uma questão internacional
de salvaguarda. Nessa direção, o “Programa Nacional de
Identificação e Referenciamento de Bens Culturais de Natureza
Imaterial” antecipou as recomendações da “Convenção para a A emblemática necessidade de as sociedades humanas
salvaguarda do patrimônio imaterial”, acordada entre os países preservarem sua cultura e suas tradições suscitou o interesse de
signatários da Organização das Nações Unidas para a Educação, a cientistas sociais, autoridades políticas, organismos internacionais
Ciência e a Cultura (Unesco), em 2003. Esse programa culminou e entidades não-governamentais que passaram a se reunir, com
com a criação de quatro Livros de Registro: o dos “Saberes e maior frequência, para debater os rumos das políticas públicas
modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades”; o de proteção dos bens culturais materiais, imateriais e naturais.
das “Festas, celebrações e folguedos, que marcam ritualmente a Congressos internacionais realizados na década de 1930 já se
vivência do trabalho, da religiosidade e do entretenimento”; o das ocupavam de problemas relacionados ao crescimento urbano e
“Linguagens verbais, musicais, iconográficas e performáticas”, da conservação de monumentos considerados excepcionais; no
e o dos “Lugares (espaços), destinado à inscrição de espaços entanto, desde a Antiguidade, alguns objetos e obras de arte vêm
comunitários, como mercados, feiras praças e santuários, onde sendo preservados mediante ensejos de cunho político, cultural
se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas” (GTPI- ou religioso.
MinC, 1998).
Cabe lembrar que a apreciação mais densa sobre os valores
A compreensão das identidades (no plural) evoca e significados dos bens conservados aflorou nas décadas finais
inquietudes que abrangem desde a percepção dos elementos do século XVIII, sobretudo após a Revolução Francesa. A partir
que caracterizam os indivíduos, como pessoas ou como grupos de então, vêm se ampliando as formas de tratamento dos bens
sociais, até os aspectos que os diferenciam dos demais (HALL, dotados de valor histórico e cultural, orientadas por políticas
2005; CASTELLS, 2003). Os traços culturais das comunidades preservacionistas e legislações específicas para conservação,
são portadores da energia que as move e as mantêm vivas. restauração e reabilitação do patrimônio (CHOAY, 2001, p.
240 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Sandra C. A. Pelegrini 241
94-95). Nessa linha de argumentação, a “Carta de Haia” (1954) do cultural. Recomendações nessa direção podem ser detectadas
representa um marco na trajetória da Unesco, órgão que desde na “Declaração de Tlaxcala” (1982) e na Declaração do México
o fim da II Guerra Mundial assumiu a tarefa de proteger desde o (1985). Contudo, a “Declaração de Amsterdã” (1975) já havia
patrimônio natural até os bens edificados, monumentos e obras introduzido orientações visando a implantação de “políticas de
de arte principalmente no continente europeu (ou relacionadas conservação integrada”, inaugurando uma nova abordagem em
a ele). Tardiamente, nas décadas finais do século XX, a relação às questões da preservação, na medida em que impetrava
ampliação da acepção de patrimônio propiciou o surgimento a integração do patrimônio à vida social e conferia obrigações
de reivindicações no sentido da proteção de valores identitários, ao poder público municipal, a quem caberia promover a
antes ignorados, como é o caso dos bens imateriais, frutos de adaptação de medidas legislativas e administrativas no âmbito
modos de viver e expressões de diversas culturas. do planejamento físico-territorial do patrimônio histórico local
(KERSTEN, 2000; PELEGRINI, 2006).
Com efeito, em 1975, a “Declaração de Amsterdã”sugeria
que a “educação dos jovens” contemplasse estudos sobre As sugestões supracitadas, sob a ótica de Sílvio Mendes
a proteção do patrimônio mundial e propugnava que eles Zancheti (1995), não definiram claramente o conceito de
fossem envolvidos “nas tarefas da salvaguarda”. Doze anos “conservação integrada”, porém, estabeleceram diretrizes para
depois, a “Carta Internacional para a salvaguarda das Cidades as políticas urbanas tributárias do planejamento conjugado
Históricas”, assinada pelos membros do Conselho Internacional entre a cidade contemporânea e o espaço urbano patrimonial,
de Monumentos e Sítios (ICOMOS), também aconselhava prevendo a sua utilização, segundo novos usos e necessidades
a adoção de programas de informação divulgados “desde a sociais. Além disso, a “Declaração de Amsterdã” aconselhava
idade escolar”. o envolvimento da população residente nos processos de
Em outros termos, organismos internacionais como a preservação, de modo a evitar a evasão dos habitantes em
Unesco e o ICOMOS recomendaram que a cultura fosse tomada virtude de processos especulativos.
como um conjunto de características distintas, espirituais e Em face desse novo enfoque, as políticas públicas
materiais, intelectuais e afetivas que caracterizam uma sociedade preservacionistas passaram a levar em conta os fatores sociais,
ou um grupo social. Propuseram que se aglutinassem “às artes inclusive os valores das identidades microlocais, como propulsores
e letras, os modos de viver, os direitos fundamentais dos seres das medidas voltadas para a conservação integrada - primeiro
humanos, os sistemas de valor, as tradições e as crenças”, e, passo a ser dado em direção às tecnologias do desenvolvimento
principalmente, as relações do homem com o meio. sustentável (PELEGRINI, 2006). A reconhecida importância
Estudiosos se dedicaram ao desenvolvimento de formas da implantação de políticas pautadas pelo conceito de
de “conservação integrada” dos bens culturais e buscaram sustentabilidade, em escala internacional, motivou a realização da
soluções para a promoção do “desenvolvimento sustentável”, “II Conferência Geral das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
tanto no âmbito da preservação do patrimônio natural, quanto Desenvolvimento Humano”, em 1992, no Rio de Janeiro.
242 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Sandra C. A. Pelegrini 243
Esse evento constitui um divisor de águas entre as ações Novos impasses: a preservação das culturas e do meio
em prol da preservação do Planeta. Articulado pela Organização
das Nações Unidas (ONU), o “Rio-92” primou pela criação de
A assimilação de valores não vinculados diretamente à
estratégias e políticas nacionais de desenvolvimento e a formação
cultura ocidental como bens patrimoniais a serem protegidos
de redes de cooperação internacionais e interinstitucionais
gerou reelaborações acerca das noções de preservação, e
prescritas na chamada “Agenda 21” - um documento assinado
culminou com a “Convenção para a salvaguarda do patrimônio
por cento e setenta países, inclusive o Brasil, que consistia
imaterial”, firmada em 17 de outubro de 2003 – recomendações
em um programa estratégico universal, visando o alcance do
que vêm norteando as políticas em defesa dos bens culturais de
desenvolvimento sustentável no século XXI (KERSTEN, 2000).
natureza intangível em todo o mundo. Esse documento tomou
Tratava-se de uma proposta de parcerias entre governos e
como ponto de partida a alteridade entre as culturas e o tempo.
sociedades de modo a promover, com maior justiça social,
Ao fazê-lo, admitiu que as transformações ocorridas no cerne das
ações capazes de dar continuidade ao desenvolvimento sem
comunidades e no meio interferem nos modos de vida dos povos
comprometer o meio ambiente.
e na sua história.
Antecipadamente, nos anos finais da década de 1970,
Tal percepção se expandiu e, quatro anos depois, atingiu
a “Carta de Machu Picchu”, ao reconhecer as principais
grande repercussão nos meios de comunicação, principalmente
transformações impregnadas à dinâmica das grandes cidades,
após a realização do Fórum Econômico Mundial de Davos, na
propôs a reavaliação das ações em favor do patrimônio, e
Suíça, em janeiro de 2007. A preocupação com o aquecimento
postulou outras tarefas devotadas à conservação e restauração.
global e suas consequências envolveu discussões sobre a
Entre elas, destacaram-se possibilidades legais capazes de inibir
urgente necessidade de redução dos gases tóxicos lançados
a contaminação ambiental, incrementar a disponibilização
na atmosfera, e a revisão dos mecanismos de promoção do
do solo urbano de modo a satisfazer as necessidades
desenvolvimento industrial. Contudo, não se deve escamotear
coletivas e estimular o planejamento de transporte público.
que as recomendações da ECO-92 e o Protocolo de Kyoto (1997)
Posteriormente, a “Carta de Washington” (1986) clamou pela
haviam anunciado o quão imperiosa era a implementação de
defesa de uma acepção mais ampla de patrimônio cultural.
providências para minimizar as agressões sofridas pela camada
Ao ratificar o devido respeito do homem em relação ao meio,
de ozônio, causadas pelo lançamento de gases poluentes, em
recomendou a otimização de medidas protecionistas nos centros
especial daqueles que resultavam da queima de combustíveis
históricos e seus respectivos entornos naturais e construídos.
fósseis (PELEGRINI, 2009).
Destarte, ressaltou a importância da salvaguarda dos valores
das civilizações urbanas que habitavam essas áreas. Os debates acerca dessa temática reuniram representantes
de várias nações na cidade de Kyoto – Japão (1997). Entretanto,
interesses econômicos conflitantes estenderam as negociações até
2004, quando o documento foi oficializado. Esse compromisso
244 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Sandra C. A. Pelegrini 245
internacional entre as grandes potências centrou-se na adoção de Referências
medidas devotadas a conter o “efeito estufa”. No entanto, os EUA
não seguiram as recomendações contidas nesse Protocolo e até o
momento parecem evitar o debate acerca da utilização de fontes
alternativas de energia (menos poluentes). BALART HERNÁNDEZ, Josep. Usos do patrimônio, ação social e
turismo: em busca de um necessário consenso. In: Revista Diálogos, v.
Certo é que os visíveis impactos do aquecimento global, 12, n. 1, 2008.
somados às recomendações proclamadas nas denominadas
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primas” da humanidade até as “criações anônimas surgidas da
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Sem dúvida, a proteção do patrimônio só pode se concretizar GTPI-MinC. O registro do patrimônio imaterial. Dossiê final das
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Parte III
Memórias e Sociabilidades
Entre sambas e bambas:
vozes destoantes no “Estado Novo”
Adalberto Paranhos*
Durante a ditadura do “Estado Novo”,** no Brasil,
piscaram os sinais de alerta para os malandros e os que cultuavam
a malandragem. Com a criação do Departamento de Imprensa
e Propaganda (DIP), em dezembro de 1939, a censura às
vozes destoantes da ideologia do regime foi exercida com mão
de ferro. Intensificou-se a repressão à “vadiagem” e ganhou
corpo a perseguição a quem exaltasse o não-trabalho. Nada de
anormal, enfim, se considerarmos que a Constituição imposta
ao país em 10 de novembro de 1937 equiparava a ociosidade
a crime e estabelecia, no seu artigo 136, que “o trabalho é um
dever social”.1
Vargas acolhia até com simpatia sua identificação popular
como “bom malandro”, no fundo um reconhecimento de sua
* Professor do Departamento de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-
graduação em História e em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Uberlândia. Mestre em Ciência Política pela Unicamp e doutor em História Social
pela PUC-SP. Editor de ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte.
** Este texto é produto de pesquisa que priorizou o material fonográfico disponível
principalmente no Centro Cultural São Paulo-SP (Discoteca Oneyda Alvarenga),
na gravadora Revivendo, de Curitiba-PR, e na discoteca do autor. Toma como
referência, portanto, a música popular industrializada posta no mercado pelas
três gravadoras (Odeon, Victor e Colúmbia/Continental) existentes no Brasil no
período do “Estado Novo”. Elas se sediavam no Rio de Janeiro, onde, por sinal,
era gerada grande parte das composições transpostas para o disco.
252 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 253
inteligência e esperteza política. Porém, na propaganda estado- terreno minado em que, volta e meia, a questão do trabalho e
novista, ele era reverenciado como o “trabalhador número da malandragem era exposta de maneira ambígua. É nestes que
um do Brasil”,2 ou seja, encarnava, objetivamente, o papel de vou me fixar daqui para frente.
antimalandro. Greves, ociosidade ou malandragem não podiam
mesmo ser digeridas pelo governo Vargas, empenhado em pôr
em movimento a roda do desenvolvimento capitalista em terras De costas para o trabalho
brasileiras. Tudo o que conspirasse contra esse “ideal patriótico”
ficava sob a alça de mira do DIP e da polícia.3 Nesse contexto,
os compositores populares, em especial os sambistas, passaram A cruzada antimalandragem objetivava interromper a
a ser estreitamente vigiados. Paralelamente, buscava-se atrair íntima relação que, ao longo da história da música popular
os artistas para a área de influência governamental: usando a brasileira, unira o samba à malandragem (VASCONCELLOS &
moeda de troca dos favores oficiais, tentava-se capturá-los na SUZUKI, 1995). Essa ofensiva se conectava, aliás, a reações que
rede do culto ao trabalho. partiam do próprio meio musical na década de 1930. Nele se
fariam ouvir vários defensores da “higienização poética do samba”
Houve, sem dúvida, músicos populares que morderam ou do “saneamento e regeneração temática” das composições
a isca. Ainda que por um mero cálculo interesseiro ou, mais do populares (PARANHOS, 2003, p.95-100). Apesar disso, em pleno
que isso, em função de uma adesão mais ou menos espontânea império do DIP, de modo enviesado que fosse, figuras que viviam
ao regime, o que de fato se viu foi uma safra de canções que à margem do trabalho regular continuavam a frequentar muitas
enalteciam o mundo do trabalho, para não falar do “Estado canções, como que a fornecer um atestado de sua sobrevivência.
Novo” e de sua personificação, Getúlio Vargas. Mas houve É impressionante a quantidade de composições que viraram
também uma porção não desprezível de composições que muros de lamentação de mulheres insatisfeitas com seus parceiros
avançaram o sinal vermelho e, recorrendo a ardis variados, sanguessugas e com a sua condição de muros de arrimo da família.
furaram o cerco da ditadura. Comumente compostas por homens e cantadas por mulheres, tais
Embora os compositores tivessem de enfrentar a músicas, mesmo que sugiram uma certa dubiedade, ocuparam-
obrigação de submeter suas obras aos censores do DIP (os selos se de tipos que voltavam as costas ao trabalho.
dos discos gravados em 78 rpm traziam, em regra, o número de Em “Sete e meia da manhã”, Dircinha Batista, cheia de
registro junto a esse órgão), não foram poucas as gravações que bossa, registra a via-crúcis de uma operária na luta pelo pão-
transbordaram os limites admitidos.4 Quer porque a performance nosso-de-cada-dia. Berra o despertador, seu companheiro a
dos intérpretes revestia as letras das músicas de novo sentido, acorda, vira para o lado, puxa a coberta e torna a dormir, e lá vai
quer porque a ironia que as contagiava alterava seu significado ela, a contragosto, trabalhar:
à primeira vista, e assim por diante. Excepcionalmente, um ou [...] Estou atrasada
outro samba abordava, de forma direta e reta, as agruras da vida E se não for para o batente
do trabalhador.5 Muitos outros, no entanto, transitaram por um Ele vai me dar pancada
254 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 255
Estou tão cansada Sem se refugiar em meias-palavras, ela bate duro:
De ouvir todo dia
A mesma toada Se quiser vá trabalhar, oi
O apito da fábrica a me chamar Vá pedir emprego na pedreira
Levanta da cama e vem trabalhar Que eu não estou disposta
Mas que viver desesperado! [...] A viver dessa maneira
Você quer levar a vida
Tocando viola de papo pro ar
Neste ponto, o samba se recolhe, a melodia envereda pelo
E eu me mato no trabalho
ritmo dolente da seresta, e ela conclui, em tom de lamento: “Se Pra você gozar
Deus um dia olhasse a terra/ E visse o meu estado”. E, de novo,
soa o despertador. “Hildebrando” é mais um indivíduo que povoa esse universo
de pessoas que não integram o exército regular da produção. Esse
Logo se vê que “Sete e meia da manhã” não exala o
samba nos coloca diante do paradoxo de uma família às voltas
espírito oficial da época. Sem maquiar o dia-a-dia do operário,
com necessidades crônicas e do suposto chefe de família que se
trabalho aí rima com martírio, quando não com “miserê”,
entrega ao ócio: “sempre descansando”, “perambulando na rua”,
como se constata em outras composições. Isso tudo atropela o
ele, decididamente, “não quer procurar o que fazer”.
discurso governamental e determinadas análises elaboradas por
historiadores e cientistas sociais que insistem em referir-se quase Na pele de Dircinha Batista, outra trabalhadora martela a
exclusivamente à assimilação da mensagem trabalhista pelos mesma tecla em “Inimigo do batente”. Para começo de conversa,
compositores populares.6 Estamos aqui muito longe do elogio seus dois autores são emblemáticos. Wilson Batista era um
ao trabalhador que se encontrava na base dos pronunciamentos mulato que jamais fincou pé num emprego convencional e, vira
do ministro do Trabalho Marcondes Filho no programa e mexe, tinha contas a acertar com a polícia. Germano Augusto
radiofônico “Hora do Brasil”.7 Em vez de ser encarado como era um malandro que se notabilizou, entre outras coisas, por suas
atividade humanizante e regeneradora, o trabalho é percebido façanhas de apoderar-se, com golpes de astúcia ou na marra,
como fonte de sacrifício que se impõe aos que vivem atracados de composições alheias, além de figurar em parcerias fictícias.
com a luta pela sobrevivência. Ambos se dão as mãos nesse samba para retratar as queixas de
uma mulher varada de sofrimento e cansada do “lesco-lesco”
Em “Não admito”, outra mulher vocifera contra o boa-vida
da vida de lavadeira que vem consumindo os seus dias. Seu
que mora com ela. Nesse samba-choro, uma espécie de peça de
homem, “moreno forte”, corpo atlético, “tem muita bossa” e,
acusação, ela chega às raias da indignação:
mais, “diz que é poeta”, aguarda a gravação de um samba de sua
Não, não admito autoria e “quer abafar (é de amargar)”. Nesse meio-tempo ela
Eu digo e repito
Que não admito coleciona frustrações:
Que você tenha coragem [...] Se eu lhe arranjo trabalho
De usar malandragem Ele vai de manhã, de tarde pede a conta
Pra meu dinheiro tomar Eu já estou cansada de dar
256 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 257
Murro em faca de ponta do Inferno, “Não vou pra casa”, de Antonio Almeida e Roberto
Ele disse pra mim
Ribeiro, com Joel e Gaúcho, “Quem gostar de mim”, de Dunga,
Que está esperando ser presidente
Tira patente do sindicato com Ciro Monteiro, “Batatas fritas”, de Ciro de Souza e Augusto
Dos inimigos do batente [...] Garcez, com Aurora Miranda, e “Fez bobagem”, de Assis Valente,
Paciência tem limite. E a dela se esgotou com Aracy de Almeida, são apenas mais alguns. Mas é interessante
[...] Eu já não posso mais
atacar, agora, a questão pelo lado do avesso.
A minha vida não é brincadeira
É, estou me desmilinguindo
Igual a sabão na mão da lavadeira [...]
Não posso mais, em nome da forra De frente para a gandaia
Vou desguiar
Em sintonia com essa canção, os sambas “No lesco-lesco”8 Já se observou que a música popular se transformou num
e “Vai trabalhar” recolocam em cena a queda-de-braço travada solo fértil para o desabrochar das “dores de corno” sentidas
pelas lavadeiras com os dramas da subsistência. Na primeira, seu pelos homens. Quantas não são as canções que expõem aos
marido “só leva a vida gozando”, e “o tanque está me acabando”. nossos olhos a fragilidade do “sexo forte” a se dissolver em
“Vai trabalhar” ilumina ainda mais o contraste entre a mulher lamúrias ao ser passado para trás (OLIVEN, 1987). O samba
tragada pela rotina, dedicada ao trabalho penoso, e o homem que “Oh! Seu Oscar”, sucesso estrondoso do carnaval de 1940, flagra
leva a vida na flauta, dando-se ao luxo de usufruir os pequenos mais uma situação na qual as pedras do tabuleiro parecem
prazeres que o mundo lhe proporciona. Ela ergue a voz e solta fugir do lugar habitual. Seu Oscar, trabalhador braçal, relata
seu protesto: seu melodrama:
Isso não me convém Cheguei cansado do trabalho
E não fica bem Logo a vizinha me falou:
Eu no lesco-lesco ‘Oh! Seu Oscar, tá fazendo meia hora
Na beira do tanque Que tua mulher foi-se embora
Pra ganhar dinheiro E um bilhete deixou
E você no samba o dia inteiro [...] O bilhete assim dizia:
Você deve cooperar ‘Não posso mais
É forte, pode ajudar Eu quero é viver na orgia!’
Procure emprego
Deixa o samba e vai trabalhar
Aturdido, ele relembra o seu calvário:
Seria possível multiplicar à vontade esses exemplos de
Fiz tudo para ver seu bem-estar
malandros, de bambas e sambas que ressurgem, aqui e ali, em Até no cais do porto eu fui parar
discos gravados e/ou lançados entre 1940 e 1945, sob o reinado Martirizando o meu corpo noite e dia
do DIP. “Já que está deixa ficar”, de Assis Valente, com os Anjos Mas tudo em vão, ela é da orgia.
258 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 259
termos, o ministro Marcondes Filho derramava elogios sobre a
Seu Oscar, estivador, com seus braços de carvalho, “senhora do lar proletário” e evocava imagens historicamente
suportara por ela um pesado fardo. O trabalho, mais uma vez, é vinculadas à mulher dona-de-casa: maternidade, prole, berços.
associado a sacrifício, a martírio, em completo descompasso com Lar, mulher, esposa, mãe e doçura formariam um composto
o que se apregoava na ideologia do trabalhismo. O trabalhador, especial que evidenciaria a “divina fraqueza das mulheres”
aliás, é indiretamente convertido em otário, dando o duro no (MARCONDES FILHO, 1943, p. 51; 1942).
batente ao mesmo tempo em que sua mulher se atira à orgia.
Sintomaticamente, o título original dessa composição era “Ela é De outro lado, em “Oh! Seu Oscar” as relações de gênero
da orgia”, que, diga-se de passagem, não possuía então o sentido escapam da ótica da vitimização das mulheres. Ao invés de vítimas
de bacanal que adquiriu mais recentemente. Orgia era sinônimo indefesas de uma sociedade machista, rebaixadas a pobres-
de festa popular regada a samba, batucada, bebida e coisas do coitadas, elas despontam como pessoas capazes de quebrar
gênero. cadeias de padrões de conduta instituídos. E não se trata de
um caso isolado: muitas outras mulheres são mencionadas em
Seja como for, não deixa de ser significativa a reiteração da diversas composições por trocarem as prendas domésticas pela
palavra orgia na gravação de “Oh! Seu Oscar”. Ela aparece não gandaia, como se vê em “Madalena”, de Bide e Marçal, com os
menos do que nove vezes. Seus versos-chave (“Não posso mais/ Eu Anjos do Inferno. Essas mulheres “do barulho”, “do balacobaco”
quero é viver na orgia!”) se repetem sete vezes. Inclusive no final, infelicitavam a vida de seus parceiros e os irritavam a mais não
levando a canção a passar por uma relativa ressignificação. Se, poder, como se nota em “Acabou a sopa”, de Geraldo Pereira
devido à dubiedade de sua letra, “Oh! Seu Oscar” pôde levantar e Augusto Garcez, com Ciro Monteiro. O procedimento delas,
o primeiro prêmio, na categoria samba, do concurso carnavalesco em algumas circunstâncias, precipitava no ridículo a figura do
patrocinado pelo DIP em 1940, tudo indica que, no calor do “malandro regenerado” ou, como queira, do trabalhador traído.
carnaval, os foliões se empolgaram para valer com os versos que
glorificavam a orgia. Postos na encruzilhada, entre identificar-se À época do “Estado Novo”, concepções tradicionalistas
com as desventuras do trabalhador ordeiro ou com as aventuras teimavam em manifestar-se. Entre o fim dos anos 1930 e o início
da mulher pândega, aqueles que pulavam mais um carnaval sob o dos 1940, elas marcaram boa parte do debate que se instalou e
“Estado Novo” não devem ter tido maiores dificuldades em fazer estalou até nos meios governamentais a propósito do Estatuto
sua opção. da Família (SCHWARTZMAN, 2000, p.123-139; CAULFIELD,
2000, p.337-339). Na contracorrente das novas realidades que
Novamente se cavava uma distância considerável entre a vinham se estabelecendo, Gustavo Capanema, ministro da
fala governamental e os comportamentos referidos nas canções Educação e Saúde, bancou um projeto que, em nome da grandeza
populares. De um lado, artigos inseridos no Boletim do Ministério do do país, salientava a necessidade de incentivar o aumento da
Trabalho, Indústria e Comércio realimentavam uma certa tradição, ao população e de oferecer proteção estatal à família monogâmica
enaltecer a mulher e colocá-la no seu “devido lugar” como braço e ao casamento indissolúvel. Para tanto propunha, entre outras
auxiliar do chefe de família (PARANHOS, 2007, p.161). Nesses coisas, a “progressiva restrição da admissão das mulheres nos
260 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 261
empregos públicos e privados” (apud SCHWARTZMAN, 2000, de natureza metodológica. No trabalho com documentos sonoros, é
p.128). Procurava-se reforçar o direcionamento das energias necessário não nos tornarmos reféns da literalidade da obra musical.
femininas para funções julgadas compatíveis com sua “natureza”, Noutras palavras, o que eu desejo enfatizar é que, a meu ver, não
o que significava reafirmar seu enraizamento na vida doméstica. basta nos atermos às letras das músicas. E mais: é indispensável nos
darmos conta de que elas não têm existência autônoma na criação
Várias mulheres representadas nas músicas desse período
musical. Tanto que é preciso atentar igualmente para o discurso
pareciam dar de ombros a toda essa pregação disciplinar.
musical pronunciado de maneira não-literal, ou seja, como um
Condenadas por seus companheiros como “Louca(s) pela
discurso nu de palavras que pode inclusive entrar em choque com
boemia”, título de um outro samba feito a quatro mãos por
a expressão literal imediata de uma composição.9
Bide e Marçal, nem por isso elas se enquadravam nos moldes
do figurino estado-novista: “louca pela boemia, me abandonou / Se nos desprendermos do apego às letras e dispensarmos
E meu castelo dourado se desmoronou”. No mesmo estilo e no maior atenção a aspectos estritamente musicais, uma série de
mesmo tom, Arnaldo Paes canta em “Samba de 42”: elementos importantes podem ser incorporados à análise. Lembro,
por ora, que nos sambas que estamos examinando os arranjos,
[...] Emília diz que não é mais aquela
em geral, eram escorados por pequenos conjuntos chamados de
Que não lava mais panela
regionais, à frente dos quais se achava muitas vezes o flautista
Diz que vai viver sambando
Benedito Lacerda. Nada a ver com a roupagem orquestral
Ih! Ih! Emília enlouqueceu
grandiloquente e retumbante, quando não oficial ou oficiosa, que
Saiu gritando:
dominava, por exemplo, as gravações dos sambas-exaltação, uma
“Quem não pode mais sou eu”
marca registrada do espírito estado-novista. Em vez de assumir
ares de monumentalidade, deparamo-nos frequentemente com
Em tempo: “Samba de 42” se contrapunha a “Emília”,
sambas bastante sincopados, à base de breques, que muita gente
cujo personagem central, um trabalhador, se queixava, pela boca
designa de “samba malandro”, cuja fiel tradução se encontra,
do cantor Vassourinha, que não podia mais viver sem Emília. E
entre outros, num compositor que fez escola por esses anos,
quem era ela? Alguém que sabia, como ninguém, lavar e cozinhar,
Geraldo Pereira.10
enfim, uma mulher de mil e uma utilidades domésticas.
De volta às letras, vale o registro de que essas composições,
ao invés de cultivarem expressões rebuscadas ou eruditas (a
Para além dos sambas-exaltação exemplo de “merencória luz da lua”, de “Aquarela do Brasil”,11
o célebre samba-exaltação composto em 1939 por Ary Barroso),
adentravam às vezes no terreno pantanoso das gírias, como
Antes de prosseguir na análise dos vãos e dos desvãos por vimos em “Inimigo do batente”. Os defensores do vernáculo, ou
onde se situou uma parcela da produção musical dos sambistas em melhor, da “pureza” da linguagem, torciam o nariz ante essas
meio à ditadura estado-novista, abro um parêntesis para um aparte demonstrações de desapego às formas consideradas cultas do
262 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 263
idioma pátrio, eles que se arvoravam em guardiões da ordem debruçando-se apenas sobre as letras das músicas disponíveis
linguística e contavam com apoio oficial à sua empreitada.12 em revistas especializadas, irá perder de vista a riqueza de
suas possíveis recriações e reapropriações.14 Não se pode,
Uma escuta fina da produção fonográfica dessa época com
sem mais essa nem aquela, reduzir a canção a um documento
certeza nos reservará algumas surpresas, desde que, ao contrário
escrito, esvaziado de sonoridade. Convém ficar alerta para o
do que é comum a muitos pesquisadores que enveredam pelos
fato de que uma composição não existe simplesmente no plano
labirintos da criação musical, se parta de um princípio elementar,
abstrato. Importa o seu fazer-se, a formatação que recebe ao ser
nem sempre levado a sério: trabalhar com música requer que
interpretada e/ou reinterpretada. Nessa perspectiva, entendo
se ouçam as canções analisadas. Que nos sirva de exemplo a
que interpretar é também compor, pois quem interpreta
gravação de “O amor regenera o malandro”. Nesse samba, como
decompõe e recompõe uma composição, podendo investi-la
em outros desse período, se diz que
de sentidos não imaginados ou mesmo deliberadamente não
[...] Sou de opinião pretendidos por seu autor. Disso decorre que não é suficiente
De que todo malandro
Tem que se regenerar
tomar abstratamente uma canção, resumida à peça fria da
Se compenetrar letra ou da partitura. Sua realização sonora, do arranjo à
Que todo mundo deve ter performance vocal, tudo é portador de sentidos.15
O seu trabalho para o amor merecer
É o que se verifica em “O amor regenera o malandro”.
A primeira impressão, entretanto, se desfaz ao Malandramente, a interpretação de Joel e Gaúcho é toda ela
acompanharmos a performance dos intérpretes, a dupla Joel e sincopada. E eles quebram a harmonia estabelecida na letra
Gaúcho, no fecho da segunda estrofe: que, na certa, passou pelo crivo da censura, subvertendo seu
Regenerado
conteúdo original. Comportamento, por sinal, tipicamente
Ele pensa no amor malandro, como sublinham Gilberto Vasconcellos e Matinas
Mas pra merecer carinho Suzuki Jr.: ocorre a aparente aceitação das regras instituídas
Tem que ser trabalhador como mera estratégia de sobrevivência (VASCONCELLOS e
(breque: Que horror!)
SUZUKI JR., 1995, p.520).
Obviamente, a frase final não constava da letra encaminhada Isso tudo reabre uma velha discussão: até que ponto
à apreciação dos censores do DIP nem sequer da partitura original as classes populares somente reproduziam o discurso oficial?
dessa composição.13. O uso do breque a duas vozes – breque que, Quais os limites impostos ao controle estatal? Inegavelmente,
geralmente, é anunciador de distanciamento crítico – põe por apertaram-se os nós da camisa de força imposta pelo DIP aos
terra todo o blábláblá estado-novista que aparentemente havia compositores populares. Estes foram como que sitiados por
contagiado a gravação. coerções e proibições de toda ordem. Nem assim se apagaram
Cabe aqui, de novo, uma rápida observação de fundo os sinais, por mais ambíguos que fossem, de vozes destoantes em
metodológico. Quem pesquisar as canções populares, relação à ideologia do regime e aos estilos de comportamento
264 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 265
que ele incensava. Como afirma Raymond Williams, “a realidade Referências
de qualquer hegemonia, no sentido político e cultural ampliado,
é que, embora por definição seja sempre dominante, jamais será
total ou exclusiva” (WILLIAMS, 1979, p.116).16
AMARAL, Azevedo (1941). Getúlio Vargas, estadista. Rio de Janeiro:
Quando o tema é a “era Vargas”, particularmente o “Estado
Irmãos Pongetti.
Novo”, há uma forte tendência a enxergar os trabalhadores com
os olhos do Estado, como se estes só fossem dados a introjetar BMTIC. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Rio
os valores dominantes.17 Torna-se, desse modo, muito comum de Janeiro: Imprensa Nacional, n. 108, ago. 1943.
inflacionar as aparências, construindo-se um mundo marcado, CASTELO, Martins. Cultura Política, n. 6, Rio de Janeiro (DIP), ago.
sobretudo, pela harmonia, pelo consenso que caracterizaria 1941.
as relações entre as classes e, em particular, entre as classes ______. Cultura Política, n. 11, Rio de Janeiro (DIP) jan. 1942.
trabalhadoras e o Estado. É como se as mensagens emitidas
pelos governantes penetrassem por inteiro a consciência dos CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade
e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000.
receptores, independentemente de qualquer operação de rejeição
ou redefinição de seu conteúdo. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 6. ed.
Petrópolis: Vozes, 2001. (v. 1).
O mesmo se aplica ao campo da cultura, notadamente à
área da música popular. Os exemplos fornecidos levantam, no CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações.
entanto, uma parte da cortina de silêncio que envolveu as vozes Rio de Janeiro-Lisboa: Bertrand Brasil / Difel, 1990.
dissonantes que, de uma forma ou de outra, se fizeram ouvir FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. AURÉLIO, século XXI: o
durante o “Estado Novo”, o qual era, por definição, um regime dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
de ordem-unida. Eles ajudam a dissolver a aparente simplicidade 1999.
das coisas e demonstram uma vez mais a complexidade da GARCIA, Nestor Jahr. Estado Novo: ideologia e propaganda política (A
própria história, entrecruzada, de ponta a ponta, por conflitos e legitimação do Estado Autoritário perante as classes subalternas). São
contradições de toda espécie. Afinal, por mais que se pretenda, sob Paulo: Loyola, 1982.
esse ou aquele regime, pôr todo mundo a entoar, em uníssono, GOMES, Angela Maria de Castro. A construção do homem novo: o
uma mesma canção, sempre haverá desafinados, justamente os trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lucia Lippi; VELLOSO, Mônica;
que não se afinam pelo diapasão da ordem instituída e que, à sua GOMES, Angela Maria de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio
maneira, desafinam o coro dos contentes. de Janeiro: Zahar, 1982.
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266 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 267
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Imprensa Nacional, out. 1942. Comércio, n. 105, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, maio 1943.
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“Hildebrando” (Wilson Batista e Haroldo Lobo), Ciro Monteiro. 78
SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria Bousquet; COSTA,
rpm, Victor, 1941.
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Terra / FGV, 2000. “Inimigo do batente” (Wilson Batista e Germano Augusto), Dircinha
Batista. 78 rpm, Odeon, 1940. Relançado no LP Cantoras da época de ouro,
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma
Revivendo, 1988.
crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
“Louca pela boemia” (Alcebíades Barcelos e Armando Marçal), Gilberto
TINHORÃO, José Ramos. No samba, toda a picardia que o morro
Alves. 78 rpm, Odeon, 1941.
ensinou. Geraldo Pereira: história da Música Popular Brasileira. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. “Não admito” (Ciro de Souza e Augusto Garcez), Aurora Miranda. 78
268 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Adalberto Paranhos 269
rpm, Colúmbia, 1942. Relançado na coleção Os grandes sambas da história 4
Por isso a perspectiva aqui adotada aponta para a necessidade de dar ouvidos
(CD n. 14), Globo/BMG, 1997. ao “lado B” da história do “Estado Novo”. Trata-se de questionar o pretenso
monopólio da “palavra estatal” presente inclusive na análise de uma das mais
“No lesco-lesco” (Hanibal Cruz), Carmen Costa. 78 rpm, Victor, 1945. destacadas estudiosas do período, que vai ao ponto de assegurar que “o DIP
tinha um controle absoluto sobre tudo o que se relacionava à música popular”
“Oh! Seu Oscar” (Ataulfo Alves e Wilson Batista), Ciro Monteiro. 78 (GOMES, 1982, p.159).
rpm, Victor, 1939. Relançado em Os grandes sambas da história (CD n. 10),
Globo/BMG, 1997.
5
Eu mapeio essas três diferentes situações em Paranhos (2002).
6
Essa é a tônica de trabalhos como o de Pedro (1980), cap. II, e, em menor escala,
“Samba de 42” (Arnaldo Paes, Marília Batista e Henrique Batista),
de Moby (1994, p.105-127).
Arnaldo Paes. 78 rpm, Colúmbia, 1942.
7
Suas falas semanais de 1942 se acham agrupadas em Marcondes Filho (1943).
“Sete e meia da manhã” (Pedro Caetano e Claudionor Cruz), Dircinha Juntamente com outros pronunciamentos feitos até 1945, transcritos nas edições
Batista. 78 rpm, Continental, 1945. do BMTIC, na seção “Falando aos trabalhadores brasileiros”, elas compuseram
uma autêntica “sinfonia do trabalho”, que eu examino criticamente em Paranhos
“Vai trabalhar” (Ciro de Souza), Aracy de Almeida. 78 rpm, Victor,
(2007, cap. IV).
1942.
8
É oportuno atentar para o trânsito linguístico de palavras como lesco-lesco, miserê
e outras que tais. Assim como, analogamente, uns tantos aspectos das ideologias
das classes trabalhadoras são incorporados e/ou ressignificados pelas ideologias
das classes dominantes, muitas expressões originárias da linguagem cotidiana de
setores populares terminam por ser dicionarizadas. Foi o que se verificou, por
Notas exemplo, com lesco-lesco e miserê (Cf. FERREIRA, Aurélio, 1999, p.1203 e 1344;
e DICIONÁRIO HOUAISS, 2001, p.1745; 1933).
9
Essas e outras reflexões de caráter metodológico são exploradas em Paranhos,
1
Com a Segunda Guerra Mundial em andamento, o ditador Getúlio Vargas
abr. 2000.
mostrava-se preocupado em promover a “batalha da produção” no front interno
e persistia numa pregação que se tornara lugar-comum naqueles dias: “hoje mais 10
Sobre a tradução musical do andar malandro por Geraldo Pereira, cf. Tinhorão
do que nunca, a ociosidade deve ser considerada crime contra o interesse coletivo” (1983, p. 2).
(VARGAS, 1943, s/n). 11
“Aquarela do Brasil” emplacou cinco gravações nacionais sob o “Estado Novo”.
2
Declaração do presidente do Sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro, Entre elas destacaram-se a (primeira) de Francisco Alves e a de Silvio Caldas.
Manoel Antonio da Fonseca, reproduzida no Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio (BMTIC), 1943, p.322.
12
Desfechou-se um ataque à “gíria corruptora da língua nacional” como parte
de uma polícia da língua. V. matérias que constavam das seções de música e
3
A Constituição, no art. 139, capitulava a greve como “recurso antissocial”. Daí radiodifusão da revista Cultura Política, publicada pelo DIP entre 1941 e 1945. As
ser enquadrada como ato delituoso para o qual o art. 165 do Código Penal palavras citadas são de Castelo (1941, p.331). O mesmo articulista investia contra a
cominava pena de prisão de 3 a 18 meses, mais as penas acessórias aplicáveis a “degradação” representada pela “baixa linguagem” em Castelo (1942, p.300).
casos específicos. Ideologicamente, os doutrinadores do regime assemelhavam a
greve à ociosidade. E ócio, como dizia um deles, era irmão siamês da “boêmia
13
A partitura foi editada por A Melodia, Rio de Janeiro, s/d. Tive acesso a ela
improdutiva”, essa “perversão” do “instinto da ordem” (AMARAL, 1941, p. 50- graças ao pesquisador Abel Cardoso Junior, numa das minhas incursões pelo seu
86). arquivo pessoal em Sorocaba.
270 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
Sob o estímulo da evolução dos estudos no âmbito da História Social da Cultura,
Usos do passado e fragmentação da memória:
14
as reapropriações se converteram em poderosa senha para a abertura de novos
horizontes de pesquisa. Sobre o assunto, v. principalmente Certeau (2001) e história em imagens digitais
Chartier (1990).
Ana Maria Mauad*
15
Por razões semelhantes, em outro contexto, Paul Zumthor, ao avaliar o peso
fundamental da performance, ressalta que o intérprete significa (ZUMTHOR,
1993, p.228). Além do mais, são perceptíveis as flutuações de sentido por que
passa uma mesma composição, especialmente quando gravada/regravada a partir
de novos influxos musicais e/ou situações históricas diferenciadas ( v. PARANHOS,
2004).
Desde as últimas décadas do século XIX, a percepção visual
16
Compartilhando dessa mesma visão – que, em última análise, remonta a Gramsci
–, Thompson dispara seus petardos contra aqueles que conferem uma “acentuada do mundo foi marcada pela utilização de dispositivos técnicos
ênfase no peso inelutável dos modos ideológicos de dominação” que suprimiriam para a produção de imagens. A demanda social de imagens foi
o espaço de iniciativa e de criatividade das classes populares (THOMPSON, 1981, se ampliando ao longo do século XX, a ponto de podermos
p. 205).
contar sua história através das imagens técnicas, notadamente, a
17
Caso paradigmático é o de Garcia (1982, p.98; 126-127), ao exprimir uma fotografia. Sendo assim, as imagens técnicas na sua dimensão de
concepção que é partilhada, em maior ou menor medida, por muitos outros documentos e monumentos da história contemporânea devem
autores. Sobre o assunto, v. Paranhos (2007, p.207-213). ser trabalhadas a partir da ampliação da noção de testemunho, a
maneira de Bloch.
A proliferação de imagens na contemporaneidade coloca um
desafio à oficina da história que se vê confrontada à duplicação de
experiências sociais em imagens. Tal como Funes, o memorioso,
nos vemos premidos a não deixar esquecer, preservar, guardar e
arquivar, e nos enveredamos pelos caminhos do mundo digital e
das opções virtuais como possibilidades de ampliar os horizontes
(inclusive espaciais) da discussão sobre as formas de arquivar.
* Doutora em História Social (UFF). Pós-doutora pelo Museu Paulista da USP.
Coordena o Curso de Graduação em História. Professora do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em História. Pesquisadora do Laboratório
de História Oral e Imagem da UFF e do CNPq. Dedica-se ao ensino de Teoria e
Metodologia da História. Autora de “Poses e Flagrantes: ensaios sobre História e
fotografias”, e de vários artigos e capítulos de livros sobre temas ligados à História
visual, História Cultural e História da Memória, especialmente fotografia.
272 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 273
A elaboração de estratégias de organização e arquivamento apresento uma experiência de estudo e avaliação sobre as
de imagens técnicas envolve escolhas e possuem uma dimensão formas de agenciamento da imagem fotográfica, por diferentes
política que não podemos perder de vista. Nesse sentido, coloco instituições de guarda; cuja finalidade é principalmente definir
que o horizonte digital para sair de uma virtualidade passiva uma agenda de trabalho.
deve prioritariamente pautar-se em escolhas claras de como o
acesso à informação será feito. Paralelamente, deverá também
História e imagem – situações e problemas
questionar-se sobre o fundamento epistemológico da produção
continuada de informações visuais. Para que servem as imagens
técnicas disponibilizadas em museus e institutos culturais, Não é de hoje que a história deixou de ser elaborada,
para conformar práticas de entretenimento ou para produzir exclusivamente, com textos escritos. A revolução documental dos
conhecimento crítico? E as imagens não disponibilizadas e anos 1960 não só colocou em pauta a discussão sobre o documento
guardadas em instituições cuja política de acesso é bastante único e a possibilidade de trabalhar-se com uma abordagem
limitada? Neste caso, como fica a busca de elementos para quantitativa – as fontes seriais – como também colocou em xeque o
reconfigurações do passado já cristalizado em imagens próprio imperialismo da escrita sobre outras formas de expressão.
repetidamente publicadas? Hoje em dia, já encontramos trabalhos que analisam diferentes
Esse conjunto de questões engendra desdobramentos tipos de suporte visual, dentre eles as fotografias. No entanto, o
teórico-metodológicos, dentre os quais se destacam: os historiador não se volta para fazer uma história, exclusivamente
processos de produção de sentido na sociedade contemporânea, da fotografia, opera com os textos visuais, dimensionando na sua
com destaque para o papel desempenhado pela tecnologia; a natureza de documento/monumento. Sendo assim, é fundamental
definição do circuito social da produção, circulação, consumo reconstruir o circuito social da imagem entendido como produção,
e agenciamento de imagens técnicas, enfatizando historicidade circulação, consumo e o agenciamento das imagens, incluindo
dos regimes visuais; o papel dos sujeitos sociais como mediadores sua versão digital.
da produção cultural, compreendendo que a relação entre
O debate em torno da utilização de fontes visuais pela
produtores e receptores de imagens se traduz numa negociação
história já não é novidade, desde a publicação do livro de Michel
de sentidos e significados; além da capacidade narrativa
Vovelle, em 1987, Ideologias e Mentalidades, com uma parte
das imagens técnicas, discutindo-se aí a dimensão temporal
dedicada ao uso de fontes iconográficas. Entretanto, somente a
das imagens, os elementos definidores de uma linguagem
partir de 1990, tanto dentro como fora do Brasil, surgem trabalhos,
eminentemente visual.
cuja preocupação central é a leitura histórica de imagens. Neste
Vou concentrar minha reflexão em um tipo específico caso, o método histórico é incrementado com preocupações
de imagem técnica – a fotografia. No primeiro momento, relacionadas à natureza não verbal dos documentos que trata.
proponho um balanço de situações e problemas associados aos Tanto do ponto da vista da heurística, quanto da hermenêutica,
usos e funções da fotografia nos estudos históricos; na sequência um arsenal de estratégias passam a ser aplicadas para: organizar
274 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 275
dados da pesquisa (banco de dados, fichas descritivas, planilhas); o fato de que no registro fílmico a base do fotograma é uma
realizar a crítica externa (datação segundo estilos, análise da imagem fixa).
técnica utilizada, tipo de dispositivo utilizado etc.); crítica interna
Assim a fotografia torna-se tanto uma fonte histórica,
(intervenção na imagem – se é falsa por que foi falsificada;
quanto o objeto da história, demandando por parte do historiador
estabelecimento do circuito social da imagem etc.); por fim, para
um novo tipo de crítica. O testemunho é válido, não importando
interpretar as imagens (metodologias coordenadas de caráter
se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou
transdisciplinar).
representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando
O cerne da questão está em não tomar o conceito de Jacques Le Goff (1965), há que se considerar a fotografia,
imagem de forma unívoca, sua aplicação deve vir acompanhada simultaneamente, como imagem/documento e como imagem/
de alguns cuidados, como, por exemplo, a avaliação das condições monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como
de sua produção, dos signos constitutivos, de sua capacidade índice, como marca de uma materialidade passada, na qual
comunicativa e do suporte/meio de sua veiculação. objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados
Em linhas gerais, as imagens podem ser diferenciadas em aspectos desse passado, condições de vida, moda, infraestrutura
cinco categorias: gráfica [figuras, estátuas, design, pintura etc.]; urbana ou rural, condições de trabalho etc.; no segundo caso,
ótica [espelho, fotografia, projeções]; perceptiva [dados do sentido a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade
e aparência]; mental [sonhos, memórias e ideias]; verbal [metáforas estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro.
e descrição]. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, se a
fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão
Para cada uma dessas categorias existe uma disciplina
de mundo (MAUAD, 1996).
institucionalizada para estudá-las; no entanto, o limite de
uma categorização tão estrita consiste em perder a capacidade Tal perspectiva remete ao circuito social da fotografia
de interação entre os diferentes suportes e seu contexto, nos diferentes períodos de sua história, incluindo-se, nesta
ou seja, entre as diferentes imagens e sua interpenetração categoria, todo o processo de produção, circulação, consumo e
(SANTAELLA, 1994). agenciamento das imagens fotográficas. Só assim será possível
restabelecer as condições de emissão, recepção e apropriação
Portanto, na avaliação da imagem fotográfica distingue-se,
da mensagem fotográfica, bem como as tensões sociais que
em primeiro lugar, a sua natureza de imagem visual, associada a
envolveram a sua elaboração. Desta maneira, texto e contexto
um sistema de signos de natureza não verbal; em segundo lugar
estarão contemplados.
o fato de ser a fotografia uma imagem visual produzida por um
dispositivo técnico, distinguindo-a, assim das demais imagens Os textos visuais, inclusive a fotografia são resultado de
visuais, dentre as quais a pintura, a escultura, o design e os sonhos, um jogo de expressão e conteúdo que envolve, necessariamente,
bem como de uma outra imagem técnica, a cinematográfica, três componentes: o autor, o texto propriamente dito e um leitor.
cuja característica fundamental é o seu movimento (no que pese Cada um destes três elementos integra o resultado final, à medida
276 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 277
que todo o produto cultural envolve um locus de produção e um pela sociedade que a produz, mas também recebe. Em que
produtor, que manipula técnicas e detém saberes específicos à medida este valor está mais ou menos balizado pelos efeitos de
sua atividade, um leitor ou destinatário, concebido como um realismo da imagem vai apontar para a conformação histórica
sujeito transindividual cujas respostas estão diretamente ligadas de certo regime de visualidade. Portanto, se a questão da
às programações sociais de comportamento do contexto histórico relação da imagem com o seu referente e o grau de iconicidade
no qual se insere; e, por fim, um significado aceito socialmente dessa imagem é uma questão estética, seu julgamento (ou
como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido. apropriação) tem a ver com as condições de recepção e como,
através dessa recepção, se atribui valor a imagem: informativo,
Como corolário dessas reflexões tem-se a fotografia,
artístico, íntimo etc.
como texto portador de uma historicidade, que só poderá ser
compreendida à luz dos demais textos que compõem os marcos 3 A questão do produto – entende-se aí a imagem consubstanciada
de significação histórica – em uma dinâmica constante de em matéria, ainda a capacidade de a imagem potencializar a
intertextualidade. matéria em si mesma, como objetivação de trabalho humano,
como resultado do processo de produção de sentido social,
Na sua dimensão de objeto da história, a fotografia já
como relação social. Compreendida como resultante de
ultrapassou o limite de uma história da fotografia, preocupada uma relação entre sujeitos, a imagem visual engendra
em inventariar descobertas e contar a história de fotógrafos uma capacidade narrativa que se processa em uma dada
precursores, voltando-se para uma historiografia preocupada temporalidade. Estabelece, assim, um diálogo de sentidos com
com os usos sociais da imagem fotográfica, com o circuito social da outras referências culturais de caráter verbal e não verbal. As
fotografia e com a capacidade comunicativa da imagem fotográfica imagens nos contam histórias, atualizam memórias, inventam
em termos culturais e ideológicos. Neste sentido, vale destacar o vivências, imaginando a história.
papel de toda uma geração de historiadores, que, desde os anos
1990, vêm procurando atribuir um novo estatuto epistemológico 4 A questão do agenciamento – a forma como as imagens serão
arquivadas, disponibilizadas e apropriadas, nos seus diferentes
ao estudo da fotografia como objeto da história.
circuitos sociais. Importa nessa parte compreender que as imagens
Deste conjunto de considerações, podemos depreender os técnicas integram o patrimônio histórico e cultural por diferentes
quatro principais aspectos ao considerarmos as imagens visuais: linhas de ingresso. As imagens públicas produzidas pelas agências
1 A questão da produção – o dispositivo que media a relação de Estado, para administração, segurança pública e propaganda
entre o sujeito que olha e a imagem que elabora. Através dessa política; as imagens produzidas na esfera privada, retalhos de
atividade de olhar se dá a manipulação de um dispositivo de um cotidiano vivido que em um determinado contexto ganham
caráter tecnológico, este possui determinadas regras definidas espessura histórica; imagens produzidas por profissionais,
historicamente. associados aos ofícios da imagem, mas voltados para o mercado de
arte, cujo valor venal do trabalho a distingue, obrigando controles
2 A questão da recepção – associada ao valor atribuído à imagem mais rígidos em termos de guarda; as imagens produzidas
278 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 279
virtualmente, cujo referente inexistente ganha vida na tela do o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos;
um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado (Tratei
computador. Enfim, a civilização da imagem possui um patrimônio
de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua
visual que demanda instrumentos de agenciamento. memória de nomes próprios; não me fez caso). Dezenove
anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver,
ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo.
Funes e a necessidade de categorizar Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o
presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e
também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco
depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o
O que o personagem de Borges – Funes, o memorioso
interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um
– tem a ver com a nossa reflexão sobre as imagens fotográficas preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória
e seu agenciamento? Vou me permitir breve parêntese para eram infalíveis.
recuperar alguns trechos da história:
Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos.
A minha primeira lembrança de Funes é muito clara.
Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia
ano de 1884... Recordo a bombacha, as alpargatas, jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um
recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os
já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente:
homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus
Que horas são, Ireneo. Sem consultar o céu, sem deter-
se, o outro respondeu: Faltam quatro minutos para as sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha
oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, memória, senhor, é como depósito de lixo.
zombeteira [...] Disse-me que o rapaz do desfiladeiro
era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas A essa capacidade de lembrar Funes agregou outra, a de
peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a categorizar o que guardava na memória, criando assim novos
de saber sempre a hora, como um relógio...Nos anos de nomes para as coisas que já haviam sido denominadas.
1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em
1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por Os dois projetos (um vocabulário infinito para a série
todos os conhecidos e, finalmente, pelo ‘cronométrico natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as
Funes’. Responderam-me que um redomão o havia imagens da lembrança) nos deixam vislumbrar ou inferir
derrubado na estância de San Francisco, e que havia se o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos,
tornado paralítico, sem esperança. era quase incapaz de ideias gerais, platônicas. Não
apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico
cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos
Preso na sua condição de imobilidade, Funes desenvolve tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das
três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que
ainda mais a sua capacidade de guardar informações na
o cão das três e quatro (visto de frente). Era o solitário e
memória. lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo
Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato... Disse- e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres
me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a
280 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 281
imaginação dos homens do mundo... Havia aprendido Durante o primeiro semestre de 2004, como desdobramento
sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim.
Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar.
das atividades de pesquisa com acervos fotográficos, realizei junto
Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No com as pesquisadoras Solange Ferraz de Lima e Vânia Carvalho,
mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, do setor de Documentação do Museu Paulista, o meu projeto de
quase imediatos. pós-doutorado. Nesse projeto, enfatizei a elaboração do registro;
tal ênfase explica-se porque ele tanto expressa uma interface com
O relato de Borges sobre o desejo de Funes de tipologizar
um pesquisador ideal, quanto revela a forma como a fotografia
suas memórias, de definir um vocabulário próprio para os seus
está sendo concebida teórica e metodologicamente pela instituição
sonhos e delírios, de controlar o fluxo contínuo da experiência,
de guarda.
de criar duplos de tudo que se lhe apresenta nos remete à própria
condição do sujeito moderno no mundo contemporâneo. Preso Ao longo do período de pós-doutorado, tive a oportunidade
à sua condição de indivíduo e à clausura do seu mundo virtual, de avaliar, em diferentes instituições de pesquisa e guarda de
perde a capacidade de pensar, de criar e de conhecer. Serve de documentação histórica, a forma como as fotografias são tratadas
aviso de atenção para investimentos inúteis de dar nomes aquilo em termos arquivísticos. Neste sentido, minha preocupação
que já foi nominado. concentrou-se no processo de indexação das fotografias como
suporte de informações e representações, tanto como imagem-
Feito o aviso, retomo o fio de minhas reflexões.
documento, quanto imagem-monumento.
Desde 1996, quando passei a desenvolver projeto de
pesquisa junto ao CNPq, voltei-me para a avaliação das condições Para o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado,
de pesquisa da fotografia no Rio de Janeiro. A primeira medida, escolhi as seguintes instituições: Arquivo Público do Estado do
neste sentido, foi enumerar as instituições de guarda de material Rio de Janeiro; Biblioteca Nacional; Instituto Moreira Salles.
fotográfico, e, em seguida, definir o acervo de cada uma dessas Em Santiago do Chile, trabalhei com as pesquisadoras da
instituições. DIBAM (Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos), Marcela
Roubillar e Gloria Paz Nuñez, esta última coordenadora da
O projeto denominado o Poder em Foco: a produção seção de documentação e registro do Museu Histórico Nacional.
da fotografia pelo Estado brasileiro e a construção simbólica do A experiência da DIBAM com o SUR (Sistema Unificado de
Poder Político Republicano (1889-1930) mapeou as instituições Registro) possibilitou-me entrar em contato com uma realidade
voltadas para a produção e guarda da imagem oficial. Segundo tal bem diferente da brasileira, na qual o modelo de gestão do
critério, nos detivemos na avaliação de cinco instituições: Museu patrimônio histórico, ao contrário do caso chileno, caracteriza-se
da Imagem e do som, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, pela descentralização.
Museu da República, Casa de Rui Barbosa e Arquivo Nacional.
O resultado desse trabalho está na página do LABHOI, através Toda a pesquisa de campo teve no seu horizonte, com
da publicação: Oficinas da História, Nova Série, n. 1, Arquivos do maior ou menor ênfase, a possibilidade de uma comparação
Poder. Disponível em: <www.historia.uff.br/labhoi>. com as experiências que estão sendo implementadas no Museu
282 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 283
Paulista. Neste sentido, a avaliação da experiência do Museu descritores formais, destacou a necessidade de avaliar-se o
perpassa todas as demais, sendo tratada como referência para a conjunto, e de se estabelecer o objetivo da série, aplicando o
análise dos procedimentos adotados. conceito de obra autoral.
O acervo Moreira Salles estrutura-se em coleções num As fotografias no Arquivo Público do Estado do Rio de
total de trinta já incorporadas. O acervo é adquirido por Janeiro estão sob a guarda da Divisão de Documentos Especiais
doação e por compra, segundo um critério que valoriza alguns (DDE), que, além destas, inclui mapas e vídeos. A documentação
temas, entre os quais o que mais se destaca é o da evolução fotográfica é composta pelos álbuns de fotografias que integram
da paisagem urbana. Dentre as grandes aquisições, destacam- os diversos relatórios dos órgãos públicos do Estado, com ênfase
se as coleções de Gilberto Ferrez, neto do famoso fotógrafo para a década de 1930; o acervo da polícia política – DOPS; a
Marc Ferrez, e a da BRASCAN, empresa pertencente ao grupo coleção de fotografias do movimento integralista e a coleção sobre
Light. As coleções são tratadas como uma individualidade, a o PCB, estas duas últimas já digitalizadas e disponibilizadas na
partir da qual se define um arranjo que pode ser temporal e/ rede interna do arquivo, através banco de dados de base Access
ou autoral. Muitas coleções já vêm com o arranjo pronto, como com as imagens em baixa resolução.
é o caso da coleção do fotógrafo francês Marcel Goutherot,
Para a organização das duas coleções digitalizadas, foi
organizadas por Estados e com os negativos já numerados –
aplicada a seguinte metodologia: notação individual [número
cerca de 22 mil imagens!
para cada negativo]; data; localização [cidade ou município];
A localização topográfica da imagem é feita por uma tema [assunto fotografado]; descrição [detalhamento da imagem].
codificação alfanumérica, na qual cada fotografia possui uma A descrição será trabalhada com provas contatos no tamanho
identificação individualizada. O registro dos dados da imagem original dos negativos e imagem digital.
parte do Thesaurus e adota-se um nível de vocabulário genérico.
É possível, dentro do banco de dados, realizar busca genérica
A indexação dos descritores obedece a uma hierarquia que é
por termos, contudo, a indexação da imagem – realizada no
estabelecida pelo enfoque dado pela Curadoria do acervo,
campo descrição – limita-se aos aspectos da forma do conteúdo.
neste caso específico, a Curadoria defende o princípio de
que a fotografia é suporte de informação; através da imagem A Fundação Biblioteca Nacional concentra sua coleção de
fotográfica é possível definir-se a presença de objetos, pessoas, imagens na seção de Iconografia: mapas, aquarelas, gravuras
lugares e construções. e fotografias que estão organizadas em duas bases de dados:
Iconografia, onde se podem acessar títulos e obras ilustradas, e
O registro das imagens fotográficas, no banco de dados,
Portal de Entrada de Dados Material Visual (DRD-CAE), que
limita-se a indicar os objetos, pessoas, lugares, período e técnica/
engloba todas as imagens visuais em diversos tipos de suporte.
processo, utilizando-se, para tanto, descritores iconográficos
definidos segundo um thesaurus. Dentro das preocupações Na base denominada Iconografia, encontram-se 15 tipos
expressas pelo curador, em relação à possibilidade de de índices: autor-pessoas; autor-instituição; autor-eventos; títulos;
284 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 285
assuntos; editores; ano da publicação; local da publicação; título Atualmente, o sistema está consolidado no Programa SUR
das séries; classificação Dewey; topográfico; registro patrimonial; (Sistema Integrado de Registro), o resultado de um trabalho
acervo digital; ISBN; notas bibliográficas. conjunto do Centro de Documentação de Bens Patrimoniais
(CDPB), entidade pertencente a Direção de Bibliotecas, Arquivos
Na base que organiza os materiais visuais, a ordem segue
e Museus (DIBAM) e COINSA, órgão composto por especialistas
semelhante, com uma leve mudança nas entradas: autor-pessoas;
em informática.
autor-instituição; autor-eventos; títulos; assuntos; gênero/forma
(tipo de suporte); editores/impressores; ano da publicação; título Nos dias atuais, o SUR está desenhado especialmente
das séries; classificação Dewey; topográfico; registro patrimonial; para a documentação de coleções dos museus, respondendo à
acervo digital. necessidade de incorporar tecnologia ao trabalho museológico.
Cada um dos índices possui uma listagem de termos, na A adoção desta ferramenta, segundo os seus administradores,
qual o acesso através de um instrumento de busca possibilita o permite acessar a informação normalizada, de forma rápida e
acesso direto e a busca combinada, dentro dos limites dos termos eficiente, melhorar sua qualidade e consistência, proteger em
já registrados. longo prazo o valor da informação e agilizar seu intercâmbio e
comunicação. A interface da base de registros na Internet está
Além do acervo visual, a Biblioteca mantém o seu antigo disponível em: <http://www.surdoc.cl>. O SUR, tal como hoje
catálogo, no qual a entrada se faz por uma divisão entre obras pode ser acessado, perdeu o seu escopo original, ganhando
publicadas, material visual, retratos e impressos. O registro um nível de generalidade que, de acordo com a avaliação
de cada um segue a notação clássica das bibliotecas. Não há a das pesquisadoras contatadas, não dá conta da especificidade
mínima possibilidade de busca por descritores formais, somente regional, e acaba por gerar conflito entre os diferentes tipos
por temas – assunto, ainda assim, existem um “gap” entre o que de Museus. A questão maior se estabelece entre os Museus de
se encontra no arquivo antigo e o que está na base de dados
Arqueologia, voltados para os períodos Pré-hispânicos e para
informatizada.
as culturas tradicionais, e os Museus denominados históricos,
O contato com a equipe chilena que projetou a ideia de guardiães da memória nacional e regional. Tal polêmica gerou
um sistema integrado de registro, com indexadores icônicos e a elaboração de dois thesaurie, um para coleções museológicas,
formais, foi realizado pela primeira vez, em 1997, durante o I° e outro para arqueologia. Em anexo seguem as orientações do
Encontro de História da Fotografia Latino-Americana Gilberto thesaurus versão em espanhol do AAT.
Ferrez, organizado pela FUNARTE e realizado nos dias 27 e 28
de outubro de 1997, na Casa de Rui Barbosa/RJ. Nesta ocasião,
Entre Resistências e Possibilidades
assisti à apresentação de Marcela Roubillar, quando expôs o
primeiro esboço de um banco de imagens que integrasse os
acervos de museus chilenos. Desde então venho acompanhado O relato de minhas experiências nos acervos cariocas
o trabalho da equipe nas suas idas e vinda. e chileno aponta para uma forte resistência ou ceticismo em
286 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ana Maria Mauad 287
relação à possibilidade de estabelecimento de um vocabulário, imagem visual – notadamente a fotográfica. Entre o sujeito que
adequado à natureza visual da fotografia, corroborando a olha uma imagem e as possibilidades de conhecimento que dela
conclusão tirada, anteriormente, pelas pesquisadoras do se pode extrair, a visão não é o limite. Isso porque, tanto as
Museu Paulista: informações extravisuais, quanto as próprias soluções técnicas e
Apesar dos avanços já empreendidos, os critérios de estéticas que definem a expressão visual são históricas e mudam
seleção e montagem das formas descritivas da imagem ao longo do tempo. Daí a necessidade de que cada imagem
ainda deixam muito a desejar quando se trata de atender guardada possa integrar uma base de dados cujos descritores
às necessidades de produção de conhecimento sobre a formais sejam chaves de compreensão para as práticas e
própria fotografia. A ausência de descritores voltados
para os atributos formais da imagem é um dos problemas experiências que deram origem a imagem que se vê. Dessa
que merece destaque. O grau de estandardização dos forma o agenciamento das imagens técnicas em bancos de dados
termos descritivos do conteúdo visual deve levar em conta consolidará os princípios articulados do regime produtivo que
o perfil do público consulente, muitas vezes heterogêneo, a gerou: produção, circulação e consumo como experiências
e a tendência de integração das informações em redes
internacionais. No entanto, não nos parece que a sociais e históricas.
necessidade de descritores genéricos deva comprometer
as particularidades das coleções institucionais, muito
menos ignorar as expectativas do especialista ou os
próprios atributos da fotografia. (CARVALHO E LIMA,
2000, p.24).
Creio que um dos caminhos para que se superem
resistências e impasses em relação aos acervos fotográficos,
na era digital, é a elaboração de um canal ativo de troca de
experiências, a partir do qual se compartilhem resultados, e se
consiga construir um ambiente comum. Um horizonte concreto,
mesmo que virtual, no qual os profissionais que se voltam para
a análise crítica da imagem numérica (ou técnica) possam se
encontrar, trocar ideias e compartilhar conhecimento. Dessa
forma evitaremos inventar nomes para coisas que já foram
nominadas.
Assim, a possibilidade de dar acesso à visualização da
imagem colocaria em questão a necessidade de descrever diante
da possibilidade de ver. Aqui reside um problema que não é
somente de arquivamento, mas da própria epistemologia da
288 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
Referências História, religião e ética: considerações sobre o
papel da religião na sociedade global
André Luiz Caes*
ANAIS DO MUSEU PAULISTA v.12, 2004.
BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: Prosa Completa.
Barcelona: Bruguera, 1979. p. 477-484. vol. 1.
CARVALHO, V.C & LIMA, S. F. Fotografias como objeto de coleção e
de conhecimento, In: Anais do Museu Histórico Nacional, 2000. v. 32. Introdução
KRIEBEL, Sabine T. Theories of photography: short history, In:
ELKINS, James (Ed.) Photography Theory. London / New York:
Routledge, 2007. O fenômeno da globalização tem sido um tema central dos
debates em diversas áreas de pesquisa, fato motivado por suas
LE GOFF, J. Documento / Monumento, Encilopédia Einaudi, Memória-
implicações bastante abrangentes e que incluem uma grande
História. Lisboa: Impr. Nacional-Casa da Moeda, 1995. Vol. 1.
diversidade de questões políticas, econômicas, sociais e culturais.
MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: Fotografia e História -
Interfaces. In: Tempo/Universidade Federal Fluminense. Departamento No processo de formação da sociedade global nós
de História, v. 1, n. 2, p. 73-98, dez. 1996; Rio de Janeiro: Relume- assistimos, por um lado, à reorganização da política e da
Dumará, 1996. economia mundial, sob o estímulo da vitória do capitalismo
sobre as propostas socialistas, acontecimento que favorece tanto a
SANTAELLA, Lucia. “Palavra, Imagem & enigmas”, In: Dossiê Palavra
/ Imagem: Revista USP, n. 16, dez./fev. 1994.
formação de blocos econômicos como movimentos diplomáticos
de países em busca de sustentação e apoio para seus interesses
VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, específicos – como é o caso, por exemplo, dos interesses comuns
1987. dos chamados países emergentes e da aproximação entre o
WELLS, L. (Ed.) Photography: a critical introduction, London/NY: Irã e a Venezuela. Por outro lado, acompanhamos também a
Routledge, 2nd Edition 2001. interação cada vez maior entre as culturas, processo facilitado
pelo grande aperfeiçoamento da rede mundial de comunicação
e pela intensa circulação de indivíduos entre países, fatores que
* Doutor em História pela Unicamp e Pós-doutorado na área de “Religiões
e Visões de Mundo” pela Unesp-Assis (SP). É professor de História Antiga,
História Medieval e História das Religiões da Universidade Estadual de Goiás
(Unu-Morrinhos).
290 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 291
levam ao encontro e confronto entre valores e costumes, com um determinado lugar têm impacto imediato sobre
pessoas e lugares situados a uma grande distância
as naturais experiências de estranhamento e admiração que são
(HALL, 2006, p.69).
próprias dessa interação.
Dentro desse universo bastante complexo, procuraremos Esse fato implica, necessariamente, o surgimento de uma
abordar neste trabalho, o papel da religião ou das religiões consciência global, pois todos os indivíduos que estão conectados
como um dos elementos-chaves para a resolução ética e pacífica a esse processo são levados à percepção de que “fazemos parte
dos principais problemas decorrentes da formação da sociedade do mesmo globo e, portanto, temos que compartilhar totalmente
global. suas vicissitudes (ecológicas, históricas, políticas, econômicas e
éticas)” (PACE, 1997, p.26).
A nosso ver, é inegável a importância da religião e de seu
patrimônio ético e cultural na constituição das sociedades, posição Essa consciência global, voltando a Stuart Hall, tem um
que lhe confere um lugar entre as principais instâncias que atuam impacto significativo sobre as identidades culturais, em especial
na configuração da nova ordem. sobre aquelas identidades que estão ligadas à ideia de nação e às
tradições locais. Com relação a esse impacto, o autor identifica e
Antes, porém, de tecermos nossas considerações pessoais examina “três possíveis consequências” do processo de globalização
sobre esse tema e de falarmos sobre duas propostas já existentes sobre essas formas de identidade:
de participação efetiva da religião nos debates sobre a formação 1 As identidades nacionais estão se desintegrando, como
da sociedade global, apresentamos algumas reflexões de autores resultado do crescimento da homogeneização cultural
que já abordaram os temas da globalização cultural e das relações [...]; 2 As identidades nacionais e outras identidades
entre religião e globalização, com o intuito de apontar alguns “locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela
resistência à globalização; 3 As identidades nacionais
aspectos essenciais das análises até aqui desenvolvidas. estão em declínio, mas novas identidades – híbridas –
estão tomando seu lugar (HALL, 2006, 69).
A globalização, quando analisada sob o prisma da
interação cultural, revela-se, primeiramente, como uma alteração Sobre o primeiro aspecto, o autor identifica a afirmação,
profunda na percepção que temos da dimensão espaço-tempo, em escala global, da homogeneização dos produtos e serviços, à
à medida que os indivíduos – praticamente em todo o Planeta – medida que o avanço do capitalismo e do consumismo faz a maior
defrontam-se de forma imediata, por meio da informação, com parte da população mundial compartilhar os mesmos bens e os
acontecimentos dos mais diversos países, sentindo-se, por isso, mesmos estilos, tornando difícil conservar identidades culturais
muito mais próximos aos outros em suas alegrias e sofrimentos. intactas (HALL, 2006, p.74-75).
Como afirma Stuart Hall:
Quanto ao segundo aspecto, Hall (2006) aponta para a
Uma das características principais [da globalização]
é a ‘compressão espaço-tempo’, a aceleração dos revalorização das identidades locais, mediante o que denomina
processos globais, de forma que se sente que o mundo “fascinação da diferença” e a “mercantilização da etnia e da
é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em alteridade” (p. 77). Nesse caso, surge uma nova articulação
292 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 293
entre o global e o local, este último não mais pensado como Contudo, quando confrontadas com as modificações
um espaço fechado, com tradições firmemente enraizadas, mas produzidas pela globalização, as religiões são levadas a se adaptar,
percebido como participante ativo na lógica do consumo global a realizar, como afirma Pace (1997) “um esforço para não ficar de
(por exemplo, pelo turismo e pelo artesanato etc.) (p. 78). fora do mundo moderno e suas linguagens” (p. 37). As reações das
religiões são diversas, mas não há a possibilidade de se manterem
O autor não ignora, porém, os muitos movimentos
alheias à influência do mundo global.
nacionalistas e étnicos com caráter marcadamente de resistência
cultural (Ibid., p.94), como é o caso de diversas populações Featherstone (1996), ao analisar a formação da sociedade
islâmicas, que consideram uma forma de degeneração qualquer global, aponta o significado da globalização para a livre expressão
tipo de adesão a outros elementos culturais, especialmente os das múltiplas formas de manifestação cultural e religiosa:
ocidentais. [...] em vez de ocasionar o aparecimento de uma cultura
global unificada, o processo de globalização tende a
Por fim, o terceiro aspecto indica o surgimento de identidades prover um cenário para a expressão das diferenças: não
híbridas (HALL, 2006, p.86-91), estimuladas pelas amplas só revelando ‘um arquivo mundial de culturas’, em que
possibilidades de escolha no mercado global de bens culturais, fator os exemplos do exótico remoto são trazidos diretamente
que possibilita aos indivíduos e grupos a manutenção de aspectos para a esfera do familiar, mas oferecendo um espaço para
o confronto mais drástico entre culturas. Se, de um lado,
culturais, próprios da cultura de origem, mas com a assimilação estão em curso processos de integração cultural no plano
de elementos de culturas distantes, composição essa marcada global, de outro a situação vem tendendo ao pluralismo,
pela liberdade de escolha e pelo relativismo no trato com os bens ou ao politeísmo, um mundo de muitos deuses em
competição [...] (FEATHERSTONE, 1996, p. 113).
culturais.
A partir dessas primeiras reflexões, como podemos, Nessa afirmação, o autor evidencia o ponto central do
então, pensar a religião dentro do processo de interação cultural processo de globalização, quando se trata das culturas e religiões;
global? isto é, todas as formas de expressão cultural e religiosa estão agora
lado a lado e frente a frente, visíveis e acessíveis a todos.
Primeiramente, é preciso reconhecer que a religião é um
poderoso agente na formação das identidades, à medida que Esse fato expõe, a nosso ver, a inter-relação profunda
influencia valores, costumes e modos de pensar a realidade, que existe entre a expansão global da cultura do consumo e
além, é claro, de (normalmente) estabelecer distinções entre a configuração que tomou o campo religioso mundial, mas
o eu e os outros a partir de suas doutrinas. Sendo formadora o ocidental, de maneira particular, hoje funciona no sistema
de identidades – muitas vezes bastante rígidas – a religião não de mercado. À medida que as religiões estão expostas ao
raro se torna motivo de conflitos e disputas entre grupos de conhecimento, interesse e consumo no plano global, elas se
uma mesma sociedade, entre populações de países vizinhos e tornam produtos, sujeitos a livre escolha dos indivíduos,
entre culturas. Há inúmeros exemplos desses no passado e no sendo, por isso, forçadas a adaptar-se e a mover-se de forma
presente da humanidade. mais adequada à lógica do sistema. Esse fato é notório quando
294 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 295
se analisa a atual utilização dos meios de comunicação pelos sua vida, ao mesmo tempo em que pode usufruir – com maior ou
agentes religiosos. menor intensidade emocional – das práticas e vivências oferecidas
pela instituição. Assim, o direito de escolha individual sobre o que
Em síntese, num mundo secularizado, no qual mesmo o
é positivo ou não dentro do caminho espiritual prevalece sobre a
campo religioso funciona sob a lógica do mercado, as religiões são
autoridade institucional.
colocadas em igualdade de condições, não mais podendo impor-
se apenas pelo recurso à tradição ou pelo argumento de que Peter Berger (apud MARTELLI, 1995, p.290), analisando
detêm a verdade. Elas precisam, de fato, oferecer, ao indivíduo essa nova condição do indivíduo diante da religião, usou
que busca, aquilo que ele está procurando, ou seja, conforto a expressão “imperativo herético” para definir essa ampla
espiritual, significado para a existência, vida em comunidade, possibilidade de escolha. Na opinião desse autor, diante do
saúde, prosperidade etc. grande universo aberto pela instalação do mercado religioso,
todos somos levados a “ser hereges”, no sentido exato dessa
Por outro lado, no plano do indivíduo, essa nova sociedade
palavra, ou seja, escolher.
lhe conferiu autonomia para construir sua própria religiosidade,
formulada segundo a experiência pessoal e íntima de contato e Constatamos, com base na posição desses autores, que a
relação com as ofertas religiosas. secularização da sociedade e a instalação do mercado religioso,
não levou a uma crise irremediável da religião institucional, mas
Martelli, sintetizando o pensamento de Luckmann, assim
define essa nova situação: obrigou as religiões a dialogarem e a redefinirem seus papéis e sua
atuação na sociedade. Um aspecto importante dessa redefinição
[...] a situação da religião na sociedade moderna é,
de papéis está na limitação sofrida pelas religiões quanto à
portanto, inédita. Ao lado da presença da instituição
eclesial tradicional está surgindo uma nova forma social possibilidade de estas reivindicarem qualquer tipo de monopólio
de religião, que se caracteriza “pela possibilidade de acesso sobre o sagrado e sobre a verdade. Isso se deve, principalmente,
direto dos potenciais consumidores a uma variedade de ao fato de o indivíduo estar livre para questionar a doutrina e
representações religiosas”. Enquanto a forma externa da
religiosidade tradicional é preservada, o sentido subjetivo,
os procedimentos de qualquer religião, diminuindo o poder das
sob a influência de mudanças sociais gerais, sofre uma formas mais autoritárias e sectárias de manifestação religiosa.
profunda modificação. A nova forma religiosa apresenta-
se como um fenômeno reservado essencialmente à esfera Por outro lado, o indivíduo, tendo a possibilidade de
privada, e não é sustentada por instituições religiosas escolher, hoje, sente-se mais motivado, pois não mais precisa
públicas. O indivíduo tem acesso direto ao “cosmos permanecer em uma tradição religiosa com a qual não tenha
sagrado” [...] (MARTELLI, 1995, p.303). afinidade. Ele se percebe livre para experimentar, conhecer e
escolher, envolvendo-se com a religião a partir de uma experiência
Portanto, nessa nova situação, o fato de o indivíduo sentir-
interior e não por uma obrigação familiar ou pela tradição.
se livre para escolher seu caminho espiritual não provoca uma
simples negação da religião institucional, mas confere a cada Como afirma Brandão (1994), todas as possibilidades estão
pessoa a prerrogativa de limitar a ingerência da instituição em à disposição do indivíduo:
296 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 297
[...] o sagrado pode ser simultânea ou sequencialmente É preciso observar, porém, que existem autores, como
vivido sob todas as alternativas de adesão, partilha
Reginaldo Prandi (1997), que enxergam de maneira crítica
e compromisso, desde a opção mais francamente
individual e solitária da própria purificação, sem um e paradoxal a posição da religião no mundo global. Para ele,
momento sequer de envolvimento com qualquer mesmo em um mundo cada vez mais secularizado, as religiões
unidade confessional reconhecida, até a submissão estão se expandindo, mas nem assim conseguem contribuir de
completa da pessoa a uma comuna religiosa francamente
forma significativa para que a humanidade alcance um estado
sectária (p. 38).
de bem-estar.
Concluindo esse conjunto de reflexões, recorremos à Vejamos como o próprio Prandi expõe essa sua visão:
análise de Enzo Pace (1997), o qual afirma que a diminuição das
Por mais presente que a religião possa nos parecer
hostilidades recíprocas entre as religiões e o desaparecimento das no dia-a-dia, as decisões mais importantes e mais
fronteiras simbólicas rígidas entre diferentes campos religiosos fundamentais e que afetam a vida de praticamente
possibilita o aumento do trânsito e da aceitação de conceitos, todo o mundo são sempre tomadas sem que nenhuma
crenças e práticas religiosas entre pessoas do mundo todo. Esse referência a Deus tenha que ser feita. Nossa sociedade
não precisa de Deus ou de deuses no seu governo,
fato favorece, por um lado, um diálogo sobre temas comuns
nem para seu progresso, nem para a eficácia de suas
que dizem respeito a problemas globais e que impõem uma políticas (p. 63-64).
postura ética para toda a humanidade e, por outro, estimula
a comunhão das crenças na experiência religiosa individual, à Nosso destino, como humanidade, continua a depender
medida que os indivíduos buscam em cada sistema religioso os essencialmente das conquistas das esferas alheias à
religião, mesmo quando se trata de conquistas nos planos
conceitos e práticas que lhe possibilitem uma integração com o
da ética e da moralidade (p. 66).
cosmos sagrado (p. 32-36). No final da modernidade, a religião não sabe ou não
pode ser o parceiro das mudanças sociais responsáveis
Entendemos, a partir de todas as considerações acima
por algum significativo benefício para a humanidade. Ela
apresentadas que uma tendência importante, que merece se comporta como se estivesse acima da história. [...] Não
ser observada e estudada – até porque pode se tornar junta, mas separa (p. 69).
hegemônica num futuro próximo – é a que se manifesta por
meio do indivíduo que busca sua autorrealização espiritual, Ainda segundo Prandi (1997), quando uma “sociedade,
pelos caminhos que escolhe a partir de seu interior e que através de suas instituições, pode prover todo o essencial à vida,
compreende o outro em sua busca também pessoal. Este das coisas materiais aos significados, passando pela justiça e pela
indivíduo parece estar consciente de que sua autorrealização moralidade” (p. 65), o recurso à religião praticamente torna-
precisa estar em sintonia com um projeto de paz global, à se desnecessário, pois o mundo profano é capaz de satisfazer
medida que, no contexto atual, cresce a percepção de que não os principais desejos humanos. Porém, quando essa sociedade
mais existem problemas apenas locais, mas sim problemas da falha, as religiões passam a ser a principal fonte de esperança e
humanidade. de significado para enfrentar as dificuldades.
298 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 299
No caso das populações mais carentes, as religiões passam Ao lado de estratégias religiosas mais conservadoras,
particularistas e propriamente fundamentalistas,
a suprir suas carências, “oferecendo alternativas de cura” física,
essa universalização da religião, como a convivência
emocional e material. Já entre as populações cujos problemas do múltiplo, vem se constituindo como uma outra
não são as carências materiais, são as tragédias pessoais, como possibilidade, frente ao desafio atual de pensar a ordem
doenças, acidentes e mortes, que se tornam motivo para a busca social em termos do contexto global (p. 200).
Assim, se por um lado, assiste-se, no mundo
religiosa de conforto. Porém, segundo o autor, esse envolvimento
contemporâneo, à afinidade da religião com grupos
religioso em geral é momentâneo e não mobiliza essas pessoas socioculturais particulares, por outro lado, o ponto de
a modificarem suas “orientações gerais de conduta” nem a vista holístico da religião, aliado às condições atuais da
abandonar seu “pensamento profano-racional” (p. 65). universalização da religião, para além dos contornos
culturais, sociais e políticos originais, vem permitindo
Pode-se dizer que as religiões, pensando nessas uma influência mais ampla dos movimentos religiosos no
duas circunstâncias mostradas por Prandi, não alteram que diz respeito à relativização de identidades sociais ou
grupais, em termos estritamente societários ou nacionais.
significativamente a vida na sociedade, aparecendo mais como Para as religiões em processo de universalização, o todo é
produtos de consumo, que podem ser encontrados no mercado a humanidade incluída na possibilidade total da existência
religioso e que satisfazem apenas necessidades práticas dos e não apenas em um de seus segmentos. A partir dessa
consumidores. visão, procuram colocar-se em posição de destaque, para
oferecer símbolos que permitam falar e experimentar
Podemos acrescentar a essa visão crítica de Prandi o fato ritualmente a coexistência pacífica da diversidade e
contrapor-se às consequências negativas do atual modelo
de, muitas vezes, observarmos as religiões disputando espaços de desenvolvimento que, porventura, possam conturbar
na sociedade com a estratégia de denegrir a imagem de outras o ambiente natural (AMARAL, 2000, p. 201).
religiões, alimentando com isso o aumento do preconceito e da
intolerância, que só não se manifestam de forma mais violenta –
como já ocorreu no passado – devido à legislação, que nos países Acreditamos, portanto, que ao lado de religiões com
democráticos garante a liberdade de expressão religiosa e pune concepções mais fechadas, fundamentalistas e, por que não,
os atos abusivos que se dirijam contra essa liberdade. egoístas, no sentido de se preocuparem apenas com objetivos
particularistas, temos aquelas que têm como objetivo a felicidade
Somos levados a concordar em parte com as considerações de toda a humanidade, e procuram atuar no sentido do diálogo e
de Prandi, porque não podemos negar muitos dos problemas da resolução dos problemas globais, pois estes afetam a todos.
que as religiões mais sectárias e fundamentalistas têm
produzido. Porém entendemos que há outras possibilidades Por considerarmos a religião, como afirmamos no início
que se abrem quando se analisam outros aspectos da religião do texto, um dos elementos-chaves para a resolução ética e
no mundo global. pacífica dos principais problemas decorrentes do processo
de globalização, e também por entendermos que a crítica de
Nesse ponto, acompanhamos o pensamento de Leila Reginaldo Prandi é procedente, à medida que as religiões nem
Amaral (2000), que propõe o seguinte: sempre têm contribuído para a melhoria da vida de todos os seres
300 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 301
humanos, apresentamos aqui duas propostas já existentes para intolerância e da violência religiosa e permitisse a convivência
a participação afirmativa e construtiva das religiões no mundo pacífica entre fiéis de todos os credos.
globalizado.
No encontro internacional denominado “Parlamento
A primeira dessas propostas nasceu de uma mudança, das Religiões Mundiais”, reunido em Chicago (EUA) em 1993,
ocorrida a partir da década de 1980, na postura de muitos ocorreu a aprovação da “Declaração sobre o Ethos Mundial”,
teólogos cristãos que passaram a reconhecer que era impossível documento que, sob consenso de mais de duzentos representantes
um diálogo entre as religiões enquanto persistisse a crença das religiões mundiais, apresenta uma perspectiva sobre os
de que a verdade estava em poder de alguma delas. Esses principais problemas que a humanidade vem enfrentando –
teólogos passaram a afastar-se de um “eclesiocentrismo” e de guerras, destruição ecológica, terrorismo, violências de todos os
um “Cristocentrismo”, que considerava as Igrejas Cristãs e Jesus tipos, exploração e injustiça econômica, entre outros –, e conclui
Cristo como superiores às demais Igrejas e aos demais fundadores
que “já existe um Ethos capaz de agir contra esses processos
de religiões, e se direcionaram para um “Teocentrismo”, no qual
globais desastrosos” (KÜNG, 2005, p. 174).
Deus é o centro da vida religiosa. Essa postura é assim definida
por Knitter (1986): Em síntese, segundo nossa leitura, a proposta contida na
Já não mais a Igreja (como necessária para a salvação) declaração expõe os seguintes pontos:
nem o Cristo (como normativo para a salvação) mas Deus
como o Mistério divino é o centro da história salvífica e o
1) Hoje a humanidade já dispõe de recursos econômicos,
ponto de partida do diálogo entre as religiões (p. 110). culturais e espirituais suficientes para iniciar uma nova
ordem.
Essa nova postura implicava em acolher a possibilidade 2) Esta nova ordem não pode ser instalada apenas por
de que o Budismo e o Hinduísmo (por exemplo), como programas e ações políticas, é preciso também uma nova
manifestações de Deus, são tão essenciais à história da salvação visão de convivência pacífica dos povos, comunidades e
quanto o Cristianismo, e que outros reveladores e salvadores religiões.
podem ser tão importantes quanto Jesus de Nazaré. Essa 3) Já existe um consenso mínimo entre as religiões em
compreensão abriu uma perspectiva totalmente nova na relação relação a valores, parâmetros inalteráveis e atitudes
entre as religiões, à medida que a pluralidade de nomes, formas morais básicas que possibilitam a constituição de um ethos
e manifestações foi assumida como um atributo divino: as muitas mundial.
faces de Deus podiam agora ser conhecidas e compreendidas
com igual admiração e reverência. Esse consenso mínimo se apoia nas seguintes assertivas:
Esse novo enfoque trouxe a possibilidade do a) Todos somos responsáveis por uma melhor ordem
estabelecimento de uma linguagem religiosa universal baseada mundial, e é imperativo nosso empenho pelos direitos
em pontos comuns, que favorecesse e estimulasse o fim da humanos, justiça, liberdade, paz e preservação da terra.
302 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 303
b) A diversidade cultural e religiosa não pode ser empecilho Sri Sathya Sai Baba e que se realiza através das atividades da
para a construção dessa nova ordem, e as pessoas que se organização que leva seu nome. Apresentamos aqui nossas
orientam por uma atitude ética e religiosa devem assumir percepções e nossas reflexões sobre o movimento global proposto
uma postura de confiança, em oração e meditação, com por Sai Baba e que se fundamenta em três diretrizes básicas:
palavras ou em silêncio, e atuar pelo bem da humanidade devoção, educação e serviço; por ele definidas como essenciais
e pela proteção da terra. para o objetivo de instaurar uma atitude ética e religiosa de
alcance global.
c) O ethos mundial não pode ser entendido como uma
nova ideologia global nem como uma religião mundial A expansão da devoção a Sathya Sai Baba no Ocidente,
uniforme que esteja além das religiões existentes. assim como o crescimento da Organização que leva seu nome,
ocorreu a partir da década de 1960, quando muitos ocidentais,
d) Todas as experiências sociais comprovam: não poderá
ouvindo falar de seus ensinamentos, passaram a procurá-lo
haver uma nova ordem se não houver a transformação da
no ashram em que vive, no Sul da Índia. Do grande aumento
consciência, tanto a de cada indivíduo como a da esfera
no número de seus devotos, surgiu a Organização Sri Sathya
pública.
Sai, que foi fundada ano de 1967, na Índia, por iniciativa
Essa proposta de um ethos mundial abre caminho para um dos devotos indianos de Sai Baba “para que os praticantes
entendimento amplo, que beneficie não apenas as religiões, mas de seus ensinamentos pudessem realizar um trabalho de
que leve à correção dos descaminhos existentes na política e na forma organizada”, sob sua orientação. Já em maio de 1968,
economia global. foi realizada a 1ª Conferência Mundial, reunindo adeptos
da organização de toda a Índia e de outros países. O rápido
O movimento pelo Ethos Mundial apresentou essa proposta
crescimento da organização fora da Índia (hoje são calculados
– por meio do teólogo Hans Küng (um dos líderes do movimento)
em 100 milhões de pessoas em todo o mundo espalhadas por
– diante do plenário das Nações Unidas em novembro de 2001.
135 países) foi motivado pelo desejo de os devotos não indianos
Nessa apresentação, Küng resumiu e reforçou as teses contidas
propagarem o conhecimento dos ensinamentos de Sai Baba e
na Declaração:
de poder, em seus próprios países, encontrar um espaço para
Não haverá paz entre as nações sem paz entre as compartilhar experiências e praticar suas propostas para o
religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo
entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões desenvolvimento espiritual.
sem padrões éticos globais. Não haverá sobrevivência na
Nas palavras do próprio Sai Baba, a razão essencial para a
Terra com paz e justiça sem que surja um novo paradigma
nas relações internacionais, baseado em padrões éticos existência da organização é a prática do amor a todos, vendo-os
(KÜNG, 2005, p. 9). como parte de uma única realidade:
O principal objetivo da Organização Sathya Sai – que
A segunda proposta de participação efetiva da religião na vocês devem ter sempre presente – é ajudar o homem a
sociedade global é a conduzida pelo Mestre espiritual indiano reconhecer a Divindade inerente nele. Assim, é seu dever
304 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 305
enfatizar o Uno, experimentar o Uno em tudo que façam textos sagrados do Hinduísmo, Krishna estabelece uma nova
ou digam. Não deem nenhuma importância às diferenças
forma ou caminho para o ser humano alcançar a libertação: o
de religião ou seita, cor ou nível social. Tenham o sentido
da Unidade permeando cada um de seus atos (SAI indivíduo não deve renunciar a sua situação histórica no intuito
BABA, 1985). de libertar-se (viver apenas meditando em lugares isolados),
ao contrário, deve valorizar essa ação como meio válido para
Visando essa meta, a Organização Sai passou a oferecer realizar a plenitude do Ser, mas sempre tendo em mente a
oportunidades de prática espiritual por meio de atividades noção do grande tempo ou eternidade, diante do qual todas as
de devoção (encontros semanais de estudo, oração e cânticos ações históricas são ilusórias, quando vividas como um fim em
devocionais), educação (pela dedicação ao programa educacional si mesmas (ELIADE, 1991, p.66). Nesse caso, o ideal do homem
denominado Educação em Valores Humanos) e serviço religioso é transformar todas as suas ações históricas em um
(acampamentos médicos e outros trabalhos de assistência aos ritual ou sacrifício (ELIADE, 1998, p.374), devotados ao bem da
necessitados). O trabalho espiritual, focado nesses três tipos de humanidade e não à sua própria satisfação.
atividade, objetiva levar o praticante a transformar a si próprio,
O indivíduo não deveria se preocupar somente com
e, pelo amor colocado em cada um de seus atos, transformar seu próprio bem-estar, carreira e prosperidade. Não foi
também a sociedade. para o desfrute de posses e de confortos pessoais que o
homem veio ao mundo. Ele tem um objetivo maior para
Fundada nos conceitos monistas característicos do alcançar, algo mais permanente e duradouro. Essa meta
Hinduísmo, as práticas devocionais (cantos, mantras e estudo é a realização da unidade com o Divino, e apenas ela
de textos sagrados) têm por objetivo, no caso específico da pode conferir a Bem-aventurança duradoura. Mesmo
quando envolvidos nas atividades do mundo secular,
Organização Sai, levar o devoto a adquirir uma consciência nós devemos nos esforçar para santificar todas as ações,
cada vez mais profunda de sua unidade com Deus e com tudo oferecendo-as ao Divino (SAI BABA, 1985).
que o cerca (pessoas, objetos, lugares, atividades). A partir
dessa consciência, toda ação do devoto deve ser transformada Práticas devocionais, pedagógicas ou voltadas para a
em uma oferenda a Deus, pela certeza de sua onipresença. Em prestação voluntária de serviços à comunidade são comuns a
consonância com essa devoção, o devoto deve se dispor a servir muitas das tradições cristãs e constituem um núcleo importante
sempre, em todos os momentos, procurando o bem comum de expressão da fé, da religiosidade e do compromisso que
em todas as suas atividades cotidianas e realizando serviços o fiel mantém com sua igreja. De diferentes formas e com
voluntários à comunidade (em especial aos mais carentes), graus variados de importância, tanto católicos, como espíritas,
como forma de exercício devocional – o “amor em ação”, como protestantes e evangélicos valorizam essas práticas dentro de
define Sai Baba. suas respectivas concepções de vida religiosa. Na perspectiva
Essa forma de devoção está presente em uma das correntes proposta por Sai Baba, no entanto, essas práticas adquirem um
do pensamento hinduísta, a que é denominada como Bakti caráter místico, no sentido de que devem conduzir o devoto à
Marga ou Caminho da Devoção. No Bhagavad Gita, um dos consciência da unidade essencial de todas as coisas e à aniquilação
306 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 307
da noção do ego como entidade separada, que atua somente no objetivos de comunicar a perspectiva de uma possível harmonia
intuito da autossatisfação. global e atrair todos os que se sensibilizam por essa possibilidade,
estimulando-os a já começar o esforço para construir essa
No plano educacional, a perspectiva da proposta de Sai
realidade, vivendo o amor e a experiência da unidade nas suas
Baba objetiva a formação do caráter em cada ser humano e sua
próprias vidas cotidianas.
capacitação para essa atitude de devoção e serviço. O enfoque
na “Educação em Valores Humanos”, embora não constitua uma
novidade enquanto filosofia educacional, é proposto agora não
Considerações Finais
como uma possibilidade meramente racional, mas acima de tudo
pela necessidade de transformação espiritual. Essa transformação,
contudo, não visa a defesa de princípios religiosos e espirituais A renovada busca de sentido que move o homem ocidental
específicos de uma religião, mas aqueles que são universalmente leva-o a questionar a lógica racionalista que reduz ou elimina o
reconhecidos – existentes em todas as grandes religiões, em valor dos bens internos ou virtudes, e impõe o culto aos bens
que pese as interpretações que estimulam a intolerância – como externos, voltados para a satisfação dos desejos e necessidades
capazes de trazer paz à humanidade. meramente materiais. Essa insatisfação com a lógica do sistema
capitalista favorece uma busca espiritual que restitua o significado
Segundo essa proposta, os cinco valores humanos essenciais
da existência e o valor da virtude como um bem a ser cultivado
são: Verdade; Retidão; Paz; Não Violência e Amor. Nas palavras
(COLEMAN, 1987).
de Sai Baba, a educação voltada para a aquisição da consciência
sobre os valores humanos deve conduzir ao seguinte resultado: A constatação desse fato, aliada ao conteúdo das análises
Quando os pensamentos emanarem de uma mente
e propostas que apresentamos nesse texto, nos coloca diante da
purificada pelo amor, eles resultarão em retidão. possibilidade concreta de que uma linguagem religiosa de alcance
Quando o amor se torna parte de sua experiência, de seu global possa ser estabelecida.
pensamento e de sua ação, você consegue a paz. Quando
você compreende o amor claramente, isso resultará Os dados que levantamos nos fazem pensar se o atual
automaticamente em não violência. Então, o amor é a momento da história, no qual se constrói a chamada civilização
invisível corrente subterrânea, unindo a todos os quatro global, não implica também a percepção da unidade da
valores humanos. Ele pode ser resumido assim: Amor no
pensamento é Verdade; Amor como sentimento é Paz; humanidade e a superação das divisões destrutivas, especialmente
Amor na ação é Retidão; Amor com compreensão é Não- as religiosas, que ajudam a sustentar as divisões, injustiças e
violência. O amor é o denominador comum para todos violências.
esses valores (SAI BABA, 1985).
Na constituição de uma consciência planetária, as
As práticas de devoção, educação e serviço, conforme identidades culturais e religiosas não se podem sobrepor à
abordamos acima, constituem o núcleo central da proposta de Sai identidade humana, isto é, de todos os seres humanos como um
Baba e da atuação da Organização Sai, e elas se direcionam aos todo integrado. Nesse sentido, o atual processo de globalização
308 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural André Luiz Caes 309
é o período da história no qual a consciência da unidade – mas Referências
mantendo-se e valorizando-se toda a diversidade existente – pode
vir a fundamentar a busca do homem pela realização de sua maior
utopia: a construção de uma sociedade justa e fraterna.
AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo
Assim, vale a pena considerar as palavras de Sai Baba: na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000.
Ao invés de compreender sua divindade inata, o homem
BRAND ÃO, Carlos Rodrigues. A crise das instituições tradicionais
está preso na cadeia das suas próprias realizações materiais.
Maior que todo o seu progresso científico e tecnológico
produtoras de sentido. In: MOREIRA, Alberto e ZICMANN, Renée
é o próprio homem, como ser dotado com a consciência (Org.). Misticismo e novas religiões. Petrópolis: Vozes; Bragança
divina. Escolhendo considerar apenas o mundo material Paulista: IFAN/USF, 1994.
como real, pode ser possível gerar a prosperidade de
COLEMAN, John. Valores e virtudes nas modernas sociedades
uma sociedade científica, tecnológica e materialista por
algum tempo. Mas se no processo, o egoísmo, a cobiça avançadas. In: Concilium 211, 1987/3, p. 10 [298] a 2 [310].
e o ódio humanos se desenvolverem, como geralmente ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico
fazem, a sociedade destruirá a si mesma. Se, ao contrário,
religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
a divindade essencial do homem for apreendida, a
humanidade poderá construir uma grande sociedade ______. Tratado de história das religiões. 2. ed. São Paulo: Martins
baseada na unidade e na adesão ao divino princípio do Fontes, 1998.
Amor. Essa mudança profunda deve começar na mente
dos indivíduos (SAI BABA, 1983). FEATHERSTONE, Mike. A globalização da complexidade: pós-
modernismo e cultura de consumo. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, n. 32, p. 105-124, out.1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio
de Janeiro: DP&A, 2006.
KNITTER, Paul. A Teologia Católica das religiões numa encruzilhada.
Concilium 203, 1986/1, p. 105-114.
KÜNG, Hans. Para que um ethos mundial? Religião e ética em tempos
de globalização. São Paulo: Loyola, 2005.
MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre
secularização e dessecularização. São Paulo: Paulinas, 1995.
PACE, Enzo. Religião e globalização. In: ORO, Ari Pedro e STEIL,
Carlos Alberto (Org.). Globalização e religião. 2. ed. Petrópolis: Vozes;
Porto Alegre: UFRGS, 1997. p. 25-42.
310 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
PRANDI, Reginaldo. A religião do planeta global. In: ORO, Ari Pedro e
STEIL, Carlos Alberto (Org.). Globalização e religião. 2. ed. Petrópolis:
Devoção negra nas irmandades
Vozes; Porto Alegre: UFRGS, 1997. p. 63 a 70. católicas no Piauí do século XIX*
SAI BABA. Discursos. Site oficial da Organização Sri Sathya Sai no Ariane dos Santos Lima**
Brasil. Disponível em: <www.sathyasai.org.br>.
A colonização portuguesa, com a presença do elemento
indígena e africano, legou ao Brasil um arraigado e diverso
catolicismo, construindo no país um espaço de rica e plural
mistura de raças, crenças e valores.
Segundo dados do último censo do IBGE,1 o Piauí é o maior
Estado católico do Brasil, marcado por inúmeras manifestações
religiosas. Ao longo de séculos, o catolicismo português se
desdobrou em uma peculiar religiosidade no território brasileiro
e no Piauí em particular.
Comungamos com a perspectiva de um Piauí marcado
desde a sua colonização por uma forte religiosidade, lugar
historicamente concebido enquanto espaço de tradição religiosa.
O que objetivamos neste texto é apresentar, a partir de pesquisa
histórica e etnográfica, um Piauí marcado por um sentimento
religioso, em especial pela devoção negra.
* Este artigo resulta de pesquisa desenvolvida a partir do projeto: HISTÓRIA
E PATRIMÔNIO: santos, devotos e ritos na tradição brasileira, Programa de
Iniciação Científica – ICV 2009/2010 sob orientação da Profa. Dra. Áurea da Paz
Pinheiro
** Membro do Grupo de Pesquisa/CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio
Cultural”.
1
Fonte do Instituto Brasileiro Geografia Estatísticas - IBGE. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br>.
312 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 313
Estudar as manifestações religiosas piauienses, o que inclui matéria-prima as sensibilidades, é aquele capaz de transitar por
peregrinações, celebrações, procissões, pode ser interessante para métodos que conseguem “decifrar” os mistérios encobertos pelas
que se possa compreender o papel que os espaços de devoção e sutilezas das subjetividades humanas e assim alçar os sentimentos.
ritualização da fé exercem na sociedade, bem como a oportunidade O mundo da experiência sensível deve ser buscado a partir dos
de construirmos uma reflexão presente-passado, ao identificarmos indícios identificados para além dos estereótipos apresentados
o que permanece e o que se rompe nas manifestações religiosas à primeira vista pelas fontes (GINZBURG, 1990). Ao buscar a
no Piauí. Olhar para o sentimento religioso seria, portanto, experiência sensível e os sentimentos devocionais, precisamos
perceber identidades aflorando por meio de ritos, signos, sentidos refletir sobre o que entendemos por religião e, sobretudo, por
e significados religiosos atribuídos por populações ligadas à fé e à religiosidade.
devoção católicas tradicionais.
O antropólogo Clifford Geertz nos ajuda a pensar a
A manifestação do sentimento religioso se dá pela esse respeito quando nos mostra o seu entendimento sobre a
exteriorização de ritos devocionais presentes no dia-a-dia do religião:
devoto, de seus cultos privados nos ornamentados altares [...] um sistema de símbolos que atua para estabelecer
domésticos, nas missas, nas procissões, nos enterramentos e nas poderosas, penetrantes e duradouras disposições e
peregrinações do calendário devocional. Cada um exercendo motivações nos homens através da formulação de
importante papel para continuidades de práticas devocionais conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo
essas concepções com tal aura de fatualidade que as
tradicionais. disposições e motivações parecem singularmente realistas
(1978, p. 104-105).
Essas permanências provavelmente tenham se tornado
possíveis pela soma de alguns fatores, como a natureza específica É a partir da sensibilidade do olhar antropológico que
das sensibilidades religiosas nas quais as atitudes e posturas esta pesquisa procura identificar como funciona o “sistema de
religiosas se modificam de forma lenta, pelos enfrentamentos, símbolos” e de que forma este se forja tornando-se “singularmente
disputas e negociações diante das regulamentações do Estado realista” para os sujeitos sociais.
[códigos e leis] da Igreja Católica, magistralmente articuladas
pela política ultramontana, pelas sensibilidades dos devotos. No que se refere à religiosidade, podemos entendê-la a
partir de uma antropologia do sagrado, formulada por Alphonse
No entanto, como examinar as sensibilidades religiosas? É Dupront (1976, p. 86) para quem “[...] um impulso religioso, e
possível contabilizar os sentimentos? Como alcançar a devoção, sempre, seja busca ou consciência elementar do sagrado, coloca
a dimensão de fé e crenças subjetivas nos sujeitos históricos? um universo ou uma maneira religiosa de aproximação da
Compartilhamos da percepção que o historiador deve trabalhar existência e das coisas.”
com as ferramentas capazes de interpor diante das necessidades
específicas do seu objeto, forjando um grau de compreensão maior? Esse impulso, que preferimos chamar de sentimento
Ou seja, o artesão da história, e em especial aquele que tem como religioso, manifesta formas singulares de estar cada vez mais
314 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 315
próximo do sagrado, constituindo “maneiras” – conjuntos de as questões sobre uma religião é ‘boa’ ou ‘má’, ‘funcional’
ou ‘disfuncional’, ‘reforçadora do ego’ ou ‘produtora de
gestos, ações, pensamentos e sentimentos que singularizam
ansiedade’ desaparecem como as quimeras que são, e se
a relação com o sagrado, conjunto esse que seria, portanto, a fica com valorizações, avaliações e diagnoses particulares
religiosidade. Essas “maneiras” de experienciar o sagrado acabam em casos particulares. Permanecem, sem dúvida, as
por constituir grupos que [re] constroem suas identidades a questões pouco importantes - se é verdadeira esta ou aquela
afirmativa religiosa, ou se são possíveis afirmações religiosas
partir do encontro e do confronto das “maneiras” vivenciadas na
verdadeiras ou experiências religiosas genuínas. Todavia,
experiência coletiva. tais questões não podem sequer ser formuladas, quanto
mais respondidas, dentro das limitações autoimpostas pela
A manifestação de religiosidade possui uma dimensão perspectiva científica (p. 140)
individual, todavia ela se estrutura e se ressignifica na coletividade.
Assim, o sistema simbólico presente na experiência religiosa não Considerando o alerta do antropólogo, empreenderemos
pode ser significado a partir de um único indivíduo nem apenas nossas reflexões e análises, reconhecendo o comprometimento
rastreando a natureza sagrada. O sistema simbólico pode ser da prática científica e as especificidades do trato com a religião,
codificado se os grupos sociais estão inseridos no seu universo em especial, quando se fala de religiosidade e de sentimentos
social como um todo e não apenas na dimensão religiosa. religiosos perpetuados por gerações e gerações.
Segundo Geertz (1978, p.142), existem dois momentos no É certo, portanto, que não podemos contabilizar os
estudo antropológico da religião: o primeiro é o de análise dos sentimentos, mas é possível buscar as sensibilidades religiosas, na
significados, incorporados nos símbolos; o segundo é a relação medida em que identificamos as práticas e como essas práticas
desses sistemas que formam a religião propriamente dita com significam as identidades e constroem sistemas simbólicos que
processos socioestruturantes e psicológicos. Assim, o estudo da revelam as atitudes diante do sagrado. Logo, podemos entender
religião pediria a identificação dos símbolos e seus significados e que os objetos simbólicos revelam as maneiras de sentir e pensar
de que forma esses se relacionam com a sociedade. a relação com o sagrado, as atitudes devocionais, e assim alçar
A proposta de empreender uma antropologia do sagrado estaria o mundo da experiência sensível. Com base nesse sentimento
na identificação e codificação do universo simbólico, impressos nas religioso, pretendemos alcançar os sentidos expressos nas
“maneiras”, na religiosidade dos sujeitos devidamente localizados confrarias de negros, escravos ou libertos no Piauí a partir da
nas suas teias de relações sociais, econômicas, culturais e de poder. segunda metade do século XIX.
Todavia, Geertz (1978) alerta para os problemas metodológicos
no que se refere aos estudos de religião:
[...] é deixar de lado, ao mesmo tempo, o tom de ateu da
A Presença Escrava no Piauí
aldeia e do pregador da mesma aldeia, bem como seus
equivalentes mais sofisticados, de forma que as implicações
sociais e psicológicas de crenças religiosas particulares possam Nos limites deste texto, nos interessa a presença negra
emergir a uma luz clara e neutra. Quando isso é feito, todas no espaço urbano no Piauí. Imprimir as marcas do urbano
316 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 317
no Piauí do século XIX é uma tarefa difícil, devido à tênue nos espaços urbanos. Os dois trabalhos apresentam as vivências
linha que diferencia o espaço rural do urbano. No entanto, a negras no espaço urbano, destacando que a população escrava,
caracterização, mesmo submetida aos limites circunstanciais de um contingente enorme, dispunha de um cotidiano marcado
das províncias, se faz necessária para que compreendamos as por tensas relações, mas também por momentos de diversão,
relações sociais estabelecidas pelos trabalhadores escravizados, e descontração e autonomia.
assim entendermos sua inserção nos espaços religiosos, já que as
Essa “autonomia” da população escrava diante de
irmandades se desenvolveram em sua grande maioria nos espaços
manifestações culturais pode levar a inferir também sobre o
urbanos.
quadro de atuação dos negros, além de suas formas de resistência
Na historiografia da escravidão no Piauí, trabalhos como citadas por Costa (2009) e dos batuques destacados por Silva
Escravos do Sertão: demografia, trabalho e relações sociais de Miridan (2008); as irmandades negras, senão o ideal e mais atuante,
Falci (1995); Braço Forte: Trabalho escravo nas fazendas da nação no possuíam um espaço de autonomia da escravaria. Nesse sentido,
Piauí (1822-1871) de Solimar Lima (2005) e O escravo na formação a presença escrava no espaço urbano será aqui privilegiada no
social do Piauí de Tânya Brandão (1999) tematizam a atividade que se refere à participação desses grupos nas confrarias.
pecuária nas fazendas, destacando, em perspectivas distintas, o
sistema escravista e o trabalho escravo. Nas terras piauienses,
os trabalhadores escravizados desempenhavam as tarefas de Irmandades, Confrarias e Agremiações
vaquejar o gado, principal atividade da província; outros as
atividades domésticas, e ainda acompanhavam viajantes botânicos
ou colonizadores. O ponto de tensão entre os trabalhos citados As confrarias eram instituições formadas por grupos
está na forma distinta pela qual os pesquisadores entendem as de católicos que se reuniam para promover devoção ao santo
condições de trabalho nas fazendas públicas e privadas. Falci e padroeiro – o orago. Surgidas na Idade Média, as irmandades
Brandão estabelecem uma leitura do trabalho escravo enquanto derivam das corporações de ofícios. “[...] seguiam o modelo das
“escravidão branda”, principalmente nas fazendas públicas; guildas de marcadores e artesãos e se agrupavam para praticar
Lima (2005), ao contrário, não acredita em escravidão amena, ajuda mútua e garantir os funerais dos defuntos, expressando a
e destaca que não havia diferenciações nas condições entre solidariedade entre os membros desde sua admissão” (TAVARES,
fazendas públicas e privadas. Os pesquisadores não exploraram 2008, p. 144). Neste texto, nos referimos a confrarias, irmandades
as características do sistema escravista, no que tange às vivências e agremiações em um mesmo sentido, entendendo como grupos
cotidianas, principalmente no que se refere às relações sociais de de leigos que se reuniam em devoção ao santo padroeiro da
natureza religiosa e de lazer. comunidade e que organizavam atividades de ajuda mútua,
enterramentos e festividades religiosas.
Trabalhos mais recentes realizados pelos pesquisadores
Mairton Celestino Silva (2008) e Raquel Araújo Costa (2009), As irmandades organizaram-se de forma autônoma em
em grande medida, exemplificam as implicações escravistas relação ao Clero; desse modo, tornaram-se fundamentais para a
318 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 319
propagação da fé católica no Brasil Colônia, já que era reduzido Na sociedade colonial foi permitido aos escravos fundarem
o número de clérigos para as dimensões territoriais da Colônia. suas próprias confrarias. Por conseguinte, existiam as confrarias
No Piauí, a ausência de um bispado permitiu a existência de dos “homens brancos”, dos “pardos” e dos “pretos”, o que
um terreno perfeito para ação e fortalecimento dos leigos evidencia uma reprodução da estratificação social da sociedade
(PINHEIRO, 2001). colonial que se perpetua até fins do Império brasileiro.
O que se destacava nas confrarias eram o aspecto devocional A proliferação das confrarias está associada ao
e o caráter leigo. Essas agremiações, em geral, possuíam estrutura Concílio de Trento (1545 -1563), momento em que a Igreja Católica
organizacional em torno de estatuto que previa suas atribuições e defendeu o poder dos santos intercessores, diferentemente do que
compromissos. Dentre as mais comuns à promoção de “eventos” a recém-doutrina protestante prescrevia. Em resposta ao avanço
em homenagem ao santo de devoção, procissões, novenários, do protestantismo, a Reforma Católica (1543) valorizou a ação
festejos; assistência aos irmãos e organização de cortejos e ritos do Clero e os sacrametos em detrimento de os ritos dos leigos,
fúnebres (TAVARES, 2008, p.119). objetivando, assim, fugir dos ataques protestantes e disciplinar o
O que definia, portanto, as normas e atividades da culto católico.
associação, ou seja, os direitos e deveres de seus membros eram Deste modo, encontramos uma conjuntura dúbia para
os estatutos mais conhecidos como compromissos, que deveriam os ritos católicos; ou seja, se por um lado o reconhecimento
ser aprovados por Lei. A irmandade tinha autonomia para dos atos devocionais aos santos fortalece a devoção leiga e
administrar seus bens, que consistiam na arrecadação junto ajuda à proliferação das mais diversas devoções, por outro
aos seus associados de joias e esmolas. A principal atividade era existe, por parte da instituição eclesiástica, uma valorização da
manter o culto ao orago, a organização do culto e o cuidado com ação sacerdotal, o que ia de encontro a supremacia leiga nas
capela. Na ausência de capela própria, as irmandades se reuniam irmandades (SOARES, 2000).
em outros espaços, como altares laterais de outras confrarias, até No século XIX, com os ideais racionalistas e positivistas
angariar recursos para a construção da capela própria. Como é o ameaçando ainda mais a supremacia da Igreja Católica, as relações
caso da Confraria de São Benedito em Teresina, que ocupava o entre as irmandades e o Clero, este já informado pelas prescrições
altar lateral da Igreja Nossa Senhora das Dores. do modelo tridentino, do ultramontanismo, resultaram em
Essas agremiações agiam para além da prática religiosa; intensas disputas por poder.
seus membros criaram sociabilidades, laços de solidariedade e No Brasil Colônia, devido ao regime de padroado, a
ajuda mútua, como podemos evidenciar, através de bibliografia e autoridade romana pouco influenciou a Igreja colonial. O rei
de documentação consultada. As agremiações estavam presentes possuía plenos poderes sobre o Clero e o ordenamento dos
nos rituais de sepultamentos dos membros das confrarias, nas templos religiosos. A Coroa portuguesa se mostrou conivente com
missas e orações pelas almas dos falecidos, na assistência aos a ação dos grupos de leigos, o que em grande medida beneficiou
órfãos e viúvas e nas pomposas festas dedicadas ao orago. o domínio português: “caracterizava-se por uma grande
320 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 321
participação dos leigos, que realizavam cerimônias religiosas em esteve associada somente à identificação com a cor da pele, o que
suas casas, nas capelas e igrejas por eles construídas” (SOARES, podemos evidenciar pela popularidade de Nossa Senhora do
2000, p. 133). Uma fé católica marcadamente manifesta por meio Rosário que não era uma santa de pele negra.
de grandes celebrações, festejos a santos, novenários e procissões,
As origens do culto negro a Nossa Senhora do Rosário estão
em que os leigos eram os agentes de manifestações do catolicismo,
associadas a uma série de versões mais ligadas a lendas do que
marcas de um Brasil colonial devoto que o século XIX herdou,
efetivamente a evidências históricas. A devoção a Nossa senhora
não obstante o processo de secularização dos ritos católicos
do Rosário antecede à expansão marítima nas Américas e na
(ABREU, 2000).
Costa da África. Santa de devoção branca inicialmente, mas entre
As práticas religiosas das populações não estavam de os séculos XV e XVI os negros levados a Portugal já cultuavam
acordo com a ortodoxia católica, o que resultou em um peculiar Nossa Senhora do Rosário. O culto ao Rosário em Portugal só
catolicismo, no qual as marcas do profano e do sagrado se se tornou popular na Batalha de Lepanto, em que os mouros
misturam à doutrina cristã europeia e às manifestações religiosas foram vencidos pelos cristãos, com vitória atribuída à intercessão
da cultura negra e até mesmo indígena. de Nossa Senhora ao Rosário.
Santos de Preto Não podemos localizar precisamente como o Rosário
conquista a devoção negra. Existe uma série de contos e lendas,
Os santos cultuados pelos negros nas Américas eram Santa
versões de um imaginário construído em torno das motivações
Efigênia, São Elesbão, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário
negras para o reconhecimento da maior santa católica dos
(OLIVEIRA, 2008). No Piauí, evidencia-se o culto a São Benedito
pretos.
e a Nossa Senhora do Rosário nas principais localidades da
província [Teresina, Parnaíba e Oeiras]. Conta-se que em um local da costa africana, a imagem da
Nossa Senhora do Rosário teria aparecido nas águas do
A hagiografia desses santos, escolhidos pela população mar. Os homens brancos teriam ficado impressionados
e feito homenagens para vê-la sair das águas, mas não
escravizada, sinaliza uma série de elementos que ajudam a obtiveram nenhum sucesso. Foi quando então, pediram
compreender sua simpatia por eles, católicos em especial. Os ajuda aos negros, que ao tocarem e dançarem comoveram
elementos marcantes estariam por eles terem sido irmãos de cor a santa, que veio para a praia. Outra lenda conta que um
e/ou mártires em defesa dos negros. negro cativo, ao vagar seu olhar para as águas do mar
e triste com sua condição de escravo, começou a rezar
No Brasil, a devoção a santos de pretos era feita a Nossa em louvor à santa e teve as suas lágrimas transformadas
em sementes, que serviram para confeccionar rosários da
Senhora do Rosário, ao lado de São Benedito, Santa Efigênia, Nossa Senhora (RAMOS, 2007, p.158).
Santo Antônio de Cartegerona, santos que ganharam grande
projeção ainda no século XVI e XVII nas principais nas cidades Essa versão apresentada por Arthur Ramos está associada à
de Salvador, Minas Gerais e no Rio de Janeiro; grandes polos tese da ação sincrética da religiosidade católica negra, assimilação
urbanos da América portuguesa. Portanto, a devoção negra não do catolicismo, estaria então vinculada à semelhança, em alguns
322 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 323
aspectos, das crenças africanas. Algumas pesquisas apontam As Confrarias de Negros
somente para uma estratégia da ação catequética. Os missionários
teriam empreendido uma acentuada evangelização em território
africano. Conta-se que os religiosos estabeleciam ligações Os negros escravizados tiveram a “permissão” para criar
sincréticas com Nossa Senhora do Rosário e o Orixá “IFá”, uma suas confrarias, mas conservando a estratificação social da
espécie de oráculo na mitologia africana, que possuía um colar sociedade escravocrata. As irmandades eram compostas por
de sementes que se assemelhava ao rosário de Nossa Senhora. negros: escravos africanos e crioulos ou livres.
Classificados como “bárbaros” e “incivilizados”, os europeus
católicos dispensavam duas opiniões sobre os africanos: Por um Martha Abreu (2000) entende o exercício da religiosidade
lado, os negros seriam inclinados à bebida e ao desfrute, não tradicional como manutenção de uma prática social, ou seja, a
dispunham de espírito para professar a fé católica; por outro, manifestação da fé reafirma os laços entre os indivíduos, fundando
principalmente os missionários, entre outros, acreditavam que espaços de convivências e trocas. As marcas da manifestação da fé
apenas precisavam que se lhes fosse revelada a verdadeira fé. não serviam somente para o exercício da religião católica, os ritos
do devocionismo prescreviam o modo de ser das populações, não
Ao chegarem a Portugal, os negros cativos já convertidos se restringia ao religioso, mas inventavam o social.
fundaram associações religiosas, onde se organizavam para além
do cunho religioso, mas para atuação política. A Coroa aceitava As implicações do religioso nas relações sociais podem
o modelo de catolicismo dos cativos como forma possível de ser exemplificadas de forma clara nas Irmandades de devoção
conquistar benefícios que a escravização negra traria para o negra. Os escravos compartilhavam ritos, costumes e crenças
reino; por sua vez, os negros, na tentativa de manter, através do que se recriavam em um universo simbólico peculiar. Os espaços
hibridismo cultural, seus cultos acabaram por recriar um novo das irmandades funcionavam como lugar de afirmação e [re]
universo religioso pautado marcadamente por diálogos entre as criação de uma identidade cultural negra. As festas e batuques
tradições, já multiculturais, portuguesas e africanas. em homenagem aos santos católicos evocavam sobremaneira as
matrizes dos ritos africanos, o que evidencia uma forma de resistir
As irmandades de pretos eram constituídas à violência do cativeiro e reduzir a distância da terra natal.
principalmente por escravos e mulatos. Os soberanos negros
cativos, sob o domínio europeu, passaram a ser eleitos nessas Era também recorrente nos compromissos das agremiações
agremiações como reis e rainhas, um importante elemento negras a previsão de arrecadação de recursos para libertar um
de rememoração aos reinados de sua terra natal. Esse irmão cativo. A exemplo do que prescrevia o compromisso
comportamento de eleger reis e rainhas foi transmitido por aprovado no ano de 1863, através da resolução de n. 387 da
séculos nas confrarias. Podemos evidenciar nos dias atuais a Irmandade do Glorioso São Benedito de Teresina, no seu artigo
presença desses personagens nas manifestações folclórico- primeiro no item 3:
religiosas, a exemplo da dança dos Congos da Oeiras histórica, Libertar anualmente, e quando as circunstâncias
primeira capital do Piauí (PINHEIRO; MOURA, 2009). permitiram, um irmão cativo, designado pela sorte, que
324 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 325
se tirará no dia da festa de uma urna onde estarão os cerimônia religiosa, cultuavam seus orixás e as realezas africanas
nomes de todos, por menor e com a maior publicidade
através de batuques e danças. Nas festividades que incluíam a
possível.2
sociedade de forma geral não só a comunidade negra valorizava
as tradições africanas, as sociabilidades nesses espaços permitiam,
A liberdade concedida ao irmão cativo pode ser lida como também, a maior expressão do hibridismo cultural (BURKE,
uma forma de a religião intervir na ordem social, ou seja, contra 2003) gestada no Brasil colonial.
a ordem escravocrata. Desse dispositivo presente nas confrarias,
De um número de trinta e uma confrarias, com seus
podemos entender os espaços das irmandades enquanto
estatutos aprovados entre os anos de 1843 a 1875 no Piauí, cinco
movimento negro? Entendendo o movimento negro a partir do
delas eram de devoção negra: Irmandade de São Benedito da
que propõe a antropóloga Taynar de Cássia:
Parnaíba [1859], Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da
No Brasil, entendemos por movimentos negros as várias Parnaíba [1859], Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de
formas de reação organizada por parte dos negros, em
face de uma ordem estabelecida racista. Os movimentos Oeiras [1859], Irmandade de São Benedito de Oeiras [1859] e a
negros brasileiros surgiram, portanto, numa estrutura Irmandade de São Benedito de Teresina [1865].
social escravista que subordinou como ser inferior uma
parcela da população frente ao poder branco. Durante Na cidade de Teresina, a Irmandade em devoção ao
a escravidão, os quilombos, o movimento revolucionário glorioso São Benedito era essencialmente associação de cativos
dos malês, as irmandades e outras expressões negras, sob a denominação de irmão, categoria de maior status em
enquanto formações sociais alternativas, representaram
detrimento de irmão devoto, que seriam os homens livres que
frações dos movimentos negros (2001, p. 165-166).
desejassem participar da agremiação. “[...] Reunião de escravos
No que se refere à permanência de elementos culturais com consentimento de seus senhores, ditos propriamente –
africanos e, principalmente na compra de alforias, essa atuação irmãos – e de pessoas livres sob o titulo de irmãos devotos [...]”.3
das irmandades pode ser lida como um valioso contraponto na A principal atribuição dessa irmandade consistia nos
História do Brasil, principalmente em ajuda às correntes favoráveis seguintes compromissos:
à libertação dos escravos e pela continuidade dos valores culturais
10 Honrar e festejar todos os anos ao glorioso Santo no
dos africanos. dia 6 de janeiro com as jóias que deram os mesários e
juízes para isso eleitos;
A vivência nas confrarias permitiu aos negros uma certa
20 Inaugurar uma capela ao seu glorioso patrono,
aproximação aos cultos africanos. Se dentro das igrejas os negros conforme for sendo compatível com suas forças;
assemelhava-se ao europeu católico, nas festividades, extensões da
2
LEI 587, publicada em 28 de agosto de 1863, que aprovou o compromisso da 3
LEI 587, publicada em 28 de agosto de 1863, que aprovou o compromisso da
Irmandade do Glorioso São Benedito da cidade de Teresina. Acervo do Arquivo Irmandade do Glorioso São Benedito da cidade de Teresina. Acervo do Arquivo
Público do Estado do Piauí. Público do Estado do Piauí.
326 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 327
30 Libertar anualmente, e quando as circunstâncias As celebrações dos grupos negros de descendentes de
permitirem, um irmão cativo, designado pela sorte,
comunidades de escravos, a exemplo do grupo Congos de Oeiras,
que se tirar no dia da festa de uma urna onde estarão
os nomes de todos, por um menor e com a maior devem-se à influência que muitos desses grupos organizados
publicidade possível.4 tiveram no passado, junto ao povo negro, sobretudo no que se
refere ao ideal de liberdade através da herança cultural. Entretanto,
A associação dos negros em Teresina, assim como as diversas as permanências negras organizadas não se constituíram algo
espalhadas pelo Brasil Império se reuniam para organizar a festa imutável. A multiplicidade dos elementos culturais africanos
em homenagem ao santo de devoção, construir uma capela e presentes no Brasil influenciou, sobremaneira, a composição
libertar um irmão cativo. Nesses termos, os escravos se inseriam dessas de hoje. É desse modo que percebemos o significado da
no imaginário cristão à busca da boa prática cristã no bem-morrer Irmandade do Rosário, em Oeiras, enquanto movimento social
(REIS, 1991). Apesar do cativeiro, teriam um enterramento da população no passado, que ainda ressoa na atualidade pelos
digno, bem como honrariam aos “santos de pretos” ao ritmo dos Congos de Oeiras.
batuques de uma matriz ancestral.
Que santo é aquele que vem no andor.
A escolha de reis e rainhas configurava-se uma estratégia É São Benedito com seu esplendor
Meu são Benedito conceda licença
de afirmação da realeza africana, e também, por ocasião da Dançar esse Congo na Vossa presença
solenidade, recolher um número maior de donativos. Uma Meu são Benedito é santo de preto
boa arrecadação garantia receitas suficientes para a assistência Que fala na boca e responde no peito
social [médica, jurídica e funeral] e recursos para a compra de Meu são Benedito é negro na cor
Mas é estimado no divino amor
alforrias. No Piauí, das confrarias de devoção negra, identificada Meu são Benedito fulô de aroeira
apenas uma, a de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Oeiras, Abençoai, meu Santo, o povo de Oeiras.
apresenta a escolha de reis e rainhas. Meu são Benedito eu queria saber
O dia e a hora que hei de morrer.6
Também haverá mesa no dia 21 do mesmo mês de
dezembro para se elegeram os novos oficiais, que
houveram de servir no ano seguinte, os quais serão Rei, Esses versos entoados na dança dos Congos de Oeiras
Rainha, dois juízes, um branco, e outro preto, duas juízas passam a ideia de um movimento de reafirmação de uma
uma branca e outra preta.5 valorização do povo negro “meu São Benedito é santo de preto,
mas é estimado no divino amor”.
4
LEI 587, publicada em 28 de agosto de 1863, que aprovou o compromisso da 6
Música entoada pelos Congos de Oeiras. Cf. PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia.
Irmandade do Glorioso São Benedito da cidade de Teresina. Acervo do Arquivo Celebrações. Teresina: Educar Artes e Ofícios, 2009. Livro produzido via edital
Público do Estado do Piauí. do Programa Monumenta/Iphan, do Ministério da Cultura, com financiamento
5
LEI 486, publicada em 13 de setembro de 1859, que aprovou o compromisso da do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e apoio técnico da Unesco
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Oeiras. Acervo do Arquivo Público no Brasil e documentário etnográfico Congos: ritmo e devoção, que faz parte do
do Estado do Piauí. mesmo projeto das pesquisadoras.
328 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 329
As irmandades de brancos tinham por principal atribuição às faixas menos favorecidas da população, que no contexto Brasil
organizar o rito católico na sua completude, administração dos Colônia e Império eram, essencialmente, os escravos e negros
sacramentos e assistência social. As confrarias de pretos tinham libertos, a assistência social nas Irmandades constituiu lugar
uma ação diferenciada quanto à manutenção de sua identidade importante para população negra.
cultural e ação de luta política.
A manifestação religiosa efetivou-se como importante
Ao coroar seus reis, os negros cativos festejavam, em veículo de transmissão de comportamentos e de modos de
comemorações, em louvor aos santos de pretos, repletas de danças vida. Ser católico e, principalmente, ser irmão-devoto imprimia
e batuques. A repressão não efetivou efeitos, já que a devoção uma ritualização à manifestação da fé que carregava as marcas
à Nossa Senhora do Rosário, com os elementos sincréticos, identitárias dos seus praticantes.
ultrapassou a linha do tempo e permanece na atualidade. O que
podemos destacar nessas confrarias é a íntima conexão com as No que se refere à devoção negra, nas confrarias, o que se
cerimônias de coroação dos reis negros. Aparecem então sob a evidencia é um diálogo cultural e não mera assimilação de um
forma de reprodução simbólica da história tribal, com a coroação modelo religioso católico pelos africanos e seus descendentes. O
dos reis de Congo, as trocas de embaixadas e a representação culto tem face católica, mas com elementos marcadamente de
das lutas em defesa a monarquias negras. Dos principais polos uma recriação da cultura africana.
urbanos, a tradição festiva africana disseminou-se por todo o
território brasileiro.
Rituais Fúnebres
Os soberanos reis e rainhas eram eleitos, acontecia a
cerimônia solene de coroação e posse no dia da festa de Nossa
Senhora do Rosário. O término do rito religioso assumia o lugar Dentre as atividades já citadas, desenvolvidadas pelas
da festividade com quermesses, danças e batuques em ritmo associações, podemos destacar o que viria a ser uma vantagem de
africano.
ser associado às confrarias, o privilégio de possuir um enterramento
Os laços de socialibilidades, oriundos dos espaços cristão; ou seja, associar-se a uma irmandade garantiria a “boa-
promovidos pelas irmandades, fundaram na Colônia e no Império morte” (REIS,1991), asseguraria o ritual que o ajudaria na hora
um inestimável auxílio à manutenção da ordem. Por outro lado, da morte. A crença concebia que as rezas do ritual fúnebre em
afirmaram meios de resistência nas freguesias e vilas em parte memória do irmão falecido preparava o caminho entre a Terra e
significativa do território brasileiro o que inclui o Piauí. o Além, amenizando assim as penalidades no juízo final.
Essas organizações eram atuantes com suas devoções, Os rituais fúnebres possuíam uma importância inegável no
cerimônias e obras sociais e podem ser reconhecidas pela imaginário do negro católico, já que esse era informado por duas
importância histórica de seu papel para além da devoção. Como matrizes culturais, a africana e a portuguesa-cristã, que valorizava
não havia formas de ação pública que garantissem assitência social em demasia os ritos diante da morte.
330 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 331
[...] Em ambos os lugares [Portugal e África] encontramos o meu corpo ganharam três mil reis cada um o meu
a ideia de que o indivíduo devia se preparar para a morte, enterro será feito sem pompa até o último jazigo,
arrumando bem a sua vida, cuidando de seus santos de pela maneira que passo a deliberar declaro que deixo
devoção ou fazendo sacrifícios a seus deuses ancestrais. para meu enterro a quantia de cem mil reis, não só
Tanto africanos como portugueses eram minuciosos aos carregadores do meu corpo, mas também para o
no cuidado com os mortos, banhando-os, cortando o mesmo enterro e missas, sendo uma no sétimo dia do
cabelo, a barba e as unhas, vestindo-os com as melhores meu falecimento, uma a Nossa Senhora das Dores, e
roupas ou com mortalhas ritualmente significativas. Em outra finalmente a Santa do meu nome o restante da
ambas as tradições aconteciam cerimônias de despedidas, mencionada quantia será dividida na porta da Igreja
vigílias durante as quais se comia e bebia, com a presença onde se encontrar o meu corpo com as pessoas mais
de sacerdotes, familiares e membros da comunidade. pobres que existiram nesta capital no dito sétimo dia
Tanto na áfrica como em Portugal, os vivos – e quanto do meu falecimento. A quantia de cem mil reis que
maior número destes – muito podiam fazer pelos acima falei se acha em um baú pequeno de flandre com
mortos, tornando sua passagem para além, mais segura a mortalha referida no quarto onde eu permaneço e
e definitiva, até alegre, e assim defendendo – de serem recomendo por mim a minha dita afilhada Anna filha
atormentados por almas penadas. Espíritos errantes de de minha irmã Ignes.7
mortos circulavam tanto em terras portuguesas como
africanas. Para se protegerem desse infeliz destino, Não identificamos se Anna Maria do Espírito Santo
portugueses e africanos produziam elaborados funerais,
o que os tornavam mais próximos uns dos outros do que,
pertencia à referida confraria de São Benedito; tudo indica que
por exemplo, os católicos dos protestantes, estes adeptos não, pois o testamento não faz nenhuma referência a seu vinculo
de funerais ritualmente econômicos (REIS, 1991, p. 90). com a agremiação.
As atitudes diante da morte assumiram, a partir da O sentimento religioso prescrevia a necessidade de o fiel
mescla entre o catolicismo português e as religiões africanas, ser acompanhado por uma irmandade ou mesmo, o que era
riqueza ritualística. A necessidade de ritos funerários adequados mais recorrente, pertencer à confraria que lhe daria regalias; o
é fundamental para a segurança dos mortos e dos vivos, pois associado teria a garantia de um enterro como pedia a tradição
o espaço entre a Terra e o Além seria preenchido por rituais e religiosa: a piedade cristã.
materializado pelos vivos (REIS, 1991). Os cortejos fúnebres eram acompanhados pelos irmãos.
Na sociedade em geral era comum deixar em testamentos O compromisso da Irmandade de São Benedito em Teresina
pré-requisitos ritualísticas pretendidos pelo falecido, tais como a dedicava três artigos para descrever as disposições no que se
cor da mortalha, a forma do cortejo, o número de missas. refere aos enterramentos:
[...] tenham de dar o meu corpo a sepultura, recomendo Art.33 A irmandade acompanhará até a sepultura os
que seja envolvido na mortalha que deixo, e no esquife irmãos que falecerem, seus ascendentes ou descendentes
do costume sendo somente acompanhado pelo Vigário
da segunda Freguesia a que pertenço ou a quem suas
vezes fizer, e pela Irmandade do Senhor São Benedito
7
Testamento de Anna Maria do Espírito do ano de 1868. Acervo do Arquivo
da qual quatro irmãos carregando o seu corpo, digo, Público do Estado do Piauí, Fundo do Poder Judiciário.
332 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 333
em linha reta; e aos irmãos indigentes fará o enterro, com Existia certa hierarquia no que diz respeito ao tipo de
o qual não poderá desprender mais de vinte mil reis.
procedimento a ser tomado pelos confrades, dependia do cargo
Art. 34 As pessoas que não forem irmãos podem ser ocupado no rito fúnebre que cada irmão teria: “Quando falecer
acompanhadas aos seus jazidos dando, quem nisto algum irmão se mandará dizer seis missas por sua alma, sendo
interessar, uma esmola de 8 mil reis para a despensas da
irmandade. irmão mezário oito; sendo juíz ou juíza doze, e todos os anos
se fará celebrar uma capela de missas pelas almas dos irmãos
Art. 37 Todos os anos do dia dois de novembro inclusive
em diante, e em dias intercalados, de três em três, se
falecidos”. Portanto, os cargos de maior importância dariam o
mandará dizer uma capela de missa pelos irmãos finados, direito a um número maior de missas.
e em intenção dos vivos.
As Festas Religiosas
A irmandade São Benedito da Cidade de Parnaíba
apresentava três capítulos de seus compromissos, descrevendo
desde os ornamentos a serem utilizados ao número de missas: As festas religiosas e as procissões eram momentos
Cap12. A Irmandade terá uma cruz com a sua manga privilegiados de convívio social, espaços onde as famílias
de cor conveniente para servir nas procissões e enterros, conviviam, nos quais os laços de sociabilidades eram firmados
uma vara para juiz; dará sepultura, e acompanhará para e as identidades de grupos se manifestavam e se recriavam.
ela aos irmãos falecidos, e seus filhos legítimos menores
de dez anos, e terá um esquife ou tumba para o enterro As procissões eram o ponto alto para os membros das
dos mesmos, o que terá lugar quando os ditos irmãos irmandades, as vestimentas, cores e estandartes identificavam
tiveram pago suas entradas, e anuais, ou deixarem de o cada associação.
fazer por suma pobreza.
A Festa de Nossa Senhora do Rosário em cada cidade
Cap. 13 Quando falecer alguma irmão se mandará dizer
seis missas por sua alma, sendo irmão mezário oito; sendo seguia os costumes da localidade. Por exemplo, em Parnaíba
Juíz ou Juíza doze, e todos os anos se fará celebrar uma se realizava no dia 27 de dezembro; em Oeiras em outubro.
capela de missas pelas almas dos irmãos falecidos . Compunha-se de duas partes: a litúrgica, de conteúdo católico,
Cap. 14 Os irmãos usarão de Opas e murço de cor de incluindo missas e outros ofícios religiosos ou reza do rosário de
burel e com elas assistirá as festas, e irão nas procissão e Nossa Senhora do Rosário; e os festejos pela subida do mastro, a
enterros, precedidos da cruz, que será levado pelo irmão realização de espetáculos dos reinados e suas guardas. Os festejos
da escola do Juiz.8
também eram espaços para o pagamento de promessas. Festar
da forma mais solene Nossa Senhora do Rosário significava a
gratidão pela graça alcançada.
8
LEI 466, publicada em 12 de junho de 1859, que aprovou o compromisso do
Glorioso São Bendito da cidade de Parnaíba. Acervo do Arquivo Público do Trata-se de um importante elemento na integração do negro
Estado do Piauí. à sociedade brasileira. Reunido em torno de uma devoção, o povo
334 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Ariane dos Santos Lima 335
negro procurou manter sua cultura e almejava uma valorização Referências
como ser humano dotado de conhecimentos e sentimentos.
O modo de vida de herança africana que os constituiu,
por entre muitas formas de repressão, conseguiu perpetuar-
ABREU, Marta. O império do divino: festas religiosas e cultura popular
se, mesmo ressignificado pelo fluir histórico, é testemunho da no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
expressividade do diálogo cultural existente nas Américas e,
BRANDÃO, Tânya. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva
principalmente, no Brasil. histórica do século XVIII. Teresina: EDUFPI,1999.
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unissinos, 2003.
Considerações Finais CÁSSIA, Taynar. O movimento negro de base religiosa: a Irmandade do
Rosário dos Pretos. CADERNO CRH, Salvador, n. 34, p. 165-179, jan./
jun. 2001.
Podemos afirmar que o sentimento religioso expresso nas COSTA, Francisca Raquel da. Escravidão e conflitos: cotidiano, resistência
e controle de escravos no Piauí na segunda metade do século XIX.
confrarias de devoção negra foi além da expressão de uma fé Dissertação (Mestrado). UFPI, 2009.
católica. A historiografia sobre escravidão nos permite localizar
FALCI, Miridan B.K. Escravos do sertão: demografia, trabalho e relações
uma série de injunções sociais que nos possibilita entender o sociais. Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 1995.
sistema escravista marcado por formas de repressão e dominação.
GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Os dispositivos de dominação eram recriados de forma a organizar Guanabara, 1989.
os grupos negros e tornar a resistência mais efetiva.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos,
As organizações das irmandades negras criaram um emblemas, sinais: São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
caminho, através da religiosidade católica, que ligava à cultura LEI 481, publicada em 10 de setembro de 1859, que aprovou o
dos antepassados africanos. Ainda que os negros se submetessem compromisso da confraria do Bom Jesus dos Passos da cidade de Oeiras.
às normas da Igreja e do Estado, não se comportaram de forma Acervo do Arquivo Público do Estado do Piauí.
submissa, mas se apropriaram da religião dominante para LEI 472, publicada em 16 de agosto de 1859, que aprovou o compromisso
construir um espaço de recriação e resistência da cultura negra. da confraria de Nossa Senhora do Rosário da cidade de São José da
Parnaíba. Acervo do Arquivo Público do Estado do Piauí.
Portanto, se, de um lado, a imposição do culto católico LEI 587, publicada em 28 de agosto de 1863, que aprovou o compromisso
significou uma forma de controle social para a classe dominada, da Irmandade do Glorioso São Benedito da cidade de Teresina. Acervo do
por outro, também representou a criação de autônomos espaços Arquivo Público do Estado do Piauí.
de resistência ao escravismo. LEI 486, publicada em 13 de setembro de 1859, que aprovou o compromisso
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Oeiras. Acervo do Arquivo
Público do Estado do Piauí.
LEI 466, publicada em 12 de junho de 1859, que aprovou o compromisso
336 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural
do Glorioso São Bendito da cidade de Parnaíba. Acervo do Arquivo Público
do Estado do Piauí.
Candomblé na tradição e na modernidade:
LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: Trabalho escravo nas fazendas da preservação e identidades
nação no Piauí. (1822-1871). Passo Fundo: UPF, 2005. Estélio Gomberg*
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In:
MELO E SOUSA, Laura. História da vida privada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
OLIVEIRA. Anderson Jose Machado. Devoção negra: Santos pretos e
catequese no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Quarter; FAPERJ, 2008.
Terreiro é uma categoria concebida e preservada por
PIAUÍ. Testamento de Anna Maria do Espírito do ano de 1868. Acervo do
Arquivo Público do Estado do Piauí, Fundo do Poder Judiciário. integrantes e adeptos do Candomblé ao longo do tempo, para
designar o espaço de uma das modalidades de religiões de
PINHEIRO, Áurea Paz. As ciladas do inimigo: as tensões entre clericais
no Piauí nas duas primeiras décadas do século XX. Teresina: Fundação matrizes africanas, instalada nas distintas regiões do Brasil.
Monsenhor Chaves, 2001. Esta referência apresenta significados distintos para
PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Celebrações. Teresina: Educar artes os adeptos, referindo-se a existência de um espaço particular
e ofícios, 2009. Livro produzido via edital do Programa Monumenta/Iphan, dentro da cidade e, ao mesmo tempo, remetendo a um “espaço
do Ministério da Cultura, com financiamento do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID) e apoio técnico da Unesco. sagrado” cuja função é a de cultuar as divindades em seus
espaços originais, como acreditam que seria em seu continente
PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Congos: ritmo e devoção.
Documentário Etnográfico. Teresina: Educar artes e ofícios, 2009. de origem, a África.
Produzido via edital do Programa Monumenta/Iphan, do Ministério da O que os diversos grupos religiosos que se intitulam
Cultura, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) e apoio técnico da Unesco. mantenedores de uma tradição apresentam em comum é a
demarcação física, aqui entendida como espaço físico, a formatação
RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil: demopsicologia e psicanálise.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
do próprio espaço servindo como um lócus religioso e comunitário,
que propicia a realização de atividades litúrgicas, terapêuticas
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Brasil do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
e sociais, além da concepção simbólica deste espaço como uma
reprodução natural das terras africanas em solo brasileiro, cujo
SILVA, Mairton Celestino. Batuques na Rua dos Negros: cultura e política
na Teresina. Dissertação (Mestrado), Bahia: Salvador/UFBA, 2008.
objetivo reside em cultuar as divindades dos diversos grupos
étnicos que sobreviveram ao processo da diáspora.
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica,
religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro - século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000. * Doutor em Saúde Pública [UFBA]. Pós-doutorando em Ciências Sociais [UFBA],
bolsista Fapesb Pró-Doc. Foi Coordenador Estadual do Programa Pesquisa para o
TAVARES, Mauro Dillmann. Irmandades, igreja e devoção no Sul do
SUS - Ministério da Saúde em Sergipe [2003-2005]. Tem experiência em docência
Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2008.
e pesquisa na área de Antropologia da Saúde e de Saúde Coletiva.
338 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 339
É importante destacar que originalmente, na África, as (De) limitar este espaço é de fundamental importância
divindades cultuadas estavam ligadas à família, cidade ou região, para o grupo, na tentativa de afirmação e de reconstrução de
o que promovia a caracterização de cultos grupais e regionais, sua identidade, seja através da delimitação de fronteiras físicas,
mais raramente, de cultos de caráter nacional (COSTA E SILVA, seja pela ordenação sagrada em que o indivíduo, ao conceber o
1992). No Brasil, devido à diáspora negra, os Orixás assumem sentimento de pertença, passa a manifestar suas particularidades,
outro caráter. Misturados no infortúnio da senzala, estes vão se sua visão de mundo. Em verdade, esta ação, a organização do
manifestar agora de forma indiscriminada, não mais pertencente espaço, significa na ótica de Sodré (1988) o que representaria a
a clãs familiares ou linhagens reais, mas sim em todos aqueles dinâmica da estrutura de uma cultura.
que necessitam e ainda deles se lembram. O território e suas articulações socioculturais aparecem
No que se refere a esta compreensão e demarcação de como uma categoria com dinâmica própria e irredutível
às representações que a convertem em puro receptáculo
espaço, é importante mencionar a observação de Santos (1996) de formas e significações. Essa dimensão incita à produção
referindo-se à distinção entre espaço e território. O espaço é de um pensamento que busque discernir os movimentos
definido como uma totalidade que abarca a configuração de circulação e contato entre grupos e em que o espaço
territorial, a paisagem e a sociedade. Por sua vez, o território surja não como um dado autônomo, estritamente
determinante, mas como um vetor com efeitos próprios,
é conceituado como configuração física e também com uma capaz de afetar as condições para a eficácia de algumas
natureza de totalidade, perpassando pelo espaço. ações humanas (Ibid., p.15).
A ideia de construção de uma territorialidade nos remete
Ainda segundo o autor, a organização deste espaço religioso é
a um sentimento de necessidade de expressar uma identidade,
essencialmente simbólica, visto que traz para si características de um
mesmo que esta seja religiosa, em um espaço com fronteiras
espaço mítico pousado na África. Sendo assim, ele funcionaria:
físicas, no qual, em seu interior, são acionadas percepções,
sentimentos, pertencimentos e suscitados diversos processos [...] como a forma social negro-brasileira por excelência,
porque além da diversidade existencial e cultural que
que venham a reafirmar ou construir suas identidades sociais. engendra, é um lugar originário de força ou potência
social para uma etnia que experimenta a cidadania
Nesse espaço, sua existência só é considerada na
em condições desiguais. Através do terreiro e de sua
interação entre espaço/corpo/cultura. Assim, experimentar, originalidade diante do espaço europeu, obtêm-se traços
incorporar e vivenciar o ambiente, concebendo relações reais fortes da subjetividade histórica das classes subalternas
e simbólicas com uma lógica de racionalidades materiais e no Brasil (SODRÉ, 1988, p.19).
sobrenaturais é, antes de tudo, a possibilidade de vivenciar
o dinâmico, o dialógico, fonte de sua existência – espaço Esta África mítica é (re) elaborada na flora, na fauna, nos
por excelência da transmissão e sustentação de um ethos – elementos materiais, imagens e valores cristalizados, através da
reconhecida como alicerce e sustentação do próprio grupo síntese de ritos e cultos religiosos pelos diversos grupos aportados
(SODRÉ, 1988). em solo brasileiro.
340 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 341
É justamente neste processo de (re) elaboração espacial, representantes destas elites. É famoso o caso de mãe-de-
santo Tia Ciata, que tinha como marido um funcionário
simbólica, religiosa e social que no “novo espaço” emergirão
da polícia, e cujo terreiro tornou-se grande centro difusor
mecanismos, tradições e lembranças reverenciados nas divindades, da religiosidade e do samba no Rio de Janeiro no final do
nas construções do agir e pensar e representações públicas, no século XIX (SILVA, 1997, p.110).
caso das festas.
Contudo, tais situações deram aos Terreiros uma ação
É sobre o espaço, – aquele que ocupamos, por onde
passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo estratégica de preservação cultural e expansão ao longo do
o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada país nas áreas centrais e periféricas das cidades em expansão,
momento capaz de reconstruir – que devemos voltar proporcionando mobilidade física e o deslocamento do próprio
nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve
Terreiro em diversos bairros.
se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de
lembranças (HALBWACHS, 1990, p.131). Os terreiros paulistas, hoje, multiplicam-se em quase
todas as direções; são encontrados em bairros de classe
Desta forma, ao longo da história da implantação das média alta, como Pinheiros, Vila Mariana e Jardins,
ao redor das estações de metrô, nos bairros “étnicos”,
cidades no país, os Terreiros de Candomblé e demais espaços
como Liberdade e Bom Retiro (respectivamente
de religiões de matrizes africanas não ficaram alheios a estas formados por colônias de imigrantes japoneses e
manifestações e práticas socioculturais nas cidades. Na constituição judeus), cuja cultura religiosa a princípio nada teria
e na solidificação dos diversos segmentos das religiões afro- a ver com a afro-brasileira, e aproveitam em seu favor
as facilidades urbanas, como o transporte que encurta
brasileiras, o que percebemos é uma história marcada, na maior
as distâncias e une os moradores dos mais variados
parte dos períodos, por perseguições, discriminações, diferentes pontos (SILVA, 1995, p.170).
mentalidades e “invisibilidades sociais”, assim como solicitações e
alianças de diversas ordens sociais (DANTAS, 1984; LÜHNING, O próprio Terreiro da Casa Branca – Ilê Axé Yiá Nassô
1997; MANDARINO, 2003). Oká – da Cidade de Salvador, considerado por muitas fontes
documentais, como o Terreiro mais antigo do País, teve diversas
Na fala de diversos autores, Brown (1975); Maggie (1978);
instalações ao longo de sua história. Inicialmente instalado na
Prandi (1995); Concone (1996); Silva (1997), é relatado que
Barroquinha, depois durante anos em uma casa no centro da
sujeitos do poder público buscavam se beneficiar destas alianças
cidade, para finalmente vir a se instalar na Avenida Vasco da
entre Terreiros e sociedade mais ampla, conforme relatado por
Gama, onde acabou por ser reconhecido como Terreiro da Casa
Silva:
Branca do Engenho Velho (OLIVEIRA, 2005).
Diante às alianças que sempre se fez com as elites brancas,
incorporando-as frequentemente à hierarquia religiosa. Percebem-se atualmente nas configurações das cidades
Os cargos de ogã e de obá, postos religiosos que certas que cada vez mais são restritas as possibilidades de organizar
autoridades e funcionários de órgãos de repressão (como
um Terreiro de Candomblé com as dimensões e áreas geográficas
delegados e policiais) ocuparam é significativo. Ou mesmo
os vínculos que existiram entre membros dos terreiros e necessárias para as atividades litúrgicas; ou seja, o desejo de tê-
342 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 343
lo aliado a uma necessidade real de um “espaço-mato” faz com tradicionalmente realizados nas areias de Copacabana, unem
que agentes religiosos busquem áreas situadas nas periferias dos diversas pessoas, de várias religiosidades e espiritualidades,
centros urbanos. portando em sua quase totalidade roupas e flores brancas, além
de bebidas para fazerem seus pedidos à divindade.
Esta atividade, inicialmente realizada apenas por grupos
Terreiros e Cidades
religiosos afro-brasileiros desde a década de 1940, na década
de 1980 tornou-se um atrativo “turístico” da cidade, reunindo
Ampliando o espaço do Terreiro, as esquinas assim como atualmente cerca de dois milhões de pessoas na noite do dia
outros espaços da cidade (cemitério, hospitais, praças, praias) 31 de dezembro, para comemorar a chegada do ano novo.
passaram a ser utilizados como “espaços sagrados” e “terapêuticos”. Embora desde 2006, pela ação municipal do prefeito César
O processo de urbanização e industrialização das cidades, que Maia, as manifestações religiosas tenham sido antecipadas para
tornou escassos os locais de culto de várias divindades das religiões o dia 30, a cidade incorporou os rituais e a crença, e faz da praia
afro-brasileiras, fez com que estes espaços nominados acima se um local primordial nos agendamentos dos festejos de final de
tornassem em verdade espaços “rituais” (SILVA, 1996). Se a ano, demonstrando assim a indissociabilidade da crença e da
própria cidade serve como local de oferenda, tomando o lugar do incorporação do espaço no tocante ao imaginário social.
espaço mato. Contudo, em algumas situações, os “despachos”ou Na mesma direção, conforme já assinalamos, encontramos
as sobras de elementos utilizados em “ebós” colocados nestes as práticas litúrgicas que envolvem a utilização de grandes espaços
espaços vão reforçar a imagem cristalizada no senso comum de abertos, assim como a escassez de áreas de cultivos e plantios nas
que as religiões afro-brasileiras são “religiões do mal”. cidades diante do processo de urbanização. Os pontos possíveis
Um dos espaços mais solicitados nas cidades litorâneas de de realização de “ebós”, “sacudimento” e “banhos” são, em geral,
todo país são as praias. É comum no final do ano observarem- localizados em áreas distantes dos centros urbanos ou em áreas
se grupos de Terreiros e de simpatizantes dirigirem-se à praia de preservação ambiental, algumas de acesso restrito, gerando
para ofertar presentes a Iemanjá – “rainha do mar”. Este culto, debates públicos de favorecimento e de críticas, envolvendo
conforme as características regionais, desenvolvem-se de forma diversas instituições e atores sociais sobre esta utilização.
particular, sendo que suas datas de celebração coincidem com
Posteriormente, a partir da luta dos movimentos sociais,
uma data específica do calendário católico, revelando desta
que no Brasil começam a tomar forma a partir da década de 1970
maneira o sincretismo religioso, e proporcionando um diálogo
e se consolidam nos anos 1980, entre estas os vários movimentos
com a sociedade mais ampla, no sentido de dar um aspecto de
de valorização da cultura negra, os espaços-terreiros passam a
cotidianidade e de religiosidade a própria cidade.
adquirir outras configurações, e são pensados pelos estudiosos
Como exemplo deste amálgama religioso, podemos citar e adeptos como espaços de militância social negra frente a
a Cidade do Rio de Janeiro, onde os festejos para Iemanjá, questões socioeconômicas da sociedade nacional. Da mesma
344 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 345
forma, estes vão se reestruturar para atuarem como possíveis espaços para os mais distintos sujeitos sociais e seus interesses
espaços promotores de assistência social tanto para adeptos para além de religiosos.
como para as comunidades adjacentes. Obviamente, o que a
No processo de democratização do País, os Terreiros
princípio foi pensado como uma agenda social, aos poucos
considerados, até então, como territórios de resistência à
vai se transformando em um espaço de discussões políticas.
cultura hegemônica vão se transfigurar em espaço de atividades
Contudo, pode-se notar que por trás do interesse de bem-estar
sociais múltiplas, através da parceria com organizações não-
da comunidade encontram-se embutidos vários mecanismos
governamentais (na maioria, ligada ao “movimento negro”), com
de legitimação social e promoção, tanto dos líderes religiosos
orientações acerca dos direitos e de cidadania, possibilitando os
como do próprio Terreiro.
processos de ascensão social e construindo um diálogo com a
Concomitantemente, as religiões afro-brasileiras, de uma sociedade mais ampla.
forma geral, tornaram-se temas de preferência para estudos
Enquanto agências sociais, os Terreiros vão buscar
acadêmicos em diversas áreas de conhecimento, entre elas as
financiamentos nacionais e internacionais para implementações
áreas de Ciências Humanas. O volume de material produzido
de ações socioculturais visando melhorias na qualidade de vida
logo ganha as ruas, burlando os espaços acadêmicos e fazendo
de seus filhos de santo assim como de moradores, não adeptos,
parte das discussões de vários sacerdotes, que adquirem poder
das comunidades adjacentes. Tal conduta amplia as noções de
e autoridade, o que muitas vezes os leva a fazer caminho inverso
solidariedades e de relações interpessoais que cotidianamente
ao dos pesquisadores na compreensão e explicação desta doença.
são desenvolvidas nestes espaços, elaborando uma nova
São estes que vão buscar explicações mais cabíveis nos livros
configuração dos modelos de solidariedade comunitária
e teses sobre a estrutura dos rituais, a confirmação de mitos e
interna e externa.
comportamentos compatíveis, segundo a tradição as quais estes
estariam ligados. Freitas (2003), ao discutir o papel das religiões afro-
brasileiras no processo de globalização, aponta para uma distinção
destas atividades dos Terreiros em relação às praticadas pelas
Terreiros como Agências Sociais demais religiões, pois:
Os projetos desenvolvidos nos terreiros, diferenciam-
se, pois, dos projetos realizados por outras instituições
Transformado em espaço acadêmico e de militância religiosas, já no princípio de utilização do espaço físico,
social, os Terreiros configuram-se em territórios referenciais que é sempre sagrado. No mais das vezes, esses projetos
são desenvolvidos dentro dos salões de danças, os
para se pensar, refletir e preservar as expressões religiosas afro- barracões. Nesse sentido, o espaço terreiro mais uma vez
descendentes. Destinado originalmente à população negra e funciona com espaço integrador, tanto lugar para dança
seus descendentes, como símbolo de preservação cultural das sagrada como para aula de prevenção DST/AIDS, por
culturas africanas na Diáspora, estes gradativamente se tornam exemplo (FREITAS, 2003, p.15).
346 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 347
Este mesmo autor menciona que, no Rio de Janeiro, os social. Contudo, novas e “velhas” manifestações culturais negras,
Terreiros pioneiros a desenvolverem atividades de voluntariado de várias partes do País e das periferias dos centros urbanos
foram o Ilê Omolu Oxum e o Ilê Omi Ojuarô, dirigidos, apontaram modelos possíveis de fazer e ser que não se restringem
respectivamente, por Mãe Meninazinha D’Oxum e Mãe Beata a uma única identidade, mas de identidades negras através da
D’Iemanjá que atendiam os moradores circunvizinhos a área do produção corporal, de musicalidades, entre outros.
terreiro, fossem ou não adeptos. Ainda conforme o citado autor:
O que se tornou imperativo nos espaços religiosos afro-
No ano de 1999, à época do II Concurso de Capacitação brasileiros foi o estabelecimento de estratégias de organização
Profissional para Jovens em Risco Social, promovido
pelo Programa Comunidade Solidária, mais que uma
voluntária, com vistas a buscar legitimidade na sociedade
dezena de terreiros seriam aprovados como instituições mais ampla, mostrando que eles podem ser “Instituições
multiplicadoras para o desenvolvimento de projetos Sérias”; agências sociais capazes de preencher o tempo ocioso
sociais e solidários, na região metropolitana do Rio de de adolescentes na promoção de cidadania, cujos discursos
Janeiro e de Salvador. O que somente corroborava a
importância dos terreiros (e por esses dada) ao trabalho recorrentes, reprodutivos da hegemonia apontam que estes
de ação voluntária (FREITAS, 2003, p.15). grupos, excluídos do processo social, se não forem assistidos
corretamente se encaminharão para a marginalidade como é
Estas atividades e os financiamentos que davam suporte recorrente no discurso do senso comum.
às ações sociais acabavam por proporcionar às comunidades
religiosas um status de instituições que promovem o voluntariado. Nos dias atuais, os espaços religiosos afro-brasileiros
Até então, as atividades desenvolvidas por vários Terreiros, de defrontam-se com diversos dilemas e desafios para sua
uma forma geral, eram restritas as festas religiosas e centradas na manutenção, entre estes, a busca do equilíbrio entre a tradição e
distribuição de “comidas do santo” nestas ocasiões, ou ainda na a modernidade. Como, por exemplo, manter as tradições, valores
distribuição de cestas básicas. Estas ações eram vistas por algumas do grupo e uma organização social que se estrutura na hierarquia
lideranças religiosas “como ação eficaz” capaz de estabelecer uma religiosa e, ao mesmo tempo, abrir para a sociedade, para as
relação de parceria com as comunidades adjacentes ao Terreiro, comunidades adjacentes através de ações de voluntariado que
acreditando que, desta forma, conseguiriam incrementar um são realizadas no espaço sagrado e que, na sua maioria, também
diálogo de proteção, visto que a maioria de seus templos encontra- envolve “pessoas do axé”.
se em áreas de risco social, seja no Rio de Janeiro, Salvador, seja Neste aspecto, Freitas (2002, p.34) acredita que:
nas demais cidades do País.
O terreiro, rejuvenescido pela galera, assinala para
Outra configuração social assumida por estas ações pelos/ uma nova dinâmica de permanência e resistência,
radicalmente antagônica à ideia de que patrimônios
nos Terreiros foi a de questionador de um modelo unitário e
são bens obsoletos e imutáveis. Sobreviveu aos séculos
unificado de pensar e de agir no que tange à criação de uma e à viagem transatlântica, através da transmissão de
identidade negra, sustentando a ideia de que a religiosidade um ethos denominado afro-brasileiro, que se perpetua
funcionaria como uma estratégia de organização e resistência em práticas e ações transgeracionais e transtemporais e
348 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 349
que se opõe às formas clássicas de transmissão histórica, os patrimônios representativos das comunidades e ou grupos
disponibilizadas pelas instituições sociais clássicas (família,
já se encontram integrados às organizações socioculturais e
escola, trabalho). Articula-se à promoção de políticas
públicas, tão em voga nesses tempos contemporâneos, que, naturalmente, exercem seu papel na vida cotidiana dos
contribuindo para a transformação das comunidades do indivíduos.
entorno, do Brasil, da sociedade global.
Neste sentido, a estratégia de preservação seria hoje um
Outra situação atual apresentada é o acesso às informações caminho natural por parte do grupo frente a sua conscientização
e o trânsito constante de lideranças religiosas em encontros e de que o Terreiro desempenha outras funções sociais que não
seminários de cunho social e até acadêmicos, que têm como objetivo somente a de espaço religioso, e de que estes são dotados de uma
a discussão da tradição e dos caminhos das religiões de matrizes “consciência ecológica” do significado do “espaço mato”, dentro
africanas; vêm abrindo espaço para um tipo de discussão que até dos limites do terreiro, não como uma coisa exclusiva do grupo,
pouco tempo era impensada entre os adeptos e frequentadores. mais sim da comunidade em geral.
Ela diz respeito diretamente à continuidade do espaço – e aí A criação nos Terreiros de entidades sociais ou ações
se encontra a diferença – após a morte do líder religioso. Não sociais autônomas, assim como de tombamentos arquitetônicos
é uma disputa pela sucessão, mais sim pela continuidade do têm como objetivo principal possibilitar maior visibilidade e
axé (Terreiro) no cenário local. Se a continuidade da liderança legitimação social aos membros e às comunidades adjacentes,
religiosa é pautada pela consulta oracular, a herança da posse do levando, por conseguinte, a novas configurações destes espaços
terreno e do espaço físico é uma discussão estritamente terrena. religiosos como entidades públicas e garantindo sua continuidade
Ainda em vida, várias lideranças religiosas preocupadas com esta como instituição.
questão vão orientar membros familiares consanguíneos para a
criação de instituições sociais que, no futuro possam vir a assumir
a manutenção da entidade religiosa. Da mesma forma, percebe-se Terreiro como Monumento Negro
o incentivo por parte de alguns dirigentes que buscam associar-se
a figuras importantes das várias Federações Religiosas existentes,
de forma que seus Terreiros venham a fazer parte daquele grupo Outra questão contemporânea, na pauta de vários Terreiros
de Casas, que, por sua importância religiosa (são descendentes de como mais uma estratégia na busca de reconhecimento social, do
Casas Tradicionais), são reconhecidas como patrimônio histórico Estado e da sociedade mais ampla é a solicitação de tombamentos
ou local de preservação da memória afro-brasileira. de suas edificações em busca de estabelecer um diálogo do
Esta atitude por parte dos dirigentes e seus afiliados patrimônio material com o passado da sociedade brasileira. Esta
demonstra uma preocupação crescente por parte de vários prática tornou-se mais intensa desde a década passada, quando
segmentos envolvidos na criação de mecanismos que possibilitem os líderes religiosos tomaram conhecimento desta possibilidade,
a manutenção e a sobrevivência das Casas de Santo e dos Terreiros. muitas vezes a partir de informações do próprio Instituto do
Esta tentativa, segundo Lody (1987), serve para pensarmos que Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), ou de
350 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 351
membros seus que, cientes da possibilidade, colaboraram com os opiniões e embates dos setores da sociedade baiana sobre este
processos de pedido de tombamento. processo (Ata da centésima oitava reunião do Conselho Consultivo
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, da Secretaria da
Embora em princípio o fato de os tombamentos terem
Cultura, realizada em 31 de maio de 1984):
suscitado um mal-estar entre as fontes oficiais, com o tempo, a
ideia acabou por se mostrar coerente frente à própria história da Assim, o tombamento de Casa Branca significava a
afirmação de uma visão da sociedade brasileira como
constituição do País, como o exemplo a seguir: multiétnica, constituída e caracterizada pelo pluralismo
Em outras palavras, através dessa estratégia retórica da sociocultural. Não há dúvida de que tal medida de
identificação entre Brasil e, no caso, igrejas barrocas reconhecimento do Estado representava também uma
em Minas ou um terreiro de candomblé em Salvador, reparação às perseguições e à intolerância manifestadas
definimos a nação como barroca, religiosa, católica, durante séculos pelas elites e pelas autoridades brasileiras
mineira, ou negra, afro, nagô e baiana. E, como num contra as crenças e os rituais afro-brasileiros [...] (VELHO,
passe de mágica, nos sentimos todos de algum modo 2006, p.240).
‘autênticos’ portadores desses mesmos atributos
(GONÇALVES, 1988, p.267-268). Consideramos que, com os processos de tombamento e de
preservação dos Terreiros no País, implementados atualmente
Este autor aponta ainda que, para o entendimento de pelos órgãos públicos federais e estaduais, irão ampliar as análises
bens representativos do patrimônio cultural, deve-se observar sobre esta temática, acabando por envolver as diversas áreas de
principalmente seu papel de mediação entre os distintos períodos conhecimento.
históricos, ou seja:
[...] muitos dos bens culturais que compõem um
patrimônio estão associados ao ‘passado’ ou à ‘história’ Considerações Finais
da nação. Eles são classificados como “relíquias” ou
“monumentos”. Assim como a identidade de um
indivíduo ou de uma família pode ser definida pela posse
de objetos que foram herdados e que permanecem na A existência do Terreiro como espaço social revela de forma
família por várias gerações, também a identidade de uma particular a interação entre espaço/corpo/cultura, experimentada
nação pode ser definida pelos seus monumentos, aquele em relações materiais e sobrenaturais e, especialmente, na
conjunto de bens culturais associados ao passado nacional. transmissão de saberes e conhecimentos que mantêm a vitalidade
Estes bens constituem um tipo especial de propriedade: a
eles se atribui a capacidade de evocar o passado e, desse das práticas religiosas tradicionais trazidas pelos povos africanos
modo, estabelecer uma ligação entre passado, presente e às terras brasileiras.
futuro. Em outras palavras, eles garantem a continuidade
da nação no tempo (GONÇALVES, 1988, p.267). Simbolicamente, os Terreiros de Candomblé buscaram/
buscam reproduzir a flora, a fauna, os símbolos e as relações
Gilberto Velho, que foi relator do processo de tombamento míticas da(s) África(s) com uma lógica alicerçada em mecanismos
do Terreiro da Casa Branca, em Salvador, aborda as distintas e processos sociais, evocando e cultuando as divindades
352 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 353
através de rituais privados e públicos. Delimitar este espaço de uma postura política correta, os Terreiros buscam criar
foi/é uma ação estratégica para a preservação e reprodução da para si uma conotação de “agências sociais” ou de entidades
cosmovisão do grupo, com formatos tradicionais e modernos, sociais através de atividades de voluntariado, assim como
manifestando e afirmando a primazia do sagrado frente à os tombamentos de suas construções físicas, iniciado
sociedade mais ampla. anteriormente pelas Casas Tradicionais, e hoje almejado por
um grande número de Terreiros, que veem nesta estratégia,
A percepção deste “espaço mato”, nos Terreiros na
além de um reconhecimento oficial, a garantia de preservação
atualidade como reprodutor da África mítica, necessário para
de seus espaços.
as práticas litúrgicas, foi se tornando escasso ao longo do
crescimento e do desenvolvimento das cidades, e, por efeito, Nossa reflexão aponta para a grande significação de que
os Terreiros que conseguiram resistir a esta expansão foram seja estabelecido um diálogo frutífero entre segmentos religiosos
sendo apropriados e ressemantizados com finalidades litúrgicas. e poder público, visando definir e formular diversas modalidades
Aqueles que porventura não se mantiveram nos centros urbanos de políticas, não somente destinadas a promover a inclusão
em consequência deste crescimento, com o tempo acabaram por política e social de comunidades-terreiros, assim como estabelecer
ser empurrados para as periferias dos grandes centros onde alianças entre o poder público e estes, consistindo, desta maneira,
estes procuravam recriar minimamente um espaço apropriado na compreensão de expressões e de divulgação de saberes,
para a realização dos rituais. Devemos lembrar, no entanto, que alicerçadas em um modelo de comprometimento maior entre os
diversos setores envolvidos no que tange a se relacionar com as
isto não é a regra, a grande maioria dos Terreiros, por ser dirigida
diversas realidades presentes na sociedade brasileira.
por pessoas mais humildes, assim como sua clientela e filhos de
santo acabam por submeter-se às condições mais adversas, cuja Assim, diante da pluralidade religiosa apresentada
única presença de um espaço-mato vem a ser um canteiro de na modernidade e, especialmente, na sociedade brasileira,
jardim ou mesmos alguns vasos, nos quais algumas espécies o Candomblé, ou seus saberes, vem preencher junto aos
mais resistentes são cultivadas. indivíduos aspectos de sua vida cotidiana que se encontram
fragmentados ou diante de encruzilhadas. Além de um complexo
A história da organização dos Terreiros de Candomblé e sistema religioso, o Candomblé consegue conjugar nos laços
das demais modalidades religiosas de matrizes africanas no Brasil de parentesco mítico, que estruturam a lógica da religião, a
foram marcadas por episódios de discriminações, perseguições, possibilidade de o indivíduo reconstruir laços que estes ou nunca
estigmatizações nos diversos espaços sociais, ao mesmo tempo em possuíram ou que porventura estejam fragmentados, rompidos.
que alianças com os poderes públicos e movimentos sociais eram A certeza da aquisição de uma família extensa (pai, mãe, irmãos,
firmadas na tentativa de uma legitimação e visibilidade que lhes tios) concede ao indivíduo o suporte necessário para que este
garantissem seu funcionamento. vença seus desafios e desequilíbrios. A ampla noção de saúde
Atualmente, com a intenção primordial de construírem extrapola os limites da sociedade ocidental; nesta, o indivíduo
uma legitimidade social mais ampla, e seguindo os rumos é pensado como um todo, não dissociado. Saúde e doença
354 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Estélio Gomberg 355
são binômios pensados conjuntamente e a elucidação deste Referências
processo envolve aspectos religiosos, materiais e sentimentais.
Esta forma de encarar o mundo, ou seja, esta visão diferenciada
é o grande chamariz das religiões de possessão, especialmente o
Candomblé, no qual a produção comum de um número de bens BROWN, Diana. Uma História do Umbanda no Rio. Rio de Janeiro:
simbólicos vai conferir ao indivíduo a estrutura necessária para Marco Zero, 1985.
que, a partir de uma nova identidade reconstruída nos moldes CONCONE, M. H. V. B. Imagem e identidade dos cultos afro-brasileiros
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Este ensaio delineia uma epistemologia possível
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Revista Brasileira de História, 27 (53), p.11-23, jun. 2007. sociocultural do espaço de representações, rio Parnaíba. A
PRANDI, R. Deuses africanos no Brasil contemporâneo. Introdução hipótese central é que o transnacionalismo tem pertinência como
sociológica ao Candomblé de hoje. Revista Horizontes Antropológicos, categoria de análise sociocultural e que, não obstante, as ondas de
1 (3), p.10-30, 1995. transformação que experimenta têm particularidades que podem
SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos ser constatadas por meio das atividades econômicas, das formas
e metodológicos da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1996. de ocupação do espaço, do contato, da paisagem, dos atores, das
relações de trabalho e das representações sociais.
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religiosa. Cadernos de Pesquisa - CEBRAP, São Paulo, p.85-135, 1997. O espaço de representação é um espaço vivo com ligações
______. Orixás da metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995. culturais, lócus da ação e das situações vivenciadas. É relacional
em percepção, diferencialmente qualitativo e dinâmico e de
______. As esquinas sagradas. O candomblé e o uso religioso da cidade. natureza simbólica. A representação é, portanto, uma forma de
In: MAGNANI, J. G.; TORRES, LILIAN L. (Org.). Na metrópole: textos
conhecimento. Dessa maneira, articula-se ao espaço da prática
de antropologia urbana. São Paulo: EDUSP, 1996.
social sua materialidade imediata. Mesmo que tempo e espaço
SODRÉ, M. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. gerem determinadas formas de representação, é na dualidade
Petrópolis: Vozes, 1988. sujeito e objeto que reside o denominador comum que pode
VELHO, G. Patrimônio, Negociação e Conflito. In: Mana. 12(1), p. 237- conceber toda forma de representação.
248, 2006.
*Doutora Nível 1- UEG. Pós-doutoranda PNPD/CAPES/UFG. Doutora em
História pela Universidade de Brasília.
358 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 359
Para atingir o propósito da discussão em torno do tema, e, ainda, “considerar as representações coletivas como as
optou-se por estruturar este texto em dois momentos. Primeiro, matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social”
procurar-se-á identificar e qualificar os termos teóricos básicos que (CHARTIER, 1991, p.183). Assim considerando, tornou a
compõem o centro da discussão, com o objetivo de compreender noção de representação imprescindível na história, na medida
o sentido dessas representações e de suas dinâmicas. Sintetizar em que “centra a atenção sobre as estratégias simbólicas que
algumas ideias, abrindo caminho para interpretações alternativas determinam posições e relações e que constroem, para cada
sobre o chamado transnacionalismo. Daí estabelecer um exercício classe, grupo ou meio, um ser percebido construtivo da sua
teórico nesse universo temático em relação ao vale parnaibano. Em identidade” (CHARTIER, 1991, p.184).
seguida, construir-se-á uma abordagem do tema, relacionando-o
aos códigos simbólicos do rio Parnaíba, através de um de seus Lefébvre argumenta que “o espaço social contém uma
elementos marcantes, a pessoalidade. diversidade de objetos, tanto naturais como sociais, incluindo
redes e vias que facilitam a troca de materiais, coisas e
Concentro esta análise sobre as práticas sociais que definem informações” (1991, p.48). Nota-se que para Lefébvre esses
a identidade ou “tradição cultural transparnaibana”. Para “objetos” são também relações. Sendo assim, existe uma história
Bourdieu, as práticas sociais são estrategicamente constituídas e do espaço que não se limita ao estudo de momentos específicos,
simbolicamente manipuladas pelos atores, visando o controle das como a formação, o estabelecimento, declínio e dissolução de
representações, traduzidas no controle dos símbolos, estigmas e
determinada ordem. É, também, preciso relacionar aspectos
imagens sobre a identidade do outro. Roberto Cardoso de Oliveira
globais com aspectos particulares de sociedades e instituições. É
entende a identidade como uma “representação coletiva” de um
importante entender que, na prática espacial, as representações
determinado grupo inserido em uma situação de contato. Portanto,
identidades e categorias sociais são representações coletivas do espaço e os espaços de representação são diferentes caminhos
produzidas em contextos sociais de contato intercultural. da produção do espaço de acordo com as qualidades e atributos
de uma determinada sociedade em determinado período
Ao criticar a divisão estabelecida entre as objetividades histórico. É um jogo dialético.
das estruturas e a subjetividade das representações, Roger
Chartier (1991) chamou a atenção para o fato de que esta Moscovici remete as representações sociais às várias facetas
clivagem permeou a história, a etnologia e a sociologia, opondo das relações interpessoais do cotidiano. Ou seja, a teoria engloba
abordagens estruturalistas a procedimentos fenomenológicos, a articulação de afirmações conceituais e explicações que têm
as primeiras trabalhando grupos e relações e as últimas, origem no cotidiano. Muito mais que uma observação ou opinião
valores e comportamentos. A seu ver, a superação desta sobre o mundo, o ato de representar é a expressão de uma
dicotomia exige, em primeiro lugar, “considerar os esquemas internalização da visão de mundo articulada que gera modelos
geradores dos sistemas de classificação e de percepção como para a organização da realidade. Assim, o espaço de representação
verdadeiras instituições sociais, incorporando, sob a forma trata-se de um espaço simbólico que perpassa o espaço visível e
de representações coletivas, as divisões da organização social” nos projeta no mundo.
360 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 361
A noção de espaço de representação nos aproxima de se fundem. A noção de território, sem dúvida, é formada
Goffman, quando discute a região e o comportamento regional através do dado imediato da materialidade, mas esse é apenas
no que tange às representações sociais. O autor o define como um um componente, já que todas as demais representações sobre o
espaço que está delimitado a partir de obstáculos da percepção, território são abstratas.
variando de acordo com limites de sua organização, sendo
Segundo Rafestin, “o caráter identitário na compreensão
circunscrito a partir dos limites dos meios de comunicação.
do território é desenvolvido por Marcel Roncayolo, que
Sob esse ponto de vista a representação é balizada em uma
considera que a territorialidade tem um sentido essencialmente
multiplicidade temporal-espacial. A implicação temporal-
espacial das representações sociais nos remete às relações de coletivo, dependendo das relações entre os indivíduos ou grupos
poder que é correlato à noção de apropriação e à definição que expressam um estatuto, uma expectativa, definindo-se em
de papéis sociais hierarquizados. Assim, uma das formas função do ‘outro’ grupo ou indivíduos” (RAFESTIN, 1993,
concretas de apropriação temporal-espacial mediada pelo p.153). Para Rogério Haesbaert, o território tem uma dupla face:
poder é o território. Entretanto, no campo das representações é um espaço dominado ou apropriado com um sentido político,
sociais há uma intenção adjacente de controle e legitimação mas também apropriado simbolicamente, onde as relações
na definição de territórios, a qual atribuímos a noção de sociais produzem ou fortalecem uma identidade utilizando-se
territorialidade. Acredito que a territorialidade está presente do espaço como referência. Nesse sentido, a dupla dimensão do
em qualquer representação social cuja intenção seja definir as território, cultural e político-disciplinar pode estar conjugada,
fronteiras de controle e apropriação de determinada realidade reforçada ou ainda contradita, devendo ser analisada de acordo
social. Nesse sentido, compartilhamos de uma territorialidade com as formas e a intensidade com que se apresenta a relação
relativa além da fachada do comportamento social humano ou entre a dimensão material (político-econômico) e a dimensão
da moldura perene das estruturas espaciais. Trata-se de uma imaterial (simbólico-cultural).
estrutura social dinâmica vivenciada no cotidiano sob a forma Alguns autores têm priorizado a dimensão simbólico-
de representações sociais. cultural na construção do território, considerando-o como uma
A categoria espaço, por sua universalidade e anterioridade identificação que determinados grupos desenvolvem com seus
histórica, provê o fundamento básico da própria sociedade. Nesse “espaços vividos”. Entre eles, Felix Guatari entende que “[...] o
caso, a concepção de espaço resulta da representação que define território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um
os parâmetros de classificação conforme a ideia que a sociedade sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’.
faz de si mesma. Já a noção de território é uma representação O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada
coletiva, uma ordenação primeva do espaço. A transformação da sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações
categoria espaço em território é um fenômeno de representação, nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de
por meio do qual os grupos humanos constroem sua relação comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços
com a materialidade, num ponto em que a natureza e a cultura sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (1985, p.110).
362 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 363
Werther Holzer constrói outras perspectivas na definição e o produto territoriais, por meio de um sistema de relações
de território. Argumenta que o território pode ser visto como existenciais e/ou produtivistas” (1993, p.158). O autor observa
um conjunto de lugares, onde se desenvolvem laços afetivos e de que a noção de territorialidade é complexa e a define como:
identidade cultural de um determinado grupo social. Enfatiza, [...] um conjunto de relações que se originam num
“caminhando, estamos no mundo, encontramo-nos num lugar sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em
específico e, ao caminhar nesse espaço, tornamo-lo um lugar, vias de atingir a maior autonomia possível, compatível
com os recursos do sistema. [...] essa territorialidade é
uma moradia ou um território, uma habitação com um nome.” dinâmica, pois os elementos que a constituem [...] são
Nesse sentido, “a concepção de território tem como base o ‘lugar’, suscetíveis de variações no tempo. É útil dizer, neste
este sim um conceito essencial para a formulação de um ‘mundo’ caso, que as variações que podem afetar cada um dos
pessoal ou intersubjetivo” (1997, p.83-84). elementos não obedecem às mesmas escalas de tempo.
Essa territorialidade resume, de algum modo, a maneira
A ligação entre os lugares vividos e experienciados por meio pela qual as sociedades satisfazem, num determinado
momento, para um local, uma carga demográfica num
da socialização é efetivada pelos trajetos que as pessoas utilizam
conjunto de instrumentos também determinados, suas
em seu deslocamento, ou aos itinerários, como diz Holzer. Sabe- necessidades em energia e em informação (RAFFESTIN,
se, contudo, que as categorias lugares e itinerários são formas de 1993, p.160-161).
uso e apropriação do espaço que constituem chaves para leitura,
entendimento e orientação do fenômeno em estudo. Para Immanuel Wallerstein (1998), “a territorialidade é
melhor compreendida através das relações sociais e culturais que
Retomando, temos que o território é um conceito inter- o grupo mantém com esta trama de lugares e itinerários que
relacional que se constrói a par da emergência das identidades constituem o seu território”. Werther Holzer (1997) considera que
coletivas. O território é uma categoria vital, porém não as territorialidades podem ser também compreendidas no decurso
essencial, porque não é definitiva. Os cenários são contíguos e das relações sociais e culturais que um grupo mantém, através de
alternos, adjacentes e separados, dependendo às vezes do tipo suas experiências com os lugares. A identificação da territorialidade
de interações estabelecidas com as relações de produção e os com o espaço é, portanto, tomada no processo de socialização.
repertórios culturais e mundos de vida. É, portanto, um dos Contribui para a elaboração da identidade do grupo. São esses
aspectos paradoxais da identidade cultural, uma vez que supõe princípios que permitem aos migrantes, pioneiros e outros grupos
a continuidade e a ruptura de significados, que acontecem no reconstituírem seus horizontes e anseios em novos espaços, ao
âmago da interação cultura/natureza no processo de produção. se apropriarem de novos territórios. Portanto, a territorialidade
parece ser um elemento útil à coesão dos grupos sociais. Por outro
Já a territorialidade pode ser definida como o sentimento
lado, ela é uma fonte ou um apoio a hostilidades, exclusões, ódios.
(caráter subjetivo) que emana da consciência de pertencer a
um território (caráter objetivo). De acordo com Rafestin “a Dá-se, portanto, a territorialização por meio de um
territorialidade reflete a multidimensionalidade do vivido” processo de criação de códigos e símbolos que caracterizam e
territorial. “[...] Os homens vivem ao mesmo tempo o processo particularizam um lugar para um indivíduo ou grupo. Lugar que
364 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 365
está intimamente ligado às relações travadas entre as pessoas no mesmo que de maneira temporária. Já a transterritorialidade
decorrer do tempo; o lugar está impregnado de objetos comuns. como definida por Florentino (1998) revela-se pelas idas e vindas
Territorialidades assim são essencialmente múltiplas, pois os sucessivas dos indivíduos, portanto, trajetórias que marcam toda a
agentes individuais têm percepções divergentes e admitem a co- história do rio Parnaíba. Os grupos que fazem parte de um espaço
presença de alteridades culturais. assim resistem, estabelecem pactos e influenciam a formação de
outros territórios. A estrutura que eles revelam e as relações que
Outra noção importante para a compreensão do fenômeno
estabelecem são dinâmicas. Esta é a complexidade do espaço
é o conceito de transterritorialidade, conforme definido por
fluvial. Um espaço demarcado dessa maneira pode ser utilizado
Florentino:
como referência para distinguir seus usuários como pertencentes
A transterritorialidade é, portanto o resultado de um a uma rede de relações.
processo dinâmico de recomposição de um espaço (ou
território) de vida no tempo, apreensível a partir das Entendendo o espaço do rio Parnaíba como a expressão
trajetórias. É um conceito que tem diretamente a ver dos comportamentos vividos, ou se preferir, da constituição dos
com o estudo da localidade. Essa transterritorialidade
mundos pessoal e intersubjetivo, englobando a relação do território
revela-se pelas idas e vindas sucessivas dos indivíduos.
Essa transterritorialidade concomitante pode impedir o com o desconhecido (espaço estrangeiro) vimos abrir um campo
estabelecimento de uma fronteira fixa entre o local, o vasto de possibilidades de estudos sobre sua transnacionalidade.
nacional e o internacional. Nesse sentido, a noção de
localidade guarda relação com o nível de consolidação Nas análises sobre a transnacionalidade alguns autores
das identidades dos grupos no sentido de pertencimento tendem a concentrar-se nos aspectos representacionais,
a uma dada localidade. Falar do local não é reportar- buscando uma compreensão das identidades e ideologias étnicas
se apenas a um espaço geográfico, mas às relações que desenvolvidas na situação de contato. A transnacionalidade,
são desenvolvidas ali e como estão inseridas em um
nesse caso, é percebida como manifestação de representações
todo envolvente. Dessa forma, o conceito de localidade
pode ser trabalhado como um objeto homogêneo e coletivas, produzidas socialmente em uma situação de
relativamente localizado no espaço (1998, p.30). contato, apresentando ideologias de caráter étnico, identitário
e socioeconômico. O que importa é que esses atributos
O rio Parnaíba, no sentido de localidade é um mundo estão arranjados coerentemente dentro de um sistema de
da vida constituído por histórias relativamente conhecidas e representações, conferindo um significado social às ações
compartilhadas; espaço e lugar reconhecível e coletivamente sociais. A identidade, nesse caso, funciona como recurso social
ocupado. Ao se tratar de translocalidade, o rio Parnaíba que fundamenta a solidariedade do grupo, a partir do momento
apresenta-se com uma sobreposição, articulação, justaposição em que atributos e valores sociais passam a ser reconhecidos
de territórios. Quanto a territorialidades, é possível reconhecê- e assimilados coletivamente. Conquanto, a transnacionalidade
las no próprio rio, dependendo do recorte social que se faz, e não corresponde a realidades espaciais específicas, e creio ser
também ao observar indivíduos ou grupos de indivíduos que altamente difícil relacioná-lo a algum território circunscrito.
se apropriaram de determinados espaços nas margens do rio, Assim, o que se tem elaborado é uma matriz de sentidos, de
366 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 367
formas de representação e de construção de identidades, tanto reside no fato de a transnacionalidade apontar para a relação
quanto de uma história compartilhada, elementos básicos para a entre territórios e os diferentes arranjos socioculturais e políticos
construção e manutenção de qualquer comunidade. que orientam as maneiras como as pessoas representam
Em relação ao transnacionalismo, teóricos e observadores pertencimento a unidades socioculturais, políticas e econômicas.
tendem a perceber tal fenômeno como “novo”. Centenas de estudos Justifica sua opção por entender que o transnacionalismo
versam sobre o nascimento recente de comunidades culturais, coloca em perigo a lógica e eficácia de modos preexistentes de
econômicas, políticas e sociais que transcendem, transbordam e representar pertencimentos socioculturais e político. Para ele,
atravessam as fronteiras de múltiplas nações. Outros tendem a as condições históricas, econômicas, tecnológicas, ideológico-
identificar o começo do fenômeno com “alguma transformação simbólicas, sociais e rituais são os conjuntos de fatores, que criam
relativamente recente, por exemplo, com a revolução marítima as condições através das quais a transnacionalidade pode existir.
européia ou mesmo com a implosão dos impérios coloniais Enfim, a transnacionalidade, para Ribeiro, “faz parte de uma
europeus a partir da Segunda Guerra Mundial, ou, com a revisão família de categorias classificatórias através das quais as pessoas
das leis de imigração norte-americanas e com as melhorias técnicas se localizam geográfica e politicamente”. (RIBEIRO, 1997, p.3).
de transporte e comunicação desde os anos 1960” (MATORY,1999, Adverte que a “transnacionalidade necessita ser compreendida
p.57). Já os discursos atuais sobre o transnacionalismo tratam quase em relação a processos históricos que evoluem desde o século
que especificamente do movimento de capitais e dos movimentos XV, quando a Europa começou a expansão política, econômica,
dos trabalhadores. É Gustavo Lins Ribeiro quem adverte que “em social, cultural e biológica que sedimentou progressivamente o
muitas maneiras o transnacionalismo não é fenômeno ‘novo’, sistema mundial com diferentes graus históricos e geográficos de
considerando os papéis desempenhados na história do Ocidente integração”. (RIBEIRO, 1997, p.5). Vale dizer que a expansão
por instituições e elites intelectuais, religiosas e econômicas, com européia coincide com a expansão capitalista e as diferentes
suas visões e necessidades cosmopolitas” (RIBEIRO, 1997, p.5). realidades, em consequência, criadas. Historicamente, a expansão
O transnacionalismo, de fato, não é fenômeno novo, mas o seu capitalista baseou-se em formas de produção, responsáveis,
desenvolvimento entrelaça o amadurecimento do sistema de durante tempos coloniais e imperiais, pelo domínio de novos
Estados-nações, com o processo de descolonização e os avanços territórios e populações, tanto quanto pelo estabelecimento de
tecnológicos nas indústrias de comunicação e transportes. diversos fluxos de pessoas, capital, mercadorias e informações.
Gustavo Lins Ribeiro (1997) prefere considerar a Plantations, minas, grandes projetos, zonas de
processamento para exportação, são alguns exemplos
condição da transnacionalidade a sua existência de fato. Para de poderosos empreendimentos que transformaram
ele, a transnacionalidade é a consciência de fazer parte de um localidades em fragmentos do sistema mundial,
corpo político global enquanto fenômeno econômico, político dramaticamente aumentando as interconexões entre
e ideológico. Enfatiza que o transnacionalismo tem fronteiras e diferentes áreas. Fronteiras econômicas em expansão,
sobretudo as vinculadas à agricultura e pecuária,
similaridades com temáticas como globalização, sistema mundial e igualmente tiveram um importante papel na incorporação
divisão internacional de trabalho. Mas sua própria particularidade de novos territórios e populações (RIBEIRO, 1997, p.7).
368 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 369
Ribeiro concebe a modernidade como um rótulo Inicialmente foram marcados apenas por contactos
entre marinheiros e silvícolas, com intuitos meramente
frequentemente associado a esse processo, no qual o
comerciais, sem, porém, o propósito de povoamento. Estas
crescimento das forças produtivas, especialmente das indústrias relações comerciais antecederam em muito ao processo
de comunicação, informação e transportes, provocaram um de ocupação do solo com currais, e pela sua constância
‘encolhimento do mundo’: jamais suspensa, marcaram a primeira forma de nossa
civilização. [...] É certo, no entanto, que a descoberta do
[...] que se dá através de um processo que Harvey (1989), delta parnaibano é muito antiga, e ocorrências várias
denominou de ‘compressão do espaço-tempo’. [...] Os nos são conhecidas, tanto no litoral como no médio
aparatos de compressão do espaço-tempo têm suas norte piauiense. No litoral não é temerário presumir o
próprias genealogias e contribuem para a aniquilação aparecimento do branco em data anterior a 1514, dada
do espaço através do tempo, criando a possibilidade de a carta de Estevão Frois que, não somente confessa a
experimentarmos o mundo como uma entidade menor, existência de embarcações transitando pelo litoral norte,
mais fragmentada e mais integrada (Ibid., p.5). como adianta que ele não era estranho aos navegadores
portugueses (RIBEIRO, 1997, p.18,19; 23).
Tais possibilidades foram propiciadas, inicialmente, com
o desenvolvimento e crescimento das indústrias de transporte e Na segunda metade do século XVI, aparecem indicações
de comunicação. Aí se inclui, entre outros, locomotivas, barcos tanto do curso do Parnaíba quanto das relações socioculturais
a vapor, carros, telégrafo, telefone, rádio etc. Destarte, ondas deixados pelos primeiros exploradores. Sobre o curso do
de colonialismo e imperialismo precederam o advento do rio Parnaíba constata-se pelos monumentos cartográficos e
capitalismo transnacional, que, precursoramente, criaram as descrições que o figuram, tais como: os mapas de Desseliers
condições internacionais, ou se quiser, transnacionais. (1550) e Diogo Homem (1558). Luis de Meloque naufragou no
Maranhão em 1554 e se referiu ao Grande rio “questá antes de
Partindo desse pressuposto, o transnacionalismo tem llhegar ao Maranon” (BASTOS, 1994, p.421). Quanto às relações
sido um modo de vida desde o século XV. Coincidentemente socioculturais mantidas no litoral piauiense e no rio Parnaíba,
a comunidade parnaibana se constituiu no seio de um sistema talvez a mais antiga descrição conhecida seja o registro de Gabriel
econômico transoceânico, o do Atlântico. As fundações desse Soares, que expôs informações do navegante português Nicolau
sistema foram lançadas no século XVI com a expansão de Resende e alguns companheiros que naufragaram em 1571,
européia. Desde meados do século XVI, o rio Parnaíba e no litoral, e o percorreu até o rio, e ali viviam e conviviam com
seu vale receberam inúmeros exploradores. Alguns deles os índios já há 16 anos.
mantiveram contato, relações comerciais com os indígenas, e Deste rio do Meio à Baía do Ano Bom são onze léguas
até mesmo habitaram em suas beiras, principalmente no delta. [...] onde entram navios da costa [...] a qual Baía tem um
Pe. Cláudio Melo (1985) traz sinais da presença e de relações grande baixo; no meio e, dentro nela se vem meter no
comerciais no vale parnaibano, quando diz que os primeiros mar o Rio Grande dos Tapuias, e se navega um grande
espaço pela terra dentro, e vem de muito longe; o qual
sinais da presença do branco em terras piauienses vêm dos se chama dos Tapuias por eles virem por ele abaixo
tempos do descobrimento do Brasil. em canoas a mariscar ao mar desta baía [...] Como fica
370 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 371
dito, o Rio Grande está em dois graus da parte do sul, bem próximo ao litoral foi apelidada de Porto das
o qual vem de muito longe e traz muitas águas, por se Barcas, em virtude de acolher as canoas, os botes, as
meterem nele muitos rios: e, segundo a informação do barcaça e já mesmo os navios que exploravam a troca de
gentio, nasce de uma lagoa em que se afirma acharem-se produtos não só no litoral do norte e do sul do Brasil,
muitas pérolas. Perdendo-se, haverá 16 anos, um navio como também no interior da comarca do Piauí, através
nos baixos do Maranhão, da gente que escapou dele, do Parnaíba. Só a barra do Igaraçu vinha possibilitando
que veio por terra, afirmou um Nicolau de Resende, acesso a vários navios, monopolizando assim o comércio
desta companhia, que a terra toda, ao longo do mar até marítimo do Piauí e de parte da Capitania do Maranhão
este Rio Grande, era escalvada a maior parte dela [...] e permitindo ainda a afluência do capital indispensável
e que achara uma lagoa muito grande, que seria de 20 ao desenvolvimento. [...] Quando se manda executar o
léguas pouco mais ou menos [...]; e que mais adiante alvará de 1718 que criou a Capitania do Piauí, o Porto
achara uma outra muito maior, a que não vira o fim, das Barcas já era visitado por 9 e 10 navios (NUNES,
[...] e que em uma e outra havia grandes pescarias de 1981, p.26).
que se aproveitavam os Tapuias que viviam por esta até
este Rio Grande: dos quais disse que recebera, com os Para se ter uma ideia a respeito da navegação marítima e
mais companheiros, bom tratamento. Por este Rio Grande
entram navios e caravelões da costa e tem nele boa colheita, o
fluvial e do comércio parnaibano, basta verificar os documentos
qual se navega com barcos algumas léguas. (SOARES, 1938, oficiais e a imprensa. Conforme Relatório de 1857:
p.12-13, grifo meu). [...] em 1834, a alfândega registrava a entrada de 13 navios.
Dez dessas entradas foram feitas por 5 navios brasileiros
A possibilidade dos primeiros contatos e posteriormente pertencentes a negociantes com estabelecimento na
da fixação de europeus no vale parnaibano foi propiciado pelas vila de Parnaíba. Em alto mar operavam dois navios
condições dadas pelo processo que provocara o ‘encolhimento americanos e um espanhol [...] Em 1835, registram 11
entradas e já não aparece a navegação em alto mar. Em
do mundo’, o transporte. Desde a colônia e até por volta de 1848, três navios nacionais, o brigue escuna ‘Águia’ de
1830, existiu navegação marítima ligando o Estado e o comércio 155t, a sumaca ‘Parnaíba’ de 105t., e a escuna ‘Feliz
do Piauí ao Maranhão, ao Estado do Brasil e ao estrangeiro. Os Amizade’, de 55t., saíam de Parnaíba levando gado para
navios penetravam no rio Parnaíba pela barra de Tutoia. Para Caiena, na Guiana Francesa, voltando vazios. Em 1855,
a navegação de longo curso era feita por dois brigues
Odilon Nunes (1981, p.25), o delta do Parnaíba era destinado ingleses, em de 280t. e outro de 129 e um brigue escuna
a ser o escoadouro de grande parte da produção da bacia brasileiro de 133t, nos trechos, respectivamente, os dois
fluvial a que pertencia e estava também destinado, segundo os primeiros, entre Parnaíba e Liverpool e o ultimo entre
prognósticos dos que já estudaram as ocorrências econômicas, a Parnaíba e a Guiana Francesa.
ser o grande empório.
O relatório de 30.12.1858 registra que, em 1858, a
Ocorria que desde muito as barras que constituíam o Singlehurst, Nicholson & Cia tinha um navio que ligava
delta do Parnaíba eram visitados por barcos estrangeiros
em comércio de contrabando e, posteriormente mesmo
Parnaíba à Inglaterra. Quanto à navegação de longo curso,
em ação militar. [...] A feitoria que se estabeleceu no destacaram-se João Frederico Hayer, Gustavo Naef e Paul
braço do Igaraçu e que constitui um núcleo comercial Singlehurst Nephew & Cia, que ficou conhecida como Casa
372 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 373
Inglesa. Esses armadores construíram, em 1877, o vapor navegação fluvial e marítima e o problema do porto tornar-se-
Teresina destinado ao serviço da navegação entre Amarração iam temas centrais, e se pensava decisivamente na mudança da
(Luis Correia) e Liverpool. Esse relatório informa que “estas capital. Isso pode ser constatado em diversos documentos oficiais
embarcações traziam gêneros nacionais e estrangeiros e e periódicos, também em diversos autores, entre eles, Santana que
passageiros”. assim se referiu: “em 1845 institucionalizava-se o poder no Piauí.
[...] Participando o Piauí do comércio mundial, a exigir um porto e
O relatório do Movimento Portuário do ano de 1859 a
começando a pensar objetivamente no aproveitamento do Parnaíba
1880 apresenta a seguinte movimentação:
para o escoamento de sua produção, operou-se a mudança da
1859/60 – 4 navios ingleses, provenientes de Liverpool, capital para as margens do rio Parnaíba” (SANTANA,1965, p.40).
arqueando 1.238 t.
E Odilon Nunes afirma que, Vasconcelos, em uma frase, deixou
1860/61 – entraram e saíram 23 navios ingleses, sendo 5
procedentes de Liverpool, com 4.075 t. um lema de governo: “Encurtai as distâncias” enquanto Saraiva
1861/62 – 28 navios entrados e saídos, sendo 22 ingleses proclamaria a mudança da capital para Teresina, às margens do
e 6 americanos, de 4.333t.; 24 procederam de Caiena e Parnaíba, a prenunciar suas grandes capacidades de estadista.
4 de Liverpool. “Com isso, pretendia despertar forças produtoras da Província
1862-63 – 34 navios, sendo 23 ingleses, 8 americanos e 3
e promover seu comércio direto com a Europa [...]” (NUNES,
brasileiros, com 4.542 t.: 26 procediam de Caiena, 4 de
Liverpool, 3 do Maranhão 1 de Serra Leoa. 1963, p.88).
1863/64 – foram 13 ingleses, 10 americanos e 8 brasileiros
Entendendo o espaço fluvial, rio Parnaíba, como uma
com 5.448 t.
Entradas em Parnaíba: 1869 _ 73 navios; 1870 -76; 1871 construção social que institui mecanismos de controle para
– 85; 187 2– 75; 1880 – 6, sendo 50 brasileiros, 8 franceses determinar a reprodução das relações, optou-se em dar atenção
e 3 ingleses. ao elemento fundamental resultante da fundação desse sistema e
que desde então impera no rio e em todo seu vale; a comunidade
beiradeira.
Conforme matéria veiculada no jornal O Propagador, ano
II, n. 66, de 27 de abril de 1859: As comunidades beira-parnaíba podem ser compreendidas
Os barcos fluviais eram de negociantes estabelecidos como pequenas unidades de co-presença, tangíveis e ligadas
no Piauí e continuariam no comércio cotidiano mesmo imediatamente ao território sobre o qual se assentara. No entanto,
após a navegação fluvial a vapor. Para os negociantes cada vez mais essas comunidades passam a ser imaginadas
ofereciam a vantagem de trafegar o Parnaíba, fundando
e reinterpretadas em um ciclo de “contemporaneidade”
e demorando nos portos, conforme o interesse dos
proprietários e conveniência das populações ribeirinhas. e “cosmopolitanismo”. Mas tanto faz se tais comunidades
são imaginadas localmente ou se elas são construídas sobre
Depois de 1840, sobretudo a partir do Conselho de Estado, representações mais cosmopolitas, pois o que as caracterizam de
na medida em que se consolidava o ‘poder pessoal’ do Imperador, uma maneira geral são as “formas” ou estilos em que são imaginadas
o Piauí voltava-se para o comércio mundial. Daí porque a e construídas, vale dizer, experimentadas cotidianamente.
374 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 375
Localmente, as vozes dão vida aos discursos cotidianos mais as pessoas a migrarem; busca de oportunidades econômicas reais
tradicionais e arraigados nas práticas de co-presença, reforçando ou ilusórias, a lógica de movimento fornecida pelas indústrias de
os laços, valores e normas mais comuns e estáveis. Nesse caso, lazer, que criam regiões e pontos turísticos em todo o mundo.
as tradições são reforçadas localmente com o objetivo de manter Outros tipos de movimento envolvem grandes secas e ciclos de
estáveis as normas e valores que dão coerência às relações entre fome. Sabe-se, ainda, que as migrações são mecanismos constantes
indivíduos provenientes de categorias étnicas distintas. de proliferação de novas formas simbólicas e organizacionais da
vida cotidiana. Cada vez mais densos, os fluxos de deslocamento
O fato de o vale parnaibano ter sido disputado
populacional influem decisivamente na construção das
historicamente pelos ibéricos mostra que os beiradeiros
comunidades, sejam translocais, transnacionais sejam das
encontram-se numa “situação de fronteira”, que, segundo José
sociedades multiculturais. Assim pensado, o transnacionalismo
de Souza Martins (1997), não é só geográfica, mas também
é, antes de tudo, uma categoria de unidades sociopolíticas que
cultural. Sabe-se que o movimento humano cria condições
estendem a duração de fenômenos culturais politicamente
complexas para a produção e reprodução da localidade, na qual
transformadores.
laços de casamento, trabalho, negócios e lazer tecem uma rede
formada por várias populações circulantes, gerando localidades Os tipos de vida social criados das migrações, num contexto
que podemos chamar de translocalidades. Para Appadurai transnacional, têm recebido crescente atenção com estudos sobre
(1997), as translocalidades aparecem sob várias formas: diásporas, fronteiras, virtualidade e outros contextos. A exemplo,
temos J. Lorand Matory (1999) que procura reteorizar a diáspora
[...] enquanto uma categoria emergente de organização
humana, exigem atenção cuidadosa. Zonas de fronteira africana, ou seja, a migração transoceânica dos africanos.
estão se transformando em espaços de complexa Do séc. XV ao XIX [...] milhões de africanos foram
circulação quase legal de pessoas e mercadorias. [...] De embarcados à força para as Américas. Foi com certeza
forma semelhante, muitas zonas turísticas podem ser mais ampla do que a imigração dos europeus para as
descritas como translocalidades, mesmo se nominalmente Américas ocorridas no mesmo período. [...] No que se
localizadas dentro da jurisdição de um Estado-Nação refere à redescoberta do transnacionalismo, é bastante
específico. Todas as zonas de livre-comércio são de fácil negligenciar o óbvio: que a maciça dispersão de
alguma forma translocalidades. Finalmente, todo populações africanas e europeias precedeu em muito à
grande campo de refugiados, albergue de imigrantes fundação do Estado-nação no Novo Mundo (MATORY,
ou bairro de exilados e trabalhadores imigrantes é uma 1999, p.53- 70).
translocalidade.
As primeiras relações socioculturais que se constituíram em
O movimento humano costuma ser decisivo na vida social. comunidades beiradeiras no rio Parnaíba, além da comunidade
As oportunidades de intensificação das migrações surgiram da indígena que ali habitava, foram os náufragos e, em seguida, os
posição estratégica na geografia do comércio e do império, e franceses. As primeiras referências encontradas sobre os franceses
criou-se a necessidade de migrar pela busca de recursos naturais no espaço em estudo foi a obra de André de Thevét, ao escrever
e de uma base agrícola suficiente. Sabe-se que vários fatores levam ‘Les Français em Amerique’, obra contemporânea ao ‘Tratado
376 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 377
Descritivo do Brasil’, que nos deixa claro que não só o litoral, exploração de madeiras e pela cata de minérios preciosos, morando
como suas vizinhanças, “do Parnaíba ao Rio Grande (do Norte), pacificamente com os nativos, deram uma tonalidade importante
foram totalmente vasculhados, légua por légua, pelos franceses”. à expansão demográfica, “sem a qual a nossa civilização não teria
rapidamente se expandido, esmagada por aqueles predadores de
Um dos fortes indícios da presença e permanência dos
índios do século XVII que retribuíram o abraço do índio com a
franceses se relaciona ao primeiro caminho por terra da região.
violência da escravidão”. Para enfatizar sua afirmação do trabalho
Sabe-se que os caminhos são vias de comunicação, e sempre
civilizador que fizeram junto aos nativos, Pe. Melo se fundamenta
nascem da necessidade do intercâmbio entre pessoas e grupos,
nas obras de Claude Abeville, de Ives d’Evreux, de Betendorf e
cujo isolamento espacial precisa ser compensado pela aproximação
outros que dizem:
física. Sobre esse caminho Santana (1965) diz:
Os tremembés [...] receberam uma maravilhosa forma
Quando, porém os franceses fizeram amizades com de civilização, como o ensino da língua francesa, da
outras tribos além dos tramembés, chegando à Ibiapaba religião e ainda a prática de trabalhos artesanais e de
nasceu a conveniência de uma comunicação por terra, agricultura sem a marca portuguesa da escravidão.
porque pelo mar os ventos eram contrários, e pela praia Os Tremembés foram grandes aliados dos franceses;
as dunas eram martirizantes. Este primeiro caminho que também foram os índios da Ibiapaba, dos quais entre os
franceses e índios abriram foi o trilhado por Pero Coelho, mais fiéis estavam os Caratius e os Tacarijus. [...] os laços
por Jerônimo de Albuquerque, por Frei Cristóvão de com os franceses foram tão estreitos que se fez preciso
Lisboa e outros. Afastados os franceses cedo os silvícolas mais de um século para que aqueles índios fizessem a
sentiram a mudança de comportamento dos brancos. paz com os portugueses. Ao tempo em que os holandeses
Os portugueses violentaram tanto os tremembés que chegaram ao Ceará, sabemos que deixaram sinais de sua
se tornou quase impossível a convivência. O caminho presença no Piauí, ao menos em Frecheiras (interior de
se fez impraticável porque os aborígenes do litoral mal Cocal) e no Marvão, onde exploraram nossos minérios e
respeitavam os missionários. Nova via se fez necessária. nos deixaram abandonados, inclusive bigornas (MELO,
Isso aconteceu justamente quando começou a marcha 1985, p.34-35).
de interiorização, com a ocupação do médio e baixo
Itapecuru (SANTANA, 1965, p.7). Desde as primeiras incursões dos franceses, ao tempo do
seu estabelecimento, envolvendo no processo de expulsão duas
A presença dos franceses tanto quanto a de outros marchas, a de Pero Coelho e a de Jerônimo de Albuquerque, e,
europeus é afirmada e reafirmada por diversos autores que se em 1626, a passagem de Frei Cristovam de Lisboa complementam
debruçaram sobre a história do “descobrimento”, da Constituição, o argumento da fundação do processo. A partir de 1656, veio
e povoamento do Piauí. A exemplo, temos Pe. Melo que diz (1985, a incursão e instalação dos missionários jesuítas. A penetração
p.34), “[...] não nos são desconhecidas as afirmações de que muitos de grande significado na bacia parnaibana foi a dos currais. Em
dentre os comerciantes espanhóis, franceses e holandeses que 1682, já era intensa a fundação de currais nos sertões do Piauí,
rondaram pelas costas norte do Brasil deixaram entre os índios também chamados sertões de dentro pelos vaqueiros do São
alguns companheiros que seriam intérpretes e intermediários nas Francisco. Foi em torno das fazendas de gado e da expansão
trocas que faziam.” Enfatiza que esses homens, pelo comércio de dos currais que as comunidades beiradeiras se formaram e/ou
378 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 379
ampliaram. Vários registros demonstram que os municípios De fato, surgiram em consequência da mudança da capital
surgidos no Estado do Piauí são marcados pelo ciclo do gado, vários povoados à beira do rio Parnaíba, que mais tarde se
no fim do século XVII e início do XX. tornaram vilas, cidades, empórios comerciais, e uma incipiente
[...] na Vila Velha da Parnaíba, estendia estaleiros em agricultura com veleidades de comércio exportador, baseado
paus sobre forquilhas, prenúncio das charqueadas. Dali no algodão e no fumo. Posteriormente, a comunidade beira-
também partiam canoas a conduzir carnes para São parnaíba viu-se acrescida por levas de migrações fugidias da seca
Luis e Belém do Pará, donde traziam as mercadorias e com o advento da navegação. Parafraseando Odilon Nunes
contrabandeadas que seriam vendidas no interior. [...]
(1966), como consequência de sua bacia hidrográfica, o Piauí
Maia da Gama, que visitava o Piauí, envaidecia-se de
haver feito a pacificação nas terras que agora percorria sempre foi um corredor de migrações. É a bacia do Parnaíba
[...]. Dentro em pouco, no delta do parnaíba erguem-se passagem obrigatória dos retirantes, porque está situada entre
caiçaras para acolher a gadaria que se trazia do sertão as terras castigadas do Nordeste e as frescas e ubérrimas terras
de dentro, para as charqueadas, cujos produtos eram do Maranhão. A transumância como fenômeno demográfico
vendidos no litoral do norte e no litoral do sul do Brasil.
manifesta-se mesmo nos períodos normais. Ressalto, porém,
Até mesmo para Portugal. [...] Surgiram esparsos pelo
vale do Parnaíba, novos povoadores, e se estabelece, que os flagelados das secas, tocados pela fome, também
em canoas e botes, um pequeno comércio, o que já se testemunharam a peculiaridade do território fluvial. No relatório
fazia pelo interior em costas de cavalos e de éguas [...] de 9.9.1867, Adelino Antônio de Luna Freire tratou da fixação
(NUNES, 1981, p.22-23). de emigrantes norte-americanos na bacia do Parnaíba. Vale
ressaltar que no vale do Parnaíba fundaram-se aldeamentos de
Observei que foi em consequência da expansão dos currais indígenas, colônias nacionais além das tentativas de se fundarem
que o fluxo de migrações e eixo da economia da Província colônias de estrangeiros, europeus e americanos do Norte. Outro
deslocara-se para as margens do rio Parnaíba, e, de modo mais aspecto curioso da constituição das comunidades beiradeiras foi o
positivo, passaria a ter função histórica com a mudança da de fundar, fazer e estabelecer em fazendas nacionais, às margens
capital e a navegação a vapor iniciada em 1859. Odilon Nunes do rio Parnaíba, asilo educacional de libertos da nação. Contudo,
(1972, p.139) afirma essa preposição quando diz: quando o vale do Parnaíba fora efetivamente ocupado, o Estado
[...] com a mudança da capital de Oeiras para Teresina do Piauí adquiriu sua alta expressão econômica e humana.
aumenta consideravelmente a população ribeirinha
do Parnaíba, e essa ocorrência manifesta-se mais Como se vê, a comunidade beiradadeira do rio Parnaíba
intensamente com a navegação a vapor. Surgem se fez por meio de migrações. Sabe-se que em comunidades
povoados nas margens do rio e suas vizinhanças, e migrantes, há com frequência um esforço no sentido de
como conseqüência, há um estímulo para a incipiente
agricultura da Província [...] E assim ficou patenteado criar condições para adaptação. Os sentimentos em relação
que o principal fator do desenvolvimento é a ao espaço social podem demonstrar afeto, segurança,
perspectiva de fácil recurso de transportes, atraindo e solidariedade e reverência. Qualquer lugar, seja onde for,
nucleando populações. pode ser reverenciado e incorporado à maneira de ser, de tal
380 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 381
forma que temos a impressão de que o indivíduo sempre viveu [...] a ordem global busca impor, a todos os lugares, uma
única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo
ali. O espaço percebido e vivido torna-se, imediatamente, um
segundo os diversos modos de sua própria racionalidade.
espaço socialmente sacralizado, pois se integra à comunidade, [...] Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão
passa a fazer parte de uma experiência dominada. Enquanto global e de uma razão local, convivendo dialeticamente
os migrantes experimentam o sofrimento da nostalgia, ao (SANTOS, 1996, p.272).
chegar em uma terra desconhecida, experimentam também
diferentes conexões com o espaço, pois, o espaço é fluido e Dessa forma, comunidades transnacionais, são, antes de
deve ser conquistado, deve ser experimentado à sua maneira. tudo, construções simbólicas poderosas quanto ao objetivo de unir
Nesse sentido, de uma forma eminentemente dialética, o a diversidade étnica em uma tradição cultural independente.
indivíduo constrói sua identidade a partir da sua localização Há autores que tendem a identificar a formação de
com relação a um grupo e da sua relação com a totalidade, comunidades transnacionais como algo que se fez presente,
tendo o espaço como paradigma, de tal forma que o território após os avanços tecnológicos nas indústrias de comunicação e
passa a ser determinado e vivido através do conjunto de relações transportes ocorridos nas últimas duas ou três décadas. Desse
institucionalmente estabelecidas pela sociedade. Portanto, modo, subentende-se que a moderna tecnologia e o sistema
na raiz da percepção do território está a percepção do nós, a econômico atual criaram as condições para o transnacionalismo.
construção básica da identidade coletiva e, por extensão, a sede Particularmente, entendo referir-se a uma (re) descoberta do
do estabelecimento da diferença, o limite para a construção da transnacionalismo, já que a cultura, em todos os lados do Oceano,
alteridade enquanto uma situação antagônica por definição. desenvolve seu próprio conceito de transnacionalismo.
Portanto, se o território é a representação coletiva fundamental
desta sociedade, a territorialidade é a representação coletiva A dificuldade, talvez, em se compreender o (trans)
fundamental para o estabelecimento da diferença. nacionalismo pode ser apenas a insistência em uma lógica ou em
um modelo convencional sobre os Estados-Nações modernos.
Creio que uma comunidade assim deve ser imaginada Como podemos ver, o transnacionalismo é um desafio não só às
transnacionalmente, porém, integrando as práticas e discursos questões de política internacional e planejamento estratégico de
locais a uma nova dimensão transnacional. Não restam dúvidas políticas públicas, mas também um desafio às teorias sociais atuais,
que o processo de construção das comunidades transnacionais que parecem inócuas quando tentam explicar as organizações e os
implica a justaposição de diferentes formas simbólicas e sentimentos nacionalistas e étnicos. Há símbolos e representações
experiências ou práticas sociais. A manutenção de valores específicos que me parecem compor o chamado transnacionalismo.
comuns e das práticas culturais que se perpetuam no cotidiano Se por um lado as tradições se baseiam em discursos locais antigos,
depende das relações interpessoais que ocorrem nos lugares por outro lado a inserção dessas memórias, tradições e discursos
e demandam decisões que em muito diferem de decisões de em um processo histórico contemporâneo transforma o mito em
caráter em uma escala mais macro. Santos (1996) confirma a uma realidade alternativa, reinventando-o e reinterpretando-o.
afirmação ao enunciar que: O transnacionalismo, como evento contemporâneo do processo
382 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 383
“globalização”, produtor de novos significados e relações, cumpre transnacionalidade referem-se à existência do Estado-nação e as
um papel decisivo neste novo esquema de organização da vida suas relações internas e externas. É importante lembrar, segundo
cotidiana das migrações internacionais. Em contrapartida ao Elias (1994), que “[...] integração é, de fato, uma metáfora sobre
movimento de integração global, o mundo social se fragmenta a crescente quantidade de território e pessoas englobada por
cada vez mais, opondo resistência à massificação e às tentativas de sistemas socioculturais, políticos e econômicos”. Integrações são,
homogeneização cultural. portanto, instâncias fundamentais de formação identitária.
A emergência das comunidades transnacionais não é, Sabe-se, também, que nenhuma forma de representação
portanto, o resultado das inovações organizacionais que dão social, ou mesmo, de organização política pode desenvolver sem
sentido ao mundo contemporâneo. Elas se fundamentam em que os atores sociais se introduzam profundamente em seus
formas simbólicas, instituídas a partir da justaposição de símbolos objetivos. E o transnacionalismo não é uma exceção. Atores sociais
locais e globais inseridos no tempo e no espaço. Mas, ao instaurar interessados na transnacionalização são portadores e promotores
uma nova ordem e, com ela, uma nova lógica de contato que deste tipo de visão do mundo. Em síntese, redes reais ou virtuais
define outro tipo de organização social, na qual as experiências são matéria-prima da qual a política transnacional atual se faz.
humanas passam a ocorrer em um contexto integrado, local e A Internet é o instrumento que interconecta pessoas de todo o
global, tradicional e cosmopolita, periférico e central, essencialista mundo. É também o universo que expande o contato por meio
e epocalista produzem, é obvio, novos significados e relações, ou da intensa propaganda sobre o espaço parnaibano. Contudo,
seja, novas construções simbólicas. Essas novas formas simbólicas compreendemos que, de fato, há uma aceleração e intensificação
e essas experiências proliferam por meio das novas mídias do fluxo de pessoas em escala global também no vale do Parnaíba e
tecnológicas que, associadas ao mercado, atingem diferentes principalmente no litoral e delta parnaibano. Um dos responsáveis
dimensões de integração social, possibilitando a formação por tal intensificação é o turismo, “indústria” de crescimento
de diferentes comunidades transnacionais. A emergência da rápido. À medida que os sistemas de comunicação e transportes
globalização nos mostra uma tendência diferente: a integração se desenvolvem e seus custos relativos diminuem, ele se espalha
por meio da virtualidade, representando o surgimento de novas e prospera, favorecendo contatos temporários com populações
formas simbólicas de relacionamento humano. nativas. Observamos, também, que as territorialidades instituídas
Sabe-se que as relações socioespaciais resultam em por determinados códigos culturais podem ser substituídas por
formas de representações coletivas associadas com identidades outras, originadas por lógicas distintas e por um novo universo
sociais, culturais e políticas, através das quais as pessoas podem cultural. No delta parnaibano, a cada dia é mais intenso o fluxo de
reconhecer seu pertencimento a uma unidade. Essas relações informações, pessoas, materiais, energia etc., entre as diferentes
socioespaciais nada mais são do que integrações formadas áreas geográficas, sejam elas pertinentes à sociedade nacional ou
pela localidade, onde uma pessoa ou grupo conduz atividades global, o que intensifica a produção de valores e comportamentos
cotidianas regulares, interagindo ou sendo expostos a diferentes que alimentam e transformam padrões específicos da sociedade
redes sociais e instituições. Já nacionalidade, internacionalidade e beiradeira. No entanto, tal processo não resulta na uniformização
384 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 385
das diferentes áreas, podendo-se observar especificidades locais maior respeito para seus conterrâneos são aquelas que atingiram o
que, muitas vezes, por serem diferentes firmam-se como pontos de sucesso econômico com a navegação e/ou com os relacionamentos
atração transnacionais. Constatou-se que a aparente simplicidade internacionais. Esta particularidade deixou-me imensamente
e a falta de dinamismo da forma de abordagem da categoria impressionada, em particular, por ver uma comunidade que se
mascara as relações complexas que imperam em tal espaço, sente sentimentalmente ligada a América do Norte e à Europa,
adquirindo sentido apenas quando se entendem os códigos que em razão dos contatos e comércio de seus primeiros séculos e
as sustentam e lhes dão sentido particular, a virtualidade. principalmente pelo século XIX e início do século XX propiciados
pela navegação. Transmitem, ainda, seus mais ternos sentimentos
Este ensaio se concentrou, basicamente, na análise
em relação à presença de estrangeiros que ali tiveram influências,
dos processos de construção das representações sobre o
integrados na vida política, administrativa e financeira.
transnacionalismo e de como tais representações foram e são
utilizadas com o objetivo de fundamentar identidades, grupos e Aplicando a análise da nossa compreensão sobre o
relações. Como todas as representações, as que existem sobre o fenômeno como processo, deparamo-nos com questões recente,
espaço do vale do rio Parnaíba também mudam, dinamizam-se e tais como: a da formação das comunidades transnacionais,
se reestruturam nesse intuito. As relações sociais que produziram/ a modificação das relações entre estas comunidades, e a
produzem o espaço do rio Parnaíba não resultam apenas em emergência de novas identidades e grupos no contexto da
formas materiais e funcionais que sustentam o processo de globalização. Exprimiu a representação do espaço não como
produção capitalista. Elas também são marcadas pelos códigos e forma geométrica, mas sim como a representação das relações
símbolos que se constroem na vida cotidiana e que estabelecem que as sociedades mantêm com esta forma geométrica. Ressalte-
um sentido particular no processo de produção do lugar. Um se que este é um caminho que mal começou a ser percorrido na
olhar histórico sobre o vale do Parnaíba deve contemplar o historiografia recente e que tem um vasto campo a ser explorado
acionamento destes códigos, associados a contextos e domínios diante de sua crescente complexificação social. Contudo, creio
específicos, a universos simbólicos distintos, nos quais os que este processo só poderá ser compreendido por meio
indivíduos estão sendo permanentemente reconstruídos a partir da interação entre as dimensões, lugar/espaço e local/global
das relações que mantêm. concomitantemente. Pode também ser compreendido como
a expressão de uma política sobre discursos e práticas locais e
Os modos de representar pertencimento a unidades
globais, capaz de reinventar tradições, construir identidades e
socioculturais aumentam em complexidade no tempo, através
imaginar, simbolicamente, uma comunidade mais ampla.
de processos de integração das pessoas e territórios. Por meio
do sacrifício, do trabalho árduo e de uma vontade de correr A discussão acima não esgota, longe disso, as referências e
riscos, alguns parnaibanos ganharam a posse de instituições que discussões sobre as categorias apresentadas procuraram reunir
apoiam a sua existência. O respeito pelo passado cultural e pela preocupações conceituais e metodológicas consistentes sobre
experiência histórica comum é uma virtude pública importante o tema. Apesar de a grande fragmentação entre as diversas
naquela comunidade-beiradeira. As pessoas merecedoras do categorias teóricas e níveis de interação, defendo a ideia de
386 Tempo, Memória e Patrimônio Cultural Gercinair Silvério Gandara 387
que, embora exista uma grande diversidade e uma constante Referências
fusão de várias representações do imaginário, as comunidades
possuem valores, ou melhor, símbolos. Estes símbolos podem ser
entendidos aqui como a condensação da essência é onipresente
e fundamental para a sobrevivência de qualquer comunidade. ARANTES, Antonio A. (Org.). O espaço da diferença. São Paulo:
Ao integrarem o espaço segundo as forças, regras, valores e Papirus, 2000.
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estabelecidos em uma situação de contato cultural.
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Alimentada pelo desejo de desvendar o fenômeno do Piauí. Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 1994.
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acreditei que as categorias discutidas poderiam constituir
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interessante “objeto” para minhas análises teóricas, apontando
para problemas empíricos pouco compreendidos e, BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa / Rio de Janeiro:
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