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OS DOIS SENTIDOS DE 'SER' NOS LIVROS VII, VIII E IX

1
DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES

César Romero Fagundes de Souza*


e-mail: caesarsouza@gmail.com

Resumo: Neste trabalho, pretendo investigar o conceito de substância sensível, tal como é apresentado por
Aristóteles na Metafísica, tendo por guia a distinção entre os dois sentidos do ser —substancial e
acidental—, tanto no nível da realidade como no do discurso, proposta pelo comentário de Pierre Aubenque
em ''El problema del ser en Aristóteles''. O trabalho pode ser lido considerando-se dois aspectos: o teórico,
constituído pelas partes I, II e III, e o prático, constituído pelas partes IV, V e VI, que possuem um carácter
notadamente especulativo. Na parte I, com base no comentário de Aubenque, procuro situar o problema
acerca do fundamento da distinção entre os dois usos do termo 'ser' nos enunciados da forma 'S é P', que
segundo o autor não é lingüística, porém, ontológica. Em outras palavras, o fundamento da distinção entre
os dois tipos de enunciação —a da essência e a dos atributos— radica na realidade. Na parte II, de maneira
sucinta, apresento as três posições clássicas acerca do ser que antecederam à de Aristóteles —e que foram
vivamente utilizadas pelos sofistas em suas argumentações—, a saber, a de Heráclito, a de Parmênides e a
de Platão. Na parte III, seguindo a orientação adotada, procuro situar o problema acerca da determinação
da substância nos Livros VII, VIII e IX da Metafísica. Nas partes IV, V e VI do trabalho, procuro aplicar os
conceitos desenvolvidos por Aristóteles para o caso da substância sensível na determinação de uma
substância sensível particular que adotei como exemplo para análise. Trata-se de tentar aplicar a solução
que Aristóteles formulou para o problema da mudança ao caso particular de uma substância sensível
apresentada em diferentes situações que envolvem os tipos de mudança por ele estudados.

I. Conforme Aubenque, Aristóteles na Metafísica2, distingue entre o discurso geral significativo e a


predicação, suscetível de verdade ou falsidade3, que depende do primeiro, pois uma proposição
certamente tem de ser significativa antes que se verifique se é verdadeira ou falsa, mas um termo
pode ser significativo sem que, no entanto, haja na realidade aquilo a que corresponde, ou seja, um
termo pode significar algo sem que seja verdadeiro ou falso. Para Aubenque, a proposição é ''o
lugar da verdade e da falsidade'', e é ''enquanto verdadeiro, e não enquanto discurso, que se diz que
o discurso se assemelha às coisas''4. A propriedade de representar a realidade é conferida à
proposição, não pelo fato de os termos que a compõem serem signos significativos dos objetos que
representam, porém, devido ''ao ato mesmo da composição'' 5 desses signos em sua intenção de
representar o real. Para Aubenque, Aristóteles não põe em questão a ''função designadora das
palavras'', uma vez que a experiência humana da linguagem demonstra que elas cumprem bem seu
papel de referir objetos na realidade, pois ''o êxito de uma designação consagrada pelo uso indica
que tal designação não é arbitrária e que à unicidade do nome tem de corresponder a unidade de
uma espécie ou de um gênero''6. Para Aubenque, todas as dificuldades geradas em torno das
definições radicam numa mesma dificuldade mais fundamental, a saber: ''como definir, com nomes
que são comuns, uma essência singular?''7, pois, conforme Aristóteles, o enunciado ''deve compor-
se de palavras; mas quem formula uma definição não forjará um nome [próprio], porque nesse caso
seria imcompreensível, em troca, as palavras estabelecidas são comuns a todos os membros da

1
Trabalho escrito em 1994.
*
Doutorando em Filosofia, PUCRS.
2
Aristóteles, Metafísica, trad. de Hernán Zucchi, ed. Sudamericana, B.Aires, 1986.
3
Aubenque, P. , El problema del ser en Aristóteles, trad. de Vidal Peña, Taurus Madrid, 1987., p.108.
4
Ibid., p.109.
5
Id., loc.cit.
6
Ibid., p.111.
7
Ibid., p.114.

1
classe que designam, portanto, estão em condições de aplicar-se também a outros fora da coisa
definida''8.
Segundo Aubenque, é o fato de as palavras serem limitadas em número e representarem
coisas ilimitadas que acarreta a plurissignificação, pois uma mesma palavra muitas vezes recobre
significações diferentes em diferentes situações em que ocorrem. Esta propriedade da linguagem
pode ser ela-própria prejudicial à ''sua capacidade significante''9; e é exatamente contra o uso
indiscriminado da plurissignificação das palavras por parte dos sofistas em suas argumentações 10
que Aristóteles chama a atenção quando reclama, no Livro IV, que uma palavra necessariamente
tem de significar algo determinado, pois, do contrário, a significação não será possível e, sem esta,
toda a linguagem assim como o diálogo entre os homens 11. O método por meio do qual Aristóteles
irá refutar os sofistas será o de distinguir as significações das palavras, buscando a unidade
significativa destas, pois, é ''necessário, então, que cada palavra seja conhecida e que revele algo,
não muitas coisas, senão só uma. Pois se a palavra significa distintas coisas, tem que por-se a claro
a qual destes significados a palavra se aplica. Porque, o que diz que uma coisa é e não é, nega o que
disse, de modo que nega que a palavra signifique o que significa'' 12. A chave, portanto, da
argumentação de Aristóteles contra os sofistas está no princípio de não-contradição —o 'critério da
unidade mínima de significação da linguagem'. Segundo Aristóteles, este princípio é o mais seguro
de todos e a respeito do qual é impossível equivocar-se, ''pois é necessário que semelhante princípio
seja o mais conhecido de todos os princípios e que não esteja baseado em hipóteses'', porque é o
princípio que antecede a todo o conhecimento daquele que pretende conhecer algo. O princípio é
assim formulado por Aristóteles, no Livro IV: ''é impossível que simultaneamente e segundo a
mesma relação o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo sujeito''13. O ardil inescapável
deste procedimento de refutação consiste em pedir para o adversário que diga alguma coisa, que
signifique algo por intermédio das palavras. Se ele conceder, não poderá deixar de admitir que ao
falar suas palavras possuem um sentido ao menos, caso contrário, não pode entrar em conversação.
Conforme Aubenque, a unidade objetiva que garantirá a significação do discurso é o que
Aristóteles chama a essência (ousia), pois ''o termo 'ser' ou o termo 'não-ser' significam algo
determinado, de modo que nem tudo poderia ser 'assim e não-assim'. A sua vez, se admite que
'homem' significa uma só coisa, a saber: animal bípede. Por 'significar uma só coisa' me refiro ao
seguinte: se homem significa isto [que dissemos], e se algo é homem, isto será a essência de
homem. Pouco importa se se dissesse que homem tem muitos significados, contanto que fossem

8
Aristóteles, op.cit., 1040a 11-14.
9
Aubenque, ob.cit., p.116.
10
Cf. Aubenque, ''O paralogismo, no sentido estrito do termo, consiste efetivamente em tomar a mesma
palavra em diferentes acepções ao longo de um mesmo raciocínio; se produz assim a ilusão de que se
significa algo, quando nada se significa, pois se lhe dão várias significações a uma mesma palavra: a
homonímia é tão só a aparência da significação, e por isto é o fundamento dessa sabedoria aparente, a
sofística''. Op.cit., p.117.
11
Pois, conforme Aristóteles, há ''nos entes um princípio com respeito do qual não podemos errar, senão, ao
contrário, do qual necessariamente temos sempre de reconhecer a verdade. Nos referimos ao seguinte: não é
possível que a mesma coisa, em um e ao mesmo tempo, seja e não seja; e outro tanto ocorre com os opostos
do mesmo tipo. De tais axiomas não há total demonstração, senão só prova ad hominem. Não há princípio
mais certo que aquele, o qual é o ponto de partida da realização do silogismo; e é necessário que exista se é
que há de ter demonstração completa. Mas se se quer demonstrar que está no falso o que sustenta
proposições contraditórias, basta com que se arranque dele a admissão de uma proposição de tal tipo que seja
idêntica com a que assegura que uma mesma coisa não pode ser e não ser em um e no mesmo tempo, mas
não que pareça ser idêntica. Pois só assim se poderia obter uma demonstração válida contra o que sustenta
que proposições opostas são verdadeiras a respeito da mesma coisa. Pois aqueles que têm intenção de se
comunicar reciprocamente num diálogo vão por-se de acordo entre si. Se isto não ocorre, como poderá haver
para eles comunidade de diálogo?''. Op.cit., 1062a 1-13.
12
Ibid., 1062a 14-18.
13
Ibid., 1005b 19.

2
limitados em número, pois se poderia assinar um nome diferente a cada enunciado'' 14. Conforme
Aubenque, é a permanência da essência que será o pressuposto do fundamento da unidade do
sentido, pois ''as palavras têm um sentido porque têm uma essência'' 15. O princípio de contradição
resultará no fundamento da linguagem, pois a antecede enquanto condição de sua possibilidade.
Apresentado assim, este princípio tem duas faces distintas, porém indissóciáveis, pois uma
fundamenta a outra, a saber: a lógica (uma vez que é a regra fundamental do pensamento) e a
ontológica (pois as coisas têm que ter uma essência) 16.
Conforme Aubenque, Aristóteles, a fim de resolver as dificuldades sofísticas acerca da
predicação, irá distinguir entre substância [essência] e acidentes, na realidade, mas ao ser transposta
ao plano do discurso, a correlativa distinção entre sujeito e predicado não se demonstrará eficaz,
pois, também a ''essência (ou certa parte dela) pode atribuir-se''. Pois, tanto os enunciados
atributivos quanto os enunciados de identidade, os que expressam a definição, são enunciados
predicativos, ou seja, ambos têm a forma 'S é P'. Isto quer dizer que em ambos 'ser' está ligando um
predicado ao sujeito. Portanto, a distinção entre enunciados predicativos e de identidade não é
suficiente para caracterizar o uso do 'ser' nos enunciados17. Para Aubenque, o problema
fundamental de Aristóteles diz respeito, não ao significado, mas às significações que 'ser' tem nestes
dois tipos de enunciados (os de essência e de atribuição) 18. E é através da distinção entre o
significado do termo 'ser' e as suas significações 19 que Aristóteles irá poder resolver as dificuldades
aparentes propostas pelos sofistas, pois o erro fundamental dos discursos de todos os filósofos que
precederam a Aristóteles consistiu no fato de quererem ''averiguar os elementos do ser antes de
distinguir as distintas significações da palavra humana sobre o ser''20.

14
Ibid., 1006a 32-5/1006b 1-3.
15
Aubenque, op.cit., p.124.
16
Cf. Aubenque, ''A análise da linguagem, reconhecida como significante, nos fez rebaixar o plano
''objetivo''das palavras, único que conhecem os sofistas, em direção ao plano, problemático sempre ao ser
''subjetivo'', das intenções. Mas o acordo, ou ao menos o encontro destas no seio da realidade humana do
diálogo nos levou a pressupor como lugar de tal encontro uma nova objetividade, que é a do ser. A
objetividade do discurso, posta em perigo pela subjetiviodade da intenção (a qual, considerada isoladamente,
corria o risco de aparecer como convenção) termina por fim restaurada em nome da intersubjetividade do
diálogo''. Op.cit., p.130.
17
Cf. Aubenque: ''Deve admitir-se, pois, que existem ''predicados que significam a essência'' e outros que
significam o acidente. O exame da linguagem não nos serve aqui de nada, posto que a forma (S é P) é em
ambos os casos a mesma. para distinguir a predicação acidental da essencial, haverá que recorrer então a uma
reflexão sobre as distintas significações que nossa intenção confere, em cada caso, à cópula ser''. Op.cit,
p.137.
18
A diferença entre uma linguagem atribuitiva e uma linguagem significativa consistiria no fato de que: ''no
plano da atribuição, é legítimo dizer que uma coisa é isto e não-isto; mas no plano da significação haveria
nisto uma contradição. ''Significar a essência de uma coisa é significar que nada distinto disso é a essência
dessa coisa''(IV, 4, 1007a 26). A unidade da significação expressa e supõe a incompatibilidade das
essências''. Cf. Aubenque, op.cit., p.132.
19
Cf. Aubenque,''A originalidade do método de Aristóteles consistirá em ''escapar das contradições de uma
física do ser (...) mediante uma análise das significações do ser, ao que ser reduzirá em definitivo a
ontologia'', pois ''a ontologia não pode constituir-se mais que através do discurso humano ''.(...)''As aporias
megáricas ... não são sinal, como creu Platão, de uma ignorância da ontologia; senão que manifestam
dificuldades que são elas mesmas ontológicas, posto que tocam no mais alto grau ao discurso humano acerca
do ser: portanto, há que dedicar-se a resolvê-las em seu próprio terreno. Desta reflexão sobre as aporías
nascerá a ontologia aristotélica; mais ainda: se é certo que, através dela, a ''solução das aporias'' é
''descoberta'', podemos dizer que a ciência aristotélica do ser enquanto ser não é outra coisa que o sistema
geral da solução das aporias''. Op.cit., p.153-4.
20
Ibid., p.130.

3
II. Antes de Aristóteles, havia basicamente três posições relevantes a respeito da possibilidade do
conhecimento humano, a saber, a de Heráclito, a de Parmênides e a de Platão. A posição de
Heráclito era a de que os objetos sensíveis do mundo, percebidos pelos sentidos humanos, eram tais
quais pareciam ser, ou seja, mutáveis, múltiplos. Para ele, tudo o que aparecia como imóvel,
imutável e uno, era ilusão dos sentidos, pois na verdade, o único dado imutável e certo acerca do
mundo sensível ao qual a razão poderia aspirar era o de que tudo no mundo está constantemente a
mudar, e, desse modo, os objetos e seres como estando em constante movimento. A posição de
Parmênides, ao contrário, considerava o mundo como sendo um ser único e eternamente imutável.
Por conseguinte, a existência de seres e objetos, em sua pluralidade, assim como suas variações —o
movimento e a mudança—, tal como percebidos pelos sentidos, era ilusória, pois, para Parmênides,
o ser é necessariamente uno, imutável e imóvel. Isto significa dizer que o ser não pode mudar,
deixar de ser. Para ele, não é possível pensar o não-ser. Já a posição de Platão procurou, de certo
modo, conciliar ambas as posições anteriores que herdou —de Heráclito e Parmênides—,
concedendo razão a um e a outro em diferentes níveis de consideração da realidade. A Heráclito
concede que o mundo se apresenta aos sentidos como mutável, composto de objetos distintos em
movimento, sujeitos, portanto, à corrupção. Estes objetos do mundo sensível, ao serem pensados
pelo intelecto, apresentam-se como cópias imperfeitas do verdadeiro ser, do único ser perfeito. E só
são pensáveis porque participam destas 'Formas ideais', que são ''percebidas'' pelo intelecto e que
dão o padrão de julgamento e reconhecimento dos seres sensíveis. Estas 'Formas perfeitas', ou
Idéias, são imóveis, imutáveis e unas. Neste sentido, ao apresentar estas Formas, ou Idéias, como os
objetos inteligíveis da razão, como paradigmas —os verdadeiros modelos dos seres sensíveis—,
Platão concede a Parmênides que o ser verdadeiro é uno, estático e imutável.
A conseqüência direta da primeira posição, a de Heráclito, é a de que o conhecimento
verdadeiro —no sentido em que nos fala Aristóteles, conhecimento científico—, é impossível, uma
vez que o real não é passível de nenhum juízo que sobreviva ao decurso temporal, pois tudo é
mutável. Esta posição exige que se conceba o mundo tal como ele é percebido pelos sentidos,
portanto, mutável. Seguindo esta posição de Heráclito, o conhecimento verdadeiro é impossível. A
conseqüência direta da segunda posição, a de Parmênides, é a de que o conhecimento do ser
verdadeiro é, além de possível, o único a que se pode aspirar a obter por meio da razão, pois a sua
exigência da imutabilidade do ser para ser pensado, apresenta-se como o princípio fundamental do
pensamento, a saber, o de que não é possível à razão pensar o não-ser (o contraditório). Ao
conceber o real segundo os critérios de funcionamento do pensamento, como não podendo ser
contraditório, esta posição considera impossível afirmar o falso, uma vez que ele não pode ser
pensado. A alternativa de solução de Platão, ao conceber as 'Formas' como entidades existentes
separadas dos seres, termina por multiplicar o problema acerca da determinação da verdade,
tornando ainda mais difícil o acesso a ela.
Seja qual for o modo de conceber a realidade sensível dos seres na natureza, nenhum
candidato a teoria ou sistema de descrição e de explicação desta realidade negará que, por
intermédio dos sentidos, percebemos os entes, no decurso temporal, ora como apresentando um
aspecto ora outro, ora estando num lugar ora n'outro, etc.; ou seja, que percebemos seres móveis e
mutáveis. Conhecimento, no sentido estrito do termo, é conhecimento do verdadeiro,é
conhecimento daquilo que é. E, para Aristóteles, ''é necessário que [aquilo] que muda seja um ente;
pois a mudança parte de algo e se encaminha a algo'' 21. Em outros termos, é necesário que daquilo
que se apresenta aos sentidos como suscetível de mudanças, algo permaneça dele que permita ao
final destas reconhecê-lo como tal, como único, como aquele que sofreu estas mudanças. Nesse
sentido, o que é necessário para conhecer o ser mutável é que algo dele permaneça. É necessário
que se possa pensar dele um substrato determinável, univocamente, como o veículo destas
modificações percebidas. Ora, admitindo que, conforme Aristóteles, por detrás destas modificações,
exista mesmo um 'algo' que permaneça sendo como que um suporte, uma base, destas modificações
—já que é necessário que estas se dêem em algo— devemos tomar a pergunta ''o que é isto que ora

21
Aristóteles, ob.cit., 1012b 26

4
aparece de um modo ora de outro?'' —a pergunta sobre ''o que é o ser enquanto é ser ''—, i.e., a
pergunta pelo ser subjacente às (suas) modificações, como a pergunta pela substância, pelo
permanente, pelo estável, pelo imutável, a condição primeira da possibilidade do conhecimento.
Portanto, a pergunta que perpassa toda a reflexão filosófica acerca da possibilidade de
conhecimento do ser verdadeiro é a mesma: como compatibilizar a exigência de um permanente
com a evidência sensível da mutabilidade da natureza? Em outras palavras: como algo pode mudar
sem deixar de ser o que é?. Eis, pois, o problema com o qual tem de defrontar-se qualquer sistema
de explicação da realidade, a saber, o da mudança, e que as duas posições apresentadas —a de
Heráclito e Parmênides— deixam intacto. Ou seja, nenhuma das duas posições explica
satisfatoriamente o movimento e a mudança dos seres sensíveis, elas não dão conta da aparência
mutável da realidade sensível. É este o problema com o qual Aristóteles, depois de Platão, irá
defrontar-se, acrescido agora da dificuldade imposta pelo uso que os chamados sofistas fizeram
destas duas posições acerca do ser.

III. Aristóteles no início do livro VII, da Metafísica, refere-se aos vários significados do termo
'ser'22. Há, porém, um sentido primeiro em que o 'ser' é utilizado nos enunciados para significar
'aquilo que algo é' e que representa sua 'substância'23. Conforme Aristóteles, a palavra 'ser' é
utilizada nos enunciados para expressar pelo menos dois tipos de informações sobre um indivíduo, a
saber: informações sobre 'qualidades' atribuídas a este indivíduo e informações concernentes a 'o
que é' este indivíduo. Seguindo a orientação proposta por Aubenque, como acima vimos, o primeiro
uso da palavra 'ser' nos dá enunciados de atribuição, o segundo, enunciados de identidade (de
essência) 24. É quanto aos enunciados do primeiro tipo que convém determinar a verdade ou
falsidade do que expressam. Os enunciados do segundo tipo dizem respeito à definição dos seres
enquanto tais, ou seja, dizem respeito à sua essência, àquilo que os distingue de modo elementar dos
outros seres de classes diferentes, e que permite agrupá-los e identificá-los como elementos de uma
determinada classe, porém não como indivíduos.
Para Aristóteles, não tem sentido considerar os estados ou atributos dos indivíduos
indepentedentemente destes, pois não são coisa alguma fora dos indivíduos. Ora, estes atributos só
podem ser considerados como existindo se estiverem vinculados a um indivíduo particular, pois são
ou existem subsidiariamente, e desse modo necessitam de algo ao qual possam ligar-se, algo
subsistente, que tenha uma existência independente deles 25. Portanto, a palavra 'ser', no sentido
primeiro do termo, i.e., no sentido em que é utilizado para expressar 'o que é' o indivíduo, será a
substância26. Conforme Aristóteles, quando ''se diz que 'o que é ser isto' [a essência] é a substância
de cada coisa..., uma coisa particular não parece ser diferente de sua própria substância''27, pois,
''...cada coisa particular é una e idêntica com seu 'o que é ser isto' e não por acidente; ... conhecer
uma coisa particular equivale a conhecer 'o que é ser essa coisa'' 28. ''Ao contrário, no que se refere
ao que se diz por acidente, ... não é verdade dizer que 'o que é ser isto' e a coisa sejam idênticas'' 29.
Pois, '' 'o que é ser cada coisa' é 'o que se diz que é por si'... O enunciado [a definição] de 'o que é
ser isto' de cada coisa é aquele que enuncia a coisa mesma, apesar de que no enunciado não se
expresse a coisa mesma''30. ''A definição e 'o que é ser isto' em sentido primeiro e absoluto é
próprio das substâncias''31. Em outras palavras, a substância no sentido primeiro diz respeito a

22
Ibid., 1028a 10.
23
Ibid., 1028a 12.
24
Ibid., 1028a 15-20.
25
Ibid., 1028a 20-9.
26
Ibid., 1028a 30-1.
27
Ibid., 1031a 15-20.
28
Ibid., 1031b 20.
29
Ibid., 1031b 23-5.
30
Ibid., 1029b 14-23.
31
Ibid., 1030b 5.

5
enunciados que expressam a essência da coisa em questão e não os seus atributos. Por exemplo,
quando se dá a definição de um objeto se diz o que ele é essencialmente, dá-se a substância desse
objeto na definição, ou seja, diz-se o que ele é por si mesmo. Ao contrário, quando se enuncia um
atributo desse objeto, refere-se a 'o que ele é' por acidente e não essencialmente. Nesse caso o
enunciado resultante é um enunciado de atribuição e não de essência. Quando se enuncia o que
uma coisa é em si mesma não se vincula esta coisa a outra classe de coisas mas se define-a
enquanto integrante de uma classe, e ''só se pode conhecer as coisas enquanto se lhes dá certa
unidade e identidade e enquanto se lhes pode atribuir um universal'' 32.
Para Aristóteles, há uma pluralidade de seres sensíveis. E cada um desses seres sensíveis,
que podemos perceber, apresenta-se aos nossos sentidos de diferentes modos em diferentes
momentos. É por esta razão que o ser se diz de tantas maneiras quantas se apresenta. O ser num
sentido primeiro refere-se à sua essência porque diz o que o ser é, designa o 'isto' em questão33. O
ser num sentido segundo refere-se às qualidades do ser, os seus atributos, os seus acidentes. E de
todos os sentidos em que é empregado o ser, o sentido primeiro é sempre o que possibilita o
emprego dos outros, pois é só a partir da determinação daquilo que é que se pode dizer deste como
é, onde está, etc... Por isso, é necessário primeiro dizer o que a coisa é primeira e
independentemente de tudo o mais, pois o uso atributivo do termo 'ser' pressupõe a determinação do
ser no sentido primeiro, pressupõe a determinação de sua substância, da sua essência; pois implica a
adição de duas coisas, ou seja, consiste em dizer que a uma coisa se adiciona outra. É por esta razão
que, conforme Aristóteles, só há 'o que é ser isto' ''de tudo aquilo cujo enunciado é uma definição''.
E só há definição ''se o enunciado o é de algo primeiro. Tais são todos os juízos que não implicam a
predicação de uma coisa a outra''. Só há 'o que é ser isto' de espécies de um gênero, pois ''só estas
podem predicar-se não por participação nem como modificação ou por acidente'' 34. ''A definição e
'o que é ser isto' em sentido primeiro e absoluto é próprio das substâncias'' 35. Portanto, é necessário
primeiro saber que coisa é esta coisa enquanto é tal coisa e não outra, essencialmente, para só
depois saber que outras coisas mais ela pode ser, secundária, acidental e predicativamente
(atributivamente), pois para Aristóteles, a substância é primeira porque ''não se predica de um
sujeito'', porém, é dela que tudo mais é predicado, é a ela a que tudo é atribuído 36. A ''substância é
aquela primeira coisa em que'' todas ''as afecções se dão'' 37. E, para Aristóteles, algo é dito primeiro
em vários sentidos: no sentido de ser mencionado antes —no enunciado—, no sentido de ser
percebido antes —no conhecimento— e no sentido de existir antes —no tempo38. A 'substância' é
dita 'primeira' em todos os sentidos: é primeira no enunciado, porque quando enunciamos, por
exemplo, a qualidade de uma coisa, esta enunciação está vinculada à enunciação de sua substância;
e é primeira no conhecimento, porque só podemos conhecer uma coisa quando sabemos 'o que' esta
coisa é 39.

IV. Para Aristóteles, a investigação acerca do conceito de substância deve começar pelas
substâncias sensíveis, porque são as mais cognoscíveis para nós 40. Uma substância sensível é, em

32
Ibid., 999a 27-30.
33
Cf. Aristóteles,''(...) 'o que é ser isto' e o indivíduo, em alguns casos, são o mesmo, tal como ocorre nas
substâncias primeiras, como é o caso da curvatura e 'o que é curvatura', se a curvatura é primeira. Por
'primeira' entendo a que não afirma que uma coisa está em outra nem em um substrato considerado como
matéria''. Op.cit., 1037b 1-4.
34
Ibid., 1030a 5-14.
35
Ibid., 1030b 5.
36
Ibid., 1029a 9-11.
37
Ibid., 1029a 16.
38
Ibid., 1028a 32-7.
39
Ibid., 1028a 35 a 1028b 3.
40
Ibid., 1029b 1-12.

6
certo sentido ''matéria [potência], em outro, configuração [forma] e atividade, e num terceiro
sentido, o composto de ambas''41. Para Aristóteles, todo ser sensível —tanto o que pode sentir
como o que pode ser sentido (toda substância sensível)— é composto de uma matéria42 e de uma
forma; e é por intermédio desta forma que podemos perceber os seres como distintos uns dos
outros; ''é segundo a forma que conhecemos tudo''43. Tomemos, como exemplo de uma substância
sensível para análise, o meu gato, e admitamos agora que eu não saiba nada sobre ele e que deseje
conhecê-lo. Supondo, para os fins desta ilustração, que eu não saiba 'o que' meu gato é, mas apenas
'que ele é', referir-me-ei a ele como ''este bicho que dorme em cima do meu sofá'', ou melhor, ''este
algo que está em cima do meu sofá'' —porque não devo saber se é um bicho e nem que dorme.
Portanto, partindo do princípio de que ele existe —para mim— como um algo determinado, mas
que ainda não sei o que é, perguntarei ''o que é este algo que está em cima do sofá?''. Conforme
Aristóteles, a resposta a esta pergunta deve dar a substância deste algo, deve defini-lo naquilo que
ele tem de essencial. Mas em que consiste a definição de algo? Segundo Aristóteles, a definição
consiste num enunciado que deve apresentar uma propriedade fundamental do algo em questão; é
necessário, portanto, ''conhecer os gêneros das diferenças, pois estes serão princípios do ser''44.
Darei, inicialmente, então, como definição do ''este algo que está no sofá'' o seguinte: este algo é
(equivalente) a um animal. Substituindo o termo 'algo' pelo termo 'animal' no enunciado da
pergunta, teremos: ''o que é este animal que está no sofá?''. Posso perguntar, a seguir se a
substituição do termo indefinido 'algo' pelo termo 'animal' responde à pergunta acerca de 'o que ele
é'. Em parte, sim, pois o que a palavra 'animal' diz acerca do ser que está sobre o sofá é,
fundamentalmente, que este ser existente tem em si o princípio do seu movimento, tem alma, é
animado. Ora, para Aristóteles, ''a alma dos animais (que é a substância do ser animado) é a
substância segundo o enunciado [a definição]''45. O que o termo 'animal' faz quando o associamos
ao este algo em questão é conferir-lhe, portanto, uma propriedade que lhe é essencial e que nos
permite distingui-lo inicialmente de um sem-número de outros que não a possuem. Em outras
palavras, o que este termo (noção) nos dá é a classe mais geral à qual este ser pertence, a saber, o
seu gênero.
Vamos, agora, reescrever o enunciado da pergunta ''o que é este animal que está no sofá?'' como
''que animal é este que está no sofá?''. Considerado desse modo 'animal' aqui pode remeter a um
sem-número de seres que possuem essa propriedade essencial, i.e., que pertencem a esta classe de
seres; por exemplo: eu mesmo, um cavalo, um cachorro, um rato, um pássaro, um gato, etc. A
definição deste animal deve apresentar algo mais que permita saber o que ele é, que diga que tipo
de animal é esse. A nossa pergunta inicial, com sua atual formulação —''que animal é este?''—, nos
pede agora informações mais precisas sobre o animal em questão. A resposta a esta nova
formulação nos deve dar as diferenças peculiares a ele que nos permitem diferenciá-lo de outros
tipos de animais 46; esta resposta deve nos dar a espécie a que ele pertence, deve defini-lo segundo

41
Ibid., 1043a 26-29.
42
Cf. Aristóteles, no que se refere ''ao que se engendra, umas coisas se engendram por natureza, outras, por
técnica e outras espontaneamente''. Ora, ''tudo o que se engendra se engendra a partir de algo e chega a ser
algo''...''Aquilo a partir do qual algo se engendra se chama matéria. Aquilo pelo qual algo se engendra é
algum dos seres naturais.E o que designamos 'algo' é homem, planta ou alguma coisa semelhante que em
sentido próprio chamamos substância. Todo o engendrado seja por natureza seja por técnica tem matéria,
pois é possível que cada engendrado seja ou não seja. E este fato é precisamente a matéria que se dá em cada
coisa''.Op.cit. 1032a11-25.
43
Ibid., 1010a 15.
44
Ibid., 1042b 34.
45
Ibid., 1035b 15
46
Quando acima definimos o algo no sofá como sendo um animal, definimos este algo levando em conta
sua matéria; ou seja, ao dizer que é um animal estamos a apresentar uma diferença essencial quanto à sua
composição material, dizemos que ele é um ser composto de matéria viva, orgânica. Para Aristóteles, ''Não
existe enunciado [definição] que envolva a matéria, pois esta última é indeterminada, mas é possível o
enunciado [a definição] que estabeleça de modo primário a substância primeira; por exemplo, no caso do

7
sua forma, sua configuração, pois, conforme Aristóteles, ''o enunciado [a definição] que se formula
sobre a base das diferenças parece expressar a forma e a atividade, enquanto que o que se formula
partindo dos elementos inerentes à coisa é o da matéria'' 47. Através da observação mais atenta de
sua forma, da configuração de sua matéria (o modo como ela se encontra arranjada), verificamos
que ele apresenta quatro patas. Acrescentemos ao animal então o traço 'quadrúpede'. O que temos,
agora, é o seguinte: ''há um animal quadrúpede no sofá''. O acréscimo deste traço, dessa
característica formal, que o animal apresenta me permite saber algo mais acerca dele que eu não
sabia, e agora posso circunscrever melhor o domínio de seres que podem ser cobertos por esta
definição, a saber, 'todos os animais de quatro patas'. Pois bem, mas ainda não tenho toda a resposta
à pergunta acerca do algo que está no sofá. Agora, se observarmos mais uma vez a configuração
deste animal verificaremos que ele apresenta pêlos. Acrescentemos então às anteriores
determinações deste animal mais uma, a saber, o traço 'peludo'. Temos agora o seguinte: ''animal
quadrúpede peludo''. Há, portanto, um animal quadrúpede peludo no sofá. O modo como se
apresenta formulada, a definição ainda não responde satisfatoriamente à pergunta. É necessário que
ela apresente uma característica, uma propriedade, um traço a mais, que permita diferenciá-lo de
todos os animais quadrúpedes peludos, pois há um grande número de classes de seres que podem
ser essencialmente assim descritas. Por exemplo, o cavalo, o cachorro, o gato... são todos animais
quadrúpedes e peludos, porém, pertencem a classes (espécies) diferentes: eqüinos, caninos e felinos,
respectivamente. Qual poderia ser então uma diferença diferenciadora entre um animal canino e um
felino, ou seja, entre um cachorro e um gato? O miado e o latido, pois o cachorro não mia, mas late,
e o gato não late, mas mia. Para nosso uso, digamos então que uma diferença diferenciadora e
última entre cachorros e gatos seja o miado e o latido. Se é assim, então uma definição de cachorro
seria: ''animal quadrúpede peludo latidor (que late)''; e uma definição de gato: ''animal quadrúpede
peludo miador (que mia)''.
De posse desse levantamento de traços, voltemos à pergunta inicial e a formulemos do seguinte
modo: ''este algo —o animal quadrúpede peludo— no sofá é um cachorro ou é um gato?''. Em
outras palavras, o animal em cima do sofá late ou mia? Mia. Portanto, aquele algo que está no sofá
é um gato48. Mas 'gato' —ou 'animal quadrúpede peludo miador'— define o algo particular que
está no sofá? Não. Primeiro, porque, para Aristóteles, só há enunciado (definição) do universal,
para ele não é possível definir o ser individual, pois o enunciado define a forma essencial do ser,
''porque o círculo e 'o que é ser círculo', a alma e 'o que é ser alma', são uma mesma coisa. Mas, a
respeito... dos indivíduos particulares, ...deles não há definição, pois se os conhece por intelecção
ou por sensação''49. Além do mais, conforme Aristóteles,'' 'homem', 'cavalo' e outras palavras
empregadas para designar os particulares de modo universal, não são substâncias, senão certo tipo
de composto integrado por esta noção determinada e esta matéria determinada consideradas

homem, o enunciado da alma, porque a substânica é a forma imanente, e se chama substância o todo
concreto constituído desta última e da matéria''.Aristóteles, op.cit., 1037a 24-30.
47
Ibid., 1043a 12-22.
48
Cf. Aristóteles: ''O enunciado deve ser composto de palavras; mas quem formula uma definição não
forjará um nome [próprio], porque nesse caso seria imcompreensível, em troca as palavras estabeleceidas são
comuns a todos os membros da classe que desig-nam, portanto estão em condições de aplicar-se também a
outros fora da coisa definida. Por exemplo, se alguém te definisse, diria que tu és um animal magro ou
branco ou qualquer predicado, e também empregaria predicados que poderiam aplicar-se a outro. E se se
alegasse que nada impede que todas as palavras se apliquem independentemente a um grande número de
coisas, mas juntas só a uma delas, se responderá, em primeiro lugar, que o composto é um predicado que
pertence aos dos componentes da definição; por ex., 'animal bípede' pertence a 'animal' e a 'bípede' e isto
também rege necessariamente nas coisas eternas, posto que são an- teriores - e, além do mais, partes do
composto; e existem também de modo separado; pois ou bem nenhum existe assim, ou bem existem
ambos. No caso de que nenhum exista, o gênero não existirá fora das espécies; e no caso de existir dessa
maneira, também existirá assim a diferença...''. Op.cit., 1040a 8-20.
49
Ibid., 1035b 31-35/1036a 1-5.

8
universalmente''50. De modo que, para que eu possa então me referir a este gato como um gato
particular, o meu gato, devo nomeá-lo, devo designá-lo por um nome próprio. Pois bem , darei o
nome deste meu gato: Tim Maia. Portanto, ''Tim Maia é o meu gato''.
Prosseguindo na exploração deste exemplo, suponhamos agora que Tim Maia, após uma
sucessão de infortúnios e de maus tratos, em uma semana, perca os pêlos, uma de suas patas e a
voz, i.e., não mie mais. Ao constatarmos estas alterações em sua configuração, estaríamos
autorizados a perguntar se este Tim Maia é o mesmo Tim Maia de há uma semana atrás.: ''Tim Maia
com três pernas, sem pêlos e mudo é (o mesmo) Tim Maia quadrúpede peludo miador ?''. Sim e
não. É por aqui que entra o problema acerca da mudança. Como Aristóteles o resolve? Acima, na
introdução do tema, procurei mostrar que Aristóteles propõe uma distinção entre os usos do termo
'ser' nas proposições a fim de resolver de modo adequado as questões em torno ao problema da
mudança. Porém, esta distinção, como vimos, não é de ordem lingüística, por assim dizer, i.e., não
tem seu fundamento na linguagem, e sim no próprio ser. Quando Aristóteles distingue nos seres
sensíveis uma matéria e uma forma, ou configuração, identifica nesta forma o estado atual do ser e,
na matéria, a capacidade de ele assumir outras formas ou modificações desta. Em outras palavras, o
que Aristóteles está a dizer é que há na matéria uma capacidade de mudar, que ele chama 'potência',
uma propriedade que permite a ela sofrer alterações quanto a sua forma. Em contrapartida, a forma
revela sempre o estado atual do ser material, o modo como ele se encontra presentemente
constituído. Portanto, a matéria encontra-se no ser em potência assim como a forma, no ser em
ato51. Quando se fala de um mesmo ser (substância) que muda através do tempo, fala-se de um ser
que sofreu alterações na sua forma52. Estas alterações formais no ser Aristóteles chama 'acidentes',
e é em torno deles que são suscitadas todas as controvérsias a respeito do problema do ser e do não-
ser. Ou melhor, é devido ao desconhecimento destas distinções de propriedades nos seres que
equivocadamente, mediante alterações acidentais, alguém pode dizer que o ser deixou de ser o que
é. Vejamos com mais atenção o que siginificam estas distinções segundo Aristóteles.

V. Em várias passagens da Metafísica, Aristóteles refere-se a uma ''duplicação'' de cada um dos


quatro conceitos fundamentais de matéria e forma, potência e ato, tomando-os em um sentido
primeiro e num sentido segundo. Ou seja, Aristóteles se refere a cada um destes conceitos segundo
a sua presença próxima (primeira) ou distante (segunda, remota ou última) na substância. Dessa
duplicação adviria, portanto, uma matéria próxima e uma distante, uma forma próxima e uma
distante, uma potência próxima e uma distante, e um ato próximo e um distante. Com esta
duplicação, estes conceitos encontrar-se-iam proporcionalmente relacionados entre si. Nesse
sentido, a matéria próxima estaria para a forma próxima assim como a matéria distante para a forma
distante? E a matéria e forma próximas estariam uma para com a outra assim como a potência
primeira estaria para o ato primeiro? E a matéria e forma distantes estariam uma para com a outra

50
Ibid., 1035b15-30.
51
Cf. Aristóteles,''(...) há outro modo ainda em que por analogia as coisas têm os mesmos princípios, a
saber, a atividade e a potência.Mas estas não só variam quando se tratam de coisas diferentes, senão que se
produzem de modo diverso. Pois em alguns casos uma coisa está em certo momento em atividade, e, em
outro, em potência, como ocorre com o vinho, a carne e o homem. (A atividade e a potência caem dentro
das mesmas causas ... pois, por uma parte, a forma está em atividade, se existe de modo separado, como
também o composto de forma e matéria, e a privação, p.ex., a obscuridade ou a enfermidade. Mas a matéria
está em potência, pois é o que pode chegar a ser forma ou privação). Também de outro modo se diferenciam
atividade e potência nos casos em que a matéria da causa e do efeito não é a mesma,e aquelas cuja forma não
é idêntica,senão outra''. Op.cit.,1071a 4-14.
52
Pois, para Aristóteles, há algo que perdura, na mudança. O contrário, porém, tem por característica não
perdurar. Há algo portanto, fora dos contrários: a matéria.''(...) É necessário que a matéria seja o que mude,
pois é em potência ambos os contrários''.Sendo o ''ente de dois tipos, tudo muda a partir de um ente em
potência a um ente em atividade...não só por acidente se pode devir a partir de um não- ser, senão que tudo
se produz a partir do ente, por suposto do que é em potência, e do não-ente em atividade''. Op.cit.,1069b 8-
21.

9
como a potência remota estaria para o ato remoto? É possível identificar nas passagens da
Metafísica todas estas relações? Vejamos, e para isso proponho prosseguir explorando o exemplo
adotado para a análise, a fim de tentar compreender o que Aristóteles pretendeu significar com estas
duplicações na intenção de determinar o conceito de substância. Comecemos mais uma vez pelo
início.
Tomemos o gato Tim Maia, e perguntemos: qual sua matéria e forma próximas53?
Conforme Aristóteles, cada coisa particular possui uma matéria exclusiva, mesmo que ''todas as
coisas procedam do mesmo princípio primeiro ou das mesmas coisas enquanto primeiros princípios,
mesmo que a mesma matéria sirva de princípio às coisas engendradas''54. Para Aristóteles, ''a
matéria próxima e a figura são uma e a mesma coisa; uma em potência, a outra, em atividade'' 55.
Ora, o que quer isto dizer no caso deste gato ou mesmo de um gato qualquer? Se a matéria próxima
e a configuração do ser são a mesma coisa, sendo uma em potência e a outra em atividade, basta
com que estabeleçamos uma para que a outra se revele. Pois bem, qual destas é mais evidente
acerca deste gato, sua matéria ou sua configuração? Se a análise que realizamos até aqui, neste
exercício especulativo acerca do conceito de substância sensível é procedente, ficou assentado
acima, quando definimos inicialmente o 'algo no sofá' como um animal, que sua matéria e forma
próximas eram a alma56. Pois bem, mas em que medida, segundo as palavras de Aristóteles, a alma
está no animal enquanto matéria em potência e enquanto forma em atividade? Segundo a forma,
porque percebemos este animal em ato vivo, i.e., em movimento. Segundo a matéria, porque a
condição de que seja em ato vivo é que seja em potência também vivo, que sua matéria seja viva,
possua em si o princípio do movimento. Seguindo neste raciocínio, qual seria então a potência e o
ato primeiros em relação a esta substância? Ora, se está correta a colocação dos termos na relação
assim como nossa compreensão, podemos dizer que a potência primeira do gato, assim como sua
matéria próxima, é ser ele animado em potência; e o seu ato primeiro, assim como sua forma
próxima é ter ele alma, ser animado em ato.
Se procede esta análise, podemos agora chegar à duplicação de outros dois conceitos, a
saber: o de substância ou essência e o de acidente. Consideremos a substância em um sentido
primeiro e em um sentido segundo. Se há uma substância primeira e uma substância segunda,
admitamos que haja, com estas, os acidentes primeiros e os acidentes segundos 57. Acima, quando
procuramos definir a substância do 'algo' no sofá definimos a sua substância primeira ou sua
substância segunda? Ao definirmos o 'algo' primeiramente como um animal e segundamente como
um gato, demos primeiro seu gênero e depois sua espécie. Porém, animal e gato são substâncias
consideradas em sua pluralidade, ou melhor, naquilo que compartilham com outras que pertencem à

53
Para Aristóteles, ''Se existe algo primário, o qual não pode predicar-se a outra coisa dizendo que é disto,
esta coisa será a matéria primeira. Por exemplo, se a terra é de ar e o ar não é fogo senão de fogo, o fogo será
a matéria primeira ainda que não seja um isto. Pois nisto se diferencia 'o que se predica de' e o sujeito, por ser
ou não ser um isto determinado. Por exemplo, o sujeito dos acidentes é o homem, tanto o corpo como a alma,
mas os acidentes são 'o culto' e 'o branco'. Quando a cultura sobrevém no sujeito, não se diz que ele seja
cultura senão culto, nem se diz que o homem seja brancura senão branco, nem marcha ou movimento, senão
que está em marcha ou se move, tal com se diz de uma coisa que é de algo. Quando assim ocorre, o sujeito
último é a substância...''. Op.cit., 1049a 19.
54
Ibid., 1044a 15.
55
Ibid., 1045b 16.
56
Acaso haverá na matéria próxima [no fragmento/pedaço de matéria] de composto formal uma certa
configuração particular intrínseca a esta própria matéria e que conferiria ao composto a singularidade por ele
requerida?
57
A fim de comprender melhor o caso da substância sensível, e na tentativa de responder às perguntas que
formulei sobre o exemplo adotado para análise, vou me valer desta simetria também para os acidentes,
mesmo que a preço de talvez forjar uma correspondência, pois este ponto não pareceu claro em nossa leitura
dos livros da Metafísica, muito embora fique ao menos indicado que a duplicação também no caso dos
acidentes não é de todo descabida, como procurarei mostrar com algumas passagens que abonam esta
interpretação.

10
mesma classificação. Se tomarmos o gato individual que estamos considerando aqui, o gato
particular Tim Maia, teremos uma substância que pertence a ambas, a saber: gato e animal. Pois
bem, como acima vimos em I e III, o sentido primeiro e mais fundamental de substância consiste
em ela não ocorrer em outra coisa diferente de si mesma mas na qual outras coisas ocorrem; é
aquela da qual nenhuma outra se predica mas da qual tudo mais é predicado; em outras palavras, é
aquela que não se diz de coisa alguma, pois é a coisa mesma, porém, da qual tudo mais pode ser
dito. Nesse sentido, observando a simetria da duplicação, teríamos como a substância primeira do
'algo' que temos definido o próprio Tim Maia, que é o indivíduo singular, indefinível para
Aristóteles, e, como substância segunda, o ser ele um gato e, sendo um gato, animal. Portanto,
quando definimos acima o 'algo' no sofá como sendo um animal e um gato, definimos sua
substância segunda58.
A matéria próxima do Tim Maia, então, é a sua matéria viva, animada, que caracteriza todas
as substâncias animais. Pois bem, como a característica fundamental da matéria é a de possuir em
potência a capacidade de padecer modificações (acidentes), de receber formas específicas e,
portanto, ser determinada, considerada apenas como matéria, a matéria do Tim Maia, a sua matéria
primeira, não é ainda coisa alguma determinada, é apenas a matéria animal. O que é necessário
então para que ele se torne algo determinado? Que esta matéria assuma uma forma determinada.
Portanto, é necessário que ela sofra acidentes quanto à sua forma e passe a ser um algo. Ora,
seguindo a linha do raciocínio desenvolvido até aqui, é necessário então que esta matéria primeira
a matéria animada, o animal sofra modificações que a encaminhem a um tipo específico
(determinado) de animal. Ou seja, é necessário que a esta matéria ocorram acidentes
considerados aqui como primeiros em oposição a segundos, ou melhor, próximos em oposição a
remotos. Se esta análise é correta, o que deve ocorrer à matéria primeira —que é animada— e à
forma próxima —que é a alma— são os acidentes primeiros que dêem a determinação de sua forma
específica, i.e., que permitam a ela passar de animal (o gênero) a gato (a espécie) 59. E a essa
determinação da matéria, dada pelos acidentes, que chamei de primeros, vamos considerar aqui a
forma segunda do animal, qual seja, o ser ele um gato. Portanto, a diferença específica da matéria e
forma primeiras (o gênero animal) nos dará a forma segunda deste animal. Em outras palavras, o
gênero 'animal' é dado pela matéria e forma primeiras em potência e em ato próximos; enquanto
que a espécie 'felino' é dada pela matéria e forma primeiras após a determinação imposta a elas
pelos acidentes primeiros e que resultam na forma segunda do animal a sua substância segunda.
Em que medida esta formulação do problema acerca de uma relação possível entre espécie e forma
segunda, do modo como a apresentamos, está de acordo com o que diz Aristóteles? No livro X da
Metafísica, Aristóteles afirma que as coisas, dentre elas os animais, que são diferentes quanto à
espécie têm que pertencer ao mesmo gênero. Gênero, para Aristóteles, equivale a aquilo que
''permite dizer de duas coisas que são uma e a mesma e aquilo que não contém diferença acidental,
seja que se o entenda como matéria, seja de outro modo''; pois, aquilo que possui diferença
acidental, conforme entendemos, diz respeito à diferença especifica, ou seja, a uma outra espécie.
Segundo Aristóteles, é por isso que ''esse elemento comum é outro quanto à espécie em seres que
diferem uns dos outros''60.

VI. Com base nessas considerações, prossigamos na exploração do exemplo e suponhamos que o
Tim Maia caia do 4º andar e morra. Frente ao novo fato, podemos perguntar o seguinte: Tim Maia
morto lá embaixo é o (mesmo) Tim Maia com três patas sem pêlos e mudo de agora há pouco antes
de cair? É o (mesmo) Tim Maia quadrúpede peludo miador de há uma semana atrás? Como
Aristóteles responderia a esta indagação? Ao considerarmos a análise do caso desta substância

58
Cf. Aristóteles, Das Categorias, p. 31, trad. de Mário Ferreira dos Santos, Ed. Matese, SP, 1965.
59
No caso aqui, o gato é apenas um membro da espécie dos felinos; uma sub-espécie, portanto.
60
Aristóteles, op.cit., 1058a 35. (Esta passagem parece abonar a interpretação que propûs acerca dos
acidentes primeiros como sendo a causa das diferenças específicas nos gêneros, e, portanto, os responsáveis
pelo que considerei aqui a forma segunda das substâncias compostas).

11
sensível, executada até aqui, tivemos pelo menos quatro momentos distintos: primeiro, a definimos
como animal —demos sua essência; segundo, por intermédio da descrição dos acidentes em sua
matéria e forma primeiras, encontramos sua espécie —a sua forma segunda— e a classificamos
como um gato; terceiro, ao descrevermos os acidentes em seus acidentes primeiros, evidenciamos
as mudanças acidentais nesta substância; quarto, ao enunciarmos o acidente em sua matéria e forma
primeiras, evidenciamos a mudança em sua substância —na sua essência—, portanto, a mudança
substancial. Por conseguinte, nas enunciações: Tim Maia é um animal; Tim Maia é um animal
quadrúpede peludo miador, i.e., um gato; Tim Maia é um gato perneta pelado mudo; e Tim Maia é
um gato morto; devemos tomar o verbo 'ser' nos dois sentidos que distinguimos acima, a saber: em
''a'' e ''d'' como determinando a substância (a essência); em ''b'' e ''c'' como determinando atributos
desta substância61:
Podemos reapresentar as perguntas acima do seguinte modo: ao perguntarmos se Tim Maia
em ''b'' é igual ao Tim Maia em ''c'', estamos perguntando o quê? Se ele é o mesmo enquanto gato
Tim Maia ou se ele é o mesmo enquanto gato? É essencial para um gato ter quatro patas, pêlos,
miado? A perda destas propriedades (partes formais) acarreta a dissolução da sua identidade; ou
seja, ele deixa de ser o que é sem elas? Ele deixa de ser gato ou deixa de ser aquele gato particular?
Que tipo de mudança a perda das partes materiais e formais acarreta: mudança acidental ou
substancial62?
Conforme Aristóteles, a substância sensível é uma unidade, um todo composto de partes, e
não uma reunião de elementos justapostos. Nesse composto, cada parte cumpre uma função distinta,
e tem seu sentido por estar exercendo sua função, vinculada às demais partes do todo. A substância,
enquanto um todo63, difere de um agregado, na medida em que este é composto por elementos que,

61
De acordo com a noção de função de Frege —que consiste basicamente em substituir os nomes nas
proposições por letras—, podemos substituir os termos que referem a substância sensível em questão —o
argumento da função— por variáveis. Assim, no lugar de: 'este algo', 'gato' e 'Tim Maia', etc., teremos: 'X',
'Y'. Para facilitar a análise, portanto, poderíamos reformular os enunciados das situações descritas até aqui
em torno do exemplo do seguinte modo:
-A- -B-
 X é um animal (o gênero).  X é um animal quadrúpede peludo miador (diferenças
específicas).  X é um gato (espécie).

-C- -D- Donde:


 X é um gato perneta [está sem uma pata].  X é um gato morto. Y = Tim Maia
 X é um gato pelado [está sem pêlos].  X é um não-gato. Y = cadáver
 X é um gato mudo [está sem voz].  X é Y.

Os enunciados dispostos dessa maneira nos mostram a passagem da substância individual 'Tim Maia' a uma
não-substância formalmente, a passagem de X para Y. Em A, temos a definição da essência; em B, a
determinação de suas propriedades específicas os seus acidentes primeiros; em C, as variações nessas
propriedades específicas paralelamente, os seus acidentes segundos ou mudanças nos acidentes primeiros,
mudanças acidentais; e em D, a mudança em sua essência a mudança essencial ou substancial.
62
Conforme Aristóteles, a mudança não é algo que ocorre nas substâncias, a não ser por acidente, pois toda
mudança [movimento] é mudança de uma forma a outra.(1068a 1-24). A mudança ocorre: primeiro, quando
há oposição, i.e., quando qualidades contrárias são observadas no mesmo substrato num decurso de tempo; e,
segundo, quando há movimento. Há três tipos de mudança, para Aristóteles: a mudança de um não-substrato
a um substrato: a geração; a mudança de um substrato a um não-substrato: corrupção; e a mudança de um
substrato a um substrato: movimento. Op.cit., 1067b 15.
63
As substâncias são em certo sentido número, pois a ''definição é um certo tipo de número, sendo divisível
em frações indivisíveis (porque os enunciados não são infinitos), e o número é do mesmo tipo. E assim como
se se suprime ou agrega uma parte que compõe o número, já não será mais o mesmo número senão outro, por
pequena que seja esta subtração ou adição, tampouco seguirá sendo a mesma nem a definição nem 'o que é
ser isto', se se suprime ou se lhe agregue algo. E é necessário que no número haja algo pelo qual é uno (...).

12
sendo iguais uns aos outros, dentro ou fora do agregado, continuam existindo da mesma maneira 64.
Os componentes de um agregado não são partes no mesmo sentido em que as partes de um todo o
são, pois estes não exercem função alguma dentro dele, não se definem pelo fato de exercerem uma
função determinada, mas por se encontrarem agrupados nessa reunião de coisas que pertencem a
uma mesma classe de coisas e que por isso se dizem compondo um monte destas coisas, ou um
agregado. Os componentes de um agregado, por esse motivo, são ditos elementos, e, enquanto
elementos, têm sua identidade preservada dentro ou fora do agregado. Por exemplo, tomemos um
monte de folhas com cem folhas de papel em branco. Ao tirarmos algumas folhas dele, digamos
vinte folhas, ele permanece sendo o mesmo monte ou não? Se considerarmos que este monte de
papéis é definido (identificado), não por sua forma ou pela função que suas partes exercem nele,
mas pela soma ou quantidade dos papéis que o constituem, pela soma dos seus elementos, as
folhas, então poderemos dizer que não, que um monte de cem folhas é diferente de um monte de
oitenta folhas. No caso das substâncias, e destas as sensíveis, as partes dos animais só podem ser
consideradas partes enquanto unidas à substância e exercendo suas funções, porém, fora dela, não
são coisa alguma senão matéria 65. A identidade de um todo não se altera pela perda de uma de suas
partes, a de um agregado, sim66. A substância sensível, enquanto uma unidade, enquanto todo, ao
contrário do agregado, não deixa de ser o que é pela perda de suas partes, e estas, fora da
substância, do todo em que são parte, não têm significação alguma, senão,como dirá Aristóteles, por
homonímia.

Porque ou bem não o é, senão que é como um monte ou, se o é, há que dizer-se qual é o agente que o
converte em uno a partir de uma pluralidade. E a definição é também una. (...) E assim como no número não
se dá nem o mais nem o menos, tampouco ocorre com a substância, entendida no sentido da forma, e no caso
de dar-se essa flutuação, é porque se trata da substância combinada com matéria''. Aristóteles, op.cit., 1043b
33-7/1044a 1-10.
64
''O composto de algo é de tal natureza que o todo seja uno, não como um simples agregado, senão como a
sílaba. A sílaba não consiste nas letras que a compõem: BA não é idêntico a B e a A; nem a carne ao fogo e à
terra; porque depois da dissolução dos componentes, os todos, quer dizer, a carne ou a sílaba, não existem
mais, mas as letras seguem existindo, o mesmo que o fogo e a terra. A sílaba é algo que não consiste só em
letras, vogais e consoantes: é ainda outra coisa. E a carne não é só fogo e terra, quer dizer, calor e frio, senão
alguma outra coisa mais. Poderia supor-se que esta outra coisa há de ser um elemento ou um composto de
elementos. Se fosse um elemento se aplicará o mesmo argumento a este caso, pois a carne estará composta
desse outro elemento, de fogo e terra e, além do mais, de outra coisa, de maneira que assim se remontará ao
infinito. Se procede de um elemento, é óbvio que não se comporá de um senão de muitos (de outro modo
esse elemento único será a coisa mesma), de maneira que podemos lançar mão do mesmo argumento que
empregamos para a carne e a sílaba. Pareceria que isto é algo, mas não um elemento, e que é causa de que
uma coisa seja carne e outra, sílaba. E o mesmo para os demais compostos. Essa outra coisa é a substância de
cada particular, pois é a causa primeira de seu ser''. Ibid., 1041b 11-32.
65
''É óbvio que a maior parte das coisas que se estima serem substâncias, são potências; as partes dos
animais (pois nenhuma delas existe de maneira separada, e quando se as separa existem em sua totalidade
como matéria), a terra, o fogo e o ar, pois nenhuma delas é una, senão uma sorte de montão [agregado] antes
que se as transforme e se engendre delas algo unitário''. Ibid., 1040b 5-10
66
Conforme Aristóteles, em relação às substâncias sensíveis, no caso dos animais, a sua substância é a alma
de seu corpo '' (pois ao pretender definir adequadamente cada parte do corpo não se poderia prescindir de
definir sua função, a qual não existe aparte da sensação), de modo que as partes da alma são anteriores, em
forma total ou parcial, ao composto animal e, portanto, a cada animal particular; mas o corpo e suas partes
são posteriores a essa substância, e não é a substância senão o composto o que se divide nessas partes como
em sua matéria. Em certo sentido, essas partes são anteriores ao todo composto, mas em outro, não, porque
não podem existir de modo separado. O dedo do animal não é um dedo em qualquer circunstância, pois o
dedo do morto só o é em sentido homônimo. Há partes que são simultâneas com o todo. São as primordiais e
aquelas em que reside primordialmente o enunciado [a definição] e a substância, como o coração e o
cérebro.(1035b 15-30).''(...)o animal é uma coisa sensível, e não é possível defini-lo prescindindo do
movimento e das partes que se encontram em uma situação determinada. Porque não é a mão, considerada de
qualquer modo, a que é uma parte do homem, senão a que pode cumprir sua função, quer dizer, a mão
animada. Sem vida não é parte alguma do homem''. Ibid., 1036b 27-32.

13
Desse modo, o Tim Maia, ao perder a perna, o pêlo e o miado, não deixa de ser nem Tim
Maia nem gato. É claro, porém, que o corpo do animal não pode prescindir de todas as partes sem
que a sua substância se altere, pois há ''partes que são simultâneas com o todo. São aquelas em que
reside primordialmente ... a substância'' —a alma— ''como o coração e o cérebro''67. Portanto, Tim
Maia em ''b'' e ''c'' é o mesmo Tim Maia, i.e., mesmo com os acidentes que sofreu, modificando sua
forma —a segunda—, mantém sua identidade substancial inalterada, uma vez que as mudanças que
determinaram alterações aparentes são potencialmente suportadas por sua matéria. Conforme
Aristóteles, a ''mudança segundo a substância envolve às outras mudanças; mas uma ou duas das
outras mudanças não envolvem a da substância''68.
Nessa direção, poderíamos, enfim, dar resposta à segunda pergunta, a saber, se Tim Maia
em ''d'' é o mesmo Tim Maia em ''c'' e ''b''. Ora, considerando o que dissemos acima, fica claro que
não, pois a morte acarreta a mudança substancial, a mudança na essência da substância, e, como tal,
a destituição de sua identidade. Tim Maia morto não é sequer um gato, quanto mais o gato
particular Tim Maia. Na verdade, um gato morto pode ser dito gato do mesmo modo que a mão de
um cadáver pode ser dita mão, ou seja, por homonímia. Em outras palavras, ela pode ser dita mão
por parecer-se com uma mão que se encontra no pleno exercício de suas funções, conjugada ao
todo de que é parte, mas ela já não é mais mão. No caso do gato, ele apenas se parece, tem a forma
—segunda— de um gato, mas não o é mais, pois não possui mais a essência do gato, a saber, a
alma, o princípio do movimento. A sua matéria é outra! Para Aristóteles, o ser vivente não é em
potência um cadáver, pois ''as corrupções são acidentais, e só a matéria do animal é a que, por
corrupção se torna em potência matéria do cadáver''69. Por isso, um gato vivo não é em potência
um gato morto, e por essa razão não se pode contabilizar nas possibilidades de mudanças do Tim
Maia, enquanto Tim Maia, a morte. Para que Tim Maia se torne um cadáver, é necessário que perca
sua forma primeira, sua forma essencial —a sua alma—, modificando sua matéria primeira —que é
animada. E, ao perdê-la, deixa de ser o gato Tim Maia, pois, do mesmo modo que um gato morto
não é mais um gato, Tim Maia morto não é mais Tim Maia, é outra coisa. Que coisa é essa? Matéria
próxima? Matéria remota? Matéria sem forma?

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Bibliografia:

AUBENQUE, P. , El problema del ser en Aristóteles, trad. de Vidal Peña, Taurus Madrid, 1987.
ARISTÓTELES, Metafísca, trad.por Hernán Zucchi, ed. Sudamericana, B.Aires, 1986.
__________. , Das Categorias, trad. de Mário Ferreira dos Santos, Ed. Matese, SP, 1965.
FRAILE, G. , Historia de la Filosofia, v. I, B.A.C., Madrid, 2ª ed., 1966.
PARMÊNIDES, ZENON, MELISO (Escuela de Elea), Fragmentos, trad. de Jose Antonio Miguez,
Ed. Orbis, España, 1983.
TARSKI, A., Introducción a la lógica, B.Aires, 1951.

67
Ibid., 1035b 15.
68
Ibid., 1042b 8.
69
Ibid., 1045a 1-7.

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