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Uma leitura

anotada
do projeto
brasileiro de
“Reforma
Psiquiátrica ”

6 REVISTA USP,USP,
REVISTA São São
Paulo, n.43,n.43,
Paulo, p. 6-23, setembro/novembro
p. 6-23, 1999
setembro/novembro 1999
O
VALENTIM GENTIL

objetivo deste trabalho é contribuir para a compreensão e para Agradecimentos: À sra. Neuza
Maria de Oliveira, pela assesso-
o aprimoramento da legislação de assistência em Psiquiatria e ria competente na pesquisa docu-
mental; ao professor Michele
Saúde Mental no Brasil, através de uma revisão dos documentos e princípios Tansella, pelas informações sobre
o estado atual da reforma italia-
que embasaram os projetos de lei aprovados ou em fase final de tramitação no na; ao prof. Luiz Salvador de
Miranda Sá Jr. e aos drs. Ricardo
Congresso Nacional e nas Assembléias Legislativas estaduais. Isso se faz ne- Oliveira (Senado Federal) e Alfredo
Schechtman (Ministério da Saúde),
cessário pois, nos dez anos desde o início deste processo, acumularam-se por informações sobre projetos de
lei e assistência no país; ao pro-
desinformação, imprecisão factual, distorções e impropriedades técnicas de tal fessor Núbio Negrão e à dra.
Maria de Lourdes Felix Gentil, por
monta que, não sendo corrigidas, inviabilizarão uma reforma competente. comentários e sugestões.

A lei vigente em 1999 tem 65 anos (Decreto 24.559, de 3/7/1934). Ela


é anterior ao eletrochoque (ECT – 1938), à moderna Psiquiatria, às neurociências
e aos tratamentos psiquiátricos atuais. Considerando-se as altas prevalências
de transtornos mentais e seus significativos prejuízos para a vida da maioria da
população, qualquer lei sobre esta matéria deve interessar a todos e merecer a
mais ampla discussão e esclarecimento de seus propósitos e conseqüências.

O PROJETO DE 1989 E OS SUBSTITUTIVOS INICIAIS

Assinado pelo deputado Paulo Delgado (PT-MG), o Projeto de Lei n o


3.657, submetido em 12/9/1989, foi aprovado pela Câmara dos Deputados, por
acordo de lideranças, em 14/12/1990. Ele tem a seguinte ementa: “Dispõe
sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros
recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória”.
Caso esse projeto refletisse o que sua ementa de fato diz, ele poderia merecer
aprovação, sem maior discussão. Infelizmente, o projeto não é fiel à ementa.
Para avaliar as implicações e conseqüências do Projeto Delgado e dos seus
derivados, é necessário, inicialmente, examinar seu enunciado e acompanhar
sua tramitação.
O Projeto de Lei no 3.657 tem a seguinte redação:

“Dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros
recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória.
• Art. 1o Fica proibida, em todo o território nacional, a construção de novos VALENTIM GENTIL
hospitais psiquiátricos públicos e a contratação ou financiamento, pelo é professor de Psiquiatria
da FMUSP e presidente
setor governamental, de novos leitos em hospital psiquiátrico. do Conselho Diretor
• Art. 2o As administrações regionais de saúde (secretarias estaduais, comis- do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas
sões regionais e locais, secretarias municipais) estabelecerão a planifica- da FMUSP.

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ção necessária para a instalação e funcio- quem mais julgar conveniente, e emitir
namento de recursos não-manicomiais parecer em 24 horas, sobre a legalidade
de atendimento, com unidade psiquiá- da internação.
trica em hospital geral, hospital-dia, hos- Parágrafo 3o A Defensoria Pública (ou
pital-noite, centro de atenção, centros autoridade judiciária que a substitua)
de convivência, pensões e outros, bem procederá à auditoria periódica dos es-
como para a progressiva extinção dos tabelecimentos psiquiátricos, com o ob-
leitos de característica manicomial. jetivo de identificar os casos de seqües-
Parágrafo 1o As administrações regio- tro ilegal, e zelar pelos direitos do cida-
nais disporão do tempo de 1 (um) ano, dão internado.
a contar da data da aprovação desta Lei, • Art. 4o Esta lei entra em vigor na data de
para apresentarem às comissões de saú- sua publicação, revogadas as disposi-
de de poder legislativo, em seu nível, o ções em contrário, especialmente aque-
planejamento e cronograma de implan- las constantes do Decreto-Lei no 24.559,
tação dos novos recursos técnicos de de 3-7-1934”.
atendimento.
Parágrafo 2o É competência das secre- Uma clara radicalização da “Proposta
tarias estaduais coordenarem o proces- de Política de Saúde Mental da Nova Re-
so de substituição de leitos psiquiátri- pública” (Secretaria Nacional de Progra-
cos manicomiais em seu nível de atua- mas Especiais de Saúde – Divisão Nacio-
ção, e do Ministério da Saúde ao nível nal de Saúde Mental, julho/1985) que pre-
federal. cedeu a VIII Conferência Nacional de Saú-
Parágrafo 3o As secretarias estaduais de (História das Conferências Nacionais de
constituirão, em seu âmbito, um Con- Saúde – Radis/ENSP/Fiocruz, 3/1986) e a
selho Estadual de Reforma Psiquiátri- I Conferência Nacional de Saúde Mental
ca, no qual estejam representados, vo- (Ministério da Saúde, 6/1987), esse proje-
luntariamente, os trabalhadores de saú- to foi bem recebido por setores preocupa-
de mental, os usuários e familiares, o dos com o evidente estado calamitoso da
poder público, a ordem dos advogados assistência no país. Ele sofreu também duras
e a comunidade científica, sendo sua críticas (1) .
função acompanhar a elaboração dos Remetido ao Senado Federal em 15/2/
planos regionais e municipais de 1991 como “Projeto de Lei da Câmara, no
desospitalização, e aprová-los ao cabo 8, de 1991”, foi distribuído à Comissão de
de sua finalização. Assuntos Sociais (CAS) em 4/4/1991. Aí,
• Art. 3o A internação psiquiátrica com- inicialmente recebeu pareceres de dois
pulsória deverá ser comunicada, pelo relatores, os senadores José Paulo Bisol
médico que a procedeu, no prazo de 24 (PSB-RS, em 12/1991) e Lúcio Alcântara
horas, à autoridade judiciária local, (PSDB-CE, em 11/1995), antes de ser sub-
preferentemente à Defensoria Pública, metido a votação.
quando houver. Desde o Parecer Bisol (4/12/1991) fo-
Parágrafo 1o Define-se como internação ram apontados erros conceituais e de técni-
psiquiátrica compulsória aquela reali- ca legislativa no Projeto Delgado, como a
zada sem o expresso desejo do pacien- “inconstitucionalidade por vício de iniciati-
te, em qualquer tipo de serviço de saú- va”, ao impor atribuições ao Poder Executi-
de, sendo responsabilidade do médico vo Estadual, atribuir inconstitucionalmente
1 Entre elas um Manifesto do De-
partamento de Psiquiatria da autor da internação sua caracterização o status de autoridade judiciária à defensoria
FMUSP (“Manifestação sobre
as Propostas de Reformulação
enquanto tal. pública e considerar todas as internações não-
da Política de Saúde Mental”), Parágrafo 2o Compete ao Defensor Pú- voluntárias como compulsórias.
publicado na Revista de Psiquia-
tria Clínica, 20 (1), 1993, pp. blico (ou outra autoridade judiciária de- Votado na CAS, em 23/11/1995, com
33-42, e republicado pelo Jor- signada) ouvir o paciente, médicos e parecer favorável do relator, senador Lú-
nal Brasileiro de Psiquiatria, 42
(3), 1993, pp. 169-76. equipe técnica do serviço, familiares e cio Alcântara, o Projeto Delgado foi rejei-

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tado e substituído, por 18 votos a 4, pelo tes do que considerou “todos os atores in-
voto em separado do senador Lucídio teressados no assunto” (4) e emitiu um
Portella (PFL-PI). Ao contrário do Projeto adendo ao parecer anterior, conciliando o
Delgado, o Substitutivo Portella incluiu o que foi possível entre seus interesses diver-
hospital psiquiátrico entre os “estabeleci- gentes. Esse texto foi aprovado pelo Plená-
mentos de saúde mental” (ambulatório, rio do Senado, em 20 de janeiro de 1999, e
pronto-socorro, emergência psiquiátrica no enviado à Câmara Federal como Substi-
pronto-socorro geral, enfermaria psiquiá- tutivo do Senado.
trica no hospital geral, hospital psiquiátri- Neste momento, a Câmara pode optar,
co, hospital-dia, hospital-noite, centro de com pequenas modificações, entre o
convivência, pensão protegida, hospital Substitutivo do Senado e o Projeto Delga-
judiciário de custódia e tratamento mental, do, remetendo então o projeto final à san-
e “[…] outros estabelecimentos que venham ção presidencial.
a ser regulamentados pelo Poder Público”).
Além disso, o Substitutivo Portella definiu
três tipos de hospitalização psiquiátrica –
voluntária, involuntária e compulsória (2) O SUBSTITUTIVO DO SENADO
–, estabeleceu como objetivo da assistên-
cia a reabilitação e a reinserção social, com A redação final do Substitutivo do Se-
obrigatoriedade de a hospitalização ofere- nado é a seguinte:
cer assistência integral ao doente e vedou
“[…] a internação de doentes mentais em “Dispõe sobre a proteção e os direitos das
instituições com características asilares”. pessoas portadoras de transtornos psíqui-
Em tramitação que não nos ficou clara, cos e redireciona o modelo assistencial em
o Substitutivo Portella recebeu 7 novas Saúde Mental.
emendas de Plenário. Foi então (em fins de • Art. 1o Os direitos e a proteção das pes-
1998) objeto de parecer do senador Sebas- soas acometidas de transtorno psíqui-
tião Rocha (PDT-AP), no qual consta que co, de que trata esta lei, são assegurados
o Substitutivo Portella contemplava “[…] sem qualquer forma de discriminação
o que poderia ser considerado o modelo de quanto à raça, cor, sexo, orientação se-
assistência ideal, já que prevê […] comple- xual, religião, opção política, naciona-
mentaridade entre o atendimento em hos- lidade, idade, família, recursos econô-
pitais psiquiátricos […] e as demais formas micos e ao grau de gravidade ou tempo
de atendimento”. Entretanto, esse parecer de evolução de seu transtorno, ou qual-
(12/1998) foi contrário a nova aprovação quer outra.
do Substitutivo Portella por considerar que • Art. 2 o Nos atendimentos em saúde
ele “[…] perpetua, na prática, a situação mental, de qualquer natureza, a pessoa
atual de predominância da institucio- e seus familiares, ou responsáveis, se-
nalização como forma de assistência”. rão formalmente cientificados dos di- 2 Uma tradução da Lei de Assis-
tência Psiquiátrica da França,
De fato, ao incluir o hospital psiquiátri- reitos enumerados no parágrafo único de 6/1990. Em toda a práti-
co entre os estabelecimentos de saúde men- deste artigo. ca médica, poucas são as
internações realmente voluntá-
tal, sem diferenciá-lo conceitualmente dos Parágrafo Único – São direitos das pes- rias. O mais consentâneo com
atuais manicômios e sem determinar nor- a realidade seria denominá-las
soas portadoras de transtorno psíquico: “consentida, não-consentida e
mas para seu credenciamento e utilização, a) Ter acesso ao melhor tratamento do compulsória”.
o Substitutivo Portella permitiria a manu- sistema de saúde, consentâneo às suas 3 V. Gentil Filho, “Hospital Psiqui-
átrico: Proposta de Definição”,
tenção do atual modelo hospitalocêntrico necessidades; b) Ser tratada com huma- in Boletim Psiquiatria Hoje, no
(3). Além disso ele contribuiu para a con- nidade e respeito e no interesse exclusi- 1, Associação Brasileira de Psi-
quiatria, 1996, p. 5.
fusão conceitual entre asilo e hospital. vo de beneficiar sua saúde, visando al-
4 Ministério da Saúde, dep. P.
Em 15 de dezembro de 1998, o Plenário cançar sua recuperação pela inserção na Delgado, sen. L. Portella, Mo-
apresentou 10 emendas ao parecer do sena- família, no trabalho e na comunidade; vimento da Luta Antimanicomial
e Federação Brasileira de
dor Rocha, que se reuniu com representan- c) Ser protegida contra qualquer forma Hospitais.

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de abuso e exploração; d) Ter garantia cia social, psicológicos, ocupacionais,
de sigilo nas informações prestadas; e) de lazer, e outros.
Ter direito à presença médica, em qual- Parágrafo 3o Fica vedada a internação
quer tempo, para esclarecer a necessi- de pacientes portadores de transtornos
dade ou não de sua hospitalização psíquicos em instituições com caracte-
involuntária; f) Ter livre acesso aos rísticas asilares, ou seja, aquelas des-
meios de comunicação disponíveis; g) providas dos recursos mencionados no
Receber o maior número possível de parágrafo anterior e que não assegurem
informações a respeito de sua doença e aos pacientes os direitos enumerados no
de seu tratamento; h) Ser tratada em am- parágrafo único do art. 2o.
biente terapêutico pelos meios menos • Art. 6o O paciente há longo tempo hos-
invasivos possíveis; i) Ser tratada, pre- pitalizado ou para o qual se caracterize
ferencialmente, em serviços comunitá- situação de grave dependência insti-
rios de saúde mental. tucional, decorrente de seu quadro clí-
• Art. 3o É responsabilidade do Estado o nico ou de ausência de suporte social,
desenvolvimento da política de saúde será objeto de política específica de alta
mental, a assistência e a promoção de planejada e reabilitação psicossocial
ações de saúde aos portadores de trans- assistida, sob responsabilidade da auto-
tornos psíquicos, com a devida partici- ridade sanitária competente e supervi-
pação da sociedade e da família, a qual são de instância a ser definida pelo Po-
será prestada em estabelecimento de der Executivo, assegurada a continui-
saúde mental, assim entendida a insti- dade do tratamento quando necessário.
tuição ou unidade que ofereça assistên- • Art. 7o A internação psiquiátrica so-
cia em saúde aos portadores de trans- mente será realizada mediante laudo
tornos psíquicos. médico circunstanciado que caracteri-
• Art. 4o O Poder Público destinará recur- ze os seus motivos.
sos orçamentários para a construção e Parágrafo Único – São considerados os
manutenção de uma rede de serviços de seguintes tipos de internação psiquiá-
saúde mental diversificada e qualifica- trica: a) Internação voluntária: aquela
da, sendo que a construção de novos que se dá com o consentimento do usu-
hospitais psiquiátricos públicos e a ário; b) Internação involuntária: aquela
contratação ou financiamento, pelo que se dá sem o consentimento do usuá-
Poder Público, de novos leitos em hos- rio e a pedido de terceiro, e c) Internação
pitais psiquiátricos somente será per- compulsória: aquela determinada pela
mitida nas regiões onde não exista es- Justiça.
trutura assistencial adequada, desde que • Art. 8o A pessoa que solicita voluntaria-
aprovada pelas Comissões Intergestoras mente sua internação, ou que a consen-
e de controle social dos três níveis de te, deve assinar, no momento da admis-
gestão do SUS. são, uma declaração de que optou por
• Art. 5o A internação, em qualquer de esse regime de tratamento.
suas modalidades, só será indicada Parágrafo Único – O término da inter-
quando os recursos extra-hospitalares nação voluntária dar-se-á por solicita-
se mostrarem insuficientes. ção escrita do paciente ou por determi-
Parágrafo 1o O tratamento visará, como nação do médico assistente.
finalidade permanente, a reinserção so- • Art. 9o A internação voluntária ou invo-
cial do paciente em seu meio; luntária somente será autorizada por mé-
Parágrafo 2o O tratamento em regime dico devidamente registrado no CRM
de internação será estruturado de forma do Estado onde se localize o estabeleci-
a oferecer assistência integral à pessoa mento.
portadora de transtornos psíquicos, in- • Art. 10o A internação psiquiátrica invo-
cluindo serviços médicos, de assistên- luntária deverá no prazo de 72 horas ser

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comunicada ao Ministério Público Es- gente, este substitutivo teve que conciliar
tadual pelo responsável técnico do es- exigências da política governamental, do
tabelecimento no qual tenha ocorrido, chamado “Movimento da Luta Antimani-
devendo esse mesmo procedimento ser comial” e da Federação Brasileira de Hos-
adotado quando da respectiva alta. pitais, para ser aprovado. Entretanto, dife-
Parágrafo 1o O Ministério Público, ex- rentes segmentos da sociedade expressa-
offício, atendendo denúncia, ou por so- ram insatisfação com o Substitutivo do
licitação familiar ou do representante Senado.
legal do paciente, poderá designar equi- Assim, pelo menos uma associação de
pe revisora multiprofissional de saúde usuários e familiares considerou que ele
mental, da qual necessariamente deve- não seguiu recomendações da Organiza-
rá fazer parte um profissional médico, ção das Nações Unidas (ONU) para defesa
preferencialmente psiquiatra, a fim de dos direitos dos pacientes, pois não estabe-
determinar o prosseguimento ou a ces- lece a obrigatoriedade da revisão periódica
sação daquela internação involuntária. dos casos de internação involuntária por
Parágrafo 2o O término da internação um corpo de revisão independente (5).
involuntária dar-se-á por solicitação es- Do ponto de vista assistencial, ele apre-
crita do familiar, ou responsável legal, senta dois problemas fundamentais. Em
5 L. F. Barros, “Vamos Exigir do
ou quando estabelecido pelo especia- primeiro lugar, à guisa de reestruturar o Congresso Nacional a Garan-
tia de Nossos Direitos Huma-
lista responsável pelo tratamento. modelo centrado nos manicômios, o nos e Civis”, in Boletim Infor-
• Art. 11o A internação compulsória é substitutivo mantém a proibição de cons- mativo do Projeto Fênix, ano 2
no 1, Associação Nacional Pró
determinada, de acordo com a legisla- truir hospitais públicos e a contratação ou Saúde Mental, jan./jun.,
ção vigente, pelo Juiz competente, que financiamento de novos leitos psiquiátri- 1999, p.1.

levará em conta as condições de segu- cos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). 6 V. Gentil Filho, “A Lei Delgado
e o Futuro da Assistência Psi-
rança do estabelecimento, quanto à sal- Dessa forma, não será permitido substituir quiátrica”, in Revista Brasileira
de Psiquiatria, 21, (1), 1999,
vaguarda do paciente, dos demais inter- um velho manicômio por um hospital mo- p. 5.
nados e funcionários. derno e, dependendo do lobby dos detento-
7 Idem, ibidem.
• Art. 12o Evasão, transferência, aciden- res de convênios, os leitos atualmente con-
8 Manicômio . [De mani- + -
te, intercorrência clínica grave e faleci- tratados permanecerão como uma “reserva cômio.] S.m. Hospital de doi-
dos. • Doido. Adj. 1. Louco,
mento serão comunicados pela direção de mercado”, impedindo o ingresso de alienado, demente. 2. Que
do estabelecimento de saúde mental aos novos grupos e dificultando o aprimora- age como doido; […] • Asilo.
[Do gr. ásylos, pelo lat. asylu.]
familiares, ou ao representante legal do mento do parque hospitalar (6). Em segun- S.m. 1. Casa de assistência
social onde são recolhidas,
paciente, bem como à autoridade sani- do lugar, ao acatar a proposta Portella de para sustento ou também para
tária responsável, no prazo máximo de definir instituição asilar como aquela des- educação, pessoas pobres e
desamparadas, como mendi-
24 horas da data da ocorrência. provida de “serviços médicos, de assistên- gos, crianças abandonadas,
• Art. 13o Pesquisas científicas para fins cia social, psicológicos, ocupacionais, de órfãos, velhos, etc. 2. Lugar
onde ficam isentos da execu-
diagnósticos ou terapêuticos não pode- lazer, e outros”, o Substitutivo do Senado ção das leis os que a ele se
recolhem: Os revoltosos venci-
rão ser realizadas sem o consentimento acabou proibindo o “asilo” ao invés de proi- dos escolheram para asilo a
expresso do paciente, ou de seu repre- bir o “hospital asilar” (7). embaixada do México. 3.
Guarida, abrigo, proteção. •
sentante legal, e sem a devida comunica- Vale lembrar que manicômio e asilo não Hospital. [Do lat. hospitale,
“hospedaria”.) S.m. 1. Estabe-
ção aos Conselhos profissionais compe- são sinônimos de hospital e que muitos dos lecimento onde se internam e
tentes e ao Conselho Nacional de Saúde. que hoje estão internados em hospitais psi- tratam doentes; nosocômio. •
Hospício. [Do lat. Hospitiu.]
• Art. 14o O Conselho Nacional de Saú- quiátricos no mundo inteiro não são S.m. 1. Casa onde se hospe-
de, no âmbito de sua atenção, criará Co- psicóticos nem podem ser chamados de dam e/ou tratam pessoas po-
bres ou doentes, sem retribui-
missão Nacional para acompanhar a doidos (8) . Além disso, muitos dos que po- ção; asilo. 2. Asilo de loucos,
com retribuição ou sem ela; ma-
implementação desta lei. deriam se beneficiar de um bom asilo não nicômio. 3. Lugar onde se re-
• Art. 15o Esta lei entrará em vigor na data necessitam de hospital mas, sim, das demais colhem e tratam animais aban-
donados (Aurélio Buarque de
de sua publicação”. funções tradicionais do asilo: refúgio e rea- Holanda Ferreira, Novo Dicio-
nário Aurélio).
bilitação. Isso foi discutido pelo líder da psi-
Um avanço em relação ao Projeto Del- quiatria social britânica, John Wing, em seu 9 J. K. Wing, “The Functions of
Asylum”, in Brit. J. Psychiatry,
gado, por ser mais flexível e mais abran- magistral artigo “As Funções do Asilo” (9). 157, 1990, pp. 822-7.

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A importância de dispor dos vários equi- governos, sem exceção, foram favoráveis
pamentos de saúde mental em um sistema à criação de alternativas à hospitalização.
integrado de atendimento e reabilitação foi Pode-se identificar duas principais
também muito enfatizada por Wing, para vertentes para a reforma psiquiátrica brasi-
quem não se deve confundir uma estrutura leira: uma, radical, antipsiquiátrica, oriun-
com sua função. Quando as funções do asilo da de um movimento de bases fortemente
puderem ser exercidas por outros serviços, influenciado pela reforma psiquiátrica ita-
ele provavelmente poderá ser dispensado. liana, gerou o Projeto Delgado; a outra,
Entretanto, o asilo não deve ser um mani- desenvolvida ao longo de algumas décadas
cômio nem um hospital, mas tem que ser pela liderança política da psiquiatria brasi-
mais do que um simples abrigo. leira e por técnicos do Ministério da Saúde,
Existe, portanto, uma importante con- foi atropelada pelo Projeto Delgado.
tradição interna no Substitutivo do Sena- Assim, em 1985, a antiga Divisão Nacio-
do: como “ter acesso ao melhor tratamento nal de Saúde Mental (Dinsam) do Ministé-
do sistema de saúde, consentâneo às suas rio da Saúde coordenou a elaboração de
necessidades” e “ser protegida contra qual- uma “Proposta de Política de Saúde Men-
quer forma de abuso e exploração”, sem tal da Nova República”, refletindo as con-
dispor de equipamentos para tal? clusões do VII Encontro Nacional de Psi-
A questão do hospital é mais complexa. quiatria Preventiva e Social, que serviu de
Têm sido oferecidas duas justificativas base para a I Conferência Nacional de Saú-
principais para a proibição de novos hospi- de Mental (I CNSM, Rio de Janeiro, 6/
tais psiquiátricos: uma, pretensamente téc- 1987). Já antecipando a estratégia de
nica, mas, na verdade, exclusivamente ideo- mobilização que seria adotada depois, a I
lógica e, outra, econômico-financeira. A CNSM foi precedida de “pré-conferências
ideológica é a que embasou a Lei Basaglia, estaduais” que elegeram 176 delegados e
da reforma psiquiátrica italiana (Lei no 180, membros de “segmentos representativos da
13/5/1978) (10). A econômico-financeira sociedade” (11).
é que esta seria a única forma de viabilizar Graças a isso, as conclusões da I CNSM
a construção e o financiamento da rede foram muito mais radicais do que as pro-
assistencial extra-hospitalar. Freqüente- postas da Dinsam e foram mais políticas do
mente elas se imbricam. Dadas as conse- que técnicas. Exemplos:
qüências da aprovação do projeto, é impor-
tante examinar esses argumentos antes de “A indústria farmacêutica será estatizada
discutir a questão do ponto de vista propria- […] O poder público poderá intervir, desa-
mente técnico. propriar ou expropriar os serviços de natu-
reza privada […] Enquanto não se atingir a
meta da estatização os prestadores e produ-
O ARGUMENTO IDEOLÓGICO tores de bens e serviços passarão a ter con-
trolados seus procedimentos operacionais
No Parecer Alcântara, favorável ao Pro- e direcionadas suas ações no campo da
jeto Delgado, consta que “[…] o que se saúde […] É da responsabilidade do Esta-
pretende é mais que uma mera redisposição do a questão da formação dos recursos
de recursos assistenciais; o que se pretende humanos, que deverão ser adequados ao
é uma verdadeira mudança cultural”. Que contexto de novas políticas […]” (12).
mudança seria essa?
Examinando os documentos mais cita- Neste contexto, pela primeira vez se
10 Gazzetta Ufficiale della dos nessa longa polêmica, percebe-se que, explicita a exigência basagliana de proibir
Republica Italiana, 133, 16 de
maio de 1978, pp. 3.491-4.
desde a década de 60, ninguém, com exce- hospitais:
ção de um ou outro empresário do setor,
11 Relatório Final da I CNSM,
1988. defende o modelo assistencial centrado nos “[…] A partir desta Conferência, o setor
12 Idem, ibidem. hospitais manicomiais/asilares. Todos os público não credenciará nem instalará no-

12 REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 6-23, setembro/novembro 1999


vos leitos psiquiátricos em unidades psi- riências nos anos 60 e 70 levaram à Lei 180,
quiátricas hospitalares tradicionais, redu- que orientou a reforma psiquiátrica naquele
zindo, progressivamente, os leitos existen- país. Considerado um líder carismático,
tes nesse último tipo de serviço e substitu- Basaglia ficou conhecido a partir de seu
indo-os por leitos psiquiátricos em hospi- trabalho em Gorizia e depois em Trieste,
tais gerais públicos ou por serviços inova- transformando a assistência manicomial em
dores alternativos à internação psiquiátri- comunitária, como faziam, na época,
ca […] Será proibida a construção de no- Maxwell Jones, na Escócia, e Sivadon, na
vos hospitais psiquiátricos tradicionais […]. França. Nessa época imediatamente ante-
Em regiões onde houver necessidade de rior à retomada do modelo clínico-científi-
novos leitos psiquiátricos, estes deverão co pela psiquiatria americana, ocorria tam-
estar necessariamente localizados em hos- bém nos Estados Unidos uma malfadada
pitais gerais […]” (13). tentativa de psiquiatria comunitária (17).
No fim do nosso regime militar e em
Poucos meses mais tarde, no II Encon- sintonia com o momento político de então,
tro Nacional de Trabalhadores em Saúde Basaglia visitou o Brasil e angariou simpa-
Mental (Bauru, 1987), foi criado o Movi- tizantes, mas não se propunha um trans-
mento da Luta Antimanicomial, reunindo plante de seu modelo para o Brasil: “Certa-
profissionais da equipe multidisciplinar de mente que não se trata de tomar a psiquia-
saúde mental, em sua maioria não-psiquia- tria italiana como paradigma (seus
tras, que se posicionaram pela “[…] mu- articuladores mesmo repudiaram esta
13 Idem, ibidem.
dança das premissas teóricas e éticas da idéia)” (18). Entretanto, o movimento
14 Relatório Final da II Conferên-
assistência psiquiátrica” (14) e constituí- antimanicomial foi e continua a ser mais do cia Nacional de Saúde Men-
ram-se em “[…] um movimento social, que inspirado nele e em seus colaborado- tal, Brasília, 12/1992.

aglutinando todos aqueles que defendem res, como Franco Rotelli, cuja produção 15 F. N. B. Pereira Filho, “Movi-
mento Nacional da Luta
uma radical transformação na assistência à científica se resume a três artigos indexados, Antimanicomial/A Conquista
da Cidadania para os Porta-
Saúde Mental” (15). um dos quais sobre o tema (19). dores de Sofrimento Mental”,
Não há como negar que, em parte, a Vale lembrar que esses profissionais in Revista Psiconews, 1987,
p.11.
questão ideológica se superpõe a uma luta jamais tiveram qualquer expressão acadê-
16 L. S. M. Sá Jr., Comunicação
corporativista pelo poder no âmbito da mica ou científica, inclusive na Itália. Se- Pessoal, 8/1999.
Saúde Mental. Conta-nos um dos princi- gundo Kathleen Jones, professora emérita 17 E. F. Torrey, “Jails and Prisons
pais líderes da psiquiatria brasileira que, de Política Social na Inglaterra “A contri- – America’s New Mental
Hospitals”, in American Journal
em fins dos anos 80, a área de Saúde Men- buição de Basaglia foi basicamente ideoló- of Public Health, 85, 1995,
pp. 1.611-3.
tal do Ministério da Saúde e a Associação gica, derivada do pensamento de Laing,
Brasileira de Psiquiatria (ABP) estavam sin- Cooper, Marcuse, Sartre, Heidegger e ou- 18 P. Amarante, “Desinstitucio-
nalização”, in Revista Saúde
tetizando as conclusões de numerosos tros […] Ela foi também fortemente políti- em Debate, no 29, 1990, pp.
77-80.
fóruns de discussão, com a participação de ca – uma abordagem euromarxista baseada
19 Rotelli foi convidado especial
juristas, religiosos e profissionais de saúde na crença de que os pacientes em um hos- do simpósio “A Transformação
mental e ultimavam uma proposta para mu- pital psiquiátrico eram sujeitos à opressão da Psiquiatria Italiana”, reali-
zado na USP, em 3/1990.
dança da legislação que atualizaria os pro- capitalista, e que qualquer forma de traba- Seu trabalho indexado é: O.
cedimentos assistenciais e criaria condições lho em que participassem era uma explora- De Leonardis, D. Mauri, F.
Rotelli, “Deinstitutionalisation,
para avanços futuros. Foi quando “surgiu ção” (20). Another Way: the Italian Men-
tal Health Reform”, in Health
inopinadamente o projeto Paulo Delgado, Basaglia e seus seguidores propunham Promot, 1, 1986, pp. 151-65.
trazido pelos antimanicomiais”. O fato es- a negação da instituição psiquiátrica. Se- 20 Jones vai além: “[…] Basaglia’s
tando consumado, a Assembléia de Dele- gundo Amarante (1990), frequently repeated belief that
‘dangerousness’ was merely a
gados e a Diretoria da ABP optaram por product of a system of
incarceration turned out to be
apoiá-lo (16). “desde o lançamento do Manifesto do Mo- sadly wide of the mark” (K.
Por “uma radical transformação na as- vimento da Psiquiatria Democrática, na Jones; G. Wilkinson & T. K. J.
Craig, “The 1978 Italian Men-
sistência à Saúde Mental” entenda-se “de- Bolonha, em 8 de outubro de 1973, pôde- tal Health Law – A Personal
sinstitucionalização”, na acepção de Fran- se detectar o objetivo fundamental deste Evaluation: A Review”, in Br. J.
Psychiatry, 159, 1991, pp.
co Basaglia, psiquiatra italiano cujas expe- movimento que era a desconstrução do 556-61).

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Abaixo, Pinel e aparato manicomial […] mesmo as propos- Essa ideologia passou a dominar as
tas mais ousadas de transformação do es- ações dos que assumiram a Coordenadoria
as Loucas, de paço manicomial não eram mais que de Saúde Mental do Ministério da Saúde
R. T. Fleury contemporizações […] A instituição a ser (Corsam) na época do Projeto Delgado.
negada era o conjunto de aparatos científi- Esse grupo, impaciente com a lenta
cos, legislativos, administrativos, de códi- tramitação no Senado após a fácil aprova-
gos de referência cultural e de relações de ção na Câmara, optou por atropelar a legis-
poder […] o paradigma clínico foi o verda- lação federal através de projetos de lei es-
deiro objeto do projeto de desinstituciona- taduais e da ampliação da estratégia de
lização […] Descartadas as falsas compre- mobilização social para seu apoio. Para eles,
ensões da desinstitucionalização […] po- a discussão técnica estava encerrada (22).
21 P.Amarante, “Desinstituciona-
lização”, op. cit.
deremos apreender o elaborado processo Assim, a II Conferência Nacional de
de invenção de uma nova concepção sobre Saúde Mental (II CNSM; Brasília, 12/
22 A exemplo de sua inspiradora,
esta foi uma estratégia tipica- a loucura […] Inspirados ora na Antipsi- 1992), organizada pela Corsam e pelo
mente autoritária e longe de
“democrática”. Craig comenta quiatria, ora em autores aparentemente tão Movimento da Luta Antimanicomial, “[…]
que “[…] The Italian Law 180 distantes como Marx, Gramsci, Sartre, foi precedida por 24 conferências estadu-
emerged from a partnership
between a relatively small Hüsserl, Foucault, Castel e Goffman, den- ais entre abril e novembro de 1992 […] por
number of specialist mental
health professionals and a
tre outros, Basaglia e os demais operadores sua vez precedidas por aproximadamente
coalition of popular left-wing construíram uma negação objetiva não da 150 conferências municipais ou de âmbito
politicians […]” (K. Jones, G.
Wilkinson & T. K. J. Craig, “The doença mental, mas do imperialismo da regional em todo o país”. Com isso elege-
1978 Italian Mental Health Law dimensão médico-clínica sobre o fenôme- ram-se 500 delegados em “composição
– A Personal Evaluation: a
Review”, op. cit.). no loucura […]” (21). paritária dos dois segmentos: usuários e

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sociedade civil, governo e prestadores de 11.064, 16/5/1994; Rio Grande do Norte,
serviço”. Participaram também “320 ob- Lei 6.758, 4/1/1995; Minas Gerais – Lei
servadores credenciados […] escolhidos 11.802, 18/1/1995; e Paraná – Lei 11.189,
nos encontros estaduais”, “150 ouvintes e 9/11/1995). Outros, como o Projeto
100 convidados, incluindo 15 personalida- Gouveia, em São Paulo, continuam trami-
des estrangeiras e representantes de orga- tando. Para identificar as origens de seus
nismos internacionais”. “Estima-se que, nas artigos ou emendas a eles oferecidas, basta
três etapas, 20.000 pessoas estiveram dire- cotejá-los com a Lei Basaglia ou com os
tamente envolvidas” (23). relatórios da I e da II CNSM:
Embora ela pudesse ter sido um evento
no qual um milhar de pessoas representan- “[…] fica vedada a construção e ampliação
do os interesses da sociedade deliberassem de hospitais psiquiátricos, públicos ou pri-
sobre os rumos gerais de uma reforma da vados […]” (Lei 9.716, 7/8/92, Art.3o, Rio
assistência, as “recomendações” fundamen- Grande do Sul).
tais “emanadas” dessa conferência já cons- “[…] ficam proibidas […] a construção e a
tavam de cerca de 10 projetos de lei, prati- ampliação de hospitais psiquiátricos e si-
camente idênticos entre si, submetidos milares, públicos ou privados […] ficam
quase simultaneamente, desde 1991, pelo desautorizados a funcionar no território es-
Partido dos Trabalhadores, a Assembléias tadual todos os hospitais psiquiátricos ou
Legislativas estaduais. similares existentes após 5 anos da data de
De fato, a II CNSM apenas referendou promulgação desta lei” (Projeto de Lei 366,
o que havia sido deliberado anteriormente, SP, 19/5/92, Dep. R. Gouveia, A. Chicarino
acrescentando algumas propostas descabi- e E. Araújo).
das, como a proibição do eletrochoque e da “[…] as instalações não poderão ultrapas-
psicocirurgia sem atentar para suas indica- sar 10% da capacidade instalada, até o li-
ções e técnicas internacionalmente aceitas, mite de 30 leitos por unidade” (Lei 9.716,
que foram incluídas em emendas aos pro- 7/8/92, Art.4o, Rio Grande do Sul).
jetos estaduais. “[…] as instalações não poderão ultrapas-
A primeira dessas leis estaduais, do Rio sar 10% da capacidade instalada do hospi-
Grande do Sul, submetida em 1991 e pro- tal geral, até o limite de 30 leitos por unida-
mulgada em agosto de 1992, tem ementa de operacional” (Lei 11.802, 18/1/1995,
mais fiel ao seu conteúdo do que o Projeto Art. 8o, Minas Gerais) (25).
Delgado, pois não fala em manicômios. “[…] as instituições educacionais forma-
Nem mesmo fala em “hospitais tradicio- doras de Recursos Humanos e, especial-
nais” como a I CNSM. Ela “dispõe sobre a mente, aquelas que habilitam os profissio-
extinção progressiva dos hospitais psiqui- nais das equipes multidisciplinares de aten-
átricos e sua substituição por outros recur- dimento às pessoas portadoras de sofrimen-
sos assistenciais e regulamenta a internação to mental reorientarão seus currículos quan- 23 Extratos do Relatório Final da II
CNSM, Brasília, 1994.
psiquiátrica compulsória” (grifo nosso). to aos conteúdos teóricos e práticos, para
24 M. Tansella & L. Burti, “The
Porém, ela (e suas congêneres em alguns adequá-los às necessidades da reforma psi- Italian Psychiatric Reform”, in
quiátrica e aos princípios desta lei” (Emen- H. Freeman (ed.), Century of
estados) comete o mesmo erro de não dis-
Psychiatry , London, Mosby
tinguir entre internação compulsória e da 14, SP, Dep. N. Monti). Wolfe Medical Communic-
ations, 1999.
involuntária, talvez porque a Lei 180 não o “[…] um acompanhante de sua escolha até
25 Em seu artigo 6o, a Lei Basaglia
distinga. Entretanto, esta não o fez porque vinte e quatro horas por dia, devendo o es- limita a 15 o número de leitos
as internações determinadas pelo judiciá- tabelecimento estar equipado de acomoda- em Serviços Psiquiátricos em
hospitais gerais. Segundo
rio na Itália (“compulsórias”, na nossa ter- ções, higiene e alimentação adequadas Tansella e Burti (“The Italian
Psychiatric Reform”, op. cit.)
minologia) são regidas por outro diploma […]” (Emenda 5, SP, Dep. G. Hanashiro). este número foi fixado “[…]
legal (24). para evitar uma concentração
excessiva de pacientes psiqui-
Mais alguns projetos estaduais já se É importante saber que a Lei 180 foi átricos, uma característica dos
tornaram leis (por exemplo, no Ceará – Lei ainda mais exigente, pois proibiu não ape- hospitais mentais que fora con-
siderada prejudicial ao bem-
12.151, 29/7/1993; Pernambuco – Lei nas “[…] a construção de novos hospitais estar dos pacientes.”

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psiquiátricos […]” mas também “[…] a uti- garantam seu cumprimento;
lização dos atualmente existentes como • Que a capacitação de recursos humanos
unidades psiquiátricas de hospitais gerais, em saúde mental e em psiquiatria deve
a criação de divisões ou seções psiquiátri- ser feita de acordo com um modelo de
cas nos hospitais gerais e a utilização das serviço de saúde comunitária que reco-
divisões ou seções de neurologia ou de menda a internação psiquiátrica – quan-
neuropsiquiatria para este fim” (Art. 7o). do necessária – em hospitais gerais, de
Outro exemplo da estratégia utilizada foi acordo com os princípios básicos que
o envolvimento da Organização Mundial da fundamentam esta Reestruturação;
Saúde (OMS) para dar respaldo à proposta. • Que as organizações, associações e de-
Em novembro de 1990, um ano após a apre- mais participantes desta Conferência se
sentação do Projeto Delgado, foi realizada comprometem conjunta e solidariamen-
em Caracas, sob a égide da Organização Pan- te a advogar e desenvolver, nos distintos
americana da Saúde (Opas/OMS), a “Con- países, programas que promovam a
ferência Regional para a Reestruturação da Reestruturação da Atenção Psiquiátrica
Atenção Psiquiátrica na América Latina no e a defesa e vigilância dos direitos huma-
Contexto dos Sistemas Locais de Saúde nos dos doentes mentais, de acordo com
(Silos)”. Ela recebeu “apoio técnico e finan- as legislações nacionais e os compromis-
ceiro” do Instituto Mario Negri de Milão e sos internacionais respectivos.
o auspício de diversas associações, profissi- Para o que conclamam
onais, serviços de saúde italianos e espa- • Os Ministérios da Saúde e da Justiça, os
nhóis alinhados com o modelo e organiza- Parlamentos, a Previdência Social e ou-
ções políticas. Contou, também, com a par- tros prestadores de serviços, as organi-
ticipação de parlamentares e “delegações zações profissionais, as associações de
técnicas” dos países da região, inclusive o usuários, as Universidades e outros cen-
Brasil. Ao seu final, foi emitida a Declara- tros de formação, e os meios de comuni-
ção de Caracas, que afirma cação a apoiar a Reestruturação da Aten-
ção Psiquiátrica de forma a assegurar o
• “Que a Reestruturação da Atenção Psi- sucesso de seu desenvolvimento em be-
quiátrica ligada à Atenção Primária de nefício das populações da Região”.
Saúde no contexto dos Sistemas Locais
de Saúde permite a promoção de mode- Embora este não seja um documento
los alternativos fundamentados nas co- oficial da Opas/OMS, é importante notar
munidades e em suas redes sociais; que em nenhum momento ele propõe a
• Que a Reestruturação da Atenção Psi- proibição da construção ou financiamento
quiátrica na Região implica a revisão de novos hospitais ou a “desconstrução” da
crítica do papel hegemônico e centrali- Psiquiatria. E nem poderia, pois os docu-
zador do hospital psiquiátrico na pres- mentos oficiais da ONU e da OMS não
tação de serviços; sustentam essas propostas.
• Que os recursos, cuidados e tratamen- O documento oficial da ONU, “Princí-
tos fornecidos devem: salvaguardar, in- pios para a Proteção de Pessoas com Enfer-
variavelmente, a dignidade pessoal e os midade Mental e para a Melhoria da Assis-
direitos humanos e civis; basear-se em tência à Saúde Mental” (Assembléia Ge-
critérios racionais e tecnicamente ade- ral, 17/12/1991), não trata desta questão.
quados; propender à manutenção do do- Quanto à OMS, em 1993 sua Divisão de
ente em seu meio comunitário; Saúde Mental distribuiu recomendação nos
• Que as legislações dos países devem seguintes termos:
ajustar-se de maneira a: assegurar o res-
peito dos direitos humanos e civis dos “A vida em hospitais deve ser mantida como
doentes mentais; promover uma orga- uma opção para clientes que necessitem
nização de serviços comunitários que cuidados intensivos de alta qualidade e que

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se considere improvável que possam viver atuais por um período de alguns anos para
de forma mais independente […] Os hospi- viabilizar a transformação do modelo após o
tais podem oferecer refúgio para clientes fechamento dos manicômios (Parecer
com alta que necessitem reinternação em Alcântara) – não consta dos projetos aprova-
períodos de crise; no passado a alternativa dos. Sem isso, nada poderá ser feito.
foi cárcere em instituições penais, uma
conseqüência claramente indesejável” (26).
O ARGUMENTO ECONÔMICO
Talvez o conflito ideológico seja ainda
mais amplo. Segundo o atual diretor do Como a questão ideológica não se sus-
Departamento de Saúde Mental da Organi- tenta e talvez por considerar que mudanças
zação Mundial da Saúde, Benedetto culturais não sensibilizam os poderes, o
Saraceno (colaborador de Franco Basaglia Parecer Alcântara postulou que a extinção
em Trieste e originário do Instituto Mario dos manicômios viabilizaria financeira-
Negri), hoje vivemos um conflito entre a mente “[…] o desenvolvimento de outro
Medicina e a Saúde Pública, esta sendo modelo descentralizado, com formas alter-
“mais ampla, coletiva e holística […] e nativas, mais eficazes, mais humanas […]
incluindo as relações entre saúde e doença, e mais baratas” (grifo nosso).
sua ecologia, as instituições, os usuários e Continua o parecer: “O Projeto propõe-
a organização dos serviços e recursos des- se a ser um instrumento de reforma sanitá-
tinados a promover a saúde e a prevenir, ria e, principalmente, de limitação do nú-
reabilitar ou curar as doenças” (27). mero de leitos em hospitais psiquiátricos
A Saúde Pública, porém, não determi- no nível atual, impedindo seu crescimento
na a extinção de hospitais ou a “descons- e o consumo de vultosos recursos públicos
trução” de especialidades médicas. Aliás, e privados, que melhor seriam aplicados
seria curioso se isso viesse a ser pleiteado no desenvolvimento da rede de alternati-
em alguma outra especialidade, na qual um vas assistenciais e comunitárias preconi-
grupo resolvesse promover uma “reforma” zadas” (grifo nosso). A contradição é evi-
como a da antipsiquiatria. Não é difícil dente: mantido o número de leitos, de onde
encontrar paralelos, por exemplo, para uma sairiam os recursos para a rede alternativa?
“reforma cardiológica” (28). Para resolver esse impasse, o Parecer
Vale enfatizar que a Conferência de Rocha afirma que a manutenção do hospi-
Caracas foi essencialmente política, patro- tal psiquiátrico entre os equipamentos de
cinada por um instituto italiano, com a saúde mental afasta o Substitutivo Portella
participação de centros engajados em sua da “realidade da saúde no Brasil”, pois para
“reforma” (Trieste, Livorno, Parma, e manter a estrutura ideal seria necessário
Reggio Emilia). Ela não contou com a par- “[…] um significativo crescimento dos
ticipação da academia, nem mesmo da Itá- recursos gastos com saúde mental […] por-
lia: a única universidade representada como que os recursos do SUS, que mantêm tanto
tal foi a de Umea, Suécia. Isso é típico do os hospitais públicos quanto a maioria dos
que ocorreu no Brasil: não houve partici- leitos em hospitais privados, continuarão a
pação formal da universidade, que não foi ser totalmente gastos com esses leitos, e
consultada e permanece alheia e sem re- não mais poderão ser canalizados para as
26 “Transition from Hospital to
presentação sequer na Comissão Nacional outras formas de assistência, mais baratas Community: a Literature Review
on Housing” , Geneva, OMS,
de Reforma Psiquiátrica. e certamente revolucionárias em seu obje- 1993.
Por outro lado, a providência que seria tivo de sociabilizar o paciente psiquiátri- 27 B. Saraceno, “Psiquiatria e
mais importante para viabilizar uma reforma co” (grifo nosso). Saúde Mental”, in Jornal Brasi-
leiro de Psiquiatria, 44 (8),
desse tipo – a fixação de um percentual orça- Isso são meias-verdades. Sem o mando 1995, pp. 389-93.
mentário comprometido por lei (Cap.4 da II dessa lei, o Ministério da Saúde fechou 28 V. Gentil Filho, “A Reforma Psi-
CNSM, 1994; Tansella e Burti, 1999) ou, pelo quase 10.000 leitos psiquiátricos entre 1983 quiátrica e o Futuro da
Cardiologia”, in Revista do
menos, a obrigatoriedade de manter os gastos e 1987 (ver abaixo). Só que o fez antes que Incor, 1, 1995, pp. 3-4.

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a rede alternativa estivesse instalada e ca- when they are released, because their
pacitada a atender a nova demanda daí treatment needs are not recognised”.
decorrente. Fechar manicômios antes de
implementar uma rede assistencial comu- E não se diga que esses países fracassa-
nitária é receita certa para o desastre. ram por não adotar o modelo basagliano.
Em fevereiro de 1994, uma Força Tare- Apesar de não existirem dados sobre toda a
fa de Saúde Mental do governo inglês reco- Itália, algumas avaliações regionais com
mendou que o fechamento dos hospitais metodologia adequada foram publicadas por
psiquiátricos de Londres fosse interrompi- Tansella e Williams (32). Em síntese, em
do, “até que as autoridades de saúde este- regiões onde os recursos alocados foram
jam certas de que ‘serviços alternativos suficientes a reforma foi bem-sucedida; nas
efetivos’ estejam disponíveis”. Eles sali- demais – a maioria – a experiência não foi
entaram os riscos para os pacientes e para boa. Palermo identificou as seguintes “[…]
o público resultantes das altas precoces e o conseqüências da Lei Basaglia entre 1978 e
custo decorrente de ter que encaminhar 1983: 57,6% mais internações em manicô-
esses pacientes para atendimento psiquiá- mios judiciários, 43,5% mais mortes devi-
trico conveniado fora de Londres (1 mi- das a transtornos mentais e 19% mais suicí-
lhão de libras esterlinas por ano) (29). dios por transtornos mentais” (33).
Da mesma forma, Torrey cita dados do Também não é verdade que a assistên-
Departamento de Justiça, no qual o número cia extra-hospitalar é mais barata. Poderia
de doentes mentais graves nas prisões e ser, se considerássemos os efeitos de uma
cadeias americanas, em 1993 (quase 163 boa rede de ambulatórios psiquiátricos.
mil pessoas), era o dobro do total de paci- Oferecer tratamento ambulatorial eficaz
entes internados em hospitais psiquiátri- para transtornos ansiosos e depressivos é
cos públicos. Cerca de 30% dos detidos nas simples e seu retorno é altamente compen-
cadeias americanas, em 1992, lá estavam sador. Se pelo menos os principais centros
sem ter sido imputados, aguardando avalia- regionais do país pudessem prescrever lítio
ção ou transferência para hospitais psiqui- (34) e antipsicóticos modernos, haveria uma
átricos. Devido às suas doenças, esses indi- redução não apenas da mortalidade, mas
29 The Times, 28/9/1994. víduos passam por toda a sorte de infortú- também da morbidade (mais saúde com
30 E. F. Torrey, “Jails and Prisons nios, até por dificuldades em entender as menos efeitos colaterais), do risco de
– America’s New Mental
Hospitals”, in American Journal regras da prisão. Torrey conclui que a agudização (adesão ao tratamento e maior
of Public Health, 85, 1995, pp. “Deinstitutionalisation of seriously eficácia preventiva) e da demanda por lei-
1.611-3.
mentally ill individuals has been the largest tos hospitalares e serviços de reabilitação.
31 L. Birmingham, “Between Prison
and the Community”, in British failed social experiment in twentieth Além de poder melhorar a qualidade de
Journal of Psychiatry , 174,
1999, pp. 378-9.
century America […] because we did not vida de milhões de pacientes, o investimen-
ensure that they receive the medications to em uma boa rede ambulatorial psiquiá-
32 Psychological Medicine, 17,
1987, pp. 283-9; Social and aftercare that they need […] to live in trica traria retorno econômico garantido.
Psychiatry, 22, 1987, pp. 37-
48; European Archives of the community” (30). Porém, quase não existem ambulatórios
Psychiatry and Neurological Outro recente editorial (31) confirma conveniados (35) e a preocupação dos
Sciences , 236, 1987, pp.
237-40. essa realidade: “antimanicomiais” na Corsam era “desme-
33 G. B. Palermo, J. Royal Soc. dicalizar” o modelo.
Med., 84, 1991, pp. 99-102.
“Evidence is now emerging that indicates Entretanto, o argumento econômico tem
34 Uma das lástimas da nossa rede that the closure of psychiatric hospitals sido utilizado apenas para justificar a proi-
pública é não oferecer tratamen-
to de manutenção com lítio às coupled with under-resourced community bição dos hospitais e sua substituição por
dezenas de milhares de pes-
soas portadoras de transtorno care is causing a similar problem in Britain equipamentos alternativos de hospita-
bipolar maníaco-depressivo, […] there are in excess of 4500 men with lização (unidade psiquiátrica em hospital
cujas reinternações poderiam
ser bastante reduzidas por esse psychotic disorders in prison at the present geral, hospital-dia, hospital-noite, centros
tratamento.
time […] only the tip of psychiatric de convivência, etc.). Só se raciocina com
35 Não poderia ser diferente: o morbidity […] However, many mentally ill os custos diretos, ou seja, a atual remune-
SUS remunera em R$ 2,00 a
consulta. prisoners receive no treatment or aftercare ração do SUS pelos leitos manicomiais

18 REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 6-23, setembro/novembro 1999


versus os serviços alternativos. É um dever sabe-se que os casos mais graves represen-
do bom senso reconhecer que esses servi- tam apenas uma fração da demanda.
ços não podem custar menos do que a Na verdade, estudos de prevalência in-
hospitalização. Segundo Tansella, dicam que perto de 30% da população adulta
“Political and administrative commitment sofre pelo menos um transtorno mental
is necessary, since effective community care classificável pela Organização Mundial da
is not, and will never be, a cheap solution”. Saúde (CID-10) em algum período de sua 36 H. R. Lamb, “Lesson Learned
O mesmo foi dito por um dos líderes da vida (41). Recente estudo domiciliar na área from Deinstitucionalisation in
the US”, in Br. J. Psychiatry,
psiquiatria comunitária americana: de abrangência do Instituto de Psiquiatria e 162, 1993, pp. 587-92.
da Faculdade de Saúde Pública da USP (42) 37 Cadastro de Estabelecimentos
de Saúde, in “Proposta de Po-
“[…] in the US […] there were 3 main encontrou prevalências de transtornos men- lítica de Saúde Mental da
motivating forces for deinstitucionalisation tais praticamente idênticas às do “National Nova República (julho/
1985)”, Dinsam, Ministério da
[…]: [community care is] cheaper […] Comorbidity Survey”, o mais sofisticado Saúde.
better […] [and promotes] civil rights […] estudo com amostragem probabilística dos 38 DataSUS, Ministério da Saú-
[but] […] good community care […] costs Estados Unidos (43). de, in Parecer do Senador Se-
bastião Rocha, 1998.
at least as much as in-patient care […] poor O custo médico-social e econômico-fi-
39 Como o PIB em 1997 foi de
care can be found in both hospital and nanceiro desses transtornos nos Estados cerca de 800 bilhões de re-
ais, pode-se estimar que o SUS
community settings […] Nothing is more Unidos, incluindo as conseqüências do abu- empregou menos de 1% do PIB
difficult for many long-term mentally ill so de substâncias psicoativas, foi estimado em saúde. Cuba investe 7% (J.
A. Pinotti, Correio Brasiliense,
persons to attain and sustain than em 250 bilhões de dólares anuais em 1988 18/9/98). A Austrália inves-
independence […] Professionals need to be (44). As depressões, naquele país, têm um te 8,5% (4,7% disso em saúde
mental). A isto deve-se acres-
realistic […] even if patients are not” (36). custo anual de cerca de 44 bilhões de dóla- centar o que a população
gasta com seguros-saúde e as-
res, nisso incluídos o custo direto do trata- sistência privada, lembrando
Por outro lado, os recursos despendidos mento e as perdas decorrentes de faltas e que no Brasil os seguros ainda
não cobrem saúde mental.
com doenças mentais são vultosos, mas não acidentes no trabalho, doenças intercor-
40 DataSUS/MS – Coordenação
excessivos se comparados com os custos rentes, aposentadoria e morte precoce (45). de Saúde Mental.
diretos e indiretos delas decorrentes. Para Não sabemos qual o custo dos transtor- 41 Nossos senadores mencionam
avaliar se os gastos do SUS são compatí- nos mentais no Brasil. Recentemente, o cifras entre 1% e 10% da po-
pulação em seus pareceres.
veis com os custos das doenças mentais, é Banco Mundial, a Organização Mundial da
42 Prevalências de vida toda –
preciso cotejá-los com dados epidemio- Saúde (OMS) e a Escola de Saúde Pública Qualquer transtorno (%): 45,9;
Dependência de Tabaco: 25;
lógicos e de economia de saúde. de Harvard publicaram o importante traba- Qualquer transtorno, exceto
Em 1983, dos 446 mil leitos hospitala- lho The Global Burden of Disease and Injury Tabaco: 33,1; Depressão
Maior: 16,8; Ansiedade:
res do país, 85 mil eram psiquiátricos, sen- (GBD –1996). Ele estimou as conseqüên- 12,5; Fobias: 8,4; Somati-
zações: 6; Dependência do
do 75% destes em hospitais conveniados cias econômicas de 150 doenças e outros Álcool: 5,5; Distimia: 4,3;
(37). Em agosto de 1997, o SUS contava males em 1990 e calculou sua projeção para Conversões (Histeria): 2,6;
Psicoses Não-afetivas
com 76 mil leitos psiquiátricos, 77% dos 2020. Dentre as dez principais causas de (Esquizofrenia): 1,9; Bulimia :
quais na rede privada, 21% na rede pública incapacitação no mundo, em 1990, cinco 1,5; Dependência de Drogas:
1,1; Transtorno Bipolar (Manía-
e o restante em hospitais universitários (38). eram transtornos psiquiátricos: depressão, co-depressivo): 1 (L. Andrade
e cols., “Prevalence of ICD-10
Nesse ano de 1997, o SUS gastou cerca de abuso de álcool, transtorno bipolar manía- Mental Disorders in a
400 milhões de reais, ou 5,4% dos 7,5 bi- co-depressivo, esquizofrenia e transtorno Catchment Area in The City of
São Paulo, Brazil), submetido
lhões de reais de seu desembolso total, com obsessivo-compulsivo. Eles responderam a publicação em 7/1999.
os Transtornos Mentais (39). As hospita- por 8,1% da sobrecarga econômica devida 43 R. C. Kessler et al., “Lifetime
lizações consumiram 95% desses recursos às doenças em geral, bem mais que o câncer and 12-Month Prevalence of
DSM-III-R Psychiatric Disorders
(40). Para comparação, esse valor é igual à e as doenças cardíacas. Nos países em de- in the United States – Results
From the National Comorbidity
metade do orçamento anual da USP. senvolvimento, esse custo chegou a 12% para Survey”, in Archives of Gene-
Portanto, quase todo o gasto foi para o a faixa etária entre 15 e 44 anos. ral Psychiatry, 51, 1994, pp.
8-9.
atendimento hospitalar aos casos mais gra- Mantidas as condições previstas e con-
44 American Psychiatric
ves ou com menor suporte sociofamiliar, que siderando-se, conjuntamente, morte e Association, “Mental Illness
incapacitação, os quadros psiquiátricos e Awareness Guide”, 1996.
correspondem a cerca de 10% da população
com mais de 15 anos. Entretanto, desde os neurológicos – notadamente as depressões 45 Greenberg et al., “Depression:
a Neglected Major Illness”, in
trabalhos de M. Shepherd na década de 60, e os acidentes vasculares cerebrais –, deve- J. Clin. Psychiatry, 1993.

REVISTA USP, São Paulo, n.43, p. 6-23, setembro/novembro 1999 19


rão responder por 15% de toda a sobrecar- das demais profissões de saúde mental, a
ga econômica decorrente de doenças, aci- situação da assistência no Brasil era, e é,
dentes, guerras e violência no mundo em inaceitável. O parecer do senador Sebas-
2020. Além disso, com o aumento da tião Rocha atribui esse estado de coisas ao
sobrevida nos países em desenvolvimento, “[…] tripé omissão dos familiares, interes-
a expectativa é de que os afetados pela se dos donos de hospitais psiquiátricos e
esquizofrenia passarão dos 24 milhões de conivência do Poder Público como respon-
pessoas no ano 2000 (46). sável pelo suporte financeiro” (p. 17).
Considerando que, mesmo nos países Ele enumera evidências de que a rede
ricos, os recursos alocados à saúde são li- privada não pode ser reconhecida como
mitados, a recomendação do GBD é que os hospitalar, por não dispor dos recursos téc-
responsáveis pelas políticas de saúde alte- nicos de um hospital. A bem da verdade,
rem suas prioridades em função dessas in- há que se concordar que as exceções não
46 Nature Medicine, 1, 1995, pp. formações. Isso não é contemplado em são muitas, mas elas existem. Este argu-
630-1.
nossa “reforma” pois seu “modelo” não dá mento, porém, só fala a favor de uma efe-
47 Além dos medicamentos e do
ECT, algumas formas de conta, por exemplo, da assistência ambu- tiva política de modernização e recre-
psicoterapia têm eficácia com-
provada. Por outro lado, os pro-
latorial às depressões. denciamento desses equipamentos; jamais
gramas de prevenção de alco- Hoje sabemos quais são os tratamentos justificaria proibir a construção de novos
olismo e dependência de dro-
gas têm efetividade duvidosa. com eficácia comprovada (47). Levando hospitais. Aliás, o mesmo se aplica, há
Da mesma forma, muitos pro- em conta que dois terços da população com décadas, à rede ambulatorial, cuja quali-
gramas de reabilitação
psicossocial devem ser testados transtornos mentais nos países desenvolvi- dade técnica é incompatível com os pro-
quanto à sua relação custo-
efetividade. Segundo a Am- dos não recebem tratamento (idem para um blemas da população.
erican Psychiatric Association terço dos 9,2% da população geral com Já existiram propostas mais razoáveis
(“Mental Illness Awareness
Guide”, 1996) as taxas atuais psicoses e outros transtornos graves e do que a de extinguir os hospitais, como a
de sucesso terapêutico são de
80% nos transtornos de pânico
incapacitantes) e aceitando a ponderação tentativa de redefinir o modelo de atuação
e bipolar (maníaco-depressivo), de diferentes autores de que nenhum país dos hospitais estaduais em São Paulo, com
65% nas depressões unipolares,
e 60% na esquizofrenia e no pode oferecer assistência adequada a toda a “[…] organização de espaços assistenciais
transtorno obsessivo-compulsivo. a demanda e que, por isso, os serviços diversificados: Hospital Dia, Oficina Te-
De acordo com essa fonte, a
partir de sua introdução nos especializados terão que ser distribuídos rapêutica, Lares Abrigados, Enfermarias de
EUA em 1970, o uso do lítio
resultou em economia de 40 de acordo com critérios de custo/efetividade Curta e Média Permanência […] cada hos-
bilhões de dólares em tratamen- (48), o professor australiano Gavin pital elaborando um projeto próprio com a
to e incapacitação, enquanto
o tratamento eficaz do pânico Andrews (49) propõe que, além do atendi- especificidade de sua clientela e análise de
reduziu significativamente os
gastos em exames desnecessá-
mento aos casos mais graves, seja priorizada sua inserção regional e local” (50).
rios (32 milhões de dólares a assistência àqueles outros para os quais Hospitais são equipamentos necessários
anuais apenas em eletrocar-
diogramas para as suas mani- dispomos de tratamento realmente eficaz. para o bom exercício da medicina e hospi-
festações cardiovasculares). Pelos seus cálculos, o razoável (em seu país) tais psiquiátricos modernos poderão ofere-
48 De acordo com uma publica- seria destinar 37% dos recursos para os cer vantagens em relação a outros equipa-
ção da OMS (C. J. L. Murray &
A. d. Lopez, “Global Compar- transtornos do humor, 29% para a mentos. Em vez de renunciar a eles, seria
ative Assessments in the Health
Sector”, Genebra, OMS, esquizofrenia, 14% para os transtornos mais adequado reenunciar o seu conceito e
1994), os tratamentos atuais ansiosos, 12% para álcool e drogas e 8% definição, resgatando sua natureza de ins-
têm probabilidade de reduzir a
incapacitação decorrente dos para os demais transtornos mentais. tituição médica de alta complexidade e
transtornos do humor em 47%,
dos ansiosos em 28%, da
Nesse contexto, o argumento econômi- estabelecer suas características essenciais.
esquizofrenia em 44% e são co não é favorável à “desconstrução” da Chegamos a sugerir que o Ministério da
inefetivos nos usuários de subs-
tâncias (álcool e drogas). Psiquiatria. Ao contrário, ele sugere aumen- Saúde adotasse métodos de credenciamento
49 http://www.unsw.edu.au/ to dos investimentos no setor. semelhantes aos que a Educação faz na pós-
clients/crufad/burden graduação (51).
50 “Atenção à Saúde Mental do Revoltante, porém, é o deslocamento
Estado de São Paulo, Qua-
driênio 95-98”, Secretaria da
O ARGUMENTO TÉCNICO para as famílias da responsabilidade dos
Saúde, 3/1995.
que se omitem quando deveriam gerenciar,
51 V. Gentil Filho, “Hospital Psi- Independentemente do progresso da destinar recursos, fiscalizar e, quando ne-
quiátrico: Proposta de Defini-
ção”, op. cit. Psiquiatria, como especialidade médica, e cessário, julgar e punir. Afinal, o Poder

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Público não é apenas financiador. As cau- teto não existe apenas nas grandes metró- 52 Como disse Lamb, “ [ the ]
burden of deinstitutionalisation
sas do atual estado de coisas são múltiplas poles. Recente estudo em Juiz de Fora – should not be allowed to fall
e complexas, espelham as limitações da MG (terra do deputado Paulo Delgado), on families, as it sometimes has
[…]” (H. R. Lamb, “Lessons
sociedade e do momento histórico, e suas entrevistando 83 adultos moradores de rua Learned from Deinstitution-
alisation in the US”, in Br. J.
conseqüências não podem recair apenas há pelo menos um ano, encontrou alcoolis- Psychiatry, 162, 1993, pp.
sobre os que já têm que suportar a dor de ter mo em 82%, abuso de drogas em 31%, trans- 587-92).
parentes doentes (52). tornos do humor em 32,5%, e psicoses 53 “Os Custos da Doença Mental
– Dinheiro para a Família”, in
Esse erro, baseado em antigos e supera- esquizofreniformes em 9,6%. Apenas uma Esquizofrenia em Debate ,
dos conceitos sobre a gênese sociofamiliar pessoa não preencheu critérios para trans- 1995; V. Gentil, “Reforma
Psiquiátrica”, in Revista de Psi-
das psicoses, levou a antiga Corsam a pro- tornos mentais pela Classificação Interna- quiatria Clínica, 25 (4), 1998,
p. 148.
por, em meados desta década, um progra- cional de Doenças da OMS (CID-10). Com-
ma de desospitalização, o Pade. A proposta binações de transtornos mentais foram de- 54 O South Verona Outcome
Study é um projeto de avalia-
era distribuir à família (R$ 150,00/mês) um tectadas em 78% dessa amostra (58). ção das conseqüências do
novo sistema assistencial itali-
pouco menos da metade do que o SUS pa- Uma coisa é deixar nas ruas os ano sobre a psicopatologia, o
gava pela internação asilar, e outro tanto ao “escribas” e as “loucas de Chaillot”, outra desempenho social, a satisfa-
ção com os serviços, os custos
município para a criação de equipamentos é negar assistência a milhares de pessoas e outros índices. Nessa região,
predominantemente urbana,
assistenciais alternativos. Em contraparti- com grande sofrimento ou incapacitação afluente e de classe média,
da, estes receberiam de volta seus doentes por transtornos mentais graves, que peram- com 75.000 habitantes, no sul
de Verona, ao norte da Itália,
mentais internados há vários anos. Dessa bulam pelo país como se fizessem parte da toda a rede extra-hospitalar
forma, argumentava-se, seria possível es- paisagem. Isto não é democracia, nem li- (incluindo 3 apartamentos e 1
pensão protegida) foi
vaziar os caros manicômios e promover berdade: é negligência, falta de solidarie- implementada logo após a Lei
180, há 20 anos. Lá, todos os
ressocialização e reinserção familiar (e ain- dade e omissão de socorro. O tratamento pacientes, inclusive os casos
da restaria um pouco para sensibilizar o da reagudização e a estabilização desses mais graves, são atendidos
sem recorrer a um hospital psi-
governo…) (53). cidadãos podem ser feitos pela área médica quiátrico. Segundo seus res-
ponsáveis, isso prova que o
Como vimos, a experiência internacio- da rede assistencial. Impedir a utilização modelo funciona (Tansella &
nal demonstra que a desospitalização tem de asilos por igualá-los aos atuais manicô- Burti, “The Italian Psychiatric
Reform”, 1999).
que ser subseqüente à instalação de uma mios é confundir, como se disse, estrutura
55 K. Jones, G. Wilkinson & T. K.
rede alternativa adequadamente dimensio- com função. J. Craig, “The 1978 Italian
nada. Poucos, porém, foram os locais onde Embora as unidades psiquiátricas nos Mental Health Law – A Personal
Evaluation: a Review”, op. cit.
isso ocorreu. Um deles foi uma parte do hospitais gerais tenham um papel relevan-
56 Jones comenta: “[…] In many
município de Verona (54). Entretanto, esta te e possam exercer parte das funções dos areas, people are still admitted
to the deteriorating mental
não é a regra. Segundo Craig, “Most of the atuais manicômios, a internação nessas hospitals, because there is no
growth in district services is confined to enfermarias nem sempre é melhor do que other provision for them […]”
(K. Jones; G. Wilkinson & T. K.
regions where services were already most em uma unidade psiquiátrica fora do hos- J. Craig, “The 1978 Italian
advanced before legislation […]” e acres- pital geral. Além disso, as equipes profis- Mental Health Law – A Personal
Evaluation: a Review”, op. cit.).
centa não ver nisso algo único para a Itália: sionais estão se especializando e trabalham
57 “Perhaps the most important
“In Britain, the USA, and Australia […] melhor em unidades ainda mais espe- lesson to be drawn from the US
experience is that the most
the same mix of successful local services cializadas para patologias afins, por exem- difficult problem is not the fate
(often set up as pilot schemes and part of a plo, para psicoses, transtornos do humor, of those patients discharged
into the community after many
research programme) and the same failure álcool e drogas, adolescência, geriátrica, years as in-patients, but the
largely unforeseen problem of
of these on a large enough scale” (55). etc. (59), tanto nos hospitais gerais quanto
the treatment of the new
Esta imprevidência é agravada por afe- em um moderno hospital psiquiátrico. Pou- generation that has grown up
since deinstitutionalisation […]
tar não apenas os que hoje estão nos mani- cos hospitais gerais poderão dispor de equi- it is largely from this generation
cômios e que poderão lá ser mantidos (em- pes tão altamente especializadas. Um con- that the homeless mentally ill
are drawn ” (H. R. Lamb,
bora em más condições, como se fez na junto de unidades psiquiátricas especia- “Lessons Learned from
Deinstitucionalisation in the
Itália (56), por ser proibido investir neles), lizadas em um local com boa área verde US”, op. cit.).
mas atingirá também os novos crônicos, seria ainda melhor. Se, um dia, o SUS pu- 58 U. Heckert e cols., “Lifetime
que continuam a surgir e que serão os futu- der oferecer esse padrão de internação, com Prevalence of Mental Disorders
Among Homeless People in a
ros homeless (57). recursos humanos e remuneração condizen- Southeast City in Brazil”, in
Sem dúvida, a questão do asilo é menos tes, será excelente. Só que poderá ser proi- European Archives of Psychiatry
and Clinical Neurosciences,
médica do que social. O problema dos sem- bido por lei federal (60). 249, 1999, pp. 150-5.

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UMA PROPOSTA ALTERNATIVA “Dispõe sobre os direitos dos portadores
de transtornos psiquiátricos (61) e redire-
É preciso entender que a Psiquiatria, ciona o modelo assistencial em Saúde
como uma especialidade médica, não pode Mental
ser “democrática”, nem pode ser “reforma- • Art. 1o Os direitos e a proteção das
da”. Ela só pode ser desenvolvida. O que pessoas acometidas de transtorno psi-
tem que ser reformado é o modelo quiátrico […]
assistencial, e o que pode ser democrático e • Art. 2o […] Parágrafo Único – São di-
participativo, respeitando as diferenças, reitos das pessoas portadoras de trans-
competências, atribuições e responsabilida- torno psiquiátrico:
des é o processo dessa reforma. Não foi esse, • Art. 3o É responsabilidade do Estado o
como vimos, o caminho escolhido pelos desenvolvimento da política de saúde
próceres da “Psiquiatria Democrática” italia- mental, a assistência e a promoção de
na ou pelos seus seguidores no Brasil. ações de saúde aos portadores de trans-
Longe de abrir mão da moderna Psiquia- tornos psiquiátricos;
tria, para promover um efetivo aprimora- • Art. 4o O Poder Público destinará recur-
mento do modelo assistencial em Saúde sos orçamentários para a construção e
Mental, será necessário investir em uma manutenção de uma rede de serviços de
rede diversificada, abrangente e integrada Saúde Mental diversificada e qualifica-
em seus vários níveis, que não se restrinja da, sendo que a construção de novos
apenas ao atendimento dos casos mais gra- hospitais psiquiátricos públicos e a
ves e à reabilitação, mas que inclua ambu- contratação ou financiamento, pelo
latórios, hospitais especializados de reta- Poder Público, de novos leitos em hos-
guarda e asilos não-hospitalares. pitais psiquiátricos somente será per-
Certamente esses equipamentos devem mitida quando representar efetivo aper-
ser construídos ou credenciados de acordo feiçoamento do modelo assistencial e
com critérios de qualidade, de forma com- aprovada pelas Comissões Intergestoras
patível com suas funções e demanda, e sis- e de controle social dos três níveis de
tematicamente fiscalizados, como em qual- gestão do SUS.
quer outra área da Saúde. Em particular, os • Art. 5o […] Parágrafo 2o O tratamento
ambulatórios devem ser multiplicados e em regime de internação será estrutura-
capacitados para o atendimento aos trans- do de forma a oferecer assistência inte-
tornos mentais mais freqüentes, com trata- gral a pessoa portadora de transtornos
mentos efetivos e de boa relação custo/ris- psiquiátricos
59 Este é um conceito novo, que
só foi implementado em alguns co/benefício. Parágrafo 3o A admissão de portadores
centros avançados como o Para viabilizar essa transformação, os de transtornos psiquiátricos a institui-
Western Psychiatric Institute and
Clinic, da Universidade de procedimentos devem ser remunerados de ções asilares, ou seja, aquelas de natu-
Pittsburgh (EUA), há cerca de
15 anos, com grande sucesso. acordo com sua qualidade e complexidade. reza social e de reabilitação não
Ele inspirou o Plano Diretor e o Isso atrairá investimentos privados enquadráveis como hospitais, será
projeto de modernização do
Instituto de Psiquiatria do HC- modernizadores e levará naturalmente à regida por legislação específica para a
FMUSP.
substituição progressiva dos manicômios, área social (62).
60 V. Gentil Filho, “A Lei Delgado sem impedir o acesso da população ao aten- • Art. 10o […] Parágrafo 1o O Ministério
e o Futuro da Assistência Psiqui-
átrica”, op. cit. dimento médico de que necessita. Público, ex-offício, periodicamente, por
61 Psiquiátrico é mais específico e Partindo dessas premissas e com o ob- amostragem sistemática, verificará a
integrativo, pois a lei trata de
pessoas com problemas médi- jetivo de promover uma competente re- adequação da prática das internações
cos, biopsicossociais. forma e permanente atualização do mode- involuntárias e atendendo denúncia, ou
62 A Justiça poderá determinar o lo assistencial, respeitando as recomen- por solicitação do paciente, seu famili-
recolhimento compulsório de um
indivíduo demenciado a um dações da ONU, a lei derivada do Subs- ar ou representante legal, designará
asilo, ao invés de um hospital, titutivo do Senado requer as seguintes mo- equipe revisora multiprofissional de
se ele não necessitar de cuida-
dos médicos hospitalares. dificações: saúde mental, da qual necessariamente

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fará parte um profissional médico, pre- extramanicomial, que dirá a habitação!
ferencialmente psiquiatra, a fim de de- Como se pode pretender transformar a
terminar o prosseguimento ou a cessa- assistência em saúde mental no Brasil sem
ção daquela internação involuntária. levar em conta os progressos da Psiquiatria
• Art. 14o O Conselho Nacional de Saú- e a ampla experiência internacional? Por
de, no âmbito de sua atenção, criará Co- que manter o referencial teórico que norteou
missão Nacional para acompanhar a movimentos dos anos 60 e permitir que uma
implementação desta lei e o aperfeiço- ideologia anacrônica determine o futuro da
amento permanente do modelo Saúde Mental no Brasil? Nem mesmo a
assistencial em Saúde Mental. Itália “desconstruiu” sua Psiquiatria.
• Art.15o Os governos destinarão obri- É preciso superar tanto as limitações do
gatoriamente pelo menos 5% de seus pensamento radical, quanto as pretensões
recursos orçamentários de saúde para ilegítimas de prestadores de serviços. Há
a assistência em Saúde Mental”. que se identificar, também, quanto das pro-
postas representa as necessidades dos usu-
ários e quanto são apenas reivindicações e
anseios de setores profissionais.
CONCLUSÃO Embora não pareça, essa lei afetará a
todos, pois, conforme os estudos
Não há como apoiar o modelo vigente, epidemiológicos, a soma do número de
reconhecidamente ineficaz e insuficiente. portadores de transtornos mentais com o
Por outro lado, respeitar a cidadania impli- de seus familiares de primeiro grau corres-
ca em permitir acesso aos melhores cuida- ponde à maioria absoluta da população. Os
dos e à melhor prevenção disponíveis em recursos para a Saúde Mental no Brasil são
um dado momento histórico. tão desproporcionais com os problemas que
Ao proibir a substituição dos manicô- enfrentamos, que a economia decorrente
mios por instituições médicas de alta com- de fechar os manicômios seria irrelevante.
plexidade, os hospitais, a lei manterá o status Os custos médico-sociais e econômicos de
quo, condenando os pacientes ao atendimen- proibir modernos hospitais e oferecer asilo
to precário de deteriorados manicômios. Sem é que poderão ser exorbitantes.
asilo, os cidadãos com quadros deficitários, Esta questão é grave demais para que a 63 “[…] Clients should be housed
in locations that are not
que não tenham mais por que estar interna- universidade se omita ou não seja ouvida. impoverished; are close to
dos em manicômios, ou que estejam igual- De minha parte, mantenho a opinião de que support services; are
convenient for shopping,
mente isolados socialmente e se cronificando é melhor extinguir os manicômios, garan- recreational and medical
facilities; and are well served
nas ruas, continuarão assim, até que se per- tir o direito de asilo e proteção aos neces- by public transport” (“Transition
ceba a inviabilidade de estender a todos um sitados, ampliar a rede extra-hospitalar, from Hospital to Community”,
Division of Mental Health,
lar decente, mesmo que não atinja o padrão notadamente os ambulatórios psiquiátricos, WHO, 1993).
idealizado da OMS (63). Se nem os países e incentivar, também, investimentos em 64 V. Gentil, “As Encruzilhadas da
mais ricos conseguem instalar e manter a alguns bons hospitais psiquiátricos, públi- Saúde Mental no Brasil”, in
Revista Médicos, 4, 1998, pp.
parte propriamente médica da rede cos e privados (64). 100-2.

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