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“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve.

A pessoa humana constitui o único ser existente


no universo que busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua
especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente
e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. A produção de conhecimento
assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. Este distingue-se pelo seu carácter
sistemático, pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise,
individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um
conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da
necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no
seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que
anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho
científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos

Sísifo
deuses a que foi sujeito de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.”

revista de ciências da educação


Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa
Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó

n.º 02 · Jan | Fev | Mar | Abr · 2007


> Formação de adultos:
políticas e práticas
coordenação de Rui Canário

issn 1646‑4990
http://sisifo.fpce.ul.pt
Índice
Sísifo
Revista de Ciências
da Educação
Editorial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1‑2
Nota de Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3‑4
N.º 02
Formação de Adultos
políticas e práticas
dossier

Reconhecimento e Validação das Aprendizagens Experienciais. Edição


Uma problemática educativa Responsável Editorial deste número:
Ana Luisa de Oliveira Pires. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5‑20 Rui Canário

Director: Rui Canário


Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências:
Director Adjunto: Jorge Ramos do Ó
Complexidade e novas actividades profissionais
Cármen Cavaco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21‑34 Conselho Editorial: Rui Canário,
Luís Miguel Carvalho, Fernando
Albuquerque Costa, Helena Peralta,
A educação de jovens e adultos trabalhadores brasileiros no século XXI. Jorge Ramos do Ó
O “novo” que reitera antiga destituição de direitos
Sonia Maria Rummert. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35‑50 Colabor adores deste número:

Autoria dos artigos: António José


Empregabilidade, contextos de trabalho e funcionamento
Almeida, Natália Alves, Rui Canário,
do mercado de trabalho em Portugal Pierre Caspar, Cármen Cavaco,
António José Almeida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51‑58 Ana Luisa de Oliveira Pires,
Sonia Maria Rummert
E se a melhoria da empregabilidade dos jovens escondesse e Susana Pereira da Silva.
Traduções: Alves Calado, Robert G.
novas formas de desigualdade social?
Carter, Thomas Kundert, Filomena
Natália Alves. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59‑68 Matos e Tânia Lopes da Silva

Secretariado de Direcção: Gabriela


Sem‑abrigo: métodos de produção de narrativas biográficas
Lourenço e Mónica Raleiras
Susana Pereira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69‑82
Logotipo Sísifo
Desenho de Pedro Proença
Recensões
Informação Institucional
Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista, de Vanilda Paiva
[2000 (reedição)]. São Paulo: Graal Propriedade: Unidade de I&D
de Ciências da Educação
Rui Canário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83‑86 da Faculdade de Psicologia
e de Ciências da Educação,
da Universidade de Lisboa
Conferências issn: 1646-4990

Apoios: Fundação para a Ciência


Ser formador nos dias que correm: e a Tecnologia
novos actores, novos espaços, novos tempos
(Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Contactos
da Universidade de Lisboa, 4 de Novembro de 2005)
Morada: Alameda da Universidade,
Pierre Caspar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87‑94 1649-013 Lisboa. 

Telefone: 217943651 

Sísifo, revista de ciências de educação: Fax: 217933408

Instruções para os Autores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95‑96 e-mail: sisifo@fpce.ul.pt


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Editorial
Derridasísifo

Decidi hoje, nesta tribuna, abordar a possibilidade — que também me evoca directamente os trabalhos
de uma escrita científica que se pretenda essencial- e os dias de Sísifo — a condição para uma interven-
mente como de rompimento e de crítica, com o ob- ção capaz de suscitar transformações dignas desse
jectivo de me poder acercar de um dos sentidos que, nome. Julgo que daqui se podem aduzir algumas
muito me encantaria, a Sísifo viesse a corporizar na considerações relativas à nossa prática científica.
sua trajectória futura. Escrevo então umas breves Em primeiro lugar surge a questão da escrita.
linhas tomado do propósito de melhor imaginar Parece­‑me decisivo que cada gesto se erga a partir
como a coisa poderá um dia identificar­‑se com o de uma compreensão dos limites do discurso e que
nome que lhe foi aposto faz ainda tão pouco tempo. a estratégia do trabalho textual se comece por dar
De imediato me surgiu o nome de Derrida e o de empréstimo às palavras e aos fragmentos em cir-
seu conhecidíssimo exercício da descontrução. Usa- culação. Persuado­‑me que o texto que vários de nós
do pela primeira vez em 1967 em Gramatologia e procuramos concretizar se inscreve sempre e tende
tomado do universo da arquitectura — querendo a superar o outro em que se funda e que toma por
significar o exercício de deposição e decomposição referente. O que denominaremos de nova concep-
de uma estrutura —, o termo viria a impor­‑se no tualização tenderá a surgir, então, na demarcação,
conjunto dos seus textos posteriores enquanto sinó- no desdobramento e na distância, ou, entrevista de
nimo de uma prática permanente de questionamen- outro ângulo, nos rastros, nas margens e nas entre-
to de todos os sistemas de pensamento hegemónico linhas. É assim que nos embrenhamos numa escrita
herdados, uma forma científica de resistir à tirania que, de acordo com Derrida, podemos perceber ao
do Um e do logos da metafísica ocidental. Como se, mesmo tempo “insistente” e “elíptica”. É também
na sua essência e destino, o trabalho intelectual fos- por isso que muitas vezes nos descobrimos ora ar-
se o de contrapor uma assinatura a outra assinatura, rastando cada conceito numa “cadeia interminável
mas sem os habituais equívocos omnipotentes que de diferenças”, ora construindo a nossa análise por
atravessam a noção de autor no Ocidente e o assi- entre uma grande quantidade “de precauções, de
milam à noção de autoridade. A descontrução seria referências, de notas, de citações, de colagens, de
essa inflexível guerra à doxa. Para Derrida, que só suplementos”1. “Como nenhum texto é sempre ho-
via vida nos lugares de dissidência, tratou­‑se segu- mogéneo (isso tornou­‑se para mim uma espécie de
ramente menos de destruir o que era dominante do axioma categórico, o registo de todas as interpre-
que reinterpretar, criticar, deslocar, arrastar esta ou tações)” — explicava Derrida numa das suas mais
aquela herança, inverter esta ou aquela hierarquia, lidas entrevistas — “pode ser legítimo, e inclusive
desbloquear esta ou aquela oposição dual. Encon- sempre necessário, fazer dele uma leitura dividida,
tro em tal exigência de uma análise interminável diferenciada, até mesmo aparentemente contraditó-


ria. Activa, interpretativa, performativa, assinada, Instaurando formas de distanciamento crítico pela
essa leitura deve e não pode deixar de ser a inven- compreensão básica de que a resposta a qualquer
ção de uma reescrita”2. Percebida desta forma, a au- pergunta será sempre a emergência de um problema
toria será, afinal, o espaço da heteronomia. e que este, pela sua multiplicidade dispersa, muda
Um segundo tipo de considerações deve, em meu igualmente cada vez que a pergunta se vai deslocan-
entender, referir­‑se a uma outra ideia que podemos do. Tomado neste quadro, o exercício crítico nada
relacionar com este estado inacabado do livro por vir mais é que o exercício de colocar em crise a memó-
instaurado por Derrida, e não só. O meu ponto aqui ria do momento que atravessamos.
é o de sugerir que todas as motivações que concor- Assimilada ao tema da descontrução derridadia-
rem para a construção de uma obra científica pos- na, a minha leitura da experiência de Sísifo conduz­
sam, igualmente, convergir para a sua subsequente ‑me outrossim a esta nova relação do pensamento
e perpétua divisão. A meu ver, importa desencadear social com a verdade. Surge­‑me concretizada por
a discussão ética do trabalho académico em torno meio de um vocabulário em que descontinuidade,
de um impedimento fundamental: o da formação de diferença, multitude e problematização são as pala-
um corpus de saber, de uma soma unitária, de uma vras maiores. Descubro aqui um instigante e imen-
configuração homogénea. Julgo que o valor deste so território de pertença.
interdito é, acima de tudo, performativo, posto que
impõe o inacabamento como valor matricial e a di-
mensão aberta de toda a escrita científica. Do mito Notas
grego que aqui nos ocupa e simbolicamente nos al-
berga nesta publicação periódica ocorre­‑me então, 1. Jacques Derrida (2001[1971]). Posições. Belo
como necessária, a reivindicação de um estatuto da Horizonte: Autêntica, p. 21.
diferença, correspondendo esta a uma articulação da 2. Jacques Derrida & Elisabeth Roudinesco
unidade com a descontinuidade. Entendida a partir (2001). De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro:
deste postulado que se opõe à velha ideia de uma Zahar, pp. 205­‑206.
busca metódica da “solução”, a nossa tarefa não será
a de resolver, mas tão­‑somente a de problematizar.
Em lugar de “reformar” talvez possamos desejar ser Jorge Ramos do Ó
a um tempo mais modestos e ambiciosos. Como? (Lisboa, Março de 2007)

 sísifo 2 | editorial
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Nota de apresentação

Formação de Adultos: políticas e práticas

Rui Canário

Há cerca de vinte anos, Gilles Ferry designou a for- mação não se confunde, como seria desejável, com
mação como um dos grandes mitos do século XX, modalidades de democratização de acesso ao saber.
a par do computador e da conquista do espaço. In- Este segundo número da Sísifo organiza‑se em
vadindo todos os domínios do social, a formação torno de um “dossier temático” que tem como am-
instituiu­‑se como uma resposta às perturbações e às bição dar um contributo, ainda que modesto, para
angústias individuais e dos grupos, desorientados uma análise crítica de alguns contornos marcantes
por um mundo em rápida mudança e no contexto de das actuais políticas e práticas de formação. A sua
uma situação percepcionada como uma “crise” so- organização insere­‑se no plano de trabalhos da equi-
cial e económica. O optimismo em relação à forma- pa de investigação do Projecto FAP, financiado pela
ção não tem hoje razão de ser, num quadro em que o FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), e que
desemprego estrutural e o trabalho precário marcam se propõe estudar as políticas e práticas de formação
o regresso da vulnerabilidade de massa, característi- de adultos, em Portugal, no período posterior a 1974.
ca, entre outras, do que o sociólogo Beck designou Esse estudo implica, necessariamente, dimensões
por “sociedade de risco”. Vivemos um tempo em que comparativas e articulações com redes de investiga-
as políticas e as práticas de formação assumem, por ção, o que explica e justifica a inclusão, neste dossiê,
um lado, um carácter instrumental em relação à civi- do artigo assinado por Sonia Rummert, que nos dá
lização de mercado e, por outro lado, se inscrevem conta do resultado de pesquisas sobre políticas re-
em políticas de ortopedia social, em que o assisten- centes, de âmbito federal, direccionadas para traba-
cialismo se substitui à justiça social. Neste contexto, lhadores jovens e adultos, no Brasil. O tema do re-
o trabalho de investigação tem como principal justi- conhecimento de adquiridos e da sua tradução nas
ficação para a sua pertinência social a possibilidade políticas de formação de adultos é tratado por Ana
de produzir um acréscimo de lucidez sobre os dis- Luísa Pires, numa perspectiva comparada e interna-
cursos, as representações e as práticas que fazem da cional, enquanto que o artigo produzido por Cármen
formação um dispositivo de distribuição de ilusões. Cavaco procede, a partir de uma investigação empí-
Sabemos, com base na investigação empírica, rica em curso, à análise do modo como a institucio-
que mais formação não cria necessariamente mais nalização das práticas de reconhecimento de saberes
empregos, que percursos escolares mais longos não adquiridos por via experiencial se repercute na re-
colocam ninguém ao abrigo da “exclusão social”, alidade portuguesa actual. Os textos assinados por
que ao aumento da produtividade e da competitivi- António José Almeida e por Natália Alves, represen-
dade não corresponde um mundo socialmente mais tam contributos importantes para o esclarecimento
justo e solidário. Sabemos, também, que o cresci- teórico da natureza e do sentido do uso da noção de
mento exponencial da oferta e do consumo de for- “empregabilidade”, enquanto elemento constitutivo


central da ideologia que marca a generalidade dos ao livro de Vanilda Paiva sobre “Paulo Freire e o
discursos actuais sobre a formação. nacionalismo desenvolvimentista”, obra cuja leitu-
Finalmente, o artigo da autoria de Susana Perei- ra, pelo seu rigor metodológico e conceptual, pelo
ra da Silva, enquanto produto intermédio de uma contributo original para o estudo da obra e do pen-
investigação empírica sobre a problemática da for- samento de Paulo Freire, merece ser retirada do
mação no quadro de modos de vida da “margem” esquecimento e da marginalidade a que foi votada,
social (os designados “sem abrigo”), representa, fun- mercê de ortodoxias bem pensantes, mais propen-
damentalmente, a abertura para um questionamento sas a respostas do que a perguntas.
sobre a formação, em total divergência com a pers- O número finaliza com a publicação do texto,
pectiva oficial dos poderes instituídos. Centra­‑se nas inédito, de uma conferência de Pierre Caspar, pro-
questões metodológicas suscitadas por uma pesqui- ferida, em 2005, na Faculdade de Psicologia e de
sa orientada para a produção e análise de narrativas Ciências da Educação da Universidade de Lisboa e
biográficas de pessoas que vivem ou viveram na rua. que constitui uma reflexão global sobre os proble-
Em complemento do “dossier temático”, pu- mas da formação e, em particular, sobre os modos
blica‑se uma recensão, da autoria de Rui Canário, de “ser formador, hoje”.

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Reconhecimento e Validação
das Aprendizagens Experienciais.
Uma problemática educativa

Ana Luisa de Oliveira Pires


Professora‑coordenadora da Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Setúbal
Membro da Unidade de Investigação Educação e Desenvolvimento, Faculdade de Ciências
e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa
alop@fct.unl.pt

Resumo:
Este texto centra­‑se na problemática do Reconhecimento e da Validação das Aprendizagens
Experienciais dos Adultos numa perspectiva educativa. Estas novas práticas enquadram­‑se
num paradigma de Educação/Formação ao Longo da Vida, valorizando as aprendizagens
formais e não­‑formais que os adultos realizam ao longo das suas trajectórias pessoais, so-
ciais, e profissionais. Encontrando suporte teórico­‑conceptual nas abordagens da aprendi-
zagem e da educação/formação de adultos, estas práticas emergentes são no entanto terreno
de tensões e contradições e, do ponto de vista da investigação educativa, ainda pouco apro-
fundadas. Apresentamos neste texto uma breve análise dos conceitos de base, pressupostos
e princípios subjacentes — o que se reconhece e valida, como se reconhece e valida, que
lógicas se encontram em presença —, orientando as reflexões finais para o domínio da for-
mação dos actores intervenientes no processo de reconhecimento e validação — professo-
res, formadores, conselheiros, orientadores — e para a necessidade de a (re)pensar à luz de
novos quadros de referência educativa.

Palavras­‑Chave:
Educação e Formação de Adultos, Aprendizagem Experiencial, Reconhecimento e Valida-
ção de Adquiridos.

Pires, Ana Luísa Oliveira (2007). Reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais.
Uma problemática educativa. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 5‑20
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt


Nota introdutória o reconhecimento e validação de aprendizagens ex-
perienciais tem­‑se vindo a constituir como um novo
Considerando que a implementação e difusão de campo de práticas educativas, pondo em relevo a
sistemas de reconhecimento e validação têm vindo necessidade de conceber e desenvolver sistemas de
a constituir­‑se como uma tendência relevante ao ní- reconhecimento e validação em diferentes níveis de
vel dos sistemas educativos europeus, que têm feito qualificação, e concomitantemente, desenvolver a
parte da agenda política educativa europeia (nomea- formação dos formadores/professores/orientado-
damente traduzida nas comunicações da Comissão res/acompanhadores que participam neste proces-
Europeia (2001, 2004), nas Declarações de Bolonha so — missão fundamental das instituições de ensi-
e de Copenhaga, etc.), e que, no terreno empírico no superior.
nacional, estas práticas foram recentemente intro- Por outro lado, a disseminação destas práticas
duzidas — através dos Centros de Reconhecimen- no âmbito do ensino superior, de uma forma mais
to, Validação e Certificação de Competências —, ou menos formalizada dependendo dos diferentes
apresentamos neste texto uma abordagem educati- contextos nacionais, leva­‑nos a perspectivar que
va desta problemática. É num quadro paradigmáti- num horizonte temporal relativamente curto as ins-
co de Aprendizagem ao Longo da Vida que a valori- tituições nacionais de ensino superior poderão vir
zação das aprendizagens adquiridas no exterior dos a criar estruturas de apoio para o desenvolvimento
sistemas formais de educação/formação se constitui destas novas práticas, considerando­‑as como uma
como um novo campo de práticas educativas e parte integrante da sua oferta, de forma a alargar o
como objecto de estudo científico, particularmente acesso e a participação de novos públicos no ensino
relevante no domínio da Educação. superior, e a oferecer novas oportunidades de edu-
Este tema foi aprofundado no trabalho de inves- cação/formação ao longo da vida.
tigação realizado para a obtenção do doutoramento
em Ciências da Educação, e a problemática especí- E, também, do ponto de vista científico, a cons-
fica do reconhecimento e validação desenvolvidos tatação da carência de trabalhos de investigação
no âmbito do ensino superior constituiu o objecto neste domínio, leva­‑nos a reforçar a necessidade de
da investigação do pós­‑doutoramento. continuar a aprofundar e a reflectir sobre as ques-
Este tema é particularmente relevante ao nível tões emergentes desta nova problemática educativa.
do ensino superior, particularmente pelas seguin- Sendo a investigação uma função estruturante do
tes ordens de razão: ensino superior, parece­‑nos fundamental estimular
Por um lado, se tivermos em consideração as a produção do conhecimento científico sobre esta
tendências de evolução europeias, verificamos que problemática emergente.

 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
A emergência de novas práticas mudança “organizacional”, na medida em que toca
­e ducativas num contexto de mudança profundamente no projecto histórico da escola; a
designação “educação/formação”, acompanhada
A Sociedade do Conhecimento e a Aprendizagem ao de “ao longo da vida”, traduz um conjunto de pre-
Longo da Vida ocupações que se fazem sentir a nível internacional.
A sociedade contemporânea pode ser caracterizada Segundo o autor, existem saberes que funcionam
pela interdependência de fenómenos e de tendências como “modelos de referência”, os quais ultrapas-
evolutivas. É uma sociedade em mudança, suporta- sam as fronteiras tradicionais — construídos através
da no Conhecimento e na Informação — que têm de redes, articulações e filiações — e que, ao serem
forte impacto na Economia e no Desenvolvimento apropriados pelos actores, transformam as práticas
—, e que faz da esfera do trabalho e das organiza- locais de acção.
ções contextos de aprendizagem onde se constroem Os motivos subjacentes à emergência do reco-
novos saberes e novas competências. É uma socie- nhecimento e validação são múltiplos: os saberes
dade onde actualmente emergem novas formas de adquiridos à margem dos sistemas formais de educa-
olhar para os fenómenos educativos: assistimos à ção/formação têm inegavelmente um valor pessoal,
emergência de um paradigma de Aprendizagem ao formativo, profissional, social e económico. E têm
Longo da Vida1 — que ultrapassa as fronteiras tra- vindo a ser cada vez mais valorizados, quanto mais
dicionais que delimitam os espaços­‑tempos formais se acentua a rapidez das mudanças sociais, cientí-
de aprendizagem — e que faz apelo a novas teorias e ficas, tecnológicas e económicas, que caracterizam
modelos de educação e de formação. a sociedade contemporânea, e que colocam novos
Assistimos actualmente a uma convergência de e significativos desafios ao nível do conhecimento
preocupações, comuns a um conjunto significativo necessário — não apenas para lidar com as mudan-
de países no espaço europeu e no mundo — pre- ças em curso, mas também para participar critica-
sentes no discurso político, económico, social e mente nos processos de mudança.
educativo — no sentido de desenvolver iniciativas Este conhecimento, simultaneamente local e glo-
com a finalidade de reconhecer e validar as apren- bal, constrói­‑se e dissemina­‑se através de novas for-
dizagens adquiridas ao longo da vida e nos seus di- mas de aprendizagem. Os saberes de carácter inova-
versos contextos. Considerando as profundas muta- dor produzidos nas organizações — a partir da uti-
ções decorrentes da globalização das economias, da lização das novas tecnologias e de novas formas de
evolução do mundo do trabalho e das organizações, organizar o trabalho — pela acção dos actores envol-
da emergência da Sociedade do Conhecimento e da vidos escapam frequentemente, pela sua natureza
Aprendizagem ao Longo da Vida, esta problemática experiencial, aos referenciais clássicos dos saberes
adquire uma relevância particular. disciplinares. A produção e a difusão do conheci-
O reconhecimento e a validação inscrevem­‑se mento e concomitantemente a aprendizagem, dei-
num paradigma de Aprendizagem ao Longo da Vida, xam de ser um monopólio dos sistemas de educa-
ou seja, num quadro de pensamento que valoriza as ção/formação, na medida em que ultrapassam os
aprendizagens que as pessoas realizam ao longo das espaços­‑tempos formais, tradicionalmente delimi-
suas trajectórias pessoais, sociais e profissionais, tados e balizados pelas instâncias educativas.
ultrapassando as tradicionais fronteiras espaço­ Estes saberes, experienciais pela sua natureza,
‑temporais delimitadas institucionalmente pelos desenvolvem­‑se numa multiplicidade de situações
sistemas de educação/formação. Num contexto de e de contextos de vida e obedecem a uma lógica de
atenuação de fronteiras entre educação, formação, construção e de difusão distinta daquela que tem
trabalho e lazer, o reconhecimento das aprendiza- sido a lógica dominante (disciplinar, transmissiva),
gens experienciais — principalmente de adultos — que se traduz no contexto educativo por determi-
constitui­‑se como um desafio incontornável aos sis- nados modelos e práticas pedagógicas2. As formas
temas de educação/formação nos dias de hoje. tradicionais de atestação dos saberes na sociedade
De acordo com Nóvoa (2001), a actual recompo- (traduzida pelos diplomas e certificados, tanto esco-
sição dos sistemas educativos não se reduz a uma lares como profissionais), sempre atribuíram um

sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais 
estatuto privilegiado aos conhecimentos científi- dizagem experiencial. A vida é reconhecida como
cos e tecnológicos face aos saberes experienciais, um contexto de aprendizagem e de desenvolvimento
de acordo com a concepção dominante herdada do de competências, e cada vez mais se valorizam os
racionalismo3. Em termos epistemológicos, a valori- saberes e as competências adquiridas à margem dos
zação destes últimos no seio dos sistemas tradicio- sistemas tradicionais. A experiência é considerada
nais de educação/formação representa uma signifi- como uma fonte legítima de saber, que pode (e deve)
cativa mudança paradigmática, em que o “saber de ser formalizado e validado.
experiência feito” adquire um novo estatuto face ao
“saber científico”. Do lado do mundo do trabalho e das organiza-
Esta ruptura, ao nível epistemológico, parece ser ções, em permanente evolução, assiste­‑se à emer-
acompanhada em termos teóricos e metodológicos gência de novas formas de produção, de organiza-
por um conjunto de mudanças significativas, que ção do trabalho, de novas práticas organizacionais,
nos fornecem um quadro de leitura mais compreen- e de novas formas de gestão de recursos humanos.
sivo sobre os novos fenómenos educativos e sociais. Reconhece­‑se o potencial formativo que as situa-
Para Pineau (1997), o reconhecimento e a validação ções de trabalho encerram, a construção de novos
constituem um “problema multidimensional com- saberes e competências, e identificam­‑se caracterís-
plexo”, que integra diferentes dimensões — técni- ticas que promovem a aprendizagem dos indivíduos
cas, profissionais, económicas, sócio­‑culturais — e e das organizações (“organizações qualificantes”).
que implica a renegociação de um conjunto de regras Simultaneamente assiste­‑se à precarização dos
de valorização das acções e dos actores humanos. empregos, ao aumento do desemprego e da crise
económica e social, à penalização profissional e
Emergência de novas práticas educativas social, principalmente dos grupos mais fragiliza-
O valor dos saberes experienciais detidos pelos adul- dos e/ou em risco de exclusão (desempregados, em
tos depende em primeira instância de um processo risco de desemprego, menos qualificados, baixos
de explicitação e formalização, pois, pela sua natu- níveis de escolaridade,…). Neste contexto, o reco-
reza, os saberes experienciais são tácitos e implíci- nhecimento e a validação das aprendizagens expe-
tos. Identificá­‑los, nomeá­‑los, dar­‑lhes visibilidade rienciais podem constituir uma resposta perti-
e legitimidade, tanto na dimensão pessoal como na nente na diminuição da exclusão social, facilitando
profissional e social, constituem a finalidade das a (re)inserção escolar/formativa/profissional de gru-
novas práticas emergentes. pos mais desfavorecidos.
O reconhecimento e a validação das aprendi- Observa­‑se actualmente uma convergência ao
zagens experienciais situa­‑se no cruzamento de nível dos discursos e das iniciativas concretas no
diversas esferas: o mundo da educação/formação, sentido de promoverem estratégias coerentes e ade-
o mundo do trabalho e das organizações e a socie- quadas de reconhecimento e validação, promo-
dade em geral. Segundo Farzad e Paivandi (2000, vendo a valorização do capital de saberes implíci-
p. 6), “a problemática das aprendizagens anteriores tos, não formalizados, mas de elevado valor pessoal,
encontra­‑se no cerne da articulação entre o exercí- profissional, social e económico. Os poderes públi-
cio de uma actividade profissional, a formação, e as cos têm vindo a incentivar o desenvolvimento destas
diferentes actividades sociais e pessoais que consti- práticas inovadoras, conscientes dos benefícios que
tuem os percursos dos indivíduos. Ela inscreve­‑se daqui podem decorrer.
na lógica de uma exigência social emergente que tra-
duz as novas realidades da sociedade tanto ao nível O reconhecimento e a validação no âmbito
da formação, da empresa e do indivíduo”. das políticas educativas europeias
Do lado da educação/formação assiste­‑se a um A evolução das políticas sociais e educativas, que
movimento que põe em destaque a importância das tem acompanhado a construção europeia e o seu re-
aprendizagens realizadas a partir da experiência de posicionamento face aos desafios da globalização,
vida (em sentido lato, englobando a esfera pessoal, tem contribuído decisivamente para a transforma-
profissional, social), através de processos de apren- ção dos sistemas educativos, colocando­‑lhes novos

 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
desafios, complexificando as questões existentes, e • Direitos individuais
desencadeando a reflexão e a procura de respostas A validação das aprendizagens não­‑formais e in-
inovadoras face às problemáticas emergentes. formais deverá ser um processo de iniciativa indi-
O reconhecimento e validação das aprendiza- vidual, voluntário, e que deve respeitar a igualdade
gens experienciais — frequentemente designadas de acesso e de tratamento. A privacidade e os direi-
de não formais e informais — tem­‑se afirmado no tos individuais devem ser respeitados.
espaço educativo europeu, e aparece de uma forma • Obrigações dos prestadores
bem visível nos documentos e iniciativas desenvol- Devem definir as suas responsabilidades e com-
vidas pela Comissão Europeia. Do ponto de vista petências, os sistemas e as abordagens de identifi-
político, esta questão tem vindo a fazer parte das cação e validação de aprendizagens não­‑formais e
agendas actuais, e tem vindo a influenciar de uma informais, garantindo mecanismos de controlo de
forma significativa o debate educativo no espaço qualidade adequados. Devem fornecer orientação,
europeu. aconselhamento, e informação sobre os sistemas e
Estas preocupações europeias, de acordo com as abordagens aos indivíduos.
Feutrie (2005), articulam­‑se com um conjunto de • Confiança
intenções, das quais se salientam: Os processos, procedimentos e critérios devem
• oferecer uma segunda oportunidade de adqui- ser justos e transparentes, e suportados por meca-
rir uma qualificação, principalmente a todos os que nismos de controlo de qualidade.
não as possuem ou que não foram bem sucedidos • Credibilidade e legitimidade
na educação/formação inicial; Os sistemas e abordagens devem respeitar inte-
• suportar mutações económicas e enfrentar resses legítimos e garantir a participação equilibra-
necessidades de níveis mais elevados de competên- da das várias instâncias envolvidas.
cias; O processo de validação deverá ser imparcial e
• promover trajectórias de desenvolvimento pes­ estabelecer mecanismos que garantam a inexistên-
soal e profissional através da vida; cia de conflitos de interesse. Os técnicos que par-
• facilitar e apoiar a mobilidade interna e exter- ticipam no processo devem ser profissionalmente
na das empresas e a mobilidade europeia; competentes (Colardyn & Bjornavold, 2005).
• facilitar a ligação entre o mercado de trabalho
e as instituições educativas e melhor responder às
necessidades do mercado de trabalho. O que se reconhece e valida?
Como se reconhece e valida?
A Declaração de Copenhaga (2002), — na
qual participaram 31 ministros europeus de edu- Conceitos de aprendizagem não­‑formal e
cação/formação, os parceiros sociais e a Comis- informal, aprendizagem experiencial
são Europeia — solicita o desenvolvimento de As práticas de reconhecimento e validação procu-
“princípios comuns relativamente à validação ram identificar e dar visibilidade às aprendizagens
das aprendizagens não­‑formais e informais com realizadas em contextos não­‑formais e informais de
a finalidade de assegurar uma maior comparabi- educação/formação.
lidade entre as abordagens em diferentes países Os conceitos de aprendizagem formal, não­
e a diferentes níveis” (Colardyn & Bjornavold, ‑formal e informal têm vindo a ser amplamente di-
2005, p. 133) fundidos na literatura actual, e correntemente são
Dando seguimento aos trabalhos da Comissão entendidos da seguinte forma (C.E, 2000):
Europeia, o Conselho de Educação Europeu con- • aprendizagem formal — desenvolve­‑se em ins-
cordou no estabelecimento de um conjunto de prin- tituições de ensino e formação, conduzindo à aqui-
cípios neste domínio (Maio de 2004), que deverão sição dos diplomas e das qualificações;
ser tidos em consideração na definição das políticas • aprendizagem não­‑formal — decorre de acções
e práticas de validação, e que se deverão orientar desenvolvidas no exterior dos sistemas formais, tais
pelos seguintes aspectos: como no trabalho, na comunidade, na vida associa-

sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais 
tiva, etc., e que não conduzem necessariamente à podem ocorrer em contextos formais, de uma forma
certificação; residual e implícita, não controlável. Estas aprendi-
• aprendizagem informal — resulta das situações zagens ocorrem numa multiplicidade de contextos e
mais amplas de vida e frequentemente não é reco- de situações de vida das pessoas, sendo os contextos
nhecida (individual e socialmente). espaços de interação da pessoa consigo própria, com
os outros, com as coisas, com a vida em sentido lato.
O contexto e a intenção têm sido considerados A aprendizagem experiencial diz respeito a um
como dimensões determinantes na categorização processo dinâmico de aquisição de saberes e de
de diferentes tipos de aprendizagem (Colardyn & competências (múltiplos e diversificados, tanto
Bjornavold, 2005): quanto à sua natureza como ao tipo de conteúdo),
• Aprendizagens formais — quando a aprendi- que não obedece a uma lógica cumulativa e aditiva,
zagem ocorre num contexto estruturado de apren- mas sim de recomposição — os novos saberes são
dizagem, em que as actividades se encontram pla- construídos integrando os já detidos pela pessoa.
neadas e orientadas para essa finalidade, e a apren- O processo de aprendizagem experiencial desenvol-
dizagem é intencional. Ex: sistema formal de edu- ve‑se ao longo da vida, a partir de uma multiplici-
cação/formação; dade de contextos — familiar, social, profissional,
• Aprendizagens não­‑formais — a aprendizagem associativo, etc. A experiência é um elemento­‑chave
ocorre num contexto estruturado, com actividades no processo de aprendizagem5, constituindo a base
planeadas (não necessariamente orientadas para para a reflexão, problematização e formação de con-
a aprendizagem), e é intencional. Ex: contexto de ceitos, e que contribui para a transformação da pes-
trabalho; soa, em termos pessoais e identitários, promovendo
• Aprendizagens informais — a aprendizagem a sua emancipação.
ocorre em situações não estruturadas e não é inten-
cional. Ex: contexto familiar, social, etc. Os princípios de base nos quais se supor-
tam as práticas de reconhecimento e de validação
Consideramos assim que as aprendizagens não­ encontram­‑se em coerência com a perspectiva da
‑formais e informais ocorrem em espaços­‑tempos aprendizagem experiencial dos adultos, ao valori-
não especificamente nem formalmente estrutura- zarem as aprendizagens resultantes de uma diver-
dos de educação/formação, em situações do traba- sidade de contextos e de situações e ao atribuirem­
lho, de lazer, da vida do quotidiano, e que frequen- ‑lhes um estatuto de legitimidade. A valorização dos
temente não existe a intenção de aprendizagem saberes experienciais traduz uma ruptura epistemo-
(aprendizagens informais). lógica com uma concepção positivista de conheci-
Do ponto de vista teórico, a problemática das mento, dicotómica; os saberes práticos não são uma
aprendizagens realizadas em contextos não­‑formais mera aplicação dos saberes teóricos.
e informais de educação/formação exige a adopção Por outro lado, a aprendizagem experiencial
de uma perspectiva de educação e formação alargada encontra­‑se de acordo com uma perspectiva holís-
e globalizante. Estas aprendizagens são entendidas à tica, que tem em conta a globalidade do processo de
luz de um quadro teórico de referência, do qual des- desenvolvimento da pessoa, na sua relação com o
tacamos o conceito de aprendizagem experiencial4. meio, com os outros e consigo mesma.
O conceito de aprendizagem experiencial demar- No entanto, experiência e aprendizagem não são
ca‑se de uma concepção de aprendizagem formal, sinónimos; não são as experiências que são reco-
estruturada e desenvolvida em contextos educa- nhecidas e validadas, mas sim as aprendizagens e
tivos formais, de uma acção organizada explicita- as competências que resultam de um processo de
mente com a finalidade de proporcionar a aquisição aprendizagem experiencial; como evidenciámos,
de um conjunto de saberes sistematizados e forma- a experiência é a base e a condição para a aprendi-
lizados; tem um conteúdo aberto, que se organiza zagem, e, para que seja formadora, ela tem de ser
em função dos acontecimentos do meio envolvente reflectida, reconstruída, conscientizada. O resul-
e da vida quotidiana; no entanto, as aprendizagens tado deste processo é a elaboração de novos saberes,

10 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
de novas representações, contribuindo para a trans- de aspectos individuais e sociais), a partir de expe-
formação identitária da pessoa e da sua relação com riências significativas, e das aprendizagens que vão
o mundo. O saber resulta do confronto e da transfor- sendo integradas pela pessoa, a valorização ou a des-
mação da experiência. valorização das aprendizagens e das competências
Este pressuposto encontra­‑se presente nos prin- do adulto pode significar para si próprio a sua valo-
cípios do reconhecimento e da validação: a experi- rização ou a desvalorização enquanto pessoa. Este
ência da pessoa é o ponto de partida para a cons- pressuposto tem implicações relevantes no domí-
trução de saberes (de natureza diversificada), sendo nio do reconhecimento e da validação das aprendi-
estes passíveis de ser explicitados, reconhecidos e zagens anteriores.
validados. O processo de reconhecimento — que pressupõe
Todos os contextos de vida constituem­‑se como a identificação e a explicitação das experiências vivi-
terrenos propícios para a aprendizagem e o desen- das pela pessoa, e das aprendizagens daí decorrentes
volvimento de competências. A partir do con- — se for sentido como gratificante, reforça a sua auto­
fronto directo com as situações, com as vivências, ‑estima e auto­‑imagem. A tomada de consciência —
desencadeia­‑se um processo reflexivo que dá ori- o (re)conhecimento — pela pessoa dos seus proces-
gem à aquisição de novos conhecimentos. sos de transformação construtiva (ao nível da perso-
A dimensão da reflexividade na aprendizagem nalidade, do comportamento, dos conhecimentos e
experiencial é considerada como um aspecto­‑chave das competências, e das circunstâncias que possi-
do processo, mas a capacidade de reflexão não é bilitaram essa transformação) reforça a sua autono-
idêntica em todas as pessoas. Ela pode ser estimu- mia e emancipação. Pode, pelo contrário, contribuir
lada e trabalhada, em situação individual ou colec- para uma fragilização em termos identitários, se o
tiva, mas sempre a partir da implicação e da inten- processo não for conduzido e/ou vivenciado de uma
cionalidade da própria pessoa. O processo reflexivo forma positiva. O princípio subjacente a estas prá-
exige um retorno sobre a experiência, a sua re­‑ela- ticas é o de valorização do potencial adquirido (dos
boração, a sua re­‑avaliação e a sua projecção na rea- conhecimentos e das competências, até aí não tra-
lidade (presente ou futura). duzidos explicitamente), e não o de valorização das
Estes princípios decorrentes do pensamento carências, contribuindo desta forma para reforçar a
educativo encontram­‑se presentes nos pressupos- identidade pessoal e profissional. Para Feutrie (1997)
tos que orientam as práticas de reconhecimento e de torna­‑se essencial fazer uma “dupla leitura dinâ-
validação. A pessoa, ao fazer um balanço das suas mica” das experiências das pessoas, através de um
aprendizagens, implica­‑se num processo retros- trabalho de mise­‑en­‑scène das competências adqui-
pectivo, num trabalho reflexivo com vista à identi- ridas, pela definição das trajectórias, de capacida-
ficação dos conhecimentos e das competências daí des prometedoras para o futuro; e através do estabe-
resultantes. Por outro lado, o trabalho de re­‑elabo- lecimento de correspondências, no sentido da expli-
ração da experiência é feito à luz de uma dada pro- citação das suas potencialidades (mais do que de jul-
jecção — o projecto, a finalidade com que é feito o gamento, numa lógica de necessidades).
balanço. O balanço das aprendizagens integra assim Um dos pressupostos de base do reconheci-
uma dimensão retrospectiva e uma prospectiva. mento e da validação sustenta que as aprendizagens
Este trabalho de explicitação (do implícito para o detidas (explicitadas em termos de conhecimentos,
explícito, do invisível para o visível), mediado pela de competências, atitudes, etc.) devem ser conside-
linguagem, frequentemente só é conseguido com radas como ponto de partida e em articulação com
o apoio e suporte de técnicos especializados, atra- as aprendizagens posteriores, numa perspectiva de
vés de um confronto intersubjectivo. Daí que a for- recomposição. O reservatório de experiências vivi-
mação destes actores seja considerada um aspecto das pela pessoa constitui­‑se como recurso impres-
imprescindível para a garantia das condições neces- cindível para as aprendizagens futuras, mas a neces-
sárias à realização do reconhecimento e validação. sidade profunda de autonomia dos adultos entra fre-
Na medida em que a identidade pessoal é um quentemente em choque com as formas impostas de
processo em construção permanente (no confronto aprendizagem, características do modelo tradicional

sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais 11
de educação/formação, em que o adulto é perspecti- gens procurando identificar os seus conhecimentos
vado como dependente e em que não são considera- e competências, e realizar um projecto que se fina-
das relevantes as suas aprendizagens anteriores. lize eventualmente numa formação complementar.
Desta forma, a introdução de práticas de reco- Um sistema que contempla esta lógica deve poder
nhecimento e validação em contextos educativos cobrir os níveis e os tipos de competências adquiri-
vem questionar as concepções e os modelos tradi- dos e também os domínios nos quais a pessoa pode
cionais, que não se encontram em consonância com completar a sua formação.
os desafios que esta problemática faz emergir. — A lógica social da validação/acreditação visa
o reconhecimento formal das competências (de
O reconhecimento e a validação de competências acordo com referenciais predeterminados e sancio-
Tendo em consideração que em alguns países, no nados para os diversos domínios) e é feita através de
âmbito educativo, se têm vindo a introduzir mode- uma instituição com autoridade para tal. A utilidade
los de educação e de formação baseados em compe- social da validação/acreditação depende fortemente
tências, e que são estes os referenciais que servem de da legitimidade do sistema e do seu reconhecimento
baliza ao reconhecimento e validação, então a ques- social.
tão da identificação e avaliação das competências
assume uma relevância particular. O processo de reconhecimento diz respeito à
Como temos vindo a evidenciar em diversos tra- dimensão individual, pessoal, e pode ser conside-
balhos (Pires, 2002, 2003, 2004b), o conceito de rado como o ponto de partida para o processo de
competência pode ser enquadrado a partir de dife- validação (que conduz a uma atestação oficial) e que
rentes abordagens teóricas. A tomada de consciên- diz respeito à dimensão social e institucional. Como
cia da diversidade — teórica e epistemológica — é identificámos, ambos os processos — reconheci-
fundamental quando se passa para o domínio das mento e validação — procuram centrar­‑se nas apren-
competências, pois cada enfoque, ao privilegiar dizagens e nas competências adquiridas pelos adul-
determinados aspectos em detrimento de outros, tos, independentemente dos contextos onde foram
vai condicionar, em termos metodológicos, a esco- desenvolvidas — educação/formação, profissional,
lha das estratégias e dos instrumentos mais adequa- familiar, social, desportivo, de lazer, etc.
dos para a apreensão das suas componentes ou ele- O reconhecimento pessoal (“por si” e/ou “para
mentos integrativos. si”) inscreve­‑se numa lógica formativa, de auto­
Como temos vindo a evidenciar noutros tra- ‑avaliação, de tomada de consciência e apropria-
balhos, a competência é uma construção social e ção pessoal dos saberes. Esta tomada de consciên-
depende das convenções ou dos pontos de vista que cia pode permitir um melhor posicionamento e pro-
se adoptam; as competências existem em função gressão da pessoa, tanto no sistema escolar/forma-
do julgamento feito sobre elas, tendo como referên- ção, como no mundo profissional, como ainda na
cia um dispositivo; e os conceitos e os dispositivos sociedade em geral. A partir da explicitação e da
adoptados nunca são neutros (Le Boterf, 2000). identificação das potencialidades e das intenciona-
lidades da pessoa, permite a elaboração de projec-
tos (pessoais, educativos, profissionais), e contri-
Quais são as lógicas do bui para a (re)construção das identidades — como
­r econhecimento e validação? defendemos, o resultado do reconhecimento toca
profundamente na dimensão identitária do adulto.
Os sistemas de reconhecimento e validação podem A lógica formativa (de processo) procura valorizar
ser desenvolvidos segundo duas lógicas diferentes, a riqueza do potencial detido pela pessoa, e orientá­
mas complementares, de auto­‑avaliação e de valida- ‑la de forma a progredir a partir dos recursos de que
ção/acreditação (Kalika, 1998): dispõe. Pode constituir­‑se como um motor desenca-
— A lógica individual da auto­‑avaliação é a do deador de uma dinâmica pessoal de autoformação,
reconhecimento pessoal, com finalidades formati- de auto­‑valorização, de autoconfiança, e de desejo
vas. A pessoa faz um balanço das suas aprendiza- de desenvolvimento/construção permanente, sem-

12 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
pre inacabado. A pessoa é reconhecida em si mesma, uma lógica holística, integrativa, são frequentemente
reforçando a sua auto­‑estima e promovendo a sua “invisíveis”, mas podem ser explicitados e identifi-
emancipação. cados através de um processo de enunciação, e reve-
Na medida em que, à partida, não existem refe- lar toda a sua riqueza e complexidade. Este processo
renciais externos face aos quais os recursos detidos depende não só dos recursos cognitivos da pessoa,
são “comparados” e avaliados, o referencial é cons- mas também do suporte prestado pelo “mediador”,
truído pela própria pessoa, elaborando­‑se a partir e da qualidade da relação que com ele se estabelece
dos saberes e das competências detidos. Os resul- (confiança, abertura, autenticidade).
tados do reconhecimento podem constituir um A lógica formativa implícita nas práticas de reco-
importante instrumento de negociação (materializa- nhecimento, pode permitir, em termos teóricos,
dos num documento de síntese, ou num ­portfolio), apreender esta riqueza e diversidade, pois os proces-
que é gerido pela pessoa — tanto no âmbito edu- sos centram­‑se na identificação das aprendizagens
cativo, como profissional — podendo traduzir­‑se adquiridas e na revelação do potencial que cada pes-
num maior investimento na gestão do seu percurso soa contém em si própria.
futuro.
A validação, pelo seu lado, atribui um estatuto A validação, na medida em que se reporta sem-
formal, oficial, aos saberes detidos pela pessoa; con- pre a um referencial externo, determinado e estabi-
duz à obtenção de diplomas/certificados/qualifi- lizado, apenas dá visibilidade às aprendizagens que
cações, na sua totalidade ou em parte. Comporta são consideradas pertinentes no âmbito de um sis-
uma etapa prévia de reconhecimento — a identifi- tema educativo. O diploma, o título, o certificado
cação dos saberes detidos — para posterior compa- (ou as unidades/módulos que o compõem) atestam
ração com um referencial determinado — um pro- os conhecimentos e as competências que lhe estão
grama de educação/formação, componentes de cur- subjacentes. Assim, o processo de validação ape-
sos, módulos ou disciplinas, referenciais de activi- nas abrange uma parte das aprendizagens construí-
dades profissionais — que é normativo, geralmente das experiencialmente ao longo da vida, em função
estandardizado, conferindo assim um valor legal às da finalidade e da especificidade de cada sistema ou
aprendizagens adquiridas numa diversidade de con- dispositivo.
textos. A lógica subjacente aos processos de valida- De acordo com a natureza do referencial em causa
ção/acreditação é a sumativa. (sistema de educação/formação, mundo do traba-
As aprendizagens que são valorizadas pelos sis- lho) assim são privilegiados determinados domí-
temas de educação/formação obedecem principal- nios e conteúdos de saberes, sempre mais restri-
mente à lógica disciplinar e científica, uma lógica de tos do que aqueles que a pessoa adquiriu nos vários
organização de saberes objectivados, formalizados. contextos de vida. Desta forma, a abrangência da
Estes são enunciados de forma a poderem ser apro- validação é limitada pela maior ou menor abertura,
priados e “acumulados” pelas pessoas, e a forma maior ou menor flexibilidade dos seus referenciais
como são representados encontra­‑se em conformi- de suporte.
dade com as formas de avaliação e sanção utilizadas Estas duas lógicas (formativa e sumativa) podem
pelo sistema em causa. ser vistas a partir de uma perspectiva de comple-
mentaridade — na medida em que para atestar for-
A concepção subjacente ao reconhecimento, ao malmente é necessário primeiro reconhecer — e
defender que a experiência é produtora de saberes encontram­‑se, geralmente, articuladas na generali-
(saberes de acção, saberes implícitos, tácitos) não se dade dos sistemas identificados (Pires, 2002, 2005)
confina apenas às aprendizagens valorizadas pelos mas traduzem níveis diferentes de articulação.
sistemas formais (conhecimentos formais, teóricos, A tensão existente entre as diferentes lógicas
académicos) quer sejam de âmbito escolar ou profis- parece­‑nos poder conduzir a uma menor valorização
sional. Os saberes empíricos, resultantes da expe- da função formativa (reconhecimento), no âmbito
riência adquirida, não se encontram estruturados dos sistemas cuja finalidade é principalmente suma-
de acordo com a lógica disciplinar. Eles obedecem a tiva (validação); no entanto, como evidenciámos,

sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais 13
não é possível validar sem reconhecer previamente (nem desejável) identificar uma metodologia ou pro-
as aprendizagens detidas. Assim, questionamos até cedimentos únicos.
que ponto será possível evitar o risco deste “desli- Do ponto de vista dos princípios que orientam as
zamento” da função formativa para a função suma- práticas de reconhecimento e validação — centração
tiva, ou, explicitando a questão de outra forma, até na pessoa e na sua singularidade — será mais ade-
que ponto se poderá evitar a desvalorização da fun- quado utilizar metodologias que implicam proces-
ção formativa (de processo) em benefício da suma- sos mais personalizados (como o portfolio, as Abor-
tiva (de produto) e o enfoque excessivo no produto dagens Biográficas, as Histórias de Vida) pouco
final (diploma, certificado, crédito)? compatíveis com procedimentos massificados (os
Numa perspectiva da formação dos adultos, testes, exames, etc.). No entanto, identificámos sis-
defendemos que o processo de validação deve ser temas que recorrem à aplicação de testes, exames,
sempre suportado num processo de orientação e ou outros instrumentos de avaliação tradicionais.
acompanhamento individual, antes, durante e após A escolha das abordagens depende da natureza
a validação. A qualidade do apoio e da orientação do pedido, da motivação da pessoa, e do resultado a
prestada à pessoa durante o processo de explicita- atingir. Por princípio, deverá ser sempre uma deci-
ção e nomeação dos saberes detidos (geralmente são negociada entre a pessoa implicada e o conse-
durante a fase de elaboração do portfolio), e o seu lheiro, considerando que a pessoa é a “autora” da
alcance — ao permitir realizar o balanço global das sua própria história e da sua trajectória formativa, e
suas aprendizagens e competências, ou apenas iden- como tal dever­‑lhe­‑á ser atribuído um papel central
tificar aquelas que o sistema reconhece oficialmente na escolha dos meios e na forma de explicitação das
(referenciais ou standards) — poderá ser decisiva ao suas aprendizagens.
nível da implicação futura do adulto num percurso Em relação à grande generalidade dos sistemas
formativo. No âmbito dos processos de educação/ e dispositivos que têm como finalidade a validação,
formação ao longo da vida, a vertente formativa des- identificámos entre as metodologias mais significa-
tes sistemas e dispositivos deverá ser valorizada. tivas a elaboração de dossiers pessoais/portfolios de
A dimensão formadora do processo de reconheci- competências, e as entrevistas; também podem ser
mento das aprendizagens, de grande complexidade, utilizados testes (de aptidões, de conhecimentos,
não nos parece dever ser reduzida a uma inventaria- etc.), as provas escritas ou orais, simulações, exercí-
ção e a uma comparação com listagens de competên- cios práticos, e ainda situações de avaliação em con-
cias predefinidas. texto de trabalho (principalmente nos casos em que
os referenciais são construídos com base em compe-
tências de âmbito profissional).
Como se reconhecem e ­validam O dossier pessoal/portfolio integra um descritivo
as aprendizagens? das experiências e das actividades desenvolvidas, das
aprendizagens e competências adquiridas, e também
A valorização das aprendizagens construídas em comprovativos e documentos justificativos tanto de
situações profissionais e de vida, mais amplas, para entidades patronais, como de organismos de educa-
além dos contextos formais de educação/formação, ção/formação; pode ser acompanhado de projectos
implica o recurso a novas práticas de avaliação que desenvolvidos, maquetes, produtos realizados, etc.
não as tradicionais, de forma a contemplarem a A implicação da pessoa e o apoio de técnicos espe-
multiplicidade e a complexidade destas aquisições. cializados são considerados imprescindíveis para
Como constatámos no estudo realizado a nível o desenvolvimento do trabalho de reflexão/explici-
internacional (Pires, 2002, 2005), a grande gene- tação/formalização. As entrevistas (estruturadas ou
ralidade dos sistemas implementados utiliza abor- não), a par dos portfolios, também fazem parte das
dagens e metodologias diversificadas, consoante a técnicas “obrigatórias” utilizadas. Assim, o diálogo
natureza do processo em causa, o sistema ou as ins- parece fazer parte integrante das metodologias de
tituições envolvidas; existe uma ampla variedade de reconhecimento, na grande generalidade dos países
instrumentos de suporte, e não nos parece possível estudados. Para Bjornavold, “o diálogo equilibrado

14 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
e o recurso à auto­‑avaliação (e ao autoconhecimento), aprendizagem dos adultos; a experiência (um “mate-
com vista a melhorar a qualidade do processo de ava- rial bruto”), quando acompanhada de um processo
liação, desempenham um papel fundamental nestas de reflexão crítica e de formalização, pode ser tradu-
abordagens. Além disso, estes dois aspectos permi- zida (“trans­‑formada”) em saberes e competências;
tem reconhecer o carácter individual e contextual- • a aprendizagem e o desenvolvimento dos adul-
mente específico dos conhecimentos a avaliar. Até tos não ocorre apenas nos espaços­‑tempos formais
certo ponto o candidato é único, pelo que as metodo- de educação/formação, institucionalizados; os adul-
logias devem reflectir esse princípio” (1997, p. 59). tos aprendem, constroem os seus saberes e desen-
Identificámos a utilização combinada e flexível volvem competências numa multiplicidade de situ-
de diversas técnicas, com vista a uma exploração o ações e de contextos (formais, não formais e infor-
mais rica e completa possível, em detrimento de pro- mais) que fazem parte das suas trajectórias de vida;
cedimentos estandardizados. No entanto, os testes • do ponto de vista epistemológico, os saberes
de conhecimentos — instrumento da avaliação tra- que resultam de um processo experiencial não têm
dicional — são utilizados com alguma regularidade, sido suficientemente valorizados pelos sistemas
quando se procura identificar o nível de conheci- formais de educação/formação, que privilegiam o
mentos detidos pela pessoa em determinados cam- saber conceptual e universal;
pos disciplinares e domínios específicos; o recurso • as formas tradicionais de atestação dos sabe-
à utilização de instrumentos de carácter quantita- res encontram­‑se em consonância com um modelo
tivo, como meio de “apreensão rigorosa e objectiva” de construção e difusão de conhecimento baseado
dos saberes detidos pelas pessoas, pode ser uma ilu- numa lógica disciplinar e cumulativa;
são metodológica. Se considerarmos que a avaliação • os saberes e as competências construídos atra-
clássica testa principalmente a capacidade de resti- vés da experiência e noutros contextos que não os
tuição de conhecimentos (Aubret & Gilbert, 1994), formais têm valor pessoal, social e profissional (e
então, os instrumentos tradicionais não nos parecem concomitantemente económico) mas para tal é ne-
ser os mais adequados para a identificação dos sabe- cessário que adquiram visibilidade — são geral-
res experienciais, que não se encontram estruturados mente tácitos, implícitos, “invisíveis”.
de acordo com uma lógica disciplinar e académica.
A tendência encontrada nos diversos sistemas é a Na perspectiva da Educação/Formação — par-
da diversidade e da complementaridade de aborda- ticularmente no domínio da formação de adultos
gens e de metodologias, caminhando­‑se no sentido —, o reconhecimento e a validação, ao promoverem
do aprofundamento da pesquisa e da reflexão sobre a visibilidade e a legibilidade das aprendizagens
os instrumentos e as técnicas mais adequadas para “ocultas”, constituem­‑se como um importante mo-
as práticas em questão. tor de novas dinâmicas formativas, na medida em
que (Pires, 2002, 2005):
• contribuem para a elaboração de projectos pes-
Reflexões finais soais, profissionais e sociais, articulando os saberes
detidos com as motivações e as aspirações da pessoa;
Procurámos evidenciar que os processos de reco- • abrem caminho para novas oportunidades de
nhecimento e de validação se suportam, do ponto educação/formação — não numa lógica “carencia-
de vista teórico, em conceitos decorrentes de abor- lista” mas sim de “experiencialidade”6 —, facili-
dagens da aprendizagem de adultos (Pires, 2002, tando a integração e a mobilidade formativa, promo-
2005), nomeadamente: vendo a aprendizagem ao longo da vida;
• a aprendizagem é um processo de construção • desenvolvem a auto­‑estima, a auto­‑imagem,
pessoal, que integra dinamicamente diferentes di- a autonomia, fazendo elevar a motivação e o
mensões: afectivo­‑relacionais, cognitivas, socio­ nível de implicação dos adultos nos processos de
‑culturais, sensorio­‑motoras e experienciais; aprendizagem;
• aprendizagem e experiência são interdepen- • contribuem para o reforço e a construção de
dentes; a experiência assume um papel central na identidades pessoais, sociais e profissionais.

sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais 15
No entanto, a introdução destas novas práticas os sistemas de validação reenviam para a responsa-
educativas exige uma mudança de fundo nos sis- bilidade individual um conjunto de responsabilida-
temas de educação/formação, pois os processos de des colectivas “mal­‑geridas”, tais como a exclusão e
reconhecimento e de validação, na óptica de um para- o desemprego, num contexto de maior precarização e
digma de educação/formação ao longo da vida, não se insegurança. “A focalização sobre a responsabilidade
podem limitar à aplicação de um conjunto de proce- individual na gestão do seu ‘capital de competências’
dimentos e de metodologias7, numa perspectiva tec- não será uma camuflagem (...) que dilui o lugar dos
nicista e tecnocrática de ensino­‑aprendizagem. Tanto determinismos sociais, económicos e organizacio-
ao nível dos actores como das estruturas, implicam a nais no sucesso ou no falhanço?” (op.cit., p. 73).
mudança de representações e de práticas educativas: Estas questões são pertinentes, e reforçam a
a evolução das representações e das práticas de apren- necessidade de entender o reconhecimento e a vali-
dizagem, a evolução dos modelos tradicionais de edu- dação noutra perspectiva que não como uma resposta
cação/formação de forma a integrarem de forma coe- “rápida e eficaz” para alguns dos actuais problemas
rente os princípios e os pressupostos que se encon- sociais e económicos, de entre os quais destacamos
tram subjacentes ao reconhecimento e à validação. a procura das “qualificações­‑chave”, supostamente
Assim, a emergência destas práticas vem confron- capazes de tornar as pessoas aptas a lidarem com a
tar os sistemas educativos com uma complexidade de rápida mudança tecnológica e organizacional, e a
questões, que traduzem uma mudança paradigmática sobreviverem no mercado global da competitividade.
ao nível das representações e das práticas, nomeada- Os debates em curso sobre a problemática da
mente ao nível das estruturas, da organização curri- validação indiciam que será necessário encontrar
cular, das metodologias de ensino/aprendizagem, das respostas inovadoras e adequadas, mas que as evo-
metodologias de avaliação, dos referenciais de educa- luções se revestem de grande complexidade.
ção/formação, das relações institucionais do sistema Para Merle (1997) não é possível encontrar uma
com a sociedade, e entre os subsistemas que o com- “solução padrão, aplicável a todos os países”, pois os
põe, das representações dos actores institucionais — sistemas de validação são o resultado de uma cons-
decisores políticos, gestores, conceptores, professo- trução social, articulada com a especificidade his-
res, formadores, técnicos, entre outros. tórica de cada sociedade. Por outro lado, este autor
Por outro lado, é possível identificar uma diversi- chama a atenção para o facto de que as opções a fazer
dade de tensões e conflitualidades, das quais passa- não são apenas de ordem técnica, mas pertencem a
mos a evidenciar algumas consideradas relevantes. uma ordem mais ampla: “seria ilusório considerar
que um novo sistema de certificação, por mais bem
Tensões e conflitualidades no concebido que fosse, se pudesse abster de reequacio-
­reconhecimento e validação nar as relações entre formação inicial e formação con-
Para Liétard (1997), a problemática do reconheci- tínua, de revalorizar o lugar ocupado pelas dimen-
mento e da validação inscreve­‑se num jogo de influên- sões profissionais e tecnológicas na formação inicial
cias e numa relação de forças, nem sempre favoráveis e de contribuir para a evolução da gestão das qualifi-
à pessoa. A necessidade de apresentação de provas cações nas empresas” (Merle, 1997, pp. 38­‑9).
válidas das aprendizagens, que é da inteira responsa- Qualquer solução que se encontre no domínio do
bilidade do candidato, por vezes sem que as institui- reconhecimento e da validação nunca é simples do
ções ofereçam um sólido acompanhamento e suporte ponto de vista técnico, nem neutra em termos políticos.
do processo (o que implica elevados custos de inves-
timento humano), a constatação de que as aprendiza- O reconhecimento e a validação devem ser pers-
gens experienciais são frequentemente comparadas pectivados, a médio prazo, como uma função edu-
com os conteúdos formativos instituídos, sem que cativa “a tempo inteiro”, uma “espinha dorsal de um
estes se encontrem descritos em termos de capacida- projecto educativo”, a construção de identidades
des, ou de uma forma unívoca, são aspectos que evi- pessoais e sociais de cidadãos, um meio de desen-
denciam a complexidade dos desafios e paradoxos volvimento pessoal que permite o acesso à qualifica-
que emergem desta problemática. Segundo o autor, ção social (Liétard, 1997). Mas para o autor, o futuro

16 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
destas práticas ainda é incerto: podem constituir­ car os professores e os educadores na primeira linha
‑se como a raiz de uma nova ordem educativa, reno- dos novos paradigmas educativos” (Carneiro, 2001),
vadora de projectos de educação permanente, ou a formação destes actores assume neste contexto
podem ser as premissas de novas formas de gestão uma relevância particular.
social ao serviço da economia do mercado. Assim, a formação dos professores e dos forma-
dores deverá ser (re)pensada à luz dos novos quadros
A formação de professores/formadores/ de referência de acção educativa, no âmbito do novo
conselheiros/orientadores paradigma de educação/formação ao longo da vida.
Parecem não existir ainda respostas estabiliza- De entre os eixos de mudança educativa analisados,
das que garantam à partida a qualidade e a fiabili- e que influenciam as representações e as práticas dos
dade dos processos em causa. Para além da validade professores, dos formadores, dos alunos, enfim, de
dos procedimentos, também há que considerar que todos os intervenientes no processo educativo, desta-
estes procedimentos são mediatizados por pessoas, camos os articulados com o processo de construção de
o que implica directamente a questão da preparação conhecimento, com os saberes, com a aprendizagem,
adequada dos técnicos envolvidos. e com os processos e contextos onde se desenvolvem.
Desta forma, a formação dos agentes implicados — Desta forma, a formação dos professores/formadores,
formadores, professores, conselheiros, orientadores, numa lógica de educação/formação ao longo da vida,
tutores, etc. — constitui­‑se como um eixo imprescin- deve ser enriquecida com os contributos destes qua-
dível para a garantia da qualidade dos processos em dros de referência, e, na nossa perspectiva, tendo em
causa. Entre os profissionais que intervêm nos pro- consideração as dimensões sobre as quais procurá-
cessos de reconhecimento e de validação, os conse- mos reflectir, mas que não esgotam no entanto a com-
lheiros, orientadores e professores/ formadores têm plexidade dos fenómenos envolvidos. As mudanças
um papel fundamental ao nível da valorização dos necessárias ao nível das organizações educativas, no
adquiridos da pessoa, de elevação da sua auto­‑estima que diz particularmente respeito à sua estrutura e for-
e da auto­‑imagem, de apoio à tomada de consciência mas de organização, aos referenciais, às estratégias e
e explicitação das suas aprendizagens, de suporte à modelos pedagógicos, vêm introduzir novos quadros
construção identitária, e por vezes, de reconciliação de referência que confrontam os actores educativos ao
da pessoa com a sua trajectória de vida. nível das suas representações e questões identitárias.
Estes profissionais têm de ser capazes de fazer A mudança do pensamento educativo, o repensar dos
transpor um discurso de ordem pessoal para um de saberes e das competências necessárias numa socie-
ordem social e profissional. Este papel não é redutí- dade em mudança, a valorização dos saberes adqui-
vel à mera aplicação de técnicas e de instrumentos de ridos experiencialmente, a crescente atenuação das
avaliação. Os actores deste processo desempenham fronteiras entre formação geral, profissional, entre
um papel mediador, formativo, mobilizador da auto- formação inicial e formação contínua, entre educação
nomia e de novas dinâmicas de aprendizagem. As formal e informal, são aspectos que devem ser con-
qualidades humanas, de escuta, de valorização do siderados e reflectidos no processo de formação dos
outro, são tão ou mais importantes do que as técni- professores e formadores. A formação destes profis-
cas, necessárias ao nível do conhecimento e utiliza- sionais deverá contribuir para a construção de uma
ção de instrumentos de apoio, ao nível dos domínios cultura de aprendizagem ao longo da vida, respon-
científicos, etc. A formação das equipas de profissio- der às necessidades do actuais e simultaneamente
nais parece­‑nos ser um eixo fundamental de qual- permitir uma antecipação das necessidades futuras,
quer estratégia de implementação dos sistemas de numa lógica pro­‑activa. Neste quadro, as instituições
reconhecimento e de validação das aprendizagens de ensino superior assumem uma dupla responsabi-
experienciais, papel que cabe prioritariamente às lidade: enquanto instituições responsáveis pela for-
instituições de ensino superior. mação dos professores e dos formadores, e enquanto
E também, numa perspectiva mais lata, se consi- contextos privilegiados de construção de conheci-
derarmos que “a sustentabilidade de um sistema de mento, de questionamento permanente, de produção
educação/ formação ao longo da vida implica colo- de novas formas de compreensão da realidade.

sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais 17
Notas cura induzir situações em que os indivíduos se reco-
nheçam nos seus saberes e sejam capazes de incor-
1. Aprendizagens lifelong e lifewide, de acordo porar no seu património experiencial os próprios
com o “Memorando da Aprendizagem ao Longo da saberes produzidos pelas experiências de forma-
Vida” (Comissão Europeia, 2000). ção” (op.cit., p. 37). Segundo o autor, o que está em
2. De acordo com Canário (1999), o funciona- causa é a “reapropriação da formatividade”.
mento da organização escolar caracteriza­‑se pela Também Canário (1999) aponta a necessidade de
compartimentação estandardizada dos tempos, se evoluir da lógica dominante das “necessidades”
espaços, saberes, que se encontra articulada com (visão negativa do sujeito, que dá visibilidade aos défi-
uma concepção cumulativa do conhecimento e da ces e às lacunas) para a lógica dos “adquiridos” (enten-
aprendizagem. O autor identifica as convergências didos como potencialidades), perspectivando o adulto
entre esta forma de organização e a concepção taylo- como o “principal recurso da sua formação”.
rista dos processos de produção, orientada para a 7. Uma “poção mágica”, de acordo com Bjornavold
produção e o consumo de massas. (2000). Também para Rodrigues e Nóvoa “A questão
3. Segundo Dominicé (1989), os cursos escolares (do reconhecimento) não se resolve com a multiplica-
e a tradição didáctica assentam sobre esta concep- ção de ‘centros’ onde se procede a análise, validação e
ção, que se reflecte tanto nas universidades como certificação dos ‘documentos’ de uma vida. O essen-
na formação contínua. Também Canário (1999, p. cial passa pela inscrição de determinadas práticas
100) evidencia que o funcionamento da organização de formação no dia­‑a­‑dia das pessoas e das institui-
escolar, do ponto de vista da relação com o saber, ções”, fazendo parte da cultura dos organismos onde
“subestima e desvaloriza as aquisições, os interes- se inserem. (Canário & Cabrito, 2005, p. 12).
ses e as experiências dos alunos, bem como as carac-
terísticas sócio­‑culturais do seu contexto”.
4. O conceito de aprendizagem experiencial apre- Referências bibliográficas
senta proximidade conceptual com o de formação
experiencial, educação informal (Pain, 1991), educa- Aubret, Jacques & Gilbert, Patrick (1994). Recon-
ção experiencial (Gelpi, 1989). Este conceito foi enri- naissance et validation des acquis. Paris: PUF.
quecido com os contributos de Kolb, Landry, Theil, Aubret, J. & Gilbert, P. (2003). Valorisation et valida-
Barkatoolah, Roelens, Pineau, Enriotti, Finger, McGill tion de l’expérience professionnelle. Paris: Dunod.
e Weil. A este propósito ver Pires (2002, 2005). Bjornavold, Jens (1997). Identification et validation
5. Evidenciado nos trabalhos de Dewey, Rogers, des acquis antérieurs et/ou non­‑formels; Expé-
Knowles, Kolb, Mezirow e Freire, entre outros. Ver riences, innovations et problémes. Rev. Pano-
Pires (2002, 2005). rama. Thessalonique: CEDEFOP.
6. De acordo com Correia (1997), as concepções Bjornavold, Jens (2000). Making learning visible
da “racionalidade técnica e adaptativa” e da “racio- — identification, assessment and recognition of
nalidade expressiva e emancipatória” sobre os sabe- non­‑formal learning in Europe. Luxembourg:
res experienciais traduzem­‑se em diferentes for- Pub. CEDEFOP.
mas de definir e responder aos problemas; a pers- Canário, Rui (1999). Educação de Adultos: um
pectiva crítica, defensora de “modelos de interven- campo e uma problemática. Lisboa: Educa.
ção preocupados com o aprofundamento das valên- Canário, R. & Cabrito, B. (orgs.) (2005). Educa-
cias emancipatórias da formação”, procura a “reabi- ção e Formação de Adultos. Mutações e Conver-
litação das experiências inserindo­‑as num processo gências. Lisboa: Educa.
cuja pertinência já não se defina pela sua adequabi- Carneiro, Roberto (2001). Nota introdutória. Novo
lidade relativamente aos saberes formais e suscep- Conhecimento, Nova Aprendizagem. Lisboa:
tíveis de serem transmitidos, mas pelo sentido que Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 11­‑15.
lhes atribuem os indivíduos e os grupos em forma- Colardyn, D. & Bjornavold, J. (2005). The learning
ção. (…) Para além de se preocupar com o reconhe- continuity: European Inventory on validating non­
cimento destes saberes, o trabalho de formação pro- ‑formal learning. National Policies and practices

18 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
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sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais 19
20 sísifo 2 | ana luisa de oliveir a pires | reconhecimento e validação das aprendizagens experienciais
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 issn 1646 ‑4990

Reconhecimento, Validação
e Certificação de Competências:
Complexidade e novas actividades profissionais

Cármen Cavaco
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa
semblana@hotmail.com

Resumo:
O texto foi elaborado a partir de um conjunto de informação recolhida em três Centros de
Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (CRVCC). O trabalho rea-
lizado nos CRVCC consiste na avaliação de competências através da experiência de vida.
O processo de reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC) é com-
plexo e difícil tanto para os adultos como para os profissionais envolvidos, o que resulta
de um conjunto de factores. Neste texto, optou­‑se por problematizar a complexidade ine-
rente aos elementos que se consideram estruturantes do processo — as competências, a
experiência de vida e a avaliação. As questões que orientam a problematização e reflexão
ao longo do texto são as seguintes: Qual é a natureza dos elementos que estão associados ao
reconhecimento e validação e que tornam este processo complexo? Que profissões emer-
gem através do trabalho realizado nos CRVCC? As equipas dos CRVCC recorrem a um
conjunto de estratégias (p.e. modelo metodológico híbrido, acompanhamento do adulto,
triangulação da informação) para contornar a complexidade, as tensões e as dificuldades
que marcam o processo de RVCC. A qualidade e equidade do processo dependem muito
da orientação e do profissionalismo das equipas que trabalham nos Centros.

Palavras­‑Chave:
Reconhecimento, validação e certificação de competências, educação e formação de adul-
tos, perfil dos profissionais de RVC, aprendizagem experiencial.

Cavaco, Cármen (2007). Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências: Complexi-


dade e novas actividades profissionais. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 21‑34
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

21
Introdução ficação de competências adquiridas pelos adultos
pouco escolarizados ao longo da vida, em diversos
A investigação que suporta o presente texto1 contextos (familiar, social, profissional e escolar/
enquadra­‑se num projecto de Doutoramento em formação profissional).
Ciências da Educação — Formação de Adultos, cujo A reflexão e problematização realizada ao longo
objectivo é compreender as lógicas da oferta forma- do texto são orientadas pelas seguintes questões:
tiva direccionada para adultos pouco escolarizados Qual é a natureza dos elementos que estão associa-
e a percepção que os adultos têm dessas oportunida- dos ao reconhecimento e validação de competências
des formativas. O texto centra­‑se apenas num domí- e que tornam este processo complexo? Que pro-
nio do mencionado estudo, o processo de reconhe- fissões emergem através do trabalho realizado nos
cimento, validação e certificação de competências e CRVCC? Que profissões são profundamente alte-
é baseado num conjunto de dados empíricos reco- radas no contexto do trabalho dos CRVCC? Que
lhidos em três Centros de Reconhecimento, Valida- implicações tem o processo de reconhecimento e
ção e Certificação de Competências2 (CRVCC), que validação de competências de adultos pouco esco-
surgiram em Portugal, no ano 2001. Os dados empí- larizados nas funções e atitudes dos colaboradores
ricos consistiram na realização de entrevistas semi­ dos Centros? O texto está organizado em dois pon-
‑directivas aos elementos das equipas dos 3 Centros tos: o primeiro diz respeito à análise da natureza
(entrevistas a 8 profissionais de RVC, entrevistas a dos elementos inerentes ao processo de RVCC — as
7 formadores de RVC e entrevistas a 3 coordenado- competências, a experiência de vida e a avaliação;
ras) e a alguns adultos certificados (14 entrevistas a e o segundo é referente à sistematização e reflexão
adultos). Através do reconhecimento de competên- sobre as funções e competências do profissional de
cias estes Centros permitem a certificação escolar de RVC e do formador de RVC.
indivíduos, com mais de 18 anos, que não possuem
o 9º de escolaridade. Os certificados3 atribuídos são
referentes ao nível B1 (4º ano de escolaridade), B2 (6º Pressupostos e dificuldades ­inerentes
ano de escolaridade) e B3 (9º ano de escolaridade). ao processo de reconhecimento e
A decisão do nível escolar a atribuir depende essen- validação de competências
cialmente de dois factores: do nível de escolaridade
que o adulto possui ao ingressar no Centro; e das Os CRVCC em estudo baseiam­‑se no pressupos-
competências que consegue demonstrar ao longo to que há continuidade entre a aprendizagem e a
das várias fases do processo. Os Centros realizam experiência, os processos de aprendizagem são
um trabalho de reconhecimento, validação e certi- interdependentes da acumulação de experiên-

22 sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências


cias, tornando­‑se por isso pertinente reconhecer refere Sandra Bellier (2001, p. 254) “a compe­tência
e validar as aprendizagens que os adultos pouco não é aquilo que se faz mas como se consegue fazê­
escolarizados realizaram ao longo da vida, dando­ ‑lo de maneira satisfatória. É portanto aquilo que
‑lhes visibilidade social, através da certificação. está subjacente à acção e não a própria acção”.
Reconhece­‑se que aprendizagem resulta da neces- O facto da competência ter por base uma acção, um
sidade de responder aos desafios e imprevistos que contexto e procedimentos específicos coloca pro-
a vida quotidiana coloca, sendo “um direito inalie- blemas na avaliação de competências nos Centros
nável que cada um tem para sobreviver” (Grone- em estudo, desde logo porque o processo de reco-
meyer, 1989, p. 81), como tal, ocorre aprendizagem nhecimento e validação ocorre diferido no tempo.
ao longo da vida e nos vários contextos, através de Ou seja, o indivíduo não é avaliado no momento
modalidades informais, não­‑formais e formais. Os em que manifesta certa competência mas sim à pos-
adultos que aderem ao RVCC são encarados como teriori. As equipas apercebem­‑se diariamente da
indivíduos portadores de uma experiência de vida dificuldade de captar com rigor as competências
única, que é o seu principal recurso para a realiza- dos indivíduos; como forma de contornar esta si-
ção do processo. Faz­‑se uma “leitura pela positiva”, tuação incidem no processo de auto­‑avaliação e op-
em que se pretende identificar e valorizar aquilo que tam pela triangulação de informação, recorrendo a
a pessoa aprendeu ao longo da vida. Neste processo várias fontes (p.e. provas sobre o percurso de vida,
de RVCC a educação é entendida como um proces- observações, análise do dossier e dos trabalhos re-
so contínuo no tempo e no espaço e uma “produ- alizados pelo adulto ao longo do processo), a vários
ção de si, por si”, em que o indivíduo “se utiliza instrumentos (p.e. exercícios de demonstração,
a si próprio como recurso” (Charlot, 1997, citado instrumentos de mediação, situações­‑problema) e
em Canário, 2000, p. 133). Nos CRVCC em estu- ao trabalho em equipa. Todavia, têm consciência
do as equipas reconhecem a centralidade do sujeito que esse trabalho de reconhecimento e validação
no processo de aprendizagem, e enquadram­‑se na de competências nunca será perfeito, apesar dos
“perspectiva da produção de saber que se situa nas seus esforços de melhoria, acontecerão, inevitavel-
antípodas da concepção cumulativa, molecular e mente, casos de sobreavaliação e subavaliação de
transmissiva própria da forma escolar tradicional” competências.
(Canário, 2000, p. 133). Estes pressupostos têm pro- A identificação das competências realiza­‑se, es-
fundas implicações na organização do dispositivo, sencialmente, através da recolha de elementos sobre
nas metodologias, nos instrumentos e nas funções a experiência de vida do adulto pouco escolarizado,
e postura dos actores envolvidos. o que constitui outro motivo de dificuldade e com-
O carácter complexo dos elementos inerentes ao plexidade do processo de RVCC. O conceito de ex-
reconhecimento, validação e certificação de compe­ periência manifesta­‑se impreciso, englobando uma
tências — as competências, a experiência de vida e grande diversidade de significados. A experiência
a avaliação — está na base da maior parte das difi- apresenta um carácter dinâmico, é questionada e
culdades e desafios que se colocam às equipas res- alterada em função das novas situações vivenciais,
ponsáveis pelo processo nos CRVCC. O processo o que permite a evolução do indivíduo, tornando­‑se
de reconhecimento e validação de competências um processo interminável, que resulta num processo
é complexo e difícil tanto para o adulto envolvido de formação ao longo da vida. A amplitude do con-
como para as equipas dos Centros. Um dos motivos ceito de experiência resulta do facto da experiência
dessa complexidade e dificuldade resulta da natu- “se confundir com a presença do sujeito no mundo,
reza do próprio objecto em estudo — as competên- há permanentes interacções com o meio e consigo
cias. A competência é referente à capacidade de mo- próprio, mesmo os não factos, as não­‑acções, as
bilizar, num determinado contexto, um conjunto não­‑comunicações são também experiências” (Ver-
de saberes, situados ao nível do saber, saber­‑fazer e mersch, 1991, p. 275). Também é necessário ter em
saber­‑ser, na resolução de problemas. A competên- atenção que “nem toda a experiência resulta neces-
cia não existe per se, está ligada a uma acção concre- sariamente numa aprendizagem, mas a experiência
ta e associada a um contexto específico. Conforme constitui, ela própria, um potencial de aprendiza-

sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências 23


gem” (Dominicé, 1989, p. 62). Perceber se se rea- desvalorizam; o que envolve um complexo e rigo-
lizaram aprendizagens não conscientes ou se pelo roso trabalho de avaliação de competências a par-
contrário a experiência não deu lugar a qualquer tir da experiência de vida. O reconhecimento tem
tipo de aprendizagem, torna­‑se uma tarefa bastan- subjacente uma dimensão de auto­‑avaliação, que
te difícil e morosa, quer para o adulto, quer para as ocorre quando o adulto analisa as suas competên-
equipas. Como forma de ultrapassar esta dificuldade cias; e uma dimensão de hetero­‑avaliação, quando
as equipas recorrem a instrumentos do tipo descriti- os elementos da equipa dos Centros comparam
vo, apelando à descrição dos acontecimentos, numa as competências do adulto com as do referencial.
tentativa de facilitar o acesso à sequência das acções O reconhecimento não se limita a um trabalho de
e às aprendizagens realizadas, para depois inferir as descrição da experiência de vida, envolve rememo-
competências do adulto. ração, selecção e análise de informação, implica,
A avaliação envolve sempre um juízo de valor sobretudo, um rigoroso processo de reflexividade
que resulta da comparação entre uma situação exis- e de distanciamento face ao vivido. A dinâmica que
tente e uma situação desejável. Neste caso a situação surge no decurso do processo de reconhecimento,
existente é o percurso de vida do adulto e as com- exige uma grande implicação por parte do adulto e
petências que este evidencia (indicadores), e a situ- interfere com o seu “eu”, envolvendo mecanismos
ação desejável é o referencial de competências­‑chave cognitivos e emotivos. O adulto para responder às
(critérios de comparação). A avaliação é um processo questões: “Qual foi o meu percurso de vida ao nível
complexo, e quanto se trata de avaliar competências profissional, familiar, social e escolar/formação pro-
a situação ainda se apresenta mais delicada, o que fissional? Que competências adquiri ao longo do
constitui um domínio de dificuldade no processo de percurso de vida? Onde as usei?”, equaciona inevi-
RVCC. A análise da avaliação de competências rea- tavelmente a questão “Porque sou o que sou?”.
lizada nos Centros em estudo permite­‑nos efectuar O reconhecimento e validação de competências
uma reflexão sobre um conjunto de novos desafios através da análise do percurso de vida do adulto en-
que se colocam nos processos de avaliação. O estudo volve um processo de avaliação que suscita questões
dos processos de avaliação de competências nos CR- muito sensíveis, o indivíduo pode sentir que está a
VCC pode constituir uma oportunidade para rever e ser avaliado enquanto pessoa, que é o seu percurso
repensar as práticas de avaliação, nomeadamente, as de vida que está a ser julgado. Conforme refere Pa-
presentes nas modalidades educativas formais. A ava- quay (2000, p. 121), “desde o momento que se avalia
liação de competência no processo de RVCC é de- uma competência, os sujeitos são necessariamente
senvolvida numa perspectiva humanista, não é enten- implicados, é o conjunto dos seus recursos cogni-
dida apenas “para julgar” (Cardinet, 1989, citado em tivos, afectivos e motores que são tidos em conta,
Paquay, 2000, p. 122) as competências manifestadas eles sentem­‑se globalmente julgados, na sua pessoa,
pelo adulto, mas também para dar sentido e valorizar na sua identidade. Se o julgamento é negativo, sem
o percurso de vida, a experiência, o adulto enquanto dúvida que terá rapidamente efeitos desastrosos”.
pessoa. Embora a principal finalidade das equipas Como é que se pode contornar esta dificuldade no
dos Centros seja captar com rigor as competências processo de RVCC? As equipas dos Centros em
do adulto e compará­‑las com as do referencial, de for- estudo contornam este problema optando por vá-
ma a avaliar a possibilidade e o grau de certificação, a rias estratégias: por um lado, tentam identificar no
metodologia de trabalho e os instrumentos utilizados momento de inscrição ou nas primeiras sessões de
permitem orientar o processo numa perspectiva de reconhecimento as pessoas que à partida não têm
avaliação mobilizadora e humanista, com potenciali- o perfil adequado para realizar o processo com su-
dades ao nível da conscientização. cesso, evitando criar falsas expectativas e reforçar
O processo de reconhecimento e validação das uma imagem negativa; por outro lado, as metodo-
competências nos CRVCC tem por objectivo “tor- logias, as técnicas e os instrumentos das sessões de
nar visíveis” (Liétard, 1999) as competências que reconhecimento são orientados sobretudo para a
os adultos pouco escolarizados possuem mas que, auto­‑análise, auto­‑reconhecimento e auto­‑avaliação;
na maioria dos casos, desconhecem, ignoram e e por fim, os elementos da equipa dão ênfase e va-

24 sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências


lorizam as competências que o adulto possui, e a dor de RVC. A análise do conteúdo funcional e das
apreciação tem sempre um enfoque positivo. To- competências do profissional de RVC e do formador
davia, este processo comporta riscos, é susceptível RVC é fundamental para, por um lado, compreender
de provocar traumas, de reforçar a imagem negativa o processo de reconhecimento e validação de com-
do adulto e de contribuir para o ciclo de insucessos petências, e as suas especificidades enquanto pro-
na sua vida, daí a pertinência dos Centros se orien- cesso de avaliação de competências com base no per-
tarem com base na perspectiva humanista, centra- curso de vida; por outro lado, perceber a interdepen-
da no desenvolvimento pessoal e mobilizadora do dência entre a organização e funcionamento do dis-
adulto. Este é um domínio extremamente delicado positivo e as funções e competências evidenciadas
e carece de uma vigilância permanente por parte pelas equipas de cada Centro. Por último, defende­
das equipas dos Centros, que devem estar muito ‑se que a lógica de funcionamento dos Centros e a
atentas aos adultos que avançaram no processo e visibilidade social deste processo depende, essen-
o suspenderam, sem que posteriormente o tenham cialmente, do trabalho realizado pelas suas equipas,
terminado. Atendendo à complexidade do processo fazendo por isso sentido formalizar e reconhecer as
de reconhecimento, torna­‑se fundamental o recurso especificidades das funções que assumem; o que é
a metodologias e a instrumentos adequados, assim fundamental no processo de construção da sua pro-
como, o apoio e acompanhamento do adulto por fissionalização. A reflexão acerca das funções e com-
parte de profissionais conscientes destes desafios. petências das equipas responsáveis pelo processo de
RVCC surge como muito importante para fortale-
cer a lógica de funcionamento dos Centro e evitar a
A emergência e alteração de ­actividades perversão das suas especificidades. A grelha que se
profissionais — O ­profissional de segue identifica as funções e competências do pro-
RVC e o formador de RVC fissional de RVC e do formador de RVC, quando se
coloca a cruz (x) significa que essa competência está
Através do trabalho desenvolvido nos CRVCC surgiu presente no perfil do profissional correspondente,
uma nova actividade profissional — o profissional de em pelo menos um dos Centros em estudo. A varia-
RVC, e a actividade dos formadores viu­‑se profunda- bilidade dos contextos de trabalho influencia o per-
mente alterada, quer em termos de funções desempe- fil profissional dos intervenientes, as diferenças de
nhadas, quer ao nível da atitude. A grelha que se apre- organização e funcionamento do dispositivo nos 3
senta foi construída com base nos elementos recolhi- CRVCC repercutem­‑se de uma forma notória nas
dos nos 3 CRVCC em estudo, e identifica as funções funções e competências dos profissionais de RVC e
e competências do profissional de RVC e do forma- dos formadores de RVC.

Funções e competências do profissional de RVC e do formador de RVC


Prof. Form.
Funções Competências
RVC RVC

1. Acolhimento e inscrição · Ser capaz de acolher o adulto de uma forma empática, incentivando-o a inscrever-se, X X
dos adultos no processo contribuindo para que este ultrapasse o receio e angústia inicial
de RVCC, recolha de · Ser capaz de explicitar o processo de RVCC ao adulto, para que este perceba as fases e X X
elementos sobre o adulto implicações do processo
e esclarecimento sobre o · Ser capaz de orientar e apoiar o adulto no preenchimento dos instrumentos usados na X X
processo inscrição e informá-lo sobre o tipo de elementos que deve reunir sobre o seu percurso de vida
· Ser capaz de identificar e analisar, com base no diálogo e nos elementos disponibilizados
nos instrumentos de inscrição, as situações em que o adulto não possui o perfil adequado X X
para o processo RVCC, orientando-o para outro tipo de possibilidade formativa
(continua)

sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências 25


Prof. Form.
Funções Competências
RVC RVC

2. Reconhecimento das · Ser capaz de apoiar os adultos no desenvolvimento dos instrumentos de mediação, X
competências dos adultos explicando a finalidade de cada instrumento e esclarecendo as dúvidas que surgem no
em processo de RVCC preenchimento para que estes possam perceber a lógica do processo
através da explicitação · Ser capaz de envolver o adulto no processo, de modo a que este se sinta motivado e X
da sua experiência de implicado na reflexão sobre a globalidade da sua experiência de vida
vida e da resolução de · Ser capaz de incentivar o adulto a reflectir sobre a sua personalidade e os seus projectos de X
problemas vida, apoiando-o na explicitação e formalização de um desses projectos
· Ser capaz de animar sessões em pequeno grupo, gerando um processo de colaboração X
interpessoal entre os adultos envolvidos, uma dinâmica de discussão e troca de ideias e
experiências
· Ser capaz de apoiar e incentivar o adulto a ultrapassar bloqueios e estados emocionais que X
penalizam a reflexão sobre a sua experiência de vida
· Ser capaz de identificar os saberes e competências de cada adulto, quer através da X X
explicitação da sua experiência de vida, quer através de situações proporcionadas nas
sessões de reconhecimento
· Ser capaz de diagnosticar, nas primeiras sessões de reconhecimento, se o adulto possui X
o mínimo de competências para prosseguir o processo, orientando-o para essa tomada
de consciência, por forma a que adulto perceba que pode ser mais adequado procurar
outras ofertas formativas ou suspender o processo de RVC até adquirir outros saberes e
desenvolver novas competências
· Ser capaz de orientar o adulto em processo de RVCC para uma tomada de consciência X X
dos seus saberes e competências, promovendo um processo de auto-reconhecimento
· Ser capaz de confrontar o adulto com situações-problema para este evidenciar competên­ X X
cias, e assim promover o reconhecimento nas áreas de competência-chave
· Ser capaz de orientar e apoiar os profissionais de RVC na operaci­nalização de situações- X
problema para que estes possam clarificar o tipo de competências passíveis de reconhecer

3. Validação das · Ser capaz de comparar os saberes e competências que inferiu, através da experiência de X X
competências do adulto vida do adulto e das situações vividas durante o processo, com as competências identificadas
em processo RVCC, no referencial de competências-chave
através da comparação · Ser capaz de analisar e discutir em equipa as competências evidenciadas pelo adulto para X X
entre as competências do cada área de competência-chave do referencial, propondo ao adulto, caso seja necessário,
adulto e as competências um plano de formação complementar
do referencial · Ser capaz de fazer um balanço sobre o processo de reconhecimento do adulto no júri de X X
validação e de incentivar o adulto a prosseguir o seu percurso formativo e a concretizar os
seus projectos de vida, numa perspectiva de valorização e reconhecimento do potencial de
cada pessoa
· Ser capaz de justificar e realizar o balanço da formação complementar no momento júri, X
caso o adulto a tenha frequentado
4. Adaptação do · Ser capaz de analisar as potencialidades e fragilidades do dispositivo de RVCC, propondo X X
dispositivo de RVCC, alterações de metodologias e procedimentos no sentido de garantir uma maior qualidade e
reformulação e concepção eficácia do processo, quer para o adulto, quer para os objectivos do Centro
dos instrumentos de · Ser capaz de conceber e reformular os instrumentos de mediação aplicados no reconhe­
mediação e de inscrição cimento de competências e os instrumentos utilizados no momento da inscrição no processo X X
de RVCC, promovendo a qualidade do trabalho realizado no Centro e o envolvimento do
adulto ao longo do processo
· Ser capaz de conceber situações-problema que permitam identificar um conjunto alargado
de competências e que possam fazer sentido para os adultos em processo, tendo por base as X
suas experiências de vida e motivações

5. Interpretação, · Ser capaz de interpretar e descodificar as competências do referencial tornando-o um X X


descodificação e instrumento de trabalho passível de ser utilizado por todos os elementos da equipa e,
sugestões de alteração inclusivamente, pelos adultos em processo
do referencial de · Ser capaz de analisar criticamente o referencial de competências-chave no sentido de o X X
competências-chave tornar um instrumento mais adequado e pertinente para o processo de RVCC, sugerindo a
introdução, suspensão ou alteração de competências
(continua)

26 sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências


Prof. Form.
Funções Competências
RVC RVC
6. Realização de formação · Ser capaz de conceber um plano formativo adaptado a cada adulto, que permita X
complementar para desenvolver as competências que não foram reconhecidas ao longo do processo, tendo
desenvolver competências por base a sua experiência de vida, os seus saberes e competências
não reconhecidas ao · Ser capaz de identificar e transmitir os saberes tidos como fundamentais para o adulto X
longo do processo de desenvolver as competências que não foram reconhecidas ao longo do processo
RVCC · Ser capaz de orientar e apoiar o adulto na pesquisa para que este possa autonomamente X
desenvolver as competências que não foram reconhecidas ao longo do processo
· Ser capaz de operacionalizar situações-problema para perceber em que medida o X
adulto desenvolveu as competências necessárias
7. Divulgação do · Ser capaz de explicar o processo de RVCC, a organização e funcionamento do Centro, X X
processo de RVCC quer a responsáveis institucionais, quer a grupos de adultos em condições de vir a
e da organização e beneficiar do processo, promovendo a sua participação
funcionamento do Centro
Nota: Prof. RVC é a abreviatura de Profissional de RVC; Form. RVC é a abreviatura de Formador de RVC.

A emergência de uma nova actividade gação do Centro são também funções asseguradas
­profissional — o profissional de RVC pelos profissionais de RVC. Num dos Centros o aco-
lhimento e a inscrição são uma função da exclusiva
O profissional de RVC é uma nova actividade pro- responsabilidade do profissional de RVC. Nesse
fissional, que emergiu com o trabalho realizado nos Centro este é um momento de recolha de informa-
CRVCC. Estes profissionais têm um papel muito ção sobre o adulto, que permite fazer uma orienta-
importante em todas as fases do processo e assu- ção para outras oportunidades formativas quando
mem um conjunto diversificado de funções, como se percebe que o perfil apresentado pelo adulto não
se depreende da leitura do quadro anterior. Toda- se adequa ao processo RVCC.
via, pode considerar­‑se que a sua principal fun- O profissional de RVC é quem estabelece um
ção é referente ao reconhecimento de competên- relação mais próxima com os adultos ao longo do
cias dos adultos pouco escolarizados. No desem- processo, isto porque, por um lado, o desenvolvi-
penho desta função os profissionais de RVC têm mento dos instrumentos de mediação ocupa a maior
como objectivos explorar os percursos de vida de parte das sessões do processo RVCC, por outro
cada adulto de forma a recolher elementos que lhe lado, o tema que abordam nas sessões de reconheci-
permitam inferir em que medida este apresenta as mento é, essencialmente, a experiência de vida dos
competências do referencial; motivar e envolver o adultos. Os profissionais de RVC promovem a reme-
adulto num processo de reflexão, auto­‑análise, auto­ moração da experiência de vida, o diálogo, a expli-
‑reconhecimento e auto­‑avaliação. Para além do citação das actividades para cada função/tarefa, a
reconhecimento, estes profissionais também asse- escrita, o debate, a cooperação e as relações inter-
guram a validação de algumas competências e a con- pessoais entre os elementos do grupo. No exercí-
cepção dos instrumentos de mediação e de inscrição. cio das suas funções o profissional de RVC assume
Os instrumentos de mediação são elementos funda- várias posturas, a de animador, a de educador e a de
mentais para garantir a eficácia do processo de reco- acompanhador, o que varia em função das situações
nhecimento e para garantir a motivação e implica- e do que lhe é solicitado pelo adulto. Adopta uma
ção dos adultos, daí a importância da reformulação postura de animador quando gere de uma forma
e concepção de novos instrumentos. A validação de dinâmica as sessões de reconhecimento que se rea-
competências é também uma das funções que o pro- lizam em pequenos grupos, promovendo discus-
fissional de RVC assegura ao emitir, junto do forma- sões e reflexões conjuntas e reforçando situações de
dor de RVC, um parecer sobre as competências que entreajuda que surgem espontaneamente entre os
o adulto evidenciou ao longo do processo. O acolhi- adultos. Assume­‑se como educador quando explica
mento e inscrição do adulto no processo e a divul- o processo, dá informações sobre a organização

sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências 27


do dossier e o preenchimento dos instrumentos de estratégia para valorizar o adulto, para lhe transmitir
mediação e quando esclarece as dúvidas dos adultos confiança nas suas capacidades e para promover o
ao longo do processo. Adopta uma postura de acom- auto­‑reconhecimento do adulto, o que é muito im-
panhador quando ao longo do reconhecimento ouve portante no caso dos adultos que realizam o proces-
a narração do percurso de vida do adulto, motiva o so RVCC. Estes adultos sentem­‑se, na maioria das
adulto a reflectir sobre o passado, o presente e a pers- vezes, estigmatizados pela sua reduzida escolarida-
pectivar o seu futuro e quando o ajuda no processo de, ignorando e desvalorizando as suas experiências,
de tomada de consciência. Esta última postura é a saberes e competências. Quando o adulto reconhe-
mais significativa da actividade do profissional de ce as suas próprias capacidades, percebe que tem
RVC, e é a que melhor se enquadra nos pressupos- recursos para influenciar o seu presente e o futuro.
tos do próprio processo. Ao assumir uma postura A adopção dos diferentes registos na situação de
de acompanhamento o profissional de RVC está a acompanhamento depende do adulto em processo,
ser “um facilitador, um passador [...], um emancipa- da dinâmica que se gera ao longo das sessões e das
dor” (Lhotellier, 2001, p. 196). competências do profissional. De qualquer modo, a
O profissional de RVC garante um acompanha- atitude adoptada pelo profissional de RVC deve ser
mento personalizado e torna­‑se um aliado do adulto. um factor de vigilância permanente por parte dele
O principal tema de conversa, reflexão e debate é próprio e das equipas, porque “o acompanhamento
o percurso de vida, os interesses e motivações do não é neutro” (Bouëdec, 2001c, p. 104).
adulto. O acompanhamento por parte do profis- O profissional de RVC quando assume uma
sional é fundamental em toda a fase de reconheci- postura de acompanhamento manifesta uma atitu-
mento, é esta relação de ajuda personalizada que de de valorização do outro, de escuta positiva e em-
permite orientar o adulto no bom sentido, motivá­ pática, como referem Hennezel e Montigny (citados
‑lo, aumentar a sua implicação, promover o auto­ em Bouëdec, 2001b, p. 49) “entre as qualidades de
‑reconhecimento e a auto­‑estima. Seguindo a pers- bases de um bom acompanhante, eu insisto sobre
pectiva de Guy Le Bouëdec (2001a, p. 24) “acom- a humildade, a autenticidade, a espontaneidade,
panhar é ir com alguém, ao lado de, ir em compa- a generosidade, a abertura de espírito, o respeito
nhia”. O profissional de RVC faz um percurso com o pela diferença, a escuta empática, e a capacidade de
adulto enquanto este fala e escreve sobre a sua vida, suportar os silêncios”. A relação numa situação de
durante esse percurso de organização do dossier acompanhamento é desconhecida para o adulto e
pessoal, o adulto é o “actor principal”, o profissional construída pelo profissional através da sua experi-
de RVC apoia e ajuda mas não se coloca no lugar do ência de trabalho. No discurso dos profissionais de
adulto ou no centro da acção, “não dirige os aconte- RVC é notório que aprendem “através da prática,
cimentos” (Bouëdec, 2001a, p. 24). por ajustamentos sucessivos” (Bouëdec & Pasquier,
Durante o acompanhamento do processo RVCC, 2001, p. 16), mas também valorizam bastante a for-
o profissional assume posições distintas. Tomando mação contínua, considerando­‑a essencial para a
como referência a tipologia apresentada por Robert sua evolução profissional. Os profissionais de RVC
Stahl (2001, pp. 104), na maioria das vezes adopta podem considerar­‑se “passadores” no sentido em
um registo de escuta, ajuda o adulto a construir a que Christine Josso (2005, p. 119) refere, porque
narração do seu percurso de vida, questiona­‑o, e estão preocupados em saber para onde é que a pes-
orienta a sua reflexão; por vezes, adopta um registo soa quer ir e tentam perceber o tipo de ajuda que
de análise, que é, essencialmente, notório quando lhe podem prestar durante um certo período nessa
diagnostica as competências do adulto a partir da caminhada. A emergência do profissional de RVC
narração e do referencial; e também pode dizer­‑se nos CRVCC dá lugar ao nascimento de uma activi-
que adopta um registo de influência, quando con- dade profissional, que para benefício de todos os
fronta o adulto com a análise que realizou, o que é que participam neste processo, deve ser definida
fundamental para lhe promover a tomada de consci- e baseada num suporte legal. Importa clarificar e
ência. Os profissionais de RVC quando assumem um definir as funções e actividades deste novo profis-
registo de influência utilizam­‑no, por norma, como sional, as competências requeridas para o exercício

28 sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências


da profissão, assim como, as regras éticas e deonto- Os formadores do processo RVCC têm como
lógicas pelas quais se deve orientar. principal objectivo avaliar as competências do
adulto, como tal identificam e exploram, o mais
exaustivamente possível, as competências desenvol-
Alteração da profissão formador vidas pelos adultos ao longo da vida, comparando­
— o ­formador de RVC ‑as com as competências do referencial. A formação
complementar tem uma carga horária muito redu-
Os formadores integrados nas equipas dos CRVCC zida, variando, normalmente, entre 4 a 12 horas
asseguram um conjunto de funções que dão lugar por cada área­‑chave, e os adultos só a frequentam
à mudança do conteúdo funcional da profissão do quando não lhe são detectadas algumas competên-
formador. Como se pode depreender da leitura do cias na fase do reconhecimento. A formação comple-
quadro anterior, os formadores do processo RVCC mentar incide no domínio do saber­‑fazer e é direc-
assumem um conjunto diversificado de funções. cionada para a identificação e desenvolvimento de
Para assegurarem um desempenho adequado têm de competências. O adulto é confrontado com situações­
desenvolver competências específicas, bastante dis- ‑problema em que tem de mobilizar um conjunto
tintas das que lhe eram solicitadas quando exerciam de “recursos” para fazer face ao desafio, o forma-
as suas funções como professores ou formadores, ao dor orienta a resolução e, em simultâneo, explicita
nível da formação profissional. As funções e com- alguns elementos de carácter teórico fundamentais
petências anteriormente identificadas são sistema- para a concretização da tarefa. Os saberes transmiti-
tizadas tendo por base a actividade profissional dos dos são apenas aqueles que se consideram recursos
formadores nos 3 Centros em estudo, no entanto, fundamentais para que o adulto possa desenvolver
há algumas especificidades do conteúdo funcional determinada competência. Ou seja, são entendidos
de Centro para Centro. Por exemplo, num dos Cen- como instrumentos “para pensar e agir” como con-
tros os formadores não têm, normalmente, contacto sidera Philippe Perrenoud (2000, p. 21) e não como
directo com os adultos, e neste caso a sua principal tendo finalidade em si mesmo, são os designados
função é orientar e apoiar os profissionais de RVC na “saberes vivos” para o autor supracitado. O treino é
operacionalização das situações­‑problema. Tendo um elemento fundamental para o desenvolvimento
em conta as especificidades do conteúdo funcional de competências, e atendendo à reduzida duração
em cada Centro, pode referir­‑se que as principais fun- da formação, pode colocar­‑se a questão: É possível
ções dos formadores, atendendo ao tempo que lhes desenvolver competências através da formação com-
dedicam, são: a validação das competência do adulto plementar do processo RVCC?
em processo RVCC; realização da formação comple- As novas funções dos formadores de RVC exigem­
mentar; interpretação, descodificação e sugestões de ‑lhe o desenvolvimento de outros saberes profissio-
alteração do referencial de competências­‑chave; e nais e de outras competências. A maior parte dos for-
reformulação/concepção de situações­‑problema. Ou madores dos CRVCC em estudo tinham experiên-
seja, os formadores no processo de RVCC assumem, cia formativa em contexto escolar o que os obrigou a
essencialmente, funções ligadas à avaliação de com- repensar e reformular os seus modos de intervenção,
petências, distanciando­‑se assim da função tradicio- isso é notório na seguinte afirmação de um dos entre-
nalmente associada aos formadores — a transmissão vistados: “tive que esquecer um pouco o que aprendi
de saberes. Esta alteração da principal função asso- na escola [quando dava aulas]”. Esta capacidade para
ciada, tradicionalmente, aos formadores é resultante “esquecer” e “desaprender” tal como refere Christine
da finalidade dos CRVCC e contribui para aumentar Josso (2005, p. 124) é fundamental para se operarem
a já diversidade e mutabilidade de perfis profissio- processos de mudança, todavia, o saber “esquecer”
nais dos formadores identificada por vários autores, implica processos complexos, a nível cognitivo e emo-
e que é destacada na afirmação de Véronique Lecler- cional, que apenas ocorrem quando os actores estão
cq (2005, p. 110) “as missões da formação são cons- envolvidos e motivados para fazer face ao novos desa-
tantemente redefinidas, e os contornos da profissão fios. As mudanças operadas na actividade profissio-
são vagos e de geometria variável” nal do formador de RVC manifestam­‑se ao nível das

sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências 29


funções e também das atitudes. Um dos pressupos- tar à tutela, é uma condição necessária para melho-
tos inerentes à intervenção dos formadores de RVC rar o processo de RVCC. A atitude do formador é
inspira­‑se na teoria humanista defendida por Rogers, outro elemento que deve ser objecto de uma análise
considerando que “todo o Homem possui recursos e reflexão permanente, uma vez que a sua principal
para se desenvolver, o papel do educador é de escutar função, a avaliação, coloca questões ao nível ético
de maneira empática, de o ajudar a elucidar através de e deontológico, o que ainda é mais premente neste
reformulações, e isto num clima de aceitação incondi- caso do CRVCC, em que a avaliação é suportada nas
cional (citado em Bouëdec & Pasquier, 2001, p. 14). experiências de vida de cada adulto, pretendendo­
Este pressuposto é fundamental no processo de reco- ‑se que seja formadora e mobilizadora.
nhecimento e validação de competências, porque o
formador não tem como objectivo principal transmi-
tir conteúdos aos adultos, mas sim identificar e valo- Conclusão
rizar as competências que eles manifestam, ajudando­
‑os a progredir tendo por base a sua experiência e os Os pressupostos que orientam o trabalho nos ­CRVCC
seus recursos. Como se pode depreender, o pressu- baseiam­‑se na valorização da experiência e das capa-
posto anteriormente indicado tem implicações no cidades do indivíduo, considerando­‑o o principal
papel do formador que se “torna o facilitador, suporta actor do processo formativo. A complexidade ine-
as aprendizagens, organiza as situações complexas, rente ao processo de reconhecimento e validação de
inventa os problemas e os desafios, propõe enigmas competências resulta da natureza dos elementos que
ou projectos” (Perrenoud, 2000, p. 37). No exercício lhe estão inerentes — as competências, a experiência
das suas funções os formadores do processo RVCC e também a questão da avaliação. Os pressupostos
valorizam a experiência dos adultos; entendem a teo- e natureza dos elementos inerentes ao processo de
ria/prática numa relação dialéctica; promovem o diá- RVCC têm um conjunto de implicações no modelo
logo, a reflexão e debate de assuntos relacionados de organização e funcionamento dos Centros em es-
com a vida dos adultos e incentivam­‑nos a intervir; tudo; assim como, nas funções e atitudes dos profis-
e estabelecem uma relação de aprendizagem com os sionais que aí trabalham. As equipas que trabalham
adultos, ambos ensinam e aprendem, o que se enqua- nos Centros têm um papel fundamental na gestão da
dra também na perspectiva de educação problemati- complexidade, dos desafios e das tensões que se colo-
zadora defendida por Paulo Freire (1972). cam ao longo de todo o processo de reconhecimento
Os formadores deparam­‑se com alguns desafios e validação de competências.
devido à complexidade da sua principal função, ava- Atendendo ao carácter do processo de RVCC e à
liar competências tendo por base o percurso de vida dinâmica promovida pelos actores no terreno, pode
do adulto. Deste modo é essencial uma reflexão per- considerar­‑se que os Centros são pequenas estrutu-
manente, ao nível individual e em equipa, sobre as ras que trabalham como uma equipa de projecto, há
técnicas e instrumentos utilizados para diagnosticar uma missão para cumprir e todos os profissionais
e avaliar competências e sobre a pertinência e ade- envolvidos têm o seu contributo a dar para a quali-
quação do referencial de competências­‑chave. Os dade e eficácia do dispositivo. A validação de com-
instrumentos de avaliação de competências têm de petências, a reformulação do dispositivo de RVCC,
fazer sentido para o adulto, facilitar a sua implicação a concepção de instrumentos e a divulgação são áre-
e auto­‑avaliação e permitir a inferência e avaliação as funcionais que se realizam, essencialmente, em
de competências. O referencial é o principal instru- equipa nos 3 Centros em estudo. O funcionamento
mento de trabalho das equipas dos CRVCC, e tanto em equipa justifica a semelhança entre as funções
os formadores como os profissionais de RVC con- assumidas pelos profissionais de RVC e os formado-
sideram que algumas das competências enunciadas res, há uma grande articulação e entrosamento entre
se baseiam em saberes disciplinares aos quais não é os vários elementos da equipa, registando­‑se parti-
reconhecido uso social. A reflexão sobre as fragilida- lha de informação e apoio permanente. Os actores
des do referencial e a identificação de propostas de reconhecem a importância do trabalho em equipa
melhoria deste instrumento de trabalho, a apresen- e consideram­‑no imprescindível tendo em conta a

30 sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências


missão dos Centros, reconhecer e validar compe- experimentou as várias possibilidades existentes e
tências através de uma abordagem experiencial. teve insucessos repetidos);
No início do texto problematizou­‑se um pou- § os profissionais de RVC e os formadores de RVC
co a complexidade inerente à natureza de alguns deparam­‑se com a dificuldade em fazer perceber ao
elementos subjacentes ao processo de RVCC — a adulto a lógica do processo, o que é fundamental
questão das competências, da experiência de vida para o seu sucesso. O processo de RVCC é novo, os
e da avaliação. Estes elementos que estão na base adultos não têm referências relativamente ao modelo
de algumas das principais dificuldades e tensões que é distinto do modelo escolar, utilizam­‑se termos
do processo repercutem­‑se também nas funções técnicos que não lhe são familiares e não consegue
e competências exigidas às equipas dos Centros. interiorizar (p.e competências, referencial, ins-
Através da análise das funções e competências dos trumentos de mediação, formação complementar,
profissionais RVC e dos formadores RVC é possível profissional de RVC). Os adultos vão percebendo a
destacar alguns constrangimentos e dificuldades lógica por ajustamentos sucessivos ao longo do pro-
relacionadas com a sua actividade profissional: cesso, mas alguns, possivelmente, nem a chegam a
§ o trabalho dos profissionais de RVC e dos for- perceber. A novidade da situação e do vocabulário é
madores é condicionado por uma tensão entre duas mencionada por um dos adultos entrevistados: “Um
lógicas “avaliação humanista/avaliação instrumen- vocabulário que eu desconhecia, mais uma novida-
tal”. Por um lado, as equipas dos Centros em estudo de, coisas novas […] fiz um género de redacção, có-
tentam seguir uma lógica de avaliação centrada no pia não, não sei precisar o termo…”;
adulto, na auto­‑avaliação e no auto­‑reconhecimento, § a concepção e reformulação dos instrumentos
que permita despoletar um processo formativo; por de mediação constitui uma das principais dificul-
outro lado, o poder político baseado numa lógica de dades nas equipas do processo RVCC, e gera um
avaliação instrumental exige o cumprimento de me- conjunto de dilemas difíceis de resolver, sendo de
tas quantitativas relativas ao número de adultos cer- destacar, os seguintes: complexidade/facilidade
tificados. Os Centros em estudo têm resistido, tanto (permitam identificar exaustiva e detalhadamente
quanto possível, à lógica de avaliação instrumental, o as competências/permitam um preenchimento aces-
que se afigura cada vez mais difícil num contexto em sível, por forma a promover a implicação e reflexão
que aumentam o número de CRVCC e a concorrência do adulto); rapidez/qualidade (permitam garantir a
entre si. Esta situação é evidente no discurso de um rapidez no preenchimento para tornar fácil o cum-
profissional de RVC entrevistado: “As metodologias primento das metas por parte dos CRVCC/permi-
nós tentamos sempre o melhor possível adaptá­‑las às tam a garantia de qualidade, assegurando uma boa
pessoas, não podemos adaptá­‑la a cada pessoa, isso imagem e credibilidade do processo, dos profissio-
não conseguimos, temos metas para cumprir”; nais envolvidos e do Centro); estabilidade/mudança
§ a decisão de encaminhar o adulto para outras (a estabilidade dos instrumentos é fundamental para
ofertas ou deixá­‑lo avançar no processo com o ob- garantir uma maior rentabilização do tempo e dos re-
jectivo de perceber melhor as suas competências é cursos dos Centros/a mudança e adaptação perma-
muito difícil de tomar por parte dos profissionais nente é fundamental para adequação dos instrumen-
RVC e dos formadores. Esta situação gera o dile- tos à especificidade dos percursos experienciais dos
ma “permitir a oportunidade/evitar o insucesso”. adulto e para rentabilizar a experiência acumulada
Os profissionais de RVC e os formadores de RVC das equipas dos Centros), a exaustividade/intimida-
tentam fazer a triagem dos adultos o mais cedo pos- de (permitam captar o melhor possível a globalidade
sível para evitar o insucesso no processo de RVCC, da vida, mas evitando­‑se que a exaustividade na re-
e é nesse sentido que tentam definir nas primeiras colha dos elementos não despolete a exploração de
sessões quem está em condições de prosseguir o aspectos referentes à intimidade do adulto);
processo, e quem não está e deve ser encaminhado § quando o profissional de RVC tenta ajudar o
para outras ofertas. Por vezes deparam­‑se com si- adulto a ultrapassar situações delicadas (p.e. quan-
tuações difíceis de equacionar (p.e quando não há do adulto se emociona perante o grupo, quando fala
ofertas alternativas ajustadas, ou quando a pessoa já de problemas da sua vida num registo de confidên-

sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências 31


cia), nem sempre é fácil discernir os limites entre o Na formação complementar há um grande risco de
profissional de RVC, o psicólogo e o amigo. Esta di- perversão da lógica do processo de RVCC se o for-
ficuldade é notória no discurso de um profissional mador optar pela exposição de conhecimentos e
de RVC entrevistado: “nós não nos podemos deixar pela demonstração de saberes.
envolver de mais, a nossa função não é sermos Psicó-
logos de ninguém, a nossa função é outra, portanto Os formadores de RVC e os profissionais de RVC
precisamos de ter bem definida a barreira até onde evidenciam reflexão consistente sobre o trabalho
se pode ir com eles […] mas não é muito fácil”; que desenvolvem, o que lhes permite ter também
§ a indução das competências a partir do relato uma compreensão crítica do modo como exercem
do adulto é uma tarefa extremamente difícil para a sua profissão, isso revela­‑se muito positivo para os
as equipas dos CRVCC, aquilo que cada adulto Centros e para a sua evolução profissional. A capa-
diz é referente a um saber prático e contextual, e as cidade de reflexão crítica dos vários elementos da
competências do referencial seguem outra lógica, a equipa dos CRVCC é extremamente importante
dos saberes teóricos e baseados em conteúdos. Os por várias razões: os Centros são muito recentes e
profissionais de RVC e formadores de RVC têm de precisam de consolidar as suas metodologias e ins-
realizar um rigoroso trabalho de descodificação do trumentos de trabalho; funcionam com base numa
referencial e conseguir colocar­‑se no lugar do adul- perspectiva de valorização das competências dos in-
to, o que não é fácil quando se trata de situações divíduos, situando­‑se nas antípodas do modelo es-
que desconhecem e sobre as quais não têm qual- colar, e neste caso a atitude crítica revela­‑se impor-
quer tipo de referência; tante para evitar a perversão da perspectiva seguida
§ a construção de situações­‑problema constitui nos CRVCC. Para além de um conjunto de conhe-
uma dificuldade para os formadores de RVC, e dá lu- cimentos que devem possuir, a atitude revela­‑se um
gar a uma tensão que se pode designar por complexi- elemento extremamente importante no desempenho
dade/adequação. Torna­‑se difícil conceber situações­ das actividades profissionais quer dos profissionais
‑problema em que se possa, em simultâneo, identificar de RVC, quer dos formadores. No desempenho das
um conjunto diversificado de competências (comple- suas funções estes actores deparam­‑se com um con-
xidade) e que seja pertinente e adequada às especifi- junto de questões que se situam ao nível da ética e da
cidades do percurso de cada adulto (adequação). A deontologia profissional e que devem ser objecto de
aplicação das situações­‑problema, por parte dos pro- discussão e reflexão individual e colectiva. Os CR-
fissionais de RVC, é uma tarefa difícil que exige uma VCC em estudo encontram­‑se numa fase em que é
articulação e acompanhamento dos formadores, o que necessário consolidar a sua cultura organizacional,
nem sempre é possível assegurar quando os formado- afirmando a pertinência e validade da sua interven-
res trabalham a tempo parcial nos CRVCC; ção; de forma a conseguir visibilidade, valorização
§ na formação complementar os formadores e reconhecimento social. Para que isso se concreti-
deparam­‑se com o dilema “expor/reconhecer”. Ou ze é fundamental definir legalmente a profissão e a
optam por uma lógica de exposição de conteúdos carreira dos profissionais de RVC e dos formadores
para que o adulto adquira recursos e desenvolva as que trabalham nos Centros, de modo a garantir a
competências que não foram reconhecidas, ou op- estabilização das equipas e a sua crescente mobili-
tam por uma lógica de reconhecimento de compe- zação neste projecto de reconhecimento, validação
tências, através da resolução de situações­‑problema. e certificação de competências.

32 sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências


Notas L´accompagnement en éducation et formation. Un
projet impossible? Paris: L´Harmattan, pp. 45­‑50.
1. Este texto foi elaborado no âmbito do Grupo Le Bouëdec, G. (2001c). Une posture spécifi-
de Trabalho sobre Reconhecimento e Validação de que. Vers une définition opératoire. In G. Le
Adquiridos Experienciais da ADMÉE Europa e Bouëdec et al., L´accompagnement en éduca-
será publicado numa revista da editora Octares. tion et formation. Un projet impossible? Paris:
2. O CRVCC da ESDIME, em Ferreira do Alen- L´Harmattan, pp. 129­‑181.
tejo; o CRVCC da Fundação Alentejo, em Évora e Le Bouëdec, G. & Pasquier, L. (2001). Quand
o CRVCC do Centro de Formação Profissional de la vérité et le bonheur son l´horizon,
Portalegre, em Portalegre. l´accompagnement est le chemin. In G. Le
3. O certificado atribuído aos adultos é emi- Bouëdec et al., L´accompagnement en éduca-
tido pelo Ministério da Educação e é, para todos os tion et formation. Un projet impossible? Paris:
efeitos, equivalente ao obtido no sistema de ensino L´Harmattan, pp. 11­‑19.
regular. Leclercq, V. (2005). La professionnalisation du
formateur spécialisé en formation de base. Edu-
cation Permanente, 164, 3, pp. 105­‑118.
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des mourants. In G. Le Bouëdec et al., Française, pp. 271­‑284.

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34 sísifo 2 | cármen cavaco | reconhecimento, validação e certificação de competências
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 issn 1646 ‑4990

A educação de jovens e adultos


trabalhadores brasileiros no século XXI.
O “novo” que reitera antiga destituição de direitos

Sonia Maria Rummert


Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense
rummert@uol.com.br

Resumo:
Tratamos, neste texto, de iniciativas empreendidas pelo Governo Federal, no âmbito da
Educação de Jovens e Adultos trabalhadores, no Brasil, no período de 2003 a 2006. São
abordados: o Projeto Escola de Fábrica, o Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Edu-
cação, Qualificação e Ação Comunitária — PROJOVEM, o Programa Nacional de Inte-
gração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de
Jovens e Adultos — PROEJA e o Exame Nacional de Certificações de Competências em
Educação de Jovens e Adultos — ENCCEJA. A análise efetuada parte do pressuposto de
que o campo da educação é fortemente marcado por condicionantes estruturais e que as
ações de governo constituem expressão dos processos de correlações de forças. Procura­‑se
evidenciar, a partir de documentos oficiais, o fato de que essa modalidade de ensino cons-
titui uma das mais claras expressões da dualidade característica do sistema educacional
do país que, até os dias atuais, distribui de forma profundamente desigual as condições de
acesso às bases do conhecimento.1

Palavras­‑chave:
Educação de jovens e adultos trabalhadores, políticas educacionais, educação e condicio-
nantes estruturais, educação da classe trabalhadora.

Rummert, Sonia Maria (2007). A Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores brasileiros no


Século XXI. O “novo” que reitera antiga destituição de direitos. Sísifo. Revista de Ciências da
Educação, 2, pp. 35‑50
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

35
As atuais iniciativas referentes à Educação de Jovens anos, a freqüência à escola era ainda mais reduzida,
e Adultos trabalhadores, no Brasil, adotadas pelo um privilégio para 31,6% das pessoas nessa faixa
Governo Federal, são marcadas por duas ordens de etária” (itálico meu). Especificamente no que diz
questões, de caráter socioeconômico, que se com- respeito ao Ensino Médio, verificamos, na mesma
plementam. A primeira constitui expressão histó- Síntese, que somente 45,3% dos jovens entre 15 e 18
rica do quadro de distribuição profundamente desi- anos o cursavam no ano de 2005.
gual dos bens materiais e simbólicos, bem como da Ao chamar a atenção para o fato de que “no con-
negação dos direitos fundamentais — entre os quais texto latino­‑americano, países como Argentina e
se destaca o direito pleno à educação — para a maio- Chile apresentam apenas taxas residuais de analfa-
ria da classe trabalhadora. A segunda, de origem betismo (em torno de 3%)”, em oposição ao percen-
recente, resulta das repercussões internas da rees- tual de 11,7% registrado no Brasil, o documento evi-
truturação produtiva, do aprofundamento do pro- dencia o fato de que nos encontramos ainda muito
cesso de internacionalização do capital e da redefini- distantes da universalização da educação básica.
ção das condições de inserção dependente e subor- Tal distância, que não pode ser explicada por qual-
dinada do país no capitalismo internacional, a par- quer argumento de caráter determinista, decorre de
tir do final dos anos de 1980. Esse quadro repercu- opções de ordem política e econômica que marcam
tiu no campo educacional com a retomada da Teo- a história do país e que repercutem de forma deci-
ria do Capital Humano, reapropriada, de modos siva no plano educacional. Nesse quadro, não pode-
similares, pelo Estado, pelo Capital e pelo Trabalho mos ignorar o fato de que a classe trabalhadora bra-
(Rummert, 2000, 2005a). sileira não vem constituindo, nas últimas décadas,
O país chega, assim, a meados da primeira década força social suficientemente expressiva na luta pelo
do século XXI, enfrentando a baixa escolaridade da direito ao acesso e à permanência em todo o percurso
população, cujos índices se mantêm elevados, como formativo referente à Educação Básica pública e gra-
demonstrado na mais recente Síntese de Indicado- tuita, em tempo regular, cuja conclusão continua,
res Sociais divulgada pelo Instituto Brasileiro de assim, a constituir um privilégio, conforme assina-
Geografia e Estatística (IBGE, 2006). Nela afirma­ lado pelo próprio órgão governamental2.
‑se que, em 2005, o país “contava com cerca de 14,9 O país encontra­‑se, portanto, numa situação
milhões de pessoas de 15 anos ou mais analfabetas”. aparentemente paradoxal. Por um lado, convive
É informado, também, que “apenas 53,5% dos alu- com elevados índices de analfabetismo absoluto e
nos concluíam a última série do ensino fundamen- funcional, com baixas taxas de terminalidade do
tal”. No que se refere especificamente à juventude, Ensino Fundamental e com possibilidades ainda
o documento destaca que para os “jovens de 18 a 24 menores de acesso ao Ensino Médio, atingindo

36 sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros…


particularmente a juventude. Tal quadro, entretan- ção dos processos produtivos e a educação escolar
to, não desencadeou, até hoje, por parte do Estado, no país. O autor chama a atenção para o fato de que
efetivas medidas de universalização da Educação nosso sistema produtivo se configura como “uma
Básica. Por outro lado, seguindo a tendência forte- mistura inorgânica de formas escravocratas e de for-
mente hegemônica em âmbito mundial, os discursos mas industriais” (1993, p. 161), que impede a cons-
dominantes atribuem à educação o ônus de colocar trução de uma sociedade organicamente moderna
o país em lugar de destaque no quadro econômico e desenvolvida. Convive­‑se, assim, com arroubos
internacional. A educação é, assim, (re)apresentada de modernidade, que se manifestam concomitan-
como a via de superação das assimetrias de poder temente a diversas formas de expressão “de um sis-
entre os países centrais e aqueles que aspiram ao tema produtivo desorgânico, estigmatizado pelo
ingresso no bloco hegemônico, bem como entre trabalho escravo, logo pelo não­‑trabalho moderno”
classes, frações de classe e indivíduos. (Idem, p. 160). Nesse tecido cultural particular,
Retoma­‑se, assim, em novas bases coaduna- em que arcaico e moderno convivem, se mesclam e
das com a atual fase de expansão e consolidação mesmo, muitas vezes, se desfiguram, produz­‑se um
do capital, matrizes ideológicas que atravessam as quadro desequilibrado e contraditório que imprime
últimas seis décadas e que foram alvo de clássico “uma profunda ruptura histórica, que atinge o nível
estudo de Anísio Teixeira (1962) ao analisar o que dos valores, da fantasia, da organicidade ético­‑moral
definia como conceitos falsos, por ele qualificados nacional” (Ibidem, p. 160).
como míticos ou mágicos, que já marcavam, à épo- Essas reflexões remetem à centralidade da cate-
ca, o pensamento sobre a educação no país. Tratava­ goria hegemonia (Gramsci, 1978,1980) que confere
‑se, na visão do autor, de atribuir à escola um valor contornos claros e específicos à temática educacio-
absoluto e de tomar a educação formal como meio nal. Por um lado, as forças dominantes e as carac-
automático de ascensão social. Teixeira sublinhava, terísticas do atual estágio da produção capitalista
assim, a grande distância entre o que denominou não requerem, efetivamente, que a totalidade da
como valores proclamados, em oposição aos valo- população tenha assegurado o direito a toda a es-
res reais norteadores das políticas educacionais. colaridade básica de qualidade (Rummert, 1995,
2000). Por outro, a difusão massiva da crença de
que a educação constitui a chave de ingresso exi-
Condicionantes políticos e ­econômicos toso na esfera do “télos da economia competitiva”
das atuais ações de governo para a (Rodrigues, 1998) requer a oferta de simulacros de
Educação de Jovens e Adultos processos educacionais que propiciem à maioria da
população a crença de estar recebendo, do Esta-
Particularmente a partir da segunda metade dos do, as oportunidades de superação individual das
anos de 1990, vivencia­‑se no país as conseqüências marcas do modelo socioeconômico. Introjetado no
das políticas de ajuste e de estabilização macroeco- tecido social o projeto identificatório dominante
nômica. Tais políticas geraram a elevação das taxas (Rummert, 2000, 2004), faz­‑se necessário imple-
de desemprego, derivada da redução de postos for- mentar ações que, ao distribuir certificados de con-
mais de trabalho que atingiu, até mesmo, os setores clusão de cursos de nível fundamental e médio e de
mais dinâmicos da indústria. Concomitantemente, formação profissional, concorrem, de modo signi-
foram geradas e (ou) agudizadas várias condições ficativo, para construir o “consentimento ativo dos
favoráveis ao crescimento de trabalho precário, in- governados” (Gramsci, 1978).
formal, sazonal ou terceirizado, para os quais acor- Se, por um lado, a crença no sentido mítico ou
reram novos contingentes trabalhadores expulsos mágico da educação se aprofunda nos dias atuais,
do mercado formal e que se somaram àqueles já vi- não podemos ignorar o fato de que esta não consti-
timados por nossa herança histórica de acumulação tui característica única de nosso tempo ou do Bra-
capitalista subordinada e dependente. sil. Em seu clássico trabalho sobre a classe operária
Agrava­‑se, assim, um quadro já delineado por inglesa, Thompson (1987) evidencia que os traba-
Nosella ao analisar as relações entre a moderniza- lhadores, de há muito, buscam na educação a via

sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros… 37


supostamente mais factível para alterar suas condi- Lapedusa, em O Leopardo: “É preciso mudar para
ções de vida. Como exemplo, destaca registros, da- que tudo permaneça como está”.
tados do final do século XVIII, de reivindicações
voltadas ao “direito à educação, pela qual o filho do
trabalhador poderia ascender ‘ao nível mais elevado A Educação de Jovens e Adultos
da sociedade’” conforme documentos da época (p. ­t rabalhadores no Brasil atual
176) (itálico meu).
Em recente e detido estudo sobre as representa- O acompanhamento das ações relativas à educação
ções dos jovens portugueses quanto à relação entre dos jovens e adultos trabalhadores, no período de
escola e a suposta inserção exitosa no sistema pro- 2003 a 2006, durante o qual exerceu seu primeiro
dutivo, Alves (2006) afirma, ao analisar os dados mandato o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, evi-
obtidos junto a alunos do 9º ano, que esses aderem, dencia o fato de que pouco foi efetivamente realizado
de forma expressiva, ao “mito do progresso indivi- no sentido de universalizar a educação básica no
dual — expresso na afirmação ‘vale a pena estudar Brasil. Tal constatação sublinha, particularmente,
para ter sucesso na vida’” (Idem, p. 30). Na conclu- o que diz respeito à permanência no Ensino Fun-
são de seu trabalho, a autora destaca a “fé, que de damental e ao acesso ao Ensino Médio que, como
um modo geral, os jovens depositam na educação e é afirmado no documento do IBGE, ainda constitui
na forma como, acriticamente, aderem às premissas um privilégio.
que estruturam os discursos sobre a Educação e o Entretanto, várias iniciativas focais foram imple-
Trabalho”. Assinala, ainda, que as opiniões colhi- mentadas, atendendo a pequenos contingentes
das junto aos jovens “não podem deixar de ser en- populacionais, aos quais, dadas as suas fragilida-
tendidas como o reflexo do triunfo da visão técnico­ des como atores políticos, são oferecidas possibili-
‑instrumental da educação e do lugar secundário a dades de elevação de escolaridade com caráter pre-
que tem vindo a ser confinada a reflexão crítica e cário e aligeirado, porém anunciadas como porta-
política sobre o papel da educação na sociedade” doras potenciais de inclusão. Trata­‑se, assim, sobre-
(Ibidem, p. 74). tudo, de atuar de forma urgente para controlar dis-
O caso brasileiro não é distinto e, nele, se eviden- funções de um sistema que, por sua origem estrutu-
cia que as estratégias das forças dominantes para a ral, continuará a gerar, cada vez mais, demandantes
permanente construção e manutenção da hegemo- de novas medidas de caráter emergencial.
nia, as quais transferem para os indivíduos a respon- De acordo com essa perspectiva, o Governo
sabilidade pelo maior ou menor êxito nas disputas Federal, particularmente por meio do Ministério
por condições básicas de existência são, também, da Educação (MEC), do Ministério do Trabalho
acolhidas de forma acrítica. Num intrincado pro- e Emprego (MTE) e da Secretaria­‑Geral da Presi-
cesso de distribuição de ilusões, os governos, suces- dência da República, vem, nos últimos quatro anos,
sivamente, procuram fazer frente à complexidade definindo políticas e adotando diversas medidas que
da estrutura social, a qual requer ações que contem- visam a ajustar a educação ao projeto de reestrutura-
plem diferentes frações de classe segundo seu poder ção produtiva subordinada no plano da hegemonia
de reivindicação e organização. As frações mais frá- internacional. É nesse quadro que se destacam as
geis e vulneráveis da classe trabalhadora são alvo de iniciativas destinadas à educação básica e profissio-
políticas focais do mesmo modo frágeis e passíveis nal dos jovens e adultos das frações mais desfavore-
de rápida descontinuidade. Às frações de classe que cidas da classe trabalhadora.
podem exercer grau mais significativo, potencial ou A Educação de Jovens e Adultos (EJA), regu-
real, de pressão no jogo das correlações de forças, lamentada como modalidade de ensino, é, sem
são dirigidas medidas de caráter mais complexo dúvida, uma educação de classe. Assim, se confi-
que, entretanto, permanecem, sob novas roupagens, gura, no Brasil, como oferta de possibilidades de
circunscritas aos limites de um mesmo que não se elevação da escolaridade para aqueles aos quais foi
pretende, efetivamente, transformar. Retoma­‑se, negado o direito à educação na fase da vida histo-
assim, permanentemente, a máxima de Tomaso di ricamente considerada adequada. É, mais precisa-

38 sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros…


mente, uma educação para as frações da classe tra- e privadas a partir dos mecanismos centrados nas
balhadora cujos papéis a serem desempenhados no práticas de parceria e/ou de filantropia, com ênfa-
cenário produtivo não requerem maiores investi- se nas Organizações não Governamentais, sempre
mentos do Estado, enquanto representante priori- marcadas pelo caráter compensatório.
tário dos interesses dos proprietários dos meios de O destaque dado aqui aos instrumentos legais
produção. Tal marca dessa modalidade de ensino decorre do entendimento de que representam ex-
não é assumida no Parecer nº 11 do ano de 2000, pressão do grau de poder das forças sociais que
do Conselho Nacional de Educação, que trata das disputam hegemonia num determinado momento
Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens histórico, posto que a legislação é expressão de
e Adultos. Entretanto, o mesmo Parecer, ao atribuir correlações de forças. Representam, portanto, fun-
à EJA a função reparadora de uma dívida social, evi- damental instrumento de formulação e execução
dencia tal destinação de classe. de políticas públicas, as quais, conforme assinala
O caráter de educação com “status” inferior no Rua (1998), constituem o “conjunto de decisões e
mercado de bens culturais, conferido à Educação ações destinadas à resolução de problemas políti-
de Jovens e Adultos, está também evidenciado na cos”. Essa perspectiva nos obriga a constatar o fato
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº de que nem a juventude brasileira, em particular,
9.394 de 1996. Contemplando a EJA com apenas nem o conjunto da sociedade assumiram para si,
dois artigos, o texto refere à necessidade de que se- de forma plena, a tarefa de lutar pelo direito à edu-
jam oferecidas aos jovens e adultos, “oportunidades cação, deixando assim de criar, para as forças do-
educacionais apropriadas, consideradas as caracte- minantes, problemas políticos que as constranges-
rísticas do aluno, seus interesses, condições de vida sem a assegurar a universalização das condições,
e de trabalho” (LDB 9.394/96, Art. 37). Entretanto, não só do acesso, mas da permanência na escola,
os jovens das frações mais desfavorecidas da classe assegurando o direito à educação básica de quali-
trabalhadora foram duramente atingidos pela redu- dade para todos.
ção das idades para a prestação dos chamados exa-
mes supletivos3. No Ensino Fundamental, a idade
mínima para a prestação do exames passou de 18 Ações focais para minimizar efeitos da desigualdade
para 15 anos e, no Ensino Médio, de 21 anos para 18 estrutural
(Idem, Art. 38). Tal dispositivo legal, que expulsou Como educação de classe, a EJA, enquanto possibi-
da escola regular diurna, do Ensino Fundamental, lidade de elevação de escolaridade e de qualificação
os jovens a partir dos 14 anos de idade, evidencia dos trabalhadores, é apresentada como geradora de
a ênfase atribuída à certificação, em detrimento da oportunidades diferenciadas de trabalho. Como as-
vivência plena dos processos pedagógicos necessá- sinalou Marx (1984), iniciativas como essas derivam
rios ao efetivo domínio das bases do conhecimento do entendimento de que a força de trabalho, tomada
científico e tecnológico. como mercadoria, é capaz, ela própria, de ampliar
A legislação ratificou, assim, tanto a subordina- suas possibilidades de exploração pelo capital.
ção da educação dos trabalhadores aos interesses Em virtude dessa perspectiva, na busca de respon-
do capital em sua atual fase de acumulação, quanto der a problemas concretos como o da desigualdade
a valorização de medidas que alteram os indicado- socioeconômica, que é inerente ao sistema­‑capital,
res estatísticos de baixa escolaridade da população, o conhecimento produzido nos limites da lógica
sem que se verifique efetivo compromisso com a conservadora ou, mesmo, da reformista os percebe
oferta de educação de qualidade para a maioria da como meras disfunções do sistema, do que resul-
classe trabalhadora. Destaca­‑se, ainda, outro as- ta um conjunto de medidas que permanentemente
pecto fundamental, que consiste na transferência buscam minorar conseqüências mas não eliminam
da responsabilidade em relação ao direito público suas determinações estruturais.
subjetivo à educação — do qual são portadores os É inegável que, desde 2003, a EJA tornou­‑se
trabalhadores — do Estado para diferentes inicia- objeto de um número bem mais significativo de ini-
tivas tomadas pelas esferas públicas não­‑estatais ciativas do que nos períodos governamentais ante-

sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros… 39


riores. Entretanto, tais iniciativas se apresentam no valor mensal de meio salário mínimo, financiada,
como claras explicitações do quadro já delineado. nos dois primeiros anos de implantação do Projeto,
A centralidade de tais ações reside na ampliação de pelo MEC, com o intuito de estimular as empresas
mecanismos de certificação, relativos à conclusão a participarem.
do Ensino Fundamental, à formação profissional — A iniciativa, no âmbito do MEC, é de responsa-
particularmente a de caráter inicial, que não exige bilidade direta da Secretaria de Educação Profissio-
níveis de escolaridade mínimos, conforme previsto nal e Tecnológica. Além do Ministério, são respon-
na legislação atual — e, com menor ênfase, ao tér- sáveis pelo Escola de Fábrica as Unidades ou Ins-
mino do Ensino Médio. As ações governamentais tituições Gestoras, às quais compete a implantação
restringem­‑se, ainda, a metas quantitativas modes- do Projeto nas empresas. Tal responsabilidade con-
tas, que não fazem frente ao grande contingente siste em gerir os recursos a serem repassados, formu-
populacional sem escolaridade completa. Soma­ lar a concepção pedagógica do Projeto, implementá­
‑se a isso a clara ausência de uma política unitária ‑lo e acompanhá­‑lo, elaborar e distribuir material
e fecunda que aponte, de forma segura, para a efe- didático, treinar os instrutores, proceder à sensi-
tiva democratização do acesso às bases dos conheci- bilização em relação à proposta e selecionar os can-
mentos científicos e tecnológicos e não para a mera didatos, certificar os alunos, acompanhá­‑los poste-
ampliação de indicadores de elevação de escolari- riormente na condição de egressos e avaliar o pro-
dade da classe trabalhadora destituída do direito à cesso. São consideradas potenciais Unidades Ges-
educação. toras órgãos públicos ou privados, Organizações
Entre essas iniciativas, podem ser destacados Não­‑Governamentais (ONGs), Organizações da
o Projeto Escola de Fábrica, o Programa Nacional Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPES)
de Inclusão de Jovens — PROJOVEM, o Programa ou outras instituições formalmente sem fins lucrati-
de Integração da Educação Profissional ao Ensino vos, que comprovem experiência na gestão de proje-
Médio para Jovens e Adultos — PROEJA e o Exame tos educacionais ou sociais.
Nacional de Certificações de Competências de As Unidades Formadoras são as empresas de
Jovens e Adultos — ENCCEJA, que abordaremos grande, médio ou pequeno porte, de qualquer natu-
brevemente, a seguir, tomando por base os docu- reza, incluindo­‑se as prestadoras de serviço, as res-
mentos oficiais que os instituíram. ponsáveis por empreendimentos agro­‑industriais
e rurais. Segundo o Projeto, as empresas são as
Projeto Escola de Fábrica detentoras do ambiente educativo necessário à for-
O Projeto Escola de Fábrica4 propõe oferecer cursos mação dos jovens participantes. A elas cabe custear
de formação profissional inicial, com duração míni- o “ambiente escolar” (sala de aula com os equipa-
ma de 600 horas, para 10.000 jovens por ano, em 500 mentos necessários) montado em suas dependên-
Unidades Formadoras, criadas nas empresas, cada cias, os uniformes, alimentação e transporte dos
uma atendendo 20 alunos. Pretende­‑se com isso alunos, ceder os funcionários que serão instrutores
possibilitar que jovens, com idade de 15 a 21 anos, e, ainda, indicar suas necessidades de formação
pertencentes a famílias com renda “per capita” me- profissional sobre as quais estarão assentados os
nor ou igual a um salário mínimo, sejam incluídos projetos pedagógicos.
socialmente, por meio da formação profissional. São explicitamente mencionadas, ainda, as Ins-
O atendimento dos jovens está, inicialmente, tituições de Educação Profissional e Tecnológica
condicionado à matrícula no ensino público regu- chamadas a oferecer apoio às Instituições Gestoras
lar, nas etapas finais do ensino fundamental ou no (ou mesmo a atuarem nessa condição), auxiliando na
ensino médio (para os de idade entre 15 a 18 anos), criação dos cursos, na concepção metodológica, na
bem como à conclusão da alfabetização no Pro- formação de instrutores, na elaboração de material
grama Brasil Alfabetizado ou à matrícula na Edu- pedagógico, bem como na avaliação e certificação.
cação de Jovens e Adultos, para aqueles com até 21 Coloca­‑se, assim, no Projeto, instituições de ensino
anos. Esses jovens receberão, ao longo de seis meses federais a serviço do empresariado, procedendo a
— tempo de duração do curso — uma Bolsa Auxílio trabalhos pedagógios diretamente direcionados a

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seus interesses, expressos na organização curricular, res públicos não passam, na melhor das hipóteses,
cujos conteúdos são por eles definidos. de terceirizadores da empresa. O mercado governa.
Destaca­‑se, ainda, que o documento referente ao O governo gere” (1998, p. 60).
Projeto Escola de Fábrica anuncia que se pretende,
com sua realização, provocar os seguintes impactos PROJOVEM
na sociedade: a) “inclusão social de jovens de 16 a 21 O Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Edu-
anos de baixa renda, por meio de formação profis- cação, Qualificação e Ação Comunitária — PRO-
sional e ampliação das possibilidades de inserção no JOVEM5, implantado no Brasil a partir de 2005,
mundo do trabalho”; b) “reconhecimento do princí- está diretamente vinculado à Secretaria­‑Geral da
pio educativo dos espaços produtivos”; c) “amplia- Presidência da República, que o implementou em
ção da responsabilidade social do empresariado parceria com o MEC, o TEM e o Ministério do De-
brasileiro” (MEC/SETEC, 2005, p. 3). senvolvimento Social e Combate à Fome.
A suposta perspectiva “romântica” expressa Segundo o documento­‑base que o apresenta, o
pelo documento do MEC, ao referir à responsabi- PROJOVEM é “voltado para o segmento juvenil
lidade social do empresariado brasileiro, está cen- mais vulnerável e menos contemplado por políti-
trada nas teses que afirmam estarem superados os cas públicas vigentes” (Presidência da República,
antagonismos de classe e anunciam a humanização 2005). São seus destinatários jovens de 18 a 24 anos,
do capital em favor da classe trabalhadora. Assim, as com escolaridade superior à 4ª série, mas que não
relações entre o capital e o trabalho possuem hoje, concluíram as oito séries do Ensino Fundamental,
supostamente, um caráter marcadamente coopera- que não possuam vínculos formais de trabalho.
tivo e solidário, expressão da consciência social do Aos participantes, o PROJOVEM pretende ofe-
empresariado, que não deixa lugar às disputas por recer, de forma integrada, a conclusão do Ensino
poder ou a antagonismos. Fundamental, qualificação profissional e capacita-
O real sentido de tal perspectiva é desvelado pela ção para a execução de ações comunitárias visando
presidente da Fundação Iochpe, que desenvolve ao “engajamento cívico” (Idem). Atribui­‑se, ainda,
projeto cuja estrutura foi inteiramente reprodu- ao Programa a possibilidade de contribuir, especifi-
zida pelo Escola de Fábrica. Declara Evelyn Iochpe camente, para a re­‑inserção do jovem na escola, cur-
sobre a necessidade de que o empresariado desen- sando o Ensino Médio, embora as vagas nas redes
volva ações de caráter social: “Cai­‑se, portanto, na públicas de ensino não sejam objeto da ampliação
lei de fogo da responsabilidade social montada por necessária para atender às demandas presumivel-
Keith Davis: ‘a longo prazo, quem não usa o poder de mente geradas pelo Programa. Anuncia­‑se, ainda,
uma maneira que a sociedade considera responsá- a intenção de propiciar a inclusão digital como ins-
vel, tenderá a perder este poder’” (Iochpe, 1998) (itá- trumento de inserção produtiva e de comunicação,
licos meus). ignorando­‑se o fato de que somente 15% do total de
Tal quadro evidencia que o MEC, coadunado jovens brasileiros têm acesso a microcomputadores
com os parâmetros da atual ordem estabelecida pelo (IPEA, 2006), percentual que não inclui a popu-
sistema capital, executa um duplo movimento de lação de baixa renda, à qual se destina o PROJO-
terceirização: por um lado, terceiriza instituições VEM. Esse conjunto de metas deverá ser atingido
de diferentes tipos, transferindo recursos públicos num curso de 5 horas diárias por um período de
para que executem trabalho educativo (que deveria 12 meses ininterruptos. Aos alunos matriculados é
ser de responsabilidade estrita do Ministério) junto concedida uma bolsa mensal no valor de R$ 100,00
aos jovens da classe trabalhadora; por outro, é tercei- (correspondente a aproximadamente 35 euros).
rizado pelo empresariado para gerenciar uma ação É importante assinalar, ainda, que o Programa
educativa que atende a seus interesses imediatos em atende às capitais dos 26 estados brasileiros, a 34
relação à força de trabalho e mediatos no que diz res- outros municípios das regiões metropolitanas e à
peito a iniciativas que concorram para a manutenção capital do país. A justificativa oficial para tal de-
da hegemonia do capital. Estamos, portanto, diante limitação geográfica reside na alta concentração
de um exemplo do que afirmou Ramonet: “Os pode- de jovens destituídos dos direitos fundamentais

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nas regiões metropolitanas e, também, decorre da Outro aspecto a ser destacado no documento
“conjugação entre carências econômicas, presença é a forma como aborda o perfil dos jovens que têm
do narcotráfico e certas práticas de corrupção poli- “acesso restrito à educação de qualidade e frágeis
cial” (Idem) nessas mesmas regiões. condições para a permanência nos sistemas escola-
Tais argumentos estão fortemente marcados pela res”, além de “baixo acesso às atividades de esporte,
associação, no imaginário social, da juventude “po- lazer e cultura” (Presidência da República, 2005), o
bre” com as chamadas “classes” perigosas. Para as que é corroborado com a apresentação posterior de
camadas mais favorecidas da sociedade, os jovens dados estatísticos sobre a escolaridade dos jovens.
oriundos da base da classe trabalhadora são poten- Tais constatações são tratadas no documento como
ciais delinquentes, constituindo, portanto, grave caraterísticas inerentes de parcela expressiva da
ameaça à ordem social. A concepção de que o jovem população e não como explicitação do quadro de
das frações mais pauperizadas da classe trabalhado- injustiça social do país e da ausência de efetivas polí-
ra é alvo fácil do mundo do crime é explicitada cor- ticas de promoção, por parte dos poderes públicos,
rentemente, mesmo pelos profissionais envolvidos da igualdade de direitos.
com o Programa. Como exemplo, podemos citar Ao longo do texto, assim como nas muitas apre-
o coordenador geral do PROJOVEM da cidade do sentações oficiais do Programa, são feitas referên-
Rio de Janeiro, Pedro Veiga, que afirma em entre- cias recorrentes ao protagonismo juvenil. É de supor­
vista concedida ao Observatório Jovem: “R$ 100,00 ‑se, assim, que os jovens, ao passar a exercer plena-
não mantêm jovem em programa nenhum, princi- mente sua cidadania, se reconheçam como porta-
palmente nesta idade. O tráfico, a informalidade, dores de direitos públicos subjetivos, entre os quais
a ilegalidade em qualquer sentido paga muito mais o direito à educação básica de qualidade, indepen-
do que isso. Os R$100 são, literalmente, uma bolsa dentemente de sua origem de classe. Não é outra a
para que o cara possa se deslocar, fazer um lanche expectativa gerada por afirmações como “assumir
— apesar de já ter lanche no projeto — é uma ajuda.” responsabilidades frente aos problemas que afetam
(Disponível em: www.uff.br/obsjovem). o país” ou “identificar problemas e necessidades de
Como já mencionado, o PROJOVEM objeti- sua comunidade, planejar e participar de iniciativas
va oferecer, em apenas um ano, os conhecimentos concretas, visando à sua superação”, já citadas.
necessários à conclusão do Ensino Fundamental Como a superação de problemas como os acima
e formação profissional. Pretende­‑se, como anun- mencionados exige ampla mobilização da sociedade
ciado no documento­‑base, propiciar as condições contra as opções político­‑econômicas que orientam
para que o jovem possa “compreender os proces- as políticas implementadas pelo Governo Federal, é
sos sociais e os princípios científicos e tecnológicos lícito indagar quais as características e os limites da
que sustentam a produção da vida na atualidade” ação comunitária prevista para os jovens atendidos
(Presidência da República, 2005). Embora não pelo Programa e tutelados por agências executoras
possamos, aqui, analisar a real viabilidade peda- do Estado.
gógica dessas intenções, não é difícil perceber que Essa questão encontra claros indícios de respos-
tais objetivos não podem ser alcançados de modo a ta em outra afirmação de Pedro Veiga, na entrevista
assegurar, a todos os que participam do Programa, já citada:
efetivo acesso às bases do conhecimento científico
e tecnológico, em tão curto espaço de tempo, so- “O projeto tem, então, a proposta de que o jovem
bretudo se considerarmos que a organização curri- leve uma carga de atividades para dentro da comuni-
cular do Programa prevê apenas duas horas de aula dade, isso representa um ganho primeiro individual,
semanais para o estudo da língua portuguesa, duas a partir do momento que ele começa a se relacionar
para língua estrangeira e, ainda, a mesma carga ho- de uma forma diferente com a comunidade dele e pra
rária para matemática, ciências humanas e ciências comunidade, obviamente. Haverá, portanto, [por
da natureza. As outras três horas de cada dia são exemplo] 1.200 jovens num final de semana por mês,
ocupadas com a formação profissional, noções de pelo menos, fazendo uma atividade grande na comu-
informática e ação comunitária. nidade: recreação com as crianças, esclarecimento na

42 sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros…


questão das drogas, esclarecimento na questão da ati- Outro aspecto a ser, ainda, registrado refere­‑se
vidade sexual, ou efetivamente fazendo alguma coi- ao retrocesso que a implementação do PROJOVEM
sa. Se [a meta é] a questão da construção civil, será representou em relação à conquista duramente obti-
possível ter, depois de 3 meses, 1200 jovens pintando a da pelos profissionais da educação, no que se refere
escola, fazendo uma calçada. O projeto tem a propos- à transferência de ações de caráter educacional das
ta de interligar o plano de qualificação, de formação agências de assistência social para as efetivamente
e de ação comunitária de forma integrada” (Dispo- envolvidas com a educação. Retrocede­‑se, assim, a
nível em: www.uff.br/obsjovem). práticas de transferência de recursos e de responsa-
bilidades para esfera da assistência social, corrobo-
Trata­‑se, portanto, no caso do PROJOVEM, de rando um processo que já vinha sendo identificado
um tipo de ação comunitária restrita ao atendimen- em diferentes estudos, entre os quais se destaca o
to de demandas pontuais, exercida pelos jovens de Pochmann (2006).
num tempo tutelado e que pouco ou nada acrescen- Nesse sentido, o PROJOVEM representa uma
tará à sua formação integral, ao contrário do anun- perda sensível para a educação pois que, além de
ciado no documento da Presidência da República. seu caráter assistencialista, representa uma inicia-
Espera­‑se, portanto, que os jovens atuem pintando tiva que não oferece à juventude efetivo acesso à
prédios públicos, construindo habitações precárias educação mas, apenas, à certificação de conclusão
ou calçadas, ocupando­‑se como recreadores nas do Ensino Fundamental de discutível qualidade. O
chamadas “comunidades carentes”. Ou seja, a ação PROJOVEM constitui mais um exemplo de ação
comunitária esperada situa­‑se no vácuo deixado política que, sob a aparência da inovação, gera a
pelo próprio poder público, limitada pela ordem continuidade da submissão ao instituído. E o ins-
social já estabelecida, consistindo numa contrapar- tituído, em nosso país, é gerador de diferenças de
tida ao ínfimo valor da bolsa mensalmente recebida caráter sócio­‑econômico cada vez mais extensas e
a título de auxílio. Não é demais assinalar o fato de profundas. Ao analisar o Programa, apresentado
que, também para a “comunidade” em que será de- pelo Governo Federal como elemento­‑chave de sua
senvolvida a ação, os resultados de caráter pontual política nacional para a juventude brasileira, pode-
não significarão alterações qualitativas e duradou- mos perceber que esta não se apresenta como efetiva
ras em suas precárias condições de vida. expressão de compromisso com a democratização
Evidencia­‑se, também, a fragilidade da argumen- e universalização da educação que envolva, numa
tação que apresenta como um dos aspectos positivos direção comum e orgânica, a totalidade social. Ao
do Programa o acesso às bases do conhecimento contrário, sublinha, uma vez mais, o caráter dual
científico e tecnológico. Tal acesso deveria ocorrer a do sistema educacional brasileiro, como expressão
partir de uma ação pedagógica que integrasse as três da estrutura socieconômica do país.
vertentes do Programa: elevação da escolaridade,
formação profissional e ação comunitária. Na reali- PROEJA
dade, o leque estreito de possibilidades de atuação, Outra iniciativa a ser destacada é o Programa Na-
circunscrito a limites já demarcados e pontuais, res- cional de Integração da Educação Profissional com
tritos a minimizar algumas das muitas expressões a Educação Básica na Modalidade de Educação de
da “pobreza”, frustra as expectativas criadas em re- Jovens e Adultos — PROEJA, sobre o qual apresen-
lação à ação comunitária. A análise da proposta e de tamos, ainda, análise preliminar. O PROEJA foi ins-
sua implementação revela que o PROJOVEM convi- tituído pelo Decreto 5.478 de 2005, posteriormente
da os jovens ao engajamento em um projeto que lhes reformulado pelo Decreto 5.840 de 2006. Segundo
pré­‑determina o futuro nos marcos já estabelecidos esse último Decreto, o PROEJA abrange os seguin-
para as frações mais exploradas da classe trabalha- tes cursos e programas de educação profissional: a)
dora. Do mesmo modo, as poucas horas destinadas formação inicial e continuada, cuja oferta pode ser
à formação geral e profissional, evidenciam que, articulada com a elevação de escolaridade em nível
para a grande maioria dos atendidos, a experiência de Ensino Fundamental; b) educação profissional
propiciada pelo projeto será pouco fecunda. técnica de nível médio, que poderá ocorrer de for-

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ma integrada ou concomitante à elevação de escola- lativo ao PROEJA, divulgado em 2006. Nesse do-
ridade em nível de Ensino Médio. cumento, merecem comentários alguns pontos que
Pelo primeiro documento legal, ficavam obriga- explicitam o caráter ambivalente da proposta.
dos a oferecer o PROEJA todos os Centros Fede- O primeiro é a ampliação do espectro de ins-
rais de Educação Tecnológica — CEFETs, as Es- tituições que passaram a poder oferecer o PROE-
colas Técnicas e Agrotécnicas Federais e as Escolas JA, para além das definidas no primeiro Decreto,
Técnicas vinculadas às Universidades Federais. nomeadas como em Instituições Proponentes (de
Estabelecia­‑se, também, que do total de vagas ofe- âmbito público: Instituições de Ensino Federais,
recidas em todos os cursos de cada unidade edu- Estaduais e Municipais de Educação, bem como
cacional, no ano de 2005, 10% deveriam ser desti- Secretarias de Educação) e Instituições Parceiras,
nados ao referido Projeto, reservando­‑se o MEC referidas como “quaisquer organizações da socie-
a atribuição de definir, nos anos subseqüentes, os dade civil que não visem lucro pecuniário na oferta
novos quantitativos. A criação do Programa, assim, de curso no âmbito desse Programa”. O documento
não concorreu para a ampliação do acesso, mas destaca, entretanto, como “parceiras preferenciais
provocou o deslocamento de vagas já existentes, instituições pertencentes ao Sistema S”6 (Proeja,
em todos os níveis de cada unidade, para o atendi- Documento Base, p. 55. Itálico meu), num claro
mento da nova ação, posto que sua oferta se dá em movimento de oposição em relação aos pressupos-
detrimento da criação de outras turmas de alunos. tos anunciados nas partes introdutórias do mesmo
Outro aspecto do Decreto 5.478/2005 a ser men- documento e evidenciando a forte capacidade de
cionado evidencia a concepção de EJA corrente no intervenção do Capital nas propostas de educação
âmbito do próprio MEC e refere­‑se ao estabeleci- da classe trabalhadora apresentadas pelo Governo
mento de uma carga horária máxima, de 1.600 ho- Federal.
ras para os cursos de formação inicial e continuada Outro aspecto explicita o caráter híbrido da fun-
e de 2.400 horas para os cursos de educação profis- damentação teórico­‑política do Documento Base.
sional técnica de nível médio. A limitação do má- Seus autores, ao apresentarem os princípios que
ximo de horas, bem como sua redução em relação devem nortear o PROEJA, afirmam que o “quarto
aos cursos regularmente oferecidos, foram assim princípio compreende o trabalho como princípio
avaliadas por Frigotto et al.: educativo” (Ibidem, p. 35), compreendido não em
sua perspectiva de emprego, mas como forma de
“Observamos algumas incoerências na disposição constituição da própria humanidade. Tal princípio,
sobre as cargas horárias que, ao nosso ver, incorrem entretanto, conflitua diretamente com a concepção
em deslizes éticos, políticos e pedagógicos. Primeira- de trabalho como princípio educativo, tal como o
mente, não há porque defini­‑las como máximas. A é concebido pelos “parceiros preferenciais” eleitos
redução da carga horária de cursos nas modalidade pelo próprio MEC: os empresários que regulam a
EJA com relação aos mínimos estabelecidos em lei formação dos trabalhadores segundo as necessida-
para a educação regular não deve ser uma imposi- des imediatas postas pelo mercado.
ção, mas sim uma possibilidade (...) Limitar a carga Não pode deixar, ainda, de ser destacado que o
horária dos cursos a um ‘máximo’ é, na verdade, ad- documento incorpora, simultaneamente, referên-
mitir que aos jovens e adultos trabalhadores se pode cias a críticas radicais ao atual estágio do modo de
oferecer uma formação mínima”(Frigotto et al., produção e teses e conceitos inteiramente confor-
2005, pp. 318­‑9) mados à ordem. Exemplo expressivo diz respeito
à recorrente referência à “educação ao longo da
Entre outros aspectos bastante problemáticos, vida”. Aqui verifica­‑se a ausência da percepção de
destaca­‑se, também, o fato de o Programa ter sido seu caráter conservador e subordinado à lógica do
implementado sem as necessárias medidas de su- mercado, conforme evidencia Canário quando, em
porte compatíveis com uma política pública. So- rica discussão sobre o tema, destaca nessa proposta
mente ao final de 2005 foi constituído Grupo de a fundamentação da “lógica argumentativa: a su-
Trabalho para elaboração de Documento Base re- bordinação funcional das políticas de educação e

44 sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros…


de formação à racionalidade económica dominante, que atenda às necessidades e ao perfil dessa popula-
baseada na produção e acumulação de riqueza sob ção que não teve oportunidade de acesso à escola-
a forma de uma tendência inquieta e insaciável para ridade regular na idade própria” (INEP, 2005) (Itá-
acumular capital” (Canário, 2003, p. 195). lico meu).
Como vemos, o PROEJA surge, reformula­‑se e Assim, o ENCCEJA apresenta, como função
amplia­‑se em meio a um conjunto de contradições principal, certificar jovens e adultos que não fre-
que demandam aprofundamento para a sua plena qüentaram a escola regular básica, mas necessi-
compreensão. De todo modo, é necessário regis- tam comprovar serem portadores dos conhecimen-
trar que, em que pesem os muitos limites deriva- tos equivalentes aos níveis de ensino da Educação
dos do projeto societário de caráter subordinado e Básica. O conteúdo de tal necessidade, tal como
dependente em que se inscreve e que o conforma, o é abordada nos documentos aqui referidos, vai ao
Programa constitui uma iniciativa que, a ser levada encontro da valoração do “diploma” em detrimento
adiante, pode possibilitar alguns avanços no âmbito do valor do conhecimento. Isso pode ser confir-
da Educação de Jovens e Adultos trabalhadores, em mado ao cotejar o grau de complexidade e a ampli-
particular por iniciativas que venham a ser tomadas tude dos conhecimentos avaliados pelo ENCCEJA
no âmbito dos CEFETs e demais escolas públicas e pelo Exame Nacional do Ensino Médio — ENEM.
federais, como previsto no Decreto original. Este último, em vigor desde o ano de 1998, destina­
‑se àqueles que cursam a escola regular. Embora os
ENCCEJA documentos relativos ao ENCCEJA afirmem serem
Concluímos esta abordagem sobre ações do ambos os exames estruturados a partir da mesma
Governo Federal relativas à Educação de Jovens e “matriz de competências”, o que se evidencia pela
Adultos trabalhadores com uma breve referência ao comparação é o fato de que o ENCCEJA, em detri-
Exame Nacional de Certificações de Competências mento da efetiva aprendizagem, reforça o significado
em Educação de Jovens e Adultos — ENCCEJA, o simbólico do certificado, concorrendo para ampliar
qual constitui “instrumento de avaliação para aferi- seu “valor­‑de­‑troca”. Sua finalidade é, assim, pos-
ção de competências e habilidades de jovens e adul- sibilitar a obtenção de certificados de conclusão de
tos” (INEP, 2005). Sua primeira versão foi apresen- cursos e não propiciar as condições de acesso ao
tada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas conhecimento.
Educacionais — INEP, vinculado ao Ministério da A comparação entre os objetivos atribuídos ao
Educação, ao final do ano 2002, ainda no governo ENCCEJA e ao ENEM permite também reconhecer
de Fernando Henrique Cardoso. Em outubro de a dualidade do sistema educacional. Segundo a Por-
2004, o novo governo, seguindo a opção de imple- taria 06, de fevereiro de 2005, o INEP define, como
mentar ações apenas aparentemente renovadas, ins- um dos objetivos do ENEM, “oferecer uma referên-
titui o Exame Nacional de Avaliação da modali- cia para que cada cidadão possa proceder à sua auto­
dade de Educação de Jovens e Adultos, pela Porta- ‑avaliação com vistas às suas escolhas futuras, tanto
ria nº 3.415. Em março de 2005, após reformulações em relação ao mercado de trabalho quanto em rela-
pouco significativas em seu conteúdo, o Exame é ção à continuidade de estudos” (INEP, Portaria 06,
implementado pela Portaria nº 44, do mesmo órgão, Artigo 2º, Inciso I) (itálicos meus). Para o público a
passando a integrar o conjunto de instrumentos de que se destina, ao ENCCEJA é atribuído o objetivo de
avaliação da Educação Básica no país. “constituir uma referência nacional de auto­‑avaliação
Um primeiro aspecto a destacar é o fato de que para jovens e adultos por meio de avaliação de compe-
esse exame nacional, ao contrário dos demais, é o tências e habilidades, adquiridas no processo esco-
único ao qual é conferida a possibilidade de certi- lar ou nos processos formativos que se desenvolvem
ficar, em nível do Ensino Fundamental ou Médio, na vida familiar, na convivência humana, no trabalho,
os jovens e adultos sem os referidos graus de esco- nos movimentos sociais e organizações da sociedade
laridade. Pretende­‑se, assim, “possibilitar uma ava- civil” (INEP, Portaria 44, Art. 2º, Inciso I).
liação de competências e habilidades básicas de A comparação entre os dois objetivos nos per-
jovens e adultos de acordo com os preceitos legais, mite perceber as diferenças que caracterizam o pre-

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tendido pelos dois exames, que se destinam a públi- A história da educação brasileira demonstra
cos marcados por distinções de caráter socioeconô- que tais medidas não oferecem respostas concre-
mico. Para aqueles a quem o Estado não assegurou o tas e de longo prazo para a imposição ético­‑política
direito à Educação Básica, isto é, os pertencentes às de universalização do acesso e das condições ob-
frações mais pauperizadas da classe trabalhadora, jetivas de permanência numa escola de qualidade
não são cogitadas nem as “possibilidades de esco- para todos, independentemente de sua origem de
lha”, nem “a continuidade dos estudos”. classe. Insistir no uso da categoria classe trabalha-
Ainda segundo documentos do INEP, as com- dora ao nos referirmos àqueles que não têm asse-
petências a serem aferidas correspondem aos “eixos gurado o direito à educação constitui uma opção
cognitivos básicos, a ações e operações mentais que teórico­‑metodológica que não abdica de sublinhar
os jovens e adultos devem desenvolver como recur- o fato, hoje negado, de que a distribuição desigual
sos mínimos que os habilitem a enfrentar melhor o de oportunidades educacionais continua a ser uma
mundo que os cerca” (Documento Básico, Livro questão derivada da origem socioeconômica e das
Introdutório, 2003, p. 15) (itálico meu). Mais uma assimetrias de poder daí advindas.
vez legitima­‑se, em documentos oficiais, a lógica do O teor das ações aqui tratadas explicita o fato
mínimo para as frações da classe trabalhadora às de que tratamos de propostas destinadas a jovens
quais foi negado o direito de acesso à escola, como pobres que se encontram supostamente na cha-
em outras iniciativas anteriormente mencionadas. mada “situação de risco social”, para que eles, per-
manecendo na base da pirâmide socioeconômica,
recebam uma formação que lhes pré­‑determina um
Conclusão futuro conformado à ordem societária que não se
intenciona transformar.
Com a preocupação de não promover mudanças A perspectiva geradora de tais medidas estrutura­
estruturais na ordem societária, são implementadas ‑se a partir de falsas premissas, entre as quais se des-
medidas que visam a minimizar, de forma superficial, tacam a naturalização da pobreza e a relação linear
as consequências das opções político­‑econômicas entre escolaridade e superação individual das desi-
das forças dominantes, condicionadas por interesses gualdades. Essas grandes máximas míticas ou mági-
corporativos do capital e pelo alinhamento subordi- cas, que as forças dominantes difundem em larga
nado do país ao quadro hegemônico internacional. escala, valendo­‑se dos meios de comunicação de
Assim, o Governo Federal adota procedimentos de massa como aliados preferenciais, constituem, nos
democracia filantrópica, de caráter demonstrativo, processos de correlações de forças, mais do que a
em que proliferam as políticas focais, de que emer- quimera da inclusão anunciada. Configuram­‑se —
gem programas que oferecem bolsas ou diferentes apesar das concretas evidências em contrário apre-
tipos de auxílio e requerem contrapartidas simbóli- sentadas pela vida cotidiana — como recursos de
cas, no mais claro modelo neoliberal. controle social, concorrendo de forma decisiva para
Ademais, cabe ressaltar que, ao contrário do a adesão acrítica ao projeto de sociedade que cada
difundido pelo discurso oficial, as iniciativas re- vez mais favorece àqueles que detêm o poder, ou que
feridas não constituem a novidade anunciada. Ao nas palavras de Forrester (1997), alimentam o (e se
contrário, à semelhança de práticas em uso recor- alimentam do) “horror econômico”.
rente pelas esferas de poder, se apresentam, por ve- Qualquer iniciativa que se pretenda construtora
zes sob nova roupagem, como ações de caráter de de concretas possibilidades de superação ou, mes-
emergência, que vêm preencher as enormes lacunas mo, de redução sensível de desigualdades, ainda
deixadas pela ausência de políticas de universaliza- que, como destaca Oliveira (1998), nos marcos e li-
ção de direitos. Além disso, evidenciam que o atual mites do capitalismo, não poderá advir de propos-
governo não optou, até o momento, por promover tas que se afastam, de forma tão clara, da universa-
políticas que causem impactos duradouros no sen- lização da educação.
tido de superar as desigualdades estruturais que Não podemos nutrir a ilusão de que medidas res-
caracterizam o país e, por decorrência, a educação. tritas e “focalizadas” irão alterar, minimamente, o

46 sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros…


quadro de dualidade que marca a educação brasi- pela própria classe trabalhadora. Do mesmo modo,
leira, como expressão cruzada de nossas históri- entendemos não constituir prática fecunda o mero
cas contradições internas e da globalização do capi- “espetáculo da denúncia”.
tal. É, também, evidente que não há espaço, na for- Entretanto, como sublinha Brunhoff, “embora
mação proposta pelas iniciativas analisadas, para o tenhamos pouca audiência no momento atual, a análise
pensamento rebelde que concorra para fragilizar as crítica dos dogmas liberais deve continuar, tentando­
bases do “capitalismo auto­‑reformador” (Mészáros, ‑se situá­‑la em relação àquilo que o autor percebe hoje
2002, p. 38). das práticas sociais” (1991, p. 9). Se vivemos hoje, tem-
Ao finalizar, entendemos ser importante des- pos denominados neoliberais ou pós­‑modernos, isso
tacar que as considerações aqui apresentadas não não torna menos concreta, embora metamorfoseada,
derivam da ingenuidade epistemológica que leva- a máxima de Adam Smith (1983): “instrução para os
ria a supor que o sistema­‑capital venha a promover a trabalhadores, porém em doses homeopáticas”. Con-
educação que efetivamente interessa aos trabalhado- sideramos, assim, que trazer à luz os simulacros que
res e possa, assim, concorrer voluntariamente para dão sustentação a esta realidade pode contribuir para
a corrosão de suas próprias bases (Rummert, 1995). um processo de construção de mudanças substanti-
Conquistar essa educação é tarefa a ser enfrentada vas na vida da classe trabalhadora.

sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros… 47


Notas cio (SESC), o Serviço Nacional de Aprendizagem
Rural (SENAR), o Serviço Nacional de Aprendiza-
1. Este texto apresenta resultados parciais da pes- gem em Transportes (SENAT), o Serviço Social de
quisa Educação básica e profissional de trabalhado- Transportes (SEST), o Serviço Brasileiro de Apoio
res. Políticas públicas e ações do Estado, do Trabalho às Pequenas e Médias Empresas (SEBRAE) e o Ser-
e do Capital, empreendida com o apoio do CNPq. viço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo
2. No Brasil, a Educação Básica, conforme os ins- (SESCOOP). É fundamental assinalar que o Sis-
trumentos legais, é constituída pelo Ensino Fun- tema S é financiado com recursos chamados “para-
damental, com duração de oito anos e pelo Ensino fiscais”, recolhidos pela Previdência Social e devol-
Médio, com duração de três anos. Cumpre assinalar vidos às diferentes Confederações. Tais recursos
que, até hoje, a frequência ao Ensino Médio não é obri- são considerados públicos, uma vez que as empresas
gatória e que o número de vagas nas redes públicas de o tratam como mais uma contribuição e, em decor-
ensino é substantivamente inferior à demanda. rência, seu valor seja computado no preço final dos
3. São denominadas como Exames Supletivos as produtos e serviços. Tal procedimento faz com que
provas aplicadas por Secretaria de Educação Muni- o ônus pela manutenção do Sistema S recaia sobre a
cipais ou Estaduais com o objetivo de proporcionar população brasileira. Detido estudo sobre suas ori-
aos jovens e adultos que não concluíram o Ensino gens, vinculadas à Confederação Nacional da Indús-
Fundamental ou Médio, a certificação equivalente tria e sobre o que efetivamente representam como
4. Os documentos que serviram de base à aná- difusores da ideologia necessária ao capital, pode
lise estão disponíveis em: http://portal.mec.gov.br/ ser encontrado em Rodrigues (1998).
setec/index.php?option=content&task=view&id
=479&Itemid=602 (01­‑2007). Também para maior
conhecimento acerca do Projeto Escola de Fábrica, Fontes e referências bibliográficas
pode ser consultado: ver Rummert (2005b), tra-
balho em que as considerações aqui apresentadas Alves, Natália (2006). Socialização escolar e profis-
foram detidamente desenvolvidas sional dos jovens: projectos, estratégias e repre-
5. O PROJOVEM foi analisado no trabalho de sentações. Cadernos Sísifo I. Lisboa: Educa/Uni­
Rummert (2007), Intervenções comunitárias como dade de I&D de Ciências da Educação.
controle social na sociedade brasileira: o caso do Brasil. Conselho Nacional de Educação/Câmara de
PROJOVEM, apresentado no Congresso Interna- Educação Básica (2000). Parecer 11/2000. Diretrizes
cional Intervenção com Crianças, Jovens e Famílias. curriculares para a Educação de Jovens e Adultos.
Braga, Universidade do Minho. 08 a 10 de fevereiro Brasil. Governo Federal/MEC (1996). Lei de Di-
de 2007. Nessa apresentação foi dado destaque às retrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº
questões relativas à intervenção comunitária, con- 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
forme prevista no Projeto. Brasil. IBGE (2006). Síntese de Indicadores So-
6. O chamado “Sistema S” tem sua origem na dita- ciais 2006. Consultado em Janeiro de 2007, em
dura de Getúlio Vargas, quando foi criado o Serviço http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noti-
Nacional de Aprendizagem Industrial — SENAI. cias/noticia_visualiza.php?id_noticia=774
É constituído, hoje, por entidades vinculadas às Brasil. MEC/INEP (2004). Portaria 3.415, de 21
Confederações que representam o empresariado dos de outubro de 2004. Consultado em Janeiro de
diferentes setores produtivos (indústria, comércio, 2007, em http://www.inep.gov.br/basica/encce-
agricultura, transportes entre outros) com a finali- ja/legislacao/
dade de qualificar e propiciar atividades de cultura Brasil. MEC/INEP (2005). Portaria 44, de 10 de mar-
e lazer aos trabalhadores. As organizações do Sis- ço de 2005. Consultado em Janeiro de 2007, em
tema “S” são: o Serviço Nacional de Aprendiza- http://www.inep.gov.br/basica/encceja/legislacao/
gem Industrial (SENAI), o Serviço Social da Indús- Brasil. MEC/INEP (2006). Consultado em Janei-
tria (SESI), o Serviço Nacional de Aprendizagem ro de 2007, em http://www.inep.gov.br/basica/
Comercial (SENAC), o Serviço Social do Comér- encceja/

48 sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros…


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sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros… 49


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50 sísifo 2 | sonia maria rummert | a educação de jovens e adultos tr abalhadores br asileiros…


s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 issn 1646 ‑4990

Empregabilidade, contextos de trabalho


e funcionamento do mercado de trabalho em Portugal

António José Almeida


Escola Superior de Ciências Empresariais/IP Setúbal
ajalmeida@esce.ips.pt

Resumo:
O presente artigo procura contribuir para a problematização do conceito de empregabili-
dade, nomeadamente através da discussão do seu potencial heurístico para a compreen-
são de algumas das dinâmicas do mercado de trabalho em Portugal.
Partindo da revisão de literatura nacional e internacional, discutimos o papel das empre-
sas na promoção da empregabilidade quer seja através das suas políticas de formação pro-
fissional contínua quer seja através dos modelos de organização do trabalho adoptados.

Palavras­‑chave:
Empregabilidade, formação profissional, organização do trabalho e gestão de recursos
humanos.

Almeida, António José (2007). Empregabilidade, contextos de trabalho e funcionamento do


mercado de trabalho em Portugal. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 51‑58
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

51
Introdução Empregabilidade: um conceito
polissémico e multidimensional
A introdução do conceito de empregabilidade nos
diferentes discursos sobre a organização do mer- Utilizada fundamentalmente como uma “bu-
cado de trabalho tem vindo a pôr em causa a ca- zzword” quer no plano da definição de políticas pú-
pacidade dos sistemas de educação e de formação blicas orientadas pelo primado da individualização
em dotar os indivíduos das competências desejadas quer no plano dos discursos gestionários adeptos
pelos sistemas económicos. Este enfoque contribui da desregulamentação dos mercados, em particular
para ocultar o papel central dos contextos de tra- do mercado de trabalho, o termo empregabilidade
balho na promoção e/ou manutenção dessa mesma tem vindo a ser aceite acriticamente para legitimar
empregabilidade. uma visão do mundo ideologicamente centrada nas
Partindo da realidade empírica portuguesa, concepções neo­‑liberais.
propomo­‑nos discutir o papel dos contextos de A sua disseminação no meio académico, pelo
trabalho no desenvolvimento da empregabilida- menos no caso português, parece contagiada pela
de dos trabalhadores quer por via da importância carga ideológica que arrasta consigo, sendo poucos
que as empresas atribuem à formação profissional os que procuram problematizar a expressão ao pon-
contínua enquanto instrumento de suporte ao de- to de a tornar um efectivo conceito científico capaz
senvolvimento e/ou manutenção de competências de dar conta dos novos fenómenos sociais com base
quer por via da adopção de formas organizacionais numa resposta heuristicamente relevante.
potenciadoras da auto­‑aprendizagem. Dos trabalhos que a comunidade científica in-
Com os resultados obtidos pretendemos de- ternacional tem vindo a produzir tendo em vista a
monstrar a existência de um conjunto de limita- discussão das origens e dimensões do conceito, as-
ções estruturais que põem em causa a relevância do sumem, para nós, um carácter estruturante as contri-
conceito de empregabilidade para a caracterização buições de Bernard Gazier (1990, 1998) e de Ronald
das lógicas subjacentes ao funcionamento do mer- McQuaid e Colin Lindsay (2005). O primeiro autor
cado de trabalho em Portugal, tendo em conta os propõe­‑se fazer uma radiografia do conceito e, os se-
baixos níveis de habilitação escolar da população, gundos, propõem­‑se discutir as aplicações que têm
o reduzido investimento das empresas na formação vindo a ser dadas ao termo empregabilidade, particu-
profissional contínua e o predomínio de formas or- larmente ao nível das políticas públicas de emprego.
ganizacionais tayloristas. A genealogia do conceito não parece marcada
por grandes polémicas sendo a sua origem atribu-
ída aos anglo­‑saxónicos que no início do século

52 sísifo 2 | antónio josé almeida | empregabilidade, contextos de tr abalho e funcionamento do mercado…


XX o utilizavam para distinguir a população em- contemporânea, reflectem a crescente tensão entre
pregável da não empregável. A partir deste marco a gestão colectiva e individual das relações de traba-
histórico, o conceito de empregabilidade veio a ser lho a qual se traduz no confronto entre o primado do
objecto de uma significativa disseminação no mun- “pleno emprego” e a promessa de “plena emprega-
do ocidental, a mais notória das quais em finais do bilidade”, como refere Finn (McQuaid & Lindsay,
século por via de organizações internacionais tais 2005, p. 203), do “emprego para a vida” com a “em-
como a OCDE, a OIT, a ONU e a UE. pregabilidade para a vida”, como refere Kluytmans
Essa disseminação fez­‑se ao longo do tempo de e Ott (1999, p. 262) ou ainda do trabalho como um
uma forma muito associada às condições societais “direito” com o trabalho como uma “responsabili-
dos diferentes contextos nacionais em que se foi dade”, como refere White (2001, p. 7).
afirmando. Assim, partindo da proposta de Gazier Posicionando­‑se no campo da empregabilida-
(1990 e 1998) sobre a evolução histórica do concei- de interactiva, as propostas dos autores que temos
to, é possível identificar oito concepções diferen- vindo a referenciar privilegiam uma concepção de
ciadas a que McQuaid e Lindsay (2005) também empregabilidade que pode ser definida como “a ca-
recorrem: a empregabilidade dicotómica, a em- pacidade relativa de que um indivíduo dispõe para
pregabilidade sócio­‑médica, a empregabilidade da obter um emprego que o satisfaça tendo em conta a
política da força de trabalho; a empregabilidade de interacção entre as suas características pessoais e o
fluxo, a empregabilidade da performance no mer- mercado de trabalho” (Gazier, s/d., p. 11).
cado de trabalho, a empregabilidade de iniciativa e Tendo por base este quadro analítico, que con-
a empregabilidade interactiva. cebe a empregabilidade como o resultado da inte-
Das várias concepções enunciadas, centrar­‑nos­ racção entre o indivíduo e o mercado de trabalho,
‑emos naquelas que, no actual contexto, apresen- McQuaid e Lindsay (2005, p. 208) propõem­‑nos
tam maior valor heurístico: a empregabilidade de uma abordagem da empregabilidade individual
iniciativa e a empregabilidade interactiva. que tenha em conta três dimensões que interagem
A empregabilidade de iniciativa nasceu nos entre si: factores individuais, circunstâncias pesso-
EUA nos anos 80 num quadro de individualização ais e factores externos.
das relações de trabalho em que se assumia que as Para os autores, os factores individuais estão
carreiras individuais eram um produto da capaci- associados às competências e atributos da empre-
dade dos indivíduos em mudar de papel no interior gabilidade que incluem as habilitações escolares
das organizações seja porque emergiu uma opor- e qualificações profissionais dos indivíduos assim
tunidade seja porque a isso é obrigado por via das como um conjunto de competências de natureza di-
reestruturações internas. Transposta para o campo versa que passam, entre outras, pelas suas compe-
do mercado de trabalho externo, trata­‑se de uma tências sociais, comportamentais, de resolução de
concepção que “pressupõe [por parte dos trabalha- problemas e de adaptação a novas situações. Como
dores] uma acção amplamente flexível num merca- os próprios autores chamam à atenção, esta dimen-
do de trabalho desregulado” (Gazier, s/d., p. 11). são reflecte em parte os contributos da teoria do ca-
Por sua vez, a empregabilidade interactiva, ten- pital humano ao valorizar o papel da formação bem
do igualmente emergido nos EUA em finais da dé- como os contributos da Psicologia, no que respeita
cada de 80, acrescenta à lógica individualista da ao estudo das formas de inteligência.
fase anterior uma dimensão interactiva e colectiva As circunstâncias pessoais reflectem, por sua
na determinação da empregabilidade. Tal significa vez, três categorias de factores: as circunstâncias fa-
que a empregabilidade individual é condiciona- miliares, como por exemplo, a necessidade de cui-
da pelas regras de funcionamento do mercado de dar de crianças ou de idosos, a cultura de trabalho
trabalho, pelas dinâmicas dos ciclos económicos e traduzida no modo como o trabalho é ou não enco-
depende, igualmente, da empregabilidade dos res- rajado no contexto familiar, no grupo de amigos ou
tantes membros do grupo profissional de pertença. na comunidade de pertença e o acesso aos recur-
Estas abordagens do conceito de empregabili- sos sejam eles os que permitem a mobilidade física
dade, bem como a sua centralidade na sociedade (transportes), os que permitem o acesso ao consu-

sísifo 2 | antónio josé almeida | empregabilidade, contextos de tr abalho e funcionamento do mercado… 53


mo (capital financeiro) ou que permitem o acesso a das empresas” (Saint­‑Germes, 2004, p. 1889). Ao
informação e grupos de status (capital social). exigir a aprendizagem da mudança, a construção
Por último, os factores externos estão associados da empregabilidade transforma­‑se numa prática
às dinâmicas do mercado de trabalho quer em ter- de gestão de recursos humanos capaz de sustentar
mos quantitativos quer qualitativos, às tendências processos de inovação técnica e organizacional in-
macroeconómicas, às formas contratuais, às con- dispensáveis à competitividade moderna.
dições de trabalho e às políticas de recrutamento Para promover os processos de aprendizagem
das empresas. Estes factores externos reflectem, em individual e/ou colectiva as organizações dispõem
grande parte, os mecanismos de regulação do mer- de dois instrumentos privilegiados: as políticas de
cado de trabalho bem como as políticas de gestão formação profissional e as formas de organização
de recursos humanos por parte das empresas. do trabalho.
Pensar a empregabilidade a partir de uma abor- Relativamente ao primeiro instrumento, ao
dagem interactiva, como nos propõe Gazier, e adoptarem políticas estruturadas de formação pro-
multidimensional, como nos propõem McQuaid e fissional, as organizações não só estão a reforçar
Lindsay, assume particular relevância não só pelo a sua capacidade competitiva, dado que à luz da
seu intrínseco potencial heurístico mas também teoria do capital humano tal implica um aumento
porque nos permite discutir o papel dos contextos da produtividade do trabalho, mas também estão
de trabalho na promoção da empregabilidade dos a promover um maior comprometimento dos tra-
indivíduos. balhadores com a organização, ao valorizar as suas
competências num quadro de potencial mobilidade
profissional.
O papel dos contextos de trabalho Contudo, esta relação aparentemente virtuosa
na construção da empregabilidade apresenta algumas limitações decorrentes dos dife-
rentes níveis de investimento na formação, da exis-
Contribuindo para explicar uma parte da emprega- tência de mecanismos de discriminação no acesso
bilidade individual, dado que “também as empresas à formação e das opções quanto às modalidades de
contribuem para a construção da empregabilidade” formação privilegiadas.
(Gazier, 1990, p. 583), os contextos de trabalho têm Vários são os autores que, recorrendo às mais
vindo a merecer uma atenção crescente por parte diversas fontes estatísticas, chamam à atenção para
dos investigadores devido à crescente diferenciação os desfasamentos que se verificam no investimento
das políticas de gestão de recursos humanos com o em formação quer entre países quer entre empre-
intuito de procurar novas vantagens competitivas sas. Daqui decorre que, existindo uma relação en-
no quadro de um paradigma técnico­‑económico tre empregabilidade e investimento em formação,
(cf. Freeman & Soete, 1987) fortemente associado a sua promoção é desde logo marcada pelos dife-
ao desenvolvimento tecnológico em geral, e em par- rentes contextos nacionais bem como pelo tipo de
ticular, ao papel que têm vindo a assumir as tecno- empresa em que o trabalhador está inserido.
logias de informação. No que respeita à segunda variável, discrimi-
Este novo paradigma técnico­‑económico coloca nação no acesso à formação, constata­‑se que certos
no centro do debate a importância dos modelos de grupos sócio­‑profissionais são confrontados com
competitividade dinâmica baseados na capacidade barreiras materiais e simbólicas quando chega a
de inovação ao nível dos processos produtivos, dos hora de aceder à formação. Estão neste grupo as
produtos e da base organizacional (cf. Rodrigues, mulheres, os menos escolarizados, os trabalhado-
1991). res em fim de vida profissional útil, os que estão na
Face a este contexto, a construção da emprega- base da hierarquia profissional, entre outros.
bilidade deixa de ser um problema estritamente in- Por último, importa referir que as opções em
dividual ou dos poderes públicos para passar a ser função das modalidades de formação assumem um
igualmente uma responsabilidade das organizações papel particularmente importante na medida em
transformando­‑se numa “verdadeira política social que nem toda a formação permite a sustentabilida-

54 sísifo 2 | antónio josé almeida | empregabilidade, contextos de tr abalho e funcionamento do mercado…


de do desenvolvimento de competências passíveis repensar o papel da formação profissional ao longo
de garantir a empregabilidade, num contexto mar- da vida, transformando­‑a num “processo de produ-
cado pela importância da inovação e pela volatilida- ção de si” (Canário, 2001, p. 15), remete­‑nos para o
de dos empregos. desenvolvimento de uma empregabilidade baseada
Nesta óptica, sendo a empregabilidade um pro- no trabalhador enquanto “profissional reflexivo”
cesso sustentado por uma aprendizagem perma- (Schon, 1987).
nente orientada para o longo prazo, a aposta no de- É neste contexto que emergem as potencialida-
senvolvimento de capital humano específico ou de des do conceito de organização qualificante enten-
capital humano geral (Becker, 1964) ou, como re- dido como “um modelo global de desenvolvimento
fere Boyer (2000), de competências específicas por dos recursos humanos no qual todos os trabalhado-
contraposição a competências transversais, assume res tomam parte nas experiências diárias de apren-
particular importância. dizagem” (Stahl et al., 1993, p. 11) ou, na proposta
A opção entre ambos os modelos parece forte- de Peter Senge (1993), de “learning organization”
mente condicionada pelos riscos que lhe estão as- entendida como a organização onde os trabalha-
sociados criando um dilema organizacional entre dores se desenvolvem constantemente aprendendo
o comprometimento e a desimplicação, principal- como se aprende.
mente se tivermos em conta que a “promoção da As organizações baseadas no primado da quali-
empregabilidade dos trabalhadores também au- ficação dos seus actores assentam em três caracte-
menta a probabilidade de estes deixarem a empresa rísticas básicas (Terssac, 1994):
antes do investimento em capital humano gerar re- • São organizações em que se torna possível ge-
torno” (Kluytmans & Ott, 1999, p. 269). Contudo, rir a incerteza própria de sociedades em mutação,
este risco é tanto mais provável quanto menos inte- opondo­‑se por isso às organizações prescritivas
grada for a política de gestão de recursos humanos como são as tayloristas que pressupõem a existên-
da organização. Ele deve ser avaliado, segundo os cia de ambientes estáveis;
mesmos autores, tendo em conta as consequências • São organizações dominadas por sistemas de
organizacionais da estagnação profissional da gene- comunicação horizontal entre os diferentes serviços
ralidade dos trabalhadores. e os diferentes centros de decisão, por oposição às
Relativamente ao segundo instrumento de pro- organizações dominadas por sistemas de comuni-
moção da aprendizagem, as formas de organização cação vertical centrados num único pólo de decisão
do trabalho, estão por demais ilustradas as limita- e de produção de valores;
ções dos modelos tradicionais, de base taylorista, • São organizações nas quais os seus membros
na criação de condições de aprendizagem sendo dispõem de autonomia e de capacidade de iniciati-
mesmo, nas sociedades contemporâneas, um ins- va para tomar decisões relativas ao trabalho a rea-
trumento de regressão cultural para trabalhadores lizar.
que se apresentam cada vez mais escolarizados (cf. A adopção do modelo de organização qualifi-
Kovacs & Castillo, 1988). cante torna­‑se, por isso, numa opção capaz de pro-
Por isso, a adopção de formas de organização mover o desenvolvimento da empregabilidade indi-
do trabalho mais participativas e potenciadoras de vidual, tanto interna como externa, na medida em
condições de aprendizagem parecem fundamentais que tende a valorizar o desenvolvimento de com-
na medida em que “o trabalhador enquanto actor petências que colocam os trabalhadores no papel
deve ser capaz de ir além do trabalho prescrito” de actores fundamentais dos processos de mudança
(Saint­‑Germes, 2004, p. 1899) o que se torna tão (Villeval, 1993) através da promoção da flexibiliza-
mais importante quanto “aprender ocorre especial- ção do espaço organizacional (Iribarne, 1984).
mente no próprio local de trabalho” (Kluytmans & Em síntese, as organizações qualificantes pa-
Ott, 1999, p. 267). recem representar uma oportunidade indiscutível
A revalorização epistemológica da experiência, para manter e aumentar a empregabilidade particu-
que está subjacente às novas formas de organização larmente de trabalhadores que, de outra forma, fa-
do trabalho e que arrasta consigo a necessidade de cilmente seriam excluídos do mercado de trabalho

sísifo 2 | antónio josé almeida | empregabilidade, contextos de tr abalho e funcionamento do mercado… 55


(Lopes, 2000), em consequência de processos de Gráfico 1
reestruturação organizacional que apelam a com- Acesso dos trabalhadores à formação por países
petências de uma nova geração, próprias da socie- Entre todos os W's Entre os w's das empresas c/ fp

dade do conhecimento. 70

60

50

Algumas especificidades estruturais do mer- 40

30

cado de trabalho português 20

10

Analisar as potencialidades dos contextos de tra- Se Dn Fin RU Fr Ir Hol Be Lu Al Au Esp Pt Gr

balho na construção da empregabilidade no qua- Fonte: Thérry et al., 2002

dro das dimensões até aqui referidas — políticas de


formação profissional e formas de organização do A este cenário acresce a elevada discrimina-
trabalho — implica, no contexto português, ter em ção no acesso à formação para certas categorias
conta alguns elementos estruturais que configuram de trabalhadores nomeadamente (DGEEP, 2005):
a sua especificidade no quadro do espaço político e mulheres, trabalhadores com baixa escolaridade,
económico em que o país se integra. trabalhadores em fim de vida profissional útil e tra-
Dominado por um paradigma de competitivida- balhadores da base da hierarquia profissional.
de historicamente baseado na mão­‑de­‑obra barata e Por último, as modalidades de formação privile-
num padrão de especialização produtivo assente em giadas parecem orientar­‑se para o desenvolvimento
mão­‑de­‑obra intensiva (cf. Rodrigues, 1991), em Por- de competências específicas como é referido num
tugal têm vindo a emergir algumas ilhas de inovação dos mais recentes e completos estudos empíricos
mais marcantes pelos seus efeitos de demonstração realizado em Portugal (Caetano, 2000, p. 295).
do que pelos seus impactos estruturais sobre o mo- Nele se conclui que: “as empresas se preocupam
delo dominante de organização económica e social. sobretudo com o aumento das competências que
As explicações para esta realidade são certa- correspondem às suas necessidades de curto prazo
mente múltiplas e passam também pelas políticas e não tanto com o desenvolvimento das capacida-
de gestão de recursos humanos das organizações des e o aumento das qualificações dos empregados
que, apesar dos discursos modernizadores, pou- enquanto profissionais”.
co parecem orientar­‑se para romper com o quadro No que respeita às formas de organização do
descrito, colocando­‑se antes ao serviço da reprodu- trabalho, em Portugal é inequívoco o predomínio
ção de um modelo de gestão socioeconómica histo- do modelo taylorista em que “o conteúdo da activi-
ricamente datado. dade de trabalho só permite a aquisição de saberes
Como refere Helena Lopes (2000, p. 239) nas práticos, o que indica aprendizagens pobres” (Lo-
conclusões de um estudo empírico sobre a realidade pes, 2000, p. 236).
portuguesa, “os recursos humanos são reconheci- Tal não significa, contudo, que não possamos
dos por todas as empresas como sendo um factor de encontrar modelos organizacionais neotayloristas,
competitividade, mas a maioria dos dirigentes tem centrados na valorização de algumas elites profis-
dificuldade em reconhecer, gerir e potenciar o capi- sionais, e pós­‑tayloristas, marcados pela participa-
tal de conhecimentos acumulado pelas pessoas”. ção, interna e generalizada a toda a organização,
No campo das políticas de formação profis- nos processos de decisão e resolução de problemas,
sional, se exceptuarmos um reduzido número de no desenvolvimento e experimentação de novos
empresas de grande dimensão que operam em sec- procedimentos e na adopção de novas formas de
tores mais expostos à concorrência internacional, trabalhar.
constata­‑se um fraco comprometimento quer com a É nestes modelos pós­‑tayloristas, que em Por-
promoção de formação profissional (gráfico 1), quer tugal apenas são adoptados por uma minoria de
com a estrutura institucional que configura o siste- organizações, que se enquadram as organizações
ma nacional de formação profissional (cf. Aventure qualificantes as quais “constituem, a longo prazo,
et al., 1999; Almeida, 1995). a garantia possível de uma adequação às novas con-

56 sísifo 2 | antónio josé almeida | empregabilidade, contextos de tr abalho e funcionamento do mercado…


dições de competitividade assim como representam cepções de empregabilidade individual e de empre-
uma oportunidade única para manter e aumentar a gabilidade interactiva.
empregabilidade de muitos trabalhadores” (Lopes, Tal facto decorre das condicionantes estruturais
2000, p. 242). em que o país se move, marcado pelo défice de es-
Neste contexto, a importância das organiza- colarização de uma parte significativa da população
ções qualificantes é tanto maior quanto Portugal e por políticas de gestão de recursos humanos pou-
se caracteriza pelos baixos níveis de escolarização co valorizadoras do capital humano.
da sua população activa — mais de 60% dos traba- Nesta perspectiva, assume particular relevância
lhadores por conta de outrem não têm mais do que o modo como os contextos de trabalho se configu-
o 9º ano de escolaridade — e pelo elevado núme- ram para potenciar ou condicionar o desenvolvi-
ro de jovens que não conclui o ensino secundário mento profissional de uma mão­‑de­‑obra estrutural-
— mais de 50% dos jovens que nele ingressam não mente desqualificada face às exigências da compe-
o concluem. Para esta população, o contexto de titividade moderna.
trabalho configura­‑se como o espaço privilegiado, Generalizar políticas de formação profissional
se não mesmo único, de construção da sua empre- orientadas para o desenvolvimento integrado de
gabilidade. competências específicas e de competências trans-
versais e adoptar formas de organização do traba-
lho progressivamente mais enriquecedoras, parece
Conclusão ser uma estratégia adequada ao reforço da emprega-
bilidade. Tal estratégia permitirá evitar a exclusão
A adopção do conceito de empregabilidade para duma massa de trabalhadores que, inevitavelmen-
compreender algumas das dinâmicas do mercado te, apresentam maiores dificuldades em se adaptar
de trabalho português parece apresentar um po- ao novo contrato social que pretende substituir o
tencial heurístico limitado se tivermos em conta as primado do emprego para a vida pelo primado da
lógicas diferenciadas que estão subjacentes às con- empregabilidade para a vida.

sísifo 2 | antónio josé almeida | empregabilidade, contextos de tr abalho e funcionamento do mercado… 57


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58 sísifo 2 | antónio josé almeida | empregabilidade, contextos de tr abalho e funcionamento do mercado…


s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 issn 1646 ‑4990

E se a melhoria da empregabilidade
dos jovens escondesse novas formas
de desigualdade social?

Natália Alves
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa
nalves@fpce.ul.pt

Resumo:
O termo empregabilidade tem vindo a impor-se como uma categoria universal de análise
do mercado de trabalho, como um referente hegemónico das políticas de emprego e,
mais recentemente, das políticas educativas. A sua introdução nos discursos educativos
oficiais corresponde a uma alteração no paradigma por que se têm orientado as políticas
sociais e inscreve-se numa lógica de individualização e responsabilização individual e na
tendência crescente para a privatização dos problemas sociais. Mas a empregabilidade le-
gitima, também, o reforço das fileiras profissionalizantes destinadas a todos e de medidas
específicas destinadas a alguns: aos jovens das classes populares, com trajectórias escola-
res de insucesso e em risco de abandono escolar. Neste artigo, pretendemos demonstrar
que, em Portugal, a profissionalização do sistema educativo é o resultado de uma polí-
tica voluntarista do Estado que não encontra eco num tecido empresarial que continua
a apostar nos baixos custos da mão-de-obra como factor de competitividade ao mesmo
tempo que relega para um plano secundário a discussão do seu papel na (re)produção
social e na criação de formas “doces” de exclusão.

Palavras-chave:
empregabilidade, desigualdades sociais, formação inicial e inserção profissional.

Alves, Natália (2007). E se a melhoria da empregabilidade dos jovens escondesse novas formas de
desigualdade social? Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 59‑68.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

59
Introdução trar que em Portugal a profissionalização do sistema
educativo é o resultado de uma política voluntarista
A introdução da palavra “empregabilidade” nos do Estado que não encontra eco num tecido empre-
discursos políticos corresponde a uma mudança sarial que continua a apostar nos baixos custos da
de paradigma que importa esclarecer antes de ana- mão-de-obra como factor de competitividade ao
lisar a forma como o sistema educativo português mesmo tempo que relega para um plano secundário
responde ao que tem vindo a ser identificado como a discussão do seu papel na (re)produção social e na
a necessidade de aumentar a empregabilidade dos criação de formas “doces” de exclusão.
jovens. Colocar a empregabilidade no centro das
políticas educativas corresponde a uma mudança no
debate sobre a educação e sua relação com a socie- Algumas considerações em torno do
dade em geral e a economia em particular. Até às cri- conceito de empregabilidade
ses dos anos setenta, a educação era concebida como
um instrumento fundamental para diminuir as desi- O termo empregabilidade tem vindo a impor-se
gualdades sociais e como uma condição indispen- como uma categoria universal de análise do mer-
sável para assegurar o crescimento económico. O cado de trabalho, como um referente hegemónico
aumento do desemprego, em particular do desem- das políticas de emprego e, mais recentemente, das
prego juvenil, traz para a agenda política a discus- políticas educativas. Como muitas outras palavras
são sobre o seu papel no combate a este fenómeno hoje em voga1, também esta é objecto de um consen-
e está na origem da profissionalização dos sistemas so semântico generalizado que dispensa, à partida,
educativos. A introdução recente do termo empre- qualquer tipo de definição. No entanto, este con-
gabilidade nos discursos educativos corresponde a senso é apenas aparente. A polissemia da noção de
uma alteração no paradigma por que se têm orien- empregabilidade está patente nas diferentes defini-
tado as políticas sociais e inscreve-se numa lógica ções produzidas no campo científico, nos usos que
de individualização e responsabilização individual decorrem da sua utilização enquanto categoria de
e na tendência crescente para a privatização dos pro- acção das políticas de emprego2 e nos significados
blemas sociais. Mas a empregabilidade legitima, que lhe são atribuídos, por exemplo, nos documen-
também, o reforço das fileiras profissionalizantes tos produzidos no âmbito da Comissão Europeia e
destinadas a todos e de medidas específicas desti- da OCDE3. Os objectivos que orientam a nossa re-
nadas a alguns: aos jovens das classes populares, flexão levam-nos a debruçarmo-nos exclusivamente
com trajectórias escolares de insucesso e em risco sobre a genealogia do conceito e os seus significados
de abandono. Neste artigo, pretendemos demons- científicos, seguindo de perto os trabalhos de Gazier

60 sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas…
(1990, s/d). Este autor identifica sete noções diferen- te numa lógica que se organiza em torno da ideia
tes de empregabilidade: empregabilidade dicotómi- de défice de aptidões. Em contrapartida, a empre-
ca, empregabilidade sócio-médica, empregabilidade gabilidade fluxo, de origem francesa5, apresenta-se
como política da força de trabalho, empregabilidade como uma alternativa às abordagens individualistas
fluxo, empregabilidade como performance esperada centradas na oferta de trabalho, dominantes até en-
no mercado de trabalho, empregabilidade de inicia- tão. A empregabilidade à francesa, como a designa
tiva e empregabilidade interactiva. Gazier (1990), focaliza-se nas condições globais da
A empregabilidade dicotómica tem origem no procura de trabalho. Ela corresponde às probabili-
início do século XX nos Estados Unidos e na Grã- dades diferenciais de saída do desemprego, segun-
Bretanha e era usada, pelos serviços públicos, para do as características sócio-demográficas clássicas e
classificar as pessoas que se apresentavam no mer- as condições gerais da economia. Esta concepção
cado de trabalho ou solicitavam assistência pública de empregabilidade, que contempla ainda dois ti-
em duas categorias: os empregáveis e os “inempre- pos conceptualmente distintos – empregabilidade
gáveis”. A primeira categoria englobava todos aque- média6 e empregabilidade diferencial7 - toma como
les que podiam ou queriam trabalhar; a segunda unidade de análise o grupo de desempregados e
integrava os que não podiam trabalhar em virtude não o desempregado individual. Ao colocar a tó-
de constrangimentos vários sendo, por isso, candi- nica nos determinantes colectivos do desemprego,
datos a beneficiários da segurança social. Na práti- esta concepção de empregabilidade estabelece uma
ca, tratava-se, nas palavras de Gazier (s/d, p. 10) de rotura com a perspectiva psicologizante de pendor
um “instrumento elementar de partição dos pobres deficitário que enforma as outras noções para se
e de gestão de uma situação de urgência”. inscrever numa perspectiva sócio-económica que
Os anos cinquenta e sessenta definem tempo- tem em conta os ciclos económicos e a forma como
ralmente a emergência de três novas noções de os modos de regulação dos mercados de trabalho
empregabilidade que têm em comum uma aborda- afectam, diferenciadamente, categorias distintas de
gem quantitativa dessa mesma empregabilidade, trabalhadores.
mantendo intacto o grupo social de referência: os A partir dos anos oitenta, desenvolvem-se três
desempregados4. A empregabilidade sócio-médi- novas formulações do conceito de empregabilida-
ca é a primeira a surgir, nos anos cinquenta, nos de. O aumento do desemprego conduz à criação de
Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na Alemanha um vasto número de medidas e de programas no
e pretende medir, através da aplicação de baterias quadro das políticas públicas de emprego. Neste
de testes, a distância entre as características físicas, novo contexto, a empregabilidade transforma-se,
cognitivas e mentais de quem procura emprego e os segundo Barbier (2000), numa categoria de acção
requisitos associados a um determinado emprego. dos organismos e dos operadores das políticas de
A empregabilidade como política da força de tra- emprego, no quadro da gestão do desemprego de
balho, desenvolvida nos Estados Unidos, a partir massas e num indicador para avaliar a sua eficácia.
dos anos sessenta não é mais do que uma exten- A empregabilidade como performance esperada no
são da empregabilidade sócio-médica. A avaliação mercado de trabalho surge, assim, como uma noção
das distâncias entre os requisitos associados a um descritiva, usada internacionalmente, para avaliar
determinado emprego e os atributos individuais, o sucesso ou fracasso de uma medida de política
incorpora, agora uma outra dimensão: a aceitabili- de emprego ou de formação8, através do cálculo do
dade social. Nesta perspectiva, a empregabilidade tempo dispendido até à obtenção de um emprego,
designa, segundo Gazier (1990, p. 579) “a atracti- do número de dias de permanência nesse emprego
vidade de um indivíduo aos olhos de um emprega- e da remuneração auferida. Esta noção de emprega-
dor, apreciada através dos resultados dos testes que bilidade, de cariz marcadamente instrumental, é si-
combinam a avaliação de aptidões e de comporta- nónimo da “capacidade para obter um rendimento
mentos e privilegiam a integridade profissional”. no mercado de trabalho” (Gazier, s/d, p. 11).
Comum a estas duas noções está uma concepção Nos finais da década de oitenta, surgem duas
estritamente individual da empregabilidade, assen- outras noções de empregabilidade que, uma vez

sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas… 61
mais, reflectem a querela que opõe os que defen- que “a interactividade, supostamente no centro do
dem uma análise da empregabilidade que tome em conceito, parece estar a ser substituída por um en-
linha de conta as dinâmicas sócio-económicas e os foque singular no indivíduo e no que pode ser de-
que a concebem como um atributo individual, qua- signado por ‛competências de empregabilidade’”.
se ontológico. A empregabilidade de iniciativa ins- A crítica à hegemonia que a concepção individual
creve-se, precisamente, nesta última tendência que da empregabilidade tem vindo a assumir é também
tem sido dominante e que ganha um novo fôlego partilhada por sociólogos como Charlot e Glassman
com a difusão da ideologia neoliberal em particu- (1998) e Ebersold (2001). Para estes autores, esta
lar nos Estados Unidos e no Reino Unido. Definida hegemonia inscreve-se num processo mais geral de
por Gazier (s/d, p. 11) como “as capacidades indi- individualização e de responsabilização individual
viduais para ‘vender’ as qualificações no mercado a que se referem numerosos sociólogos (Beck, 2001;
de trabalho”, esta concepção coloca uma vez mais Dubet & Martucelli, 1996; Ehrenberg, 1991, 1995;
a tónica no trabalhador individualmente conside- Giddens, 2001) e que tem como corolário o que
rado. Trata-se, como o mesmo autor defende, de Wallace e Kovatcheva (1998) designam por uma
desenvolver a criatividade e a responsabilidade in- crescente privatização dos problemas sociais.
dividuais e a capacidade para construir e mobilizar Desde sempre associada à questão do desem-
os recursos sociais, indispensáveis para manter um prego, a empregabilidade individual assume agora
emprego ou para obter um novo. Aos trabalhadores uma nova centralidade face à necessidade de gerir
não lhes basta, como há algumas décadas atrás, rea- um desemprego estrutural de massas e à incapa-
lizar as tarefas que lhes são exigidas. Eles têm agora cidade e impossibilidade dos governos nacionais
de se investir objectiva e subjectivamente no traba- para criar emprego. Sem poderem intervir direc-
lho, de adquirir capacidades de empregabilidade tamente sobre a oferta, eles vêem o seu campo de
vendáveis no mercado de trabalho, de se tornar em- intervenção reduzido a acções que incidem quase
presários de si. A empregabilidade de iniciativa é, exclusivamente sobre o lado da procura, quer sob
assim, uma característica de indivíduos atomizados a forma de políticas de emprego quer de educa-
e flexíveis, capazes de se deslocar entre empregos, ção-formação. Actuar sobre a melhoria da empre-
num mercado de trabalho cada vez mais desregula- gabilidade individual surge como a única resposta
do. A empregabilidade interactiva, por seu turno, é política possível, no quadro do ideário neoliberal,
originária do Canadá e, embora mantenha a ênfase para gerir um desemprego de massas que assume
no indivíduo e nas suas capacidades, admite que contornos paradoxais. Ele é concomitante com o
a empregabilidade individual não pode ser disso- aumento generalizado das qualificações escolares
ciada dos modos de funcionamento do mercado de (Beck, 2001; Canário, 2005; Castel, 1999); atinge
trabalho. Neste sentido, a empregabilidade não é não só os detentores de baixos níveis de habilitação
um estado, mas um processo que se constrói na in- escolar, mas também os mais qualificados dos qua-
teracção entre as estratégias e os recursos individu- lificados e, deixa de ser o resultado da ausência de
ais, por um lado, as dinâmicas macro-económicas e crescimento económico para se tornar inerente ao
as estratégias empresariais, por outro. próprio modelo de crescimento económico, como
No entanto, apesar de existir um consenso for- Boltanski e Chiapello (1999) tão bem demonstra-
mal em torno da concepção interactiva da empre- ram e os lucros das grandes empresas nacionais e
gabilidade, e de no campo científico se desenvolve- multinacionais não param de confirmar. A aceita-
rem abordagens que operacionalizam as diferentes ção da inevitabilidade do desemprego como con-
dimensões deste conceito9, o que é um facto é que, dição indispensável ao crescimento das economias
o aumento do desemprego, o seu carácter estrutu- nacionais e das taxas de lucro das empresas vai a
ral e a consolidação do pensamento neoliberal têm par com a difusão de um discurso que não cessa de
contribuído para a manutenção e mesmo para o “culpabilizar as vítimas” e onde a empregabilidade
reforço da perspectiva individual da empregabili- é o termo que lhe confere a necessária legitimidade
dade. McQuaid e Lindsay (2005, p. 205) referem- científica e que ofusca os interesses, estruturalmen-
se, precisamente a esta tendência, quando afirmam te antagónicos, entre capital e trabalho. Com efeito,

62 sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas…
explicar o desemprego por via, exclusiva, da ausên- intacto o processo de recrutamento e formação das
cia de competências de empregabilidade é ocultar elites nacionais11. Via de escolarização por excelên-
os efeitos sociais e económicos desta nova fase de cia das classes populares, o ensino técnico é extinto
acumulação capitalista. Assim, num contexto onde na segunda metade da década de setenta, fruto da
impera a penúria de emprego e uma crescente flexi- revolução em curso e do movimento de unificação
bilização da relação salarial, colocar o ónus do de- do ensino que esteve na origem do collège em Fran-
semprego nos desempregados e explicá-lo por via ça e da comphreensive school no Reino Unido.
da sua reduzida empregabilidade é mistificar um O início dos anos oitenta marca um novo ciclo
problema, por definição complexo, cuja resolução nas políticas educativas em Portugal e uma alte-
não se compadece nem com medidas compensató- ração na forma de conceber o papel da educação.
rias nem com medidas paliativas. Se até às crises económicas dos anos setenta, a
educação era entendida como um instrumento no
combate às desigualdades sociais e uma condição
Aumentar a competitividade, ­combater indispensável para assegurar o crescimento econó-
o desemprego e a exclusão social, mico, com o aumento do desemprego juvenil vê-se
melhorar a empregabilidade investida de um novo papel: o de contribuir para
a diminuição do desemprego. A reintrodução de
Em Portugal, o termo empregabilidade tem esta- fileiras profissionalizantes nos países onde tinham
do, principalmente reservado ao “tratamento” dos sido extintas e o seu reforço nos restantes são legiti-
desempregados, em geral, e dos desempregados de mados, do ponto de vista político, pela necessidade
longa duração em particular, sendo por isso uma de aumentar a competitividade das economias eu-
constante nas medidas de política pública de empre- ropeias e principalmente, pela necessidade de com-
go-formação, destinadas a este grupo alvo. Já no do- bater o desemprego juvenil. Fazendo tábua rasa dos
mínio educativo, a sua inclusão na retórica discursi- conhecimentos produzidos nos campos da econo-
va oficial é muito mais recente e marginal. Melhorar mia e da sociologia12, o desemprego é explicado nos
a empregabilidade dos jovens surge actualmente a discursos políticos e nalguns discursos produzidos
par de três outros grandes objectivos definidos para no campo científico como o resultado das deficiên-
a educação no nosso país: aumentar a competitivida- cias do sistema educativo que: não incute nos jo-
de, combater o desemprego e a exclusão social. Es- vens um sistema de disposições favoráveis ao traba-
tes objectivos, reiterados pelos vários governos nas lho (Furlong, 1988); não desenvolve as competên-
últimas décadas, independentemente da sua filiação cias necessárias à sua inserção na vida activa (Finn,
política, colocam no centro da agenda e do debate 1985); ministra uma formação que é acusada de ser
políticos a relação entre educação e trabalho, a qual demasiado académica e pouco relevante em termos
ganha uma actualidade renovada com a manutenção profissionais (Finn, 1984; Sherman, 1991). Portugal
do problema estrutural do desemprego. não foge a esta tendência pelo que a reintrodução
Em Portugal, esta sempre foi uma relação con- da fileira profissionalizante no nosso país ou a fle-
turbada. Materializada nos cursos do ensino técni- xibilização externa do sistema educativo, como lhe
co até à Revolução de 1974, ela foi e continua a ser chama Correia (1999), vai reproduzir os argumen-
o resultado de uma política voluntarista do Estado tos dominantes: dar resposta à necessidade de au-
com pouco eco numa classe empresarial que não mentar a competitividade da economia nacional e
privilegiava a formação profissional nem inicial nem de combater o desemprego juvenil explicado pela
contínua (Grácio, 1986)10 e que, nos dias de hoje, falta de qualificação profissional dos jovens.
continua a apostar nos baixos salários como prin- As críticas ao retorno a uma concepção instru-
cipal factor de competitividade económica. Mas ela mental e gestionária da educação fazem-se imedia-
foi também um instrumento essencial para respon- tamente sentir quer em Portugal quer nos restantes
der, a partir da década de sessenta, ao aumento da países europeus onde se assistiu a uma progressiva
procura social de educação por parte da classe mé- subordinação da educação aos interesses económi-
dia e de algumas franjas do operariado, mantendo cos. No essencial, estas críticas organizam-se em

sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas… 63
torno de três tipos de argumentos distintos: políti- e a prova de que uma educação orientada para o tra-
cos, educativos e económicos. balho, que diminua os riscos de exclusão e aumen-
Do ponto de vista político, critica-se quer a su- te a empregabilidade, é algo que se destina aos que
bordinação da educação à economia quer a concep- não possuem as competências cognitivas que lhes
ção fragmentada do actor social em que se valoriza permita seguir um curriculum “normal” e que, por
a formação do trabalhador como se este papel fosse acaso, são, na sua quase totalidade, oriundos das
autónomo relativamente ao do cidadão (Correia, Sto- classes populares e das minorias étnico-culturais.
leroff & Stoer, 1993). Critica-se ainda a deslocação Do ponto de vista económico, alguns estudos pro-
do locus da discussão do conceito de igualdade de duzidos no domínio da economia da educação, como
oportunidades do universo educativo para o mundo é o caso do trabalho realizado por Corson (1991),
do trabalho (Alves et al., 2001). A igualdade de opor- demonstram que os elevados custos indexados aos
tunidades deixa de ser uma referência central da po- cursos profissionalizantes, quando comparados com
lítica educativa sendo substituída pela igualdade de os da formação geral, não têm o retorno esperado no
oportunidades na obtenção de um emprego. que respeita ao aumento da produtividade individu-
No plano educativo, fazem-se ouvir críticas ao al concluindo que, em termos económicos, eles são
carácter socialmente discriminante destas ofertas comparáveis aos da formação geral. Outras investiga-
formativas que tendem a transformar-se em ghetos ções corroboram a tese de que este tipo de formação
habitados por jovens das classes populares marca- não aumenta as vantagens comparativas destes jovens
dos por trajectórias escolares de insucesso (Alves no mercado de trabalho. Dois estudos realizados so-
et al., 2001; Combes, 1988; Grácio, 1991; São Pe- bre a inserção na vida activa de jovens que concluíram
dro et al., 2002) o que lhes confere um estatuto de o ensino secundário (São Pedro et al., 2002) e acções
segunda oportunidade no interior do sistema edu- de formação profissional inicial (Carimbo, 2001) de-
cativo e que se perpetua no mercado de trabalho monstram que não existe uma diferença significativa
com os seus detentores a terem proporcionalmente na situação face ao desemprego, uma vez que: dos
menores oportunidades de promoção na carreira jovens que frequentaram os cursos gerais do ensino
do que os seus colegas universitários, a terem mais secundário, 18% estava desempregado; dos que fre-
probabilidades de ficar desempregados e de obter quentaram os cursos tecnológicos, 19% encontrava-se
uma menor rendibilidade dos seus diplomas (Grá- no desemprego; entre os que concluíram cursos pro-
cio, 1997; Portugal, 2004)13. O carácter socialmente fissionais a taxa de desemprego era de 15% e dos que
selectivo e, nalguns casos estigmatizante, destas concluíram acções de formação profissional inicial,
ofertas educativas foi recentemente reforçado com 17% tinha o estatuto de desempregado. Outros ainda,
a criação dos currículos alternativos e dos cursos centrados nas estratégias de recrutamento (Moreno,
de educação formação na escolaridade obrigatória. 1998) mostram que os empresários portugueses con-
Elegendo como público-alvo os jovens em risco de tinuam a privilegiar o recrutamento dos jovens menos
abandono escolar, estas modalidades, que apresen- qualificados, portadores de qualificações de nível I e
tam como objectivos combater a exclusão social e II e que a formação geral, a capacidade de aprendiza-
aumentar a empregabilidade, vêm introduzir per- gem e as capacidades motivacionais (empenhamento
cursos diferenciados no ensino básico, legitimados e esforço) e comportamentais (assiduidade, pontuali-
à luz da ideologia da inclusão (Correia, 1999). Ao dade, respeito pelas hierarquias) são critérios de se-
fazê-lo, elas estão a contribuir para a uma nova re- lecção mais valorizados do que a formação de matriz
formulação semântica da noção de igualdades de profissionalizante.
oportunidades que deixa de ter como referente um
ensino igual para todos para passar a consagrar a
ideia de um ensino diferente para capacidades di- Síntese conclusiva
ferentes. Mas estas modalidades, que se inscrevem
num processo de flexibilização interna do sistema Que conclusões retirar do que acabámos referir?
educativo (Correia, 1999), são também uma das fa- Em primeiro lugar, que em Portugal persiste um
ces visíveis da exclusão doce a que se refere Dubet modelo de especialização económica que continua

64 sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas…
a construir as suas vantagens competitivas nos bai- qualificação da mão-de-obra juvenil, e a discordân-
xos custos da força de trabalho. Em segundo lugar, cia profunda ao nível das práticas sociais concretas.
que as estratégias de recrutamento das empresas, Em quarto lugar, que os discursos e as políticas, as-
ao valorizarem o perfil motivacional e comporta- sentes na defesa de modalidades de formação pro-
mental dos trabalhadores, estão, no essencial, a fissionalizante, são marcados por uma forte carga
privilegiar a sua capacidade de se investir subjec- ideológica que tendem a resistir a todas as evidên-
tivamente no trabalho, capacidade essa que é si- cias empíricas que os colocam em causa. Em quinto
multaneamente sinónimo de empregabilidade e de e último lugar, que estamos perante discursos e po-
permeabilidade às novas formas de exploração do líticas que ocultam o papel destas modalidades de
trabalho. Em terceiro lugar, que se mantém inalte- formação na reprodução das desigualdades sociais
rável a contradição entre a política educativa e as colocando a tónica em argumentos que se preten-
estratégias empresariais, a qual se traduz na con- dem ideologicamente neutros como a competitivi-
traposição entre a coincidência dos discursos polí- dade económica, o combate ao desemprego e à ex-
ticos e empresariais, que atribuem o desemprego e clusão social e, mais recentemente, no aumento da
a reduzida competitividade da economia à falta de empregabilidade.

sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas… 65
Notas explicativas do desemprego juvenil como a teoria
do ciclo, a teoria da concorrência ou da fila, a teoria
1. Estamos a pensar, concretamente, em pala- estrutural e as teorias da segmentação do mercado
vras como exclusão social, flexibilidade ou apren- de trabalho (Cf. Giret, 2000).
dizagem ao longo da vida que são hoje uma pre- 13. Registe-se que, de acordo com dados recen-
sença constante nos discursos políticos nacionais e tes, divulgados pelo Eurostat e pela ONU, Portugal é
transnacionais e que dispensam qualquer definição entre os países da EU (15) o segundo país onde a desi-
prévia. gualdade na repartição dos rendimentos é maior. A
2. Sobre este tipo de estudos ver, por exemplo, enorme dispersão salarial registada no nosso país e
para o caso francês, o artigo de Barbier (1994), e para a elevadíssima rendibilidade individual do diploma
os Estados Unidos e o Reino Unido o trabalho de do ensino superior, a par do estigma social que acom-
McQuaid e Lindsay (2005). panha estas modalidades contribuem para explicar
3. Sobre este tipo de análise ver Pochet e Pater- a reduzida atracção que elas exercem sobre a popu-
notre (1998). lação discente.
4. Desde a sua génese que empregabilidade está
associada à privação de emprego. A empregabili-
dade é, assim, uma questão que diz essencialmente Referências bibliográficas
respeito aos desempregados.
5. Esta noção de empregabilidade tem origem no Alves, N.; Almeida, A. J.; Fontoura, M. & Al-
trabalho pioneiro de Ledrut (1966). ves, P. (2001). Educação e Formação: Análise
6. Este tipo de empregabilidade está dependente Comparativa dos sub-sistemas de qualificação
da conjuntura económica (Gazier, 1990) na medida profissional de nível III. Lisboa: OEFP.
em que a probabilidade de encontrar um novo Azevedo, J. (1999). Inserção precoce dos jovens no
emprego, quando se está desempregado, aumenta mercado de trabalho. Lisboa: MTS/PEETI.
em períodos de crescimento económico e diminui Barbier, J.-C. (1994). Le retour à l’emploi. Infor-
em conjunturas de recessão. mations Sociales, 37, pp. 121-129.
7. A empregabilidade diferencial remete para Barbier, J.-C. (2000). A propos des difficultés de
análise das desigualdades sociais e económicas que traduction des catégories d’analyse des marchés
afectam determinados grupos de desempregados e du travail et des politiques de l’emploi en contexte
que influenciam a probalidade de aceder a um novo comparatif européen. CEE, Document de tra-
emprego (Gazier, 1990). vail, 3.
8. Em Portugal, esta noção de empregabilidade Beck, U. (2001). La société du risque. Sur la voie
assume, frequentemente, a designação de taxa de d’une autre modernité. Paris: Èditions Flamma-
empregabilidade e é um dos indicadores mais uti- rion.
lizados para avaliar a qualidade e a eficácia dos cur- Boltanski, L. & Chiapello, E. (1999). Le nouvel
sos de formação profissional inicial da responsabili- esprit du capitalisme. Paris: Gallimard.
dade do Ministério da Educação e/ou do Trabalho. Canário, R. (2005). Multiplicar as oportunidades
9. Ver por exemplo a proposta apresentada por educativas. Intervenção na sessão pública de
Evans et al. (1999) apresentada no artigo de McQuaid apresentação do Programa Novas Oportunida-
e Lindsay (2005) e aquela que estes últimos autores des. Lisboa: Universidade de Lisboa, mimeo.
apresentam no referido artigo. Carimbo, S. (2001). Inserção profissional dos ex-
10. A reduzida valorização da formação conti- formandos de acções de formação profissional
nua a ser uma característica dos empresários portu- inicial. Relatório Global – 1997/98. Lisboa:
gueses, confirmada por estudos mais recentes (Aze- CIME/DGEFP.
vedo, 1999; Moreno, 1998). Castel, R. (1999). Les métamorphoses de la ques-
11. Este processo consistia na frequência do liceu tion sociale. Une cronique du salariat. Paris:
e, posteriormente da universidade. Gallimard.
12. Refiro-me concretamente às várias teorias Charlot, B. & Glasman, D. (1998). Introduction.

66 sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas…
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sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas… 67
68 sísifo 2 | natália alves | e se a melhoria de empregabilidade dos jovens escondesse novas formas…
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 issn 1646 ‑4990

Sem‑abrigo: métodos de produção


de narrativas biográficas

Susana Pereira da Silva


Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa
susana.psilva@gmail.com

Resumo:
O texto dá conta de uma investigação, ainda em pleno curso, centrada nas dinâmicas de
socialização de pessoas adultas que vivem ou viveram na rua. Na sua globalidade, ela irá
estruturar­‑se em três grandes níveis: i) um macro destinado a analisar as políticas sociais
de combate à pobreza introduzidas nos últimos vinte e cinco anos; ii) um meso que carac-
terizará as organizações que trabalham com esta população; iii) e um micro que incide
sobre dois grupos de pessoas que vivem ou viveram em situação de sem­‑abrigo. Para a con-
secução deste último nível estou a realizar entrevistas de carácter biográfico que visam
identificar as razões que conduziram as pessoas à situação de sem­‑abrigo. No presente
texto — ainda de pendor metodológico e clarificador da arquitectura teórica da investi-
gação — reflicto acerca das práticas e dos processos a considerar na recolha de material
biográfico: as questões éticas relacionadas com o acesso ao terreno, as decisões relativas
à selecção e aos encontros com os entrevistados, as dinâmicas na interacção entrevistado­
‑entrevistador, além de, como é evidente, discutir o papel do último na co­‑produção da
narrativa biográfica.

Palavras­‑chave:
Entrevista biográfica, Histórias de vida, Narrativa biográfica, Sem­‑abrigo.

Silva, Susana Pereira (2007). Sem­‑abrigo: métodos de produção de narrativas biográficas


Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 69‑82.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

69
Introdução data e do local onde se realizará o encontro; as di-
nâmicas que constituem a entrevista propriamente
O presente artigo decorre do trabalho desenvolvido dita; e o papel do entrevistador na produção da nar-
no âmbito do doutoramento em Ciências da Edu- rativa biográfica.
cação, na área de especialização em Formação de
Adultos. A investigação incide sobre os processos
de socialização e aprendizagem de pessoas adul- Contexto da investigação
tas que vivem ou viveram na rua (“sem­‑abrigo”)1 e
estrutura­‑se em três eixos orientadores de pesquisa: Uma investigação não é independente da pessoa
i) um nível macro, de índole documental, em que que a desenvolve e dos referenciais que possui, é um
se procura analisar as políticas sociais de combate processo pessoal de construção de um objecto de
à pobreza implementadas em Portugal a partir dos estudo e desconstrução de ideias pré­‑concebidas,
anos 90 e as directrizes emanadas pela Comunida- de formas simplistas de ver o mundo e de pers-
de Europeia; ii) um nível meso em que se pretende pectivar a realidade envolvente. A escolha do tema
realizar o levantamento e caracterização das orga- deve­‑se ao trabalho de voluntariado que realizo,
nizações que trabalham com as pessoas sem­‑abrigo em Lisboa, desde 2004 numa Equipa da Noite de
na zona de Lisboa; iii) um nível micro que incide uma Instituição Particular de Solidariedade Social
sobre dois grupos de pessoas que vivem ou viveram que se dedica à distribuição de alimentos e apoio
em situação de sem­‑abrigo. Este último nível de às pessoas sem­‑abrigo. Esta actividade permitiu­‑me
análise desenvolve­‑se a partir da realização de en- conhecer de perto algumas pessoas que vivem na
trevistas de carácter biográfico que visam identifi- rua ou em alojamentos precários ou deteriorados.
car as razões que conduziram as pessoas à situação O contacto com esta realidade é muito intenso, quer
de sem­‑abrigo, o que as levou a manter ou a alterar pelos sentimentos despertados — dor, compaixão,
essa condição e as lógicas subjacentes às decisões impotência — quer pela necessidade de procurar
de viver na rua, sair ou manter­‑se nela. compreender este fenómeno que afecta simultanea-
Neste texto procura­‑se reflectir sobre a articu- mente indivíduos e grupos, que é individual, social
lação dos aspectos teóricos e práticos a considerar e global.
na recolha de material biográfico: questões éticas Se todo o conhecimento é sempre autoconhe-
relacionadas com o acesso ao terreno e aos entre- cimento, como propõe Boaventura Sousa Santos
vistados; decisões relativas à selecção dos sujeitos; (2003), a investigação que está sendo desenvolvida
formulação do pedido de concessão da entrevista; parte do desejo de conhecer e de compreender esta
aspectos práticos relacionados com a marcação da realidade. O objecto de estudo foi sendo construído

70 sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas
tendo por base um conhecimento pessoal e directo ser participante em privado e observador em público
duma realidade complexa, um fenómeno conhe- ou participante em público e observador em privado.
cido por sem­‑abrigo que se cruza com realidades O equilíbrio entre os papéis de participante e obser-
múltiplas: pessoas a viverem nas ruas de Lisboa; vador está no cerne das ciências sociais :
instituições que se dedicam a auxiliá­‑las; organi-
zações que pretendem “reinseri­‑las na sociedade”; “… il faut être proche de ceux qui vivent leur vie,
pessoas reinseridas; e um sujeito que percepciona mais il faut aussi vivre sa vie et en même temps re-
essa realidade, a interroga e se questiona. Parale- later ce que l’on a observé. Le problème qui consiste
lamente ao processo de construção do projecto de à maintenir un bon équilibre entre ces rôles est au
investigação, houve uma grande implicação pessoal cœur même de la sociologie et, de fait, de toute science
na realidade de algumas pessoas que vivem na rua, sociale. (…) l’observateur se trouve pris, à un degrés
através de conversas mais longas e encontros mais ou un autre, dans le réseau de l’interaction sociale
frequentes que permitiram a criação de relações de qu’il étudie, qu’il analyse, et dont il rend compte”
afecto. Ignorar a influência das várias interacções (pp. 276 e 278).
com estas pessoas seria esquecer a totalidade da
“pessoa­‑investigadora”, o principal instrumento de Os vários papéis desempenhados na observação
observação e de recolha de dados numa investiga- participativa documentados e sistematizados em
ção que se pretende qualitativa. Burguess (1991) podem ser tipificados em duas ver-
tentes: um relativo à participação; e outro ao anoni-
mato do observador (Schwartz e Schwartz, citados
Ética do acesso ao terreno e em Burguess, 1991). Gold, citado em Burguess, de-
­contextualização da recolha biográfica fende a existência de um continuum entre o papel
de observador passivo, num dos extremos de um
O trabalho de voluntariado iniciou­‑se em Agosto de eixo e o de participante activo no outro extremo.
2004 e, desde Novembro do mesmo ano, acumulei Entre estas posições extremas, Gold identifica os
os papéis de voluntária com o de investigadora. O papéis de participante­‑como­‑observador e o de
relacionamento dialéctico entre estas duas activi- observador­‑como­‑participante.
dades suscitou hesitações quanto à natureza deste A duplicidade de papéis forçou­‑me a criar um
papel duplo de espia e confidente, de interessada e distanciamento entre a voluntária e a investigadora,
interesseira, fazendo­‑me sentir por vezes desmerece- pertencendo a voluntária ao mundo observado, e a
dora da confiança depositada em mim. As questões observadora ao mundo da investigação. Nos contac-
éticas, suscitadas pela duplicidade dos papéis, foram tos com o mundo das pessoas sem­‑abrigo, o papel
ultrapassadas, em parte, pelo pedido de autorização de voluntária é o papel principal que desempenho,
verbal dirigido à presidente da organização onde sou e as minhas acções, enquanto tal, são também alvo
voluntária. Mas a questão ética não se limita à auto- de observação por parte da investigadora.
rização da instituição para aceder ao terreno: como Para além da questão do papel de “agente­
explicar o meu papel duplo às pessoas com quem ‑duplo”, há uma segunda dificuldade de natureza
me relaciono quinzenalmente, que alimentam o meu ética também referida por Burguess (1991):
conhecimento e o meu diário de campo? Devem ser
informadas para que saibam que me relaciono com “… even if participant observers can overcome
elas com o duplo interesse? Até que ponto esse co- role problems that confront them in the field, there
nhecimento irá condicionar o desenvolvimento das are still unanswered questions about the ethics of
nossas relações? Como ultrapassar esta questão? reporting and publishing data that were gathered
Para Hughs (1996), o sociólogo é membro e estran- covertly” (p. 44).
geiro, membro porque participa e estrangeiro porque
observa, descreve e relata. Para ultrapassar a duplici- Desde a primeira vez em que saí com a Equipa
dade de papéis é necessário o investigador efectuar da Noite, senti necessidade de escrever um diário,
a separação e a parcialização temporal, ou seja deve inicialmente com a função de espaço e tempo de

sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas 71
verbalização de sentimentos e emoções suscitados relativa à recolha de informação biográfica de algu-
pelo contacto com a realidade das pessoas sem­ mas pessoas que vivem ou viveram na rua. A equipa
‑abrigo. Os registos foram­‑se alterando e, actual- onde sou voluntária contacta, em média, 140 pesso-
mente, utilizo­‑o como diário de campo. Os dois as por noite, o número de sacos com refeições que
anos de anotações permitem análises interessantes transportamos. Há alguma mobilidade das pessoas
sob várias dimensões: uma pessoal relativa ao meu sem­‑abrigo e, nestes dois anos de proximidade, vão
próprio percurso enquanto voluntária, do modo aparecendo novas pessoas, outras mudam de local
como superei o contacto com o sofrimento alheio, de pernoita ou de trabalho, ou mudam de vida, vol-
como sobrevivi ao que considerei serem tentativas tando para a casa de familiares ou amigos, ou ade-
de manipulação de algumas pessoas, ou como julgo rindo a programas de “reinserção”. Cada uma des-
ter ultrapassado questões relativas ao “internamen- tas pessoas tem a sua história pessoal, com interes-
to” de pessoas sem­‑abrigo e o relacionamento, por ses específicos, formas de sobrevivência distintas,
vezes ambíguo e complexo, entre a equipa técnica, relacionamentos díspares, motivações para ficar ou
as equipas de voluntários e as pessoas sem­‑abrigo; sair da rua diferentes.
outra dimensão interessante deriva das notas que Frequentemente fala­‑se das pessoas sem­‑abrigo
vou tomando sobre algumas pessoas, como nos va- como se fosse um grupo homogéneo com caracte-
mos relacionando, como se criaram os laços afecti- rísticas comuns, mas o que tenho observado con-
vos, ou como se resolveram conflitos, o diário con- traria esta ideia. Para mim, o que estas pessoas têm
tém inúmeras pequenas histórias das várias pessoas em comum, tirando a sua humanidade, é o facto
com quem me vou cruzando e se cruzam também de se deslocarem regularmente à carrinha para
com a minha própria história; outra dimensão refe- receber um saco com alimentos. Algumas pessoas
re aspectos relacionados com a organização e o fun- dormem na rua, outras têm casa e vivem com difi-
cionamento da instituição onde sou voluntária e do culdades, outras, ainda, querem apenas conversar e
meu papel enquanto coordenadora da Equipa da outras aguardam ansiosamente pelo saco pois este
Noite; por último há uma outra dimensão que relata é o único alimento que comem durante o dia. Al-
as relações com outras instituições que trabalham gumas instituições que trabalham para as pessoas
na área social, como são vistas pelas pessoas sem­ sem­‑abrigo sentem necessidade de as categorizar
‑abrigo, como se relacionam com a instituição onde em função dos “problemas” que parecem apresen-
trabalho, e foca também questões relacionadas com tar: alcoolismo; perturbações psiquiátricas; toxico-
as pressões sociais sobre as pessoas sem­‑abrigo e dependência — por considerarem ser este o modo
com a “luta” pelo poder sobre o espaço público — a mais simples de criar respostas e soluções para es-
rua. Esta última dimensão não foi visível durante o tas pessoas. Deste universo de 140 pessoas tive de
primeiro ano e meio de contacto com esta realidade, estabelecer critérios para seleccionar os entrevista-
mas actualmente tem sido uma constante no quoti- dos e novas questões éticas surgiram também. O
diano das pessoas sem­‑abrigo, quer pela interdição primeiro critério a definir tratou­‑se da construção
de ocupação de espaços onde inicialmente não ha- operatória do conceito “sem­‑abrigo”.
via impedimentos, quer pela pressão exercida por O conceito de sem­‑abrigo é ambíguo e a sua defi-
algumas instituições para o encaminhamento para nição não é oficial em Portugal e em diversos países
os albergues e o aparecimento de algumas tensões da Europa. A Federação Europeia de Associações
sobre a utilização de espaços comuns pelas pesso- que Trabalham com os Sem­‑abrigo (FEANTSA)
as “com­‑abrigo” e pelas pessoas “sem­‑abrigo”. De propôs, em 2005, uma categorização das várias for-
quem é a rua, os jardins, as paragens de autocarro? mas de exclusão relativas à habitação, e sem­‑abrigo2
é uma das quatro categorias conceptuais estabeleci-
das pela ETHOS — Tipologia Europeia sobre Sem­
Critérios para selecção dos entrevistados ‑abrigo e Exclusão Habitacional. A expressão sem­
‑abrigo é também utilizada para descrever pessoas
A investigação que está a ser efectuada tem uma di- que, para além de viverem em condições de habi-
mensão forte de trabalho de campo e, uma outra, tação imprópria, se encontram em situação defici-

72 sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas
tária a vários níveis: na sua vida privada (afectiva, ploratória da investigação foram entrevistados três
saúde); profissional (sem emprego); e/ou financei- homens: um que vive na rua há vários anos; outro
ra (Baptista, 2004; Bento, 2004; Bento & Barreto, que viveu 20 anos sem­‑abrigo e tem uma vida pes-
2002; Pereira et al., 2001). O fenómeno sem­‑abrigo soal e profissional estável há mais de dois anos; e
é geralmente associado à pobreza, considerando­‑se um terceiro que saiu da rua há cerca de um ano e se
como o escalão mais baixo da pobreza, e da “exclu- encontra em fase de “reinserção” numa das residên-
são social” (Costa, 1998). Desde os anos 80 tem­‑se cias geridas pela organização onde sou voluntária.
intensificado a investigação nesta área, inicialmente As estratégias utilizadas para solicitar a entrevista
nos Estados Unidos da América e posteriormente foram distintas nos três casos apesar de todos os
na Europa. Em Portugal, os primeiros estudos efec- sujeitos serem pessoas com quem tenho relações
tuados, datam dos finais dos anos 80. próximas.
No âmbito desta investigação, adoptei a tipolo- A primeira pessoa a ser contactada foi Sérgio,
gia ETHOS3 por se tratar de um trabalho desen- um homem conversador e amável, de 53 anos que
volvido no âmbito da FEANTSA e pela clareza das vive na rua há vários anos e arruma carros numa
categorias conceptuais e operacionais. Assim, os praça junto de uma igreja. Evitei falar com Sérgio
sujeitos seleccionados para a entrevista estão ou es- enquanto voluntária, optando por o procurar no
tiverem incluídos numa das categorias conceptuais local de trabalho. Expliquei­‑lhe que estava a estu-
constantes na ETHOS 2006: sem tecto; sem casa; dar, andava à procura de pessoas que viviam na rua
habitação insegura; habitação inadequada. Em re- para entrevistá­‑las e que gostaria de o entrevistar.
lação ao tempo em que uma pessoa é considerada Disse que sim, sem grande convicção, afirmando
sem­‑abrigo, devem ser atendidos alguns aspectos, que não se importava de me ajudar e marcámos a
nomeadamente, há quanto tempo vive numa habi- entrevista para o Domingo seguinte, à noite, no lo-
tação imprópria, ou onde está a viver na altura da cal onde dorme. Na data marcada fui à praça, levava
investigação. Há autores que consideram a pessoa o gravador, o guião da entrevista e um pacote de
sem­‑abrigo se no dia anterior ao da investigação bolachas de chocolate para lhe oferecer. Pediu des-
passou a noite na rua, num abrigo ou num local im- culpa mas nesse dia não podia ser pois tinham­‑lhe
próprio para habitar, outros se durante um deter- pedido para ficar a vigiar um carro e ele não podia
minado período de tempo, semana, mês, ou ano, dizer que não, adiámos a entrevista para a quarta­
pernoitou em locais não adequados. Adoptei o cri- ‑feira seguinte. Voltei para casa um pouco desani-
tério temporal sugerido por Marpsat (2003), sendo mada, provavelmente ele sentia receio de ser entre-
os entrevistados pessoas que viveram numa situa- vistado. No dia marcado cheguei à praça e não o
ção definida na tipologia ETHOS por um período vi. Não fiquei muito surpreendida, já tinha pensado
superior a 30 dias. que poderia não estar. Comecei a pensar noutras al-
Um outro critério estabelecido para seleccionar ternativas para o substituir. Voltei a casa e estava já
os entrevistados foi o da escolha de um idioma in- sentada ao computador para trabalhar quando me
teligível comum. As entrevistas seriam realizadas telefonaram de um número desconhecido. Era Sér-
por mim e seriam gravadas para análise posterior gio a pedir desculpa pelo atraso mas tinha tido um
e o entendimento mútuo e a necessidade de comu- compromisso. Perguntou se eu queria fazer a entre-
nicarmos com facilidade e clareza, sem o recurso a vista ainda nessa noite e que a Joana, uma amiga,
um intermediário, pareceu­‑me fundamental. iria estar connosco. Disse­‑lhe que estaria na praça
Para além dos dois critérios acima referidos, dali a um quarto de hora.
viver ou ter vivido sem­‑abrigo e comunicação in- Quando cheguei à praça vi os pertences de Sérgio
teligível, optei por entrevistar, numa primeira fase, montados na entrada do Banco, reparei que tinha a
pessoas com quem mantinha uma relação de proxi- viola, ao lado do saco­‑cama e de várias coisas. Esta-
midade, que poderiam estar disponíveis para acei- va um jipe parado junto ao Banco. Esperei um pou-
tar a entrevista e pudessem, de certa forma, ilustrar co e a jovem que estava dentro saiu, devia ser a Joa-
a diversidade de situações que conduzem as pesso- na. Apresentámo­‑nos, comentei a viola e trocámos
as a procurar abrigo na rua. Nesta primeira fase ex- algumas impressões sobre Sérgio e como se tinham

sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas 73
conhecido. Sérgio apareceu, cumprimentámo­‑nos vida na rua, ou aprofundar mais dados sobre a sua
e sentámo­‑nos. Pensava que eu era jornalista ou es- história. Continuo a ver Sérgio regularmente, uma
tava a estudar jornalismo e tinha pedido à Joana a das cassetes não estava em boas condições e quan-
opinião sobre a entrevista. Pediram­‑me se lhes dava do terminei a transcrição da entrevista imprimi o
a cassete com a entrevista e disse­‑lhes que sim, po- texto e dei­‑lhe para que pudesse usá­‑lo como qui-
dia dar a cassete ou o texto da transcrição, a Joa- sesse, soube que o ofereceu à Joana. Algum tempo
na preferia a cassete. Sérgio explicou que a Joana depois falámos sobre a entrevista, pediu­‑me para o
sabia muitas coisas da vida dele, mas ele gostaria entrevistar novamente porque tinha sido muito im-
que ela ficasse a saber mais. Ela não podia ficar a portante para ele e gostaria de conversar comigo so-
assistir à entrevista pois é voluntária numa corpora- bre a vida mais recente, ou seja, o período na rua.
ção de bombeiros e estava de serviço naquela noite. O segundo entrevistado, Tomás, tem cerca de 40
Expliquei­‑lhe que estava a estudar, o quê e onde e anos e actualmente trabalha na organização onde
Sérgio ficou satisfeito por ser Ciências da Educação sou voluntária. Sabia que tinha vivido vários anos
e se tratar da Universidade de Lisboa. Expliquei su- na rua e pedi ajuda a uma pessoa que o conhece bem
mariamente qual era a questão de pesquisa, queria para o sondar e saber se estaria disposto a ser entre-
saber porque há pessoas que vivem na rua e outras vistado, explicando­‑lhe o meu interesse no assunto.
viveram e saem da rua. Sérgio falou muito antes A entrevista foi marcada várias vezes e adiada. Num
de iniciarmos a entrevista, explicou que o tinham sábado à noite conseguimos encontrar­‑nos no local
acordado na noite de segunda­‑feira e que depois onde Tomás trabalha e vive. Atrasou­‑se e iniciámos
de acordar não conseguia adormecer. Mostrou­‑me a entrevista tarde, quando terminei, cerca de uma
o telemóvel que lhe tinham oferecido, lembrei­‑me hora e meia depois, apercebi­‑me que já passava da
que tinha um cartão da TMN que nunca tinha uti- uma da manhã. A entrevista foi diferente do que es-
lizado e ofereci­‑lhe. Sérgio faz questão de mostrar tava à espera, aliás a de Sérgio também tinha sido
que não é “um coitadinho”, até me parece que não uma surpresa.
gosta nada que o tratem como tal. O terceiro entrevistado, Jorge, tem 45 anos e foi
Comecei a entrevista, disse­‑lhe que ia fazer uma a primeira pessoa que quis sair da rua com a minha
pergunta e ele respondia como quisesse, mas que o ajuda. Já lhe tinha falado várias vezes se, caso fosse
iria deixar falar à vontade dele. Ele estava sentado necessário, o poderia entrevistar. Teria muito gos-
no cartão e enfiado no saco­‑cama, eu estava senta- to em me ajudar. A primeira entrevista realizou­‑se
da na ponta do cobertor e a Joana ficou encostada num sábado, numa das visitas de Jorge a Lisboa.
à parede, de cócoras, até se ir embora. Ficou uns Encontrámo­‑nos de manhã cedo e levei­‑o para a Fa-
minutos no início da gravação. culdade, tomámos um café e subimos para uma das
A entrevista correu bem, ele “abriu o saco” e pequenas salas do sótão. Foi uma entrevista longa,
deixou sair muita coisa: as dificuldades da vida de cerca de três horas e tivemos oportunidade para
criança; o primeiro emprego com 10 anos de idade; aprofundar factos, sentimentos e emoções. Quin-
a raiva da mãe contra ele; a apetência para apren- ze dias mais tarde realizei uma segunda entrevista
der; a experiência de guerra; a vida com a mulher sobre os três anos que viveu na rua. Esta segunda
e a filha. Falei pouco e quando a história terminou, conversa foi realizada num jardim público, senta-
Sérgio disse­‑me que estava a sentir frio e tínhamos dos num banco.
de parar. Desliguei o gravador, conversámos mais Os três entrevistados acederam a conversar co-
um pouco. Sentia­‑me uma intrusa ou abusado- migo, permitiram­‑me gravar as suas histórias e a
ra — ele tinha­‑me confiado pedaços da vida e dos todos prometi o texto transcrito. Tenho mantido
sentimentos sem me pedir nada em troca. Agradeci­ contactos regulares com todos eles e é curioso refe-
‑lhe a confiança que tinha depositado em mim e fui rir que os três gostaram muito da entrevista, sentem
embora silenciosa. Ficaram muitas perguntas por que me ajudaram e que foi uma experiência interes-
fazer, as que se referiam à organização da vida dele sante e gratificante para eles e para mim.
na rua. Mais tarde teria de resolver a questão, fazer
uma nova entrevista mais centrada nos aspectos da

74 sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas
Percurso biográfico tentes, permitiram a compilação e disseminação de
conhecimentos sobre os processos de formação dos
Sobreviver na rua, num espaço público, implica adultos, tendo por base as suas vidas. Esse corpo
uma grande capacidade de adaptação a novas si- de conhecimentos é de grande riqueza, pois através
tuações práticas e sociais. As crianças educadas da análise das histórias de vida e da singularidade
nas sociedades ditas desenvolvidas não aprendem de cada percurso de formação é possível identificar
a viver na rua. Do mesmo modo, os espaços urba- algumas regularidades, por exemplo: momentos
nos não foram concebidos e construídos para alojar importantes; situar os ambientes sociais; as pessoas
pessoas. Quem utiliza a rua como espaço para viver influentes. Dominicé (1996) afirma que “a biografia
tem de passar por um processo de aprendizagem. educativa é sempre uma interpretação da vida adul-
Assim, importa compreender quais os processos ta” (p. 75) e acredito que esta área de investigação
subjacentes à socialização e às aprendizagens dos nos pode fornecer pistas pertinentes para compre-
adultos. Estes conceitos são atravessados pelo “ci- endermos o modo como os adultos interpretam os
clo vital” (Canário, 1998) dos indivíduos, estando seus percursos biográficos.
intimamente ligados à própria biografia. Charlot Com base no longo trabalho sobre as Histórias de
(1997) ilustra bem a relação entre a existência hu- Vida e encarando a formação do ponto de vista do
mana e os processos de aprendizagem. De acordo aprendente, Josso (1989) aponta algumas pistas de
com o autor o homem nasce inacabado e o processo reflexão e compreensão do lugar ocupado pelas ex-
de hominização obriga­‑o a aprender: periências na formação e transformação da identida-
de e da subjectividade individual. Segundo a autora
“Aprender para se construir, num triplo processo os desafios da dialéctica entre indivíduo e colectivo
de hominização (tornar­‑se homem), de singulariza- são formadores na medida em que as actividades, as
ção (tornar­‑se um exemplar único de homem), de so- situações, as interacções o forçam a reconsiderar ou
cialização (tornar­‑se membro de uma comunidade, a reconstruir ideias, soluções e comportamentos.
na qual se partilha os valores e se ocupa um lugar). Esta tensão entre o indivíduo e o colectivo confere
(...) Nascer, aprender, é entrar num conjunto de re- uma “capacidade imitava de modelos culturais e uma
lações e de processos que constituem um sistema de capacidade de orientação aberta ao desconhecido”
sentido — onde se diz quem sou eu, o que é o mundo, (p. 166). As experiências formativas tanto são as que
quem são os outros” (p. 60). alimentam a autoconfiança como as que alimentam
as dúvidas, os erros e o questionamento. Segundo a
O que significa sermos os autores da nossa vida? autora e, de acordo com a sua experiência, é difícil
Até que ponto o nosso percurso é escolhido, im- estabelecer uma correlação entre as circunstâncias e
posto, negociado, adiado ou negligenciado? Sendo os tipos de aprendizagem.
a vida de cada indivíduo uma das matérias­‑primas A tese de doutoramento de Christine Josso
para a sua auto­‑construção, a noção de percurso (1991)4 foi construída com base na sua biografia
biográfico é abordada tendo por base os trabalhos educativa. A partir da análise da sua própria narra-
desenvolvidos pelos investigadores que se têm de- tiva e de mais de 80 biografias educativas, foi pos-
dicado às Histórias de Vida enquanto processo de sível criar categorias que constituem os processos
formação. Estes estudos visam alcançar, essencial- de formação. Uma primeira categoria — “Momen-
mente, dois grandes objectivos: formar formadores; tos Charneira” — corresponde às escolhas e rup-
e investigar sobre os processos de formação, ou seja, turas feitas livremente, considerados como “saltos
responder à pergunta — como se formam os adul- perigosos e dolorosos”. Estes momentos constituem
tos? As histórias de vida têm sido utilizadas nesta verdadeiras “aprendizagens de rupturas: ruptura
dupla dimensão, como instrumento de formação e nas relações afectivas; rupturas nos modos de vida;
como metodologia de investigação. Os mais de vin- rupturas nas actividades; rupturas com os contextos
te anos de pesquisa e a existência da “segunda gera- socio­‑culturais” (p. 207). As aprendizagens realiza-
ção” de investigadores que têm utilizado as histórias das com as rupturas tornam claro que a transforma-
de vida e as biografias educativas, nestas duas ver- ção “implica tanto o abandono de certas aquisições

sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas 75
como a abertura a novas potencialidades” (p. 207). o modo como elas são vividas, apresentam­‑se como a
Estes momentos de mudança obrigaram a autora a trama da nossa existência, o lugar onde se joga a nossa
empreender actividades de adaptação ao ambiente, identidade, onde ela se define e redefine sem cessar ...]
de investigação de novas realidades, criação de no- num duplo movimento de identificação e diferenciação.
vas relações e de participação em actividades no- ... Todas as biografias, em que partilhei na elaboração
vas. Estas etapas foram de confronto com a com- ou às quais tive acesso por uma simples leitura, teste-
preensão anterior do mundo e de modos de estar e munham um ajuste dialéctico entre as exigências indi-
de integração de novas construções de sentido. viduais e os constrangimentos colectivos” (p. 214).

“Assim, o que foi formador no meu percurso, As dinâmicas encontradas por Josso foram cate-
foram as actividades, situações, acontecimentos, gorizadas em três pólos:
encontros e relações que me fizeram descobrir reali- • Autonomização/Conformismo;
dades desconhecidas até então e que me permitiram • Responsabilização/Dependência;
exercer ou adquirir qualidades, que me provocaram • Interioridade/Exterioridade.
tomadas de consciência, que interrogaram os signi-
ficados adquiridos ou criados anteriormente e me As tensões entre autonomia ou conformismo
forçaram a reelaborar o sentido” (p. 208). vivem­‑se habitualmente em relação à família de
origem, aos constrangimentos sociais; aos modelos
Josso considera dois níveis de aprendizagem, tradicionais de estilo de vida, sistemas de pensa-
um primeiro composto por quatro etapas: inicia- mento, representações sobre si e sobre as relações
ção, aquisição; manutenção; e transferência. E com os outros. As tensões entre responsabilização e
um segundo nível que surge com a acumulação dependência marcam também os percursos biográ-
de aprendizagens e advém da “capacidade de auto­ ficos: também em relação à família, grupos, relações
‑observação e de explicitação do que foi feito para interpessoais, às escolhas profissionais; tomada de
se conseguir a aprendizagem” (p. 210), este nível consciência da responsabilidade pela saúde indivi-
remete para a capacidade de aprender a aprender. dual, pelo ambiente, etc. Em relação às tensões en-
Apesar da grande diversidade de aprendizagens tre interioridade e exterioridade, Josso afirma:
que realizamos ao longo da nossa existência, Jos-
so considera quatro categorias de aprendizagens: “Todos temos uma “vida dupla” com momentos de
psico­‑somáticas; instrumentais; relacionais; e refle- tensões que emergem dessa bipolaridade da nossa exis-
xivas. Aprender exige que se saiba: tência: a nossa vida interior e a forma de viver em rela-
ção aos outros. Estas tensões nascem duma contradição
“… mobilizar os atributos físicos e psíquicos, des- entre comportamentos e ideias expressas por um lado,
cobrir as propriedades dos objectos e do ambiente, ser pensadas, sentidas e não exteriorizadas, por outro.
sensível às qualidades dos outros, para que a articu- Podem aparecer quando uma evolução interior é con-
lação entre o sujeito e os meios permitam o sucesso da trariada por condições exteriores, até então satisfató-
actividade” (p. 209). rias, por uma tomada de consciência que questiona
uma coerência interior, ou ainda nas situações em que
Na categoria, “Dinâmicas”, importa considerar desejamos evitar um conflito aberto, ou em todos aque-
as transformações inscritas na temporalidade. Es- les momentos em que os outros nos enviam uma ima-
sas transformações são sentidas como desafios que gem de nós próprios que sentimos não ter uma corres-
se colocam às pessoas e implicam uma evolução sin- pondência interior. Aqui também, os momentos de ten-
gular. Josso procurou encontrar uma categoria que são não são mais do que tempos fortes duma dialéctica
permitisse englobar as dinâmicas que conduzem à permanente ao longo da nossa existência” (p. 216).
transformação — as relações entre o individual e o
colectivo (família, grupo, sociedade alargada). A categoria “Atitudes e qualidades do sujeito” é
“As relações indivíduo­‑grupos podem ser mais ou mais difícil de definir. De acordo com Josso, as ati-
menos harmoniosas ou conflituosas, mas seja qual for tudes e qualidades do sujeito são mais salientes nos

76 sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas
momentos charneira, apesar de oscilarem com o social distinta da maior parte das outras que exerce
tempo. Nesta categoria sobressaem as ideias que o efeitos sobre os resultados obtidos. Esta interacção
indivíduo tem sobre si, entre passividade e inicia- é marcada por diferentes expectativas e papéis entre
tiva, entre considerar­‑se o autor da sua vida, sujeito os interlocutores e por distintos graus de implicação
a limites e constrangimentos, ou ver­‑se como um ser pessoal. Hughs refere a existência de códigos que
condicionado, resultado de acontecimentos que lhe permitem definir a intensidade das expectativas po-
são alheios e que determinam as suas escolhas. dendo ter vários graus, desde a imposição absoluta
até à igualdade ou neutralidade de papéis, existindo
em ambas as situações regras ou convenções, mais
A entrevista biográfica e a influência do claras e explícitas no grau máximo de intensidade
­entrevistador na produção da narrativa (normas e leis) e mais ligeiras no limite inferior.
A entrevista, enquanto uma metodologia de in-
Embora o trabalho de Josso tenha por objectivo vestigação tem sido estudada por vários autores pro-
encontrar os marcos de um percurso de formação, a venientes de diferentes campos nas ciências sociais
transposição destes marcos para os percursos de vida que se debruçam sobre as técnicas da entrevista.
é lícita e foi­‑me útil para a construção da questão ini- Para este artigo, importa essencialmente explorar a
cial da entrevista e para a condução da mesma. Foram componente relacional que se cria entre o entrevista-
construídos dois guiões de entrevista com uma ques- do e o entrevistador; e reflectir sobre a co­‑produção
tão de partida e algumas perguntas orientadoras que da narrativa biográfica. Segundo Demazière e Du-
focavam aspectos que me interessavam explorar. A bar (1999), numa entrevista de investigação biográ-
questão de partida: “O que sucedeu na sua vida que o fica cada interveniente, com papéis distintos, utiliza
conduziu a viver na rua?”, foi igual para os dois gui- a linguagem para mediar a troca de palavras e a pro-
ões e pretendia orientar a construção da narrativa bio- dução da narrativa. O entrevistado faz uma reflexão
gráfica para a selecção dos episódios mais relevantes retrospectiva e prospectiva do que é importante na
para o entrevistado, propiciando a elaboração da nar- própria vida, que os autores denominam por “tra-
rativa e os argumentos sobre o sentido ou a direcção e vail sur soi”. O entrevistador, através de uma escuta
o significado do seu percurso biográfico. activa, é co­‑produtor da narrativa:
Demazière e Dubar (1999) definem a entrevista
biográfica de investigação como uma “narrativa ou “En cherchant à comprendre, il incite à produire
conto”5 que deve suscitar “… une conduite de récit des significations, il pousse à développer des argu-
c’est à dire une mise en forme argumentée de son par- mentations, il sollicite des enchaînements, des mises
cours” (p. 226) e consiste na recordação de episó- en relation, des explicitations de formules qui lui
dios, na sua interpretação e na articulação temporal paraissent obscures” (p. 228), na medida em que ele
do passado, presente e futuro, inserindo­‑os numa participa intelectualmente e afectivamente no diá-
história com um sentido: logo que produz a narrativa. Através da introspec-
“C’est une caractéristique essentielle de la con- ção e do diálogo. “… les narrateurs ne racontent
duite de récit: l’évocation du passé implique le juge- pas leur vie mais ils mettent en scène, de manière à
ment sur le présent qui suscite l’anticipation des ave- convaincre, le sens de leur propre parcours” (Théry,
nirs possibles. Ainsi, comme le reconnaît d’ailleurs 1994, cit. in Demazière & Dubar, 1999).
Greimas, la narration est “un processus créateur de
valeurs” (p. 234). As três entrevistas foram realizadas por mim em
períodos distintos, as duas primeiras aconteceram
Hughes (1996) considera a sociologia actual em Janeiro de 2006 e a última em Maio do mesmo
como a “ciência da entrevista” em dois sentidos: ano. As três narrativas biográficas produzidas são
como instrumento preferido dos sociólogos; como muito diferentes e a forma como cada um dos entre-
o próprio objecto da sociologia — a interacção “a vistados respondeu à questão inicial indicia alguns
troca de palavras e gestos ” (p. 282). Para Bourdieu aspectos que gostaria de partilhar neste artigo: as
(1993) a entrevista é também uma troca, uma relação dimensões “produção da narrativa biográfica”; do

sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas 77
“trabalho sobre si”; e da “escuta activa” referidas 27 de Janeiro de 2006 — Entrevista Tomás
por Demazière e Dubar (1999). Para ilustrar estas
dimensões transcreve­‑se, seguidamente, o início E.: Eu vou pôr o gravador aqui mais no meio, mais
das três entrevistas: pertinho de ti. Pronto e eu faço­‑te uma pergunta
e depois tu vais respondendo. As coisas que eu não
11 de Janeiro de 2006 — Entrevista Sérgio perceber muito bem vou­‑te perguntando e assim.
Tomás: Está bom.
E.: Bom, posso fazer a primeira pergunta? Que é as- E.: Tá? Pronto, então a primeira pergunta é: — O
sim: — O que é que sucedeu na sua vida que o que é que sucedeu na tua vida que te conduziu a
conduziu a viver na rua? viver na rua?
Sérgio: Eu para lhe responder a essa pergunta, começo Tomás: O que é que me sucedeu na vida para eu vir
mesmo desde já a responder­‑lhe, mas a expressão parar ao meio da rua? Foi, hum... tudo tem um
correcta é essa... eu tenho de começar a falar de mim princípio e um conjunto de várias situações que
mesmo, daquilo que fui, daquilo que gostaria de ter me aconteceram na vida levaram a que eu... fosse
sido, daquilo que me obrigaram a ser. E não sei... mais fácil para mim, estar nas ruas, e isto numa
eu lembro­‑me de ser eu, desde que fui baptizado, até primeira fase. Depois, lógico que a médio e a lon-
me lembro de ter tratado mal o padre, porque fa- go prazo tornou­‑se foi no revés, foi o contrário.
zia muito frio e a água estava gelada. Acho que lhe E.: Como?
chamei de tudo e depois os meus pais repreenderam­ Tomás: Começou a tornar­‑se muito mais difícil estar
‑me com um par de acoites, mas foi bom, passou­‑se. nas ruas do que estar em casa. Só que ao princí-
E é sobre os meus quatro anos, mais ou menos. Tive pio era muito mais fácil estar nas ruas do que
uma infância, simples, maravilhosa, bonita, como estar em casa.
todos os miúdos, meninos e meninas têm. Gostei, E.: Mas, mas uma pessoa vai para a rua assim de
lembro­‑me muito da minha infância. Fiz a escola repente? No teu caso foi assim?
primária como todos e sempre com muito respeito Tomás: Não.
pelos professores e pelos amigos, mas sempre tão E.: Ou são várias coisas...
mau e tão bom como eles. É verdade... e uma das Tomás: São várias coisas que sucedem...
coisas que eu mais gostava de fazer era de ir à escola E.: E um dia acordas e estás na rua? Como é que é?
e dar água de beber aos burros. Tomás: Não. Foram várias coisas que sucederam.
E.: Dar água a quê? Foram problemas a nível familiar... que tinha
Sérgio: Dar água aos burros. Porque eu vivia numa uma grande instabilidade em casa... fruto de
aldeia, na aldeia onde eu nasci... problemas com irmãos, com o pai que não era
E.: Onde é que era? o meu pai, com um conjunto de... antigamente
Sérgio: Em Vera Cruz, no Alto Alentejo, no distrito vivia­‑se num regime bastante difícil, as coisas
de Évora. Mas é uma aldeia muito bonita. eram muito mais rígidas. Hoje existe...
E.: E vivia lá com os seus pais e com os seus irmãos? E.: Mas tu vivias onde? Em Lisboa?
Sérgio: Com os meus pais e com os meus irmãos na Tomás: Vivia em Lisboa...
casa dos meus avós. Na casa da minha avó que
era a pessoa mais bonita, a pessoa mais mara- 13 de Maio de 2006 — Entrevista Jorge
vilhosa que eu tive, para mim foi uma mãe! Os
meus pais sempre gostaram de mim, tanto o meu E.: Então estás de acordo com tudo? Eu vou pôr o
pai como a minha mãe. Os meus irmãos, sem- gravador aqui pertinho de ti para se ouvir me-
pre gostámos muito uns dos outros, sempre fomos lhor, está bem?
muito amigos. Depois aí sobre os nove anos... Jorge: Sim.
não, sobre os dez anos, tinha acabado de fazer a E.: E vou fazer­‑te uma pergunta e tu vais respon-
4ª classe, quando os meus pais vieram aqui para dendo e à medida que eu for tendo dúvidas, vou
a Malveira. Viemos aqui para a Malveira numa perguntando...
terça­‑feira e comecei a trabalhar numa quinta... Jorge: Ok.

78 sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas
E.: Está certo? Então vá, é só uma questão, que é, o E.: — Não estavas bêbado? Quando decidiste que não
que é que sucedeu na tua vida que te conduziu a tinhas coragem, que no fundo foi falta de cora-
viver na rua? gem, não foi?
Jorge: (Pausa) O que sucedeu na minha vida foi eu Jorge: — Foi.
não aceitar que era... não admitir que era alco- E.: — Não foi por teres bebido!...
ólico, continuar no meu alcoolismo diariamente, Jorge: — Eu ainda estava ressacado.
apesar de ter empregos, despedir­‑me dos empregos E.: — Sim, mas o que te levou a não voltar para casa,
ou às vezes ser despedido. O último emprego, por foi o quê, dizeres à senhora que tinhas feito asneira,
exemplo, trabalhava em Lisboa, chegou ao fim do não querias ter dito? (pausa) Estás a perceber?
mês, tinha um quarto alugado, o patrão em vez Jorge: — Não porque ela já me tinha avisado antes.
de me pagar o ordenado, o salário completo, só E.: — Já tinhas falhado o pagamento mais vezes?
me pagou metade. Jorge: — Porque tinha falhado uma vez, num empre-
E.: Porquê, não tinha dinheiro? go anterior e ela...
Jorge: Porque... ele disse que me dava o outro pas- E.: — O pagamento?
sado dois ou três dias, só que eu mal recebi logo Jorge: — Sim.
a metade desse salário, comprei a senha do au- E.: — Mas depois deste­‑lhe o dinheiro, ou não?
tocarro porque precisava dela porque morava... Jorge: — Dei algum dinheiro.
tinha o quarto alugado em Santo António dos E.: — Não deste todo?
Cavaleiros... Jorge: — Não, porque ela não o quis.
E.: Hum, e trabalhavas em Lisboa. E.: — Não quis porquê?
Jorge: E trabalhava em Lisboa, ali por perto da Ala- Jorge: — Porque ela, primeiro... agora já arranjaste
meda. outro emprego, porque no espaço de quatro meses
E.: Hum... tive em quatro empregos.
Jorge: E depois, numa segunda­‑feira.
E.: Ele deu­‑te o teu ordenado numa segunda­‑feira? Na dimensão “produção da narrativa biográfica”
Jorge: Não. E depois numa segunda­‑feira apanhei importa realçar que Sérgio inicia a sua narrativa com
uma bebedeira... já gastei mais... já quase a me- a história do seu percurso, ou seja, aparentemente
tade do salário que eu tinha recebido e ainda me desprezou a questão inicial, e narrou o seu “conto”
faltava o outro que era para o quarto, como não desde que tomou consciência de si próprio, seleccio-
tinha o resto do salário para o quarto, acabei nando sequencialmente os factos mais relevantes: o
por ir, por vir para a rua. Não tinha coragem de baptismo, a infância, a escola, a chegada à Malveira e
aparecer perante a senhora do quarto, tanto que o início do trabalho. Tomás tentou responder à ques-
a minha roupa ficou lá toda no quarto, ainda, tão de partida, procurando argumentos justificativos
em Santo António dos Cavaleiros, ainda lá está. das suas opções de viver na rua e posteriormente de
E.: Mas então, um dia o teu patrão disse que não te deixar a rua. A sua narrativa começa na infância e no
podia pagar o ordenado todo... contexto de vida familiar e social. Jorge começou a
Jorge: Disse que me pagava depois. entrevista com uma pausa, como se procurasse uma
E.: Sim e tu precisavas de dinheiro para pagar o única resposta que satisfizesse a minha questão. Ini-
quarto? ciou a sua narrativa, não na infância, como os dois
Jorge: Sim, precisava de dinheiro para pagar o quar- primeiros entrevistados, mas a partir do último em-
to e era fim do mês. prego que teve antes de ir viver para a rua.
E.: Sim... Na dimensão “trabalho sobre si”, e com base nos
Jorge: Como não o tinha, apanhei a bebedeira no dia textos integrais das entrevistas, os três inquiridos fize-
anterior... ram uma reflexão retrospectiva do que consideraram
E.: Mas quando tomaste a decisão... percebeste que não importante nas suas vidas e que, de certo modo, res-
tinhas coragem... ou percebeste que gastaste o dinhei- pondesse à questão inicial. Os excertos apresentados
ro e que não ias ter dinheiro para pagar à senhora... ilustram de uma forma muito ténue esse trabalho de
Jorge: — Sim. reflexão. Tomás e Jorge fizeram um esforço para res-

sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas 79
ponderem à questão inicial, logo no início da entre- presentes na elaboração dos guiões e na própria
vista, o que as tornou, no seu todo, circulares, pois o condução das entrevistas. Os excertos apresentados
início da narrativa coincide com o final. Na narrativa não permitem dar uma visão global dos três per-
de Sérgio o início da entrevista coincide com o seu cursos biográficos, da identificação dos momentos
baptismo quando era criança e o final com o momento charneira, das dinâmicas e das atitudes e qualidades
presente. O trabalho sobre si é também induzido na dos sujeitos. Fica em aberto a análise das narrativas
situação da entrevista, na interacção com o entrevista- construídas a partir de entrevistas biográficas.
dor e na interacção do entrevistado consigo próprio. As entrevistas foram marcadas previamente e to-
Em relação à “escuta activa” e ao meu papel en- dos os sujeitos tinham uma ideia, ainda que vaga,
quanto co­‑produtora da narrativa biográfica penso sobre o tema da conversa e do meu interesse pes-
que é pouco visível na narrativa de Sérgio: a sua soal neste trabalho. Acederam ao meu pedido e
história já estava contada, as minhas intervenções mostraram­‑se empenhados e dispostos a contribu-
tiveram como objectivo esclarecer frases ou con- írem com os seus conhecimentos e as suas vidas no
textualizar as situações descritas. A narrativa de meu projecto de investigação. Ainda que seja pos-
Tomás começou por ser mais argumentativa e me- sível tomar, antecipadamente, algumas precauções
nos cronológica tornando necessária uma maior in- para que a entrevista seja bem sucedida, cada en-
tervenção da minha parte, no sentido de procurar contro é um acontecimento único e em directo, as
o suporte das suas razões no seu percurso pessoal. decisões são tomadas com base na experiência ante-
Na entrevista de Jorge, creio que assumi um papel rior do investigador e nos interesses da investigação.
mais activo enquanto entrevistadora, uma vez que o Foi dada uma grande liberdade aos entrevistados
seu discurso era bastante argumentativo, parecendo para narrarem os seus percursos; no entanto a nar-
procurar razões que esclarecessem a questão inicial rativa assim recolhida é sempre um trabalho conjun-
ou confirmassem a sua justificação inicial. to de construção de um “conto”, porque, ainda que
o entrevistador assuma uma escuta mais passiva do
que activa, as questões que coloca, os comentários
Conclusão que a narrativa lhe sugere, os gestos involuntários de
aprovação ou de distracção influenciam a dinâmica
O presente texto pretende relatar o processo de reco- de produção do discurso, quero dizer, a selecção de
lha das narrativas biográficas que estão a ser realiza- episódios mais significativos, a expressão ou con-
das no âmbito do meu doutoramento em Ciências da tenção de sentimentos dolorosos e de emoções. As
Educação, reflectir sobre o modo como o processo trocas que se geram neste processo são complexas e
está a ser efectuado no terreno e como se produzem de difícil análise, no entanto, penso que através dos
as narrativas biográficas recolhidas através de entre- exemplos apresentados é possível apercebermo­‑nos
vistas de investigação. Foram discutidos aspectos re- que, apesar da questão inicial ser comum, cada pes-
lativos ao acesso ao terreno, à duplicidade de papéis soa possuiu uma narrativa própria, para uns mais
voluntária­‑investigadora e às questões éticas que lhe factual e sequencial, da infância para a idade adulta,
estão associadas. Os critérios de selecção dos indi- para outros mais argumentativa, buscando razões e
víduos foram enunciados e considera­‑se um factor explicações retiradas da infância ou da vida adulta.
importante o conhecimento prévio e a proximidade A narrativa biográfica recolhida e construída
afectiva, pois parecem ter sido facilitadores, quer na através de entrevistas é produzida pelo autor e co­
condução das entrevistas, quer no empenhamento e ‑autor: o primeiro possuiu a globalidade da matéria­
na confiança que todos eles me demonstraram. ‑prima, os factos vividos, sentidos, pensados, reflec-
Foram referidas as categorias mais pertinentes tidos, alterados e integrados em si; o segundo tem
para a análise dos percursos biográficos, tendo por interesse na produção de uma narrativa que sirva os
base o trabalho de Josso. No âmbito deste artigo não objectivos da investigação. Juntos constróem esse
foi possível apresentar os resultados das análises in- produto final, a narrativa biográfica que irá alimen-
tegrais das narrativas, mas estas categorias estiveram tar a produção do conhecimento científico.

80 sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas
Notas CAIS. Lisboa: Padrões Culturais Editora, pp.
34­‑39.
1. No Brasil a expressão equivalente a sem­‑abrigo Bento, A. (2004). Sem­‑abrigo e instituições. In
é “sem­‑tecto”. AA.VV., Sem­‑abrigo e Imigração, olhares sobre
2. Em 2005 a categoria utilizada foi traduzida do a realidade em Portugal. Colectânea de Ensaios
francês “sans abri”. Em 2006 a FEANTSA actua- CAIS. Lisboa: Padrões Culturais Editora, pp.
lizou esta tipologia e foi traduzida para português 69­‑77.
como categoria conceptual “Sem tecto”. Bento, A. & Barreto, E. (2002). Sem­‑amor Sem­
3. ETHOS — Tipologia Europeia sobre Sem­ ‑abrigo. Lisboa: CLIMEPSI.
‑abrigo e Exclusão Habitacional “Au cours de ces der- Bertaux, D. (1989). Les récits de vie comme forme
nières années, le groupe de travail collecte de données d’expression, comme approche et comme mou-
de la FEANTSA et l’Observatoire européen sur le sans­ vement. In G. Pineau & G. Jobert (coords.),
‑abrisme a développé une typologie de l’exclusion liée Histoires de vie. Tome 1. Utilisation pour la for-
au logement appelée ETHOS (European Typology on mation. Paris: Édition l’Harmattan, pp. 17­‑37.
Homelessness and housing exclusion). Cette typologie Bourdieu, P. (1993). La misère du monde. Paris:
a été lancée début 2005 et a été analysée à l’occasion de Éditions Seuil.
différents séminaires/réunions à l’échelon local, natio- Burgess, R.G. (1991). Field Research: A Sourcebook
nal et européen. ETHOS est maintenant sert de cadre and Field Manual. London: Routledge.
pour des débats, des initiatives de collecte de données, Canário, R. (1998). Aprendizagem, experiência e
des recherches, et l’élaboration de politiques de lutte currículo. Ensinus, 13, pp. 2­‑5.
contre l’exclusion liée au logement. Il est important de Charlot, B. (1997). Du rapport au savoir. Éléments
noter que cette typologie est un exercice ouvert qui fait pour une théorie. Paris: Anthropos.
abstraction des définitions nationales dans les états Costa, A. B. (1998). Exclusões Sociais. Lisboa: Gra-
membres de l’Union européenne. ETHOS est fon- diva.
dé sur la notion de «home» en anglais (qui serait com- Demazière, D. & Dubar, D. (1999) L’entretien bio-
posé de trois domaines: logement, social, et juridique) graphique comme outil de l’analyse sociologi-
pour créer une définition large de l’exclusion liée au que. UTIVAM — Revue de Sociologie e d’Anthro-
logement. ETHOS classe les personnes sans domicile pologie, 1, 2, pp. 225­‑239.
fixe en fonction de leur situation «de vie»: être sans Dominicé, P. (1996). L’histoire de vie comme proces-
abri (dormant à la rue); être sans logement (avec un sus de formation. Paris: Éditions l‘Harmattan.
abri mais provisoire dans des institutions ou foyers ETHOS — Tipologia Europeia sobre Sem­‑abrigo e
d’hébergement) ; en logement précaire (menacé d’ex- Exclusão Habitacional. Consultado em Dezem-
clusion sévère en raison de baux précaires, expulsions, bro de 2006, em http://www.feantsa.org/files/in-
violences domestiques) ; en logement inadéquat (dans dicators_wg/ETHOS/ethos_portugal.pdf
des caravanes sur des site illégaux, en logement indi- Hughs, E. C. (1996). Le regard sociologique. Paris:
gne, dans des conditions de surpeuplement sévère)”. Éditions de l’École des Hautes Études en Scien-
Consultado em Dezembro de 2006, em: http://www. ces Sociales.
feantsa.org/code/EN/pg.asp?Page=546. Josso, C. (1989). Ces expériences au cours desquel-
4. As citações extraídas desta obra foram traduzi- les se forment identités et subjectivité. Éducation
das livremente do texto original em Francês. Permanente, 100/101, pp. 161­‑173.
5. No original, récit. Josso, C. (1991). Cheminer vers soi. Lausanne: L’Age
d’Homme.
Marpsat, M. (2003). Homelessness research: Defi-
Referências bibliográficas nitional issues and first mapping of methodolo-
gies (Part I). CUHP, Workshop 2, Madrid, Oc-
Baptista, I. (2004). A problemática em Portugal. In tober 9.10. Consultado em Dezembro de 2006,
AA.VV., Sem­‑abrigo e Imigração, olhares sobre em http://www.cuhp.org/admin/EditDocStore/
a realidade em Portugal. Colectânea de Ensaios Longpaper_defacc.pdf

sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas 81
Pereira, A. P.; Barreto, P. & Fernandes, G. (2001). Pereira, A.P. & Silva, A.S. (1999). Os sem­‑abrigo da
Análise Longitudinal dos Sem­‑Abrigo em Lisboa: Cidade de Lisboa — Riscos de Viver N(a) Cidade.
A situação em 2000. Relatório Final. Lisboa: De- Lisboa: Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
partamento de Acção Social da Câmara Munici- Santos, B.S. (2003 [1987]). Um discurso sobre as
pal de Lisboa. ­Ciências. Porto: Edições Afrontamento.

82 sísifo 2 | susana pereir a da silva | sem‑abrigo: métodos de produção de narr ativas biogr áficas
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 issn 1646 ‑4990

Recensões

Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista, de Como refere António Nóvoa1 (1998, p. 169), a vida e
Vanilda Paiva a obra de Paulo Freire estão inscritas no imaginário pe-
dagógico do século XX, constituindo uma missão qua-
se impossível a separação do homem do mito. É este lado
A edição original desta obra remonta a 1980 (Rio de Ja- mitológico de Paulo Freire que tem alimentado uma
neiro: Civilização Brasileira, Colecção Educação e Trans- produção intelectual que, em muitos casos, assume cla-
formação) e corresponde, com algumas pequenas altera- ras características hagiográficas. O papel das ciências
ções, ao trabalho de investigação realizado pela autora, sociais, e em particular da sociologia, consiste em dar
consubstanciado na sua Tese de Doutoramento. Apesar “caça aos mitos”, desmontar ideias recebidas, reequa-
de traduzida em espanhol, alemão e inglês, só vinte anos cionar e reformular problemas. É por ter adoptado esta
mais tarde viria conhecer uma reedição no Brasil, per- postura epistemológica que a obra de Vanilda Paiva é
manecendo, no quadro da vastíssima bibliografia consa- susceptível de abalar algumas ortodoxias simplifica-
grada à obra de Paulo Freire, como uma obra pouco co- doras. Mas é também essa reflexividade crítica que lhe
nhecida, deliberadamente ignorada ou esquecida. A esta permitiu escrever um livro que, como escreveu João
omissão não será certamente alheio o conteúdo da obra e Trajano Sento-Sé na nota de apresentação desta edição,
a originalidade da sua tese fundamental: a autora estabe- “abre possibilidades para que outros livros sejam lidos
lece uma relação entre a acção pedagógica e a produção e escritos”, não tendo a “pretensão de ser definitivo” e
teórica de Paulo Freire, até 1965, e a ideologia nacionalis- transformando-se, por isso, num “clásssico” que é um
ta e desenvolvimentista, de cariz populista, desenvolvida dos “mais belos trabalhos de história das ideias já pro-
e divulgada a partir de um núcleo de intelectuais agru- duzidos no Brasil”.
pados institucionalmente no ISEB (Instituto Superior de A famosa experiência de Angicos, legitimada pela
Estudos Brasileiros). Essa ideologia é apresentada por presença e o aval político do então presidente João
Vanilda Paiva como a tradução política e intelectual para Goulart, tornou Paulo Freire um dos mais conhecidos
a realidade brasileira dos anos 50 e 60 — zona periférica e prestigiados pedagogos no Brasil, particularmente
do mundo capitalista — do keynesianismo e das ideias através do “método de alfabetização” proposto, experi-
sociais que serviram de base aos “Estados Providência”. mentado e apresentado como capaz de alfabetizar adul-
Esta proposta de abordagem crítica da obra e do tos em apenas 40 horas. Este método constituiria a base
pensamento de Paulo Freire, na fase que termina com o para a realização de um ambicioso Plano Nacional de
golpe de estado militar de 1964, procura situar a acção e Alfabetização (PNA) que propunha como meta a alfa-
o pensamento de Paulo Freire no seu tempo e lugar his- betização de cinco milhões de brasileiros no curto perí-
tóricos, o que conduz, em contracorrente com aqueles odo de dois anos. A esperança suscitada pelo “método
que dele propõem uma visão essencialmente panegírica Paulo Freire” de representar uma solução pedagógica
e simultaneamente com os seus detractores, a defender de validade universal, de efeitos quase milagrosos, ex-
teses, propor hipóteses e interrogações que, pela in- plica a notoriedade ganha por Paulo Freire num contex-
comodidade que eventualmente possam produzir, se to nacional e internacional em que o analfabetismo e o
traduziram numa atenção ao trabalho de Vanilda Paiva desenvolvimento eram encarados como problemáticas
que está muito aquém dos seus méritos. centrais e umbilicalmente ligadas.

83
Ao nível brasileiro, a existência de níveis de analfa- lhor expressão no percurso político de Luís Carlos Pres-
betismo próximos dos 50%, com repercussões drásticas tes. Será esta uma das razões possíveis para uma certa
na amplitude do universo de eleitores (a alfabetização hostilidade da intelectualidade universitária em acolher
era condição necessária para exercer o direito de voto), uma proposta de “explicar política e intelectualmente
transformava a questão do combate ao analfabetismo o surgimento do método e das ideias de Paulo Freire”,
numa questão eminentemente política, directamente recolocando-o no seu contexto histórico e procurando
articulada com os projectos de modernização económi- a “descoberta do social a partir do pedagógico”, prin-
ca e social do Brasil. Os projectos desenvolvimentistas cipalmente tendo em conta a época da publicação, em
e de cariz nacionalista eram naturalmente encorajados plena ditadura militar.
por uma conjuntura política internacional favorável ao O trabalho analítico e interpretativo realizado por
desenvolvimentismo, o que do ponto de vista ocidental Vanilda Paiva constitui uma contribuição teórica rele-
representava uma resposta ao perigo do alargamento da vante para a compreensão da obra e do pensamento de
área de influência soviética, num contexto de “guerra Paulo Freire. O valor dessa contribuição pode ser, do
fria”. O início dos anos 60 coincide temporalmente com nosso ponto de vista, sintetizado em seis ideias princi-
a política norte americana da “Aliança para o progres- pais que, muito sinteticamente passamos a enunciar:
so”, dirigida ao sul do continente e, como refere Vanil- – A filiação nacionalista e desenvolvimentista da ac-
da Paiva, a experimentação do método de Paulo Frei- ção e pensamento de Paulo Freire exprime-se no modo
re foi parcialmente financiada por uma agência norte como interpretava a realidade brasileira, apelando a um
americana para o desenvolvimento internacional (US. processo de desenvolvimento que permitisse a transição
Agency for International Development). O golpe militar de uma sociedade “arcaica” para uma sociedade “moder-
de 1964 conduziu Paulo Freire à prisão, num primeiro na”, marcada por uma efectiva democratização política.
momento, e ao exílio, num segundo momento. Aqui se Nas palavras de Vanilda Paiva, a “preocupação de Freire
transformou no “tradutor” pedagógico das ideias do é a de desenvolver uma pedagogia adequada a essa mu-
Concílio Vaticano II, por ser fundamentalmente “um dança”, propiciadora da formação de um “homem demo-
homem prático e um militante político e religioso” e crático”, susceptível de corresponder à situação de tran-
pelo protagonismo que lhe foi proporcionado pelo Con- sição vivida pela sociedade brasileira (pp. 144‑145);
selho Mundial das Igrejas. Como sugere Vanilda Paiva, – No quadro de uma “Revolução Brasileira” baseada
o golpe militar de 1964 poupou Freire à erosão crítica no consenso e comandada pela razão - expectativa de
que a concretização do Plano Nacional de Alfabetiza- grande parte da intelectualidade brasileira nos anos 50
ção quase inevitavelmente suscitaria e, por outro lado, e inícios dos anos 60 - insere-se a ideia de mudança as-
projectou-o para uma acção internacional no contexto sociada à pedagogia de Paulo Freire, cujos limites ficam
de uma vaga de movimentos de libertação nacional, claros “quando vemos que, “para ele, a mudança exige
também eles confrontados e tributários da ideologia reformas sociais que devem ser promovidas mediante o
desenvolvimentista. Para Vanilda Paiva, a continuada e consenso entre grupos e classes sociais” (p. 150);
crescente notoriedade e reconhecimento internacionais – É no quadro destes limites que deve ser entendido
de Paulo Freire permanecem pouco esclarecidos, se a o alcance do conceito de conscientização que, nesta fase,
origem das suas ideias, as suas vertentes pragmática e representa para Freire, não uma forma de “consciência
ecléctica, não forem analisadas à luz do contexto histó- de classe”, mas “um tipo de consciência que permitisse
rico brasileiro e internacional dos anos 50 e 60. a percepção da situação global do país de modo a gerar
Em relação ao contexto brasileiro, no seu trabalho acções que promovessem o desenvolvimento nacional e
de investigação Vanilda Paiva desvenda as conexões consolidassem a democracia parlamentar” (p. 159);
directas das ideias e da acção de Paulo Freire com o – É desta perspectiva que a concepção pedagógica
nacional desenvolvimentismo propugnado pelos inte- de Freire pode ser encarada, como sustenta a autora do
lectuais do ISEB e, através desta influência, a conexão livro, enquanto tradução “sob o manto do combate ao
mais indirecta com a corrente populista representada autoritarismo tradicional da sociedade brasileira, do
por Getúlio Vargas e que marca toda a realidade polí- autoritarismo ‘esclarecido’ subjacente ao isebianismo”;
tica do século XX brasileiro desde os movimentos dos – É neste sentido que a proposta pedagógica elabo-
jovens tenentes contra a “República Velha”, a partir da rada por Paulo Freire no final dos anos 50 e inícios dos
década de 20. anos 60 pode ser interpretada como uma pedagogia di-
Em matéria de nacionalismo, desenvolvimentismo e rectiva: “educar as massas era conquistá-las para a ‘ide-
populismo, as fronteiras entre esquerdas e direitas são ologia do desenvolvimento’ formulada pelos isebianos.
fluidas, sendo comuns muitas das vertentes desse patri- (…). Se aceitarmos que o isebianismo é uma expressão
mónio ideológico. A osmose política, traduzida numa teórica do populismo, não podemos deixar de perceber
espécie de unidade conflitual entre forças aparentemen- tal caráter nesta tradução pedagógica do nacionalismo
te opostas do espectro político brasileiro, tem a sua me- desenvolvimentista por Freire” (p. 209);

84 sísifo 2 | recensões
– Um certo autoritarismo pedagógico é consonante discussão do potencial transformador e emancipatório
com o papel atribuído ao Estado e à sua acção planifica- da educação, é urgente retirar do esquecimento, reler e
da, no sentido de promover a passagem de uma socieda- discutir, este livro apaixonante e estimulante.
de agrária e oligárquica para uma sociedade industrial
moderna. Esta vertente contrasta com uma progressiva
orientação pedagógica não directiva que confere ao pen- Notas
samento de Freire uma ambiguidade essencial entre um
“não diretivismo pedagógico nas relações face a face e 1. Vide Nóvoa, António (1998). Paulo Freire (1921-
certo dirigismo no plano ideológico mais amplo, ditado 1997): a “inteireza” de um pedagogo utópico. In M.
pelos valores básicos de sua proposta histórico-social, Apple e A. Nóvoa (orgs.). Paulo Freire: política e pedago-
religiosa e cultural” (p. 25). gia. Porto: Porto Editora, pp. 167-187.

Como a autora não se cansa de sublinhar, este estu-


do diz respeito ao período da acção e da obra de Paulo
Rui Canário
Freire na sua etapa inicial, cobrindo o período que vai
até 1965. A evolução de Freire a partir da segunda me-
tade dos anos 60 exige uma abordagem específica que
não foi objectivo deste trabalho. Ele representa, sem
dúvida, um contributo indispensável à análise, estudo Canário, Rui (2007). Recensão da obra “Paulo Freire e o nacionalismo de-
e compreensão da posterior trajectória intelectual e po- senvolvimentista”, de Vanilda Paiva [2000 (reedição)]. São Paulo: Graal.
lítica de Paulo Freire. Pelas questões que levanta, pe- Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 2, pp. 83‑86
las perguntas que induz e pela sua actualidade para a Consultado em [mês, ano], em: http://sisifo.fpce.ul.pt

sísifo 2 | recensões 85
86 sísifo 2 | recensões
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Conferências
Ser formador nos dias que correm:
novos actores, novos espaços, novos tempos
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
da Universidade de Lisboa, 4 de Novembro de 2005

Pierre Caspar

Fiquei muito honrado por ter sido convidado a parti- suas formas modernas, farei a ligação com alguns tra-
cipar neste colóquio que suscita questões maiores para ços marcantes da formação profissional de adultos, vo-
o desenvolvimento da formação profissional: as que cação primeira do Conservatório Nacional das Artes e
respeitam aos actores centrais desse desenvolvimento. Ofícios (C.N.A.M.) de onde venho. Finalmente, depois
E, por isso, vos estou grato. de examinar alguns territórios novos que se abrem aos
Sinto­‑me feliz por este colóquio, inscrito na pers- formadores, partilharei convosco as minhas reflexões
pectiva de uma educação e de uma formação ao longo pessoais a propósito da riqueza e das dificuldades de
da vida, se realizar em Lisboa. Pois que esta noção, ser formador nos dias que correm.
cara à União Europeia, formalizada no seu memorando, O quadro desta intervenção, orientado segundo o
foi fortemente reafirmada nesta bela cidade, no ano de eixo da formação profissional contínua, não irá permi-
2000, como expressão de uma ambição europeia maior: tir que se examinem nem outras formas da formação
“fazer da União Europeia a sociedade do conhecimento de adultos, nomeadamente as formações informais ou
mais dinâmica e mais competitiva do mundo”. O futuro a educação popular, nem os elos incontornáveis entre
desta ambição está­‑se construindo neste preciso mo- formação inicial e formação contínua, nem a formação
mento. considerada como um campo de investigação. É pena,
Sinto­‑me tanto mais feliz porquanto me foi dada a mas como conseguir tratar tudo?
oportunidade de me fazer ouvir em Portugal, este país
de engenho cuja irradiação e expansão estiveram, desde A QUESTÃO DO ACESSO AO SABER situa­‑se no
sempre, em relação directa com o domínio dos saberes centro do próprio conceito de aprendizagem, no cora-
e o desenvolvimento das técnicas do seu tempo. Recor- ção dos elos entre ensinar e aprender, na articulação das
demos uma frase desse homem fora do comum que é relações entre saber e poder.
Vitorino Magalhães Godinho, igualmente um dos es- Durante séculos, aprender dependia, antes de mais,
pecialistas mundiais da história dos descobrimentos: da capacidade e do direito a aceder aos lugares do saber,
“Com o alargamento do mercado à escala planetária, espaços esses, comunidades essas, onde eram reunidas
nasce uma nova mentalidade graças à qual o homem as aquisições da humanidade, guardadas, mantidas,
aprende a situar­‑se no espaço da percepção visual e da estudadas, interpretadas, reproduzidas e difundidas.
geometria, no tempo da data, da medida e da mudança, Invejosamente escondidas até, não seria que para não
a orientar­‑se graças ao algarismo, objecto de verificação, desvendar o seu conhecimento aos que não estariam
começando assim a forjar o instrumento que lhe irá per- aptos a recebê­‑lo e dele fazer uso com discernimento…
mitir separar o real do manto da fantasia.” Referindo­‑se Ou que como tal seriam julgados por certos grupos so-
ao séc. XV/XVI, esta elegante frase afirma­‑se contudo ciais escolhidos como detentores e guardiães do conhe-
particularmente premonitória dos modos de vida das cimento, esse conjunto de saberes portador de sentido.
nossas sociedades dos dias de hoje totalmente constru- Recorde­‑se o filme “O Nome da Rosa” e a sua biblioteca
ídas ao redor da informação, dos saberes, dos conheci- secreta, de que a maioria dos membros da comunidade
mentos e das suas utilizações. monástica ignorava mesmo a existência. Não há neces-
Foi com este espírito que foi articulada esta inter- sidade de se proteger de um eventual acesso àquilo que
venção: partindo do acesso ao saber na história e nas não existe.

87
Que lugares eram esses de saber? Eis rapi- Que havia de comum entre esses diferentes lugares
damente alguns exemplos ilustrativos. de saber? Provavelmente as funções que cumpriam no
Primeiramente, os mosteiros e os templos, lugares de seio da sociedade. Fixemo­‑nos em quatro.
um conhecimento revelado, recebido ou detido pelos Dar testemunho sobre as origens do saber será a pri-
sacerdotes, inscrito e oferecido pela própria arquitec- meira destas funções. Poder­‑se­‑á considerar estes sabe-
tura dos edifícios e pelos seus ornamentos. Pensar­‑se­ res como revelados, e logo como um dos fundamentos
‑á, conforme os países, em Stonehenge, em Angkor, espirituais de uma civilização; ou como o produto de
ou, claro, nas nossas basílicas romanas, nas nossas ca- uma investigação que veio, também, em resposta a uma
tedrais góticas. Elas constituem verdadeiros livros de pesquisa de sentido e ao desejo de compreender e de ac-
pedra portadores de ensinamentos para quem quiser ou tuar sobre os problemas do tempo. Em ambos os casos,
souber decifrá­‑los, mensagens oferecidas e ao mesmo quer a busca das origens e das provas de autenticidade
tempo escondidas como na “carta roubada” de Edgar dos saberes, quer a preservação do elo com as fontes,
Poe. As universidades, sob todas as suas formas, a elas fazem dela uma função de referência.
se associavam, enquanto comunidades científicas, luga-
res de permuta e de investigação, de criação, de análise Conservar os saberes e os seus suportes materiais ou
crítica, de exegese e de transmissão do saber, e enquan- imateriais e protegê­‑los contra os ataques do tempo ou
to instituições encarregadas das provas e exames liga- a loucura dos homens representa uma das funções mais
dos à atribuição de graus académicos. clássicas destes lugares. É uma função muito mais acti-
Igualmente se poderá referir as grandes bibliotecas, va que o armazenamento e o arquivo; pois que se trata
como a emblemática biblioteca de Alexandria. Em pri- igualmente de constituir e de preservar um verdadeiro
meiro lugar, elas são lugares de colecta e de conservação património o qual singulariza o nosso contributo para a
dos saberes materializados da humanidade; constituem história da humanidade. Até mesmo no tempo da revo-
igualmente lugares de pesquisa tanto mais que se afirma lução francesa, houve pessoas preocupadas em preser-
que o saber atrai o saber e suscita a interrogação, que a var o nosso património nacional sob todas as formas. O
abertura de espírito abre de volta os espíritos e que a CNAM para isso contribuiu.
confrontação com os saberes de outrem contribui para a
formação de saberes novos. A enciclopédia, obra maior Estruturar, transmitir, ajudar a adquirir os sa-
do século das Luzes não era ao mesmo tempo “inventá- beres, fazem parte da função­‑chave da mediação que
rio e invenção”? os formadores exercem, os professores, os tutores, os
Muitos outros exemplos poderiam ser evocados. monitores… os “mestres”. Seja qual for o nome que
Para só citar dois, pensemos primeiramente nos cabi- lhes dermos, todos têm em comum exercer funções de
nets de curiosité, muito apreciados na Europa dos sécu- educação e de socialização, de facilitação da inscrição
los XVII e XVIII. Eminentes exploradores ou viajantes, em formação e da persistência no tempo, de criação das
grandes coleccionadores davam assim a ver, num meio condições de aprendizagens bem sucedidas no seio de
fechado, troféus, objectos de arte ou de culto, minerais, um ambiente favorável; cabe­‑lhes igualmente estruturar
escritos, animais estranhos ou instrumentos científicos ou reconceptualizar os saberes peritos ou sábios para
que tinham coleccionado durante anos. Lugares de ad- os tornar assimiláveis, dar visibilidade a tudo o que faz
miração, lugares de preservação de patrimónios até en- com que aprender tome corpo e sentido. O despertar do
tão desconhecidos, esses gabinetes tornaram­‑se muitas gosto e do prazer de aprender, e da confiança nas suas
vezes museus, esses lugares de encantamento que não capacidades de sucesso, está na base de toda a formação
nos cansamos de frequentar. Na realidade, não posso ulterior.
deixar de evocar o Museu Nacional das Técnicas, em Pois fazer esforço para aprender não conduz imedia-
Paris, no seio do CNAM, que apelidamos de “memória tamente a compreender. E mesmo se se pode aprender
da nossa imaginação”. a aprender, os saberes resistem a entregar­‑se quando
Na mesma época da nossa história, agora no campo nos aproximamos deles demasiado depressa, ou prema-
do imaterial, certos “salões”, certos castelos como o de turamente. É necessário saber­‑se já muito para poder
Voltaire e da condessa do Châtelet, certas cortes reais aprender mais. É preciso maturidade para estar apto a
como as Frederico da Prússia, de Catarina da Suécia ou desenvolver em si e para os outros a inteligência do sa-
do Khan Akbar, em Fatehpur Sikri, na Índia, desempe- ber. É preciso igualmente encontrar os meios de saber
nharam um importante papel na circulação e na troca de o que se sabe e o fazer saber. Finalmente, é necessário
saberes. Eles reuniram aqueles a quem se chamava “be- compreender que ter aprendido não constitui o termo
los espíritos”, preocupados em fazer progredir o conhe- do caminho; e que falta querer e poder servir­‑se das
cimento humano na encruzilhada das ciências, das cultu- suas aquisições, no mundo da acção, com pertinência e
ras, da poesia… e do prazer das músicas e das palavras. eficácia. Isso supõe enriquecer as suas actividades cog-
nitivas através da lucidez e da sabedoria.

88 sísifo 2 | pierre caspar | ser formador nos dias que correm: novos actores, novos espaços, novos tempos
E é então que intervém uma função de acompanha- relativamente a uma intenção, um projecto, uma orga-
mento daquelas e daqueles que se instruem na sua evo- nização, ou no seio de ligações de força entre actores,
lução e na sua socialização. Consiste em particular em ele pode tornar­‑se um bem que se vende, se compra,
ajudá­‑los a identificar, pesquisar, e apropriar­‑se dos sa- se troca ou, por vezes, se rouba. O saber de uns sobre
beres técnicos e dos comportamentos sociais necessá- os outros e os saberes que eles detêm torna­‑se ele tam-
rios, num dado momento da sua vida, para diagnosticar bém um trunfo de desenvolvimento comercial ou… de
a origem das dificuldades de aprendizagem, e remediá­ poder.
‑la, e para utilizar as suas aquisições com discernimen- O próprio facto de se atribuir um valor comercial
to. A confederação medieval e as instituições que a ao saber lança as bases de uma dupla economia: por
cercavam não visavam designadamente esse objectivo. um lado uma economia de serviço, baseada na capaci-
Resta a actualidade. dade de resolver problemas que o saber obtém e num
profissionalismo crescente dos formadores; porque, no
momento em que cada um, nesta sociedade de informa-
Como estamos hoje? ção, pode operar ao mesmo tempo na aprendizagem e
na transmissão, começa a colocar­‑se em dúvida a neces-
Estou convencido que a questão do acesso ao saber per- sidade e a mais­‑valia destes “trabalhadores do saber”
manece mais essencial que nunca. Contudo, os saberes em que se tornaram. E, por outro lado, uma economia
de que se fala não são os mesmos de antigamente. E se de mercado em que a formação e a aprendizagem, bases
as funções que acabam de ser evocadas subsistem plena- da construção de um “capital humano”, se transformam
mente, a sua ordenação pode ser profundamente posta em investimentos imateriais por excelência.
em causa por novas perspectivas do papel do formador, Isto suscita questões deontológicas maiores no
das suas funções e dos seus territórios de intervenção. O exercício das funções precedentes. Isso coloca ainda
conceito de formação dos adultos encontra­‑se agitado. questões profissionais e na área da gestão. Porquanto
gastar não é investir, e investir não é suficiente para se
O que talvez mais profundamente hoje muda é o es- obter resultados compatíveis com os esforços autoriza-
tatuto que se concede ao saber no seio da nossa socie- dos. Mais, é preciso investir no momento certo, no lo-
dade, que alegremente mistura dados, informações, sa- cal certo e com as pessoas certas, que o mesmo é dizer,
beres e conhecimentos. Por um lado, a recolha de dados aquelas para quem a aquisição ou a modernização das
sobre tudo e sobre todo o mundo tornou­‑se exponen- competências constituem elemento­‑chave da resolução
cial. O seu tratamento com vista a transformá­‑los em de problemas individuais (evolução, inserção, reconver-
informações visando objectivos conhecidos ou não re- são, promoção…) ou colectivos (evolução do trabalho,
velados transforma­‑se numa operação intelectual maior das tecnologias, dos produtos, dos mercados…) que
naquilo que o Livro Branco de 1995 via como uma “so- encontrarem. Mais ainda, será necessário dispor dos
ciedade cognitiva”: uma sociedade onde a globalização, meios para apreciar o que deveria ser e qual foi, in fine,
a aceleração da criação de novos saberes e a sua assimi- o retorno desse investimento. Enfim, afloramos aqui
lação constituem sempre um dos maiores desafios a que um debate maior para as nossas sociedades marcadas
temos de aprender a responder. Os lugares tradicionais por um capitalismo à escala mundial: o da distribuição
do saber, mas também a Internet e seus derivados, os equitativa das riquezas produzidas entre os diversos ac-
portais e bancos de dados, os centros de recursos, a rá- tores que contribuíram para as criar.
dio e a televisão quando querem e as inumeráveis redes
de permuta de saber colocam, pelo menos em teoria, to- Neste contexto, já se não poderá considerar isolada-
dos os saberes do mundo ao alcance da nossa mão. Os mente as quatro funções anteriormente apresentadas,
inestimáveis contributos das tecnologias e das forma- ou atribui­‑las a diferentes corpos sociais. Porque, numa
ções à distância permitem­‑nos viver toda uma outra li- economia globalizada e em rápida mutação, a compe-
gação ao espaço e ao tempo. Resta progredir no sentido titividade tornou­‑se regra; e, simultaneamente, porque
da identificação dos saberes pertinentes num dado mo- ela assenta, não só em saberes e conhecimentos, mas
mento, para uma dada pessoa ou um dado grupo, e no igualmente em competências, directamente ligadas ao
dos custos reais ou simbólicos de conexão e de acesso a trabalho e ao emprego, e avaliadas à luz dos resultados
esses saberes, custos tão diferentes segundo os países e que permitirem obter. E porque, numa sociedade do
os grupos sociais. A sociedade dual começa aqui. conhecimento, as instituições educativas já não detêm
o monopólio das actividades formativas. As formações
Por outro lado, sente­‑se bem que o saber perde a informais, no e através do trabalho, a análise das acti-
imagem de absoluto e se vê progressivamente atribuir vidades, as redes de aprendizagem mútua, as organiza-
um valor nos mercados da formação formal e informal; ções de aprendizagem, a gestão da mobilidade e das car-
mas não só: portador de informações que fazem sentido reiras, o trabalho com consultores, as práticas de audi-

sísifo 2 | pierre caspar | ser formador nos dias que correm: novos actores, novos espaços, novos tempos 89
toria, ou aquilo que agrupamos sob a expressão cómoda não entender que a mobilidade, a flexibilidade, a em-
de “knowledge management” para tanto contribuem de pregabilidade, quando se tornam valores predominan-
igual modo: falamos da importância acrescida dos res- tes, a competitividade, quando conduz à exigência de
ponsáveis pela gestão e pelo desenvolvimento dos “re- fazer melhor e mais com menos, a precariedade que se
cursos humanos”, noção que condiz perfeitamente com transforma em ameaça face ao aumento das incertezas
o sentido de um “capital humano”. do trabalho e do emprego, ligadas a decisões tomadas
Os organismos e serviços de formação persistem numa espécie de outro espaço­‑tempo, possam pôr em
e permanecem incontornáveis no exercício nomeada- dúvida a utilidade de uma formação, sobretudo se for
mente das suas funções tradicionais. Surgem, contudo, longa e qualificante? Como nos poderemos admirar
novas funções que se afastam singularmente da acepção que, em França, nomeadamente, a obtenção de um di-
habitual da palavra “formação” para se inscrever numa ploma se tenha tornado mais premente?
visão mais institucional e mais estratégica.
Dito isto, esta própria complexidade do sector da
Restam as funções pedagógicas e de mediação. Elas “apprenance” faz emergir novas responsabilidades que
inscrevem a formação na realidade vivida pelas pesso- adquirem pouco a pouco uma posição crescente. Pode-
as e pelas organizações. Organizam o encontro entre as remos reagrupá­‑las à volta de quatro termos frequente-
expectativas dos estudantes, as exigências das organi- mente utilizados em literatura: política, técnica, comer-
zações, as competências a desenvolver e as escolhas pe- cial e aconselhamento.
dagógicas. Permitem conduzir o acto de aprender atra- Num universo onde o sector terciário e as opera-
vés do face a face entre criadores, detentores, transmis- ções imateriais invadem todos os outros sectores, em
sores de saber e estudantes, mesmo se este face a face é que a matéria cinzenta se tornou o principal recurso,
virtual. Simultaneamente, alargaram­‑se estas funções. a formação pode tornar­‑se uma parada estratégica.
Ocorre­‑lhes também gerar o montante, o durante e o Ao afastar­‑se das lógicas de conteúdos, de oferta e de
jusante do acto de aprender. O montante é, nomeada- programas, encontrará fora de si mesma uma parte
mente, a informação, a escuta, a orientação, a ajuda na crescente das suas razões de ser, das suas determinan-
elaboração de um projecto pessoal e profissional no seio tes, e dos seus constrangimentos; como encontra fora
do qual a formação toma assento e sentido, a individu- de si própria os contributos científicos que permitem
alização dos percursos, e, recentemente, as actividades compreendê­‑la melhor, concebê­‑la melhor e guiá­‑la di-
de validação das aquisições profissionais. O “durante” ferentemente do que com a simples ajuda da experiên-
inclui totalmente a quarta função de que falámos atrás. cia e do bom senso.
O jusante prolonga a responsabilidade da formação até Assim os problemas que se colocam aos formado-
à avaliação dos resultados, não só nas aprendizagens res são frequentemente formulados logo de entrada em
mas também no campo profissional. O mesmo é dizer termos de evolução das matérias, de eficácia e de per-
que a criação de ambientes favoráveis à apprenance, à formances, em termos de organização do trabalho e da
transferência dos saberes e competências em situação produção, de desenvolvimento das vendas, de optimi-
de trabalho fazem doravante parte destas funções pri- zação orçamental ou de gestão financeira; ou ainda em
meiras. termos de montagem e de condução de projectos, de
gestão, de fusão de empresas e de mutações culturais.
Simples de dizer, tudo isto não é tão simples assim Surgem novos actores a exercer poder sobre a deci-
de realizar. Pois que os “públicos da formação” também são, o financiamento e o acto de formar sem profissiona-
eles mudaram muito. Em número, primeiramente, o lismo nessas matérias… Aos formadores e, sobretudo,
que interfere directamente com a concepção da forma- aos responsáveis pela formação caberá analisar esses
ção contínua nas universidades e a gestão do binómio pedidos ou essas encomendas, separar os projectos
estudantes/adultos. Igualmente em natureza. Muito que envolvam mudanças de competências daqueles que
mais informados que no passado, graças à informática dependem de transformações ou de decisões de outra
e à proliferação de sites Internet permitindo estabelecer natureza.
comparações entre organismos, os formandos tornam­ No momento em que a produção de competências
‑se mais exigentes por disporem de menos disponibili- se torna uma parada estratégica e em que o apelo à for-
dades para se formar. Caracterizando­‑se mesmo certos mação deixa de ser formulado em termos de saberes a
públicos por uma perda de confiança ou um desamor adquirir mas de problemas a resolver, os formadores e,
face à formação, o qual se traduz por dificuldades de sobretudo, os responsáveis pela formação têm, primei-
atenção, de concentração, por zapping ou abandonos ramente, a responsabilidade de verificar se a opção pela
precoces. Se a formação for entendida, relativamente formação é uma opção pertinente e não um engodo que
a outros projectos, como um sobre­‑investimento, pode caracteriza a ausência de decisões prévias noutros ní-
rapidamente conduzir a um desinvestimento. E como veis hierárquicos ou noutros sectores.

90 sísifo 2 | pierre caspar | ser formador nos dias que correm: novos actores, novos espaços, novos tempos
Compete­‑lhes ainda inscrever no amanhã as ac- se desenrolam, esta engenharia trabalha essencialmente
ções pensadas a partir de trabalhos de vigília estraté- na evolução dos ambientes económicos, sociais, cultu-
gica, propor e negociar os objectivos e as modalidades rais para posições favoráveis às aprendizagens.
de uma formação tantas vezes concebida à medida e a
partir de uma análise das pessoas e dos grupos a que Falávamos atrás da entrada da formação de adultos
respeita. Finalmente, ser­‑lhes­‑á preciso entender­‑se so- numa dupla economia, de serviços e de marcado. No
bre os indicadores de resultados a partir dos quais eles momento em que o saber adquires um valor comercial,
serão avaliados, montar a engenharia de dispositivos a formação é também ela chamada a colocar em evidên-
de formação adaptados e constituir as equipas e os par- cia os seus custos e os seus proveitos. Isto não faz ne-
tenariados necessários. Resta velar por que uma enge- cessariamente desaparecer os valores humanistas que a
nharia orçamental saudável garanta a qualidade e o bom incorporam; mas perderá o monopólio e o seu estatuto,
termo das operações, conduzir o projecto e proceder à até então privilegiados, para se transformar numa acti-
sua avaliação. vidade entre outras, submetida a regras de produtivida-
Frequentemente se agrupam estas diferentes res- de, de rentabilidade, da concorrência e do retorno dos
ponsabilidades de direcção sob a designação de “fun- capitais investidos. O sector privado já antecipara esta
ções políticas” ou “estratégicas”. As funções administra- evolução. O sector público nela avança a passos largos,
tivas, os apoios de peritos, financeiros ou jurídicos, por universidades incluídas e seus serviços de formação
exemplo, não podem delas estar dissociados. contínua. Trata­‑se de uma verdadeira mudança cultu-
ral, na medida em que os termos e os argumentos da
A complexidade das tarefas e dos jogos de actores, economia de mercado irromperam na linguagem da for-
as novas potencialidades abertas pelas múltiplas tec- mação, trazendo consigo um certo número de valores, a
nologias de tratamento da informação e da transmissão saber, os das actuais ideologias de gestão.
dos textos, imagens e sons conferem toda a importância
às funções ditas técnicas. Eis quatro exemplos. Neste terceiro terreno surgem novas actividades, que
Primeiramente, e para que conste, os exames de se não ousaria evocar há duas décadas, designadamente
peritos à utilização e manutenção das próprias tecno- as funções comerciais e de marketing. Envolvem elas to-
logias. Muitos dos avanços pedagógicos viram a luz dos os actores da formação. Mais ligadas às funções es-
do dia com o aparecimento de novos programas ou de tratégicas, já que contribuem para definir as actividades
novos materiais. Muitos dos dispositivos de formação futuras, as funções de “marketing” e o trabalho de casa
viram o seu desenvolvimento entravado pela ausência poderão apoiar­‑se em estudos prospectivos sobre os di-
de hot­‑lines eficazes. E daí essa função incontornável. ferentes sectores de actividade… o da educação e o da
Reporta directamente ao equipamento da formação, formação incluídos. Elas fazem apelo a profissionalida-
função activa que faz crescer as potencialidades e o grau des reconhecidas, o que não dispensa a sua vigilância.
de profissionalização dos seus actores; é exactamente o A perenidade e o desenvolvimento dos serviços ou dos
oposto da instrumentalização. Encontramos aqui ao organismos de formação dela dependem. As responsa-
mesmo tempo a concepção e o emprego de processos bilidades comerciais que cada vez mais recaem nos pró-
baseados na utilização de simuladores, os dispositivos prios formadores, os quais, como sabemos, nem sempre
multimédia de vocação internacional, as novas técnicas estão à­‑vontade na procura de potenciais clientes como
inspiradas nos jogos de informática e a construção de na preocupação de fidelizar os actuais. Os responsá-
realidades virtuais, ou ainda a gestão de redes de recur- veis pela comunicação desempenham aqui um papel ao
sos à escala planetária. mesmo tempo de apresentação da oferta da formação
As funções técnicas incluem também o acompanha- em termos inteligíveis pelo seu círculo e de animação
mento das diferentes formas de engenharia atrás citadas dos sites da Internet, apresentando as actividades de
que visam conceber, construir, empregar, acompanhar um modo interactivo. É preciso não esquecer tudo o
e avaliar acções, dispositivos, mesmo sistemas de for- que está ligado aos pedidos de ofertas, nomeadamente
mação em grande escala. europeus, desde o referenciamento até à apresentação
Na encruzilhada das ciências, para o engenheiro, e de dossiers em satisfação de cadernos de encargos cada
da arquitectura, as engenharias de formação devem hoje vez mais exigentes e face a uma concorrência cada vez
muito aos trabalhos teóricos e metodológicos oriundos mais agressiva. Os serviços de compras das instituições
da ergonomia, da didáctica profissional e da análise da ou das empresas tornaram­‑se interlocutores progressi-
actividade, que actualizaram a tradicional análise das vamente incontornáveis.
necessidades. Enfim, uma nova forma de engenharia Enfim, numa sociedade do saber, as decisões de
parece muito prometedora: chamam­‑lhe engenharia formação estão muitas vezes descentralizadas, mais
dos ambientes. Partindo da análise das interacções en- próximas das operações e dos actores a que respeitam;
tre os fenómenos da aprendizagem e os meios em que quer dizer que os formadores e os responsáveis pela for-

sísifo 2 | pierre caspar | ser formador nos dias que correm: novos actores, novos espaços, novos tempos 91
mação têm cada vez mais de exercer as funções de con- mas complementar. Podem mesmo suprir as carência de
sultor. Escasseia­‑me o tempo para as apresentar com o uma e de outra, quando o abandono, o insucesso esco-
cuidado que merecem. Recordemo­‑nos simplesmente lar e a rejeição pelas instituições educativas remetem ge-
que a “postura” profissional que elas implicam, num rações inteiras para a aprendizagem no próprio posto de
terreno em que a sua simples presença pode bastar para trabalho, o que se verifica, por exemplo, em numerosos
modificar, com actores que podem sentir­‑se tentados a países em vias de desenvolvimento.
incluí­‑las nas suas próprias estratégias, resulta mais da Coloca­‑se então uma dupla questão ; o papel dos
“clínica” que da infalibilidade do perito e que o cruza- professores e formadores que devem passar “ do estrado
mento entre funções tradicionais e novas responsabili- ao estirador ” e modificar a sua postura face aos apren-
dades frequentemente induz choques culturais, quando dizes se querem manter­‑se úteis, sem procurar dominar
não conflitos de valores. as actividades que funcionam tanto melhor quanto se
afastam, por definição, das propostas do sistema educa-
tivo. E o da certificação dos saberes adquiridos por vias
Novos territórios para a formação alternativas como estas. Isto conduz à validação e cer-
tificação de competências adquiridas pela experiência
Compara­‑se frequentemente a formação à tragédia clás- (RVC). Marcado, nomeadamente em França, por uma
sica que reunia os actores para uma acção conduzida lógica de certificação, este processo apresenta­‑se como
num só local e no mesmo espaço de tempo. Mas é ver- uma via de pleno acesso aos títulos e diplomas permitin-
dade que o recurso aos estágios, à formação residencial, do uma dispensa parcial ou total do ensino ou formação
com recurso a animadores, tem um importante espaço prévios. Esta matéria é bem conhecida e especialmente
na paisagem da formação profissional de adultos. nesta Universidade. Nada direi, portanto, sobre as suas
Dito isto, no processo complexo que agora se deno- dimensões técnicas.
mina “ apprenance “, noção cara a Philippe Carré, aque- Impõem­‑se três apontamentos para concluir esta
les e aquelas a quem, por comodidade, continuamos a terceira parte.
designar por “ formadores ”, movimentam­‑se em terri- Primeiro, pelo menos no meu país, a legitimidade
tórios que anteriormente não eram os seus. Os gestores legislativa desta iniciativa é parte integrante das activi-
questionam o direito de aí estarem, porque ainda não dades e responsabilidades dos professores e formado-
perceberam que a formação de sucesso necessita de re- res, sobretudo se estiverem envolvidos em formações
correr a meios mais diversificados do que no passado. certificantes. Não se pode, no entanto, olvidar a dimen-
A formação, produtora de competências, insere­‑se são essencial da construção identitária deste processo
mais directamente no posto de trabalho. Não apenas fundado sobre o conceito de reconhecimento da histó-
porque se redescobrem as virtudes dessa formação, ou ria e competências do candidato. Isto implica que as
porque se quer renovar as antigas pedagogias fazendo instituições reconheçam, com a mesma dignidade, os
“ entrar a formação na vida e a vida na formação ”. Mas saberes adquiridos de forma formal, não formal e infor-
também porque se está duplamente consciente das rela- mal e os diplomas que os certificam. A Lei refere­‑o ex-
ções indissolúveis entre o trabalho, o emprego e a for- pressamente. Os debates científicos sobre esta matéria
mação e a obrigatoriedade da evolução da formação pro- e as correspondentes confrontações de valores não se
fissional determinada pelas transformações ou rupturas encontram ainda encerrados.
técnicas, económicas, sociais e culturais que marcam as Em segundo lugar o RVC revela­‑se, na sua utiliza-
nossas sociedades. Daí a necessidade, atrás invocada, ção, como um verdadeiro instrumento de análise dos
duma posição de vigília face às “ grandes tendências ”, hábitos, modos de pensamento e funcionamento de
às grandes alterações em curso, bem como atenção aos pessoas e instituições de formação, na forma como o
sinais mais débeis que se possam transformar em “ fac- novo processo é integrado ou rejeitado nas actividade
tos portadores de futuro ” para repescar a expressão de normais das instituições envolvidas, nas relações que
Gaston Berger, criador da prospectiva. se estabelecem entre os profissionais, detentores de
Em segundo lugar, o desenvolvimento da Sociedade uma visão das competências que não se coaduna obri-
da Informação, a um ritmo sem paralelo na história da gatoriamente com a dos professores ou formadores, e
Humanidade, deu lugar a modos de aprendizagem não na capacidade de passar de uma lógica de disciplina e
formais que prescindem frequentemente de forma eficaz programa a uma lógica de competência e de validação,
da mediação de formadores: autoformação, coaching, apoiando­‑se em referenciais e em novos processos : as
partilha de saberes, redes de experiências, alargando provas de validação e certificação.
as fronteiras e o formato da formação tradicional. O re- Por fim não devemos olvidar o território principal
latório sobre a educação e formação ao longo da vida da apprenance que é o próprio aprendiz. Formar­‑se,
legitimara já a distinção entre formações formais, não isto é, querer transformar­‑se, constitui, sobretudo, um
formais e informais. A sua existência não é conflituosa caminho, uma viagem interior. Formar­‑se é adquirir,

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refrescar ou desenvolver saber e saber­‑fazer, habilida- dade assenta em parte no enunciar das suas convicções,
des, capacidades, é desenvolver competências que com- sobre a sua capacidade de suscitar a adesão e sobre a sua
binam uma gama de comportamentos e de saberes face determinação em manter as suas posições ; pelo menos
a problemas a resolver em situações específicas. Formar­ durante um período de tempo suficiente para as con-
‑se é operar uma transformação, querida, esperada ou frontar com os resultados. Espera­‑se dele que esclareça
imposta, dando ao mesmo tempo vida a uma ligação que o futuro.
configura o conhecimento, a um desejo de progresso, a O formador, muitas vezes no papel de consultor, é o
uma motivação que não pode deixar de alimentar, con- garante dos investimentos imateriais ; os seus horizon-
fortar e, por vezes, restaurar a sua própria identidade. tes são mais longínquos. Deve ter uma visão alargada no
Formar­‑se é escolher a formação de entre outros espaço e no tempo, pensar em alternativas, e não elimi-
meios possíveis, para atingir um objectivo, para reali- nar demasiado depressa outras possibilidades. Habitu-
zar um projecto que a ultrapassa, seja ele pessoal, fa- ado a cultivar a dúvida e o espírito crítico, deve racio-
miliar, profissional, associativo ou político ; é também cinar globalmente incluindo as mudanças individuais e
envolver­‑se, ou seja, criar uma situação favorável a um colectivas que lhe é exigido que suscite nas transforma-
desenvolvimento desejado e duradouro. ções. Por natureza, desconfia das escolhas irreversíveis
Dito isto, a escolha da “ ferramenta de formação ” e das certezas peremptórias. E o facto de não ser mais
está longe de ser neutra. Através de um trabalho sobre as do que um mero contribuinte para o alcance de jogadas
suas próprias competências, as suas posturas, inscreve­ de outra escala que não a sua torna­‑o prudente em face
‑se numa biografia, um universo relacional, uma histó- do risco de que as suas análises possam fazer sombra
ria de vida. Com isto, envolver­‑se em formação é tam- aos responsáveis por essas jogadas.
bém agir sobre as suas apropriações colectivas, sobre a Em velocidade de cruzeiro ou de evolução lenta,
sua própria singularidade e sobre a sua interacção. Esta uns e outros têm tempo de se falar, se escutar e expe-
abordagem da formação de adultos assume uma outra rimentar com direito ao erro. Em regime de incerteza,
dimensão. Retomando um tema caro a Claude Dubar, turbulência, polémica, os seus pensamentos e acções
ela não é somente o produto duma história e de jogos de diferenciam­‑se muito mais. Face às incertezas e receios
equilíbrio e de desequilíbrio dos sistemas produtivos que frequentemente os acompanham, o primeiro não
e sociais. Ela aparece também como uma transacção tem outra escolha que não seja satisfazer­‑se com infor-
complexa entre o sujeito e os outros, uma confrontação mações incompletas e de decidir depressa, mesmo que
entre a imagem que se tem de si próprio e aquela que não se sinta pronto a fazê­‑lo. Porque ele é julgado pelos
nos é atribuída pelos outros, entre um projecto profis- resultados mais imediatos. Portador de valores huma-
sional e a busca de um reconhecimento social. nistas, o segundo talvez tenha mais necessidade de se
assegurar do rigor das suas análises e de as avaliar antes
Assim, este território tão particular que os forman- de agir. Ele sabe que pode ser mal julgado, porque se
dos e formadores decidem percorrer em conjunto ad- pode considerar que levou demasiado tempo ou muita
quire sentido não só pela alteração de competências que ponderação para agir — ou muito pouco, caso fracasse.
alimenta, mas também pelas perspectivas simbólicas e Ou ainda, porque quis desempenhar o seu papel hones-
imaginárias que desvenda. tamente, centrando­‑se no que dele depende em vez de
fazer crer que possui resposta para todos os problemas
que lhe são colocados. Ele deve, constantemente fazer
Ser formador hoje…? compreender que qualquer mudança pode ser aperce-
bida como uma ameaça por aqueles ou aquelas a quem
Dissemos do formador que ele (ela) era um pensador do ela atinge, e que é necessário, sistematicamente, muito
futuro. Bela expressão. Conhecemos também a comple- tempo para compreender e aprender. Em períodos de
xidade das suas relações com os decisores e financiado- instabilidade não se é uma eminência parda impune-
res que são, como os formandos, seus interlocutores. É mente.
uma coexistência incontornável, complexa e flutuante,
já que as formas de vida, valores, modos de trabalho po- Ser formador nestas condições pode então levar
dem ser diferentes. Max Weber a seu tempo, mostrou­‑o a trabalhar e a viver sob dois compromissos, em dois
nas relações entre o sábio e o político. tempos diferentes. Por um lado, é necessário articular
À guisa de caricatura, o decisor vive num universo com a realidade quotidiana dos problemas, ser um ac-
de tomada de decisão rápida. Ele é julgado pelos resul- tor como os outros no seio dos processos produtivos e
tados ao ano, ao mês, por vezes mesmo pelas cotações de criação de riqueza, financeiramente e em termos de
da Bolsa num determinado dia. Ele deve decidir sob contribuição para a mais­‑valia do património imaterial
pressão, centrando­‑se nas suas prioridades e portanto das pessoas e da organização. Por outro lado, deve ser
renunciar a outras escolhas possíveis. A sua credibili- pertinente para se resguardar da impertinência, em todo

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o caso ser “ razoavelmente irreverente ”. Isto implica fi- Ser formador hoje ? É exercer uma profissão difícil,
car diferente : para assegurar que se não faz espontane- apaixonante e dura. Um extracto de um poema de René
amente apelo aos êxitos do passado. Para relembrar que Char1 ilustra­‑o de forma mais acertada do que qualquer
não se pode trazer soluções harmoniosas aos problemas discurso: “se a tempestade permanentemente me quei-
económicos e financeiros, negligenciando as pessoas ma as costas, a minha onda ao largo é profunda, com-
e o seu desenvolvimento. Para ousar propor rupturas plexa, prestigiante. Não espero nada de definitivo, acei-
com os modos de pensar, nas formas de ler e de tratar to gingar entre duas dimensões desiguais. No entanto
as situações encontradas, para abrir no presente janelas os meus sinalizadores são de chumbo e não de cortiça,
para outros futuros possíveis e para futuros que façam o meu rasto é de sal e não de fumo.”
sentido.

Notas
As funções de laços de saber mudam. As responsa-
bilidades e os territórios de exercício dos formadores 1. Les matinaux — Gallimard — coll. Poésie — 1967.
mudam igualmente. Isto só pode modificar o acesso
e a relação do conhecimento, e isto à escala da União
Europeia. É um acto político no sentido mais profundo Lisboa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Uni-
do termo. Permite, ou não, a socialização e a inserção ; versidade de Lisboa, a 4 de Novembro de 2005
permite ou não posicionar­‑se na sociedade ; facilita, Pierre Caspar
mais ou menos, a revelação de talentos, o desenvolvi- Professor jubilado — C.N.A.M.
mento de capacidades de inovação, de autonomia e de
responsabilidade. Fazer progredir os direitos e as capa-
cidades de acesso ao conhecimento ao longo da vida é
repartir de uma forma que se espera mais equitativa a
Tradução de Alves Calado
herança cultural das gerações passadas ; é também fa-
cilitar a abertura aos patrimónios materiais e imateriais Caspar, Pierre (2007). Ser formador nos dias que correm — Novos ac-
criados pelo progresso das artes e ofícios, pelos avan- tores, novos espaços, novos tempos. Texto da conferência proferida na
ços das ciências e das técnicas. Em suma, melhorar as Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de
relações de cada um com o conhecimento, é enriquecer Lisboa, a 4 de Novembro de 2005. Sísifo. Revista de Ciências da Educação,
as entidades individuais e colectivas e, assim, o próprio 2, pp. 87‑94
exercício da cidadania. Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

94 sísifo 2 | pierre caspar | ser formador nos dias que correm: novos actores, novos espaços, novos tempos
s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 2 · j a n / a b r 0 7 issn 1646 ‑4990

Sísifo, revista de ciências de educação:


Instruções para os Autores

1. A Sísifo é uma revista universitária de Ciências da Educação, em formato electrónico, publicada pela Unidade
de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa;
2. A Sísifo é de consulta livre e está disponível no endereço http://sisifo.fpce.ul.pt.
3. A Sísifo é publicada em duas versões (portuguesa e inglesa). As traduções são da responsabilidade da revista;
4. Cada número da revista terá um responsável editorial que poderá solicitar o parecer de especialistas para, em
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9. As citações e referências a autores no texto seguem as normas seguintes: (autor, data) ou (autor, data: página/s);
se houver referências a mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, elas serão diferenciadas por uma
letra minúscula a seguir à data: (Bastos, 2002a), (Bastos, 2002b). No caso de a referência se referir a mais de
um autor: (Bastos, et al., 2002).
10. As notas de rodapé deverão ser reduzidas ao estritamente indispensável e conter apenas informações
complementares de natureza substantiva; a bibliografia será colocada no final do artigo e conterá apenas a lista
das referências feitas no texto ordenadas alfabeticamente e por ordem cronológica crescente para as referências
do mesmo autor;
11. Critérios bibliográficos:
a. Livros: Bastos, C. (2002). Ciência, poder, acção. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
b. Colectâneas: Bastos, C.; Almeida, M. & Feldman­‑Blanco (orgs.) (2002). Trânsitos coloniais: diálogos
críticos luso­‑brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
c. Clássicos, nomeadamente em tradução, indicar data da 1.ª edição e nome do tradutor: Espinosa, B.
(1988 [1670]). Tratado teológico­‑político. Tradução de D. P. Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional­‑Casa da
Moeda.

95
d. Artigos em revistas: Cabral, M. V. (2003). O exercício da cidadania política em perspectiva histórica
(Portugal e Brasil). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18 [indicar o número do volume anual], 51
[indicar o número da revista], pp. 31­‑60.
e. Artigos em colectâneas: Bastos, C. (2002). Um centro subalterno? A Escola Médica de Goa e o Império.
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