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samuel beckett

todos os que falam


texto cénico

tradução paulo eduardo carvalho

ASSéDIO
ENSEMBLE
TNSJ
2006
11-02-2019/2

Ir e Vir
(Come and Go: A dramaticule, 1967 / Va-et-vient:
Dramaticule, 1966)

de Samuel Beckett

Tradução: Paulo Eduardo Carvalho


Encenação e cenografia: Nuno Carinhas
Figurinos: Bernardo Monteiro
Desenho de luz: Nuno Meira
Sonoplastia: Francisco Leal
Interpretação: Alexandra Gabriel, Emília Silvestre e Rosa Quiroga
11-02-2019/3

Teatro Carlos Alberto, Porto, Novembro 2006


Num espectáculo com Um Fragmento de Monólogo, Baloiço e Não eu
Duração aproximada: 8’
11-02-2019/4

Personagens
FLO
VI
RU
(Idades indeterminadas)
11-02-2019/5

Sentadas ao centro do palco, lado a lado, da esquerda para


a direita, FLO, VI e RU. Muito direitas, voltadas para a
frente, as mãos fechadas sobre o colo.
Silêncio.

VI: Quando foi a última vez que nós as três nos juntámos?
RU: Não falemos.
(Silêncio.
VI sai pela esquerda.
Silêncio.)
FLO: Ru.
RU: Sim.
FLO: O que achas da Vi?
RU: Não mudou muito. (FLO desloca-se para o centro do
banco, ocupando o lugar deixado vazio por VI, e
sussurra ao ouvido de RU. Chocada.) Oh! (Olham uma
para a outra. FLO leva o dedo ao lábios.) E ela não
percebe?
FLO: Deus queira que não.
(VI entra. FLO e RU voltam-se para a frente, retomando
a postura inicial. VI senta-se à esquerda, no lugar antes
ocupado por FLO.
Silêncio.)
Vamos ficar sentadas, assim, as três, lado a lado, como
antigamente, no recreio do colégio das freiras.
RU: Sobre o tronco.
(Silêncio.
11-02-2019/6

FLO sai pela direita.


Silêncio.)
Vi.
VI: Sim.
RU: Como te parece a Flo?
VI: Na mesma. (RU desloca-se para o centro do banco,
ocupando o lugar deixado vazio por FLO, e sussurra ao
ouvido de VI. Chocada.) Oh! (Olham uma para a outra.
RU leva o dedo aos lábios.) E ninguém lhe disse?
RU: Deus não permita.
(FLO entra. RU e VI voltam-se para a frente, retomando
a postura inicial. FLO senta-se à direita, no lugar antes
ocupado por RU.)
De mãos dadas… daquele modo.
FLO: Sonhando… com o amor.
(Silêncio.
RU sai pela esquerda.
Silêncio.)
VI: Flo.
FLO: Sim.
VI: Já olhaste bem para a Ru?
FLO: Vê-se mal com esta luz. (VI desloca-se para o centro
do banco, ocupando o lugar deixado vazio por RU, e
sussurra ao ouvido de FLO. Chocada.) Oh! (Olham uma
para a outra. VI leva o dedo aos lábios.) E ela não sabe?
VI: Peço a Deus que não.
11-02-2019/7

(RU entra. VI e FLO voltam-se para a frente, retomando


a postura inicial. RU senta-se à esquerda, no lugar antes
ocupado por VI.
Silêncio.)
E se não falássemos dos velhos tempos? (Silêncio.) Nem
do que aconteceu depois? (Silêncio.) E déssemos antes as
mãos daquele velho modo?
(Após uns instantes, elas dão as mãos do modo que se
segue: a mão direita de VI com a mão direita de RU. A
mão esquerda de VI com a mão esquerda de FLO, a mão
direita de FLO com a mão esquerda de RU, os braços de
VI sobre o braço esquerdo de RU e o braço direito de
FLO. Os três pares de mãos dadas descansam nos seus
colos.
Silêncio.)
FLO: Consigo sentir os anéis.
(Silêncio.)

Cortina.
11-02-2019/8

NOTAS

Posições sucessivas
1 FLO VI RU
2 FLO RU
FLO RU
3 VI FLO RU
4 VI RU
VI RU
5 VI RU FLO
6 VI FLO
VI FLO
7 RU VI FLO

Mãos
RU VI FLO

Luz
Suave, unicamente de cima e concentrada no espaço de representação. O resto
do palco o mais possível às escuras.

Figurinos
Três casacos compridos, abotoados em cima: violeta escuro (VI), vermelho
escuro (RU) e amarelo escuro (FLO). Três chapéus, com umas abas
suficientemente largas para garantir que os rostos permaneçam na sombra. As
três personagens o mais possível parecidas, diferenciadas unicamente pela cor
dos casacos. Sapatos ligeiros com solas de borracha. As mãos o mais visíveis
possível com a ajuda da maquilhagem. Ausência aparente de anéis.

Banco
Um banco estreito, sem costas, suficientemente longo para que as três
mulheres se possam sentar sem precisarem de se tocar. O menos visível
possível. Não deve ser claro em que é que elas estão sentadas.
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Saídas
Não se deve conseguir ver as saídas das figuras do palco. Devem desaparecer
a alguns passos da área iluminada. Se não estiver suficientemente escuro para
a realização deste efeito, pode recorrer-se à utilização de painéis ou de cortinas
o menos possível visíveis. Saídas e entradas lentas, sem se ouvir o som dos
passos.

Exclamações
Três sons muito diferentes.

Vozes
No limite da audibilidade. Sem qualquer timbre ou cor, à excepção das três
exclamações a seguir a cada uma das confidências sussurradas e das duas
réplicas seguintes.
11-02-2019/10

Um Fragmento de
Monólogo
(A Piece of Monologue, 1979 / Solo, 1982)

de Samuel Beckett

Tradução: Paulo Eduardo Carvalho


Encenação e cenografia: Nuno Carinhas
Figurinos: Bernardo Monteiro
Desenho de luz: Nuno Meira
Sonoplastia: Francisco Leal
Interpretação: João Cardoso
11-02-2019/11

Teatro Carlos Alberto, Porto, Novembro 2006


Num espectáculo com Ir e Vir, Baloiço e Não eu
Duração aproximada: 20’
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Cortina.
Luz fraca e difusa.
O RECITANTE encontra-se próximo da boca de cena, à
esquerda.
Cabelo branco, camisa de dormir branca, meias brancas.
Dois metros à sua esquerda, ao mesmo nível, à mesma
altura, um candeeiro a petróleo, com um globo branco, do
tamanho de um crânio, fracamente iluminado.
Completamente à direita, ao mesmo nível, a extremidade
branca de um catre.
Dez segundos antes do início do discurso.
Trinta segundos antes do final do discurso, a luz do
candeeiro começa a diminuir.
Candeeiro apagado. Silêncio. O RECITANTE, o globo, o pé
do catre, escassamente visíveis na luz difusa.
Dez segundos.
Cortina.
11-02-2019/13

RECITANTE: Nascer foi a sua morte. Outra vez. As


palavras são escassas. Morrer também. Nascer foi a sua
morte. Um sorriso cadavérico desde então. Acordado
esperando a tampa que há-de chegar. No ninho e no
berço. Mamar o seu primeiro fiasco. Com os primeiros
passos. Da mamã para a criadeira, para trás e para a
frente. O caminho todo. Atirado de colo em colo. Sempre
com um sorriso cadavérico. De funeral em funeral. Até
agora. Esta noite. Dois biliões e meio de segundos. Outra
vez. Dois biliões e meio de segundos. Difícil de acreditar
tão poucos. De funeral em funeral. Funerais dos… ele
quase dizia dos entes queridos. Trinta mil noites. Difícil
de acreditar tão poucas. Nascido na mais escura das
noites. O sol há muito desaparecido por detrás dos
pinheiros. As novas agulhas agora verdejantes. No quarto
o escuro que se aproxima. Até à luz fraca do candeeiro. A
mexa enrolada. E agora. Esta noite. Acordado chegada a
noite. Todas as noites. Luz fraca no quarto. Origem
desconhecida. Nenhuma da janela. Não. Quase nenhuma.
Nenhuma é coisa que não existe. Avança tacteante para a
janela e olha fixamente lá para fora. Ali de pé olhando
fixamente lá para fora. Completamente imóvel olhando
fixamente lá para fora. Nada se agita naquela vastidão
escura. Acaba por recuar tacteante para onde está o
candeeiro. Onde estava o candeeiro. Quando se apagou
da última vez. Uns fósforos soltos no bolso direito.
Acende um sobre a nádega como o seu pai lhe ensinara.
Remove o globo branco e leitoso e pousa-o. O fósforo
apaga-se. Acende um segundo fósforo como o anterior.
Remove a chaminé de vidro. Baço. Segura-a na mão
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esquerda. O fósforo apaga-se. Acende um terceiro fósforo


como o anterior e acende a mexa. Recoloca a chaminé. O
fósforo apaga-se. Recoloca o globo. Enrola a mexa.
Recua para a orla da luz e volta-se para leste. Parede
despida. Assim todas as noites. Acordado. Meias. Camisa
de dormir. Janela. Candeeiro. Recua para a orla da luz e
fica de pé voltado para a parede despida. Outrora coberta
de imagens. Imagens dos… ele quase dizia dos entes
queridos. Sem molduras. Sem vidros. Presas à parede
com pioneses. De todas as formas e tamanhos.
Arrancadas umas a seguir às outras. Desaparecidas.
Feitas em pedaços e atiradas para o chão. Espalhadas pelo
chão. Não de uma só vez. Nenhum súbito ataque de…
sem palavra. Arrancadas da parede e feitas em pedaços
uma a uma. Ao longo dos anos. Anos de noites. Nada na
parede agora para além dos pioneses. Nem todos. Alguns
arrancados com o alicate. Alguns segurando ainda um
pedaço. Assim ali de pé voltado para a parede despida.
Continuando a morrer. Nem mais nem menos. Não.
Menos. Menos para morrer. Sempre menos. Como a luz
chegada a noite. Ali de pé voltado para leste. Aquela
superfície despida esburacada por pioneses outrora
branca na sombra. Outrora capaz de os nomear a todos.
Ali estava o pai. Aquele vazio cinzento. Ali a mãe.
Aquele outro. Ali os dois juntos. Sorrindo. O dia do
casamento. Ali os três. Aquela mancha cinzenta. Ali
sozinho. Ele sozinho. E por aí fora. Agora já não.
Esquecidos. Desaparecidos todos há muito tempo.
Arrancados e desfeitos em pedaços. Espalhados pelo
chão. Varridos para debaixo da cama e aí esquecidos.
Milhares de pedaços debaixo da cama com o pó e as
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aranhas. Todos os… ele quase dizia os entes queridos. Ali


de pé voltado para a parede olhando fixamente para o
além. Nada ali também. Nada se agita ali também. Nada
se agita em sítio nenhum. Nada que se veja em sítio
nenhum. Nada que se ouça em sítio nenhum. Um quarto
outrora cheio de sons. Sons fracos. De origem
desconhecida. Cada vez menos e mais fracos à medida
que o tempo foi passando. À medida que as noites foram
passando. Nenhum agora. Não. Nenhum é coisa que não
existe. A chuva algumas noites ainda batendo contra as
vidraças. Ou caindo delicada naquele lugar lá em baixo.
Ainda agora. O candeeiro com fumo embora com a mexa
enrolada. Estranho. Um fumo fraco que se escapa de um
orifício no globo. O tecto baixo manchado de noite após
noite disto. Uma mancha escura e informe sobre a
superfície branca. Outrora branca. De pé voltado para a
parede após os diversos movimentos já antes descritos. A
saber acordado chegada a noite e veste a camisa de
dormir e as meias. Não. Já assim vestido. Assim vestido a
noite toda. O dia todo. Os dias e as noites todas.
Acordado chegada a noite em camisa de dormir e meias e
após um instante para se orientar avança tacteante para a
janela. Luz fraca no quarto. Indizivelmente fraca. De
origem desconhecida. De pé completamente imóvel
olhando fixamente lá para fora. Para a vastidão escura.
Nada ali. Nada se agita. Que ele possa ver. Ouvir. Deixa-
se ficar ali assim como se incapaz de se voltar a mexer.
Ou sem vontade de se voltar a mexer. Sem vontade
suficiente para se voltar a mexer. Acaba por se voltar e
recuar tacteante na direcção de onde ele sabe que está o
candeeiro. Onde pensa que sabe. Onde estava da última
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vez. Quando se apagou da última vez. Primeiro fósforo


tal como já antes descrito para o globo. Segundo para a
chaminé. Terceiro para a mexa. Chaminé e globo
recolocados. Enrola a mexa. Recua para a orla da luz e
volta-se para a parede. Leste. Imóvel como o candeeiro a
seu lado. Camisa de dormir e meias brancas para reflectir
a luz fraca. Outrora branca. Cabelos brancos para reflectir
a luz fraca. O pé do catre apenas visível no bordo do
estrado. Outrora branco para reflectir a luz fraca. Ali de
pé olhando fixamente para o além. Nada. Escuridão
vazia. Até à primeira palavra tudo sempre igual. Noite
após noite tudo igual. Nascer. Depois aparecimento
gradual de uma forma esbatida. Saída do escuro. Uma
janela. Voltada para oeste. O sol há muito desaparecido
por detrás dos pinheiros. A luz a esmorecer. Em breve
mais nenhuma para esmorecer. Não. Nenhuma luz é coisa
que não existe. Um céu sem estrelas e sem lua. Vai
esmorecendo até à aurora e nunca esmorece
completamente. Ali no escuro aquela janela. A noite que
chega lentamente. Os olhos colados à vidraça fitam
aquela primeira noite. Acaba por se afastar voltando-se
para o quarto obscurecido. Ali por fim lentamente uma
mão esbatida. Erguendo um bocado de papel torcido em
chamas. À luz da chama esbatidas a mão e o globo
branco e leitoso. Depois uma segunda mão. À luz da
chama. Remove o globo e desaparece. Reaparece vazia.
Remove a chaminé de vidro. Duas mãos e a chaminé à
luz da chama. A chama na mexa. A chaminé recolocada.
A mão com a chama desaparece. A segunda mão
desaparece. A chaminé sozinha na obscuridade. A mão
reaparece com o globo. O globo recolocado. Enrola a
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mexa. Desaparece. O globo pálido sozinho na penumbra.


Brilho acobreado da barra da cama. Desaparecimento
gradual. Nascer a sua morte. Aquele sorriso marcado.
Trinta mil noites. De pé na orla do candeeiro olhando
fixamente para o além. De regresso ao escuro absoluto
outra vez. A janela desaparecida. As mãos desaparecidas.
A luz desaparecida. Tudo desaparecido. Repetidamente.
Repetidamente desaparecidas. Até que lentamente o
escuro se despede outra vez. Luz cinzenta. A chuva
batendo. Guarda-chuvas em redor de um túmulo. Vistos
de cima. Capas negras escorrendo chuva. Uma vala negra
lá em baixo. A chuva borbulhando na lama negra. Vazia
por enquanto. Aquele lugar lá em baixo. De que… ele
quase dizia de que ente querido? Trinta segundos. A
acrescentar aos cerca de dois biliões e meio. Depois
desaparecimento gradual. Escuro absoluto outra vez.
Abençoado escuro. Não. Absoluto é coisa que não existe.
De pé olhando fixamente para o além entreouvindo o que
diz. Ele? As palavras escorrendo-lhe da boca.
Contentando-se com a sua boca. Acende o candeeiro tal
como já antes descrito. Recua para a orla da luz e volta-se
para a parede. Olha fixamente para o escuro. Espera pela
primeira palavra sempre do mesmo modo. Ela assoma à
sua boca. Afasta os lábios e agita a língua. Nascer. Rasga
o escuro. Lentamente a janela. Aquela primeira noite. O
quarto. A chama. As mãos. O candeeiro. O brilho
acobreado. Desaparecimento gradual. Desaparecidos.
Repetidamente. Repetidamente desaparecidos. Boca
aberta. Um grito. Sufocado pelo som da palavra. O escuro
rasga-se. Luz cinzenta. Chuva batendo. Guarda-chuvas
escorrendo. Vala. Lama negra borbulhante. Caixão fora
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do apoio. De quem? Desaparecimento gradual.


Desaparecidos. Avançar para outros assuntos. Tentar
avançar. Para outros assuntos. A que distância da parede?
A cabeça quase encostada. Como na janela. Olhos
colados à vidraça olhando fixamente lá para fora. Nada se
agita. Vastidão escura. Ali de pé completamente imóvel
olhando fixamente lá para fora como incapaz de se voltar
a mexer. Ou desaparecida a vontade de se voltar a mexer.
Desaparecida. Um grito fraco no seu ouvido. Boca muito
aberta. Fechada com um sibilo de respiração. Lábios
outra vez juntos. Sente o toque delicado do lábio sobre o
lábio. O lábio lambendo o lábio. Depois ambos afastados
por um grito como antes. Onde está ele agora? De volta à
janela olhando fixamente lá para fora. Olhos colados à
vidraça. Como se olhando pela última vez. Afasta-se
finalmente e avança tacteante através de uma luz fraca e
indescritível em direcção a um candeeiro invisível. A
camisa de dormir branca deslocando-se através daquela
obscuridade. Outrora branca. Acende o candeeiro e
avança para a parede tal como já antes descrito. A cabeça
quase encostada. Ali de pé olhando fixamente para o além
esperando pela primeira palavra. Ela assoma à sua boca.
Nascer. Afasta os lábios e agita a língua. A ponta da
língua. Sente o toque delicado da língua nos lábios. Dos
lábios na língua. Aparecimento gradual do escuro exterior
através da janela. Olha fixamente através de uma fenda
no escuro para outro escuro. Um outro escuro. O sol há
muito desaparecido por detrás dos pinheiros. Nada se
agita. Nada sequer tenuemente se agita. Completamente
imóvel de olhos colados à vidraça. Como se olhando pela
última vez. Naquela primeira noite. De mais de trinta mil.
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Acaba por se afastar voltando-se para o quarto


obscurecido. Onde em breve estará. Onde estará esta
noite. Chama. Mãos. Candeeiro. Brilho acobreado. Globo
pálido na obscuridade. A trave de cobre da cama
reflectindo a luz. Trinta segundos. Para acrescentar aos
cerca de dois biliões e meio. Desaparecimento gradual.
Desaparecidos. Grito. Extinto com uma expiração pelas
narinas. Repetidamente. Repetidamente desaparecidos.
Até ao túmulo de quem? De que… ele quase dizia de que
ente querido? Ele? Vala negra batida pela chuva. Uma
saída através da fenda cinzenta no escuro. Vistos de cima.
Capas negras escorrendo chuva. Lama negra borbulhante.
O caixão a caminho. Um ente querido… ele quase dizia
um ente querido a caminho. Ela a caminho. Trinta
segundos. Desaparecimento gradual. Desaparecidos. Ali
de pé olhando fixamente para o além. De regresso ao
escuro absoluto outra vez. Não. Absoluto é coisa que não
existe. A cabeça quase encostada à parede. O cabelo
branco reflectindo a luz. Camisa de dormir branca. Meias
brancas. O pé branco do catre no bordo do estrado à
esquerda do palco. Outrora branco. Ao menor…
desfalecimento a cabeça apoiada na parede. Mas não.
Completamente imóvel de cabeça erguida olhando
fixamente para o além. Nada se agita. Nada sequer
tenuemente se agita. Trinta mil noites de fantasmas no
além. Além daquele escuro além. Luz fantasma. Noites
fantasmas. Quartos fantasmas. Túmulos fantasmas.
Fantasmas dos… ele quase dizia fantasmas dos entes
queridos. Esperando pela palavra final. Ali de pé olhando
fixamente para o além para aquele véu negro os lábios
estremecendo de palavras entreouvidas. Ocupando-se de
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outros assuntos. Tentando ocupar-se de outros assuntos.


Até entreouvir que não existem outros assuntos. Que
nunca existiram outros assuntos. Nunca dois assuntos.
Nunca senão um único assunto. Os mortos e os
desaparecidos. Os moribundos e os idos. Da palavra ir. A
palavra foi-se. Como a luz indo-se agora. Começando a
ir-se. No quarto. Onde mais? Imperceptível para ele
olhando fixamente para o além. Só aquela do globo. Não
a outra. A indescritível. De lugar nenhum. De todos os
lados de lugar nenhum. Indizivelmente fraca. Só aquela
do globo. Só ela indo-se.
11-02-2019/21

Baloiço
(Rockaby, 1981 / Berceuse, 1982)

de Samuel Beckett

Tradução: Paulo Eduardo Carvalho


Encenação e cenografia: Nuno Carinhas
Figurinos: Bernardo Monteiro
Desenho de luz: Nuno Meira
Sonoplastia: Francisco Leal
Interpretação: Rosa Quiroga
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Teatro Carlos Alberto, Porto, Novembro 2006


Num espectáculo com Ir e Vir, Um Fragmento de Monólogo e Não eu
Duração aproximada: 14’

NOTAS
Luz: Moderada, unicamente sobre a cadeira. O resto do palco no
escuro.
Um foco igualmente moderado e constante sobre o rosto, ao longo
de toda a representação, indiferente às sucessivas alterações na
intensidade da luz. Ora suficientemente amplo para incluir os
limites estreitos do baloiçar da cadeira ora concentrado no rosto
em repouso ou durante o acto de baloiçar. Depois, durante o
discurso, o rosto ligeiramente oscilante, entrando e saindo da luz.
Subida lenta da luz, na abertura: primeiro, foco apenas sobre o
rosto, pausa longa, depois luz sobre a cadeira.
Descida lenta da luz, no final: primeiro, a cadeira, pausa longa com
foco apenas sobre o rosto, a cabeça inclinando-se ligeiramente até
parar, desaparecimento da luz.
11-02-2019/23

M: Prematuramente envelhecida. Cabelos cinzentos despenteados.


Olhos grandes num rosto branco, grande e inexpressivo. Mãos
brancas segurando as extremidades dos braços da cadeira.
Olhos: Ora fechados, ora abertos, num olhar fixo e sem pestanejar.
Igualmente distribuídos na secção 1, crescentemente fechados nas
secções 2 e 3, fechados a maior parte do tempo a partir de metade
da secção 4.
Figurino: Um vestido de noite subido de renda preta. Mangas
compridas. Lantejoulas que brilhem ao baloiçar. Um chapéuzinho
pouco elaborado e incongruente, meio de lado, com uma
ornamentação extravagante de modo a reflectir a luz ao baloiçar.
Atitude: Completamente imóvel até ao desaparecimento da luz
sobre a cadeira. Depois, com a luz do foco, cabeça lentamente
inclinada.
Cadeira: Madeira desbotada muito polida, de modo a brilhar ao
baloiçar. Trave de descanso para os pés. Costas direitas. Braços
ligeiramente curvados para dentro para sugerir um abraço.
Baloiçar: Ligeiro. Lento. Controlado mecanicamente, sem qualquer
assistência da parte de M.
Voz: Perto do final da secção 4, digamos a partir de “dizendo para
si própria” em diante, gradualmente mais suave. As frases em
itálico são ditas em simultâneo por M e V. Mais suave a cada
repetição. O “mais” de M um pouco mais suave a cada repetição.

M: Mulher na cadeira de baloiço.


V: A sua voz gravada.
Subida lenta da luz sobre M na cadeira de baloiço voltada para a
frente, próxima da boca de cena, ligeiramente descentrada para a
esquerda.
11-02-2019/24

M: Mais.
(Pausa. Baloiçar e voz juntos.)
V: até que por fim
chegou o dia
por fim chegou
no final de um longo dia
em que ela disse
para si própria
para quem mais
tempo de parar
tempo de parar
de andar
para a frente e para trás
toda ela olhos
por todos os lados
em cima e em baixo
em busca de uma outra
uma outra como ela
uma outra criatura como ela
um pouco como ela
para a frente e para trás
toda ela olhos
por todos os lados
em cima e em baixo
em busca de uma outra
até que por fim
no final de um longo dia
para si própria
para quem mais
tempo de parar
11-02-2019/25

tempo de parar
de andar
para a frente e para trás
toda ela olhos
por todos os lados
em cima e em baixo
em busca de uma outra
uma outra alma viva
para a frente e para trás
toda olhos como ela
por todos os lados
em cima e em baixo
em busca de uma outra
uma outra como ela
um pouco como ela
de andar
para a frente e para trás
até que por fim
no final de um longo dia
para si própria
para quem mais
tempo de parar
de andar
para a frente e para trás
tempo de parar
tempo de parar
(Juntas: eco de “tempo de parar”, coincidindo com a
interrupção do baloiçar, descida ligeira da iluminação.
Pausa longa.)
M: Mais.
11-02-2019/26

(Pausa. Baloiçar e voz juntos.)


V: de modo que por fim
no final de um longo dia
ela voltou a casa
por fim voltou
dizendo para si própria
para quem mais
tempo de parar
tempo de parar
de andar
para a frente e para trás
tempo de voltar
e sentar-se à sua janela
tranquila à sua janela
voltada para outras janelas
de modo que por fim
no final de um longo dia
por fim voltou
e sentou-se à sua janela
subiu o estore e sentou-se
tranquila à sua janela
única janela
voltada para outras janelas
outras únicas janelas
toda ela olhos
por todos os lados
em cima e em baixo
em busca de uma outra
à sua janela
uma outra como ela
um pouco como ela
11-02-2019/27

uma outra alma viva


uma única outra alma viva
à sua janela
de volta como ela
de volta a casa
por fim
no final de um longo dia
dizendo para si própria
para quem mais
tempo de parar
tempo de parar
de andar
para a frente e para trás
tempo de voltar
e sentar-se
à sua janela
tranquila à sua janela
voltada para outras janelas
outras únicas janelas
toda ela olhos
por todos os lados
em cima e em baixo
em busca de uma outra
uma outra como ela
um pouco como ela
uma outra alma viva
uma única outra alma viva
(Juntas: eco de “alma viva”, coincidindo com a
interrupção do baloiçar, descida ligeira da iluminação.
Pausa longa.)
11-02-2019/28

M: Mais.
(Pausa. Baloiçar e voz juntos.)
V: até que por fim
chegou o dia
por fim chegou
no final de um longo dia
sentada à sua janela
tranquila à sua janela
única janela
voltada para outras janelas
outras únicas janelas
os estores todos para baixo
nunca um subido
apenas o seu subido
até que chegou o dia
por fim chegou
no final de um longo dia
sentada à sua janela
tranquila à sua janela
toda ela olhos
por todos os lados
em cima e em baixo
em busca de um estore subido
um só estore subido
não mais do que isso
nem pensar num rosto
por detrás da vidraça
olhos famintos
como os seus
de ver
11-02-2019/29

de serem vistos
não
um estore subido
como o seu
um pouco como o seu
um estore subido não mais
uma outra criatura ali
algures ali
por detrás da vidraça
uma outra alma viva
até que chegou o dia
por fim chegou
no final de um longo dia
em que ela disse
para si própria
para quem mais
tempo de parar
tempo de parar
sentada à sua janela
tranquila à sua janela
única janela
voltada para outras janelas
outras únicas janelas
toda ela olhos
por todos os lados
em cima e em baixo
tempo de parar
tempo de parar
(Juntas: eco de “tempo de parar”, coincidindo com a
interrupção do baloiçar, descida ligeira da iluminação.
Pausa longa.)
11-02-2019/30

M: Mais.
(Pausa. Baloiçar e voz juntos.)
V: de modo que por fim
no final de um longo dia
ela desceu
por fim desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
mesmo até lá abaixo
e sentou-se
na velha cadeira de baloiço
a cadeira da sua mãe
em que a sua mãe baloiçava
todos os dias de todos os anos
toda de preto vestida
no seu melhor preto
sentava-se e baloiçava
baloiçava
até o seu fim chegar
por fim chegar
enlouquecida diziam
enlouquecida
mas inofensiva
enlouquecida e inofensiva
morta um dia
não
uma noite
morta uma noite
na cadeira de baloiço
no seu melhor preto
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a cabeça tombada
e a cadeira baloiçando
continuando a baloiçar
de modo que por fim
no final de um longo dia
ela desceu
por fim desceu
a escada íngreme
baixou o estore e desceu
mesmo até lá abaixo
e sentou-se
na velha cadeira de baloiço
aqueles braços por fim
e baloiçou
baloiçou
de olhos fechados
fechando os olhos
ela durante tanto tempo
toda olhos
olhos famintos
por todos os lados
em cima e em baixo
para a frente e para trás
sentada à sua janela
para ver
ser vista
até que por fim
no final de um longo dia
para si própria
para quem mais
tempo de parar
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baixar o estore e parar


tempo de descer
descer a escada íngreme
tempo de descer
mesmo até lá abaixo
ser ela própria a outra
a sua outra alma viva
de modo que por fim
no final de um longo dia
ela desceu
baixou o estore e desceu
mesmo até lá abaixo
e sentou-se
na velha cadeira de baloiço
e baloiçou
baloiçou
dizendo para si própria
não
mais disto não
na cadeira de baloiço
aqueles braços por fim
dizendo para a cadeira
baloiça-a daqui para fora
pára os seus olhos
merda para a vida
pára os seus olhos
baloiça-a daqui
baloiça-a daqui para fora
(Juntas: eco de “baloiça-a daqui para fora”, coincidindo
com a interrupção do baloiçar, descida ligeira da
iluminação.)
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Não Eu
(Not I, 1973 / Pas moi, 1975)

de Samuel Beckett

Tradução: Paulo Eduardo Carvalho


Encenação e cenografia: Nuno Carinhas
Figurinos: Bernardo Monteiro
Desenho de luz: Nuno Meira
Sonoplastia: Francisco Leal
Interpretação: Emília Silvestre e João Cardoso
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Teatro Carlos Alberto, Porto, Novembro 2006


Num espectáculo com Ir e Vir, Um Fragmento de Monólogo e Baloiço
Duração aproximada: 18’
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Palco no escuro, à excepção de BOCA, colocada ao fundo do


palco, a uma altura de cerca de 3 metros, tenuemente iluminada por
baixo e em plano aproximado, o resto do rosto na sombra.
Microfone invisível.
AUDITOR, mais próximo da boca de cena, à esquerda, uma figura
alta de pé, de sexo indeterminado, vestido dos pés à cabeça com
uma djelaba preta, com capuz, toda ele muito tenuemente iluminado,
colocado sobre uma plataforma invisível com cerca de 1,5 metro de
altura, tornando-se claro, unicamente pela sua atitude, que está
diagonalmente voltado para BOCA, sempre completamente imóvel,
à excepção dos quatro breves momentos indicados no texto.
NOTA sobre movimento: este consiste no simples gesto de levantar
os braços lateralmente, deixando-os depois cair, num gesto de
compaixão impotente. A sua intensidade deve diminuir a cada
ocorrência, até ser quase imperceptível da terceira vez. Existe
tempo suficiente para a execução de todo o movimento em cada
uma das pausas, até BOCA recuperar da sua recusa veemente de
renunciar à terceira pessoa.
À medida que as luzes da sala vão diminuindo, ouve-se a voz
ininteligível de BOCA por detrás da cortina. Luzes da sala
apagadas. A voz continua ininteligível por detrás da cortina durante
mais 10 segundos. Com a subida da cortina, improvisação a partir
dos elementos dados para, uma vez a cortina completamente
levantada e conseguida a atenção suficiente, entrar no texto
propriamente dito, a saber:
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BOCA: …cá para fora… para este mundo… este mundo…


uma coisa minúscula… antes da sua hora… este buraco
abando– … o quê?... uma rapariga?... sim… uma
rapariga minúscula… para este… cá para fora para
este… antes da sua hora… este buraco abandonado por
Deus chamado… chamado… não interessa…
progenitores desconhecidos… desaparecidos… ele
esfumou-se… sem deixar sinal… o tempo de abotoar a
braguilha… ela a mesma coisa… oito meses mais
tarde… quase no ponto… por isso amor nenhum… ao
menos isso… amor nenhum tal como normalmente
acontece no… um bebé sem voz… em casa… não…
nem na verdade quanto a isso de nenhuma espécie…
nenhum amor de nenhuma espécie… nem então nem
depois… por isso história típica… nada de relevante até
fazer sessenta quando – … o quê?... setenta?... Deus
meu!... até fazer setenta… vagueando num campo…
distraidamente em busca de prímulas… para fazer uma
coroa… alguns passos e depois parar… fitar o vazio…
depois continuar… mais alguns… parar e fitar outra
vez… e assim continuando… completamente à
deriva… quando subitamente… gradualmente… tudo
se apagou… toda aquela luz de uma manhã de Abril… e
ela deu consigo no –… o quê?... quem?... não!... ela!...
(Pausa e movimento 1.) … deu consigo no escuro… e
senão exactamente… inanimada… inanimada… porque
ela ainda conseguia ouvir o zumbido… por assim
dizer… nos ouvidos… e um raio de luz veio e foi…
veio e foi… tal como a lua é capaz de lançar… à
deriva… jogando às escondidas nas nuvens… mas tão
entorpecida… sentindo-se… sentindo-se tão
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entorpecida… que ela não sabia… em que posição é


que estava… imagine-se!... em que posição é que
estava!... se de pé… ou sentada… mas o cérebro –… o
quê?... ajoelhada?... sim… de pé… sentada… ou
ajoelhada… mas o cérebro –… o quê?... deitada?...
sim… de pé… sentada… ajoelhada… ou deitada… mas
o cérebro ainda… ainda… de certo modo… porque o
seu primeiro pensamento foi… oh muito depois…
súbito vislumbre… educada como ela fora a acreditar…
com os outros extraviados… num Deus… (Riso breve.)
… misericordioso… (Uma gargalhada sonora.)… o seu
primeiro pensamento foi… oh muito depois… súbito
vislumbre… que estava a ser castigada… pelos seus
pecados… alguns dos quais então… como que para lhe
dar razão… lhe passaram subitamente pela cabeça…
um a seguir ao outro… depois descartados como
ridículos… oh muito depois… este pensamento
descartado… quando ela subitamente se apercebeu…
gradualmente se apercebeu… que não estava a sofrer…
imaginem!... não estava a sofrer… na verdade não se
conseguia lembrar… assim de repente… quando é que
tinha sofrido menos… a menos claro que estivesse…
destinada a sofrer… ah!... fadada a sofrer… tal como já
outras vezes… na sua vida… quando claramente
preparada para ter prazer… ela acabara… por não ter
nenhum… nem o mais pequeno… situação na qual
claro… aquela noção de castigo… por um ou outro
pecado… ou por todos… ou por nenhuma razão em
particular… por si mesma… o que ela compreendia
perfeitamente… essa noção de castigo… que primeiro
lhe ocorrera… educada como fora a acreditar… com os
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outros extraviados… num Deus… (Riso breve.)…


misericordioso… (Uma gargalhada sonora.)… o seu
primeiro pensamento foi… depois descartado… como
ridículo… talvez não fosse assim tão ridículo… afinal
de contas… e assim continuando… tudo isso…
raciocínios vãos… até um outro pensamento… oh
muito depois… súbito vislumbre… muito ridículo mas
–… o quê?... o zumbido?... sim… sempre o zumbido…
por assim dizer… nos ouvidos… embora claro na
realidade… não nos ouvidos… no crânio… um rugido
surdo no crânio… e o tempo todo este raio ou feixe…
como um raio de luar… mas talvez não… certamente
que não… sempre no mesmo sítio… ora luminoso…
ora velado… mas sempre no mesmo sítio… como
nenhuma lua seria capaz… não… nenhuma lua… tudo
parte da mesma vontade de… atormentar… embora na
realidade de facto… não minimamente… nem uma
pontada… até ver… ah!... até ver… este outro
pensamento então… oh muito depois… súbito
vislumbre… muito ridículo na verdade mas tão seu…
num certo sentido… que ela bem poderia… gemer… de
tempos a tempos… contorcer-se não conseguia… como
se em verdadeira agonia… mas não conseguia… não
conseguia decidir-se… alguma falha na sua
personalidade… incapaz do logro… ou então a
máquina… mais provável a máquina… tão desligada…
nunca recebeu a mensagem… ou incapaz de reagir…
como se entorpecida… não conseguia emitir aquele
som… não um som qualquer… nenhum som de
nenhuma espécie… nenhum grito de ajuda por
exemplo… se a isso se sentisse inclinada… gritar…
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(Grita.)… depois escutar… (Silêncio.) gritar outra


vez… (Grita outra vez.)… depois escutar outra vez…
(Silêncio.)… não… ao menos isso… tudo silencioso
como um túmulo… nada nela que –… o quê?... o
zumbido?... sim… tudo silencioso não fosse o
zumbido… por assim dizer… nada nela que se
mexesse… que ela pudesse sentir… apenas as
pálpebras… presumivelmente… de tempos a tempos…
tapar a luz… reflexo como dizem… nenhuma sensação
de nenhuma espécie… mas as pálpebras… mesmo
normalmente… quem as sente?... a abrir… a fechar…
toda aquela humidade… mas ainda assim o cérebro…
ainda assim suficientemente… oh completamente…
nesta fase… em controlo… sob controlo… duvidar até
disto… porque naquela manhã de Abril… assim pensou
o cérebro … naquela manhã de Abril… ela fixando com
o seu olho… um sino distante… quando ela se apressou
em sua direcção… fixando-o com o seu olho… para
que ele não lhe escapasse… não se tinha apagado
tudo… toda aquela luz… de si mesma… sem
nenhuma… nenhuma… da sua parte… e assim
continuando… e assim continuando pensou… dúvidas
vãs… e tudo completamente parado… um silêncio doce
como num túmulo… quando subitamente…
gradualmente… ela se aperce–… o quê?... o
zumbido?... sim… tudo completamente quieto não fosse
o zumbido… quando subitamente ela se apercebeu…
que as palavras –… o quê?... quem?... não!... ela!...
(Pausa e movimento 2.)… se apercebeu… que as
palavras surgiam… imaginem!... que as palavras
surgiam… uma voz que ela não reconhecia… a
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princípio… fazia já tanto tempo que se fizera ouvir…


depois finalmente teve de admitir… que não podia
senão ser… a sua própria… certos sons vocálicos… que
ela nunca ouvira… em nenhum outro lugar… a tal
ponto que as pessoas a olhavam fixamente… nas raras
ocasiões… uma ou duas vezes por ano… sempre no
Inverno por alguma estranha razão… a olhavam
fixamente com um ar de incompreensão… e agora este
fluxo… este fluxo contínuo… ela que nunca fora…
bem pelo contrário… praticamente sem voz… toda a
sua vida… como é que ela sobreviveu!... mesmo
quando fazia as compras… na rua às compras… numa
qualquer loja… ou mercado buliçoso … a lista numa
mão… com o saco… o velho saco preto das compras…
depois ali de pé à espera… o tempo que fosse preciso…
no meio da multidão… imóvel… fitando o vazio… a
boca entreaberta como de costume… até lho virem
entregar… o saco de novo na mão… depois pagar e
sair… nem sequer um obrigado… como é que ela
sobreviveu!... e agora este fluxo… não conseguindo
apanhar nem metade… nem um quarto… nenhuma
ideia… do que estava a dizer… imaginem!... nenhuma
ideia do que estava a dizer!... até começar a tentar…
iludir-se… que não era de modo algum dela… que não
era de modo algum a voz dela… e teria sem dúvida
conseguido… era vital que conseguisse… estava quase
a conseguir… após demorados esforços… quando
subitamente se apercebeu… gradualmente se apercebeu
… os lábios a mexer… imaginem!... os lábios a
mexer!... de um modo que claro até então ela nunca… e
não eram só os lábios… a face… os maxilares… todo o
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rosto… todas aquelas –… o quê?... a língua?... sim… a


língua na boca… todas aquelas contorções sem as
quais… nenhum discurso é possível… e contudo
habitualmente… nem se sentem… de tal modo uma
pessoa está fixada… no que está a dizer… todo o seu
ser… suspenso das suas palavras… de tal modo que não
só ela tinha... ela tinha não só… não só ela tinha… de
desistir… de admitir que era sua e só sua… a sua
própria voz… mas este outro pensamento assustador…
oh muito depois… súbito vislumbre… ainda mais
assustador se possível… que aquela sensação estava de
volta… imaginem!... a sensação de volta… começando
em cima… depois avançando para baixo… a máquina
toda… mas não... ao menos isso… apenas a boca… por
enquanto… ah!... por enquanto… depois a pensar… oh
muito depois… súbito vislumbre… não pode
continuar… todo este… todo aquele… fluxo
contínuo… esforçando-se por ouvir… por dali extrair
alguma coisa… e os seus próprios pensamentos…
extrair deles alguma coisa… tudo –… o quê?... o
zumbido?... sim… o tempo todo… o zumbido… por
assim dizer… tudo aquilo ao mesmo tempo…
imaginem!... o corpo todo como que desaparecido…
apenas a boca… os lábios… a face… os maxilares…
sem pararem um segundo… a boca em chamas… fluxo
de palavras… nos seus ouvidos… praticamente nos
seus ouvidos… não conseguindo apanhar nem
metade… nem um quarto… nenhuma ideia do que
estava a dizer!... e não consegue parar… não há maneira
de parar aquilo… ela que apenas um momento antes…
apenas um momento!... não conseguia emitir um único
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som… nenhum som de nenhuma espécie… agora não


consegue parar… imaginem!... não consegue parar o
fluxo… e todo o cérebro implorando… alguma coisa no
seu cérebro implorando… implorando que a boca se
calasse… que parasse por um momento… ainda que só
por um momento… e nenhuma reacção… como se não
tivesse ouvido… ou não conseguisse… não conseguisse
parar por um segundo… como que enlouquecida… tudo
aquilo ao mesmo tempo… esforçando-se por ouvir…
apanhar o fio da coisa… e o cérebro… em pleno
delírio… tentando extrair dali algum sentido… ou fazê-
la parar… ou no passado… vasculhando no passado…
vislumbres vindos de todos os lados… caminhadas
sobretudo… caminhando todos os dias… dia após dia…
alguns passos depois parar… fitar o vazio… depois
continuar… mais alguns… parar e fitar outra vez… e
assim continuando… à deriva… dia após dia… ou
aquela vez em que chorou… a única vez de que se
conseguia lembrar… desde quando era bebé… deve ter
chorado quando era bebé… talvez não… não é
essencial para a vida… apenas o grito à nascença para
continuar… para respirar… depois mais nada até agora
isto… um velho trapo já … sentada fitando a sua
mão… onde é que isso foi?... algures no campo… num
campo… uma noite no regresso a casa… casa!... uma
pequena colina algures nos arredores … ao anoitecer…
sentada fitando a sua mão… ali no regaço… a palma
virada para cima… subitamente húmida… a palma…
lágrimas presumivelmente… suas presumivelmente…
ninguém em redor até perder de vista… nenhum som…
apenas as lágrimas… ali sentada a vê-las secar… tudo
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acabado num segundo… ou tentando desesperadamente


agarrar-se a alguma coisa… o cérebro… tremeluzindo
no seu próprio estertor… uma tentativa rápida e
continuar… nada ali… avançar para o próximo… tão
mau como a voz… pior… com o mesmo pouco
sentido… tudo aquilo ao mesmo tempo… não consegue
–… o quê?... o zumbido?... sim… o tempo todo o
zumbido… um rugido surdo como água… muita água a
cair de uma grande altura… e o raio… tremeluzindo…
começando a mexer-se… como um raio de luar mas
não… tudo parte do mesmo… ter atenção a isso
também… canto do olho… tudo aquilo ao mesmo
tempo… não consegue continuar… Deus é amor… ela
será purificada… de volta ao campo… sol da manhã…
Abril… o rosto mergulhado na erva… as cotovias
apenas… e assim continuando… tentando
desesperadamente agarrar-se a alguma coisa …
esforçando-se por ouvir… uma palavra aqui outra ali…
tentando extrair daí algum sentido… o corpo todo como
que desaparecido… apenas a boca… como que
enlouquecida… e não consegue parar… não há maneira
de a parar… alguma coisa que ela –… alguma coisa que
ela tinha para –… o quê?... quem?... não!... ela!...
(Pausa e movimento 3.)… alguma coisa que ela tinha
para –… o quê?... o zumbido?... sim… o tempo todo o
zumbido… rugido surdo… no crânio… e o raio…
esquadrinhando tudo… indolor… por enquanto… ah!...
contar… poderá ser isso?... alguma coisa que ela tinha
para… contar… alguma pequena coisa… antes da sua
hora… buraco abandonado por Deus… nenhum amor…
ao menos isso… sem voz todos os dias da sua vida…
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praticamente sem voz… como é que sobreviveu?...


aquela vez no tribunal… o que tinha a dizer em sua
defesa… culpada ou inocente… levante-se a acusada…
responda a acusada… ali de pé fitando o vazio… a boca
entreaberta como de costume… à espera de ser
levada… feliz por sentir aquela mão no seu braço…
agora isto... alguma coisa que ela tinha para contar…
poderá ser isso?... alguma coisa que tem para contar…
como é que foi… como é que ela –… o quê?... tinha
sido?... sim… alguma coisa que tem para contar…
como é que tinha sido… como é que ela tinha vivido…
e continuado a viver… culpada ou não… continuado e
continuado… até fazer sessenta… alguma coisa que ela
–… o quê?... setenta?... Deus meu!... continuado e
continuado até fazer setenta… alguma coisa que ela
própria não conhecia… não conheceria se ouvisse…
depois perdoada… Deus é amor… misericórdia
divina… nova todas as manhãs… de volta ao campo…
manhã de Abril… rosto na erva… as cotovias apenas…
retomar a partir dali… continuar a partir dali… ainda
mais alguns –… o quê?... não é isso?... nada a ver com
isso?... nada que ela pudesse contar?... tudo bem… nada
que ela pudesse contar… tentar alguma outra coisa …
pensar nalguma outra coisa … oh muito depois…
súbito vislumbre… também não é isso… tudo bem…
alguma outra coisa mais uma vez… e assim
continuando… acabará por acertar… pensar em tudo o
que se possa manter tempo suficiente… depois
perdoada… de volta ao –… o quê?... quem?... não!...
ela!... (Pausa e movimento 4.)… uma coisa
minúscula… saída antes da hora… buraco abandonado
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por Deus… nenhum amor… ao menos isso… sem voz


todos os dias da sua vida… praticamente sem voz…
mesmo para si própria… nunca em voz alta… mas não
completamente… por vezes um impulso súbito… uma
ou duas vezes por ano… sempre no Inverno… por
alguma estranha razão… as noites longas… horas de
escuridão… um súbito impulso de… contar… depois
sair a correr e parar nos primeiros que encontrasse…
nos lavatórios mais próximos… e começar a deitar tudo
cá para fora… um fluxo contínuo… louco e
desordenado… metade das vogais erradas… ninguém
conseguia acompanhar… até se aperceber dos olhares
fixos que recebia… depois morrer de vergonha…
regressar rastejando… uma ou duas vezes por ano…
sempre no Inverno por alguma estranha razão… longas
horas de escuridão… e agora isto… isto… cada vez
mais rápido… as palavras… o cérebro… tremeluzindo
como louco no seu estertor… uma tentativa rápida e
continuar… nada ali… avançar para outra coisa…
tentar uma outra coisa… o tempo todo alguma coisa
implorando… alguma coisa nela implorando…
implorando que parasse… não atendida… prece não
atendida… ou não escutada… demasiado débil… e
assim continuando… continuar… tentando… não
sabendo o quê… o que estava a tentar… o que tentar…
o corpo todo como que desaparecido… apenas a boca…
como que enlouquecida… e assim continuando…
continuar –… o quê?... o zumbido?... sim… o tempo
todo o zumbido… um rugido surdo como cataratas…
no crânio… e o raio… vasculhando… indolor… por
enquanto… ah!... por enquanto… tudo aquilo…
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continuar… não sabendo o que… o que estava a –… o


quê?... quem?... não!... ela!... (Pausa.)… o que estava a
tentar… o que tentar… pouco importa… continuar…
(A cortina começa a descer.)… acabará por acertar…
depois regressar… Deus é amor… misericórdia
divina… nova todas as manhãs… de volta ao campo…
manhã de Abril… rosto na erva… as cotovias apenas…
retomar a partir da–
(Cortina completamente descida. Sala às escuras. A voz
continua por detrás da cortina, ininteligível, durante 10
segundos, e cessa quando as luzes da sala se acendem.)

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