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A VIOLÊNCIA DA RELIGIÃO

Pelo Pe. Konrad Körner*


São Paulo, SP

Síntese: “Religião e Violência” é um tema muito discutido. A pergunta


principal é se a própria religião é violenta. Tenta-se, primeiro, distinguir
entre agressividade e violência para, então, chegar-se à conclusão que
é principalmente o narcisismo que torna a religião violenta. A religião
é entendida como sistema de saberes, que precisam ser atuados repe-
tidamente em rituais e determinam o comportamento ideal dos seus
seguidores. Sendo a religião estruturada pelo narcisismo, ela é violenta.
A Bíblia comprova-o, tanto no AT quanto no NT, bem como a história
do cristianismo. A superação da violência religiosa acontece na celebra-
ção eucarística, uma vez que, de fato, ela é caracterizada como terapia
comunitária.
Palavras-chave: Religião. Violência. Agressividade. Narcisismo
Abstract: “Religion and Violence” is a subject which is a lot discussed.
The main question about it is whether religion itself is violent. It is first
tried to distinguish between aggressiveness and violence to, then, be
concluded that it is narcissism what primarily turns religion violent.
Religion is comprehended as a system of knowledge, which must be re-
peatedly acted out in rituals, and which determine the ideal behavior of
its followers. Being religion structured by narcissism it is violent. Such
prove the Bible in the OT and the NT, as well as the history of Chris-
tianism. The religious violence overcoming happens in the Eucharistic
celebration that is, in fact, characterized as community therapy.
Keywords: Religion. Violence. Aggressiviness. Narcissism.

Introdução
Cada religião projeta sua imaginação da vida após a morte. A ima-
gem cristã de um céu maravilhoso em que os coros celestiais cantam eter-
namente o louvor de Deus faz parte da imaginação cultural.1 Todavia, o

* Padre da Arquidiocese de São Paulo que trabalhava em paróquias da periferia da Região Brasilân-
dia. Teólogo Diplomado pela Faculdade de Teologia da Universidade de Würzburg/Alemanha. Pertence
ao “Centro de Estudos e Desenvolvimento Psicanalítico de São Paulo” (CEDEP).
1. Interessante é a seguinte pesquisa sobre céu: McDANELl, B.L.C. Der Himmel. Eine Kulturges-
chichte des ewigen Lebens. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990.
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que parece tão inocente pode conter uma enorme violência. E aqueles
que não sabem nem gostam de cantar? Para estes, o canto obrigatório, na
eternidade, pode ser um violento castigo em vez de prêmio, e isto, ainda,
por toda a eternidade! Mais evidente ainda se torna a violência religiosa
quando se fala do inferno. Até as falas de Jesus citam o “fogo eterno”
com tormentos sem fim. O livro mais violento da Bíblia é, sem dúvida,
o Apocalipse de João. Ao lado de cenas de grande violência se encontram
trechos que falam dos cantos que há no céu.2 Um dos terroristas do 11 de
setembro de 2001 sonhava com um paraíso em companhia de virgens,
após sua morte, que provocaria tantas mortes inocentes!
A violência da religião é um tema amplamente discutido e muito
controverso. Alguns dizem que é a religião, em si, que é violenta; outros
afirmam que a religião é usada por sistemas de poder que se impõem
com violência. De qualquer maneira, é preciso que se admita que reli-
gião e violência estão intimamente ligadas entre si, pois, onde se fala de
religião, automaticamente a violência está presente. Sob o impacto dos
ataques cruéis de terroristas do Estado Islâmico - IS, hoje intensamente
divulgados pela mídia, automaticamente somos tentados de atribuir a
violência à religião islâmica. Todavia, a história da própria Igreja Católi-
ca dá testemunho impressionante de inúmeros fatos de violência.
Diante de uma literatura imensa sobre a relação entre religião e
violência, tenho condições de aproveitar e citar apenas um número
muito restrito de testemunhas bibliográficas. Mesmo assim, são rela-
tivamente muitas as citações, que faço questão de trazer, para mostrar
a riqueza das contribuições a esse tema. A escolha, por si só reflete
a influência de critérios pessoais. O meu enfoque é o da teologia e
da psicanálise. Concordo com Robert Crawford, quando afirma que
nenhuma abordagem sozinha fornece uma visão completa da religião
e de suas características.3 Primeiro, tentarei distinguir o conceito de
violência daquele de agressão. Segue-se a apresentação da teoria psica-
nalítica de Sigmund Freud. Em seguida tentarei apontar a violência da
religião, tanto no AT quanto no NT. Enquanto Gn 2,4b–3,24 ilustra
o início da religião, Jesus Cristo testemunha sua superação, tanto em
suas palavras quanto em sua vida.

2. P. ex.: Ap 4,8-11; 5,9-13; 14,1-4; 18,19.


3. CRAWFORD, R. O que é religião? Petrópolis: Vozes, 2005. p. 34.
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I. Tentativa de definir a violência


1. Agressão em si não é violência
Violência não é a mesma coisa que agressão! Na grande maioria das
vezes e no uso do dia a dia não se distingue entre as duas palavras, o que
pode levar a graves consequências. Os dois termos têm sua origem no
latim. Violência vem de “vis”, que, traduzido, é: força, vigor, potência
ou tem o sentido de violar, transgredir e profanar.4 Agressão, diferente-
mente, vem de “agredi”, que, traduzido, significa: aproximar-se, entrar
em contato com, ir ao encontro de, movimentar-se em direção ao outro
e ao mundo.5 Willy Weber dá a seu livro o título de “Fonte de energia
agressão” e traduz o termo da seguinte maneira: “Agressio, composto
de ‘a’ e ‘gressio’, significa aproximar-se de algo ou de alguém .... Sendo
assim, a agressão é algo ativo e enérgico. Agressão não é um sentimento,
embora esteja ligada regularmente a fortes sentimentos e nestes se expri-
me”.6 Em resumo, a agressividade é a força construtiva, necessária para
vivência e convivência humana. Do contrário, a violência é a negação e
a inversão dessa força vital em destruição e que impede a relação com a
realidade do mundo e dos outros.
Os animais matam outros animais para sobreviver; o ser humano
também mata animais para se alimentar de sua carne. Nesses casos,
a agressividade é violenta, mesmo que isso seja considerado normal.
Outro caso da transformação “normal” da agressividade em violên-
cia se dá na autodefesa, quando se trata de matar para não morrer.
Nas guerras prevalece essa necessidade. Estes exemplos provam que na
agressividade está presente a tendência de ela se transformar em au-
tomática atuação violenta. Todavia, essa “agressão violenta” faz parte
da defesa da sobrevivência, estando a serviço da defesa da vida. Hoje,
ninguém se sente culpado só porque está comendo a carne de vaca,
frango ou de outros animais.

4. COSTA, M.R. da; PIMENTA, C.A.M. A violência: natural ou sociocultural? São Paulo: Paulus,
2016. p. 6.
5. SCHWIDDER, W. Schriften zur Psychoanalyse der Neurosen und Psychosomatischen Medizin.
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1975. p. 30; SCHULTZ-HENCKE, H. Lehrbuch der analy-
tischen Psychotherapie. 3. Aufl. Stuttgart; New York: Georg Thieme, 1981. p. 33; PELLEGRINO, H.
O ego e o real: primeiras considerações. In: ID (Org.). Psicanálise em crise. Petrópolis: Vozes, 1974. p.
31-48, aqui, 48; REICH, W. A função do orgasmo. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1975. p. 139.
6. WEBER, W. Kraftquelle Aggression. Aggressionen – wie sie entstehen und wie wir sie positiv
nützen können. Wuppertal: Brockhaus, 2007. p. 13.
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Respeitando o sentido original da agressividade como a força hu-


mana dinâmica de sair de si para entrar em contato com a realidade do
mundo externo e do outro, precisamos reconhecê-la com inata. Konrad
Lorenz está convencido de que a agressão “é indubitavelmente uma par-
te essencial da organização dos instintos em vista da proteção da vida”.7
A agressão é para ele um instinto que está a serviço da conservação e da
sobrevivência da espécie.8 Alfred Adler já falou de uma agressão inata no
homem, antes que a definisse como “luta pela superioridade” e busca
de satisfação.9 Antohny Storr, igualmente, destaca a agressão como ne-
cessária para sobrevier, recusando, por isso, a afirmação de que ela seja
mera resposta à frustração do desejo.10 Preocupado em defender a pre-
dominância da etiologia sexual das patologias psíquicas, Sigmund Freud
rejeitou inicialmente a afirmação de Alfred Adler.
A posterior inclusão da agressividade na pulsão de morte,11 na ver-
dade, dá a impressão de que S. Freud não tenha enfocado a agressi-
vidade em si. Tanto a agressividade da teoria central do Complexo
de Édipo12 quanto a abordagem da neurose obsessiva,13 agora é “en-
golida” pela pulsão de morte, sendo, portanto, negada como força
autônoma. Como S. Freud, a maioria dos psicanalistas “equacionam
agressividade com ódio, destrutividade e sadismo”. Sendo assim, eles
não tratam a agressividade de acordo com seu sentido etimológico de
“dinamismo, autoafirmatividade, expansividade, impulso”.14 Segundo
Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, S. Freud transfere a função
construtiva da agressividade da “luta pela vida” para o Eros.15 Vendo a

7. LORENZ. K. A agressão. Uma história natural do mal. 2. ed. Lisboa: Moraes, 1979. p. 59; ID.
Civilização e pecado. Os oito erros capitais do homem. São Paulo: Círculo do livro, 1973. p. 173.
8. ID. A agressão. Op. cit., p. 63.
9. ADLER, A. Heilen und Binden. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1973. p. 85-93; ID.
Über den nervösen Charakter. Idem, 1972. p. 45.
10. STORR, A. A agressão humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 10.
11. FREUD, S. Além do princípio de prazer (1910). In: SALOMÃO, J. (Dir.). Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1976, p. 11-85. v. 18.
12. Ver FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Idem, 1972, p. 117-231. v. 7.
13. Ver FREUD, S. Atos obsessivos e práticas religiosas (1907). In: Idem, 1976, p. 117-131. v. 9;
ver também ID. A disposição à neurose obsessiva. Uma contribuição ao problema da escolha da neurose
(1913). In: Idem, 1969. p. 391-409. v. 12.
14. RYCROFT, C. Dicionário crítico de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 35.
15. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. 4. ed. Lisboa: Moraes Edito-
res, 1977, p. 41.
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agressividade exclusivamente em sua ligação com a pulsão de morte,


ela se torna destrutividade e violência.
O próprio S. Freud apresenta sua teoria da pulsão de morte como
“especulação psicanalítica”, mas, mesmo assim, defende-a até o fim de
sua vida.16 O que o tem levado a formular a pulsão de morte foram
suas observações feitas na terapia psicanalítica, tais como a compulsão
à repetição, a resistência que surge contra o processo de conscientiza-
ção, bem como o masoquismo e o sadismo.17 Para S. Freud, trata-se de
uma pulsão que atua em “oposição ao princípio de prazer”, que tem
aparência de uma manifestação demoníaca18 e que é “inerente à vida
orgânica, a restaurar um estado anterior das coisas”.19 Como força es-
sencialmente regressiva, ela automaticamente nega a realidade da vida
e dos outros.
Há oposição à afirmação da pulsão de morte. Por exemplo, segun-
do Wilhelm Reich, destruição e sadismo surgem em consequência de
frustração de uma necessidade vital e não da pulsão de morte.20 Erich
Fromm acha que a pulsão de morte de S. Freud não é algo biológico,
mas psicopatológico, pois ela se manifesta quando a vida não é aceita.21
Não fazendo distinção entre agressão e violência, alguns autores, como
E. Fromm, falam de agressão benigna e maligna.22 A respeito da opinião
de S. Freud deve-se considerar que ele observou tanto a sexualidade hu-
mana quanto a agressividade sob o prisma da patologia, descrevendo-as
como as observa dentro do quadro de neurose e psicose. Suas respectivas
teorias chamam nossa atenção, porque nos revelam como as patologias
individuais e coletivas distorceram e perverteram tanto a sexualidade
quanto a agressividade.

16. FREUD, S. Além do princípio de prazer. Op. cit., p. 39.


17. Ibid., p. 32.
18. Ibid., p. 52.
19. Ibid., p. 54 e 78.
20. REICH, W. A função do orgasmo. Op. cit., p. 140.
21. FROMM, E. O coração do homem. Seu gênio para o bem e para o mal. 5. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1977. p. 54.
22. Assim, FROMM, E. Anatomia da destruição humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975; DEMP-
SEY, P.J.R. Freud, psicanálise e catolicismo. São Paulo: Paulinas, 1966. p. 71; PAIVA, L.M. de. Crime:
tanatismo-psicanálise-psicossomática. Rio de Janeiro: Imago, 1981. p. 37. v. I.
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2. O narcisismo e a transformação da agressividade em violência


A agressividade inata associa-se à força vital em todos os seres vivos.
A negação psíquica da agressividade nas pessoas consegue inibir e até
impedir o dinamismo vital. Sua negação a transforma, no inconsciente,
em violência. A negação, por sua vez, dá-se no processo do narcisismo.
Sendo assim, a pulsão de morte, como Freud a postula, é o resultado
da atuação do narcisismo. Como diz o mito grego, Narciso olha sua
própria imagem no espelho d’água. Apaixona-se por ela e, querendo
abraçar sua imagem, cai na água e morre. Daí vem o entendimen-
to comum do narcisismo como autoapaixonamento. Embora não seja
apenas um autoapaixonamento, o narcisismo é construído por imagens
mentais, como o mito grego o aponta. A pessoa não vê somente a si
própria como imagem, mas também os outros e o mundo. O narcisis-
mo, de forma geral, tem a função de negar a angústia. O começo ou o
protótipo da angústia é a separação da mãe, no nascimento, gravado no
inconsciente como trauma.23 Como o nascimento, todas as posteriores
experiências de perda e separação desencadeiam o mesmo processo de
negação e de satisfação imaginária. A imaginação constrói ideais de
mundo, de pessoas e de si próprio. Para negar a angústia, o narcisismo
recria, com a ajuda da imaginação, um útero ideal. Trata-se de “uma
espécie de rememoração da situação uterina”.24 Merece ser mencionada
nesse contexto a tentativa de explicar etimologicamente a palavra “ima-
gem” como “minha mãe”.25
A idealização surge da imaginação, isto é, do conjunto das imagens
que formam o inconsciente humano. Antes da fala e da ação, há na
mente a imaginação de palavras, coisas e atos.26 A formação das imagens
mentais corresponde ao processo da inveja. A palavra inveja vem do

23. O primeiro a falar deste trauma foi RANK, O. Das Trauma der Geburt und seine Bedeutung für
die Psychoanalyse. Leipzig; Wien; Zürich: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1924.
24. LEÃO, S.C. Infância, latência e adolescência. Temas de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago,
1990. p. 47.
25. DOLTO, F.; NASIO, J.D. A criança do espelho. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991. p. 10.
26. Ver aqui: FREUD, S. Projeto para uma Psicologia científica (1895). In: Idem, 1977. p. 379-
517. v. 1; ID. A interpretação de sonhos (1900). In: Idem, 1996, especialmente cap. IV, p. 143-172. v. 4;
ID. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911) In: Idem, 1969. p. 271-286.
v. 12; ID. O inconsciente (1915) In: Idem, 1974, p. 183-245. v. 14; ID. O ego e o id (1923). In: Idem,
1996. p. 11-83. v. 19; ID. Esboço de psicanálise (1938-40). In: Idem, 1975. p. 163-237. v. 23; Ver tam-
bém: KÖRNER, K. Algumas considerações psicanalíticas sobre os distúrbios da comunicação. In: PAI-
VA, A.F. de et al. Distúrbios de comunicação. Estudos interdisciplinares. São Paulo: Cortez, 1981. p. 127s.
808 K. Körner. A violência da religião

termo latim invidia, que pode ser traduzido como “visão interna”. Na
inveja só se veem as próprias imagens mentais que são tratadas como
se fossem as próprias coisas e pessoas vistas no mundo exterior. Aqui,
o olhar se torna o meio pelo qual se toma posse de pessoas e coisas.
Entendida assim, a inveja é a característica essencial da mente infantil.
Para a criança, coisas e pessoas, quando avistadas, já são da posse dela.
Coisas e pessoas servem a ela somente como “objetos” que fazem parte
de sua imaginação. Esta prática infantil corresponde à inveja. A inveja
é a força que estrutura a imaginação e o inconsciente humano. Isto se
manifesta claramente nos sonhos. Com efeito, nestes, tudo aparece e é
visto em forma de imagens. Considerando o sonho um fenômeno nor-
mal, a inveja, que fornece a explicação de seu processo, também deve
ser vista como normal em todos os seres humanos. O sonho representa
então a regressão da mente à sua estrutura mais primitiva. Entretanto,
após a infância, a atuação de inveja manifesta a fixação ao estágio mais
primitivo do desenvolvimento psíquico.
As mais conhecidas concepções de narcisismo são as de S. Freud e
Heinz Kohut. Para Freud, o narcisismo é a mais primitiva etapa do de-
senvolvimento psíquico. O narcisismo absoluto, segundo ele, substitui
a união uterina, ou constrói, por meio de imagens mentais, um útero
ideal. No narcisismo primário, segundo Freud, não há diferenciação
entre o ego e os objetos, havendo, sim, fusão entre eles. No narcisismo
secundário, por sua vez, há distinção entre o ego e os objetos, sendo
estes últimos controlados pela imagem onipotente do ego.27 Em Freud,
o narcisismo define-se a partir da não relação com objetos, com outras
pessoas, com o mundo externo.
Diferente de Freud, H. Kohut entende o narcisismo a partir do “in-
vestimento libidinal do Self ”, sendo esse considerado “uma estrutura
dentro da mente”, ou “um conteúdo do aparelho mental”.28 Tanto o
Self quanto seus objetos são idealizados, ou seja, o Self se idealiza como
imagem perfeita e onipotente, fusionando-se com seus objetos igual-
mente vistos como imagens perfeitas e onipotentes. A grandiosidade
do Self é exibida para este ser admirado por seus objetos idealizados. O
“discurso totalizante” do narcisismo, pois, visa “a incondicionalidade da

27. FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: Idem, 1974. p. 83-119. v. 14.
28. KOHUT, H. Self e narcisismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. p. 7; ver também KOHUT, H.
Análise do Self. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p. 36.
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admiração”.29 A falta de admiração faz emergir a ferida da ausência do


amor na infância, podendo pôr em ação a fúria narcisista. A angústia as-
socia-se ao pavor de ser despedaçado, criando sintomas de hipocondria.
A vergonha é, para H. Kohut, a reação à experiência da não perfeição.30
Visto o narcisismo tanto como fase de evolução psíquica quanto
como estrutura do inconsciente, a violência associada a ele é a negação
do real, isto é, a negação da realidade de si mesmo, dos outros e do
mundo. Essa negação é automática, já que está a serviço de conservar
a idealização. Ao mesmo tempo, a negação é identificada com a culpa.
Sendo assim, a violência é a ausência do estado ideal que se converte
em culpa. Por mais intensa que se torne a culpa, mais forte se torna a
dependência da imagem idealizada.
Eugen Drewermann fala de uma diabolização da agressividade que,
especialmente o cristianismo teria promovido por não ter considerado a
agressão inata do homem, bem como “a realidade psíquica a ela corres-
pondente”. Deste modo, o cristianismo teria contribuído de forma de-
cisiva para a transformação da agressão em violência e destruição, além
de ter colaborado indiretamente para que houvesse tantas guerras.31
Contra essa opinião deve ser objetado que a diabolização da agressão,
sua repressão e negação ocorrem em todas as culturas e suas religiões.
Todas elas postulam ideais de comportamento de acordo com seu saber
idealizado, exigindo total submissão a eles. Sendo assim, tal submis-
são, automaticamente, impõe a negação do real, bem como a culpa.
E. Fromm destaca que “o narcisismo do grupo é uma das fontes mais
importantes da agressão humana.32 No narcisismo social, os membros
do grupo reagem com ódio a qualquer diferença vista como “desres-
peito”.33 Heinz Peter Röhr caracteriza o narcisismo como “prisão inter-
na”,34 que gera dependência e relacionamentos destrutivos.35

29. BLEICHMAR, H. O narcisismo. Estudo sobre a enunciação e a gramática inconsciente. 2. ed.


Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 61.
30. Além dos livros de Heinz Kohut já citados ver também: ID. A restauração do self. Rio de Janei-
ro: Imago, 1988, e ID. Como cura a psicanálise? Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
31. DREWERMANN, E. Der Krieg und das Christentum. Von der Ohnmacht und Notwendigkeit
des Religiösen. Regensburg: F. Pustet, 1982. p. 197.
32. FROMM, E. Anatomia da destrutividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 277.
33. Ibid., p. 273.
34. RÖHR, H.P. Narzissmus. Das innere Gefängnis. 10. Auf. München: Deutscher Taschenbuch
Verlag, 2011.
35. Ver também ID. Wege aus der Abhängigkeit. Destruktive Beziehungen überwinden. 5. Auf.
München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 2010.
810 K. Körner. A violência da religião

Segundo Hugo Bleichmar, a culpa surge da “representação”,36 isto é,


da imagem idealizada, e, de acordo com Norberto C. Marucco, ela vem
do desencontro da criança com os ideais dos pais.37 Heribert Fischedick
vê a primeira origem da culpa no “terror da rejeição mortal”.38 Segundo
Jacques Lacan, a culpa, que surge da distância “entre a relação imaginá-
ria e a relação simbólica”, é “sempre preferida à angústia”. Esta, sempre
está ligada a uma perda, a uma “relação narcísica”; a culpa “aplaca a
angústia no registro da culpabilidade”.39
O narcisismo e suas possessões, de acordo com H. Bleichmar, têm
seu modelo na sociedade.40 Para J. Lacan, o narcisismo representa o
mundo e atua no lugar do sujeito.41 Segundo André Green, em todos os
níveis nele se fundem sujeito e mundo,42 não havendo, por isso, pessoas
e indivíduos. Sempre se abole aí a diferença entre “um e outro”.43 Sob
este aspecto, de fato, o narcisismo pode ser “a sociedade dentro de nós”.44
Arílio A. Dantas Jr. fala da atual “doença do ideal”. Não havendo lugar
para o diferente, o outro se torna “ameaça insuportável”,45 por despertar
culpa. Christopher Lasch e A. Green enfatizam o narcisismo como o
sintoma mais destacado da atual cultura norte-americana e ocidental”.46
O que esses autores nos dizem significa que o ser humano prefere
sentir-se culpado em vez de enfrentar a angústia. Isto explica por que ele
atribui a causa do desamor a seus próprios atos e pensamentos, em vez
de reconhecê-la como sendo de outros. Sendo assim, fantasias sádicas e
violentas – e provavelmente também os desejos edípicos – salvam a idea-

36. BLEICHMAR, H. Depressão. Um estudo psicanalítico. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
1987. p. 66.
37. MARUCCO, N.C. Narcisismo, escisión del Yo y Edipo. Una introducción a manera de epílo-
go. Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires, v. 35, n. 2, p. 221-250, aqui, 249, 1978.
38. FISCHEDICK, H. A culpa como oportunidade para uma nova vida. Começar de novo. Petró-
polis: Vozes, 1991. p. 42.
39. LACAN, J. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 33 e 43.
40. BLEICHMAR, H. O narcisismo. Op. cit., p. 61 e 70.
41. Lacan, J. O mito individual do neurótico. 2. ed. Lisboa: Assírio e Alves, 1987. p. 63.
42. GREEN A., Narcisismo de vida e narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988. p. 201; ID.
Sobre a loucura pessoal. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p. 124s.
43. ID. Sobre a loucura pessoal. Op. cit., p. 137.
44. PICHON-RIVIÉRE, E. Teoria do vínculo, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 59; ver
também POMMIER, G. Freud apolítico? Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. p. 119.
45. DANTAS JR., A.A. A psicanálise e as novas formas de experiência humana determinadas pela
globalização. Revista Brasileira Psicanálise, São Paulo, v 36, n. 1, 2002, p. 67-79, aqui, 77.
46. LASCH, C. A cultura do narcisismo. A vida americana numa era de esperança em declínio. Rio
de Janeiro: Imago, 1983; GREEN, A. Narcisismo de vida e narcisismo de morte. Op. cit., p. 147.
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lização das imagens dos pais a custo de assumir a culpa pelo que estes
fizeram. Pais violentos que maltratam as crianças e o abandono ou a perda
dos pais sempre são associados à culpa das crianças. A sociedade e tam-
bém sua religião negam a violência que elas mesmas produzem, projetan-
do-a em cidadãos e fiéis, ou em determinados grupos e povos. A culpa dá
razão às imagens idealizadas de pais, sociedade e religião, e isto no intuito
irracional de obter atenção e amor.47
Instituições sociais, políticas e religiosas podem ser extremamente
violentas no empenho de imporem ideais de comportamento a seus
membros. O objetivo sempre é o de manter a dependência total de
pessoas. Na infância, a agressividade é punida com a ameaça da perda
do amor dos pais. Deste modo, confunde-se amor com dependência.
Ir contra o ideal imposto desperta culpa e angústia. A intensidade da
violência também depende do ambiente social e cultural.48 É relativo o
que se considera violência, pois o que numa sociedade pode ser permi-
tido, em outra, pode ser visto como crime. Um grupo pode achar que
uma “pessoa boa” seja aquela que reprime e nega sua agressividade, ao
passo que outro grupo considera bom aquele que usa sua agressividade
para alcançar um objetivo. Para grupos fanáticos pode ser normal matar
outras pessoas que rejeitam seu ideal de ação, o que, do contrário, para
outros é crime condenável.
A camada mais profunda do inconsciente da sociedade é o narci-
sismo e a inveja que o estrutura. Isto significa que também o estado
de culpa faz parte do inconsciente da sociedade. No inconsciente, a
idealização das imagens projetadas em cima da sociedade representa a
mãe uterina; a culpa, por sua vez, se identifica com a imagem do pai. S.
Freud só enfatizou a importância do pai e da culpa que está associada
a ele, negligenciando, por isso, a “função materna” da sociedade. Deste
modo, conserva-se a dependência irracional da sociedade, não tendo
esta, p. ex., condições de enxergar a injustiça social. Ciro Marcondes
Filho descreve o inconsciente da sociedade dentro da idealização e da
culpa do narcisismo. O narcisismo dos dominantes produz a culpa nos
dominados, aumentando deste modo a dependência destes e, eventual-
mente, a pobreza. Sendo a revolta dos dominados associada à sua culpa,

47. Ver aqui também GOLDKORN, R.B.O. O poder da vingança. Como usar a energia da vin-
gança a favor e não contra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
48. NOLTING, H.-P. Psychologie der Aggression. Warum Ursachen und Auswege so vielfältig sind.
Hamburg: Rowolt, 2015. p. 186.
812 K. Körner. A violência da religião

a violência dirige-se contra eles próprios.49 A culpa funciona como o


instrumento mais eficiente para garantir a manutenção da dependência
pessoal e social. Por mais que os cidadãos se identifiquem com a culpa
pela ausência do estado ideal da sociedade, mais dependentes eles per-
manecem de governantes idealizados. A violência da culpa infantiliza as
pessoas. Este mecanismo de infantilização pode atuar também no cam-
po econômico, tanto na competição do mercado quanto na exploração,
opressão e luta de classes.50
O saber humano tem sua origem na imaginação, isto é, nas imagens
inconscientes idealizadas. Por essa razão, ele possui qualidade narcisista.
No início, S. Freud acreditava que o saber das causas das psicopatologias
fosse capaz de superá-las. Entretanto, assim consegui-se a adaptação ao
narcisismo coletivo da sociedade. A culpa acaba com sensação de estar
integrado na sociedade, de ser “normal” como os outros. Isso garante se-
gurança e proteção contra a angústia. As patologias psíquicas podem ser
entendidas como falhas na adaptação ao narcisismo coletivo. Sob este as-
pecto, a psicanálise corre o risco de ficar presa a “falsas culpas”, especial-
mente quando se trata da diferença de outros. Em todas as sociedades,
as patologias psíquicas de pessoas funcionam como denunciadoras do
narcisismo coletivo. A partir dessa denúncia poderia começar a liberta-
ção da sociedade. Não são os assim chamados “normais” que conseguem
promover uma verdadeira transformação da sociedade, mas somente
aqueles “não-normais” (“não normais”) que chegaram a se conscientizar
das patologias psíquicas deles próprios, que também são as da sociedade.
Pelo que nossa análise sugere, a religião é violenta, na medida em
que nela prevalece o narcisismo.

II. Religião e violência


1. Algumas teorias sobre a violência da religião
a) A violência é inerente à religião
No entendimento de Émile Durkheim, não há religiões falsas, pois
todas são verdadeiras, à sua maneira.51 A religião é a força coletiva da

49. MARCONDES FILHO, C. A produção social da loucura. São Paulo: Paulus, 2003.
50. Ver as diversas contribuições em AMORETTI, R. (Org.). Psicanálise e violência. Metapsicolo-
gia – clínica – cultura. Petrópolis: Vozes, 1992.
51. DURKHEIM, É. As formas elementares de vida religiosa. O sistema totêmico na Austrália. São
Paulo: Paulinas, 1989. p. 31.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 813

sociedade que se internalizou nos indivíduos, tornando-se parte inte-


grante de um nós.52 As crenças religiosas são compartilhadas por toda a
sociedade e não podem ser criticadas.53 Os ritos surgem unicamente em
grupos reunidos e destinam-se a suscitar, manter ou refazer certos esta-
dos mentais desses grupos.54 Não é o sobrenatural que define a religião,
mas o coletivo da sociedade.55 Neste caso, a violência da religião seria a
da sociedade. Dentro dessa conclusão, Maria Regina da Costa e Carlos
Alberto Máximo Pimenta afirmam que a violência só pode ser originada
do social “e se diferencia de acordo com os tempos, espaços, contextos,
culturas e formas de Estado, próprios de cada momento histórico”.56
Aqui se pode lembrar que a religião se “privatizou” na pós-moderni-
dade, deixando, portanto, de ser realidade coletiva.57 Todavia, é possível
que se entenda tal privatização como uma interiorização da religião da
sociedade em cada indivíduo. A religião da pós-modernidade pode ser
violenta no sentido de ignorar e negar o outro e sua diferença, além de
se desinteressar pelo bem-estar geral da sociedade.58 Ao que tudo indica,
a pós-modernidade atribui mais diretamente a violência à instituição
religiosa. “Religião sem instituição” é o título de um texto em que se
constata que, hoje, a prática é: “religião sim, Igreja não”.59 Rejeitam-
-se as instituições religiosas “com seu pacote de verdades, mitos, ritos,
normas morais e seu imobilismo institucional”, para buscar, primor-
dialmente, o bem-estar individual.60 Para vários autores, a religião, hoje,
transformou-se “em mero mercado financeiro, influência social e lugar
de prestígio”, e num “grande fetiche, num tranquilizante, despreocu-
pada com os direitos e a promoção integral da pessoa humana” e “num

52. Ibid., p. 260.


53. Ibid., p. 268.
54. Ibid., p. 38.
55. Ibid., p. 59.
56. COSTA, M.R. da; PIMENTA, C.A.M. A violência: natural ou sociocultural? São Paulo: Pau-
lus, 2006. p. 93.
57. MARTELLI, S. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1925. p. 291.
58. Assim, p. ex., HÖHN, H.-J. Erlebnisgesellschaft! Erlebnisreligion? Die Sehnsucht nach dem
frommen Kick. In: HOFMEISTER, K.; BAUEROCHSE, L. (Org.). Die Zukunft der Religion. Spuren-
sicherung an der Schwelle zum 21. Jahrhundert. Würzburg: Echter, 1999. p. 15.
59. EBERTZ, M.N. Religion ohne Institution. Gestaltwandel der Kirche aus soziologischer Sicht.
In: HOFMEISTER, K.; BAUEROCHSE, L. (Org.). Die Zukunft der Religion. Op. cit., p. 49-51.
60. SCHIAVO. L. Síntese e perspectivas. In: SILVA MOREIRA, A. da; OLIVEIRA, I.D. de
(Org.). O futuro da religião na sociedade global. Uma perspectiva multicultural, São Paulo: Paulinas,
2008. p. 171-178, aqui, 177; Cabe ver também as demais contribuições nessa obra.
814 K. Körner. A violência da religião

mercado competitivo ao sabor das massas”.61 Ela se adaptou aos princí-


pios do capitalismo.
Para Karl Marx, a religião acaba quando o mundo real supera sua
contradição. Conhecida é sua afirmação: a religião é o “ópio do povo”,
pois aliena o povo oprimido de seu sofrimento. A religião está a serviço
do opressor, motivo pelo qual precisa ser superada.62 Marx é contra
toda religião, porque ela humilha e despreza o ser humano em nome de
seu deus.63 O Marx posterior muda sua crítica da religião, enfatizando
o fetichismo do dinheiro e do capital.64 Enrique D. Dussel denuncia a
imagem do deus dos conquistadores europeus da América Latina como
responsável pela opressão nesse Continente. Este deus não é bom, mas
verdadeiro, sendo necessário adorá-lo em sua onipotência, como ideia,
razão, conceito.65 Esta imagem de deus faz dele um fetiche. Fetiche,
vindo de “facere”, precisa ser “operante, além de ser fascinante, numi-
noso, sagrado”.66 A religião fetichista mimetiza e justifica as injustiças,
as estruturas opressoras. “Deste ponto de vista, a religião fetichista ‘é o
ópio do povo’”.67
Enquanto para Dussel a imagem do deus onipotente faz da reli-
gião uma instância opressora, Hugo Assmann detecta no mercado a
qualidade religiosa “por ser sistema autorregulador” que “é sempre uma
inserção da sacralidade em projetos ou mecanismos institucionais, que
delimitam o sagrado admissível”.68 Deste modo, é possível que o capi-
talismo se torne a religião mais perfeita.69 Enquanto teólogos e hierár-
quicos do mundo rico estão preocupados com o ateísmo, os teólogos da
América Latina se dedicam à elucidação do fetichismo e da idolatria da
religião dos opressores.70 Como Hugo Assmann, também Franz Josef

61. PEREIRA, W.C.C. A formação religiosa em questão. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 132-133.
62. MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: ID; ENGELS, F. Sobre a Religião. 2. ed. Lisboa: Edições
70. p. 77-81.
63.HINKELAMMERT, F.J. A maldição que pesa sobre a lei. As raízes do pensamento crítico em
Paulo de Tarso. São Paulo: Paulus, 2012. p. 145.
64. Ibid., p. 146.
65. DUSSEL, E.D. Para uma ética da libertação latino-americana. V: Uma filosofia da religião
antifetichista. São Paulo; Piracicaba: Loyola; Unimep, 1980. p. 47.
66. Ibid., p. 48.
67. Ibid., p. 53.
68. ASSMANN, H. Desafios e falácias. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 24-25.
69. ID. Teología desde la praxis de la Liberación. Salamanca: Sígueme, 1973. p. 192.
70. ID. Tecnología y poder en la perspectiva de la Teología de la Liberación. San José: Ed. Universitaria
Centro Americana, 1979. p. 40 (Col. DEI – Tecnologia y necesidades básicas).
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 815

Hinkelammert vê o capitalismo como religião que produz seu próprio


universo simbólico e sua própria espiritualidade. O espírito do capitalis-
mo é o fetiche da mercadoria, do dinheiro e do capital.71
Sudhir Kakar dá a seu livro o título de: “A violência dos piedosos”.72
Qualquer ameaça à identidade religiosa de um grupo pode provocar
intolerância ou até violência social. Nesse caso, a identidade pessoal é
sufocada pela identidade grupal. Além disso, aí se podem liberar “al-
gumas das nossas mais violentas paixões”.73 Especialmente, o funda-
mentalismo libera a violência inerente à religião.74 Como se pode “crer
depois do 11 de setembro 2001, assim pergunta M.C. Bingemer? Para
esta teóloga, o 11 de setembro de 2001 evidenciou a violência inerente à
religião, sendo que a história do islã, do judaísmo e do cristianismo está
cheia de violência.75 Segundo José Ramos Regidor, “todas as religiões,
no passado e no presente, foram e são cúmplices e, às vezes, artífices da
alienação, da violação dos direitos humanos, da violência contra indi-
víduos e povos, da descriminação contra mulheres e do devastador do-
mínio contra a natureza”.76 Sempre quando uma determinada religião
afirma que é a única verdadeira, ela é abertamente violenta.77 Todavia,
quase toda religião exige ser reconhecida como a única verdadeira.78 À
pergunta se a religião é “fonte da violência” dedica a revista Concilium
um número inteiro.79
Contra a tendência de ver a violência inerente à religião, Karen Ar-
mstrong analisa, em uma obra impressionante, as grandes religiões e
chega à conclusão de que não é a religião, em si, que é violenta, mas

71. HINKELAMMERT, F.J. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983.
72. KAKAR, S. Die Gewalt der Frommen. Zur Psychologie religiöser und ethnischer Konflikte.
München: Beck, 1997. p. 258-259.
73. Ibid., p. 293 e 296.
74. Ibid., p. 296; ver também CONZEN, P. Fanatismus. Psychoanalyse eines unheimlichen Phä-
nomens. Stuttgart: Kohlhammer, 2005.
75. BINGEMER, M.C.L. Crer depois do 11 de setembro 2001. Atualidade da violência nas três
religiões monoteístas. In: PEREIRA, M.S.; SANTOS, L. de A. (Org.). Religião e violência em tempos de
globalização. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 99-135, aqui, 103-104; ver também BINGEMER, M.C.L.
(Org.). Violência e religião. Cristianismo – Islamismo – Judaísmo. Três religiões em confronto e diálogo.
São Paulo; Rio de Janeiro: Loyola; Editora PUC Rio, 2001.
76. REGIDOR, J.R. Vinte e cinco anos de Teologia da Liberação. In: BOFF, L.; REGIDOR, J.R.;
BOFF, C. A teologia da Libertação. Balanço e Perspectivas, São Paulo: Ática, 1996. p. 79.
77. CRAWFORD, R. O que é religião? Petrópolis: Vozes, 2005. p. 130.
78. Ibid., p. 138.
79. Religião – fonte de violência? Concilium, Petrópolis, v. 272, n. 4, 1997.
816 K. Körner. A violência da religião

que ela é usada para fins violentos.80 Segundo essa autora, “a violência
e a coerção... estão no cerne da existência social, e, na maior parte das
culturas antigas, essa verdade era expressa por rituais sangrentos de sa-
crifícios de animais.81 Em seu livro, “Interrupção da violência”, também
Hans-Martin Gutmann afirma que a religião não produz violência,
mas, pelo contrário, a supera.82

b) A teoria de Sigmund Freud sobre a religião


A religião, na primeira concepção de S. Freud, era a “neurose ob-
sessiva da humanidade”,83 cuja origem é o assassinato do pai e a defesa
contra a culpa que daí surge.84 Em “Atos obsessivos e práticas religiosas”
descreve a neurose obsessiva ”como uma religiosidade individual e a
religião como a neurose obsessiva universal”.85 Fala, aqui, não somente
de atos obsessivos, mas também de outras manifestações que caracteri-
zam a neurose obsessiva, tais como cerimoniais e pensamentos obses-
sivos, impulsos obsessivos, ideias obsessivas e proibições. A obsessivi-
dade, tanto nas neuroses quanto na religião, funcionaria como defesa
contra intensos sentimentos de culpa, decorrentes de desejos sexuais
e agressivos. A repetição, por sua vez, combate a ansiedade associada
aos desejos reprimidos. Os atos e cerimoniais obsessivos funcionam, em
parte, como defesa contra os desejos proibidos e, em parte, como sua
satisfação proibida.
Em “O futuro de uma ilusão”, as “ideias religiosas” são entendidas
como substitutas dos pais que devem garantir proteção contra o aban-
dono.86 Entretanto, “uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tam-
pouco é necessariamente um erro”. As ideias religiosas, como ilusões,
substituem os pais da infância, oferecendo, como estes, proteção contra

80. ARMSTRONG, K. Campos de sangue. Op. cit.


81. Ibid., p. 41.
82. GUTMANN, H.-M. Gewaltunterbrechung. Warum Religion Gewalt nicht hervorbringt, son-
dern bindet. Ein Einspruch. Gütersloh: Gütersloher, 2009.
83. FREUD, S. Atos obsessivos e práticas religiosas (1907). In: Idem, 1976. p. 117-131. v. 9.
84. ID. Totem e Tabu (1913). In: Idem, 1974, p. 13-194. v. 13; ID. Moisés e o Monoteísmo
(1939) In: Idem, 1975. p. 13-161. v. 23.
85. ID. Atos obsessivos e práticas religiosas. Op. cit., p. 130.
86. ID. O futuro de uma ilusão (1927). In: Idem, 1974. p. 11-71. v. 21. Ver também WONDRA-
CEK, K.H.K. (Org.). O futuro e a ilusão. Um embate com Freud sobre psicanálise e religião. Petrópolis:
Vozes, 2003; MORANO, C.D. Psicanálise e religião: Sigmund Freud e Oskar Pfister – um diálogo
interminável, São Paulo: Loyola, 2008.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 817

o desamparo.87 A religião sustenta-se por meio de uma dependência


infantil de seus seguidores. Sendo assim, o amadurecimento pessoal,
como a terapia psicanalítica o tenta promover, supera, necessariamente,
a religião.88 A religião acabaria, na medida em que o intelecto ou a razão
assumisse a primazia.89 O “deus logos” criaria uma ciência que, por si só,
suspenderia a religião.90
Embora S. Freud insistisse em situar a religião dentro de sua teoria
sobre o Complexo de Édipo, as “ideias religiosas”, das quais fala em
“O futuro de uma ilusão”, possuem clara identificação narcisista. Ele
mesmo reconhece que o saber religioso conserva o narcisismo infantil
em forma da proteção paterna e sentimento de eternidade.91 Freud en-
ganou-se em sua afirmação de que o saber científico acabaria com a re-
ligião. Postulando a “ditadura da razão”, ele não considerou a estrutura
narcisista do saber. Esta, pois, transferiu a qualidade narcisista do saber
religioso para o saber científico e racional. As ciências não superaram
a religião. Muito pelo contrário, observamos na pós-modernidade um
intenso fortalecimento da religião.
S. Freud escreve ao pastor protestante Oskar Pfister, em 09.02.1909:
“Em si mesma, a psicanálise nem é religiosa nem o seu oposto, mas
um instrumento apartidário do qual pode utilizar-se tanto o religioso
quanto o leigo, desde que esteja, exclusivamente, a serviço da liberta-
ção de pessoas que estão sofrendo”.92 O. Pfister, por sua vez, escreve a
Freud, em 21.10.1927, que “um adversário de poderosa inteligência
da religião, com certeza, lhe é mais útil do que mil adeptos inúteis”.93
Todavia, o próprio Freud abandonou sua pretendida neutralidade, ten-
tando proteger a Psicanálise contra os sacerdotes.94 Mesmo assim, é
inegável a importância fundamental da análise do inconsciente da reli-
gião, que ele iniciou. É fato que a religião, sob o aspecto inconsciente,

87. FREUD, S. O futuro de uma ilusão. Op. cit., p. 43.


88. Ibid., p. 57.
89. Ibid., p. 68.
90. Ibid., p. 69-71.
91. ID. O mal-estar na civilização (1930). In: Idem, 1974, p. 73-171, aqui, 81. v. 21; ver também
ID. Conferência XXXV: a questão de uma Weltanschauung (1933). In: Idem, 1976, p. 193-220. v. 22.
92. FREUD, S.; PFISTER, O. Briefe 1909-1939. 2. Aufl. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1980.
p. 13.
93. Ibid., p. 117.
94. Ibid., p. 136 (carta de 25.11.1928).
818 K. Körner. A violência da religião

pode se manifestar como atuação obsessiva e apresentar-se como prote-


ção narcisista infantil contra o desamparo e o abandono. Por essa razão,
ela é associada à violência.
Segundo o teólogo Andrés Torres Queiruga, “toda a religião – tam-
bém a cristã – é sempre intrinsecamente uma experiência interpretada
e, portanto, inculturada”.95 Não se pode separar a fé da religião, como o
tentou fazê-lo Karl Barth, porque a fé necessariamente se forma de acor-
do com a experiência interpretada.96 Onde se trata de uma influência da
cultura, também está atuando o inconsciente humano. José Comblin
fala, de um lado, da inconsciência da religião, mas, de outro, também
da “força da vida” que nela age.97 Esta “força da vida” atua no ser hu-
mano enquanto vivo, mas tanto conteúdos obsessivos quanto necessi-
dades narcisistas podem negá-la, a ponto de quase impedir totalmente
seu dinamismo. Comblin ainda chega a perceber que, considerando o
inconsciente da religião, a reflexão sobre o pluralismo religioso é enri-
quecedora. Assim, diz ele: “O cristianismo não é uma religião, não é o
culto de Jesus, mas uma proclamação: Cristo ressuscitou!”98 Na medida
em que se entende como religião, o cristianismo mais defende seu saber
contra os demais saberes religiosos, negligenciando a defesa da vida e a
prática do amor. Isto está acontecendo com muitas religiões. “Nenhuma
religião salva, porque somente Deus salva”.99

c) A religião segundo René Girard


Diretamente ligada à violência é a religião na teoria de René Girard.
Como S. Freud em “Totem e tabu”, também R. Girard parte de um
assassinato primordial, sem, no entanto, vê-lo associado à esfera sexual
e edípica, como Freud.100 Segundo R. Girard, Édipo não mata o pai

95. QUEIRUGA, A.T. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997. p. 71.
96. Ibid., p. 75.
97. COMBLIN, J. Jesus libertador numa visão da teologia pluralista. In: TOMITA, L.E.; VIGIL,
J.M.; BARROS, M. (Org.). Teologia latino-americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006.
p. 142 e 147.
98. Ibid., p. 133.
99. Ibid., p. 136.
100. GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra; Editora Universidade Estadual
Paulista, 1990; ID. Das Ende der Gewalt. Analyse de Menschheitsverhängnisses. Freiburg im Breisgau:
Herder, 1983.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 819

para ficar com a mãe, mas ele é transformado em “bode expiatório” em


cima do qual toda a sociedade projeta sua violência. Esse assassinato
primordial é imitado em cada época e sociedade por meio do respectivo
bode expiatório. A violência é sempre “algo eminentemente comunitá-
rio”. A religião e seus ritos têm sua origem nessa violência mimética e
coletiva. “Destruindo a vítima expiatória, os homens acreditarão estar se
livrando de seu mal e, efetivamente, vão se livrar dele, pois não existirá
mais, entre eles, qualquer violência fascinante”.101 A projeção coletiva da
violência para o bode expiatório “priva os homens de um saber, sobre a
sua violência com a qual eles nunca conseguiriam conviver”. Em virtude
desse mecanismo de esquecimento, “a violência humana é sempre con-
siderada como exterior ao homem; assim, ela se funde e se confunde no
sagrado, com as forças externas que pesam realmente sobre o homem:
a morte, as doenças, os fenômenos naturais...”102 Para R. Girard, “a vio-
lência e o sagrado são inseparáveis”.103
Os ritos têm sua origem no “acontecimento primordial” que é imi-
tado.104 O ritual é “a imitação e repetição de uma violência espontanea-
mente unânime”. Importante é a unanimidade.105 A vítima “substitui
todos os membros da comunidade”, no sentido de protegê-los do con-
tágio da violência. A função dos ritos é expulsar a violência. Tendo esta
uma poderosa força de contágio, os ritos precisam ser sempre repetidos.
Eles também devem ser sempre repetidos para afastar doença e morte.
Sendo o sagrado a negação da violência, os ritos mantêm a violência em
seu estado de negação. A prática dos rituais é altamente compulsiva,
porque, de um lado, os ritos têm a função de proteger da violência, mas,
do outro, eles próprios são violentos. Combate-se, portanto, a violência
com outra violência. R. Girard lembra que o NT não interpreta a morte
de Jesus na cruz como sacrifício, exatamente porque entende a cruz de
Cristo como fim do sacrifício e, consequentemente, da violência.106

101. ID. A violência e o sagrado. Op. cit., p. 107.


102. Ibid., p. 107.
103. Ibid., p. 33.
104. Ibid., p. 124.
105. Ibid., p. 127.
106. Ibid., p. 129; ver aqui também GORGULHO, G. A religião da violência. RIBLA, Petrópolis,
n. 10, p. 19-23, 1991.
820 K. Körner. A violência da religião

2. O conceito de religião
Quase todos entendem a religião como criação humana, embora
falem de seres superiores, de deuses e Deus. Ouve-se muitas vezes que,
falando de deus ou daquele que cada religião entende como tal, todas
as religiões sejam iguais e boas. Entretanto, há uma enorme diferença
entre as imagens de deus ou do ser superior de cada religião. Sendo as-
sim, a explicação do termo religião a partir da etimologia das palavras
latinas “religare” ou “religere” precisa ser tratada com cautela. “Religare”
significa ligar-se novamente a deus ou a alguma instância superior, ao
passo que “religere” aponta mais o sentido de se juntar, recolher.107 A
respectiva imagem de deus nas diversas religiões depende em muito de
circunstâncias e “possibilidades culturais”.108
Há inúmeras definições de religião! Algumas enfatizam mais o saber
da religião, que, de um lado, dá respostas às perguntas sobre a origem, o
destino da humanidade, do mundo, do outro e determina o comporta-
mento humano.109 Alguns autores entendem a religião a partir da busca
de um sentido ou como satisfação do desejo humano. Assim Rubem
Alves entende a religião como “teia de desejos”, sendo o desejo “sintoma
de privação, de ausência”.110 Na religião, os desejos se satisfazem por
meio da fantasia e da imaginação.111
Na opinião de Ludwig Feuerbach, “a religião é o sonho do espírito
humano”, não é loucura porque o homem não é loucura! Para uma
sociedade que prefere “a imagem à coisa, a cópia ao original, a fantasia
à realidade, a aparência à essência..., sagrada é somente a ilusão, mas
profana a verdade”.112 Na religião, Deus é homem, motivo pelo qual, na
verdade, esta nega Deus, colocando o homem no lugar dele.113 “A cons-
ciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo. “Pelo

107. JASPARD, J.-M. A natureza simbólica das representações religiosas. In: PAIVA, G.J. de; Zan-
gari, W. (Org.). A representação na religião: perspectivas psicológicas. São Paulo: Loyola, 2004. p. 51-72,
aqui, 51; ver também HOUTART, F. Mercado e Religião. São Paulo: Cortez, 2003. p. 20.
108. QUEIRUGA, A.T. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus. Por uma nova imagem de Deus. São
Paulo: Paulinas, 2001. p. 35; ver também GOMES, P.R. O Deus im-potente. O sofrimento e o mal em
confronto com a cruz. São Paulo: Loyola, 2007. p. 63.
109. FREI BETTO. Mística e espiritualidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 85.
110. ALVES, R. O que é religião. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 19 e 22.
111. Ibid., p. 30.
112. FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988. p. 31.
113. Ibid., p. 29.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 821

Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces seu Deus;


ambos são a mesma coisa”.114 Deus é para a religião “a contemplação
pura, a vida da teoria”.115 Cristo “é a unidade de afetividade e fantasia”.
Ele “ordena que se silencie a natureza furiosa, mas somente para ouvir
os suspiros do sofredor”.116 O mistério da religião, na verdade, é “o mis-
tério de união do consciente com o inconsciente, do arbitrário com o
casual em um único ser.117
Para Leonardo Boff, a religião, em sua função de ligar e religar,
serve de “elo” entre tudo o que existe e “dá um nome à Fonte de ser e
de sentido,... chamando-a por mil nomes ou simplesmente Deus”.118
Em outro lugar, afirma que o centro da religião é a “re-ligação de tudo
com tudo... Ela representa uma força capaz de re-ligar todas as coisas
entre si e o ser humano com o Ser essencial”.119 L. Boff acha que a reli-
gião “possui algo de eterno”,120 embora seja do imaginário.121 A religião
é relacionada ao “Absoluto”, mas também está inserida “na organiza-
ção mais ancestral e sistemática da dimensão utópica inerente ao ser
humano”122 e “nasce do desejo, da fantasia, dentro de uma formação
social”.123 Também afirma que a origem da religião é “sempre sobrena-
tural, porque a iniciativa cabe exclusivamente a Deus. A religião já é
resposta do povo ao apelo divino que o chama”.124 Todas as religiões,
na opinião de L. Boff, são “articulações da estrutura crística” e “con-
cretizam de alguma forma a própria Igreja de Cristo”.125 Por esta razão,
o sincretismo é a “essência da religião”.126 Segundo José Bittencourt
Filho, o sincretismo é a “matriz religiosa brasileira (e) como uma das

114. Ibid., p. 55.


115. Ibid. p. 237.
116. Ibid., p. 189.
117. ID. A essência da religião. Campinas: Papirus, 1989. p. 258.
118. BOFF, L. A oração de São Francisco. Uma mensagem de paz para o mundo atual. Petrópolis:
Vozes, 2009. p. 34.
119. ID. Homem: satã ou anjo bom? Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 136.
120. BOFF, L. Ecologia-Mundialização-Espiritualidade. São Paulo: Ática, 1993. p. 79.
121. Ibid., p. 62.
122. Ibid., p. 63.
123. ID. O caminhar da Igreja com os oprimidos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 101.
124. ID. América Latina. Da conquista à Nova Evangelização. São Paulo: Ática, 1992. p. 38; ID.
Igreja, carisma e poder. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1983. p. 52.
125. ID. Jesus Cristo Libertador. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 190.
126. ID. Igreja, carisma e poder. Op. cit., p. 152.
822 K. Körner. A violência da religião

maiores e originais criações da cultura brasileira”, mas que não necessa-


riamente serve de instrumento para favorecer uma libertação.127
Vários autores destacam que Deus não tem religião.128 Não havendo
“favorecimento divino” de uma determinada religião, todas são verda-
deiras, “embora o sejam de maneira provisória e limitada”.129 Daí surge
a necessidade de diálogo entre as religiões.130
Diferente de L. Boff, Paulo Roberto Gomes entende a religião como
algo “bem terreno que nasce das necessidades humanas, das buscas, an-
gústias, ilusões e esperanças, que fala da vida e da morte, da condu-
ta individual, da relação com os outros e que procura englobar todos
os aspectos da existência”.131 Os conteúdos sobrenaturais da religião
sempre são estabelecidos a partir do interesse pela vida no dia a dia.132
Para Juan Guillermo Droguett, a religião é atitude do homem “frente à
transcendência”.133
L. Boff atribui ao catolicismo popular, marcado por sincretismo,
uma força libertadora. Esta religiosidade articula a “vida da fé com a
vida social, numa perspectiva crítica, de resistência e de libertação”.134
A religiosidade popular que as CEBs praticam é a mesma que o próprio
Jesus valorizou.135 E, em virtude dessa religiosidade, as CEBs conseguem
romper “com o monopólio do poder social e religioso” e inaugurar “um
novo processo religioso e social de estruturação da Igreja e da socieda-
de”.136 A esse respeito, Gustavo Gutiérrez postula a necessidade de pu-
rificar a religiosidade popular para que a imensa “potencialidade de fé

127. BITTENCOURT FILHO, J. Matriz religiosa brasileira. Religiosidade e mudança social,


Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Koinonia, 2003. p. 49.
128. FREI BETTO; GLEISER, M. Conversa sobre a fé e a ciência com Waldemar Falcão. Rio de
Janeiro: Agir, 2011. p. 121.
129. QUEIRUGA, A.T. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus. Op. cit., p. 35.
130. Ibid., p. 36.
131. GOMES, P.R. O Deus im-potente. O sofrimento e o mal em confronto com a Cruz. São
Paulo: Loyola, 2007, p. 62; ver também CROATTO, J.S. A destruição dos símbolos dos dominados.
RIBLA, Petrópolis, n. 11, p. 34, 1992.
132. QUEIRUGA, A.T., Recuperar a criação. Por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus,
1999, p.32
133. DROGUETT, J.G. Desejo de Deus. Diálogo entre psicanálise e fé. Petrópolis: Vozes, 2000.
p. 21.
134. BOFF, L. Ética da vida. Brasília: Letraviva, 1999, p. 165.
135. ID. Igreja, carisma e poder. Op. cit., p. 202.
136. Ibid., p. 184.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 823

libertadora” nela contida possa se associar à capacidade revolucionária


do povo pobre e oprimido.137 Francamente contra uma força libertadora
da religião popular é Juan Luis Segundo. Referindo-se à pulsão de mor-
te, como S. Freud a definiu, ele aponta a tendência regressiva que nesta
atua.138 Cabe ainda lembrar que a conquista da América Latina foi reali-
zada em nome do Deus onipotente e com a benção da Igreja católica. É
conhecida a extrema violência com que ela se efetivou. Os índios foram
massacrados, seu ouro, roubado e levado para enfeitar as igrejas em Por-
tugal e Espanha, para a glória de Deus.139 Os africanos, capturados com
extrema brutalidade em seus países de origem, logo foram batizados para
serem “bons” escravos. Contra isso, devemos ouvir Tissa Belasurya que
alerta que do verdadeiro Deus não podem vir manifestações de ódio e
insulto, mas só o que é “verdadeiramente humanizador e enobrecedor”,
e isto, em qualquer religião.140 A pergunta óbvia que aí se coloca é: como
a mesma religião pode ser capaz, de um lado, de praticar tanta violência
e, do outro, incentivar a libertação? Pressupondo que a religião do povo
oprimido seja protesto contra a opressão, este protesto só pode ser inter-
pretado como um sintoma da psicopatologia, que também é protesto.
De uma forma geral, entendo religião como um sistema de saberes
que, além de darem resposta a tudo o que os homens querem saber,
determinam o comportamento ideal de seus seguidores. A violência im-
posta, automaticamente, pelos ideais é negada por meio da repetição
de rituais e outras manifestações obsessivas. A elucidação do narcisismo
leva-nos a concluir que a religião é estruturada por narcisismo e inveja.
De uma ou outra forma, as religiões usam a violência para alcançar ou
restaurar um estado considerado por elas como ideal.141 Por esse motivo,
elas, por si só, são violentas por não partir da realidade concreta do ser
humano, mas de ideais preestabelecidos.

137. GUTIÉRREZ, G. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 138; assim também
RICHARD, P. A força espiritual da Igreja dos pobres. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 73; ver também ID;
IRARRÁZAVAL, D. Religião e política a América Central. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 11.
138. SEGUNDO, J.L. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. I: Fé e Ideologia. São Paulo:
Paulinas, 1985. p. 65, nota 22.
139. Ver aqui, SUESS P. (Org.). A conquista espiritual da América Espanhola. 200 documentos –
Século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992.
140. BALASURYA, T. Revelação e revelações. In: TOMITA, L.E.; VIGIL, J.M.; BARROS, M.
(Org.). Teologia latino-americana pluralista da libertação. Op. cit., p. 30.
141. BINGEMER, M.C.L. (Org.). Violência e religião. Cristianismo, Islamismo, Judaísmo, Rio de
Janeiro; São Paulo: Editora PUC-Rio; Loyola, 2001.
824 K. Körner. A violência da religião

III. A violência na Bíblia e a proposta de sua superação na Igreja


1. O AT como história do conflito entre a fé no Deus do
amor e da vida e o narcisismo da religião
a) A origem da religião segundo Gn 1-3
Os primeiros capítulos da Bíblia contêm duas imagens bem distintas
de Deus. Em Gn 1,1–2,4b encontramos o Deus que fala e cria. Mesmo
que o texto se utilize de alguns elementos míticos, sua mensagem prin-
cipal é que Deus se comunica, sai de si para criar outras formas de vida
com quem mantém ligação. Palavra e ação coincidem nesse Deus. Pode-
-se dizer que esse é o Deus da vida e do amor que, segundo Jo 1, usa sua
palavra para se comunicar com os homens. Ele cria o ser humano como
mulher e homem, que são iguais em valor e têm numa natureza amiga
seu sustento abundante. Totalmente diferente é o deus de Gn 2,4b–3,24.
Este não se comunica, mas manda por meio de ordens e leis. Sua imagem
corresponde àquela do rei oriental que se exibe como dono absoluto de
todas as terras. Ao mesmo tempo, é essa a imagem do patriarca-macho
que domina a mulher e os filhos. Disfarçadamente diz o texto que a mu-
lher, na verdade, nasce do próprio homem, o que levou David Bakan a
falar da “maternização” do pai.142 No lugar da união de homem e mulher
temos agora o patriarca que manda na mulher. No lugar de uma terra
fértil que colabora com a felicidade do ser humano, temos agora um oá-
sis maravilhoso em que habitam os poucos favorecidos de Deus, no meio
de vastos desertos e terras áridas destinadas para o povo.
Em Rm 3,15, Paulo constata: “Pois a lei produz ira: onde não há lei
também não há transgressão”. A lei imposta em Gn 2,16-17 produz re-
volta. Essa revolta é representada pela serpente. Ao mesmo tempo, esta
fala no lugar do povo oprimido e derrotado. Convém prestar bem aten-
ção no estilo e nos dizeres de Gn 3,6-7: “A mulher viu que seria bom
comer da árvore, pois era atraente para os olhos e desejável para obter
conhecimento. Colheu o fruto, comeu dele e o deu ao seu marido, que
também comeu. Então os olhos de ambos se abriram, e, como reparas-
sem que estavam nus, teceram para si tangas com folhas de figueira”. Já

142. BAKAN, D. Mensch im Zwiespalt. Psychoanalytische, soziologische und religiöse Aspekte


der Anthropologie, München; Mainz: Kaiser; Grünewald, 1976. p. 178; ver também WOLF, H. Neuer
Wein – Alte Schläuche. Das Identitätsproblem des Christentums im Lichte der Tiefenpsychologie. 2.
Aufl. Stuttgart: Radius, 1983. p. 111.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 825

em Gn 2,9 se diz que as árvores de Éden são “de aspecto atraente e de


fruto saboroso”. Tanto Gn 2,9 quanto Gn 3,6 parecem estar inspirados
pela descrição que a Epopeia de Guilgamech faz do jardim dos deuses.
Aí se diz que “o fruto de cornalina, com sua vinha pendente, (era) be-
líssimo de se olhar” e as “folhas de lápis-lazúli pendendo com cachos de
frutos (eram) doces de se ver”.143
O primeiro contato com o fruto proibido se realiza por meio do
olhar. Antes de comer o fruto com a boca, os homens já o têm incorpo-
rado com o olhar. A descrição literária enfatiza bem a tentação do olhar.
Todo esse processo, portanto, descreve pessoas que se encontram no
estado psíquico de crianças muito pequenas. Pelo que já temos visto, o
olhar está associado à inveja. Ao desejo de ver corresponde o desejo de
ser visto. Os homens querem ser vistos no seu saber, querendo ser como
deus. E esse saber os torna como deus. A imagem de deus de Gn 3 é nar-
cisista. Deus é saber idealizado, e como saber igualmente idealizado os
homens querem ser vistos. A idealização das imagens mentais, por sua
vez, nega a realidade, produzindo culpa. A partir de Gn 3,14, a culpa
determina a vida dos homens, e com ela a violência tanto por parte do
deus-lei quanto por parte dos homens.
Normalmente se entende a transgressão da lei como “pecado origi-
nal”. Contudo, na verdade, o pecado original é a substituição do Deus
de Gn 1 que se comunica, que cria e ama a sua criação, pela imagem
narcisista do deus patriarca, que é o deus da lei. Em minha opinião,
Gn 1-3, especialmente Gn 2,4b–3,24, descreve a origem da religião. A
religião é apresentada em sua característica de saber idealizado que pune
e gratifica. Essa religião, no entanto, é combatida pelos profetas. Estes
lembram o Deus da vida e do amor de Gn 1. A fé nesse Deus questiona
a religião do AT, mas sem sucesso.

b) A violência da religião do AT
A partir de Gn 4, a religião exige que ofereçam sacrifícios, no intuito
de aplacar a ira divina, pagando a culpa. Gn 4 ilustra bem, no exemplo
de Caim, como a culpa impõe a violência. O sacrifício não agrada a

143. Epopeia de Guilgamech, Trad. Norberto de Paula Lima. São Paulo: Hemus, s/d. p. 142;
GRESSMANN, H. (Ed.). Altorientalische Texte zum Alten Testament. 2. Auf. Berlin; Leipzig: Walter de
Gruyter & Co, 1970. p. 179
826 K. Körner. A violência da religião

deus, o que aumenta a culpa de Caim, a ponto de ter que matar o irmão.
Segundo o texto de Gn 4, Caim é rejeitado por Deus, aparentemente
só porque é agricultor. O estado de culpa não apenas destrói a vítima,
mas também impõe a paranoia a quem comete o ato proibido.144 Ao
mesmo tempo, porém, Deus protege Caim de seus inimigos. Gn 6–9
potencializa a violência religiosa em forma do dilúvio. A partir de Gn
12, começa a história da escolha de Israel como “povo eleito”. Somente
a esse povo eleito Deus ajuda de forma eficiente e poderosa, castigando
e destruindo outros povos. A história do Êxodo e da conquista da “terra
prometida” são exemplos evidentes disso. Ao mesmo tempo, o próprio
povo de Israel é violentamente castigado, quando não segue as leis de
seu Deus.
Em seu livro “Os conteúdos escuros de Deus”, os autores145 apon-
tam as diversas imagens da fúria do narcisismo divino. Eles citam o que
Raymund Schwager resume: ”Nos livros do AT se encontram ... cerca
de mil passagens em que se destaca a ira de Deus. Ele pune com morte
e extermínio e julga como um fogo devorador, é vingativo e ameaça
destruição; nenhum outra recorrência surge mais vezes do que a fala da
atuação sangrenta de Deus”.146 Deus é mesmo guerreiro violento (Ex
15,3; Sl 2,8s; 1 Sm 15,3; Is 34,2)!
Com certeza, a violência do Deus de Israel também se entende
a partir da realidade desse povo. Em comparação com outros povos,
Israel é pequeno e politicamente insignificante. Muitas vezes, em sua
história, foi invadido, subjugado e escravizado. Sua real impotência o
levou a cultivar um enorme narcisismo que foi projetado em Deus.
A meu ver, o AT pode ser entendido, de um lado, como ilustração
do inconsciente narcisista de pequenos e insignificantes e, do outro,
como manifestação de uma realidade infantil, escondida na religião,
que precisa ser tornada consciente. É esse inconsciente que sufoca a
força da vida e do amor com a qual, segundo Gn 1, o homem foi
criado e que Jesus enfrenta na religião. A religião de Israel serve como
modelo de todas as religiões!

144. ESTRADA, J.A. Da salvação a um projeto de sentido. Como entender a vida de Jesus. Petró-
polis: Vozes, 2016. p. 100.
145. DIETRICH, W.; LINK, C. Die dunklen Seiten Gottes. Willkür und Gewalt. Neukirchen-
Vlyn: Neukirchener, 1995.
146. Ibid., p. 77.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 827

2. Jesus e o NT: a agressividade diante da violência da religião147


a) A agressividade de Jesus diante da violência da religião que o atinge
Jesus não criou uma nova religião, mas, de acordo com Mt 16,18,
fundou “sua Igreja” sobre o fundamento da fé no “Cristo, o Filho do
Deus Vivo”, professada por Pedro. Igreja é assembleia, comunidade. Para
que essa nova comunidade possa surgir, é preciso o distanciamento em
relação à religião de Israel. Mt 10 se entende a partir dessa necessidade.
Os discípulos são mandados em missão, primeiro, somente em Israel, a
fim de que pudessem se conscientizar do narcisismo de sua religião de
origem. Apenas a partir de sua fé no Cristo crucificado e ressuscitado, no
final do evangelho, em Mt 28,16-20, eles têm condições de enfrentar a
missão para todas as nações. Não é o narcisismo dos que se julgam “os
eleitos” que anuncia o Reino dos Céus, mas somente a fé na cruz e res-
surreição de Jesus Cristo. Como já foi dito, esse anúncio pressupõe que,
antes, o narcisismo religioso tivesse sido elaborado. Jesus foi educado na
lei judaica, participava das festas religiosas, respeitava o Templo e pagava
impostos e dízimo. Assim, ele estava livre para criticar o cumprimento
literal da lei. Ele criticava energicamente os líderes religiosos, chamando-
-os de hipócritas, em Mt 23. Acusado de não respeitar a lei, primeiro, ele
foi condenado à morte pelos líderes religiosos, como blasfemo, e, depois,
pelo poder político dos romanos, como subversivo político.
Jesus escandaliza os defensores da religião, afirmando que “Deus
não é religioso, mas humano, e que não lhe interessa tanto a religião
quanto o que ocorre na vida”.148 Ele provoca, porque fala e age com
total liberdade e autonomia em relação às leis e tradições. Estas apenas
têm sentido quando aproximam o homem do lado humano de Deus.149
Suas discussões com os adversários são agressivas, como também a ação
da expulsão dos comerciantes do Templo. Esta chega perto da violência.
Todavia, sua veemência se explica, porque ele se dirige contra a comer-
cialização da fé, em que se age como se a relação com Deus funcionasse

147. Aqui cito somente alguns dos muitos livros que tratam da relação de Jesus com a religião:
VERMES, G. A religião de Jesus, o judeu. Rio de Janeiro: Imago, 1995; ID. Jesus e o mundo do judaís-
mo. São Paulo, Loyola, 1996; VOLKMANN, M. Jesus e o Templo. São Leopoldo; São Paulo: Sinodal;
Paulinas, 1992; CROSSAN. J.D. Jesus, uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995;
HORSLEY, R.A. Jesus e a espiral da violência. Resistência judaica popular na Palestina Romana, São
Paulo: Paulus, 2010.
148. ESTRADA, J.A. Da salvação a um projeto de sentido. Op. cit., p. 95.
149. Ibid., p. 241.
828 K. Körner. A violência da religião

como no comércio, pagando e recebendo. A missão principal de Jesus


é exatamente a de revelar Deus como Pai que ama gratuitamente a to-
dos. Surpreendentemente agressivo é Jesus contra seus discípulos que
não conseguiram curar um menino epiléptico (Mc 9,19; Lc 9,41) ou
maníaco-depressivo (Mt 17,17). Nos três sinóticos, Jesus os chama de
perversos e insuportáveis. Isso prova que Jesus é agressivo quando é pre-
ciso e em relação a quem quer que seja, mas não violento.
Há ainda outras manifestações de agressividade nos evangelhos.
Jesus manda os demônios expulsos entrar nos porcos que se afogam,
causando prejuízo a seus donos (Mc 5,1-20; Mt 8,28-34; Lc 8,26-30).
Todavia, essa expulsão, na verdade, é um apelo forte, mas velado, para
a expulsão dos romanos, que oprimem o povo. Algumas parábolas se
destacam por sua violência. Nas parábolas, tanto dos vinhateiros (Mt
21,33-46; Mc 12,1-12; Lc 20, 9-10) quanto da ceia dos convidados
que recusaram o convite, a violência que parte da religião é enorme (Mt
22,1-14; Lc 14,15-24). Dúvida desperta a parábola de Mt 22,1-14, em
que aquele que permaneceu sem veste nupcial foi “amarrado em pés e
mãos, e lançado fora, nas trevas exteriores onde há choro e ranger de
dentes” (Mt 22,12-14). Associando o rei a Deus, este seria descrito
como extremamente violento. Entretanto, entendendo aquele que fi-
cou sem veste nupcial como o próprio Jesus, fala-se aqui da imagem
do deus da religião que exige que todos sejam imagens iguais e que
elimina todos aqueles que não obedecem às suas ordens. Nesse caso,
a parábola mostraria um Jesus excluído e vítima do ódio cego de seus
inimigos. A mesma violência se dirige contra aquele funcionário me-
droso que enterrou o dinheiro do dono na terra (Mt 25,14-30) e
contra os cidadãos que não quiseram que o homem nobre se tornasse
seu rei (Lc 19,11-27). Aquele servo que se embriagou e maltratou
seus colegas recebe uma punição extremamente cruel. Em Mt 24,51 e
Lc 12,46, ele será “partido ao meio”, será tratado como hipócrita ou
infiel e entregue ao “choro e ranger de dentes”, ou chicoteado. Nesse
último caso, trata-se da esquizofrenia e violência do próprio servo
que, agora, se volta contra ele mesmo. Nas parábolas citadas, de forma
geral, temos diante de nós a volta da projeção da violência humana
projetada em Deus.
Estranhamente exagerada é a punição para aqueles que tratam o ou-
tro com raiva; e para quem o chamar de imbecil e de louco. Enquanto
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 802-836, Out./Dez. 2017 829

os primeiros são julgados no tribunal e no Sinédrio, o último “é con-


denado ao fogo do inferno” (Mt 5,21-23). Nas antíteses do Sermão da
Montanha, Jesus condena com rigor a hipocrisia dos que se julgam per-
feitos por cumprirem a lei. Sendo a hipocrisia dirigida pela inveja, toda
a violência dos que se julgam perfeitos volta contra eles mesmos. No
entanto, a frase tão citada de Mt 5,39 precisa de uma explicação cuida-
dosa. Pois, aí se diz: “Se alguém te der um tapa na face direita, oferece-
-lhe também a esquerda”. Em Jo 18,22, um dos guardas do Sumo Sacer-
dote deu uma bofetada em Jesus, dizendo: ”Assim respondes ao Sumo
Sacerdote?” Jesus replicou-lhe: “Se falei mal, mostra em que falei mal;
e se falei certo, porque me bates?” Esse comportamento de Jesus não
permite que se interprete Mt 5,39 no sentido masoquista como prazer
de apanhar. Só pode falar assim alguém que domina sua agressividade e
se preocupa com outro. Para Jesus, a violência sofrida não causa culpa
que leva compulsivamente ao revide, mas conduz a uma agressividade
que aproxima Jesus da pessoa do agressor. Provavelmente nós estejamos
longe de ter essa maturidade e liberdade de Jesus.
Jesus se sujeitava à religião de seu povo e à lei, mas, para superá-la.
Mt 5,17-18 diz: “Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não
vim para abolir, mas para cumprir. Em verdade vos digo: antes que o
céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas
da Lei, sem que tudo aconteça”. Jesus cumpriu a Lei e os Profetas em
seus mínimos detalhes em sua morte na cruz e na ressurreição. Uma
lei que precisa ser cumprida em seus mínimos detalhes é obsessiva. A
neurose obsessiva, como vimos, é uma maneira de negar a violência
que, no entanto, atua de forma disfarçada. Sendo assim, Jesus revelou
em sua morte em nome da lei e do deus desta a força assassina da lei.
Jesus fala abertamente, em Mt 10,34-39 e Lc 12,49-53, que ele veio
para exigir o enfrentamento da violência. Em Mt 10,34-39, Jesus diz
que veio trazer “a espada” e em Lc 12,49-53 “o fogo”, e não uma paz
falsa. A espada corta os laços familiares, exige a radical decisão de se
separar da família e da religião de origem. O fogo de Lc 12,49 parece
referir-se ao Espírito Santo, que estabelece, no lugar da dependência
familiar, uma nova força de relacionamento na Igreja, que é o amor
fraterno. O fogo também pode ser símbolo da inveja. Neste sentido, a
frase aludiria à conscientização da inveja, necessária para que se possa
chegar ao amor.
830 K. Körner. A violência da religião

b) A violência do livro do Apocalipse de João150


O livro do Apocalipse de João é o livro mais violento do NT. Carl
Gustav Jung é da opinião que somente um homem que muito fala do
amor é capaz de escrever tanto sobre a violência.151 Aliás, em seu evan-
gelho, João também fornece um exemplo de desejo violento. Quando
fala de Judas Iscariote, sempre acrescenta que este é o traidor de Jesus, o
ladrão entre os apóstolos. Em Jo 6,71-72, Judas é chamado de “diabo”;
em 12,6, “ladrão”; e, em 13,2.27, “seduzido pelo diabo”. Ao que tudo
indica, Judas era muito estimado por Jesus, despertando, por isso, a
inveja do João. Sendo assim, o lado violento de João não surpreende.
Muito pelo contrário, exatamente seu lado ciumento e invejoso, de um
lado, o leva a buscar intensamente o amor e, do outro, o torna capaz de
captar toda a dimensão da violência da humanidade. Contra Jung deve
ser anotado, porém, que o Apocalipse não ilustra o inconsciente de uma
só pessoa, mas da religião. Aí se manifesta toda a violência inerente a
esta e sua superação definitiva.
Até Ap 11, a violência e o mal vêm do céu; em Ap 12, o dragão,
sinônimo do mal e da violência, está sendo expulso do céu e, a partir
daí, a violência está sendo atuada na terra. Em Ap 20, o dragão e seus
falsos profetas são presos e condenados, mas, surpreendentemente, sem
violência. Um anjo desce do céu e simplesmente prende os autores da
violência no abismo. A meu ver, o anjo representa a força inerente à
consciência humana. O Ap 21,22 fala de nova terra e de novos céus
onde não tem mais religião, “pois seu templo é o próprio Senhor, o
Deus todo-poderoso, e o cordeiro”. Na maioria das vezes, quando o
Ap fala de Cristo, o apresenta como “cordeiro”, como aquele que foi
imolado em sacrifício. No cordeiro pascal está presente a memória da
libertação da escravidão do Egito que inclui, também, o fim dos pri-
meiros. Ap 1,10 localiza a visão no “dia do Senhor”, portanto, no dia
da ressurreição em que se celebra a memória da morte e ressurreição de
Jesus Cristo. O livro do Apocalipse de João, portanto, pretende dar à

150. Cito aqui somente os seguintes livros: ANDRADE, A.L.P. de. Eis que faço novas todas as coi-
sas. Teologia apocalíptica, São Paulo: Paulinas, 2012; BROOK, W.H.; GWYTHER, A. Desmascarando
o imperialismo. Interpretação do Apocalipse ontem e hoje. São Paulo: Paulus, 2003; MESTERS, C.;
OROFINO, F. Apocalipse de João. A teimosia da fé dos pequenos. Petrópolis: Vozes, 2002; RICHARD,
P. Apocalipse. Reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996; VÖGTLE, A. Das Buch mit den sie-
ben Siegeln. Die Offenbarung des Johannes in Auswahl gedeutet. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1985.
151. JUNG, C.G. Antwort auf Hiob. 2. Aufl. Olten: Walter, 1973. p. 470 (GW, 11).
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celebração da Eucaristia o sentido da conscientização do fim da violên-


cia religiosa, necessário para que possa haver comunidade.

c) A cruz e a ressurreição de Jesus Cristo como fim da religião


Durante quase toda a história da Igreja, a morte de Jesus na cruz foi
entendida como sacrifício necessário para obter o perdão de um deus
ofendido pelo pecado humano. Se a cruz de Jesus Cristo fosse castigo
de Deus que Jesus teria assumido como sacrifício, o próprio Deus seria
vingativo e até sádico, além de ser causador do sofrimento humano.
Segundo Juan Antonio Estrada, essa seria a visão da religião, que cola-
borou na “clericalização” do cristianismo, na marginalização dos leigos e
na perda de sentido comunitário dos sacramentos.152 Todavia, o sentido
da cruz se entende como fim do sacrifício e ponto alto da entrega total
de Jesus pelos outros.153 Hb 10,11-18 esclarece que Cristo, em sua mor-
te, realizou “um único sacrifício pelos pecados” e “onde existe a remissão
dos pecados, já não se faz oferenda por eles”. Contra essa afirmação se
interpretava Hb 6,4-6 no sentido que os pecadores “crucificam nova-
mente o Filho de Deus e o expõem às injúrias”. Aqui somente se alerta
que o pecado nega o perdão trazido pela morte de Jesus, fazendo com
que a culpa continue impondo morte e destruição. Segundo F.J. Hinke-
lammert, Hb 6,4-6 foi entendido como apelo para “crucificar os cruci-
ficadores”, a fim de que Jesus não fosse crucificado novamente.154 Nessa
argumentação enumera Herbert Koch os fatos da “violência cristã” em
nome de um “Jesus sacrificado”.155 Cita as cruzadas, a perseguição feroz
aos judeus e a luta da Igreja contra a democracia.
Não se pode entender corretamente a cruz de Jesus sem considerar
sua íntima relação com a ressurreição. Jesus se sujeita à violência religio-
sa para testemunhar que o verdadeiro Deus é vida e amor. O pecado hu-
mano, por mais cruel que possa ser, não afeta nem a vida nem o amor.
Muito pelo contrário, como São Paulo o repete especialmente em Rm
5,15-20, onde é grande o pecado, muito maior atua a graça de Deus. Na
cruz de Jesus Cristo manifesta-se todo o poder destrutivo da religião, ao

152. ESTRADA, J.A. Da salvação a um projeto de sentido. Op. cit., p. 200.


153. Ibid., p. 289.
154. HINKELAMMERT, F.J. Sacrifícios humanos e sociedade ocidental. Lúcifer e a Besta, São
Paulo: Paulus, 1995. p. 19.
155. KOCH, H. Der geopferte Jesus und die christliche Gewalt. Düsseldorf: Patmos, 2009.
832 K. Körner. A violência da religião

passo que a ressurreição de Jesus Cristo testemunha a vitória da vida e


do amor. A fé faz-nos participar dessa vitória.
A morte de Jesus corrige definitivamente o conceito da onipotência
de Deus. Como Paulo Roberto Gomes o formula, “o Deus de Jesus não
é o Deus do medo e da angústia, o juiz e legislador, nem o Deus da oni-
potência abstrata, impassível e imóvel, um Senhor a pedir submissão,
exercer controle, força e intervenção”. A cruz de Jesus Cristo “rompe
com nossas imagens do Deus mágico intervencionista, da onipotência
infantil, pronto para resolver todos os nossos problemas e frustrações”.
Ela nos mostra um Deus que respeita a autonomia e a liberdade hu-
mana, e “cujo poder se encontra em seu amor e em sua misericórdia
sem limites”.156 Dando a seu livro o título provocador: “O Deus es-
candaloso”, Vitor Westhelle pensa que a Cruz de Jesus Cristo abala “o
próprio critério do amor”, de uma forma escandalosa.157 A fé religiosa
no Deus onipotente, em Mt 27,39-44, Mc 15,29-32 e Lc 23,35-38,
exige do crucificado a prova de ser o messias, descendo da cruz. Jesus
escandalizou tal fé, permanecendo preso na cruz até sua morte. Étienne
Babut fala do Deus da Bíblia como “poderosamente fraco”.158 O amor
“poderosamente fraco” de Deus, que se revela no crucificado, é acessível
especialmente a todos aqueles que na sociedade são oprimidos, explo-
rados, marginalizados e que sofrem. Com estas vítimas da violência o
crucificado se identifica. Para Roger Lenaers, o fim da fé num Deus
todo-poderoso, que está “nas alturas”, é necessário para que se possa
descobrir a fé no “Deus humano”, no Deus que é amor e vida.159
Quem muito contribuiu para o embasamento teológico da transfor-
mação do cristianismo em religião foi Santo Agostinho. Em seu livro “A
verdadeira religião”,160 ele pretende defender as verdades do cristianis-
mo, mas, sem querer, fez dele uma religião ao lado de outras. Outra ra-
zão é o recurso à filosofia grega pelos teólogos dos primeiros séculos, su-
pervalorizando deste modo o saber em detrimento da prática do amor.
A estrutura hierárquica da Igreja, além disso, foi herdada do Império

156. GOMES, P.R. O Deus im-potente. Op. cit., p. 186-187.


157. WESTHELLE, V. O Deus escandaloso. O uso e abuso da cruz, São Leopoldo: Sinodal; EST,
2008. p. 36.
158. BABUT, É. O Deus poderosamente fraco da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2001.
159. LENAERS, R. Viver em Deus sem Deus? São Paulo: Paulus, 2014. p. 266.
160. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. São Paulo: Paulinas, 1987.
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Romano, ajudando, assim, a esquecer mais ainda a primazia da prática


do amor ao próximo numa Igreja comunitária. Deste modo, a Igreja se
transformou em religião. Mais ainda: como religião oficial do Império
Romano, ela adquiriu uma estrutura de poder em que surgiu a divisão
de classes, a da hierarquia e a dos leigos. Nessa nova estrutura religiosa,
ela se preocupava mais com a definição e a defesa de seu saber do que
com a prática comunitária. E isto parece valer até hoje.
J.A. Estrada constata que a transformação do cristianismo em “re-
ligião oficial do império” reservou o nome igreja a prédios, templos e
clero.161 Somente a partir do Vaticano II, ela voltou a se entender como
Povo de Deus e comunidade. Contudo, para que pudesse recuperar sua
essência comunitária, ela precisaria ser “desclericalizada e potencializar
os leigos”.162 Segundo José Porfírio Miranda, “a reabsorção do cristia-
nismo no esquema ‘religião’ representa, talvez, o maior desastre da his-
tória”.163 Eduardo Hoornaert, por sua vez, acha que “em seu âmago, o
cristianismo não é religião, embora se expresse em termos religiosos”. A
maioria não segue a Jesus, mas está na religião, submetendo-se, de for-
ma acrítica à doutrina da Igreja.164 Passados cinquenta anos depois do
Vaticano II, hoje, os defensores de uma Igreja hierarquia e de seu poder
de absoluta autoridade voltaram a se fortalecer, dando sinais de restabe-
lecerem uma Igreja pré-conciliar de tipo rural. E isto, contra tudo o que
o papa Francisco está pregando!
A Igreja católica, na medida em que se entende como religião, é
violenta, mesmo que não o queira admitir. Como religião católica, ela
impôs com absoluta autoridade e sob a ameaça de castigos seu saber.
Basta lembrar as leis da moral sexual e matrimonial. Em virtude dessas
leis rígidas, quantas pessoas foram precipitadas em patologias psíquicas
e impedidas de ser felizes desde sua mais tenra infância! Já nos primei-
ros séculos, a defesa do saber, como o mostra a história dos dogmas,
sucedeu-se com condenações e exclusões. Até nosso tempo, antes de o
papa Francisco ser eleito, havia condenações e punições de teólogos que

161. ESTRADA, J.A. Da salvação a um projeto de sentido. Op. cit., p. 234.


162. Ibid., p. 321.
163. MIRANDA, J.P. O ser e o messias. Um estudo sobre o messianismo de Jesus. São Paulo:
Paulinas, 1982. p. 42.
164. HOORNAERT, E. O cristianismo é uma religião? REB, Petrópolis, v. 76, n. 304, p. 935, 2016.
834 K. Körner. A violência da religião

supostamente não estivessem de acordo com a doutrina oficial. Até car-


deais chegam a criticar em público o papa Francisco por supostamente
não estar na ortodoxia. Horst Herrmann juntou em seu livro, “Sexo e
tortura na Igreja. Dois mil anos de tortura em nome de Deus”, provas
da violência que a Igreja cometeu em nome de Deus. Ele chega a afir-
mar que a violência contra suas vítimas, em parte, foi mais brutal do
que a crucificação de Jesus.165
A América Latina – e outras partes do mundo – continua matando
os pobres. Mas na hierarquia da Igreja há maior preocupação com o uso
do “método de análise marxista, que parte de um pressuposto materia-
lista, não religioso”166, do que com a situação dos pobres e da justiça
para todos. Aliás, uma Igreja que não aceita “análises não religiosas”
corre o risco de se fechar em seu próprio narcisismo. Se isto ocorre,
automaticamente, qualquer saber é imposição autoritária, pois não res-
peita, a princípio, a realidade de outros. Acredito que nisso reside um
dos maiores desafios para a Igreja hoje: como orientar seus fiéis sobre a
aceitação de suas doutrinas, conservando e favorecendo a primazia do
amor ao próximo.
Onde há confiança na vida e na prática do amor fraterno não há
mais religião. Da mesma forma como o empenho pela justiça social para
todos, também o esforço ecumênico das diversas Igrejas cristãs não pode
ser em primeiro lugar uma questão teológica, de chegar a um acordo so-
bre divergências dogmáticas de saberes. O que cria justiça e une a todos
é a confiança na vida, a valorização da vida de cada ser humano, bem
como a prática do amor ao próximo.
A religião e sua violência não desaparecem simplesmente com a
morte e a ressurreição de Jesus Cristo; elas continuam atuando, como
mostra o fato de o ressuscitado aparecer com os sinais de sua morte, as
chagas, em seu corpo. É o crucificado que ressuscita e está vivo e não
simplesmente o Jesus Cristo. Nessa diferença insiste especialmente Jon
Sobrino.167 O livro do Apocalipse projeta o fim da violência religiosa

165. HERRMANN, H. Sex und Folter in der Kirche. 2000 Jahre Folter im Namen Gottes. 3. Aufl.
München: Bassermann, 2013, especialmente, p. 297s.
166. SCHERER, D.O. Sabatina Folha – Teologia da Libertação já passou. Entrevista concedida a
Suzana Singer et al. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 abr. 2007, p. A 10; ID. É difícil separar religião e
política. Entrevista concedida a Paulo Bonelli. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 abr. 2012.
167. SOBRINO, J. A fé em Jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas. Petrópolis: Vozes, 2000 (Col.
Teologia e Libertação. Série II: O Deus que liberta o seu povo).
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para o fim do mundo. Tendo em vista a estrutura inconsciente e narci-


sista da religião, a violência permanece enquanto houver inconsciente.
A fé na vitória da vida e do amor fortalece-se no meio da violência reli-
giosa e não religiosa e contra ela. A memória da morte e ressurreição de
Jesus Cristo, que se realiza na celebração da Missa, seria o momento em
que essa fé se fortalece.

3. A Eucaristia como terapia da violência


Após o Vaticano II, quantas normas legais se sucederam para garan-
tir a “validade” da Missa! Tais novas normas, na maioria das vezes, vi-
sam reafirmar a centralidade do sacerdote. A Missa torna-se novamente
uma questão de obediência à hierarquia clerical e não a expressão de
uma comunidade que se reúne em virtude de sua fé no Crucificado que
ressuscitou. A tendência de tornar sempre mais visível a autoridade do
sacerdote, ultimamente, vem aumentando, motivo pelo qual a Missa
sempre menos é da comunidade. A prática do tempo pré-conciliar era
essa que hoje novamente se vem instalando, e essa prática mais tem
em comum com a atuação de uma neurose obsessiva. As supostas cele-
brações de cura e milagres mais têm a ver com euforias maníacas, cuja
maior preocupação é a de enganar e abafar a culpa subjacente.
Como E. Drewermann, também Bernard Häring e Valentino Sa-
voldi entendem a Eucaristia como terapia que cura a violência huma-
na e os profundos sentimentos de culpa que se associam a esta.168 No
entender da Psicanálise, toda terapia é a localização e a superação de
resistências. A resistência mais poderosa contra a eucaristia seria sua
concepção de sacrifício religioso regularizado por leis rígidas. Aliás, a
Missa em sua forma atual como culto religioso nada tem a ver com
terapia, com conscientização. Outra resistência vem de um liturgismo
em que mais se presta atenção em rituais e costumes do que na realida-
de sacramental e comunitária.
“Comer o corpo” e “beber o sangue” de outro homem, necessaria-
mente, toca no canibalismo. Especialmente, Melanie Klein e sua Escola
mostraram que fantasias canibalescas se localizam na primeira infância.

168. DREWERMANN, E. Der Krieg und das Christentum. Op. cit., p. 284; HÄRING, B.; SA-
VOLDI, V. O Evangelho que nos cura: diálogo sobre a não-violência. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 304;
Ver também TERRIN, A. (Org.). Liturgia e terapia. A sacramentalidade a serviço do homem na sua
totalidade. São Paulo: Paulinas, 1998.
836 K. Körner. A violência da religião

Devorar os seios maternos e incorporar a mãe, eliminando o pai, são


fantasias de tomar posse parcial ou total dela.169 E. Drewermann fala
de uma “ritualização” do canibalismo.170 Importante é considerar que
tais conteúdos inconscientes são tocados, na última ceia, com pessoas
adultas reunidas, a quem Jesus interpreta o que vai acontecer e que de-
vem repetir isso “em memória” dele. Jo 6 fala do escândalo com que
os ouvintes de tais palavras reagiram, levando até um bom número de
discípulos a se afastarem de Jesus. “A Primeira Eucaristia” dos apóstolos
também foi um fracasso total. Primeiro, eles regrediram, dormindo; de-
pois, fugiram.
Jesus, à maneira de um psicanalista na análise, atrai sobre si as pro-
jeções inconscientes violentas e sádicas de todos os presentes, para de-
volver a verdade. Jesus está vivo; portanto, a verdade é que fantasias são
fantasias e, como tais, não afetam, por si só, a realidade. Consequente-
mente, não há motivo para culpa. É, pois, a culpa suscitada pela fantasia
que leva à atuação de atos violentos. Essa é a terapia que Jesus realizou
na última ceia. E é essa terapia da violência que ele quer que seja lem-
brada por todos em “memória” dele, na Missa.
A Missa deveria ajudar a vencer a violência e a injustiça, mas foi
transformada em instrumento delas. Nisso se repete o que aconteceu
com a religião de Israel. Começou como movimento de libertação, para,
em seguida, justificar, como religião da lei, a violência contra o povo e a
morte de Deus em nome de Deus. Há um livro que, em seu título, fala
da Igreja católica como “O gigante bloqueado. Psicanálise da Igreja Ca-
tólica”.171 Entendo esse bloqueio como consequência da sempre maior
regressão à religião. Todavia, o potencial terapêutico e libertador existe;
falta apenas deixá-lo agir!
Endereço do Autor:
Rua Turiassú, 351, apto 8
05005-001 São Paulo – SP/BRASIL
E-mail: konkor@terra.com.br

169. Ver KLEIN, M. Contribuições à psicanálise. São Paulo: Mestre Jou, 1970; ID. Psicanálise da
criança. São Paulo: Mestre Jou, 1975; ID. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1974;
170. DREWERMANN, E. Der Krieg und das Christentum. Op. cit., p. 307-309.
171. LÜTZ, M. Der blockierte Riese. Psycho-Analyse der kaholischen Kirche. München: Pattloch,
2014.

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