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ANAIS DO XII CONGRESSO REGIONAL E I

CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
- UNIMONTES

“Historiografia das Histórias: Conceitos, Debates e


Pesquisas No Século XXI”
ISSN 1983-232X

Realização
Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros

Apoio
Direção do Centro de Ciências Humanas - CCH – Unimontes
Diretoria de Documentação e Informações - DDI - Unimontes
Programa de Pós-graduação em História - PPGH - Unimontes

PUBLICAÇÃO
MONTES CLAROS/ MG
2017
Anais do XII Congresso Regional e I Congresso Internacional de História da
Unimontes. “Historiografia das Histórias: Conceitos, Debates e Pesquisas no Século
XXI”- 24 a 26 de agosto de 2016

Unimontes - Universidade Estadual de Montes Claros

Reitor: Prof. João dos Reis Canela


Vice-Reitor: Prof. Dr. Antônio Alvimar SouzaCentro De Ciências Humanas
Diretora: Profa. Me. Mariléia de Souza

Comissão Organizadora
Prof. Dr. Alysson Luiz Freitas (Unimontes)
Profa. Me. Andrea Helena Puydinger de Fazio (Unimontes)
Profa. Me. Bárbara Figueiredo Souto (Unimontes)
Profa. Dra. Helena Amália Papa (Unimontes)
Profa. Dra. Ivete Batista da Silva Almeida (Unimontes)
Prof. Dr. Roberto Mendes Ramos Pereira (Unimontes)
Prof. Dr. Vinícius César Dreger de Araújo (Unimontes)

Comissão Científica
Prof. Dr. Alexandre Andrade da Costa (Fundação Educacional de Fernandópolis-SP)
Profa. Dra. Ana Paulo Ribeiro Freitas (UFV)
Profa. Dra. Érica C. M da Silva (UFES)
Profa. Dra. Fabiana Francisca Maceno (UFMT)
Prof. Me. Heraldo Márcio Galvão Júnior (UNIFESSPA)
Profa. Me. Janaína Jácome (UFU)
Prof. Me. Jonas Samudio (UFMG)
Prof. Dr. Luciano José Vianna (UPE)
Prof. Dr. Lukas Gabriel Grzybowski (USP/UEL)
Profa. Dra. Márcia Pereira da Silva (UNESP-Campus Franca)
Profa. Dra. Sandra Silva (UEPE)

Comissão Organizadora Discente


Ana Flávia Gomes Santos, Ana Flávia Gonçalves Cruz, Angela Francine Santos Medeiras,
Cleidinaldo Silva Santos, Dalila Ferreira Santana, Douglas Moreira Alves, Emanuelle Silva
Fernandes, Ertz Ramon Teixeira Campos, Francisco Rocha, Gabriel Machado, Gildson
Queiroz, Jessica Vieira de Jesus, Laiana Silva Lemos, Lúcio Junio Benfica Rosa, Luiz
Fernando Rocha, Mariana Gonçalves Freitas, Michel Juliano Santos Lima, Nayara Santos
Gonçalves, Sâmia Emily Oliveira Andrade e Welington Fernandes Silva.

Organização do original
Ivete Batista da Silva Almeida
Gerferson Damasceno Costa

Diagramação de texto
Ivete Batista da Silva Almeida
Helena Amália Papa
Gerferson Damasceno Costa

Revisão
Helena Amália Papa
―Historiografia das Histórias: Conceitos, Debates e Pesquisas no Século XXI”
Organizado por Ivete Batista da Silva Almeida e Gerferson Damasceno Costa –
Montes Claros: Unimontes, 2017.

Anais do XII Congresso Regional e I Congresso Internacional de História da Unimontes.


Realizado em Montes Claros – MG em agosto de 2016.

1. História. 2. Historiografia. 3 Ensino de História 4. Pesquisa em História

ISSN 1983-232X

―Historiografia das Histórias: Conceitos, Debates e Pesquisas no Século XXI”

Organizadores
Ivete Batista da Silva Almeida
Gerferson Damasceno Costa

Organização do original
Ivete Batista da Silva Almeida
Gerferson Damasceno Costa

Diagramação de texto
Ivete Batista da Silva Almeida
Gerferson Damasceno Costa
Helena Amália Papa

Revisão
Helena Amália Papa

Projeto de Capa
Alysson Luiz Freitas de Jesus
Sumário

Apresentação
Ivete Batista da Silva Almeida - Unimontes 11
Gerferson Damasceno Costa – Unimontes

15
Textos Completos Apresentados em Simpósio

FONTES PARA A PESQUISA HISTÓRICA DO MUNDO RURAL DO


NORTE DE MINAS GERAIS 17
Adriana Duarte Borges Aquino

IMPRENSA: UM CAMPO DE BATALHAS, UMA LEGITIMAÇÃO DOS


SUJEITOS E DE IDEIAS 25
Ana Carolina Ferreira da Silva

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIRETOS HUMANOS


Ana Carolina Machado Ribeiro Rodrigues 39
Maria Fernanda Machado Ribeiro Rodrigues

O PAPEL DO KALEVALA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE


NACIONAL FINLANDESA 51
Carolina Silva de Almeida

INVENTÁRIO CULTURAL DE PROTEÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO


Cesar Henrique de Queiroz Porto 55
Denílson Meireles Barbosa

IMAGENS DO OUTRO: ORIENTALISMO NA MÍDIA


CONTEMPORÂNEA
César Henrique de Queiroz Porto 63
José Eustáquio Chaves Filho
Luiz Gustavo Soares Silva

CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO E DESDOBRAMENTOS NA VIDA


UNIVERSITÁRIA NO SÉCULO XXI
71
Cláudia Simone Pereira Sarmento Quadros
Janice Machado Ribeiro Rodrigues

PROPOSTAS DE UM DEPUTADO REVOLUCIONÁRIO: A ATUAÇÃO


PARLAMENTAR DE CARLOS MARIGHELLA NA ASSEMBLÉIA
NACIONAL CONSTITUINTE DE 1946 81
Danyele Nayara Santos Dias
Laurindo Mékie Pereira
HISTÓRIA ORAL: UMA METODOLOGIA PARA TRABALHO COM
FONTES ORAIS
93
Denílson Meireles Barbosa
Pedro Jardel Fonseca Pereira

A PROPAGANDA NO SÉCULO XX O NAZISMO E UMA IDEIA DE


MASSA 103
Douglas Alves Moreira

MULHERES EIS O SEXO! NOTAS SOBRE


REPRESENTAÇÕES DA EMANCIPAÇÃO SEXUAL
FEMININA NO CINEMA BRASILEIRO DOS ANOS 1970 111
Fabiana Oliveira Leite
Cláudia de Jesus Maia

CINEMA MARGINAL BRASILEIRO: ENTRE A


CONTRACULTURA E A REPRESSÃO 119
Fabio Santiago Santos

O ASSASSINATO DE CLITO POR ALEXANDRE (SÉC. IV


A.C.): UMA ANÁLISE DAS SEÇÕES 50 E 51 DA BIOGRAFIA
DE ALEXANDRE EM VIDAS PARALELAS 131
DE PLUTARCO
Francisco Rocha

SUBJETIVIDADES DISSIDENTES: CORPO, DESEJO E


SEXUALIDADE NA REVISTA G MAGAZINE (1997-2013) 143
Gerferson Damasceno Costa

“ESTE É UM LIVRO SOBRE SEXO”: O SEX, POR


MADONNA, E A TEORIA QUEER, ENTRE APROXIMAÇÕES 151
E DISTANCIAMENTOS.
Gustavo Henrique Ramos Silva

O FOTOJORNALISMO E A EDUCAÇÃO DO OLHAR


159
Ivete Batista da Silva Almeida

ENSINO RELIGIOSO EM MONTES CLAROS: UMA


RETROSPECTIVA HISTÓRICA 165
Janice Machado Ribeiro Rodrigues
Cláudia Simone Pereira Sarmento Quadros

HISTÓRIA E LITERATURA: AS REPRESENTAÇÕES DA


REVOLUÇÃO CUBANA NAS OBRAS DE REINALDO
ARENAS 171
Jorge Luiz Teixeira Ribas
“MINHA MENSAGEM NÃO É UMA MENSAGEM DE
DERROTA, MAS SIM DE LUTA E ESPERANÇA”: HISTÓRIA
E ESCRITA DE SI NAS MEMÓRIAS DE REINALDO 183
ARENAS.
Jorge Luiz Teixeira Ribas

AS CORRESPONDÊNCIAS FEMININAS E A (IN)


VISVISIBILIDADE NA POLÍTICA 195
Jumara Carla Azevedo Ramos Carvalho

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O DISCURSO MEDIADO ANTES


E DEPOIS DA CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA E SUAS
IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E SOCIAIS NO MUNICÍPIO DE 205
MONTES CLAROS ENTRE A DÉCADA DE 1970 AOS DIAS
ATUAIS.
Lara Lanusa Santos Nascimento

LITERATURA COMO PALCO DE MILITÂNCIA NA OBRA


AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES 215
Lorena de Souza Coutinho de Paula

TRANSFORMAÇÕES E INTERVENÇÕES URBANAS NA


CIDADE DE MONTES CLAROS- MG (1970- 1980) 219
Kamila Freire Fonseca
Gabriela Miranda de Oliveira

TERRITÓRIO E TRANSITORIEDADES: ESTRATÉGIAS DE UM


MESMO PROCESSO? NORTE DE MINAS NA PRIMEIRA METADE DO
229
SÉCULO XVIII.
Mário J. F. de Oliveira

O VELHO QUE ATA A CRIANÇA QUE MATA:


REPRESENTAÇÕES DA INFÂNCIA EM O MULO, DE DARCY 241
RIBEIRO
Mauricio Alves de Souza Pereira

UM RETRATO DA DITADURA CIVIL-MILITAR


BRASILEIRA NO FILME ZUZU ANGEL (2006): 249
DESAPARECIMENTOS, REPRESSÃO E RESISTÊNCIA
Nathalia C. Patané Nagasawa

SABERES E FAZERES: COMIDAS TRADICIONAIS DA


CIDADE DE SÃO FRANCISCO-MG
Patrícia Alves de Souza 261
Carla Cristina Barbosa
REMANESCENTES QUILOMBOLAS NO BRASIL E A
REPRODUÇÃO DO SISTEMA ESCRAVOCRATA NO
SÉCULO XXI: UMA ANÁLISE ACERCA DA “ 271
ESCRAVIDÃO” E EXPLORAÇÃO SEXUAL.
Patrícia Fernanda Heliodoro dos Santos

HISTORIOGRAFIA DA ENGENHARIA DE SISTEMAS NO


BRASIL E SUA IMPORTÂNCIA NO MERCADO
GLOBALIZADO DO SÉCULO XXI 279
Ramón Souza Silva Rodrigues
Luís Paulo Tolentino Fernandes

PISKARYOVSKOYE: UM CEMITÉRIO, MUITAS


MEMÓRIAS. 291
Rejane Meireles Amaral Rodrigues
André Felippe Torres Soares

A HISTÓRIA DAS CIDADES CONTADA A PARTIR DA


MEMÓRIA DAS MULHERES: NOVA PORTEIRINHA/MG 303
Rhaenny Maísa Freitas

ALGUNS ELEMENTOS PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DOS


CONCEITOS DE IGREJA E DE CRISTIANISMO NA OBRA 311
DE EUSÉBIO DE CESAREIA
Robson Della Torre

AS RELAÇÕES ENTRE O SAGRADO FEMININO E O


“PARTO” MASCULINO: O NASCIMENTO DE EVA E A 319
USURPAÇÃO DO PODER DA GRANDE-DEUSA
Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos

O BRASIL NA REVISTA QUATRO RODAS: A SOCIEDADE


EM TRANSFORMAÇÃO 329
Rômulo Ferreira da Silva
Laurindo Mekie Pereira

PERCURSO HISTÓRICO DAS LEIS QUE REGEM O ENSINO


RELIGIOSO NO BRASIL: FOCO NA FORMAÇÃO DE 339
PROFESSORES
Rosana Cássia Rodrigues Andrade

CAMINHOS ENTRECRUZADOS: HISTÓRIA, ESCRAVIDÃO E


LITERATURA EM ÚRSULA (1859) E AS VÍTIMAS ALGOZES: 351
QUADROS DA ESCRAVIDÃO (1869).
Rosangeli de Fatima Batigniani
A GAIA MÚSICA: A MORTE DE DEUS EM F. NIETZSCHE E
NO BLACK SABBATH 359
Rubens de Brito Ferreira Teixeira

FAVA 'MARGOSA COM ABÓBRA' _ TRAJETÓRIAS E


VIVÊNCIAS DE TRABALHADORES RURAIS 371
BRASILMINENSES (1970/90)
Silvana Ferreira Mendes

CULTURA, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE: PRÁTICAS


FESTIVAS NO MUNICÍPIO DE CORAÇÃO DE JESUS/MG 383
Tânia Caroline Ruas Silva

O GRUPO ESCOLAR JOÃO ALCÂNTARA DE


PORTEIRINHA E O MOVIMENTO DE ESCOLARIZAÇÃO 393
PARA A NOVA CIDADE (1929-1959)
Wilney Fernando Silva
Apresentação
Apresentação

Esta será a décima segunda edição deste, que vem se tornando um evento de referência
na Universidade Estadual de montes Claros. O evento, organizado pelo Departamento
de História, conta com intensa participação dos acadêmicos e docentes da instituição,
tanto da graduação quanto do mestrado em História, bem como com a colaboração de
profissionais de outras IES, todos objetivando dividir com nossa comunidade acadêmica
suas experiências de pesquisa e docência, além de discutir temas de atual relevância
para o pensamento histórico. A premissa do evento é o fomento das atividades de
ensino, pesquisa e extensão, além da troca de ideias e experiências tendo como foco a
Historiografia. Como discutiremos Historiografia, temos como alvo a ideia de que é
possível uma abordagem mais ampla e complexa de temas históricos consagrados,
sejam eles em quaisquer períodos históricos. Com isso, o evento objetiva adequar e
aproximar a linguagem do professor de História com as pesquisas mais atuais da área,
com novos conceitos debatidos, com reformulações no pensamento histórico,
despertando assim, nos pesquisadores, participantes, professores e futuros professores
uma maior interação entre a História presente nos livros didáticos e a Historiografia
mais atual.
Para esta edição o congresso conta com três conferências, duas mesas-redondas
contabilizando seis palestras, sete minicursos e 89 apresentações de trabalhos
distribuídas em 10 sessões de comunicação coordenadas e nove sessões de comunicação
livre.

Ivete Batista da Silva Almeida – Presidente da Comissão Organizadora


Gerferson Damasceno Costa – Comissão Discente

13
Textos Completos
Apresentados em
Simpósios
FONTES PARA A PESQUISA HISTÓRICA DO MUNDO RURAL DO NORTE
DE MINAS GERAIS

Adriana Duarte Borges Aquino

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar algumas fontes utilizadas
no que diz respeito a formação da estrutura fundiária da região, o padrão de ocupação de
seu solo agrário, a evolução da produção econômica, a formação político-administrativa
dos municípios. Os arquivos públicos têm fornecido fundamental apoio na
disponibilização do material eletrônico. Trata-se de um estudo bibliográfico,
documental, com análise quantitativa e qualitativa dos dados coletados, cujas fontes são
os Registros Paroquiais de Terras (RPT). Buscará analisar o desenvolvimento da
propriedade agrária no Brasil oitocentista e, por recorte espacial, a propriedade da terra
em Montes Claros de Formigas. O debate historiográfico empreendido neste estudo
discorre sobre, a natureza e composição dos RPTs, sobre suas especificidades históricas
em Montes Claros, bem como suas potencialidades de uso na pesquisa em História,
especialmente no campo da História Agrária. Esses registros compreendem a dinâmica
agrária do século XIX, através da sua quantificação pudemos conhecer as áreas rurais de
Montes Claros e seus possuidores no séc.XIX, até então encobertas pelo silêncio. O
presente estudo pretende chamar a atenção dos pesquisadores para as particularidades
regionais rurais não desvendadas e, que poderiam alterar de modo significativo a
―história do norte de Minas gerais‖, sobretudo em relação à história da agricultura, à luz
das contribuições das fontes, contidas nos documentos cartoriais, nos arquivos
municipais, nos registros paroquiais de terras, nos inventários e testamentos.

Palavras-chave: Fontes. Registros paroquiais de terras. História agrária.

Introdução
A região Norte, do Estado de Minas Gerais, conta com um expressivo acervo
documental histórico referente à atuação da Igreja Católica, a qual esteve presente na
região desde os primórdios da ocupação deste território, podendo ser encontrado no
Arquivo Público Mineiro. Em face disso, é importante ressaltar que o mesmo têm
fornecido fundamental apoio na preservação de diversas documentações bem como na
disponibilização do material eletrônico a um público cada vez maior de pesquisadores e
consulentes. Numa era em que a virtualidade se apresenta como forte característica de
nossa cultura acadêmica, a migração de informações contidas em documentos históricos
de suporte material para o campo dos dados eletrônicos apresenta-se como uma das
alternativas mais promissoras na conservação de nossa memória nacional e regional.
Ressaltamos, pois, a importância da conversão de documentos manuscritos para o meio
digital, tendo em vista a possibilidade de uma consulta mais cômoda e eficiente a
documentos que, até então, eram de difícil acesso. Assim, nos servindo de tal benefício
realizamos um levantamento prévio da fase inicial da ocupação de terras na região da

17
Vila de Montes Claros de Formigas, a partir dos Registros Paroquiais de Terras
(RPTs)1, os quais se encontram disponíveis em acervo eletrônico. As informações
contidas no Livro de Registros, o livro de tombo, pela riqueza do seu documentário
traça um histórico do município e se revela para o pesquisador como uma das mais
importantes contribuições para o conhecimento da história local, principalmente, uma
vez que todos os aspectos da vida rural e social da comunidade eram registrados neste
livro. De tal modo são acervos de grande relevância para a recuperação da memória da
nossa região. Estes, geralmente não eram acessíveis para os pesquisadores, fosse devido
à dispersão ou ainda por desconhecimento da sua localização.
Este trabalho aborda, brevemente, a questão relacionada à fase inicial da
ocupação do solo na região de Montes Claros/MG, com base nos RPTs e ao
mapeamento das fontes principais diretamente afetas ao estudo do objeto temático já
definido, constituindo, desta forma, o eixo da pesquisa.
Cabe ressaltar que, somente no século XX, elaboraram-se interpretações
refletindo sobre a importância e a necessidade do enfrentamento político da questão
agrária brasileira, identificaram na estrutura produtiva colonial, mais precisamente na
forma de distribuição das terras – a doação de sesmarias – a essência do complexo
processo de exclusão social da terra. Com essa tônica, o resultado foi a produção de
obras seminais, de grande valor intelectual e vigoroso engajamento ideológico, que
tratavam de temas nevrálgicos de nossa formação.
No inicio do século XX, de acordo com Maria Yedda Linhares, a história
agrária foi classificada como campo de conhecimento específico, alinhando-se à análise
de ―mudanças operadas pela ação do homem (os grupos sociais) através dos tempos,
com o da relação do homem com seu meio físico‖. O pesquisador regride ao passado
atrás ―de informações e registros precisos, os mais abundantes possíveis, capazes de
conduzir a uma explicação das sociedades humanas nas suas múltiplas determinações e
complexidades‖; e ao geógrafo ―observar e descrever o presente a fim de detectar a ação
do homem na ordenação do espaço que o envolve (o habitat) ‖ (LINHARES, 1997,
p.165). A autora incentiva a realização de estudos locais com maior profundidade,
capazes de revelar a face oculta de uma sociedade agrária.
Para tanto, buscamos compreender as transformações e mudanças que,
tradicionalmente, ocuparam as narrativas históricas. Ou seja, abranger as formas de

1
Os Registros Paroquiais de Terras serão denominados RPTs.

18
apropriação do solo e as relações dela decorrentes e, ainda, analisar o papel desempenhado
pelas práticas e políticas de organização do território, especialmente nas diversas realidades
regionais brasileiras, onde a ocupação e uso das terras contribuíram para a ―marginalização
da maior parte da população rural, continuamente relegadas a terrenos ínfimos e de baixa
produtividade, quando não despossuída de terras‖ (GODOY & LOUREIRO, 2010, p.97).
Este trabalho está inserido no complexo campo da história regional, agrária e
política, definindo como objetivo geral o estudo das estruturas fundiárias e agrárias 2 da
Província de Minas Gerais, reduzindo ainda mais a escala de observação e concentrá-la
nos limites espaciais e institucionais, ou seja, detidamente a Vila de Montes Claros de
Formigas, situada na porção norte de Minas Gerais, por meio dos registros eclesiásticos,
instituídos pelo regulamento da Lei de Terras de 1850.
Diante da definição do objetivo e conforme Marc Bloch, expõe sobre as
dificuldades encontradas para se reunir os documentos necessários para a pesquisa:
A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem,
aqui ou ali, por efeito [de não se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença
ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo deriva de causas humanas
que não escapam de modo algum à análise, e os problemas que sua transmissão coloca,
longe de terem apenas o alcance de exercícios de técnicos, tocam eles mesmos no mais
íntimo da vida do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do
que a passagem da lembrança através das gerações. (BLOCH, 2001, p. 83)
De tal modo, encontramos por meio de um processo investigativo, a partir do
paradigma dos indícios3 as fontes paroquiais até então encobertas pelo mistério. Carlo
Ginzburg, em seu livro Mitos, emblemas e sinais faz uma comparação entre o método
utilizado por críticos de arte com o método investigativo de Sherlock Holmes e os
processos de estudo utilizados por Freud. Como nos diz o autor ―é necessário examinar
os pormenores mais negligenciáveis‖ (GINZBURG, p.144). Destacando-se que não há
história sem documentos em sentido lato. Temos que, através das fontes, demonstrar
nossos argumentos sobre o tema analisado.

2
Entende-se por estrutura fundiária o desmembramento, a distribuição das propriedades rurais e suas
características. Estrutura agrária é a forma de exploração do solo, seu uso e da distribuição da renda
gerada. Ver em: CARRARA, Ângelo Alves. Estruturas agrárias e capitalismo; contribuição para o estudo
da ocupação do solo e da transformação do trabalho na zona da Mata mineira (séculos XVIII e XIX).
Ouro Preto: Ed. UFOP, 1999.
3
Entendemos por indícios todos os rastros deixados por diversos grupos sociais, exemplo: objetos
arqueológicos (esculturas, utensílios domésticos, templos, etc); documentos escritos (inventários,
registros paroquiais, cartoriais, processos jurídicos, jornais, etc); e outros vestígios considerados possíveis
de análise.

19
Com a finalidade de contribuir para o preenchimento da lacuna sobre a história
dos registros de terras de Montes Claros de Formigas, em primeiro lugar foi realizada a
avaliação global dos RPTs, por meio do recolhimento de dados sumários dos dois
códices, e faço menção a uma passagem de José Matoso (1998), em seu livro A escrita
da história. Teoria e métodos.

Quem nunca praticou (...) pesquisa histórica não saberá jamais o prazer de
encontrar os documentos certos num depósito arquivístico, depois, descobrir
neles os dados que permitem reconstituir o viver dos homens de outrora. Mais
ainda, se esses homens têm a ver conosco por terem sido nossos antepassados
ou membros da mesma comunidade a que pertencemos (1998, p.23).

A descoberta dos Registros Paroquiais de Terras da Vila de Montes Claros de


Formigas, fruto da Lei de Terras, até então inexplorados, nos instigou a observar os sinais,
as pistas dadas, e utilizando filtros nas avaliações destes registros, pode-se analisar
aspectos daquela sociedade imperial, e, estendendo também a um estudo maior, do
processo legal de apropriação e cercamento das terras devolutas do Estado.
Conforme o delineamento das fontes da nossa pesquisa, concentramos esforços no
levantamento da documentação principal, específica, classificada no Fundo de Repartição
Especial das Terras Públicas na Cidade de Belo Horizonte no Estado de Minas Gerais e
que compreende basicamente nos Registros e períodos mencionados anteriormente.
Aqueles registros, envolto numa aura de mistério, guardava em perfeita ordem
quase 1014 documentos ao tema em estudo. Senti a mesma emoção do renomado
historiador Carlo Ginzburg ao escrever sobre a sua descoberta na Cúria arquidiocesana
de Udine de quase 2 mil documentos referentes ao Tribunal do Santo Ofício.
Resultando em seu primeiro livro, Os andarilhos do bem (1966), título brasileiro.
Os RPTs da Vila de Montes Claros de Formigas são documentos, de caráter
oficial, configuram a base, formal e legal, da organização territorial. Eles decorreram da
Lei 601, de 18 de setembro de 1850 e seu regulamento 1.318, de 30 de janeiro de 1854,
quando a posse passou a ser reconhecida perante o vigário da Igreja Católica. Esses
assentamentos foram feitos pelos Párocos das Freguesias em livros específicos, com o
objetivo de obter um mapeamento de propriedade da terra em posse ou domínio
privado. Criava-se então o famoso RPT. O estudo dessas evidências tais como: nome do
proprietário, sexo, origem das terras, denominação, classificação, localização, extensão,
confrontantes, valor da compra, valor do registro, plantação, possibilita-nos conhecer

20
muito dessa sociedade rural. Trata-se de um trabalho minucioso que exige paciência e
dedicação de infindáveis horas, conforme a vastidão do acesso.
Pretende-se, dessa forma, neste trabalho, apresentar uma análise parcial dos
RPTs como fonte de estudo e pesquisa de cunho histórico e jurídico.

Os Registros Paroquiais de Terras e seus usos na pesquisa histórica


O RPT da região é eleito aqui a principal fonte para este trabalho, o qual é uma
tentativa de elaboração de uma forma de criar uma distribuição espacial a partir de fontes
escritas. E, parte destas fontes estão sob a guarda do Arquivo Público Mineiro. O Registro
referente à região em estudo está catalogado sob a forma de códice, de número 128 e 129
e, encontram-se digitalizados. A data do termo de abertura do códice é de 22 de maio de
1854, porém o primeiro registro recolhido pelo Vigário Antonio Gonçalves Chaves data
do dia 25 de maio de 1854. O último registro é do dia 31 de março de 1856. Constatou-se
que, o ano de 1856 foi o mais ativo em termos de registros, tal como o mês de Abril.
Deste modo, tal fato ajudou a corroborar a idéia de deveres religiosos interligados com os
direitos civis, sem deixar de mencionar que mesmo a Lei permitindo o prazo máximo
final de até 3 (três) anos, o pároco estabeleceu como prazo final o mês de abril e o ano de
1856. Determinou o artigo 107 que, após o prazo estabelecido para registro, os arquivos
permaneceriam nas paróquias e os livros seriam remetidos ao Delegado Diretor Geral das
Terras Públicas da província, para a elaboração do registro geral das terras. Diante do
exposto, o registro paroquial decorria da presunção de posse, posto ser efetivado, com
fundamento na declaração do possuidor.
A importância de demonstrar esta relação entre direitos civis e religiosos é a
percepção da busca pela aproximação dos efeitos simbólicos4 na mente e cérebro dos
declarantes, pois desta forma os aspectos tácitos podem ser melhores identificados,
corroborando para o entendimento desta sociedade a partir dos agentes históricos.
Haviam propriedades declaradas a rogo, revelando desta forma, a falta de
alfabetização, ou mesmo, em outros casos incapacitantes relativos a proprietários idosos
ou enfermos. A observação feita nos registros é de que, o motivo mais claro para as
declarações “a rogo”, é o analfabetismo dos proprietários, haja vista que, os mesmos
estavam presentes na lavratura do ato e solicitavam alguém que o fizessem e

4
O poder simbólico é um poder que aquele que lhe está sujeito dá aquele que o exerce, um crédito com
que ele o credita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança. Ver em
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, 2010. p.188.

21
assinassem. Outro quesito importante verificável, é que além da confiança depositada
no seu representante, provavelmente este declarante também seja proprietário, assim,
possivelmente possui uma proximidade pessoal e amigável.
Como já aludido, a digitalização do acervo do Arquivo Público Mineiro
propiciou, em grande medida, a comodidade do acesso a leitura dos RPTs. Os registros
contam com aproximadamente 1014 documentos, todos eles numerados. São dois
Códices, o primeiro de número 128, com data de 1854 a 1856, possui 504 páginas. O
segundo de número 129, com data de 1856, possui 510 páginas, com data do termo de
abertura em 24 de abril de 1856. O último registro é do dia 10 de maio de 1856 e ambos
estão em bom estado de conservação e possibilitam visualizar, ao final, um índice
onomástico, o qual descreve a localização, limites, data, os proprietários de terras e a
posição do Registro no Códice.
Acima estão os elementos de uma declaração, segundo a Lei de Terras. Com
forte carga subjetiva onde o declarante apresentava perante o vigário a descrição das
propriedades e a sua possível localização frente aos confrontantes ou divisores. A
criação da linha discursiva da composição do Registro era variável e os modelos dos
registros alteravam-se em seus elementos, às vezes com tantos elementos desnecessários
do ponto de vista do que determinava a Lei, às vezes com a ausência dos elementos de
maior importância para a requisição da Lei.
Com a informação da obrigação da declaração da Lei de Terras desencadeava o
processo de construção de uma linha narrativa, na qual seria apresentada a propriedade
com aspectos que o declarante considerava relevante. Esta narrativa carregada de
valores subjetivos buscava ser objetiva segundo o contexto sócio-histórico, trazendo a
mais variada gama de informações.
Com relação à forma de declaração, de acordo com o artigo 93 da Lei de terras de
1850, os registros poderiam ser declarados pelos possuidores ou por quem estes
designassem para fazê-lo conforme o estabelecido. Sendo assim, não descartamos a análise
dos dados quantitativos como uma das possibilidades abertas pelo registro paroquial de
terras. Assim como, a percepção de seus limites é importante para a compreensão de alguns
aspectos fundiários da freguesia de Montes Claros de Formigas. Além da quantificação, os
RPTs nos mostrou a possibilidade de refletir sobre uma perspectiva social a partir da análise
do vocabulário empregado na fonte. Ao declararem suas terras os indivíduos se colocaram
como senhores e possuidores de terras, e não como proprietários.

22
Segundo Márcia Motta, ser senhor e possuidor no século XIX significava ter a
capacidade de ter domínio sobre suas terras, tendo poder efetivo sobre elas através da
ocupação e prática de atos possessórios. Mais do que isso, era ter domínio sobre aqueles
que a possibilidade de expansão de suas terras, não só pelo domínio econômico, mas
também pelo domínio social cultivavam. Além do reconhecimento como confrontante
por parte de seus vizinhos e da possibilidade de expansão de suas terras, não só pelo
domínio econômico, mas também pelo domínio social (MOTTA, 2008, p. 201).
Há que se destacar, a forma com a qual o texto foi produzido. É nele que
acontece a transição da representação da realidade da forma de imagem mental para a
codificação verbal com aspectos narrativos, elementos descritivos e elementos de um
texto técnico. É importante salientar que não só nos RPTs referentes a Montes Claros de
Formigas, assim como na própria lei, os senhores de terras não são tratados como
proprietários, mas tão somente como possuidores.
Então, cabe ao historiador fazer com que sua narrativa relate o que ocorreu um
dia, porém este mesmo fato pode ser objeto de várias versões. O historiador deve ter em
mente que, a verdade deve aparecer no seu trabalho de escrita da História, mesmo
sabendo que ele não será jamais constituído de uma verdade única ou absoluta.

Considerações finais
As conclusões a que chegamos por meio desta análise permitem inferir a
respeito da relevância dos RPTs como fonte de pesquisa no que concerne à abrangência
do processo de distribuição de terras. Os RPTs trazem, entre outros aspectos, a realidade
de um contexto sócio-histórico que permite sopesar questões referentes à elite
econômica, à igreja, cujo representante era o vigário da época, aos direitos civis e
sociais, enfim ao cotidiano de pessoas que constituíram o processo histórico daquela
localidade. Pelo exposto, não podemos desconsiderar que o objetivo primeiro do
conhecimento histórico é a compreensão dos processos e dos sujeitos históricos, o
desvendamento das relações que se estabelecem entre os grupos humanos em diferentes
tempos e espaços.
E para esse fazer histórico ressaltamos a relevância dos RPTs estarem
disponíveis no formato digitalizado, tendo em vista que ficaram mais facilmente
acessíveis, dando agilidade e certa independência ao trabalho do historiador, bem como
comodidade para o andamento da pesquisa.

23
Por fim, a presente e breve abordagem trouxe à colação a questão das fontes
informativas primárias, base da pesquisa histórica, demonstrando o papel do
pesquisador que não se contenta apenas com o óbvio no seu trabalho de garimpagem.

Referências
Fontes
Manuscritas
Registro Paroquial de Terras, Códice128 e 129 (Montes Claros de Formigas). Arquivo
Público Mineiro.
Impressas
Decreto nº. 1318, de 30 de Janeiro de 1854.
Lei nº. 601 de 18 de Setembro de 1850.
Resolução de 17 de Julho de 1822.
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VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história: micro-história. Rio de
Janeiro: Campus, 2002.

24
IMPRENSA: UM CAMPO DE BATALHAS, UMA LEGITIMAÇÃO DOS
SUJEITOS E DE IDEIAS

Ana Carolina Ferreira da Silva

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a importância da


imprensa dentro do movimento feminista brasileiro. E analisar as circunstâncias e
consequências das estratégias traçadas por essas mulheres e também os contrários ao
movimento. O tema será desenvolvido por meio de uma abordagem bibliográfica, com
a seleção de autores como Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Constância Lima Duarte,
Roberto Nicolato, Karina Woitowicz e Nelson Werneck Sodré, que darão uma
importante contribuição no aspecto da história da Imprensa no Brasil. A discussão dos
textos indica que a imprensa foi e ainda é uma grande ferramenta, não só para as
feministas como para o movimento antifeminista. Nos tempos atuais, há um grande
debate sobre gêneros em pauta na mídia. Seja qual for a angulação, a mulher ainda
ocupa um lugar secundário na visão da grande imprensa. A imagem que se tenta
passar é de um indivíduo que cumpre brilhantemente múltiplos papeis e que por isso
precisa de eletrodomésticos cada vez mais eficientes, produtos que a mantenham bela
e claro, é um ser em potencial de consumo, uma vez que tem sua independência
financeira. Pouco se discute o papel de sujeito de transformação e atuação. Os
feminismos e seus múltiplos desdobramentos, talvez ainda não tenham definido qual
será o próximo caminho a ser seguido. Mas uma necessidade emerge diante da
aparente naturalidade da emancipação da mulher: a necessidade de revisão de posturas
diante de uma retomada conservadora.

Palavras-chave: Gênero. Feminismos. Imprensa. Poder.

A proposta deste artigo é discutir a relevância da imprensa e a publicização dos


discursos, dentro do movimento feminista no Brasil. Sem dúvida, enveredar neste
caminho de análise é pensar em relações de poder, conforme acepção de Michel
Foucault, levando em consideração as formas de resistência.
Pelas palavras dá-se a guerra de ideias. É verbalizar o feminismo.
Acompanhando o raciocínio de Michel Foucault, muito além de uma disputa de
conceitos, dá-se a construção de discursos de verdades. Mas palavras soltas não
sustentam mecanismos de poder. É preciso estar inserida em contextos, ditos por
interlocutores de peso e ter publicidade, como ressalta Pierre Bourdieu, em A
economia das trocas lingüísticas. O contexto também é valorizado pelo professor José
D´Assunção Barros, inspirado pelos escritos de Paul Ricoeur.

Já se encontram na própria estrutura e matérias da língua todas as


possibilidades narrativas, embora seja tarefa do falante ou do produtor de
discursos selecioná-las e individualizá-las através de uma ação humana e de

25
novos elementos que irão singularizar cada narrativa como única.
(BARROS, 2011:7)

Ainda na Idade Média, as mulheres já demonstravam a necessidade de


combater a árdua realidade de desigualdade com os homens para ter ampliadas as
possibilidades de vida. Uma questão de reconhecimento de dignidade. Séculos mais
tarde, principalmente entre o fim do XVII ao XIX, começa-se o desafio ainda maior
de vencer algumas limitações como o acesso a educação, para ter condições de
enfrentamento. Em um artigo da revista de História da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, um exemplo.

Muito antes de existirem grupos feministas organizados – desde a Idade


Média – mulheres de letras, em diferentes lugares do Ocidente, procuraram
desvendar sua própria história refletindo sobre gênero, tradição, inovação.
(...). Desde o início da modernidade, e especialmente nos séculos XVIII e
XIX, um maior número de autoras trabalhou para destituir a língua dos
mecanismos de poder que as constrangiam e para opor-se aos estereótipos
culturais. (TELLES, 2015:22)

Nesta citação, a clareza com que é exposto o discurso como um mecanismo de


poder e a necessidade de se trazer esta dinâmica para uma outra perspectiva que
favorecesse as mulheres. Em outras épocas, onde a imprensa surge e posteriormente se
consolida como um veículo de comunicação de massa, pela abrangência que possuía,
se faz também como um ótimo instrumento de formadores de opinião, porém sempre
muito hostil aos ideais feministas, como aponta a professora Natalia Pietra Méndez.
―A imprensa atuou como protagonista na tentativa de normatizar o papel da mulher
enquanto ―rainha do lar‖ e de desqualificar o pensamento feminista. ‖ (MÉNDEZ,
2007:274)
Mas antes de analisar os efeitos da imprensa feminista, vamos entender,
rapidamente, um pouco de como nasceu a imprensa no país. Vale ressaltar que no
Brasil, no século XVIII, é quando começaram a chegar os primeiros exemplares de
livros. E posteriormente, diante de uma multiplicação de tipografias, folhetos e livros
em território nacional, surgia também a imprensa. Segundo o historiador Nelson
Werneck Sodré, A Gazeta do Rio de Janeiro foi o primeiro jornal a existir no país e
defendia os interesses da Coroa Portuguesa. Em oposição a ele havia, com uma crítica
ácida à monarquia brasileira, o Correio Braziliense, publicado em Londres e que
chegava ao país por meio de contrabando. Implantou-se então uma perseguição aos
periódicos contrários. Enquanto que verbas fartas financiavam jornais favoráveis à

26
coroa, os demais eram duramente censurados. A liberdade de imprensa começa a ser
defendida por grupos radicais pró-independência, antes de 1822. Mas a imprensa livre,
para Sodré, era uma falácia. Com a difusão de tantos jornais, fez-se necessário uma
regulamentação, isso já no século XIX, como mostra o artigo de Octavio Penna
Pieranti e Paulo Emílio Matos Martins, que analisa a obra de Sodré.

Difundida a imprensa, tronava-se necessário regulá-la. Lei viria, dúbia e


imprecisa, em conformidade com a tradição legal brasileira. (...) A lei
determinava a proibição de escritos contra a moral, os bons costumes, a
Constituição, o Imperador, a tranquilidade pública... (PIERANTI E
MARTINS; 2006:2-4)

Importante chamar a atenção para o texto citado. Veja que as publicações


feministas surgiram num ambiente não só hostil ao sexo feminino, onde a dignidade
da mulher era subtraída de todas as formas possíveis, mas dentro de uma regulação da
imprensa que nada favorecia a propagação dessas ideias. Porém o fato de não ter uma
lei, entenda-se como mecanismo de poder, a favor dos anseios feministas, este mesmo
mecanismo de poder, para existir precisa do ponto de resistência, como defende
Foucault. ―É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser,
ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de
resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. ‖ (FOUCAULT, 1988:111 -
112)
É neste contexto de disputas de poder, que surge o contraponto, o ponto de
resistência: Nísia Floresta Brasileira Augusta, uma potiguar que, segundo Constância
Lima Duarte, teria sido uma das primeiras mulheres no país a romper o ambiente
privado e a publicar textos em jornais da grande imprensa. ―Seu primeiro livro,
intitulado Direito das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, é também o primeiro
no Brasil a tratar do direito das mulheres à instrução e ao trabalho e a exigir que elas
fossem consideradas inteligentes e merecedoras de respeito. ‖ (DUARTE, 2003:153)
Ainda que Nísia o considerasse uma tradução livre, Constância Lima Duarte
defende esta obra como o texto fundante do feminismo no Brasil. Este fato merece
uma reflexão especial. Tudo que é primeiro, é ruptura. O inédito é o desconhecido, ou
pelo menos o sufocado, que vem à tona. E conseguir publicar um livro, significa não
apenas uma propagação de ideais feministas. Significa elevar a mulher à condição de
ser pensante. De indivíduo que produz discurso e articula ideias. De um ser crítico as
condições impostas e que tem algo a dizer sobre essas circunstâncias. Mais além; é

27
capaz de propor novos caminhos e conceitos sobre si. Isso é cidadania. Tanto que
Nísia defende que o progresso de uma sociedade está atrelado a maneira como suas
mulheres são tratadas. Somado a tudo isso, temos aí também, por meio do discurso
impresso e público, um início do que se pode pensar sobre uma escrita de uma história
de mulheres. ―Escrever a história das mulheres supõe que elas sejam levadas a sério,
que se dê a relação entre os sexos um peso, ainda que relativo, nos acontecimentos ou
na evolução da sociedade. ‖ (PERROT, 2005:14)
No artigo Feminismo, imprensa e poder no Brasil contemporâneo, a professora
Natalia Pietra Méndez defende que essa relação do feminismo com a imprensa divide-
se em três tópicos importantes: no início do século XX há a ascensão de um
feminismo liberal, que lutava pelo reconhecimento dos direitos civis das mulheres.
Posteriormente, entre as décadas de 1960 a 1980, o caráter emancipacionista vem à
tona e aí surge uma imprensa feminista de circulação nacional e as ideias do
movimento passam a pautar os jornais que já circulavam. E o terceiro tópico seria um
caso de uma relação bem-sucedida entre o feminismo e a imprensa que seriam os
textos da jornalista gaúcha Carmen da Silva na revista Cláudia.
Os jornais impressos e revistas, entre os séculos XIX e XX foram um
importante palco de algumas batalhas feministas e para chamar a atenção para seus
ideais. ―Mais do que os livros, foram os jornais e as revistas os primeiros e principais
veículos da produção letrada feminina, que desde o início se configuraram em espaços
de aglutinação, divulgação e resistência. ‖ (DUARTE, 2016: 14) Era o privado
tomando corpo no público. Quando uso o termo batalha, me refiro de fato a uma
guerra. A hostilidade do poder masculino, do patriarcal, era perversa, cruel,
segregacionista e eficiente. Dentro do cenário da imprensa, tem-se as publicações
contra esses jornais feministas, onde os padrões sociais construídos e consolidados são
ressaltados e valorizados como exemplo a ser seguido. ―A reação desencadeada pelo
antifeminismo foi tão forte e competente, que não só promoveu um desgaste
semântico da palavra, como transformou a imagem da feminista em sinônimo de
mulher mal-amada, machona, feia e, a gota d´água, o oposto de feminina. ‖
(DUARTE, 2003:151)
Mas dentro deste vasto universo de publicações, faz-se necessário fazer uma
diferenciação entre imprensa feminina e feminsita. Constância trabalha estes conceitos
de uma maneira contundente em seu livro Imprensa feminina e feminista no Brasil.

28
(...) imprensa para mulheres ou imprensa feminina? Porque esta é –
definitivamente – uma imprensa que se define pelo sexo de suas
consumidoras. (...) E se esta imprensa é dirigida e pensada para mulheres, a
feminista – também destinada ao mesmo público – se diferenciará por
protestar contra a opressão e a discriminação e exigir a ampliação de
direitos civis e políticos. (DUARTE, 2016: 14)

No trabalho A invenção da solteirona, de Cláudia Maia, mostra como este


discurso antifeminista, citado por Constância Lima Duarte, era divulgado por meio de
publicações. A autora faz referência a um artigo publicado na Revista da Semana que
faz uma comparação entre a solteirona enfezada e a esposa feliz. A inveja é o
sentimento que permeia essa relação entre os dois sujeitos sociais. Cláudia Maia deixa
claro como isso auxilia, não só a reforçar os padrões de submissão femininos já
construídos e em vigor, quanto a rebater as ideias que surgiam de emancipação e de
casamento como um impedimento a essa libertação. Vale ressaltar que o autor do
artigo é Berilo Neves, jornalista, escritor e crítico literário, famoso por frases
machistas.

(...) a construção de representações sociais das mulheres celibatárias como


invejosas, rancorosas, infelizes, amarguradas e frustradas era, por um lado,
o que confirmaria a ‗esposa feliz‘, triunfante, que tinha tudo o que desejava
uma mulher – casa, marido, filhos, amor e sexo, enquanto que ela, a
celibatária, não tinha nada. (MAIA, 2007:215)

Este era um período em que o papel social da mulher passou a ser muito
pautado pela imprensa. Com a chegada do movimento republicano, o feminismo
ganhou um novo fôlego, mas a cidadania feminina, assim que a República foi
proclamada, não foi reconhecida, como destaca Natalia Pietra Méndez.

(...) o advento da República não trouxe consigo o reconhecimento da


cidadania à população feminina. A Constituição de 1891 não se pronunciou
sobre o direito ao voto para mulheres. Ficou o entendimento tácito de que
essas não precisavam sequer ser mencionadas na Carta Magna da República
brasileira. (MÉNDEZ, 2007:271)

Apesar de mulheres da elite estarem ligadas a essa luta, suas propostas não
encontraram respaldo na imprensa. Em muitas publicações, a ridicularização por meio
do humor. Vale ressaltar que tratar estas ideias como piadas, seria uma tática muito
eficiente de cristalizar o conceito de que não era algo sério e que merecesse
credibilidade. Natalia Pietra Méndez ainda lembra que, nesta época, havia a inserção
da mulher no mercado de trabalho por uma necessidade de sustentação da estrutura

29
industrial que surgia. No entanto, a mulher ainda foi mantida, dentro dos conceitos
culturais e sociais, como um ser do espaço doméstico e do ambiente privado. E isto
ganhou força com a imprensa da época. ―A par do ingresso cada vez maior das
mulheres no mundo do trabalho, encontrava-se um discurso conservador por parte da
imprensa, implacável com a mulher emancipada. ‖ (MÉNDEZ, 2007:273)
Eis que nas páginas dos jornais passa-se a difundir que a mulher, ao largar o
seu papel ―natural‖ de mãe e do lar, era responsável pelas mazelas sociais. A imprensa
passa a assumir uma posição de liderar o combate ao feminismo e buscar,
incessantemente, a desqualificação das ideias.
Ao transitar pelos anos 1960, 1970 e 1980, teremos uma fase importantíssima e
única dessas relações de poder estabelecidas entre feministas e discursos jornalísticos.
Mas antes de se analisar esta questão, é importante entender, brevemente, qual era o
contexto em que o pensamento intelectual, tão importante no processo de construção
dos jogos de verdade e estruturas sociais, estava imerso. Há que se pensar que, nas
duas primeiras décadas deste período, temos um momento de contracultura. Passa-se a
criticar e rejeitar valores sociais estabelecidos. É neste instante que muitas
transformações, em diferentes e múltiplos campos se dão. Cenário ideal para se
repensar o papel da mulher. É importante destacar que, neste instante, surge também a
entrada, em peso das mulheres nas universidades, principalmente como estudantes e
algumas como professoras. Nasce aí uma geração de pensadoras. Intelectuais que vão
colocar em questão conceitos estabelecidos por décadas e trazer para dentro do
ambiente universitário a necessidade de se pensar o papel feminino de uma outra
forma. O que isso significa? Tudo quando se busca credibilidade. Margareth Rago, no
texto ―Descobrindo Historicamente o Gênero‖, fala da importância de se trazer a
discussão para dentro do ambiente acadêmico brasileiro, tão cristalizado. O que
começou com uma certa descrença e desconfiança, beirando a ironia e a curiosidade,
aos poucos, ganha espaço por meio de importantes intelectuais, de diferentes ciências
que passaram a pensar sobre o assunto. ―(...) passaram a pensar na importância da
sexualização do discurso historiográfico. O feminismo saía do gueto e irradiava seus
fluidos mornos e positivos pela academia. ‖ (RAGO, 1998:90)
Ao aumento da escolaridade, somam-se a inserção no mercado de trabalho em
diferentes postos e a propagação de anticoncepcionais, o que dá a mulher o direito de
gerir o próprio corpo e ter no sexo uma fonte de prazer e não apenas de reprodução.
Começa-se a repensar tudo, não só a questão de direitos femininos, mas as relações

30
familiares e interpessoais. O papel da mulher no mercado de trabalho e os espaços
ocupados por elas. É justamente, neste momento, que a imprensa estabelece outras
relações de poder com o feminismo. Numa perspectiva foucaultiana, pode-se dizer que
são jogos intensos e com muita mobilidade, tipicamente fluida e dinâmica.

Tanto o pensamento intelectual feminista quanto sua expressão como


movimento social encontraram na imprensa um espaço cativo para
expressar suas ideias. Entretanto, esse contato com a imprensa brasileira foi
interposto por relações de poder nas quais é possível observar fluxos de
reciprocidades, afastamentos, dominações e resistências. (MÉNDEZ,
2007:275)

Importante destacar que, essas idas e vindas, aprovações e reprovações por


parte da imprensa são baseadas no comportamento social do momento. Nos anos de
1960 e 1970, temos uma linha de pensamento libertário, de ruptura. Nos anos de 1980,
a retomada do conservadorismo. E este ponto é crucial para influenciar o
comportamento da imprensa, que passa a deixar de lado a abertura e certa simpatia
pelas ideias feministas para retomar a antipatia de outrora. Natalia Pietra Méndez,
ainda no mesmo artigo citado anteriormente, chama a atenção para uma importante
pesquisadora: Simone Schmidt, que estuda esses movimentos diversos da imprensa e
do feminismo. ―Já nos anos 80, a autora identifica um recuo de tais pensamentos e um
agrupamento da intelectualidade em torno dos ideais neoliberais, o que justificaria
uma tentativa de apagar o feminismo das páginas dos jornais. ‖ (MÉNDEZ, 2007:275)
O que se percebe neste jogo de poderes, por parte da imprensa, um abuso do
humor para desqualificar o feminismo, além do fortalecimento de estereótipos de
feministas como mulheres masculinizadas, feias e mal resolvidas. Temos aí a reedição
de um senso comum de que as posições assumidas por essas mulheres são assim feitas
por conta de dificuldade em se relacionar com o sexo masculino, principalmente por
não se enquadrarem em padrões de beleza. Há também, nas manchetes ou nos textos
uma hierarquia de qualidades. Os adjetivos bonitos sendo colocados antes de
inteligentes. Aliás, inteligência não seria um pré-requisito para uma mulher. Méndez
também cita um exemplo que deixa bem claro o poder de construção de valores que a
imprensa exerce. A entrevista dada por Leila Diniz, em 1969, provoca uma revolução
social. Os jornais da época, ao dar visibilidade excessiva às falas de Leila, carregadas
de conceitos feministas, provoca, no governo militar, uma reação.―A repercussão da
referida entrevista foi tão grande que o governo militar, através do ministro da Justiça

31
Alfredo Buzaid, aprovou o Decreto 1.077, que permitia a censura prévia à imprensa.
A medida ficou conhecida como ‗Decreto Leila Diniz‘‖. (MÉNDEZ, 2007:277)
Temos aqui, um fato que abre reflexão para o significado da recepção. Nos
estudos de comunicação social, quem consome o que é publicado pela imprensa, seja
qual mídia for, é a recepção. Dentre as correntes existentes, da marxista – com uma
concepção de recepção mais passiva e manipulada – às mais atuais que compreendem
este leitor, ouvinte ou telespectador, com uma atitude mais ativa diante dos conteúdos,
a questão é que, a razão de ser do trabalho de um jornalista não se desvincula do
público.
Entre prioridades mercadológicas e de fins econômicos, algo só se mantém na
mídia se houver certo sucesso e aceitação do público. E é justamente este o terceiro
ponto abordado pela professora Natália Pietra Méndez, ao analisar as relações de
poder entre feminismo e imprensa. A coluna ―A arte de ser mulher‖, na revista
Cláudia, durou de 1963 até início dos anos de 1980, tratando dos mais diversos
assuntos que envolviam o movimento feminista de uma maneira ampla e sem
preconceitos. Para a autora, este foi um exemplo de perfeito relacionamento entre a
grande imprensa e as ideias feministas. Além de tratar de assuntos vinculados ao
universo das mulheres sem a colocar numa posição de objeto, frívola ou fútil;

(...) influenciou diversas gerações ao tratar, de forma independente e livre


de preconceitos, de temas vinculados ao feminismo. Carmen não foi apenas
uma ativista engajada no movimento feminista. Foi uma das precursoras no
exercício intelectual de pensar a realidade da mulher brasileira, em discutir
seus problemas de forma pública e irrestrita, levando a discussão do
feminismo para um leque extremamente amplo de leitoras e leitores.
(MÉNDEZ, 2007:281)

Diante de todas as abordagens até o momento sobre essa relação de imprensa e


feminismo, poderíamos dizer que a mídia, assume, em muitos momentos um papel de
auditor? Se levarmos em conta alguns significados para esta palavra, veremos que se
trata de pessoa com conhecimento o suficiente para emitir pareceres sobre um assunto
do qual é especialista. O/a jornalista não é um/uma especialista em si, mas detém em
suas mãos o respaldo de fontes para sustentar a informação a ser dada e é o filtro final
da apuração e veiculação dessa informação. E ao fazer isso ele/ela não se torna apenas
um mensageiro, mas um formador de opinião.

32
De fato, jornais e revistas não são, no mais das vezes, obras solitárias, mas
empreendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna
projetos coletivos, por agregarem pessoas em torno de ideias, crenças e
valores que se pretende difundir a partir da palavra escrita. (LUCA, 2005:
140)

Dentro do contexto da sociedade, a imprensa sempre ocupou um papel de


autoridade a falar dos fatos e divulgá-los. Fazendo uma analogia a esse papel, ela se
torna uma espécie de auditor ideológico. Os jornais, as revistas e seus respectivos
jornalistas passam a mediar discursos em um cenário de discussões, construções de
valores, conceitos, amparados em outras ciências além da comunicação social, como o
direito, a medicina, a psicologia e pedagogia. Eis a relevância de se ter uma
perspectiva e uma posição feminista, como a jornalista Carmen da Silva, citada acima,
dentro dos meios de comunicação, seja da grande mídia ou da imprensa independente.
Por isso, logo em meados do século XIX, conforme relata Constância Lima Duarte, as
feministas dão um passo importante além da publicação em si dos seus textos.
Começam a surgir os primeiros jornais editados e dirigidos por mulheres. Com isso,
claro, surge também a reação, com o discurso contrário, de considerar essas
publicações como algo sem qualidade, secundário e supérfluo, simplesmente porque
era destinado ao ―segundo sexo‖. Mesmo sendo consideradas as publicações como
algo inconsistente por quem combatia o discurso feminista, por meio da imprensa
conseguiu se construir uma identidade feminina. Porém, esta estratégia de desmerecer
o conteúdo produzido por feministas teve um importante contraponto. Podemos dizer
também que nesta época foi lançado um relevante embrião da imprensa brasileira: a
modalidade de mídia alternativa que, futuramente, seria extremamente usada,
principalmente pelas feministas da quarta onda. Nasce a possibilidade de se ter um
jornalismo alternativo como um espaço de discursos de resistências e de contrapontos
com costumes estabelecidos. Karina Janz Woitowcz, jornalista e professora, ressalta o
peso dessa significância da entrada das mulheres feministas no universo da imprensa.

O movimento feminista desde cedo reconheceu o papel da mídia na


produção de estereótipos de gêneros. Assim, a crítica ao modo como as
mulheres eram representadas nos meios de comunicação, em especial na
segunda metade do século XX, acompanhou o processo organizativo do
movimento. (WOITOWICZ, 2012:4)

Mas voltando no tempo, essa mídia alternativa passa a provocar polêmicas


importantes neste lento e arrastado processo de naturalização da ideia do sexo

33
feminino como um ser que pode e deve ocupar o espaço público, uma vez que coloca
em discussão a importância de se incentivar a mulher a buscar melhorias sociais e a
emancipação moral. Este é o conteúdo do editorial do Jornal das Senhoras, citado em
um texto de Constância Lima Duarte. Ele foi publicado em 1852, no Rio de Janeiro e
era dirigido pela argentina Joana Paula Manso de Noronha que morava no Brasil. ‖ O
pioneirismo d´O jornal das senhoras, e suas colaboradoras tímidas e anônimas,
representaram, ainda sim, um decisivo passo na longa trajetória das mulheres em
direção à superação de seus receios e conscientização de direitos. ‖ (DUARTE,
2003:155)
Constância Lima Duarte ainda destaca que na segunda onda do movimento
feminista, temos um enorme número de jornais e revistas feministas que surgem, no
Rio de Janeiro e em outros pontos do país. A autora chama a atenção para uma
característica importantíssima: as publicações passam a ser menos literárias e mais
jornalísticas. Assim como existe a polêmica até que ponto a literatura também
contribuiu para o processo historiográfico, na ciência da Comunicação Social, bem
mais recente do que a ciência História, há uma discussão parecida: a necessidade de se
separar o que é literatura e o que é jornalismo. Esta aproximação vem de longa data,
desde o século XVIII. E ao longo do tempo, jornalismo e literatura se convergem e se
divergem. A escrita feminista, ao adquirir um aspecto mais jornalístico, ela ganha o
tom de credibilidade tanto buscado dentro da imprensa. Apesar de que a
imparcialidade é algo utópico e dentro dos conceitos semióticos fica claro que o/a
jornalista sempre deixa escapar sua subjetividade no processo de construção da
notícia, o texto jornalístico deve conservar a essência, a espinha dorsal de um fato, em
respeito a esses princípios que tangem a apuração e publicação de fatos. Vale ressaltar
que, quando a escrita feminista assume uma postura mais jornalística, estamos no fim
do século XIX. Nesta época, começam a surgir valores e conceitos muito ligados a
questão da racionalidade, transformação que se intensifica no século XX. O
jornalismo acompanha este movimento e a literatura faz o caminho inverso, segundo
jornalista e professor Roberto Nicolato. ―(...) no século XX o jornalismo procurou
firmar-se como entidade autônoma e estável, sob a influência do pensamento racional
e científico, a literatura encampou o discurso da desconstrução. ‖ (NICOLATO,
2006:1)
Temos aqui, ao meu ver, uma possível justificativa para que os jornais
feministas também buscassem essa mudança: a necessidade de se acompanhar um

34
comportamento da época, pautado na ciência e na racionalidade. Isso seria dar
credibilidade e seriedade aos conceitos a serem difundidos.
Obviamente que o caminho não era simples como ainda não é. Não se
resolveria tudo com apenas algumas publicações e as questões pendentes nos dias
atuais também não serão solucionadas apenas com os múltiplos discursos divulgados
de diversas formas dentro das mídias. Dentro da complexidade de um processo
histórico e suas transformações, muitos são os elementos que compõe uma conjuntura
de mudança. Mas este estudo, no que tange ao seu objetivo que é promover reflexão
sobre o assunto, quer mostrar que a imprensa foi uma grande ferramenta de discurso e
de contra discurso. Como uma faca de dois gumes dentro do cenário de conquistas
femininas. Como jornalista, crítica ao meio no qual estou inserida, ainda considero
que a imprensa continua ocupando este papel. Diante de um leque mais amplo:
impresso, rádio, TV e internet, temos batalhas de conceitos ocorrendo. Temos
discussões importantes sobre gênero sendo colocadas em pauta. Mas temos também
um feminismo pasteurizado, sendo amplamente divulgado na grande imprensa, onde a
figura da mulher independente é usada para a colocar apenas em um universo de
consumo, como alerta Natalia Pietra Méndez.

As revistas e os encartes de jornais destinados ao público feminino foram


assumindo um discurso que reconhece a emancipação da mulher enquanto
essa pretensa liberdade contribuir para transformá-la em objeto da
sociedade de consumo. Ou seja, a mulher é vista não como um sujeito de
ações e mudanças capaz de construir novas relações sociais, mas como um
elemento da sociedade capitalista enquanto geradora de renda e usuária de
mercadorias e serviços. (MÉNDEZ, 2007:284)

Não julgando as angulações escolhidas, seja pela grande imprensa ou a


imprensa alternativa, fato é que há uma efervescência, característica dos processos de
discussões. E onde há divergências, há transformações ocorrendo e algumas por vir. O
que se tem neste momento no Brasil é uma retomada do conservadorismo. Isso
implica em tentativas diversas de recolocar a mulher no ambiente privado ou pelo
menos ressaltar a importância e a pseudo naturalidade disso. E este discurso tem
encontrado espaço em muitas publicações da grande imprensa. E esta mesma
imprensa, dentro do contexto social, continuará o seu papel de mediadora e formadora
de opinião mediante a essas transformações. Potencialidade antiga, mas que no atual
contexto ganha peso, uma vez que vivemos a sociedade da informação. Onde relações
pessoais, econômicas e políticas se dão por meio da circulação instantânea de

35
conteúdo. Onde o especulativo gera expectativas e pode influenciar decisões.
Seguindo este raciocínio, o/a jornalista passa a carregar sob os ombros, uma
responsabilidade ainda mais pesada.
Assim como vários setores da sociedade passam por uma desconstrução e
turbulências, o jornalismo também se reinventa como um todo sem perder as raízes. E
se esta ciência se transforma, seus temas abordados serão propagados conforme suas
mudanças. Ouso dizer que, os assuntos feministas também se reinventam dentro das
páginas de jornais, revistas, na agilidade da internet e amplitude do rádio e tv.
Parafraseando Fernando Pessoa, divulgar é preciso. Claro dentro de padrões éticos e
democráticos. E se ética, para os antigos gregos é liberdade (FOUCAULT, 1994:26-
37), que se liberem os espaços para termos, cada vez mais, discussões de gênero. Ter
uma ampla divulgação de informação é tão essencial para a manutenção da
diversidade.

Numa época em que a conjunção de vários fatores tem ensejado o


fortalecimento do conservadorismo ideológico na sociedade brasileira, é
importante que as causas das minorias estejam cada vez mais em evidência.
Diante dessa complexa realidade, fomentar uma organização social pautada
pela equidade entre os gêneros é um enorme desafio. E essa tarefa não é
somente dos movimentos feministas, mas de todos os indivíduos que
anseiam por uma sociedade mais justa e solidária. (LADEIRA, 2015:1)

―Bela, recatada e do lar‖ 5; estaria aí o conservadorismo se mostrando mais uma


vez por meio da imprensa? Certamente que sim. O que tem por trás de um título deste
em uma reportagem dentro de uma revista de grande circulação? Muitas são as
interpretações; desde o uso de palavras minuciosamente escolhidas para objetificar as
mulheres, colocando uma simbologia universal de perfeição, a divulgação de um
perfil ideal de primeira dama para desmerecer a presidente Dilma Rousseff, seguindo
assim um comportamento conservador da maioria do Congresso a apenas uma
divulgação sobre a personalidade de quem está à sombra do político Michel Temer.
Fato é que isenção absoluta assim como ingenuidade são características jamais
existentes desde os primórdios da imprensa e seja qual for a corrente ideológica ou
editorial que o veículo seguir. Assumem hoje a arena, imprensas diversas com suas
batalhas de opiniões travadas. Nas rodas de amigos, nas esquinas, nas padarias e

5
Esta expressão surgiu numa reportagem da revista Veja on line, onde se traçou o perfil da esposa de
Michel Temer, como um padrão ideal de mulher e exemplo a ser seguido. Publicação que gerou muita
repercussão, principalmente em redes sociais, de pessoas contrárias ao padrão exposto pela revista.
Reportagem disponível no link: HTTP://veja.abril.com.br/noticia/brasil/bela-recatada-e-do-lar

36
intensamente nas redes sociais, as recepções fazem seus julgamentos. Um festival de
subjetividades a serviço da informação e também da desinformação.

Referências

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narrativas, n.12, abril/2011. Disponível em
http://www.historiaimagem.com.br/edicao12abril2011/paulricoeur.pdf. Acesso em:
09/04/2016
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V.17 no.49 São Paulo Sept./Dec.2003. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300010.
Acesso em: 09/04/2014
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Janeiro: Graal, 1988.
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Disponível em http://premiowepsbrasil.org/polarizacao-na-imprensa-afeta-debate-sobre-
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MAIA, Cláudia de Jesus. A Invenção da Solteirona: Conjugalidade moderna e Terror
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Acesso em: 02/02/2016
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Disponível em http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/viewFile/848/604
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SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Mauad, 1994.

37
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WOITOWICZ, Karina Janz. Imprensa feminista no contexto das lutas das mulheres:
Ativismo midiático, cidadania e novas formas de resistência. Disponível em
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/acaomidiatica/article/viewFile/27915/19299

38
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIRETOS HUMANOS

Ana Carolina Machado Ribeiro Rodrigues


Maria Fernanda Machado Ribeiro Rodrigues

Introdução
Em toda a história, o conceito de direitos humanos nunca foi tão estimado como nos
dias atuais, Segundo Villey ―hoje estão instalados; impensável desalojá-los‖ (2007, p.2), isso
se deve em grande parte à busca por uma integração social, levada pela necessidade de
respeito às diversidades sociais e culturais. E uma vez que, a globalização e o fortalecimento
dos diversos blocos econômicos vêm promovendo a formação de comunidades cada vez mais
miscigenadas é impensável negligenciar estes direitos fundamentais. Já dizia Boaventura que:

Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e


temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza.
Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma
diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.
(BOAVENTURA, 2003, p. 56)

Herkenhoff assinala que as negações dos direitos humanos não advêm somente de
causas internas, mas se congrega as ―injustiças no campo das relações internacionais‖ e
afirma que o desenvolvimento dos direitos humanos ―exige a instauração, no mundo, de uma
ordem social justa‖ (1994, p. 61).

Conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem


por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção
contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas
de vida e desenvolvimento da personalidade humana. (MORAES, 1998, P.
39)

Sendo assim, a melhor forma de entender a relevância destes direitos na sociedade,


se faz não só através dos seus aspectos conceituais, mas na compreensão de sua dinamicidade
através da história da humanidade e sua evolução até os dias atuais.

Aspectos conceituais
Os direitos humanos podem ser compreendidos como o conjunto de prerrogativas,
faculdades e liberdades básicas dos seres humanos correlacionados com as ideias de uma
igualdade social e perante a lei. Seriam, portanto, irrevogáveis, intransferíveis e

39
irrenunciáveis, constituindo os pilares da moral e da ética de uma sociedade que tem como
base o respeito à dignidade de seus cidadãos.
Durante os séculos XVII e XVIII, no período conhecido como Iluminismo, filósofos
europeus, como: John Locke, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau elaboraram o
conceito dos direitos naturais. Estes direitos se constituíram na premissa de que os homens,
sem qualquer distinção, são titulares de todos os direitos. Não se correlacionando, portanto
apenas com as leis de um Estado, cidadania e a um único grupo étnico, religioso ou cultural,
pois os mesmos seriam naturais e inerentes ao ser humano, ou seja, provenientes de um estado
de natureza. Segundo Comparato pode-se entender que com:

apoio na lição dos clássicos, que a dignidade humana exige que se dêem, a
todos, as condições políticas indispensáveis à busca da felicidade. (...) a
existência de direitos inerentes a todo ser humano, independentemente das
diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social. (COMPARATO,
2010, p. 119)

Ideias também compartilhadas por Canotilho, para ele, o alcance das proteções é
composto em duas esferas distintas, mas que trabalham em uma única dimensão o resguardo
sumário aos direitos inerente a capacidade humana:

direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os


tempos (dimensão jusnaturalista-universalista): direitos fundamentais são os
direitos do homem, jurídico institucionalmente garantidos e limitados espaço-
temporalmente. Os direitos humanos arrancariam da própria natureza humana
e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal: os direitos
fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica
concreta. (CANOTILHO 2002, p.369)

Mediante tal pressuposto, pode-se capitalizar que estes direitos são nada mais que a
exteriorização dos anseios nascidos no Iluminismo. As novas visões sobre o homem,
integrado no meio social e independente das circunstâncias de seu nascimento ou escolhas e
vão consolidando-se ao longo da história da humanidade, visando resguardar as condições
mínimas de uma existência digna.
Segundo Herkenhoff pode-se entender que:

Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente entendidos


aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem,
por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São
direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo
contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e
garantir. (HERKENHOFF, 1994, p. 30-31)

40
Do ponto de vista histórico pode-se traçar uma distinção sobre os direitos humanos e
a partir dela estabelecer uma classificação. Para a construção desse trabalho foi adotado a
divisão das dimensões segundo Bobbio (1992), em que se fala em quatro gerações que vão se
complementando de acordo com as necessidades emergidas no seio da sociedade, se
conectando e adequando ao contexto social. Sendo elas: 1ª Geração: Direitos Individuais; 2ª
Geração: Direitos Coletivos; 3ª Geração: Direitos dos Povos ou os Direitos de Solidariedade;
4ª Geração: Direitos de Manipulação Genética.
A primeira geração tem como elemento preponderante as liberdades e os direitos
políticos, consagrados pelo liberalismo. Aparecem de forma a combater a opressão
estabelecida pelo absolutismo, enquanto forma de governo, das perseguições políticas e
religiosas. Podem ser traduzidas como os direitos individuais ou direitos civis, os quais
possuem como prerrogativa a proteção da integridade física e moral dos cidadãos e combater
as arbitrariedades cometidas pelo Estado. Nesse primeiro momento os direitos humanos
nascem da necessidade de se prescindir da tutela da pessoa humana, tratando-o como
indivíduo. Por outro lado, os direitos políticos vêm assegurar a participação de todos na
administração do Estado, seja de forma direta, na ocupação de cargos ou funções, por
exemplo, ou de forma indireta na garantia do direito ao voto.
A segunda geração de direitos surge da idéia de ―estado de bem-estar social‖. Esse
conceito começa a materializar-se após a I Guerra Mundial e se configura na existência da
prestação de ações positivas por parte dos Estados. Essa leva de direitos obriga o poder
público a intervir para assegurar as condições básicas como saúde, educação, habitação e
trabalho através das políticas públicas. Assim, pode-se entender que esse conjunto de direitos
fundamentais confere a seus titulares o poder de impor ao Estado ‗obrigações de fazer‘,
forçando-o a promover medidas de cunho administrativas que assegurassem condições
básicas de um mínimo existencial.
A despeito das constantes lutas pelo reconhecimento da eficácia dos direitos de
primeira e segunda geração, outras questões começam a ser colocadas em questionamento e
tratados como prioridades. Denominados como direitos de fraternidade ou solidariedade, os
direitos de terceira geração têm como premissa a defesa de grupos sociais vulneráveis e de um
meio ambiente harmonioso. Diferente dos direitos de segunda geração, não exige somente
uma obrigação de fazer pelo Estado, e sim uma prestação por parte deste, associado a uma
contraprestação pela comunidade, a qual requer a formação de uma consciência coletiva na
atuação de cada membro da sociedade.

41
Na concepção da abordagem de Bobbio, das dimensões dos direitos humanos, há
ainda que se falar em uma quarta geração. Esses estão relacionados a temas bastante
recorrentes nos dias atuais, ―relacionados à biotecnologia e bioengenharia, tratam de questões
sobre a vida e a morte e requerem uma discussão ética prévia‖ (1992, p. 6).
As descobertas científicas e os avanços das tecnologias tendem a criar uma ansiedade
nas comunidades científicas, nos líderes mundiais e para a população em geral. Depois da
globalização os acontecimentos e descobertas passaram a refletir em um contexto mundial
cujas às consequências alcançam repercussões gigantescas. A proporção dos avanços dessas
novas tecnologias é acompanhada por diversos questionamentos, que mexem com valores
intrínsecos às condições humanas.
Definir categoricamente os direitos humanos, em sua gênese, pode-se mostrar
bastante complexo, não obstante pode-se aclarar que representam mais do que meros direitos,
são garantias que evoluíram em conjunto com a sociedade, devendo ser rigorosamente
respeitadas para que dignidade e liberdade do ser humano estejam asseguradas. Eles não estão
completamente formados e à medida que a sociedade se modificar as visões dele também se
modificarão. Como pode ser observado por Bobbio quando propõe em seus estudos que:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, o


fortalecimento por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas
circunstancias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de
uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p. 5)

Histórico: consideração histórica

O conjunto dos direitos humanos, segundo doutrinadores como Bobbio, Bonavides e


Comparato, é classificado em quatro gerações que surgiram ao longo da história mundial para
suprir os anseios de uma coletividade. Entretanto, deve-se deixar claro que uma geração não
sobrepõe a outra uma vez, que se pode entendê-los como instrumentos dinâmicos na luta pela
proteção social.
A doutrina aponta como ponto de partida da primeira geração de direitos humanos a
Revolução Francesa e a Independência Americana, de fato este foi o ponto culminante para a
entrada e difusão destes princípios no meio social. Não se pode descartar, entretanto,
instrumentos que sobrevieram estas manifestações sociais, como a Carta Magna Inglesa de
1215, assinada pelo rei João I e que limitava o poder monárquico. Ficou conhecida não

42
somente como um tratado de direitos, mas também de deveres do rei para com os seus
súditos. Versava acerca assuntos como a liberdade dos cidadãos para possuir e herdar bens e a
proteção contra impostos abusivos além, de estabelecer os princípios do devido processo legal
e a igualdade de todos perante a lei e. Os atos impulsionados pelo movimento Iluminista6 nos
séculos XVII e XVII, sob a forma, por exemplo, do Bill of Rights em 1689, induzida pelo
Parlamento Inglês e promulgada pelo Rei Guilherme de Orange, o documento assegurava aos
indivíduos acusados de alguma infração o direito a um julgamento com a presença de um júri,
além de banir do ordenamento as punições violentas e as multas com valores excessivos.
Deve-se lembrar que as liberdades neste período eram restringidas pelas formas dos
governos nacionais, estabelecidas e atreladas à vontade de um monarca. Assim, destaca-se
que o nascimento de um direito advinha de um soberano que priorizava a manutenção de suas
próprias necessidades e de uma nobreza acostumada a não renunciar a seus privilégios. Uma
realidade que não permitia a propagação de visões sobre liberdades e igualdades sociais e que
só veio a ser modificada com as Declarações de Direitos America no ano de 1776 e a
Francesa de 1789, como evidência Bobbio em seu livro ―A era dos direitos‖ ao elucidar que:

A relação tradicional entre direitos dos governantes e obrigações dos súditos


é invertida completamente. Até mesmo nas chamadas cartas de direitos que
precederam as de 1776 na América e a de 1789 na França, desde a Carta
Magna até o Bill of Rights de 1689, os direitos ou as liberdades não eram
concedidos ou concertados, devendo parecer – mesmo que fossem resultado
de um pacto entre os súditos e soberano – como um ato unilateral deste
ultimo. O que equivale dizer que, sem a concessão do soberano, o súdito
jamais teria tido qualquer direito. Não é diferente o que ocorrerá no século
XIX: quando surgem as monarquias constitucionais, afirma-se que a
Constituições foram octroyées pelos soberanos. O fato de que estas
Constituições fossem a conseqüência de um conflito entre rei e súditos,
concluído como um pacto, não devia cancelar a imagem sacralizada do poder,
para a qual os cidadãos obtêm é sempre o resultado de uma graciosa
concessão do príncipe. As Declarações de Direito estavam destinadas a
inverter essa imagem. E, com efeito, pouco a pouco lograram invertê-la.
Hoje, o próprio conceito de democracia é inseparável do conceito de direitos
do homem. (BOBBIO, 1992, p. 114)

Vê-se então, que num primeiro momento os direitos humanos têm como elemento
primordial a defesa das liberdades públicas e autonomia do indivíduo, a qual visava à
proteção da integridade física, psíquica e moral do cidadão e bem como das arbitrariedades
cometidas pelo Estado. Estes atos e movimentos desempenharam papeis importantes no

6
―Liberté, Egalité, Fraternité” do francês ―Liberdade, Igualdade e Fraternidade‖, era o lema deste movimento
do século XVIII, promovido pela elite intelectual do período. Pretendia estimular o uso da razão a fim de
alcançar as reformas da sociedade e a intolerância dos abusos cometidos pela Igreja e pelo Estado. Desempenhou
papel importante nas Revoluções Francesas e Americanas.

43
desenvolvimento dos conceitos de liberdade e igualdades entre os homens e ainda mais, a
necessidade de buscar a valoração do homem enquanto pessoa humana. Essa visão contribuiu
para o desdobramento do DH nos períodos das Grandes Guerras Mundiais
Uma primeira tentativa de se alcançar a paz foi proposta por meio do Tratado de
Versalhes7 em 1919, na forma da Liga das Nações8, entidade que buscava garantir a paz
mundial. Entrementes, com a eminência da eclosão da Segunda Guerra Mundial a
incapacidade da Liga das Nações em interceder pela paz ela deixou de existir.
Com o fim da II Guerra Mundial, uma nova geração de direitos começa a emergir
emanada da concepção do ―estado de bem-estar social‖ e cimentado no resguardo da vida
humana. Caracterizava-se em exigências de ações positivas do Estado e sua capacidade em
assegurar a todos uma igualdade de oportunidades, ou seja, a intervenção do poder público
para a garantia das condições básicas de subsistência como saúde, educação e trabalho.

Muitos dos direitos que hoje constam do ―Direito Internacional dos Direitos
Humanos‖ surgiram apenas em 1945, com as implicações do holocausto e de
outras violações de direitos humanos cometidos pelo nazismo, mas nações do
mundo decidiram que a promoção de direitos humanos e liberdades
fundamentais deve ser um dos principais propósitos da Organização das
Nações Unidas. (BILDER, 1992, p. 3-5)9

Esse período pós-guerra apresentou uma realidade perturbadora. Milhares de vidas


haviam sido perdidas e outras milhares se encontravam em situações de extrema pobreza, sem
qualquer amparo por parte dos Estados, que em sua grande maioria também se encontravam
em estado caótico. O Tribunal de Nuremberg10 foi um dos meios utilizados para se estabelecer
uma ordem e buscar justiça pelas atrocidades cometidas durante a era Nazista. Foi nesse
7
Acordo de paz, assinado após a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1919, onde a Alemanha assume a
responsabilidade pelo conflito comprometendo-se com diversas medidas políticas, econômicas e militares, como
a reconhecimento da independência da Áustria; pagamento aos países vencedores, principalmente França e
Inglaterra, de uma indenização pelos prejuízos causados durante a guerra e a proibição de funcionamento da
aeronáutica.
8
Foi uma organização internacional, criada em 1919, cuja à intenção era o desenvolvimento de um órgão
destinado à promoção da paz e à resolução de conflitos de ordem internacional por meio da mediação e
arbitramento. Sediada na cidade de Genebra, a Liga das Nações era composta de Assembléia Geral e um
Conselho Executivo. O primeiro reunia uma vez ao ano os representantes de todos os países membros. Seu
principal órgão decisório, entretanto, era o conselho Executivo, composto por membros permanentes – em
primeiro momento Grã-Bretanha, França, Itália e Japão e mais tarde contando com a adição da Alemanha e da
União Soviética- e dos membros não permanentes, sendo estes escolhidos pela Assembléia Geral. A recusa do
Congresso norte-americano em ratificar o Tratado impediu que os Estados Unidos fosse membro da Liga.
9
BILDER, Richard B. An overview of international human rights law. Apud PIOVESAN: Tratados
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF
10
O Tribunal de Nuemberg representou um marco na história mundial, por levar a julgamento os denominados
crimes de guerra, contra a paz e a humanidade. Além, de processar diversos dirigentes do Nazismo apontados
como principais responsáveis pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, tendo condenado a prisão perpétua parte
dos réus, absorvendo uns poucos e condenando a maioria a pena de morte por enforcamento. Ocorreu na cidade
de Nuremberg no ano de 1945.

44
cenário conturbado, que emergiu um dos marcos da luta pelos direitos humanos, a criação de
uma organização de cunho mundial, representante de mais de cinqüenta países na proteção
dos cidadãos, suas liberdades, relações e segurança: Organização das Nações Unidas - ONU11.
Tão somente três anos após sua criação a ONU aprovou a Declaração Universal dos
Direitos Do Homem, moldada nas agruras da época e traduzindo os anseios de uma sociedade
despojada de justiça, igualdade e dignidade. Em seu preâmbulo12 já possuía elementos que
viriam a traduzir um conceito novo dos direitos humanos. Pela primeira vez foi criado um
documento, aceito e ratificado por diversos países, com a intenção de amparar a sociedade e
reger seus comportamentos.
Sem dúvida a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 representou
papel de grande importância na luta por esses direitos, entretanto não condicionava aos
Estados, juridicamente, a respeitá-la. Destarte, do momento de sua criação foi necessária a
formulação de diversos documentos, como os pactos ―Internacional dos Direitos Civis e
Políticos‖ e o ―Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais‖, que
especificassem os direitos contidos em seu corpo e dessa forma, forçá-los ao seu
cumprimento.
À medida que a sociedade e os anseios coletivos se modificam exigem que a
formulação de novas medidas de proteção seja tomada. A cada momento os direitos humanos

11
A Organização das Nações Unidas é uma organização internacional, formada por países que se reuniram
voluntariamente no trabalho pela paz e o desenvolvimento mundial. No preâmbulo da Carta das Nações Unidas –
percebe-se os ideais e os propósitos de sua criação: ―Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as
gerações vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos
indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser
humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a
estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes
de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida
dentro de uma liberdade mais ampla.‖ (...)
12
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o
desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem
comum; Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o
homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão; Considerando essencial
promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que os povos das Nações
Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa
humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e
melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados-Membros se
comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos
e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades; Considerando que uma compreensão
comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso.

45
alcançam um novo patamar de proteção, abrangendo uma diversidade de novas situações e
realidades.

Os sistemas de proteção global e regional


O direito enquanto mera faculdade do ser humano e como instrumento na busca pela
justiça e manutenção da paz, não garante por si só a observância, o respeito e
conseqüentemente o seu cumprimento enquanto direito de fato. Seria apenas mais um
elemento criado para preencher os anseios sociais sem realmente efetivá-los. Para que essas
leis, tratados e convenções, elaboradas ao longo da história, possam realmente alcançar is
objetivos para o qual foram criados, se faz necessário a presença de organismos que
preservem e que façam cumprir os mecanismos de proteção e ativar formas de prevenção a
infração desses direitos. Quanto a isso Canotilho e Moreira destacam que uma das vias em
que

o direito de acesso ao direito não é apenas instrumento de defesa dos direitos.


É também integrante do princípio material de igualdade (...) e do próprio
princípio democrático (...). O direito de acesso aos tribunais ou o direito à via
judiciária é uma das dimensões – porventura a mais importante.
(CANOTILHO E MOREIRA, 2008, p. 410.)

A simples existência das normas não garante por sua vez, que elas estão sendo
observadas pelo público a quem se dirigem e no caso de violação se a autoridade que a
evocou oferece meios coercitivos para sua imposição. Essa observação acaba por remeter ao
problema levantado neste trabalho, quanto à eficácia das normas, para a manutenção das
garantias apregoadas pelos direitos humanos. Sob este prisma Kelsen apresenta que a eficácia
de uma norma está relacionada à aplicação e sua observação no meio social. Segundo ele:

dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo ‗vale‘ (é


vigente), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo deve se conduzir de
modo prescrito pela norma. (KELSEN, 2001, p. 215)

O mesmo pode ser observado em Realle quando este se manifesta que:

A eficácia da norma se refere, pois à aplicação ou execução da norma


jurídica, ou por outras palavras é a regra jurídicaenquanto momento da
conduta humana. (REALLE, 1998, p. 393)

A eficácia da norma se faz necessária e por este motivo o surgimento de entidades


responsável por resguardá-las é imprescindível. Em primeiro lugar, em uma visão em âmbito

46
regional temos as Cortes Internacionais, que serão mais detalhadamente esmiuçadas nos
próximos capítulos. São elas: A Corte Interamericana de Direitos Humanos, O Tribunal
Africano e a Corte Européia de Direitos Humanos, tema do presente trabalho. Cada um deles
atua em determinada região do globo, e cuja competência é estendida a todo Estado signatário
aos Pactos e Tratados pelo qual foram criados.
Em um panorama global têm-se a Organização das Nações Unidas – ONU, formada
por países que voluntariamente se uniram na busca pela paz e desenvolvimento mundial.
Surgiu da necessidade de combater o caos disseminado durante a II Guerra Mundial e uma
maneira de estabelecer a paz entre às nações. Concebida pelo anseio da manutenção de uma
estabilidade mundial a ONU foi vislumbrada em 12 de janeiro de 1942, quando 26
representantes de países ao redor do mundo assumiram o compromisso de lutar contra as
potências do eixo; e oficialmente criada em 24 de outubro de 1945 após a ratificação da Carta
das Nações Unidas. Tem por objetivo reafirmar os direitos fundamentais do homem e das
igualdades, estabelecendo condições às

Obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional


possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições
de vida dentro de uma liberdade mais ampla.

Após a solidificação da ONU diversos programas, fundos e agências especializadas


foram criados. Cada um desses organismos possui uma área específica de atuação tais como a
Organização das Nações Unidas para a educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO13, o Fundo
das Nações Unidas para a Infância - UNICEF14, Fundo Internacional - FMI15, Banco

13
―Works to create the conditions for dialogue among civilizations, cultures and peoples, based upon respect for
commonly shared values. It is through this dialogue that the world can achieve global visions of sustainable
development encompassing observance of human rights, mutual respect and the alleviation of poverty, all of
which are at the heart of UNESCO‘S mission and activities. The broad goals and concrete objectives of the
international community – as set out in the internationally agreed development goals, including the Millennium
Development Goals (MDGs) – underpin all UNESCO‘s strategies and activities. Thus UNESCO‘s unique
competencies in education, the sciences, culture and communication and information contribute towards the
realization of those goals‖ Disponível: http://www.unesco.org/new/en/unesco/about-us/who-we-are/introducing-
unesco/
14
―UNICEF is the driving force that helps build a world where the rights of every child are realized. We have the
global authority to influence decision-makers, and the variety of partners at grassroots level to turn the most
innovative ideas into reality. That makes us unique among world organizations, and unique among those
working with the young. (…)We advocate for measures to give children the best start in life, because proper care
at the youngest age forms the strongest foundation for a person‘s future‖.
Disponível:http://www.unicef.org/about/who/index_introduction.html
15
“The International Monetary Fund (IMF) is an organization of 188 countries, working to foster global
monetary cooperation, secure financial stability, facilitate international trade, promote high employment and
sustainable economic growth, and reduce poverty around the world.‖
Disponível:http://www.imf.org/external/about.htm

47
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento ou Banco Mundial - BIRD16 e vários
outros.
Ainda como fonte engajada na luta pelos direitos humanos, não se pode deixar de
falar sobre as Organizações não Governamentais – ONG´s, que são grupos sociais
organizados, sem fins lucrativos, constituídos formalmente e atuando autonomamente. São
caracterizados por suas ações de solidariedade e atuam no terceiro setor da sociedade civil, as
quais possuem finalidade pública e exercem atividades em áreas diversificadas como a saúde,
educação, meio ambiente, proteção aos direitos das mulheres e crianças, combate a pobreza e
outras. São de extrema importância para a sociedade, pois, muitas vezes atuam em situações
onde o Estado se faz omisso. Seus recursos são obtidos através de financiamentos de
empresas privadas e dos governos, das doações da população em geral ou a prestação de
algum tipo de serviço. Grande parte da sua mão-de-obra é composta por voluntários. Dentre
tantas ONG´s atuantes pode-se destacar a Worldwide Fund for Nature-WWF17, Greenpace18 e
a Pastoral da Criança19.

16
―The World Bank is a vital source of financial and technical assistance to developing countries around the
world. We are not a bank in the ordinary sense but a unique partnership to reduce poverty and support
development. We comprise two institutions managed by 188 member countries: the International Bank for
Reconstruction and Development (IBRD) and the International Development Association (IDA). The IBRD aims
to reduce poverty in middle-income and creditworthy poorer countries, while IDA focuses exclusively on the
world´s poorest countries. These institutions are part of a larger body known as the World Bank Group.‖
Disponível:http://www.pathfinder.org/about-us/our-partners/government-multilateral-partners/multilateral-
partners/world-bank.html
17
―WWF's mission is to stop the degradation of our planet's natural environment, and build a future in which
humans live in harmony with nature. In order to achieve this mission, WWF focuses its efforts on two broad
areas: Biodiversity and Footprint. The first, is to ensure that the earth's web of life - biodiversity - stays healthy
and vibrant for generations to come. We are strategically focusing on conserving critical places and critical
species that are particularly important for the conservation of our earth's rich biodiversity. The second, is to
reduce the negative impacts of human activity - our ecological footprint. We are working to ensure that the
natural resources required for life -land, water, air - are managed sustainably and equitably.‖
Disponível:http://wwf.panda.org/what_we_do/
18
―Greenpeace is an independent global campaigning organization that acts to change attitudes and behavior, to
protect and conserve the environment and to promote peace by: catalyzing an energy revolution to address the
number one threat facing our planet: climate change; defending our oceans by challenging wasteful and
destructive fishing, and creating a global network of marine reserves; protecting the world's ancient forests and
the animals, plants and people that depend on them; working for disarmament and peace by tackling the causes
of conflict and calling for the elimination of all nuclear weapons; creating a toxic free future with safer
alternatives to hazardous chemicals in today's products and manufacturing; campaigning for sustainable
agriculture by rejecting genetically engineered organisms, protecting biodiversity and encouraging socially
responsible farming. Greenpeace is present in 40 countries across Europe, the Americas, Asia, Africa and the
Pacific. To maintain its independence, Greenpeace does not accept donations from governments or corporations
but relies on contributions from individual supporters and foundation grants. Greenpeace has been campaigning
against environmental degradation since 1971 when a small boat of volunteers and journalists sailed into
Amchitka, an area north of Alaska where the US Government was conducting underground nuclear tests. This
tradition of 'bearing witness' in a non-violent manner continues today, and our ships are an important part of all
our campaign work.‖ Disponível:http://www.greenpeace.org/international/en/about/
31
―Missão: Promover o desenvolvimento integral das crianças pobres do ventre materno aos 6 anos,
contribuindo para que suas famílias e comunidades realizem sua própria transformação, por meio de orientações

48
As demandas da sociedade e o anseio de justiça tornam impossíveis, nos dias atuais,
o despojo do amparo oferecido pelos direitos humanos em qualquer setor social. A cada dia se
faz mais necessário a criação de novos mecanismos de proteção. Assim, como a sociedade é
dinâmica também deve ser esses direitos, para que sejam capazes de suprir qualquer aresta
insurgente. Deve-se levar em consideração que esta geração de indivíduos faz parte de um
mundo globalizado, onde a necessidade de integração social, na busca por uma harmonia
coletiva é de extrema importância, uma vez que as barreiras culturais sociais e étnicas estão
sendo transpostas. Negar a existência dos direitos humanos, como ainda pode ser observado
em determinados lugares, não reporta somente a questões de políticas internas e sim
abraçadas às relações internacionais insuficientes ou mal compreendidas.

Considerações finais
Ao renegar os direitos humanos a Europa se viu palco de inúmeras atrocidades
cometidas durante as Guerras do sec. XX. O Tribunal de Nuremberg chegou a estimar o
que o número de judeus assassinados nos campos de concentração fiou entre 5,1 a 6
milhões, em um contexto mais atual temos a África que segundo dados da Unicef, mais
de 300.000 crianças são retiradas da convivência familiar e utilizadas como soldados em
frentes de combates e submetidos a abusos físicos, psicológicos e sexuais. Diante disso
conclui-se que as demandas da sociedade e o anseio de justiça tornam impossíveis, nos
dias atuais, o despojo do amparo oferecido pelos DH em qualquer setor social.
Nossa história está fortemente ligada à construção dos direitos humanos, não
sendo possível desassocia-los assim, a melhor forma de entender a relevância destes
direitos, se faz não só através de seus aspectos conceituais, mas na compreensão de sua
dinamicidade através da história da humanidade e sua construção e evolução ao longo
dela.

básicas de saúde, nutrição, educação e cidadania, fundamentadas na mítica cristã que une fé e vida. Visão:
Prevenir mortes materno-infantis evitáveis e todas as crianças, mesmo as mais vulneráveis, estará vivendo num
ambiente favorável ao se desenvolvimento. ‖
Disponível:https://www.pastoraldacrianca.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=66&Itemi
d=48

49
Referências

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita; BERCOVI, Gilberto; MELO, Claudineu de.


Direitos Humanos, Democracia e República: Homenagem a Fábio Konder
Comparato. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
BILDER, Richard B. No overview of international human rights Law. In: HANNUM,
Hurts. Guide to international hunam rights practice. Philadelphia: UNIVERSITY of
Pennsylvania Press, 1992 apaud PIOESAN, Flávia. Hierarquia dos Tratados
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF. São
Paulo: Quartier Latin, 2009.
BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Caumpus, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros,
2006.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São
Paulo: Saraiva, 2010.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 2002.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República
Portuguesa Anotada: artigos 1º a 107. Coimbra: Coimbra, 2008. v. 1.
MORAIS, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários
aos artigos 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil – Doutrina e
Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1998.
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos
humanos e o Brasil (1948 - 1997): as primeiras cinco décadas. 2. ed. Brasília:
Universidade de Brasília, 2009.
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução: para ampliar o cânone do conhecimento,
da diferença e da igualdade. In: ____. (Org.). Reconhecer para libertar: Os caminhos
do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
VILLEY, Michel. O Direito e os Direitos Humanos. Tradução de Maria Ermantina de
Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

50
O PAPEL DO KALEVALA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE
NACIONAL FINLANDESA

Carolina Silva de Almeida

Resumo: Este trabalho, demonstra o papel que o poema épico Kalevala teve para a
formação da identidade nacional do povo da Finlândia. Para tanto, ele apresenta
primeiro o contexto histórico de produção da obra, discute brevemente o processo de
compilação da obra, apresenta o teor dos contos da Carélia, e trabalha a imagem do
herói Väinämöinen como ideal de herói para a nação e representação da ligação com a
terra, fundamental para a construção do imaginário de nação. As relações entre o épico e
o imaginário de nação serão analisadas à partir de trechos selecionados do poema.
Também serão destacados os interesses políticos do cenário finlandês da época de
produção do Kalevala. Os estudos dessa pesquisa levaram à conclusões sobre o papel do
épico na consolidação da língua e da ideia de nação na Finlândia. Indicando que a
literatura, ao mesmo tempo que influenciada, influencia culturalmente uma nação. Este
trabalho corresponde à primeira parte de uma pesquisa para o mestrado em literatura,
outras artes e mídia, sobre a imagem do herói no Kalevala.

Palavras-chave: Väinämöinen; Kalevala; Identidade Nacional; Estudos Literários.

O Kalevala
O que conhecemos hoje à cerca da mitologia e do folclore finlandês chegou até
nós principalmente por meio do poema épico O Kalevala, uma série de contos orais dos
povos da Carélia20 compilados nas viagens do linguista finlandês Elias Lönnrot, que
tiveram sua primeira versão lançada em 1835, e uma segunda versão mais completa
lançada novamente em 1848. O poema é dividido em 50 cantos (32 na primeira versão),
que contam os mitos de origem da terra e as histórias de diferentes personagens:
Väinämöinen, Lemminkäinen, Ilmarinen, Kullervo e Marjatta.
Assim como na maioria das epopeias, o Kalevala descreve batalhas, assassinatos
e romances, assim como apresenta seres mágicos, feiticeiros, mitos e lendas
tradicionais.
Os contos que deram origem ao poema foram difundidos oralmente pelos povos
da Carélia durante gerações através dos contadores de histórias e trovadores. Os contos
resgatados vem das tradições pagãs da região e sua idade é incerta, mas alguns
remontam ao início do povoamento da região.

20
A Carélia é uma região situada entre a Rússia e a Finlândia, hoje, parte da Carélia finlandesa é território
russo devido à novas divisões das terras feitas após as guerras mundiais do século XX.

51
O Contexto histórico
Embora a originalidade e expressão individual dos poetas românticos fosse
valorizada durante o século XIX, o surgimento de movimentos nacionalistas reflete uma
estética poética de mesmo cunho, onde os escritores e poetas exaltavam tradições
culturais de seus países trazendo elementos do passado. Na Alemanha, os Irmãos
Grimm compilaram contos camponeses tradicionais, assim como fizera Charles Perrault
na França. Mais próximo à Finlândia, na Noruega, o Heimskringla ganhava destaque
como símbolo nacional por narrar as sagas de reis noruegueses.
A Finlândia, no entanto, se encontrava em um impasse: ao contrário de outros
países europeus, as tradições orais não haviam sido preservadas em todo o país, e a
população do país era muito heterogênea entre si, proveniente de diversos grupos
étnicos. Como eleger então uma base comum para fundamentar o imaginário de nação e
a ideia de tradição? Os grupos burgueses favoráveis à independência se propuseram a
financiar acadêmicos para que fosse feita uma viagem para a busca de contos da
tradição oral dos trovadores da Carélia, região de fronteira com a Rússia, que seria
lançada em forma de compêndio e escrita em finlandês21. De acordo com Vento (1992):

The Kalevala fulfilled the expectations of a nationalistic educated class for a


work which would raise Finnish culture to the level of that of Sweden and
Russia. The Kalevala became the object of a cult around which a mythology
of its own began to be spun. (VENTO, 1992, p.83).

Uma diferença fundamental das características descritas e do poema estudado é


que a epopeia frequentemente trata de homens mortais que empreendem feitos
heroicos22, e O Kalevala tem como personagens centrais deuses e xamãs. Embora
Lönnrot tenha adaptado a história desses personagens, suas origens mitológicas ainda
são visíveis. Ao contrário da epopeia tradicional, não vemos o homem23 como um
instrumento num jogo de deuses, mas heróis que são eles mesmos deuses ou próximos à
divindade.

21
Era fundamental que a obra que servisse para fundamentar o imaginário de nação fosse escrita no
idioma finlandês, uma vez que antes da independência os documentos oficiais da Finlândia eram todos
escritos em russo e sueco. A tradição oral e a língua são elementos fundamentais para o conceito de
cultura com o qual Lönnrot e a academia finlandesa trabalharam para a formulação do épico em questão.
22
Uma notável exceção a essa regra nas culturas indo-europeias são os épicos indianos como o
Mahabharata e o Ramayana, nos quais os protagonistas são deuses.
23
O único herói passível de ser considerado um herói trágico, sendo mais próximo do herói grego, é
Kullervo.

52
Väinämöinen – O Herói nacional
Podemos perceber em O Kalevala que mesmo as ações sendo narradas como
feitos heroicos, o modelo de herói é representado por um velho, Väinämöinen, sábio e
taciturno, que usa a magia da música e das palavras para vencer suas batalhas. Ele não
exibe seus feitos como um cavaleiro medieval, mas se resigna a cumprir seu papel
mantendo a ordem no mundo.
A relação entre Väinämöinen e sua terra pode ser interpretada como uma
analogia à história do povo finlandês. O próprio nome dado ao poema, ―A terra de
Kalevi‖, muitas vezes é interpretada como ―A terra dos Heróis‖ (Crawford 2004).
Väinämoinen também representa as tradições antigas da Finlândia. Ele possui a magia
que há na própria terra onde habita, por isso pode moldá-la segundo sua vontade. Neste
excerto podemos ver a ligação profunda expressa entre Väinämöinen e a Carélia:

―Then arose old Wainamoinen,


With his feet upon the island,
On the island washed by ocean,
Broad expanse devoid of verdure;
There remained be many summers,
There he lived as many winters,
On the island vast and vacant,
well considered, long reflected,
Who for him should sow the island,
Who for him the seeds should scatter;‖
(CRAWFORD, 2004, p. 38)

Uma grande crítica ao épico de Lönnrott cai sobre o último conto, adicionada à
versão completa a obra em 184824. Neste conto, vemos a despedida de Väinämöinen,
que deixa sua terra após encontrar um bebê nascido de uma virgem, uma clara
referência à Jesus Cristo. Nesse encontro, ele pretendia matar o recém-nascido, que se
defende argumentando contra o herói, e o vence na disputa retórica. Este conto seria
então uma alegoria à cristianização25 da Finlândia, onde as antigas tradições –
representadas por Väinämöinen – deixariam a terra para dar espaço ao novos tempos e
tradições – representados pelo recém-nascido da virgem.

24
Este é um dos contos que possui sua origem questionada, sendo atribuída à Lönnrot, e não pertencente
à tradição oral da Carélia.
25
Outra alegoria similar é encontrada em Mort d‘Artur, de Thomas Mallory, no momento da Morte do
Rei Arthur quando sua irmã Morgana o leva para Avalon e os normandos conquistam a Inglaterra
encerrando completamente a era pagã.

53
Considerações finais
O Kalevala, mesmo alterando os mitos e lendas dos povos da Carélia, acabou
criando, pela forma como foi assimilado socialmente, uma mitologia própria em torno
de si mesmo. Integrando o cânone da literatura finlandesa com uma posição de
destaque, a obra oficializou e permitiu a criação de novas relações com as tradições
existentes. A figura nacional centralizadora foi colocada sobre Väinämöinen,
consolidando uma identidade cultural, que seria essencial para a Finlândia às vésperas
da revolução.
Entretanto, devemos lembrar que os contos da Carélia não faziam parte da base
cultural de todos os finlandeses, que em sua grande maioria não pertenciam a esse grupo
étnico. Por isso, podemos considerar essa polarização dos personagens como uma
estratégia editorial para aproximar os personagens do leitor contemporâneo do século
XIX, com valores morais e éticos de um homem finlandês erudito do século XIX ao
invés de um ethos medieval que representava apenas um grupo.

Referências

BIZERRIL, José. Kalevala: resgatando a oralidade do épico.Textos de História.


Revista do Programa de Pós-graduação em História da UnB. 4.2 (1996): 71-93.
BAKHTIN, M. Epos e o romance. In: ___. Questões de literatura e de estética. São
Paulo: UNESP/HUCITEC, 1998. p. 397-428.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2007.
VENTO, Urpo. Nordic Journal of African Studies. 1992. p.82–93.

54
INVENTÁRIO CULTURAL DE PROTEÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

Cesar Henrique de Queiroz Porto


Denílson Meireles Barbosa

Resumo: Discutiu-se, neste trabalho, a cultura e a tradição de uma parte importante do


norte de Minas. O Inventário para fins de Salvaguarda e Proteção do Patrimônio
Cultural no Vale do São Francisco foi um projeto executado pelo Instituto Estadual de
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG, em conjunto com o
Núcleo de História e Cultura Regional da Universidade Estadual de Montes Claros –
NUHICRE/Unimontes. O objetivo centrou-se na identificação, registro e inventário de
bens culturais da região a partir de levantamento de informações e fontes dispersas em
diferentes acervos documentais.

Palavras-chave: Inventário cultural; Patrimônio; Rio São Francisco.

Este trabalho trata da primeira etapa do Inventário Cultural de Proteção do


patrimônio cultural no médio São Francisco, pesquisa executada pelo Instituto Estadual
de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG, em conjunto com o
Núcleo de História Regional da Universidade Estadual de Montes Claros –
NUHICRE/UNIMONTES, e teve como ação maior, identificar e inventariar os bens
culturais da região. O objetivo dessa etapa foi levantar o maior número possível de
informações referentes à cultura e tradição de uma parte importante do norte de Minas.
Para tal, se fez necessário identificar essas informações em conjunto com a comunidade,
por meio de levantamentos de fontes espalhadas em diversos locais como arquivos,
bibliotecas, universidades e acervos virtuais entre tantos outros. O trabalho resultou na
identificação de 2903 itens espalhados em 587 fontes de 57 acervos distintos, com vistas a
delinear um panorama do patrimônio cultural do norte de Minas.A pesquisa abarcou
especificamente 17 municípios lindeiros ao Rio São Francisco, situados na parte
navegável do rio até a divisa com a Bahia. Os trabalhos desenvolvidos ao longo do trajeto
da pesquisa tiveram como critério base o conceito das referências culturais. O objetivo
era identificar os elementos que remetiam, entre outras coisas, à identidade, à memória e
ao pertencimento dos diferentes grupos sociais existentes na região. Além disso, outro
ponto importante na metodologia de pesquisa desenvolvida e adotada pelo IEPHA/MG
foi à plena participação dos detentores do saber em todo o processo. A perspectiva de
construir um levantamento participativo impôs uma série de desafios distintos. Assim,
foram aplicados os mapas de percepção como ferramenta e método para integrar os

55
grupos ao projeto. Aliás, os mapas se mostraram fundamentais na identificação das
referências culturais associadas às pessoas e ao ambiente sanfranciscano.

Mapa de Localização do Sítio Geográfico do Inventário Cultural


Fonte: NUHICRE – IEPHA/MG

O referido projeto proposto pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e


Artístico de Minas Gerais - IEPHA/MG tem como objetivo identificar e inventariar os
bens culturais de natureza imaterial e material da população ribeirinha no vale do rio
São Francisco.

Características gerais do projeto


O Inventário cultural desenvolvido ao longo do médio São Francisco foi um
projeto formalizado entre o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de
Minas Gerais – IEPHA/MG, em conjunto com o Núcleo de História e Cultura Regional
da Universidade Estadual de Montes Claros – NUHICRE/UNIMONTES, no período de
2012 a 2016. O referido projeto foi financiado com verba do TAC – Termo de Ajuste de
Conduta, através e com acompanhamento do Ministério Público de Minas Gerais –
Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e turístico de Minas Gerais,
sendo gestada pala FADENOR – Fundação de Apoio do Desenvolvimento do Ensino
Superior do Norte de Minas. A proposta inicial foi apresentada pela Gerência de

56
Patrimônio do IEPHA/MG que, partindo de um estudo de campo e da escolha do sítio
geográfico considerado médio São Francisco, porção navegável do rio São Francisco
que contempla 17 municípios, sendo eles, Várzea da Palma, Pirapora, Buritizeiro, Ibiaí,
Ponto Chique, São Romão, Ubaí, Icaraí de Minas, Pintópolis, São Francisco, Maria da
Cruz, Januária, Itacarambi, Jaíba, São João das Missões, Manga e Matias Cardoso.
Todos estes municípios sofrem diretamente influências do rio São Francisco.
O desenvolvimento desse trabalho foi de extrema relevância par a região, pois,
pode contar com o apoio do IEPHA/MG na orientação técnica de ações de pesquisa e
identificação de bens culturais caros a estas localidades. As ações visaram identificar e
inventariar de forma específica os bens culturais dos referidos municípios, incluindo as
suas respectivas comunidades rurais. Os bens inventariados foram indicados pela
própria população local através de seminário previamente realizado como forma de
identificação de bens culturais, proposto pelas instituições realizadoras, junto às
comunidades ribeirinhas. Durante os referidos seminários, ocorridos em 4 das 17
localidades, foi elaborado pela própria comunidade os mapas de percepção, metodologia
que possibilita a comunidade a indicar de forma coletiva e participativa os bens
culturais que constituem certo valor histórico e lhes conferem identidade. As cidades
referenciais foram Pirapora, São Francisco, Januária e Manga.

Fórum realizado na cidade de São Francisco no ano de 2012.


Fonte: NUHICRE – IEPHA/MG

57
A partir das indicações feitas pelas comunidades, num plano de trabalho que
engloba as referências culturais dos diferentes grupos sociais que margeiam o rio São
Francisco, uma equipe multidisciplinar de pesquisadores envolvidos no processo de
inventário dos bens culturais, representando diferentes áreas como, antropologia,
geografia, história e artes, se colocou a desenvolver as pesquisas pertinentes, conforme
programação pré-estabelecida em plano de trabalho que contemplava as referidas áreas
do conhecimento em detrimento das escolhas de bens culturais.
Indicados, pelas respectivas comunidades, a estratégia possibilitou atender as
características plurais de toda a população ribeirinha envolvida. Coube aos
pesquisadores atuar de forma a considerar uma nova proposta metodológica para
levantamento de fontes orais e documentais, organização e disponibilização de dados.
A realização do trabalho se deu através de quatro atividades vinculadas:
identificação de bens culturais, fichamento dos dados, arquivamento e disponibilização
das informações levantadas.

Metodologia
O Plano de trabalho tem como objeto de pesquisa a população ribeirinha do Vale
do rio São Francisco que reúne pescadores, vazanteiros, veredeiros, geraizeiros,
assentados, comunidades tradicionais que ao longo do tempo constituíram um modus
vivendi muito próprio das comunidades lindeiras, ditas ―barranqueiras‖ pelo seu
estabelecimento próximo às barrancas do rio. Pessoas de diversas origens foram se
estabelecendo em todo o sertão do São Francisco criando laços e ressignificando as
suas expressões culturais que com o tempo, foram cristalizando e se tornando
tradição e constituindo-se em patrimônio cultural, pertença fundamental para a vida
cotidiana dessas populações.
De acordo com a constituição federal, o patrimônio cultural brasileiro se
constitui nos bens de natureza material e imaterial, seja individualmente ou em
conjunto desde que, sejam portadores de referência à identidade, e à memória dos
diferentes grupos sociais. Neste caso, da população ribeirinha do Vale do rio São
Francisco com foco nos municípios lindeiros do Médio São Francisco.
Assim, foram contempladas Categorias Culturais de caráter multidisciplinar que
absorveu aspectos oriundos da história, antropologia, geociências e artes, sendo elas:
1) Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da
religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social.

58
2) Ofícios e Modos de Fazer: Compreendem a culinária local, o artesanato, a fabricação
de instrumentos e outros objetos de uso religioso, artístico e utilitários moldados a partir
da matéria prima extraída na própria região.
3) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e
se reproduzem práticas culturais coletivas simbólicas.
4) Formas de expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas.

Essas categorias permitiram comunicar mais detidamente durante a travessia do


sertão do São Francisco com a realidade cultural de povos, aldeias, comunidades e seus
aspectos mais caros, como, pessoas, águas, árvores, frutos, causos e crenças, jeito de ser
e de viver, enfim, com a vida sertaneja vislumbrada a partir do rio São Francisco.
Portanto, a partir da definição desses aspectos elencados em categorias culturais a
metodologia aplicada para essa pesquisa identificou ao longo desses procedimentos um
conjunto considerável de bens culturais.
Além disso, a metodologia desenvolvida ao longo da realização do inventário
cultural foi orientada pelo IEPHA/MG compreendendo quatro etapas distintas;
identificação, fichamento, arquivamento e disponibilização dos dados.
A primeira etapa consistiu no levantamento bibliográfico, documental e oral da
população envolvida, para melhor compreensão dos fatores históricos e antropológicos
ligados ao processo formador da região e , em particular, das respectivas localidades.A
pesquisa de campo para levantamento histórico, possibilitou compreender in loco as
características específicas de cada localidade e as recorrências culturais em toda
extensão do sitio geográfico da pesquisa. Considerou-se também nesta primeira etapa o
levantamento fotográfico procurando identificar arquivos já existentes e ampliar o
acervo imagético da região em questão, tornando-o mais rico em informações que
poderão servir de fonte para análise de pesquisadores dos vários campos do
conhecimento. O registro áudio-visual é outra ação que recebeu atenção cuidadosa
durante as atividades de campo. Entende-se que esse tipo de registro é plenamente
revelador dos traços que marcam a identidade de um povo.
O fichamento de dados, as entrevistas, e a sistematização dos dados
compreende a segunda etapa. Essa ação metodológica permite verificar a
característica e a quantificação dos dados coletados, bem como organizar de variadas
formas e temas os itens identificados.

59
A terceira etapa consiste na organização e análise dos dados levantados na
pesquisa. A metodologia organizacional dos dados da pesquisa foi um processo
cuidadoso onde cada item ou bem identificado foi devidamente organizado conforme
a sua categoria enquanto bem cultural. Esta classificação permite identificar o bem
cultural juntamente com outros itens associados a ele de forma que, seja possível
visualizar o próprio bem num contexto histórico e cultural que lhe é peculiar segundo
os traços da cultua local.
A quarta e última etapa refere-se à disponibilização dessas informações
levantadas, a partir da constituição de um ―banco de dados‖ que, organizado de
forma quantitativa e qualitativa permite acessar a todos os dados registrados durante
a pesquisa.
Além dessas etapas, a metodologia aplicada para essa pesquisa identificou ao
longo desses procedimentos a partir de um planejamento que consistiu inicialmente
na organização de um plano individual para cada pesquisador que acompanharia
consequentemente, aos acadêmicos bolsistas envolvidos no projeto, orientando-os
durante todo o desenrolar da pesquisa, formalizou-se as ações que ficariam sob a
responsabilidade de cada um. Abaixo, descrevemos algumas das ações de
responsabilidade de pesquisadores e acadêmicos bolsistas durante a ocorrência do
Inventário cultural.
Atividades propostas para cada pesquisador:
 Reunião com instituições participantes;
 Reunião com equipe;
 Elaboração do Plano de trabalho;
 Contato com equipe de trabalho;
 Seleção dos estagiários;
 Articular equipe Técnica responsável pelo inventário;
 Acompanhar o planejamento da equipe Técnica registrando as ações a serem
Executadas;
 Adquirir material de consumo;
 Contato com as Prefeituras envolvidas;
 Acompanhamento da pesquisa;
 Acompanhamento do inventário;
 Planejar, organizar, aplicar e coordenar serviços de pesquisa histórica dos
municípios contemplados pelo Inventário;
 Elaborar ficha de cadastro de fontes documentais;
 Elaborar roteiro de entrevista;
 Pesquisa exploratória de campo;
 Identificar e registrar o patrimônio cultural de cada cidade contemplada.

60
 Identificar e registrar o patrimônio imaterial;
 Identificar os saberes e fazeres da população envolvida;
 Reconhecer e identificar os conhecedores de técnicas e de matérias primas dos
grupos sociais que compõem o Vale do Rio São Francisco;
 Identificar e registrar os conhecimentos tradicionais da população envolvida;
 Elaborar inventário;
 Orientar estagiário;
 Assessorar a coordenação;
 Planejar viagens;
 Organizar material;
 Selecionar acervo de imagens;
 Registrar o conhecimento e a arte popular expressos no artesanato nos objetos e
na oralidade;
 Criar banco de dados com as entrevistas.

Atividades propostas para cada estagiário:


 Digitalizar documentos;
 Pesquisar pela internet fontes e dados em sites oficiais;
 Pesquisar bibliotecas acadêmicas e públicas;
 Organizar portfólio, arquivos e documentos;
 Gravar DVDs;
 Criar arquivos
 Digitar textos;
 Elaborar documentos;
 Enviar e-mails.
 Sistematizar dados da pesquisa;
 Organizar acervo de imagens.
 Alimentar banco de dados a partir das pesquisas, virtual e de campo;

Conclusão

O projeto proposto pelo IEPHA/MG tendo como gestor a FADENOR e executor


a Universidade Estadual de Montes Claros, através do Núcleo de História e Cultura
Regional – NUHICRE representa um marco para a memória e a identidade da
população ribeirinha do Médio São Francisco na medida em que, possibilita pensar na
valorização dos bens culturais produzidos no norte de Minas Gerais.
A ação de inventariar o patrimônio cultural no Vale do rio São Francisco para
fins de salvaguarda e proteção revela a importância de identificar os bens culturais do
norte de Minas Gerais, berço cultural de uma importante tradição sertaneja. A riqueza
associada à diversidade das manifestações, expressões e práticas culturais, revela o
quanto se deve tratar da educação patrimonial regional e local.

61
É comum a recorrência de várias manifestações nas diversas localidades
situadas ao longo do trajeto ribeirinho. Caracteristicamente elas guardam sinais de uma
diversidade cultural que, colaborou no processo formador da região a partir dos nativos
indígenas, dos ritos e símbolos dos agentes africanos e afro-descendentes e da
perspicácia e coragem dos portugueses.
Da relação entre essas diferentes identidades, acomodou-se no seio do sertão do
São Francisco um conjunto de saberes e fazeres, como, o modo de fazer farinha, o modo de
fazer rapadura, a dança de São Gonçalo, a folia de reis, as rezas em latim rústico,
desenvolvendo-se características muito peculiares. Há ainda as benzeções e o partejamento,
as batucadas e as festas devocionais, representações estas que dão sentido à vida no sertão e,
por isso, se tornaram manifestações comuns em toda bacia do médio São Francisco.
Este inventário cultural e sua expressiva composição objetivaram enfatizar os
saberes e fazeres do povo ribeirinho. Patrimônio Cultural Imaterial, que se revela de
extrema relevância na ordem do tempo no sertão, pois, é capaz de conferir identidade,
na medida em que marca as relações estabelecidas com os lugares, ritos, ofícios e
celebrações. Relações simbólicas que só fazem sentido quando nos colocamos diante da
realidade coletiva dos povos que aí habitam.

Referências
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Paulo: Universidade de São Paulo, 1984.
[DAS VILLAS, de São Paulo para o Rio São Francisco]. In: Informações sobre as
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http://www.lagea. ig.ufu.br/xx1enga/anais_enga_2012/gts/1488_1.pdf Acessado em
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Descrição Geográfica, Topográfica, Histórica e Política da capitania de Minas Gerais.
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Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.
UNESCO. Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris,
2003.

62
IMAGENS DO OUTRO: ORIENTALISMO NA MÍDIA CONTEMPORÂNEA

César Henrique de Queiroz Porto


José Eustáquio Chaves Filho
Luiz Gustavo Soares Silva

Resumo: O Islã tem sido frequentemente associado em noticiários, filmes, desenhos


animados, novelas e jogos de videogame à ideia do terrorismo, do fanatismo religioso e da
barbárie. É função do historiador analisar essas representações sobre o Outro muçulmano
problematizando-as dentro da lógica das disputas de poder da sociedade globalizada. Neste
intuito, o que propomos é demonstrar, a luz das contribuições de Edward Said e outros
intelectuais engajados no assunto, o modo como a indústria midiática contemporânea tem
contribuído para a disseminação de estereótipos acerca da cultura Oriental em nossa
sociedade. Em um primeiro momento buscamos evidenciar o conceito de Orientalismo. Em
seguida, analisamos o modo como ele se manifesta através de diferentes produtos da cultura
da mídia.

Palavras-chave: Orientalismo, Islã, Mídia.

Após os atentados às Torres Gêmeas do World Trade Center, em setembro de 2001,


nos Estados Unidos, houve um aumento no número de imagens que buscaram associar os
muçulmanos à ideia do fanatismo religioso, do fundamentalismo e também do terrorismo.
Diversos veículos de comunicação contemporâneos a esse momento tentaram explicar a
lógica dos acontecimentos em curso para uma multidão de pessoas que estavam perplexas
com a facilidade com que terroristas haviam conseguido sequestrar dois aviões de carreira e
fazê-los colidir contra o maior centro comercial estadunidense.
Mais do que um grande número de mortos e prejuízos financeiros, o que se pode
perceber é que um sentimento generalizado de pânico e torpor tomou conta daqueles que
acompanharam a cobertura jornalística desse evento. Uma profunda angústia existencial se
fez sentir depois dos atentados. De acordo com Erica Simone Almeida Resende,
pesquisadora da Universidade Estadual de São Paulo, ―o Onze de Setembro foi
experimentado pessoal, visual, digital, virtual, global e simultaneamente como nenhum
outro evento da história‖ (RESENDE, 2010, p.03). Era como se as imagens assistidas pela
TV e em sites de notícias não pudessem ser reais ou pertencessem a alguma produção
hollywoodiana.
Resende (2010) referindo-se diretamente às impressões no público ocidental através
da cobertura jornalística sobre o Onze de Setembro, assim como John B. Thompson que
trata das diferentes maneiras pelas quais as pessoas têm consumido os acontecimentos

63
contemporâneos através das mídias, afirma que eventos como esse são capazes de
modificar nossa percepção espaço-temporal, devido, principalmente, à dificuldade que
temos de assimilar situações traumáticas. Para Thompson, a mídia alterou a nossa
compreensão do passado e criou aquilo que poderíamos chamar de "mundanidade
mediada", ou seja, "nossa compreensão do mundo fora do alcance de nossa experiência
pessoal, e de nosso lugar dentro dele‖ (THOMPSON, 1998, p.38).
Certamente a forma como apreendemos as informações oferecidas pelos meios de
comunicação não é passiva, mas podemos ser influenciados a tomar parte em determinados
conflitos a partir da lógica discursiva presente nessas produções. De acordo com o filósofo
norte-americano Douglas Kellner (2001), as culturas da mídia têm se tornado a força
dominante de socialização entre as pessoas e substituído as formas mais elevadas de cultura,
tais como o aprendizado familiar, erudito e religioso que funcionariam como elementos
fundamentais para a construção de valores e a tomada de atitudes. Através de suas
celebridades, novos padrões de identificação, estilo, moda e comportamento estariam se
tornado pauta de conversas em grupos de amigos e conhecidos, sobretudo, em momentos
informais.

Nesse cenário, o desafio colocado por Kellner é ler politicamente a cultura


contemporânea, ou seja, examinar como as produções culturais da mídia
transcodificam as lutas sociais existentes em seus espetáculos, imagens e
narrativas, pois os conflitos do cotidiano se expressam por intermédio dos
produtos culturais da mídia, que, por sua vez, sofre uma apropriação e exerce
efeitos sobre esses contextos [...]. (LEITE, 2004, p.02)

Conforme podemos perceber através da citação acima, a cultura da mídia pode


mobilizar opiniões e articular a sociedade através de seus espetáculos26 com o propósito de
atingir um determinado fim. Fato que reforça a necessidade de um exame crítico minucioso
sobre as formas como o Oriente Médio e o Islã vem sendo representados através dessas
produções para o público ocidental, acima de tudo, após os trágicos atentados do dia Onze
de Setembro, pois os meios de comunicação passaram a difundir cada vez mais imagens
preconceituosas e caricaturadas do universo islâmico, de uma maneira geral.
Edward Said é considerado um dos mais importantes escritores relacionados à
temática oriental em todo o mundo. Nascido em Jerusalém em 1935, filho de comerciantes
árabes cristãos protestantes, recebeu parte de sua educação no Cairo e, mais tarde, em Nova

26
Para Douglas Kellner, ―o espetáculo envolve os meios e instrumentos que incorporam os valores
básicos na sociedade contemporânea e servem para doutrinar o estilo de vida dos indivíduos‖
(KELLNER, 2006, p.122)

64
Iorque. Graduou-se em Literatura, em Princeton, e depois se tornou mestre e doutor em
Literatura Comparada, em Harvard. Foi somente a partir da década de 1960 que ele
começou a se envolver no movimento pela causa Palestina e, então, se propôs escrever
Orientalismo, livro que é considerado sua obra prima.27
Para Said, o Oriente, assim como o conhecemos, é fruto de um discurso colonialista
europeu que procurou classificar a complexidade das experiências políticas, religiosas e
culturais do Outro árabe islâmico enquanto inferiores ao modo de vida ocidental. E isso,
desde a Idade Média, quando o papa Urbano II convocou os cristãos para reconquistarem os
lugares sagrados dos ―infiéis‖ através das Cruzadas, ou mesmo antes disso, visto que desde
a antiguidade um grande número de histórias que povoavam o imaginário europeu já
continha personagens exóticos, seres bestiais, memórias e paisagens obsessivas. Para o
autor, nessa e em outras produções, como Covering Islam (1997),às razões para o Ocidente
aceitar de forma tão fácil as visões frouxas e redutoras da palavra Islã estariam nas antigas
percepções dessa instituição enquanto um concorrente que estivesse à altura do Ocidente
cristão (SAID, 1990).
Dessa forma, ―o orientalismo pode ser entendido como um estilo de pensamento
baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre o ―Oriente‖ e (a maior
parte do tempo) o ―Ocidente‖ (SAID, 1990). Ele não tem a pretensão de descrever com
fidedignidade o universo oriental, mas construir uma representação utilitária acerca dele. É
postulado pela exterioridade, ou seja, a partir daquilo que o orientalista descreve. E é
exatamente disso que resulta à força dessa representação, pois o Oriente e aqueles que o
integram são transformados em figuras familiares, excessivamente simplificadas, para que o
público ocidental possa consumir facilmente essas histórias.
Uma das contribuições mais significativas de Edward Said para o debate acadêmico
acerca das relações inter-civilizacionais se faz a partir de sua afirmativa de que a mídia,
especialmente a televisão, tem atuado como um agente potencializador do orientalismo
(PORTO, 2012). Ao chamar a atenção para o reforço dos estereótipos pelos quais o Oriente
tem sido retratado, após o advento do mundo eletrônico pós-moderno, ele percebeu que
atitudes orientalistas têm invadido a esfera pública e povoado a mente das pessoas com
imagens negativas dos muçulmanos. Basta dizer que, em muitas produções televisivas, eles
são associados ao atraso, ao saque e a libidinagem (SAID, 1990).

27
Lançado inicialmente em 1978, atualmente, o livro conta com tradução para diversos idiomas,
inclusive, o hebraico.

65
Nesse sentido, a pesquisa de Jack Shaheen, da Universidade da Pensilvânia, sobre a
maneira pela qual a cultura popular tem projetado e reificado imagens acerca da cultura
oriental em filmes e programas de TV apresenta relevância. Pois, de acordo com esse autor
―o árabe muçulmano continua aparecendo como uma ameaça cultural ao Outro... Ele/ela
não possui uma face humana e vive em um reino mítico de desertos infinitos salpicados de
poços de petróleo, tendas, diversas mesquitas, palácios, cabras e camelos‖ (SHAHEEN,
2000, p.24) (Tradução livre).
Especialmente após o Onze de Setembro essa retórica que polariza a dicotomia
entre ―nós‖ e ―eles‖ foi reforçada. A intenção seria facilitar através da produção de filmes e
seriados ocidentais o revanchismo contra a ameaça fundamentalista que promove o
terrorismo islâmico. Para se ter uma ideia, houve rumores na mídia internacional de que
pouco tempo após os atentados descritos acima, o presidente dos Estados Unidos teria
promovido um encontro a portas fechadas na Casa Branca com os principais diretores de
Hollywood para recomendar-lhes novos filmes que fossem de encontro às necessidades do
Estado de combater o terrorismo. Nas palavras de Raquel Cabral, doutora em Comunicação
Institucional pela Universitat Jaume I, Espanha:

[...] o governo Bush propunha um acordo com os cineastas norte-americanos,


para que produzissem filmes que pudessem suscitar três objetivos políticos
fundamentais: 1) divulgar o conceito de ―guerra ao terrorismo‖ proposto por
Bush, 2) mobilizar tropas americanas para a guerra e 3) levantar o moral e
incentivar o consumo do povo americano, em troca, teriam altos investimentos no
setor por parte do governo. (CABRAL, 2006, p.03)

Coincidentemente, o filme Cruzada (2005), dirigido por Ridley Scott, foi produzido
e lançado em meio a esse turbilhão de acontecimentos que previam não só a captura de
Osama Bin Laden, mas o esfacelamento da Al Qaeda, principal grupo terrorista naquele
contexto. Inúmeras críticas foram dirigidas ao cineasta e sua equipe através de sites
especializados em cinema, jornais e até mesmo em trabalhos acadêmicos, produzidos no
Brasil, por ele ter supostamente atendido ao apelo feito pelo governo estadunidense de
conferir um sentido propagandístico relacionando à guerra ao terror em sua obra.28
O longa-metragem conta a história de Balian (Orlando Bloom), um jovem ferreiro
francês, que após ter perdido sua esposa e filho, no ano de 1184, recebe a visita de um

28
O próprio texto de Raquel Cabral (2006), citado acima, pode ser tido como um desses trabalhos. Além
desse, outros dois artigos ilustram bem essa problemática. O primeiro deles é: Guerra na Mídia, assinado
por Ana Maria Bahiana (2001), publicado no site Observatório de Imprensa; e, Sob a Névoa da Guerra,
produzido por Sérgio Dávila, correspondente da Folha de S. Paulo, diretamente da Califórnia, em 2005.

66
homem chamado Godfrey de Ibelin (Liam Neeson) que se apresenta como seu pai e o
convida a unir-se a ele no Oriente Médio, com o objetivo de zelar pela paz em Jerusalém. O
jovem hesita em um primeiro momento, mas logo muda de ideia e se junta à caravana que
segue rumo à Terra Santa. No meio do caminho, eles são atacados e Godfrey é gravemente
ferido. Percebendo a proximidade de sua morte, ele pede ao filho que dê continuidade ao
seu trabalho, enquanto ―barão‖, a serviço do rei de Jerusalém, Balduíno IV (Edward
Norton), que também estava muito doente, mas há algum tempo celebrara um acordo de
paz com o líder muçulmano Saladino (Ghassan Massoud), o que garantiu certa estabilidade
entre os povos dessas duas religiões.
Embora o filme apresente Saladino, personagem que de fato existiu como um
exímio estadista, sensível às demandas dos cristãos, inverte uma série de dicotomias
relativas ao desenvolvimento histórico do Oriente Médio em relação ao Ocidente. Um bom
exemplo disso pode ser verificado quando Balian assume a função de ―barão‖ em Ibelin,
nome dado ao aldeamento cristão, e, em função do desenvolvimento deste ensina os árabes
à técnica de extração de água do solo para utilizá-la de forma mais racional. Nesse caso, há
uma inversão orientalista que tenta colocar em evidencia para o público a superioridade
técnica e racional do povo europeu em relação aos orientais.
Na cena descrita acima, o argumento pode ser facilmente desconstruído, uma vez
que, historicamente os povos árabes foram tecnicamente superiores aos ocidentais. E, no
que diz respeito à produção, armazenamento e utilização da água foi o Oriente quem, na
verdade, ensinou à Europa, ou, se preferir, o Ocidente, como conquistá-la e administrá-la de
forma mais racional. Logo, o discurso fílmico também está atrelado à tradição eurocêntrica
que tende a minimizar o papel de povos tidos como inferiores – ou intencionalmente
inferiorizados – para por em evidencia o excepcionalismo europeu. Com isso, não estamos
afirmando que o diretor estivesse realmente fazendo alusão direta à guerra, mas talvez
houvesse, em alguma medida se inspirado nela a fim de prender suas audiências.
Outro filme, O Príncipe do Deserto (2011), coordenado pelo diretor francês Jean-
Jacques Annaud, mais popularmente conhecido por dirigir O Nome da Rosa (1986) e Sete
Anos no Tibet (1997), conta a história da descoberta do petróleo, nos anos 1930, no Oriente
Médio. Aqui, mais uma vez, cenários que aludem ao orientalismo imagético são
contundentes através da representação do deserto, mulheres trajando a abaya29 e dois
sultões com visões de mundo antagônicas devido ao dinheiro oriundo da venda do petróleo

29
Vestimenta negra geralmente usada pelas mulheres que as cobre da cabeça aos pés. O intuito, nesse
caso, é preservar sua beleza para o marido.

67
e a influência da cultura ocidental em seus territórios. O Islã nem sempre é visto dentro do
contexto do filme como uma religião capaz de emancipar o ser humano, ao contrário, está
na maioria dos casos associado à ideia de estagnação cultural e atraso em relação ao
Ocidente. Cabe lembrar que, esse filme foi gravado, em 2010, em regiões da Tunísia e
também no Qatar e que esse período coincidiu com a Primavera Árabe.
A degradação da imagem do Islã também se faz presente em uma onda de grande
escala de filmes (True Lies, Karabell entre outros) que representam os muçulmanos como
terroristas clássicos, cujo principal objetivo é

[...] primeiro demonizar e desumanizar os muçulmanos, segundo, para mostrar


um ocidental intrépido, geralmente um herói americano, para matá-los. Delta
Force (1985) começou a tendência, mas foi levado adiante na saga Indiana Jones,
e inúmeras séries de televisão em que os muçulmanos são uniformemente
representados como maus, violentos, e, acima de tudo, eminentemente assassinos
(SAID, 1997, p.300-308) (Tradução livre).

Além da combinação de hostilidade e reducionismo, como já comentamos, há uma


tentativa de exagerar e inflar o extremismo islâmico dentro mundo muçulmano. Said (1997)
retoma o ensaio “The Politics of Dispossession” que ao invés do fundamentalismo, é o
secularismo que assegurava a união das sociedades muçulmanas árabes, em contraposição
ao exagero da mídia americana sensacionalista cujas ideias foram tomadas de publicitários
carreiristas anti-islâmicos. Para confirmar seus argumentos Said cita o trabalho de Oliver
Roy que descreve a derrota dos islamitas em relação à maioria dos muçulmanos moderados.
Insistir nesses estereótipos, segundo Shaheen (2000), pode diminuir a autoestima dos povos
retratados, impactar em políticas públicas, ferir inocentes e encorajar a divisão entre os
povos.
De todo modo, não só filmes têm impactado o imaginário popular ocidental em
relação ao Islã e o Oriente Médio, mas também desenhos animados e jogos de videogame.
Isso pode ser verificado, por exemplo, através da animação Marinheiro Popeye, produzida
em 1937, pela Fleischer Studios. No episódio ―Popeye encontra Ali Babá e os 40 Ladrões‖,
o personagem principal – que representa a marinha norte-americana – deve salvar Olívia
Palito, sua namorada, que foi raptada por Brutos. Durante o cativeiro, Olívia é escravizada e
deve submeter-se a trabalhos domésticos. No cenário que alude ao covil dos bandidos
encontramos tesouros, comida farta e outros acessórios tipicamente orientalistas, como por
exemplo, um narguilé e um calabouço que nos transmite a ideia de um ambiente hostil e
despótico.

68
Popeye abastecendo o camelo

Popeye avança até a caverna em que Brutos está escondido montado em um camelo
– animal preferido pelos orientais para se locomoverem devido a sua resistência e
versatilidade – que tem suas corcovas abastecidas com ―gasolina‖. O cenário remete, mais
uma vez, ao deserto e a tonalidade avermelhada reforça a ideia de calor e aridez presentes
nessa região geográfica. Quando Popeye chega ao local indicado, tenta abrir a entrada da
caverna com algumas palavras mágicas, sem êxito, maçarica a porta usando seu cachimbo
e, como de costume, come seu famoso espinafre e derrota Brutus.
Dentro do universo dos games a representação de árabes muçulmanos geralmente
aparece contextualizada com a narrativa mais ampla que abrange o Islã e o modo como ele
aparece em noticiários. Dessa forma, ―o mundo árabe – vinte e dois países, cenário de
diversas regiões do mundo, uma multidão de grupos étnicos e linguísticos e centenas de
anos de história – é reduzido a uma imagem simplista‖ (WINFIELD; KARAMAN, 2002,
p.132 apud SISLER, 2008) (Tradução livre).
Diversos jogos do gênero tiro em primeira pessoa (FPS) tendem a apresentar como
alvos muçulmanos que ora são caracterizados como terroristas portando fuzis ou ainda,
como inimigos sem rosto. Ameaças que merecem ser eliminadas (SISLER, 2008). Um caso
particularmente interessante no que diz respeito ao universo dos games está relacionado ao
jogo Assassin‟s Creed, do gênero action-adventure30, lançado em 2007, pela Ubisoft
Montreal. Nele, o personagem principal é um membro da Seita Ismaelita, um Assassino,
portanto, um oriental, e seus principais inimigos são templários. O jogo é ambientado
durante a terceira Cruzada. Apesar disso, lugares comuns são evocados e imagens como a
do harém e da violência muçulmana são constantemente evocadas (SILVA, 2016).
Como vimos, diversas produções contemporâneas tendem a retomar através de seus
textos o discurso orientalista, especialmente, após os atentados ocorridos no dia Onze de
30
Ação-aventura, em tradução livre.

69
Setembro nos Estados Unidos. É função do historiador analisar essas representações sobre o
Outro árabe-muçulmano problematizando-as dentro da lógica das disputas de poder da
sociedade globalizada para que, desse modo, as estratégias narrativas que tendem a
desvalorizar a alteridade de diferentes povos e culturas sejam amenizadas.
Por fim, é preciso estar aberto ao diálogo com outros campos de conhecimento
como a Comunicação Social, pois cada meio utilizado para propagar o conteúdo em questão
traz consigo diferentes especificações técnico-estéticas que devem ser tidas como
prioritárias pelo historiador, pois podem sinalizar novas possibilidades de investigação e
interação com o objeto.

Referências

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70
CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO E DESDOBRAMENTOS NA VIDA
UNIVERSITÁRIA NO SÉCULO XXI

Cláudia Simone Pereira Sarmento Quadros


Janice Machado Ribeiro Rodrigues

Resumo: O Brasil, a considerar a conformação do seu campo religioso, ainda hoje pode
ser considerado um país católico – censo 2010, mas é inegável, dada a história da
formação do seu povo, a mistura de raças o que classifica como um país pluricultural e
plurireligioso. Sendo assim, temos como tema da pesquisa ―O campo Religioso
Brasileiro e os desdobramentos na vida universitária no século XXI‖ onde se buscou
então conhecer o campo religioso brasileiro, a vida universitária e a religião dos
universitários realizando uma pesquisa bibliográfica e de campo, a qual teve como
instrumento de coleta de dados o questionário para a realização da mesma. Com isso, foi
possível compreender que a pluralidade, pode ser considerada uma característica
preponderante no campo religioso do país, inferindo-se que o mesmo se configura no
espaço universitário brasileiro. Pois, do ponto de vista cultural, as opções religiosas que
persistem na sociedade de um modo geral, existem também no interior da universidade.

Palavras-chaves: Campo Religioso Brasileiro. Religião, religiosidade dos universitários

Introdução
O campo religioso Brasileiro é caracterizado pelo crescente pluralismo, paralelo
a um enfraquecimento da hegemonia católica é um dos campos sociais mais ricos em
termos de criatividade e efervescência apresentando na sua complexidade e no seu
desenvolvimento acelerado acompanhando o ritmo de mudanças gerais que se dão nas
sociedades atuais.
A religião, presente na vida do ser humano ao longo de sua história, parte
importante da memória cultural e do desenvolvimento histórico de toda humanidade,
apresenta-se como um sistema de crenças e práticas em relação ao sagrado, que unem,
em uma mesma comunidade, todos que a ela aderem, enquanto a religiosidade pode ser
entendida como uma categoria no cerne de toda a sociologia da religião, como
postulado por Simmel, ou seja, um fundamento do comportamento do homem religioso
que dá sentido a todas as suas ações e emoções ( VANDENBERGHE, 2010). A
religiosidade, diferentemente da religião, é uma prática que implica uma visão pessoal,
ou seja, cada pessoa expressa a sua prática religiosa a partir de seu entendimento
próprio e age conforme aquilo que crê.
Na perspectiva da característica fluída da modernidade, cada pessoa elege suas
crenças, as quais são numerosas e podem mudar, de acordo com as circunstâncias
vividas. Nesse contexto, a religiosidade se apresenta como um espaço em que os

71
indivíduos podem encontrar um sentido em relação à sua realidade e necessidades
cotidianas, com suas práticas religiosas, normalmente, realizadas no âmbito pessoal ou
em comunidades. No entanto, também em relação às instituições ou Igrejas, percebe-se
uma grande margem de autonomia. Segundo Simmel (2010, p. 11), ―a religião
sobreviveu às religiões, tal como uma árvore sobrevive à colheita periódica de seus
frutos‖e, apesar de haver certo enfraquecimento da vida cristã na sociedade, em
decorrência da secularização, a religiosidade e a religião parecem cada vez mais vivas.
Quanto à estruturação, este artigo se articula em três momentos. O primeiro
momento versa sobre oCampo religioso brasileiro e desdobramentos na vida
universitária No segundo momento, são apresentados os resultados da pesquisa
empírica, desenvolvida com 430 universitários das diversas áreas do conhecimento
(humanas, exatas, biológicas e da saúde), e fundamentados na articulação lógica dos
dados quantitativos, respectivamente, a partir do questionário, servindo os mesmos
como base para a análise, sobres a religião dos universitários e a relação com o censo
2010 e por último as considerações finais.

Campo religioso brasileiro e desdobramentos na vida universitária


O Brasil, a considerar a conformação do seu campo religioso, ainda hoje, pode ser
considerado um país católico – censo 2010, mas é inegável, dada a história da formação
do seu povo, a mistura de raças, o que o classifica como um país pluricultural e
plurireligioso, pois é marcante a forte influência de vários povos, principalmente dos
africanos, num verdadeiro sincretismo, que segundo Libânio (2012, p. 183), é a
possibilidade das religiões se construírem ―individualmente com elementos religiosos de
diferentes origens, sem nenhuma preocupação com sua lógica e interna compatibilidade‖.
E esse jeito brasileiro de crer, que segundo Andrade (2009, p. 108), é um povo
extremamente religioso, não deixa de refletir no seu cotidiano, onde as ―crenças religiosas
constituem parte fundamental do ethos da cultura brasileira‖. Conseqüentemente, os
desdobramentos da vida religiosa, influenciam a universidade e, a vida universitária.
De acordo com Bourdieu (2005, p. 84):

72
O campo religioso tem por função especifica satisfazer um tipo particular de
interesse, isto é, o interesse religioso que leva os leigos a esperar certas
categorias de agentes que realizem ―ações mágicas e religiosas‖, ações
fundamentalmente ―mundanas‖ e práticas, realizadas ―a fim de que tudo corra
bem para ti que vivas muito tempo na terra.

Repensar o campo religioso brasileiro, e sua instituição como tal, remete-nos a


chegada portuguesa nas terras da América do Sul, delimitadas mais tarde como o Brasil,
englobando tudo o que nela existia e, nisso temos que dar um realce muito importante aos
povos indígenas que aqui habitavam. Essa conquista, que se estabeleceu a partir de então,
aconteceu sob a influência da Contra-Reforma, movimento europeu da retomada da
hegemonia da Igreja Católica, perdida com a Reforma Protestante, no século XVI. Dentro
das iniciativas que se estabeleceram novas organizações, como a Companhia de Jesus- os
Jesuítas foram estratégias na luta pela conversão dos fieis das monarquias ibéricas. E
assim, podemos dizer que iniciou a formação do campo religioso, no Brasil, o qual já
desponta com um tom de imposição e conflito, já tão difundido sobre a catequese
indígena, na busca de salvação das almas desse povo, o que mais tarde se estende aos
africanos, aqui aportados, sob o desígnio do trabalho escravo. Portanto, o início da
história não aconteceu em clima muito amistoso. Onde a violência, seja ela simbólica ou
física, foi o instrumento de aculturação e consequentemente da evangelização.
Três séculos mais tarde, com a chegada da Corte Portuguesa, os portos
brasileiros também se abrem para a chegada dos protestantes. Nisso, a pluridade do
cristianismo já estabelecido, a contar com a hegemonia da Igreja Católica, religião oficial
até a Proclamação da República -1889, por quase quatrocentos anos de exclusivismos, foi
sendo permeada pela crença popular dos povos que foram se configurando em povo
brasileiro na miscigenação das raças, os indígenas e os povos aportados, num viçoso
sincretismo religioso, quase sempre abarcado pelo catolicismo. É esse, portanto o pano de
fundo, que se estende no resgate histórico da formação do campo religioso do país.
No entanto, a construção da identidade do povo, se deu num cenário muito
mais controverso, no bojo do protestantismo, a que se considerar os luteranos,
congregacionais, presbiterianos, metodistas, batistas e episcopais. E também, há que se
considerar os fiéis das Testemunhas de Jeová, os Adventistas do 7° Dia, e ainda dos
Mórmons, todos eles enquadrados no campo cristão protestante. E aqui não se pode
deixar de sublinhar, as implicações de ruptura do pentecostalismo brasileiro, que por
sua vez deu origem a Assembléia de Deus, Brasil para Cristo, Evangelho Quadrangular
e, tantas outras designações pelo Brasil a fora.

73
Nesse contexto, também se assinalam os chamados neopentecostais, os quais
agrupam fieis das igrejas Universal do Reino de Deus e Deus é Amor, e as do universo das
religiões afro-brasileiras, como as do Candomblé, Xangô, Casa de Mina, Umbanda e, tantas
outras. Tem-se que registrar também grupos espíritas como os kardecistas. E os grupos
étnicos minoritários: os judeus, muçulmanos, cristãos ortodoxos, budistas, xintoístas e
confucionistas, bem como as religiões orientais e ainda os Novos Movimentos Religiosos.
Pierucci (2004) e Guerriero (2004) reafirmam a marcante e indiscutível
hegemonia católica no Brasil, que ainda é apontado, como uma das maiores nações
católica do mundo. Mas que possui um campo religioso dinâmico, complexo e plural,
como visto. E conforme observa Sanchez (2010) o pluralismo do campo religioso ―é
reflexo de dois fatores: a existência da diversidade e a reivindicação da liberdade
religiosa. Características essas já assinaladas por Hervieu-Léger (2005) como inerentes
à religiosidade na modernidade, onde a individualização e subjetivação das crenças,
marca singularmente, o aparecimento da multiplicidade do campo religioso.
Mariano (2013 p. 237) observa que ―a garantia da liberdade religiosa tende a
resultar na pluralização de grupos religiosos e no acirramento da competição inter-
religiosa por sobrevivência e por mercado‖. Tais traços denotam a complexidade do
campo religioso brasileiro e sua dinamicidade, pois, neste contexto, enquanto um
sistema cultural, a religiosidade brasileira esteve sempre em movimento, se adaptando e
modificando, possibilitando às pessoas transitarem entre as várias manifestações
religiosas e assim resignificarem sua religiosidade.
Durkheim (2003) reconhece a religião como um aspecto essencial e
permanente da existência humana e que, enquanto manifestação natural da existência
humana, todas as religiões são instrutivas, sem exceção, pois todas exprimem o homem
a sua maneira e podem assim ajudar a compreender melhor esse aspecto de nossa
natureza. Ainda de acordo com esse teórico a religião seria uma espécie de especulação
sobre tudo o que escapa à ciência, e de maneira mais geral ao pensamento claro. Neste
sentido, o conceito de religião durkheiminiano, serve para designar o campo religioso
brasileiro e isso reforça, portanto, sua importância, para que assim, possa se
compreender o comportamento dos brasileiros, que como já disse Maristela Oliveira de
Andrade é naturalmente religioso. A qual assinala também, que mesmo com a
modernidade, a religião não desaparece do interesse científico, ou seja, se mantêm viva,
nos estudos de tantos e renomados teóricos, inclusive de Durkheim.

74
Refletindo sobre os dados dos últimos censos, é possível perceber que apesar
da diminuição no índice de brasileiros que se declararam católicos ainda é nítida a
soberania dessa religião sobre as demais, pois se no ano 2000, 73,6% eram católicos,
em 2010 esse número diminuiu para 64,6%, o que confirma ainda a hegemonia. E as
projeções estatísticas indicam que até 2030 os católicos terão um índice menor que 50%
e em 2040, poderá, até mesmo, ocorrer um empate com o grupo evangélico (2012).
Mas, mesmo assim o Brasil se caracterizará pela pertença, majoritariamente, cristã.
Pois, conforme o Censo Demográfico (2010) numa população de 190,7 milhões de
pessoas, os católico-romanos somam 123,2 milhões e os evangélicos 42,2 milhões, dos
quais 25,3 milhões de origem pentecostal.
Os grupos neopentecostais e pentecostais representam hoje um grupo religioso
no Brasil importantíssimo na produção de hábitos e costumes. Dados do Censo
Demográfico (2010) indica que os evangélicos pentecostais representam 22,2% da
população brasileira.
Apesar do campo religioso brasileiro se encontrar profundamente marcado pela
matriz judaico-cristã, já não se define mais a partir do Catolicismo e, foi com base nesta
realidade que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN 9394/96,
rejeitando o proselitismo, abriu o espaço necessário para que as diferentes religiões
possam ser ouvidas nas instituições escolares, apontando assim para um possível diálogo
inter-religioso e para a vivência e respeito do pluralismo religioso também dentro das
escolas. ―Pluralismo‖, segundo Catão (1993, p. 6), ―consiste propriamente em encarar a
aceitação do outro e a diversidade cultural como um dado positivo de cultura e de
civilização‖. Pluralismo que exige das pessoas aceitação e tolerância para com a
diversidade de raças, culturas, ideologias e religiões. Entretanto, de acordo com Cunha
(2009, p. 409), a ― ação religiosa sobre os sistemas de ensino, especificamente de parte da
Igreja Católica, tem logrado conquistas adicionais‖. O Ensino Religioso, como
componente curricular, é uma disciplina de oferta obrigatória nas escolas públicas de
ensino fundamental e, torna-se, frequentemente, obrigatório para os alunos, na prática, a
despeito da cláusula facultativa.
Schartzman, Bomeny e Costa (1984), também esclarecem que, foi na área
educacional brasileira que a parceria entre Estado e Igreja Católica se mostrou mais
firme, mesmo com a implantação do caráter laico do Estado desde a Proclamação da
República, se deu mesmo assim a continuidade da sua hegemonia em relação à
educação, em especial ao ensino superior, influenciando a formação da elite brasileira.

75
Durham e Sampaio (2003, p. 6) descrevem o resultado desta disputa entre
Estado e Igreja pelo controle das Universidades no Brasil:

A história da criação da universidade no Brasil traduz bem a tentativa do


Ministro da Educação de acomodar os diferentes atores em cena. A
universidade a ser estabelecida pelo governo central no Rio de Janeiro
deveria ficar sob controle e supervisão estritos da Igreja, enquanto que a
Universidade do Distrito Federal, sob a liderança de Anísio Teixeira e
proteção do governo local, pretendia ser um centro de pensamento libertário e
leigo. A ambigüidade que por ventura existisse no governo Vargas entre suas
facções à direita e à esquerda desapareceram em 1935 na repressão a uma
insurreição comunista em alguns quartéis, e pouco depois a Universidade do
Distrito Federal foi fechada.
Por outro lado, a Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Brasil,
criada em 1939, seria constituída sob forte influência católica, mas não a
ponto de satisfazer às aspirações da Igreja, que buscava uma universidade sob
seu estrito controle. Derrotada em suas pretensões de controle do ensino
público, a Igreja Católica tomou a iniciativa de criação de estabelecimentos
católicos privados.

Contudo, vê-se então que a concretização do sonho da universidade no Brasil, que


só se deu em plena. Republica, em um Estado declaradamente laico, como um projeto laico,
se tornou fundamental para concretização da modernidade no país, mesmo que ainda sob o
modelo positivista francês (Darcy Ribeiro); onde as questões religiosas não contavam desse
projeto, que tinha como objetivo formar profissionais para a atuarem na sociedade em
processo de industrialização. E aqui vale uma ressalva, as universidades católicas, vieram
concorrer com esse mercado, mas não dominam no campo do ensino superior.
E se é a pluralidade, pode ser considerada uma característica preponderante no
campo religioso do país, pode-se inferir que o mesmo se configura no espaço
universitário brasileiro. Pois, do ponto de vista cultural, as opções religiosas que
persistem na sociedade de um modo geral, por conseguinte existem também no interior
da universidade. Onde persiste, um imaginário consolidado por essas razões históricas
de que a universidade é necessariamente um espaço laico, enquanto espaço público,
embora no campo privado a pessoa possa ser crente, ao menos um crente por tradição.
Há, portanto que assinalar, quanto aos desdobramentos do campo religioso na
universidade, uma perceptível imbricação do público laico e a intimidade–pessoal e/ou
familiar, religiosa, que caracteriza a religiosidade especificadamente nesse espaço.

A pesquisa
Este trabalho teve como objetivo conhecer o campo religioso brasileiro, a
religião dos acadêmicos e a influência da vida universitária. Foi realizada uma pesquisa

76
bibliográfica e de campo, a qual teve como instrumento de coleta de dados o
questionário.
Na pesquisa bibliográfica, foram priorizados alguns autores, dentre eles:
Hervieu-Léger ( 2005), Berger ( 1985; 2001), Taylor ( 2010), Simmel ( 2010), Pierucci
( 2005)Ribeiro ( 2009) A pesquisa de campo serviu-se de questionário. O espaço
delimitado para a realização do estudo foi o campus da Unimontes, da cidade de Montes
Claros – Minas Gerais. Participaram do estudo 430 acadêmicos matriculados e
frequentes em cursos dos Centros de Ciências Exatas e Tecnológicas, Ciências
Humanas e Ciências Biológicas e da Saúde. Optou-se por utilizar uma amostra de 430
pessoas, considerando a aplicação de 143 questionários no CCET, 143 no CCH, e 144
no CCBS. Portanto no caso da amostra pelos três centros, ela passa a ser estratificada
não proporcional, pois o tamanho da amostra dentro de cada grupo não é proporcional
ao seu universo (AAKER, KUMAR, DAY, 2001).
O questionário utilizado para coleta de dados na pesquisa de campo constou de
perguntas fechadas, haja vista que esse tipo de instrumento permite uma resposta
objetiva entre o entrevistado e o entrevistador. Vale ressaltar, que o questionário
utilizado foi uma adaptação do utilizado por Jorge Claudio Ribeiro (2009), autorizado
pelo mesmo.O primeiro bloco visou a caracterização dos entrevistados, tais como:
informações socioeconômicas, sexo, idade, estado civil, número de filhos, quantidade
de bens em casa, grau de instrução dos pais e renda familiar. Já o segundo bloco
contemplou questões com a finalidade de obter informações quanto ao construto da
pesquisa. Os dados da pesquisa foram processados estatisticamente por meio do
software Statistical Package for Social Sciences (SPSS), 17.0.

Análise quantitativa
Os dados coletados foram organizados por grupos de respostas, apresentados em
tabelas e analisados com a utilização da estatística descritiva. Foram observadas as
características demográficas dos sujeitos que, efetivamente, participaram da pesquisa,
em relação ao sexo, idade, estado civil.
O sexo feminino (56,7%) foi o predominante entre os respondentes, cujo
resultado vai ao encontro dos dados do INEP (estatísticas do senso da educação
superior), que registra que as mulheres são a maioria no número de matrículas dos IES
(Instituto de Ensino Superior) e que têm rendimento melhor que os homens, ao longo de
sua formação superior.

77
Quanto à faixa etáriapredominou a participação na pesquisa dos universitários com
idade entre 19 e 29 anos. De acordo com Cury (2013), diferentemente do que acontecia há
algumas décadas, atualmente existe uma possibilidade maior de inserção de jovens no
ensino superior. Os universitários que responderam aos questionários, estão distribuídos em
16 cursos do Centro de Ciências Humanas (33,3%), Centro de Ciências Exatas e
Tecnológicas (33,3%) e do Centro de Ciências Biológicas e de Saúde (33,4%).
Dados sobre a renda dos universitários que participaram da pesquisa indicam que a
maioria deles (50,7%) apresenta uma renda familiar entre um e dois salários mínimos,
resultado este que espelha a realidade da sociedade brasileira, na qual, de acordo com Bittar
et al. (2008), 50% dos estudantes possuem renda familiar de até três salários mínimos.

Religião atual dos Universitários


No Brasil, de acordo com Pierucci (2005), a separação entre Estado e Igreja
estabeleceu a concorrência entre as organizações religiosas, e com o advento da
República, a liberdade de pensamento, de reunião e de expressão coletiva, representou o
começo de uma expansão organizacional no campo religioso nacional. No contexto de
laicização e secularização do Estado, surge por volta da década de 1970, o movimento
neopentecostal. Esse movimento refletirá ―os efeitos dinamizadores que a liberdade de
expressão religiosa tem trazido para o campo das religiosidades quando elas se põem
em livre concorrência‖ (PIERUCCI, 2005, p.302).
Essa liberdade é expressa nos resultados da pesquisa realizada com os universitários
quando investigarmos a religião atual dos mesmos e comprovamos que 62,1% se
declararam católicos, 9,1% evangélicos pentecostais, 8,4% protestantes tradicionais e 3,5%
espíritas Kardecistas. A investigação do perfil religioso dos sujeitos deste estudo, no que
diz respeito ao tipo de religião, foi condizente com os dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2012) uma vez que 86,8% dos brasileiros se autodeclararam
cristãos, sendo que 64,6% na vertente católica e 22,2% na vertente evangélica.
Neste estudo, ao realizar a comparação de dados entre a religião dos pais e a
religião atual dos filhos, encontramos mais genitores que filhos católicos, o que vai ao
encontro do resultado da pesquisa Jovens do Rio, que evidenciou que nem sempre existe a
transferência da religião dos pais para os filhos. O grande índice de universitários que
informaram ―acreditar em Deus, mas não ter religião (6,5%), assim como os que se
declararam ateu/ateia (3,7%) ou agnóstico (a) (0,9%) indica que aqueles que não seguem
a religião católica dos pais nem sempre buscam uma religião institucional, indicando

78
ainda que na universidade, assim como fora dela, existe um campo religioso plural
intrafamiliar e uma crescente ―presença de rearranjos entre crenças e ritos sem fidelidades
institucionais‖, aspecto marcante da secularização (NOVAES, 2004).
Essa perda do monopólio das famílias na transmissão de um legado religioso é
reflexo da modernidade, época em que eclodem centelhas de fé de toda espécie,
divulgadas e proliferadas por toda parte. A religiosidade, sofrendo as influências da
secularização, fez com que a fé deixasse de pertencer ao clã familiar e passasse a
circular pelo domínio público com mais liberdade.

Considerações Finais
Pensar as transformações pelas quais passou o campo religioso brasileiro é pensar,
antes de tudo, na extrema complexidade do universo de crenças entre nós e asconclusões
aqui apresentadas se delineiam no amplo e contraditório do início do século XXI, cenário
esse marcado pela modernidade, onde têm se acentuado o campo de divergência e
conseqüente violência, sobretudo no aspecto religioso, levando o mundo a preocupar-se
com tais questões. E foi nessa perspectiva que se buscou conhecer o campo religioso
brasileiro, a religião dos acadêmicos e a influência da vida universitária na religião.
Observou-se ainda a relação do universitário com a religião e sua religiosidade, marcada
por um ambiente predominado pela racionalização, autonomia e liberdade, que muito
influenciam as questões comportamentais. E, o problema de pesquisa que se colocou
respondeu numa leitura sistemática dos dados levantados que 62,1% se declararam
católicos, 9,1% evangélicos pentecostais, 8,4% protestantes tradicionais e 3,5% espíritas
Kardecistas. A investigação do perfil religioso dos sujeitos deste estudo, no que diz respeito
ao tipo de religião, foi condizente com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2012) uma vez que 86,8% dos brasileiros se autodeclararam cristãos,
sendo que 64,6% na vertente católica e 22,2% na vertente evangélica.
Ademais, é importante observar que a tendência geral da individualização e
subjetivação das crenças religiosas na modernidade e, consequentemente, da
religiosidade, é inegável na sociedade do século XXI, em permanente transformação, e
influenciada, decisivamente, pela secularização no mundo ocidental, não no sentido de
negá-las, mas de recompô-las nesse cenário. E discutir a religião e a religiosidade dos
acadêmicos, o primeiro trabalho nessa perspectiva na UNIMONTES, apresenta aqui a
possibilidade de um novo olhar, capaz de ressignificar, com maior compreensão, os
embates vividos por eles, nesses tempos marcados por significativa exclusão e

79
violência, em nome de visões exclusivistas. E que, acima de tudo, este texto seja
impulsionador e inspirador de novas pesquisas.

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80
PROPOSTAS DE UM DEPUTADO REVOLUCIONÁRIO: A ATUAÇÃO
PARLAMENTAR DE CARLOS MARIGHELLA NA ASSEMBLÉIA
NACIONAL CONSTITUINTE DE 1946

Danyele Nayara Santos Dias;


Laurindo Mékie Pereira

Resumo: Este texto é parte de uma pesquisa maior de trabalho de pós-graduação que
pretende analisar o pensamento e a trajetória política de Carlos Marighella a partir de um
diálogo entre o referencial teórico gramsciano e os aportes da nova história política.
Marighella ficou mais conhecido na história política do Brasil, como o inimigo número
um da ditadura civil-militar. Entretanto, o período no qual as condições políticas lhe
permitiram uma participação legal, não clandestina, é pouco abordado pela historiografia.
Nesta perspectiva, o presente trabalho toma como objeto de estudo o Marighella
parlamentar, eleito pelo Partido Comunista em 1946. Em suas propostas para a nova
constituição, discursava contra o fascismo, a favor da democracia e dos trabalhadores,
partindo do viés de um Estado socialista, propostas revolucionárias dentro da legalidade
institucional. Como já assimilado, toma-se como referencial teórico as análises de
Antônio Gramsci no tocante à função intelectual de difundir ideologias e ajudar as classes
a se organizarem politicamente, a qual era exercida também por Marighella, além de
outros textos da nova história política. Para tanto, as fontes utilizadas nesta pesquisa,
constituem-se dos pronunciamentos efetuados por ele nos debates proferidos na
Assembleia Nacional Constituinte de 1946, encontrados no arquivo digital da Câmara dos
Deputados, arquivo intitulado ―Anais da Assembleia Constituinte, 1946‖. Além disso,
utilizam-se como fontes complementares algumas edições da Revista Problemas,
periódico dirigido por Marighella e disponibilizado no ―Arquivo Marxista da Internet‖.
Por meio dessa pesquisa, pode-se perceber ao menos de modo parcial, que, através de
seus pronunciamentos durante a constituinte de 1946, Carlos Marighella aparece como
um intelectual engajado, preocupado com a democracia que retornava à cena política
brasileira, e, sobretudo, com as questões atinentes aos trabalhadores, segmento do qual ele
se colocava como defensor e representante.

Palavras-Chave: História Política; Carlos Marighella; Constituinte de 1946.

Introdução
Este texto é parte de uma pesquisa maior de trabalho de pós-graduação que
pretende analisar a trajetória política de Carlos Marighella a partir de um diálogo entre o
referencial teórico gramsciano e os aportes da nova história política, com ênfase na
cultura política. Nessa perspectiva teórica, identificamos Marighella como um intelectual
de esquerda, um agente organizador de determinada classe social.
Segundo Antônio Gramsci (1989), todos os indivíduos são, potencialmente,
intelectuais, entretanto nem todos desempenham esta função na sociedade. Essa função é
a de agente organizador dos grupos sociais, aquele que elabora e/ou difunde determinada
concepção do mundo e ajuda as classes a se organizarem politicamente. A partir desse
ponto de vista, Marighella foi um intelectual de esquerda, que através da sua atuação no

81
partido comunista enquanto representante do povo, ou através de seus escritos, organizava
o seguimento social que defendia e representava: o dos trabalhadores.
Sabe-se que Carlos Marighella ficou mais conhecido na história do Brasil recente,
como o inimigo número um da ditadura civil-militar, com sua atuação na ANL, Aliança
Libertadora Nacional, e sua defesa da guerrilha urbana, até sua morte em 1969 pelas
forças militares na cidade de São Paulo.
De fato, com o fim da ditadura de 1964, uma farta literatura sobre a esquerda
política passa a ser elaborada, tanto no plano das memórias, quanto na historiografia, e,
nesse contexto, a figura de Carlos Marighella foi evocada através de inúmeros
depoimentos e narrativas, inclusive de companheiros de militância como o historiador
Jacob Gorender e o jornalista Frei Betto.
Por outro lado, o período da vida deste personagem no qual as condições políticas
lhe permitiram uma participação legal, fora da clandestinidade, parece ter sido deixado de
lado pela historiografia. Nesta perspectiva, o presente trabalho pretende analisar um
pouco do outro Marighella: o revolucionário que existia por trás do parlamentar, com suas
propostas para a nova constituição do Brasil a partir de 1946 nas quais pensava a questão
nacional a partir do partido comunista, discursava contra o fascismo e a favor da
democracia e dos trabalhadores. Desta forma, o foco desta pesquisa é, pois, o Marighella
deputado constituinte, político com mandato popular eleito em 1946, que trazia suas
propostas revolucionárias dentro da legalidade institucional.
Para tanto, as fontes utilizadas para este estudo, constituem-se dos
pronunciamentos efetuados por nosso objeto de pesquisa, Carlos Marighella, nos debates
proferidos na Assembleia Nacional Constituinte de 1946, pós Getúlio Vargas e já no
governo Dutra. Encontramos esses discursos no arquivo digital da Câmara dos
Deputados, arquivo intitulado ―Anais da Assembleia Constituinte, 1946‖. Esse arquivo foi
publicado pela Imprensa nacional no ano de 1947. 31Além disso, utilizamos como fontes
complementares algumas edições da Revista Problemas, disponibilizada no ―Arquivo
Marxista da Internet- Imprensa Proletária: Revista Mensal de Cultura política". Este
periódico estava sob a direção de Carlos Marighella. A revista possui 73 cadernos, e
circulou de agosto de 1947 a junho de 1956. Na maioria das edições existem artigos de
Marighella, nos quais ele falava de temas como o Estado, a religião e a família, sobre o
imperialismo norte-americano, enfim, propostas de nação para o Brasil.

31
Ver em : < http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/12596#>

82
Nosso objetivo ao utilizar essas fontes, é de evidenciar, sobretudo, a atuação de
Marighella enquanto intelectual de esquerda, através de seus discursos e atuação
parlamentar em 1946, atuando na legalidade. Além disso, ao utilizarmos também a revista
Problemas, destacamos, em segundo plano, suas inquietações e preocupações para com a
democracia brasileira, mesmo com a ameaça e oposição constante ao partido comunista.

O homem atrás do mito- aspectos biográficos de Carlos Marighella


Carlos Marighella nasceu em Salvador, Bahia, em 5 de dezembro de 1911. Seu pai
era o imigrante italiano Augusto Marighella e sua mãe a baiana Maria Rita, descendente
de negros haussás, escravos africanos trazidos do Sudão. Mesmo com as dificuldades, os
pais não pouparam esforços para que Carlos ingressasse, aos 18 anos, no curso de
Engenharia Civil da antiga Escola Politécnica da Bahia. (BETTO, 1982. pg 13) Para Frei
Betto, o privilégio da carreira universitária não apagou, em Carlos, as marcas de sua
origem proletária e as idéias socialistas que recebera do pai. Conforme este autor:

Sua sensibilidade trazia da infância as histórias de trabalhadores


desempregados pelo rápido avanço tecnológico da industrialização europeia e
dos escravos refugiados em quilombos nordestinos. O gosto amargo da
injustiça queima as entranhas, sangra o coração, exige o conduto político para
não perder-se na revolta individual ou na abnegada fatalidade do destino. Ainda
estudante, Marighella ingressa no PCB (Partido Comunista do Brasil).
(BETTO, 1982. pg. 14)

Já em 1932, já libertado, prosseguiria na militância política, interrompendo os


estudos universitários deslocando-se para o Rio de Janeiro e dedicando-se exclusivamente
ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Diante da necessidade de assegurar a ortodoxia
stalinista, o Comitê Central incumbe Marighella de editar a revista Problemas. (NÓVOA;
NOVA. 1999. pg. 47)
Em 1º de maio de 1936, nas manifestações dos trabalhadores paulistas, Carlos
Marighella foi novamente preso, e sofreu tortura durante vinte e três dias. Após um ano de
prisão, a anistia de 1937 veio libertá-lo. Segundo Frei Betto, a implantação do Estado
Novo, consolidando a ditadura de Getúlio Vargas, o colocou na clandestinidade. Porém,
mesmo com o risco de prisão, o militante comunista mobiliza os trabalhadores paulistas
contra o avanço do nazi-fascismo. (BETTO, 1982. pgs. 17,18)
Em 1939, foi mais uma vez torturado pela Delegacia de Ordem Política e Social
(DOPS) de São Paulo e recolhido aos presídios de Fernando de Noronha e Ilha Grande
pelo seis anos seguintes. (BETTO, 1982. pgs 18.19). Em abril de 1945 ele foi anistiado,

83
participando do processo de redemocratização do país e da reorganização do Partido
Comunista na legalidade.
Assim, com a deposição de Vargas e convocadas eleições gerais, foi eleito
deputado federal constituinte pelo estado da Bahia. Conforme Frei Betto, ao inaugurar-se
a Constituinte, em 1946, o nome de Carlos Marighella figurava como o segundo orador
inscrito e, na elaboração da nova carta constitucional, ele se destaca como um dos
principais autores do capítulo sobre liberdade e garantias individuais. Eleito quarto
secretário da mesa da Assembleia, em menos de dois anos pronuncia 195 discursos, o que
levaria o general Euclydes Figueiredo — pai do general João Baptista Figueiredo — a
elogiá-lo por sua atuação na Constituinte. (BETTO, 1982. pgs. 19-20).
Porém, no governo Dutra (1946-1951) com a repressão desencadeada contra os
comunistas, ele foi obrigado a retornar à clandestinidade em 1948, condição em que
permaneceria por mais de duas décadas, até seu assassinato.
De fato, a partir da ditadura de 1964, com o endurecimento do regime a partir de
1968, Marighella passou a ser apontado como inimigo público número um. Como
consequência, na noite de 4 de novembro de 1969 , surpreendido por uma emboscada na
alameda Casa Branca, na capital paulista, Carlos Marighella foi morto pelos agentes do
32
DOPS sob a chefia do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Dadas essas informações
biográficas, passaremos para o tópico subsequente, em que iniciamos o debate teórico que
sustenta esta pesquisa.

Marighella- um intelectual orgânico de esquerda


A respeito do papel dos intelectuais, a definição de Antônio Gramsci é ampliada.
Intelectual é o agente organizador das classes, ajudando-as a se expressarem
politicamente. Desta forma, eles são fundamentais a qualquer organização.
Para Gramsci, os intelectuais constituem, portanto, um segmento, mas não uma
classe. (GRAMSCI, 2004, pg. 64). Segundo Portelli, em Gramsci, a organicidade da
relação entre os intelectuais e a classe que eles representam não é mecânica: o intelectual
desfruta de uma autonomia relativa em relação à estrutura socioeconômica. (PORTELLI,
2002. pg. 110). Este autor ainda coloca que é justamente essa margem de autonomia que
lhes permite agir como formuladores e organizadores do consenso social.

32
As informações colocadas acima pertencem à biografia mais ampla de Carlos Marighella, informações
obtidas em maior parte, no dossiê sobre Marighella presente nas obras Marighella, o guerrilheiro que
incendiou o mundo, de Mário Magalhães, e Batismo de Sangue, guerrilha e morte de Carlos Marighella,
de Frei Betto.

84
A questão dos intelectuais e sua importância dentro do enfoque gramsciano está
diretamente relacionada com a centralidade do conceito de hegemonia. Em síntese, essa
se define como a direção moral e intelectual que uma classe, fração ou aliança de classes,
ou partidos políticos, exerce sobre as demais classes. Esta hegemonia é construída a partir
da sociedade civil e de suas instituições. (GRAMSCI, 1976, pg. 96) A sociedade civil
seria o espaço privilegiado onde essas classes exercem a hegemonia lutando para que seus
projetos se tornem universais através da construção de um consenso. Logo, para se obter
hegemonia, é preciso construir um consenso. (COUTINHO, 1989. pg. 127) E é nesse
terreno em que operam os intelectuais.
Elencadas estas questões consideramos que Carlos Marighella é o típico
intelectual orgânico gramsciano. A partir de Marighella, seus eleitores passam a ter voz
no parlamento. Marighella e o Partido Comunista naquele período intencionavam
contribuir com a carta magna, insistindo na consolidação da democracia e, dentre outras
coisas, tinham o objetivo de representar os trabalhadores assegurando seus direitos
obtidos ao longo dos anos anteriores.
De acordo com Gramsci, o partido político é a primeira célula na qual se
aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais.
(GRAMSCI, 1976, pg.6) Diante disso, é razoável inferir que, para este autor, o papel do
partido político deve ser coerente com a hegemonia dada a necessidade da criação de um
consenso. Logo, o partido passa a ser visto como um intelectual coletivo, fomentado por
uma vontade coletiva; uma organização, sobretudo que deve buscar primeiramente o
consenso, difundir a hegemonia, para também conquistar a cultura. Assim, o próprio
Partido Comunista é também um intelectual orgânico.
Neste sentido, pode-se dizer que o discurso de Marighella na Assembléia
constituinte de 1946, e também seus escritos na Revista Problemas, fazem parte de uma
ideologia orgânica porque faz sentido no campo da experiência. Experiência dos
trabalhadores nos sindicatos, experiência da classe ao qual representava.

Um deputado atuante e irreverente – a participação de Carlos Marighella na


Assembleia Nacional Constituinte de 1946
O partido de Carlos Marighella, o PCB, não havia conseguido eleger nenhum dos
seus militantes nos últimos processos eleitorais, até 1945. Isto, devido ao fato de que,
desde sua criação em março de 1922, o partido esteve na maioria do tempo na ilegalidade.
Todavia, mesmo durante os períodos de ilegalidade, os comunistas continuavam atuando,

85
e, como resultado, houveram várias perseguições e inúmeras prisões em todo o Brasil,
principalmente durante o período em que Getúlio Vargas esteve no poder. Nesta
conjuntura, para Marighella, o combate ao fascismo era inevitável, e, por isso, foi
encarcerado diversas vezes, sofrendo tortura durante o Estado Novo.
Não obstante, em Abril de 1945, numa conjuntura de fim de guerra e de convívio
mundial ―amistoso‖ entre as nações vencedoras, há a legalização do Partido, junto com a
Anistia aos presos políticos e retorno dos exilados. Isso redefiniu também os papéis os a
serem desempenhados pelos militantes comunistas. Conforme Marcelo Ridenti:

Em 1945, após o fim do Estado Novo, fiel à política do Partido Comunista,


Marighella entendia que era preciso ajudar pacificamente a democracia quando
é ela que vai em marcha ascendente no mundo, ao contrário dos anos
anteriores, quando se colocava o dever de impedir a marcha ascendente do
fascismo, combatendo-os de armas na mão. (RIDENTI, 1999, pg. 14)

Destarte, o PCB podia, portanto, participar do processo eleitoral. Neste cenário,


Marighella é cogitado como um dos mais importantes nomes à candidatura a deputado
federal, com outros militantes como Jorge Amado, por exemplo. Luis Carlos Prestes
sairia ao mesmo tempo, como deputado ao deputado federal e a senador. Após curta, mas
calorosa campanha eleitoral, Marighella foi eleito como um dos deputados mais bem
votados da bancada (que ficara com catorze deputados e Prestes como o senador mais
votado do país). (NOVA; NÓVOA, 1999, pg. 57)
A partir disso, a bancada do PCB ocupa o espaço reservado ao Partido no Palácio
Tiradentes, para a elaboração da nova Constituição Brasileira. Carlos Marighella, embora
indicado para a segunda suplência da mesa da Assembleia, atuou quase sempre como
líder da bancada e com frequência defende o Partido em seu discurso.
Alguns dos pronunciamos de Marighella que neste texto escolhemos para análise,
bem como da atuação dos comunistas naquele momento da política brasileira, podem ser
melhor compreendidos à luz dos estudos cultura política.
Segundo Motta (2009) encontramos o uso da expressão cultura política no Brasil
antes de ter se tornado conceito das ciências sociais. De fato, a expressão vinha em forma
de nome de periódico: ―Cultura Política‖, revista oficial, diretamente vinculada ao DIP,
que circulou de março de 1941 até outubro de 1945. Para este autor, constituir uma
cultura política para uma nação considerada em estágio infantil, incapaz de autogoverno,
era um dos objetivos da revista. ―Desejava-se, talvez, forjar uma cultura política para um
povo inculto, cultivá-la.‖ (MOTTA, 2009. pg. 3)

86
Outro fato curioso é que após o fim do Estado Novo e o fechamento da revista
Cultura Política, o Partido Comunista apropriou-se do termo ao adotá-lo como subtítulo
de sua mais importante publicação teórica: a Revista ―Problemas. Revista Mensal de
Cultura Política‖, que circulou entre Agosto 1947 e meados dos anos de 1950. Na opinião
de Motta, provavelmente, os intelectuais do PCB usaram o termo para expressar a
intenção de atuar na formação e disseminação de valores políticos comunistas (MOTTA,
2009. pgs 3-4).
Dentro da historiografia, a formulação de Serge Berstein acerca da cultura política
pode ser considerada uma das mais difundidas. Segundo esse autor:

A cultura política constitui um conjunto coerente em que todos os elementos


estão em estreita relação uns com os outros, permitindo definir uma forma de
identidade do indivíduo que dela se reclama‖ (BERSTEIN, 1998, p. 350).

Desta forma, é possível inferir que a esquerda compartilhava de uma mesma


cultura política. Para entender melhor este aspecto, consideremos a análise de Motta
acerca do conceito de culturas políticas. Ele entende que:

Uma definição adequada para cultura política (...), poderia ser: conjunto de
valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por
determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece
leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos
políticos direcionados ao futuro. (MOTTA, 2009, p.21)

Com efeito, a partir das reflexões de Motta, podemos pensar a cultura política
enquanto categoria de análise para pensar o comunismo. Para este autor, este conceito
pode ajudar a explicar melhor as razões da longevidade do comunismo, e também porque
a influência da cultura comunista transcendeu aos limites das organizações partidárias,
ainda que a cultura comunista tenha na figura do partido um dos seus elementos
essenciais inclusive na forma de mito. (MOTTA, 2013. pgs 18- 20)
Para auxiliar a leitura das fontes, foi imprescindível a análise de Motta, sobre os
principais traços da cultura política comunista. Segundo este autor, um desses traços seria
o combate à religião, naturalmente o principal adversário dos comunistas. (MOTTA,
2013. pg 22).
Os comunistas defendiam o laicismo, e isto também ficou claro no decorrer dos
trabalhos de formulação da constituição de 1946. Devido à tradição católica do país, as
referências ao catolicismo eram contundentes em vários momentos da Assembleia. Um

87
desses momentos se apresentou quando sugerido que a Assembleia homenageasse dois
bispos declarados cardeais pela Igreja Romana.
O deputado Carlos Marighella, tomou a frente representando a bancada comunista
e explicou que: ―o ponto de vista da nossa bancada, mesmo do Partido Comunista do
Brasil, é o de que a religião deve estar completamente separada das questões do Estado e
da política‖. 33 Para resumir esse ponto da crítica à Igreja, - sob a égide da cultura política
comunista- trazemos a seguinte fala do deputado Marighella:

Nós, comunistas, sabemos respeitar as religiões; somos pela liberdade completa


de consciência e não desejamos, de forma alguma, que essa liberdade seja
utilizada pelos dominadores, pelos fascistas, pelos reacionários, pelos senhores
feudais para acorrentar o nosso povo, miseravelmente, como o tem feito. 34

Segundo Motta, outro ponto forte da cultura política comunista era o anti-
imperialismo. Conforme Motta o anti-imperialismo. Para ele, este é um ponto
fundamental para entender as culturas de esquerda em geral, e foi tema frequente nos
discursos e representações comunistas, sobretudo em países situados nas áreas periféricas.
(MOTTA, 2013. pgs. 23 e 24). Neste aspecto, pode-se considerar que o anti-imperialismo
era notório nos pronunciamentos de Marighella em vários momentos, mas, nas sessões
finais da Assembleia Constituinte, especificamente na 117° sessão, realizada em 16-09-
1946, o deputado Carlos Marighella, isso ficou mais evidente:

O perigo são esses senhores imperialistas, representados pelos setores mais


reacionários da indústria e das finanças americanas, a que se filiam figuras
conhecidas do clique internacional devotada ao trabalho ingrato de provocar a
guerra contra a URSS. (...) O que causa apreensões são essas nossas bases
ainda em mãos de tropas estrangeiras,m permanente ameaça ao nosso sossego,
ao soberano direito de dispormos dos nosso próprios destinos. 35

Além disso, representações e valores comunistas foram produzidos e


disseminados por diferentes veículos, ou, nos termos de Serge Beirstein, vetores de
socialização: impressos de diferentes tipos como jornais, livros, panfletos, revistas, entre
outros.
Assim, na Revista Problemas, já em 1947, chefiada por Marighella, vários artigos
também criticavam, por exemplo, o imperialismo:

33
.(Anais da assembleia Constituinte de 1946, vol. II. pgs. 108 a 110)
34
(Anais da Assembleia Constituinte de 1946, vol. XVII. pg. 302).
35
(Anais da assembleia Constituinte de 1946, Vol XXVI- pg, 109).

88
Nossa política é, portanto, de resistência a tudo e a todos os que facilitam a
ação do imperialismo. E, sobretudo de existência ativa, organizada ao governo
inepto e incapaz que infelicita o país, por não saber defender a soberania de
nossa Pátria e resolver os problemas do nosso povo. 36

Diante do exposto, podemos considerar que no período em questão, certos valores


comunistas foram difundidos dentro da legalidade institucional, e o deputado Carlos
Marighella, cuja trajetória política foi em sua maioria, marcada pela ilegalidade,
encontrou na sua posição enquanto parlamentar, uma forma de defender os seus valores
de esquerda, de uma cultura política comunista, com uma participação ativa, falando em
nome de seu partido, e, na maioria das vezes, em nome do seguimento social ao qual
defendia e representava: o dos trabalhadores.

Propostas de um deputado revolucionário: a atuação de Marighela em defesa da


democracia e dos trabalhadores
À guisa de conclusão desse texto, elencamos alguns pontos da atuação de
Marighella enquanto deputado legal, com base em algumas de suas propostas que
evidenciam a sua preocupação com a democracia e os trabalhadores. Evidenciamos que
esta é ainda uma pesquisa incipiente, muito ainda há que ser pesquisado. Mas esperamos
que os estudos aqui realizados a partir de nosso objeto de pesquisa venham a contribuir
para a construção do conhecimento histórico no horizonte da história política do Brasil
republicano.
De fato, como aponta Ridenti, seria equivocado imaginar que se pode
compreender as ações e os pensamentos de um sujeito político fora do contexto histórico
que as gerou. Naquele período, após o fim do Estado Novo, Marighella já não estava mais
na clandestinidade, já não pensava em combater o inimigo ―com armas na mão‖, mas sim,
em ajudar pacificamente a democracia que estava em curso. (RIDENTI, 1999. pg. 6)
Com efeito, o discurso de Marighella enquanto atuante naquela Assembleia era
sempre proferido com audácia, de forma irreverente. Era clara a sua preocupação com a
democracia em curso, e com o papel que o PCB, tinha para cumprir naquele momento.
Na primeira sessão da constituinte, em 1º de fevereiro de 1946, Marighella
lançava seu primeiro discurso, o primeiro dos 195 que pronunciara em menos de dois
anos como deputado federal, ele protestou, destemido, contra a posse de Waldemar
Falcão, então Presidente do Superior tribunal Eleitoral, ao cargo de presidente da

36
Revista Problemas - Revista Mensal de Cultura Política, nº 3, outubro 1947. Disponível em: <
https://www.marxists.org/portugues/marighella/1947/10/politica_03.htm>

89
Assembleia Constituinte, como mandava a Constituição em vigor, de 1937. Deixemos
que ele exponha seu protesto:

Não me dirijo ao Presidente da Assembleia Constituinte, porque não reconheço


na pessoa, ilustre, aliás, do membro do judiciário, que aqui se encontra poderes
para dirigir os nossos trabalhos. (...) Começaríamos por trair o próprio
mandato, que nos confiou o povo, se, no momento em que iniciamos uma fase
nova da Democracia, nos submetesse-mos à tutela de um governo que já
expirou (...) que ontem foi substituído e, portanto, não poderia ditar leis para
reger uma.37

Nesse protesto, já se delineia a total preocupação do referido deputado para com a


democracia. Para Marighella e para o Partido, era inadmissível que a busca pela
democracia fosse conduzida, principalmente, por ex-dirigentes de uma ditadura. A
questão do combate ao fascismo que tanto fizera mal ao Partido Comunista e a seus
membros, também fica clara nessas primeiras falas de Marighella, ao propor que a mesma
não se submeta aos ditames de uma ―Constituição Fascista‖.38
Mas o que era bastante expressivo na fala de Marighella durante as várias sessões
da daquela assembleia constituinte era a atenção creditada aos trabalhadores. De fato, mal
iniciados os trabalhos constituintes, ainda na sessão preparatória de instalação da
Assembleia, Marighella tomou a palavra para declarar apoio à greve dos bancários:

Srs. Constituintes, nobres Deputados! Quero submeter à apreciação de V. Ex.ª,


pedindo desculpa pelo fato de voltar a ocupar a atenção da Assembleia- pois
assim o exigem os interesses dos trabalhadores e do povo em geral. 39

Neste sentido, Marighela em sua atuação parlamentar, não se esqueceu de ―dar


voz ao povo‖ apresentando várias vezes em dezenas de pronunciamentos, suas demandas,
apoiando reivindicações dos trabalhadores. Para dar voz às demandas populares, ele tinha
o costume de ler telegramas que recebia que tratavam de problemas individuais e sociais.
Foi o que ocorreu no seu discurso proferido no dia 12 de dezembro de 1946, quando ele
pediu aos deputados presentes, soluções para alguns problemas pontuais do povo baiano,
tais como:

37
(Anais da assembleia Constituinte de 1946, Vol. I- pgs -8-9)
38
Idem.
39
Idem.

90
Médico da capital baiana informa que ali o pão e a carne se tornaram caros e
escassos; perigo de seca ameaça piorar a situação do baiano; ex-empregados
dos cassinos pedem solução para a falta de indenizações par sua categoria;
moradores de diversas localidades da capital reivindicam melhorias urbanas; as
gráficas solicitam tomadas de posição acerca da questão salarial; o Comitê
Municipal de Feira de Santana solicita solucionar problemas urgentes como
água e esgoto, saneamento, hospital e escolas para menores abandonados.
(NÓVA; NÓVOA. 1999. pgs 62-63).

Enfim, esses exemplos demonstram a amplitude e o engajamento popular da


atuação parlamentar de Marighella em seu curto, mas intenso mandato. Entretanto, apesar
de Marighella apresentar cerca de 19 emendas ao projeto constitucional, na elaboração da
constituinte em si, os comunistas não desempenharam um papel direto e decisivo, pelo
fato de serem minoria em uma Assembleia de maioria direitista.
Mesmo assim, a partir da análise das fontes, ficou notório que o revolucionário
Carlos Marighella, teve uma atuação efetiva enquanto parlamentar, mesmo que num
período curto de tempo, sendo, sobretudo, porta-voz das lutas pelas liberdades políticas e
individuais, pela defesa dos direitos de greve dos trabalhadores, pelo fim da opressão e da
pobreza e contra o imperialismo americano.
Por fim, destacamos que por meio deste estudo, pode-se perceber ao menos de
modo parcial, que, através de seus pronunciamentos durante a constituinte de 1946,
Carlos Marighella aparece como um intelectual engajado, preocupado com a democracia
que retornava à cena política brasileira, e, sobretudo, com as questões atinentes aos
trabalhadores, segmento do qual ele se colocava como defensor e representante.

Referências

BETTO, Frei. Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 3. Ed.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
BERSTEIN, Serge. "A cultura política." In: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-
François. Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa, 1998.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Um estudo sobre o seu pensamento político. Rio
de Janeiro: Campus, 1989.
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs). O Brasil Republicano.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 2 e 3
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Edição e tradução: Carlos Nelson Coutinho;
coedição: Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004, vol. 1 e 5.
GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 2 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Desafios e possibilidades na apropriação de cultura
política pela historiografia. In: Culturas Políticas na História: Novos Estudos. Belo
Horizonte: Argvmentvm, 2009.

91
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Acultura política comunista, alguns apontamentos.
In:Comunistas Brasileiros, cultura política e produção cultural- Belo Horizonte: UFMG:
2013.
NOVA, C.; NÓVOA, J. (orgs). Carlos Marighella: o homem por trás do mito. São Paulo:
UNESP, 1999.
PEREIRA, Laurindo Mékie. Gramsci e a História Política. In: DIAS, Renato da Silva
(Org.). Repensando o político: poder, trabalho e identidades. Montes Claros: Unimontes,
2012. p. 183- 204.
PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

92
HISTÓRIA ORAL: UMA METODOLOGIA PARA TRABALHO COM
FONTES ORAIS

Denílson Meireles Barbosa


Pedro Jardel Fonseca Pereira

RESUMO: O presente texto é parte de uma experiência inicial de oficinas, aplicadas


aos acadêmicos do curso de História e Ciência da Religião como meio facilitador das
atividades de pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade Estadual de
Montes Claros. Propõe-se abordar a história oral como metodologia aplicada em
pesquisas com fonte oral. A história oral tem se tornado o foco de discussão por parte de
historiadores e outros pesquisadores que tem enveredado pela pesquisa com a fonte oral,
considerando a voz dos vários sujeitos da história, suas memórias e histórias de vida.
Nesse sentido visa-se possibilitar uma discussão que seja capaz de perceber a relevância
da pesquisa histórica tendo a oralidade como fonte.

Palavras-chave: história oral; metodologia; fonte oral.

Compartilhando as nossas ideias e motivações sobre o campo da história, suas


perspectivas e problemas, começamos a pensar em levar adiante a possibilidade de
trabalhar com a história oral voltada para acadêmicos dos diversos cursos de graduação,
propondo, oficinas de história oral, minicursos e palestra aos graduandos. Com a
efetivação da parceria, a ideia é a de fomentar a discussão acerca de como aplicar a
história oral nos trabalhos de conclusão de curso, provocar os acadêmicos da
necessidade de conhecê-la, colocando-os em contato com os autores que trabalham com
essa metodologia no Brasil e mesmo em outros países, sobretudo a América latina.
Nesse caso, foi importante observar as técnicas utilizadas para realizar uma entrevista, o
modo de se comportar diante de um entrevistado, como realizar a transcrição, isto é,
noções básicas de como aplicar a metodologia para obtenção de um bom resultado de
pesquisa.
Realizando um diagnóstico prévio, detectou-se que, embora muitos acadêmicos
e professores trabalhassem com a história oral, utilizando dos autores e obras
consideradas de vanguarda nesse assunto, ainda assim, muitos encontravam dificuldades
na aplicação da metodologia em questão. Nossos primeiros encontros sobre história oral
foram permeados de muitas perguntas, dúvidas e até certo alivio para muitos que
estavam escrevendo, respectivamente, seus trabalhos de conclusão de curso.

93
Surgimento da história oral como metodologia
O avanço tecnológico e as experiências vividas por combatentes, familiares e
vítimas da Segunda Guerra Mundial, possibilitaram uma nova dinâmica na medida em
que houve necessidade de obter depoimentos dos mesmos. A história oral surgiu,
portanto, nesse contexto, a partir da necessidade de reunir as experiências das vítimas
do conflito. O professor Jose Carlos Sebe Meihy (2005), ressalta que a história oral que
surgiu nos Estados Unidos em 1948, se diverge de outros recursos, como a oralidade e
as entrevistas. A oralidade foi usada na transmissão das experiências de pai para filho,
de geração para geração, e a entrevista também já era utilizada pelos historiadores. Para
Meihy: ―As entrevistas, portanto, sempre estiveram na ordem do dia entre as
preocupações dos estudiosos‖. (2005, p. 91)
Atualmente, não há dúvidas sobre os avanços, e até mesmo em âmbito
internacional, do lugar de destaque que o Brasil alcançou como promotor de trabalhos
de história oral. Entretanto, a chegada dessa metodologia de pesquisa não só no Brasil,
mas em toda América Latina, foi demorada, devido ao Golpe Militar e seus
desdobramentos, bem como em outros países latino-americanos que também eram
manobrados por governos ditatórios. (MEIHY, 2005)
Meihy (2005) destaca não só, a força da história oral quando ela surgiu após a
repressão militar, como também sua importância na afirmação da democracia. Romper
o silêncio, esse foi o papel de destaque conferido à história oral. Mesmo que o golpe
militar tenha restringido projetos e registros que gravassem depoimentos, experiências
de vidas e opiniões, o inevitável estava apenas sendo deixado para o futuro.
A ditadura e os seus mecanismos de coação acabaram por favorecer o
aparecimento da história oral. O professor Meihy (2005), explica que isso foi possível
devido ao fato de que a censura foi um dos pilares do regime militar. Com o fim desse
período os depoimentos ganharam força e foram fundamentais para a sua compreensão.
Com a abertura política e a campanha pela Anistia, no fim dos anos 1970, era possível
observar o desejo e o empenho de recuperar o tempo perdido.
O trabalho com história oral não pode ser compreendido apenas pela
possibilidade de colher relatos e depoimentos. A sua função política deve ficar clara e
ser evidenciada nos trabalhos que utilizam essa metodologia, pois essa postura política é
a ―alma‖ da história oral, é ela que atribui sentido, não somente aos trabalhos de
pesquisa, mas para os que são detentores dos depoimentos e para aqueles que os
colhem. Meihy (2005) ressalta a importância dessa dupla função política, ―pois se

94
compromete tanto com a democracia – que é condição para a sua realização – como
com o direito de saber que permite veicular opiniões variadas sobre temas do presente‖.
(2005, p. 100).
Quando enfatizamos o surgimento e a importância da história oral no pós-
ditadura, o fazemos não apenas com o pretexto de perpetrar o contexto histórico da
mesma, também é importante que seja evidenciado as possibilidades que surgiram com
a abertura politica. Diversas instituições, como museus, arquivos, grupos isolados e a
academia, sobretudo, manifestaram e se comprometeram em promover debates em torno
da história oral. Existia certa insatisfação nos círculos não só acadêmicos da sociedade
brasileira, com os ângulos de visão vigente. Esses grupos exerceram pressão para o
surgimento de novas possibilidades de análise social. Caberia à história oral, a função
de humanizar a história e incluir os seres humanos nas reflexões sociais. (MEIHY,
2005, p. 101)

Os pioneiros da história oral: novas abordagens e tendências


A partir dos encontros e, sobretudo com a criação da Associação Brasileira de
História oral (ABHO) que foi efetivada em abril de 1994, os relatos orais de memórias
tornaram no Brasil uma referência importante para os trabalhos de pesquisa nas
Ciências Humanas. As primeiras experiências, entretanto, com a história oral, foram
bem antes desta data do nascimento da ABHO. Em 1970, o programa da Fundação
Getúlio Vargas, do Rio Janeiro, realizou um importante trabalho de cooptar
depoimentos da elite política.
Os trabalhos voltados para a memória dos exilados surgiram a partir de 1976,
com destaque para a pesquisa assinada por Pedro Celso Uchôa Cavalcante e Juvelino
Ramos, com o título: Memórias de exílio.
O trabalho intitulado Memória das mulheres do exílio, assinado por um grupo
de mulheres, liderado por Valentina da Rocha, foi uma obra pioneira, nos estudos sobre
a mulher, embora seja um trabalho de grande relevância, o mesmo é pouco prezado na
historiografia nacional brasileira, observa Meihy (2005).
Embora a história oral tenha contribuído para a realização de importantes
trabalhos, sobretudo, ligados a vítimas da ditadura militar, e nesse sentido, possibilitou a
compreensão desse período com as novas produções realizadas com base em
depoimentos, Meihy (2005), lembra que a nossa história sofreu, com alguns entraves,
que a impediu de ter um maior significado para a historiografia nacional que foi: ―o fato

95
de ter nascido exilada; o de ater-se, em muitos casos, a um colonialismo dependentista;
e, sobretudo o de fechar-se, no meio acadêmico, à inclusão de outros setores capazes de
produzir conhecimento.‖ (p. 103). Embora houvesse esse fechamento no meio
acadêmico, Marieta Moraes Ferreira, adverte que isso não quer dizer que não houve
outras experiências, desvinculadas do meio acadêmico. 7
Novos trabalhos e tendências com as possibilidades de abordagens a partir da
história oral tanto no Brasil como na América Latina, contribuíram para um número
cada vez maior de produções diversificadas, como por exemplo, o Congresso
Internacional de 1998, onde novas tendências foram consolidadas, incluindo um número
significativo de pesquisadores da América Latina. Na ocasião foram divulgados, novas
temáticas ligadas aos desafios sociais enfrentados na região. Entre essas abordagens,
Ferreira et al, ressalta:

(...) a questão agrária, em especial o Movimento dos Sem-Terra; a questão


étnica e a mestiçagem; os contrastes urbanos e a situação dos meninos de rua;
as comunidades indígenas, o extrativismo e a problemática amazônica; novas
manifestações religiosas; as ditaduras militares e o problema dos
desaparecidos políticos, além de outras, é claro. (2000, p. 11)

Eugênia Meyer nos chama atenção para a questão da originalidade do povo


latino-americano. Isso pelo fato de o mesmo ser fruto de múltiplas mestiçagens étnicas e
culturais. A autora está chamando atenção exatamente para que, evitemos a aplicação de
modelos impróprios à nossa realidade:

Assim, o grande desafio é encontrar alternativas para superar a imensa


desigualdade social que separa os povos latino-americanos e recuperar os
silêncios e os esquecimentos impostos pelas ditaduras do século XX, como
um instrumento para garantir a marcha de consolidação democrática.
(MEYER, 2000, p. 113)

Um dos questionamentos que o pesquisador que se propõe a trabalhar com a


história oral não deve se furtar de fazê-lo, é acerca da ideia de que ―atribui voz àqueles
sujeitos sem voz‖. No livro Usos e abusos da história oral, Philippe Joutard enfatiza
que a história oral é importante porque ela: ―Dá voz aos povos sem história, iletrados,
que valoriza os vencidos, os marginais e as diversas minorias, operários, negros e
mulheres. ‖ (JOUTARD, 2006, p. 45). Devemos estar atentos para o risco de tal
afirmação nos conduzir a uma interpretação equivocada acerca da história oral, se
entendida de maneira isolada do contexto retratado por Joutard. Neste sentido o

96
historiador Eudes Fernando Leite esclarece que: ―Ela não dá voz, essa não é a razão de
se constituir um método. Porque não é ela que proporciona um sentido, mas é o uso que
se faz do conhecimento que dá sentido a esse conhecimento. ‖ (LEITE, 2011).
Eudes Fernando Leite questiona sobre essa autoridade de dá voz ou tirar voz,
dizendo que esse recurso foi muito utilizado de início, pois nutria uma ideia de história
redentora, que tinha como foco, os fracos e os oprimidos. Uma história social que tinha
como base o marxismo, que pretendia ser uma ferramenta de ação política, na luta por
uma sociedade menos desigual.
Atualmente, já está claro que o objetivo não é dá voz, essa não seria a razão de
construir um método: ―porque não é ela que proporciona um sentido, é o uso que se faz
do conhecimento, que dá sentido a esse conhecimento. ‖ (LEITE, 2011). O dá voz, pode
ser entendido muito mais, como uma estratégia para se afirmar, do que uma estratégia
metodológica.
Atribuir palavras ou tirar palavras, esse não é o sentido da história oral, embora
façamos isso quando lidamos com as entrevistas, pois temos que editar e transcrever.
Esse momento final acaba que nos dá essa autoridade, mas guiado por princípios éticos
e normas que devem ser seguidas ao utilizar esse método. Leite (2011) assegura que:
―Hoje não preciso justificar um projeto de pesquisa dizendo que eu vou dá voz (...).
Posso até dizer pra justificar não o objeto, mas a metodologia. ‖ (LEITE, 2011).

Os status da história oral


Compreende-se a história oral a partir de três posturas que definem seu status: a
primeira advoga ser a história oral uma técnica, gravações, transcrições, aparelhagem de
som e conservação de entrevistas e acervos. A chamada história oral não passaria de um
conjunto de procedimentos técnicos para a utilização do gravador em pesquisas e para a
posterior organização de acervo. (AMADO e FERREIRA, 2006).
A segunda compreende a história oral como uma disciplina, baseada em
argumentos complexos e contraditórios. A história oral como disciplina seria
problemática, pois pode deixar de lado a questão da teoria ao tentar encontrar as
respostas apenas no âmbito da história oral, o que levaria os trabalhos a ter conclusões
óbvias, se limitando a reproduzir as palavras dos entrevistados. As explicações que
seriam buscadas no âmbito teórico ficam restritas ao campo metodológico.

97
E a terceira, que se coloca como defensora da história oral enquanto uma
metodologia. Os autores que aqui, fazemos referência, comungam dessa ideia. É
exatamente nesta última que centramos nosso enfoque. (AMADO e FERREIRA, 2006).
A história oral, como metodologia ordena os procedimentos de trabalho, tais
como os diversos tipos de entrevista, uma delas para a pesquisa; as várias possibilidades
de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens; as diferentes maneiras
de o historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre seu
trabalho, funcionando como ponte entre a teoria e a prática. Este é o terreno da história
oral, o que não permite classificá-la unicamente como prática. Mas, na área teórica, a
história oral é capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar questões; de formular as
perguntas, porém não pode oferecer as respostas. As soluções e explicações devem ser
buscadas onde sempre estiveram: na boa e antiga teoria da história.
Quando surgiu nos Estados Unidos, a primeira geração de historiadores orais
tinha como objetivo apenas compilar material para as futuras gerações de historiadores
atuando do lado das ciências políticas, que se ocupavam dos notáveis. A segunda
geração, que surgiu na Itália, desenvolveu de maneira muito mais ambiciosa uma nova
concepção de história oral que não se tratava mais de uma simples fonte complementar,
mas de outra história que, assim como a antropologia, tentava evidenciar a história das
minorias. (JOUTARD, 2006). Etiene François (2006) lembra que os objetos da história
oral permitem que a mesma seja inovadora, pois dedica atenção aos dominados, aos
silenciados e aos excluídos. Ao contrário da história da vida cotidiana francesa, ela se
ocupa da história local, enraizada.
Hoje se pode considerar que esta proposta metodológica já faz parte do aparato
técnico-metodológico não só de historiadores, como também de outros pesquisadores de
áreas diversas. Quanto à sua utilização, a história oral tem como função estabelecer,
ordenar, suscitar e formular perguntas em trabalhos, além de analisar novos: ―Objetos e
uma nova documentação (...) como também estabelecer uma nova e original relação
entre historiador e os sujeitos da história‖ (FRANÇOIS, 2006, p. 07). Embora viesse
sendo ensaiado a partir da antropologia, principalmente nos estudos daqueles
pertencentes às sociedades rurais, ela ultrapassou o campo desta disciplina e se tornou
objeto de estudo da historiografia. Assim: ―A história interessa pela ‗oralidade‘ na
medida em que ela permite obter e desenvolver conhecimentos novos e fundamentar
análises históricas com base na criação de fontes inéditas e novas. ‖ (LOZANO, 2006,
p. 15).

98
Na constituição de sua pesquisa, a história oral compartilha da historiografia
tradicional suas etapas e fases do exame histórico, como: apresentação da problemática,
desenvolvimento dos procedimentos heurísticos, controle das críticas internas e externas
das fontes, e por fim, a análise e interpretação das evidências. Seu método visa fazer
com que os depoimentos não desloquem nem substituam a análise histórica. Mais do
que um gravador que registra os indivíduos ―sem voz‖, isto é: ―Fazer história oral
significa, portanto, produzir conhecimentos históricos, científicos, e não simplesmente
fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos outros‖ (LOZANO, 2006, p. 17).

Desafios e possibilidades no trato com as fontes orais


A maneira de o historiador se relacionar com os entrevistados, os tipos diversos
de entrevistas e as várias possibilidades de transcrições deve ser levada em
consideração. Neste sentido, a história oral funciona como uma ponte entre a teoria e a
prática. O pesquisador deve estar atento no trato com a oralidade, isto devido ao fato da
fonte possuir características particulares. Primeiro porque a entrevista, mesmo que seja
de maneira pacífica, torna-se um jogo de esconde-esconde, onde o historiador, na
posição de inquisidor, tem a missão de estabelecer a ―verdade‖, enquanto o
entrevistado, intimado a fornecer informações que permitirão essa operação é forçado a
ficar na defensiva, mas certo de que possui a força da convicção daquilo que viveu.
Não se trata de interpretar as mensagens que lhe são comunicadas: ―Mas de
saber que o não-dito, a hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a
divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do
relato‖ (VOLDMAN, 2006, p. 38). Diante das mentiras mais ou menos fáceis de
desmascarar ou mesmo as contra verdades do entrevistado não cabe desespero por parte
do historiador.
Segundo Portelli (2006), os dados obtidos através das fontes orais podem até
não ser precisos, mas elas podem revelar dados que muitas vezes, não podem ser
encontrados no documento escrito. Neste sentido, Júlia Silveira Matos e Adriana
Kivanski de Senna (2011), ressaltam que o cuidado ao utilizar a fonte oral, deve ser o
mesmo que se têm quando o pesquisador faz uso de qualquer outro tipo de fonte.
É importante que o pesquisador se empenhe na realização de uma meticulosa
reflexão crítica e metodológica, como também estar ciente das críticas e dos aspectos
polêmicos que envolvem a utilização desse tipo de fonte, de forma que ele possa
especificar suas posições e opções metodológicas na constituição da pesquisa, munindo-

99
se do aparato de suporte teórico referente ao seu objeto estudado. (MATOS E SENNA,
2011).
Pensar na entrevista é pensar também no entrevistador, e não apenas no
entrevistado para que a mesma tenha qualidade. Assim sendo, a subjetividade do
entrevistador merece atenção e deve ser levada em conta: ―Porém reconhecer tal
subjetividade não significa abandonar todas as regras e rejeitar uma abordagem
científica, isto é, a confrontação das fontes, o trabalho crítico, a adoção de uma
perspectiva. ‖ (JOUTARD, 2006, p.44).
Alguns procedimentos são de extrema importância para que as entrevistas
sejam realizadas dentro das regras e dos procedimentos científicos, como, a escolha dos
depoentes, elaboração do roteiro de perguntas e processos de negociação e condição,
como por exemplo, gravar, filmar e fotografar.
O pesquisador ao definir seu tema de pesquisa, e optar pela história oral, ou se
ver na necessidade de utilizá-la deve seguir alguns passos. Elaborar as primeiras
perguntas possibilitando a confiança do entrevistado de modo a fazer fluir da conversa.
Elaborar questões que permitam aprofundar o tema escolhido para a entrevista.
As perguntas devem ser sempre flexíveis, elaboradas anteriormente pelo
entrevistador, são apenas um guia. É importante pensar também no entrevistado levando
em consideração a idade, lucidez, representatividade de diferentes segmentos sociais.
Escolher diferentes pessoas considerando o perfil das mesmas de modo a adquirir
diversos depoimentos sobre a temática em questão.
Outros fatores que também devem ser levados em consideração, é o local e
horário que são definidos pelo entrevistado. É interessante também se possível,
conseguir documentação, como fotos e cartas antigas sobre o tema com o entrevistado.
Não prosseguir se o entrevistado estiver cansado, marque novo dia para a entrevista.
Uma pergunta de cada vez, pode evitar questionamentos duplos e interrupções, cuidado
que não pode faltar ao entrevistador. Não discordar do narrador e não induzir as
respostas, nem as complementar, é outra atitude da maior relevância para quem deseja
subtrair do entrevistado informações livres e neutras.
A transcrição é outro momento importante, onde ocorre a transformação da
etapa da gravação oral para o código escrito. Nessa etapa, orienta-se que o próprio
entrevistador faça a transcrição. No caso desta ser feita por terceiros, é necessário que a
transcrição seja cuidadosamente averiguada pelo autor e condutor do projeto de
pesquisa. Lembrando que o mesmo é o responsável pela transcrição. (MEIHY, 2005).

100
Outro ponto importante sobre a transcrição é estabelecer se a mesma será
realizada como foi captada (mantida em sua forma rústica) ou se deve ser corrigida.
Existem pesquisadores que defendem a transcrição absoluta, de forma a manter a
linguagem original (com seus vícios regionalistas), barulhos e risos.
Neste sentido Meihy (2005), orienta da seguinte forma:

Esse posicionamento, contudo, tem sido contestado por aqueles que prezam
na história oral o seu compromisso com o público. Sempre pensando em
quem vai receber o texto, a transcrição destina-se, na moderna história oral, a
dar visibilidade ao caso tematizado ou à história narrada. Não são apenas as
palavras que interessam. Aliás, elas só valem pelas ideias, pelos conceitos,
pelas emoções que contenham. (p. 182).

Ainda segundo Meihy (2005), a interferência do autor deve ficar clara no texto
que se tornará público, pois a história oral se compromete com a história pública e neste
sentido, alguns tabus que circundam as maneiras de ver as entrevistas e a sua divulgação
devem ser superados.
Neste sentido, admite-se a correção da entrevista, dos vícios de linguagem e
erros gramaticais, no entanto: ―Sugere-se que palavras ou expressões repetidas como
―né‖, ―sabe‖, ―então, ―daí por diante‖, ―depois disso‖ devem ser mantidas em dose
suficiente para o leitor sentir o tipo de narrativa ou sotaque. ‖ (MEIHY, 2005, 183). É
importante ressaltar também que seja indicado no trabalho, isto é, indique ao leitor que a
correção foi realizada. Esta indicação pode aparecer, tanto na introdução do trabalho
como no corpo texto quando for utilizar a entrevista na pesquisa.

Considerações finais
Tomou-se como referência a esta discussão, a realidade de pesquisa de
acadêmicos de vários cursos das Ciências Humanas bem como, seus problemas,
limitações e possibilidades quanto ao uso da história oral. Pesquisas com a oralidade
tem se tornado rotina. Nada mais salutar, numa região como o norte de Minas, que
precisa fazer suas fontes, na medida em que pesquisadores de diversos campos do saber
desbravam novas áreas geográficas e novos objetos de pesquisa.
As oficinas de história oral, propostas no meio acadêmico tem preenchido uma
lacuna por se considerar um espaço de debate onde as experiências metodológicas
encontram eco por se considerarem parte do processo formador. Assim, os objetivos
propostos através de oficinas de história oral, têm surtido efeito entre os acadêmicos por

101
se propor servir de ponte entre a teoria e a prática de pesquisa, na medida em que
considera as questões e as possibilidades de aperfeiçoamento da prática de pesquisa que
lida com a oralidade.
Este relato pretendeu esclarecer ainda, sobre as potencialidades do uso de
técnicas de pesquisa com a oralidade, capaz de oferecer detalhes importantes na
obtenção de resultados positivos, se bem utilizados os recursos disponíveis. Pretendeu
ainda, possibilitar um entendimento sobre as técnicas e a definição dos instrumentos de
pesquisa, tão necessários a um bom inquiridor.

Referências

ALBERTI, V., FERNANDES, T.M., e FERREIRA, MM., Orgs. História oral: desafios
para o século XXI [online]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. Disponível em:
<http://books.scielo.org>. Acesso: 02/09/2016.
JOUTARD. Philippe. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos
25 anos. In: AMADO, Janaina; MORAES, Marieta de (Coord). Usos e Abusos da
História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
LEITE, Eudes Fernando. História oral. Disponível em
<http//www.youtube.com.>Acesso em 17/08/2015.
LOZANO. Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral
contemporânea. In: AMADO, Janaina; MORAES, Marieta de (Coord). Usos e Abusos
da História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
MATOS, Julia Silveira.; SENNA, Adriana Kivanski de. Historia oral como método:
problemas e métodos [online]. Rio Grande. 2011. Disponível em:
<https://www.seer.furg.br/hist/article/view/2395.> Acesso em: 15/09/2016.
MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. -5. Ed.- São Paulo: Edições
Loyola, 2005.
MEYER, Eugenia. Balanço e novos desafios. In: ALBERTI, V., FERNANDES, TM., e
FERREIRA, M.M., Orgs. História oral: desafios para o século XXI [online]. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. Disponível em: <http://books.scielo.org>. Acesso:
02/09/2016.
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho
de 1944): mito, política, luta e senso comum. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J.
(Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
Usos e abusos da história oral/ Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira,
coordenadoras. – 8.ed.- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
VOLDMAN. Danièle. Definições e Usos. In: AMADO, Janaina; MORAES, Marieta de
(Coord.). Usos e Abusos da História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

102
A PROPAGANDA NO SÉCULO XX O NAZISMO E UMA IDEIA DE MASSA

Douglas Alves Moreira

Resumo: Este trabalho busca apresentar as características da propaganda política como


forma de doutrinação ideológica perante as massas no século XX, principalmente no
regime nazista na Alemanha. Analisarei através de obras conceituadas sobre o tema, que
a propaganda apesar de não ser algo novo, vai ganhar força devido aos novos recursos
tecnológicos e as condições sociais, sendo considerada uma arma. Destacarei que na
Alemanha, o regime nazista será responsável pelas maiores atrocidades conhecida no
mundo contemporâneo, e tal fato só foi possível devido à eficácia do seu modelo de
propaganda que domesticou as massas. As massas também são uma peculiaridade a
parte, cujas características de sua formação ajudam a compreender e explicar o porquê o
regime nazista obteve êxitos. Destacarei como as massas foram importantes para a
constituição dos governos fascistas na Europa do século XX, bem como a propaganda
foi o principal instrumento. Observo à necessidade de compreender o quanto a
propaganda causou vitimas e como fez com que as massas fossem cúmplices de
atrocidades bárbaras como as que foram realizadas durante o regime nazista.

Palavras-chaves: Propaganda; Nazismo; Massas.

A propaganda
A propaganda pode ser entendida como uma empresa que é organizada para
influenciar a opinião pública, e desta forma, conduzi-la. A propaganda só será criada na
forma que conhecemos, no século XX, tendo como campo de atuação os grandes centros
populacionais da era moderna. Através de técnicas modernas de informação e da
comunicação, é possível relacionar dois fatos cruciais na evolução humana no século XIX
e que foram cruciais para que a propaganda obtivesse os efeitos desejados sobre as
pessoas. No século XIX, será comum entre as nações uma estrutura e um espírito cada
vez mais unificado, além de um grande avanço no habitat e na demografia. Tanto na
Europa quanto na America, há a integração do indivíduo na sociedade, o que o tornaria
cidadão, sendo assim inserido em processos eleitorais ou mesmo alistamento de guerras.
O cidadão e suas responsabilidades, com a sua participação na vida pública e o fato de a
política exterior não ser de interesse apenas da nação, mas a todos. A opinião seria uma
ferramenta de política exterior e desde modo, as previsões vão se basear na calma ou na
inquietação da mesma. Desta forma, vai se usar da opinião pública para sustentar uma
determinada política e ate mesmo pressionar um adversário. (DOMENACH, 2002, p.15).
O termo propaganda vem do latin pontifício propagare que foi usado pela igreja
para propagar a fé católica durante a contrarreforma. O termo só perde o sentido ligado

103
à religião de caráter definitivo, a partir do século XX. Para Jean Marie Domenach é
possível dois conceitos cabíveis para a ideia de propaganda. A primeira seria uma
tentativa de influenciar a opinião e a conduta da sociedade, ao ponto que as pessoas
adotem uma opinião e uma conduta determinada. Já a segunda, a propaganda seria uma
linguagem criada para as massas, que através de palavras e símbolos e amparados pelo
rádio, imprensa e cinema. Para Domenach a função do propagandista seria incutir na
atitude das massas de forma que as comova nos principais objetivos da propaganda. É
função da propaganda, influenciar as principais atitudes do homem, podendo se
aproximar da educação, contudo esta vai se diferenciar devido às técnicas empregadas
no dia-a-dia principalmente a que diz respeito à finalidade de persuadir e forçar e
adaptar. (DOMENACH, 2002, p.12).
Para que tal influência sobre as massas fosse possível, seria necessária a
desarticulação de situações na sociedade em geral, tais como, o desenvolvimento dos
meios de comunicação como o rádio jornais e o cinema, a formação dos aglomerados
urbanos nas grandes cidades e capitais, insegurança gerada pelas terríveis condições
industriais tanto na America quanto na Europa, as suscetíveis ameaças de guerras e
crises econômicas entre outros fatores da vida moderna que estariam ligados entre
outros aos costumes e a língua.
A invenção de novas técnicas de comunicação vai proporcionar uma eficácia na
propaganda as massas. O uso da escrita impressa através de jornais, a difusão da palavra
através da criação do microfone e do rádio, que foi no século XX um dos maiores meios
de comunicação de massa amplamente usada principalmente na Europa e América.
Outra técnica importante é o uso de imagens tais como gravuras se destacando neste
processo, a fotografia. Com a utilização de tais recursos e técnicas modernas, a massa
vai sair de sua vida rotineira ao receber uma grande quantidade de informações o que
proporcionará uma vida diferente ao ambiente que vivia assim como sua moral e sua
religião. (DOMENACH, 2002, p.16-17).
Será durante o século XX que a propaganda vai se destacar devido à combinação
das técnicas e instrumentos modernos com uma nova condição social e urbana. Através
dos regimes fascistas e totalitários que surgem na Europa assim como a democracia dos
Estados Unidos que serão pautadas no apelo as massas. Contudo, entre os mais
relevantes regimes que usou das massas para lograrem seus objetivos foi à Alemanha
nazista. Segundo Eric Hobsbawm:

104
Os Estados nacionais modernos não conseguem funcionar sem o apoio
passivo e mesmo a mobilização e a participação ativa de muitos de seus
cidadãos. A propaganda de massas foi um elemento essencial mesmo em
regimes que estavam prontos para aplicar coerção ilimitada sobre seus povos.
Nem as ditaduras logram sobreviver por muito tempo quando seus súditos
perdem a disposição de aceitar o regime. (HOBSBAWM, 2007, p.102)

O nazismo
O regime nazista surge devido principalmente à decepção das massas quanto à
derrota da Alemanha na Primeira guerra mundial e as imposições dos vitoriosos sobre a
Alemanha. Como uma nação recém-criada, já que sua unificação ocorre no fim do
século XIX, a Alemanha vai experimentar um caos social, econômico e político, que vai
deflagrar o fim da monarquia e a proclamação da república. O regime republicano
alemão nasce sobre a sombra do autoritarismo, de fortes figuras conservadoras e de
militares com grandes influências. A insatisfação popular na Alemanha vai provocar o
surgimento de um grande número de partidos nacionalistas e com profundo senso
radical.
O NASDP ou simplesmente partido nazista, será um desses partidos, que vão
usar de técnicas propagandísticas para inflar as massas alemãs de acordo com sua
vontade. A propaganda nazista será a arma que fez a nação alemã compactuar com as
barbaridades perpetuadas pelo regime nazista. Ela será vista por Serge Tchakhtine como
uma forma de artilharia psicológica, pois vai se tornar uma violência ao tentar eliminar
as vontades e as necessidades individuais para passar ao povo alemão o sentimento de
coletividade. A propaganda nazista se fez presente na vida do cidadão, a todo instante
era lembrado o que o Estado Nazista fazia pelo povo e principalmente, dando ênfase na
importância do líder e relembrando quem eram os inimigos. Através dos reflexos
condicionados estudados pelo fisiologista russo Pavlov, e apontados por Tchakhtine, é
possível destacar que a propaganda nazista tinha como intuito fazer o povo alemão
―salivar‖. Segundo Domenach:

...êxito da propaganda nazista através da interpretação da teoria dos reflexos


condicionados de Pavlov... adiante, ligeira descrição da experiência de base:
coloquemos um torrão de açúcar diante de um cão previamente imobilizado:
produzir-se-á saliva na boca do animal. Em seguida, associemos a
apresentação do torrão de açúcar à audição de uma buzina e isso muitas
vezes: normalmente, o cão continuará a produzir saliva. Em uma terceira
fase, porém, contentemo-nos com fazê-lo ouvir a buzina sem apresentar-lhe o
açúcar: a saliva aparecerá de novo. Criamos, então, um reflexo condicionado,
isto é, o som da buzina associou-se suficientemente ao aparecimento do
açúcar a ponto de suscitar a salivação. A buzina tornou-se, assim, um agente

105
condicionador. - Note-se, todavia, que caso esse excitante de segundo grau
não conservará sempre sua eficácia. Com efeito, o agente condicionador
complexo - a buzina - tende a perder o valor como substituto do agente
condicionador simples - o açúcar - caso esse não lhe seja associado
novamente de tempos em tempos, ou melhor, caso não se repetir
periodicamente a primeira experiência. (DOMENACH, 2002, p.51).

O responsável pela propaganda no regime nazista era o Dr. Joseph Paul


Goebbels, Doutor em filosofia pela Universidade de Heidelberg, foi o criador da
propaganda moderna. Goebbels era o responsável pela imprensa alemã no regime
nazista, todos os meios de comunicação estavam ligados direta ou indiretamente sob seu
controle. Era o membro do governo mais próximo a Hitler, chegando a ser o füher da
Alemanha por poucas horas, após a morte de Hitler. A criação da propaganda moderna
estava relacionada diretamente aos conflitos do século XX. As técnicas modernas de
persuasão e convencimento foram originadas devido aos conflitos bélicos no século,
mas principalmente as duas guerras mundiais. (MARTINO, 2007, p 37-38)
Segundo Martino, toda propaganda é ideológica, pois defende um conjunto de
ideias instituídas. Contudo, a propaganda ideológica é ligada de forma especifica a ação
política. Para o autor, tanto a campanha eleitoral quanto o marketing político ou as
agências de comunicação partidária e governamentais estão inseridas na produção
ideológica. (MARTINO, 2007, p 40) Já Nelson Jair Garcia, conclui que a propaganda
ideológica vai possibilitar espalhar pela sociedade os ideais de certos grupos, agindo de
forma persuasiva, a ideologia entra em todas as esferas da sociedade (GARCIA, 1988,
p.78) a sua função seria a de formar as ideias e convicções dos membros da sociedade
orientando o seu comportamento social (GARCIA, 1988, p 10). A propaganda
ideológica vai ser criada no agitado contexto dos regimes totalitários na Europa na
década de 1930.
Para Goebbels a propaganda poderia ser descrita em apenas uma regra, as
massas são ignorantes e por isso, deveria passar uma mensagem clara e direta agradando
a quem ela é direcionada e desta forma, seu modelo deveria ser o do entretenimento e
não o da política. A propaganda ideal para Goebbels era simples sem complexidade, tal
fato fica claro, através de um trecho de seu diário. Segundo Goebbels:

A propaganda deve, portanto, ser sempre essencialmente simples e repetida.


Afinal de contas, obterá resultados práticos, no sentido de influenciar a
opinião pública, aquele que puder reduzir os problemas à sua expressão mais
simples, e que tenha coragem de persistir em apresentá-las sempre na sua

106
forma simplificada, apesar das objeções dos intelectuais. (29/1/42 apud
MARTINO)

De forma sutil, a técnica utilizada por Goebbels, misturava entretenimento e


política, suja intenção era que os símbolos e ideais nazistas, dividisse o espaço com a
diversão, pois seria uma forma de discutir e induzir ideais, onde as pessoas não se
sentissem entediadas. Em uma passagem de seu diário o ministro faz uma explicação
explicando o porquê do uso da técnica. Segundo Goebbels:

Há sempre ideólogos em nosso meio que acreditam que o tripulante de um


submarino, que sai da casa de máquinas sujo e cheio de manchas de óleo, não
quer ler outra coisa senão O mito do século XX [livro doutrinário]. Isso, claro
está, é pura insensatez. Um homem desses não está absolutamente disposto
para tal leitura, e muito menos quer que lhe venham ensinar um modo de
viver. Ele está vivendo segundo nosso costume e não quer receber instruções
para isso. O seu maior desejo é descansar o corpo e o espírito, e nós devemos
tornar-lhe possível a realização de seu desejo proporcionando-lhe literatura
amena, música leve pelo rádio e coisas desse mesmo gênero. Estou pondo em
prática essa política em nossos programas radiofônicos e cinematográficos,
bem como em nossa literatura. Depois da guerra poderemos voltar a falar em
educação ideológica. Por ora, estamos vivendo nossa ideologia, não
precisamos aprendê-la. (27/02/1942)

A propaganda nazista não estaria vinculada a uma projeção tática, mas ela se
tornou uma arte peculiar, de caráter particular com leis próprias, assim como a
diplomacia e os exércitos. Devido a essa característica peculiar da propaganda hitlerista,
a propaganda nazista se constituiu como uma forma de ―Artilharia Psicológica‖ que vai
usar de tudo com força, onde a ideia não seja refletida, mas que apenas penetre.
Domenach vai destacar que:

...a propaganda hitlerista mergulha suas raízes nas mais obscuras zonas do
inconsciente coletivo, ao gabar a pureza do sangue, ao glorificar os instintos
elementares de violência e destruição, ao renovar por meio da cruz gamada
remotíssima mitologia solar. Ademais, emprega sucessivamente termos
diversos e até contraditórios com a única preocupação de orientar as
multidões ante as perspectivas do momento. (DOMENACH, 2002, p.49).

Domenach chega à conclusão que os homens que seguiam Hitler, e que


morreriam por ele, certamente o teriam odiado, contudo, os efeitos da propaganda já os
tinham deixados cegos, condicionados completamente, eles perderam a capacidade de
pensar, de odiar eles haviam se tornados marionetes autômatos em suas mãos.

As massas

107
Outro conceito muito utilizado, devido a sua proximidade com a propaganda é a
ideia de massas. As massas são vistas normalmente como características essenciais da
propaganda, pois as propagandas são elaboradas para conquistar e induzir ―as massas‖
ou mesmo quando ao quando se referem aos meios de comunicação e de mídia como
sendo ―de massas‖. É possível atribuir como sendo pertencentes ―às massas‖ as pessoas
que possuem baixa racionalidade, que são facilmente influenciadas pela emoção, é
estruturado em um corpo único, sem vontade própria e sendo manipulados pela
propaganda. (MONTEIRO, 2015 p10)
O Século XX é conhecido pelos seus conflitos militares, ideológicos e pelo
autoritarismo e onde o conceito de massas foi amplamente empregado, tais eventos só
foram possíveis devido ao contexto social do mundo contemporâneo. Monteiro destaca
que seria complicado determinar o que seria ás ―massas‖ devido à carência dos grupos
sociais que se formariam em caráter homogêneo apesar de estarem em grandes
multidões. A ideia de massas foi ligada à categoria de ―massa de trabalhadores‖, para
passar a ideia que seria composta por trabalhadores industriais de centros urbanos,
representando a maior parte da população. Contudo, esta seria uma definição ampla
demais, que abarcaria vários indivíduos e grupos que possuem características contrarias
as apresentadas na ideia inicial, tais como racionalidade, comportamento e interesses
diferentes. (MONTEIRO, 2015 p11)
Outra visão ―de massa‖ que se relaciona com o contexto deste trabalho, pode ser
observada em Origens do Totalitarismo, elaborado pela filósofa Hannah Arendt, que vai
destacar que ―as massas‖ seriam presentes e necessárias para o experimento da política,
seus membros poderiam ser caracterizados como facilmente manipuláveis, não tinham
interesses de classes, não tinham opinião própria e vão se completar ao apresentarem
interesse apenas na sua representação política. A massa seria basicamente um tipo de
organização que era neutra politicamente e indiferente, não possuíam afinidades com
outras organizações, pois não possuíam características ideológicas próprias.
Segundo Arendt:

Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas quer
um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política. As
massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes
aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos
determinados, limitados e atingíveis. - O termo massa só se aplica quando
lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua
indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa
organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização

108
profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem
em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente
indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder
de voto. (ARENDT, 2013, p 438-439)

Outro autor que vai destacar um contexto para o conceito de massa é Elias
Canetti na obra, Massa e Poder, de 1960. Para Canetti, não há temor maior para o
homem do que o desconhecido, ele não quer ter contato com aquilo que lhe é estranho.
Canetti nos mostra de forma ímpar que o homem é perseguido por um medo e nesse
momento, ao tentar se resguardar cria em torno de si as mais variadas formas de se
proteger. O autor confirma que algumas destas formas de se proteger serão fortes o
suficiente, mas no momento em que essa proteção não for suficientemente forte, o
homem se sentirá indefeso e desamparado. Haverá formas mais resistentes de se
proteger desse temor, seja pela distância ou através de muros ou grades. A intenção é
estar o mais distante possível do desconhecido. Ao se ter contato com o desconhecido,
haverá as mais variadas reações psíquicas, entrando em estado de alerta e também se
distanciando por questão de segurança. (CANETTI, 2013, p.13-14).
Contudo, ao estar em contato com a massa todo esse medo vai desaparecer
devido a sua densidade, pois a massa vai comprimir uns nos outros sem que seja
percebido. Dessa forma, a massa será capaz de tirar o medo do contato com o
desconhecido, o que é perceptível em muitas pessoas. A necessidade de se criar um
distanciamento seguro do desconhecido vai evidenciar as diferenças individuais e
sociais entre as pessoas. A massa vai tornar todas as pessoas parecidas, mas a partir do
momento que a massa desaparecer, o momento anterior retorna, voltando ao estado de
distanciamento e medo. A massa possui características peculiares como o impulso à
destruição, ideia de perseguição, pânico e são muito vulneráveis à domesticação.
(CANETTI, 2013, p.14). Para o autor, o fenômeno da massa é ao mesmo tempo
misterioso, podendo também ser um fenômeno universal, pois a massa vai se formar em
um local onde antes nada existia. Segundo Canetti:

Umas poucas pessoas se juntam – cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi
anunciado; nada é aguardado. De repente, o local preteja de gente. As pessoas
afluem provindas de todos os lados, e é como se as ruas tivessem uma única
direção. Muitos não sabem o que aconteceu e se perguntados, nada têm a
responder; no entanto, tem pressa de estar onde a maioria está. Em seu
movimento há uma determinação que difere inteiramente da expressão da
curiosidade habitual. O movimento de uns – pode-se pensar – comunica-se aos

109
outros; mas não é só isso: as pessoas têm uma meta. E ela estará antes mesmo
que se encontrem as palavras para descrevê-la: a meta é o ponto mais negro – o
local onde a maioria encontra-se reunida. (CANETTI, 2013, p. 14-15).

A propaganda foi um instrumento que ganhou notoriedade no século XX devido


às novas condições que a sociedade moderna apresentava. Podemos então dizer que a
propaganda foi uma união de fatores e técnicas que possibilitou aos governos
principalmente os fascistas e totalitários da Europa na década de 1930 a regerem ao seu
modo as nações. A propaganda como forma de estudo ganha destaque a partir da
Primeira Guerra Mundial, pois foi a partir do início do século XX que os conceitos
começam a tomar formas para entrar no mundo moderno. A massa assim como a
propaganda, se modifica para entrar em um novo contexto já que as técnicas e fatores
também vão girar entorno delas.
A propaganda no regime nazista teve um efeito devastador nas massas o que
pode ser compreendido pelo fato da propaganda nazista atingir o seu interlocutor de
maneira descontraída, sem discursos enfadonhos. A propaganda nazista falava aos
alemães o que eles queriam ouvir, eram contraria aquilo que os cidadãos não gostavam
e principalmente atribuíam aos outras uma responsabilidade que para os alemães e para
o nazismo não era sua.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CANETTI, E. (1983). Massa e poder [Masse und macht]. São Paulo: Melhoramentos.
(Trabalho original publicado em 1960).
D‘ALESSIO, Márcia Mansor; CAPELATO, Maria Helena. Nazismo: Política, Cultura
e Holocausto. São Paulo: Atual, 2004.
DIEHL, Paula. Propaganda e Persuasão, na Alemanha Nazista. São Paulo: Annablume,
1996.
DOMENACH, Jean Marie. A Propaganda Política. 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia
do Livro, 1963.
GARCIA,Nelson Jahr. O que é propaganda ideológica. São Paulo, abril Cultural:
Brasiliense,1985. Coleção Primeiros Passos; 37
LENHARO, Alcir. Nazismo. O Triunfo da Vontade. São Paulo: Ática, 2003.
MARTINO, L. M. S. A estética da propaganda política em Goebbels. Comunicação
&Política, v. 25, p. 35-53, 2007.
MONTEIRO,Gustavo Feital Propaganda: análise de um conceito 2015 Artigo
disponível em
http://www.periodicos.unb.br/index.php/intercambio/article/download/13172/9252
RIBEIRO, João Jr. O que é Nazismo. São Paulo: Brasiliense, 2005.
TCHAKHOTINE, Sergei. Mistificação das massas pela propaganda política. Brasília:
Argumentos, 2003.

110
MULHERES EIS O SEXO! NOTAS SOBRE REPRESENTAÇÕES DA
EMANCIPAÇÃO SEXUAL FEMININA NO CINEMA BRASILEIRO DOS ANOS
1970

Fabiana Oliveira Leite


Cláudia de Jesus Maia

Resumo: Este ensaio teve como interesse os limites discursivos de representações da


sexualidade feminina no cinema brasileiro dos anos 1970. E, assim, observou a produção
dos sujeitos, dos corpos e das representações no universo cinematográfico, que é na
perspectiva de Teresa de Lauretis (1994) uma tecnologia de gênero. Isto quer dizer que o
cinema, quando produz representações generificadas e as leva ao plano ―real‖ das relações
sociais, se torna um agente capaz de reificar/criar, aos apelos da insistência, as interpelações
por onde o Gênero se faz existir. Assim, foi possível problematizar em filmes da década de
1970, no cinema brasileiro, o investimento de matrizes saturadas para a sexualidade
feminina. Estas representações exuberantes, afirmativas e, em certa medida compensatórias,
nada tiveram de libertárias ou emancipadoras, conforme os códigos da afamada liberação
sexual, mas movimentavam uma série de sentidos relativos ao imaginário sexual masculino.
Deste modo, caminhou-se no sentido identificar e historicizar as discursividades
movimentadas na construção dessas representações femininas em Superfêmea (1972) e A
Dama do Lotação (1978) .
Palavras-chave: Sexualidade; Representações; Gênero; Cinema Brasileiro.

Querida pornochanchada ...


Em meio a nudez e tiradas sarcásticas de humor que iam da brejeirice a picardia, a
pornochanchada ganhava espaço e se destacava exponencialmente entre as produções
cinematográficas da década de 1970. Esse fato é, no mínimo, curioso quando pensamos as
particularidades contextuais do cenário brasileiro, de onde instalara-se, desde os anos 1964,
através de um golpe militar, um período político sombrio caracterizado por censuras,
repressões, perseguições, que a historiografia brasileira denominou como os anos de
chumbo.
Antes de ser um gênero do cinema brasileiro, a pornochanchada foi mais uma
tendência ou um estilo de produção característico da década de 1970. E se circunscreveu no
clima mundial de liberação sexual e dos costumes, colocando em cena, de um modo
chanchadesco e satírico, as questões emergenciais daquele contexto: pílula anticoncepcional
feminina, orgasmo feminino, cultura gay, relações familiares, feminismo, movimento
hippie etc.
No que se refere a seu teor erótico é válido pontuar que a nudez e o sexo entravam
nas salas de cinema e prometiam ser o grande destaque. Há quem diga que os corpos nus
das belas atrizes e a promessa de cenas quentes era o que, de fato, lotavam os cinemas.
Valter Salles (1995) analisa o erotismo no curso da pornochanchanda e questiona os

111
sintomas de uma suposta transgressão moral sob a qual esta se apresenta. ―Cabe então uma
questão: se sempre transgredimos as normas, porque nossa relação com o poder nunca se
altera? ‖ (SALLES, 1995, p.69) O autor é perspicaz ao analisar os modos da sexualidade
representada, cujo caráter moralista e conservador projeta representações toscas, machistas,
racistas, risíveis e grotescas, mas incapazes de promover, de fato, rupturas com os códigos
moralistas vigentes. ―Conservadorismo não apenas no sentido da preservação dos chamados
bons costumes, mas sim de todas as ideias e conceitos em que estamos mergulhados: sejam
ele bons costumes, sejam preconceitos, ou estereótipos‖ (SALLES, 1995, p.70)
Em cena o desviante, o anormal, e a via de regra: nada há de transgressor. Os jogos de
cena, o que se mostra e como se apresenta, desmontam esse véu de transgressão sob o qual a
premissa do erotismo apresenta. A ironia, a jocosidade, é antes um elemento de reificação de
condutas moralistas e conservadoras, de relações estáticas e idealizadas, incapazes de
introduzir vias de contestação aos costumes. A sexualidade é afirmativa, e não libertária.
Por isso é que muito se falou do sexo na pornochanchada: machões e mocinhas,
mulheres ávidas por aventuras sexuais, fantasias e fetiches em todos os lugares, dos mais
comuns aos mais irreverentes. O imaginário sexual seguia por demandas do cotidiano e do
excêntrico, percorrendo o ilimitado acervo que a imaginação e o cinema podiam promover
ao público. Assim, inventavam-se as sex symbols e seus estereótipos movidos pelo fetiche
de um público masculino: das virgens e prostitutas, das esposas desvirtuadas, das mulheres
traídas e sedentas por vingança, das freiras, das viúvas, das engraçadinhas, bonitinhas e
ordinárias. Todas elas curiosas e estupefatas com as desventuras de seu corpo
instintivamente sexual, dos segredos e sensações ininteligíveis de sua sexualidade
exuberante. O trunfo? Um misto de corpos, de sexo e risadas.
Deste modo, é preciso que se percebam as relações e os discursos que são colocados
em percurso, cristalizados nos referentes centrais – heterossexuais, brancos e masculinistas.
Logo, o interesse que se anunciou insistentemente até então, se delineia nas curvas que
seduziram e apregoaram os olhos às telas dos cinemas nos anos 1970. Em certa medida,
procuramos pensar a produção da sexualidade feminina a partir das representações, dos
limites da cena, da tela, do corpo, e da orientação dos sentidos que a colocou no centro dos
significados do erotismo, da pornografia, ou da afamada sem-vergonhice do cinema erótico
brasileiro.
Neste sentido, propomos um breve passeio por dois filmes circunscritos nestes
limites contextuais e discursivos, cujas abordagens são sugestivas ao tratar das
representações e discursividades que integram a sexualidade feminina como elemento

112
preponderante na cinematografia brasileira produzida nos anos 1970. Trata-se de A
Superfêmea (1972) e A Dama do Lotação (1978).

Uma mulher é uma mulher (?)


Sob a direção de Aníbal Massani Neto e roteirizado por Lauro César Muniz,
ASuperfêmea estreou em 1972. Seu elenco principal compunha-se de nomes já
reconhecidosnaquela época: Perry Salles, Giórgia Gomide, Silvio de Abreu, além de ter como
protagonista ninguém menos que Vera Fischer – que despontava como sex symbol brasileira.
O filme, que prometia ser um grande sucesso de bilheteria nos cinemas brasileiros,
contava com uma história divertida e intrigante. Já na primeira cena é apresentado, a partir
de uma confabulação de feministas, a grande sensação do momento, a invenção do século: a
pílula anticoncepcional masculina. Daí que se fizeram o maior alvoroço e a maior
propaganda, entretanto, um probleminha com o mercado consumidor se colocava como
impedimento para o consumo: a famosa brochada. Os homens apavorados com a
possibilidade de redução de sua potência sexual se recusavam a fazer uso do medicamento.
Assim, um gênio da publicidade é acionado para pensar em uma estratégia pulsante
que coloque a pílula no, no baby em todas as casas brasileiras. A ideia do Gênio é associá-la
com os três elementos genuinamente brasileiros: mulher, café e jogo. E se tratando do
primeiro elemento, não podia ser qualquer mulher, ela tinha que ser A SuperFêmea! Linda,
sedutora, sensível, com certa medida de recato e encanto, capaz de milagres de satisfação
sexual, pronta a contestar qualquer possibilidade do sintoma indesejável.
Mirabolâncias a parte, o filme segue pelo estupor sexual dos anos 1970, de onde
nota-se o escárnio para com as demandas dos movimentos feministas, e até mesmo críticas
ao governo ditatorial e suas propostas risíveis de propaganda. Isto fica mais evidente com
as reviravoltas do gran finalle chanchadesco e nosense: A Superfêmea é aclamada por toda
a nação brasileira, em um desfile épico por Brasília, ao som de Pra Frente Brasil, após dar a
luz a 100 filhos e se tornar, assim, um recorde afamado e aclamado pelo clima
desenvolvimentista brasileiro. As exorbitações do roteiro, e de toda a concepção estética
deste filme, propõem aglomerados de sentidos postos em voga sem muita preocupação, ou
mesmo compromisso, com a coesão e coerência narrativa. São apresentadas e abordadas
uma infinidade de questões críticas sem propor problematizações mais aprofundadas.
Ao traçar, ainda que superficialmente, uma espécie de sinopse procuramos
evidenciar certas linhas discursivas, pistas da fabricação constante de um sexo que se
desdobra em corpo feminino. A Superfêmea é a saturação máxima de uma construção

113
naturalizada enquanto feminilidade: ela é a mulher perfeita, imaginada e reconfigurada aos
códigos estilísticos e estéticos deste contexto. Ela se apresenta para o domínio masculino, é
adestrada e refeita, conduzida ao imaginário sexual de onde se faz desejo, de onde se
reconfigura aos modos do consumo. Isto se dá em tal nível, que não se poderia esperar
menos que 100 filhos de uma Superfêmea! Um desdobramento final, que é no mínimo
interessante.
Em um outro movimento, já ao fim da década de 1970, A Dama do Lotação
(1978), dirigido por Neville D'almeida, era lançado. Protagonizado por Sônia Braga, além
de contar com outros atores consagrados do cinema da época, rapidamente se tornou um
fenômeno recordista em bilheterias. O filme trazia as telas o sexo impetuoso de uma mulher
casada, de boa família, que após ser estuprada por seu marido na noite de núpcias, procura
por aventuras sexuais com desconhecidos em transportes públicos.
Ambientado no calor do Rio de Janeiro este filme promove a extroversão e traz o
cotidiano dos espaços públicos, do vai e vêm dos transportes que cortam a cidade, e ajusta
o erotismo à proximidade friccionada dos corpos nos transportes coletivos. Assim, o filme
é ―concentrado no teatro da liberação de Solange, conduzido sem decoro, porém ainda
encharcado de uma culpa que as cenas expõem em chaves às vezes grotescas (pois o sexo
continua rimado a sujeira e traição) ‖ (XAVIER, 2002, p. 192). Cabe aqui problematizar o
que se chamou de liberação sexual, que aparentemente é colocado como tema. Aplaudiu-se
excitadamente o que Ismail Xavier (2002) chama de teatro da liberação, ou seja, a
figuração de fetiches circulantes no imaginário sexual brasileiro da época.
Um descaminho de análise observaria mais atentamente ligaduras discursivas que
se unem mais aos arroubos de um aparato preciso, eficaz e ardiloso. O teatro da liberação
de Solange é, de fato, libertador? Ou seria uma corrente, um pouco mais requintada, um
lastro de algo que se apresenta como novo? Solange, a moça de família, que se casa
virgem, a que é deflorada; esta que é tomada pelo sexo, que não o abandona e que não se
submete ao dever conjugal de fidelidade.
Daí que o sexo venha a ser um mote de experimentação, um regime cabível de
insatisfação e renego de algo que se impõe a ela, todo o tempo. Se o caminho é o sexo, ela
se faz nele, por ele. Por todos os arremedos em que se dispõe. Sejam eles, todos os homens,
e qualquer um. Branco, Preto, Feio, Bonito, Novo, Velho, Gordo, Comum, do motorista ao
passageiro, na praia ou em um inferninho qualquer. Não importa, desde que lá ela não seja
a esposa. Desde que lá ela não tenha a obrigação. Mas, não se trata de uma obrigação que
renega. Solange é uma esposa perfeita: cativante, solícita, amorosa e compassiva. Mas, o

114
encerro disso é que não lhe cabe, ela excede. Por isso o fora, a lotação, a experiência. Ou o
teatro, a fera, o que não cabe à mulher-esposa. São notas de um sexo fugitivo, arredio,
exuberante, indomado.
O fim do filme? O marido, após saber com detalhes das desventuras da esposa-puta,
deita em uma cama e diz: morri pro mundo. Não é possível que se desfile por aí ao lado de
uma mulher que se entrega a qualquer um. Não é permitido que a honra de um homem se
perca, assim, tão cruamente, todos os dias em qualquer lugar da cidade. É inaceitável que
um homem não controle o sexo de sua mulher. Morri pro mundo. Ela, como a esposa casta,
vela o corpo do morto-vivo todos os dias, antes de dar umas voltas por aí.
Daí o corte. Cena e ato: as salas de cinema se esvaziam, o público retorna a rotina,
muitos preocupados com o horário da condução. As lotações e o vai e vêm, o sacolejo, os
bancos pequenos e apertados, os que ficam em pé, os que acham que podem se espremer
entre uns e outros, que podem se esfregar pois a qualquer momento ela poderá surgir: A
Dama do Lotação. Desde que ela não seja a sua esposa, a sua filha, sua mãe. Pois estas que
se deem o respeito.
Ainda assim, a liberação parece pungente. Solange escapa, consegue se descolar da
esfera conjugal: Solange foge, não foge? Ela faz o que quer, com quem quer, a hora quer,
não faz? Ela se emancipa fora dos limites conjugais, sua liberação é esse exceder? Não.
Solange não foge, não se emancipa, não se libera. Solange é concebida como uma mulher
centrada em uma representação de sexualidade perigosa, de um algo anormal que vem e lhe
perturba. Ela é um crime familiar, um perigo social. As curvas insinuantes do corpo de
Sônia Braga estão ali pra isso, tal qual um recado aos expectadores: Vejam o que pode um
corpo indomado. Deliciem-se, mas vejam do que ele é capaz. Ela não tem escrúpulos:
seduz o pai e o melhor amigo de seu marido. Ela pode matar socialmente um homem.
De modo que os filmes citados tenham enredos e gêneros cinematográficos
distintos, e até mesmo certo distanciamento temporal de produção, ambos tratam de algum
modo da sexualidade feminina, construída a partir de limites discursivos tornados
biológicos, construtores desses corpos e curvas misteriosas, ardilosas, enrubescedoras,
exuberantes, e exatamente por isso perigosas. Passíveis de olhar atento, de um vigiar
constante, e de um controle efetivo.
Nesse sentido destacam-se os estudos de Tânia Swain (2000) referentes as
representações que constroem o sujeito Mulher. A maternidade é o fio condutor de análise
da referida autora, que a designa como resultado de significações sociais, tratado como
naturalizado (r) e significativo de uma essencialização de um destino biológico que define o

115
feminino. É em torno destas codificações, matrizes sexuais e sexuadas, que se estabelecem
identidades e os fios, do que é ou não uma ―verdadeira mulher‖, se formam. Têm-se,
portanto, ao centro da análise a reprodução, dotada de um conjunto instrumentário
simbólico, ―onde o masculino se erige como norma e paradigma do humano, pólo
hierarquicamente superior, e a capacidade específica de procriação do feminino torna-se o
próprio feminino‖ (SWAIN, 2000, p.55). Assim, a mulher (feminino) é o próprio sexo, mas
o detentor/ quem se apropria de tal sexualidade é o homem (masculino). Segundo Tânia
Swain,
A face múltipla do poder social continua, desta forma, a desenhar um perfil
humano construindo corpos sexuados desdobrados em sexualidade, em u
/modelo binário de divisão do mundo e de valores. O lícito e o ilícito do sexo, a
boa e a má sexualidade se determinam implicitamente em torno da possibilidade
de procriação. (SWAIN, 2000, p.56)

Em A Superfêmea têm-se a representação desse corpo-fêmea que se faz ao


masculino, cujo sexo é tomado as últimas gotas em um corpo ultra-reprodutor. Um corpo
que é capaz de aglutinar em si e potencialmente a feminilidade, de tratar-se ao modo de um
jargão vivo: Superfêmea. E esta apresentação, tão evidente, passa. Já que é quase de uma
normalidade este sonho de uma mulher, que é tão mulher a ponto de esgotar-se a mulher e
só restar a potência de fêmea. Ser sexo e reprodução.
Assim, a sexualização do feminino se presentifica nos discursos da arte, literatura,
entre outros; a conexão entre mulher, sexualidade e identificação do sexual com este corpo,
tem sido preocupação tanto do movimento de mulheres, quanto da crítica feminista do
cinema. Ao falar das chamadas tecnologias de gênero, Teresa de Lauretis (1994)
problematiza as formas de representação da sexualidade feminina nas artes em geral, onde o
cinema é destacado. É na teoria cinematográfica que estarão guiados os questionamentos de
Lauretis: como a representação de gênero é constituída pela tecnologia específica? E como
ela é construtora de subjetividades pela plateia, sobretudo um conceito já marcado pelo
gênero?
Estou falando aqui da sexualidade enquanto uma construção e uma (auto-)
representação; e nesse caso, como uma forma masculina e outra feminina,
embora na conceitualização patriarcal ou androcêntrica a forma feminina seja
uma projeção da masculina, seu oposto complementar, sua extrapolação – assim
como a costela de Adão (LAURETIS, 1994, p. 222)

Aparentemente, a produção erótica brasileira, ao menos a pornochanchada – ou a


que se destina ao grande público – é notificada por esses corpos femininos. O feminino
curvoso – seios e bunda, cabelos, cílios, silhuetas acinturadas – tudo isto se torna um

116
indicativo categórico: eis o sexo. Daí que tanto se fale dele, que o tempo inteiro o produza
incessantemente. Desde a escola, na família, no convívio, e agora no cinema. E o cinema
enquanto fonte inesgotável de atrizes, atores, corpos, cenas, espaços, fetiches. Tudo ali,
circulando.
Deste modo, quando Teresa de Lauretis toma o cinema enquanto uma tecnologia
social, ela observa justamente a relação entre a técnica cinematográfica e o social, cuja
crítica só é possível a partir de minuciosas análises referentes a seus aparatos discursivos.
Assim, a autora sugere a inserção dos estudos de representações e da construção dos
sujeitos na teoria feminista do cinema. ―A mulher não pode transformar os códigos; ela
apenas pode transgredí-los, complicá-los, provocá-los, subvertê-los, fazer da representação
uma armadilha‖ (LAURETIS, 1994, p.120-121).
Nesse sentido, a autora defende que assumir o papel da contradição significa
ressaltar a não identificação das mulheres com as mulheres. Trata-se de irromper neste
aparato engendrado reconfigurações que fazem com que as representações estigmatizadas
transbordem, que excedam os limites de sua composição, instabilizando o centro de suas
feituras. Mas, para tal, é preciso que estas representações centrais sejam problematizadas,
justamente onde ousam se vestir do natural, onde transitam de modo a fazer emergir o
anormal, o inadequado, o avesso. Este que é outro do Outro, que se figura e se reafirma aos
apelos da insistência e da repetição, que é mostrado como desqualificante, perigoso,
imprestável, e se coloca a toda prova da prerrogativa daquilo que é, no caso, Mulher. Por
isso, é precisamente neste aqui do texto que irrompe uma cena desse avesso.
A lotação pára, Solange desce. Tira a calcinha de puta, veste a calcinha de esposa.
Volta pra casa, abraça o marido e pergunta como foi o dia na empresa. Mais um dia
comum. Daí a mulher que excede, a mulher perigosa, a mais perigosa de todas porque
dissimula. Porque é capaz dos piores pecados, das piores imundices, e ainda assim parecer
santa, parecer limpa.
Assim, faz-se a representação moderna da antiga histérica. Esta que foi capaz de
matar marido e filhos, que se acometeu por um mal ulterino; e tal órgão agindo na formação
de um ser descontrolado, vulnerável e cheio de intempéries. Faz-se, aqui, menção aos
tantos relatos de casos psiquiátricos dessas mulheres perdidas, monstruosas, que perderam
tudo e a si mesmas.
Portanto, reinventam-se os mitos da sexualidade contemporânea: da histérica
moderna à ninfomaníaca, a quem todos se sentem seduzidos e amedrontados; do
homossexual anormal ao homossexual aidético, fantasiado pelo terror de suas práticas,

117
expurgado do meio social sob o julgo preocupado com os processos de assepsia do corpo
social: novamente o estado crítico das excreções e excedências. E, por fim, o divã. Com os
ouvidos estratégicos, as apostas da Psicanálise, e a dança das áreas médicas sintonizadas à
composição de limites educativos para as práticas sexuais.

Então libera!
Com o passar das décadas, os contemporâneos da liberação sexual, nos anos 1970,
olham a sexualidade a partir de um outro adestramento, propõem-se: libertemos o sexo, que
por tanto tempo reprimimos! Interessante notar que, contudo, os desdobramentos desse
movimento reafirmam a sexualidade no centro das práticas e das relações. Se o sexo, como
problematizou Michel Foucault em A História da Sexualidade: A Vontade de Saber (1988),
é a voz primeira que diz do sujeito, que regula, que orienta suas aptidões, posições e
relações sociais, é por meio dele que o masculino e o feminino se (re) afirmam como dois
modos únicos de vida humana ocidental.
Portanto, é observável que, no contexto brasileiro da década de 1970, a composição
das discursividades referentes a sexualidade feminina estiveram voltadas ao plano
representativo de um suposto sexo biológico, produzindo corpos a efeito de
naturalização/materialização do instinto sexual. As representações femininas permaneceram
centradas na natureza. E já que (discursivamente) a natureza é o sexo, não há como fugir do
destino biológico que parece se impor as mulheres (corpo feminino). Os sentidos movidos
ao compor representações de uma suposta liberação sexual feminina nos filmes analisados,
de modo algum estão promovendo a emancipação sexual feminina. Ao contrário,
investiram em representações estereotipadas, marcadas pela precariedade e saturação. E se
articularam a produção contínua de corpos e sexualidades em limites estáveis, confortáveis
e aceitos nos termos dos sujeitos que importam.
Bibliografia
Fontes
A DAMA DO LOTAÇÃO. Diretor: Neville d‘Almeida. Brasil, 1978. VHS. 111 minutos. Color.
A SUPERFÊMEA. Direção: Aníbal Massani Neto. Brasil, 1973. VHS. 100 minutos. Color.
Referências Bibliográficas
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impasses – o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
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Educação, n. 3, p. 67-70, 1995.
SWAIN, Tania Navarro. A invenção do corpo feminino ou a hora e vez do nomadismo identitário.
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47-84, 2000.
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

118
CINEMA MARGINAL BRASILEIRO: ENTRE A CONTRACULTURA
E A REPRESSÃO

Fabio Santiago Santos

RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de apresentar e discutir algumas


possibilidades teórico-metodológicas da relação entre o cinema e a História
mediante a análise de representações imagéticas da contracultura veiculadas no
cinema marginal brasileiro, produzido nos anos 1960-70. Pretende-se compreender o
modo com que foram vivenciados, compartilhados e dados a ver, por meio de filmes
dos diretores Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, os fenômenos da contracultura e
da repressão nos campos político e cultural. O contexto pós-AI-5, que combinou um
recrudescimento do autoritarismo e a novidade da ―revolução cultural‖ no Brasil,
deve ser observado dentro de um campo interdisciplinar, devido à necessidade de se
pensar o filme como fonte específica, com linguagem e construção históricas
singulares, e, portanto, com suas próprias demandas e condições de abordagem.
Examinar imagens e elementos simbólicos mobilizados pelos cineastas ―marginais‖
e o modo como, articulados ao contexto histórico, buscam fazer sentido, pode
contribuir para uma interpretação do passado do país baseada em fontes promissoras
e ainda pouco exploradas. Nesse sentido, a análise se apropria das contribuições do
historiador Marcos Napolitano, que sugere para as fontes audiovisuais um olhar
atento do pesquisador às estruturas internas de linguagem e aos mecanismos de
representação da realidade.

Palavras-chave: Cinema; Contracultura, Ditadura.

Brasil, 1970: fechamento político e transgressão marginal


O cinema marginal brasileiro 40 está entre as mais radicais manifestações
artísticas produzidas no país no final da década de 1960 e começo da década de
1970. As experimentações e rupturas percebidas nos aspectos técnico-estéticos e nas
temáticas e enredos encenados podem ser associadas a características próprias ao
contexto de produção dos filmes, sobretudo quando se avalia a dinâmica no campo
cultural brasileiro do período. Ainda que a produção artística alinhada às esquerdas
tenha conseguido sobreviver às investidas da ditadura militar 41, o recrudescimento
das medidas autoritárias e violentas, materializado na decretação do Ato
Institucional Número 5 (AI-5), teve um impacto significativo, uma vez que os riscos
da livre-expressão logo foram sentidos. Em 1969, por exemplo, os compositores

40
Ressalta-se que não houve um movimento ou escola cinematográfica de Cinema Marginal. Muitos dos
diretores e artistas que fizeram parte, de algum modo, desta produção não se assumiram enquanto tal. No
entanto, concordamos com Fernão Ramos que afirma ter tido essa produção cinematográfica, cujo auge se
deu no início dos anos 1970, uma consistência considerável, que permite localizá-la e isolá-la a partir de
algumas características compartilhadas.
41
Conforme o crítico literário Roberto Schwarz, houve, a despeito de uma ditadura de direita, uma
hegemonia cultural da esquerda no Brasil da segunda metade dos anos 1960 (SCHWARZ, 1978).

119
Gilberto Gil e Caetano Veloso foram detidos e forçados a um exílio em Londres
após um período em que ambos testaram inúmeros limites da música brasileira,
ressignificando-a mediante o emprego de elementos novos, tais como a estética do
rock „n‟ roll, a influência da cultura pop e as performances corporais ousadas.
Rejeitados por setores da esquerda justamente por essas razões, acusados de, no
melhor dos casos, valerem-se de uma estratégia de contestação equivocada, os
tropicalistas incomodaram o regime militar a ponto de se verem impossibilitados de
trabalhar e criar no país.
O incômodo do regime militar e dos setores mais ortodoxos da esquerda com
manifestações vanguardistas nas artes - sobretudo música, cinema e teatro -, pode
ser justificado, em partes, pela própria novidade da chamada ―revolução cultural‖
(HOBSBAWM, 2010) do final dos anos 1960, que abarcou transformações e
rupturas por parte de setores da juventude urbana. Esse fenômeno histórico, segundo
o historiador Eric Hobsbawm, tem como uma de suas principais características o
internacionalismo. A profunda crise entre as gerações e o fortalecimento da
juventude enquanto agente social independente, que se manifestam principalmente
nos Estados Unidos, segundo o autor, estão ligados à expansão de toda uma cultura
jovem pelo mundo, difundida por meio de filmes 42, discos, TV e mesmo pelo
turismo juvenil e os programas de intercâmbio universitários. Embora tenha se
expressado de modos e com intensidades variados, o fenômeno da contracultura se
espalhou rapidamente por muitos países, sendo mal compreendido e/ou rejeitado
pelos setores socais mais conservadores. Em um país dominado por uma ditadura
militar essas questões se revestem de uma tensão particular.
Parte dessa tensão deve-se à modernização conservadora do país, que começa
a ser empreendida pelo regime a partir de 1964, levando a um crescimento
econômico próximo ou superior a uma taxa de 10% (ALVES, 2005, p.176). Foi
colocada em prática uma política econômica pautada na combinação entre capital
nacional e estrangeiro, com vistas a uma alteração do padrão de consumo das classes
médias superiores e, assim, ao crescimento do setor de bens duráveis (ALVES,
2005). Os efeitos desta lógica produtivista, segundo a qual é preciso que o país
cresça e acumule capital antes de empenhar-se numa distribuição das riquezas,
puderam ser rapidamente sentidos.

42
O autor ressalta, no entanto, que o cinema estadunidense chega à década de 1960 perdendo muito de
sua predominância (HOBSBAWM, 1995, p.321).

120
Enquanto se nota o aprofundamento da desigualdade social, devido à grande
concentração de renda do período, de outro lado há a percepção de uma euforia por
parte de setores da classe média, deslumbrada com a possibilidade de consumo por
meio da expansão do crédito. Este sentimento traduziu-se na melhoria da relação
entre o governo do general Emílio Garrastazu Médici e estes setores sociais, que
passaram a se sentir contemplados pelo regime militar (ALVES, 2005, p.182). A
própria propaganda produzida pela ditadura incentivava o apoio destas parcelas da
população, buscando construir sua legitimidade. Concomitante, intensificava-se o
aparato repressivo contra grupos e indivíduos considerados ameaçadores.
Coincide com esse período de rápido crescimento econômico e conquista de
apoio das classes médias uma radicalização também na ―dialética da violência‖
(ALVES, 2005). Com o fechamento do regime a partir do AI-5, multiplicam-se as
ações dos grupos engajados na ação armada, cujo ato mais audacioso foi o sequestro
do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969
(ALVES, 2005, p.189). A reação do regime militar levou a mais uma onda de
intensificação repressiva, que se realizou pela formulação de dois Atos Institucionais
que reatualizavam e davam vigor à tese do ―inimigo interno‖ a ser combatido.
Segundo Alves, ―O Ato Institucional nº 14 era uma emenda à Constituição de 1967,
tornando a pena de morte, prisão perpétua e banimento aplicáveis em casos de
‗guerra psicológica, guerra adversa revolucionária ou subversiva‘‖ (ALVES, 2005,
p.190).
É neste contexto que os cineastas Rogério Sganzerla e Julio Bressane fundam
a produtora Belair, em fevereiro de 1970. A despeito do clima de repressão e da
atuação da censura, a produtora é conhecida pela proeza de produzir sete filmes de
longa-metragem nos seus quatro meses de existência: A família do barulho; Barão
Olavo, o horrível;Cuidado, madame, de Julio Bressane; Carnaval na lama;
Copacabana mon amour; Sem essa, aranha, de Rogério Sganzerla, além de A miss e
o dinossauro, dos dois diretores e da atriz Helena Ignez. Estes filmes marcam uma
radicalização das propostas cinematográficas apontadas pelos dois diretores no
início de suas carreiras.
Na filmografia correspondente ao período de existência da Belair, percebe-se
como os cineastas tensionaram a linguagem cinematográfica, propondo formas
inovadoras em relação à narrativa e aos modos de filmar. Há, nesta produção, como
em grande parte do cinema marginal, um desprezo pelo momento da criação artística

121
―enquanto um momento de certa nobreza com vistas à criação do ‗objeto belo‘‖
(RAMOS, 1987, p.67). O ato de se fazer um filme é, de certo modo, dessacralizado,
pois além da simpatia dos ―marginais‖ por uma estética de valorização do ―lixo‖ e
do grotesco, assume-se a própria dificuldade inerente à produção do filme, em
termos financeiros e políticos, como parte do gesto criador. O filme desliga-se da
noção de bom gosto e as radicalizações chegam a ignorar as possibilidades de
exibição e distribuição comercial. Dentre as características principais desse conjunto
de filmes, sobretudo os da Belair, destacam-se a recusa da narrativa clássica,
baseada na linearidade, e a inserção em uma tradição de cinema moderno, no qual o
desenvolvimento narrativo pode ocorrer mediante hipóteses, sugestões e com um
desenrolar cênico aleatório (ZANI, 2009, p.136). Segundo Fernão Ramos, nos filmes
da Belair, ―a ação parece ter uma direção única em seu movimento: no sentido da
repetição, da fragmentação e da elevação do tom dramático‖ (RAMOS, 1987, p.96 -
7). Helena Ignez, presente em todos os filmes, também radicaliza em sua atuação,
imprimindo agressividade em sua performance e colaborando para a atmosfera
anárquica que perpassa o universo ficcional encenado.
Uma análise um pouco mais detida sobre esses filmes permite compreender o
modo como o contexto os perpassa estética e tematicamente. Selecionamos, assim,
dentre a produção da Belair, os filmes Copacabana mon amour e A família do
barulho com a intenção de apresentar algumas reflexões teórico-metodológicas da
pesquisa com filmes. Temos, ainda, o objetivo de identificar elementos comuns na
representação fílmica do contexto daquela produção, oscilante entre a o fenô meno da
contracultura, em que são contestados instituições e modos de vida hegemônicos, e a
intolerância ditatorial às divergências políticas e culturais. A seleção destes dois
longas justifica-se pela disponibilidade de material bibliográfico e informações
básicas – ainda que escassas – e pelo acesso fácil a eles, via Youtube.43 Optamos por
pensar estes dois filmes através de alguns aspectos que lhes dão coerência enquanto
posicionamento nos campos artístico e social, permitindo a identificação de um
―cinema marginal‖. São várias as semelhanças entre os filmes e os contatos entre
seus realizadores, bastando-nos ressaltar o fato de que muitos desses diretores se
valeram de um modo inovador para a representação do seu contexto por meio de
uma narrativa que se volta para a subjetividade e a fragmentação, além da estética de

43
A família do barulho pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=N8hV8I05aZY;
Copacabana, mon amour, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=XCwgcD5pLGA.

122
realce dos elementos disformes ou grotescos e associados à ideia de mau gosto. São
inovadores, ainda, ao abordaram temáticas pouco usuais no campo artístico até
então, ligadas a questões do contexto de contracultura, como a valorização do ―sexo
livre‖ e do corpo, o predomínio da individualidade na composição dos personagens e
a crítica às formas de autoritarismo que extrapolam a noção política – institucional,
partidária – na qual as esquerdas mais ortodoxas se baseavam.

Copacabana mon amour e A família do barulho: a desconstrução do Brasil pelo


cinema marginal
O texto Fontes audiovisuais: a história depois do papel, do historiador
Marcos Napolitano (2005), apresenta sinteticamente alguns passos da abordagem
metodológica de fontes audiovisuais na perspectiva de alguns estudiosos que se
atentaram para as relações possíveis entra cinema e história, como Marc Ferro,
Pierre Sorlin e Eduardo Morettin. A revisão da contribuição desses autores propõe
algumas considerações para uma análise historiográfica do documento fílmico
interessada em sua inserção nas sociedades, como registro consciente ou não, mas
sempre manipulado, de questões políticas e culturais de seu contexto de origem. O
texto de Napolitano tem se mostrado importante para o desenvolvimento de
trabalhos que utilizam filmes, como fonte e objeto, por apresentar a multiplicidade
de caminhos no âmbito da pesquisa, evidenciando a riqueza de possibilidades nesse
campo de interesses. Neste sentido, podemos nos nortear, sobretudo, pela ideia de
que a análise fílmica deve se basear em uma articulação da linguagem técnico -
estética das fontes audiovisuais e as representações da realidade histórica ou social
nela contidas (NAPOLITANO, 2005, p.237). Com essa abordagem, supera-se as
ilusões objetivista – segundo a qual o cinema seria retrato fiel do referente – e
subjetivista – para a qual o filme, por seu caráter artístico, não pode ser analisado
com rigor, pois seria uma impressão estética individual da realidade
(NAPOLITANO, 2005, p.236).
Estas ―ilusões‖ perdem ainda mais sentido quando se analisa o filme à luz da
noção de representações, baseada na ideia de que o real é construído pela
perspectiva de inúmeros indivíduos e grupos, que tem experiências e interesses
diversos e muitas vezes concorrentes. A dicotomia criticada por Napolitano, aliás,
perpassou também a própria historiografia, dividida entre

123
as objetividades das estruturas (que seria o território da história mais
segura, que, ao manipular documentos maciços, seriais, reconstrói as
sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das
representações (a que se ligaria uma outra história dedicada aos discursos
e situada à distância do real) (CHARTIER, 1991, p.183).

As representações consistem em um conceito que possibilita pensar o mundo


social em sua complexidade, não desligando as estruturas sociais dos sujeitos que as
compõem e as constroem. Segundo Roger Chartier, esta noção 44 autoriza a
articulação de três modalidades de relação com o mundo social: 1) o trabalho de
classificação e recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas quais a
realidade social é contraditoriamente construída pelos sujeitos e grupos sociais; 2) as
práticas que fazem com que identidades sociais sejam reconhecidas; 3) as formas
institucionalizadas e objetivadas pelas quais representantes marcam a existência do
grupo, da comunidade e da classe (CHARTIER, 1991, p.183). Com base nessas
modalidades, podemos pensar o cinema marginal, e particularmente os filmes de
Rogério Sganzerla e Julio Bressane produzidos nos anos 1960-70, como estratégias
simbólicas de marcar uma posição na realidade social, a partir da qual são
contestadas versões antagônicas do país, seja a oficial, proposta pela ditadura
militar, seja a alternativa criada pelas esquerdas, que compunham a oposição à
ditadura. Pelo artifício da construção cinematográfica, estes cineastas reconstroem o
mundo em que vivem, ressaltando certos aspectos de sua composição e ofuscando
outros, apelando às diversas possibilidades oferecidas pela narrativa e pela
linguagem fílmica no processo criativo.
A análise centra-se no filme a partir de sua inserção em um contexto
particular, buscando tornar compreensíveis certas estratégias utilizadas pelos
cineastas no processo de criação e representação. Atentamos, aqui, dentro do
possível, a essa articulação de elementos diferentes na estruturação do filme. Esta
postura torna-se indispensável no cinema marginal, uma vez que são notáveis a
ruptura com a narrativa clássica e certas experimentações tentadas pelos artistas, tais
como as defasagens propositais entre esses vários aspectos da linguagem do cinema.
É comum, por exemplo, a disjunção entre o som e a imagem, o que leva a um efeito
de ênfase nas contradições de certas situações e provoca incômodo no espectador,
que se vê diante de um modo de representação cinematográfica pouco usual na

44
Chartier e os outros autores acima citados operam um retorno às formulações pioneiras de Marcel
Mauss e Emile Durkheim.

124
produção de viés comercial. Nesse trabalho optamos por enfocar principalmente a
construção dos personagens a partir das características que realçam sua
marginalidade dentro da sociedade, tanto a representada quanto a referente – que se
toma como objeto da representação.
Pensemos, inicialmente, no filme Copacabana mon amour, do diretor
Rogério Sganzerla. O longa apresenta uma estrutura narrativa pouco convencional,
não havendo um enredo nos moldes clássicos, no qual a história se desenvolve com
início, meio e fim bem delimitados e articulados a uma intriga. O filme enfoca a
personagem Sônia Silk, interpretada pela atriz Helena Ignez. Sônia almeja ser
cantora de rádio e, em busca desse objetivo, abandona, na companhia do irmão
Vidimar, a casa onde mora com a mãe em uma favela no Rio de Janeiro. No
―asfalto‖, Sônia Silk passa a se prostituir e mantém relações tensas com outros
personagens que cruzam seu caminho, como a mulher que a engana, não pagando o
valor combinado após um ―programa‖ (Lilian Lemmertz), o amante cafetão que,
após um desentendimento, a denúncia à polícia (Guará Rodrigues) e o Dr. Grilo,
patrão explorador do seu irmão (Paulo Villaça). Basicamente, essa é a história que se
pode depreender do filme. No entanto, os sons e as imagens construídos e
articulados por Sganzerla extrapolam as sinopses e as tentativas de descrição. Em
Copacabana, o autor parece menos interessado em contar uma história do que trazer
para as telas o próprio Rio de Janeiro, apresentado como uma vitrine vulnerável do
Brasil. As cenas em que Sônia caminha pela praia de Copacabana trazem em si uma
contradição quando colocadas lado a lado com a imagem do país pretendida pela
ditadura: sua adesão à prostituição e sua loucura desconstroem os ideais de ordem e
progresso com os quais os militares sustentavam o discurso de transformação do
Brasil em uma potência. Sônia Silk e o seu irmão aparecem quase sempre histéricos,
aos gritos e com diálogos desconexos, embora entre um e outro momento de efusão
os personagens construam discursos mais elaborados e politizados. Os contatos entre
os personagens não se configuram como um elemento indispensável à história; pelo
contrário, são encontros banais que auxiliam principalmente na composição da
personagem central, mas não se estabelece uma relação de intriga que possa
sustentar uma trama. Os diálogos, por sua vez, raramente se completam: são, em sua
maioria, frases ditas aleatoriamente, não inseridas em uma lógica narrativa. A
câmera parece às vezes ter invadido o ambiente em que se encontravam os
personagens e capturado algum comentário qualquer, cuja contextualização o

125
espectador desconhece. A história parece caminhar para o nada e provoca uma
sensação de repetição.
Os trinta primeiros minutos do filme são reveladores da estratégia do cineasta
de evidenciar as contradições sociais que busca recriar. Sônia Silk, o irmão e a mãe
vivem em um barraco pobre, cercados por um ambiente insalubre. A aparência de
Sônia contrasta com a de seus vizinhos: de cabelos claros, veste-se com um vestido
vermelho, um tanto desbotado, e caminha pelas ruelas da favela de modo imponente.
Do alto do morro a personagem e a câmera observam constantemente a cidade com
seus prédios modernos e a natureza servindo-lhe de moldura. A carreira de cantora e
a modernidade da cidade são apresentadas como o objetivo da vida de Sônia,
havendo pouco recurso à verbalização desse desejo: ouvimos, logo nas primeiras
cenas, a mãe de Sônia proibi-la de cantar na rádio, enquanto os enquadramentos que
mostram a cidade e seus grandes prédios ao fundo, observados pela personagem,
cumprem com a necessidade de manifestar o seu desejo. O choque entre os dois
ambientes, ―morro‖ e ―asfalto‖, é inevitável visualmente e se materializará à frente,
quando Sônia decide ―invadir‖ a cidade em busca do sonho de ser cantora de rádio.
A anormalidade atribuída aos personagens busca associá-los à pobreza e ao
comportamento sexual, sendo recorrentes as cenas de incesto e sexo homossexual. A
religiosidade não-cristã também pode ser vista como um elemento utilizado na
caracterização voltada para a anormalidade, pois, além dos momentos em que os
personagens incorporam santos e realizam rituais religiosos, uma narração em off
descreve Sônia Silk realçando sua ligação com entidades e orixás. A ironia no texto
às vezes ocorre de modo sutil, quando estes personagens marginais são postos lado à
―normalidade‖ ou condenados pela sua marginalidade. Um exemplo dessa situação é
a primeira sequência do filme, que introduz a protagonista, mostrando-a em um
ritual de candomblé. Em seguida, vemos uma cena na qual a mãe da personagem
grita que os seus filhos estão ―possuídos pelo demônio‖ e ressalta que o ―úni co que
prestava foi pro quartel‖. É o primeiro traço distintivo entre a margem e o centro na
narrativa fílmica, colocado a partir de uma recorrência às ideias de ordem e
disciplina de um quartel e a um imaginário cristão que demoniza as religiões de
matriz africana e as práticas sexuais não voltadas à reprodução. Nesta primeira parte
da história, que se passa na favela, a câmera explora os ambientes de modo a
ressaltar a dialética distância/proximidade em relação às representações típicas do
Rio de Janeiro. Sucedem-se cenas em que o espectador acompanha a movimentação

126
dos personagens, que andam pelas ruas e descem escadas e rampas improvisadas nos
desníveis próprios ao ambiente de superfície acidentada, e planos gerais nos quais
vemos a cidade abaixo, cega aos conflitos sociais e modos de organização próprios à
periferia.
A descida de Sônia ao asfalto é o momento oportuno para o cineasta
radicalizar sua crítica. Quando chega à cidade, muda-se a música: os cânticos de
candomblé da primeira parte dão lugar a uma série de canções feitas por Gilberto Gil
para a trilha sonora, como se simbolizasse uma modernização que deixa ainda
entrever o passado. As músicas de Gil, acompanhando a narrativa fílmica, giram em
torno de frases soltas aleatoriamente na tentativa de se fazer um mosaico com
imagens marcantes da miséria nacional, mas inserindo elementos modernizantes –
que aqui se associam a uma estética que remete ao rock „n‟ roll, além da própria
figura do compositor, ícone da cultura jovem nos anos 1960 e 70 e exilado em
Londres à época.
A marginalidade exasperada por Sonia Silk e o seu irmão, Vidimar, produz o
efeito de evidenciar o disforme. No paraíso tropical em plena ascensão, remetido a
imagem simbólica do Rio de Janeiro, outras vozes se impõem, à custa de uma
desestabilização do ideal de sociedade defendido pelo governo e sustentado pelos
hábitos e costumes tidos como edificantes perante a cultura burguesa. A inserção do
elemento desestabilizador se caracteriza por uma estética de valorização do
elemento grotesco, no qual a desproporção, o exagero e o ato de assumir o mau
gosto e as limitações técnicas são levados a um grau de intensidade muito elevado.
O uso excessivo de gritos de terror e desespero, de gemidos e a crueza com que são
encenados momentos em que o corpo, seus fluidos e gestos mais banais ocupam o
centro da ação visam a uma sensação de estranheza ante o representado, em uma
tentativa muito mais próxima à agressão do que à catarse. O filme, assim, é marcado
por uma atenção fundamental ao abjeto, aos desvios e elementos cuja presença
quebram constantemente as expectativas de ordem e harmonia no nível diegético.
Esta quebra de expectativas pode ser percebida, também, no filme de Julio
Bressane A família do barulho. Assim como Copacabana mon amour, este longa
também apresenta narrativa fragmentada e marcada pela repetição. A história centra -
se na relação entre três irmãos que vivem desregradamente e tentam solucionar seus
problemas financeiros. Novamente, em uma comparação possível com o filme de
Sganzerla, pode-se dizer que o filme não se sustenta em um enredo clássico, com

127
início e fim, mas parece circular em torno dos personagens, aproveitando as
situações em que se encontram para efetivar as críticas do cineasta à cultura e às
instituições estabelecidas. A família é particularmente visada nos ataques
empreendidos por Bressane. O incesto se apresenta como elo entre os irmãos, sem
que por isso pareçam sofrer de alguma culpa. Há uma série de cenas nos primeiros
minutos do filme, na qual os irmãos – que na fase adulta são interpretados por
Helena Ignez, Guará Rodrigues e Kleber Santos – são apresentados ainda na
infância. Há duas imagens marcantes dessa apresentação que começa a caracterizar
os personagens. A primeira traz os dois irmãos mais velhos compartilhando um
cigarro, que fumam com habilidade, a despeito de ainda serem crianças pequenas. O
irmão mais novo, por sua vez, aparece brincando com uma espada, utilizando -a
como um ―cavalo‖. A quebra de expectativas e a contradição inserem-se, então,
inicialmente, a partir da representação da infância dos irmãos, que se distancia da
imagem tão evocada no cinema clássico da ―família perfeita‖, cujos filhos devem ser
criados em um ambiente disciplinado e sob a atenção constante dos pais – ressalte-se
que os únicos adultos que aparecem nesse momento inicial são três idosos que
jogam cartas despreocupadamente. Talvez seja pertinente pensar em uma analogia
entre a ação das crianças dessas primeiras cenas e a ideia de ―desregramento‖
associada por setores conservadores à juventude do final da década de 1960, que
experimentavam uma moral sexual e formas de relacionamento opostas aos padrões
da cultura judaico-cristã, ocidental. A criança mais nova que ressignifica o uso de
um artefato ligado à nobreza e à tradição – a espada –, por sua vez, permite uma
abordagem debochada do símbolo, destronando-o de qualquer nobreza.
O ataque à tradição e às posições superiores na hierarquia social se dá em
Bressane de um modo irônico ao tratar diretamente da oposição entre realidade e
imagem construída intencionalmente. Esta estratégia é colocada, principalmente, nos
momentos em que são inseridos planos com close em fotografias antigas de família,
que retratam uma disposição hierárquica rígida. O choque entre o comportamento
dos irmãos e a imagem fotografada visa a uma agressão ao ideal de família
cristalizado nos discursos religiosos e políticos.

Considerações finais
Nos filmes Copacabana mon amour e A família do barulho, abordados neste
trabalho, é possível perceber a partir do encadeamento de elementos mobilizados

128
pelos diretores Rogério Sganzerla e Julio Bressane, as estratégias de contestação a
certas instituições e modos de organização social. A família e a pátria, instituições
recorrentemente evocadas nos discursos conservadores da época, são retiradas de
sua posição elevada na vida social. São os alvos preferenciais dos cineastas, que se
distanciam das estratégias de conscientização do público/povo acerca das mazelas da
pobreza e do subdesenvolvimento, em voga no Cinema Novo da década de 1960, e
partem para uma ação que visa à agressão e à desestabilização da ordem nas imagens
da sociedade.
Na ótica dos diretores autorais, que assumem a posição de vanguarda na
virada dos anos 1960 para 1970, a imagem do Brasil contraria as represent ações
correntes no período, marcadas pelas ideias de prosperidade econômica e paz social.
A desigualdade social, aprofundada pelas medidas modernizantes da ditadura, e as
contradições da moralidade burguesa são evidenciadas por uma representação que
supervaloriza a desproporção e o desacordo, o que é feito por meio da disjunção
entre som e imagem, dos enquadramentos que criam contrastes entre ambientes
sociais distintos – a exemplo da favela e da área nobre do Rio em Copacabana – e
da contraposição entre imagens idealizadas e ―realidade‖ – a exemplo dos planos
intercalados que opõe as fotografias que retratam famílias em poses hierárquicas e as
relações desregradas entre os irmãos em A família do barulho. Desse modo,
inseridos em um contexto de transformações socioculturais, que impunham novos
modos de viver e criticar a sociedade, os diretores do cinema marginal representam
de modo inovador o seu contexto, seja pelo tratamento estético imprimido pelos
cineastas, pelas atuações exageradas e marcadas pela agressividade – sobretudo da
atriz Helena Ignez – e pelos enredos que se caracterizam por uma despreocupação
em relação à linearidade e a lógica causal.

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Copacabana mon amour. 1970. Dir./Rot.: Rogério Sganzerla. Produtor: Belair. 75
min. Elenco: Helena Ignez, Lilian Lemmertz, Guará Rodrigues.

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130
O ASSASSINATO DE CLITO POR ALEXANDRE (SÉC. IV A.C.): UMA
ANÁLISE DAS SEÇÕES 50 E 51 DA BIOGRAFIA DE ALEXANDRE EM
VIDAS PARALELAS DE PLUTARCO

Francisco Rocha

Resumo: O recorte aqui apresentado busca analisar o assassinato de um general


chamado Clito, também denominado de Clito, o Negro, por Alexandre III, rei da
Macedônia, na visão de Plutarco de Queroneia e problematizar a representação da
figura de Alexandre que o seu biógrafo traçou. Levaremos em consideração o
significado de biografia na perspectiva de seu autor, Plutarco, ou seja, analisaremos o
que significava uma biografia na Antiguidade. Analisaremos as seções 50 e 51 da obra
Alexandre, Vidas Paralelas, de Plutarco, na qual o recorte pretendido está inserido.
Ao biografar seus escolhidos, Plutarco comparou as ações da personagem por meio de
diferentes exemplos de seu caráter exaltando e aumentando as suas virtudes, sem
deixar de incluir exemplos do que denomina vício. Tentaremos compreender como a
figura de Alexandre foi retratada através da obra plutarqueana e como foi relatado um
episódio desditoso da vida do rei da Macedônia. Pudemos perceber que o relato
alterna seus vícios e virtudes sem deixar de atender ao objetivo primo do biógrafo:
exaltar Alexandre como uma grande personagem cuja memória e imagem deveriam
ser preservadas para a posteridade.

Palavras-chaves: Alexandre III; Vida de Alexandre; Assassinato de Clito.

Considerações Iniciais
A problemática abordada neste texto, o assassinato do general Clito, também
denominado de Clito, o Negro, por Alexandre III, rei da Macedônia, trata-se de um
episódio que marcou a trajetória do governante macedônio e é narrado por Plutarco de
Queroneia em sua obra Vidas Paralelas, mais especificamente, Vida de Alexandre. A
análise de tal acontecimento pode nos auxiliar a compreender a imagem de Alexandre
proposta pelo seu biógrafo. É importante ressaltarmos as temporalidades distintas das
duas personagens históricas, a saber: Alexandre e Plutarco. Tentaremos compreender
sobre como a figura de Alexandre foi retratada através da obra plutarqueana e como
foi relatado um episódio desditoso da vida do rei da Macedônia. Ao selecionarmos um
evento determinado por Plutarco como um vício na vida do rei, esperamos contribuir
com uma análise diferenciada daquelas que somente exaltam a imagem de Alexandre.
De acordo com a sua biografia (PLUTARCO, Alex. 2,3) sobre a qual
abordaremos adiante, Alexandre III nasceu em 356 a.C. em Pela, capital da
Macedônia sendo filho primogênito do Rei Filipe II e da Rainha Olímpia. Sua paideia

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esteve de acordo com a de um filho de um rei, ou seja, foi educado pedagogicamente,
militarmente, administrativamente, dentre outros, para se tornar o futuro governante
da Macedônia. Nesse sentido é que seu pai contratou preceptores para cuidarem de sua
formação. Sobre o assunto citamos trecho de sua biografia:

E como não se fiasse completamente dos mestres encarregados de sua


instrução literária e científica, que talvez não fossem capazes de bem
formá-lo e dirigi-lo, a tarefa, julgava ele, era muito pesada [...], mandou vir
o mais sábio e ilustre dos filósofos, Aristóteles, a quem proporcionou
honorários magníficos do grande homem (PLUTARCO, Alex. 7).

De acordo com a seção 9 de sua biografia, a primeira atuação militar de


Alexandre ocorreu quando ele tinha 16 anos e substituiu o seu pai como governante
quando o mesmo se encontrava em expedição contra Bizâncio. Em seguida, na mesma
seção, há o relato de sua atuação na batalha ocorrida na cidade de Queroneia como
soldado no exército macedônio.
Enquanto Filipe era vivo, experimentou inúmeras possibilidades de observar a
governabilidade do pai, até que se tornou rei com a morte de seu progenitor em torno
de 336 a.C. (PLUTARCO, Alex. 11). Seu governo durou 13 anos, portanto até 323
a.C., quando faleceu na Babilônia devido a uma febre altíssima da qual pouco se sabe
até o momento (PLUTARCO, Alex. 76), sobre a qual na seção 77 é levantada a
hipótese de envenenamento pelos macedônios.
Após uma breve explicação sobre a vida do biografado, abordaremos agora de
seu biógrafo: Plutarco.

Vida de Alexandre de Plutarco


Plutarco nasceu no século I d.C., na cidade de Queroneia, interior da região da
Beócia, cidade grega próxima a Tebas e Delfos conquistada pelo Império Romano.
Plutarco atuou em vários cargos políticos de sua cidade transitando, em várias
oportunidades, pela cidade de Roma, capital do Império Romano de então, razão pela
qual é reconhecido como portador de dupla cidadania, grega e romana.
Dentre suas obras, encontram-se as Vidas Paralelas que se trata de um
conjunto de cinquenta biografias que comparam a vida de diversas personalidades
históricas que tiveram papel de destaque em suas respectivas sociedades e contextos
históricos plurais aos quais estavam inseridos, dentre os quais, Alexandre, objeto
dessa pesquisa.

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Natalia Frazão José, antiquista especialista nessa obra plutarqueana, explicita
que a estrutura da obra de Plutarco manifestava uma espécie de padrão no qual
iniciava com a biografia de um grego, posteriormente a de um romano, e finalmente,
uma breve comparação entre ambos. ―Dentro desta comparação, o escritor grego
preocupava-se em confrontar e, até mesmo, em equiparar os feitos e valores dos
homens romanos e gregos, emitindo suas próprias concepções‖ (JOSÉ, 2011, p.54).
Nessa comparação entre gregos e romanos, a dupla cidadania do biógrafo é realçada.
Isto posto, informamos que somos cientes da necessidade de trabalhar com as
duas épocas históricas das duas personagens anteriormente mencionadas. Entretanto,
no que se refere ao atual estágio dessa pesquisa e objetivo desse texto, nos ateremos às
particularidades de Alexandre, recorte temático selecionado: o assassinato do general
Clito, o Negro por seu Rei Alexandre III da Macedônia.
O episódio do assassinato de Clito encontra-se na biografia de Alexandre. Sua
biografia está composta por 77 seções, elaborada em 75 páginas na edição que
estamos utilizando, em Língua Portuguesa da Paumape editora. Essas seções estão
agrupadas pelas fases da vida do biografado, a saber: Prefácio, seção 1; Nascimento
de Alexandre. Primeiros anos, seções 2 a 10; Alexandre torna-se rei, seções 11 a 14;
Alexandre na Ásia o Grânico, seções 15 a 18; A batalha de Isso, seções 19 a 21;
Caráter de Alexandre, seções 22 a 25; Expedições ao Egito e a Cirenaica, seções 26 a
30; A Batalha de Gaugamela, seções 31 a 33; Alexandre é proclamado Rei da Ásia,
seções 34 a 36; Tomada da Pérsia, seções 37 e 38; Perfil moral de Alexandre, seções
39 a 42; Avanço para o Oriente, seções 43 a 47; Morte de Filotas e Parmênio, seções
48 e 49; Assassinato de Clito, seções 50 a 52; O caso Calístenes, seções 53 a 56; A
campanha da índia: o Rei Táxiles, seções 57 a 59; Luta contra Poro, seções 60 e 61;
Os macedônios se recusam a ir além, seções 62 e 63; Encontro com os gimnossofistas,
seções 64 e 65; A viagem de Nearco, seções 66 a 70; Irritação dos macedônios, seção
71; Morte de Heféstion, seção 72; Morte de Alexandre na Babilônia, seções 73 a 77.
Ao biografar seus escolhidos, Plutarco comparou as ações da personagem por
meio de diferentes exemplos de seu caráter exaltando e aumentando as suas virtudes,
sem deixar de incluir exemplos do denomina vício.
Essa divisão de virtudes acompanha o molde da personalidade de suas
personagens, como podemos exemplificar com a ajuda da historiadora francesa
Claude Mosse, no capítulo ―A Personalidade de Alexandre‖ de sua obra Alexandre:La
destinée d‟ unmythe (2004) no qual, fundamentando-se nas narrativas plutarqueanas,

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alcança as qualidades atribuídas pelo autor beocio ao rei da Macedônia. Para Mosse,
Plutarco tem o objetivo de demonstrar que os sucessos obtidos por Alexandre não se
devem ao acaso, mas sim única e exclusivamente aos seus méritos. Isso pode ser
demonstrado por meio da passagem abaixo:

Essas qualidades parecem poder ser reagrupadas sob quatro rubricas: a


coragem e a tenacidade, o domínio de si, a generosidade e a bondade,
enfim, o que é próprio de uma natureza ―filosófica‖, o comportamento
ditado pela razão (MOSSE, 2004, p.101).

É imprescindível compreender o gênero literário utilizado por nossa fonte e em


qual contexto histórico seu autor estava inserido.
Como podemos notar através das análises de Philippe Levillain (2003), o
desenvolvimento e o status da biografia estavam estreitamente ligados ao regime
político em que trabalhava o escritor. Tratava-se de uma época em que a biografia
relatava apenas o feito dos ―dos grandes homens‖. Levillain afirma também que a
biografia de um rei, ou de um general, não se confunde com a história dos
acontecimentos em que um e outro se envolveram, apesar de ser difícil manter essa
distinção (LEVILLAIN, 2003, p.146). Sendo assim, Levillain escreve sobre a
biografia em um momento de revisão historiográfica, na qual tentava legitimar um
novo tipo de biografia, pertencente à História, cujo autor, o biógrafo e seu biografado
estavam influenciados por suas temporalidades históricas. Como já vimos
anteriormente, Plutarco estava inserido no cerne do Principado Romano e, no caso de
Alexandre, em um momento de expansão da Macedônia.
Sobre o gênero literário de Plutarco, a biografia, Levillain enfatiza o claro
objetivo do biógrafo beócio de indicar através de sua obra, um enredo cronológico no
qual Alexandre adquiriu suas virtudes ao longo de sua carreira sempre agindo da
forma correta.

As vidas paralelas são confronto de heróis no interior de duas civilizações


idealizadas, a da Grécia e a de Roma. De um lado a vida do outro as
virtudes que consagram os grandes homens (LEVILLAIN, 2003, p.147).

No que pese a importância desse historiador francês para a biografia renovada,


adicionamos que Plutarco, além de ressaltar as virtudes de Alexandre, evidencia

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igualmente seus erros, nas palavras de Plutarco, vícios. Este é o episódio selecionado
para esse texto: o assassinato do amigo e importante general Clito, o Negro.
A antiquista Semíramis Corsi Silva (2014), recorrendo a outros autores que
escreveram sobre biografia, objeta que o gênero biográfico antigo pretendia
estabelecer padrões com heróis repletos de virtudes servindo de esteio para as futuras
gerações (SILVA, M.F. 2004, p.24 apud SILVA, 2014, p.86). Além disso, as
biografias antigas não eram feitas apenas de elogios, mas também de uma forte
intencionalidade dos autores, ou de exaltar ou difamar um determinado indivíduo.
Sobre a biografia grega propriamente dita, José (2011) nos informa que esse
gênero faz uma

[...] análise do personagem na sua sociedade, suas atitudes, seus valores,


seus méritos e suas falhas. Enquanto a história era situada ao lado dos
acontecimentos coletivos, a biografia era colocada à parte, como uma
análise dos fatos e atitude de um indivíduo (JOSÉ, 2011, p.43).

Sobre esse assunto, o da diferenciação entre biografia e história pelos autores


antigos, Plutarco inicia a biografia de Alexandre, logo no prefácio na seção 1,
delimitando com clareza seus objetivos e evidenciando que seu compromisso não é o
de fazer história, e sim de escrever uma biografia, como pode ser notada pela
passagem abaixo:

Em verdade, não escrevemos histórias, mas biografias, e nem sempre é nos


feitos mais rumorosos que se manifesta a virtude ou o vício. Ao contrário,
sucede com freqüência que um fato comezinho, uma palavra, uma pilhéria
revelem bem mais nitidamente o caráter que os combates onde se contam
milhares de mortos, as batalhas cerradas e os assédios mais espetaculares
(PLUTARCO, Alex. 1).

Quanto ao assassinato de Clito, temática desta pesquisa, encontra-se nas seções


50 e 51 da biografia, porém, também é brevemente mencionado pelo biógrafo ainda
no início da obra, na seção 13, na qual ele faz um rápido comentário em relação ao
acontecimento que posteriormente narrará mais detalhadamente, como nos informa
Mosse: ―Plutarco o menciona desde o início de sua narrativa (Alex. 13) e volta ele
mais adiante (Alex. 50-51), qualificando-o de ato `selvagem´‖ (MOSSE, 2004, p.111
Grifo da autora).

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Antecedentes do assassinato de Clito, o Negro
Essa tragédia, como é considerada pelo próprio Plutarco, vai se passar no bojo
das conquistas empreendidas pelos greco-macedônios durante a campanha de
expansão de territórios governados por Alexandre na região do atual Irã entre os anos
de 330 a 327 a.C., mais precisamente, na capital Maracanda em um banquete aos
dioscuros, deuses gregos Cástor e Pólux da constelação de gêmeos defensores dos
guerreiros e navegantes, e também em comemoração à titulação de Clito como Sátrapa
das províncias de Sogdiana e da Bactriana (MOSSE, 2004, p.57). Sátrapa era uma
espécie de governador, cargo máximo dentro das províncias daquela época,
ressaltando então, a importância de Clito como pessoa de confiança de Alexandre,
assunto do qual trataremos adiante. Essa questão, sobre como a representação da
figura de Clito é colocada ao lado da imagem de Alexandre durante toda a biografia, é
imprescindível para compreender o episódio de seu assassinato, pois as ações de Clito
fazem parte da composição que Plutarco faz da imagem das virtudes e vícios de
Alexandre.
Historiograficamente (BURN,1956; MOSSE, 2004) esse episódio é visto como
uma contribuição para o desencadeamento de um forte quadro de tensão entre o rei e
os macedônios que persistirá até a sua morte. É importante salientar também que o
assassinato de Clito se deu dois anos depois da morte de Filotas e seu pai Parmênio,
nobres generais macedônios; este segundo, que servira ao pai de Alexandre, Filipe II.
Ambos, Filotas e Parmênio, contribuíram para o empreendimento da campanha de
conquista macedônica.
Sobre a morte dessas duas personagens, informamos que, após uma
conspiração ser descoberta, a culpa recaíra sobre Filotas que, segundo a biografia de
Alexandre (seção 48) fora submetido à tortura e em seguida, morto. Já seu pai
Parmênio não passou por um processo de julgamento e foi através de determinação
direta do rei que assassinos foram expedidos para abatê-lo. Sobre esse assunto, Mosse
(2004, p.56) reflete que, apesar da postura parecer arbitrária, o argumento que
sustentou a defesa de Alexandre na seção 48 da biografia, é de que a própria lei
macedônica autorizava a execução dos parentes daquele que fora considerado culpado.
A morte, autorizada por Alexandre, desses dois personagens de confiança de seu
círculo, foi associada em sua biografia e auxiliaram a incutir em sua memória a
imagem de seus vícios.

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Mas quem era Clito? Como a morte dele pode nos ajudar a compreender uma
face diferente da figura de Alexandre através da imagem Plutarqueana?
Como já foi relatado, Clito era um nobre, muito próximo do rei, recebendo
deste a missão de governar terras recém conquistas, Bactriana e Sogdiana. A. R. Burn,
em sua obra Alexandre e o Império Helênico (1956, p.66), o intitula junto a Heféstion
e Demarato de Corinto como ―velhos amigos‖ que, em combate, estavam sempre ao
lado de Alexandre.
Para melhor compreender o assassinato de Clito, é de suma importância
analisar outro episódio no qual Clito salva a vida de seu rei, descrito na seção 16. Não
bastasse a comprovada proximidade dos dois, Clito então desempenhara um papel
importantíssimo na batalha de Grânico na qual, por pouco, Alexandre seria morto não
fosse a intervenção do companheiro, como pode ser percebido no trecho abaixo:

Os generais Resaces e Espitridates atacaram-no [Alexandre] ao mesmo


tempo: esquivou-se ao segundo e golpeou o primeiro, cuja couraça, no
entanto, resistiu ao impacto da lança, que se fez em pedaços. Alexandre,
então, ergueu-se bruscamente e descarregou-lhe um golpe com sua
cimitarra bárbara, arrancando-lhe a cimeira e o penacho; o capacete resistiu
a custo, pois o fio da cimitarra chegou a tocar os cabelos. Quando
Espitridates se erguia de novo para desfechar outro golpe, Clito, o Negro,
adiantou-se-lhe e trespassou-o com a lança. No mesmo instante caía
Resaces, ferido pela espada de Alexandre (PLUTARCO, Alex. 16).

Esse episódio confere a Clito um lugar preponderante e constante ao lado de


seu rei, pois, a partir dali este lhe devia a sua vida. Como então, o assassinato de Clito
por Alexandre poderia ser narrado na biografia do rei sem desprestigiar a imagem do
próprio governante?

Análise das seções 50 e 51: o assassinato de Clito


Como já mencionamos, o episódio do assassinato de Clito, seções 50 e 51,
ocorre após as mortes de outras duas personagens de confiança de Alexandre, a seu
mando, Filotas e Parmênio, na seção 48. Ambos episódios tratam de relatorias da parte
que compõem os vícios na imagem de Alexandre, naquele momento, Rei de um
extenso território jamais alcançado anteriormente. Sobre o relato do assassinato em si
citamos:

Ocorria pouco depois o assassinato de Clito. Se nos ativermos unicamente à


narração singela dos fatos, parece mais selvagem que o de Filotas; mas

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após alguma reflexão, considerando-lhe a causa e as circunstâncias,
deduziremos que não se tratou de ato premeditado, e, sim, que resultou de
uma infelicidade do rei, cuja cólera e a embriaguez, abriram caminho para o
gênio mau de Clito (PLUTARCO, Alex. 50).

Por esse excerto, nota-se que Plutarco quer isentar à imagem de Alexandre de
qualquer crime ou de qualquer julgamento. Além disso, Plutarco também não tinha a
intenção de atribuir a culpa para a imagem de Clito, pois como vimos anteriormente,
esta personagem tratava-se de um general que desfrutava de uma considerável estima
entre os macedônios e do círculo pessoal do rei. Se não poderia onerar a imagem e a
representação de ambos, a quem recairia a culpa?
Continuemos à compreensão do episódio para responder essa questão: "Eis
como se deu a tragédia. Pessoas chegadas da costa haviam trazido frutas da Grécia
para Alexandre, o qual, admirado de seu frescor e beleza, convidaram Clito para lhes
mostrar e oferecer" (PLUTARCO, Alex. 50).
Existe por trás desse trecho um forte teor ufânico, recurso ao qual Plutarco
utiliza para louvar sua pátria de origem através do elogio das riquezas que vinham da
Grécia.

Clito, naquele momento, estava fazendo um sacrifício, mas o suspendeu


logo, para se pôr às ordens do rei. Três dos carneiros, sobre os quais já
tinham feitas efusões sagradas, fugiram. Quando Alexandre soube dessa
circunstância, consultou os adivinhos Aristandro e Cleômenes [...], que lhe
declararam que se tratava de um péssimo sinal (PLUTARCO, Alex. 50).

O elemento das prodigia, recurso recorrente nas obras antigas que denotam um
caráter mitológico na sucessão de fatos desencadeados por presságios, se manifesta
claramente nesse trecho, no qual Plutarco dá aos presságios e sonhos um aspecto
relevante dentro da narrativa e extirpa da imagem de Alexandre qualquer aspecto
negativo quanto ao assassinato de Clito, pois o mesmo estaria predestinado a
acontecer. Entretanto, a bondade e o apego de Alexandre para com o amigo fizeram
com que ele tentasse mudar os cursos já traçados pelos deuses, que culminaria no fim
da vida de Clito, o Negro.

Alexandre ordenou que se preparasse imediatamente um sacrifício


expiatório pela salvação de Clito, tanto mais que ele próprio, duas noites
antes tivera um estranho sonho: acreditara ver Clito, vestido de preto,
sentado entre os filhos de Parmênio, todos eles já falecidos (PLUTARCO,
Alex. 50).

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Mesmo depois do sacrifício expiatório em prol da vida de Clito ter sido
realizado, o sonho de Alexandre aparece na narrativa como um elemento para
reafirmar o mau presságio e que, apesar dos esforços realizados por Alexandre para
impedir o acontecimento fatídico, a relatoria evidencia que este seria irremediável,
mostrando que a morte de Clito tratava-se de uma decisão posta pelos deuses e pelo
destino, por meio do episódio onírico.
Como era de costume dos macedônios, as festas eram acompanhadas por muito
vinho, o que contribuía para um estado de ebriedade dos participantes do banquete,
segundo o trecho abaixo da nossa documentação:

No auge da bebedeira começaram cantorias de versos de tal Prânico [...] as


quais os comandantes recentemente batidos pelos bárbaros eram
desacreditados e metidos ao ridículo. Os convivas mais idosos mostraram-
se indignados [...]. Alexandre e os amigos mais chegados, porém,
ordenaram que o cantor prosseguisse, pois pareciam deliciar-se com que
ouviam (PLUTARCO, Alex. 50).

Na continuidade do relato, Clito, já fora de seu estado de sobriedade e


desgostoso com o que ouvia, resolveu falar em defesa dos generais macedônios
ridicularizados pelos versos do cantor que se apresentava no banquete, ou seja, estava
indo de encontro da opinião do Rei, quando este permitiu que a cantoria continuasse.

Mas então Clito, já embriagado e movido por sua natureza rude e colérica,
enrubesceu e sibilou que não convinha ultrajar assim [...]. Alexandre replicou
que Clito falava em causa, própria, chamando infortúnio ao que não passava
de covardia. (PLUTARCO, Alex. 50).

A discussão acirrou-se entre o rei e seu general. Sem pudor, Clito acusou
Alexandre de assumir um caráter despótico e lamentou ter vivido pra ver os
macedônios conviverem como iguais dentre os persas, povos que eram considerados
bárbaros pelos greco-macedonios.

[...] não nos rejubilamos pela maneira que somos pagos por tanto sofrimento
e invejamos a aventura daqueles que morreram antes de nos ver, a nós,
macedônios, desancados pelos bastões dos medos e obrigados a implorar aos
persas que conduzam à presença de nosso rei! (PLUTARCO, Alex. 51).

No decorrer dos acontecimentos, é narrado uma petulância de Clito, a qual


levou-o a ser injuriado pelos companheiros de Alexandre, enquanto os convivas mais

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idosos tentavam acalmar os ânimos (Seção 51). Nesse momento, Alexandre virou-se
para dois membros da corte que estavam presentes na discussão, Xenódoco e Artêmio,
interrogando-os: ―Não tendes a impressão de que os gregos que vivem em meio aos
macedônios são como semideuses ao lado de bestas selvagens? ‖ (Seção 51). É
possível notar na fala de Alexandre um forte elemento identitário, que muito explica o
fato dele se aproximar tanto dos gregos em aspectos culturais e religiosos, já que ele
próprio considerava-se um grego de origem e de cultura e, apesar de não comandar
mais um exército composto por maioria grega, não deixava por isso de ser o hegemon,
espécie de líder,dos gregos (MOSSE, 2004, p.67).
O desentendimento prossegue e Alexandre, incapaz de conter sua ira, atira uma
maçã contra Clito e, em seguida, procura sua espada. Entretanto, Aristófanes, um dos
guardas, antecedendo uma possível represália, coloca-a fora do alcance do rei. No
fastígio de sua perturbação, Alexandre ordena que toquem as trombetas convocando o
seu exército, porém o encarregado por fazê-lo nega a ordem do rei, evitando assim
grande alarde do exército no acampamento (seção 51). Subsequentemente ocorre o
desfecho da desavença:

Como Clito de forma alguma se acalmava, os amigos empurraram-no as


duras penas para fora do recinto; mas Clito deu a volta e tentou entrar pelo
outro lado, recitando com impertinência e audácia estes versos jâmbicos da
Andrômaca, de Eurípides: `Ai que funesta usança impera na Grécia!´
Imediatamente Alexandre, tomando a lança de um de seus guardas,
trespassou-o de lado a lado, [...] Clito ruiu ao chão, gemendo e gritando
(PLUTARCO, Alex. 51).

Mosse (2004) interpreta que Clito muito contribuiu para o agravamento do


caso, ao citar os versos de Eurípides alegando que Alexandre agia como todos os
chefes militares, ou seja, que levavam para si a glória das vitórias que na verdade
foram conquistadas pelo mérito de seus soldados. Ela prossegue o raciocínio
afirmando que não se tratava de um ato gratuito, apesar de sua selvageria e do estado
de embriaguez que obscurecia o espírito do rei, mas da punição ao ataque à sua
pessoa. Pelo relato, ainda na seção 51, Alexandre tomou consciência da gravidade de
seu ato imediatamente e teria sido capaz de tirar a própria vida, não fosse a
intervenção de sua guarda pessoal (MOSSE, 2004, p.111): ―Tentou ferir-se no
pescoço, mas foi seguro; e os guardas, pegando-lhe firmemente das mãos, arrastaram-
no para seu quarto‖ (PLUTARCO, Alex. 51).

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Enfim, esse episódio do assassinato de Clito, objetivo desse texto, nos mostra o
quanto o ato desditoso de Alexandre estaria relacionado ao seu estado de embriaguez.
A biografia nos relata que Alexandre já teria essa propensão ao vinho e a cólera
devido ao calor de seu temperamento (PLUTARCO, Alex. 4). Mais uma vez
ressaltamos sobre como o biógrafo constrói argumentos que, em todo tempo, são úteis
para a defesa de qualquer atitude negativa de Alexandre, ou seja, na ocasião de
apontar os seus vícios.
Como nos corrobora Mosse (2004, p.114), Plutarco em seus últimos capítulos
da Vida de Alexandre atém-se a elucidar o que ela denomina de ―evolução da
personalidade do rei‖. Na interpretação dessa autora, o que causara o fatídico episódio
não fora somente o vinho, mas também presságios negativos: ―Começou a
desencorajar-se, a perder a confiança na divindade e passou a suspeitar de seus
amigos‖ (PLUTARCO, Alex 74)

Considerações Finais
Tendo em vista as análises realizadas, concluímos que essas duas seções da
obra plutarqueana, seções 50 e 51, podem nos trazer diversos elementos para
identificar a imagem de Alexandre enquanto homem inserido em seu tempo. Sem
deixar de apontar e relatar seus erros, as virtudes vencem a disputa com os vícios na
memória construída de Alexandre. Pudemos perceber que o relato proposto alterna
seus vícios e virtudes sem deixar de atender ao objetivo primo do biógrafo: exaltar
Alexandre como uma grande personagem cuja memória e imagem deveriam ser
preservadas para a posteridade.

Bibliografia

Fontes
PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Paumape, 1992.
PLUTARCO. Alexandre o Grande.Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2004.
Obras
BURN, A. R. Alexandre e o Império Helênico.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1963.
CARLAN, Cláudio Umpierre: FARIA, Estela. A política de Alexandre o Grande e
suas representações monetárias. Historiae, Rio Grande, 2(2), p.43-52, 2011.
FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade clássica:a história e a cultura a partir dos
documentos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.
JOSÉ, Natália Frazão. A construção da imagem do imperador Augusto nas obras de
Veléio Patérculo, Plutarco e Suetonio.2011.Dissertação (Mestrado em História)–

141
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, UNESP,
Franca, 2011.
LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas da biografia. In: RÉMOND, René. Por uma
História política.Rio de Janeiro: FGV, 2003, p.141-184.
MOSSE, Claude. Alexandre, o Grande. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
SILVA, Semíramis Corsi. O Império Romano do sofista grego Filóstrato nas viagens
da vida de Apolônio de Tiana.2014.Tese (Doutorado em História)– Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, UNESP, Franca, 2014.

142
SUBJETIVIDADES DISSIDENTES: CORPO, DESEJO E SEXUALIDADE NA
REVISTA G MAGAZINE (1997-2013)45

Gerferson Damasceno Costa

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as práticas discursivas


(re)produzidas pela revista G Magazine acerca de gênero, sexualidade, desejo, sexo e
corpo, procurando detectar os sentidos e significados referentes aos afetos, desejos e
comportamentos, bem como à pornografia e ao prazer sexual direcionados aos Gays
brasileiros. Neste sentido, busca-se empreender um estudo sobre a construção da
subjetividade dos gays no Brasil após a década de 1990, período de profundas
transformações nas relações sociais e políticas da comunidade LGBT. As fontes para a
pesquisa constituem-se os conteúdos editoriais da G Magazine (1997-2013) – artigos,
depoimentos de leitores e ativistas, notícias, ensaios pornográficos, anúncios
publicitário, dentre outros. Um corpus documental diversificado e selecionado a partir
dos procedimentos de análise utilizados, respeitando as especificidades de cada discurso
no âmbito dos recursos metodológicos empregados. Os referenciais teórico-
metodológicos são fundamentados nos Estudos Queer e na Nova História Cultural do
Imaginário, das Representações Sociais e da Análise do Discurso. Dessa forma, neste
trabalho pretende-se buscar nas fontes analisadas os jogos de poder que perpassam a
construção do Gay enquanto sujeito, os padrões de normatização que procuram criar
categorias identitárias coerentes e estáveis dentro de uma matriz reguladora do gênero e
da sexualidade, como também verificar as subversões aos modelos estabelecidos, as
práticas e os corpos que escapam aos ―regimes de verdade‖ que são produzidos.
Entende-se que a partir dessa perspectiva é possível desestabilizar o sistema que produz
hierarquias identitárias e ―marginaliza‖ aqueles que não se enquadram nas normas, o
que pode significar desnaturalizá-lo e desconstruí-lo.

Palavras-chave: Subjetividade; G Magazine; Gays; Gênero; Sexualidade.

Introdução
A revista G Magazine foi lançada no Brasil em abril de 1997, através da Fractal
Edições, inicialmente com o título de Bananalouca,46 tornando-se um grande fenômeno
editorial. Direcionada aos homossexuais masculinos, o periódico se destaca entre as
demais publicações que tem como foco o nu masculino, por exibir ensaios fotográficos
de nudez frontal com personalidades famosas – como cantores, atores, esportistas e
modelos – com uma excelente produção gráfica. Suas publicações contêm ainda temas

45
Este trabalho é parte da pesquisa em desenvolvimento no Mestrado, que conta com o financiamento da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes.
46
Com o título de Bananaloca foram distribuídas quatro edições, a quinta edição teve como título
Bananalouca apresenta G Magazine, e em outubro de 1997 a revista recomeça com o número um, já com
o nome definitivo: G Magazine.

143
ligados a comportamento, militância, lazer, cultura, saúde, beleza, moda, dentre outros
conteúdos informativos.
O sucesso alcançado pela G Magazine entre os homossexuais brasileiros fez com
que outras revistas com o mesmo perfil editorial começassem a surgir no mercado, não
obstante tais publicações não conseguem alcançar o mesmo êxito e qualidade da G
Magazine. Por dez anos a revista ficou sob a responsabilidade editorial de Ana Fadigas,
sua idealizadora, e contou com a colaboração de nomes importantes da militância
homossexual, como João Silvério Trevisan, um dos fundadores do grupo Somos (Grupo
de Afirmação Homossexual) e do Jornal Lampião da Esquina; André Fisher, um dos
idealizadores do Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual; bem como de
personalidades famosas como a transexual Nany People e o promoter David Brazil.
Depois de passar por reestruturações editoriais, tem sua ultima publicação em junho de
2013.47
A década de 1990 constitui-se um contexto peculiar de transformações na
configuração social, política e identitária das sexualidades tidas como ―abjetas‖ 48 no
Brasil. Podemos evidenciar o surgimento de aspectos relacionados à cultura e ao
mercado que influenciam nas relações sociais dos sujeitos ―desviantes‖ no país, e várias
mudanças no processo de organização e atuação do que hoje é conhecido como
―Movimento LGBTT‖ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).
Nesse período, acompanhamos a efervescência mercadológica pautada na
especialização de produtos destinados aos públicos ditos ―minoritários‖, assim surgiu o
chamado mercado GLS que se caracterizou pelo lançamento de revistas, jornais, livros,
agências de turismo etc. voltados especificamente para gays, lésbicas e simpatizantes.
Esse tipo de mercado se pautou na ampliação e na construção positiva da visibilidade de
seu público. Segundo aponta França (2006), o surgimento desse mercado se destaca
pela busca em expandir as fronteiras do ―gueto‖, uma vez que procurava alcançar

47
Em 2008, devido a problemas financeiros, a revista é vendida para o grupo norte-americano Ultra
Friends International, que modificou o caráter das publicações, diminuindo o espaço para as colunas
sobre comportamento e militância, e aumentando o número de matérias sobre moda, beleza, saúde e
entretenimento, a quantidade de ensaios de nudez também foram aumentados.
48
Por sexualidades ―abjetas‖, seguindo as reflexões de Judith Butler (2001), entende-se aqui o conjunto
de práticas sexuais que não se enquadram na norma naturalizada socialmente no binarismo heterossexual,
no qual os indivíduos com sexualidades fora do padrão de oposição entre sexo/desejo são categorizados
como ―anormais‖ e inferiores. Os abjetos podem ser definidos como aqueles indivíduos que não se
enquadram na norma social, no qual a existência e materialidade de seus corpos são socialmente
ameaçadas, suas vidas são frágeis e precárias. Considerados, menos humanos, são ―aqueles que ainda não
são ‗sujeitos‘, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito‖ (BUTLER,
2001, p. 155).

144
consumidores que não necessariamente se identificavam enquanto homossexuais,
conforme sugere a inserção dos simpatizantes.
No que concerne ao conhecido ―Movimento Homessexual Brasileiro‖,
percebemos que a partir dos anos de 1990, ele é marcado por um ―reflorescimento‖ do
ativismo pelos direitos dos homossexuais e volta a crescer a quantidade de grupos com
essa finalidade no âmbito nacional, em contraposição a decada anterior que teve uma
drástica diminuição desses grupos. Esse contexto se caracteriza também pela
consolidação de propostas em torno da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida) e da construção de uma ―resposta coletiva‖ acerca da doença que
possibilitasse retirar sua ligação quase que exclusiva com as práticas homossexuais.
Observa-se ainda a relação do movimento com outros ―atores sociais‖49 e o surgimento
das ―Paradas‖ como manifestações estratégicas para a visibilidade da diversidade de
maneira massiva. Percebe-se nesse momento o início de várias discussões concernentes
às questões da representatividade no movimento, influenciadas pelo deslocamento que
ocorre na política das identidades.50
Esse conjunto de elementos históricos evidenciam a repercussão, variedade e
visibilidade de discursos concernentes às sexualidades dissidentes no cenário brasileiro,
e que nos últimos anos vêm aumentando cada vez mais. Dessa forma, destaca-se a
importância de investigar nesses discursos o estabelecimento de comportamentos e
identidades a partir de padrões normalizadores fundamentados em concepções estáveis,
coerentes e regulares, e a maneira como eles agem na produção de verdades e de
subjetividades.
Desse modo, neste trabalho procuro mostrar alguns apontamentos sobre a
revista G Magazine, no que concerne à emergência de um novo discurso referente aos
afetos, desejos e comportamentos, bem como à pornografia51 e ao prazer, para os

49
Regina Facchine (2005) analisa o envolvimento do movimento com esses ―outros atores sociais‖ que se
constituem pela mídia, agências estatais ligadas às questões jurídicas e de saúde, parlamentares que
incluem alguns direitos dos homossexuais em suas plataformas, o mercado especializado, organizações
internacionais e grupos religiosos empenhados nos dilemas da sexualidade.
50
De acrodo com Stuart Hall (2006), a partir do final do século XX, uma mudança estrutural contribui
para que houvesse transformações nas sociedades modernas, fazendo com que as identidades culturais de
classe, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade se fragmentassem e se deslocassem. As identidades, antes,
com sólidas localizações, em que os indivíduos se fixavam socialmente, descentralizaram-se, com
fraturas, tornaram-se mais indefinidas, provocando uma ―crise de identidades‖. Dessa forma,
politicamente, também as identidades se apresentaram com fissuras que impossibilitava uma
representação política baseada em concepções identitárias universalizantes.
51
Seguindo a perspectiva de Beatriz Preciado (2010), a noção de pornografia nesta pesquisa não pretende
emitir um juízo moral ou estético, mas identificar novas práticas de consumo e da imagem, suscitadas por

145
gaysbrasileiros, e suas interferências no processo de subjetivação desses atores. A partir
de algumas reflexões sobre a Teoria Queer e das potencialidades dos suportes teórico-
metodológicos da Nova História Cultural52 do Imaginário, das Representações Sociais e
da Análise do Discurso.

Gênero, sexualidade e subjetividade a partir da Teoria Queer


A Teoria Queer surgiu nos Estados Unidos em fins da década de 1980, segundo
Miskolci (2009, p. 152), a partir de problematizações das categorias de ―sujeito,
identidade, agência e identificação‖ geradas pelo encontro entre o pós-estruturalismo
francês53 e os Estudos culturais norte-americanos.54 A expressão queer em inglês, antes
utilizada de maneira depreciativa e agressiva para se referir aos gays, é adotada e
ressignificada por um conjunto de teóricos que tem como objetivo a reflexão crítica
acerca dos processos sociais de normatização e da construção do binômio
heterossexualidade/homossexualidade.
A concepção de sujeito elaborada pelos pós-estruturalistas foi preponderante
para o desenvolvimento dos estudos queer, caracterizada pela dissolução da noção de
sujeito como agente soberano e estável. O sujeito passa a ser concebido como resultado
das relações de poder, em articulação com as diversas interações sociais (e não apenas
as de sexo e gênero), no qual a linguagem é central. Guacira Louro (2001) ressalta que
as múltiplas e distintas identidades – raça, nacionalidade, classe, etc. – formam o
sujeito, no sentido de que esses são perpassados por diversas situações, instituições e
agrupamentos sociais.
Na teoria queer a sexualidade é compreendida como um dispositivo histórico do
poder, conforme a perspectiva foucaultiana, o que permite pensar a atuação das
―tecnologias de poder‖ que postula uma ―verdade sobre o sexo‖ e produz corpos

novas técnicas de produção e distribuição, e codificar um conjunto de relações entre imagens, prazer,
publicidade, privacidade e produção de subjetividade.
52
Em resumo, por Nova História Cultural, entende-se aqui uma virada no campo historiográfico, em que,
a partir do diálogo interdisciplinar com as ciências sociais, a linguística, a psicologia, a filosofia, a noção
do documento como ―espelho do real‖ é problematizada, assim, os documentos não são considerados
como reflexos transparentes do passado, mas ações simbólicas com significados diferentes conforme a
intenção de quem os elaborou. Caracteriza-se pelo rompimento da ideia de cultura popular e cultura
erudita, bem como pela reflexão das relações sociais e econômicas como campos de produções culturais.
53
Em síntese, o pós-estruturalismo é caracterizado pelos estudos de Michel Foucault, Jacques Lacan,
Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattarri, dentre outros. Miskolci (2009) destaca que as obras, A
história da sexualidade I: A Vontade de Saber, de Foucault, e Gramatologia, de Jacques Derrida,
publicadas em inglês em meados dos anos de 1970, são consideradas marcos para as formulações queer.
54
Os Estudos culturais se originaram do marxismo, porém com uma critica às correntes ortodoxas que
não respondiam ―às demandas de grupos sociais de sua época, inicialmente operários, aos quais se
somaram os imigrantes, negros, mulheres e homossexuais. ‖ (MISKOLCI, 2009, p. 159).

146
sexuados. O funcionamento desse dispositivo se faz de acordo ―com técnicas móveis,
polimorfas e conjunturais de poder‖; ele constrói ―uma extensão permanente dos
domínios e das formas de controle‖; nele, o que importa são ―as sensações do corpo, a
qualidade dos prazeres, a natureza das impressões‖; sua relação com a economia se faz
por meio ―de articulações numerosas e sutis, sendo o corpo a principal – corpo que
produz e consome‖. (FOUCAULT, 2014, p. 116). Este dispositivo sublinha o corpo
como uma categoria discursiva, histórica e socialmente construída, que deve estabelecer
um alinhamento com as normas regulatórias sobre o sexo.
Para Butler (2001, p. 155), tais normas ―trabalham de uma forma performativa
para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o
sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do
imperativo heterossexual. ‖ Segundo Louro (2008), vale dizer que a matriz
heterossexual, em seu processo de produção e reiteração, fundamenta-se na
continuidade e coerência da lógica binária para instituir sobre os sujeitos os limites de
suas práticas, no qual todos/as fora dessa ordem são impensáveis e ininteligíveis. Assim,
determinam-se as sexualidades ―anormais‖ e ―desviantes‖, as práticas e desejos sexuais
que não se enquadram na organização ―heteronormativa‖ da sociedade.
A heteronormatividade é entendida aqui, seguindo Richard Miskolci (2009),
como um conjunto de disposições sociais que visa regular e controlar os sujeitos, e não
apenas aqueles que se encontram legitimados e normatizados na sua lógica fundamental
(a continuidade sexo/gênero/sexualidade), com a finalidade de instituir a
heterossexualidade como padrão de organização coerente, superior e ‗natural‘. Ou seja,
também no interior das ditas ―minorias sexuais‖ as normas agem estabelecendo modelos
pautados em outros marcadores sociais, como raça, etnia, nacionalidade, religião ou
classe, que não se encontram desvinculados da sexualidade.

A G Magazine: práticas discursivas e produção de sentidos


Para análise das fontes utilizo alguns aparatos metodológicos da Análise do
Discurso (AD), que se destina à compreensão da produção de sentidos e significados em
um determinado texto, neste sentido, seguindo Orlandi (2002), a análise dos discursos
selecionados na revista G Magazine se sustenta a partir do entendimento das condições
de produção, que demonstram seu funcionamento, sua relação com os sujeitos, com a
situação e contexto sócio-histórico (ideológico) em que foram produzidos.

147
Ainda, utilizo como opções teórico-metodológicas para a pesquisa a concepção
de imaginário e representações sociais que orienta a análise das revistas não como
registros fiéis da realidade, mas como práticas sociais que atuam de acordo com
determinadas condições de produção. O imaginário auxilia na compreensão dos sentidos
e significados veiculados pela revista, dos valores e ideais simbólicos construídos para
os gays no Brasil. A análise histórica, a partir da perspectiva do imaginário, permite
verificar tanto a preservação das significações correntes, quanto os deslocamentos, as
mudanças que possibilita a criação de novos sentidos e implantação de novas práticas.
Swain (1994, p. 52) indica que o imaginário atua em duas vertentes, ―o da paráfrase, a
repetição do mesmo sob outro invólucro; e o da polissemia, na criação de novos
sentidos, de um deslocamento de perspectivas que permite a implantação de novas
práticas. ‖
As representações sociais possibilitam na percepção de como o imaginário
elaborado através das práticas discursivas da revista se verificam como um campo
constitutivo do real para os gays. Por Representações Sociais entende-se, seguindo a
acepção de Denise Jodelet (2001, p. 22), como ―uma forma de conhecimento
socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social.‖ Acredito que a noção de
representações sociais nos leva a refletir, a partir das fontes, os mecanismos discursivos
que buscam significar a realidade em seus aspectos individual e social.
A revista G Magazine apresenta em sua estrutura editorial um conjunto
diversificado de discursos que, conforme a delimitação do período da pesquisa, permite
observar as mudanças em suas formulações ao longo do tempo. Neste texto apresento
algumas considerações referentes a esse conjunto discursivo.55
Nos ensaios analisados, percebe-se que as imagens, predominantemente com
homens másculos, brancos, jovens, musculosos, viris com pênis de tamanhos e
espessuras avantajadas (alguns somente na descrição), apontam para a essencialização e
padronização do desejo e do prazer dos gays e de suas práticas sexuais; uma valorização
do pênis, na maioria das vezes descrito como ―dote‖, associando o sucesso do prazer
sexual aos seus, no mínimo, 19 cm, não encontrei nos ensaios descrições que fossem
inferiores a essa medida, ainda que a imagem, nitidamente, ―diz outra coisa‖.

55
As considerações analíticas que apresentamos neste texto referem-se às edições da G Magazine: ed. 22,
julho/ 1999; ed. 72, setembro/2003; ed. 77, fevereiro/2004.

148
A revista (re) produz valores e padrões sobre os corpos e órgãos do desejo,
reafirmando a virilidade como mecanismo de classificação e hierarquização de
identidades, em muitos ensaios os modelos aparecem segurando em armas ou outros
objetos de instrumentalização de violência que, ligados aos pênis eretos, acabam por
estabelecer uma relação entre os objetos de violação e os do prazer.
Vários discursos produzem significados relacionados à saúde, beleza, consumo e
comportamentos que buscam forjar valores e padrões ideais a serem seguidos pelo
público, no qual categorias de raça, etnia e classe se interligam a gênero e sexualidade
nos sistemas de normatização, conforme foi possível observar na vinculação de
propagandas de roupas; ambientes voltados para sua sociabilidade – como restaurantes,
saunas, bares, boates etc.; produtos higiene pessoal, de necessidades domésticas, entre
outros.
Por fim, evidencia-se as subversões e os desvios aos regimes normativos
presentes na revista e quais os lugares a eles reservados, ora nos silêncios, ora em
discursos de pouco destaque em alguma de suas páginas.
Com essas breves considerações tenho como propósito destacar as possibilidades
da revista G Magazine como um veículo de (re) produção de subjetividades dos gays no
Brasil a partir do final dos anos de 1990, evidenciando que os sentidos e significados
presentes no conjunto de discurso (textuais e imagéticos) da revista atuam na elaboração
de imaginários a serem compartilhados pelos gays a partir de padrões e valores pautados
na normalização de corpos, prazeres e desejos.

Considerações finais
A compreensão do processo histórico da construção de arranjos que criam
sistemas de classificações pautados em regimes de normatização, bem como os
mecanismos utilizados para reiterar sua lógica, pode contribuir para desmontá-lo. Por
isso a importância em investigar os jogos de poder que perpassam a formação do gay
enquanto sujeito, os padrões que procuram criar categorias coerentes e estáveis, como
também verificar as subversões aos modelos estabelecidos, as práticas e os corpos que
escapam aos ―regimes de verdade‖ produzidos. Entende-se que a partir dessa
perspectiva é possível desestabilizar o sistema que produz hierarquias identitárias e
―marginaliza‖ aqueles que não se enquadram nas normas, o que pode significar
desnaturalizá-lo e desconstruí-lo.

149
Referências

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Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2016.
________. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ―sexo‖. In: LOURO,
Guacira Lopes (Org.). O corpoeducado: pedagogias da sexualidade. 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001, p. 151-172.
FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de
identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
FOCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Paz e
terra, 2014.
FRANÇA, Isadora Lins. Cercas e pontes: o movimento GLBT e o mercado GLS na
cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de São
Paulo, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, São Paulo, 2006.
HALL, Stuart. A identidade em questão. In: ______. A identidade cultural na pós-
modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
JODELET, Denise. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: _____ (Org.)
As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 17-44.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: _______. (org.) O
corpoeducado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
________. O ―estranhamento‖ queer. In: STEVENS, Cristina M. T.; SWAIN, Tania N.
(orgs.). A construção dos corpos: perspectivas feministas. Florianópolis: Mulheres,
2008.
MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da
normalização. Sociologias, ano 11, nº 21, Porto Alegre, jan./jun. 2009, p. 150-182
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. Campinas:
Pontes, 1999.
PRECIADO, Beatriz. Pornotopía: Arquitectura y sexualidad em ―Playboy‖ durante la
guerra fria. Barcelona: Anagrama, 2010.
SILVA, Fábio Ronaldo da. Ser ou não ser:a representação de virilidade nas capas da G
Magazine (1997-2007). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Campina Grande/Paraíba, 2010.
SWAIN, Tânia Navarro. "Você disse imaginário?". In: ________. (Org.). História no
Plural. Brasília: Edunb, 1994.

150
“ESTE É UM LIVRO SOBRE SEXO”: O SEX, POR MADONNA, E A TEORIA
QUEER, ENTRE APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS.

Gustavo Henrique Ramos Silva

Resumo: Sex é um livro sobre sexo. Escrito por Madonna e lançado em 1992 – com uma
tiragem limitada, numerada e esgotada; nele a artista assume o papel de Dita Parlo, uma
dominatrix e missionária do sexo. No livro estão contos e fantasias que habitam em um
mundo pré-Aids, em que figuram os tipos marginalizados, abundam o topless, o couro, as
tatuagens, os piercings e as práticas sexuais dissidentes. A obra apresenta um conteúdo
visual, com fotografias por Steven Meisel e quadros de filmes por Fabien Baron, cuja
inteligibilidade é conferida pelo conteúdo textual, com cartas, depoimentos, diálogos, lições
e memórias; uma celebração à experimentação sexual. Paralelo ao lançamento do Sex, com
a repatologização da homossexualidade em termos epidemiológicos, a partir da epidemia de
Aids na década de 1980, e com a ameaça aos direitos civis e à existência dos dissidentes
sexuais e de gênero; no campo epistemológico, verifica-se o desenvolvimento de análises
sobre a hegemonia política heterossexual e a emergencial generização da cidadania e da sua
sexualização. Muitos intelectuais se empenharam na reflexão desse cenário político e
cultural e, no contexto norte-americano, constituíram um conjunto mais ou menos coeso,
cujas reflexões foram denominadas, a partir de 1991, de Teoria queer. É na reflexão sobre
as aproximações e distanciamentos do livro Sex, enquanto produção consciente que assume
um tom de zelo missionário, e a Teoria queer, enquanto teoria e movimento, que reside o
objetivo desta pesquisa. A reflexão se dá ao admitir-se que o livro é um sistema de
significação que abunda significados e transmite mensagens icônica, plástica e linguística,
cuja análise se dá a partir dos dispositivos teóricos da Análise do Discurso e dos aportes
teóricos pós-estruturalistas, como Judith Butler, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e Michel
Foucault.

Palavras-chave: História; Gênero; Teoria queer; Madonna.

De dentro de uma bolsa Mylar lacrada feita de fino poliéster, como uma embalagem
de preservativo, saia um livro encadernado em espiral e com capa de metal. O leitor
precisaria violar para entrar e desfrutar da leitura do Sex – Sexo, em tradução literal. A
Nêmesis da artista norte-americana Madonna.
Lançado no inverno de 1992 como ação promocional do álbum Erotica (1992), e
vendido como uma obra de arte em edição limitada e com cópias numeradas, o Sex teve
suas fotografias feitas por Steve Meisel e direção de arte por Fabien Baron. À época do
lançamento,

‗O Corpo‘ está em voga: é o assunto do momento – escreveu [Sarah Kent, crítica


de arte inglesa], referindo-se às ‗elegantes fotos de orgasmos‘ do artista Andres
Serrano e a The Jeff Koons Handbook, série de fotografias inspiradas em
ilustrações de contos de fadas, nas quais o artista aparece fazendo sexo com sua
mulher, a estrela pornô La Cicciolina (O‘BRIEN, 2008, p. 223).

151
Já a obra de Madonna56, ―abarcava uma variedade de influências que iam do universo punk
aos iconoclastas dos primórdios da moda, como o surrealismo preciso e coreografado de
Guy Bourdin, ou o visual estilizado e sadomasoquista de Helmut Newton‖ (O‘BRIEN,
2008, p. 222). Nela, Madonna se apresenta personificada como Dita Parlo, uma dominatrix
e missionária do sexo [―Meu nome é Dita. Serei sua dominatrix esta noite. Serei sua
queridinha, meu bem. Apague as luzes. Serei sua feiticeira, A encantadora do seu coração.
Eu não sou uma bruxa. Eu sou uma profissional do amor. Serei sua lanterna / Nos
momentos mais sombrios. Eu vou mudar sua vida. Sou como uma planta venenosa.
Entregue-se. Faça o que eu mandar. Entregue-se e deixe eu fazer do meu jeito. Vou lhe dar
amor. E lhe atropelar feito um caminhão. Vou lhe dar um trato.......]57. Após essa
apresentação, Madonna aparece em várias poses, explorando temas sexuais explosivos.
Logo de início, mergulhamos diretamente numa pantomima gay. Numa das fotos, Madonna
está amarrada a uma cadeira, e é rodeada por duas lésbicas – as chamadas butch - bem
masculinas de topless, cheias de tatuagens e piercings. Uma delas encosta o canivete em sua
garganta enquanto a outra chupa o bico de um de seus seios. Numa outra foto, Madonna
está de pé, encostada em uma parede, com um bidê entre as pernas, usando um biquíni-
fetiche de couro, botas de PVC que iam até o meio das coxas e uma maquiagem impecável.
Fazendo referência à prática de cunilíngua, ela segura a cabeça de uma lésbica de cabelos
curtos que bebe água do bidê.
Composto por fotografias e fragmentos textuais na forma de ―lições‖, as narrativas
visuais e textuais habitam em um mundo pré-década de 1980. A conjectura é possível pela
página de abertura, onde Madonna instrui o leitor ao dizer: ―Este é um livro sobre sexo‖58, e
mais: ―Minhas fantasias habitam num mundo perfeito, um lugar sem Aids‖59 - visto que a
epidemia de Aids é deflagrada em 1981. Parece correto localizar as fantasias apresentadas
no Sex na década de 1960, nos anos do make love not war, no ensaio interrompido de uma
Revolução Sexual, e na década de 1970, nos anos dos três dias de paz e amor, com
experimentações sexuais e alucinógenas; temporalidades recorrentes ao longo da sua
carreira. Temporalidades também retomadas pela futuramente denominada Teoria queer.

56
O presente artigo opta pela tradução em português no corpo do texto e o original no rodapé. Dada a
ausência de paginação no original, opta-se por considerar a página de abertura (―This book is about
sex‖)como a de número 3 para que o leitor se guie nas páginas subsequentes.
57
―My name is Dita. I‟ll be your mistress tonight. I‟ll be yout loved one, Darling. Turna out the light. I‟ll
be yout sorceress, yout heart‟s magician. I‟m not a witch. I‟m a love technician. I‟‟l be yout guiding light
in yout darkest hour. I‟m gonna change your life. I‟m like a poison flower. Give it up. Do as I say. Give it
up and let me have my way. I‟‟l give you love. I‟‟l hit you like a truck. I‟ll give your love......” (p. 6).
58
“This book is about sex‖ (p. 3)
59
―My fantasies take place ina perfect world, a place without Aids.‖ (p. 3)

152
Década de 1980. O ocidente conheceu o maior pânico sexual da nossa história: a
epidemia de Aids. ―Conta-se que ao ouvir falar de uma nova doença que acometeria apenas
gays, Michel Foucault – sempre bem-humorado e iconoclasta – teve um ataque de riso e
comentou que seria irônico demais‖. No campo social, a década anterior havia assistido à
convergência dos movimentos liberacionistas feministas e dos homossexuais, nos EUA e na
Europa, para uma política centrada no que seria denominada de luta pela liberação sexual,
―dentro do qual a saída do armário e a adesão a um estilo de vida gay constituía a realização
máxima‖ (MISKOLCI, 2011, p. 47) em um breve período de despatologização e
descriminalização da homossexualidade, que em 1973, havia sido retirada da lista de
enfermidades da Sociedade Psiquiatra Americana. No campo epistemológico, ainda anterior
à epidemia, assistiu-se à emergência dos primeiros estudos construtivistas com o objetivo de
analisar a dinâmica da sexualidade e do desejo na disposição das relações sociais;
pensadores radicais como Guy Hocquenghem, com Le Désir Homosexuel (O Desejo
Homossexual), Gilles Deleuze e Felix Guattari, com O Anti-Édipo: capitalismo e
esquizofrenia; e uma epistemologia lésbico-feminista radical, com nomes como Monique
Wittig, com A Mente Hétero, e Adrianne Rich, com A Heterossexualidade Compulsória e a
Existência Lesbiana.
Com a nova doença, a homossexualidade é repatologizada em termos
epidemiológicos, antes vista como loucura, após a epidemia, será encarada como vetor de
contaminação coletiva. Logo, pânico. Se Marx e Engels, no Manifesto do Partido
Comunista, introduzem a obra com a afirmação ―Um fantasma ronda a Europa‖, Néstor
Perlongher, no O que é a Aids? usa da paráfrase para abrir a sua obra, ao afirmar que um
fantasma ronda o Ocidente.

Seu feito, nesse livro curto e certeiro foi compreender a epidemia em seus
aspectos político-sociológicos sublinhando como a Aids servia de subterfúgio
para uma perseguição renovada ao desejo homossexual e um reordenamento da
sexualidade sob o controle da heterorreprodutividade. (MISKOLCI, 2014, p. 33).

É em meio a um refluxo conservador, que se delineará um ―desejo coletivo de


expurgo‖ e de ―eliminação‖ alimentado pelo pânico. Ora,

é necessário deixar claro que a cidadania sempre foi sexual; quando ela não está
marcada pela sexualidade, geralmente é construída com base no pressuposto
heterossexual. Quando não é sexual, tende a ser heteronormativa, porque está
montada sobre um modelo de sujeito e um modelo de vida que é concebido como
―naturalmente‖ heterossexual (SABSAY, 2014, p. 39).

153
Os direitos civis e a existência dos dissidentes estariam assegurados somente com o
desenvolvimento de análises sobre a hegemonia política heterossexual e com a emergencial
generização da cidadania – ―porque quando ela não é generizada, tende a ser masculina‖; e
da sexualização – ―isto é, ‗des-heterossexualizá-la‘ ou ‗des-heteronormativizá-la‘‖. Muitos
intelectuais se empenharam na reflexão desse cenário político e cultural e, no contexto
norte-americano, constituíram um conjunto mais ou menos coeso, cujas reflexões foram
denominadas, a partir de 1991, de Teoria queer.
Queer, em uma tradução aproximada para a língua portuguesa, é o estranho, o
esquisito, mas é também o viado, a bicha, a sapatão ou aquele sobre o qual se diz
―pervertido, mal amado, menino malvado, muito cuidado/má influência, péssima aparência,
menino indecente, viado!‖. Guacira Louro, uma das pioneiras dos estudos queer no Brasil,
afirma: ―a expressão, repetida como xingamento ao longo dos anos, constitui-se num
enunciado performativo que fez e que faz existir aqueles e aquelas a quem nomeia‖
(LOURO, 2006) ou, como sugere Richard Miskolci, ―o uso de uma injúria (queer) dirigida
a homossexuais e, em especial, a dissidentes de gênero, para denominar uma corrente de
reflexão denota o impulso ressignificador e insurgente que dava origem a um pensamento
radical sobre a sexualidade‖ (MISKOLCI, 2014, p. 33).
Desde o final da década de 1960, a compreensão da sexualidade já iniciava a sua
trajetória de distanciamento da esfera do biológico, do psíquico, do natural e a concluía com
a aproximação da noção do político, do socialmente criado; no entanto, os autores/autoras
produziram uma aparente contradição: objetivando a constituição de um corpus teórico
sobre as sexualidades dissidentes, deixaram de problematizar a heterossexualidade e
contribuíram para reificar a sua hegemônica concepção natural, como ordem natural do
sexo, configurando a produção acadêmica como estudos de minorias. Nesse ponto,
pondero:
as minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser
mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo aceito: por
exemplo, o europeu mediano, adulto, masculino, residente em cidades.... Uma
vez que uma minoria não tem um modelo, é um devir, um processo. Podemos
dizer que a maioria é Ninguém (DELEUZE, 1992, p. 214)

A proposta do queer, portanto, será a superação desse enquadramento e a criação de


um pensamento político centrado na crítica da ordem, social e sexual. Do encontro de uma
corrente da Filosofia associada aos Estudos Culturais norte-americanos e ao pós-
estruturalismo francês, a Teoria queer se apropriou da crítica às concepções clássicas de
sujeito, identidade, agência e identificação. Promoveu ―o rompimento com a concepção

154
cartesiana (ou Iluminista) do sujeito como base de uma ontologia da epistemologia. (...) O
sujeito no pós-estruturalismo é sempre encarado como provisório, circunstancial e cindido‖
(MISKOLCI, 2009, p. 152).
Aqui, pergunto: quais as aproximações e distanciamentos possíveis entre o Sex e a
Teoria queer? O primeiro, o livro, lançado em 1991; e o segundo, o movimento, a teoria,
constituídos a partir de 1991, ambos no contexto norte-americano.
Principio pelos dois distanciamentos: a repressão e a liberação. A concepção do
livro foi orientada pela repressão sexual, pela hipótese repressiva:

A repressão sexual é muitas vezes a grande responsável pelo mau


comportamento – disse ela [Madonna], assumindo o ponto de vista de que o sexo
é um tabu porque o mundo ocidental conserva uma longa tradição em manter
silêncio sobre o assunto (O‘BRIEN, 2008, p. 223)

Ora, uma das contribuições mais significativas à Teoria queer é creditada ao História da
Sexualidade I: a vontade de saber (1988), de Michel Foucault; pois rompe com a hipótese
repressiva que marcava a maioria dos estudos até meados da década de 1970. Foucault
compreendeu que a sexualidade não é proibida, mas antes produzida por meio de discursos.
A sexualidade definiu-se como

um domínio penetrável por processos patológicos, solicitando, portanto,


intervenções terapêuticas ou de normalização; um campo de significações a
decifrar; um lugar de processos ocultos por mecanismos específicos; uma palavra
obscura que é, preciso, ao mesmo tempo, desencavar e escutar (FOUCAULT,
1988, p. 67)

Longe de ser ignorado, o comportamento sexual no ocidente é constantemente


monitorado e tema recorrente de pregação. É parte de uma sociedade que ―fala
verborragicamente sobre o próprio silêncio‖. Madonna seria, então, um desses casos. Sua
insistência incisiva na questão do sexo como tabu se encaixa numa forte tradição liberal,
que prospera, sobretudo, em contraste com a recatada corrente dominante da cultura norte-
americana, cujas raízes estão fincadas no fundamentalismo puritano. Madonna, ao mesmo
tempo que se iguala a essas forças religiosas, representa o oposto delas; daí o tom de zelo
missionário assumido no livro (O‘BRIEN, 2008).
Se para Madonna a sexualidade seria reprimida, sua obra se consolidaria em termos
de liberação sexual e herdaria o impulso do ensaio de uma Revolução Sexual da década de
1960. Os versos de Erotica são herdeiros de outros versos como I can‟t get no satisfaction, I
want you! Apesar de as canções continuarem a falar de amor, a música popular seiscentista
emitia gritos de apetite sexual selvagem. Tratava-se exclusivamente de satisfazer os

155
próprios apetites. A inibição e a frustração eram apontadas com o dedo como doenças a
serem erradicas; o sentimento amoroso, com sua extraordinária complexidade e suas
fantasias seculares – o sentimento de posse, o ciúme, o segredo –, foi posto no índex. O
principal objetivo da Revolução Sexual era a eliminação, ou pelo menos, diminuição da
repressão. A aspiração, em suma, era por uma maior liberdade sexual, uma liberação
(LINS, 2012). Foucault ponderará:

é verdade que foi necessário um certo número de liberação em relação ao poder


do macho, que foi preciso se liberar de uma moral opressiva relativa tanto à
heterossexualidade quanto à homossexualidade, mas essa liberação não fez surgir
o ser feliz e pleno da sexualidade na qual o sujeito tivesse atingido uma relação
completa e satisfatória (FOUCAULT, 2004, p. 267).

A querela entre Foucault e Freud expõe a divergência a partir da incoerência: Freud


supunha que o problema era inteiramente da ordem da liberação. Para dizer as coisas um
pouco esquematicamente, haveria desejo, pulsão, interdição, repressão, interiorização e o
problema seria resolvido rompendo com essas interdições, ou seja, liberando-se delas.
Enquanto Foucault refletia: como se pode praticar a liberdade? Como conduzir eticamente
nas relações de prazer com os outros.
No entanto, o Sex é atravessado pela Teoria queer e dela não apenas se distancia,
mas também se aproxima. Se aproxima ao rejeitar a defesa da identidade e a aceitar a crítica
à sociedade, a reflexão contra a normatização e a reflexão contra o controle das
singularidades dos corpos, uma vez que, como pontua Paul Beatriz Preciado, ―o corpo tem
um espaço de extrema densidade política‖ (PRECIADO apud RODRIGUES, 2014, p. 13).
Ao longo das páginas do livro, Madonna interroga a propriedade do masculino como lugar
de posse e propriedade que, automaticamente, nas formas opositivas, lançaria o feminino
como lugar de ausência e impropriedade; esses pares cuja integridade parecia se manter
ainda intacta são os alvos de seus deslocamentos. Deslocamentos operados pelo que
futuramente seria denominada contrassexualidade – e aqui aponto a obra Manifesto
contrassexual (ano), que afirma o desejo não mais limitado ao prazer sexual proporcionado
aos órgãos reprodutivos – que fundamentariam a diferença sexual –, mas uma política do
desejo capaz de sexualizar todo o corpo, apreendido, exemplarmente, pelas culturas sexuais
sadomasoquistas ou fetichistas, convocados por Preciado como ―os novos proletários de
uma revolução sexual‖, que denunciam as restrições das liberdades em relação ao que
fazemos com nossos corpos, como queremos e como podemos usá-los (PRECIADO, 2014).

156
É o exemplo, para além das fotografias, de duas lições do livro que seleciono: a
primeira – a lição 2, um diálogo entre a personagem Dita e a personagem intitulada
―Doutor‖. O Doutor pergunta: ―Você acha que é possível experimentar prazer e dor ao
mesmo tempo?‖, ao que Dita responde: ―Claro! É exatamente isso que acontece no sexo
anal. É a mais gostosa forma de trepar e a que mais dói também. Todas as suas terminações
nervosas estão no seu cu, mas se você não estiver excitado, ou não estiver fazendo direito,
as coisas podem ficar bem complicadas‖60.
Preciado compreenderá que o sexo é uma tecnologia de dominação heterossexual
que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder
entre os gêneros (feminino/masculino) fazendo coincidir certos afetos com determinados
órgãos, certas reações com determinadas reações anatômicas; assim, um tecnologia social
produz uma natureza humana que, por sua vez, produz uma consonância entre natureza e
heterossexualidade, que incide sobre os corpos e produz a feminilidade e a masculinidade,
ao recortar órgãos e gerar zonas de alta intensidade sensitiva e motriz que depois identifica
como centros naturais e anatômicos da diferença sexual. Portanto, os papéis e práticas
sexuais, que naturalmente se atribuem aos gêneros masculino e feminino, são um conjunto
arbitrário de regulações inscritas nos corpos que asseguram a exploração material de um
sexo sobre o outro. A diferença sexual é uma heterodivisão do corpo na qual a simetrias não
é possível. A superfície erótica é obrigada a ser reduzida aos órgãos sexuais reprodutivos e a
privilegiar o pênis e, na sua forma opositiva, a vagina como único centro mecânico de
produção do impulso sexual (PRECIADO, 2008). A erotização do ânus, esse que, segundo
Deleuze e Guattari, é ―o primeiro de todos os órgãos a ser privatizado e colocado fora do
campo social‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 189), é uma das primeiras práticas
contrassexuais como possibilidade de um deslocamento significativo com relação ao
sistema sexo/gênero vigente.
Por fim, a segunda lição – lição número 9: ―Eu não tenho vontade de ter um pênis.
Seria como ter uma terceira perna. Seria um instrumento que iria atrapalhar. Eu tenho um
cacete na minha cabeça. Não preciso tê-lo no meio das pernas‖61.
Judith Butler, em Bodies that matter, transgredirá a ―inveja do pênis‖ definida por
Freud. A filósofa aponta que os homens se comparam o tempo todo com o ideal de falo

60
―Doctor: „Do you feel that it possible to experience pleasure and pain at the same time?‟. Dita: „Sure!
That‟s what ass fucking is all about. It‟s the most pleasure way to get fucked and it hurts the most too. All
your nerve endings are in your ass, but if you‟re not excited, or if you‟re not doing it righ, things can
really go wrong‖ (p. 23).

I wouldn‟t want a penis.... I think I have a dick in my brain. I don‟t need to have one between my legs‖
(p. 41).

157
exatamente porque são dotados de um pênis, e não de um falo, estando, pois, obrigados a
demonstrar sua virilidade de maneira compulsiva; uma prova pela qual as lésbicas não têm
que passar. A capacidade de deslocamento do falo, diz Butler, ―sua capacidade de
simbolizar outras partes do corpo, ou então com outros objetos que se parecem com o
corpo, abre caminho para o falo lésbico‖ (BUTLER apud PRECIADO, 2014, p. 77).
Madonna, cedendo às exigências da linguagem cultural, omite o termo ―falo‖ a ponto de
atribuir ao ―cacete‖ as características que atribuiríamos ao falo.
Se o próprio sujeito não é coerente, Madonna, enquanto artista, também não o será.
Entre aproximações e distanciamentos das características da Teoria queer, enquanto
movimento e teoria, o mérito do Sex é a sua potência desestabilizadora, transgressora e
subversiva, enquanto obra de arte e enquanto feito e efeito social. Afinal,

em todo o meu trabalho – argumenta ela, o objetivo é nunca ter vergonha, de


quem você é, do próprio corpo, do próprio físico, dos seus desejos, das suas
fantasias sexuais. O medo é a razão pela qual existem intolerância, sexismo,
racismo, homofobia.... As pessoas têm medo de seus próprios sentimentos, medo
do desconhecido. O que estou dizendo é: não tenha medo. (O‘BRIEN, 2008, p.
223)

Talvez, essa seja a maior disposição existencial e política queer de Madonna. Não tenha
medo.
Bibliografia
Fonte
MADONNA, Sex. EUA: Warner Books, 1992.
Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
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LINS, Regina Navarro. O Livro do Amor, volume 2. Rio de Janeiro: BestSeller, 2012.
LOURO, Guacira Lopes. O “estranhamento” queer. FAZENDO GÊNERO 7, 2006, Santa Catarina.
MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.
Sociologias. Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan/jun. 2009.
______. In: SOUZA, Luís Antonio Francisco; SABATINE, Thiago Teixeira; MAGALHÃES,
Bóris Ribeiro. (org) Michel Foucault, Sexualidade, corpo e direito. Marília: Cultura Acadêmica,
2011.
MISKOLCI, Richard. Crítica à hegemonia heterossexual. Revista Cult. São Paulo: v. 17, n. 193, 17
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O‘BRIEN, Lucy. Madonna 50 anos: a biografia do maior ídolo da música pop. Rio de Janeiro: Nova
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RODRIGUES, Carla. A política do desejo. Revista Cult. São Paulo: v. 17, n. 193, 17 ago. 2014
SABSAY, Letícia. Des-heterossexualizar a cidadania é ainda uma frente de batalha. Revista Cult.
São Paulo: v. 17, n. 193, 17 ago. 2014

158
O FOTOJORNALISMO E A EDUCAÇÃO DO OLHAR

Ivete Batista da Silva Almeida

Resumo:Este trabalho tem por objetivo discutir o lugar da fotografia na formação de


uma cultura visual e de referenciais imagéticos coletivos, das sociedades urbanas, a
partir do surgimento da fotojornalismo. O impacto produzido pela fotorreprodução
provocou grandes mudanças nos padrões da visualidade das sociedades ocidentais, a
partir de meados do século XIX. Artes, ciências e meios de comunicação mudam
definitivamente com o desenvolvimento das técnicas de reprodução fotomecânicas,
mas, sobretudo, a imprensa se transforma, utilizando a fotografia como recurso de
potencialização do texto, surgindo uma categoria nova e específica de jornalismo: a
fotorreportagem. ―A fotorreportagem é uma narrativa que resulta da conjugação de
texto e imagem, ou seja, da conjugação de duas estruturas narrativas totalmente
distintas e independentes, dentro de uma amarração própria realizada pela edição‖
(COSTA, 1992). Seguindo o modelo europeu no Brasil, a fotorreportagem assume
desde seu surgimento uma postura de ―testemunha dos fatos‖. Tendo como fonte a
coleção da Revista Cruzeiro, de 1928, ano de seu lançamento, até 1950, momento da
consolidação de profundas mudanças editoriais e como fundamentação para esta
reflexão os trabalhos de Gisele Freund (2006), Helouise Costa (1992) e Andrade
(2004), dentre outros, analisaremos as relações entre representação e apropriação na
construção de alguns modelos imagéticos nacionais como o da Amazônia como paraíso
perdido e da cidade maravilhosa.

O impacto produzido pela fotorreprodução provocou grandes mudanças nos


padrões da visualidade das sociedades ocidentais, a partir de meados do século XIX.
Artes, ciências e meios de comunicação mudam definitivamente com o
desenvolvimento das técnicas de reprodução fotomecânicas, mas, sobretudo, a
imprensa se transforma, utilizando a fotografia como recurso de potencialização do
texto, surgindo uma categoria nova e específica de jornalismo: a fotorreportagem. ―A
fotorreportagem é uma narrativa que resulta da conjugação de texto e imagem, ou seja,
da conjugação de duas estruturas narrativas totalmente distintas e independentes, dentro
de uma amarração própria realizada pela edição‖ (COSTA, 1992, p. 83).
Seguindo o modelo europeu62, no Brasil, a fotorreportagem assume desde seu
surgimento uma postura de ―testemunha dos fatos‖. Embora a relação entre texto e
imagem em fosse inicialmente redundante ou completiva, sua função era, via de regra,

62
Ao descrever a história do fotojornalismo, Gisele Freund em La fotografia como documento social,
(2006 ) destaca que, quando de seu surgimento, na imprensa européia, os primeiros repórteres
fotográficos faziam fotos somente para ilustrar as reportagens. No final dos anos vinte a prórpia imagem
se converteria em texto. FREUND, Gisele. La fotografia como documento social. Editorial Gustavo Gili:
Barcelona, 2006, p. 99 e 123.

159
seletiva, pois o enquadramento, por excelência, já se constitui em um instrumento de
escolha, incluindo ou excluindo aquilo que será ou não dado a ver.
Ao definir o recorte do que será mostrado, fotógrafo, os jornalistas, recontam e
reconstroem o real. Para Marin, essa é a função do enquadramento:

Em uma palavra, o enquadramento é um parergon necessário, um


suplemento indispensável. Ele dá autonomia ao trabalho no interior do
espaço visível, ele coloca a representação em um estado de presença
exclusiva, que dá a definição apropriada das condições para a recepção
visual e contemplação da representação como tal. (MARIN, 2001, p. 356,
tradução nossa)63

O enquadramento delimita o mundo real que será dado a ver na fotografia,


representa a seleção, a escolha do fotógrafo, sendo que uma vez selecionada, a imagem
enquadrada passa a ser compreendida, ela própria, como um todo e não mais como
parte. No caso da fotorreportagem fica claro que o enquadramento - a seleção – será o
responsável por definir qual posição o espectador deverá tomar diante do fato.

Cidade, imagem e representações


Em seu livro, intitulado, Sobre Representação, (On Representation), Louis
Marin (2001), filósofo francês que influenciou Roger Chartier em seus estudos sobre o
conceito de representação, inicia sua reflexão sobre o conceito de representação
retomando os vários significados do ato de ―representar‖; começando pelo dicionário
de Furitière, do séc. XVII, no qual representar é definido como ―substituir algo ausente
por algo presente‖, mas também como, ―dar a ver‖ algo que existe, algo presente. Dessa
forma, conclui o autor que o ato de apresentar constrói a identidade do que é
representado (MARIN, 2001). Portanto, a primeira ideia importante para que possamos
pensar aqui sobre o lugar das representações da cidade é essa ideia de Marin, de que os
elementos que o sujeito escolhe para compor uma apresentação (de algo ou alguém)
irão construir a identidade daquilo que é apresentado.
Nessa perspectiva, pensar as representações das cidades seria, analisar os
elementos constitutivos dessa identidade construída por imagens, de tal forma que nos
permita vislumbrar o lugar, o valor da imagem da cidade no imaginário coletivo de
nossa sociedade.Mas, é importante lembrar que, toda representação está submetida aos

63 ―In a word, the frame is a necessary parergon, a constitutive supplement. It autonomizes the work
within the visible space, it puts the representation in a state of exclusive presence; it gives the appropriate
definition of the conditions for the visual reception and contemplation of the representation as such‖
(MARIN, 2001, p. 356).

160
referenciais contidos nos imaginários. Vamos aqui definir imaginário a partir das
palavras de Sandra Jathay Pesavento: ―um sistema de imagens de representação
coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram sobre si, dando sentido ao
mundo. ‖
Portanto, esses imaginários sociais, ou seja, esse conjunto de imagens que
representam ideias, lugares, comportamentos, valores, não são inatos, eles são
vastíssimos e são aprendidos; sendo que cada um de nós tem contato e conhecimento de
uma pequena parte desse conjunto de imagens e significados. Muitos significados nos
escapam, sobretudo os arquetípicos; outros são identificados. Esse conjunto mais
individual, essa parcela do imaginário coletivo que o sujeito conhece, domina e utiliza,
compõe seu repertório visual.
Dessa forma, quanto maior o meu repertório visual e imagético, maior a
possibilidade dos sujeitos de entenderem o mundo, as relações e a sociedade das quais
fazem parte.

Sobre as Revistas Ilustradas,Cidades e Imagem


No Brasil, como na Europa, a imprensa ilustrada nasce com a missão de educar-
nos o olhar, ou como dizia Assis Chateubriant – uma escola de bom gosto que teria por
missão ensinar ao leitor, sobretudo por meio da imagem, como entender o mundo.
Formadoras de opinião e produzidas a partir do roteiro de interesses de um
público urbano, letrado, as revistas apresentariam o Brasil, sobretudo o ―Brasil do
futuro‖, numa composição em que, Segundo Lage (1998), as imagens, os espaços
concedidos, a cor, as formas dadas a uma notícia, estariam diretamente associados à
representação usual daquele tema.
Embora estejamos pensando aqui em grandes veículos da mídia ilustrada
impressa, é importante observar que, na construção da representação das cidades, a
presença ou ausência de temas, lugares ou ideias não se associa a um discurso norte x
sul; mas sim de sociedade moderna versus sociedade primitiva. É nesse contexto em
que o desenvolvimento econômico aparece como ―pai‖ das cidades brasileiras
modernas.
As estradas, usinas, linhas férreas e arranha-céus eram apresentados não apenas
como um signo, mas como símbolo do desenvolvimento. A presença dessas imagens
prescindia da presença ou do auxílio de discurso explicativo ou de contextualização. A

161
imagem da usina em página dupla, por si só já comunicava a mensagem: ―o
desenvolvimento chegou‖.
Símbolo incontestável das belezas e do desenvolvimento urbano nacional, a
cidade do Rio de Janeiro, com o perfil da Baia da Guanabara (figura 51) era uma das
vistas mais reproduzidas do Brasil, muito antes das revistas ilustradas, esse recorte da
paisagem já se encontrava nos cartões postais, como no Álbum do Rio de Janeiro
Moderno(1857), de Sebastien Auguste Sisson, composto por 12 cromolitografias ovais
com paisagens, que consagraram a Baia de Botafogo como imagem símbolo da capital
do Império. Unindo a visão da urbanização à da natureza exuberante, as fotografias
selecionadas ressaltam as avenidas e prédios da Cidade Maravilhosa. Destacando a
habilidade do homem em transformar em urbano um espaço natural tão exuberante.
A civilização que construímos, muito bem representada pelas cidades, é uma
civilização que prioriza o desenvolvimento do potencial produtivo, do potencial de
transformação e controle, e não o desenvolvimento humano.
Dessa forma, para concluir, a provocação que quero deixar latente aqui com esta
fala é a da possibilidade, ou talvez até mesmo o desafio, de não apenas pensarmos, mas
de propormos e construirmos uma cidade – como lugar e como representação – que vá
além das representações de nosso potencial produtivo, mas que represente também o
nosso desenvolvimento, a nossa melhoria enquanto seres humanos.

Amazônia
Desde os primeiros tempos da colônia, as mais imponentes expedições e solenes
visitas pastorais rumavam de preferência às suas plagas desconhecidas. Para lá os mais
veneráveis bispos, os mais garbosos capitães-generais, os mais lúcidos cientistas.
(Cunha, 2000, p. 123). Mas, para além do fascínio que a natureza exótica poderia
causar, para Euclides, a Floresta Amazônica representaria (assim como na reportagem
de Ferreira) a vitória da natureza sobre o homem. No caso do sertão, Euclides entendia a
natureza como impiedoso adversário, mas no caso da Amazônia, para Euclides, não
haveria como domesticá-la, é a floresta quem molda o homem, e não o contrário
(Cunha, 2000, p. 113). [...] depois há o incoercível da fatalidade física. Aquela natureza
soberana e brutal, em pleno expandir das suas energias, é uma adversária do homem. No
perpétuo banho de vapor, de que nos fala bates, compreende-se sem dúvida a vida
vegetativa sem riscos e folgada, mas não a delicada vibração do espírito na dinâmica
das ideias, nem a tensão superior da vontade nos atos que se alheiem dos impulsos

162
meramente egoísticos. Não exagero. Um médico italiano – belíssimo talento – o Dr.
Luigi Buscalione64, que por ali andou há pouco tempo, caracterizou as duas primeiras
fases da influência climática – sobre o forasteiro – a princípio sob a forma de uma super
excitação das funções psíquicas e sensuais, acompanhada, depois, de um lento
enfraquecer-se de todas as faculdades, a começar pelas mais nobres [...] (Cunha, 2000, p
125-126). Os ecos do estranhamento causado pela Amazônia, em Euclides, podem ser
ouvidos na apresentação da natureza e dos costumes considerados primitivos, temas
frequentes nas fotorreportagens da Cruzeiro. Algumas dessas matérias renderam
imagens icônicas como a fotografia de um índio que apontava sua flecha para cima,
como que querendo alvejar o avião que sobrevoava sua aldeia, avião no qual,
encontrava-se a equipe de reportagem da Cruzeiro, e o fotógrafo Jean Manzon, que
estaria registrando a cena. Na dissertação de mestrado Bem na foto: A invenção do
Brasil na fotografia de Jean Manzon, Martins (2007) cita essa imagem, interpretando-a
como uma analogia da oposição entre civilização e barbárie. Sobretudo entre os anos de
40 e 50 a Amazônia frequentou os lares brasileiros por meio das páginas da Cruzeiro,
apresentando cenários e rostos que marcavam a gigantesca diferença física entre ―nós‖ e
―eles‖, entre o Brasil-civilizado e o paraíso perdido. Contudo, com o passar do tempo e
com a presença de antropólogos e etnólogos entre os formadores de opinião da grande
imprensa as imagens da Amazônia, passariam a ser descritas a partir de outros
paradigmas, pois no decorrer dos anos 50, a visão de barbárie em oposição à civilização
vai, lentamente, dividindo o espaço com uma leitura mais preocupada em entender as
estruturas das culturas ancestrais.

Considerações finais
Nas fotografias da imprensa entre os anos de 50 e 60, o foco vai se transferindo
do encantamento com o concreto armado das cidades, e do estranhamento com os
corpos nus adornados com tintas e penas, para a busca pela compreensão da ações
cotidianas, danças e ritos um olhar curioso, porém, mais voltado para uma antropologia
cultural e para a etnologia e menos voltado para o espetáculo, mas essa é uma outra
história.

64
Luigi Buscaglione foi o autor de Una escursione botanica nell'Amazzonia, 1901. Porém, mais voltado
para uma antropologia cultural e para a etnologia e menos voltado para o espetáculo, poderia ser
percebido a partir de então, mas essa é uma outra história.

163
Referências Bibliográficas

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PortoAlegre: Editora Sulina.
ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de (2004). História da fotorreportagem no Brasil:
A fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 3ª
reimpressão.
CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras Criadas: David Nasser e o Cruzeiro. São Paulo:
SENAC, 2001.
COSTA, Helouise; BURGI, Sérgio (orgs). As origens do fotojornalismo no Brasil: Um
olhar sobre O Cruzeiro 1940-1960. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2013.
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do Rio de janeiro, RJ, 2007.
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Márcia; MARSON, Izabel; BREPOHL, Marion. Figurações do outro. Uberlândia:
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SERPA, Leoní Teresinha Vieira. (2003) A máscara da modernidade: a mulher na
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humana. Vol. I. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1993.
VAN DER LINDEN, Sophie. (2011) Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify

164
ENSINO RELIGIOSO EM MONTES CLAROS:
UMA RETROSPECTIVA HISTÓRICA

Janice Machado Ribeiro Rodrigues


Cláudia Simone Pereira Sarmento Quadros

Resumo:O Ensino Religioso, componente curricular da educação básica, sempre esteve


presente nos veios da educação brasileira e, como não poderia deixar de ser, na história
educacional da cidade de Montes Claros, na região norte de Minas Gerais. Esse
trabalho de pesquisa teve então a pretensão de conhecer parte dessa trajetória, sob a
tutela de um padre da ordem Premonstratense, através do qual, a disciplina ER se
estruturou por mais de três décadas sob sua coordenação. E assim, para a realização
desse trabalho, utilizou-se a pesquisa bibliográfica e de campo, cujo instrumento de
coleta de dados foi a entrevista semiestruturada afim de levantar dados referentes ao
nosso objeto de estudo e sua contextualização na educação. Então, foi possível saber
sobre o Ensino Religioso desde a década de 1960 até final do século e início do século
XXI, numa busca de ampliação do diálogo entre diversas denominações religiosas
cristãs e melhor formação dos professores.

Palavras-chaves: Ensino Religioso; história no norte de Minas; contextos educacionais.

O Ensino Religioso (ER) no Brasil, nos dias atuais, enfrenta uma busca de
identidade epistemológica em um campo de lutas, onde educadores, religiosos – leigos e
teólogos, bem como cientistas das Ciências da Religião e, principalmente, professores, se
colocam atentos no sentido de buscarem melhores encaminhamentos para a disciplina,
aprovada pelo artigo 210 da atual constituição brasileira, como parte integrante dos
currículos mínimos do ensino fundamental, com o objetivo de assegurar a formação
básica comum quanto aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
O ER encontra-se no âmago de arrojadas discussões, a exemplo da necessidade do
diálogo inter-religioso no Brasil, país permeado por uma grande diversidade na sua
formação étnica, social e religiosa e, foi regulamentado através da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB) 9.394/96, que mesmo numa versão mais democrática para a
educação, colocou o seu exercício no âmbito escolar sem ônus para o Estado, o que
representou um retrocesso mediante as leis de diretrizes e bases anteriores, a LDB de
1961 e a LDB de 1971, permitindo uma interpretação de um ER de caráter confessional
ou interconfessional, ou seja, de competência das instituições religiosas, num país tido
como laico, desde a primeira constituição republicana, há mais de um século.
No cenário educacional que se estabeleceu no Brasil, o conteúdo disciplinar do ER
vem passando por sérios debates em todo o território nacional, pois segundo VALLE
(1998) a educação, pelo fato de ser gerada pela sociedade, não pode escapar a certos

165
condicionamentos que a mesma a instaura. Sendo assim, uma sociedade laica exige a
efetividade de uma educação mais crítica capaz de garantir a formação de um sujeito
cidadão. E com a atuação do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso
(FONAPER), foi aprovada uma nova redação para o art. 33, da atual LDB, em julho de
1997. No entanto, todas essas questões exprimem os embates circundantes a esse tema,
que é nosso objeto de estudo.
Pensar o Ensino Religioso (ER) na história do Brasil, especificadamente na
educação, implica, pois, enxergá-lo como que incrustado na própria formação do povo
brasileiro, pois, ao remetermos à chegada dos padres jesuítas na ―terra brasilis”, o ER foi
tal qual a linguagem estabelecida durante mais de duzentos anos entre colonizadores e
nativos aqui encontrados e, posteriormente, com os negros escravizados trazidos da
África, assim como os filhos dos colonos.
É fato, portanto, que o ER confessional aconteceu como catequese constituindo-se
no canal de comunicação entre esses povos e ao mesmo tempo contribuindo, também,
com o delineamento dos primeiros traços da formação do que viria a ser, efetivamente, o
povo brasileiro. E não há como negar os acontecimentos que se fizeram no berço católico
através do ER, querendo ou não, estabelecendo-se aí um intercâmbio de significados, os
quais se desenvolveram por mais de quinhentos anos de história.
No Brasil, o ER seguiu sua trajetória histórica na educação, desde de sua abordagem
confessional, entendendo-a como uma perspectiva de uma prática pedagógica mais
tradicional e, posteriormente, no processo de modernização do Estado com a República
com o consequente o estabelecimento do processo de secularização da sociedade, onde
pode-se perceber uma clara influência dos pensadores da Escola Nova, num modelo de
ensino teológico – interconfessional. Ainda vislumbramos um terceiro momento, o atual,
que nasce junto ao processo de redemocratização do país, com a nova carta constituinte de
1988, a fundação do FONAPER, a instituição da LDB – 9.394/96 e suas posteriores
regulamentações, onde busca-se um ER influenciado pela Ciência da Religião.
E é aí, nesse momento de transição, entre as décadas de 1960 e anos 2000, que
delineamos a trajetória do ER em Montes Claros/MG. Onde buscou-se compreender as
influências dos momentos históricos vivenciados no Brasil, no desenvolvimento das suas
práticas pedagógicas, os lócus do processo de ensino.
Na contextualização da realidade sócio-política e pedagógica do ER, percebe-se
movimentos de secularização a influenciá-los, com normas e características próprias, às
vezes, muito diferenciadas, subjetivadas e individualizadas, numa crescente

166
desconstrução dos valores fundamentados nas tradições cristãs, herança da colonização
portuguesa no Brasil, onde se assinala a quebra da hegemonia católica. Em contrapartida,
percebe-se o avanço da propaganda das demais religiões, inclusive de religiões orientais.
E por outro, vê-se uma adesão crescente dos jovens a comunidades e grupos religiosos,
seja em busca do reavivamento da própria religiosidade, ou então de um modo de vida
centrado nos princípios dos valores cristãos ou outras formas de religiosidade, certo é, que
questões subjetivas também circundam o mesmo.
O ER, ainda hoje numa berlinda, tido ora como pecador enquanto veiculador da
hegemonia católica e proselitismos, ou ora como santo, na possibilidade de contribuir
com a formação do cidadão, é alvo de discussões nos âmbitos políticos-sociais, religiosos
e educacionais. Porém, mais do que as desavenças causadas entre os que o defendem e os
que o condenam, entende-se necessário investir-se na busca de fundamentos
epistemológicos capazes de sustentá-lo como transposição didática das Ciências da
Religião, pois só assim há de se garantir sua legitimidade como componente curricular e
essencial para formação integral do ser humano.
No desenrolar da história de Montes Claros, o ER teve sua história delineada
paralelamente com o desenrolar da educação, sob a tutela da Igreja Católica Apostólica
Romana até fins da década de 1990 e a coordenação do Padre João Batista de Souza
Lopes, pároco fundante e atuante, ainda hoje, na Paróquia São Norberto, na diocese
montesclarence, da ordem Premonstratense, ordenado em 1965, pelo bispo Dom José
Alves Trindade e ainda exercia a função de professor do ER, assumindo a partir da década
de 1970 a coordenação da Comissão Regional de Educação Religiosa de Montes Claros, o
que se estendeu pelas duas décadas subsequentes.
Dois anos após sua ordenação em 1967, com o ER já como matéria opcional nas
escolas públicas estaduais65. Vale aqui ressaltar que três portarias estaduais de 1966,
(Portaria nº 95 de 14 de janeiro de 1966, a Portaria nº 100 de 20 de janeiro de 1966 e
Portaria nº 103 de 20 de janeiro de 1966) regulamentaram a questão da disciplina para o
sistema estadual de ensino, determinando sobre as questões práticas e o caráter
confessional dado a mesma, sob a orientação da Igreja Católica; onde os representantes
das Entidades Religiosas, a partir de então deveriam ser credenciados junto à Secretaria
de Estado da Educação; a qual seria responsável pela regulamentação do credenciamento
de professores para o exercício da disciplina de ER; e também definiu programas para a

65
Decreto-Lei nº 9147 de 16 de dezembro de 1965, assinado pelo Governador José de Magalhães Pinto e
pelo Secretário de Educação Bonifácio José Tamm de Andrada.

167
mesma, nos seguintes níveis: Jardim da Infância; Curso Primário (quatro séries); Curso
Secundário, incluindo o 1º ciclo (curso ginasial) e o 2º ciclo (colegial e normal). E foi
nesse contexto que Padre João lecionou na Escola Estadual Professora Dulce Sarmento
até 1983, quando Dom Geraldo então Bispo de Montes Claros, colocou-o como
coordenador do ER da diocese de Montes Claros na dimensão da Igreja Católica.
Segundo Padre João Batista, o conselho por ele coordenado, era composto por
representantes, “das igrejas sérias: Batista, Presbiteriana, Adventista e Assembleia de
Deus e esse conselho tinha o objetivo de credenciar os professores, bem como prepará-
los para a tarefa de ministrar o ER”66. Também era tarefa desse conselho fazer o
acompanhamento mensal. E quanto à preparação dos professores, essa se realizava em
relação ao conteúdo, ao método e as dinâmicas a serem aplicadas aos educandos. Esse
trabalho o envolveu de tal forma, que Dom Geraldo o colocou para ser responsável por
toda a diocese, inclusive nas cidades de maior expressão da redondeza, como: Janaúba,
Bocaiúva, Brasília de Minas, Coração de Jesus, dentre outras, aonde ia até duas vezes por
ano, se reunir com os professores para discutir os conteúdos, metodologias e repassar
informações. Importante aqui esclarecer, que todo esse trabalho realizado era orientado
pela Secretaria Estadual de Educação, centralizado em Belo Horizonte, com deliberações
conjuntas da então 22ª Delegacia de Ensino, que determinava sempre duas supervisoras
de ensino - pedagogas, para acompanhá-lo.
Quanto à seleção dos professores a lecionarem o ER em Montes Claros, era exigido
como pré-requisitos; em primeiro lugar serem indicados pela igreja, cada paróquia podia
indicá-los e essa indicação chegava às mãos de Padre João, “caso houvesse alguma dúvida
quanto à indicação, a questão era então repassada ao Bispo- Dom Geraldo”.67 Na maioria
das vezes, ele mesmo, tinha autoridade para analisar as indicações.
Depois de indicados, os selecionados passavam por uma entrevista, onde era
avaliado se aquela pessoa tinha ou não condições de assumir a regência do ER. Então era
feito uma reunião para todos os indicados conhecerem a proposta do ER e como deveria ser
ministrado o conteúdo, e nessa etapa, muitos já eram excluídos. “Por exemplo: tinha
professores que não tinham a formação mínima que era o 2° grau, ou não aceitavam as
condições colocadas, ou até mesmo discordavam da proposta”68. Em seguida era
organizado um cronograma com no mínimo de 40 horas/aula, para ser repassado realmente

66
LOPES, 2014 (Grifo do autor)
67
LOPES, 2014 (Grifo do Autor)
68
Ibidem

168
todo o esquema do trabalho que deveria ser desenvolvido nas escolas públicas, e ao final do
curso ainda era aplicado uma “prova”69, uma avaliação, e conforme o resultado do
professor, ele recebia ou não a credencial para então concorrer às vagas nas escolas
estaduais.
Quanto à formação dos candidatos, pedia-se de preferência que os mesmos
fossem formados em Filosofia, ou possuíssem pelo menos a formação do curso
magistério, em nível de segundo grau, como já esclarecido anteriormente. E para quem
não tinha esses cursos, ou seja, a formação mínima, a mesma também, não era questão
desclassificatória, porém o exigido mesmo era o curso de 40 horas oferecido pela diocese
para receber a credencial. Portanto, a credencial para lecionar ou não o ER, ficou
concentrado nas mãos da Igreja Católica, isso ainda em conformidade com o parágrafo 2º
do artigo 97, da LDB nº 4024/61, em sua redação contemplava que o registro dos
professores de ER, a partir de então seria realizado pela autoridade religiosa, o que não
mudou mesmo com a LDB 5.692/71, e possibilitou que o Padre João, se tornasse
personagem e protagonista de tais capítulos na história do ER no norte de Minas. Ele
ainda fez questão de registrar as significativas mudanças quanto ao ER no decorrer dos
anos em que esteve a seu serviço, e assim assinalou-as:

a) No primeiro momento, e aí entende-se aqui década de 1960, os dois ou três


anos iniciais de seu trabalho, havia uma preocupação dos professores, “e muito
grande”, de trabalharem na linha doutrinária, quase identificada como
catequese;
b) Já na década de 1970 e 1980, cada igreja ensinava a sua doutrina, e nisso o
próprio Padre João, reconhece a sua influência, pois segundo ele, nas reuniões
que participou em Belo Horizonte, logo percebeu que o ER não era catequese,
ou pelo menos não deveria ser sectarista para conquista de adeptos. E sim
formar, criar novos valores no coração das crianças e dos jovens. Essa década
foi o um momento de fazer do ER o veículo da formação humana;
c) Década de 1990 - Houve uma significativa mudança, as paróquias deixaram
de indicar os catequistas para lecionarem o ER, para indicar pessoas que tinham
uma formação cultural melhor como por exemplo, os formandos no Curso de
Filosofia e Pedagogia.

Indiretamente, através do ER, pois foram através dos contatos políticos e com
“pessoas de conhecimento”70, proporcionados pelos encontros estaduais que aconteciam
na capital durante as férias, ou seja, em Belo Horizonte, geralmente na Pontifícia
Universidade Católica (PUC/MG), que Padre João, foi incentivado a lutar e com êxito,
pela abertura do Curso de Filosofia, na Universidade Estadual de Montes Claros -
UNIMONTES. ―Esses cursos da PUC ajudaram bastante na qualificação dos então

69
Ibidem
70
LOPES, 2014 (Grifo do autor)

169
professores do ER, pois com a LDB 5.692/71, lhes eram garantidos o salário”.71
No cenário sociocultural e político a história do ER, na cidade de Montes Claros,
transcorreu a exemplo do que ocorria segundo as políticas educacionais nacionais e
mineiras, e sua regulamentação como disciplina conta a partir da sistematização do ensino
pelas então Leis de Diretrizes e Bases de 1961, em seguida a de 1971 e, posteriormente a
LDB 9.394/96. Porém, como ressaltado por Padre João, quanto às escolas particulares
confessionais, elas seguiam os direcionamentos das próprias ordens religiosas a que
estavam ligadas, e nesse período em que ele esteve à frente da coordenação do ER,
prioritariamente era um membro da própria ordem que a lecionava.
Portanto, a exemplo do ocorreu em todo território brasileiro, em Montes Claros,
o ER teve suas especificidades como disciplina, numa trajetória primeiramente de
desvinculação da hegemonia católica e mais tarde interconfessional, para hoje, como
disciplina do núcleo comum da educação básica, ter seus conhecimentos validados pela
CRE, como área científica, cujo curso de licenciatura é responsável pela formação dos
docentes, impreterivelmente. Mas a luta em prol de um ER isento de proselitismos e de
respeito à diversidade religiosa, na prática efetiva nas salas de aula, ainda são um desafio
de toda a sociedade, não só montesclarence, mas da sociedade brasileira como um todo.

Referências Bibliográficas

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Maria Ribeiro Holanda. Ensino Religioso: aspectos legal e curricular. São Paulo: Paulinas, 2007.
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PASSOS, João Décio. Ensino Religioso: construção de uma proposta. São Paulo: Paulinas, 2007.
______. Como a religião se organiza; tipos e processos. São Paulo: Paulinas, 2006.
PASSOS, João Décio, USARSKI, Frank (Org.). Compêndio de ciências da religião. São Paulo,
SP: Paulinas; PULUS, 2013.
POZZER, Adecir et al. (Orgs.) Diversidade Religiosa e Ensino Religioso no Brasil: memórias,
propostas e desafios. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2010.
SILVA, F.O. Sub Umbra Alarum Tuarum: história da criação e organização da Diocese de
Montes Claros (1903 - 1943) / Francisco Oliveira Silva. – Belo Horizonte: FUMARC, 2005.
SOARES, Afonso Maria Ligorio. Religião & Educação; da ciência da religião ao ensino religioso.
São Paulo: Paulinas, 2010.
SOUZA, Antonio Alvimar. Dom José Alves Trindade: o bispo de Montes Claros e a Igreja no
norte de minas Gerais. In: História e Memória: aspectos sociais, políticos e religiosos do
catolicismo norte-mineiro. Belo Horizonte: FUMARC, 2012.
VALLE, Edênio, SVD. Que Futuro para a vida religiosa no Brasil? Reflexões em torno da virada
do milênio. Aparecida, SP: Editora Santuário. (Coleção Cadernos de Vida Religiosa n. 2, 1998).

71
Ibidem

170
HISTÓRIA E LITERATURA: AS REPRESENTAÇÕES DA REVOLUÇÃO
CUBANA NAS OBRAS DE REINALDO ARENAS

Jorge Luiz Teixeira Ribas

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar as representações da sociedade pós-
Revolução Cubana e seus princípios na obra O mundo alucinante (1965)do escritor e
poeta cubano Reinaldo Arenas (1943-1990). Tendo em vista que, com a implantação do
governo revolucionário em Cuba em 1959, houve progressivamente uma censura por
parte do Estado a obras literárias diversas e seus autores, interessa investigar na escrita
de Arenas uma representação do processo revolucionário que destoa da versão
dominante e divulgada pelo regime, demonstrando as diferentes formas de viver e
interpretar o real, indicando a literatura como possível forma de resistência e importante
reduto de acesso ao conhecimento do passado. Ao tratar a Literatura como fonte, e sua
utilização pela História, consideramos que as obras se inserem num determinado
contexto e, por isso mesmo, dão pistas dos valores, horizontes e expectativas
formuladas no seu tempo. Além disso, por se tratar de uma obra censurada por um
princípio moralizador – em razão de ser o autor homossexual - indicam também, em
certa dimensão, comportamentos e ideais que o governo revolucionário temia e
perseguia, lançando luz à uma compreensão de um perfil mais profundo dos quais
seriam de fato os objetivos da ideologia dominante que reprimia, em Cuba, diferentes
formas de pensar e viver no mundo. Entende-se, dessa forma, que a Literatura seja uma
ferramenta inquestionavelmente útil para a História, permitindo ao historiador alcançar
diferentes sensibilidades e visões de mundo numa determinada época, neste caso
durante a Revolução Cubana, por meio da obra de Reinaldo Arenas, com seus
preconceitos, medos e sonhos, como vestígio fundamental de interpretação do real e
compreensão histórica.

Palavras-Chave: História; Literatura; Reinaldo Arenas.

Introdução
Nas últimas décadas a literatura tem ocupado um lugar de destaque entre as
fontes disponíveis para a pesquisa em História. Isso se deve ao fato de que obras
literárias diversas dispõem de um potencial enorme para ajudar a responder problemas
que se inserem no tempo. Para Sandra Jatahy Pesavento (2006), a literatura amplia o
campo de ação para os historiadores na medida em que há um desprendimento pela
busca da verdade, do que realmente aconteceu, ―o fato em si‖, e o historiador se dedica
ao que ―poderia ter sido‖ num determinado tempo e lugar, às sensibilidades e
interpretações da realidade, à presença do simbólico e dos significados. Em suma, a
Literatura quando utilizada pela História dá acesso ao imaginário de uma época, de
maneira privilegiada, pois permite encontrar traços e pistas que não seriam encontradas
em outras fontes.

171
Atravessando a discussão sobre documento e pesquisa, se a literatura enquanto
obra de ficção, portanto de imaginação livre e de invenções desmesuradas, de
personagens e fatos criados por quem escreve, como muitas vezes é julgada, poderia se
firmar como fonte confiável para a pesquisa histórica, Pesavento discute o conceito de
ficção apresentado por Natalie Davis, que defende para a história o conceito de ficção
no sentido de que existe desde o século XVI, que não significa uma coisa falsa,
mentirosa ou irreal, de uma imaginação descompromissada, mas como ―criação a partir
do que existe‖. Assim escreve Pesavento:

A verdade da ficção literária não está, pois, em revelar a existência real de


personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em
jogo numa temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca substantiva, pois
para o historiador que se volta para a literatura o que conta na leitura do texto
não é o seu valor de documento, testemunho de verdade ou autenticidade do
fato, mas o seu valor de problema. O texto literário revela e insinua as
verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados pela
ficção (2006, s/p).

Dessa forma, prossegue a autora, quem cria uma narrativa fictícia, o faz a partir
de algo, que é necessariamente a partir da realidade em que se insere. Quem escreve
está inserido num determinado lugar e em determinada época, portanto se constitui de
sensibilidades, valores, interpretações, posicionamentos que são datados, que
fundamentam a representação que se faz do mundo e que é depositado na obra literária,
ainda que os personagens e fatos ali descritos não tenham lugar no tempo como dados
acontecidos. De maneira que o texto literário expressa formas de pensar e agir, de sentir,
posturas de comportamento, representações de papeis sociais etc. que constituem um
valioso material de acesso aos significados de um período, como um testemunho de seu
tempo.
Dito isso, disponho a analisar a obra de ficção do escritor e poeta cubano
Reinaldo Arenas (1943-1990), que escreveu O mundo alucinante em 1965 mas que no
entanto só foi publicado em 1967, na França, por via de contrabando, porque fora
censurado em Cuba e proibido de circulação. O livro trata de uma história surreal, que
conta as venturas de um frei, chamado Servando Teresa de Mier, cuja trama se
desenvolve entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Veremos o
que apresenta a história do infatigável frade que possivelmente fez com que a obra tenha
sido censurada e proibida, vindo a ser conhecida somente graças ao contrabando. O que
contém na obra que ameaçou as autoridades cubanas, que podem expressar, portanto,

172
valores que eram condenados e, por extensão, aspectos do ideal revolucionário que se
instaurou em Cuba a partir de 1959? Melhor formulando, como são representadas as
relações, posições e papeis sociais na obra que teria impedido sua circulação por serem
inadequados para o que defendia o regime?
Para respondermos a pergunta, antes nos desdobraremos em alguns comentários
acerca da Revolução Cubana e seus efeitos, de forma a tentar um delineamento do
contexto em que o autor e a obra se inserem.

A Revolução, a ideologia e as relações sociais e culturais


Hannah Arendt foi uma filósofa que dedicou boa parte de sua produção para a
compreensão da natureza do fenômeno do totalitarismo. Contudo, seus apontamentos
são importantes não apenas para a compreensão do extremo do totalitarismo em si, mas
também contribui para lançar luz à compreensão do Estado moderno em suas diversas
manifestações políticas. Assim, sua filosofia auxilia no entendimento da dinâmica do
autoritarismo, da tirania, da violência do Estado, e, o que nos interessa aqui, o papel da
ideologia nessas formas de expressão política.
Arendt reflete que no processo radical de implantação do comunismo na União
Soviética, exemplo de totalitarismo, tinha em sua raiz a necessidade de uma coerência
ideológica, que a tudo explica, a tudo abarca e a tudo se aplica. E a importância dada a
coerência ideológica por um lado, se chocava e conflitava com a incoerência do mundo
e com a imprevisibilidade humana de outro. Mesmo que nem todas as experiências
foram totalitárias, pode-se pensar em situações em que há uma pretensão de totalidade
em que, como pensou Arendt, abre-se mão do terror e da violência para ―tornar e manter
o mundo coerente, para dominar os seres humanos até que percam a espontaneidade e,
com ela, a imprevisibilidade especificamente humana do pensamento e da ação‖
(ARENDT, 2008, p.369).
Dois anos após 1959, quando Cuba começou o processo de construção do
comunismo encabeçado pelos revolucionários de Sierra Maestra, com a forte presença
de figuras comunistas e da orientação da URSS. O objetivo que se apresentava ao
regime era radical: construir a sociedade nova, ideal. Não se entende o processo
revolucionário em Cuba, e a construção da nova sociedade cubana sem dedicar especial
atenção ao papel da ideologia que mobilizou o regime e as massas na construção da
utopia, na promessa de alcançar o futuro perfeito onde todos usufruiriam da igualdade e

173
das riquezas de um país independente. Onde se cumpriria o papel aguardado pela
História, portanto inevitável.
Em função do êxito nesse propósito, seria preciso transformar a sociedade de
maneira que ela esteja apta a cumprir com a lei histórica do alcance do comunismo.
Transformações são necessárias, e são postas em efeito, para que nada nem ninguém
atrapalhe o alcance do objetivo. Assim, desenvolve-se rapidamente o processo de
identificação e eliminação dos inimigos da Revolução, dos opositores, dissidentes, dos
que dissonavam no pensamento, do que poderia desviar a ordem ideológica. Tudo isso
para manter a obrigação da fidelidade à utopia, a coerência da ideologia, cuja maneira
de alcançar seria através da união de todos, em igual pensamento e dedicação, sem
nenhuma hesitação.
Não foi apenas no campo da política administrativa que se operou esses
desmandos. Em todos os níveis sociais foram impostas medidas de forma a conduzir
todos os sujeitos na construção desse ideal. Isso implicaria numa tentativa de
homogeneização da sociedade, a nível de pensamento e comportamento, para enquadrá-
la no ritmo do progresso e da utopia. Para que se constituísse o sujeito revolucionário,
dentro da demanda dos novos tempos. Ao se idealizar o novo homem e a nova mulher
revolucionários, constitui-se automaticamente o outro, que desvia, não se coopta,
incomoda, que representa o imprevisível, a distorção, a variedade dentro de um ideal
que não permite nada fora do controle.
Os efeitos disso são bastante conhecidos em vários lugares durante o século XX.
Regimes autoritários se caracterizam pela censura e intolerância à diversidade, pela
normatização das expressões e dos corpos, pela eliminação dos abjetos. Perseguições
políticas são bem conhecidas pelos historiadores, seus assassinatos e desaparecimentos.
Contudo, menos conhecidas são as perseguições à criação artística e às vítimas de uma
perseguição moral. A moral está quase sempre em discussão nos processos políticos,
muitas vezes transformando costumes em leis, sendo impostas enquanto normas e
produzindo, assim, suas dissidências72 e ―desvios‖, sofrendo as mais dramáticas
violências e, muitas vezes, caem no esquecimento.

72
Segundo Daniel Aarão, ―dissidente‖ no contexto revolucionário cubano, sob influência do regime
soviético, tinha o sentido não de quem opõe, mas de quem ―dissente‖. Para saber mais, ver na referência
bibliográfica ao final do trabalho.

174
Reinaldo Arenas foi um poeta e escritor homossexual cubano que sofreu uma
implacável perseguição do regime por conta do teor dos seus escritos73 e, vale reiterar,
por sua condição de sujeito homossexual. Fugiu de Cuba em 1980, pelo porto Mariel,
no maior processo de imigração em massa da história do país, e morou nos EUA até o
seu suicídio, em 1990. A história de vida de Reinaldo Arenas demonstra que, mais que
as perseguições aos dissidentes políticos dentro do processo revolucionário, a repressão
também teve uma conotação de gênero, cuja parcela da sociedade que sofreu da
intolerância de uma sociedade que exaltava valores masculinizados, militares e
heterossexuais são pouco estudadas e permaneceram em grande parte na sombra da
história.
A dificuldade em investigar esses relatos se deve, evidentemente, pela carência
de documentos que pudessem fornecer vestígios para uma reconstrução da experiência
desses sujeitos que foram marginalizados devido às suas relações afetivas não
heterossexuais, que não estavam na norma estabelecida pelo regime e sofreram, assim,
da perseguição, tortura e prisão. Foram silenciados, sem direito à fala e tendo a escrita e
criação, marcas da presença no tempo e no espaço, censuradas, como no caso da obra de
Reinaldo Arenas, que não se resignou e com uma determinação impressionante levou
adiante a missão de não deixar que seus escritos e pensamentos se perdessem nas mãos
do regime.
Diante disso, a literatura se apresenta como um importante caminho para
desvelar traços que indicam a existência desses sujeitos, cujos temas que
fundamentaram obras de ficção envolvem questões centrais na vida de quem escreve.
Os fatores sociais que constituem o conteúdo da narrativa apontam para os conflitos e
relações sociais que puderam existir e que possivelmente fizeram parte, de alguma
forma, da vida de quem escreveu.
Aqui proponho, já foi dito, apresentar algumas passagens da obra O mundo
alucinante (1965) que possam esclarecer o objetivo proposto e demonstrar como a
literatura pode ser um reduto de representações que contribuem para desestabilizar o
silêncio que paira sobre certos aspectos do passado, além de apontar para uma
diversidade de apropriação do real, de interpretação do vivido, da pluralidade de
significados possíveis nos processos históricos de transformação social, radical ou não,
que não raro ficam registrados no texto literário de uma determinada época.

73
Sobre a vida de Reinaldo Arenas, ver a autobiografia Antes que anoiteça, inserida nas referências
bibliográficas.

175
O mundo alucinante de Reinaldo Arenas
O mundo alucinante trata de uma história surreal do frei Servando Tereza de
Mier, que vivia no México no final do século XVIII, onde se venerava a santa Virgem
Maria de Guadalupe. Famoso pelo dom da oratória, foi convocado para discursar na
celebração da aparição da santa. Num dia, antes da cerimônia em que discursaria,
caminhando nas redondezas de sua paróquia, acabou sendo arrastado para uma caverna
onde vivia uma espécie de sapo gigante que, inconformado com a versão cristã da
aparição da Virgem de Guadalupe, convenceu o frei de que a santa se tratava na verdade
de uma divindade de origem Asteca, e não cristã, sendo portanto a versão cristã uma
invenção... No dia do discurso, em que todos esperavam uma veneração à santa, frei
Servando denunciou a ―farsa‖, com base no que havia descoberto, e acabou preso pela
Inquisição. Desterrado para a Espanha, para ser enviado à fogueira, consegue fugir no
meio do oceano, alcança a Europa através de uma baleia e, entre novas prisões e fugas,
amargou, depois de dizer a ―verdade‖, uma implacável perseguição que o levou a
percorrer vários países europeus, até voltar novamente ao México já velho, no século
seguinte, defendendo a independência do país, numa fantástica história em que o tempo
e os episódios se sobrepõem e entrecruzam sem uma linearidade, porém com tramas
bastante emblemáticos e significativos.
Os temas tratados na obra são os mais diversos, desde a miséria, as orgias de
uma nobreza insensível à pobreza das gentes, uma igreja corrupta, uma sociedade
violenta, carente de recursos e corrompida e corrompível. Além disso, trata de política,
de administração pública, de amizades, traições e sexo. Interessa aqui, sobretudo, a
representação de personagens e cenas presentes na obra que fazem possível alusão à
alguma expressão da sexualidade que chocava com os valores pregados pelo regime
revolucionário cubano, que possam indicar a justificativa da censura à obra, além de
apontar para os ideais do regime e características de uma sociedade cuja complexidade
não se reduz.
O primeiro país em que frei Servando passou foi a Espanha. Acuado, observou
vários aspectos sociais da metrópole. Num dado momento, descreveu:

Outras das grandes pragas que assolam Madri é a sodomia, e quando chega à
noite há ruas pelas quais não se pode passar, pois a gente se arrisca a
constatar tremendas surpresas. A polícia captura todas as noites uma centena
dessas criaturas infelizes, e entre elas costuma sempre encontrar-se um conde

176
ou uma grande personalidade. Este tipo de vício é castigado com a fogueira e
nela vão parar os mais miseráveis e o que não tem quem o proteja (ARENAS,
1984, p.115).

Mais que indicar a sodomia enquanto uma prática social, que assola as noites de
Madri, a narrativa expressa também os agentes sociais que nela se envolvem: desde a
polícia que reprime os ―infelizes‖, até figuras da alta sociedade, grandes personalidades,
que graças aos seus privilégios não são vítimas da cruel repressão, ao contrário dos
miseráveis que não têm quem os proteja. Constrói, assim, uma representação das
relações sociais em torno da questão. Suas contradições e, sobretudo, sua presença.
Sempre perseguido pelo implacável Leon, representante da Inquisição, frei
Servando não cessa em fugir e buscar alguma maneira de denunciar a injustiça a que
estava sendo vítima, pois não fizera nada além de declarar a verdade para os fiéis a
respeito da Virgem de Guadalupe. Decide encontrar o rei da Espanha, a ele recorrer e
tentar convencê-lo de sua causa. Na travessia até o palácio, passa pelos jardins do rei.
No percurso, atravessa as ―três terras do amor‖. Na primeira, num mar de sêmen,
homens e mulheres no auge do desejo se possuíam até ficarem desmaiados. Na segunda,
mulheres com mulheres se acariciavam num areal até caírem, também, desmaiadas. Por
fim, na terceira terra do amor, trava um diálogo com seu guia, que o levaria até o rei:

Não gostas também deste lugar? ‖, indagou-me então o rapaz, enquanto se


entregava a um homem que o possuía de forma impiedosa. E eu esperei que
ele terminasse para responder-lhe que também não, e que não acreditava que
aquilo tivesse alguma relação com a felicidade, que por outro lado a
considero inexistente, e até me parece ridículo falar dela. Além disso, disse-
lhe depois de ter-lhe explicado minha teoria, dizes que só existem estas três
categorias, mas então eu não estou em nenhuma delas, o que prova que o que
me ensinaste não está certo (grifo meu). (ARENAS, 1984, p.127)

Na medida em que se passava os anos na década de 1960, a repressão às diversas


expressões sexuais se aprofundava. Reinaldo Arenas era um homossexual sem nenhuma
aparente hesitação, como é bem demonstrado em suas memórias e na sua escrita
epistolar74 contemporânea à obra O mundo alucinante. Isso chama atenção à ironia que
perpassa a obra literária do autor, como no trecho acima. A questão homossexual é
relatada em diversos episódios da narrativa, mas que o protagonista (que se confunde

74
Quase 150 cartas foram enviadas numa correspondência com dois amigos franceses e publicadas no
livro Cartas a Margarita y Jorge Camacho. Ver em referência bibliográfica ao final do trabalho.

177
com o autor da obra) resiste, nega, demonstra-se alheio. Numa dialética entre ironia e
exposição de certas questões, produz-se uma crítica, representa o real.
Adiante, sempre em fuga, já pela Inglaterra, num momento em que conviveu
entre os nobres do país, conheceu uma mulher, com mais de 300 anos de idade,
chamada Orlando, que frei Servando se refere a ela sempre como ―Orlando, exótica
mulher‖. Há um diálogo entre eles:

___ A senhora está muito bem conservada.


___ Eu nasci homem... Dele conservei somente o nome.
___ Alegra-me sabê-lo.
___ Antes de completar vinte anos, virei mulher.
___ Isso acontece quase sempre na sociedade inglesa (ARENAS, 1984,
p.220).

Duas observações a serem feitas. A primeira é que o fato de se referir a uma


personagem como Orlando que vive na Inglaterra, um outro país, longe de Cuba,
distante do país do escritor, não importa. O que importa é a que ele se refere na
narrativa, que aspectos são retratados, figurados e representados pelas peripécias das
personagens no decorrer da trama. E indagar como isso poderia ser recebido pela
sociedade e pelo aparato estatal que condenava essas expressões, automaticamente
legitimava sua repressão e zelava por uma outra, com base na coerência da ―norma‖, da
―natureza‖, no ―correto‖, que incorporava o ideal revolucionário que deveria combater
esses ―vícios burgueses‖.
A segunda observação é que a presença de ―Orlando, exótica mulher‖ na
narrativa pode ser visto como um elemento social que afeta a produção artística e que
resistia à norma, à repressão, à imposição de uma sexualidade hegemônica. Isso aponta
para a limitação da repressão e do ideal revolucionário, demonstrando a multiplicidade,
a diversidade por meio do texto literário, já que as fontes oficiais e as expressões
artísticas sob domínio estatal não dariam espaço para a representação desses setores, o
que não significa que eles não existiram, mas que foram forçados ao silêncio e
esquecimento e que, portanto, podem ser buscados e analisados no texto literário do
período.
A obra é vasta, intricada de acontecimentos que se alternam, numa narrativa que
foge mesmo ao mínimo incentivado pela revolução, que se trata de temas de heroísmo e
da construção do futuro brilhante revolucionário e nacionalista. A história de frei
Servando também faz críticas políticas, que se confundem, a meu ver, com críticas à

178
própria Revolução. Reinaldo Arenas foi um crítico à Revolução Cubana, não contrário à
transformação, pois participou mesmo da guerrilha, mas que questionava a concentração
do poder e o processo que veio a ser, por fim, a substituição de uma ditadura por outra,
e as consequências disso em sua própria vida. Em O mundo alucinante, já para o fim da
narrativa, quando frei Servando se encontrava novamente no México, participando
ativamente de sua independência da Espanha, dando fim também à Inquisição espanhola
que o perseguia, depois de inúmeras aventuras e fugas deslumbrantes em território
Europeu e Americano, o frei se deparou com um governo do general Iturbide que traía
os valores da independência, da liberdade, igualdade e fraternidade, concentrando
demasiado poder em suas mãos, e teceu uma opinião:

Eu sempre opinei por um meio-termo entre a confederação exagerada dos


Estados Unidos, cujos defeitos muitos escritores evidenciaram, e que lá
mesmo tem muitos antagonistas, pois o povo está dividido entre federalistas e
democratas: um meio-termo, digo, entre a federação exagerada dos Estados
Unidos e a concentração perigosa da Colômbia e do Peru (ARENAS, 1984.
p.269).

É difícil não relacionar a ―concentração perigosa da Colômbia de do Peru‖ com


a concentração que ocorria no seu próprio país, em que a possibilidade de liberdade
política estava cada vez mais distante e Fidel Castro se firmava como o Jefe supremo da
Revolução, que se dedicava com todo vigor na construção prática da ideologia
comunista, com efeitos muitas vezes assombrosos na vida das pessoas, como ocorreu
com Arenas, que foi enviado para um campo de concentração para trabalho forçado, a
UMAP (Unidade Militar para Atividade Produtiva), com a finalidade de o regenerar de
seus ―vícios‖ e fazer com que fosse reintegrado ao regime dedicando sua força de
trabalho e a vida à Revolução. E somente a ela.
Finalmente, um último recorte da obra para elucidar uma outra questão, que diz
diretamente à produção artística no período revolucionário, que se refere também
diretamente a Arenas e ao setor artístico da sociedade Cubana, que gradativamente se
viu numa encruzilhada onde ou se criava nos termos culturais pregados pelo Estado ou
tinha a produção censurada. Dentro do Palácio da presidência, no México, que na obra é
chamado de ―Grande Viveiro‖, o tempo todo se cantava músicas e se compunha poemas
para a independência e seu líder maior, sempre em reverência e exaltação, a todo
momento, num frenético louvor, ao que frei Servando ironiza:

179
Contudo, algumas vezes, os escarcéus no Grande Viveiro variam de
ressonâncias. Então, faz-se silêncio. Depois, ouve-se um gritinho, e um dos
cantores (ou talvez vários) morre nas mãos do bando enfurecido que forma o
resto dos cantores: atreveu-se a rimar a palavra Victoria com irrisória, ou
com ilusória, ou com breve trajetória. O Senhor Presidente (segundo dizem)
jamais fica sabendo destes casos sangrentos. São adoradores emocionados
que fazem por sua própria conta e justiça. O Senhor Presidente (louvado seja)
é inimigo da violência, dizem-no. Quando acontecem estes fatos sangrentos,
o Senhor Presidente (bendito seja) encontra-se dando um passeio por entre os
cactos imemoriais. Apesar de tudo, algumas vezes o Senhor presidente
(glorificado seja) pergunta à sua prole cantora a respeito dessas mudanças de
timbre de suas composições. E ela responde-lhe com louvores, com
ressonantes gritos de glória, com aplausos que se prolongam durante
semanas. O senhor presidente (canonizado seja) retira-se então para os seus
reais aposentos e, ao som dos louvores que continuam aumentando, vai-se
adormecendo. Indubitavelmente, o Senhor Presidente (imortalizado seja) é
um protetor dos poetas. Um amante da poesia (ARENAS, 1984, p.275).

Na Cuba revolucionária, os jornais e meios de expressão artísticos alternativos


foram sendo extintos já na primeira década da Revolução75. O mundo alucinante foi
barrado num concurso literário de 1965, da UNEAC (União de escritores e artistas de
Cuba), e impedido de ser publicado, pelo seu teor homossexual. Mas como se pode ver,
havia coisas a mais, passagens que poderiam ser assimiladas à críticas ao regime
político em vigor e ao seu líder. A história de ficção narrada em O mundo alucinante
entra no campo de disputa do simbólico e das interpretações do processo histórico,
quando distorce a versão hegemônica apregoada pelo regime e que se constituiu
enquanto uma memória oficial do processo histórico da Revolução Cubana. A ficção de
Arenas faz, então, uma apropriação do real e aspira ser, também uma explicação e
representação dele.
É possível, portanto, através do texto literário, reconstruir processos históricos,
resgatar sujeitos marginalizados, demonstrar valores, medos, sonhos, angústias que
perpassam a realidade de quem vive; escancara a complexidade do passado,
desestabiliza a noção homogênea da sociedade que a barbárie em nome da utopia tentou
implantar. Encontra-se o imprevisível, a surpresa, as múltiplas formas de pensar e se
expressar, algo que a tirania não tolera.
Em suma, a arte é sempre política. Ela serve para contribuir com a ideologia
dominante, como também para subverter, resistir ao desaparecimento, demarcar espaço
de existências. Quando a realidade se torna uma aparente prisão, a escrita pode ser uma
fuga, tal como frei Servando Tereza de Mier (ou Arenas?) expressou, quando já

75
Sobre os efeitos da Revolução na cultura Cubana na primeira década da revolução, ver artigo de Silvia
Miskulin presente na referência bibliográfica.

180
decrépito de tanto ser perseguido, dentro do processo da revolução de independência do
México, instantes antes de se ver enfim livre:

Por isso, comecei de novo a tramar a fuga (ai, sempre a fuga) daquela tão
malventilada prisão chamada do esquecimento, cujo nome lhe caía tão bem,
pois enquanto ali permaneci, sempre andei por cima dos esqueletos daqueles
que em outros tempos foram prisioneiros (grifo meu) (ARENAS, 1984,
p.267).

Ao falar do esquecimento, do silêncio que pesa sobre os injustiçados, ambos, o


esquecimento e o silêncio é quebrado. A literatura, com disse Reinaldo Arenas em
1980, é onde suspira a vida.

Considerações finais
O texto literário enquanto fonte abre para o pesquisador a possibilidade de
buscar respostas para problemas que outras fontes dificilmente forneceriam. Além disso,
como expressão artística e, portanto, política, descortina posicionamentos, sensações,
ironias, críticas e realidades diversas em determinados contextos. Um potencial recurso
para desestabilizar narrativas homogêneas do passado, fazendo emergir sujeitos e
possibilidades de existências e expressões no espaço e no tempo.
O que fiz aqui foi ensaiar essas possibilidades, ao analisar a obra O mundo
alucinante de Reinaldo Arenas que, articulada com outras fontes, tais como registros
memorialísticos, podem desenvolver um plano de explicação de uma parcela do passado
da Revolução Cubana, na tarefa infinita de reconstituir processos históricos.

Referências Bibliográficas
ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1995.
ARENAS, Reinaldo. O mundo alucinante. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves.
1984.
ARENDT, Hannah. Sobre a natureza do totalitarismo: uma tentativa de compreensão.
In.: ________. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo (ensaios). São Paulo:
Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MISKULIN, Sílvia Cezar. A política cultural no início da Revolução Cubana: o caso do
suplemento cultural Lunes de Revolución. Disponível em:
http://outubrorevista.com.br/a-politica-cultural-no-inicio-da-revolucao-cubana-o-caso-
do-suplemento-cultural-lunes-de-revolucion/. Acesso em 30/08/2016.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e Literatura: uma velha-nova história. 2006.
Disponível em https://nuevomundo.revues.org/1560 . Acesso em 23/08/2016.

181
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2014.
REIS, Daniel Aarão. A revolução e o socialismo em Cuba: ditadura revolucionária e
construção do consenso. In.: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha (orgs.).
A construção social dos regimes autoritários: Brasil e América Latina, vol. II.. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 363-392.

182
“MINHA MENSAGEM NÃO É UMA MENSAGEM DE DERROTA, MAS SIM
DE LUTA E ESPERANÇA”: HISTÓRIA E ESCRITA DE SI NAS
MEMÓRIAS DE REINALDO ARENAS

Jorge Luiz Teixeira Ribas

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de abordar a escrita autobiográfica do escritor


e poeta cubano Reinaldo Arenas em Antes que anoiteça. Homossexual, perseguido
pelo regime revolucionário, examinamos alguns aspectos da obra memorialística
com a finalidade de refletir acerca da escrita de si como forma de resistência e como
prática constitutiva do sujeito, cuja expressão de sua subjetividade esteve em
desacordo com as normas morais e sexuais impostas pelo regime autoritário,
marcando uma trajetória de dissidência, exclusão e marginalização pautadas em
torno de uma questão de gênero.
Para tal, utilizamos dos apontamentos sobre a biopolítica discutidos por Michel
Foucault, relacionado ao conceito de Vida Nua proposto por Giorgio Agamben para
apreender aspectos a respeito da dinâmica de funcionamento do Estado moderno
que, além de incidir normas e condutas nos indivíduos, impor modelos de
subjetividades, gere a vida em busca de um padrão, e se necessário exerce o direito
de matar indivíduos, de excluir corpos que escapam à ordem social e à norma. A
obra demonstra a possibilidade de ação do sujeito diante da normatização por meio
da escrita, em que narra suas experiências e vivências, se situa no mundo adquiri
uma identidade e se constitui enquanto sujeito. A escrita autobiográfica de Reinaldo
Arenas salienta uma experiência pessoal, envolve relações sociais e de convívio,
fundamentalmente expressa a singularidade de sua subjetividade que se negou a
desaparecer e que desestabiliza normas vigentes em determinada época, trata-se,
portanto, da luta pelo direito de existir em sua especificidade e escancara as
limitações dos enquadramentos sociais.

Palavras-chave: Reinaldo Arenas; Homossexualidade; Revolução Cubana.

Introdução
Reinaldo Arenas nasceu em 1943, no povoado de Holguín, que fica na
Provincia del Oriente, em Cuba. Com o advento da Revolução Cubana em 1959,
tendo uma breve participação na guerrilha, Arenas seguiu em direção à Havana para
estudar e desenvolver seu projeto de ser escritor. A partir de então sua vida esteve
intimamente intricada com o processo revolucionário cubano, num conflito com o
regime que passou a vigorar na ilha que rendeu sua prisão, tortura e por fim o exílio
em 1980. Arenas carregava em si dois estigmas sobre os quais o desenrolar
revolucionário travou forte embate: era escritor e homossexual, dois critérios que, de
acordo a circunstancia, poderiam ser cravados no termo ―contrarrevolucionário‖.

183
Após dez anos de exílio nos EUA, em 1990, acometido pela AIDS, Arenas
comete suicídio e escreve uma carta de despedida:

Queridos amigos:
Devido ao meu precário estado de saúde e à terrível depressão emocional
que me impossibilita de continuar a escrever e a lutar pela liberdade de
Cuba, estou pondo fim à minha vida. Nos últimos anos, mesmo me
sentindo muito doente, pude terminar minha obra literária, na qual
trabalhei por quase trinta anos. Deixo-lhes pois como legado todos os
meus terrores, mas também a esperança de que em breve Cuba será livre.
Sinto-me satisfeito por ter contribuído, mesmo que modestamente, pelo
triunfo dessa liberdade. Ponho fim a minha vida voluntariamente porque
não posso continuar trabalhando. Nenhuma das pessoas que me cercam
estão comprometidas nesta decisão. Só há um responsável: Fidel Castro.
Os sofrimentos do exílio, a dor de ter sido banido, a solidão e as doenças
contraídas no desterro – certamente não teria sofrido isto se pudesse ter
vivido livre em meu país.
Conclamo o povo cubano, tanto no exílio quanto na Ilha, a seguir lutando
pela liberdade. Minha mensagem não é uma mensagem de derrota, mas
sim de luta e esperança (grifo meu) (ARENAS, 1995, p. 351).

Este texto trata de um problema de pesquisa ainda em estágio embrionário


que busca refletir a importância para do relato autobiográfico enquanto uma forma
de expressão, de representação do mundo, o relato de uma experiência, uma
tentativa do sujeito de dar forma ao real e de construir sua própria identidade. Pela
autobiografia de Reinaldo Arenas, pretende-se apontar por meio de alguns
fragmentos como o testemunho de um indivíduo que sofreu perseguição política,
repressão sexual, prisão, tortura e a amargura do exílio pode ser útil e necessário
para a pesquisa de episódios que ficaram sob a sombra na historiografia da
Revolução Cubana. As memórias de Reinaldo Arenas aludem à experiência em
contextos ditatoriais e autoritários, onde o indivíduo busca na escrita e na
rememoração uma forma de resistir e existir, recusando-se ao silêncio e ao
esquecimento, afirmando a alteridade diante da batalha travada pelo autoritarismo do
regime cubano em normatizar e homogeneizar o pensamento e a vida na sociedade.
A obra se insere na disputa pela memória, remete a um contexto obscuro que foi
envolvido num manto de silêncio e esquecimento.
O escritor e poeta Reinaldo Arenas é autor de uma vasta obra literária
produzida desde sua vivência em Cuba até o final de sua vida no exílio. Sua obra é
de suma importância enquanto produto de uma época, e mais instigante ainda
quando se tratam de obras que foram censuradas pelo regime, como foi o caso de O

184
mundo alucinante (1984)76 e Otra vez el mar (2015)77. Arenas foi perseguido tanto
por suas ideias quanto por sua própria condição de existência.
Sua história de vida busca retratar a experiência de um sujeito que sofreu a
implacável perseguição do regime cubano, devido a expressão de sua subjetividade,
visão de mundo e postura sexual que estiveram em desacordo com os princípios
morais e políticos pregados pela revolução. O escrito memorialístico de Reinaldo
Arenas representa, antes de tudo, uma versão de certos aspectos do processo
histórico que destoa da versão dominante e resiste ao esquecimento e ao silêncio que
por tanto tempo foi imposto em sua vida. Assim, aqui almeja-se situar sua
autobiografia Antes que anoiteça (1995)como objeto de análise e indicar as
possibilidades da utilização da memória enquanto portadora de vestígios que
permitem refletir aspectos do passado da Revolução Cubana, sua importância em
lançar luz à experiência e existência de sujeitos em regimes autoritários, vítimas da
opressão e que foram deliberadamente silenciados de forma a serem apagados da
narrativa histórica.
A Revolução Cubana, como um processo de transformação radical, causou
efeitos em várias áreas da sociedade. Nem tudo mudou completamente, mas de
alguma forma foi afetado, colocado em pauta, relacionado com o novo contexto
político em que se inseriu o país no afã de promover sua revolução, de construir um
mundo novo, cujo desenrolar dos acontecimentos levou o país a adotar o comunismo
como ideologia.
Diante do objetivo de construir a nova nação e seu futuro, pautada em novas
relações sociais, econômicas, culturais, promoveu-se no contexto de efervescência
política discussões a cerca das demandas e aspirações utópicas do país possível, do
―novo homem‖ e da ―nova mulher‖ cubanos, na eliminação dos inimigos da
revolução, os ―dissidentes‖, ―contrarrevolucionários‖, ―capitalistas‖, ―burgueses‖ e
toda uma gama de sujeitos foram incluídos nesses variados rótulos que
incorporavam a ameaça ao sonho que se tornava paulatinamente em realidade.
Medidas autoritárias do regime desde então são bastante conhecidas, relatos
dos expurgos dos opositores, exílios do início da década de 1960 efetuados por
aqueles que não concordavam com os parâmetros políticos e econômicos que

76
Publicado a primeira vez em 1965 em Cuba, porém censurado logo após e impedido de circular. Foi
contrabandeado e publicado na França.
77
Apreendido em cuba antes de ser contrabandeado, reescrito várias vezes sem sucesso, foi publicado em
1982, numa quinta reescrita, já no exílio.

185
estavam sendo estabelecidos, prisões e julgamentos arbitrários e a centralização do
poder e das decisões cada vez maior nas mãos do jefe Fidel Castro, líder máximo.
O que foi pouco discutido, entretanto, sobre os efeitos do novo regime na
sociedade, sobre a mobilização e entusiasmo que atingiram muitos e as tragédias e
violência que se abateram sobre outros, diz respeito à discussão de gênero que foi
colocada em pauta pela revolução e que provocou uma sistemática perseguição e
repressão aos indivíduos que não se enquadravam no modelo de sujeito ideal
pregado pelo regime. Na superação do passado de pobreza e exploração que vivia a
ilha e na implantação do comunismo, envolvia o combate a tudo o que pudesse
representar esse passado, principalmente os valores e ―vícios‖ burgueses, e nestes
também se inseriam a ―mazela‖ da homossexualidade, da ―depravação sexual‖,
―moral‖, do ―desvio da natureza‖.
Dentro das discussões sobre os caminhos da revolução, da construção da
sociedade ideal, o sexo foi colocado como um dos temas centrais. O desafio estava
em gerir da melhor forma possível a população, de maneira a refletir no
desenvolvimento da produção do país e na defesa das conquistas revolucionárias.
Assim foi discutido o papel da mulher na sociedade e sua inserção no sistema de
produção (mudanças consideráveis foram efetivadas nesse sentido), na finalidade de
forjar o sujeito ideal revolucionário, voltado completamente para as pautas
revolucionárias. Paralelo a este movimento, o papel do homem revolucionário , que
deveria exprimir noção de força, virilidade, disposição para a guerra numa sociedade
cada vez mais militarizada, que reforçava profundamente estereótipos atribuídos ao
masculino, engessando a percepção do que seria o homem revolucionário.
Isso se refletiu até mesmo a nível nacional, de representação da situação do
país. A posição de colônia porque passou Cuba em relação aos Estados Unidos,
passou a ser vista como uma posição ―sexualizada‖ entre os dois países e que
deveriam ser rompidas, pois cuba cumpria um papel passivo. A afirmação de uma
masculinidade a partir da revolução seria também uma forma de resistir à dominação
ianque (CHOMSKY, 2015, p. 185). A ideia de passividade seria, então, atribuída aos
homossexuais.
Num panorama geral, a década de 1960 foi o período de maior repressão
sexual em Cuba, a situação política de luta pela independência e defesa da
revolução, a profunda militarização da sociedade, a necessidade de expressão de

186
força gerou a consolidação de estereótipos masculinos como posição de resistência,
impulsionando significativos debates sobre condutas e gênero.
Sem falar na própria experiência de guerrilha dos revolucionários, na própria
origem da revolução. Há maior prova de masculinidade que resistir quatro anos no
meio do mato, enfrentando toda sorte de perigos, numa aventura em si mesmo
heroica, e que se conclui como vitória militar? Os símbolos que renderam desse
processo foram justamente a barba, a farda e o fuzil.
Uma correspondência entre os princípios de honra, masculinidade e a
expressão política do regime acarretou em medidas de segregação que perpassou
todo o desenvolvimento do regime autoritário cubano. Hannah Arendt (2008) já
havia chamado a atenção para esse aspecto, quando discute a relação da ideologia
com os processos políticos, em que há a associação entre poder e os aspectos
associados ao masculino, como força e dominação, traduzindo esses
comportamentos morais em leis, segregando e descartando da vida política o que
não se enquadra. Em 1965 Fidel Castro afirmou em entrevista a Lee Lockwood,
citada por Aviva Chomsky:

Nada impede um homossexual de professar a ideologia revolucionária e,


portanto, exibir uma postura política correta. No entanto, não temos como
crer que um homossexual personifique as condições e condutas
necessárias para possibilitar que o consideremos um verdadeiro
revolucionário. Um desvio dessa natureza vai contra o conceito que temos
de como um militante comunista deve ser (CHOMSKY, 2015, p. 185-6).

Essas considerações são para demonstrar que os sistemas políticos, sua


discussão e consolidação muitas vezes se firmam sobre uma concepção masculina
em que se baseia o Estado e a ação política. Em Cuba isso foi evidente, como bem
mostra a afirmação de Fidel Castro acima, e gerou efeitos imensuráveis na vid a de
muitos sujeitos cuja experiências são pouco conhecidas e narradas na historiografia
sobre a revolução. Uma forma de lidar com essa ausência, com o silêncio e o
esquecimento desses agentes históricos, que também resistiram e buscaram formas
de viver e amar à sua maneira, é levando em conta o testemunho e escritas
autobiográficas na reflexão histórica.
Antes que anoiteça, de Reinaldo Arenas, se apresenta como uma potencial
fonte de análise, dentro de suas limitações e possibilidades, por narrar, por meio da
rememoração, uma vida marcada pelos efeitos dessa política de intolerância,

187
apegada a um modelo único de expressão da vida, que tornou sua vida precária,
suscetível a toda sorte de violência impune por parte dos cidadãos que não raro
apoiaram essas medidas.

Antes que anoiteça, de Reinaldo Arenas


A narrativa autobiográfica de Reinaldo Arenas perpassa vários aspectos de
sua vida, num processo de rememoração que traça desde a infância até pouco tempo
antes de sua morte. O autor escreveu suas memórias no seu último ano de vida, em
1990, como forma de protesto, resistência ao silêncio e de esperança, como ele
mesmo a classificou, de maneira a tornar conhecida sua trajetória e a de outros que
passaram pela perseguição, segregação, prisão e tortura no regime autoritário
cubano. Arenas não reitera apenas o individual, mas o coletivo. Os recortes que
apresento aqui não dão conta da totalidade da obra, que ostenta vários episódios e
diferentes situações que poderiam ser analisadas a parte e que não caberiam nos
limites deste espaço.
Dessa forma foram feitos alguns recortes da escrita autobiográfica de Arenas
em que representa e reatualiza por meio dos mecanismos da memória a experiência e
relações sociais que viveu em Cuba, onde se pode ver as decorrências das políticas
de segregação colocadas em vigor pelo regime revolucionário, que afetou
diretamente sua vida, o pôs diante da morte várias vezes, acarretando em isolamento
social, sofrimento, dor, medo e desgraça da prisão e da tortura.
Sobre o início da década de 1960, ainda jovem estudante, quando se
matriculou numa escola técnica, Arenas escreve:

Sofria então de todos os danos típicos de uma sociedade machista,


exaltados pela Revolução; naquela escola marcada por uma virilidade
militante, não parecia haver espaço para o homossexualismo que, já nesse
período, era severamente punido, chegando inclusive a dar cadeia. No
entanto, entre aqueles jovens praticou-se com certeza o homossexualismo,
embora de forma bastante velada. Os rapazes que eram apanhados em
pleno ato tinham que desfilar com suas camas e todos os pertences até o
almoxarifado, onde, por ordem da direção, deviam devolver tudo; os
outros colegas tinham que sair dos alojamentos para apedrejá-los e enchê-
los de socos. Era uma expulsão sinistra, pois existia um documento que
iria perseguir aquele jovem durante toda a sua vida e impedi-lo de estudar
em outra escola do Estado – o Estado já estava começando a exercer um
controle sobre absolutamente tudo. Muitos dentre aqueles jovens que
passavam com suas camas nas costas pareciam bastante viris. Ao ver
aquele espetáculo, eu me sentia envergonhado e aterrorizado. ―Entendido,
é isso que você é‖, eu voltava a ouvir a voz do meu colega de turma na

188
escola secundária, e percebia que ser ―entendido‖ em Cuba representava
uma das maiores desgraças que podem acontecer a um ser humano
(ARENAS, 1995, p.73).

O que chama atenção neste relato é a violência a que eram expostos os


homossexuais, uma violência, como se pode ver, legitimada pelo Estado, este
mesmo ―documentando‖ quem fosse pego em relações homossexuais na intenção de
deixa-lo identificado por toda a vida, sem conseguir reinserir em outra escola sob
seu domínio. Essa estigmatização constante é uma forma de reafirmar, em
contrapartida, o ideal de sujeito masculino e heterossexual, o sujeito político ideal da
revolução.
Essa violência legítima direcionada a certos sujeitos, expressa também a
coalizão da sociedade com a barbárie, partilhando dos valores defendidos pelo
regime, gerando um consenso em torno das políticas repressivas. A escrita de Arenas
descortina essa face que balanceia também as versões que explicam a violência
Estatal com base na força do terror e da imposição pelo medo. Apresenta uma
dinâmica do autoritarismo e da violência, como ela se exerce em determinado
contexto.
Sobre um período um pouco adiante, ainda na década de 1960, Arenas
escreve a respeito de um bar que foi com seu companheiro Raúl, com quem teve
uma relação de amor:

Para mim, aquele bar foi uma verdadeira descoberta, pois tratava-se de
um bar para homossexuais. Havia um grande número de homens; uns
muito machos, outros extremamente efeminados, mas o ambiente era
simpático e de absoluta cumplicidade. Naquela época ainda existiam
lugares assim em Holguín, e em todas as partes da ilha. Logo depois
desapareceriam (ARENAS, 1995, p. 92).

Desde experiências traumáticas a passeios e aventuras eróticas, descrições de


indivíduos, de vivências e práticas sociais dos homossexuais durante a revolução são
preservados e reatualizados na escrita memorialística de Arenas, que muitas vezes se
apega a certos lugares porque passou. Lugares em que viveu serve de suporte para a
lembrança e a rememoração, como já assinalou Maurice Halbwachs (2003), em A
memória coletiva. A escrita autobiográfica enquanto ofício de exercício da memória
nunca relata somente uma experiência individual, porque mesmo a memória

189
individual, diz Halbwachs, é também coletiva, partilha de convivências e relatos de
outros sujeitos.
Esta próxima parte se reporta às sociabilidades desenvolvidas malgrado a
repressão e indica as possibilidades de resistir no contexto:

Seja como for, a juventude dos anos sessenta deu um jeito não para
conspirar contra o regime, e sim para atuar em prol da vida.
Clandestinamente, continuávamos a nos reunir nas praias ou em casas de
amigos, ou simplesmente desfrutávamos de uma noite de amor com
algum recruta de passagem ou com um estudante bolsista, ou com um
adolescente desesperado que procurava uma forma de escapar da
repressão. Houve um momento em que se desenvolveu, às escondidas,
uma grande liberdade sexual em todo o país; todo o mundo queria transar
desesperadamente e os rapazes ostentavam imensas cabeleiras [...],
usavam roupa justa e adesivos, copiando a moda ocidental; ouviam os
Beatles e falavam de liberdade sexual. Em grupos enormes, nós jovens
reuníamos na Coppelia, na cafeteria do Capri ou no Malecón, e curtíamos
a noite apesar das ruidosas perseguições policiais (ARENAS, 1995, 70 -1).

Insistir em suas práticas, segundo Arenas, era o mesmo que defender a vid a.
E na clandestinidade a vida ainda pulsava, num movimento de liberdade sexual, não
desconexo de seu contexto dos anos 1960-70, principalmente das afirmações sexuais
que ocorriam nos Estados Unidos, a poucos quilômetros de Cuba. A influência da
―moda ocidental‖, da música, que ainda infiltrava entre os cubanos, apesar do
isolamento de Cuba em relação aos EUA, os locais que ainda aqui dão suporte para a
rememoração, como os bares, o estilo dos jovens numa descrição muito generalizada
daquela do período, que mesmo quem não a viveu diretamente assim a descreve sem
muita dificuldade. Sobre essa questão, Aviva Chomsky escreveu:

O movimento pelos direitos gays dos anos 1960 e 1970 estava desafiando
normas de preconceito e exclusão nos Estados Unidos, e apresentando
novas formas de definir a identidade gay, exatamente quando a relação
íntima entre Cuba e os Estados Unidos era rompida. Enquanto isso, novos
elementos formulados pela ideologia comunista e pela sexologia
soviética, somados à forma de machismo revolucionário de Cuba,
contribuíram para a repressão oficial e extraoficial contra a não
conformidade sexual durante as primeiras décadas da Revolução Cubana
(Chomsky, 2015, p. 185).

Em 1963, Fidel Castro, em função do sexto aniversário do assalto ao palácio


presidencial na Universidade de Havana, expressou pela primeira vez qual seria a
atitude do governo revolucionário em relação à homossexualidade:

190
Que no confundan la serenidad de la Revolución y la ecuanimidad de la
Revolución con debilidades de la Revolución. Porque nuestra sociedad
no puede darles cabida a esas degeneraciones (APLAUSOS). La sociedad
socialista no puede permitir ese tipo de degeneraciones. [...] Hay unas
cuantas teorías, yo no soy científico, no soy un técnico en esa materia
(RISAS), pero sí observé siempre una cosa: que el campo no daba ese
subproducto. Siempre observé eso, y siempre lo tengo muy presente.
Estoy seguro de que independientemente de cualquier teoría y de las
investigaciones de la medicina, entiendo que hay mucho de ambiente y de
reblandecimiento en ese problema. Pero todos son parientes: el
lumpencito, el vago, el elvispresliano, el ―pitusa‖ 78.

Convencidos de que a homossexualidade era algo estranho aos camponeses,


classe revolucionária por natureza e pura, foi-se sistematizando uma política de
perseguição e combate aos homossexuais, que para além de um problema de saúde e
torneados pelos ―brandos‖ métodos da medicina, estavam para o regime encadeados
com os vagabundos, ―elvispreslianos‖ 79, indivíduos sem consciência de classe,
avessos aos valores revolucionários. A revolução tinha seus inimigos, e eles
precisavam ser identificados e combatidos.
Antes que anoiteça alude, dentro dos mecanismos da memória, aos alcances e
limites dessa repressão. Os embates e práticas de resistência que atravessaram o
processo, a articulação entre sociedade e Estado, conflituosa mas também
consensual, pois a violência muitas vezes era perpetrada e as denúncias prestadas
não raro por vizinhos, amigos, cidadãos comuns, sem uma ligação direta com a
burocracia estatal.
A política deliberada do autoritarismo de reprimir ao tempo que não exalta a
violência que impõe sobre suas vítimas, recluindo-as com o tempo ao silêncio e ao
esquecimento, é instabilizada quando esses sujeitos se colocam a falar e afirmar suas
existências. Reinaldo Arenas sofreu violências inimagináveis, desde torturas,
prisões, trabalhos forçados na UMAP 80 e uma espécie de exílio dentro do próprio
país, quando foragiu no Parque Lenin por dezenas de dias se escondendo da polícia
que o queria preso por suas atividades subversivas de ―depravação sexual‖ e por ter

78
Disponível em: http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1963/esp/f130363e.html. Acesso em
24/09/2016.
4
Termo cunhado para designar jovens que ouviam músicas norte-americanas, como o rock, ou se vestiam
inspirados no cantor Elvis Presley. A vigilância caiu também sobre homens de cabelos cumpridos ou que
usavam calças ajustadas.
80
Unidades Militares de Ajuda à Produção. Eram campos de concentração para onde eram enviados os
―dissidentes‖ da Revolução Cubana para serem regenerados e abraçarem os valores do ideal
revolucionário por meio do trabalho forçado.

191
lançado livros no exterior por meio de contrabando e que não exaltavam os valores
da revolução.
A existência de Arenas se insere naquilo que Giorgio Agamben classificou
como Vida Nua, a vida matável pela qual ninguém se responsabiliza. A vida
―matável e insacrificável‖, porque desnecessária para o regime, tendo nela a
corporificação do que se combate, e ao combate-la, afirma-se e reforça o que se tem
enquanto o ideal. No Estado de Exceção, reflete Agamben, é na exclusão de certos
sujeitos que se sustenta o regime.
A Vida Nua se insere no contexto da Biopolítica, conceito desenvolvido por
Michel Foucault que indica que, em poucas palavras, no Estado Moderno, há uma
crescente implicação da vida natural do homem nos cálculos do poder. Ou seja, o
Estado passa a gerir a vida em função de alcançar um padrão ótimo, intervindo em
diversas áreas como a educação, a saúde, o esporte, cuidando de cada movimento de
seu cotidiano, do lazer ao trabalho. Esse processo incessante busca desenvolver uma
forma, um modelo de existência, dentro dos parâmetros prescritivos e com
determinados traços. ―Uma das características essenciais da biopolítica moderna‖
escreve Agamben, ―é a sua necessidade de redefinir continuamente, na vida, o limiar
que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora‖ (AGAMBEN,
2010, p. 127).
Assim, o Estado que gere e desenvolve um ideal, tal como foi colocado em
prática pelo regime de exceção cubano, também exclui determinados tipos de vida,
considerados ―anti-sociais‖, depravados, dissidentes, indesejáveis, desviados,
anormais e sua aniquilação não faz falta para este Estado, porque não se insere no
seu modelo de expressão política. A vida (bio) que é descartada na política.
Na sua passagem pela prisão, Arenas poderia ser assassinado sem que
ninguém se responsabilizasse. Durante a fuga, o mesmo. Uma existência silenciada,
tendo seus livros censurados, e uma vida indesejável para os cálculos políticos, que
poderia ser eliminada. No entanto sobreviveu, fugiu de Cuba e se dedicou a escrever
sua obra autobiográfica, depois de várias outras de literatura ficcional, como último
suspiro de resistência. Arenas expressa essa experiência de ser um sujeito e uma
subjetividade que destoava das normas impostas, e que sofreu as mais severas
consequências disso, tendo uma vida grassada pela perseguição e violência.
Sua narrativa simboliza essa recusa ao esquecimento e ao silêncio. Seu
testemunho reclama em ser ouvido, numa tentativa de transmitir o indescritível, de

192
apelar para que não se repita, de se constituir enquanto um sujeito singular, de
exprimir a multiplicidade da realidade numa sociedade que insiste em homogeneizar
o passado e a história por meio da supressão da fala de suas vítimas.

Considerações finais
Renato Franco escreveu sobre o testemunho:

A tarefa de lembrar a tragédia, de narrar o núcleo dos fatos – enfim, de


narrar a história a contrapelo -, envolve ainda o enfrentamento, por parte
do narrador, do sofrimento experimentado, além de alimentar nele a
esperança de que tal narração seja um meio de acusar o inimigo pela
barbárie perpetrada, impedindo-o assim de continuar a adotar tais práticas
(Franco, 2003, p. 361).

Lembrar, para Reinaldo Arenas, foi um ato político, uma oposição ao


esquecimento e à história oficial. Narrou os impedimentos pelos quais passou, que
vinham silenciando-o desde a década de 1960. Escreve como ato de resistência e de
denúncia às atrocidades e ao autoritarismo, exerce a escrita como prática de
liberdade, e assim o fez durante a vida, mesmo correndo todos os riscos.
Em suma, a autobiografia em forma de testemunho de situações-limite é uma
importante fonte para investigar a experiência de certos sujeitos que foram vítimas
da violência do autoritarismo em variados lugares e épocas. São ecos, mesmo que
muitas vezes incompletos e limitados, de vidas silenciadas, refletem vivências e
visões de mundo, preconceitos e aspirações, atitudes do sujeito com os
acontecimentos de seu tempo, formas de lembrar e sua forma de lidar com a
experiência histórica, dar uma forma ao vivido.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1995.
________. O mundo alucinante. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves. 1984.
________. Otra vez el mar. Editorial Tusquets, 2015.
ARENDT, Hannah. Sobre a natureza do totalitarismo: uma tentativa de
compreensão. In.: ________. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo
(ensaios). São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
p. 347-387.
AVIVA, Chomsky. História da Revolução Cubana. São Paulo: Veneta, 2015.
FOUCAULT, M. Direito de morte e poder sobre a vida. In.: ________. História da
Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. p. 145-174.

193
FRANCO, Renato. Literatura e Catástrofe no Brasil: Anos 70. In.: SELIGMAN-
SILVA, Márcio (org.). História, Memória, Literatura: O testemunho na era das
catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 351-369.

194
AS CORRESPONDÊNCIAS FEMININAS E A (IN) VISIBILIDADE NA POLÍTICA

Jumara Carla Azevedo Ramos Carvalho

Resumo:O trabalho em questão tem por objetivo analisar as correspondências


femininas e as articulações políticas do alto sertão da Bahia, entre os anos de 1889 a
1930. Trata-se de um estudo realizado a partir das cartas enviadas e recebidas pela
família Teixeira, as quais registram questões políticas de âmbito nacional, e, de forma
articulada, as especificidades regionais da primeira República em Caetité. A partir dessa
reflexão pretende demonstrar o quando os documentos históricos produzidos em um
momento específico podem ganhar sentidos mais amplos para a pesquisa a partir das
análises das correspondências que questionam a (in) visibilidade feminina na política
em um período em que, legalmente, essa participação ainda era vetada. Ao contrário
disso, observa-se nesses escritos que mesmo sem o direito de voto garantido pela lei as
mulheres participavam decisivamente do jogo político, ora como mensageiras,
conselheiras, posicionando-se frente aos embates que permearam esse período, através
das relações de apadrinhamento, compadrio e parentela.

Palavras-chave: Correspondência; Mulheres; Política

As correspondências femininas

A escrita epistolar, de acordo com Michel de Certeau, tornou-se bastante intensa


e significativa a partir do século XIX como uma ―prática mítica moderna‖ do mundo
ocidental:

A prática escriturística assumiu valor mítico nos últimos quatro séculos


reorganizando aos poucos todos os domínios por onde se estendia a ambição
ocidental de fazer uma história. (...) No Ocidente Moderno, não há mais
discurso recebido que desempenhe este papel (de articular simbolicamente as
práticas heterogêneas da sociedade), mas um movimento que é uma prática:
escrever. A origem não é mais aquilo que se narra, mas a atividade
multiforme e murmurante de produtos do texto e de produzir a sociedade
como texto. (CERTEAU, 1994, p. 224).

Nesta perspectiva, ao analisar a escrita de correspondências citada pelo autor


acima, percebe-se o quanto essa prática ganhou dimensões e se estendeu por todos os
cantos do Ocidente chegando desde as grandes e desenvolvidas cidades até as mais
longínquas e pequenas vilas.

195
No alto sertão da Bahia81, não foi diferente. Essa prática de ―escrever‖ já havia

se proliferado no final do século XIX, quando a cidade de Caetité82 contava com uma
tipografia (1897) e uma Escola Normal (1895), além da existência de escolas
municipais de primeiro grau e professores particulares para o ensino doméstico. É certo
que a instrução alcançou, em primeira instância, as classes mais abastadas, o que incide
na grande quantidade de documentos produzidos pelas famílias enriquecidas residentes

em Caetité, como a família Teixeira83.


Nesse emaranhado de documentos, sobressaem-se as correspondências
femininas e o universo particular que elas revelam sobre a atuação das mulheres naquele
contexto. Embora seja prematuro falar de feminismo nesse período, Rachel Soihet
destaca que mesmo antes dos anos 1930:

As mulheres brasileiras, como aquelas da Europa e dos Estados Unidos,


reclamaram direitos, reagindo contra a condição a que estavam submetidas.
Algumas se rebelaram abertamente, enquanto a maioria se valia de maneiras
mais sutis na ânsia de subverter sua situação. Lançavam mão de táticas que
lhes permitiam reempregar os signos da dominação, marcando uma
resistência. (SOIHET, 2006, p. 22).

Desta maneira é possível observar que as mulheres já contrariavam a ideia


corrente de total submissão feminina. Como indica Michelle Perrot (1998, p. 187):

[...] é grande o risco de encerrar uma vez mais as mulheres na imobilidade


dos usos e costumes, estruturando o cotidiano na fatalidade dos papéis e na
fixidez dos espaços... No entanto, o que importa reencontrar são as mulheres
em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotada de vida, e não
absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmo o movimento da
história.

81
Definido por Neves da seguinte maneira: ―geralmente definem a região de modo pouco precisa, física
ou socioeconômica, como área que se pretende delimitar, com critérios parciais da espacialidades, que
recortam a base física: região semi-árida demarcada por fenômenos climáticos, região do sertão,
caracterizada pela morfologia da vegetação, região do Alto Sertão da Bahia, referenciada na posição
relativa ao curso do Rio São Francisco na Bahia e ao relevo baiano, que ali projeta para maiores
altitudes‖. (NEVES, 1998, p. 35)
82
De acordo com SANTOS (2001, p. 35) ―A cidade de Caetité situa-se na vertente oriental da Serra
Geral, a 830 metros acima do nível do mar, e o município divide-se entre a zona das caatingas e a dos
gerais, duas regiões distintas. A ocupação da região, segundo a tradição, remota ao século XVIII, quando
colonos portugueses se fixaram no Sítio dos Caitates, que se tornou um lugar de pouso dos viajantes,
sertanistas e bandeirantes, em busca do ouro e do comércio de gado‖.
83
A Família Teixeira mudou-se para Caetité nos anos finais do século XIX, envolveu-se com a política
partidária e alcançou grande projeção dentro e fora do alto sertão baiano. Trata-se de uma família de elite,
cujos membros ocuparam posições de destaque na sociedade baiana da Primeira república. Em 2003, uma
das filhas do educador Anísio Teixeira, Ana Cristina Teixeira (Babi), doou toda a documentação reunida
por sua família ao Arquivo público Municipal de Caetité.

196
Nas correspondências trocadas entre as mulheres da família Teixeira,
curiosamente, pouco se retrata sobre os afazeres domésticos. Dessa forma, compreende-
se o quanto os assuntos de suposto interesse masculino não foram exclusivos a esse
gênero. Ao contrário, o processo da escrita epistolar pode ser entendida, conforme
BASTOS (2008, p. 87), como um processo de inclusão da mulher em certas esferas que,
como o âmbito político, pareciam ligadas ao homem: ―A correspondência familiar
apresenta-se, definitivamente, como o lugar estratégico onde se realiza, se inculca e se
transmite uma visão dual de um mundo para si, a ser protegido do exterior.‖
Ao analisar o processo de ―leituras das entrelinhas‖ nota-se um deslocamento
das mulheres que iam além da sua rotina cotidiana para outros afazeres estabelecidos
nas relações de parentela que, segundo Kátia Mattoso (1992, p. 176-177) ―era pois, uma
associação de solidariedade familiar muito flexível e multifuncional. Como o
apadrinhamento, era uma via de multiplicação de solidariedade, um fator da coesão do
grupo, um motor para todas as promoções‖. Essas relações de parentela,
apadrinhamento e compadrio são características marcantes nos laços familiares que
uniam e fortaleciam a família Teixeira e outras famílias no alto sertão da Bahia.
Numa pesquisa preliminar foram identificados acervos documentais com grande
potencial para se trabalhar a questão de gênero e poder. Entre eles, as correspondências
pessoais se sobressaem, pois quebram o silêncio e descortinam a atuação feminina
rompendo estereótipos e preconceitos que registrados na escrita epistolar deixa claro as
articulações políticas das mulheres em Caetité.

Acervo de correspondências da família Teixeira

Cartas diversas fizeram parte do cotidiano da Família Teixeira. Um dos maiores


contingentes foi enviado ao médico, negociante e político Deocleciano Pires Teixeira.
No entanto, as possibilidades de leitura dessas correspondências ultrapassam o seu
conteúdo ou mesmo o conhecimento aprofundado dos interesses dessa família. Toda
materialidade da carta também pode informar de diversos modos:

A indústria da carta desenvolveu-se desde o século XIX com a diversificação


dos papéis utilizados, em seus inúmeros tipos, formatos e cores, aos quais se
acrescentava muitas vezes o requinte dos monogramas ou timbres, que de um
lance de vista permitiam a identificação de sua procedência e constituíam
sinais de distinção. O uso da tarja negra para situações de luto, de ilustrações
em ocasiões festivas ou memoráveis, a exposição de papéis luxuosos de
linho, o recurso a simples folhas arrancadas de cadernos ou retalhos de papéis

197
de embrulho indicam a circunstâncias em que as cartas foram escritas,
regulando a troca de informações e ordenando as relações sociais entre os
correspondentes‖. (MALATIAN, 2009, p.199)

Percebe-se nas escritas femininas, cujo destinatário era do sexo masculino, assuntos que
abordavam desde a política, educação, religião e economia contradizendo antigos
estereótipos de que as mulheres não participavam ou não opinavam sobre a política. A
exemplo disso descreve RIBEIRO (2012: 28):

As mulheres das elites de Caetité faziam em suas cartas comentários sobre


política, festas religiosas, eventos de caridade, funerais e, sobretudo, tratavam
de negócios comerciais e de venda de gado. Antes mesmo da morte de seus
maridos, elas se mostraram bastante ativas nos negócios.

Essas cartas também deixam transparecer a prática rotineira de corresponder-se,


observada pela datação, pela menção da escrita da carta, o que denota certa urgência nas
respostas. Outro fato notório é que nem sempre elas eram escritas em um só dia, o que
se observa a partir da identificação de novas datas ao longo da correspondência.
Segundo RIBEIRO (2012, p. 81), essas pausas podem ser entendidas a partir dos
afazeres femininos:

Seja qual for o tempo do percurso da correspondência ou a forma de envio, o


período entre receber e responder cartas também está condicionado ao tempo
pessoalmente disponível para escrevê-las. Neste ínterim, as cartas
possibilitam visualizar atuações femininas no contexto social, poucas vezes
percebidas em outras fontes.

A partir desses documentos é possível observar o jogo político das lideranças


locais que disputavam entre si poder e prestígio através de alianças políticas realizadas
por meio de relações de apadrinhamento e compadrio. O processo eleitoral do candidato
a Presidência da República em 1922, Artur Bernardes84, pode ser relacionado com as
campanhas eleitorais e práticas político-partidárias que envolvem as cidades alto
sertanejas nos dias atuais? Em que medida podem repensar a política local tomando
conhecimentos de documentos similares a esse?

84
Mineiro da cidade de Viçosa, assumiu desde o Império vários cargos políticos e que durante a
República do Café-com-leite tornou-se um dos mais importantes nomes para a candidatura a Presidente
do Brasil, em 1922. Sua candidatura devido a um movimento denominado Reação Republicana,
propostos pelos estados de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul que apoiavam a
candidatura do ex-presidente Nilo Peçanha.

198
Caculé 11 de março de 1922
Doutor
Saude e felecidade lhe dezejo em companhia de D. Anna e todos da
Familia.
Recebi sua carta de 18 de fevereiro, antes de hontem (dia 9) quando
entregarão ao Compe Vigario, dezejo saber pr quem V remetteo estas cartas,
que vierão aqui pr um tropeiro do Cel Marciano dizendo ter recebido em
Jequi.
Foram prezas aqui a proposito. Eu não tendo recebido carta sua nada
podia e nem devia fazer; algumas pessoas me perguntarão se V me tinha
escripto e se eu me enteressava; respondia que não tinha carta sua; nada
sabia, Toninho chegou aqui no dia 24, me perguntou logo, se V tinha me
escripto sobre a eleição de 1º de Março; disse que não; se eu tivesse recebido
sua carta lhe tiria trabalhado muito a seo favor. Com o Vigário o C el. Antonio
Valença e Major Ve Venceslao, estes são seo, e o Comp e Ernesto todos
trabalhavão com verdadeiro enteresse. O Comp e Leonel; está com Juvencio;
que a manivela de Dr Crescencio. Hoje o Cel. Antônio Valença esteve aqui
em casa; eu mostrei sua carta a elle; esta muito sentido de nada ter podido
fazer mas o voto d‘elle; foi do Dr Arthur Bernades; me disse que pedio ao
Leonel de Britto (q‘ é mesário) pa ser a favor do seo candidacto, elle
respondeo; que sem Juvencio, nem uma virgula e o Juvencio respondeo logo
q (o Deocleciano depois de morto quer resuscitar) São palavras d‘elle
Juvencio: que se julga um politico de pedra e cal. Toninho viajou p a a Bahia
no dia 6 fazendo um gyro po Conquista. José Olympio está na Bahia. Nada de
chegar Correio se tiver algum telegramma de José Olympio ahi V mande
procurar e me remeta pelo primeiro portador; esta vai escripta as pressas.
Abençoe Iasinha e filhos.
Saudades a Alice e todas; Com D. Anna acceite vivas Saudades de Mª
Mãe; e de sua Pra Comce mto grata e ama
Maria Deolinda de Carvalho.85

Com a carta de Maria Deolinda de Carvalho nota-se a articulação feminina de


redes sociais e de poder ligados ao político influente Deocleciano Pires Teixeira em
plena campanha para Presidente da República, tendo uma mulher à frente de uma
movimentação política angariando votos e ―arrebanhando‖ eleitores.
O uso dessa carta pode aguçar um conhecimento mais aprofundado sobre os
sujeitos envolvidos. Neste processo de conhecer o remetente e o destinatário é possível
refletir sobre o trecho presente na carta de Maria Deolinda de Carvalho ―o Deocleciano
depois de morto quer ressuscitar‖. Numa perspectiva histórica é possível analisar a
trajetória deste político a partir de estudos como o de Lielva Aguiar (2011) e
problematizar as nuances da política estadual e nacional daquele período. Quem estava
no domínio local? Quais eram os partidos políticos da época ou quais os grupos
políticos?

85
Arquivo Público Municipal de Caetité. Fundo: Acervo Particular da Família de Dr. Deocleciano Pires
Teixeira. Grupo: Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Série: Correspondências. Caixa 04. Remetente: Maria
Deolinda de Carvalho. Destinatário: Deocleciano Pires Teixeira. Local: Caculé. Data:1922.

199
As correspondências femininas rompem com uma ideia corrente de que as
mulheres de outros tempos, por não poderem votar, eram alheias ao processo político
partidário que envolvia o ―universo masculino‖. Na segunda carta apresentada da
religiosa Hersília Spínola Teixeira86 os palpites políticos denunciam o quanto seus
assuntos extrapolavam as experiências como interna no convento, especialmente quando
expõe uma preocupação com seus familiares frente à notícia da passagem dos
―revoltosos‖ no sertão e os possíveis conflitos que poderiam ocasionar87

Viva Jesus e Maria!


Mosteiro de N. S. de Caridade do Bom Pastor.
S. Paulo, 27 de abril de 1926
Meu Padrinho
Accuso o recebimento hontem da vossa prezada carta de 25 d‘este a qual
muito estimei ter bôas noticias de Vmce.
Faço votos a Deus para que Vmce. continue com bôa saúde, aproveitando
bem com a estadia ahi e na Estação da Prata, que Vmce. pretende demorar
mais tempo.
Tenho estado tambem preoccupada com a notícia dos revoltosos estarem
tão perto e pretendendo ir até Caetité. Tenho pensado muito em Papae, que
tanto trabalha pela bôa ordem e paz no nosso Sertão, quanto esta revolução
irá incommodal-o, tirando-lhe a tranquillidade tão necessaria em sua longa
idade.
Appelo para N. S., a quem tudo confio, e espero que Elle não deixará de
nos attender, dispersando os revoltosos.
Pede-vos a benção e abraça-vos com carinho a Sobrª afilhada muito grata
e que muito vos quer em N. S.
(...)
Sor Maria de N. S. da Purificação Spinola Teixeira
Religiosa de N. S. de caridade do Bom Pastor
Deus seja bemdito
Asylo Bom Pastor
Rua Ypiranga
São Paulo
P.S. Peço-vos desculpar o desalinho d‘esta88

86
Religiosa de N. S. de caridade do Bom Pastor adota com nome Sor Maria de N. S. da Purificação
Spínola Teixeira.
87
Segundo DRUMOND (1999, p.7) ―Entre julho de 1924 e março de 1927, a organização política
brasileira sofreu (e venceu!) um longo desafio: uma série de rebeliões militares armadas visando derrubar
o presidente da República e introduzir algumas modificações institucionais. O fio unificador e também
ponto máximo dessas rebeliões foi uma grandiosa marcha militar de 25 mil quilômetros, através de
catorze estados, chamada Coluna Prestes. Ela foi obra de um pequeno grupo de oficiais do Exército
brasileiro que, no comando de algumas centenas de sargentos, praças e civis, deram singular expressão
dramática à maior crise política nacional brasileira desde os primeiros anos do regime republicano.‖
88
Arquivo Público Municipal de Caetité. Fundo: Acervo Particular da Família de Dr. Deocleciano Pires
Teixeira. Grupo: Dr. Deocleciano Pires Teixeira. Série: Correspondência. Caixa 04. Remetente: Sor
Maria de N. S. da Purificação Spinola Teixeira (Hersília). Destinatário: Rogociano Teixeira. Local: São
Paulo (Mosteiro de N. S. de Caridade do Bom Pastor). Data: 1926.

200
Se no convento em São Paulo a notícia da marcha da Coluna Prestes pelo
interior da Bahia causava medo e desagrado, observe como a memorialista Marieta
Lobão Gumes (1974, p. 119) narrou a reação da população caetiteense ao
acontecimento:

Precedida de uma fama pouco recomendável, de absurdo e violências, que


desnorteavam e obscurecia a opinião pública, esse movimento político-
revolucionário só veio trazer ao País um retrocesso, uma desorganização que
abalou sua estrutura econômica, resultando numa aventura que custou muito
caro à Nação.
Como vinha acontecendo em outras localidades, em Caetité uma tensão
coletiva apossou-se, inteiramente, da população chegando a tal paroxismo de
só se pensar em fugir, em abandonar a Cidade.

Através das correspondências analisadas, nota-se o protagonismo feminino


dentro do contexto social ao qual essas mulheres estavam inseridas. Por meio de suas
ações – expressas nas cartas – elas movimentaram a política local, dinamizaram laços de
compadrio, parentela e amizade, intermediaram situações de ordem econômica,
refletiram e opinaram sobre a política de âmbitos federal, estadual e municipal, além de
se preocuparem com educação, religião e saúde.
Sigilo, meios de transporte, economia, leitura, comportamento humano, tempo,
crenças... de que modo assuntos tão corriqueiros podem ser explorados em sala de aula
a partir dessas cartas? Recados diversos, solicitação de compras de objetos, de
pagamentos de contas, ou até mesmo um pedido de desculpa ―pelo desalinho‖ na
escrita... Qual a função social desse importante meio de comunicação para quem
dependia dele para se comunicar?
Quais circunstâncias diferenciavam a maneira de envio das cartas? Além de
evidenciar a agilidade na escrita, também denuncia o envio por meio de portador - que
além de cumprir o papel de relatar oralmente as notícias do sertão e/ou dos familiares
também se responsabilizava pela entrega do texto escrito. Na correspondência de Maria
Deolinda de Carvalho nota-se certo desconforto e desconfiança em relação ao portador.
Era importante que a carta fosse transportada em ―boas mãos‖, sem riscos de extravios
ou leituras não autorizadas. A carta de Hersília Teixeira, por sua vez, circulou entre São
Paulo e Poços de Caldas/MG, regiões em que certamente os serviços de correio já
estavam mais estabilizados, sem o que se observa para o sertão baiano neste período:
―as precariedades das estradas, a falta de transportes de grande porte, a ausência de uma

201
linha férrea que alcançasse Caetité e, ainda, a instabilidade dos serviços de correio –
queixas tão corriqueiras nos jornais daquele início de século‖ (AGUIAR, 2011, p. 57)
Formas de tratamento são um universo a parte. As frases iniciais das cartas –
geralmente tão formais – e as despedidas revelam sempre uma preocupação com a
família do destinatário, além de evidenciarem o grau de parentesco e a relação
estabelecida entre os correspondentes ―A carta não apenas aproxima, mas fala a respeito
de quem a escreve e revela sempre algo sobre quem a recebe, permitindo aquilatar a
intensidade do relacionamento entre os missivas.‖ (BASTOS et all, 2002, p. 6).
O rico acervo das correspondências da Família Teixeira contém ainda cartas de
vários lugares do Brasil e também do exterior, demonstrando uma ampla rede de
socialização mantida pelos membros dessa família naquele período. O trabalho com
cartas pessoais, além de fascinante, é revestido de múltiplas e inesgotáveis
possibilidades. Conforme Ângela de Castro Gomes (2004, p. 15)

Um tipo de discurso que produz uma espécie de ―excesso de sentido do real


pelo vivido‖, pelos detalhes que pode registrar, pelos assuntos que pode
revelar e pela linguagem intimista que mobiliza. Algo que pode enfeitiçar o
leitor/pesquisador pelo sentimento de veracidade que lhe é constitutivo, e em
face do qual certas reflexões se impõem. Nesse sentido, o trabalho de crítica
exigido por essa documentação não é maior ou menor do que é necessário
com qualquer outra, mas precisa levar em conta suas propriedades, para que o
exercício de análise seja efetivamente produtivo.

Ao se debruçar sobre essas fontes muitas questões envolvem o pesquisador:


Quem são os sujeitos relacionados no documento? Para quem as mulheres escrevem?
Quais os assuntos contidos nas correspondências? Qual o cenário político, social e
econômico da época? Qual a intenção das autoras na escrita dessas cartas? Quem
entregavam essas correspondências com os assuntos confidenciais de trabalho, de
negócios, de pedidos, etc? Esses questionamentos e as fontes sinalizadas abrem um
leque de possibilidades para um estudo inovador sobre a atuação feminina na política do
alto sertão baiano durante a Primeira República.
Através das correspondências analisadas, nota-se o protagonismo feminino
realizado a partir das ―estratégias e táticas‖ tão defendidas por Michel de Certeau em
um contexto social no qual essas mulheres estavam inseridas. Por meio de suas ações –
expressas nas cartas – elas movimentaram a política local, dinamizaram laços de
compadrio, parentela e amizade, intermediaram situações de ordem econômica,

202
refletiram e opinaram sobre a política de âmbitos: federal, estadual e municipal, além de
se preocuparem com educação, religião e saúde.
Diante disso, reitera-se a importância desse conjunto de documentos capazes de
auxiliar uma nova compreensão da primeira fase da política republicana no alto sertão
da Bahia, tendo como cerne de análise sujeitos até então tidos como ―excluídos‖ desse
processo.

Considerações

Ao trabalhar a atuação feminina, as articulações e a (in) visibilidade políticas do


alto sertão da Bahia (1889 a 1930), espera-se trazer uma contribuição para a
historiografia na esteira de novos estudos sobre os sertões, buscar-se à compreender
como as mulheres se articularam diante deste novo quadro político estabelecendo
relações sociais e familiares através das redes de apadrinhamento e compadrio
solidificadas ao longo dos anos de vivência.

Referências

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família Teixeira no alto sertão da Bahia (Caetité, 1885 – 1924). 2011. 163 f. Dissertação
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203
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Caetité 1940-1960. Rio de Janeiro; UNRIO, 2001, p.35. (Mestrado em 2001)
SOIHET, Rachel. O feminisno tático de Bertha Lutz. Editora Mulheres. Santa Cruz
do Sul – Florianópolis. EDUNISC, 2006.

204
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O DISCURSO MEDIADO ANTES E DEPOIS DA
CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA E SUAS IMPLICAÇÕES
JURÍDICAS E SOCIAIS NO MUNICÍPIO DE MONTES CLAROS ENTRE A
DÉCADA DE 1970 AOS DIAS ATUAIS.

Lara Lanusa Santos Nascimento

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo desenvolver uma análise


comparativa capaz de possibilitar a compreensão do discurso mediado sobre a
violência doméstica antes e depois da Criação da Lei Maria da Penha e suas
implicações jurídicas e sociais no Município de Montes Claros entre a década de
1970 aos dias atuais, tendo em vista a entrada em vigor da nova lei 13.104/15. A
nova lei alterou o código penal para incluir mais uma modalidade de homicídio
qualificado, o feminicídio: quando o crime for praticado contra a mulher por razões
da condição de sexo feminino. Para tanto, destina-se realizar um estudo dos
processos-crime relacionados aos crimes de lesão corporal, homicídio e estupro
contra as mulheres em situação de violência doméstica que se encontram no
CEPEDOR – Centro de Pesquisa e Documentação Regional, da Universidade
Estadual de Montes Claros – UNIMONTES –, enfatizando o discurso do sistema
judiciário e seu posicionamento diante de tais crimes no Município de Montes
Claros entre as décadas de 1970 a 1990; e no Núcleo de Defesa dos Direitos da
Mulher em Situação de Violência - NUDEM, identificando as políticas públicas e
ações voltadas para as mulheres vítimas de violência doméstica no Município de
Montes Claros/MG no período de 2006 a 2015.

Palavras-chave: Violência doméstica; Lei Maria da Penha; Processos-crime.

O fazer histórico, durante um longo período da nossa historiografia, optou


por dar visibilidade aos grandes feitos e grandes homens, deixando à margem da
história a maioria das pessoas, que tiveram seus atos e realizações escamoteadas no
processo histórico. Entretanto, na tentativa de romper com essa prática, novas
abordagens vêm procurando superar tais paradigmas, passando a incorporar aos seus
estudos aqueles considerados os ―excluídos da história‖ (SOUZA, 2009, p. 15).
Dentre esses ―excluídos da história‖, temos as mulheres que carregaram o
estigma de sujeito com potencialidades reduzidas frente à figura masculina. Tal fator
é determinante quando se aborda a questão da violência contra a mulher, uma vez
que esse mito, construído social e culturalmente, ainda se encontra arraigado na
sociedade nos dias atuais (CARNEIRO, 2012, p.12).

205
A presente proposta de estudo originou-se a partir de um interesse histórico 89,
nos dizeres de Paul Veyne (1998, p. 69) com o objetivo de desenvolver uma análise
comparativa capaz de possibilitar a compreensão do discurso mediado sobre a
violência doméstica antes e depois da Criação da Lei Maria da Penha e suas
implicações jurídicas e sociais no Município de Montes Claros entre a década de
1970 aos dias atuais, tendo em vista a entrada em vigor da nova lei 13.104/15. A
nova lei alterou o código penal para incluir mais uma modalidade de homicídio
qualificado, o feminicídio: quando o crime for praticado contra a mulher por razões
da condição de sexo feminino.
A problemática que se propõe parte do questionamento de como era
representado às relações de gênero antes da Lei Maria da Penha? Como eram
tratados os casos de violência doméstica no âmbito Jurídico? Com a criação da Lei
houve um avanço ou retrocesso na proteção e garantia dos direitos das mulheres? E
em que medida esses resultados influenciam a implementação do feminicídio?
Para tanto, será adotado o recorte temporal que abrange o período entre a
década de 1970 até os dias atuais. No intuito de fazer um estudo comparativo
anterior e posterior a Lei Maria da Penha. Partindo do pressuposto que a década de
70 foi marcado por diversas formas de mobilização política, compondo um quadro
dentro do qual se insere um reflorescimento dos movimentos feministas em diversas
partes do mundo, inclusive no Brasil. Assim, esta pesquisa justifica-se pela
relevância do tema, por ser instigante e atual. Percebe-se a importância social de se
trabalhar com a violência contra as mulheres, e em especial, a cidade de Montes
Claros, lugar este que comporta altos índices dessa violência. Nessa perspectiva,
acrescenta Caleiro (2002, p.63) que estudos sobre a mulher são importantes para
"responder ao apelo que a história social das mulheres faz à quase inexistência de
fatos concretos relativos às suas existências‖.
Diante do supracitado, Souza (2002, p.255) considera a violência como um
fenômeno complexo e de difícil conceituação e pode ser entendida como todo evento
representado por relações, ações, negligências e omissões realizadas por indivíd uos,
grupos, classes e nações que ocasionam danos físicos, morais, espirituais e também
feridas invisíveis ou seja, a violência não-física, expressa no abuso psicológico,
emocional, na coerção econômica, na restrição social a outrem. As raízes da

89
O termo interesse histórico é apontado por Paul Veyne (1998, p. 69) como uma exigência da
inteligibilidade do conhecimento histórico.

206
violência se encontram nas estruturas sociais, econômicas e políticas, bem como nas
consciências individuais.
A experiência de violência vivenciada pelas mulheres dentro de seus lares
representa uma expressão de uma violência maior ainda. A partir da concepção de
violência simbólica proposta por Bourdieu (2002, p.08), é possível entender como se
reproduzem tais práticas violentas, diluindo-se no cotidiano, em que as mulheres não
se percebam como vítimas de violência. Diante desse pressuposto, é necessário
entender o conceito de violência simbólica adotado por Bourdieu,

Violência Simbólica, violência suave, insensível, invisível à suas próprias


vítimas, que se exerce, essencialmente, pelas vias puramente simbólicas
da comunicação e do conhecimento ou, mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do
‗sentimento‘. (BOURDIEU, 2002, p. 08)

Assim, resgatar a dimensão simbólica da violência é de suma importância


para o estudo da violência doméstica conjugal contra as mulheres, pois ret ira dela o
caráter simplista que leva em consideração apenas a relação entre os sujeitos
envolvidos, entre marido e mulher, encarando como um caso particular e isolado da
conjuntura social extraindo, desta maneira, o seu caráter político, o que dificulta a
efetivação de políticas públicas para superar esta expressão da questão social.
Bourdieu (2002, p.08) ressalta que ao longo da história, a mulher sempre foi
acompanhada por um estigma de inferioridade, sendo essa inferiorização, ora de
forma mais rígida, ora de forma mais sublime, mas perpetuando seu papel submisso,
como sujeito desmerecedor de qualquer proteção real e igualitária. O patriarcado
investiu de maneira tão contundente na idealização da inferioridade em relação às
mulheres, que elas próprias passaram a acreditar nessa condição.
Nessa perspectiva, Thompson (1998, p.375) afirma que o patriarcado implica
numa submissão fatalista sem deixar espaço para as complexidades da rebeldia
feminina, não ilumina a história das mulheres, mas obscurece e até confisca parte
dessa história. Além disso, o mesmo autor aponta que ―o patriarcado nos dá um
vocabulário pobre para expressar as grandes modificações nas formas de dominação
e controle masculino, na alienação de gênero ou (de vez em quando) na parceria
entre gêneros‖. Nesta abordagem, a opressão e a subordinação das mulheres seria
consequência de um sistema social e político que estabelece a relação entre
dominantes e dominados a partir das categorias de classe e sexo. ―O que permanece

207
lamentavelmente ignorado é a história do machismo e da masculinidade muito
tipicamente assumida como normal e por isso, normativa e não problemática‖
(PORTER, 1992, p.324). De acordo com Maria Teles & Mônica de Melo,

As mulheres foram transformadas no maior grupo discriminado da


história da humanidade, sem, contudo, serem excluídas inteiramente das
atividades masculinas. Criou-se assim uma intensa integração entre
opressores e oprimidas, que fez com que estas usassem a mesma cama, a
mesma casa, a mesma alimentação e tudo mais que também fosse usado
pelos opressores. Daí a necessidade de obrigar as mulheres a aceitarem
sua própria degradação (TELES & MELO, 2002, p.31).

Segundo Teles & Souza (2002, p.16), a sociologia, a antropologia e outras


ciências humanas utilizaram-se da categoria gênero como meio de evidenciar ―as
desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na
esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais
diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram pólos de dominação e
submissão‖, prevalecendo o poderio masculino em detrimento dos direitos das
mulheres. Neste sentido, Maria Teles (2006, p.37) conclui que: ―a desigualdade não
é fruto do acaso ou da natureza humana. Pelo contrário, a desigualdade social foi
criada, inventada e construída pela própria sociedade (...)‖.
A violência de gênero pode ser entendida como violência contra mulher,
assim diz Teles & Melo (2002, p.19), pois a própria expressão ―foi assim concebida
por ser praticada contra pessoa do sexo feminino, apenas e simplesmente pela sua
condição de mulher‖. Sua expressão traduz a intimidação que sofre a mulher pelo
homem, o qual desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e seu
disciplinador. A violência contra mulher pode ocorrer tanto em ambientes públicos
como privados e se designa por qualquer conduta permissiva ou omissiva, de caráter
discriminatório, constituindo uma agressão, coação ou coerção, que cause morte,
dano, constrangimento, limitação, perda patrimonial ou sofrimento de qualquer
natureza, proveniente da condição da pessoa, isto é, o elemento condicionante é a
vítima ser do sexo feminino.
Muitas mulheres destacaram-se na luta da superação da concepção
naturalizada do gênero, dentre várias, destaca-se a escritora e feminista francesa
Simone de Beauvoir (1975) que representou um marco nos estudos das questões de
gênero. Cabe destacar, todavia, que este quadro vem sofrendo importantes

208
alterações, sobretudo nas sociedades ocidentais. Nestas sociedades - e o Brasil
também se beneficia disto - o século XX se revelou como inegável palco das
manifestações feministas. Com efeito, ao longo do século passado, surgiram vários
movimentos sociais que procuraram transformar esta realidade, lutando em prol da
causa feminista: a emancipação social e política da mulher. Cabe registrar que a
conquista dos direitos políticos, pela mulher, constitui um elemento básico na
conformação dos seus direitos de cidadania.
Scott (1992, p.83) aponta que com o movimento feminista houve ―a
consciência da descoberta da verdadeira identidade das mulheres, a queda das
viseiras, a obtenção de autonomia, de individualidade e por isso, a emancipação‖. E
ainda enfatiza que a história das mulheres ―confirmou a realidade da categoria
mulheres, sua existência anterior ao movimento contemporâneo, suas necessidades
inerentes, seus interesses e suas características, dando-lhe uma história‖ (SCOTT,
1992, p.83). Desse modo, frente às várias reivindicações na luta contra a violência à
mulher surgiram delegacias de atendimento diferenciado para mulheres vítimas de
agressões físicas e violência psicológica. Campanhas como ―quem ama não mata‖,
diante do assassinato de mulheres, trouxeram o tema para o debate público.
Conforme Araújo (2011, p.02) também decorrente do movimento feminista
brasileiro foi criado em 1983, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
(PAISM), com o objetivo de atender a mulher em sua integralidade, em todas as
fases da vida, respeitando as necessidades e características de cada uma delas; em
1985 foi institucionalizado O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM),
que originalmente foi vinculado ao Ministério da Justiça e neste mesmo ano ocorreu
a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs).
Segundo Bandeira e Suárez (2002, p.299) ―Sua institucionalização foi longa e
difícil, consolidando-se somente no processo constituinte que culminou com a
Constituição de 1988‖.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006), representa o
auge dessa proteção à mulher. Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima, por duas
vezes, de tentativa de homicídio provocada por seu marido e professor universitário
Marco Antônio Heredia Viveiros. Apesar de sua indignação frente aos episódios de
violência doméstica que sofreu, manteve-se, assim como outras tantas mulheres,
temerosa diante da inércia da justiça que pecava pela morosidade e descaso. As
investigações do caso iniciaram-se em 1983 e a denúncia foi oferecida em setembro

209
de 1984, mas, somente após sete anos de processo sem qualquer decisão, é que o réu
foi condenado a oito anos de prisão pelo Tribunal do Júri. Em 1992, o julgamento
foi anulado e em 1996, quando novamente foi julgado, foi-lhe imposta uma pena de
dez anos e seis meses de pena privativa de liberdade. Mais uma vez o autor dos fatos
recorreu em liberdade, sendo preso apenas em 2002, cumprindo, sem qualquer
justificativa plausível, insignificantes dois anos de prisão (DIAS, 2008, p. 13). Em
síntese, somente após dezenove anos e seis meses é que o crime em tela obteve
algum desfecho definitivo perante a justiça brasileira. Demora injustificável e
tratamento banalizador que gerou repercussão de elevada monta.
O Brasil foi obrigado a prestar esclarecimentos perante organismos
internacionais para tentar explicar o motivo para tamanho desinteresse. O Centro
pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do
Caribe para a defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) formalizaram, juntamente
com a vítima Maria da Penha, denúncia à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), uma vez que a
função dessa comissão, sediada em Washington, Estados Unidos da América (EUA),
é analisar as petições apresentadas que contenham notícias de violações de direitos
humanos (OLIVEIRA & CAMACHO, 2012, p.98).
Em 20 de agosto de 1998, a Comissão recebeu a denúncia supracitada e
elaborou o ―relatório n. 54 de 16 de abril de 2001‖ (SILVA, 2007, p. 29), expondo
os fatos conforme narrados, ―[...] o mérito da denúncia e as recomendações dirigidas
ao Brasil‖ (FERREIRA, 2009, p. 52) para melhor andamento dos processos
envolvendo delitos contra a mulher. Neste relatório foram apontadas falhas do
Estado brasileiro no tratamento ofertado às mulheres vítimas de violência doméstica,
fatos estes que conduziam à impunidade, bem como ao aumento da criminalidade. A
falta de compromisso do país em implantar e cumprir com os dispositivos previstos
nos tratados internacionais de que é signatário e a ineficiência dos procedimentos
policiais e jurídicos impossibilitava o Brasil de reagir adequadamente à violência
doméstica (OLIVEIRA & CAMACHO, p.100).
Maria Berenice Dias (2008, p. 21) enfatiza que até o advento da Lei Maria da
Penha, ―[...] a violência doméstica não mereceu a devida atenção, nem da sociedade,
nem do legislador, muito menos do Poder Judiciário‖, uma vez que, por serem
situações correntes nas relações familiares em meio ao espaço privado, ninguém
interferia, o que fez com que a mulher sofresse resignada durante anos.

210
Assim, tendo em vista os crimes hediondos de mortes cometidos a mulheres
brasileiras dentro de suas próprias casas, no dia 03 de março de 2015 a Câmara dos
Deputados90 aprovou o Projeto de Lei nº 8.305 de 2014, o qual, após modificações
originadas do Projeto de Lei nº 292 de 2013, visava a inserir o feminicídio 91 como
uma das qualificadoras do homicídio. No dia 09 de março de 2015 a Lei nº
13.104/15 foi sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff, 92 que, em seu
pronunciamento, afirmou: ―O Estado brasileiro assumiu, de forma conjunta, uma
posição clara contra a violência que recai sobre as mulheres. Esse é um passo muito
grande‖.
De acordo com Silva (2015, p.65) a inclusão do feminicídio no rol das
qualificadoras serviria para deslegitimar e ainda tornar ilegal este discurso machista
e moral de defesa da honra e de violenta reação do agressor para justificar
homicídios em contextos de violência doméstica. Isso porque o discurso das
sentenças dos casos que tratam de crimes de homens contra mulheres no âmbito
doméstico é carregado de expressões morais que tentam culpar as vítimas, como se
elas não tivessem agido da maneira como os homens ou ainda a sociedade espera
que elas se comportem, ou seja, sendo submissas e passivas aos seus parceiros e
famílias. Assim, essa alteração do nosso Código Penal servirá para mostrar e deixar
claro não só para os julgadores como para a população que não estamos diante de
crimes passionais, mas que são crimes decorrentes da desigualdade na estrutura de
poder, típica da nossa sociedade historicamente patriarcal.

90
BRASIL. Senado Federal, Parecer nº 244, de 2014<Disponível em
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=148152&tp=1> Acesso em 20 out. 2015
91
―A importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo
mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa
sociedade, e é social, por combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por
interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido ―crime
passional‖. Envia, outrossim, mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que
não haverá impunidade. Protege, ainda, a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se
desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinas, atribuindo a elas a
responsabilidade pelo crime de que foram vítimas.‖ BRASIL. Senado. Projeto de Lei nº 292, de 2013.
Com a finalidade de alterar o Código Penal para inserir o feminicídio como circunstância qualificadora do
homicídio. Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=133307&tp=1.
Acesso em 20 out. 2015.
92
ROUSSEFF, Dilma. Discurso disponível em < http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-
planalto/discursos/discursos-d-presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-
cerimonia-de-sancao-da-lei-de-tipificacao-do-feminicidio>. Acesso em 20 out. 2015.

211
Considerações finais
Este trabalho está em andamento, como parte de uma proposta maior de
pesquisa, e não tem como finalidade encerrar a discussão sobre o tema proposto, ao
contrário, procura neste momento a provocação e a contribuição de diferentes áreas.
Seu principal objetivo é desenvolver uma análise comparativa capaz de possibilitar a
compreensão do discurso mediado sobre a violência doméstica antes e depois da
Criação da Lei Maria da Penha e suas implicações jurídicas e sociais no Município
de Montes Claros entre a década de 1970 aos dias atuais, tendo em vista a entrada
em vigor da nova lei 13.104/15 o Feminicídio.
Para tanto, destina-se realizar um estudo dos processos-crime relacionados
aos crimes de lesão corporal, homicídio e estupro contra as mulheres em situação de
violência doméstica que se encontram no CEPEDOR – Centro de Pesquisa e
Documentação Regional, da Universidade Estadual de Montes Claros –
UNIMONTES –, enfatizando o discurso do sistema judiciário e seu posicionamento
diante de tais crimes no Município de Montes Claros entre as décadas de 1970 a
1990; e no Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher em Situação de Violência-
NUDEM, identificando as políticas públicas e ações voltadas para as mulheres
vítimas de violência doméstica no Município de Montes Claros/MG no período de
2006 a 2015.
Portanto, espera-se que os estudos que aqui serão desenvolvidos contribuam
não somente à historiografia da História Social, mas que também seja um produto de
reflexão, de trabalho científico e de uma pesquisa que possibilite entender o
universo da Mulher vítima de violência doméstica no contexto histórico antes e
depois da criação da Lei Maria da Penha.

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214
LITERATURA COMO PALCO DE MILITÂNCIA
NA OBRA AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Lorena de Souza Coutinho de Paula

Resumo: Diante do fato que a literatura é um palco para denuncia e indignação daquilo
que acontecia na sociedade durante os governos ditatoriais. Usará, neste trabalho, a obra
de Lygia Fagundes Telles ―As meninas‖, criada na década de 70 para não só
exemplificar, mas mostrar com primor a degradação social que essa sociedade passava.
Tendo como objetivo entender as relações sociais e morais que estão mudando dentro
dessa sociedade e como pode ser denunciada através da literatura, pois foi menos
vigiada no período da ditadura. A fonte usada não nos dará respostas completas e
postas, portanto usar-se-á autores como Daniel Aarão Filho, Maria Helena Alves,
Denise Rollemberg e Marcelo Ridenti para entender o cenário político e a resistência
política a ditadura. E outros como: Sandra Pesavento, Lígia Leite, Sidney Chalhoub e
Regina Dalcastagnè para respaldar a literatura como fonte histórica valida a ser
analisada. Os dados levantados ainda são parciais, mas até o momento todos apontam
para o fato de que houveram profundas transformações sociais, por causa da política,
essas transformações e desajustes sociais foram denunciadas através da literatura, que
nesse livro em especial faz referências as relações femininas e suas condições.

Palavras chaves: Literatura; ditadura militar; militância.

Introdução
Em períodos como a ditadura militar brasileira (1964- 1985) existem
transformações culturais, políticas e sociais. Logo, os indivíduos desta sociedade sofrem
grande impacto do contexto em que vivem. Seus comportamentos e sua moral sofrem
mudanças, ocasionados por novas vivências e experiências.
As produções culturais e artísticas como expressão desses indivíduos também
acompanham as mudanças da sociedade, sendo assim são espaços de representação da
indignação e da militância de grupos que não se contentam com a ditadura. A literatura
do pós 64 é referida como uma marginal e crua, mostrando a decadência da sociedade,
em contraposição com a imagem passada pelo governo. , neste caso Regina Dalcastagnè
pontua:

Uma vez que a censura à produção ficcional foi menos intensa do que aquela
dirigida à música e ao teatro, nossos autores se encontraram na obrigação de
abrir espaço em seus textos para a denúncia das arbitrariedades e dos crimes
do regime. O que não foi um processo simples. (DALCASTAGNÈ, 2007:
p,56)

215
Portanto, pensando por este prisma, a literatura como uma expressão artística
tem uma maior mobilidade neste cenário. Apesar da repressão e da censura com o AI-
593, ataca o regime, mesmo que indiretamente, usando alegorias (MACHADO, 1981).
Na obra de Ligya Fagundes Telles ―As meninas‖, aqui analisada, exemplifica
muito bem esse movimento cultural de militância, que demostrou através da literatura o
cenário social vivenciado. O romance acontece em 1973 em São Paulo, mais
especificamente em um pensionato de freiras por nome Nossa Senhora de Fátima. As
personagens principais são três jovens estudantes: Lorena, Lia e Ana Clara; amigas
inseparáveis com personalidades totalmente diferentes, mas que chegam um
acontecimento de suas vidas que devem escolher entre serem fieis a essa amizade ou a
outros. A autora aponta diversas interações sociais que a primeira vista parecem triviais,
cruas e cotidianas, mas ao entender o cenário envolto dela vemos que está cheia de
militância e mudanças que o governo tende a passar como não existentes, este trabalho
visa entender essas interações sociais que apontam uma certa degradação da sociedade.

Metodologia
Com o surgimento das novas abordagens de temas históricos possibilitou-se usar
de várias fontes para as análises, assim a troca de experiências com áreas afins tiveram
início, unindo-se para fortalecer o estudo da história e criar caminhos que nunca antes
foram explorados. Um destes encontros acontece entre a história e a literatura que abre
margem para estudos de temas diversos, pensando a obra literária, seja qual for, como
expressão de uma sociedade, como ―narrador‖ de costumes e experiências vividas que
propositalmente ou não, mostram mentalidades e práticas de um momento. Ainda no
intuito de entender a sociedade e costumes que se formam, tendo como fonte a obra de
Lygia Fagundes Telles, convida-se à análise da teoria de gênero, para pensarmos a
posição feminina nessa sociedade em ebulição.
Para o desenvolvimento da pesquisa, ainda serão usados autores que mostram a
relação entre história e literatura, Sandra Pesavento, Hayden White, Janete Machado,
Lígia Leite, Sidney Chalhoub e Regina Dalcastagnè. E por fim para análise do contexto
histórico brasileiro em questão, a ditadura militar, lançaremos mão de autores como:

93
Ato Institucional imposto em 13 de dezembro de 1968 no governo de Costa e Silva, que podava a
liberdade civil, aumentava a censura e reiterava muito disposições dos outros atos, mas sem data limite
para este.

216
Daniel Aarão Filho, Maria Helena Alves, Denise Rollemberg e Marcelo Ridenti, dentre
outros.
Por fim, como já mencionado, será usado como fonte histórica o livro de Lygia
Fagundes Telles “As meninas”, obra escrita em 1973, dentro do período da ditadura
militar, mas que mesmo assim tem como tema a rebeldia e a decadência do patriarcado
e a libertação da mulher. Romance que rendeu à autora belas críticas e prêmios, ainda
no seu tempo e até os dias atuais, tanto pelos temas quanto pela estética literária.

Resultados obtidos
No período da escrita do livro a juventude das décadas de 60 e 70 mostram
inquietações como: aborto, direito à educação, separação do feminino da figura do
masculino, casamento, luta feminista, inserção e valorização da mulher no mercado de
trabalho. Já no Brasil a ditadura tentava calar essa luta, abafada em seu processo de
repressão, tendo sido espremida na militância e na inlegalidade. Mas, as expressões
artísticas se esforçavam para divulgar a insatisfação e mudanças da sociedade, de
acordo com Lígia Chiappini Moraes Leite:

Voltados para a realidade imediata, vários desses romances tentam


compensar literariamente a análise explícita e brutal da violência da ditadura,
do terrorismo e do processo modernizador, por meio de uma técnica de ficção
muito avançada, no trabalho com o fragmento, a montagem e metaliguagem.
(LEITE, 1998:p,203)

Assim também, Lygia Fagundes Telles denuncia as rachaduras dessa sociedade, como
os jovens sumindo a cada dia, a tortura, prostituição, estupro, agressões, o preconceito
da classe média, a luta contra a ditadura e principalmente a situação da mulher nessa
sociedade repressora. Para denunciar todas as nuances sociais a autora trabalha com
uma estética literária inovadora, considerando as vivências de cada mulher em uma obra
em que o foco narrativo oscila de primeira pessoa para terceira pessoa, afim de
demostrar as angústias e desejos de cada personagem, que por sua vez, representa uma
porcentagem da sociedade que passa por mudanças em sua moral e sua conduta.

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218
TRANSFORMAÇÕES E INTERVENÇÕES URBANAS NA CIDADE DE
MONTES CLAROS- MG (1970- 1980)

Kamila Freire Fonseca


Gabriela Miranda de Oliveira

Resumo: As cidades podem ser compreendidas como um espaço que carrega o passado
e o futuro; o passado, pois, é um testemunho real da sua história e da sua memória, e o
futuro, porque, sempre está em busca da modernidade, assim como, de melhorias em
longo prazo. O presente trabalho aborda uma das múltiplas temáticas que constituem o
campo da História Urbana, a questão técnica. Segundo a historiadora Maria Stella
Bresciani (2003) esse tema possibilita analisar a cidade na sua materialidade, nos seus
traçados, nos aspectos de transformação urbana, ou ainda, na rápida expansão, reunindo
dados sobre o núcleo urbano e refletindo sobre as divergências com os bairros
periféricos. Sendo assim, essa comunicação tem como objetivo principal discutir as
mudanças no cenário urbano e das periferias na cidade de Montes Claros durante as
décadas de 1970 a 1990. Destacamos esse período por compreender o período de
industrialização da cidade norte- mineira, a partir da inserção dessa cidade nos
investimentos da SUDENE. Para a realização desse estudo utilizamos como fonte os
registros dos memorialistas e matérias de dois jornais, o Jornal do Norte e o Diário de
Montes Claros, no que se refere às matérias publicadas sobre a cidade no recorte
temporal. Com esse trabalho além de contribuir para a historiografia norte-mineira,
refletimos sobre o crescimento desordenado da referida cidade, e ainda, analisamos a
chegada dos principais benefícios estruturais nos bairros periféricos de Montes Claros.

Palavras-chave: Intervenções, cidade, Montes Claros.

Introdução
A cidade é um espaço privilegiado de estudo, pois há várias formas de ser
analisada e de representá-la ―(...) fosse pela palavra, escrita ou falada, fosse pela música,
em melodias e canções que a celebravam, fosse pelas imagens (...) fosse ainda pelas
práticas cotidianas, rituais e pelos códigos de civilidade presentes naqueles que a
habitavam‖ (PESAVENTO, 2007, p. 11). As perspectivas de estudá-la são variadas, no
entanto, essa temática na historiografia é considerada recente, visto que, suas reflexões
se renovaram nas últimas décadas do século XX (RAMINELLI,1997, p. 189)
O conceito de cidade é diverso e multifacetado, por esse motivo sua definição se
torna ampla. Para o historiador Charles Monteiro cidade é ―um espaço de confluência de
dinâmicas, na qual devemos pensá-la como uma realidade econômica, política, social
demográfica, cultural e simbólica‖ (MONTEIRO, 2012, p.103). E nesse panorama o
autor ainda elenca que ―a cidade guarda marcas de vários tempos e processos sociais no

219
espaço urbano construído, materializando sua própria história como uma espécie de
escrita no espaço‖ (MONTEIRO, 2012, p.103)
Desde o século XVI a cidade estava sempre presente nos escritos dos viajantes.
―Referências a certos lugares, descrições de bairros ou de transformações em
determinadas áreas são constantes nos relatos dos memorialistas e textos de literatos‖
(BRESCIANI, 2003, p. 238). Mas essa esfera de pesquisa, foi denominada de ―história
das cidades‖, pois propunham apenas uma descrição bastante extensa sobre as cidades,
sem uma devida reflexão sobre o objeto. Desta forma, os primeiros estudos sobre cidade
estavam voltados para uma perspectiva quantitativa e evolutiva, pela historiadora
Sandra Jatahy Pesavento (2007).
A História Urbana, ou Nova História Urbana, ganhou novos rumos a partir das
últimas décadas do século XX. Entre as causas dessa mudança foi a possibilidade dos
pesquisadores de ampliação de temas, de problemas e de métodos, em razão, de estar
vinculada a nova concepção da história, fundada a partir dos Annales, em 1929
(CASTRO, 1997). O autor Ronald Raminelli acrescenta que ―uma outra característica
dessa Nova História Urbana está no emprego de teorias para poder ordenar a
abundância do material empírico, pois os dados raramente se organizam
espontaneamente em conjuntos inteligíveis‖ (RAMINELLI, 1997, p.189)
Se por um lado as pesquisas do século XIX buscavam somente traçar um desfile
sobre a evolução cronológico dos governos, por outro, as novas abordagens possibilitam
múltiplas perspectivas de análise. Dentre as possibilidades a historiadora Maria Stella
Bresciani elenca sete opções de estudo: a questão técnica –arquitetura, aspectos físicos e
urbanísticos; a social, as causas e consequências dos problemas sócio-economicos; as
diversas identidades encontradas nas cidades; as experiências e as vivências dos
moradores entre as lutas e as vitórias, os modos de vida; a cultura urbana, e ainda, os
territórios e as questões patrimoniais, entre outros (BRESCIANI, 1992).
Os estudos sobre Montes Claros, cidade foco desse trabalho, permeia todos os
âmbitos elencados. Há relatos de viajantes com descrições sobre os lugares, a exemplo
de Augusto de Saint-Hilaire (1937), há textos literatos empenhados em relatar sobre o
crescimento da cidade, retratando sua evolução desde o princípio, ressaltando nomes e
fatos memoráveis da cidade, como os memorialistas Hermes de Paula (2007) e Nelson
Vianna (2007). Entretanto foram nos últimos anos que os escritos científicos,
preocupados em investigar as questões ligadas ao crescimento/desenvolvimento de
Montes Claros, se ampliaram.

220
Baseados em uma das possibilidades de análise da nova historiografia, a questão
técnica, o presente trabalho pretende averiguar as principais intervenções físicas
ocorridas na cidade de Montes Claros no período compreendido entre as 1970 e 1980.
Para a concretização desse trabalho contamos com fontes de registros dos memorialistas
e matérias de dois jornais o Jornal do Norte e o Diário de Montes Claros.

As cidades em transformação: perspectivas de modernidade


Com a mudança de governo no final do século XIX e princípio do XX, de
império para república, muitas mudanças surgiram no contexto social, cultural e,
sobretudo, estrutural das cidades. O desenvolvimento urbano começou primeiramente
na cidade do Rio de Janeiro, ainda no inicio de 1900. Pois, nela estava instalado ―(...) o
principal porto de exportação e importação; possuía o núcleo da maior rede ferroviária
do país; reunia o maior contingente populacional e industrial (SEVCENKO, 2002, p.
22), ou seja, por ser considerada o retrato do Brasil, essa começou a se estruturar em
busca da modernidade, assim as diversas cidades da América Latina.
Mas apesar de todo o desenvolvimento econômico e social a estrutura urbana do
Rio ―era acanhada e anacrônica‖, distanciando do cenário urbano moderno que a cidade
almejava (FABRIS, 2000, p. 25). Entretanto, havia outros problemas urbanos que era
desfavorável à chegada da modernidade no Rio de Janeiro, como as epidemias, as
sujeiras e ainda, os hábitos dos moradores. Nesse sentido, para contrapor o antigo e
criarem uma nova feição da urbe foram necessários medidas baseadas nos eixos centrais
de: modernização, embelezamento e saneamento. Com o objetivo de alcançar a
modernidade e principalmente, em nome do progresso e do embelezamento que as ruas
estreitas e humildes em que havia prédios pequenos e baratos dá espaço para ruas largas
e suntuosas em que se edificaram palacetes elegantes e caros (FABRIS, 2000, p. 36). E
ainda foi em nome da tríade que

(...) foram proibidos o comércio ambulante, a circulação de cães sem coleira,


fogueiras, fogos de artifícios, balões; que mendigos e desocupados são
recolhidos a prisões e asilos; que a exposição de mercadorias só é permitida
nas vitrines; que são banidos os quiosques, ponto de encontro de ‗vadios‘,
estruturas ‗antiestética‘, que projetava na cidade lembrança do Oriente,
quando não a imagem do ‗povoado africano‘; que são promulgadas normas
reguladoras do comportamento da população, que vão da proibição de urinar
e cuspir na rua até a repressão policial de manifestações como o carnaval, o
samba, o entrudo e o candomblé. (FABRIS, 2000, p. 23).

221
A cidade do Rio de Janeiro contou com um plano de reforma urbana, dirigida pelo
presidente Rodrigues Alves juntamente com o engenheiro urbanista Pereira Passos, baseado
no modelo mundial do século XIX, a reforma urbana de Paris comandada por Haussmann,
para modificar a sua estrutura urbana. O marco principal dessa reforma foi à inauguração da
Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. A criação dessa nova avenida foi considerada
uma nova ―grande artéria‖, pois, no período os médicos higienistas alegaram que era ―o
caso de insuficiência arterial (...) a intervenção operatória que a cirurgia (...) não ousou
ainda no organismo humano, fê-la o governo no organismo da cidade; substituímos a
grande artéria incapaz por uma nova (...)‖ (FABRIS, 2000, p. 16).
A estrutura da grande avenida seguiu os passos dos boulevards de Paris,
considerado o conjunto mais moderno, mais amplo, moldado pelo capitalismo
internacional. Esse novo espaço urbano projetava as forças do progresso e ainda se
tornava a vitrine de um novo modo de vida material e intelectual para os moradores do
Rio de Janeiro. Ela se tornou ambiente onde a sociedade se exibia e ainda se tornava
portadora de novos significados, de influências e de consumo.
Em suma, ―a avenida num certo sentido, é a própria essência de mercadoria: é
passarela da novidade e da moda: abre a economia a uma nova rede de relações
comerciais (...); oferece uma imagem sadia‖ (FABRIS, 2000, p.24). Deste modo, o Rio
de Janeiro foi o primeiro modelo brasileiro de reurbanização, estrutural e urbana,
contudo, baseados nesse exemplo novas intervenções surgiram ao longo do século XX
em diversos municípios, de grande e médio porte.

As intervenções em Montes Claros nas décadas de 1970 e 1980


Entre as possibilidades de estudar na cidade moderna, citado pela autora Maria
Stella Brescianni, estamos em busca da mudança em sua materialidade e infraestrutura.
Mas para reconhecermos o seu crescimento/desenvolvimento é necessário resumir sua
trajetória enquanto formação de um território.
Segundo a historiadora Rejane Meireles Rodrigues, Montes Claros foi
constituida a partir de um

Processo histórico de formação que (...) nos revela que a cidade tem origens
campesina e que se constituiu a partir da Fazenda Montes Claros, tendo sido
elevada a sesmaria pelo alvará de 1707. Antônio Gonçalves Figueira obteve do
Estado uma légua por três comprimento, onde fundou a fazenda de Montes
Claros. Nesse local, construiu uma Igreja para veneração da imagem de Nossa
Senhora e ao redor ergueu casas para vaqueiros e agregados da fazenda. A
partir de então, surge o povoamento com a construção de residências e pontos

222
comerciais, o que elevou a fazenda a arraial, vila e depois cidade. (...) Em três
de julho de 1857, sob a Lei.802, a vila passou a condição de cidade de Montes
Claros (...) A cidade, ainda quando era arraial, já tinha bastante movimento de
tropeiros que compravam e vendiam gêneros alimentícios. A cada nova
inauguração a cidade prosperava e isso exigia que Montes Claros tivesse um
bom serviço de comunicação, então , em 27 de outubro de 1892, foi inaugurada
a primeira linha telegráfica (RODRIGUES, 2013, p. 22- 23).

Posteriormente a esse período inicial da cidade, as elites montesclarenses


buscavam um relativo progresso com a chegada do trem e de outros benefícios que
representassem o pleno desenvolvimento. ―A cidade passaria, assim, (...),
definitivamente, a pólo regional, ‗boca do sertão‘. Fornecedora de produtos de
subsistência, principalmente os pecuários e também o salitre e passaria a ser entreposto
comercial dos artefatos industriais trazidos pela ferrovia‖ (LESSA, 1993, p.168).
A cidade vai aos poucos se transformando e do povoado inicial vai sendo
considerada a capital do norte de Minas Gerais por constituir pontos de encontros; de
ligação rodoviária e ferroviária; por constituir o maior desenvolvimento econômico da
região e pelo alcance educacional, com a implantação de faculdades e universidades.
A cidade norte-mineira que transcorre o nosso estudo, exibia um cenário de
desenvolvimento social, econômico, em especial, na área industrial, após a sua inserção
nos planos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)94, de
modo semelhante ao Rio de Janeiro. Além desses fatores na década de 1970 outras
perspectivas para a cidade surgiram, os dirigentes locais começaram a buscar o
progresso e o desenvolvimento para o norte de Minas. Essa década foi decisiva para o
município, visto que, almejavam alcançar o binômio ―Industrialização e Universidade‖
visando desenvolvimento na área industrial e educacional, conforme anunciava o jornal
Diário de Montes Claros em 15 de janeiro de 1970.
A chegada da industrialização se tornou a propulsora de crescimento espacial da
cidade, pois, novos espaços se constituiram. O primeiro aspecto a se destacar foi o êxodo
rural elevando o índice demográfico, já que as condições eram favoráveis. Esse fator foi
mencionado por Ronal Raminelli ―Geralmente as cidades em rápida expansão localizam-
se próximas a zonas rurais empobrecidas, sendo uma solução para a miséria vivida pela
população. Em alguns casos, porém, a concentração populacional viabilizou o

94
A instituição Sudene foi criada em 15 de dezembro de 1959, pela lei nº 3692, seu principal objetivo era
proporcionar o desenvolvimento econômico progressivo da região do nordeste e logo em seguida da
região da Amazônia, processo esse antes dominado somente pelas regiões sudeste e sul. (SUDENE,
Disponível em: <http://www.sudene.gov.br/sudene#extincao sudene> Acesso em: 20 agosto 2016)

223
desenvolvimento industrial devido a disponibilidade de mão de obra‖ (RAMINELLI,
1997, p.189).
Nesse debate, utilizamos os dados de mudança populacional dos geógrafos
Marcos Esdras Leite e Anete Marília Pereira:

Uma breve análise da evolução da população urbana de Montes Claros mostra que na
década de 1960, a população era estimada em 50 mil habitantes, quando em 1980 esse
número subiu para mais de 150 mil habitantes, o que equivale a um aumento de mais de
200% da população montes-clarense em vinte anos (LEITE; PEREIRA, 2008: 48).

No trecho acima apresentamos a aumento significativo de habitantes em pouco


tempo, de 50 para 150 mil. Essa descrição é o resultado, como mencionado acima, da
visibilidade de progresso da cidade. Pois, nesse período Montes Claros já se apresentava
como a cidade de mais oportunidades do norte de Minas, seja em relação à moradia,
emprego, comércio, lazer, entre outros.
Por meio desse aspecto novas delimitações urbanas foram surgindo, favorecendo
o crescimento e surgimento de novos bairros. Como ressaltado pelo historiador Edi de
Freitas Cardoso Júnior (2008) alguns bairros até meados de 1959, não faziam parte do
‗perímetro urbano‘ legalmente da cidade como os bairros Alto São João, Cintra, Jardim
América, Maracanã, Nossa Senhora de Fátima, Novo Horizonte, São Geraldo, São
Judas Tadeu e Todos os Santos, as vilas Ipê, Ipiranga, Magalhães e Monte Alegre, entre
outros. Sendo assim, no ano de 1950 esses bairros eram tidos como rurais, entretanto, na
década de 1970 foram configurados como espaços propícios para os novos
trabalhadores que chegavam na cidade.
Contudo, juntamente com o desenvolvimento da cidade agrária vieram os
problemas estruturais, pois ela se transformou através de rápida expansão e sem uma
preocupação urbanística. O jornal do Norte em 9 de setembro de 1988 já anunciava que
começava a surgir problemas urbanos no centro comercial. Na reportagem que trazia na
manchete ―Montes Claros: uma cidade grande que teima em ser tratada como
cidadezinha‖, demonstrava que pela quantidade de automóveis juntamente com os
pedestres e camelôs a cidade necessitaria de mudanças estruturais urgentes.
Igualmente ao Rio de Janeiro, Montes Claros necessitava de medidas de
melhorias para não agravarem em longo prazo os problemas urbanos. O Jornal do Norte
da década de 1980 explanou que a produção do Plano Diretor seria uma solução para a
busca por mudanças físicas. Esse plano previa, sobretudo, uma cirurgia profunda na
cidade, fazendo uma analogia os processos médicos que destinam a melhorias dos

224
indivíduos. ―O plano diretor será um documento de coordenação das cidades. Seu
objetivo é fazer com que as cidades distribuam melhor o seu espaço antes que cresçam e
tenham que mais tarde fazer verdadeiras cirurgias para se organizarem‖ (JORNAL DO
NORTE, 1 set. de 1988).
Segundo Lindon Jonhson Dias da Silva (2008) o I Plano Diretor da cidade
―trazia em seu conjunto a percepção do que ocorria no mundo, em termos do processo
de desenvolvimento urbano, acompanhando a tendência, da renovação urbana dos
grandes centros da época‖ (SILVA, 2008, p.58). Reconhecemos que as medidas de
modernização e urbanização aprovadas no Plano influenciaria o cenário da cidade nas
futuras gerações e marcaria a personalidade do prefeito por propor tal mudança para
Montes Claros. Dessa forma, dissertou o autor,

O plano marcaria toda a história da planificação urbana da cidade, pois


acabaria por influenciar os ―espíritos‖ não só da época, como de toda uma
geração, como um paradigma de uma proposta avançada, muito à frente do
seu tempo, moderna e que representava o anseio do executivo local – que,
naquele momento, representava a elite modernizadora do município. (...) Não
seria de se estranhar que o I Plano Diretor fosse de ―Toninho Rebello‖, o
prefeito de consenso das lideranças políticas da época. O momento era de
transição de uma cidade rural, com a economia e as relações sociais
fortemente influenciadas pelas tradições locais, para se inserir em um
processo de industrialização de amplitude nacional (um projeto nacional) e de
interesse internacional. Montes Claros jamais seria a mesma a partir daquele
momento. Se melhor ou pior, depende do ângulo sob o qual se
avalia.(SILVA, 2008, p. 57- 72)

Além do planejamento do Plano Diretor, foi no mandato do prefeito Toninho


Rabello (1977/1982) que houve a construção de estruturas urbanas que modificaram a
estrutura física da cidade e que perpetuam até os dias atuais. À construção da Avenida
Deputado Esteves Rodrigues (Sanitária) foi uma das suas principais obras foi considerada
por muitos a principal artéria da cidade, e ainda se tornou avenida referência da cidade,
principalmente por concentrar grande quantidade de bares e restaurantes.
Outra benfeitoria do prefeito foi a construção de um novo Terminal Rodoviário.
Contudo essa mudança no período não foi vista com bons olhos pelos moradores da
cidade, pois o cenário de infra-estrutura na inauguração do Terminal Rodoviário era
bem precário, conforme afirmou Clarindo Cardoso de Faria para Revista Tempo
―Distante do centro, com poucas casas ao redor, o local viu a primeira transformação
quando se inaugurou a nova Rodoviária. O povo não gostou da transferência da

225
rodoviária que era no Centro para cá. Falavam que ela tinha sido construído numa roça,
porque aqui era tudo deserto‖ (TEMPO, 2011, p.28).
Além das obras estruturais que possibilitaram a cidade um ―relativo progresso‖ esse
prefeito procurou incentivar o lazer e a educação ao construir o Parque Municipal Milton
Prates e o Centro Cultural Hermes de Paula, respectivamente. Entretanto outros problemas,
relativamente mais distantes, impediam a cidade promissora de se progredir. Os impasses
centrais foram solucionados, ou pelo menos minimizados com o Plano Diretor.
Contudo, afirmaram os geógrafos Marcos Esdras Leite e Anete Marília Pereira a
expansão territorial da cidade gerou o aparecimento das periferias e da falta de
planejamento dos bairros, tornando-se áreas de pobreza e com nenhuma ou quase nada
de infraestrutura (LEITE; PEREIRA, 2008: 52). Segundo os jornais pesquisados o
cenário dos bairros da futura cidade promissora era de descaso. É frequente nos jornais
do período encontrar matérias/reportagens falando dos problemas que a população
periférica enfrentava, ou da chegada dos benefícios. ―Edgar Pereira terá capeamento
asfáltico e saneamento básico‖ (Jornal do Norte, 17 agos. 1988); ―Moradores do
Ibituruna criam associação para reivindicar melhorias no bairro‖, (Jornal do Norte, 25
maio, 1988); ―Prefeitura ainda aguarda recursos para asfaltar ruas de bairros‖ (Jornal do
Norte, 7 setembro, 1988) ―Moradores do Roxo Verde estão pedindo asfalto‖ (Jornal do
Norte, 25 maio, 1988), são alguns exemplos das manchetes que anunciam tais
problemas estruturais ou a solução para eles.
O próprio Jornal chamava a atenção para que os administradores municipais
atendessem os pedidos vindos da periferia, pois, nesse ambiente poderia surgir a
―marginalidade‖
A administração pública a despeito do alerta da Imprensa e das
reivindicações das associações do bairro, tem sido negligente em relação ao
problema, a despeito também da preferencia pelos bairros delineado no início
desta administração. Fosse uma situação inconsequente, sem acarretar
implicações da nossas a vida em comunidade, ainda assim caberia à
Municipalidade olhar pela e para a periferia, donde, não se sendo
discriminador surge a marginalidade que açambarca tudo à frente (Jornal do
Norte 26 de abril 1988)

Seguindo os passos do prefeito anterior, Luiz Tadeu Leite (1983/88, 1993/96 e


2009/2012) em seu primeiro mandato construiu o prédio para a prefeitura municipal,
espaço esse que perpetua até os dias atuais. A inauguração rendeu espaços nos jornais
da época, ―a festa foi bonita e quem lá compareceu não arredou pé até que o último

226
discurso tivesse sido proferido. Houve um belíssimo show pirotécnico que prendeu a
atenção de todos‖ (Jornal do Norte 5 setembros 1988).
Mas a lembrança que ficou na memória dos moradores da cidade de Luiz Tadeu
Leite se remete principalmente por ele ter percebido a demanda da periferia e ter tentado
tirar a população periférica da ―lama e da poeira‖. O calçamento de pedras das ruas
principais dos bairros seguia a estratégia de maior fluxo de cada região, mas muitos
bairros foram atendidos pelas ações do referido prefeito. Enfim, ressaltamos nesse
tópico as duas grandes figuras que buscavam um relativo progresso e desenvolvimento
para a cidade de Montes Claros durante as décadas de 1970 a 1980.

Considerações Finais
As cidades se modificam e se transformam ao longo dos anos, visando o bem-
estar dos seus cidadãos. Essa busca por mudanças estruturais se iniciou no século XIX
em Paris, chegou no Rio de Janeiro no principio do século XX, e se permanece presente
nas mais diversas regiões do Brasil. Sendo assim, um bom planejamento urbano torna
necessário para que essas mudanças estruturais se perpetuem a longo prazo para
qualquer cidade.
Compreender as necessidades, prever melhorias e propor medidas que envolvam
as novas questões urbanas são algumas preocupações dos historiadores, urbanistas,
geógrafos, ou engenheiros dedicados a essa temática, mas também dos prefeitos e
vereadores que administram a cidade.
Como foi possível observar Montes Claros deixou de ser uma ―cidadezinha‖ e se
transformou em um grande polo industrial do norte de Minas Gerais. E por esse motivo
necessitava de benfeitorias que se modernizasse e que alcançasse o progresso, que tanto
almejava como outras cidades do estado.
Nesse trabalho objetivava principalmente enfatizar para os leitores que as
principais transformações e intervenções urbanas em Montes Claros ocorreram no seu
principal período de crescimento e desenvolvimento econômico e social, década de
1970 a 1980. Chamando atenção para os políticos que se destacaram por realizarem as
obras e benfeitorias que se perpetuaram até o presente, o prefeito Toninho Rabello e
Luiz Tadeu Leitem, com as obras: Avenida Deputado Esteves Rodrigues (Sanitária), o
Terminal Rodoviário, o Parque Municipal Milton Prates e o Centro Cultural Hermes de
Paula, a Prefeitura Municipal e o asfalto nos principais bairros periféricos.

227
Enfim, destacamos que muitos anos se passaram desde a transformação de
Montes Claros de cidade agraria para a industrial, mas não verificamos outras obras
estruturais de grande importância. Portanto, ao concluir esse artigo algumas indagações
ficaram sem respostas. Montes Claros está em constante crescimento e
desenvolvimento, como toda cidade que atende um alto índice demográfico, mas sua
estrutura física não o acompanhou. Os problemas de infraestrutura da maior cidade, do
norte de Minas Gerais, já estão aparecendo, quando será solucionado? Quem irá entrar
para a história norte-mineira, como os prefeitos citados?

Referências

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228
TERRITÓRIO E TRANSITORIEDADES:
ESTRATÉGIAS DE UM MESMO PROCESSO?
NORTE DE MINAS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII.

Mário J. F. de Oliveira

Resumo: A dinâmica de fricção e prolongamento da teoria é indício de vitalidade do


discurso social, e socialmente produzido, sobre o objeto e do próprio objeto. Premícia
engendradora que provoca e norteia o estudo aqui apresentado. Ao compreender que há,
sempre, um processo de negociação social que envolve dissimetrias endógenas e
exógenas, trocas e consumo de energia empreendida, objetivei neste estudo pensar a
historiografia sobre o Norte de Minas Gerais na primeira metade do século XVIII, e se o
processo de territorialização é complementar e sistêmico as transitoriedades dos agentes
pelo interior colonial, formando um todo coerente, um processo total com sentido e
intenção determinado pela metrópole, e como essa temática foi observada por diferentes
perspectivas e importantes autores, através da análise comparativa dos textos, pesquisa
bibliográfica e documental.

Palavras-chave: historiografia; territorialização; Sertão.

Introdução
A primeira questão que surge no estudo aqui empreendido sobre o Norte de
Minas na primeira metade do sec. XVIII é; o empreendimento bandeirante ao longo das
duas primeiras décadas na região em apreciação foi de fato um prolongamento da ação
governativa portuguesa? Segundo; em que medida os fatos me corrobora em afirmar
que o estabelecimento de territórios ao longo das margens do São Francisco representou
uma ruptura ao poder governativo metropolitano? Por fim; de que forma a historiografia
contemporânea abarca, compreende, manipula, orienta o conjunto dos fatos sobre essa
região (período compreendido de 1685 – 1736), em que agrupamento se fundamenta
tais teorias-sociais, a condição de sua produção e seus desdobramentos.
Um conjunto de questões orientadoras que serviram de guia metodológico para
a pesquisa, forma a manter a coerência e uma narrativa coesa sobre os textos e as
impressões acerca da documentação analisada. O primeiro estranhamento se dá quando,
confrontados textos de autores contemporâneos que versam sobre o processo de
adentramento ao interior continental, especificamente sobre as particularidades do
empreendimento de ‗desbravamento‘ da região do Norte de Minas Gerais, há
claramente definido uma disjunção da compreensão global dos fatos, e delineado duas
perspectivasde raciocínio não-complementares. Foi esta disjunção que me levou a
observar de modo mais auspicioso sobre a questão proposta.

229
Ineficácia do controle metropolitano Prolongamento da administração Real
•Carla Anastasia •Isnara Pereira Ivo
•João Batista de Almeida Costa •Marcio Roberto Alves
dos Santos

Em Isnara Ivo aparece bordado uma região suavizada pelas relações de


mediação, e um processo suave de amalgamar cultural. Um lugar vibrante com pessoas
diversas colorindo um harmônico mosaico. Próximo dessa compreensão está a
perspectiva de Marcio Roberto Santos, onde fundi ação pessoal/local as deliberações
administrativas metropolitanas, o que torna menos densa a confrontação dos mundos.
Vassalos rebeldes, de Carla Anastasia, inaugura um longo processo histórico de
reordenamento historiográfico sobre o Norte de Minas, escancarando as tensões sociais
que existiram nas relações de mediação dos mundos empreendida pelos bandeirantes
paulistas em conjunto aos agentes portugueses de primeira ordem. Esta abordagem é
considerada ponto de ruptura sócio histórica pois, não somente reordena historicamente
o Norte de Minas dentro de um quadro geral colonial do século XVIII, assim como, e
primordialmente, faz reavaliar culturalmente o Norte de Minas, o modo explicativo de si
mesmo. Os estudos antropológicos de João Batista Costa, definitivamente, instaura uma
ruptura histórica sobre a região, em seus fundamentos básicos, suas bases culturais
serão revistas, e em um processo de autofagia, o Norte de Minas se reverbera para o
mundo como portador de uma historicidade valorativa.
É dentro desse quadro referencial que o estudo aqui apresentado
operacionalizou-se, buscando os fundamentos teóricos e históricos de cada perspectiva,
pois se explicam ao se realizar. A verdade histórica é almejada pelos que dela se valem
para se empreender no mundo como válidas de mercês e crédito, sendo sempre um
‗porvir‘ na relação presente/passado/futuro que indicam uma realidade instituída. Desta
forma, este estudo intenta estabelecer primícias lúcidas para a compreensão do quadro
referencial cultural e historiográfico sobre o Norte de Minas Gerais na sua
contemporaneidade. A diluição de aspectos sólidos, tidos como margem de um processo
dinâmico e amplo que ambiciona transbordar.
Desta maneira, pensar sobre transitoriedades e territorialidades que se
realizaram sobre um espaço geográfico determinado, o Norte de Minas Gerais, e
orientados por conjuntos de idéias e expectativas historicamente definidas, com vistas a

230
compreender, em última ordem, as fissuras historicamente instauradas que provocaram
―catarse‖ sobre as gentes e os lugares.

O bandeirante; entre herói e facinoroso, entre poder instituído e poder arbitrário,


entre sonho e realidade.
O sertão enquanto sonho possível e desejável, (FAORO, 1992), enquanto
possibilidade de ser, edenizado como fato a engendrar o sonho, requer homens não
menos possíveis de existência extraordinária. O Índio, no sistema de representação
social, no cenário do seiscentista aparece como a fronteira humana real a se desbravar,
apropriar e prear. Para além do sistema simbólico e do imaginário social do sec. XVII, o
empreendimento metropolitano se pauta em aspectos bastante objetivos, com uma
política administrativa agressiva se apropria e operacionaliza o imaginário social a
potencializar as práticas expansionistas. Como extensão da política administrativa
metropolitana é aplicada na colônia uma prática expansionista já existente em Portugal,
as entradas, como o braço armado do império, composto em geral por um chefe da
guarda e um grupo de 36 homens treinados para acompanhá-lo nas campanhas. Na
colônia a relação existente entre poder instituído e os grupos ―paramilitares‖ é de
ambiguidade, já que existe convergência de grupos e divergência de interesses, deste
modo, o governo metropolitano (entendido aqui como o poder central do Rei) havendo
de intermediar conflitos, ordenar interesses e manter-se legítimo; em grande monta
estão presentes as três dimensões em um mesmo ato. O índio enquanto
impercílio/fronteira (postulado descritivamente construído, pois, na prática do dia a dia
elemento imprescindível para o funcionamento do empreendimento) causa o entrave das
pretensões de Portugal, bravio, contrapõe a imagem paradisíaca descrita no calor das
emoções por Pero Vaz de Caminha, a projeção que destoava da realidade. Desta forma,
surge a necessidade por parte do governo metropolitano de financiamento desses
homens ―paulistas/portugueses‖ a ―desbravar trecho‖.95
O fato precede a necessidade, há a inversão da lógica vigente, o índio passa a
ter um valor de mercado enquanto escravo surge a prea enquanto instituição. O
empreendimento do bandeirante causa a reordenação dos fatores na colônia, há

95
Entende-se ―trecho‖ como caminho ou meio; caminho no sentido de expandir os limites territoriais
coloniais que estiveram restritos ao tratado de Tordesilhas, que nada rezava sobre a realidade nas
Américas. Enquanto meio, se refere diretamente ao Índio, que não somente representava um
impossibilitador do empreendimento como fora ―convertido‖ em agente propiciador deste mesmo
empreendimento, e sem o qual a mobilidade e expansão no interior do continente não teria sido possível.

231
definitivamente a inutilização do tratado de Tordesilhas (utilizado aqui enquanto
marco), a ocupação passa a definir e proceder a instituição dos limites territoriais, (DEL
PRIORE, 2010). Notadamente a escassez dos achados auríferos, o índio passa a
representar valor absoluto para o empreendimento, (RODRIGUES, 2009), pode ser
vendido para os engenhos, ou integrado comumente as companhas como força motriz.
O poder que o bandeirante empreendia e desferia se limitava a sua função
militar, sem poder político ou de possuidor de riquezas ou terra e engenho, com a
evolução e expansão das fronteiras e consequentemente do Sertão, fronteira em si, como
mérito as conquistas e resolução dos conflitos territoriais frequentemente foi
recompensado com concessão de sesmarias, liberado por direito de conquista a exercer
o comércio dos índios, com a prática contínua das expedições há o despontamento dos
grandes chefes de bandeiras e campanhas, que a partir de 1650 principia a possuir
relativa influência econômica na colônia. Nomes de destaque como o de Domingos
Jorge Velho, Fernão Dias Paes Lemes, Mathias Cardoso de Almeida, Antônio Raposo
Tavares, Antônio Figueira, funcionalmente foram reconhecidos e patenteados como
forma de controle régio e estruturação de governabilidade monárquica na colônia. A
expansão via bandeira, ocorre em blocos em épocas determinadas, na primeira metade
do século XVII os esforços estão direcionados para o Sul do continente e para a região
do Prata, na segunda metade do século XVII para o Norte/Nordeste, região de
Pernambuco, Piauí, onde naquele momento ocorre a Guerra dos Bárbaros (1687 –
1705), (TAUNAY, 1975).
A Guerra contra os bárbaros que fixaria de modo definitivo as populações
Vicentinas na região do São Francisco, e provocaria o início do desenvolvimento de
‗civilidades‘ ao Sertão Norte dos Gerais.

Portanto sendo tão repetidas e danosas a conservação deste estado as


hostilidades, mortes, roubos, desamparo de fazendas e destruição de famílias
e escravos que os bárbaros costumam fazer nos recôncavos desta cidade e
vilas circunvizinhas, que estão padecendo há tantos anos sem poderem
reprimi-las [...] Governador e administrador de todas as aldeias das nações
que reduzir e situar desde a capitania de porto seguro até o rio São Francisco,
para ele e seus descendentes, concedendo-se-lhes o regimento dos
administradores dos Índios que este governo tem dado, com a jurisdição
conveniente, por concorrerem neste todas as partes e qualidades que o fazem
benemérito.
(Patente de administrador e governador dos índios concedida a Matias
Cardoso de Almeida. Apud; RODRIGUES, Gefferson Ramos.)

232
Posto primeiro da administração régia metropolitana que se estabelece no
sertão Sanfranciscano, expansão da tessitura política de asseguramento do monopólio
territorial e dinamização das atividades econômicas.

Transitoriedades
Intrépido, auspicioso, condutor de uma inteireza seja ela qual for, desbravador,
incólume, grandiloquente, sagaz, ágil e manipulador, obediente a sua própria natureza e
destino de ser grande; o bandeirante. Figura formadora do território, imaginário e
cultura Nacional. Características que o situa em lugares díspares no jogo das
representações identitária. Nesse jogo das dispersões e aglutinamento, o bandeirante
emerge na historiografia nacional como eixo de articulação para validação de espaços e
lugares significados. A eficácia da manipulação dos símbolos, signos e sinais da saga
das bandeiras, e da dinâmica dos bandeirantes pelos lugares ―desestruturados‖ do
espaço continental, constrói no diagrama da teorização sobre o território colonial
capítulo inconteste e reconhecido, portanto, de disputa acirrada pelo seu monopólio por
parte dos diversos agentes político-teórico-social que nele se insere.96
A compreensão de que o bandeirante é um agente dentro da hierarquia
ossificada Portuguesa já no século XIV, (FAORO, 1994), é revelador do processo
desencadeado na REGIÃO de Minas Gerais e São Paulo na primeira metade do século
XVIII. A categoria ―pólissinodal‖ de governo Português construída por Francisco
Consentino em Governadores Geral do Brasil, faz compreender o empreendimento
governativo do Império como uma dispersão de lugares de poder, configurando deste
modo uma rede de autoridade, com seus diversos nós constitutivos de lugares de poder
dentro de uma hierarquia rígida, que tem na imagem e representação do Monarca seu
posto mais elevado, as práticas clientelísticas na dimensão do localismo e cotidiano que
asseguram, nessas relações bilaterais, a continuidade da manutenção desta rede
estruturante. Nesse ínterim tomo a figura do bandeirante como um nó na tessitura social
dessa rede hierarquizante, na primeira metade do século XVIII na região de Minas
Gerais e São Paulo.

96
Como forma a descortinar a pretensão universal do discurso a verdade, originalidade e universalidade,
utilizo de princípios metodológicos proposto por Michel Foucault em a Ordem do Discurso, e ênfase no
aspecto da descontinuidade e especificidade do discurso, recobrindo de modo extenso o estudo aqui
realizado, tal como em Pierre Bourdieu quando aborda o aspecto da descontinuidade como princípio de
diacrises, ou ―di-visão‖; ambos serão empreendidos a compreender certas regras de realização do discurso
no jogo das determinações sociais.

233
A primazia Portuguesa pela ordem estamental incide de modo peculiar na
sociedade mineradora, nas entradas militares, no empreendimento das bandeiras, enfim,
sobre a formação dos contornos da sociedade de Minas e dos Gerais a partir da primeira
metade do século XVIII, sobre o descoberto do ouro e sobre a constituição da sociedade
Agropastoril. Para apreendermos como se processou a autonomia de determinados
lugares de poder, de sociedades legítimas como núcleos originais e organizados a partir
de uma estruturação emanada das localidades, articuladas de modo direto a geografia
que a condiciona, é necessário a apreensão dos ordenamentos vigentes na sua totalidade,
entender o a partir de, a dominação que encerra a resistência, (COSTA, 2003).
Polifonia de discursos, contrastividade de perspectivas que atesta a centralidade
relacional desse agente histórico para a formação e estruturação dos espaços e lugares
geográficos e sociais na Colônia. Afonso de Taunay ao centrar sua pesquisa em um
tempo do cotidiano, desvela a intrepidez no trato entre o núcleo autônomo paulista e a
burocracia estamental Portuguesa no século XVII, tece com rigor e originalidade os
caminhos percorridos por aqueles agentes, que deixaram indelével nos seus percursos a
constituição de seu caráter e propensões.
O itinerário produzido pelas falas dos agentes políticos-teóricos-sociais de
temporalidades diversas é revelador da contrastividade discursiva, a oscilação das
posições hierárquicas em que aparecem os paulistas é proporcional a crítica adotada por
aqueles mesmos agentes políticos-teóricos-sociais. No capítulo I; Opiniões sobre os
paulistas correntes nos século XVII; Ciclo do ouro do livro de Taunay História das
bandeiras paulistas, o protagonismo/banditismo dos bandeirantes paulistas aparece em
falas como esta; ―gente desalmada y alevantada que no hace caso ni de la ley e ni de
Dios ni tienem que ver ni com las justicias mayores des estado, heycendo se a los
bosques‖ p.193, subalternidade produzida pelos agentes Reais tal como os agentes da
Companhia de Jesus. Ainda a sua irônica existência propagada pelas autoridades
monárquicas, tal como na fortuita passagem protagonizada pelo secretário de estado
Mendo de Foyas Pereira, quando não catalogara as vilas e arraias paulistas para a
contagem ao Rei, esse indagando da sentida ausência, teve como resposta de Mendo
Foyas; ―Por que, real senhor? Porque aquelas vilas não são de Vossa Magestade!‖,
fragmentos de discurso encontrados em Taunay que corroboram para sua perspectiva da
avalanche guerreira e autonomia encorajante dos paulistas. Um aspecto patente sobre a
figura dos bandeirantes é a nomenclatura paulista que se fixa como atributo de valor em
si, estabelecendo relação imediata de tempo-espaço, portanto é distintivo de uma

234
aglomeração humana inseridos em um espaço geográfico, aspectos relacionais que os
condicionam e forma uma maneira de agir e de responder a situações e vivências,
constitui um Ethos, portugueses de origem, de convívio longo entre os matos e serras
descaracterizadoras do humano, de relações de apaziguamento dos índios, conjunto de
contribuições que o singulariza frente a gente colonial dos engenhos do Nordeste e da
população do litoral Continental.
Em Taunay as patentes distribuídas aos paulistas bandeirantes por parte da
Administração colonial portuguesa se limitava a uma intensão de ordem burocrática
estamental; ―das campanhas de D. Rodrigo de Castel Blanco e de Fernão Dias Pais, só
havia resultado desilusões‖, Taunay (1975, p. 194), o mesmo Fernão Dias Pais emerge
na análise apurada de Francisco Eduardo de Andrade em A invenção das Minas Gerais
como figura épica grandiloquente e empresa mineradora, em síntese, colaborador da
ordem governativa portuguesa; Empresas de descobrimento de Minas; o estilo heroico
de Fernão Dias Pais, narrativa de Andrada donde tece a gênese da formação da
sociedade mineradora e as bases socioculturais de Minas Gerais, há nitidamente um
deslocamento em uma escala de grandeza de importância de feitos e de agentes
históricos.
A diversidade de leituras que o empreendimento bandeirante promove ainda
que na contemporaneidade, atesta a diversidade de documentação existente, tal como a
inexistência de documentação referente a determinados momentos importantes, o que
fortalece o movimento de ―especulação científica‖.

A obra de conquista do Sertão de São Francisco, perpetrado pelos paulistas


não se diferenciava muito das bandeiras de apresamento indígena, e dos
combates aos ―tapuias‖ na ―guerra dos bárbaros‖. A experiência adquirida
nesses eventos foi colocada em prática no Sertão das Minas. Após os embates
com as tribos locais, de que nem sempre resultou em uma ação violenta –
importante destacar – puderam estabelecer fazendas de gado e atuar no
rendável comercio de abastecimento das Minas. (RODRIGUES, 2009, p.43)

Há claramente destacado dois modelos de atividade econômica-social, e neste


ínterim um processo de transição de um modelo para o outro, configurando assim um
processo total, seguindo a assertiva apontada por Rodrigues, é impossível considerar
que haja ocorrido dois modelos estruturas de vivência da realidade e uma mesma lógica
e sentido sobre eles. São expectativas sociais marcadamente distintas que interferem de

235
maneira direta na produção da realidade vivenciada por esses agentes sociais, e de modo
definitivo, na percepção de realidade e vivência.

Lugar-território
Continuamente a proposta de Marcio Roberto Santos em ―Bandeiras Paulistas
no Sertão‖, a mobilidade característica daqueles agentes no interior do território colonial
no século XVII aparece na historiografia contemporânea como traço, eixo central dessas
perspectivas. O que considero que dá sentido de conjunto a essas abordagens
historiográficas. Claro sinal de ruptura a abordagens tradicionais que estendem esse
processo de transitoriedade, de mobilidade caracterizadora do século XVII para o século
XVIII, há a construção historiográfica de uma região caracterizada pela fixidez que
rompe (irrompe) com a fluidez e movimento do século anterior. São aspectos
estruturantes da análise de Marcio Santos (já apontados no início da década de noventa
por Carla Juno Anastasia), que inaugura aquilo que aqui denomino de um novo
movimento historiográfico de ressignificação e leitura dos fatos históricos e ação dos
bandeirantes paulistas, pautada na documentação existente (que ainda se apresenta
incipiente), o que assegura substância e consistência a criação dessa região histórica
singular e possuidora de uma originalidade que faz com que o quadro historiográfico de
Minas Gerais e da Colônia se diversifique e ganhe outros contornos e um sentido
diverso que até então a caracterizava como uma narrativa fluída e pouco problemática.
A emersão de novos agentes e de outros processos históricos que se realizou
concomitantemente aos processos sacralizados na historiografia tradicional. Se há uma
idéia de um movimento paralelo, ela não foi aqui pretendida. O que procuro evidenciar
é a existência de temporalidades e noções de espaço e projeto de sociedade múltiplos.
Um movimento de leitura das bases fundantes da sociedade agropastoril que
possibilita que essa mesma sociedade na contemporaneidade possa se enxergar como
agente do processo histórico regional, um movimento que nasce de fora para dentro e se
reverbera de dentro para fora, reflexão e autorreflexão e o surgimento de um quadro
teórico e documental historiográfico. É importante salientar este movimento
dinamizador do quadro historiográfico, o que evidencia a riqueza histórica do território
de Minas Gerais e da história colonial brasileira.
Ainda que seja um movimento em marcha, e ainda não superado, posto que
não o assegure reconhecimento pleno e total dos seus postulados, a supra necessidade
que outros agentes-teóricos-políticos venha a teorizar e construir postulados sobre este

236
deslocamento inicial e posterior fixação, tomado como processo total da história da
região do Eixo das pedras97. Que tem como norteador a implementação de novas
expectativas sociais e de grupo, que torna o seu processo de expansão e territorialização
singular dentro do quadro hegemônico. Pois, ao instaurar aquela descontinuidade do
movimento de exploração e apaziguamento de levantes situados geograficamente e
marcados temporalmente, inaugura um novo processo na dinâmica colonial brasileira,
que apesar de estar historicamente construída como complementar e subalterna a
história das minas dos Cataguases, se descortina na contemporaneidade como anterior
aquela, possuidora de nuances e traços que a marca como distintiva para a construção
dos espaços e desenvolvimento civilizacional da região do Sertão Norte de Minas
Gerais as margens do rio São Francisco.
A tessitura estrutural que assegura ao governo Monárquico centralidade,
governo ―polissinodal‖, é interrompido pelo apoderamento dos paulistas na segunda
metade do século XVII, a dominação que encerra a resistência, (COSTA, 2003). A
resistência a dominação informada por Taunay traduzida em nomes de caudillos
poderosos como Pedro Camargo e Bartolomeu Fernandes de Faria, deslocam o centro
gravitacional do poder para os ―localismos‖. Nesse ínterim está justificada a distribuição
de cargos e patentes por parte da Administração régia, subterfúgio proporcional aos
momentos de dispersão de hierarquia estamental. No território da província de Minas e
São Paulo é ambígua, mas completamente coerente, a posição dos paulistas chefiadores
de entradas e bandeiras na primeira metade do século XVIII, posição evidenciada em
documentos que atestam a ligação entre potentado local e governador-geral, tal como a
correspondência de Dom Rodrigo da Costa a Domingos do Prado de Oliveira;

Recebi a carta de Vossa mercê de 2 de Agosto deste ano, em que me dá conta


de se haver feito tomadia de uma boiada ao Capitão Gaspar de Lima, que ia
para as minas, para o qual efeito dera Vossa mercê toda ajuda que lhe
pediram, em observância das minhas ordens (...)Ao Capitão-mor Atanásio
Serqueira escrevo, que dá importância da tomadia que se fez, lhe toca a
metade para se repartir entre os executores dela, como é justo, em que Vossa
Mercê tem a parte que lhe toca; a qual tirarão lá, visto estar feita a execução,
e liquido o rendimento: e que a outra metade remeta com toda a segurança a
esta cidade, a entregar à ordem do Provedor-mor da Fazenda Real para
mandar pôr a sua importância em arrecadação. Estimarei que daquí em diante
se aplique Vossa Mercê nesta diligência com tal cuidado, e atividade que não
escape cousa alguma: e esteja certo que em tudo o que valer para os seus

97
Eixo das Pedras é uma expressão cunhada neste trabalho para determinar um espaço, cultural, político,
social, geográfico, específico – faixa que vai de São Romão ao arraial de Mathias Cardoso. Referência
direta aos núcleos de Pedras de Baixo (atual cidade de Pedras de Maria da Cruz) e Pedra de Cima (atual
cidade de São Francisco).

237
acrescentamentos, me há de achar com boa vontade. Deus guarde a Vossa
Mercê. Baía e Outubro 15 de 1704.98

Esforço perene no início do século XVIII em estanquir os descaminhos do


ouro, que passavam desde logo pela região do sertão Noroeste de Minas, entroncamento
natural da colônia. Assim, gradativamente ocorre o empoderamento de determinados
agentes sócio-políticos da região, quando então reivindicarão e exercerão como sempre
exerceram o seu poder de mando local, mesmo quando destoa das ordens régias gerais
metropolitanas. O que a literatura e a historiografia contemporânea nos informam é que
estes poderosos potentados, figuras ilustres, e descontentamentos administrativos
correlatos, sempre estiveram inseridos em um jogo duplo, situados de modo inconteste
em um [entre-lugares], representavam a ligação existente entre o centro e a periferia,
entre o geral e a região [ainda que centro e periferia sejam topograficamente
inexistentes]. É ambígua, mas estruturalmente coerente. Ambígua se reduzirmos o
campo de observação para os localismos, para os empreendimentos corriqueiros e
cotidianos. Aparecerá uma realidade fluída e coerente, onde proprietários de terras,
apoderados historicamente pela inserção dos seus grupos em combates paramilitares,
são reconhecidos como colaboradores do governo metropolitano, assegurando
legitimidade de ação local e inter-regional, em um esquema hierárquico com seus
agregados; vaqueiro, compadres, trabalhadores braçais, engendram o funcionamento
desses núcleos autônomos. Quando veem confrontados nos seus empreendimentos,
nunca se furtaram a requerer para as suas localidades as vantagens próprias do seu
processo de apoderamento.
Nesse sentido, a produção desses agentes investidos de poder, respondem a um
processo histórico de apoderamento, exatamente esse processo de apoderamento que
lhes confere o caráter de autônomos e detentores de um poder representativo e objetivo.
Afirmar que sejam apoderados, posteriormente empoderados, não significa dizer que
tenham eles tido postura indiferente ou de enfrentamento em relação aos postos
autorizados de poder na colônia, antes, de terem eles tido um tino, um feeling para
captar por onde orbitara a frequência maior de ordem administrativa, mantendo, desta
forma, uma ligação estreita de obtenção de informação e postura cordial. Foi deste
modo que conseguiram manter politicamente o noroeste de Minas como um espaço
oblíquo do mando metropolitano, e como lugar de poder do grupo que usou destes

98
Dom Rodrigo da Costa. DOCUMENTOS Históricos. Correspondência dos Governadores Gerais.
1704-1714.

238
mecanismos para tecer de modo legítimo seus postos de influência e captação de
privilégios sociais frente à administração colonial geral.
Portanto, é representativa, forte, eminente, proativa e funcional a presença
desses agentes potentados na vida e constituição dos espaços e da sociedade, como um
todo, nas paragens do rio de São Francisco na primeira metade do século XVIII. Assim,
a história da constituição de um sentido presente no Norte de Minas Gerais se fixa,
inexoravelmente, na fronteira social da história pessoal e pública desses potentados.
A cada estrato familiar, corresponde um núcleo territorial autônomo, aquilo
que venho salientando ao longo do texto, o que lhes assegura sentido de continuidade de
desenvolvimento político, sociocultural, é a intrincada relação de mutualidade que
exercem, e a expansão de domínio que orienta suas práticas econômicas. Da região do
Urucúia ao arraial de Ns. Da Conceição de Morrinhos, estavam fixados e em
desenvolvimento acentuado no criatório de gados, voltados para a economia externa, e o
cultivo de roças e outros incrementos para a existência de uma dinâmica econômica
interna que será primordial para que as relações sociais exerçam força suficiente de
coalizão de sentidos e desenvolvimento de uma ―cultura‖, ou, na mais feliz das
expressões, um ―habitus‖ local. A força que exerce essa entendida coalizão e existência
de um sentido, para a região, é estruturante de um projeto civilizacional, que existiu na
consciência dessa população humana, corroborando seus atos e exercendo força sobre a
construção daqueles espaços.
O enlaçamento de diversificados extratos sociais, e a consanguinidade que os
ligava de maneira indissolúvel, realizou nesses sertões um processo de objetivação de
um desejo de desenvolvimento de potencialidades subjacentes a esses espaços naturais e
as expectativas daqueles grupos sociais Vicentinos. Se o apoderamento daqueles
agentes ocorreu por um processo lento e gradual na segunda metade do século XVII, a
sua expansão e dinamização acontece por força do território alavancado de maneira
coerente para fins da construção de, e realização de um projeto, um território provincial
Sanfranciscano.
Não objetivamente contado pela historiografia existente sobre a região, um
território provincial Sanfranciscano, mas constantemente indiciário nas idéias e
realizações objetivas daqueles agentes históricos regionais da primeira metade do século
XVIII.

239
Considerações finais
Estratégias diversas de maximização do poder sobre os espaços, naturais e
socioculturais, se revelaram divergentes ao compararmos textos distintos sobre esses
processos. A transitoriedade dos agentes sobre os espaços do interior continental nas
paragens do rio São Francisco revelam potencialidades humanas para a pluralidade,
sendo este um primeiro processo que tem suas especificidades e se amarram, em última
instância, diretamente a uma ordem monárquica. Ao passo que, o processo complexo de
territorialização encerra uma ruptura estrutural sobre estes espaços, e em um grau
elevado, representa uma fissura sobre o poder real. Desta forma, transitoriedades e
territorialização ocorrem em uma mesma superfície temporal, no entanto, representam
processos distintos e não-complementares.
Memória coletiva como formador da História e a História como condutor da
memória social, causa uma ruptura e deslocamento, marca definitivamente a distinção
de tempos, revela o caráter instituído e o ordenamento das classes nas sociedades, da
oralidade a escrita, da narrativa dos mitos de origem aos eventos comemorativos e
monumentos, as sociedades transitam nesta horizontalidade, orbitam no universo da
recordação e do esquecimento com maestria ao funcionamento da coesão social e
ordenação das classes.

Referências:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.


CARDOSO, Ciro Flamorion. História e textualidade. In: Domínios da História: ensaios
de teoria e metodologia. Ciro Flamorion Cardoso e Ronaldo Vainfas (orgs.). 5°ed. Rio
de Janeiro: Campus, 1997.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collége de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1996.
NORA, Pierre. Entre memória e História; a problemática dos lugares. Proj. História.
São Paulo, (10), 1993.

240
O VELHO QUE ATA A CRIANÇA QUE MATA: REPRESENTAÇÕES DA
INFÂNCIA EM O MULO, DE DARCY RIBEIRO

Mauricio Alves de Souza Pereira

Resumo:O Mulo, romance do etnólogo e romancista montes-clarense Darcy Ribeiro,


consiste na confissão dos pecados de Philogônio de Castro Maya, um coronel que, já
numa idade avançada, ata os episódios de sua vida por meio de uma confissão escrita,
na qual insere as reminiscências de cada uma das fases de sua existência–
umadasquaisainfância. Na travessia, reconstrutora da identidade, ao ser descrita a
infância, o narrador se estrutura como um menino sem gênese, sem destino,
animalizado pelo sistema de criação a que está submetido e que, para se esquivar do
sofrimento, assassina seu algoz. Com base no romance em tela e em estudos teóricos
acerca da infância, pretendemos, neste trabalho, apontar como a infância é inserida na
literatura de Darcy Ribeiro, de modo a se dissociar da puerícia convencional retratada
em outrasliteraturas.

Palavras-chave: Infância, O Mulo, Darcy Ribeiro.

"A literatura é infância por fim recuperada".


Juan Carlos Onetti

Introdução
DarcyRibeiroéumescritormineironascido26deoutubrode1922,emMontesClaro,
no norte de Minas Gerais. Em 1946, formou-se em Sociologia e especializou-se em
Etnologia, acumulando, em sua vida, experiências políticas várias, entre as quais se
destacam a incumbência do planejament oda Universidade de Brasíliapor
JuscelinoKubitschek,em1959; o Ministério da Educação, por convite do presidente
João Goulart, em 1962 e a chefia da casa civil, no ano seguinte. Em seguida, após o
golpe militar de 1964, com a deposição do então presidente João Goulart, Darcy
seguiu para o exílio. Ao longo de sua vida, ganhou vários prêmios por suas obras e
amplo estudo acerca da causa indígena. Para Diego Omar Silveira Darcy―[...]tornou-
seumdosmaisexpressivosantropólogosbrasileirose,certamente,umícone de uma
geração de intelectuais que buscou reinterpretar e imaginar novamente oBrasil,
compreendendo os fracassos e sucessos de nossa formação histórica e cultural‖
(SILVEIRA, 2012, p. 223).
Darcy Ribeiro, contudo, não se ocupou de elaborar apenas uma obra
etnográfica de importância mundial, mas produziu, também, quatro romances: Maíra

241
(1976), O Mulo (1981), Utopia Selvagem (1982) e Migo (1988); os quais compõem a
ficção produzida ao longo de sua vida.
O Mulo, publicado em 1981, trata-se de uma narrativa confessional do
Coronel Philogônio de Castro Maya, detentor de incomensuráveis posses no
sertãogoiano.Aodescobrir que sofre de uma grave doença pulmonar, temendo a morte
iminente e posterior negação do perdão de Deus, empreita-se a escrever uma
confissão na qual legatodososseusbensaopadre leitor – na tentativa de forjar o próprio
perdão. O narrador-personagem, ao se confessar, além deprofessar
osseuspecados,fazumarecomposiçãodesuavida,desdeainfânciasofridaesem destino na
fazenda dos Laranjos, no Norte de Minas, até a velhice abastada nas extensas terras
das Águas Claras, emGoiás.
Este trabalho centra-se na parte do romance dedicada à construção da infância
do narrador, buscando fazer uma representação do personagem infantil no interior da
narrativa. Para tanto, além da análise do corpus literário do romancista Darcy Ribeiro,
ancorar-nos-emos em estudos acerca da representação da infância na literatura.

A infância na literatura: representações em o mulo, de Darcy Ribeiro


Na esteira dos estudos de Gouvêia (2007) "[...] ao qualificar, caracterizar,
descrever a criança e seus contornos, as práticas literárias, ao mesmo tempo que
retratam a(s) criança(s), constroem a infância através das narrativas". Numa visão
geral das obras literárias de que se tem conhecimento, percebe-se que muitas delas, ao
inserir em seus corpora personagens infantis, constroem, de acordo com o tempo e
espaço no qualsãoescritas,asrepresentaçõesdo universo infantil nos seus
aspectossócio-histórico-culturais.
Etimologicamente,a palavra infância deriva do latim infantia, proveniente do
verbo fari (falar),em que fan significa falante e o prefixo in designa a negaçãoda
fala;ouseja,emtese,a infância é o período em que o indivíduo ainda não possui
domínio total da linguagem e da expressão. Conforme apregoa Pagni,

[...] a infância consiste no silêncio que precede a emissão das palavras e a


enunciação do discurso, designando uma condição da linguagem e do
pensamento com a qual o ser humano se defronta ao longo de sua vida,
assumindo subsequentemente o sentido que se lhe atribui com maior
frequência, no presente, de uma idade específica, diferenciada da adulta
(PAGNI, 2010, p. 100).

242
De maneira geral, a infância é a etapa de crescimento do indivíduo que vai do
nascimento à puberdade. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a
criança é a pessoa que possui até 12 anos incompletos. Para Amaral [s.d.],

[...] a criança, como todo ser humano, é um sujeito social e histórico e faz
parte de uma organização familiar que está inserida em uma sociedade, com
determinada cultura e um determinado momento histórico. Possui uma
natureza singular, que a caracteriza como ser que sente e pensa o mundo de
um jeito muito próprio precisando ser compreendido e respeitado a partir de
suas singularidades (AMARAL, s. d., p. 1).

Em contrapartida, nO Mulo, romance do montes-clarense Darcy Ribeiro, vê-


se essa representação do universo infantil de maneira dissonante à
retratadacostumeiramente. Na obra, acriançaérepresentadacomoum indivíduosem
família,sem amigosequasequesemgênese. "Minha finada mãe, Tereza do Surubim,
teve três filhos, e morreu durante ou pouco depois de
meunascimento,noaguaceirodeumatrombad'água.DelanãoseimaisdoqueonomeTereza
ebocagensdasmulheresdoLopinhoqueacabaramdemecriar(RIBEIRO,2007,p.16).Como
dito na confissão, o menino não teve, em sua vida, a presença de sua mãe. Esse é um
fator determinante para o comportamento da criança transgressora que aparece no
transcurso da narrativa darcyniana. A psicanalista Glaucy Abdon, ao discutir sobre a
dinâmica familiar, diz que "[...] figura da mãe, importante em todas as linhas de
pensamento psicanalítico é, sem dúvida, a figura crucial do processo de humanização
do bebê". (ABDON, s. d., p. 73-74). Para endossar a ideia da necessidade da presença
da mãe durante a infância do indivíduo, a autora utiliza, ainda, os estudos de Lacan,
para quem a mãe é um ―outro primordial‖, a partir da qual a criança cria o mundo a
partir de sua relação com a mãe, sendo fruto de projeções e identificações.
Além da mãe, o pai da criança também não fez parte de sua vida:

Pensoquemeu paitenhasidoumTertulianoBogéa,garimpeirodediamantes
doSurubim.Pensoistocomofundamentopoucodequesempre falavam dele,
naminhafrente,comoomaiorfazedordefilhosdaputadosertãodoSurubim (...)
Deste meu suposto pai, só sei que era garimpeiro, branco, cabeça dura e bom
reprodutor (RIBEIRO, 2007, p.16).

Os estudos psicológicos e psicanalíticos defendem que é essencial a presença


paterna no desenvolvimento e no psiquismo da criança. Freud, em seus estudos,
salienta que

243
Na maioria dos seres humanos - tanto hoje como nos tempos primitivos - a
necessidade de se apoiar numa autoridade de qualquer espécie é tão
imperativa que o seu mundo se desmorona se essa autoridade é ameaçada. No
entanto, Leonardo pôde dispensar esse apoio;não teria podido fazê-
losenosprimeiros anos de sua vida não tivesse aprendido a viver sem o pai.
Sua ulterior investigação científica, caracterizada por sua ousadia e
independência, pressupõe a existência de pesquisas sexuais infantis não
inibidas pelo pai e representa uma prolongação das mesmas com a exclusão
do elemento sexual (FREUD, 1970, p.74).

Sem pai e sem mãe, ou melhor, sem referências para sua constituição, o
narrador conclui:
Pra mim, minha mãe Tereza é um ventre me parindo lá atrás. Meu pai, um
velho que vi, antes de supor que fosse quem me gerou fodendo Tereza. Dos
pais e avós deles, demasiados, perdidos no vão do tempo, nada sei. Decerto
muitíssimosassassinos,excessivosladrões,dequempudeherdarassementes da
danação. Esta, minha herança (RIBEIRO, 2007, p.17).

O autor, já na velhice, ao refletir acerca de uma das fases de sua vida, percebe
que muito do que se tornou – ladrão e assassino – foi herdado de seus pais, ou até
mesmo da falta deles, já que, de acordo com Abdon, entre outras coisas, "[...] a figura
paterna é responsável por dar limites, trazer para o filho a noção de lei" (ABDON, s.
d., p.73-74).
No romance, a primeira inserção da infância, na confissão, dá-se quando o
narrador expõe o período em que viveu com Lopinho, um fazendeiro muito rico que o
criou. Na confissão de Philogônio, Lopinho é extremamente odiado. Aparece como
um homem cruel que o violentava muito, tanto que ficou marcado em seu
subconsciente, como se verifica na passagem a seguir:

A raiva do Lopinho tinha causa no despotismo do seu mando duro, ruim,


encasinado, sosbre todos. Tinha raízes no temor de suas violências, no medo
das surras que me dava. Seja em croques, de passagem, se ficava ao alcance
dos nós de ferro dos dedos dele; seja em pescoções, para vingar uma ordem
mal cumprida; seja, e não era raro, para me surrar com seu chicote de
amansador, quando explodia em raivas, sem precisar de razões (RIBEIRO,
2007, p. 34).

Embora já muito velho, Philogônio lembra-se claramente das violências a que


esteve submetido na criação de Lopinho. As passagens em que são narradas as
relações dos dois dão ênfase à tristeza e como a impetuosidade ficou para sempre
marcada na vida da criança. Dessa forma,verifica-se que a infância do menino
sertanejo não foi nem um pouco fácil. Além de não ter a proteção dos pais, não

244
encontrou, em seu criador, nenhuma espécie de proteção, pelo contrário, era alguém
de que ele sempre queriafugir.
Outro aspecto que se impõe à criança retratada em O Mulo atina-se à questão
da sexualidade. Ao discutir sobre a sexualidade infantil, Freud fornece-nos subsídeos
importantíssimos que nos auxiliam na compreensão do comportamento da criança
criada por Darcy Ribeiro.

Ao indicar o pluralismo dos componentes da sexualidade infantil, Freud se


afasta da moral repressora de sua época, que só aceitava uma sexualidade
baseada no instinto, o qual surgiria a partir da puberdade e teria como
finalidade a reprodução. O autor denomina a sexualidade das crianças de
perverso-polimorfa, por se afastar do modelo genital de relação sexual,
procurandoformasdeprazerderivadasdequalqueráreaouórgãodocorpo.O auto-
erotismo infantil é destacado justamente pelo fato de que na infância a
sexualidade é autoerótica, sendo o corpo da criança o único meio de obter
gratificação em circunstâncias normais. Assim sendo, mesmo se as fantasias
sexuais são dirigidas a um objeto (outra pessoa), a gratificação sexual é
buscada em seu corpo ou em determinadas áreas do corpo que são
privilegiadasemumdeterminadomomentododesenvolvimento.(ZORNING,
2008, p. 74)

A narrativa, corroborando os ideais propalados por Freud, mostra-


nos,emsuaestrutura, que a sexualidade da criança foi despertada pelo seu
próprioalgoz.

Eu,olhoestatelado,procuravavernaquelaescuridão,comopauzinho duro de
doer. Às vezes via vultos, se a noite era clara, ou se um facho de luar
cruzavaajeito.SóviaabundadeLopinhosubindoeabaixando.Depoisouvia aquele
grunhido rouco com que ele acabava. Saía logo (RIBEIRO, 2007, p. 38).

Algo curioso que ocorre durante a construção da história é que, em certos


momentos, quando o menino via Lopinho mantendo relações sexuais com suas
empregadas, é mostrado um certo tom de ciúmes, conforme salientado na passagem:

Onde o meu pecado, para tanto sentimento de culpa, estará perguntando o


senhor? O pecado, se havia, estava talvez naquele meu sofrimento esquisito.
Era assim como se quisesse Lopinho pra mim. Doidices de menino, bem sei.
Mas doidice malvada, maliciosa. Doidice que devia ser confessada
(RIBEIRO, 2007, p. 38).

AlémdeinstigadosexualmenteporLopinho,há,também,umaaproximaçãosexualc
om os animais - característica reiterada no decorrer da obra. O narrador, que se
zoomorfiza em função do ambiente em que vive e da forma como é criado, encontra,

245
no universo animal, um meio de satisfazer seus desejos e curiosidades, fator que, mais
uma vez, corrobora o pensamento Freudiano.

O garanhão que cobria as jumentas no fabrico das mulas estava debaixo do


meu especial zelo. Também era meu o jumento que cobria as éguas na
fabricaçãodasbestas.OmeuserviçoquemaisgostodavaaoLopinhoeraesse de
pegar o pau do garanhão ou jumento e esquentar, sacudindo, para entesar,
levantar e meter nas fêmeas. (...) Esse interesse, lá no lajedo, quem dava era
eu, com a mão e o jeito. Não só os reprodutores, todos aqueles animais se
entendiam comigo. Tal como se fossem gente. Não! Tal como se eu fosse
bicho, quadrúpede, que nem eles. (RIBEIRO, 2007, p.39)

Ainda em relação à sexualidade retratada na infância de Philogônio, tem-se a


questão da erotização genital, a qual é evidenciada com a figura das mulas de quem a
nossa criança tomava conta. Veja-se: "Aninha gostava muito, principalmente quando
eu dava de por na bocetinha dela umas pedrinhas brancas, bem redonhas. Minha
tristeza, então, seria a de pensar que ao crescer as meninas ficavam peludas como
Lenora. Dava pena. Acho que por isso não queria crescer. Eu mesmo" (RIBEIRO,
2007, p. 40). Ao descrever o contato com os animais,
onarradorevidenciaque,alémdasrelaçõessexuaismantidascomasmulas,acriançaprojetav
a um futuro sexual animalizado, zoomórfico. Tal visão naturalista aponta uma criança
transgressora, longe das concepções normais da infância encontradas na literatura
convencional.
Por fim, elucidando a presença infantil na narrativa, há um fato que,
posteriormente, desencadeia um comportamento levado pelo personagem por toda a
sua vida: o assassinato. Depois de muito sofrer e amar Lopinho, a criança, um dia, na
Fazenda dos Laranjos, perpetua um ato cruel.

Ali no pasto de cima, no tempo da castração, foi que eu encontrei Lopinho


prostrado, com um aceso de terçã, os olhos virados, mas vivo, eu via, pelo
ardimento da febre. Ali acabei comele. A idéia e o ato foram tão juntos e
comtantarapidez que eu, àsvezes,pensoqueplanejei depois. Foi ver a raiz
estufada do crânio dele, acima do pescoço fino, ali oferecida, para pegar o
cabo pesado da taca e dar com ele uma pancada firme, rija, na cabeça do
Lopinho. Com e l e desfalecido, peguei meu prego caibral e meti na emenda
da cabeça com o pescoço dando uns poucos golpes duros da taca
encastodada. (RIBEIRO, 2007, P. 29)

Ocomportamento animal da criança evidencia um ódio retraído por muito


tempo.Ataca utilizada na consubstancialização do crime é a mesma com a qual
acriançaapanhava. Dessa forma, há, na narrativa, uma transformação das personagens,

246
umaespéciede metamorfose. De vítima, a criança passa a algoz. De algoz, Lopinho,
jámorto, passa a ser vítima da criança. A transgressão é ainda mais exposta quando a
criança mostra toda a sede de vingança contida em seu ato."Fiz esse serviço com
calma, arrematei com todo cuidado para o prego ficar bem rente ao couro dococo, e
depois cobri com o cabelo duro do Lopinho. Tudo na calma. Até limpei na barra da
camisa o fio de sangue que minou dele. Sem medo"(RIBEIRO,2007,p.29). Depois
desse feito, a criança foge da Fazendo dos Laranjos e se aventura emumavida
marcada pelo crime e pelos jogos de poder. Concluímos que parte de seu
comportamento ede sua identidade teve como base as transgressões a que se
submeteu na infância.

Considerações finais
Através das considerações acerca da infância e suas representações na obra de
Darcy Ribeiro, percebemos que há uma inversão em relação à infância retratada
convencionalmente emoutrasliteraturas. O narrador constrói, de si mesmo, a imagem
de uma criança transgressora, sem família nem gênese, submetida a um meio rural
impetuoso, que se intensifica na figura de seu criador, ou melhor, patrão – Lopinho –,
e às relações animais com as quais sedepara.
Com isso, o autor nos mostra que a degenerescência do ser humano, que se
envolveu em latrocínios e jogos de poder, se iniciaram na própria infância. É cabível,
em vista da análise da vida infantil do narrador, questionar se houve, de fato, uma
infância. Ademais, Darcy Ribeiro coloca à nossa frente uma observação acerca do que
é infância e se ela existe para todos. Por fim, a reflexão que nos fica, a partir da clara
negação infantil que houveàpersonagememtela, é de que a infância
convencionalmente pueril trata-se, talvez, de uma utopia, e não de umarealidade.

Referências bibiliográficas

ABDON,Glaucy. A dinâmica familiar. Disponível em:


<http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/24/artigo70925-1.asp> Acesso
em: 6 de agosto de 2016.
AMARAL, Heloisa Dutra. Concepção de infância. Disponível em:
<http://www.fundacaoespiritacarita.org.br/index.php/lar-escola/85-concepcao-da-
crianca> Acesso em: 6 de agosto de 2016.
FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância 1910. In:
Freud S. Obras psicológicas completas. Vol.XI. Rio de Janeiro:Imago;1970. p.59-124.

247
PAGNI,PedroAngelo.Infância,artedegovernopedagógicaepráticadesi.Educ.Real.,Porto
Alegre,
v.35, n.3, p.99-123, set./dez.,2010. Disponível
em: <http://www.ufrgs.br/edu_realidade> Acesso em: 6 de agosto de 2016.
RIBEIRO, Darcy. O Mulo. Belo Horizonte: Editora Leitura. 2007.
ZORNING, Silvia Maria Abu-Jamra. As teorias sexuais infantis na infância: algumas
reflexões. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 1, p. 73-77, jan./mar. 2008.

248
UM RETRATO DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO
FILME ZUZU ANGEL (2006): DESAPARECIMENTOS, REPRESSÃO E
RESISTÊNCIA

Nathalia C. Patané Nagasawa

Resumo: Inserida nas abordagens de uma Nova História Cultural, por privilegiar o
cinema como fonte de pesquisa, a presente comunicação propõe apresentar resultados
parciais do Trabalho de Conclusão de Curso em andamento, "A Ditadura Militar
brasileira na ótica da Globo Filmes: uma análise dos filmes Zuzu Angel (2006) e O ano
em que meus pais saíram de férias (2006)". Nesta apresentação, analisaremos o filme
Zuzu Angel (Dir.: Sérgio Rezende) à luz do contexto histórico de produção, buscando
entender como a Ditadura Civil-Militar foi representada no filme em questão, com
atenção especial às práticas de repressão, os desaparecimentos e formas de resistência.
Acreditamos que, pelo fato de a Globo Filmes - uma das responsáveis pela produção -
atuar de forma significativa na indústria audiovisual nacional, tanto no que diz respeito
à distribuição quanto na divulgação, visando tornar o cinema acessível ao grande
público, as representações do período ditatorial brasileiro nos filmes em que participa,
por atingirem um grande número de espectadores, influenciam diretamente na formação
de imagens sobre esse período da história brasileira.

Palavras-chave: Cinema brasileiro; Ditadura Civil-Militar; Zuzu Angel

A presente comunicação visa apresentar resultados parciais do Trabalho de


Conclusão de Curso intitulado ―A Ditadura Militar brasileira na ótica da Globo Filmes:
uma análise dos filmes Zuzu Angel (2006) e O ano em que meus pais saíram de férias
(2006)‖.
Apresentaremos, inicialmente, os objetivos da pesquisa de forma geral, além de
expor um breve contexto histórico sobre a Ditadura Militar brasileira, essencial para a
compreensão da fonte fílmica estudada. Posteriormente, elaboraremos uma reflexão
sobre o uso do cinema como fonte para os estudos históricos e, por fim, apresentaremos
alguns elementos e temáticas presentes no filme Zuzu Angel que consideramos
importante para a compreensão da Ditadura Militar.
Ainda em fase de desenvolvimento, temos como objetivos, nesta pesquisa,
analisar como a Ditadura Civil-Militar foi representada pelo cinema brasileiro, voltado
ao grande público, buscando pontuar quais elementos da história política, social,
econômica e cultural são abordados nas produções cinematográficas. Entender a atuação
da Globo Filmes, co-produtora de papel relevante na indústria cultural brasileira,
buscando contextualizar sua formação, formas de ação e influência no alcance das obras
nas quais participa, também faz parte dos objetivos que temos na pesquisa.

249
Sabemos que o período Militar teve início em 31 de março de 1964, através de um
golpe dado pelos militares, que alegavam defender a democracia ameaçada, segundo os
mesmos, pelo comunismo, visto como grande inimigo interno. Buscando legitimar o
poder e a aplicação da ordem, este governo, que alegava ser um ―regime de exceção,
emergencial, passível, portanto recorrer a medidas autoritárias legitimadas por sua
natureza revolucionária‖ (CASTRO, 1994, p.13), iniciou-se um período no qual a
punição para atos considerados subversivos tornou-se comum. A tortura passou a ser a
ferramenta do medo, e a censura uma forte aliada para reprimir qualquer movimento,
político, social, cultural ou artístico, que representasse uma ameaça à ordem política ou
à moral da família brasileira.
Os intelectuais, artistas e cineastas representavam o maior grupo de opositores,
dessa forma suas obras evidenciavam o descontentamento em relação ao governo. A
censura passou a atuar de forma severa, identificada e combatida firmemente pelos
órgãos responsáveis. O cinema, diretamente atingido por essa censura, tornou-se muitas
vezes incompreensível, visto que eram realizados inúmeros cortes de cenas que
prejudicavam o enredo.
Com a regulamentação do Ato institucional nº 5 (1968), a repressão e,
consequentemente, a censura, se intensificaram. No que diz respeito ao cinema, foi
criada a Embrafilme (1969), que marcou o início da íntima relação entre militares e a
produção fílmica nacional. Conforme elucida Luciana Pinto, ―a aparente contradição de
um governo que, por um lado censura o cinema, por outro o produz, é facilmente
esclarecida se pensarmos na máquina de propaganda montada pelos militares.‖ (PINTO,
2005, p.5). Isso, pois, ao permitir a exibição de filmes com conteúdo claramente críticos
à política, seria dada aos observadores estrangeiros, espectadores dos festivais
internacionais de cinema, uma ilusão de normalidade interna.
André Piero Gatti considera que a "distribuidora seria, sem dúvida alguma, o mais
eficaz instrumento de intervenção de mercado oferecido pelo governo, propiciando
investimentos que igualavam o filme nacional aos estrangeiros" (2007, p.106). Ainda
que a criação da estatal Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), tenha contribuído
para ampliar a produção cinematográfica brasileira, vários fatores de ordem política e
econômica fizeram com que a empresa declinasse, tendo o ano de 1990 marcado seu
fim. Neste mesmo ano foram criadas leis de incentivo à cultura, fazendo com que as
produções cinematográficas retomassem um espaço importante - período que ficou
conhecido como "Cinema de Retomada"

250
Nesse momento, filmes com teor histórico passam a ser lançados, como Carlota
Joaquina, dirigido por Carla Camurati e lançado em 1995. A emissora de televisão
Rede Globo, interessada em ampliar a sua já poderosa ferramenta midiática, iniciou o
processo de criação da Globo Filmes Produções (1998). Utilizando-se das leis de
incentivo e do já renomado nome da emissora de televisão, a Globo Filmes passou a
liderar o mercado cinematográfico brasileiro, ocupando o papel de co-produtora em
projetos encabeçados por grandes empresas como Universal e Sony Pictures. Além
disso, se associava a produtoras independentes e com menos recursos, nesses casos
liderando o processo produtivo (GLOBO FILMES, 2008).
A criação do blockbuster nacional e a aceitação do público passaram a ser as
maiores preocupações da Globo Filmes Produções, que teve na Rede Globo um
relevante instrumento de divulgação. Acreditamos que a atuação da Globo Filmes no
meio cultural brasileiro, assim como as formas de representação da Ditadura Militar e
de práticas políticas, culturais e sociais presentes nos filmes em que a produtora tem
participação, possibilitam entender como esse período da história recente brasileira, tão
revisto e estudado nos dias atuais, foi pensado e retratado, e de que forma ele chegou ao
grande público brasileiro.
A consagração da Globo Filmes no mercado cinematográfico brasileiro se tornou
fonte de estudo, não apenas pela questão dos meios de propaganda que as Organizações
Globo dispõem, mas também pela sua lógica empresarial, lógica esta que Juliana
Sangion descreve como ―trapaceira‖, já que burla o sistema legislativo optando por co-
produzir mesmo que, na prática, se posicione como produtora, já que participa
ativamente nos roteiros, conteúdo dos filmes, interferindo e modificando as narrativas e
a estética das obras. Mantendo-se como co-produtora, as das leis de incentivos fiscais
são concedidas, já como produtora não poderia ser beneficiada, isso devido à concessão
de TV que possui, o que vetaria tais recursos oriundos a empresa de radiodifusão
(SANGION, 2011).
Outro alvo de críticas à Globo Filmes é o monopólio industrial que molda as
produções segundo as massas de alcance que, nas palavras de Vanessa Oliveira, ―(...)
apoiando-se em discussões socioculturais sobre o Brasil e a importância do cinema para
a consciência da massa, como se nosso país pudesse ser resumido a um tipo de
linguagem, temática ou ideologia única‖ (OLIVEIRA, 2013, p.153). Sangion completa
que esse aspecto gerou uma padronização dos conteúdos, identificada pelos diretores de
produção, Guel Arraes e Daniel Filho, como necessária para que os filmes se tornem

251
viáveis e ou mais atraentes ao grande público (SANGION, 2011). Esse modo operante é
descrito pela própria Globo Filmes, em publicação lançada no aniversário de 10 anos da
empresa.

A cada mês, dezenas de projetos chegam à mesa de Carlos Eduardo


Rodrigues – o executivo que há seis anos comanda a Globo Filmes – e outros
tantos começam a ser desenvolvidos ali mesmo. Depois de serem peneirados
e analisados por um conselho, os projetos aprovados serão desenvolvidos
com a supervisão de um dos diretores artísticos da companhia. (...) São
muitas as histórias de decisões, às vezes em torno de detalhes, que acabaram
mudando o rumo de um filme: um palpite de roteiro, a escalação do elenco,
ou mesmo o corte de uma cena que possa ser a diferença entre o filme
―miúra‖ e o ―blockbuster‖ (GLOBO, 2008, p. 7).

Buscamos, durante o desenvolvimento desta pesquisa, analisar a produção Zuzu


Angel (Sérgio Rezende) lançado em 2006 e co-produzido pela Globo Filmes, assim
como a abordagem em torno da temática dos desaparecimentos, exílio, torturas e
perseguições. Acreditamos que analisar as relações entre a Co-Produtora e nossa história
recente, mais especificamente a forma como a empresa representou o período ditatorial,
pode iluminar aspectos ideológicos da Globo Filmes, além de possibilitar o
entendimento dos motivos que levaram à produção do filme sobre a Ditadura Militar no
mesmo ano, 2006.

O cinema na História
Uma vez expostas, de forma geral, as propostas desta pesquisa em
desenvolvimento, assim como o contexto histórico em que a criação da Globo Filmes
está inserido, passamos para uma breve reflexão sobre a importância do cinema como
fonte para a pesquisa histórica.
Com as palavras de Andréa De Fazio, ―detentor de intenções que são reveladas a
partir da escolha do conteúdo e da forma como ele deve ser mostrado, o cinema entrou
para o rol de fontes valorizadas pelo historiador (DE FAZIO, 2011, p. 35). A reflexão
sobre a relação do cinema e história, onde historiadores deixaram de considerar a escrita
como a única forma de recontar a história, aceitando assim novas fontes como
ferramenta de relato, dentre elas o cinema, já acontece desde o século XIX (COSTA,
2010). Porem, a imagem demorou a ser aceita pelos historiadores, e esse novo olhar
sobre o cinema, e seu uso como fonte histórica, podem ser associados ao
desenvolvimento de correntes historiográficas renovadoras, que passaram a valorizar o

252
estudo das mentalidades, hábitos e cultura das mais diversas sociedades e tempos
históricos, tal como os Annales e a Nova História, que, além de questionar a
predominância dos documentos escritos, também reconhecem as mais variadas
produções das sociedades no rol de fontes históricas, considerando toda manifestação
humana documento plausível para retratar a história, como o cinema, fotografia, pinturas
e manifestações artísticas de forma geral e documentos falados (fontes orais).
Ainda que houvesse reflexões sobre a importância do cinema para a história, seja
para estudá-la ou para imortalizá-la, Marc Ferro, considerado o precursor nas propostas
metodológicas para análise fílmica, demonstrou em seus trabalhos, segundo Monica
Kornis, ―a importância do filme como fonte reveladora das crenças, das intenções e do
imaginário do homem‖ (KORNIS, 1992, p.8), destacando-o como um agente da história.
Ferro ainda destaca que o cinema, há muitas décadas, vem sendo usado como
ferramenta eficaz de doutrinação ou enaltecimento.
No entanto, os estudos metodológicos sobre o cinema e seus usos na pesquisa
histórica foram aprimorados ao longo das décadas e, justamente por ter sido o pioneiro,
Marc Ferro tem sua metodologia questionada por historiadores culturais atuais, já que
nas palavras de De Fazio, ― baseia seus métodos de análise fílmica na intersecção dos
aspectos externos, não visíveis (contexto político e social de produção, realizadores,
recepção) e internos, visíveis (as imagens propriamente ditas)‖ (DE FAZIO, 2016,
p.16).
O historiador Eduardo Morettin entende como falha, na abordagem metodológica
proposta por Ferro,

Afirmar a possibilidade de recuperar o não-visível através do visível é


contraditório, já que essa análise vê a obra cinematográfica como portadora
de doisníveis independentes, perdendo de vista o caráter polissêmico da
imagem. Esseraciocínio só tem sentido para aqueles que, ao analisar o filme,
separam a obrade um enredo, um ―conteúdo‖ que caminha paralelamente às
combinações entreimagem e som, ou seja, aos procedimentos
especificamente cinematográficos(MORETTIN, 2007 apud DE FAZIO,
2016, p.17).

Marc Ferro também considera que a ―abordagem do filme como uma imagem-
objeto, um produto cujas significações não são somente cinematográficas‖ (KORNIS,
1992, p.9) - se faz necessária. Barros complementa que é necessário considerar a
importância do cinema como ―agente histórico‖ já que por si só ele interfere na história:
Nas palavras do autor;

253
(...) seja por intermédio de sua indústria, seja pela formação de opinião
pública e de influências na mudança de costumes, seja por meio daqueles que
dele se utilizam para objetivos diversos, como os próprios governos e os
grupos sociais que, com a produção fílmica, impõem seus discursos, pontos
de vistas e ideologias (BARROS, 2011, p.179).

Para Erwin Panofsky, historiador e crítico de arte, torna-se necessário, para a


compreensão de uma obra cinematográfica, passar por três etapas de análise:
A primeira etapa é descritiva, levando em conta o tema e técnica (Pré-
iconográfico). A segunda etapa seria o estudo da estética das imagens, sua formação e
origem (Iconográfico). A terceira e última etapa seria a interpretação mais profunda dos
objetos, buscando o contexto cultura e histórico do objeto de estudo (Iconológico).
Essa ―divisão‖ da obra em níveis diferentes, feita por Panofsky também foi
questionada, já que nas palavras de De Fazio, ―pode levar a uma hierarquização destes,
além de fragmentar a imagem – retornaríamos à lacuna presente na obra de Ferro, na
qual a divisão da análise não considera a obra como um todo‖ (DE FAZIO, 2016, p. 19).
Consideramos, no entanto, que os níveis não podem ser entendidos como partes
separadas da obra, mas sim como partes de um mesmo processo de análise, que prioriza
tanto aspectos internos, quanto externos do filme, para que seja possibilitado um
entendimento mais completo da obra.
Dessa forma, ao analisar Zuzu Angel, buscamos compreender tanto os elementos
fílmicos (as imagens, movimentos de câmeras, enquadramentos, figurinos, diálogos,
trilha sonora), quanto os elementos externos ao filme, como contexto de produção, os
envolvidos no processo e, ainda, o espaço que a Globo Filmes ocupa durante o
desenvolvimento da obra.
Passamos, agora, para a última parte desta apresentação, que será dedicada a
abordagem de alguns elementos sobre o filme Zuzu Angel, os quais consideramos
importantes para a compreensão da forma com que a Ditadura Militar é representada.

Zuzu Angel: imagens da repressão e da resistência


Filme dirigido por Sérgio Rezende e produzido no ano de 2006, Zuzu Angel
retrata o período conhecido como os mais violentos dos vinte e um anos de Ditadura
Militar brasileira, o qual coincide com o momento de ascensão profissional de Zuleika
Angel Jones, mãe de três filhos, sendo Stuart Angel Jones seu único filho homem.

254
Stuart era formado em Economia e militante político, em 1964 filiou-se ao MR-8
(Movimento Revolucionário 08 de outubro), grupo guerrilheiro comandado por Carlos
Lamarca. Stuart, que usava o codinome Paulo, foi preso em 14 de abril de 1971, pela
CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica), sendo torturado e morto.
Zuzu, que até esse momento era apolítica, inicia uma busca incessante por seu
filho, entrando em guerra com o Regime político, envolvendo em sua busca até mesmo
os Estados Unidos da América, já que Stuart tinha dupla cidadania por ser filho do
americano Norman Jones. Sua busca é cessada em 1976 devido ao ―acidente‖ de carro
que levou Zuzu a óbito e que apenas em 2014 foi considerado, assassinato.
Consideramos elementos chaves para compreensão do período ditatorial os
seguintes temas: as perseguições aos movimentos de esquerda, considerados
subversivos; as torturas cometidas pelos militares contra todos que se opunham ao
regime, os desaparecidos durante o regime e a resistência desses grupos contra a
repressão.
Buscando realizar análise das imagens fílmicas, as cenas de Stuart e Sonia, sua
companheira de militância, que viria a ser sua esposa, retratam a luta dos jovens contra a
Ditadura Militar, demonstrando intenso senso crítico – o que também fica evidente no
inicio da película onde, ainda menino, Stuart, defende sua mãe do estigma de ―mulher
questionável‖, já que ela era divorciada.

Cenas do filme Zuzu Angel (Sérgio Rezende, 2006). Movimento estudantil liderado por
Stuart e Sonia ainda nos primeiros 16:00 minutos da película.

255
Essa personalidade crítica e inquieta do jovem fora bastante questionada pela mãe,
que acreditava não ser necessário combater a Ditadura e sim se adequar a ela. Lauren
Steffen descreve os perfis de mãe e filho que, nesse início do filme, eram ainda tão
contraditórios.

Stuart era extremamente engajado politicamente, consciente dos seus direitos


e deveres como cidadão, alguém que não fechava os olhos para os fatos que
aconteciam a seu redor. Zuzu não conseguia compreender as atitudes
militantes do filho e o repreendia por correr tantos riscos por um simples
ideal político. Logo, a ditadura era o muro que separava mãe e filho, que
viviam em dois mundos completamente diferentes, o da moda e o da política
(STEFFEN, 2012, p.4).

Essa dicotomia desaparece quando a mãe recebe uma carta de um companheiro de


militância do seu filho Stuart, carta rica em detalhes quanto a prisão, tortura, morte e
desaparecimento como corpo de seu filho. A partir desse momento acontece o que
Steffen descreve como ―despertar para as atrocidades cometidas pela ditadura; neste
momento, a distância que antes os separavam começa a se esvair‖ (STEFFEN, 2012, p.
4) referência feita sobre a relação entre mãe e filho que separados por ideologias até
então, e agora não mais.
Desse ponto do filme em diante, a busca incessante de Zuzu, para encontrar pelo
menos o corpo de seu filho, passa a ser o foco do enredo, fazendo com que a estilista
torne-se também uma ameaça e seja considerada ―subversiva‖ pelos militares, já que a
mãe ―procurou meios de denunciar a ditadura militar, adquirindo em seu
comportamento, um caráter revolucionário‖ (PINTO, 2013, p. 3).
Não apenas a busca e a luta dessa mãe chama atenção nesse filme, mas também as
cenas de torturas cometidas a monda de militares da alta patente contra Stuart, cenas que
envolvem o espectador por pouco mais de cinco minutos, cenas que são narradas por
Zuzu enquanto lê a carta recebida. O desespero da mãe é evidenciado pelo espectador
que junto com as cenas impactantes das atrocidades cometidas contra o militante a
personagem demonstra o desespero á medida que lendo a carta, sente ―as mesmas
dores‖ que seu filho, essa duração de mais de cinco minutos, ―onde exibe a tortura física
do filho e, ao mesmo tempo, tortura psicológica da mãe, ocupa espaço muito
significativo na trama‖ (SANTOS, 2009, p. 110)

256
Cenas do filme Zuzu Angel (Sérgio Rezende, 2006). A tortura física de Stuart

Cena do filme Zuzu Angel (Sérgio Rezende, 2006). A tortura psicológica de Zuzu

257
A partir de então, Zuzu tem a certeza da morte de seu filho, e a busca pelos nomes
dos assassinos e pelo corpo de Stuart passam não apenas a definir a trama, mas também
a ser evidenciada em suas coleções, que antes demonstravam o uso de cores vibrantes e
agora retratam pássaros engaiolados, tanques de guerra, soldados e cores neutras,
usando sua moda como forma de protesto e tendo consagrado seu desfile como o
primeiro desfile político do mundo (PINTO, 2013).

Cenas do filme Zuzu Angel (Sérgio Rezende, 2006). Contraposição entre o colorido
desfile do início do enredo e as estampas neutras usadas no desfile de protesto.

258
Justamente por tamanha pressão e resistência, Zuzu é assassinada em 1976, não
sem antes deixar várias cartas contando sua história e a de seu filho, afirmando logo nas
primeiras cenas da película:

Zuzu Angel: Estou com medo de morrer [...] Se eu aparecer morta por
acidente, assalto ou qualquer outro meio [...] terá sido obra dos mesmos
assassinos do meu amado filho Stuart Edgar Angel Jones.

O filme retratou a morte de Zuzu com muitos detalhes e, durante toda a


perseguição ao carro da estilista, a música Apesar de Você, de Chico Buarque, embala
essa cena. Depois de perder o controle do carro e despencar do barranco, dois policiais
militares vão em direção ao carro, enquanto um deles pega o dossiê que continha os
nomes dos assassinos de Stuart e as atrocidades cometidas, o outro, tenta, sem sucesso,
desligar a música que tocava, fazendo com que a voz de Chico Buarque permaneça
ecoando – conforme descreve Steffen, como um ―efeito simbólico de que a arte não
pode ser calada, ou seja, a arte é uma forma de encontrar uma brecha no sistema
opressor da ditadura‖ (STEFFEN, 2012, p.8).

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Grande do Sul, Porto Alegre.

260
SABERES E FAZERES:
COMIDAS TRADICIONAIS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO-MG

Patrícia Alves de Souza


Carla Cristina Barbosa

Resumo: Esse estudo tem como objetivo analisar a alimentação tradicional da cidade de
São Francisco-MG, compreendendo os saberes e o modo de fazer dos pratos. Para
entender a importância desses pratos tradicionais é preciso entender sobre cultura, pois
a alimentação remete aos laços familiares e sentimentais de cada indivíduo e que por
sua vez estão cheios de símbolos e significados que abrangem vários aspectos da
vida. A região possui diversos frutos do cerrado, como o baru e o buriti que por sua
vez, deram origem a doces muito apreciados pela população. Dentre as comidas
tradicionais pesquisadas destacam, os biscoitos como ginete, peta, bolo de puba, pão de
queijo e o fofão. Entre os principais doces estão o doce de buriti, de baru e de mocotó,
beiju, paçoca de carne de sol, rapadura, farinha, peixe com abóbora, pamonha, bolo de
milho, canjica, angu, engrossado e mingau temos ainda, o queijo e o requeijão. Esses
alimentos são vendidos pelos próprios produtores nas feiras, nas festas religiosas e
tradicionais da cidade e região. A pesquisa utilizou fontes bibliografias e orais, a partir
dos relatos foi possível identificar os pratos tradicionais, saberes e modo de fazer.

Palavras-chave: Saberes; Fazeres; Tradição; Alimentação.

Introdução
A cultura se faz em um processo contínuo de preservação, criação e renovação
onde gerações criam e preservam seus costumes com o passar do tempo e dentre esses
costumes se insere a alimentação.
A alimentação faz parte da identidade de um povo, ou seja, ela representa o povo
que o consome, a posição que cada sujeito ocupa e o desenvolvimento da sociedade.
Entende-se que a identidade se forma no cotidiano das pessoas, nas relações
sociais, nas trocas de saberes que reforça a cultura regional.
Ao observar a alimentação incluída no contexto cultural Braga (2004) afirma
que nenhum alimento está livre de associações culturais que lhe são atribuídas pela
sociedade, fazendo parte de um sistema cultural cheio de significados e símbolos.
Dessa maneira, esse trabalho tem como objetivo conhecer os alimentos
tradicionais da cidade de São Francisco-MG. Buscamos compreender os saberes e o
modo de fazer das comidas tradicionais da população, principalmente as comunidades
rurais que mantêm as tradições.

261
Para tal, buscamos identificar os alimentos vendidos na feira da cidade, que são
tradicionais. A partir da analise nas feiras, observamos as comidas presentes nas
principais festas.

Sertão: cultura e tradição


No norte de Minas Gerais ocorreram muitas expedições, segundo Santos
(2010) diversos fatores influenciaram na implantação da agricultura e pecuária nessa
região, como a expansão do colonialismo, questões geográficas, extensas pastagens,
presença de água e a formação das sesmarias.
Desta forma quando ocorreu à ocupação, na região formou-se assim um
pequeno povoado, que segundo Pereira (2013) ―Mesmo após os indígenas serem
sufocados, os sertanejos resgataram muitos de seus costumes e das suas tradições como
as técnicas de plantio e os primeiros meios de transporte fluviais‖.
As influências da natureza e os aspectos culturais dos índios e sertanejos
contribuíram para a formação dos pratos e as técnicas de preparo específico da região.
As pessoas que vieram ocupar a região do norte de Minas tiveram que buscar novas
alternativas para criarem um tipo de alimentação e assim conseguir sobreviver.
Sendo levados a adaptarem seus antigos hábitos alimentares, com
predominância do peixe e frutos do cerrado. Dentre os frutos estão o pequi, e deste fruto
se produz a ―gordura de pequi‖, doces com sua castanha, e é usado também como
complemento para o tradicional prato arroz com pequi. Além do pequi se encontra no
cerrado o buriti, mangaba, cagaita, gabiroba, cajuzinho do cerrado, baru, araticum do
cerrado também conhecida como marolo e cabeça-de- negro, corriola entre outros
frutos.
No sertão de São Franciscano, há uma enorme variedade de frutos e alimentos
em geral. Muitos desses produtos são vendidos nas feiras da cidade, como queijo, doces
de vários tipos, biscoitos, legumes e verduras, polpas de frutas, gordura de pequi,
bebidas, frutas, caldos, milho, beiju e entre outros.
Vários desses alimentos são vendidos pelos próprios produtores nas feiras e nas
festas tradicionais da cidade. As pessoas que se deslocam para essas festas têm
preferência pelos produtos típicos vendidos nas barraquinhas, pois além de serem pratos
muito conhecidos, são muito apreciados e remete a identidade do lugar.
A feira é percebida como um lugar onde é reproduzido essa tradição alimentar
regional, lugar de socialização e preservação de pratos tradicionais.

262
Dentre os locais existentes na cidade que preservam essa cultura foi escolhida
para esse trabalho a feira chamada Associação Comunitária dos Pequenos Feirantes do
Município de São Francisco APPEF-SF/MG.
Através dos dados recolhidos nessa pesquisa que foram feitos nos meses de
setembro e novembro, percebemos que as hortaliças e as frutas são as mais vendidas,
seguidas logo depois pelos alimentos feitos nas casas a partir do conhecimento
tradicional como requeijão, rapadura, queijos, bolos e beijus e feijão tropeiro.

Os saberes e fazeres no sertão


Os pratos tradicionais possuem grande relevância para cultura da cidade e
seguindo o pensamento de Holanda (1994), a acomodação de alimentos é resultado de
um esforço de adaptação ao clima, e as condições materiais.
Partindo dessa perspectiva, a cultura alimentar em São Francisco, é baseada na
pecuária, pesca e a agricultura de subsistência, com o cerrado que proporciona frutos
que fazem parte do cardápio regional. Os pratos tradicionais são derivados desses três
processos.
Dos pratos tradicionais mapeados em São Francisco temos derivados da pecuária
como o queijo, requeijão e a paçoca de carne de sol. Derivados da agricultura e do clima
da região têm os doces como o de buriti, de leite e de mocotó, biscoitos temos o ginete,
peta, fofão, pão de queijo e o bolo de puba, rapadura, farinha de onde deriva o beiju, e a
paçoca. Temos também derivados do milho como o bolo de milho, pamonha, canjica,
angu, engrossado e mingau. Todos com modos de fazer característicos da região e de
famílias que vivem principalmente nas comunidades rurais.
Desse modo, a partir das entrevistas com feirantes e pessoas que detêm o
conhecimento sobre o modo de fazer dos pratos tradicionais da cidade São Francisco,
percebe-se que maneira de fazer de um prato pode variar de acordo com a região e a
tradição da família. Isso mostra o sentimento de pertencimento que é exclusivo de
determinados grupos familiares, como caso do fofão, conforme relata Dona Maria; ―é
um biscoito de tradição, só minha família faz né... minha mãe aprendeu com a mãe dela
e a mãe dela aprendeu com a mãe e foi assim e eu faço ele até hoje.‖
Nessa perspectiva, Feniman (2013), afirma que ―com atitudes apreendidas desde
a primeira infância, os ensinamentos e aprendizados sobre a comida são transmitidos e
recebidos em conformidade com os lugares onde se situam e as crenças que os
cerceiam, remetendo a uma identidade de lugar‖.

263
Nesse processo o modo de fazer dos alimentos depende de vários fatores como o
clima, o tipo de solo, são fatores determinantes para se identificar a preparação de cada
prato.
Vale lembrar que, esses processos estão ligados aos pratos tradicionais que
passaram de geração em geração, trazendo lembrança familiar e uma sensação de
pertencimento a uma determinada época, lugar ou família, processos que estão ligados a
memória.
Através da memória revivemos experiência, lembranças da infância do
aprendizado da vida. De acordo com Fenimam (2013), com o aprendizado podemos
reproduzir nossos conhecimentos ligados ao modo de fazer e aos saberes que
representam o que somos para nós e para os outros. A partir da memória há a
construção da identidade, pois sem ela não haveria o sentimento de pertencimento, que
neste caso, contribui para a valorização dos pratos tradicionais.
Partindo desse pressuposto, os alimentos são compreendidos como parte de um
processo de construção de identidade, reproduzindo e reforçando a cultura regional,
pensada como uma construção cultural os pratos possuem seus diversos significados
que representam também o lado coletivo da sociedade. E que muitas vezes representam
determinada região.
A permanência das comidas tradicionais é influenciada pelo fator econômico,
que muitas vezes proporciona a continuidade na cultura mantendo identidade do grupo e
ou da região. Essa perspectiva é percebida na fala de Silzia que faz o beiju;

É por que é uma coisa que eu gosto é uma geração de renda, vendo desde
quando eu iniciei fazer na feirinha e até hoje eu tenho já tem uns 15 anos já.
Eu vendo os pedaços vendo inteiro, várias forma que o freguês procura né. O
perfil dos clientes são pessoas de toda geração, criança, adolescente, jovem,
idoso, todo lugar da cidade que eu vou fazer o beiju, ele é bem aceito
inclusive nas escolas municipais e estaduais que o inspetor chama e eu vou lá
eu faço e as crianças gostam demais aniversário de criança é também muito
aceito.

Percebe-se nas falas a relevância que esses pratos tradicionais têm na vida dessas
pessoas, configura-se um fator de identidade social que transforma a partir do
conhecimento tradicional em um fator econômico. Em meio as dificuldades as pessoas
encontraram nas comidas típicas uma forma de sobrevivência. Neste caso, feirinha tem
grande importância como local de venda desses produtos onde moradores da cidade e

264
mesmo pessoas que vivem nas comunidades rurais tem a oportunidade de comercializar
seus produtos.
Além das feiras outros pontos da cidade que são encontrados esses pratos são
nas barraquinhas da cidade, ou seja, nas festas religiosas como a festa de Nossa Senhora
do Carmo, São José, Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio. Nas comunidades rurais
são realizadas festas como a festa do milho, da cana, do beiju entre outras.

Os saberes dos pratos tradicionais


Para que um prato se torne um prato tradicional muito se deve a memória, pois é
a partir dela que há a transmissão dos saberes, que vão sendo transmitidos ao longo do
tempo. E na memória que os conhecimentos e as técnicas de produção são repassados
para as próximas gerações. Vale ressaltar, que a comida segue um processo contínuo de
adaptação e aprimoramento, que contribui para dar um sabor único ao alimento, mas
sem grandes alterações em sua estrutura como na fala de dona Geralda;

A minha mãe fazia muito requeijão vendia tão barato era um sofrimento mas,
não tinha valor mas é eu aprendi lá um pouco a minha sogra diz que era a
melhor fazedeira de requeijão e eu melhorei meu requeijão com ela.(...) A
gente gosta de aprimorar as coisas que a gente aprendeu na casa da mãe.

Os alimentos são elaborados e reelaborados constantemente podendo sofrer


pequenas alterações, nas próprias receitas como foi observado mudanças dos utensílios
onde são feitos alguns produtos.
Independentemente das adaptações realizadas nos alimentos o que se pretende
ressaltar é a tradição das comidas da região. Percebem-se nas entrevistas realizadas, os
conhecimentos passados de gerações anteriores e mesmo com as adaptações não
trouxeram grandes mudanças no modo de fazer das receitas, existe uma seqüência que
deve ser seguida, caso contrário ―sai do ponto‖.
A maioria dos conhecimentos sobre as receitas que, foram transmitidos
ocorreram por oralidade, muitos recorrem à ajuda dos filhos na produção e estes no
cotidiano aprendem com seus familiares.
Através da prática se adquire experiência e com ela uma forma de sobrevivência
e preservação da cultura alimentar, que são repassados através dos tempos, mas que por
sua vez podem se perder se caso não houver, novas gerações dispostas a receber o
ensinamento. Segundo Hall (2003; 143) ―na experiência todas as práticas se

265
entrecruzam dentro da ―cultura‖ todas as práticas se interagem ainda que de forma
desigual e mutuamente determinante‖.
A partir da prática, lidando com o alimento no dia- a- dia se pode aprender todo
o processo do preparo do prato, é através da experiência advinda com a prática que se
chega ao delicioso prato e também ao saber que depois será transmitido para novas
gerações.
A cozinha é visto como lugar de construção do prato, pois é nela que ocorrem as
trocas de experiência que revivem histórias, constroem e preparam os mais deliciosos
pratos, um espaço de socialização e também de continuação da cultura alimentar. Com o
passar do tempo os pratos vão se adaptando de acordo com as necessidades impostas,
sem ter grandes modificações no modo de fazer de cada prato.
Nas falas das pessoas entrevistas, percebemos como está se tornando cada vez
mais difícil a transmissão desses conhecimentos, dentre eles muito já se perdeu devido à
entrada de novos utensílios tecnológicos numa forma de ―facilitar‖ a vida das pessoas,
mas que acabaram ocupando o lugar dos instrumentos considerados artesanais.
Outro fator é à disposição das novas gerações, apesar dos ensinamentos não tem
a pretensão de continuar a fazer tais pratos. Muitos passaram para os filhos e para outras
pessoas que desejavam aprender aquele prato por considerá-lo saboroso.

Como se faz? Uma análise dos fazeres das comidas tradicionais de São Francisco-
MG
Com o desenvolvimento tecnológico houve a adaptação de muitos instrumentos
para a produção sendo utilizados numa forma de facilitar a produção dos pratos
tradicionais.
As receitas tradicionais se adaptaram as mudanças como no caso do queijo, onde
passou a ser usado no seu modo de fazer um produto industrializado como o coalho.
Para obter o queijo, a rapadura e a farinha houve a troca de utensílios tornando o seu
preparo mais rápido e prático.
Desse modo, alguns utensílios artesanais foram substituídos como as fôrmas
onde eram colocados os queijos, por exemplo, era de madeira como relata dona Geralda
―As fôrmas antes eram de madeira ou de cabaça, as fôrmas da casa da minha sogra era
dessa grossura a madeira redondinha de duas partes e amarrava. Na casa da minha mãe
era de cabaça nem tinha plástico naquela época‖.

266
Os pratos sofreram algumas mudanças, adaptações ao ambiente, em que estavam
inseridos e assim surgiram novos mecanismos que ajudam no preparo da comida. O
mesmo processo se dava no preparo do milho para fazer o mingau, angu, canjica e
pamonha, no modo de fazer a paçoca de carne de sol.
Em todos esses pratos se usava utensílios como a peneira, pilão e o ralador, hoje
utilizam com frequência o liquidificador, para uma maior facilidade e rapidez.
Para se preparar um prato depende de vários fatores como encontrar um ponto
certo para o alimento, que muitas vezes não estão descritos no manual, depende também
do período certo. No caso da farinha e da rapadura se tem os meses específicos para o
bom preparo.
Assim, cada alimento tem seu tempo, um modo de preparo diferente, mas possui
também um jeito próprio de se plantar e colher os ingredientes que formam esses
diversos pratos. Como na fala a seguir de seu Vicente: ―Eu planto a mandioca eu
mesmo que planto, chega no tempo das águas tira a maniva que é a semente, corta 3
brotinhos, põe na terra abre a terra e depois tampa‖
Muitos dos ingredientes utilizados das receitas são encontrados na feira que tem
grande parte dos seus produtos provenientes do meio rural. Aliás, muitos vendedores da
feirinha moram nas comunidades rurais. No preparo do beiju usa-se goma, para os
biscoitos, queijo, pão de queijo, ginete e a puba para preparar o bolo de puba são usados
ingredientes encontrados na feirinha.
A paçoca de carne de sol feita de maneira tradicional com o uso do pilão tem
seus ingredientes como à carne e a farinha encontrada na feirinha ou no supermercado.
No caso dos doces, o leite é comprado dos produtores rurais que vendem o produto pela
cidade. Quando pronto o doce muitas vezes é vendido na feira, e ou diretamente aos
vendedores por encomenda.
O requeijão e o queijo são produzidos no meio rural e levados para ser vendido
na feira, o peixe com abóbora outro prato tradicional da cidade pode ser muitas vezes
encontrado na cidade e também na casa de pescadores e ou em restaurantes.
A rapadura, encontrada na feira da cidade de São Francisco é importante
ingrediente para produção de doces tradicionais e está presente desde o período colonial
e surgiu no Brasil no período da produção do açúcar. Alimento resistente, que serve
como sobremesa depois do almoço. Seu Afonso conta que para fazer a rapadura tem
que: ―Corta a cana, passa pro engenho, passa tira o caldo coloca no tacho e quando abrir

267
a fervura, limpa né faz a limpeza na garapa(...). Ai depois esperar até chegar no ponto
passa pra grade‖.
Outro alimento que é muito conhecido na cidade e que no seu preparo usam-se
derivados da mandioca é o beiju e a tapioca que é também chamada de beiju. Porém, há
diferença entre beiju e a tapioca, segundo Cascudo (2011, p.97), ―O beiju é da mesma
massa da farinha de mandioca. A tapioca é da goma, retirada por decantação, da
primeira água da manipueira, na primeira operação com a mandioca ralada‖.
O beiju feito na cidade leva diversos receios, diferentes dos que são feitos em
algumas comunidades zona rural. Os recheios muitas vezes são comprados na própria
feirinha.
Da goma ou o polvilho se faz os biscoitos. Existe uma variedade de biscoitos,
em São Francisco e dentre os biscoitos mais conhecidos são: ginete, peta e pão de
queijo, mas existem biscoitos que são tradicionais, mas, no entanto são pouco
conhecidos, dentre esses biscoitos destacaremos o biscoito de fofão. Os biscoitos estão
muito associados aos bolos, presentes principalmente em reuniões familiares e festas
principalmente festas tradicionais. Dentre os bolos destaca o bolo de puba que é feito da
mandioca, bolo de milho e o bolo de fubá.
No modo de preparo dos doces, a palavra facilidade também entrou no seu
processo, na região é produzida uma variedade de doces, tudo se aproveita para se fazer
o doce. Dentre essa variedade de doces os que procuramos analisamos são o doce de
buriti, doce de baru, doce de leite e o doce de mocotó, que é conhecido pelo seu sabor
exótico recebe este nome por ser feito das patas do gado sem o casco.
Outro prato tradicional é o queijo e o requeijão, que são derivados do gado uma
das bases de subsistência da região. Assim como os outros pratos acima o queijo e o
requeijão são alimentos feitos de forma caseira e são também encontrados na feirinha.
Segundo dona Maria de Fátima: ―melhor eu fazer o requeijão pra ter sempre dinheiro
por que sempre aparece uma coisa pra pagar‖ os produtos caseiros são uma renda a mais
para essas pessoas tanto para as que moram na cidade como no meio rural.
Apesar de serem feitos a partir do leite o requeijão e o leite são preparados de
forma diferente, no preparo requeijão, coloca o leite para coalhar e quando formar uma
nata por cima retira e guarda. Lembrando que o leite tem que coalhar naturalmente,
quando coalhar coloca no fogo para esquentar e côa na peneira, fazendo da massa
bolinhos. Quando for fazer o requeijão, desmancha os bolinhos que foram feitos, e
coloca o leite quando começar a ferver, côa novamente ficando apenas a massa. Coloca

268
a nata que foi retirada do leite no fogo e quando transformar em gordura coloca a massa
e meche.
Entre pratos tradicionais da cidade, destaca-se o peixe com abóbora considerado
um prato típico da cidade de São Francisco. Para tal, foi entrevistada uma barranqueira
pescadora, que faz esse prato. O tradicional peixe com abóbora é feito com o peixe do
rio, e a abóbora da vazante, geralmente plantadas no quintal, mas devido às dificuldades
já relatadas esse prato se tornou difícil na mesa de muitos. O tempero é muito
importante no preparo, principalmente se for caseiro, pois traz um sabor diferenciado
para o prato. Corta a abóbora e o peixe e coloca na panela em camadas junto com os
temperos.
Assim, a comida vai além do simples fato de saciar a fome, consegue expressar
o lado afetivo, relembrar histórias familiares, reunir pessoas. Mostra também o lado
cultural de determinada região, que com suas características naturais acaba dando
formas aos hábitos alimentares e as identidades locais.

Considerações finais
Para a construção desse trabalho, foram entrevistadas doze pessoas dentre elas
moradores do meio rural e da cidade de São Francisco. Nas comunidades rurais a
escolha se deu onde ocorrem festas tradicionais, como a festa do milho, e a festa da
cana. Na cidade procuramos entrevistar vendedores da feirinha local onde são
encontrados esses pratos tradicionais.
A partir das entrevistas foi possível compreender os processos de preparação de
cada prato, quais as rupturas e as permanências ocorridas no modo de fazer, e os saberes
que são até hoje repassados. Percebe- se que a preparação da comida pode sofrer
algumas adaptações, como a utilização dos utensílios que foram aprimorados ou
substituídos.
Desta forma faz se relevante abordar que a alimentação também é parte da
história, onde devemos preservar para futuras gerações repassando os saberes e fazeres.

269
Fontes orais
Maria, Silzia, Geralda, Vicente, Afonso.

Referências
BARBOSA, Carla Cristina. Saberes Tradicionais dos Curandeiros: as plantas
medicinais nas feiras e mercados do Norte de Minas Gerais. Montes Claros,
UNIMONTES, 2013.
BRAGA, Vivian. Cultura Alimentar: contribuições da antropologia da
alimentação. In: Saúde em Revista, Piracicaba, 2004.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo; Global;
2011.
DIAS, Renato da Silva, História, Cultura e Sertão In; Sertão: identidade e
religiosidade, Carla Cristina Barbosa (org.). Montes Claros, MG: Unimontes, 2009.
FENIMAN, Stefany Ferreira. Alimentação e identidade: desvelando a construção
identitária por meio de Hábitos alimentares. Ciências Sociais em foco: faces do Brasil
no mundo contemporâneo Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de
Outubro de 2013. Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências
Sociais.
FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. 49. ed. São Paulo: global, 2004.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
HOLANDA, Sergio Buarque. Caminhos e fronteiras 3 ed. São Paulo. Companhia das
Letras. 1994.
MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de, Daquilo que se come: uma história do
abastecimento e da alimentação em Belém (1850-1900) dissertação de (mestrado)
Universidade Federal do Pará; Belém, 2009. Disponível em:
repositório.ufpa.br/jfpui/handle/2011/4581 acessado em: 03/06/15.
PEREIRA, Adriana Rodrigues. Navegar era preciso: A vida e a economia ribeirinha
através dos vapores no médio são Francisco mineiro na primeira metade do século
XX. Trabalho de conclusão de curso. Universidade Estadual de Montes Claros. São
Francisco, 2013.
SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos, A comida como lugar de história: Questões e
Debates, Editora UFPR Curitiba, n°54, p.103-124, jan/jun 2011. Disponível
em:http://ojs.c3sl.vfpr/ojs/indexphp/historia/article/download/25760/17202Acessado
em: 22/04/15.

270
REMANESCENTES QUILOMBOLAS NO BRASIL E A REPRODUÇÃO DO
SISTEMA ESCRAVOCRATA NO SÉCULO XXI: UMA ANÁLISE ACERCA DA
“ ESCRAVIDÃO” E EXPLORAÇÃO SEXUAL.

Patrícia Fernanda Heliodoro dos Santos

Resumo:O presente trabalho faz uma abordagem social sobre a figura da mulher
remanescente quilombola, que ainda vivencia a escravidão doméstica e sexual no Brasil.
Este estudo foi viabilizado pelas discussões e debates teóricos sobre as questões de
gênero, principalmente no que caracteriza as estratégias de controle masculino sobre a
mulher negra para mantê-la nos espaços privados. Pretende-se analisar os mecanismos de
estratégias de poder utilizados pelos homens no espaço privado, assim como a influência
dos homens em perpetuá-las no século XXI. Metodologicamente baseou-se este trabalho
em estudos bibliográficos associado á analise qualitativa de um vídeo postado no youtube
produzido pela TV Record intitulado ―Repórter Record Investigação: Eternas Escravas‖
em 11de junho de 2015. O programa mostra meninas e mulheres que relatam sobre a
escravidão doméstica e sexual de mulheres remanescentes Quilombolas do Quilombo
Kalungas, localizado no município de Cavalcante – GO, a 320 KM de Brasília-DF. O
referencial teórico do estudo consiste em autores como Carlo Ginzburg, Stuart Hall,
Michel Foucalt, Margareth Rago, Patrícia Matos, Flavia Fernandes de Souza e diversos
outros. Conclui-se que, as mulheres negras, ainda são obrigadas a reprodução de práticas
domésticas e sexuais do período escravista no Brasil Colônia.

Palavras-chave: Escravidão; Poder; Mulheres; Remanescentes Quilombolas; Estratégia


de Controle.

Introdução
No nosso cotidiano vivemos cercados por símbolos e signos diversos, que tem
significados diferentes para determinadas coisas e se tornam realidade concreta nas nossas
vivências. Desde que nascemos, crescemos e chegamos à vida adulta pensamos,
trabalhamos e vivemos tradições criadas por nós e/ou por outros que estão ou não
próximos de nós. Muitas coisas nos parecem diferentes, pois estão enraizadas na cultura.
Sendo assim, existe a necessidade de abordar as questões étnicas raciais com
olhares ligados, não a preconceitos, mas de forma mais compreensiva a partir de um viés
ético, que dissolva modelos enraizados, não deixando nebulosa a nossa compreensão de
mundo e dos que nos cercam.
O presente trabalho fez uma abordagem social sobre a escravização doméstica e
sexual de mulheres de remanescentes quilombolas. Pretendeu-se com o estudo problematizar
os mecanismos de estratégias de poder utilizadas por homens brancos nas práticas
coronelistas no Brasil do século XXI, para a perpetuação de costumes escravistas, assim
como exercem influências de forma direta ou indireta sobre as famílias dessas mulheres.

271
O estudo baseou-se na análise qualitativa de um vídeo produzido pela TV
Record e postado no youtube intitulado ―Repórter Record: Investigação Eternas Escravas‖
em 11 de junho de 2015. Ele trata de mulheres remanescentes do Quilombo Kalungas,
localizado a 320 Km de Brasília, DF. Para análise do discurso produzido na matéria
jornalística foi utilizado autores como Carlo Ginzburg, Stuart Hall, Michel Foucalt,
Margareth Rago, Patrícia Matos, Flavia Fernandes de Souza e diversos outros.
A realização do estudo possibilitou a pontuação de alguns fatores e
comportamentos comuns às famílias que, de forma inconsciente, ainda produzem práticas
escravistas. Considerou-se que, os envolvidos usam como estratégia, a reprodução do
modo de produção escravista conforme papel desenvolvido pelos agentes envolvidos.
Para tanto, narramos três histórias descritas pelo referido vídeo, visando compreender
melhor essa realidade.

Gênero e relações sociais: uma análise acerca das mulheres do quilombo Kalungas
A formação da identidade nacional delimitada por uma cultura homogênea revela
os negros escravizados e transformados em mercadoria e mão de obra, os quais perderam
o contato com suas origens e cultura e, por isso foram reduzidos ao espaço da
insignificância.
A alternativa encontrada pelos negros para sair deste espaço onde foram
diminuídos em sua integridade, seria assumir a identidade brasileira criada pelos europeus
imigrantes que, segundo Ribeiro (2000) apud Jaime (2006), estes homens negros se
persuadiram e não faziam parte da cultura de seus antepassados e, dessa forma, fazendo
nascer uma nova sociedade formada pela mestiçagem dos europeus, índios e negros.
Surge assim, o povo brasileiro.

A nacionalidade é uma relação histórica e política que os membros de distintos


grupos sociais portadores, de diferentes tradições culturais e posicionados
desigualmente na estrutura da sociedade constroem e reconstroem
permanentemente, não apenas negociando e pactuando, mas também lutando,
disputando a partir dessa situação concreta de desigualdade (JAIME, 2006,
p.120).

É importante compreender que, a sociedade de uma circunscrição territorial (uma


nação) apresenta configurações culturais que podem variar conforme a posição ou
segmento social dos indivíduos. Temos no seio de uma mesma sociedade ―nacional‖, o
que muitos autores classificam, genericamente, como uma cultura ―dominante‖ (culta) e
uma cultura ―dominada‖ (popular). Na análise em questão, essas determinações culturais

272
não são entendidas de forma engessada. Há o que Carlo Ginzburg (1998) chama de
circularidade cultural.
Assumindo suas origens africanas, os quilombolas se contrapõem a nova
identidade brasileira, onde havia se tornado invisível como mestiços dessa nova nação e,
por isso, durante séculos, os negros foram desqualificados e relegados ao esquecimento.
Nesse sentido, a possível explicação para a visão pejorativa dos mesmos está em sua base
histórica em que:

O quilombo foi apresentado pela historiografia tanto como objeto individual


como coletivo. Sua repercussão ultrapassou os limites da localidade onde
estava instalado e passou a representar um problema institucional. Suas práticas
passaram a ser de interesse de todos aqueles que poderiam defender o Império
Português. Suas representações, sempre de cunho pejorativo, passaram a
significar ameaça constante e motivo das mais variadas formas de repressão.
Seus habitantes eram considerados facínoras, muito mais que rebeldes, pelo
caráter indomesticado, sempre prontos para a fuga (SANTOS, 2013 p. 16).

Mesmo com a demarcação dos territórios quilombolas através da lei 10.639/ANO,


que promulgada promove o reconhecimento da identidade cultural do negro no fim do século
XX, os grupos subalternos, ainda sentem o preconceito e a discriminação de uma sociedade
que defende uma pseudo superioridade da raça branca e a inferioridade dos negros.
A sociedade brasileira apresenta, sob o ponto de vista cultural99, a configuração de
uma burguesia capitalista, ainda que seja emergente. O que a faz praticar padrões de
comportamento ali constituídos, sendo eles, em certas circunstâncias, segregativos em
termos de gênero, raças, costumes, consumo, etc. Segundo Mediato, ―a sociedade atual
vive em uma eterna busca pelo status100, fato que, entre outras questões, está associado ao
consumo: o ter se sobrepõe ao ser.‖101 No contexto do capitalismo, ao mesmo tempo em
que ele segrega em algumas áreas, também busca a inserção no âmbito do mercado de
consumo. O status, nesse sentindo, está vinculado a ostentação de objetos, o que traz a
sensação de poder sobreposto diante dos demais membros de uma sociedade. Diante
dessa discussão, Foucalt menciona:

99
Cultura é entendida aqui, conforme as definições do culturalista britânico Raymond Willians enquanto
um modo de vida global onde elementos se inter-relacionam no tecer social dos indivíduos formando
estereótipos exercidos coletivamente.
100
De acordo com o dicionário de Sociologia, o status é o lugar ou posição que a pessoa ocupa na
estrutura social de acordo com o julgamento colectivo ou consenso de opinião do grupo. Portanto, o status
é a posição em função dos valores sociais correntes na sociedade. Pode apresentar-se como status legal
e/ou social. Status social: abrange características da posição que não são determinados por meios legais.
Portanto, difere do status legal por ser mais amplo e abarcar outras características de comportamento
social além das estipuladas por lei.
101
MEDIATO, Luciane. Visibilidade pelo poder do consumo. Disponível em:
<http://www.metodista.br/cidadania/numero-69/visibilidade-pelo-poder-do-consumo> Acesso em: 14
nov. 2014.

273
[que] o poder deveria ser concebido como ―estratégia‖; ele não seria, portanto,
um privilégio que alguém possui (e transmite) ou do qual alguém se ―apropria‖.
Mais preocupado com os efeitos do poder, Foucault diz que seria importante
que se percebesse esses efeitos como estão vinculados ―a disposições, a
manobras, a táticas, a técnicas e funcionamentos‖ (FOUCAULT, 1987, p. 29).

Relativo às relações de gênero na sociedade contemporânea, o tema proposto revela


que elas têm sido objeto de debate e nos mostra a construção da dominação masculina
totalmente atrelada às relações sociais de poder e as políticas de masculinidade, que são
sobretudo históricas. E nesse sentido, também se referindo a construção da identidade dos
corpos aos quais estão inseridas as relações de gênero102 no seio da sociedade moderna Hall
diz que, ―um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isto fragmentando as paisagens culturais de classe,
gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinha fornecido
sólidas localizações como indivíduos sociais‖ (HALL, 2006, p. 9).
Segundo Scott, a categoria relações de gênero vem das experiências das feministas
com o objetivo em deixar claro, a inadequação das teorias existentes sobre gênero, que
não conseguia explicar as diferenças entre homens e mulheres. As percepções de gênero
são distintas entre as sociedades e momentos históricos, considerando as diversidades
culturais, segundo Lopes, ―Culturais compreendemos os sujeitos como tendo identidades
plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que
podem até mesmo, ser contraditórias. Assim o sentido de pertencimento a diferentes
grupos- étnicos, sexuais de classe e gênero‖ (LOPES, 1997, p. 24).
A mulher tem conquistado cada vez mais espaço no âmbito público, dessa maneira
contribui para a problematização acerca das atividades que, anteriormente, restringia
apenas ao universo masculino. A inserção da mesma na esfera pública questiona as
representações que estão associadas ao conceito de trabalho, o qual tem sofrido
adaptações e readaptações dentro do próprio modelo capitalista de produção, a exemplo
de trabalho formal e informal.
Segundo Shorter apud Goldenberg (2004), as mulheres inseridas no mundo do
trabalho têm um aumento considerável de poder, uma vez que sua autonomia também se
torna maior do que as que não estão inseridas nesse mesmo contexto.
102
Segundo Scott (1990), Gênero foi a palavra usada pelas feministas como uma maneira para se referir a
organização social da relação entre os sexos, e que se caracteriza pelas relações sociais entre homens e
mulheres onde, se pressupõe uma hierarquia, portanto um só existe na afirmativa de um e na negação do
outro. Se historicamente desde os tempos mais remotos a nossa sociedade tem sido patriarcal em quase
todas as sociedades, podemos afirmar ainda que, o conceito de Gênero se limitava ao domínio da família.

274
Sobre isso, Rago (2004) considera que, as mulheres estão inovando nas atividades
que exercem e nos ambientes que ocupam, podendo ser privado ou público, fazendo com
que a diferença entre homens e mulheres se destaque, mesmo que tenhamos algumas
mulheres reproduzindo a cultura dominante masculina, inclusive as estratégias de ação e
poder. Foucalt assevera que, o ―problema que está em jogo para mim é este: no fundo não
são precisamente os dispositivos de poder, com que essa palavra-―poder‖ – ainda têm de
enigmático e que vai ser preciso explorar o ponto a partir de que se deve explorar as
práticas discursivas‖ (FOUCALT, 2006, p. 18).
Por isso, Bourdieu (1995) afirma que, a dominação masculina existe e não precisa
de justificativa, pois está totalmente assegurada na forma. Assim as relações sociais de
gênero se estabelecem ao longo do tempo na sociedade.

Os Kalungas e a busca pelo fim da escravidão no século xxi


Os remanescentes quilombolas estiveram afastados da convivência com o homem
branco por um período de 300 anos e somente a partir da década de 1960, esse contato vai
ser mais estreito. Contudo, o que vai aproximar o Quilombo dos Kalungas do município
de Cavalcante é a estrada dentro da reserva construída pelos remanescentes quilombola,
deixando-os, igualmente vulneráveis. O contato com a cidade fez com que os mais jovens
fossem em busca do que não tinham no Quilombo, acreditando que teriam melhores
condições de vida saem em busca de educação.
Foi o que aconteceu com Soraya, nome fictício para manter a integridade da
vítima de 16 anos. Ela foi abusada dos 10 aos 11 anos de idade. Seus pais acreditavam
que a menina teria melhores condições de vida e, para isso, a enviaram para cidade, onde
iria estudar acolhida pela família do empresário Neovalto Cândido de Souza, ex-
Secretário de Finanças de Cavalcante. A promotora do município afirma que, ―os
quilombolas vem pra cidade, sobretudo em busca de estudo e ali eles fazem como se fosse
uma troca, uma troca de favores‖ (TV RECORD, 11 jun. 2015).
A expectativa da acolhida da menina resultaria em ter um quarto e comida para se
alojar, no entanto, ela descobre que seria obrigada a realizar serviços domésticos, entre
eles, passar roupa e limpar a casa sem remuneração. Com o decorrer de alguns meses,
Soraya começa a ser abusada sexualmente. Em depoimento para Polícia Civil e Ministério
Público, Soraya relata o abuso: ―Num outro dia, quando... chegou da escola e estava
limpando o quarto, o denunciado chegou, trancou o quarto, tirou a roupa, despiu a menor
jogou a força, em cima da cama, tendo mantido relação sexual com a vitima‖ (TV

275
RECORD, 11 jun. 2015, 21:45). Segundo o relato da vítima, verifica-se que ainda existe
uma reprodução ancestral da casa grande e senzala :

(...) logo a primeira vez que Neovalto estuprou a declarante, esta contou para a
esposa de Neovalto, que não disse nada; que contou para sua mãe e para seu
pai; que seu pai disse que iria na Delegacia porem não foi; que a declarante viu
que Neovalto conversou com seus pais e disse aos seus pais que não procurasse
a delegacia (TV RECORD, 11 jun. 2015, 22:08).

Os abusos somente chegaram ao fim com a intervenção do Conselho Tutelar, que


retiraram Soraya da casa do acusado, pois o exame de corpo de delito comprovou
conjunção sexual. Entretanto, o que mais assustou as autoridades nesse episódio foi o fato
da menina retirar a queixa da Delegacia, alegando que não manteve relações sexuais com
o acusado, fato este, que contribuiu para a absolvição do acusado. No emaranhado dessa
história é intrigante que, a família de Soraya ganhou algumas cabeças de gado.
O relato de Raissa é sobre as práticas escravistas, que ainda acontecem no século
XXI, em um país onde a abolição da escravatura foi promulgada em 13 de maio de 1888.
Raissa, desde cedo aprendeu as tarefas de casa e foi vítima de abuso sexual dos 8 aos 12
anos. Ela começou a ser abusada em casa pelo seu padrasto. A mãe de Raissa perdeu a
sua guarda, sendo considerada incapaz pelo Conselho Tutelar por ser alcoólatra.
Raissa, nessas circunstâncias, teve a guarda concedida ao vereador, Jorge Cheim,
no município de Cavalcante, estado de Goiás, que abriga uma parte da comunidade
Kalunga. Segundo relato da menina, no início, a vida com a nova família era boa. Porém,
a partir do momento que foi violentada e não teve a oportunidade de se defender tudo se
transformou. Ela foi amarrada e violentada. No dia seguinte ao abuso, ela contou para
nora do vereador, que ignorou a queixa. Contudo, a nora do vereador foi a farmácia e
comprou um medicamento para que Raissa tomasse e fez com que não houvesse denúncia
as autoridades locais.
Somente depois de um mês, Raissa foi ao Conselho Tutelar fazer a denúncia e
constatado o abuso sexual. O Conselho Tutelar do município não tinha psicólogo para
atender Raissa, assim como outras demandas que surgiriam. Além da precariedade de
recursos materiais e humanos, o Conselho Tutelar é coagido e atacado constamente,
segundo relato das assistentes sociais em menos de cinco meses foram depredados por
duas vezes. As conselheiras foram ameaçadas com constância e, ainda relataram que os
agressores subornaram os familiares para que os mesmos não denunciassem. Foi o que
aconteceu com o caso de Raissa. Seu pai a procurou e ofereceu a quantia de R$ 400,00
(quatrocentos) para que ela retirasse a queixa.

276
Outra história apresentada no vídeo é o de Stela. Ela foi transformada em escrava,
quando perdeu seus pais e foi morar com um meio irmão de 28 anos na cidade. Esse seu
irmão acabou por escravizá-la para trabalhos domésticos e abuso sexuais, inclusive
obrigando-a a participar de orgias sexuais. Para que Stela aceitasse essas práticas era
açoitada constantemente pelo irmão, que acabou sendo denunciado por um vizinho. Ele se
encontra foragido da justiça.
Para a historiadora Scott (1992), a história da humanidade vem se desenrolando
através dos séculos pela constante luta da minoria contra maioria, assim ―as mulheres
tiveram uma história separada daquela dos homens, em consequência a história das
mulheres concerne ao sexo e a família e deveria ser feita separadamente da história
política e econômica‖ (SCOTT, 1992, p.?). Nesse contexto se estabelece os papéis a
serem desempenhados pelas mulheres, tais como o exercício da maternidade, da
irritabilidade e, porque não dizer, da construção de sua própria identidade, conforme
afirma Del Priore:
Na família, os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram
responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida a
partir dos modelos femininos tradicionais- ocupações domésticas e os cuidados
dos filhos e do marido – e das características próprias da ―feminilidade‖ como
instinto materno, pureza e resignação e doçura (DEL PRIORE, 2011, p.160).

Os homens que tentam repetir esta relação de dominação masculina vão ter
problemas com as mulheres, sobretudo nos tempos atuais. Enfim, Connell diz que,
―esforçar-se demasiadamente para corresponder a norma masculina pode levar a violência
e dificuldades nas relações com as mulheres‖ (CONNELL, 1995, p.190).

Considerações finais
Os atores sociais são condicionados a um contexto social e histórico, onde suas
práticas estão diretamente ligadas aos padrões culturais vigentes de uma determinada
sociedade e esses agentes são meros reprodutores de uma cultura massificante.
A sociedade brasileira do século XXI, ainda reproduz práticas e modelos escravistas
do período colonial do país. A História do nosso país não pode ser compreendida de forma
isolada ou generalizante. A escravização de meninas e mulheres remanescentes
quilombolas reforçam que, mesmo o estatuto da igualdade racial, conforme estabelece a Lei
nº 12.288/2010, apresenta uma pressuposição de que aos remanescentes quilombolas
haveria a promoção da igualdade de oportunidades, não descartando o contexto econômico

277
no mundo do trabalho. Contudo, na prática o que acontece ainda, são atos criminosos que
atentam contra a vida e a dignidade dessas mulheres.
No que se refere aos relatos da reportagem ―Eternas Escravas‖, considera-se que,
mesmo com a intervenção do Estado Brasileiro em garantir direitos iguais para todos,
ainda reproduzimos no âmbito privado práticas consideradas ilícitas e criminosas perante
a lei brasileira. Pode-se afirmar que, a mentalidade do povo brasileiro, ainda está
arraigada a uma prática de exploração do trabalho e da dominação dos mais fortes para
com o mais fraco.

Referências

BRASIL. Ministério da Justiça. Constituição Federal da República, 1988. Ato das


Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 68, Brasília, 2002.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. In: Revista Educação e Realidade, 1995,
p.133-177
CONNEL, Robert W. Políticas da masculinidade. In: Educação e Realidade, porto
Alegre, v.20, n. 2, jul/dez, 1995.
REPÓRTER Record Investigação: Eternas Escravas. Disponível em:
<http://noticias.r7.com/reporter-record-investigacao/reporter-record-investigacao-revela-
a-escravidao-domestica-e-sexual-de-criancas-negras-e-pobres-12.06.2015>. Acesso em:
27 abr. 2016.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Editora Planeta, 2011.
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estruturalista. Petrópolis, 4 e. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
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Marisol Recaman e Suely de Oliveira (Org.). A mulher brasileira nos espaços públicos e
privados. 1 ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
SANTOS, Susi Karla Almeida Santos. 2013, ?fls.“A gente não tinha direito a nada”:
representação sobre quilombos e remanescentes de quilombolas. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Universidade Estadual de Montes Claros, 2013.
SCOTT, Joan W. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história:
novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

278
HISTORIOGRAFIA DA ENGENHARIA DE SISTEMAS NO BRASIL E SUA
IMPORTÂNCIA NO MERCADO GLOBALIZADO DO SÉCULO XXI

Ramón Souza Silva Rodrigues


Luís Paulo Tolentino Fernandes

Resumo: Objeto de estudo: Este trabalho contextualiza-se na busca pela identificação


e conhecimento da história da Engenharia de Sistemas no Brasil, sua necessidade,
atuação, perspectivas, regulamentação e espaço no mercado internacional para o século
XXI. Metodologia aplicada: Utilizou-se como vertente metodológica a pesquisa
bibliográfica, buscando desenvolver um estudo que contenha a história e a historiografia
da Engenharia de Sistemas no Brasil. Resultados Obtidos: Historicizar a Engenharia
no Brasil é um desafio interdisciplinar, haja vista sua vasta aplicação e estrito
relacionamento com todas as ciências conhecidas como a química, a física, a biologia e
a computação. Com avanço contínuo das Engenharias não era mais possível confiar nos
métodos e técnicas existentes, uma vez que eram demandados sistemas com
complexidade cada vez mais elevada, assim, surgiu de forma excepcional a Engenharia
de Sistemas como um campo interdisciplinar das Engenharias que aborda o
desenvolvimento, organização e concretização destes sistemas artificiais de elevada
complexidade. Comparada a outros campos de estudos da Engenharia como a
construção civil, mecânica e computação a Engenharia de Sistemas é
surpreendentemente recente tendo se fortalecido principalmente no período da
Revolução Industrial, onde a demanda por melhores meios de produção fortaleceram as
bases da Engenharia de Sistemas. A primeira menção à Engenharia de Sistemas veio
dos Laboratórios Bell em 1940, nos Estados Unidos, mas somente em 2012 foi fundado
o capítulo brasileiro do International Council on Systems Engineering – INCOSE,
desde então as atividades da Engenharia de Sistemas vêm sendo acompanhadas de perto
pelo órgão que visa documentar e compartilhar avanços da Engenharia de Sistemas no
Brasil. A Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e a Universidade Estadual de
Montes Claros – Unimontes foram pioneiras nos estudos de Engenharia de Sistemas não
somente no Brasil, mas em toda a América Latina, iniciando os cursos de graduação na
área em 2010 e 2011, respectivamente, tendo sido suas primeiras colações de grau em
2015.

Palavras-chave: Historiografia; Engenharia de Sistemas; Engenharia no Brasil;


História da Ciência.

Introdução
O trabalho de Almeida (2011) reuniu um quantitativo de referências sobre a
história e origens da Engenharia de Sistemas, especialmente focadas na história das
guerras paralelamente ao desenvolvimento da indústria bélico-aeronáutica. Em
PROJECT MANAGEMENT INSTITUTE (1996, p. 4 apud ALMEIDA, 2011, p. 56)
é traduzida a seguinte passagem:

279
A humanidade cria conscientemente objetos e conhecimentos desde
quando atingiu níveis de tecnologia e cultura suficientemente elevados.
Qualquer criação consciente, tangível ou intangível, mesmo a mais tosca
ferramenta ou arma, de madeira ou pedra, pode ser chamada de um
projeto por ser um empreendimento organizado, temporário e com um
objetivo definido.

Posteriormente ainda destaca que as obras e mecanismos construídos pelo


homem no passado foram ficando cada vez mais complexos à medida que a
necessidade aumentava. O uso da água e do vento para mover os mecanismos foram
aos poucos substituindo a força dos animais. As grandes navegações exigiram
grande quantidade de conhecimentos como a construção naval de grande porte,
meteorologia, cartografia, artilharia naval e etc. Os navios de navegação oceânica do
século XVI eram os mais complexos sistemas até então construídos, necessitando de
grande quantidade de conhecimentos, planejamento, treinamento e logística
(ALMEIDA, 2011, p. 57).
Seguindo a linha de pensamento, foi durante o período da Revolução Industrial que
se verificou, na segunda metade do século XVIII, os aperfeiçoamentos da máquina a
vapor, que asseguraram um novo elemento energético, superior à força da água, do
vento, dos animais e do homem, manifestando-se sobretudo na produção têxtil e
metalúrgica (SANTOS, 2004, p. 63). A introdução dessas máquinas a vapor na
indústria, o grande aumento na capacidade de produção e também do número de
habitantes das cidades catalisaram inovações em transporte público, iluminação a
gás e viu-se o surgimento de muitas tecnologias até então não conhecidas como a
lâmpada incandescente, telégrafo, telefone, rádio e motores elétricos, juntamente
com o desenvolvimento da Engenharia Elétrica, na virada do século XIX para o
século XX.
A elevada demanda por produtos e a transição da produção artesanal para a
produção industrial em massa precederam inovações nos processos de produção,
fabricação e logística e os conhecimentos até então utilizados se expandiram de tal
forma que foram necessários profissionais capazes de integrar partes muito distintas
de um mesmo projeto, assim surgiram os primeiros Engenheiros com funções de
integração de sistemas complexos como automóveis e aviões, sistemas extensos
como redes de distribuição de energia elétrica e gás, redes de telégrafos e telefones,
redes de transporte ferroviário entres outros. (SCHLAGER, 1956 p. 64 apud
ALMEIDA, 2011 p. 59).

280
É geralmente aceito que o primeiro uso do termo ―Engenharia de
Sistemas‖ ocorreu no Bell Telephone Laboratory 103(Bell Labs) no início
dos anos 1940. No entanto, há na literatura duas justificativas
complementares para o aparecimento e uso desse termo no Bell Labs.
Uma referência explica que os problemas associados com uma rede
telefônica de dimensões nacionais apareceram no Bell Labs antes que
sistemas complexos fossem comuns em outras indústrias (SCHLAGER,
1956 p. 64 apud ALMEIDA, 2011 p. 59).

É importante ainda destacar que o termo ―sistemas‖ refere-se não


exclusivamente a sistemas computacionais, mas a um conjunto interdependente de
elementos de modo a formar um todo. É uma definição que acontece em vários
campos como biologia, medicina, informática, administração, direito. A exemplo
podemos citar sistemas de telecomunicações, sistemas empresariais, sistema
circulatório, sistema de irrigação etc. Sendo assim a Engenharia de Sistemas é
pautada justamente no desenvolvimento de soluções de tecnologias de alta
complexidade para diversos tipos de sistemas, caracterizando sua
interdisciplinaridade.

Objetivo e metodologia
A pesquisa bibliográfica foi a metodologia abordada para esta pesquisa, uma
vez que, de acordo Lima e Mioto (2007, p. 38) ―implica em um conjunto ordenado
de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo‖, neste caso
contextualiza-se na busca pela identificação e conhecimento da história da
Engenharia de Sistemas no Brasil, sua necessidade, atuação, perspectivas,
regulamentação e espaço no mercado internacional para o século XXI.
Além de diversas referências bibliográficas este estudo também se apoiou nos
webinars104 divulgados pela seção brasileira do International Council Systems
Engineering – INCOSE, que versam temas que contextualizam a Engenharia de
Sistemas no Brasil e no Mundo de maneira objetiva e respaldada por órgãos de
regulamentação internacional.

103
Atualmente chamada de Nokia Bell Labs, é uma das empresas norte americanas de pesquisa e
desenvolvimento científico mais importantes do mundo. Fundada no início de 1900, tem sido desde então
uma importante fonte de experimentação tecnológica e inovação em telecomunicações.
104
Webconferência no qual a comunicação é de uma via apenas, ou seja, somente uma pessoa se expressa
e as outras assistem. (RAMOS, 2014)

281
Breve histórico da engenharia de sistemas
As referências ao surgimento da Engenharia de Sistemas remotam às mais
antigas civilizações que se têm conhecimento. Desde a construção das pirâmides
egípcias aos jardins suspensos da Babilônia e até mesmo nas Américas com as
civilizações pré-colombianas. Mas foi apenas no século I a.C. que Vitruvius deixou
um manual que foi praticamente a única referência no Ocidente sobre Arquitetura e
Engenharia até o período da Renascença. (ALMEIDA, 2011, p 56).

Para Vitruvius, o arquiteto era integralmente responsável por um projeto


e, o idealizava, contratava os construtores e operários, e administrava a
construção em nome do dono da obra. Para Vitruvius, o arquiteto não
precisava ser excelente nas artes do Desenho, Geometria, Óptica,
Aritmética, Letras, Música, Pintura, Escultura, Medicina e outras
ciências, mas tinha de ter bons conhecimentos nessas áreas para ser capaz
de planejar, administrar e concluir um projeto (VITRUVIUS, 1960, p. 5 –
13 apud ALMEIDA, 2011, p 56).

A partir desse manual diversos outros documentos surgiram com o propósito


de organizar e formalizar a concepção de projetos de elevada complexidade, como
na construção naval por exemplo. Os navios de navegação oceânica eram os mais
complexos sistemas do século XVI, necessitando de grande quantidade de
conhecimento, planejamento, treinamento, suporte logístico, etc. Para a construção
desses navios foram utilizados conhecimentos aprofundados de física, meteorologia,
cartografia, correntes marítimas, astronomia e construção naval de grande porte.
Segundo Schlager (1956, p. 65 apud ALMEIDA, 2011, p. 57):

As máquinas a vapor trouxeram a revolução industrial no século XVII,


mostrando as grandes indústrias, a capacidade de produção e o
surgimento das cidades onde seria possível o desenvolvimento do
transporte público, iluminação a gás entre outras inovações. No
transcorrer do século XIX, ocorreu um grande desenvolvimento das
ciências naturais. Nas ciências físicas, o estudo dos fenômenos elétricos e
magnéticos deu origem à nova disciplina da Engenharia Elétrica. A virada
do século XIX para o século XX viu o surgimento de muitas novas
tecnologias e inventos relacionados com a Engenharia Elétrica, e.g.,
lâmpada incandescente, telégrafo, telefone, rádio, motores elétricos.

A Engenharia de Sistemas passou por enormes aperfeiçoamentos de acordo


mostra a história. Um dos ocorridos na segunda guerra mundial que foram
definitivos para a carreira da Engenharia de Sistemas sucedeu logo após a ocupação
da Alemanha pelos Estados Unidos, onde, em visita às instalações inimigas, os

282
Americanos perceberam que as aeronaves alemãs estavam mais desenvolvidas em
termos de tecnologia e aerodinâmica. Constataram que os projetos dos Alemães
eram dotados de um líder de projeto provido de conhecimentos em aerodinâmica,
design estrutural, eletrônica, servomecanismos, etc. Os Americanos produziram
então o Toward New Horizons, composto de 13 volumes e tratando das inúmeras
questões relacionadas com o uso de aviões e foguetes com fins militares.
Durante a Segunda Guerra Mundial o conhecimento para o desenvolvimento
de novas armas deu origem às disciplinas como Pesquisa Operacional e Análise de
Sistemas, estas disciplinas aumentaram a capacidade dos cientistas de otimizarem
seus projetos, Kahn (1957, p. 01 apud Almeida, 2011, p. 63) ainda destaca que
problemas que durante milênios eram exclusivamente da jurisdição dos militares
passaram a ser também da jurisdição de cientistas e com isso tecnologias restritas de
guerra foram compartilhadas a toda a comunidade científica.
Durante a Guerra Fria, intenso período de demonstração da capacidade nuclear entre
Estados Unidos e União Soviética, o espaço sideral tornou-se importante para a
esfera da estratégia. O conceito de dissuasão baseava-se na observação do
comissionamento de armas estratégicas por meio de sensores baseados em satélites
de sistemas de comunicação e vigilância. Sendo assim, a obtenção de armas
nucleares mais potentes e o desenvolvimento de meios de empregá-las contra o
inimigo, além de contramedidas de ataques com armas nucleares alavancou o
desenvolvimento de mísseis nucleares, uma vez que o projeto era de maior
complexidade que o desenvolvimento de aviões, por exemplo, uma vez que eram
utilizados complexas tecnologias em telecomunicações, georreferenciamento,
aerodinâmica e também rigorosas metodologias de gerenciamento que foram
formalizadas na série de documentos AFSCM 375 da United States Air Force –
USAF, como no caso do desenvolvimento de um míssil balístico intercontinental –
ICBM, Almeida (2011, p. 84) ainda lembra que:

A aplicação de metodologias similares às da AFSCM 375 na NASA


tornou possível o cumprimento das difíceis metas do programa Apollo em
1961. O sucesso da aplicação da Engenharia de Sistemas no programa
espacial civil levou a muitas tentativas, geralmente frustradas, de sua
aplicação na solução de problemas sociais.

Segundo Takahashi (2009, p. 01): ―Um dos marcos da Engenharia de


Sistemas, que ajudou a estabelecer a forma atual de diversos métodos que hoje a

283
integram, foi o projeto da aeronave Boeing 777, concluído em 1995. Essa foi a
primeira aeronave inteiramente projetada em computador‖. O surpreendente projeto
levou menos de cinco anos desde o início da especificação do produto, em 1991, e o
primeiro voo, em 1995, algo inédito até então.
Além do conhecimento específico dos domínios da Engenharia Aeronáutica,
da Engenharia Elétrica, da Ciência da Computação, que tiveram de ser integrados
naquele projeto, há um corpo de conhecimentos que, em parte, estavam sendo
elaborados àquela altura, e que foram cruciais para permitir tanto o prazo recorde
quanto os elevados índices de confiabilidade e de atendimento às especificações que
foram obtidos. Esse corpo constitui a Engenharia de Sistemas como a conhecemos
hoje e em diversos ramos, como o da indústria aeronáutica, o Engenheiro de
Sistemas já é considerado indispensável.

Engenharia de sistemas no mundo atual


Por se tratar de um curso com um histórico acadêmico recente, as
informações sobre o mercado profissional para Engenharia de Sistemas no Brasil
ainda não possuem dados conclusivos ou relevantemente consolidados, entretanto
esta história não se repete em vários outros países como Canadá, Estados Unidos,
Inglaterra e França, que já possuem essa graduação quase que simultaneamente com
o início dos estudos da área.
É o caso, por exemplo, da Universidade de Waterloo - UW, no Canadá, cuja
fundação do curso ocorreu em meados dos anos 60 e provavelmente é o curso de
graduação em Engenharia de Sistemas mais antigo no mundo. O próprio site da
Universidade destaca, em tradução livre, que o curso, lá chamado de Systems Design
Engineering, abrange aspectos técnicos, ambientais, socioeconômicos e políticos do
processo de Engenharia de Sistemas utilizando metodologias de projeto, sendo
considerado, pela própria UW, como o curso de graduação em Engenharia mais
flexível que oferecem. (UNIVERSITY OF WATERLOO, 2016)
Convém ainda citar o curso de Engenharia de Sistemas ministrado pela
Universidade de Sheffield, Inglaterra. Nas modalidades de graduação e mestrado, os
cursos de Engenharia de Sistemas seguem em sete ênfases: computação, eletrônica,
sistemas mecânicos, sistemas médicos, mecatrônica, gerência e sistemas de controle.
A página oficial do curso ainda informa, também em tradução livre, que:

284
Engenharia de Sistemas e de Controle está em uma posição de grande
importância em quase todos os aspectos de nossas vidas. A vida moderna
depende fundamentalmente de sistemas que têm de operar de forma
independente para atingir uma finalidade especificada com precisão e
segurança. (UNIVERSITY OF SHEFFIELD, 2016)

De volta ao Brasil, além dos cursos de graduação em Engenharia de Sistemas


da Unimontes e UFMG, esta última lançou recentemente o curso de Mestrado em
Modelagem de Sistemas Ambientais. Na descrição do curso observamos que este
baseia-se ―na aplicação de ferramentas de geoprocessamento, sensoriamento remoto
e modelagem computacional para o estudo de sistemas ambientais, com base em
visão integrada das inter-relações de seus componentes socioeconômicos, políticos,
culturais e naturais‖ (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2016). O
programa é aberto a diversos profissionais como engenheiros, analistas de sistemas,
matemáticos computacionais, estatísticos, além de geógrafos, geólogos, arquitetos e
biólogos. Há uma forte conexão da interação dessas áreas através da Engenharia de
Sistemas e percebe-se o interesse da sociedade em um curso integrador capaz de
relacionar todas as questões ambientais pertinentes à modelagem de sistemas de
elevada complexidade. Ressalta-se o potencial brasileiro nessa linha de pesquisa.
Os maiores exemplos práticos da aplicação da Engenharia de Sistemas em
projetos de grande destaque internacional podem ser vistos nas descrições de
D‘Ângelo (2011, p. 8) como o exemplo da bicicleta que projetada através técnicas
de simulação multifísica acopladas com técnicas de otimização multiobjetivo
baseadas em algoritmos evolutivos (todas essas técnicas fazem parte do escopo
previsto no currículo de Engenharia de Sistemas) tornou-se um produto de alto valor
agregado considerada a melhor hoje disponível no mercado mundial.

Engenharia de sistemas no brasil


Os Conselhos Regional e Federal de Engenharia e Agronomia -
CREA/CONFEA, regulamentam, no Brasil, o exercício da Engenharia de Sistemas e
a Resolução105 1.010 de Agosto de 2005 (BRASIL, 2005, p. 17) do CONFEA

105
Esta resolução também indica, no "Campo de Atuação Profissional da Modalidade Industrial
Mecatrônica", prevendo a possibilidade da criação de cursos de Engenharia de Sistemas, sejam
originariamente vinculados à Engenharia Elétrica (como no caso dos cursos já existentes na UFMG e
Unimontes), sejam com vínculo com a Engenharia Mecatrônica (que, no momento, não existem no
Brasil).

285
estabelece uma regulamentação precisa para essa especialidade dentro do item 1.2,
que delimita o "Campo de Atuação Profissional da Modalidade Elétrica".
Atualmente o INCOSE, organização não lucrativa, fundada em 1990 cuja
missão é compartilhar, promover e fazer avançar a Engenharia de Sistemas para o
benefício da humanidade e do planeta já possui mais de oito mil membros. O
Conselho vem se expandindo e em agosto de 2012 foi constituído legalmente o
INCOSE Brasil, com sede em São José dos Campos, São Paulo. O INCOSE Brasil é
constituído por membros profissionais, estudantes, corporativos e parceiros com
todos graus de experiência e se encontra em expansão, no processo de congregação
de profissionais, cujo alguns deles já participantes do INCOSE Internacional.
O Balanço das Atividades Estruturantes do Ministério da Ciência, Tecnologia
e Inovação – MCTI (BRASIL, 2011, P. 10) caracteriza que a produção industrial
brasileira, historicamente, se baseia na utilização de equipamentos e tecnologias já
disponíveis ou geradas em outros países, ou seja, o país é importador seja de bens de
consumo ou de capital exterior tornando o país cada vez mais dependente da
economia externa. Refletindo na balança de pagamentos, onde o que se vê é o
decréscimo de exportação de produtos industriais e serviços tecnológicos. Essa
situação nos leva a enxergar que país está voltando a ser exportador de produtos
primários. Os dados divulgados por Cano (2012) sugerem que o Brasil vive um
processo de desindustrialização desde os meados de 1980, onde a participação da
indústria no Produto Interno Bruto - PIB vem caindo a cada ano. O cenário global
fez com que o Brasil perdesse a competitividade das exportações industriais e
crescesse o número de importações.
De acordo Brasil (2014):

No Brasil, 45,7% do gasto em P&D 106 é feito pelas empresas enquanto em


vários dos Países mais dinâmicos tecnologicamente (Estados Unidos,
Alemanha, China, Coreia e Japão) essa proporção está perto de 75%, e o
montante investido é sempre quase o triplo ou o quádruplo do brasileiro o
que demonstra que a participação do setor empresarial nos esforços
tecnológicos brasileiros ainda está aquém dos níveis observados
internacionalmente.

106
Pesquisa e Desenvolvimento.

286
O gráfico abaixo exemplifica as origens dos investimentos 107 em P&D em
alguns países.

Investimentos em P&D: Capital Público x Privado


Japão 16,4% 76,5%
China 21,7% 73,9%
Coreia do Sul 24,9% 73,7%
Alemanha 30,3% 65,6%
Estados Unidos 33,4% 60,0%
França 37,0% 53,5%
Canadá 36,1% 45,5%
Brasil 45,3% 52,8%
Itália 41,6% 44,7%
Reino Unido 32,2% 44,6%
Espanha 43,0% 46,6%
África do Sul 42,5% 44,4%
Rússia 22,7% 67,1%
Argentina 3,9% 71,6%

0,0% 10,0% 20,0% 30,0% 40,0% 50,0% 60,0% 70,0% 80,0%

Capital Público Capital Privado

Gráfico 1 - Distribuição percentual dos dispêndios nacionais em pesquisa e desenvolvimento (P&D),


segundo setor de financiamento, países selecionados, 2000-2011
Fonte: BRASIL, 2014. Adaptado.

Em seu webnar, Siqueira (2014) expõe que o avanço da industrialização tem


que se apoiar no desenvolvimento científico e tecnológico endógeno e sua
incorporação crescente ao processo produtivo através da base científica e da
capacitação tecnológica das empresas. A Engenharia de Sistemas é mostrada como
uma das promessas para abastecer esta lacuna de desenvolvimento do Brasil, pois
trabalha com vertentes de ciência e tecnologia com foco em inovações.
A Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação - ENCTI em Brasil
(2014) define algumas áreas prioritárias para impulsionar a economia brasileira, são
elas as principais: Complexo industrial da defesa, indústria aeroespacial, petróleo e
gás, tecnologias da informação e comunicação, fármacos e complexo industrial da
saúde. Nestas áreas a Engenharia de Sistemas possui largo campo de aplicação,
sendo assim também caracterizada como uma área imprescindível para o
desenvolvimento industrial do país.

107
Os percentuais não somam 100% porque foram considerados apenas os setores de maior relevância,
governo e empresas. Não foram considerados os demais setores: ensino superior, instituições privadas
sem fins de lucro e estrangeiro.

287
Ainda segundo Siqueira (2014), a Engenharia de Sistemas aliada a outras
disciplinas da Engenharia tem o potencial de promover a competitividade da
indústria brasileira, praticando a boa Engenharia (buscando a excelência, com
produtos de qualidade, desempenho, confiabilidade, durabilidade e custo/benefício)
e trabalhando a competência do "integrador de sistemas" buscando sempre atender a
satisfação de todos os Stakeholders108 envolvidos nos projetos. Fazendo com que as
empresas passem a fabricar produtos de elevado desempenho a alto valor agregado.

Considerações
Este trabalho é o resultado da narrativa histórica multidisciplinar construída
unindo-se os fatos ao contexto econômico e político situando a Engenharia de
Sistemas como um desdobramento de interesses e necessidades de cada época e seu
maior desafio foi caracterizado pela pouca quantidade ou ausência de referências
bibliográficas que demonstrassem uma nítida diferenciação da Engenharia de
Sistemas com outras áreas da Engenharia e da Ciência.
Para trabalhos futuros espera-se promover uma fonte histórica para novos
ingressante na carreira de Engenheiros de Sistemas e dinamizar este trabalho através
de palestras, mesas redondas e mostras de profissões como uma forma de incentivar
a busca e a criação por projetos de pesquisas da área e identificar a importância
histórica que o Engenheiro de Sistemas tem desde os primórdios, envolvendo
diferentes culturas, correntes tecnológicas e suas potencialidades.

Referências

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de requisitos baseada num estudo de caso e num histórico das fases da engenharia
de sistemas do INPE. São José dos Campos, SP, Brasil: 2011. Acesso em 26 ago.
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Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 2012 – 2015. Balanço das Atividades

108
Termo usado em diversas áreas como gestão de projetos, comunicação social (Relações Públicas)
administração e arquitetura de software referente às partes interessadas

288
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VITRUVIUS. The ten books on architecture. 1 ed. New York, NY, USA: Dover
Publications, 1960.

290
PISKARYOVSKOYE: UM CEMITÉRIO, MUITAS MEMÓRIAS.

Rejane Meireles Amaral Rodrigues


André Felippe Torres Soares

Problematizar memórias é sempre um desafio muito complexo, mas analisar


memórias de espaços cujas raízes culturais são distantes da nossa realidade e estão
construídas em uma lógica política, cultural e temporal muito distinta da nossa, é um
desafio muito maior. Todavia, se o historiador é um ser que vive em busca do distante,
do não vivido, do não sentido, problematizar as memórias construídas em torno do
cemitério Piskaryovskoye é exercer o oficio do historiador duas vezes. Na primeira, ele
desempenha o que pede a epistemologia da pesquisa, na segunda, segue as pistas
deixadas pelos sujeitos que viveram na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, nas
narrativas passadas de geração a geração e do evento ocorrido em 1941 – 1945,
conhecido como Grande Guerra Patriótica109, e aqui vamos fazê-lo através das
memórias da entrevistada Anna Belova.
Assim, considerando o grande desafio de problematizar a memória,
propomos aqui, portanto, uma pesquisa que entende o conceito de memória como
prática e construção social, o qual favorece apreender como as pessoas constroem seu
sentido de pertencimento. Para tanto, questionar porque espaços, memoriais e,
principalmente, a experiência de enterrar seus entes queridos criou para um povo um
significado que ultrapassa o sentido dos textos de "História Oficial‖.
O historiador Eric Hobsbawm, na sua obra ―Sobre História‖, nos convida a
pensar como, utilizando a história oral, podemos ter acesso a um cotidiano que se perde,
caso não seja perguntado a ―pessoas comuns‖, tendo em vista que essas lembranças não
estão nos museus, nos monumentos e muito menos nos livros de História. Assim,
compactuamos com Hobsbawm quando ele afirma:

[...] E ao rememorar a história da gente comum, não estamos


meramente tentando conferir-lhe um significado político retrospectivo
que nem sempre teve; estamos tentando, mais genericamente, explorar
uma dimensão desconhecida do passado. E isso me leva aos
problemas técnicos dessa exploração. (HOBSBAWM, 1988,291)

109
Denominação dos russos para a Segunda Guerra Mundial entre os anos de 1941 e 1945.

291
Entendemos que os problemas técnicos referidos pelo autor são o desafio de entrevistar,
as condições da entrevista e a interpretação da memória do outro. Conceder um sentido
ao passado mencionado pelo outro é enveredar pelo caminho de desafiar o tempo a fim
de se alcançar uma versão que explique certas questões do presente, é também entender
que vamos ao passado não para ficarmos presos a ele, mas para entendemos questões
que podem nos ajudar a explicar o presente, conscientes de que certos questionamentos
poderão não mais ser respondidos por falta de matéria prima, como nos lembra o
próprio Hobsbawm:

Porém, mais cedo ou mais tarde, é provável que se atinja um ponto em


que o passado já não possa mais ser concretamente reproduzido ou
mesmo restaurado. Nesse momento o passado fica tão distante da
realidade atual ou mesmo lembrada que no final pode se transformar
em pouco mais que uma linguagem para definir em termos históricos
certas aspirações de hoje que não são necessariamente conservadoras.
(HOBSBAWM,1988, 27)

Entendemos, pois, que problematizar as memórias produzidas por Anna Belova


em relação a Piskaryovskoye é contribuir para que o passado do cotidiano na URSS não
se perca em detrimento das políticas de preservação definidas pelo Estado para lugares
que não revelam o passado de pessoas. É certo que a preservação material, a limpeza, e
o fato do cemitério ser um local de visitação turística apontam para uma política de
preservação intensa, mas, e as memórias dos moradores? E as memórias das famílias
que têm seus antepassados enterrados naquele cemitério? Como e de onde essas pessoas
elaboram e significam suas memórias?
A Historiografia nos convida a problematizar como os ―principais
acontecimentos históricos‖ foram registrados colocando-os no campo de abordagem
política e questionando como os chefes de estado na União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas se posicionaram frente ao processo de escrita da História:

A pesquisa marxista poderia ser perigosa para o partido, assim: Stalin,


em 1934, quando consolidava seu poder pessoal autocrático, decide
―deixar sua marca no modo de escrever a história na União Soviética,
com o propósito de legitimar o regime‖. (FONTANA, 2004: 313)

A tática utilizada por Stalin era eficiente para criar uma memória que ajudasse a
consolidar seus interesses, isso evidência o quanto a memória é um elemento passível
de apropriação, manipulação e, sobretudo, de ressignificação de acordo com o interesse

292
do Estado. Nessa lógica, a História, enquanto ciência que informa sobre o passado ou
mesmo esta prática do Estado de ―escrever a História‖, cumpria seu papel, produzindo
textos que informavam sobre o passado, mas, enquanto metodologia, escreviam numa
lógica que não gerava análise, somente favorecia a informação. Se fizermos um paralelo
com a História sobre o Brasil, podemos associar tal prática com a escrita da história no
século XIX. Segundo Temistocles Cezar (CEZAR: 2003, 206), a História do Brasil, na
primeira metade do século XIX, foi escrita com cunho pedagógico: ―Magistra vitae‖
para ensinar, para doutrinar, para referendar a nação segundo a memória necessária para
seu governo.
Voltando ao nosso tema de pesquisa, antes de apresentar as narrativas de Anna
Belova, entendemos ser necessário apresentar o processo histórico que gerou o título de
―maior cemitério de guerra‖ para o cemitério Piskaryovscoye.

O Cerco de Leningrado
Logo após a invasão da URSS, a voz de Molotov foi ouvida pelo rádio
conclamando a união do povo soviético. Stalin desapareceu para o público.
Recomendou certa vez Pushkin em Boris Gudunov: ―Guarda o silêncio; a voz do czar
não deve ressoar por futilidades; como o som sagrado dos sinos, deve anunciar apenas
uma grande tristeza ou uma grande festa‖ (VALLAUD, 2012, P.34). Mas aquele era um
momento de grande tristeza que traria morte, luto, sofrimento e fome para o povo.
Entretanto, o líder recolhera-se depressivo à sua dacha nos arredores de Moscou para,
depois, em 3 de julho, tentar se redimir com um discurso emocionado. Após o
pronunciamento de Molotov, Lidya Ginzburg, especialista em Pushkin, escreveu com
melancólica resignação em seu Diário do bloqueio, conforme lembrou Pierre Vallaud
(2012, p.32):

Voltei para casa por ruas que, aparentemente, ainda eram aquelas de
antes da guerra, mas que já tinham mudado de sentido. Não havia
ainda nem sofrimento nem angústia moral, nem terror. Ao contrário,
experimentava-se uma espécie de superexcitação, quase uma
exaltação diante da ideia que essa forma de existência ia terminar.

Em 18 de julho, inicia-se o racionamento de alimentos e, em consequência, as


práticas de escambo: ―Elena Skrjabina, sobrevivente do cerco, relata em seu ‗Diário‘
que ela obtém assim 16kg de batatas e 2 litros de leite em troca de 2 pares de sapatos e
cigarros‖ (VALLAUD, 2012, P.109). Em 8 de setembro de 1941, Leningrado

293
finalmente é cercada e perde o contato com o mundo. Nesse mesmo dia foram
completamente desnudados os objetivos da guerra de extermínio dos nazistas: o
bombardeio não acidental aos entrepostos Badaiev e à fábrica de manteiga ―Estrela
Vermelha‖, cujos danos foram irreversíveis. Depósitos de açúcar e farinha foram
destruídos. Após o cerco terrestre ter se fechado com a tomada da fortaleza
Shlüsselburg, para suprir as necessidades, Leningrado passou a contar somente com um
perigoso trajeto naval sob fogo de artilharia inimiga. Esse trajeto se dava através do lago
Ladoga que, após virar gelo, se transformou numa rota de suprimentos sob a
denominação ―Estrada da Vida‖.
Chega de Moscou Dimitri Pavlov, especialista no domínio da distribuição e do
abastecimento que, de imediato e com medidas severas, retira da lista de prioridades os
velhos e as crianças e praticamente os condena à morte. Segundo ele, quem contribui
para o esforço de guerra na cidade deve se beneficiar mais durante as distribuições dos
víveres. Conforme observou Pierre Vallaud (2012, P.133): ―Na verdade, deve-se
constatar cinicamente que, de certa maneira, a vontade das autoridades de Leningrado
em reduzir o número de bocas a alimentar concorda com o a do sitiante em fazer morrer
de fome a população‖. Durante o inverno, além da fome, o frio também entra em cena
agravando ainda mais as condições de sobrevivência. Para enfrentar as temperaturas
glaciais de 40°C negativos, sem eletricidade e combustível para fazer funcionar
adequadamente os aquecedores, as pessoas buscavam materiais para produzir calor ao
ponto de desalojarem moradores das casas de madeira para desmontá-las e obter lenha.
Porém, era tudo muito insuficiente e milhares de pessoas morriam de frio.
A fome mergulhou Leningrado numa calamidade com uma dimensão
inacreditável. Os mais variados materiais, antes imprestáveis para o consumo humano,
foram incorporados como substrato para a produção de alimentos em farinhas, geléias e
outros compostos: feno, palha, serragem, papel, sebo para lubrificar as velas dos navios,
sabão, cola de tapeçaria e de sapateiro. Raspavam-se as paredes para fazer farinha e
animais domésticos eram sacrificados, virando alimento das famílias. No jardim
botânico, as valiosas batatas de tulipas rapidamente viraram sopa. Na primeira metade
de 1942 foram presas 2.000 pessoas pela prática de canibalismo. Pessoas assassinavam
as outras e se alimentavam delas, coveiros e "caçadores" sustentavam um comércio
humano clandestino. Segundo Vasili Yerchov, citado por Vallaud (2012, p.161)
existiram casos de ―médicos que não hesitavam em consumir os membros amputados
dos seus pacientes". Em virtude dessa prática, centenas foram sumariamente fuzilados

294
pelas autoridades soviéticas. Caso você fosse um habitante de Leningrado naqueles dias
terríveis, não duvidaria de que a cidade havia chegado ao fim. Olga Bergholtz, que
assina um belo poema numa parede de granito do cemitério Pyskaryovskoe em São
Petersburgo, observa com tristeza: "Media-se a passagem do tempo pelo intervalo que
separava um suicídio do outro".
A ―cidade boreal das noites brancas‖ construída por Pedro, O Grande, em 1703
para ser uma ―janela para a Europa‖, tornara-se agora um grande cemitério de guerra.
As 100 mil bombas laçadas pelos alemães foram responsáveis por menos de 1% das
baixas civis em 1942. Morria-se muito mais pelos efeitos devastadores da fome, do frio
e pela ação simultânea de ambos os fatores que, aliados à falta das mínimas condições
sanitárias, também levava à morte por doenças como disenteria, pneumonia e tifo. ―A
vida depende, por vezes de uma mão estendida na rua, sem a qual o(a) infeliz, cujos
joelhos dobram por falta de comida, desaba na neve e jamais se levanta‖ (VALLAUD,
2012, P.144). No início, as pessoas interrompiam por um instante seu calvário de cada
dia em busca de alimento e madeira para ajudar alguém que não tinha mais forças para
se levantar do chão. Mas, com o tempo, o sofrimento para todos tornou-se insuportável
e a apatia era cada vez maior, como contou Elena Skrjabina: ―É tão simples morrer hoje
em dia! Começa-se por se desinteressar de tudo, depois se deita em seu leito e não se
levanta nunca mais‖ (VALLAUD, 2012, P. 157). Aquele que tombava agonizante sobre
a neve, sem qualquer ajuda, logo em seguida falecia e lá ficava na mesma posição até a
chegada dos voluntários para alçar, com ganchos, o corpo congelado até a caçamba do
caminhão. O veículo não se deslocava muito por falta de combustível e enterravam-se
os corpos nas proximidades ou onde fosse possível cavar uma vala coletiva. Os ganchos
disponíveis para esse trabalho eram os mesmos que outrora, meses antes, foram
utilizados para o manejo das sacas de grãos que chegavam de toda parte para alimentar
Leningrado. Bons tempos que, confrontados com o cenário de fome, frio, incêndios,
bombardeios, infortúnios e privações extremas, pareciam imemoriais.
Desde o final de 1942, os nazistas já tinham indícios suficientes para prever que
o destino tinha reservado para eles a derrota total. Mas o cerco à cidade resistiu até 27
de janeiro de 1944, quando terminou com júbilo dos seus habitantes e a vida, aos
poucos, foi retornando à normalidade. Antes do Exército Vermelho romper as linhas
alemãs, se você fosse um russo na Leningrado sitiada durante aqueles dias sombrios,
deveria saber que estava combatendo numa guerra de extermínio e que era preciso
resistir até a morte. Stalin poderia ter declarado Leningrado ―cidade aberta‖, como

295
fizeram os franceses em relação a Paris, porém ela era a porta de saída para o mar
Báltico e o berço da Revolução, desse modo, a sua queda significaria um abalo terrível
para o moral da União Soviética. Tatiana, uma criança de 12 anos de idade que também
era conhecida pelo apelido carinhoso de ―Tânia‖, antes de sucumbir à desnutrição, em
1944, deixou registrado em sua caderneta um pouco da dimensão da tragédia, bem
como o cerco nazista que se transformou numa espécie de serial killer da população
civil:

Jenia [Eugenia, sua irmã] morreu em 28 de dezembro, ao meio-dia [1941].


Vovó morreu em 25 de janeiro, às 3 horas da tarde [1942]. Lioka [Leonid,
seu irmão] morreu em 17 de março, às 5 horas da manhã [1942]. Tio Vassia
morreu em 13 de abril, às 2 horas da manhã [1942]. Tio Liocha, 10 de maio,
às 4 horas da tarde [1942]. Mamãe, 13 de maio, às 7:30 da manhã [1942]. Os
Savitchev [sua família] morreram. Todo mundo morreu. Tânia está sozinha
(VALLAUD, 2012, P.17).

Suas palavras, atualmente preservadas no Museu de História de Leningrado,


foram lidas no julgamento de Nuremberg e ajudaram a levar até a forca alguns dos
carrascos nazistas que dizimaram completamente sua família. Quando foi discutido um
eventual indulto humanitário para Rudolf Hess, vice-líder do Partido Nazista até 1941 e
condenado à prisão perpétua em Nurenberg, foi por histórias como a de Tânia que os
soviéticos foram incisivos em negar qualquer possibilidade neste sentido. Somente após
cometer suicídio, em 1987, aos 93 anos de idade, é que o corpo de Hess deixou a prisão
alemã de Spandau.

Piskaryovscoye
Após o fim do cerco, os cemitérios foram reabertos para receber as vítimas
enterradas de forma anônima e improvisada nas muitas sepulturas espalhadas pela
cidade. Na Avenida Nepokorennykh, n° 74, em São Petersburgo, está localizado o
maior cemitério de guerra do mundo: O Cemitério Memorial Piscaryovskoye. Além
dele, existem ao menos mais cinco cemitérios em São Petersburgo onde foram
sepultadas vítimas da guerra, mas o Piscaryovskoye é o maior e mais conhecido entre
todos eles. Já existia desde a década de 1930, quando um pequeno campo chamado
Piskarevka na periferia da cidade foi transformado em cemitério. Nele, em 09 de maio
de 1960, data comemorativa dos 15 anos do ―Dia da Vitória‖, um memorial projetado
pelos arquitetos A.I.Vasilyev e E.A. Levinson foi solenemente inaugurado. Logo na

296
entrada da necrópole há uma ―chama eterna‖ e dois pavilhões onde estão expostas
fotografias e documentos referentes à tragédia. Uma placa de mármore registra que,
entre 04 de setembro de 1941 e 22 de janeiro de 1944, 641 mil e 803 pessoas morreram
de fome na cidade. Distribuídos por 28 hectares e 186 valas comuns ligeiramente
elevadas em relação ao terreno estão sepultadas 420 mil vítimas civis do Cerco de
Leningrado, além de 50 mil militares. Em frente a cada um destes túmulos não há
qualquer identificação dos nomes das vítimas. Somente uma única laje de pedra na qual,
entre as figuras de uma folha de carvalho e da foice com um martelo, está gravado o ano
do enterro coletivo, mais frequentemente, aparece o de 1942. Em torno dela, são
depositadas flores e fotografias trazidas pelos que desejam homenagear seus entes
queridos mesmo não sabendo com exatidão em qual das 186 sepulturas eles foram
deixados. Mas, para todos, é suficiente a natureza do gesto.
Em Pyskaryovskoye repetem-se nos dias 9 de maio, 22 de junho, 8 de setembro
e 27 de janeiro, datas representativas do Dia da Vitória, o início da Grande Guerra
Patriótica, o início e o fim do cerco, respectivamente, cerimônias e eventos oficiais e
não oficiais, quando um maior número de visitantes passa a frequentar o local. Através
de alto-falantes, músicas cuidadosamente selecionadas ecoam continuamente por todo o
memorial e ajudam a criar um ambiente de muita paz. Ao fundo, após caminhar uns 300
metros, encontramos um belo monumento de bronze criado pelos escultores V.V.
Isaieva e R.K. Taurit que representa a Mãe Pátria de luto. Ela segura uma guirlanda de
folhas de carvalho trançada com uma faixa e transmite a sensação de ―caminhar em
direção aos túmulos dos seus filhos‖ (http://pmemorial.ru). Na parede de granito ao
fundo onde sempre escoram-se muitas guirlandas de flores, além de 6 altos relevos de
escultores que ilustram o heroísmo dos habitantes de Leningrado, encontramos o poema
de Olga Bergholz, cujo desfecho traz certo conforto aos milhares de heróis que não
tiveram escolha: ―Ninguém é esquecido, nada é esquecido‖(http://pmemorial.ru).

Memórias cotidiana: a oralidade em questão


Para tornar viável a realização da pesquisa recorremos ao debate de Edward P.
Thompson na obra ―Miséria da Teoria‖ (THOMPSON:1981), na qual o autor nos chama
a atenção para pensarmos criteriosamente sobre a ―lógica histórica‖. Lembrando que é
importante desmitificar este debate em relação a qualquer ranço que esse possa ter
gerado ou ainda venha gerar, mas situar que o foco aqui é ter uma coerência no método
investigativo como o autor sugere: ―a) o método de investigação pautar-se-á na relação

297
das hipóteses conceituais com a investigação empírica; b) os conceitos precisam ser
historicizados e testados; c) os modelos prévios aprisionam as evidências do real, por
isso devem ser evitados; d) são falsas as teorias que não estiverem em conformidade
com as evidências; e) o objeto do conhecimento histórico é o ―real‖, embora esse esteja
repleto de evidências imperfeitas e incompletas‖ (THOMPSON: 1981, 49 e 50 ).
Dos cinco pontos salientados por Thompson, destacamos dois, visto que foram
utilizados de uma forma mais criteriosa na nossa pesquisa: o ponto ―b‖, o cuidado com
os conceitos ao historicizar e testar, neste caso, o cuidado ao historicizar o conceito de
memória e; o ―e‖, embora as narrativas estejam repletas de imperfeições e/ou
contradições, foram elaboradas em consonância com o processo histórico em que foram
vividas e experimentadas, logo, enquanto fonte de pesquisa, são respeitadas como
evidência de um tempo, de um grupo de pessoas e relações políticas que se
estabeleceram, portanto, são merecedoras da nossa credibilidade. Proporcionaram
constituir nossa empiria na lógica entre nosso problema de pesquisa e as memórias da
entrevistada Anna Belova.
Como caminho metodológico da pesquisa foi feito primeiro um roteiro
semiestruturado para construir o diálogo com a entrevistada. Ela será apresentada por
codinome, uma vez que optamos por preservar a identidade desta. A entrevistada se
chama Anna Belova, ela tem 36 anos, nasceu em Minsk, capital da Belarus, é formada
em marketing, atualmente é professora de Russo para estrangeiros e já atuou no Centro
Internacional de Línguas Estrangeiras em Samara, na Rússia, cidade localizada na
margem oriental do rio Volga e capital da província de Samara. A realização da
entrevista com Anna Belova deu-se via internet através do aplicativo ―Skype‖, teve
duração de 50 minutos e foi realizada na língua portuguesa110.
Nesse momento, nosso problema de pesquisa era: quais são/foram os
mecanismos utilizados para construir a memória sobre o Cerco de Leningrado e o que
está materializado no cemitério Piskaryovskoye. Esse problema inicial foi extrapolado
ao longo da entrevista, uma vez que as respostas da entrevistada aos questionamentos
previamente definidos no roteiro possibilitaram colocar novas informações, novos
elementos passíveis de outros questionamentos e estes foram elaborados no calor da
hora para possibilitar analisar outros mecanismos, outros procedimentos de elaboração
e, ainda, a construção de uma memória em relação ao cemitério Piskaryovskoye.

110
Apesar da entrevistada ser russa, ela já morou no Brasil, fala fluentemente o português e ministra aulas
de russo para brasileiros.

298
Contudo, para norteamos neste artigo o nosso procedimento metodológico,
seremos fiéis ao desenrolar da entrevista, ou seja, vamos apresentar e analisar o texto
conforme fizemos na entrevista. A primeira questão feita para Anna Belova foi uma
solicitação para que ela contasse sobre a ―História da Belarus‖ tendo como referência a
Revolução Russa:

Eu nasci muito tempo depois, o que eu posso falar e sobre o que sei
dos filmes, museus, o que meu pai me contou, porque eu por exemplo,
não fui presente (...), primeiramente meu pai nasceu em 1939, ele é do
Belarus e pais dele, o meu pai perdeu o seu pai e seus irmãos durante
guerra, (...) . A minha avó ela nasceu em 1916, ela já morreu, mas dos
contos dela eu sei sobre a Revolução, porque ela também perdeu o
irmão dela. (...) Isso foi muito comum neste período e nesta época o
que ela mesmo me contou a vida foi muito difícil, porque na
Revolução era contra ricos, pobres, e ela para sobreviver ela
trabalhava para casa de os ricos, mas era o tempo muito difícil, o que
ela fazia, ela mesmo, ela tinha que sobreviver e era uma época difícil,
ela pegava o frango inteiro, isso era o que as pessoas faziam para
sobreviver e tirava o pedaço de frango e depois mostrava para dono e
falava rato comeu. Aí ele falava joga fora, e aí ela pegava este frango
e trazia para casa para comer, né. Por isso, estas o que o povo
sobreviveu e durante muito tempo sempre continua, e como agente
sabe isso eu acho que dos filmes sim pode ver esta história, mas o
filme não pode repassar exatamente o sofrimento. (Anna Belova,
entrevista realizada em 26/08/2015 – duração 50:00)

Pela narrativa de Anna Belova percebemos que ela é a terceira geração após a
Revolução Russa e que sua família sofreu literalmente os impactos humanos daquele
evento, sendo que os traumas da privação de alimentos estão profundamente na
lembrança e compõem o cenário de organização dos acontecimentos. Mas não somente
as lembranças familiares, como também os filmes, aparecem como um meio de
conhecimento e elaboração da sua memória de 1917. Sobre os museus, é interessante
ressaltar que para ela é também uma forma de conhecimento ou memória, porém, em
outro trecho da entrevista, não citado literalmente neste texto, ela afirma que no museu
na cidade de Minsk, onde nasceu, só é possível ver os números dos mortos durante as
guerras, mas o sofrimento não. E ela ainda comentou sobre a memória ―construída‖ na
cidade, na sua narrativa, nos lugares que ficaram em ruínas ou mesmo prédios em bom
estado que foram tombados pelo Estado e não podem ser nem vendidos, nem
derrubados: foram protegidos por uma política de preservação. Ainda, analisando a
memória familiar de Anna Belova, ela afirma a prática de retorno a lugares vividos e
destruídos quando relembra sua mãe:

299
Quando eu era criança, minha mãe trazia para mostrar onde elas
moravam né, onde ainda salvou a casa dos pais dela né, ainda salvou
mas tem ainda alguns lugares onde não salvou nada, mas em Minsk
todos os cidades grandes que foram destruídos depois de guerra todos
elas foram reconstruídos.(Anna Belova, entrevista realizada em
26/08/2015 – duração 50:00)

Ao relembrar sua mãe, Anna Belova aponta para os momentos de retorno, de


volta aos espaços anteriormente vividos e que, por motivos de destruição, deixaram de
ser habitados, mas não deixaram de ser a referência de um momento da vida. Os
sentidos de pertencimento e a elaboração dos modos de vida nos espaços, no trabalho,
no lazer e mesmo durante guerras e conflitos são tão fortes que provocam nas pessoas a
necessidade do retorno, do rever, do mostrar para seus descendentes como lugar de
memória. Além de possibilitar pensar a cidade como espaço de luta e conflitos de
memória, de um lado as memórias escolhidas pelo Estado para ficarem preservadas e
visitadas; de outro as ―memórias populares‖ das famílias, dos trabalhadores, das pessoas
e espaços que o Estado não viu ou não quis perceber para ―preservar‖.
Outro exemplo claro da política de preservação do estado foi o citado por Anna
Belova ao mencionar a cidade de Samara:

Também importante sobre segunda guerra, eu morei na Russia,


durante 6 anos, naquela cidade onde eu morei e trabalhei em Samara,
essa cidade é a única cidade da Russia que aonde Alemã não
conseguiu chegar, ela salva e tem seu nome antigo Kuybyshev , (...) e
nessa cidade tem uma coisa muito importante sobre Segunda Guerra lá
tem um Bunker do Stalin esse Bunker isso como se fosse um prédio,
mais ou menos cinco andares, dentro da terra, até 1992 era segredo,
ninguém sabia que existe isso e depois disso quando União Soviética
quebrou as pessoas conseguiram falar sobre tudo qualquer um pode
visitar. (....)você pode ir tranquilo, só que também tem uma coisa
muito importante que havia nesse Bunker isso foi grande segredo do
Stalin exatamente ele escolheu este local porque localiza-se perto do
rio Volga na beira do rio Volga e todos os pedreiros que foram que
construíram foram matadas .(Anna Belova, entrevista realizada em
26/08/2015 – duração 50:00)

Neste caso, o prédio que fora construído por Stalin, tornou-se local de visitação
turística que, segundo afirma a entrevistada, é seguro para visitação mas atrai curiosos e
turistas por ter sido um ―estratégico esconderijo‖ tão secreto que os trabalhadores que o
construíram foram mortos para não revelarem seus detalhes e espaços. Esse tipo de
política de preservação contribui para a eleição de um enredo oficial de história que não

300
permite uma aproximação ou associação com a vida cotidiana dos moradores da cidade
ou mesmo moradores de outras cidades, mas que estavam sob o jugo do Estado naquele
momento. Afirmamos isso ao relacionar o trecho acima ao momento da entrevista em
que ela diz com voz pesarosa que é um costume até hoje na Rússia as pessoas não
jogarem fora nem um pequeno pedaço de comida no lixo, pois durante a guerra a
comida principal era uma fatia de pão e o que as pessoas poderiam ter ainda era um
pouco de sal ou açúcar e nada mais, e isso criou na população o hábito de valorizar a
comida e a quantidade de comida que eles têm. Voltando ao início do parágrafo, por que
selecionamos estas duas informações para analisar? Porque, como percebemos na
própria construção da memória de Anna Belova, o prédio construído por Stalin hoje
serve de visitação turística, como espaço ―palpável‖ de construção de imagem sobre o
evento da Segunda Guerra, ao passo que no cotidiano vivido pelos moradores, as
privações sofridas interferiram até a geração atual, contribuindo para criar um traço
psicológico na experiência de vida desse povo, mas não é mencionada como memória
de guerra, não é entendida como ―merecedora de preservação‖.
Quando perguntamos quais cemitérios que ela conhece e o que significam para
ela, respondeu-nos que são irrelevantes nas vivências dela como uma bielo-russa. Alguém
que tem nas memórias da família perdas durante a Revolução e a Segunda Guerra,
cultivar resquícios do passado de massacres não ajuda a construir uma referência positiva
para o presente. Mas o Cemitério onde estão enterrados poetas, artistas e literários é uma
referência que se colocada num processo histórico de reconstrução; faz mais sentido ser o
refúgio da memória e do sentido de pertencimento. As dores e os dramas foram ou são
esquecidos e novos sentimentos, novas referências precisam surgir. Assim, ao menos para
nossa entrevistada, as artes foram eleitas para dar novo sentido, para construir o
pertencimento do seu povo, seu passado, sua identificação, com a História do seu país.
Para ela, são bem definidas as datas em que se comemoram as vitórias na guerra. Não é
uma lembrança que faz parte do seu quotidiano, como uma leitura de Pushkin ou
Dostoievski. Portanto, visitar o Museu Russo em São Petersburgo ou ir ao Grande Teatro
Bolshoi em Moscou e assistir ao Lago dos Cisnes de Tchaikovsky tem um significado
maior na sua dinâmica cultural do dia a dia.
Ao contrário, visitar locais de memória da Segunda Guerra Mundial, é uma
experiência que remete ao sofrimento e às perdas que possuem datas específicas para se
rememorar. Uma coisa são as concepções e os sentimentos individuais que orientam de
forma autêntica como e quando se dedicar a essas experiências; outra, é a tentativa do

301
Estado de estruturá-las artificialmente conforme a sua conveniência. Utilizando-se da
referência mencionada durante a entrevista, por que mudar o nome de uma Avenida em
Minsk chamada ―Masherov‖111 para uma denominação genérica como Avenida da Paz?
Ou de São Petersburgo para Petrogrado, deste para Leningrado e depois novamente para
São Petersburgo? Em um século, esta cidade de 300 anos mudou de nome três vezes. A
primeira vez por ocasião da Primeira Guerra Mundial, ainda durante o Império Russo,
recebeu uma denominação com identidade mais nacional em contraste com o nome
―germânico‖ anterior. Logo após a morte de Lenin, se tronou Leningrado. Com o fim da
URSS, por referendo, decidiu-se pela volta à denominação original. Citamos apenas
dois exemplos na Rússia e na Belarus, mas há vários outros.
Assim, concluímos que a memória elaborada pelas ―pessoas comuns‖ cuja
oralidade nos permite questionar, traz mais que os lugares oficiais ou os nomes e datas
―significativas‖, permite-nos como historiadores pensar os massacres, os mitos, os ritos,
os símbolos, as lágrimas. E problematizar as memórias construídas em torno de um
cemitério é mais que abrir espaço na historiografia para novos temas, mas é trazer
muitas memórias e outras histórias as quais dão indícios de que a reelaboração e
ressignificação das memórias hegemônicas, propostas por governantes, são de suma
importância para que a Musa Clio continue sua missão de ―presidir a eloquência, sendo
a fiadora entre homens e nações‖.

Referência

CEZAR, Temístocles. Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX.
Ensaio de história intelectual.In: PESAVENTO, Sandra Jatay. ( org.) et. all.
Históriacultural – experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
FONTANA, Josep. A História dos homens. Bauru/ SP: EDUSC, 2004.
HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Cia das Letras. 1998.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro:
Zahar, 1981.
VALLAUD, Pierre. O Cerco de Leningrado. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2012. p. 255.
<http://pmemorial.ru>. Acesso em: 30 ago. 2015.
<http://www.saint-petersburg.com/virtual-tour/piskarevskoye-cemetery/>. Acesso em:
30 ago. 2015.
<http://www.memorialmuseums.org/eng/staettens/view/798/Piskariovskoye-Cemetery-
Memorial-and-Museum>. Acesso em: 30 ago. 2015.
<http://piskarevskoe.ru/histori>. Acesso em: 30 ago. 2015.
<https://en.wikipedia.org/wiki/Piskaryovskoye_Memorial_Cemetery>. Acesso em: 30
ago. 2015.

111
Pyotr Myronovych Masherov, Primeiro Secretário do Comitê Central do Partido Comunista da Belarus.

302
A HISTÓRIA DAS CIDADES CONTADA A PARTIR DA MEMÓRIA DAS
MULHERES: NOVA PORTEIRINHA/MG

Rhaenny Maísa Freitas

Resumo: A história das cidades não pode ser vista como definitiva ou ingênua, porque
ela permite a associação de inúmeros temas e definições, permitindo o estabelecimento
de vínculos políticos e filosóficos que irão permear as relações de construção desse
campo do saber cercado de complexidades. Nesta pesquisa tratamos da história de Nova
Porteirinha, norte de Minas Gerais, cidade que teve o início do seu povoamento no final
dos anos 1960, posteriormente foi elevada à categoria de distrito em 1982 e tem a sua
emancipação política concedida no ano de 1995 através de lei estadual. É notório
observar nesta cidade a presença feminina marcante seja em sua fundação, nos trabalhos
sociais e na política, o que nos impeliu a buscar informações sobre o município através
da memória de algumas destas mulheres que foram de grande importância para a
história de Nova Porteirinha. Além da análise de documentos que comprovaram a
participação feminina na história e na política da cidade, nossa principal metodologia
foi a história oral, onde através dos depoimentos colhidos foi possível traçar aspectos
marcantes da vida destas mulheres, de sua atuação na vida social do recém-formado
município e a própria evolução das suas trajetórias na vida pública. Todas elas lutaram
pela emancipação política fazendo campanha a favor do plebiscito, na militância de
grupos de jovens e fazendo parte das comissões especiais para articular os processos
antecedentes ao plebiscito. Portanto, é possível atestar, através do estudo das fontes
analisadas, que a memória das mulheres de Nova Porteirinha tem muito a contribuir
para a análise de sua participação política e sobremaneira para a história desse jovem
município, ainda tímido entre os objetos de pesquisa histórica.

Palavras-chave: História das cidades; Memória; História das Mulheres; Nova


Porteirinha.

José D‘Assunção Barros (2012) reflete em seu livro acerca do início dos
estudos sobre as cidades, onde floresce a preocupação dos historiadores para a tentativa
de compreender o modo de viver urbano, seu espaço físico e suas definições, bem como
os tipos de vida social que poderiam ser abrigadas nestes ambientes. Uma preocupação
outrora de pensar e sentir a cidade, praticada por cronistas, romancistas, teólogos,
arquitetos e filósofos, desencadeia agora em um intricado pensamento científico que
pudesse encontrar racionalidade para este complexo mundo criado pelos seres humanos.
Essas reflexões surgem, conforme o próprio autor, a partir do século XIX e se
estendem pelo século XX. Bem sabemos que estes foram períodos agitados da história,
onde vimos crescer a industrialização e consequentemente obras preocupadas com a

303
urbanização de maneira que pudessem oferecer maior funcionalidade, ademais este é
um período de novas lutas sociais, de utopias e dos ideais revolucionários.
Entender as origens das cidades se faz de suma importância para que
apliquemos a teoria aos estudos de casos, como é a situação na qual nos encontramos
nesta pesquisa. O livro Cidade Antiga de Fustel de Coulanges (2004) nos permite
valiosas reflexões nestes termos, sua obra clássica se consagrou por trazer preocupações
acerca do fenômeno urbano que ainda hoje são estudadas como família, propriedade
privada e religião.
Fustel de Coulanges (2004) acredita que a cidade é constituída a partir de
Instituições Sociais, pois mesmo antes de seu surgimento a religião doméstica, a família
e o direito à propriedade privada já estavam solidamente fundadas dentro das sociedades
e haviam desenvolvido uma relação inseparável. É nesse quesito que o autor é o
primeiro a chamar a atenção para o papel da religião na formação das cidades.
Obviamente podemos imaginar que os sucessores de Fustel de Coulanges em muito
tiveram o que concordar com sua tese, mas também teceram críticas que permitiram
reflexões e avanços.
Neste momento, o que precisamos ressaltar é que o historiador, conforme José
D‘Assunção Barros irá constituir o seu objeto de estudo sempre a partir das imagens
que ele tem da cidade ou de modelos criados, que consequentemente vão gerar
expectativas e perspectivas muito particulares e que vão conduzir as metodologias mais
adequadas.
A escolha das fontes mais convenientes também passará pelo mesmo processo
e sofrerá as mesmas influências. Este é o caso de nosso estudo, onde procuramos
compreender a formação de Nova Porteirinha/MG a partir da memória das mulheres, de
sua participação política e das relações desenvolvidas a partir de então. A partir dessa
escolha, fica claro que a principal metodologia a ser utilizada é a história oral, neste
caso subsidiada por documentos sobre a formação do município.
Nova Porteirinha é um pequeno município localizado no Norte de Minas
Gerais, situado à margem direita do Rio Gorutuba, separado do município de Janaúba
apenas por esse rio. A emancipação do município é muito recente, ocorreu no ano de
1995, tendo completado vinte anos em dezembro de 2015, por isso são poucas os
registros que se tem em relação ao seu histórico de fundação de desenvolvimento.

304
Os documentos nos quais constam a história do município é um Guia Turístico
das cidades de Janaúba e Nova Porteirinha e o sítio eletrônico do IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística). De acordo com essas fontes, o Sr. Bertolino José
Serafim reuniu-se com algumas pessoas para debater e elaborar um loteamento em sua
fazenda, em uma parte próxima à Janaúba e ao Rio Gorutuba. Essa fazenda localizava-
se dentro do município de Porteirinha. Entre os pioneiros na povoação, podemos citar
nomes como Manoel Pereira da Silva, dona Eva Rodrigues de Souza e dona Venância
dos Santos Lima, filha do Sr. Bertolino que atuava como professora.
O loteamento se concretizou definitivamente quando foi construída a ponte
sobre o Rio Gorutuba e logo depois a estrada de rodagem MGT 122. Segundo o Guia
Turístico ―Em 15 de janeiro de 1969, foi demarcada a área do primeiro lote residencial.
Passados dois anos já se contavam diversas casas, principalmente na estrada principal, a
Avenida Primavera, hoje Castelo Branco.‖ Em 1978 é construída a barragem Bico da
Pedra e implantado o Projeto Gorutuba, que envolvia irrigação e colonização da terra.
Temos então definitivamente uma população fincada naquela área.
A base da economia do município, desde sua fundação, é a agricultura.
Conforme a página virtual do IBGE é grande a produção de banana, uva, manga e
outras frutas típicas da região, além da significativa quantidade de grãos e também do
plantio comercial de árvores, principalmente mogno. Nos últimos anos tem se destacado
a produção de artesanato no município, e essa produção é liderada, em sua maioria, por
mulheres agricultoras. Elas utilizam as folhagens da própria produção para criar seus
produtos artesanais.
Segundo o Censo Demográfico do IBGE (2010), Nova Porteirinha possui
7.398 habitantes, sendo a maioria da população masculina. Sua área está calculada em
120.943 km² e está inserida no bioma do Cerrado Caatinga.
Para o bom desenvolvimento da pesquisa cabe mensurar a importância da
História Oral, como fonte subsidiária e complementar para a pesquisa histórica. Ainda
sobre a relevância da História Oral, ela é considerada como fonte identitária de um povo
capaz de retratar as vivências e os modos de vida de uma comunidade em cada tempo e
nas suas mais variadas sociabilidades. Assim sendo, a História Oral nos permite
conhecer melhor nossas fontes e documentar o que ainda não está escrito.
Neste sentido, corroboram Ferreira e Amado: ―(...) a consciência aguda das
implicações políticas e sociais que o passado transmite, lhes dão possibilidades – se não

305
facilidades – documentais que não raro causam inveja aos analistas de períodos
anteriores. ‖ (FERREIRA; AMADO, 2005, p.33).
Podemos então perceber que os pesquisadores que se utilizam da História Oral
são privilegiados, pois se valem de documentos e de preciosas informações até então
desconhecidas. Todavia, devemos pontuar que os testemunhos sobre determinados fatos
ou assuntos não surgiram junto com a História Oral, eles são bem anteriores, mas com
ela surge a técnica de recolhimento desses depoimentos e o meio de documentá-los e
disponibilizá-los para pesquisas.

Outro benefício importante que este campo de pesquisa nos propicia, além da
documentação de fontes sonoras, é poder contar a história daqueles ―que não têm
história oficializada‖. Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy (2005), por ainda não
terem reconhecimento, registros ou análises de suas histórias, a história oral procura
saldar esta dívida.
As colocações propostas até então se encaixam perfeitamente no nosso quadro
de pesquisa onde, conforme já citado, temos uma cidade muito jovem com poucos
documentos à disposição, mas com muitas histórias importantes que precisam ser
documentadas. Histórias essas que se relacionam com um grupo de minorias, as
mulheres, que muitas vezes foram silenciadas pela história e impedidas de serem
protagonistas de suas próprias vidas, na sociedade ou no trabalho.
Para efetivação de nosso trabalho, as entrevistadas foram contatadas e
apresentadas ao teor da pesquisa, todas prontamente se disponibilizaram e contribuíram
espontaneamente com seus depoimentos, o que ocorreu de forma bastante produtiva.

A importância da emancipação de Nova Porteirinha e a atuação das mulheres


neste processo
Todas as entrevistadas fizeram questão de ressaltar a importância e a
necessidade da emancipação do distrito de Nova Porteirinha, principalmente por causa
da distância entre o distrito e a cidade. Dona Lenita nos revelou que a Creche Cantigas
de Roda foi instalada, no ainda distrito, através de seu intermédio junto a uma
representante da LBA (Legião Brasileira de Assistência). Entretanto, o fato de depender
de Porteirinha, fazia com que ela fosse todos os dias na cidade buscar comida para a
creche.

306
Maria Antônia ressaltou a questão da distância e discorreu sobre a
movimentação em torno da inclusão de Nova Porteirinha na lista dos distritos que se
emancipariam, conforme determinação do Governo Estadual. Segundo a entrevistada,
muitas pessoas se empenharam na busca dos documentos exigidos pela lei que previa a
possibilidade de emancipação.
Um fato importante destacado por nossa entrevistada é que, naquela época, a
comunicação não era tão rápida como hoje. O uso da internet e do e-mail era pouco
difundido e também de difícil acesso, fazendo com que muitas vezes fosse necessário
que algum membro da Comissão Pró-Emancipação viajasse para Belo Horizonte, o
dinheiro da passagem era angariado entre os componentes da comissão.
Mesmo diante das dificuldades, Maria Antônia enfatizou o amor com que
realizavam todo esse trabalho, chegando a comparar a transformação do distrito em
cidade ao nascimento de uma criança, onde Nova Porteirinha foi gestada e nasceu de
Porteirinha, enquanto seus moradores se preparavam para recebê-la.
Marilza Pereira nos disse que, na época, julgava importante a emancipação
porque o distrito já estava pronto para caminhar com suas próprias pernas, além da
questão da distância, amplamente discutida, e levando em consideração que Nova
Porteirinha estava mais próxima de Janaúba, cidade vizinha, do que de sua própria sede,
Porteirinha.
Mais tarde, essa questão voltaria à tona em uma causa defendida por Marilza,
quando já era vereadora. Ela reivindicou que a Comarca de Nova Porteirinha
pertencesse à Janaúba, tendo em vista a grande proximidade entre as duas cidades.
Antes de ocorrer tal mudança os moradores tinham que se deslocar até Porteirinha para
resolver suas questões.
Regina Antônia, ainda muito jovem na época da emancipação, participou de
vários movimentos que reivindicavam a elevação do distrito à categoria de cidade,
muitos deles organizados pelo Grupo de Jovens Apóstolos com Cristo (Joac),
lembrando que na época os grupos religiosos exerciam forte influência na
movimentação política. Ela ressaltou ainda o prejuízo que várias áreas, como saúde,
esporte e educação, tinham devido a distância de Porteirinha.
Diante dos depoimentos de nossas entrevistadas, podemos perceber a
relevância da emancipação do distrito de Nova Porteirinha, causa que foi igualmente
defendida por todas. A economia local alavancou após a implantação do Projeto de
Irrigação do Gorutuba, fazendo com que o distrito se desenvolvesse, sem contar ainda a

307
boa estrutura que já possuía com escola, creche, posto de saúde, casas, linhas
telefônicas, etc.
Mesmo diante desse desenvolvimento, os moradores encontravam dificuldades
em diversas questões, isso impulsionou ainda mais a movimentação em torno da
emancipação, o que podemos perceber não apenas nas lideranças e nos participantes de
movimentos, mas também na grande maioria da população quando votaram no
plebiscito que definiria os rumos da futura cidade.

As mulheres de Nova Porteirinha


Durante as pesquisas realizadas para este trabalho ficou claro que as mulheres
de Nova Porteirinha ―têm vez e voz‖, conforme alude o ditado popular. Isso se deve ao
fato de que, segundo nossas vereadoras, as mulheres participavam e ainda participam
ativamente da vida da população em todas as áreas, como educação, comércio, igreja,
entre outras. Há que se considerar que as mulheres de Nova Porteirinha tiveram,
juntamente com os homens, participação ativa no processo de emancipação do
município. Outro destaque é para o fato de que três foram eleitas vereadoras no primeiro
mandato, além de que elas também ocuparam diversos cargos importantes para o
desenvolvimento da cidade.
Conhecendo um pouco de nossas entrevistadas, percebemos também que antes
de serem vereadoras, todas já prestavam trabalhos de relevância à população. Elas são
unânimes em afirmar que as mulheres de Nova Porteirinha sempre foram atuantes e
buscaram ocupar espaços importantes na sociedade, contribuindo para o crescimento do
município. Ficou claro que elas não veem resistência por parte da comunidade pelo fato
de estarem presentes nas lideranças, no mercado de trabalho e na política, o que é de se
admirar, uma vez que ainda vivemos numa sociedade tipicamente machista.
Vale destacar que a Escola Estadual Erezinha Antunes Martins e a Creche
Cantigas de Rodas têm como diretoras duas mulheres e que também grande parte dos
que trabalham nas duas instituições são mulheres. Tal fato corrobora a assertiva de que
as mulheres estão no poder neste nosso campo de estudo. Asseveramos, pois, que em
Nova Porteirinha, o poder das mulheres não se revela apenas nos espaços escolares, mas
também se faz presente no meio rural, grande propulsor da economia do município,
conforme já citamos. De tal modo, elas têm se destacado como artesãs, líderes sindicais,
chefes de família, entre outros.

308
O preconceito
Dona Calú bem pontuou na entrevista que as mulheres de Nova Porteirinha são
determinadas e trabalhadoras, o que as torna ativas em todas as instâncias da sociedade,
não causando espanto ou estranheza à população, inclusive na área política. Entretanto,
Dona Lenita ressaltou que há quase vinte anos, a aceitação não era tão boa quanto hoje,
mas ainda assim não sofreu ressalvas por parte dos munícipes.
Regina muito contribuiu ao lembrar que, ainda que se tenha boa aceitação da
população, alguns homens não aceitam de bom grado o fato de Nova Porteirinha ter
mulheres atuantes na política, mesmo que várias vereadoras tenham sido eleitas e outras
ocupem importantes pastas na Prefeitura Municipal. Ela chegou a sentir tal preconceito,
quando abordada por um homem sobre o real motivo de as mulheres se elegerem, num
claro ataque à honra das vereadoras. Apesar disso, todas revelaram não terem sofrido
nenhum tipo de discriminação por parte dos colegas vereadores, Dentro da Casa
Legislativa. Isso mostra que tiveram uma relação muito harmoniosa e de grande
respeito, inclusive, as mulheres sempre participaram ativamente das Mesas Diretoras e
das Comissões formadas dentro da Casa.
Ao final dessas ponderações, ajuizamos a importância da História Oral, uma
vez que nos ofereceu valioso subsidio para a história do de Nova Porteirinha, ainda tão
jovem, bem como para o poder que as mulheres possuem na história desse município.
Ainda podemos destacar a quebra de paradigmas ultrapassados ainda tão arraigados em
nosso cotidiano. Em Nova Porteirinha, lugar de mulher é na política, na agricultura, no
artesanato, no serviço público, nos movimentos sociais ou em qualquer área que ela
deseje estar e atuar.
Cabe ressaltar a escassez de material produzido sobre a cidade, o que nos
impeliu a montar quase que um quebra-cabeça com o que tínhamos em mãos. A partir
de então Nova Porteirinha passou a ter um pequeno e modesto resumo de sua criação, o
que serviu de base para demonstrar a trajetória das mulheres selecionadas para esta
pesquisa.
Tivemos o prazer de conversar com as protagonistas desta pesquisa, o que
corroborou ainda mais para a efetivação dos objetivos pretendidos. Nas entrevistas
pudemos traçar suas trajetórias na vida pública, que começou ainda antes do ingresso na
política. Abordamos ainda temas de grande interesse quando se trata de estudos sobre as
relações de gêneros, como por exemplo, o preconceito e aceitação da sociedade ao fato
de mulheres ocuparem cargos públicos de relevância. Aliado à eleição dessas mulheres

309
e às respostas por elas apresentadas em temas que poderiam ser delicados, vimos
florescer a principal peculiaridade de Nova Porteirinha.
Isto porque nesse município as mulheres são muito ativas e participantes,
muitas têm trajetórias marcantes na vida pública, o que as fez ingressar na política e
obter bons resultados. Sem falar ainda daquelas que fazem movimentar a economia do
município trabalhando como agricultoras e produzindo seu artesanato, e tantas outras
que não temem ocupar qualquer cargo. Além do mais, nota-se a quase inexistência de
preconceito por parte dos munícipes.
Concluímos após os estudos empreendidos nesta pesquisa que os resultados
alcançados foram extremamente satisfatórios, pois superaram a expectativa inicial, nos
mostrando o potencial do nosso campo de estudo, uma cidade praticamente
desconhecida, mas que revela uma experiência significativa e importante não só para a
história das mulheres, mas também para os estudos históricos em geral, sendo, portanto,
um bom exemplo a ser seguido.

Referências

BARROS, José D‘Assunção. Cidade e História. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Trad. De Jonas Camargo Leite e Eduardo
Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Coord.). Usos e abusos da
História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
FREITAS, Regina Antonia de Souza. Participação feminina na política de Nova
Porteirinha/MG: depoimento. Entrevista concedida a Rhaenny Maísa Freitas,
Janeiro/2014.
Guia Turístico Janaúba e Nova Porteirinha Minas Gerais: Pelos caminhos do Gorutuba.
IBGE (www.ibge.gov.br)
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola,
2005.
MENDES, Marilza Pereira Souza. Participação feminina na política de Nova
Porteirinha/MG: depoimento. Entrevista concedida a Rhaenny Maísa Freitas,
Janeiro/2014.
RODRIGUES, Maria Antônia Lima. Participação feminina na política de Nova
Porteirinha/MG: depoimento. Entrevista concedida a Rhaenny Maísa Freitas,
Janeiro/2014.
SILVA, Lenita. Participação feminina na política de Nova Porteirinha/MG: depoimento.
Entrevista concedida a Rhaenny Maísa Freitas, Janeiro/2014.
SOUZA, Carolina Cândida Vieira de. Participação feminina na política de Nova
Porteirinha/MG: depoimento. Entrevista concedida a Rhaenny Maísa Freitas,
Julho/2014.

310
ALGUNS ELEMENTOS PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DOS CONCEITOS
DE IGREJA E DE CRISTIANISMO NA OBRA DE EUSÉBIO DE CESAREIA

Robson Della Torre

Resumo: A História Eclesiástica escrita pelo bispo palestino Eusébio de Cesareia (c.
260-339) é um dos textos mais lidos e estudados sobre o cristianismo antigo, sendo
referência tanto para a compreensão da organização das comunidades cristãs dos três
primeiros séculos quanto para o entendimento das mudanças que sofreram a partir das
inovações introduzidas pelo imperador Constantino (306-337) na relação do Império
romano para com elas. Todavia, existem pouquíssimos e pouco aprofundados estudos
sobre conceitos centrais da obra do bispo palestino e que embasam a composição desse
e de outros de seus textos. Tal é o caso daqueles que pretendo abordar nessa
apresentação: Igreja e cristianismo. Para lidar com essa grave lacuna da historiografia,
oferecerei alguns elementos que nos permitam fazer uma breve problematização inicial
dessas duas noções. Para tanto, partirei da análise filológica e discursiva de excertos
tanto da História Eclesiástica quanto de outros textos eusebianos, sobretudo a
Preparação do Evangelho e os Comentários aos Salmos, para mostrar a especificidade
e consistência com que Eusébio se valia desses conceitos para se referir a realidades
distintas, porém complementares. Em linhas gerais, tentarei mostrar como, para
Eusébio, ―Igreja‖ se refere a uma instituição espalhada por todo o Império, centrada em
lideranças tais como bispos e mártires que governam cada uma das comunidades e que
se relacionam entre si por meio de contatos regulares que visavam manter uma
ortodoxia e uma disciplina eclesiástica comum; por sua vez, ―cristianismo‖ designa, a
um só tempo, um conjunto de fiéis, um corpus doutrinal e um modo de vida que se opõe
tanto ao judaísmo quanto ao ―helenismo‖ (i.e. a cultura grega entendida em sua
multiplicidade de cultos e deuses).

Palavras-chave: Eusébio, bispo de Cesareia (c. 260-339); cristianismo – Antiguidade


Tardia; história eclesiástica.

O problema que pretendo abordar nesta comunicação tem, de certa forma,


acompanhado minhas pesquisas desde a graduação e tem ocupado minha atenção no
estudo de vários assuntos diferentes com que venho trabalhando nesses últimos anos na
área de Antiguidade tardia. A definição de conceitos é algo muito caro ao tipo de
pesquisa que faço, ainda mais em casos como o do bispo Eusébio de Cesareia (c. 260-
339), que utilizava vários que ainda nos são familiares hoje, mas que ele próprio
empregava de forma bastante singular. A meu ver, a apreciação que se pode fazer de sua
obra depende de uma compreensão adequada do modo como o autor manipulava seus
conceitos dentro do contexto histórico em que operava, seja para mostrar sua diferença
para com o nosso presente, seja para entender de que modo recuperava ou transformava

311
acepções básicas das noções predominantes em sua época a fim de construir uma
interpretação particular de sua própria experiência histórica.
Não tenho aqui a pretensão de esgotar a discussão sobre os conceitos de Igreja e
de cristianismo em Eusébio de Cesareia. O trabalho de uma década com seus textos me
tem mostrado que isso é praticamente impossível, pois, a cada nova leitura, surgem-me
nuances novas de seu uso que conduzem a entendimentos diferentes. O que pretendo
fazer aqui é apenas um esboço de sistematização das minhas impressões de leitura da
obra eusebiana com base em algumas passagens que me parecem relevantes para o
entendimento desses dois conceitos.
Para começar, é preciso notar a total ausência de estudos sobre os conceitos de
igreja e de cristianismo na obra de Eusébio de Cesareia. Por certo, existem trabalhos a
respeito para vários outros autores cristãos tardo antigos e algumas sínteses sobre como
essas noções eram empregadas de forma mais geral na Antiguidade tardia, mas nada
específico para o bispo de Cesareia. Isso é tão mais estranho porque Eusébio foi o
primeiro autor a refletir sobre a existência de uma Igreja portadora de história – ou seja,
de algo concreto, terreno, feito por mulheres e homens de carne e osso. Sua História
Eclesiástica também é um dos principais monumentos legados pelo cristianismo antigo
que nos permitem entender o funcionamento de uma série de comunidades cristãs ao
redor do Mediterrâneo, mas ninguém igualmente se ocupou em entender que noção de
cristianismo amparava Eusébio em seu trabalho de seleção, catalogação e interpretação
desses diferentes ―cristianismos‖ – para usar um termo mais simpático à nossa
experiência contemporânea – contidos em sua obra. Afora uma notória exceção que
conheço, os pesquisadores tendem a pressupor que os conceitos de igreja e de
cristianismo em Eusébio sejam auto-evidentes, às vezes similares àqueles que
empregamos na modernidade, às vezes mais afeitos a interpretações do início da
modernidade que tendiam associar essa ―igreja‖ eusebiana àquele organismo
centralizado e hierarquizado resultante das duas grandes Reformas dos séculos XI-XII e
do XVI. Isso por vezes leva a graves equívocos, como quando, não raro, se tomam esses
dois conceitos como sinônimos ou algo muito próximo disso, de modo que não é
incomum encontrarmos descrições da História Eclesiástica que pressupõem que ela seja
uma ―história do cristianismo‖, algo que ela jamais pretendeu ser.
Longe de ser inofensiva, essa pressuposição conduz a avaliações problemáticas
sobre a produção literária do bispo de Cesareia, algumas das quais muito influentes ou
que se tornaram praticamente senso comum na historiografia. A mais emblemática

312
dessas, a meu ver, afirma que Eusébio projetava para o passado cristão dos três
primeiros séculos sua própria experiência eclesiástica de início do século IV, o que, em
certo sentido, ―deturparia‖ o modo como esses primeiros cristãos eram retratados em
seus textos (um exemplo dentre tantos é o de MARKUS, 1990 – ou ainda BAUER,
1934). No entanto, nenhum dos pesquisadores que advoga essa tese explicita em que
consistia, efetivamente, esse modelo eclesiástico do século IV, nem mesmo percebe que
havia diferentes concepções sobre o que fossem a Igreja e o cristianismo nesse
momento (a noção de igreja de Eusébio é diferente da de um Atanásio de Alexandria,
por exemplo). Ou seja, se não definirmos ao certo o que o autor entendia como sendo a
igreja e o cristianismo de seu tempo, sequer seremos capazes de entender as razões de
suas escolhas, nem teremos condições de entender ao certo quão representativas eram
suas concepções a respeito dentro do universo intelectual de seu tempo.
Comecemos, então, por refletir como Eusébio entendia o conceito de igreja.
Tanto para ele como para seus contemporâneos, havia três acepções básicas para o
termo112. A primeira, derivada do significado original do termo em grego (ἐκκληζία
quer dizer literalmente ―assembleia‖), se referia a qualquer comunidade cristã que se
reunisse para viver e celebrar a fé em Cristo. Assim, por várias vezes, o termo podia ser
empregado para se referir a um grupo local de cristãos, como quando ele e tantos outros
autores do período mencionavam a ―igreja de Antioquia‖ ou a ―igreja de Jerusalém‖,
por exemplo. Derivado dessa acepção, ―igreja‖ também podia se referir ao local onde a
comunidade se reunia para realizar seus ritos e cultos. Esse significado era bastante
recente nesse momento (não temos muitas atestações de seu uso antes do início do
século IV), mas, ainda assim, aparecia nos livros finais da História Eclesiástica. O
terceiro significado do termo é bem mais complicado e, aqui, me interessa de forma
mais especial. Afinal, era nesse terceiro significado que Eusébio se expressava quando
se referia àquilo de que estava escrevendo a história. Trata-se da acepção de igreja como
o conjunto de fiéis espalhados pelo mundo todo, entendidos como um só conjunto que,
em sentido alegórico, era tratado como o ―corpo místico‖ de Cristo na terra.
Não foi Eusébio quem inventou esse significado para o termo ―igreja‖. De fato,
foi Paulo de Tarso, ainda em meados do século I, quem o teorizou por diversas vezes
em suas epístolas a diversas comunidades cristãs espalhadas pelo Mediterrâneo. Devido
à enorme influência paulina sobre os autores cristãos subsequentes, praticamente todos

112
Para o que se segue, baseio-me sobretudo em LAUWERS, 2015, p. 21-22, embora a bibliografia a
respeito seja bem mais extensa.

313
esses autores empregavam esse significado como se fosse algo óbvio, ainda que a
realidade em que os cristãos vivessem fosse muita mais complexa, heterogênea e difusa
do que o conceito pressupunha. O ponto em que Eusébio efetivamente inovava era
quando depreendia, da universalidade subentendida no conceito, um grau de
institucionalização e de hierarquização dessa ―igreja‖ que não se encontra com
facilidade nos autores anteriores a ele. A meu ver, isso fica bastante claro no parágrafo
introdutório da História Eclesiástica, no qual o bispo expunha os principais temas que
abordaria em seu livro:

As sucessões dos santos apóstolos junto com o tempo decorrido desde Nosso
Senhor até nós; quantos e quão grandes feitos são relatados a respeito da
história da Igreja; desta, quantos, sobretudo nas dioceses mais notáveis,
comandaram-na e lideraram-na com distinção; quantos, em cada geração,
foram os representantes do Verbo divino, seja por meio da escrita ou não;
quem, quantos e quando, movidos pelo desejo da inovação ao extremo do
erro, proclamaram-se como os autores do conhecimento, falsamente assim
chamado [1Tm 6, 20], repartindo sem piedade, como lobos opressores, o
rebanho de Cristo [At 20, 29]; depois disso, o que imediatamente se abateu
sobre todo o povo judeu devido à sua conspiração contra nosso Salvador; em
que medida, de que maneira e em que épocas o Verbo divino foi atacado
pelos gregos, e quão numerosos foram os que, de tempos em tempos,
submeteram-se, em Sua defesa, ao enfrentamento por meio do sangue e da
tortura; depois disso, os testemunhos que ocorreram também em nossa
própria época e o socorro propício e generoso de nosso Salvador a todos;
tudo isso decidi legar por escrito (EUSÉBIO DE CESAREIA. História
Eclesiástica 1.1.1-2)113.

Note-se como tudo aquilo que Eusébio associa ao que entende como sendo a
―história eclesiástica‖ se remete às principais lideranças das comunidades cristãs,
entendidas como parte de um todo unificado que se espalhava pelo Império romano.
Para Eusébio, importavam os bispos, os verdadeiros continuadores dos apóstolos e,
assim, partícipes dessas ―sucessões dos santos apóstolos‖; para ele, importavam também
os confessores da fé cristã, fossem eles escritores (ou seja, aqueles que hoje tendemos a

113
Ed. SCHWARTZ, 1903-1909, v. 1, p. 6: Τὰρ ηῶν ἱεπῶν ἀποζηόλυν διαδοσὰρ ζὺν καὶ ηοῖρ ἀπὸ ηοῦ
ζυηῆπορ ἡμῶν καὶ εἰρ ἡμᾶρ διηνςζμένοιρ σπόνοιρ, ὅζα ηε καὶ πηλίκα ππαγμαηεςθῆναι καηὰ ηὴν
ἐκκληζιαζηικὴν ἱζηοπίαν λέγεηαι, καὶ ὅζοι ηαύηηρ διαππεπῶρ ἐν ηαῖρ μάλιζηα ἐπιζημοηάηαιρ παποικίαιρ
ἡγήζανηό ηε καὶ πποέζηηζαν, ὅζοι ηε καηὰ γενεὰν ἑκάζηην ἀγπάθυρ ἢ καὶ διὰ ζςγγπαμμάηυν ηὸν θεῖον
ἐππέζβεςζαν λόγον, ηίνερ ηε καὶ ὅζοι καὶ ὁπηνίκα νευηεποποιίαρ ἱμέπῳ πλάνηρ εἰρ ἔζσαηον ἐλάζανηερ,
τεςδυνύμος γνώζευρ εἰζηγηηὰρ ἑαςηοὺρ ἀνακεκηπύσαζιν, ἀθειδῶρ οἷα λύκοι βαπεῖρ ηὴν Χπιζηοῦ
ποίμνην ἐπενηπίβονηερ, ππὸρ ἐπὶ ηούηοιρ καὶ ηὰ παπαςηίκα ηῆρ καηὰ ηοῦ ζυηῆπορ ἡμῶν ἐπιβοςλῆρ ηὸ πᾶν
Ἰοςδαίυν ἔθνορ πεπιελθόνηα, ὅζα ηε αὖ καὶ ὁποῖα καθ‘ οἵοςρ ηε σπόνοςρ ππὸρ ηῶν ἐθνῶν ὁ θεῖορ
πεπολέμηηαι λόγορ, καὶ πηλίκοι καηὰ καιποὺρ ηὸν δι‘ αἵμαηορ καὶ βαζάνυν ὑπὲπ αὐηοῦ διεξῆλθον ἀγῶνα,
ηά η‘ ἐπὶ ηούηοιρ καὶ καθ‘ ἡμᾶρ αὐηοὺρ μαπηύπια καὶ ηὴν ἐπὶ πᾶζιν ἵλευ καὶ εὐμενῆ ηοῦ ζυηῆπορ ἡμῶν
ἀνηίλητιν γπαθῇ παπαδοῦναι πποῃπημένορ. Todas as traduções do grego nesta comunicação são de
minha autoria.

314
chamar de apologistas) ou não; para ele, importavam os mártires, entendidos como
legítimos antagonistas dos não-cristãos. Eusébio se preocupava ainda em polemizar com
os judeus, comprazendo-se em narrar todas as agruras por que passaram nas mãos dos
romanos, entendendo-as como castigo divino por conta da paixão de morte de Cristo.
Do mesmo modo, ele se preocupava em polemizar com os ditos ―hereges‖ (tratados por
ele próprio dessa forma) para refutar suas doutrinas em prol do entendimento de uma
―fé ortodoxa‖. No entanto, sua História Eclesiástica não encontrava espaço algum para
tratar dos cristãos comuns, aquelas pessoas que viviam às margens de todas essas
intrigas e que, ao menos em tese, estavam submetidas à autoridade das lideranças
supracitadas. Também ele não encontrava qualquer espaço para falar do modo de vida
desses fieis comuns, nem sequer para tratar dos costumes diversificados das diferentes
comunidades ou ainda das práticas de culto cultivadas por cada igreja. Mesmo as
mulheres recebem pouquíssima atenção ao longo de toda a obra, fazendo apenas
aparições incidentais quando se encaixavam em alguma das categorias de liderança
mencionadas acima. Em especial, Eusébio simpatizava com as mulheres que sofriam
martírio e desconsiderava aquelas que escreviam.
Perceba-se ainda que não é qualquer tipo de liderança que interessa a Eusébio
para caracterizar sua ―igreja‖. No caso da sucessão apostólica, ele se interessava apenas
em listar os líderes das principais comunidades ao redor do Império – o que, na prática,
o limitava a se concentrar nos bispos de Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
Mesmo os ―fatos‖ relatados sobre essa igreja que interessam ao nosso autor são
limitados, pois ele se preocupava apenas com os ―grandes feitos‖ – um modelo herdado
da historiografia clássica, mas que deixava de lado toda a vida cotidiana e as práticas
culturais dos cristãos. Ou seja, por mais que Eusébio tivesse em mente uma concepção
de igreja universal, ele se interessava por uma fatia bastante diminuta de tudo aquilo que
a ela se associava.
Como complemento desse entendimento expresso na História Eclesiástica,
podemos citar uma passagem eusebiana retirada de outro texto seu, o Comentário a
Isaías, em que explicita ainda mais a importância de se pensar essa igreja de forma
institucional e hierarquizada:

315
[a propósito de Is 40, 2: Falai ao coração de Jerusalém, anunciai-lhe que
chegou ao fim sua humilhação114] Tal como o povo de Deus foi posto em
evidência, assim também o coração de Jerusalém meditará sobre a melhor
liderança do povo. Pois, tal como o coração é mais importante do que tudo no
corpo, assim também seja dito, de forma apropriada, que a liderança mais
importante de tudo no corpo da Igreja é o coração, que é o [coração] dos mais
bem dotados em inteligência, sabedoria e entendimento (EUSÉBIO DE
CESAREIA. Comentário a Isaías 2.16)115.

Ou ainda, se preferirmos, podemos realçar certo desprezo que Eusébio nutria


pelos fiéis comuns em prol dessa valorização das lideranças eclesiásticas em outra
passagem ainda de seus textos, dessa vez retirada de seu Comentário aos Salmos, em
certa altura em que comenta uma das passagens paulinas que trata dessa concepção da
igreja como corpo de Cristo:

[a propósito de Sl 68, 5: multiplicam-se mais do que os cabelos de minha


cabeça aqueles que me odeiam sem motivo] Se o corpo [de Cristo] é a Igreja,
como [diz] o apóstolo, que ensinou dizendo: vós sois o corpo de Cristo e
membros de seus membros [1Cor 12, 27], podes dizer, de fato, que as partes
mais necessárias do corpo e, por assim dizer, também os órgãos dos sentidos
são aqueles mais indispensáveis para o povo. Assim, os líderes [da igreja] são
como a cabeça [para o corpo], os professores como a boca, os ouvintes
inteligentes como os ouvidos, os esclarecidos nas Escrituras como os olhos,
os mais habilidosos como as mãos. De modo análogo, as partes restantes do
corpo podem ser atribuídas aos demais, sendo toda a multidão como cabelo e
o número excedente como um adorno ao conjunto do corpo, verdadeiramente
sem necessidade ou utilidade alguma para os demais membros (EUSÉBIO
DE CESAREIA. Comentários aos Salmos = PG 23, col. 732, linhas 19-
32)116.

Por certo, é impossível generalizar tal concepção hierarquizada – e, porque não


dizer, elitista – de igreja para todos os autores cristãos do período, muito menos assumir
que o recorte estabelecido por Eusébio para representar sua igreja em forma de texto
deva servir de guia para nós em nossas investigações sobre o cristianismo antigo. No

114
Todas as citações eusebianas de textos vetero-testamentários são oriundas da Septuaginta. Desse
modo, traduzo-as de acordo com a versão apresentada pelo próprio Eusébio em seus textos.
115
Ed. ZEIGLER, 1975, livro 2, parágrafo 16: ὥζπεπ δὲ ἀποδέδεικηαι ὁ λαὸρ ηοῦ θεοῦ, οὕηυρ ἡ καπδία
Ἰεποςζαλὴμ νοηθήζεηαι ηὸ κπεῖηηον ηάγμα ηοῦ λαοῦ· ὡρ γὰπ ἐν ζώμαηι ἡ καπδία ηὸ κςπιώηαηόν ἐζηι ηοῦ
πανηόρ, οὕηυ καὶ ἐν ηῷ ηῆρ ἐκκληζίαρ ζώμαηι ηὸ κςπιώηαηον ηάγμα καπδία ηοῦ πανηὸρ εἰκόηυρ ἂν
λεσθείη, ὅπεπ ἐζηὶ ηὸ ηῶν λογικυηέπυν θπονήζει ηε καὶ διανοίᾳ καὶ λογιζμῷ διαθεπόνηυν.
116
Εἰ δὲ ζῶμα αὐηοῦ ηςγσάνει ἡ Ἐκκληζία αὐηοῦ, καηὰ ηὸν Ἀπόζηολον, ὃρ ἐδίδαζκε λέγυν· Ὑ μ ε ῖ ρ δ έ
ἐ ζ η ε ζ ῶ μ α Χ π ι ζ η ο ῦ κ α ὶ μ έ λ η ἐ κ μ έ π ο ς ρ [1Cor 12, 27]· εἴποιρ ἂν ηὰ μὲν ἀναγκαιόηεπα
μέλη ηοῦ ζώμαηορ, καὶ ηὰ, ἵν‘ οὕηυρ εἴπυ, αἰζθηηήπια, ηοὺρ ἀναγκαίοςρ εἶναι ηοῦ λαοῦ· οἷον κεθαλὴν
ηοὺρ ἡγοςμένοςρ, ζηόμα ηοὺρ διδαζκάλοςρ, καὶ ηοὺρ ζςνεηοὺρ ἀκποαηὰρ ηὰ ὦηα, ηοὺρ ὀθθαλμοὺρ ηοὺρ
διοπαηικοὺρ ηῶν Γπαθῶν, σεῖπαρ ηοὺρ ππακηικυηέποςρ, ηούηοιρ ηε ἀναλόγυρ ηὰ λοιπὰ μέλη ηοῦ ζώμαηορ,
οἷρ ἀκόλοςθον εἴη νοεῖν ηπίσαρ εἶναι ηοῦ πανηὸρ ηὰ πλήθη, καὶ ηὸν πεπιηηὸν ὄσλον θέπονηαρ μέν ηινα
κόζμον ὅλῳ ηῷ ζώμαηι, μὴ μὴν ἀναγκαίαν ηινὰ σπῆζιν ὁμοίαν ηὰ λοιπὰ μέλη.

316
entanto, não devemos perde-lo de mente caso queiramos ir além das balizas delimitadas
pelo bispo de Cesareia naquilo que julgava importante.
Algo análogo ocorre quando nos voltamos para a concepção de cristianismo
advogada por Eusébio. Com efeito, ele parece se importar muito pouco com essa noção
em seus textos, mas, nas poucas vezes em que ela aparece em sua obra (contabilizei
cerca de 15 ao todo), ela se mostra como algo totalmente diferente de sua ideia de
igreja. De fato, o conceito mal é mencionado em sua História Eclesiástica, sendo sua
discussão reservada a obras apologéticas como a Preparação do Evangelho e a
Demonstração do Evangelho, ambas contemporâneas à redação da história. Contudo,
quando de fato é mencionado, ele não contém mais a dimensão institucional de igreja,
mas assume um caráter mais voltado para o plano das práticas e crenças religiosas. Em
particular, Eusébio prefere definir seu ―cristianismo‖ como sendo uma ―corporação‖ ou
mesmo ―forma de governo‖ (πολίηεςμα, em grego) que se constrói em contraposição
tanto ao judaísmo como àquilo que chama de ―helenismo‖. Vejamos como isso funciona
em uma passagem introdutória da Demonstração do Evangelho:

Disse já anteriormente […] que o cristianismo não é nem helenismo nem


judaísmo, mas algo próprio que porta [em si] características de religiosidade
(σαπακηῆπα θεοζεβείαρ). Também não é algo novo nem excepcional, mas é,
sim, algo da mais alta ancestralidade, costumeiro e familiar aos amados de
Deus, reconhecidos por sua piedade e senso de justiça, desde antes dos
tempos de Moisés. […] Por um lado, chamar-se-ia adequadamente de
judaísmo o modo de vida estabelecido pela Lei de Moisés, dependente do
único Deus de todas as coisas. Por outro lado, helenismo, dito de forma
resumida, é a crença supersticiosa (δειζιδαιμονίαν) em vários deuses
conforme as tradições das nações (EUSÉBIO DE CESAREIA.
Demonstração do Evangelho 1.2.1-2)117.

Ou seja, seu conceito de cristianismo se abria para um escopo analítico muito


maior, posto que Eusébio se propusesse a pensar o cristianismo como um grupo
religioso muito mais alargado. Entretanto, por mais que abandonasse seu olhar
institucional e hierarquizado, o autor ainda não se abria para pensar a vivência e a
experiência religiosa dos fiéis comuns. Pelo contrário: pensando o cristianismo como

117
Ed. HEIKEL, 1913, p. 7: Εἴπηηαι μὲν ἤδη καὶ ππόηεπον […] ὡρ ὁ σπιζηιανιζμὸρ οὔηε ἑλληνιζμόρ ηίρ
ἐζηιν οὔηε ἰοςδαφζμόρ, οἰκεῖον δέ ηινα θέπυν σαπακηῆπα θεοζεβείαρ, καὶ ηοῦηον οὐ νέον οὐδὲ
ἐκηεηοπιζμένον, ἀλλ‘ εὖ μάλα παλαιόηαηον καὶ ηοῖρ ππὸ ηῶν Μυζέυρ σπόνυν θεοθιλέζιν ἐπ‘ εὐζεβείᾳ ηε
καὶ δικαιοζύνῃ μεμαπηςπημένοιρ ζςνήθη καὶ γνώπιμον […]. Τὸν μὲν ἰοςδαφζμὸν εὐλόγυρ ἄν ηιρ
ὀνομάζειε ηὴν καηὰ ηὸν Μυζέυρ νόμον διαηεηαγμένην πολιηείαν, ἑνὸρ ἐξημμένην ηοῦ ἐπὶ πάνηυν θεοῦ,
ηὸν δὲ ἑλληνιζμόν, ὡρ ἐν κεθαλαίῳ θάναι, ηὴν καηὰ ηὰ πάηπια ηῶν ἐθνῶν ἁπάνηυν εἰρ πλείοναρ θεοὺρ
δειζιδαιμονίαν.

317
uma terceira via entre o judaísmo e os cultos das nações, o bispo de Cesareia se
concentrava em promover um debate puramente ideológico, quase metafísico, entre
esses três eixos de análise, contrapondo doutrinas abstratas que atribuía a cada um dos
três e desconsiderando o modo como os demais cristãos concebiam o que fosse sua
própria prática religiosa.
Assim, para concluir, podemos afirmar que, do alto de um importante posto
eclesiástico de uma muito relevante igreja na Palestina, Eusébio adotava uma análise
deveras elitista e centrada no trabalho intelectual e institucional do clero como eixo
definidor tanto daquilo que entendia como Igreja como daquilo que acreditava ser o
cristianismo. Por certo, os conceitos eram bastante diferentes entre si, pois abarcavam
realidades bastante distintas, ainda que complementares, de um tipo específico de
organização cristã do século IV. No entanto, ambos partilhavam dessa leitura
excludente, que deve sempre estar diante de nossos olhos caso não queiramos
reproduzir o mesmo modelo de análise histórica do bispo palestino.

Referências bibliográficas:

Edições dos textos eusebianos:


SCHWARTZ, Eduard (hrsg.). Eusebius Werke. Zweiter Band: Die Kirchengeschichte.
Herausgegeben im Auftrage der Kirchenväter-Commission der königlichen preußischen
Akademie der Wissenschaften von Eduard Schwartz. Leipzig: J. C. Hinrichs, 1903-
1909, 3v. (Die griechischen christlichen Schriftsteller der ersten Jahrhunderte).
HEIKEL, Ivar A. (hrsg.). Eusebius Werke. Sechster Band: Die Demonstratio
Evangelica. Herausgeben im Auftrage der Kirchenväter-Commission der königlichen
preußischen Akademie der Wissenschaften von Ivar A. Heikel. Leipzig: J. C. Hinrichs,
1913 (Die griechischen christlichen Schriftsteller der ersten Jahrhunderte).
Eusebii Pamphili, Cæsareae Palæstinæ episcopi, opera omnia quæ exstant. Collegit
et denuo recognovit J.-P. Migne. Tomus quintus et sextus: Commentaria in Psalmos.
Paris: Migne, 1857 (Patrologiæ cursus completus, series Graeca XXIII-XXIV).
ZIEGLER, Joseph (hrsg.). Eusebius Werke. Neunter Band: Der Jesajakommentar.
Berlin: Akademie Verlag, 1975 (Die griechischen christlichen Schriftsteller der ersten
Jahrhunderte).

Monografias:
BAUER, Walter. Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity. Edited and
supplemented by Robert A. Kraft and Gerhard Kroedel. Philadelphia: Fortress Press,
1971 (1ª edição alemã: 1934).
LAUWERS, Michel. O Nascimento do Cemitério: Lugares sagrados e terra dos
mortos no Ocidente medieval. Campinas: Editora da Unicamp, 2015 (1ª edição
francesa: 2005).
MARKUS. Robert A. The End of Ancient Christianity. Cambridge: Cambridge
University Press, 1990.

318
AS RELAÇÕES ENTRE O SAGRADO FEMININO E O “PARTO”
MASCULINO: O NASCIMENTO DE EVA E A USURPAÇÃO DO PODER DA
GRANDE-DEUSA

Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos

Resumo: O presente trabalho objetivo analisar as relações de poder existente no campo


simbólico religioso entre as divindades, representadas pela Grande-Deusa e o Deus-Pai,
sobretudo, Javé. Através da relação entre o Matriarcalismo e Patriarcalismo, se destaca o
mito Judaico-Cristão e sua usurpação do poder referente à Mãe-Terra. Com a destituição
total dos poderes das divindades femininas, encontra-se uma inversão de papéis, no
sentido meta-biológico, em que o homem, entre outras usurpações e depreciações em
relação à Deusa e a Mulher, se torna seu progenitor. Não é mais a mulher que gera a vida,
pelo uso do seu útero, mas sim o homem, Adão, que de sua costela extraída por Deus,
―pariu‖ a mulher. Por se tratar de uma abordagem histórico-mitológica e religiosa, o
recorte temporal é alargado, ou seja, lida com durações que se prolongam entre os
primórdios da cultura Judaico-Cristã, até consolidação das tradições religiosas que
fundam a partir desse ponto. Subsidiado pelos estudos do imaginário social para
compreender a construção do imaginário feminino, recorre-se, metodologicamente, às
abordagens de gênero como categoria de análise histórica. Recorre-se também à história
das religiões e dos mitos, como palco de disputa de poder, entre divindades femininas e
masculinas, o que reflete diretamente no ordenamento político e social, sobretudo, no
ocidente. Entende-se que as sociedades são o reflexo das cosmogonias e cosmologias da
tradição religiosa em que estão inseridas, e assim, tendem a reproduzir os discursos e
papéis ali atribuídos ao feminino e masculino. Dessa forma, na tensão entre o matriarcal e
o patriarcal, encontra-se como as relações de poder se engendram a partir daí.

Palavras-Chaves: Grande-Deusa; Matriarcalismo; Patriarcalismo.

Introdução
Inserido no contexto das relações de poder e de gênero entre as divindades
representadas pela Grande-Deusa e o Deus-Pai, o Deus abraâmico, através de Adão,
fornece ao primeiro homem a condição exclusivamente feminina de gerar vida, no
momento em que Eva é extraída de sua costela. Ou seja, Adão que é homem no sentido
biológico/fisiológico e desprovido de um útero, foi quem deu a luz à mulher e não o
inverso, usurpando assim da qualidade inerente do feminino de conceber a vida.
É nesse palco de disputa de poder entre as divindades e seus representantes no
mundo terreno (homens e mulheres) que nosso recorte temporal encontra-se alargado,
pois tem como objeto de reflexão a cosmogonia Judaica e Cristã e o desenvolvimento de
suas relações de poder e gênero. Por isso, recorremos aos estudos do imaginário e
representações sociais para compreender a construção do imaginário feminino, sendo

319
necessário perpassar também pelas abordagens de gênero, como categoria de análise
histórica.
Robert Muchembled (2001) denominou o imaginário como um fenômeno coletivo
que se constrói sobre a realidade e é produzido pelos múltiplos canais culturais que
irrigam uma sociedade, não se configurando em um tipo de véu metafísico divino. O
imaginário seria uma espécie de maquinaria escondida sob a superfície das coisas,
poderosamente ativa, por que cria sistemas de explicação e motiva igualmente ações
individuais e coletivas. Para Sandra Jatahy Pesavento (1995, p. 15), ―o imaginário faz
parte de um campo de representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por
imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade‖.
Por sua vez, entendemos como representações sociais aquilo que, segundo Roger
Chartier (1990), organizam as formas como o mundo social é apreendido, como
categorias de percepção do real, sendo determinadas pelos interesses dos grupos sociais
que a construíram. Elas são as produções dos saberes sociais, um modo de interpretar a
realidade social, fornecendo sentido. Para Denise Jodelet (2001, p. 17), as representações
sociais circulam nos discursos e são carregadas pelas palavras, veiculadas nas mensagens
e imagens midiáticas, cristalizadas nas condutas e agenciamentos materiais ou espaciais.
Com isso, o modo de pensar e interpretar ―a mulher‖ em determinada sociedade
repercute nas formas como os papéis de gênero são apresentados, traduzido em um
imaginário social feminino. Para Tânia Navarro Swain (1994), no imaginário marcado
pelas relações entre os sexos e a formação de seus papéis sociais e suas representações, há
a construção das relações de poder, em que nas sociedades ocidentais existe a
predominância da dominação masculina, forjada como natural. Isso contribui para que
esse imaginário social feminino se naturalize e adquira valor de verdade, atuando como
justificativa e legitimação para todo tipo de ordenamento de controle político e jurídico.
Esse trabalho aborda ainda as construções do imaginário feminino e as
representações em torno da Mãe-Terra e do Deus macho, quando a Deusa possuía em
antigas sociedades poderes para gerar a vida e era progenitora do mundo, perdendo seu
lugar e espaço para Jeová. Dessa maneira, é preciso entender essa ruptura em relação ao
imaginário feminino através das representações simbólicas e sagradas entre essas
divindades. A tradição Judaica e Cristã instituiu seu próprio panteão de referenciais
femininos, que vão desde suas associações com o Demônio, como Lilith e Eva, até
referenciais de redenção como a virgem Maria e Maria Madalena, todas enquadradas
numa concepção misógina, em que a mulher é entendida como inferior ao homem.

320
Do Matriarcado ao Patriarcado: A usurpação do poder da Grande Deusa
Nas associações matriarcais se desenvolveram diversas realizações humanas, em
que a figura feminina desempenhou papel decisivo, como a domesticação de plantas, a
aquisição de campos cultivados e que lhe conferiam status social. Nessas associações ou
sociedades, a figura da Grande-Deusa era central tendo, geralmente, participação na
criação do universo e/ou do mundo humano que, segundo Mircea Eliade (1978, p.61),
―durante milênios a terra mãe dava luz sozinha por partogênese118‖. Esse papel feminino
privilegiado permitiu a criação de instituições de caráter matriarcal, nas quais é o marido
que habita a casa da esposa. Para o mesmo autor,

A fertilidade da terra é solidária com a fecundidade feminina, conseqüentemente,


as mulheres tornam-se responsáveis pela abundância das colheitas pois são elas
que conhecem o ―mistério‖ da criação. Trata-se de um mistério religioso por que
governa a origem da vida, o alimento e a morte. Mais tarde, após a descoberta do
arado, o trabalho agrário é assimilado ao ato sexual (ELIADE, 1978, p.60-61).

De acordo com a Swain (1994), o culto a Grande Deusa (bem como nas
sociedades matriarcais) não se resume às famigeradas atribuições de fecundidade e
maternidade. Soma-se a esses outras realizações expressivas como a escrita, a
domesticação de plantas, a legislação, a linguagem e a medicina. Contudo, observamos
que a Grande Deusa e o meio social em que estavam inseridas começam a perder espaço.
Para Joseph Campbell (1990), com invasões dos semitas e indo-europeus,
orientados por mitologias masculinas, em torno de quatro mil anos antes de Cristo, a
cultura da Grande-Deusa foi perdendo seu poder para a cultura dos invasores, como o
Deus-Pai, Zeus, Javé ou Jeová. Com isso, tem-se a instalação da sociedade patriarcal que
se mantém até hoje.
No plano da representação sagrada, a deusa foi rebaixada em divindades menores,
dominadas por outras divindades masculinas, como Zeus, enquanto no ordenamento
social ―[...] os homens assumiram as rédeas da economia, política, religião e do poder
social nas comunidades urbanas emergentes‖ (ADOSAVIO, 2009, p. 257).
Rose Marie Muraro (1997) destaca uma transição da etapa matricêntrica (referente a
matriarcado) da humanidade para a fase patriarcal, passando por quatro etapas que se
sucedem de forma cronológica. Na primeira etapa, o mundo é criado por uma deusa-mãe sem
auxílio de ninguém. Na segunda, ele é criado por um deus andrógino ou um casal criador. Na

118
Refere-se à criação, crescimento ou desenvolvimento de uma vida sem fertilização, ou seja, são
fêmeas/mulheres/Deusas que (pro)criam sem precisar da colaboração de um macho/homem/Deus.

321
terceira, um deus macho que toma o poder da deusa e cria o mundo sobre o corpo da deusa
primordial. Finalmente, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho.
Ainda de acordo com Muraro (1997), a primeira etapa se relaciona com o mito
grego em que a Grande-Deusa cria o universo sozinha. A criadora primária é Géia, a
Mãe-Terra; dela nasceram todos os protodeuses, entre eles Réia, a mãe de Zeus, o futuro
dominador do Olimpo. O segundo caso é referente a um deus andrógino que gera todos os
deuses no hinduísmo e que, na mitologia chinesa, masculino e feminino governam juntos,
―o yin e o yang‖. O terceiro caso cita a mitologia sumeriana, que em um primeiro
momento, a deusa Siduri reinava em um jardim de delícias onde o seu poder foi usurpado
por um deus solar. Na quarta situação não existe mais uma deusa mulher como a criadora
da terra, esta é substituída por um deus macho que cria o mundo sozinho, como é o caso
do mito Judaico e Cristão. Segundo Mariza Mendes (2000, p. 30), ―na tradição hebraica o
deus de Abraão era único dando origem ao monoteísmo Judaico-Cristão.‖
Silvia Tubert (1996) pontua que não existe lutas primordiais entre divindades
masculinas e femininas no gênesis, pois Deus é único e cria o mundo do nada, sem
necessitar de uma matéria prévia para construir sua obra. Nas religiões monoteístas, o
feminino e suas representações simbólicas desaparecem totalmente, pois tudo é
masculino: seus nomes, os adjetivos que o qualifica e os pronomes que se referem a ele
pertencem ao gênero masculino. Deus é o rei, o pai e o senhor das batalhas. Os dez
mandamentos são dirigidos ao homem e o pacto entre Javé com o povo de Israel refere-se
também aos homens. ―É necessária a adoração de um deus masculino vitorioso na cultura
patriarcal, uma vez que ela legitima a ordem sociopolítica do ponto de vista religioso‖
(TUBERT, 1996, p. 94).
A mulher que outrora encontrava na Grande-Deusa ou Mãe-Terra, atributos de
permissiva, amorosa e sábia, esbarra no referencial feminino proposto pela tradição
Judaica e Cristã que são ancorados na figura de Eva, criada da costela do homem. Ela é
fraca, desobediente e compactua com o mal (a serpente) em que contribui para abalar a
relação entre o homem e Javé.

No princípio, Deus criou os céus e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga e as
trevas cobriam o abismo e um sopor de Deus agitava a superfície das águas [...].
Deus disse: ―Façamos o homem à nossa imagem como nossa semelhança, e que
eles dominem sobre os peixes do mar, as aves dos céu, os animais domésticos,
todas as feras e todos os répteis que se rastejam sobre a terra‖ [...]. Iahweh Deus
disse: ―Não é bom que o homem esteja só; vou uma auxiliar que lhe
corresponda.‖ [...]. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar.
Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a
trouxe ao homem. [...].(BÍBLIA, gênesis, 1:1-26; 2:18-21-22)

322
É nesse momento que se têm as associações do Demônio à mulher por parte da
Igreja, principalmente durante o período medieval. Ocorre que durante a Idade Média há
um investimento discursivo em torno da figura feminina, pois se trata de uma época
perpassada pela misoginia. Com isso, as representações em torno das mulheres tendem a
relacioná-las a entidade demônio,embora exista uma oportunidade de redenção, mas
remetendo a mulher a posições de inferioridade e submissão em relação ao homem.
Surgiram assim, modelos de feminilidades para as mulheres que se ancoravam em figuras
míticas da Bíblia, numa dicotomia entre a ―mulher boa‖ e a ―mulher má‖, protagonizados
por Eva e Maria, embora existam outros modelos de feminilidades que tendem a reforçar
essa mesma dicotomia.

As mulheres de Jeová, do diabólico ao divino


Com o advento da cultura Judaica e Cristã se estabelece uma organização
patriarcal que tem, como consequência, a perda de espaço, autonomia e liberdade em
relação ao feminino. A Grande-Deusa, através das mulheres, é desvalorizada e
descredenciada de qualquer protagonismo, diante da ordem do Pai e dos homens. Para
Tubert (1996, p.92-93),

Nas Escrituras, Eva aparece como uma simples mulher. Philips assinala que tal
fato é devido a que sua história é também a história da substituição da deusa-
mãe pelo deus masculino, Jeová. Sendo uma criadora destituída, converte-se no
criado. O deus criador ocupa o lugar de deusa procriadora que controlava os
ciclos do nascimento, da morte e das estações. É possível inferir que os autores
desses textos acreditavam que a civilização não podia começar nem sustentar-
se sem a dominação e domesticação do feminino como poder religioso
dominante.

Eva foi criada a partir de uma costela de Adão, nascida do homem, fato que pode
ser interpretado, segundo Séverine Fargette (2006, p. 62), como origem da maldade
feminina: ―é esse osso que correspondia exatamente ao espírito pérfido da mulher‖. Nessa
concepção, nota-se a inferioridade da mulher que nasce depois do homem, não sendo
criada diretamente por Deus.
Todavia, se levarmos o mito de Lilith em consideração, outros estereótipos de
depreciação irão surgir. Lilith, segundo a tradição Talmúdica, teria sido a primeira mulher
de Adão, criada através do barro e diretamente por Deus. Ela entra em conflitos com
Adão, pois não aceita a inferioridade e a submissão ao homem. Clama, portanto, por
igualdade, liberdade para escolher, agir e decidir. Lilith não se submeteu aos caprichos do

323
homem (Adão) e sentindo que seu companheiro não atenderia suas reivindicações ela se
rebela partindo e o deixando só, caindo sobre ela todos os estereótipos demoníacos
possíveis.
A partir deste episódio é que acontece a criação de Eva. Mesmo assim, isso não
foi capaz de assegurar que Javé não se decepcionasse mais uma vez com a figura
feminina porque Eva não resiste à tentação e é corrompida pela serpente, sendo culpada
por corromper o homem. Com isso, o homem e a mulher são expulsos do paraíso,
momento em que caem em desgosto com o criador.
As duas mulheres de Adão foram relacionadas ao mal, tendo na sexualidade delas
a marca da decadência humana, sendo, por isso, condenadas. Segundo Swain (1994),
Lilith é a mãe dos demônios, atormentadora dos mortais. Eva é a inconsciente, a
pecadora, a causadora da queda e do pecado. As bruxas da Idade Média e Moderna
representam a cristalização desse imaginário sobre a mulher, criando um princípio
feminino de inferioridade ―natural‖ e social, marcados biologicamente e aliada a imagem
de seres obscuros, malignos e místicos. Todavia, a imagem de uma mulher nascida do
homem é muito mais atraente para a Igreja Cristã, pois remete à sua inferioridade.
Enquanto Lilith foi depreciada por ter sido criada diretamente por Deus e que se
rebelou diante da imposição masculina, reivindicando liberdade, igualdade e os mesmos
direitos que o homem, características que a Igreja Cristã repudiava. Eva foi demonizada e
inferiorizada, por ter sido fraca e se deixado corromper pela serpente, fato que é associado
às condições de seu nascimento.
Lilith é censurada e removida da tradição e do imaginário, ou seja, não está em
concordância com o ideal para as mulheres. Para Roberto Sicuteri (1985), Eva exprime a
aceitação e é mais agradável ao Pai e à Lei, sendo mais adequada como ―Mulher‖, pois
não demonstrou o combate por igualdade. Todavia, assim como Lilith, Eva também será
inexoravelmente fonte de pecado, perversão e relacionada ao Diabo.
A tradição Judaica e Cristã se utiliza do imaginário de Eva para a construção
ideológica da inferioridade da mulher, colocando-a como fonte de todo mal. Foi com o
advento da exaltação do culto a Virgem Maria no Cristianismo, como novo modelo de
feminilidade, que as filhas Eva encontram alguma redenção, principalmente através de
certas regras de conduta, como, submissão e recato.
O século XII, segundo José Rivair Macedo (2002, p. 70) é a época do impulso
mariano, o tempo pleno de Nossa Senhora, que surgiu como redentora para as mulheres,
libertando-as da maldição da queda. Esse é o momento em que ―celebram o regozijo do

324
sexo feminino com a ‗nova Eva‘, a mulher símbolo da pureza, da grandeza e da
santidade‖. De acordo com Jacques Dalarum (1990, p. 42), ―a boa Maria deu a luz a
Cristo, e em Cristo deu a luz aos Cristãos. É por isso que a mãe de Cristo é a mãe dos
Cristãos e manifesta-se que Cristo e os Cristãos são irmãos‖.
A virgindade da Mãe de Cristo nega a sexualidade de Eva, sempre latente, e por
isso condenada pela Igreja. Raquel Lima e Igor Teixeira (2008), diz que Maria acreditou
na anunciação do Anjo e obedeceu aos desígnios divinos. Concebendo sem pecado,
tornou-se o protótipo idealizado do feminino e destaca-se pela pureza sexual e pela
maternidade. Por intermédio dela, a Igreja conseguiu oferecer uma espécie de saída e
redenção as mulheres, descendentes de Eva. Se a mulher não seguisse o ideal da
virgindade e castidade, era preferível, então, que se casasse para ser esposa (servir ao
homem) e, principalmente, ser mãe.
Por sua vez, Eliane Ventorim (2005) chama atenção para o fato de Maria ser um
ideal inatingível pelas mulheres comuns, surgindo assim, durante a Idade Média,
especialmente no século XI, certo investimento na veneração e culto da figura de Maria
Madalena. Ela é a pecadora arrependida, que demonstra que a salvação é possível para
todos que abandonam uma vida cheia de pecados.
De acordo com Dalarum (1990), Madalena era mais necessária para as mulheres,
para quem as vias de salvação eram tão difíceis. Entre a porta da morte e a da vida,
Madalena é um caminho para a redenção, ao preço da confissão, do arrependimento e da
penitência. O seu pecado é o da carne, da lascívia, da luxúria, da prostituição e foi por
meio de acusar a si própria pelos pecados (confissão) que ela foi salva e, dessa maneira,
transforma-se num agente de redenção.
Madalena se apresenta como um referencial mais acessível às mulheres, pois,
embora pecadoras como Eva e não mais ‗virgens‘ como Maria (tendo em vista que não
seja possível biologicamente dar a luz mantendo-se virgem), permite esperanças de
salvação ao se arrependerem de seus pecados. Mesmo assim, seu culto e veneração
tiveram de se ancorar no modelo mariano de submissão (ao homem e a Deus) e recato
(reprimir sua sexualidade) para conseguir alguma credibilidade. Nesse sentido, Maria é o
modelo de feminilidade seguido pela própria Madalena para se legitimar como outro
referencial feminino.

325
O Parto Masculino e a esterilidade Feminina
Quando a tradição de Lilith, como primeira mulher de Adão, desaparece dos
relatos da criação e Eva é criada, é possível compreender a necessidade de retirar da
mulher qualquer singularidade divina ou relação direta com o Criador, já que Lilith
também foi criada diretamente por Deus. Eva é retirada de uma costela retirada de Adão,
ou seja, a mulher nasce do homem, o que pode ser interpretado como a origem da
inferioridade e submissão feminina. Para Eliade,

A criação da mulher a partir de uma costela retirada de Adão pode ser


interpretada como indicadora da androginia do Homem primordial. Concepções
similares são atestadas em outras tradições, inclusive as transmitidas por alguns
midrashin. O mito do andrógino ilustra uma crença bastante difundida: a
perfeição humana, identificada no antepassado mítico, encerra uma unidade que
é, simultaneamente, uma totalidade. (...) Convém frisar que a andrógina humana
tem por modelo a bissexualidade divina, concepção compartilhada por muitas
culturas (ELIADE, 1978, p.196).

Podemos perceber nessa passagem, que o homem adquire a condição andrógina e


reúne para si predicados de Homem e Mulher, alcançando a perfeição humana, diante de
sua unidade e totalidade. Essa união entre o masculino e o feminino é denominado como
hierós-gámos, um símbolo de encontro entre o masculino e o feminino do cosmo, a união
entre o céu e a terra. O homem, graças a Adão, reúne propriedades divinas, pois destituiu
da mulher qualquer indicador da presença do Criador. Hilário Franco Júnior (1996, p.190)
também compartilha dessa concepção da androginia de Adão quando afirma,

A mesma interpretação que via em Adão um andrógino depois dividido


apareceria também no Zohar, texto tardio que reunia, contudo, tradições bem
anteriores. Enfim, era uma idéia muito difundida no mundo judaico a de que a
‗criação da mulher, a partir do homem, foi possível porque originalmente Adão
tinha duas faces, que fora separadas para o nascimento de Eva‘.

Interpretamos essa androginia de Adão como ponto institucional da formalização


da supremacia masculina no relato da criação no livro do gênesis, por que é nesse
momento, em que da costela extraída do homem que se tem a criação da mulher: Eva.
Isso significa que é do homem que nasce a mulher. O homem usurpa a condição feminina
de progenitora, detentora do útero e da fertilidade para, nesse momento, dar à luz. O
homem é o progenitor da mulher, sua ―mãe‖ por excelência, pois detém as qualidades de
feminino e masculino, portador da centelha divina e obra prima de Deus.
Tubert (1996, p.98) relata que é Adão, o primeiro homem, quem nomeia Eva,
formalizando o domínio masculino, ―[...] uma inversão do curso normal dos

326
acontecimentos. Chama-a ishah (mulher) porque saiu de ish (homem). Ela nasceu dele e
não o inverso‖. Muraro (1993) parece compartilhar dessa ideia quando diz, através do
relato da criação contido no livro do Gênesis, que o homem supera um complexo
inconsciente, ou seja, a mulher é tirada da costela do homem, em que Adão se convence
de que pariu a primeira mulher.
A extração da costela de Adão, por parte de Deus, para a geração de Eva
simboliza o parto masculino. O homem rouba, de uma vez por todas, qualquer resquício
de herança divina e sagrada que a Grande-Deusa poderia ter deixado para as mulheres,
como a fertilidade. Tudo que outrora pertencia as mulheres, através da Grande-Deusa,
como o poder de dar à luz, um dos motivos que é relacionada com a criação, é tomado
pelo homem. O Deus-Pai Javé não admite concorrência, não quer governar ao lado de
nenhuma outra divindade, sobretudo, feminina. Na cosmogonia da tradição Judaica e
Cristã não há espaço para a matrilocação, pois com a instituição do parto masculino, Adão
é entendido com a releitura masculina da Grande-Deusa.
Adão adquire a condição de progenitor e se torna a fonte da vida e da criação que,
num primeiro momento, pertencia a Grande-Deusa. Desse modo, encontramos em Adão
sua condição andrógina que o remete a status de divindade, o que lhe permite desfrutar da
sua habilidade de gerar vida através da extração de sua costela para dar a luz a Eva, sua
companheira. Adão é o homem primordial em sua totalidade. O mito Judaico e Cristão,
através do atributo de Adão em ―parir‖, representa a usurpação total de quaisquer tipos de
poderes das divindades femininas (como a Grande-Deusa) e as sociedades matriarcais,
pelo Deus-Pai Jeová.

Considerações Finais
O mito Judaico e Cristão, assim como várias mitologias e tradições religiosas,
apresenta uma série de representações em torno das relações sociais de gênero e poder, seja
em função das suas divindades e seus relatos na criação do mundo, ou como referenciais
para o desenvolvimento e organização da sociedade que estão inseridos. Adão adquire os
poderes da Grande-Deusa, ao se tornar o progenitor da mulher, pois deu a luz a Eva. ―mãe‖.
Nem com a instituição do culto e exaltação a virgem Maria, ―espécie‖ de
(re)siginificação da Grande-Deusa no imaginário Cristão, foi possível recuperar para as
mulheres alguma posição de liderança ou autonomia feminina. Na verdade, a mãe de
Cristo está mais para a porta-voz das ordens do Pai, com a intenção de legitimar a
autoridade do homem por meio da mulher. Para Swain (1998, p. 51), o cristianismo

327
―reintroduz no imaginário a figura da deusa – afastada do poder da criação – através do
culto a Maria que reúne, paradoxalmente, os ideais construídos para a mulher na ordem
do pai: Virgem e Mãe‖.
Em suma, Adão pode ser identificado como o homem primordial, bissexuado,
andrógino, portador da unidade e totalidade, a perfeição humana. Tudo isso corrobora
para acentuar a proliferação de estereótipos depreciativos em relação as mulheres que
permanece até os dias atuais, especialmente, nas sociedades ocidentais.

Referências Bibliográficas

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BÍBLIA DE JERUSALÉM .Gênesis. São Paulo: Editora Paulus, 2004
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Livro das Maravilhas (1289) de Ramon Llull. Mirabilia. N.5 Jun-Dez 2005. Disponível em:
http://www.raco.cat/index.php/Mirabilia/article/view/283512/371432 Acessado em: 11 de set de
2016.

328
O BRASIL NA REVISTA QUATRO RODAS:
A SOCIEDADE EM TRANSFORMAÇÃO
Rômulo Ferreira da Silva
Laurindo Mekie Pereira

Resumo: A revista Quatro Rodas, publicação da Editora Abril, teve seu primeiro
número lançado em agosto de 1960, e, desde então, consolidou-se como a maior e mais
vendida do gênero automobilístico no Brasil. Ao longo das décadas de 1960 e 1970,
ampliou seu espectro de ações englobando reportagens que versavam desde turismo até
economia. Nesse trabalho, definimos o recorte temporal entre 1969 e 1979, por ser esse
o período do "Milagre Econômico", em que a economia brasileira crescia a taxas
extremamente altas, o que incentivou o consumo das famílias e desencadeou
aquecimento econômico, com o aumento do número de veículos vendidos e, ainda,
proporcionou a Quatro Rodas seu fortalecimento como periódico especializado. Além
de procurarmos analisar as maneiras e discursos presentes na revista, também nos
atemos às ausências, em suas páginas, com pouca ou nenhuma referência aos aspectos
políticos e sociais do país à época. Nesse sentido, Quatro Rodas contribui para formação
de um imaginário em torno do automóvel, sedimentando-o como algo além de simples
bem de consumo, é elemento de distinção social. Com o sucesso de pilotos brasileiros
na Fórmula 1, como Emerson Fittipaldi e José Carlos Pace, a revista ainda referenda a
imagem de um país em evolução, vencedor, e vende, ao leitor comum, a confiabilidade
dos automóveis ali apresentados, uma vez que eram referendados por grandes ícones do
automobilismo. O papel da revista nos campos político, econômico, social e cultural é
importante, uma vez que dialoga com esses aspectos da vida em sociedade, contribuindo
para sua reelaboração à partir das percepções em torno do automóvel. Por fim, devemos
lembrar que essa é uma pesquisa em andamento, e como tal, ainda está sujeita a desvios
de rota, bem como surgimento de novos elementos que possam sedimentar nossa
percepção.

Palavras-chave: Brasil; Quatro Rodas; Sociedade; Automóvel.

QUATRO RODAS aparece por três motivos.


Primeiro, porque a indústria automobilística brasileira brotou e expandiu-se
tão ràpidamente nos últimos quatro anos, em que o nosso país já se tornou
um dos grandes produtores de automóveis e caminhões. Êste progresso, êste
mercado – êste espantoso índice de confiança – exigem a cobertura
jornalística de uma publicação séria e objetiva.
Segundo, porque os proprietários e os compradores de carros no Brasil
necessitam de uma publicação que lhes forneça informações completas e
compreensíveis sôbre manutenção, consertos, serviços e características dos
automóveis novos e ―velhos‖.
Terceiro, porque belíssimos recantos estão esperando para serem descobertos
ou valorizados turisticamente por aquêles que possuem carros e um louvável
espírito de aventura. Apenas aguardam, para reunir a família, saltar para o
volante e partir, que alguém lhe diga como aquêles recantos podem ser
alcançados confortavelmente.
Acredito que você concordará que a redação de QUATRO RODAS
conseguiu cobrir bem estas três áreas neste primeiro número.
Muitos outros caminhos serão descobertos e explorados num futuro próximo.
Espero que poderemos contar com a sua companhia e com seu entusiasmo
durante tôda a fascinante viagem que começa agora. (QUATRO RODAS,
1960, p. 5).

329
A citação transcrita acima compõe a primeira edição da revista automotiva
Quatro Rodas da Editora Abril. Nessa, Victor Civita, que assina texto, conclama os
brasileiros a se atentarem ao progresso da indústria nacional e justifica sua área de
atuação. Nessas poucas linhas, temos estabelecido, de maneira bastante clara, os rumos
que a publicação tomaria, representando não apenas um periódico cujo tema é o
automóvel, mas, ainda, como parâmetro a ser seguido em termos de comportamento,
práticas e pensamento. É esse editorial que lança as bases definitivas de Quatro Rodas,
norteando seu desenvolvimento e indicando os aspectos que detêm sua atenção.
A pesquisa em questão pretende se debruçar sobre outro momento,
compreendido entre os anos de 1969 a 1979, o qual caracterizamos como momento de
consolidação da indústria e mudança no tipo de discurso da publicação, bem como
marcado por profundas transformações políticas, sociais e crise estrutural. Passado o
momento de implementação da indústria automobilística, surge a necessidade de
consolidação, no qual já há fábricas importantes em solo nacional e um mercado em
franca expansão. O final dos anos 1960 marca o surgimento do ―milagre‖ econômico
brasileiro, como vemos

O período 1968-1973 é conhecido como ―milagre‖ econômico brasileiro, em


função das extraordinárias taxas de crescimento do Produto Interno Bruto
(PIB) então verificadas, de 11,1% ao ano (a.a.). Uma característica notável do
―milagre‖ é que o rápido crescimento veio acompanhado de inflação
declinante e relativamente baixa para os padrões brasileiros, além de
superávits no balanço de pagamentos.
Embora esse período tenha sido amplamente estudado, não existe um
consenso em relação aos determinantes últimos do ―milagre‖. (GAMBIAGI,
VELOSO, VILELA, 2008, p. 222)

A Era de Ouro, como preconiza Hobsbawm, significou a ampliação dos


investimentos, a emergência de uma classe média que consumia, a amplificação do
papel da indústria e considerável aumento da demanda por bens de consumo. Nos
países subdesenvolvidos, como o Brasil, constatamos que esse fenômeno também
encontrou campo fértil para desenvolvimento. As taxas de crescimento econômico altas
fizeram com que o governo militar surfasse em condições extremamente favoráveis, até
mesmo no contexto internacional. Saía de cena o país do passado, atrasado e pobre, para
a elaboração e afirmação de um Brasil que crescia e se urbanizava. Então,

330
A demanda de consumo cresceu não apenas como resultado da elevação do
nível de emprego e do aumento da massa de salários, mas também pelas
facilidades de financiamento a partir do desenvolvimento, no sistema
financeiro privado, de um segmento especializado no crédito direto ao
consumidor. Com isso, os setores produtores de bens de consumo duráveis,
particularmente as indústrias automobilística e de eletrodomésticos,
expandiram-se rapidamente e lideraram o crescimento da produção industrial
no período de auge do ciclo expansivo (1968-1973). (SUZIGAN, 1988, p. 8-
9)

A perspectiva apresentada, de aumento do consumo, sobretudo de automóveis,


é o cenário perfeito para Quatro Rodas apresentar reportagens baseadas no
desenvolvimento da indústria e valorização do uso do automóvel, associado aos feitos
do governo de integrar o país por meio de rodovias. A evolução econômica interna só
dava margem para projeções otimistas e afirmadoras de que o país definitivamente se
transformava.
A edição de dezembro de 1969 traz uma interessante reportagem, cujo tema é a
capital paraense, Belém, e a estrada Belém-Brasília. Ao longo de todo o texto, a cidade
é apresentada como um paraíso exótico, marcado por uma infinidade de cores;
alimentos e atividades diferentes reforçando incentivo ao turismo, mas, ainda, o
estereótipo de país tropical único. Páginas adiante, a mesma matéria mostra o relato dos
repórteres que percorreram a estrada Belém-Brasília de automóvel, não pavimentada,
enfrentando diversas agruras, histórias de violência e estadia ruim. Aqui vislumbramos,
ao mesmo tempo, uma sutil crítica à falta de condições adequadas de circulação e
afirmações que indicam que esse era o Brasil crescente, avançando graças a ações de
governo que levavam o país rumo ao desenvolvimento, como, por exemplo, no subtítulo
―A estrada que venceu a selva‖. (QUATRO RODAS, 1969, p. 95 – 109)
Apesar das dificuldades relatadas no acesso a Belém, observamos a existência
de mapas, marcação de hotéis; pousadas; restaurantes e oficinas (importante observação
num tempo em que carros eram pouco confiáveis). O incentivo ao turismo é tema
constante em Quatro Rodas; é o processo de conhecimento do país por parte do
brasileiro e, também, a afirmação dos valores associados à tradição:

A seção turismo era uma das mais importantes de Quatro Rodas. Nela, a
concepção norte-americana de democratização do mercado de massas está
sempre presente, assim como outros elementos da cultura norte-americana,
como a valorização da família nuclear (nenhuma vovó aparece em suas
ilustrações). (LIMONCIC, 1997, p. 178)

331
Ao mesmo tempo, verificamos que nem as últimas edições do ano de 1969 e
sequer as de 1970 constam qualquer referência à ―escolha‖ do General Médici como
presidente da república. Há um processo de naturalização dos acontecimentos, de
maneira a fazer crer que a mudança no chefe do Executivo nacional não representasse
alteração na política econômica adotada até então.
O ―milagre‖ econômico reverbera ainda até o ano de 1973, em que
constatamos a completa ausência a qualquer tipo de problema. As páginas do periódico
vêm caracterizada por uma indução ao consumo, com inúmeras matérias sobre as
novidades em termos de produção da indústria e, também, grande número de
propagandas de peças e acessórios para automóveis. De maneira clara, é possível
depreender a partir disso que a revista se transformara num catalisador dos fabricantes,
os quais enxergavam um eficiente meio de propagação e incentivo a seus produtos, bem
como o veículo especializado no qual o leitor poderia encontrar conjugado informações
sobre turismo, automóveis e produtos variados.
A iconografia da revista paulatinamente se altera, pois se nos primeiros anos
era pautada por fotografias e gráficos em preto e branco, na década de 1979, vemos o
aparecimento da tecnologia de fotografia colorida, importante aliada para aproximar o
público da realidade, tornando ainda mais sedutora a visualização de formas e cores
reais. Scalzo indica a importância das imagens em revista, o apelo que causa no leitor:

Quando alguém olha para uma página de revista, a primeira coisa que vê são
as fotografias. Antes de ler qualquer palavra, é a fotografia que vai prendê-lo
àquela página ou não. Fotos provocam reações emocionais, convidam a
mergulhar num assunto, a entrar numa matéria. (SCALZO, 2009, p. 69)

Os arranjos iconográficos e a organização de Quatro Rodas não são fruto de


mero acaso, estando as principais seções intercaladas por propagandas e outros signos
que confluem a mostrar ao leitor uma visão particular de mundo, a maneira como a
revista enxerga e quer multiplicar esse pensamento. Os elementos estão ali
cuidadosamente elencados com vistas a provocar sensações.
A primeira crise do petróleo, em 1973, precipita uma mudança nos
pressupostos da publicação. A partir de 1974, a premissa é apresentar as novidades da
indústria ao potencial consumidor, mas, ainda, reforçar o ideal de economia, porque já
não mais tinha espaço em suas páginas para apresentação de modelos de automóveis
que tivessem alto consumo de combustível. Eram tempos de racionamento, era

332
necessário inculcar o interesse pelo baixo consumo, evitando gastos desnecessários.
Exemplo disso, encontramos na edição 162, de janeiro de 1974, cuja chamada de capa
era ―Aprenda a economizar combustível‖ (QUATRO RODAS, 1974, p. 74). Nos anos
anteriores, o automóvel era a grande vedete, havia euforia econômica, pouco importava
seu consumo.
Em julho de 1974, cada vez imersa nessa perspectiva de orientar a diminuição
do consumo de combustível, é apresentado em Quatro Rodas o teste do Itaipu, veículo
elétrico brasileiro, apontado como uma possível alternativa ao combustível fóssil. Após
os testes, com muitos elogios, a conclusão é:

Apesar de termos andado pouco e num pré-protótipo, sentimos que o Itaipu


pode tornar-se um sucesso. E Rio Claro será a primeira cidade brasileira com
um sistema integrado de carros elétricos – um passo real na superação dos
problemas da crise do petróleo e da poluição. (QUATRO RODAS, 1974, p.
59)

O fragmento deixa bem claro que a possibilidade de sucesso do novo carro é


real, pois surge em meio a um contexto que estão em pauta, no mundo, questões
relacionadas ao futuro dos combustíveis como as sociedades os conheciam e questões
ambientais, até então tratadas como menores.
Janeiro de 1979 trás como capa o recém-lançado Volkswagen Passat, com as
novidades do modelo do ano e dois elementos instigadores, um guia dos postos de
combustíveis que nunca fecham, e o questionamento sobre a segurança passiva dos
automóveis. Em função da segunda crise do petróleo, em 1978, por determinação
governamental, era comum postos de combustíveis fechados aos finais de semana, de
maneira a diminuir o consumo de gasolina. Do outro lado, a segurança de nossos
automóveis era cada vez mais contestada, especialmente pelas duras regras aplicadas
nos EUA, que refletiam nos fabricantes, porém, ainda, não eram implementadas em solo
brasileiro. Vale lembrar que, no âmbito nacional, o regime militar já agonizava, não
detendo mais tanta força política, uma vez que a sociedade clamava por mais liberdade,
e a simples existência de uma lista indicando comerciantes de combustíveis que
desafiavam a lei era, por si só, algo sumamente interessante.
Thompson nos adverte,

A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de


subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas
estão famintas: seus sobreviventes têm novos modos de pensar em relação ao

333
mercado. Pessoas são presas: na prisão pensam de modo diverso sobre as leis.
Frente a essas experiências, velhos sistemas conceituais podem desmoronar e
novas problemáticas podem insistir em impor sua presença. (THOMPSON,
1981, p. 17)

O renomado autor nos faz refletir sobre o conjunto de fazeres daquela


sociedade em acelerado processo de transição. As experiências humanas ganhavam
contornos nunca antes experimentados, as sociedades industrializadas imprimiam ritmos
de vida muito diversos daqueles experimentados naquelas menos evoluídas
economicamente. Os sistemas conceituais, fazendo uso da expressão de Thompson,
eram postos à prova em um país subdesenvolvido e assolado por desigualdades sociais
endêmicas, o automóvel talvez representasse a ruptura definitiva com os sistemas
antiquados e arcaicos, ainda fortemente incutidos em uma população
predominantemente avessa a possibilidade de usufruir de bens de consumo duráveis e
de alto custo.
O automóvel era um símbolo de hierarquização e distinção social, a posse de
um veículo por si só já tornava seu proprietário diferente da média geral da sociedade.
Para além disso, uma vez colocada a distinção entre ―proprietários‖ e ―não
proprietários‖ de veículos, a evolução dessa lógica levava a diferenciação social entre os
detentores de capital econômico para adquirir o automóvel. Não bastava adquiri-lo, era
preciso categorizá-lo, de maneira a perceber qual o lugar social ocupado por seu dono,
fosse ―popular‖, ―moderno‖, ―despojado‖ ou ―de luxo‖.
Quatro Rodas é concebida para público-alvo específico, e como tal, seu modo
de produzir discurso é voltado para atingir um grupo determinado de pessoas, mas, de
uma maneira eficiente o bastante para fazer ecoar a noção de que o automóvel é mais
um elemento vital da sociedade contemporânea. A perspectiva colocada, pode ser
entendida a partir de Bourdieu, que menciona conceito sumamente importante, o
habitus:
Como sistema das disposições socialmente constituídasque, enquanto
estruturas estruturantes, constituemo principio gerador e unificador
do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo
de agentes. (BOURDIEU, 2005, p. 191)

Conforme o autor, o habitus é uma construção social, tipo de estrutura sob a


qual as sociedades elaboram e reelaboram sua percepção, sobretudo no campo das
práticas e ideologias. Em Bourdieu podemos perceber o habitus como um sistema
complexo de disposições, ações, tendências as quais, como parte integrante de

334
sociedade, somos expostos e contribuímos para sua formatação. Então, ainda conforme
o autor, as condições sociais determinam a maneira de ser do indivíduo, e este, ao
mesmo tempo, interfere nas condições e fazeres da sociedade a que pertence.
A revista, considerando o contexto do período, é ator importante na elaboração
de ideal em torno do automóvel. Certamente não é o único fator que atua nesse campo
do imaginário, mas, era dos mais relevantes e com maior credibilidade. Supomos então
que a linha editorial adotada pelo periódico atuava de maneira direta para a formação de
um habitus automobilístico, em que há atribuição de variados sentidos ao automóvel e,
majoritariamente, associação desse ao pensamento de que era elemento de distinção
social, como já observamos; poder e, significativo naqueles tempos, liberdade.
O público leitor da revista era, predominantemente: masculino, classe média,
bons salários e alguma projeção social. Numa análise mais apurada a revista é voltada a
esse público, sem, contudo, eliminar aqueles que não estão nessas condições. Ao
contrário, a busca é por promover esse modo de vida, lançar indicativos de que a posse
de um vistoso automóvel era necessária na escalada social dos indivíduos. O capital
econômico devia ser canalizado para capital social, o automóvel representava,
simbolicamente, a liberdade, o ir e vir sem a necessidade de maiores esclarecimentos;
era ainda a possibilidade de mais qualidade de vida, tendo em vista a independência do
transporte coletivo e seus horários pré-estabelecidos.
O habitus em torno do automóvel é elaborado de maneira sutil, sem imposições
ou determinações por parte da revista. A sutileza permeia o discurso de da publicação,
as propagandas e reportagens apresentam o homem urbano moderno como ser
independente que utiliza o automóvel para reforçar isso. As experiências da vida social
são redimensionadas, as pessoas precisam de obter independência e assegurar seu ir e
vir com mais qualidade e tranquilidade, imunes aos riscos do cotidiano. Em
contrapartida, tomando essa lógica encampada pelo periódico, embora os fazeres
cotidianos estivessem em transformação, ao mesmo tempo, um dos elementos que
proporcionava esse fenômeno tornava os indivíduos cada vez mais dependentes. A
sociedade do automóvel se modificava, se houve ganho em liberdade e independência
em deslocamento, de maneira colateral também havia a dependência cada vez maior do
automóvel, a liberdade seria relativa, pois era regulamentada com base em regras que
organizavam o trânsito e o oneroso custo de manutenção do veículo.
Quatro Rodas trouxe a inovação para a vida do brasileiro. Inovaçãoem
estilo,emestéticaeemabordagemtemática.Emsuaspáginasvimosumanascente

335
indústriaqueseconsolidava,comerroseacertos,alémdoincentivoàspropostasde
modernização e desenvolvimento industrial capitaneadas peloEstado.
A cada nova edição, éramos lançados rumo a um universo amploe
desconhecido de máquinas modernas, que deixavam para trás o atraso, conduzindo
para aconstruçãodeumimagináriorelacionadoaofuturo.Sobessaótica,deixavadeser
umasimplesrevistasobreautomóveis,paraditarmodasecomportamentos,inspirar desejos
e fomentar oconsumo.
Suas novidades, como sugestões de roteiros para passeios turísticos,mapas
rodoviários e uma afinada equipe de repórteres profissionais contribuem para acriação
de um estilo único. Era uma nova linha editorial, representando a novidadeencampada
pela própria revista. Embora não fosse representante oficial do Estado, agia como
apoio direto, especialmente nos primeiros tempos, incentivando a indústria e o
consumidorà aquisição dos primeiros veículos produzidos noBrasil.O Brasil dos anos
1960, por assim dizer, inaugurado pela Editora Abril, é, fundamentalmente, apolítico.
Ainda que a conjuntura indique o contrário, ainda que a economia enfrente
problemas só superados brevemente durante o ―milagre econômico‖ e as indefinições
de caráter político possam levar o país à ruína, Quatro Rodas é exemplo de otimismo.
De maneira paradoxal, modernidade e conservadorismo estão vinculados de maneira
estreita. A revista não pretendia vender a imagem de transformações sociais
profundas, queria apenas estimular o desenvolvimento da lógica capitalista. Em
Quatro Rodas, vendem-se sonhos, o desejo de uma vida econômica e material
confortável, mas jamais se questiona tais valores, ao contrário, pródigo era aquele
seguidor das regras.
Constatamos que a revista estava alinhada à Editora que a publicava,um
pensamento conservador, endireitado à manutenção do capital estrangeiro noterritório
nacional e ao afastamento de qualquer tentativa de subversão dessa ordem instalada.
O automóvel é um simples coadjuvante, o que nos interessa efetivamente são as
estratégias usadas pela publicação para criar um discurso alinhado com grupos sociais
conservadores, que pretendiam a abertura da economia nacional ao capital
estrangeiro, sem quaisquer impedimentos.
O brasileiro dos Civita não parece viver no eterno país do futuro, ao contrário,
vive em um presente não coerente com a realidade, universo à parte. É esse brasileiro
que não se limita a desejar o automóvel, ele o adquire e passa a ostentá-lo como símbolo
de sucesso pessoal. Múltiplos significados, pois ser o feliz proprietário de um moderno

336
automóvel era mais do que possuir um bem, significava, na concepção do periódico, ser
um pioneiro da civilidade e progresso, além de ser o conquistador de territórios físicos e
espirituais.
Podemos depreender que a revista tem como pretensão influenciar e propalar a
indústria automotiva, mas não apenas por interesses econômicos, ou simplesmente por
respeitar o leitor e lhe oferecer sugestões para que não seja enganado. Existe um
pressuposto bem colocado, que pretende fazer do automóvel a força motriz da nação,
visto que ele tem capacidade de conduzir as famílias e cargas para os mais variados
locais. O Brasil e o brasileiro de Quatro Rodas é entendido, nesse caso, como uma
amálgama de si mesmo, que deve ser descontruído e reconstruído com base em imagens
associadas à Europa e aos EUA, com alguma dose de sofisticação e requinte.
Finalmente, ainda que precisemos refinar nossas análises, debruçar sobre a
fonte e realizar uma leitura crítica contextualizada mais profunda, podemos supor que a
publicação exercia poder de influência e de decisão tanto para as indústrias quanto para
o consumidor. Havia a imagem de credibilidade, que, aliada a sua postura editorial, bem
como discurso afinado ao ideal de modernidade e interesses do governo, conduziu a
formação de público leitor capaz de consumir e exercer influência sob outros
indivíduos, a percepção sobre o automóvel era consolidada com base na necessidade e
na distinção social.

Referências
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Editora, 2006.
BEYNON, Huw. Trabalhando para a Ford. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1995.
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2002.
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EARP, Fábio Sá; PRADO, Luiz Carlos Delorme. O “milagre” brasileiro: crescimento
acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In:
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge. O Brasil Republicano: O
tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Cia das Letras, 1995.
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e Terra, 2000.

337
LIMONCIC, Flávio. A civilização do automóvel: a instalação da indústria
automobilística no Brasil e a via brasileira para uma improvável modernidade fordista
1956 – 1961. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, mimeo, 1997.
MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: o caso da Editora Abril. Tese
apresentada ao Departamento de Doutoramento em Sociologia do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, mimeo, 1997.
SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
SUZIGAN, Wilson. Estado e industrialização no Brasil. In: Revista de Economia
Política, vol. 8, nº 4, outubro-dezembro/1988.
THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros - uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

338
PERCURSO HISTÓRICO DAS LEIS QUE REGEM O ENSINO RELIGIOSO
NO BRASIL: FOCO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Rosana Cássia Rodrigues Andrade

Resumo: A questão do Ensino Religioso é ampla e complexa, há vários anos a


disciplina vem sendo objeto de reflexões e de mudanças. Passando por diferentes etapas
de discussão, recebeu um tratamento que lhe imprimiu profundas marcas provenientes,
ora do contexto sócio-econômico-político-cultural, ora das ideologias mantenedoras do
sistema educacional vigente, ou de concepções filosóficas apoiadas por diferentes
igrejas. Esse estudo objetiva descrever, numa abordagem histórica do Ensino Religioso
no Brasil, os marcos que nortearam os rumos deste ensino e as iniciativas de formação
desse professor, sobretudo no limiar do século XXI. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa utilizando a análise documental. O estudo revelou que o ensino religioso nas
escolas públicas brasileiras vem se desconfessionalizando. Adapta-se esta nova proposta
de ensino religioso a atual situação pluralista do campo religioso brasileiro, já não mais
monopolizado pela Igreja Católica e assume um certo aspecto de laicidade, pois não
visa catequizar as novas gerações mas estudar cientificamente o fenômeno religioso
preocupando com a formação dos professores.

Palavras-Chaves: Ensino Religioso; Conhecimento; Formação de Professores.

Introdução
Esta comunicação partilha um breve panorama dos períodos da história do
ensino religioso no país, perpassando desde o período colonial até à Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional Nº 9.475/97, que trata o ensino religioso como área do
conhecimento, com metodologia específica, horários preestabelecidos em sala de aula,
conteúdos, avaliação e objetos de investigação. Para compreendermos a abordagem
história do Ensino Religioso no Brasil é necessário traçar uma linha de tempo para situar
nas sucessivas épocas durante a caminhada de quase quinhentos anos de sua história.

Ensino Religioso nas Constituições Federais: da colônia à Constituição de 1988


No período colonial brasileiro a educação estava alicerçada entre três esferas
institucionais que eram: a Escola, a Igreja e a Sociedade político-econômico. Nesta fase
os colonizadores queriam de qualquer forma impor suas ideias europeias, enquadrando
assim, as pessoas aos valores sociais que eles defendiam como sendo bom para a
sociedade como forma de evangelização para todos. Nesse período o papel do ensino
religioso, da igreja e da educação era catequizar, acordo firmado entre o papa e a coroa
portuguesa. Paiva (2004, p. 81) ao analisar a relação entre a igreja e a educação no Brasil
colonial diz que ―o colégio foi certamente outro caminho (...), mais expressão

339
instrumental da pregação e conservação da fé. Colégio, educação e fé se imbricavam, não
alterando a compreensão que, desde a Idade Média, se tinha dos estudos. Os jesuítas
representavam na época colonial os professores. Eles marcaram sua presença em todos os
níveis de ensino, controlaram a catequese dos índios, a formação da juventude e os
estudos superiores. Nesse último grau de ensino formaram os letrados e bacharéis para
prestação de serviços à igreja e ao estado (LEAL, 1998).

Nesse período não existia uma preocupação com a formação do professor, pois a sua
função era de pregador, considerados representantes de Deus, mediadores da graça divina.
A formação de professores era realizada pelos jesuítas, em vista da necessidade de atender
a formação da burocracia da coroa de Portugal e a divulgação da doutrina cristã. ―A
religião passa a ser um dos principais aparelhos ideológicos do Estado, concorrendo para
o fortalecimento da dependência ao poder político por parte da Igreja‖, na escola faz-se o
Ensino da Religião Católica Apostólica Romana (FONAPER, 2004, p.13). O que
demonstra que o projeto dos colonizadores portugueses era verdadeiramente conquistar os
gentios à fé católica, para só assim mantê-los em um estado de submissão aos objetivos da
coroa portuguesa.
O Ensino Religioso no período imperial tinha como foco, novamente, uma
formação vinculada aos valores da Igreja Católica. A catequização dos escravos, índios e
subalternos era o papel final a ser desempenhado pela tríade Igreja, Educação e Ensino
Religioso. O Decreto Imperial de 15 de outubro de 1827, no artigo 6º, expressa que os
professores ensinarão os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e
apostólica romana‖ (BRASIL, 1827). Isso significa que a educação permanece
reprodutora da estrutura de classes elitistas, sendo assim, no período imperial as cortes
portuguesas deram pouca atenção às questões educacionais brasileiras já que a monarquia
e suas elites viam na existência das massas populares instruídas uma ameaça aos seus
interesses. As massas populares referiam-se a homens livres aqueles que sobreviveram à
margem da escravidão, da agricultura, denominados de população pobre.
Os professores não tinham formação específica. Segundo Bastos (2005),o
trabalho era reduzido ―a inspeção‖, ou seja, apenas vigiavam e administravam, tornando-
se missionários da moral e da verdade. Dessa forma, compreende-se que não existia
cientificidade nas tarefas, nas ações do professor, apenas aprendia o método para
reproduzi-lo, com a função de validar o que o Estado queria que ele executasse.

340
Em 1824 começa a vigorar a primeira Constituição brasileira outorgada por Dom
Pedro I que oficializou a Igreja Católica como a religião do Brasil e seus membros
estavam sujeitos às ordens políticas do governo. A relação era regulada pelo regime do
padroado, que submetia a Igreja Católica ao controle político do imperador. Os membros
da Igreja recebiam ordenados do Governo, sendo quase considerados funcionários
públicos, e o imperador nomeava os sacerdotes para os diversos cargos eclesiásticos,
expresso nos artigos 102 e 179.

Art. 102: O imperador é o Chefe do Poder Executivo e o exercita pelos seus


ministros de Estado, são suas principais atribuições: Inciso II - Nomear Bispos
e prover dos benefícios eclesiásticos.
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos
Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a
propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:
Inciso V - Ninguém pode ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que
respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública (Brasil, 1824).

Sendo assim, no Brasil Império o Ensino Religioso tinha como foco, novamente,
uma formação vinculada aos valores da Igreja Católica. A catequização dos escravos,
índios e subalternos era o papel final a ser desempenhado pela tríade Igreja, Educação e
Ensino Religioso. O Decreto Imperial de 15 de outubro de 1827, no artigo 6º, exemplifica
isso: ―Os professores ensinarão [...] os princípios de moral cristã e da doutrina da religião
católica e apostólica romana‖ (BRASIL, 1827). Isso significa que a educação permanece
reprodutora da estrutura de classes e elitista.
Em 15 de outubro de 1827, a Assembleia Legislativa aprovou a primeira lei
sobre a instrução pública nacional do Império do Brasil, estabelecendo que ―em todas as
cidades, vilas e lugares populosos haverá escolas de primeiras letras que forem
necessárias‖. Também estabelecia que os presidentes de províncias definissem os
ordenados dos professores, que as escolas deviam ser de ensino mútuo, que os professores
que não tivessem formação para ensinar deveriam providenciar a necessária preparação,
em curto prazo, às próprias custas, além de determinar os conteúdos das disciplinas,
dando preferência aos temas, no ensino de leitura, sobre a Constituição do Império e
História do Brasil.
Com a promulgação da constituição brasileira de 1891 começa a vigorar a
primeira Constituição republicana que define a separação entre o Estado e quaisquer
religiões ou cultos e estabelece que "será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos

341
públicos". Também se proclama que todas as religiões serão aceitas no Brasil e podem
praticar sua crença e seu culto livre e abertamente.
Assim, as controvérsias em torno da determinação constitucional, traduzida no
―será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos‖ acentuou a ideia do
Ensino Religioso como elemento eclesial na escola, por interesse da Igreja Católica e, em
decorrência, foi se acentuando a tendência de atribuir às instituições religiosas, e não ao
Estado, o encargo de promover a manutenção do referido ensino, porém fora do sistema
escolar público.
O ensino religioso foi abolido das escolas públicas em nome da laicidade do
ensino. Nas décadas de 1920 e 1930, foram realizados inúmeros debates em torno da
"laicidade" do Ensino Religioso, principalmente em Congressos Católicos Mineiros,
originando os primeiros manifestos, cartas reivindicatórias e abaixo-assinados que
exigiam o retorno do Ensino Religioso nas escolas públicas. As reivindicações dos
católicos mineiros, culminou na Lei Estadual nº 1.092 de 12 -10-1929, inspiradora do

Decreto de 30-04-1931, pelo qual o Chefe do governo Provisório, Getúlio


Vargas, faculta o ensino religioso nos estabelecimentos oficiais de ensino
primário, secundário e normal, atendendo assim às solicitações do seu Ministro
da Educação, o mineiro Francisco Campos. A segunda Constituição
republicana, de 16-07-1934, incorporará esta conquista católica no Artigo 153.
(MATOS, v.3, p.49-50).

A esperança que com a nova República se conseguiria organizar no Brasil uma


rede pública de ensino par a todos, mas foi somente com a ―Revolução de Trinta‖ e o
Manifesto de 1932, que conseguiu responsabilizar o Estado, por meio da Constituição de
1934, a estabelecer um Plano Nacional de Educação e a extensão da rede de ensino
(JUNQUEIRA, 2007). Para tanto, em 30 de abril de 1931foi publicado o decreto nº
19.941, que reintroduziu o ensino religioso nas escolas públicas do país. O decreto em
seu artigo 1° determinava ser

facultativo, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária e normal, o


ensino da religião. O decreto determinava nos demais artigos que os pais ou
tutores podem requerer no ato da matrícula a dispensa dos alunos e que a
organização do conteúdo e escolha dos livros ficaria sob a responsabilidade dos
ministros do respectivo culto, sendo os professores de ensino religioso
designados pelas autoridades do culto a que se referir o ensino ministrado
(CURY, 1993, p.27).

342
Conforme Junqueira (2007), o Ensino Religioso foi introduzido nas escolas
brasileiras e justificado o caráter filosófico e pedagógico pelo Ministro da Educação,
Francisco Campos. No entanto, a dimensão política que estava oculta por detrás do
decreto teve igualmente uma dimensão ideológica, transferindo para a Igreja a
responsabilidade da formação moral do cidadão, com a Educação Religiosa. Apesar da
resistência dos laicistas, articulados em grupos como a Associação Brasileira de
Educação, o ensino religioso nas escolas públicas foi assegurado na Constituição Federal
de 1934. A pressão de organizações ligadas à Igreja Católica surtiu efeito. O artigo 153 da
Constituição manifestava que nas escolas públicas ―o ensino religioso será de frequência
facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno,
manifestada pelos pais ou responsáveis, e constituirá matéria dos horários nas escolas
públicas primárias, secundárias, profissionais e normais‖ (BONAVIDES; AMARAL,
1996, p. 320).
De acordo com o Fórum Nacional Permanente para o Ensino Religioso
(Fonaper, 2006) esta é a lei referencial para as discussões dos diversos aspectos do Ensino
Religioso no país desde 1934 até a LDB/9394 vigente. O ensino religioso nas escolas
públicas nas décadas de 30 e 40 teve grande importância estratégica, servindo aos
interesses do Estado e da Igreja.

[...] ao mesmo tempo em que servia de instrumento para a formação moral da


juventude, tornava-se também um mecanismo de cooptação da Igreja Católica
e uma arma poderosa na luta contra o liberalismo e o comunismo e no processo
de inculcação dos valores que constituíam a base de justificação ideológica do
pensamento político autoritário (HORTA, 1993, p.77).

O ensino religioso nada mais era que o ensino da religião cristã, principalmente
em sua versão católica. Os professores eram vinculados às denominações religiosas e a
responsabilidade pelo programa e conteúdo das aulas era das denominações religiosas.
A Constituição de 1937 mantém o Ensino Religioso com significativas
alterações, retira a obrigatoriedade da escola, ao referir-se que pode fazer parte, como
disciplina, do ensino primário, secundário e das escolas normais. A expressão facultativa
é substituída por frequência compulsória aos alunos e professores, pois nenhum docente
era obrigado a ministrá-lo, constitui disciplina do curso e não faz alusão sobre a confissão
religiosa do aluno e da família.
Devido à mobilização de grupos religiosos vinculados à Igreja Católica, o
Ministro da Educação, Gustavo Capanema, responsável pela elaboração do capítulo sobre

343
Educação da Constituição de 1946, propôs alterações à legislação de 1934, ficando o
Ensino Religioso explicitado no Decreto 19.941, de 30 de abril de 1931, nesses termos:

Art. 1° Fica facultativo, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária


e normal o ensino da religião. Art. 2° Da assistência às aulas de religião haverá
dispensa para os alunos cujos pais ou tutores, no ato da matricula, a
requererem.
Art. 3° Para que o Ensino Religioso seja ministrado nos estabelecimentos
oficiais de ensino, é necessário que um grupo de, pelo menos, vinte alunos se
proponha a recebê-lo.
Art. 4° A organização dos programas de Ensino Religioso e a escolha dos
livros de textos ficam a cargo dos ministros do respectivo culto, cujas
comunicações, a este respeito serão transmitidas às autoridades escolares
interessadas.
Art. 5° A inspeção e vigilância do Ensino religioso pertencem ao Estado, no
que se respeita à disciplina escolar, e às autoridades religiosas, no que se refere
à doutrina e à moral dos professores. (BONAVIDES, 1996, p.9).

Em 1946, restaurado o regime democrático, a nação recebe uma nova


Constituição, caracterizada pelo espírito liberal e democrático, reforçando no campo da
educação as posições dos educadores liberais, sem preterir os princípios ligados à
ideologia católica. Essa lei estabeleceu um novo tipo de relação entre Estado e Igreja
através do artigo 31, inciso II: ―à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
é vedado ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem
prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo‖. As lutas pela
organização da educação brasileira continuaram. (ROMANELLI, 2001), Na Constituição
de 1946 o Ensino Religioso foi mantido como obrigatório para os estabelecimentos
públicos, sendo ministrado, segundo a confissão religiosa dos alunos, assegurando a
liberdade religiosa, expresso no art. 168, inciso V, o Ensino Religioso constitui disciplina
dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo
com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu
representante legal ou responsável (BRASIL, 1946).
Essa Constituição se constituiu como um documento de inspiração ideológica,
liberal, democrática e abriu espaço para as discussões da educação. Através do Ministro
da Educação, constituiu-se uma Comissão de Educadores, com o objetivo de propor um
projeto de reforma geral da educação nacional.
A Constituição Federal, de 24 de janeiro de 1967, assim se referia ao ensino
religioso nas escolas públicas, em seu artigo 176: ―o ensino religioso, de matrícula

344
facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas de grau primário e
médio.‖
Com a promulgação da Constituição de 1988, escolheu-se como embasamento
da República a sabedoria, a cidadania e a dignidade da pessoa humana estabelecendo a
garantia e o direito de todos à educação, conforme o art. 205 ―a educação, direito de todos
e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho‖ (BRASIL, 1988, p. 173).
As políticas públicas educacionais são construídas através de ações da sociedade,
com pontos de vistas contraditórios, que na realidade, são refletidos nos espaços públicos
e simbolizam o discurso oficial do Estado, partindo do pressuposto de que a escola
pública deve exercer a adaptação de seus alunos, ajudando-os a desenvolverem os
aspectos intelectuais para a reconstrução da sociedade. Lembrando que a Constituição de
1988 trás a tona a responsabilidade do Estado com a disciplina de Ensino Religioso e
estabelece em seu art. 210, parágrafo 1º.

Serão fixados conteúdos mínimos para o ensinofundamental, de maneira a


assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais.
§ 1º - O ensinoreligioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (Brasil, 1988).

A inclusão desse dispositivo deu-se com uma significativa mobilização nacional,


resultando na segunda maior emenda, em número de assinaturas, apresentada ao
Congresso Constituinte. Em todo o país há grandes esforços pela renovação do conceito
de Ensino Religioso, da sua prática pedagógica, da definição de seus conteúdos, natureza
e metodologia adequada ao universo escolar (FONAPER, 2006). Todas as escolas
pertencentes aos órgãos oficiais devem atender aos princípios da Constituição Federal
Brasileira. Garantir a liberdade religiosa que está entre os direitos fundamentais da pessoa
humana, tendo referência específica na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
artigo XVIII, e na Constituição art. 5º, inciso VI (BRASIL, 2004). A legislação exige que
o Estado seja laico, ao tempo em que assegura a dignidade da pessoa humana, a liberdade
de consciência e de crença e o livre exercício de sua prática, conforme art. 5º, nos incisos
VI e VII:

345
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e as suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei.
(Brasil, 1988).

A luta a favor do Ensino Religioso (ER) não parou com a inclusão do referido
dispositivo na Constituição Federal, porque esse teria de ser assegurado, no âmbito das
Constituições Estaduais, nas Leis Orgânicas dos Municípios e na futura Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional, que estava sendo objeto de reflexões e de debates.
―Posteriormente, as Constituições Estaduais confirmaram esse dispositivo da Constituição
Federal, apresentando inclusive preocupações ecumênicas e interconfessionais‖. (Cury,
1993).

Ensino Religioso nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


Historicamente percebe-se que o ER possui uma trajetória de conquistas e
retrocessos. Uma nova fase nas políticas educacionais surge com a promulgação da
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 4.024/61 praticamente
repete o artigo das Constituições de 1946 e 1947, enfatizando que o Estado não se
responsabiliza por investimentos financeiros nem por qualificação de profissionais,
apontando as informações sobre os elementos do ER. Dá-se abertura para o proselitismo,
uma vez que o serviço voluntário é responsável pela prática escolar, legitimado pela
autoridade respectiva a cada confissão religiosa. Deve-se respeitar a confissão religiosa do
público-alvo, e as classes podem ser constituídas com qualquer número. O ER constitui
disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa, e será ministrado
sem ônus para os poderes públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno,
manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável. Deixa
claro que a formação de classe para o ER independe de número mínimo de alunos e que o
registro dos professores do mesmo será realizado perante a autoridade religiosa respectiva
(BRASIL, 1961).
Por causa do interesse das tradições religiosas de ampliar seu quadro de fiéis e
pela diversidade de denominações protestantes, surgiram muitas dificuldades para a
aplicação dessas LDB, especialmente no que se refere à escolha do representante
evangélico para exercer a função de professor (OLIVEIRA, 2007, p. 53).

346
Essa disciplina volta a ser inserida nos horários normais da escola, sendo de
matricula facultativa para os alunos, respeitando a confissão religiosa destes sem a
determinação de um número mínimo para a formação de classe. As aulas deveriam ser
ministradas por representantes da autoridade religiosa sem ônus para os cofres públicos.
Essa lei caracteriza-se por transmitir tudo que é próprio de uma confissão religiosa com o
intuito de formar na fé de uma determinada religião ou filosofia de vida e com a
linguagem que lhes é própria. A responsabilidade administrativa é da autoridade
confessional que credencia e capacita o professor. Esse componente ―quer garantir a
estrutura de cristandade, desejo herdado do período colonial‖ (JUNQUEIRA, 2002, p. 9).
Com a Lei nº 5.692/71, o referencial do Ensino Religioso passou a ser o inter-
relacional, com base nas articulações entre as diferentes confissões cristãs, e, mais tarde,
assumiu as diversas tradições religiosas. Nesse referencial é considerado tudo aquilo que é
comum às várias dessas confissões religiosas.
O ER, nesse contexto, é garantido no sistema escolar sem, no entanto, ter definido
o seu tratamento didático. Ou seja, o ER é garantido por lei, mas não é concebido e
compreendido como integrante do currículo escolar. Isso gera uma busca por uma
identidade própria ocasionada pela crise provocada pela perda da sua função catequética
evangelizadora na medida em que a escola descobre-se como uma instituição autônoma que

se rege por seus próprios princípios e objetivos, na área da cultura, do saber e


da educação. A manifestação do pluralismo religioso é explicitada de forma
significativa; não é mais compatível compreender um corpo no currículo que
doutrine que não conduza a uma visão ampla do ser humano. (JUNQUEIRA;
OLIVEIRA, 2011).

A referida Lei voltou a explicitar o caráter obrigatório da oferta do ER no


currículo dos estabelecimentos oficiais, mantendo a matrícula facultativa (art. 7º,
parágrafo único), e estendendo-o ao ensino de 2º grau. Na Lei 4024/ 61, o ER era
concebido como aula de religião, em que a doutrinação, a catequese tinha um lugar
privilegiado na sala de aula, cuja finalidade era fazer seguidores, na Lei 5692/71 passa a
ser o resgate de valores, a aula de ética, tendo como propósito tornar as pessoas mais
religiosas.

Nessa legislação a falta da frase: “sem ônus para os cofres públicos” dá a


prerrogativa que o profissional de ER poderia ser remunerado. A partir daí vários avanços

347
em quesito à disciplina de ER em Leis Nacionais e Estaduais, Pareceres e Resoluções
contribuíram positivamente para a disciplina.
Um novo marco na educação brasileira se constituiu entre os anos de 1996-
1997, quando surgiram os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso
(PCNER), formulados pelo FONAPER. Na elaboração dos PCNER, pessoas de tradições
religiosas diferentes se reuniram e, num trabalho em conjunto, construíram elementos
contributivos para o ER, valorizando o pluralismo religioso e o mundo cultural iniciado
na sociedade brasileira.
Segundo Caron (2007), o FONAPER (desempenhou um papel importante para a
disciplina de Ensino Religioso, pois foi um dos principais protagonistas do Ensino
Religioso em face da atual LDB). Primeiramente, ocupou-se com a promulgação da Lei
de Diretrizes e Bases (1996 - 1997), simultaneamente com a estrutura do Ensino
Religioso através da produção do Parâmetro Curricular Nacional do Ensino Religioso
(PCNER).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais destacam que o ER deve evitar qualquer
forma de proselitismo, de doutrinação. O objetivo do ensino religioso, de acordo com os
PCN/97, não é o estudo de determinada religião ou da religião, mas o estudo do
transcendente, das diversas formas como ele se manifesta.
No dia 20 de dezembro de 1996, foi promulgada a LDB 9.394/96, denominada
também de ―Lei Darcy Ribeiro‖. Esta lei inseriu o ER no contexto global da educação,
preconizando o respeito à diversidade cultural-religiosa do Brasil. Porém, o manteve
como disciplina que não se reverteria em ônus para o Estado, fato este que provocou
protestos e mudanças posteriores (JUNQUEIRA, 2007, p. 37).
Tal dispositivo legal não agradou a Igreja Católica, nem ao FONAPER, já que o
ER seria ministrado nas escolas públicas sem que houvesse o pagamento dos professores
da disciplina por parte do Estado. A partir da insatisfação de comunidades escolares e das
Igrejas, logo após a promulgação da Lei, inicia-se uma mobilização para mudança da
LDB no Congresso.
A nova redação do artigo 33 da LDB de 1996 foi sancionada em 22 de julho de
1997 pelo presidente da República, mediante a lei 9475/97, que ficou com a seguinte
redação:
Art. 33: o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da
formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade
cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

348
Parágrafo primeiro: Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos
para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas
para a habilitação dos professores;
Parágrafo segundo: Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída
pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do
ensino religioso.

O sentido da Lei n. 9475/97 garante ao aluno ter acesso ao conhecimento


religioso, dentro do horário normal de aulas, enfatizando o respeito pela diversidade
cultural e religiosa de cada um.
Ao longo da história brasileira, como se pôde ver no decorrer dessa exposição, o
ER nas escolas públicas sempre teve um aspecto confessional, predominantemente cristão
e católico. Sendo assim, é importante ressaltar que atualmente, diferentemente do que
ocorria em outras épocas, os defensores desta disciplina assumem um discurso pluralista,
não confessional, enfatizando o diálogo inter-religioso e os aspectos comuns das religiões

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350
CAMINHOS ENTRECRUZADOS:
HISTÓRIA, ESCRAVIDÃO E LITERATURA EM ÚRSULA (1859) E AS VÍTIMAS
ALGOZES: QUADROS DA ESCRAVIDÃO (1869)

Rosangeli de Fatima Batigniani

Resumo: Pelo caminho entrecruzado da História e da Literatura, esta pesquisa visa


comparar as obras literárias Úrsula (1859) e As Vitímas Algozes: quadros da escravidão
(1869), no tocante as ideias abolicionistas dos autores acerca da escravidão, e como os
dois literatos trabalham o mesmo tema com visões diferenciadas. Tomando como
referencial teórico o historiador Roger Chartier, buscamos um dialogo com as obras
para melhor entender como Maria Firmina dos Reis e Joaquim Manuel de Macedo
representam seus personagens escravos. Também dialogamos com a historiografia como
forma de perceber como os personagens estão inseridos ou distanciam do debate
historiográfico acerca da escravidão. Mostrando o antagonismo dos autores presente nas
obras, discutimos as ideias abolicionistas do final do século XIX e seus agentes, sempre
dialogando com o contexto no qual as obras foram escritas.

Palavras-Chave: Escravidão; abolicionistas, literatos.

Tema: literatura e história


As obras literárias Úrsula escrita em 1859 pela maranhense Maria Firmina dos
Reis e As Vítimas Algozes: quadros da escravidão escrita em 1869 por Joaquim Manuel
de Macedo; foram escolhidas como fontes para esta pesquisa por estarem inseridas no
contexto social representativo para a história do Brasil. As duas obras foram publicadas
no século XIX, e são tributárias dos debates em torno da abolição da escravatura no
Brasil. Os dois autores Macedo e Maria Firmina procuraram por meio de suas obras
mostrarem a necessidade em abolir a escravidão, mesmo tendo olhares diferenciados
acerca do sistema e seu processo de abolição. Essas obras ao se tornarem fontes para a
pesquisa e por possuírem um viés abolicionista, possibilitaram uma reflexão acerca da
sociedade oitocentista e um entrecruzar da história com a literatura por meio do diálogo
com a historiografia acerca do tema.
Essas fontes permitiram uma dinamicidade levando-nos a entender as práticas
sociais dos personagens em particular os escravos, suas representações, crenças e suas
formas de resistência. Como esclarece Roger Chartier (1990) é a partir das práticas
sociais dos homens do passado, que nós historiadores construímos a sua representação,
revendo estas práticas e elaborando outros significados para as mesmas. Tivemos como
desafio neste trabalho confrontar ideias, pontos de vista para que pudéssemos perceber
como os autores representam seus personagens, em especial os escravos – e como

351
apresentam em seus romances vozes abolicionistas de forma tão distintas – foco central
dessa pesquisa.

O porquê da escravidão com a literatura e as obras literárias


A literatura abolicionista oferece um leque de elementos que permitem a
compreensão do tema, assume o papel de um testemunho histórico e informa sobre o
contexto social e o lugar que o autor ocupa neste contexto. Essa literatura ao tornar-se
impressão de vida, e dos sentimentos humanos desponta para o historiador novas
perspectivas e significados, tornando-se uma fonte para a pesquisa no momento em que
ela incorpora a história e a insere em suas páginas. Essas obras escolhidas como fontes
traduzem todas essas nuances ricas em detalhes, o que possibilitou trabalhar não
somente a literatura, mas também a história de um período do Império brasileiro repleto
de debates acerca do sistema escravocrata.
Os autores escolhidos para esta pesquisa viveram em mundos distantes e
diferentes. Joaquim Manuel de Macedo foi um escritor e intelectual da Corte, seus
romances comtemplam o cotidiano do Rio de Janeiro. Maria Firmina dos Reis viveu
sempre longe da Corte, na província do Maranhão, seus romances contemplam os
campos e a área rural da província. Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de outubro de
1825 em São Luís capital da província do Maranhão, e faleceu em 11 de novembro de
1917, aos 92 anos. Era afrodescendente, foi uma cidadã atuante na sociedade
oitocentista do Maranhão. Foi folclorista, escritora, poetiza escreveu para vários
periódicos locais. Atuou como professora primaria até o ano de 1891. Diferente de
Macedo, Maria Firmina nunca teve acesso à escola, era autodidata seu conhecimento foi
adquirido por meio de muitas leituras. De acordo com Algemira Macedo Mendes (2007)
a literata falava fluentemente o francês e em sua obra pode-se constatar influencias de
escritores como Willian Shakespeare, Saint- Pierre e Harriet B. Stowe.
Sua carreira literária teve início com a publicação do romance Úrsula em 1859,
tendo posteriormente variadas edições. O romance tem como tema a escravidão, assunto
abordado também em seu conto A Escrava publicado em 1887 – no fervor da campanha
abolicionista. O romance Úrsula (1859) narra a trágica história de amor entre dois
jovens - Úrsula e o bacharel Tancredo, e contempla também a história de três
personagens -os escravos, Túlio, a preta Mãe Susana e o velho escravo Antero.
A narrativa tem início com a história de Tancredo que decepcionado com a
traição da mulher que amava foge pelos campos e chegando ao bosque perto da casa de

352
Úrsula sofre um acidente ferindo-se gravemente. Nesse ponto da narrativa é introduzido
o escravo Túlio, cativo da decadente propriedade da mãe de Úrsula.
O escravo Túlio salva a vida de Tancredo, levando-o para a casa de sua
senhora para que cuidem dele. Tancredo sente-se agradecido a Túlio por ter salvado sua
vida e recompensa o escravo com uma quantia em dinheiro para que compre sua
liberdade. A alforria do escravo Túlio é reconhecida por meio de uma relação de
amizade e gratidão entre ele e o bacharel. Recuperado do acidente e no contato diário
naquela casa Tancredo e Úrsula se apaixonam – mas o amor entre eles é tumultuado por
Fernando – o comendador tio de Úrsula que é apaixonado pela sobrinha. No dia do
casamento de Úrsula com o bacharel o comendador Fernando assassina Tancredo, o que
leva Úrsula a ficar louca. Em sua loucura Úrsula acusa seu tio de desgraçar sua vida.
Após a morte de Úrsula o comendador atormentado pela desgraça que causou, liberta
seus escravos e termina seus dias num convento, assumindo a identidade de Frei Luís de
Santa Úrsula – o louco.
Os escravos da obra de Maria Firmina são escravos que não demonstram
resistência ao sistema em que vivem. Túlio é um escravo criado dentro dos bons
costumes cristãos e não se rebela, busca sua liberdade por meios inversos a muitos
escravos que se rebelavam contra seus senhores. Ao criar uma relação de amizade e
cumplicidade entre Tancredo e Túlio, Maria Firmina com certeza deixa evidenciada que
as duas raças: a negra e a branca, poderiam viver em plena harmonia apesar da
perversidade da escravidão. Em sua obra Maria Firmina dá voz aos escravos,
humanizando-os como faz com a preta Mãe Susana que conta como foi raptada e
transformada em escrava e sua diáspora para o Brasil.
É mãe Susana quem traduz toda nostalgia de uma África como símbolo de
liberdade, lugar onde segundo ela viviam em comunhão. É ela quem explica para Túlio
o sentido de liberdade. Assim diz ela ―Liberdade! Liberdade! Ah! Eu a gozei na minha
mocidade! Túlio, meu filho ninguém a gozou mais ampla [...] tranquila no seio da
liberdade!‖ (REIS, p. 115 2010)‖. A narrativa de mãe Susana acerca de seu
aprisionamento é o ponto alto do romance. Percebemos na voz da escrava o lamento
representando o desenraizamento da sua pátria, obrigando-a a deixar para sempre seu
esposo, sua filha, sua pátria e sua liberdade.
O historiador Roger Chartier (1990) nos leva a buscar nas entrelinhas de um
texto, informações que podem dar o tom em nossas pesquisas. Dessa forma o relato da
viagem de mãe Susana no tumbeiro é de suma importância para entendermos como

353
Maria Firmina procurou no entrecruzamento da história com a literatura compor sua
personagem. A obra Úrsula para muitos estudiosos é uma narrativa sem atrativos, mas,
para a história ela se torna uma fonte privilegiada por mostrar o contexto histórico e o
tratamento humanizado que a literata dá aos negros escravos.
O literato Joaquim Manuel de Macedo nasceu em 24 de junho de 1820 na
província do Rio de janeiro e faleceu em 1882. Foi escritor, professor no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, deputado pelo partido liberal na província do Rio de
Janeiro nos anos de 1864/1866/1868/e 1881, como parlamentar era um monarquista.
Seu romance A Moreninha deu-lhe um status de escritor da corte, publicou
posteriormente dezessete romances.
Seu romance As Vítimas Algozes: quadros da escravidão escrito em 1869,
devido excesso de perversidade e a forma como descreve os crimes cometidos pelos
escravos levou muitas pessoas da sociedade oitocentista a sentir repulsa pelos cativos. O
romance possui três novelas independentes, na primeira narrativa intitulada Simeão– o
crioulo, Macedo conta a história do escravo Simeão, que ficando órfão aos dois anos de
idade, fica sob a tutela do senhor proprietário de terras Domingos Caetano sendo criado
com certo zelo e carinho pela família. Simeão cresceu sem oficio, sem compromisso
com o trabalho. Sua vida resumia-se em frequentar a venda que Macedo classifica com
uma “espelunca ignóbil, fonte de vícios e de crimes, manancial turvo e hediondo de
profunda corrupção‖ (MACEDO, 2010, p.26). O senhor Domingos Caetano tinha
prometido a Simeão a liberdade, e ao falecer transfere a tutela do escravo para sua
esposa Angélica, a qual informa que o escravo só poderá gozar de sua liberdade após
sua morte. Simeão então começa a arquitetar crimes contra a família senhorial, o que
culmina com o assassinato de da família que o criara. O escravo Simeão é um reflexo da
escravidão, o que leva Macedo a clamar “o negro escravo é assim, se não o quereis
assim, acabai com a escravidão” (MACEDO, 2010, p.26). Simeão rouba, mata, é preso
e enforcado.
A segunda novela tem como personagem central Pai Raiol - o feiticeiro,
descrito por Macedo como desengonçado, feio de causar medo. Pai Raiol foi comprado
em um lote de 20 escravos juntamente com sua amante Esméria, por Paulo Borges, rico
fazendeiro do interior do Rio de janeiro. Como forma de resistência ao sistema em que
viviam Pai Raiol e sua amante praticam uma serie de perversidades na fazenda de Paulo
Borges, como incêndios, envenenamento da esposa e filhos do senhor. Enquanto o
escravo Pai Raiol possuía certa mobilidade na fazenda, sua amante e comparsa a escrava

354
Esméria é cativa de dentro da casa e aos poucos sob influência do escravo feiticeiro
seduz Paulo Borges. A escrava coagida pela sua condição de filha da escravidão usa
como estratégias, fingir uma situação de harmonia com a família de Paulo Borges,
demostrar atitudes de obediência, humildade, e fidelidade, qualidades fundamentais ao
―bom escravo‖ (MATOSO, 1982, p.111) que tinha como objetivo adquirir sua
liberdade.
Para Macedo, Pai Raiol é o demônio do mal e do rancor. O literato representa o
escravo Pai Raiol – o feiticeiro como um monstro negro e imaginário, comparando-o a
um ―herói sinistro de estupidas e horrendas histórias‖, um misto de tigre, serpente,
verdadeiro representante do mal e do rancor. O escravo é descrito por Macedo como
―um negro feio e desfigurado por moléstia ou castigo [...] homem de baixa estatura tinha
o corpo exageradamente maior que as pernas, [...] aspecto repugnante da figura mais
antipática‖ (MACEDO, e 2010, p.86). Dessa forma mostrando o lado perverso do
escravo e da escrava Macedo tinha como intenção chamar atenção da sociedade para o
perigo que representava ter escravos perversos em seus lares.
Na terceira narrativa a personagem é a escrava Lucinda – a mucama. Lucinda
não mata seus senhores como Simeão e Pai Raiol, ela é causadora da destruição da
moral e dos bons costumes da menina Cândida. Em seu aniversário de onze anos
Cândida ganha de presente do seu padrinho uma mucama de doze anos que dizia saber
cozer, e fazer bonecas. Lucinda fora criada no mundo da escravidão, fora enviada à
Corte para aprender a servir de mucama, e no convívio diário com a menina Cândida ela
ensina a sinhazinha-moça os prazeres da vida sexual. Ela mente, ensina a menina
Cândida a mentir para os pais e apresenta um falso professor para Cândida que ao
envolver-se com ele perde sua virgindade.
Macedo faz a representação de Lucinda como a escrava perversa, demônio da
luxuria que nos braços do amante articula toda a desgraça de Cândida. Apesar de
descrever Lucinda de forma pejorativa, Macedo insiste na tese de que a escravidão
gerou a natureza pervertida de Lucinda, e que a escrava é o que a sociedade
escravocrata a fez ser. Portanto, Lucinda agiu de acordo com suas condições de cativa.
O autor defende a tese de que a escrava junto à menina cândida representa um grande
perigo e faz um alerta para que as famílias pensem sobre esse perigo que “ameaça as
filhas que ficam sujeitas a influência de mucamas escravas” (MACEDO, 2010, p.26).
Temos, portanto, dois autores que trabalham o mesmo tema e defendem o fim
da escravidão de formas diferentes. No discurso de Maria Firmina ela defende que a

355
escravidão apesar de perversa não altera o caráter dos cativos, seus personagens
escravos não possuem o perfil de algozes. Seu discurso reside na fé cristã, para ela era
preciso acabar com a escravidão por ser contrária às leis de Deus. Conforme o
entrecruzar feito entre a história e a literatura por meio de um dialogo com a
historiografia, percebemos que os escravos da obra Úrsula não se rebelam contra o
sistema escravocrata, portanto, não coadunam com a historiografia acerca da
escravidão.
Em contrapartida Macedo em As Vítimas Algozes apresenta escravos cujo perfil
é de ameaça à sociedade. Para ele era necessária à abolição porque a escravidão tornava
o escravo perverso, levando-o a contaminar com seu veneno a sociedade brasileira. Ao
condenar a escravidão ressaltando o medo perante os escravos, o literato aproxima os
fatos fictícios à realidade da sociedade oitocentista na qual estava inserido. Desse modo
os escravos Simeão- o crioulo, Pai Raiol- o feiticeiro e Lucinda- a mucamasão cativos
que, podem ser inseridos nos debates historiográficos acerca do tema escravidão e
resistência. Tanto Maria Firmina quanto Macedo viveram em uma sociedade de
expressiva população escrava, fator esse que pode ter sido emblemático na construção
de seus personagens. Esses literatos percorrendo caminhos diferentes e expressando
ideias antagônicas, fizeram de suas obras um clamor pelo fim da escravidão.
Alguns recortes dentro da literatura foram necessários para que entendêssemos
a mesma como fonte para a História. O historiador Roger Chartier (1990) esclarece que
tanto a história quanto a literatura são uma representação da realidade, e que a diferença
reside no fato de que a história é uma representação do verdadeiro, e a literatura
representa uma realidade de forma alegórica, ou seja, a literatura não possui o
compromisso com as fontes e com os métodos.
De acordo com Nicolau Sevcenko (1999) o literato ao procurar a literatura é
atraído pela possibilidade do vir a ser, ou seja, para ele é como se o fato tivesse
acontecido, ao passo que o historiador busca a verdade nos fatos. Nas palavras de Roger
Chartier (1991) textos literários ao serem utilizados por historiadores perdem a sua
natureza literária e tomam formas de documentos, possibilitando uma análise social da
narrativa.
Para a historiadora Sandra Pesavento (2006) a literatura toma uma função de
dialogo com a história porque ambas são narrativas que representam a vida e a explicam
a partir do cotidiano. De acordo com os pressupostos citados ao utilizarmos a literatura

356
como fonte, devemos ter um olhar mais criterioso da mesma como documento, e não
voltar os olhos a ela apenas como uma mera narrativa ficcional.
Tendo como referencial teórico o historiador Roger Chartier esta pesquisa
privilegiou um caminho metodológico acerca das representações. Uma leitura lapidada
das ideias de Chartier nos leva a pensar na importância das noções de linguagem,
representação, prática, apropriação, intertextualidade e dialogismo conceitos estes que
vão balizar o campo do conhecimento histórico que segundo ele ―tem por principal
objeto identificar o modo como em determinada realidade cultural é constituída,
pensada, dada a ler‖ (CHARTIER, 1990 p. 30) Pegando de empréstimo as palavras de
Roger Chartier podemos dizer que a literatura é representação porque é o produto de
uma prática simbólica que se transforma em outras representações. E a partir desse
pressuposto é que discutimos as representações das obras Úrsula e As Vitimas Algozes,
como forma de entender e conhecer como nossos autores representam seus personagens
negros – os escravos. Roger Chartier (1990) ainda nos leva a entender que num texto
literário as práticas são produzidas pela representação, o que direciona aos grupos e
indivíduos dar sentido ao mundo ao qual eles pertencem. Nesse sentido é que tomamos
essas fontes com intuito de uma leitura mais detalhada voltada para as representações –
as quais permitem originar a historicidade dos sujeitos.
A pesquisa privilegiou também projetos emancipacionistas como forma de
conhecer as ideias de alguns lideres como: Antônio Vellozo de Oliveira, João Severino
Maciel da Costa, José Bonifácio de Andrada e Silva, José Eloy Pereira, Frederico
Bularmaque e Antônio Brandão Silva Junior. Buscamos aportes teóricos na obra de
Celia Maria Marinho de Azevedo intitulada Onda negra, medo branco: o negro no
imagináriodas elites no século XIX (1987). Partindo das ideias desses emancipacionistas
foi possível chegar ao movimento abolicionista no Brasil na segunda metade do século
XIX. Dentre os abolicionistas privilegiamos nessa pesquisa: José do Patrocínio, Luís
Gama, André Rebouças, Joaquim Nabuco. Cada um utilizando de estratégias para
mudar o destino de muitos escravos. Essa pesquisa possibilitou conhecer o perfil
articulador de André Rebouças e José do patrocínio que fizeram o movimento
abolicionista chegar às ruas e aos teatros. Também foi possível salientar a forma como
Luís Gama e Joaquim Nabuco defendiam a abolição. O primeiro teve sua participação
no movimento abolicionista por via jurídica, utilizando da Lei 1831 Luís Gama
alforriou muitos escravos. Joaquim Nabuco em seus discursos referia-se ao cativeiro
como uma ―nódoa que a mãe imprimiu na própria face‖ (NABUCO, 2000, p.180).

357
Destacamos também outros agentes abolicionistas como a princesa Isabel de
Bragança que é referência associada à abolição no Brasil e que ocupa hoje lugar na
historiografia recente acerca da escravidão. A escrava Adelina Charuteira que fazia a
ponte entre os abolicionistas e a policia no Maranhão possibilitando ao movimento
abolicionista uma ação rápida. Também agentes como os caixeiros viajantes,
comerciantes, advogados, dentre outros segmentos da sociedade oitocentista, todos eles
e nossos literatos Maria Firmina dos Reis e Joaquim Manuel de Macedo tinham um
único proposito, clamarem pela necessidade do fim da escravidão como instituição.

Referências

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa:


Difel. 1990.
CHARTIER, Roger. O Mundo como representação. Estudos Avançados. Lisboa: Difel,
p.173-188.
MACEDO, Joaquim Manuel de. As Vítimas Algozes: quadros da escravidão. São
Paulo: Martin Claret, 2010. (Coleção Grandes Nomes da Literatura).
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo:
Publifolha, 2000.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1999.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história. In:
COSTA, Cléria Botelho da; MACHADO, Maria e Tomaz. História e Literatura:
identidades e fronteiras. Uberlândia: EDUFO, 2006, p.12-27.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. A Escrava. Atualização do texto posfácio de Eduardo
de Assis Duarte. Florianópolis: Mulheres; Belo Horizonte: PUC – Minas, 2009.

358
A GAIA MÚSICA:
A MORTE DE DEUS EM F. NIETZSCHE E NO BLACK SABBATH

Rubens de Brito Ferreira Teixeira

Resumo: O objetivo desta pesquisa é apreender os possíveis vínculos existentes entre


a música God is Dead? do grupo de Heavy Metal britânico Black Sabbath e a filosofia
nietzschiana no que tange a noção da morte de Deus. Dito isso, o trabalho ocorre
mediante a História Cultural com uso de ciências auxiliares a fim de que uma
compreensão que ultrapasse a estética seja proporcionada, para isso faz-se o
distanciamento da visão holística de cultura para acompanhar as complexas relações
simbólicas, de dominação e apropriação entre as culturas. Nada obstante, a filosofia
nietzschiana, em geral, resultou em uma inteligibilidade da música além do dito, isto
é, pôde-se examinar a moral cristã, a filosofia socrática e a modernidade na condução
do homem histórico.

Palavras-chave: Black Sabbath, morte de Deus; F. Nietzsche

A Música Ocidental e o Heavy Metal: um panorama histórico


Por música entende-se o limiar entre o som e o ruído, variável conforme a
cultura e nem sempre racional (WISNIK, 2007, Pp.30-31). Os sons produzidos nos
meios musicais são reflexos íntimos do contexto no qual são elaborados e propagados.
Contudo, as investigações da música no âmbito da pesquisa histórica enfrentam os
mais diversos problemas: a falta de especialistas, trabalhos isolados, descréditos por
seus pares, metodologias. Apesar dos paulatinos avanços nas décadas de 1970-80,
todavia, persistem-se alguns empecilhos, o que contribuiu para que muitas pesquisas
fossem realizadas por jornalistas (MORAES, 2000, Pp.204-209). Nesta perspectiva,
José G. V. de Moraes afirma que:

Com relação à música popular urbana moderna, os problemas ganham


nova e grave dimensão, ampliando e dificultando em todos os sentidos o
desenvolvimento das pesquisas. As universidades e agências financiadoras
tradicionalmente menosprezaram as pesquisas em torno dessa temática.
Quando cederam espaços às investigações sobre a música popular, sempre
o fizeram quando havia relações ou com a música erudita ou a folclórica,
delimitando-as exclusivamente a esses respectivos departamentos e
núcleos (MORAES, 2000, p.205).

Isto posto, a questão cultural aparece como critérios taxionômicos, em termos


ocidentais, nada obstante, observam-se relações de conflitos e dominações entre as
culturas, seus grupos e indivíduos.

359
Desde a emergência dos sentidos de cultura, alemã, e civilização, francesa, é
requerida a questão de suas unidades. A priori, estas unidades poderiam ser variadas,
bem como ligadas pela necessidade da compreensão de si que remeta a um tempo
histórico. Para Hegel, esta ligação era possivelmente cronológica sob critérios físicos
e espirituais para a classificação, sempre partindo de um princípio que ditava as
particularidades. Apesar do abandono da visão hegeliana, conservou-se seu conceito
holístico. Nos séculos XIX e XX, o senso de uma lógica que distingue as produções
culturais alia-se à necessidade de estatutos em meio às sociedades democráticas, as
preocupações caíram sobre as massas, sobre o coletivo, o que explica o surgimento da
sociologia e seu uso das ―mentalidades‖. Por volta de 1900, tal uso deu à realidade o
status de cultura, cuja utilização foi feita por historiadores como Marc Bloch em suas
representações (REVEL, 2009, Pp.102-108).
O historiador francês Roger Chatier, opondo-se às visões da mentalidade,
afirma que ―A cultura popular é uma categoria erudita‖ (CHARTIER, 1995, p.179).
Com tal postura, o historiador vai de encontro à visão ocidental sobre cultura,
sobretudo às conclusões pejorativas. Nada obstante, na Europa e Estados Unidos
vigorou uma apreensão tradicional da cultura popular em noções complementares:
como contraponto da cultura letrada; remetendo a um público específico; as
expressões populares são puras e algumas essencialmente populares. Sem embargo,
tanto a cultura letrada como a popular são aculturantes e, ao mesmo tempo,
aculturadas, ficando inútil apegar-se às distribuições específicas. ―O que importa, de
fato, tanto quanto a repartição, sempre mais complexa do que se parece, é sua
apropriação pelos grupos ou indivíduos‖ (CHARTIER, 1995, p.184). Em qualquer
sociedade, o modo de apropriação é tão ou mais distintivo que as próprias práticas. O
popular qualifica uma relação, manejos que são recebidos, compreendidos e
modificados, o que leva o historiador a trabalhar com as modalidades diferentes das
apropriações. ―Apropriação tal como a entendemos visa a elaboração de uma história
social dos usos e das interpretações, relacionadas às suas determinações fundamentais
e inscritos nas práticas específicas que os constroem― (CHARTIER, 1995, Pp.179-
184).
A música popular do século XX detém os aspectos da vida em sociedade do
pós-45, utilizando-se de aparatos tecnológicos, tornando-se meios de trabalho e
mercado e domínio absoluto sobre o material sonoro. Especificamente, o Rock n‟ Roll,

360
que além de apropriar das condições do mundo capitalista, apropria-se da música
erudita européia, assim como da matriz africana.
José Miguel Wisnik retrata o processo de erudição e comercialização da
música européia em quatro ocasiões: a música modal carrega em si traços míticos, já
que possuem uma visão sacrifical e ritualizada, retendo atribuições simbólicas e
psicossomáticas, além de ser atemporal e usar a cinco notas musicais – escala
pentatônica – como eram na África e Ásia; a passagem da música modal para a tonal
marca a transição ao mundo capitalista, onde os aspectos míticos são substituídos por
uma nova dialética musical: o belo é o silêncio (mundo burguês) e o ruído (mundo
externo), e o segundo deve ser evitado para alcançar a harmonia. A ritualização ocorre
em locais próprios para pessoas anônimas pagarem pelas apresentações em escalas
diatônicas119, com os acordes enquanto inovações e notas musicais sem referência
fixa, fazendo menção a um mundo em progresso que segue regras – harmonia das
esferas – em um tom racional, que foram as bases da música barroca, clássica e
romântica; a música serial surgida em 1923 usou a escala com doze notas musicais, o
dodecafonismo, e o trítono como um modelo musical que rejeita toda música tonal,
queriam descentralizações que retardasse ao máximo as repetições. A música
minimalista, de meados do século XX, é altamente repetitiva, sintetizada, disforme e
puramente de mercado (WISNIK, 2007, Pp. 71-206).
Com viés um tanto quanto secular, José Miguel Wisnik afirma:

O campo da música contemporânea tornou-se esse continuo que vai do


silêncio-ruído ao ruído-silêncio através do pulso e do tom. (...) Esse
diálogo das músicas envolvendo não a evolução das alturas mas os timbres
e os pulsos está se passando então, ou principalmente, em outros lugares,
no mundo de massas. (...) As faixas de onda dos mais diversos repertórios
se contaminam e se interferem, levados pela aceleração geral do trânsito
das mercadorias e pelo traço polimorfo da sua base social e cultural: as
músicas da Europa e da África se fundido sobre as Américas. (...) não se
presta facilmente para ser ouvido ou entendido como totalidade. (...) Ele é
o campo sonoro-ruidoso dos eventos instantâneos, disparados, que
irrompem e se interrompem na nossa atenção (WISNIK, 2007, Pp.205;
206; 210).

No decênio de 1950, o Rock n‟ Roll era herdeiro direto das particularidades culturais
afro-americanos, cuja origem remete ao Blues, o Gospel e Jump Band Jazz. O Blues
Rural, cantado no Mississipi, tinha na pobreza e no negro seus expoentes, contudo,

119
Para maiores informações ver José Miguel Wisnik (2007) Pp.81-83; 113-117.

361
devido ao êxodo rural em direção ao Oeste e Norte dos Estados Unidos, cria-se um
Blues Urbano entre 1929-1945 que privilegiou a guitarra. O Blues resulta da junção
modal e tonal, combinando escala diatônica e pentatônica e cadências tonais. ―A
música negra americana inaugura assim uma forma ativa de música popular urbana
que interage com a música de concerto contemporânea, à qual ecoa e influencia‖
(FRIEDLANDER, 2015, Pp.31-35; WISNIK, 2007, Pp.214-215; p.215).
Como o Jazz é ainda mais ‗urbano‘, cabe uma ressalva deste horizonte. Eric
Hobsbawm elucida que ―O Jazz não é apenas uma forma de fazer música, mas
também de fazer lucros‖. Pelo fato de serem atraentes para empresários, certas artes
populares tornam-se negócios, mesmo tendo aqueles fãs anticapitalistas, o Jazz é
profissional e tende a ser devido às exigências da vida urbana, já que ―A cidade tende
a separar o artista do cidadão e a transformar a maior parte da produção artística em
―entretenimento‖, uma necessidade especial, suprida por especialistas‖
(HOBSBAWM, 2011, Pp. 211-212).
As apropriações demonstram, portanto, movimentações, fusões e conflitos em
um dado contexto social e sob diversos fatores até mesmo contraditórios. Logo, o
advento do Heavy Metal em 1970, cuja base é o Rock, é um conjunto cultural de
variadas manifestações inter e intranacionais. Nesta continuidade, os choques culturais
da musicalidade e de um novo tempo de maiores liberdades juvenis não agradavam
aos conservadores, assim:

O inicio da década de 1970 tornou-se uma época de contradições. Por um


lado, houve a institucionalização da moda da contracultura, da aparência,
da experiência com drogas e linguagem. Por outro, havia esforços do
governo e do Show businnes para reverter a recente abertura e
expressividade política e cultural da época (FRIEDLANDER, 2015, p.330).

O Rock em 1980 demonstrava uma indústria comercial fragmentada no mesmo


instante em que o Heavy Metal surgia, portanto, ―Em um ambiente político ocidental
dominado pelo conservadorismo do período Thatcher-Reagan, músicos, a indústria
musical e ativistas políticos tornaram-se voluntários na promoção de objetivos
humanitários‖ (FRIEDLANDER, 2015, p.27). O resultado foi o surgimento de
grupos conservadores como o Conselho dos Cidadãos Brancos do Alabama
(FRIEDLANDER, 2015, p.47) e o PMRC (Parent‟s Music Resource Center), criado
em 1984 por Susan Baker e Tipper Gore e demais mulheres com seus respectivos
maridos no Congresso dos Estados Unidos, lançou a teoria na qual era defendido

362
que os crescentes índices de suicídio e estupro eram provenientes das letras do Rock
(LEÃO, 1997, p.136; CHRISTE, 2010, p.155). Destarte, afirma Ian Christe:

O rock, sempre um bastião da rebeldia jovem, estava rapidamente


tornando-se o estilo de vida desejado, e a classe média conservadora não
sabia como lidar com isso. (...) Ao mesmo tempo em que a onda de
adolescentes celebrando sexo e drogas parecia assombroso para adultos de
qualquer lugar, a relação do metal com os aspectos do ocultismo assustava
particularmente o Cinturão Bíblico norte-americano. (...) Esta era a missão
do Heavy Metal: confrontar o quadro geral (...). O conflito nas letras
existia em grande escala e, em 1970, isso significava atacar verbalmente
os déspotas, ditadores e ladrões antidemocráticos do caso Watergate
(CHRISTE, 2010, p.31; 35).

O Heavy Metal surgiu na Inglaterra pelo Black Sabbath em uma época de


crises e de desgostos com os ideais pacifistas. Até então, Heavy era uma gíria Hippie
como sinônimo para máxima potência, assim como um termo militar do século XIX
para referir-se a poder bélico (CHRISTE, 2010, Pp.19-29). É notória a participação de
dois movimentos ingleses, em si contraditórios e complementares, quw impulsionaram
o Heavy Metal: o Punk-Rock, com tendências anarquistas, conduziu o Heavy Metal ao
seu renascimento sendo mais agressivo, direto e perturbador (LEÃO, 1997, Pp.129-
136); o New Wave of British Heavy Metal (Nova Onda do Heavy Metal Britânico), foi
uma resposta ao Punk-Rock, apesar de ter sido também sua base, sobretudo na ideia de
liberdade (CHRISTE, 2010, Pp. 43-51).
Todavia, foi nos anos de 1980 que o Heavy Metal atingiu o sucesso mundial,
dividindo-se em diversos subgêneros, que entraram muitas vezes em fusões.
Atualmente, as bandas que mais aparecem nos meios informativos são, quase sempre,
as mesmas que tiveram seus auges na década de 1980, estando, deste modo,
estabilizadas.

Black Sabbath: profanação da música


Por influência Hippie, é criado, em 1969, um grupo composto por quatro
adolescentes de Aston, Birmingham, na Inglaerra, chamado Earth. Tocavam em
pequenos locais por bebidas, sem tanto êxito, o que o levou a fazer shows pela
Europa. Quando retornam, já com o nome de Black Sabbath, levam a sério os temas
de feitiçaria e elementos da Idade Média inglesa, dando, de fato, os alicerces do Heavy
Metal (LEÃO, 1997, Pp.48-50).

363
Aston era um espaço marginalizado, com poucas perspectivas de futuro. Tony
Iommi, Ozzy Osbourne, Bill Ward e Geezer Butler compartilhavam a mesma
realidade pobre do pós-Guerra e gostos musicais, cujas influências vinham do Rock n‟
Roll e Beatles. Ainda como Earth, foram empresariados por Jimmy Simpson,
sobretudo no momento em que a banda passa a chamar-se Black Sabbathh. O nome da
banda deve-se à música homônima de sua autoria que introduziu um som denso,
baseado no trítono, que era um som proibido pela Igreja durante a Idade Média
(WALL, 2014, Pp.9-35).
Basicamente, foi o trítono que revolucionou a música moderna. Costuma-se
reconhecer como referência inicial da música moderna ocidental o canto gregoriano,
sobre o qual a Igreja monopolizava e mantinha uma relação ambivalente com a
música, no mesmo instante em que valorizava a voz à capela negava o ritmo. O trítono
promovia instabilidade e passou a ser chamado de Diabulus in Musica, afrontava a
moral religiosa cristã, mas devido à modernidade-burguesia, o trítono é decisivo na
composição das músicas tonal e a serial, principalmente (WISNIK, 2007, Pp.41-43;
81-83; 108; 185).
Segundo Mick Wall, elementos misturaram-se e levaram o Black Sabbath a
momentos de quase-falência após um período glorioso, como: a falta de criatividades,
usos extremos de drogas e problemas com a justiça, descréditos pela mídia. No fim de
1970, Ozzy Osbourne e Geezer Butler deixam a banda, assim como Ward cerca de um
ano depois, o mesmo empresário do Black Sabbath, Don Arden, coloca Ronnie J. Dio
no vocal do grupo e contrata Ozzy para uma carreira solo. Com Dio, a banda consegue
aliviar a pressão comercial, contudo, apesar do relativo sucesso do novo disco,
Heaven and Hell, Dio deixa a banda devido brigas internas (WALL, 2014, Pp.58-
169).
Mediante várias formações e descrédito absoluto na década seguinte, foi
cogitado que o Black Sabbath estaria extinto, houve tentativas de reagrupamento dos
membros originais sem maiores desfechos positivos. Porém, em 2011 campanhas de
marketing afirmavam o retorno do quarteto original sob a produção de Rick Rubin,
mas a reunião foi adiada. Em junho de 2013, o novo álbum da banda é lançado, 13,
com os membros originais, exceto Ward. O disco traz músicas relevantes como The
end of the beginning e God is dead?. Com God is dead. a banda vence o Grammy
Awards 2014 na catergoria Best Performance Metal, como é visível no site oficial do
evento (WALL, 2014, Pp.189-236; THE GRAMMY‘S, 2013).

364
A constante comunicação do trítono com a música popular urbana remete a um
obstáculo questionado por Chartier para compreender a música popular. Segundo o
historiador, o obstáculo são as definições implícitas de uma categoria. Querendo ou
não, ela percebe a categoria cultural como autônoma e oposta à dominante. É preciso
destruir esses dois erros, completamente. Primeiro, porque as culturas populares
sempre estão inseridas em numa relação na qual fica comprovada sua própria
dependência através de uma legitimidade da ordem cultural. Por consequência, a
relação de dominação nunca é simétrica (CHARTIER, 1995, p.190).

A morte de Deus: dúvidas e certezas


Composta por Geezer Butler, Tony Iommi e Ozzy Osbourne, God is dead?,
apresenta um eu-lírico em dúvidas, buscando por Deus, tal qual a personagem que o
filósofo alemão Friedrich Nietzsche utiliza-se para retrata, no aforismo 125, a celebre
frase ―Deus está morto‖.
A música apresenta um ritmo lento que aos poucos é acelerado em um ciclo
relativamente sem muita intensidade e repleto de pulsações. Nos momentos finais,
tem-se seu ritmo muito acelerado, o som que até então era muito denso, sombrios,
torna-se mais agitado, muito distorcido, dando, assim, uma característica ruidosa,
além de um vocal melodramático, proferido pausadamente e com grande uso de
sintetizadores para dar à voz uma condução arrastada, angustiante e de peso, como se
o eu-lírico estivesse em agonia. De modo consequente, converte-se impreterível
apresentar o trecho inicial da música. Segue-se:

Perdido na escuridão// Me afasto da luz// Tenho fé que meu pai, meu


irmão meu criador e salvador// Irão me ajudar a sobrevier à noite// Sangue
na minha consciência// E assassinato na mente// Escapo da melancolia, me
ergo da tumba rumo a um destino manifesto eminente nefasto// Agora meu
corpo é meu santuário120.

A personagem nietzschiana mesmo com a dúvida está convencida da condição


definitiva de Deus. Todavia, o filósofo está menos preocupado com a real existência
de divindades do que com os mecanismos de dominações filosóficas, dialética e a

120
Lost in the darkness// I fade from the light// Faith of my father, my brother, my maker and savior
Help me make it through the night// Blood on my conscience// And murder in mind// Out of the gloom
Irise up from my tomb into impending doom// Now my body is my shrine.

365
moral da Igreja Cristã. Nietzsche afirma que as mazelas do mundo são provocadas
pela humanidade embriagada, e em Aurora destaca-se:

A embriaguez parece-lhes ser a verdadeira vida, o eu autêntico: em tudo o


resto vêem adversários e inimigos da embriaguez, qualquer que seja a
espécie dessa embriaguez, espiritual, moral, religiosa ou artística. A
humanidade deve boa parte de suas desgraças a esses embriagados
entusiastas: pois são infatigáveis semeadores do joio do descontentamento
de si e dos outros, do desprezo de seu tempo e do mundo e sobretudo do
cansaço (NIETZSCHE, S/D, Pp.59-60).

De tal modo, torna-se evidente que a moral é um meio pelo qual o homem
entra em decadência, seja também através ciência moderna (NIETZSCHE, 2012) ou
pela filosofia socrática (NIETZSCHE, 2015). Assim, o aforismo 125 elucida um
momento no qual o antropocentrismo sobressai-se a ‗Deus‘. Assim relata o dito
aforismo:

Jamais ouviram falar daquele louco que ascendeu uma lanterna em plena
luz do dia e desatou a correr pela praça pública gritando incessantemente:
―Procuro Deus! Procuro Deus!‖. Mas como havia ali muitos daqueles que
não acreditam em Deus, o grito provocou grandes gargalhadas. (...) O
louco saltou no meio deles e trespassou-os com o seu olhar. ―Para onde foi
Deus?‖, exclamou, ―...vou lhes dizer! Nós o matamos, vocês e eu! (...)
Para onde vamos nós mesmo? (...) Deus morreu! (...) (NIETZSCHE, 2014,
Pp.115-116).

A incerteza pelo futuro também é presente na música. Pode-se ver, não sem
razão, que o medo do sofrimento da mesma maneira que o desejo pela salvação, a paz,
aproximam o homem de Deus. Assim, ver-se o seguinte fragmento:

Não existe amanhã// Para os pecadores que serão punidos// Do pó ao pó,


não é possível eximir sua alma// Em quem confiar quando corrupção e
luxúria, o credo dos injustos// Te deixam vazio e incompleto? Quando esse
pesadelo vai acabar? Me diga// (...) Deus está morto// (...) Não acredito
que Deus está morto// (...) 121

A esperança pela paz, salvação, como representação do belo em detrimento do


sofrimento como sinônimo do indesejável, para Nietzsche, configura um pressuposto
muito próximo da moral: o niilismo. O niilismo é a negação à vida. Logo:

121
There is no tomorrow// For the sinners will be damned// Ashes to ashes you cannot exhume a soul//
Who do you trust when corruption and lust, creed of all the unjust// Leaves you empty and unwhole?
When will this nightmare be over? Tell me// (…) God is dead// (…) I don‘t believe that God is dead//
(…).

366
Não há que desconsiderar nada do que existem nada é dispensável – os
aspectos da existência rejeitados pelos cristãos e outros niilistas têm
inclusive uma posição infinitamente mais elevada na disposição de valores
do que aquilo que o instinto de décadence pôde abonar, achar bom. (...) O
conhecimento, do dizer sim à realidade, é para o forte uma necessidade tão
grande quanto para o fraco (...) (NIETZSCHE, 2013, p.61).

O ―mundo verdadeiro‖ é ilusório, como o ―ser‖, uma humana oposta ao real,


dividi-lo, seja em termos cristão ou kantiano, é um símbolo de décadence, logo, a
aparência não deve ser perseguida pelos dionisíacos, estes dizem sim à realidade. A
moral é apenas erro de visão, e quem a detém ou almeja é considerado um homem
―melhor‖, porém, tal homem foi domesticado, adoentado, sem amor aos impulsos da
vida, a essência da pia fraus (fraude piedosa). A moral ―altruísta‖ é uma planta podre
que cresce em solo igual. Portanto, a moral tende impor uma doutrina da finalidade da
vida, isto é, as pressões religiosas, e da própria moral, leva o homem a intensificar seu
instinto de reprodução, risível, cujo objetivo é fazer a manutenção da espécie
(NIETZSCHE, 2015, Pp.39; 60-65; 103) (NIETZSCHE, 2012, Pp.34-37).
Nietzsche blinda-se da décadence, como um espírito livre, a partir valorização
do efêmero, dos impulsos humanos, pelo amor-fati. Pode-se dizer que a sabedoria é
um pressuposto elementar para o amor à realidade, ela é a superação dos padrões
morais e condição para ser múltiplo em si mesmo, o que leva às descontinuidades e
transvalorizações dos valores (NIETZSCHE, 2013).
Sobre o amor-fati, argumenta o filósofo:

Ainda vivo, ainda penso: ainda é necessário que eu viva, pois ainda
necessito pensar. (...) Desejo aprender cada vez mais a ver o belo na
necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as
coisas belas. Amor-ftai (amor ao destino): seja assim, de agora em diante,
o meu amor. (...) Minha fórmula para a grandeza no homem é amor-fati:
nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda
eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo –
todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo. (...) Eu
mesmo nunca sofri por tudo isso; o necessário não me fere; amor-fati é
minha natureza mais íntima (...) (NIETZSCHE, 2014, p.143; 2013, Pp.49;
101).

Um dos pontos mais criticados por Nietzsche sobre a moral e suas ilusões é a
contribuição que os filósofos gregos, sobretudo Sócrates, fez para a mesma: ―a
vontade de verdade‖. A razão filosófica é imprecisa, ela é o saudosismo a Narciso, já

367
que as metafísicas acreditam na oposição dos valores, logo, através do método busca-
se a verdade. A inocência do filósofo ‗grego‘ leva-o a acreditar na imutabilidade das
coisas, vê o ato de pensar como uma condição de existência. Influenciado pela
―vontade de verdade‖, tais premissas acarretam um saber repugnante, o que é de praxe
em um ser preconceituoso, em que a ―vontade‖ gera o querer, e ambos são tão vazios
que nem mesmo sua semântica o compreende. No entanto, no interior das mesmas
premissas impera o ―Livre-arbítrio‖, uma complexa relação de poder entre mandar-
obedecer, no qual seus efeitos e resultados são variados (NIETZSCHE, 2012, Pp. 19-
31).
Constituindo-se a Bíblia, portanto, ao cristão como a ―verdade‖ a ser seguida, o
texto a seguir não mostra que o eu - lírico da música do Black Sabbath chegou a uma
conclusão, pelo contrário, permanece não só dúbio em relação à existência de Deus
como desconfia da veracidade de Sua Palavra. Como já é comum, a Bíblia fundamenta
a moral cristã, em contrapartida, Nietzsche a vê como sendo um grande elemento de
dominação. Sustenta o filósofo alemão:

A exigência de que se deve acreditar que no fundo tudo está nas melhores
mãos, que um livro, a Bíblia, tranqüiliza definitivamente quanto à
condução e à sabedoria divinas na sorte da humanidade, esta exigência,
retraduzida na realidade, é a vontade de não deixar surgir a verdade sobre
o lamentável oposto disso, ou seja, que a humanidade esteve até agora nas
piores mãos, que foi governada pelos malogrados , os astutos-vingativos,
os chamandos ―santos‖, esses caluniadores do mundo e violadores do
homem (NIETZSCHE, 2013, p.76).

O papel da Bíblia contribuiu, por conseguinte, para a dominação da moral


cristã, criando, então, rebanhos, medos, dolorosas enganações que resultaram na
décadence do homem, seja o grego, o alemão, o ―cientista‖ ou Sócrates,
Schopenhauer, Kant.

Conclusão
O diálogo estabelecido entre a noção da ―morte de Deus‖ mostrou-se
proveitoso e sólido. Doravante, verifica-se, então, que os objetivos estabelecidos para
esta pesquisa foram devidamente alcançados. Só que a música pouco expressa o
aforismo 125.
Dois pontos ambivalentes a respeito da filosofia nietzschiana acabaram sendo
constatados: o Insensato é um indivíduo em cuja mentalidade é visível uma

368
moralidade bem estabelecida, só que anacrônica àquele momento. O niilismo feito
pela personagem remete a um ídolo que se mantém erguido por muletas, mas qualquer
ídolo não passa de muletas metafísicas, seja grega, cristãs, nas quais impera o supra-
sumo do saber, a onisciência. Só que Nietzsche observa que tal ―vontade de verdade‖
além de reduzir as potências humanas são erros ingênuos, pois nenhum homem é dono
de nem de si, ou seja, a base do pensamento genealógico. Segundo, nas obras
nietzschianas, o autor fala para os espíritos livres, já que por liberdade é entendido a
exploração máxima dos instintos, portanto, o amor ao terreno, o profano, o amor-fati.
Tal conceito aparece como sendo, no fim das contas, também um ídolo, uma vez que
um ideal é proposto.
De modo algum esta pesquisa quis esgotar o assunto ou lançar verdades,
apenas interpretações. Contribuir, de algum modo, para a pesquisa histórica no campo
da música é significativo.

Referências

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370
FAVA 'MARGOSA COM ABÓBRA' _ trajetórias e vivências de trabalhadores
rurais brasilminenses (1970/90)
Silvana Ferreira Mendes
Resumo:Nas décadas de 1970 a 90 foi grande o afluxo de trabalhadores oriundos das
fazendas do município de Brasília de Minas para a sede. Em seus relatos percebe-se que as
condições de trabalho naquelas, bem como as relações patrão / empregado remontavam às
praticadas ainda da primeira metade do século XX. Por que apesar da existência do Estatuto
do Trabalhador Rural (1963) e da ampliação de direitos através do texto constitucional de
1988 na área rural do dito município os trabalhadores não foram por eles contemplados? O
objetivo desta pequena reflexão é portanto, pensar as trajetórias de trabalho e vivências
cotidianas dos trabalhadores rurais desta localidade não somente analisando seus relatos e
experiências mas os possíveis embates que puseram fim à suas trajetórias de
trabalhadoresrurais.

Palavras-chave: trabalhadores rurais - oralidade - legislação trabalhista

A questão é como se deu a inserção dos trabalhadores da cidade de Brasília de


Minas no âmbito da legislação trabalhista brasileira? Tal evento apresentara alguma
influência da forma como se dera o mesmo feito em âmbito nacional ou adquirira
conotaçõesdíspares?
As relações de trabalho no Brasil atual foram gestadas ao longo de várias décadas
sendo a forma inaugural o escambo que se baseava na exploração do trabalho indígena
inserido na lógica mercantilista. Com a organização do sistema colonial foram montados
engenhos de açúcar sendo a força de trabalho escolhida a escravidão, cuja premissa básica
é o esforço produtor do trabalhador sem nenhuma compensação. Ainda por cima as
relações trabalhistas eram pautadas pela coação e castigos físicos estando o trabalhador
sujeitado a toda espécie de capricho e vontade do patrão que era a priori o
proprietárionãosódosmeios de produção, mas também daquele que era entendido
como'coisa'.
Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o trabalho escravo.
Não só Portugal não contava população suficiente para abastecer sua colônia de
mão-de- obra, como o português como qualquer outro colono europeu não
emigra para os trópicos, em princípio, para se engajar como simples trabalhador
assalariado do campo. (JÚNIOR. 1994. 122)

Junto ao trabalho compulsório coexistiam outras formas _ o assalariado ou livre, a


remuneração por empreitada, o trabalho „de meia‟, o pagamento em espécie... Assim a
evolução do trabalho no Brasil perdurou através dos séculos XVI a XVIII, este
último,conheceu uma nova modalidade _ o „negro de ganho‟ _, este viera com o
crescimento das cidades mineradoras intensificando-se através do século XIX.
Principalmente na corte imperial, negros exerciam atividades variadas como barbeiros,

371
vendedores ambulantes, prostitutas, carregadores... Além das tradicionais atividades
domésticas e de subsistência consideradas como sendo serviço de 'negro' também
praticavam ofícios ligados à saúde _ cirurgiões, sangradores, parteiras, curandeiros...
Vê-se que a independência política do Brasil em 1822 não trouxera
transformações sociais, a estrutura fora mantida intacta principalmente a escravidão, uma
vez sê-la o principal sustentáculo da economia das elites brasileiras. O cultivo cafeicultor
nas últimas décadas do século XIX consumia grandes quantidades de escravos, o que
provocou a desescravização das cidades. Aos poucos as atividades urbanas pelo
imperativo da necessidade foram se adequando à escassez do braço escravo. O
abolicionismo também obrigou os latifundiários do centro-sul substituírem a escravidão
pelo trabalho imigrante num sistema inicialmente feito sob a forma de parceria. A frase de
Caio Prado Junior nos serve muito bem como síntese ao afirmar que ―... é de um lado, na
sua estrutura, um organismo meramente produtor, e constituído só para isto: um pequeno
número de empresários e dirigentes que senhoreiam tudo, e a grande massa da população
que lhe serve de mão-de-obra.‖ (1994. P129)
Em fins do século XIX e meados do século XX foram grandes as transformações
ocorridas no âmbito do trabalho no Brasil, aos poucos os envolvidos foram formulando
uma nova interpretação para trabalho e trabalhador. O que antes era visto como 'coisa de
negro cativo' foi aos poucos sendo valorizado e exaltado _ algo digno e edificante _, "a
preocupação com o ócio e a desordem era muito grande, e educar um indivíduo pobre era
principalmente criar nele o hábito do trabalho" (GOMES. 1994. P 10). Os debates se
acirraram nos anos 10 e 20 em torno basicamente das ideologias anarquista e comunista,
estas apresentavam divergências e convergências acerca dos espaços e instrumentos de
luta em prol dos trabalhadores. Organizações sindicais, movimentos grevistas, lutas pela
via parlamentar foram travadas e algumas conquistas ainda tímidas surgiam,

... em fins dos anos 20 existia entre a classe trabalhadora no Brasil, disseminada
por diferentes apelos políticos, toda uma ética valorativa do trabalho e
trabalhador, toda uma prática de relacionamento _ de luta e de acordos _ com o
patronato; e toda uma experiência de organização em partidos políticos e
sindicatos. Se as conquistas materiais da classe trabalhadora durante estas
décadas foram pequenas e efêmeras, seu ganho principal foi de natureza
expressiva, e traduziu-se na construção de uma identidade social, como de resto
ocorreu em outras experiências históricas. Assim, ao término da Primeira
República, já existia uma figura de trabalhador brasileiro, embora não existisse
um cidadão-trabalhador. (GOMES. 1994. p. 14).

O Estado a partir dos anos 1930 tomou para si a responsabilidade de desencadear


"uma política social de produção e implementação de leis que regulavam o mercado de

372
trabalho e, com esse recurso de poder, conseguiu a adesão das massas trabalhadoras"
(GOMES. 1994. P 142). Através do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio criado
em novembro de 1930 na administração de Joaquim Pedro Salgado Filho (abril de 1932 /
julho de 1934) "foram promulgadas quase todas as leis que passaram a regular as relações
de trabalho no Brasil, quer em termos das condições de trabalho (horário, férias, trabalho
feminino e de menores), quer em termos das compensações sociais devidas àqueles que
participavam da produção" (GOMES. 1994. P 148/9). Ainda segundo esta mesma autora,
durante toda a chamada Era Vargas (1930/45) houve um empenho maciço por parte do
Estado e seus órgãos oficiais para cooptar o trabalhador, infundindo-lhe através de intensa
propaganda a chamada 'ideologia da outorga', onde aquele deveria ser eternamente grato
ao Estado e conseqüentemente a seu chefe _ o presidente _ por sua generosidade em
conceder a legislação social, esta ao ser outorgada removeria a possibilidade do uso da
força necessária quando a conquista precisa ser empreendida.
Desta forma as leis trabalhistas foram aos poucos sendo arquitetadas e
posteriormente consolidadas na famosa CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) em
1943 sempre entendidas como benesse do então presidente Getúlio Vargas. O Estado do
pós-1930 se posicionou como o agregador do povo brasileiro e instituidor da nação. Todas
as tentativas e lutas dos operários anteriormente a 30 foram anuladas, exemplo disto são as
comemorações do 1º de maio largamente usadas como um dos baluartes do Estado Novo,
porém antes de 1930 eram fortemente combatidas pelas forças policiais. Daí a idéia de
considerar o golpe que entregou a chefia do governo provisório a Vargas como uma
revolução. A Justiça do Trabalho inaugurada em 1941 também foi outra ação do Estado
Varguista cujo objetivo alardeado era criar um fórum adequado para que patrões e
empregados tivessem seus possíveis conflitos resolvidos sob o senso de justiça do
poderpúblico.
Bóris Fausto (1970) observa que Getúlio Vargas instituiu uma série de medidas
de proteção à força de trabalho a partir da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio com a clara intenção de conter os movimentos dos diversos trabalhadores
configurando assim o que pode-se denominar política intervencionista do governo nas
relações detrabalho.

O anacrônico padrão de relações, sintetizado na frase tantas vezes citada, ―a


questão social é uma questão de polícia‖, começou a ser substituído por outro
que implicava o reconhecimento da existência da classe e visava a controlá-
la com os instrumentos da representação profissional, dos sindicatos oficiais,
apolíticos e numericamente restritos. (FAUSTO, 1970, p. 108).

373
A República que inicialmente poderia significar esperança de dias melhores aos
trabalhadores brasileiros trouxera frustrações na medida em que a CLT garantia direitos
sociais somente aos trabalhadores urbanos. Assim mesmo a cidadania estava condicionada
ao mundo do trabalho e à filiação sindical, ou seja, o trabalhador somente teria acesso aos
mecanismos da legislação social se fosse produtor de riquezas, portador de carteira de
trabalho e compreendesse o trabalho como um dever altamente enobrecedor. Aqueles que
não se enquadrassem nestes quesitos seriam automaticamente postulados como inimigos
do Estado, adeptos da vadiagem e portanto, marginalizados. Sidney Chalhoub (2001)
esclarece que o agente social expropriado que deveria se tornar trabalhador se completava,
no cotidiano, pelo exercício da vigilância policial. A classe operária restrita aos grandes
centros urbanos não conseguiu alterar a estrutura social do Brasil que prosseguia agrário,
cujos trabalhadores ainda permaneciam a mercê do sistema coronelista com relações
pautadas basicamente pelo compadrio tendo na violência a arma mais eficaz de
manutenção daordem.
O coronelismo é definido por Vitor Nunes Leal (1997) como sendo um
compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido
e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente os senhores de terras. É o
coronel quem comanda os votos de sua localidade através de uma extensa rede de
compadrios e apadrinhados, estes juntamente com as autoridades locais como policiais,
prefeitos e demais funcionários da legislatura gravitam em sua área de influência. A
preferência é que todos convivam em harmonia, porém isto não sendo possível entra em
cena um grande aparato de violências efetivadas por seus empregados, agregados e
capangas. LEAL ainda esclarece sobre as condições de vida a que é submetida "a massa
humana que tira a subsistência das suas terras vivendo no mais lamentável estado de
pobreza, ignorância e abandono". (1997. P 43)
"A História do Norte de Minas não está escrita" com esta frase MOREIRA
(2010) aponta as dificuldades em identificar os verdadeiros protagonistas do processo de
ocupação da região norte mineira, porém tal dúvida não se estende à formação social,
econômica e política de tal região principalmente no século XX. Neste sentido a
contribuição de PORTO (2002) é valiosíssima ao se debruçar sobre a vida política do
município de Montes Claros / MG sobre a qual afirma tê-la sido marcada pela atuação das
práticas coronelísticas pautadas pela „face mandonista‟ sendo a „provocação‟ uma das
estratégias da violência.

374
A violência também é um componente característico do coronelismo. A
primeira república foi palco de disputas políticas que tiveram na violência o seu
aspecto mais brutal. Conforme já afirmamos anteriormente, a violência era um
ingrediente constante na trajetória política da cidade. Mencionamos como o
processo de ocupação do espaço regional foi violento. Também já dissemos que
a elite local, não tinha receio em fazer da violência sua estratégia de ação nos
embates entre si e contra o poder público – como na reação dos potentados
contra as autoridades metropolitanas no século XVIII. (PORTO. 2002. P73).

Assim, pode-se afirmar que o coronelismo e todas as suas nuances não foi
acontecimento isolado e distante, mas algo muito próximo e presente na realidade das
cidades norte mineiras inclusive se apresentando como um fenômeno de longa duração
alcançando as décadas de 70 em Angicos de Minas, distrito de Brasília de Minas / MG
(AQUINO. 2006) até 90 tendo como últimos ―mandões‖ Olímpio Campos e D. Lulu em
São João da Ponte / MG (AGUIAR. 2001).
A década de 1960 trouxe consigo novos ares para os trabalhadores rurais com a
aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural (lei 4214/63) que Zenilda Paida (2012)
classificou como mini CLT rural, cujo teor aproximou os direitos do trabalhador rural aos
direitos do trabalhador urbano já anteriormente conquistados.

(...) a Constituição Federal, equiparou os trabalhadores urbano e rural, conforme


disposto no art. 72, aplicando-se ainda no trabalho rural, a Lei Especial nº
5.889/73, que, em seu artigo 2º define o empregado rural (...). Este passa a ser
definido como aquele que exerce atividades em propriedade rural com fins
lucrativos.‖ (PAIDA. 2012)

Diante desta rápida descrição da trajetória do trabalho no Brasil pode-se


depreender que as relações trabalhistas foram por muitas décadas pautadas por relações de
poder cuja tônica fora a imposição, a coação, a violência e a resistência. Os direitos foram
aos poucos sendo entregues como uma forma de „agrado‟ pelo Estado que procura formas
de controle das possíveis tensões sociais, porém o Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e
a Constituição Federal (1988) ampliaram os direitos sociais em direção aos trabalhadores
rurais igualando-os aos urbanos. Então a pergunta é: por que trabalhadores e trabalhadoras
rurais do município de Brasília de Minas / MG nas décadas de 70 a 90 do século XX ainda
não tinham acesso a estes direitos garantidos por lei?
O presente estudo originou-se a partir das pesquisas promovidas para a obra O
Santo, a Cura e o Lundu122, cujo teor versa sobre a presença do santo nos processos
populares de cura (principalmente o benzimento, mas perpassando pelo curandeirismo

122
Obra a ser publicada.

375
e práticasmágicas em geral). Através do método da entrevista foram ouvidas quase setenta
pessoas sendo em sua maioria esmagadora ligadas de alguma forma ao ambiente rural. Os
entrevistados ao falarem sobre suas origens, lazer, ambientes de cultura e práticas
religiosas acabavam por também incluírem em seus relatos as formas e relações de
trabalho às quais estiveram submetidos. Advindo daí o interesse em mergulhar neste
mundo do trabalho em busca de experiências pessoais vivenciadas nas práticas cotidianas
e relações trabalhistas de então.
A história oral foi violentamente criticada por muitos teóricos ao longo da
trajetória historiográfica. Combatida por todos os lados, renegada e por fim integrada aos
currículos e experiências de muitas comunidades e grupos sociais. Hoje a história oral é
apontada como uma técnica inovadora e eficaz no trato com objetos que pelas técnicas
tradicionais encontrariam muitas dificuldades, ou seja, pela história oral é possível suscitar
novos objetos e trazer à luz cenas do cotidiano e da vida privada. Jorge Eduardo Aceves
Lozano (2006) aponta a oralidade como um fenômeno que possibilita uma maior
proximidade com o aspecto central da vida dos seres humanos e ainda esclarece que se
transformara primeiramente num corpus teórico essencial da antropologia. Segundo ele, a
história oral é mais do que uma técnica, é um método que compartilha com o método
tradicional as diversas fases e etapas do exame histórico. "Passou a época da
marginalização da história oral" sentencia Etienne Françóis (2006) e ainda alerta para um
outro aspecto da oralidade _ que é a possibilidade de trazer à tona fortes reações
emocionais aos entrevistados ao abordarem aspectos sensíveis de sua juventude. Em Usos
e Abusos da História Oral (2006), as autoras exaltam a oralidade como fonte, porém
deixam claro que este trabalho não consiste somente no gravar entrevistas e editar os
depoimentos, alertam da necessidade do aprofundamento teórico-metodológico através de
intensa discussão acerca dos problemas suscitados, uma vez que o testemunho oral
representa o núcleo da investigação, nunca sua parte acessória. No caso específico deste
trabalho seu papel é essencial sendo que as trajetórias de vida e experiências dos
trabalhadores e ex-trabalhadores rurais de Brasília de Minas pouco se encontram em
documentos ditos oficiais. Estes se fazem através dos relatos de cada um, vez ou outra
aparece alguma fotografia desbotada e em mau estado pelo tempo de engavetamento,
sendo ainda mais raras outros tipos defontes.
Quanto à escolha da delimitação temporal (décadas de 70 a 90 do século XX) se
deu justamente por nelas se enquadrar importante marco na vida destas pessoas _ a
migração

376
paraasededomunicípioparaondetrouxeramsuascrenças,seuestilodevida,seusvalores, suas
manifestações culturais, seus saberes, seus ofícios e com estes últimos vieram também as
lembranças das relações de exploração exercidas pelos donos das terras em que viviam.

―Não tinha férias, não! Naquele tempo não usava trabalhar de carteira assinada.‖
(José Rodrigues da Silva. 90anos)
―Trabaiava pros outros desde os doze ano, a comida era ruim _ fava com angu e
até mesmo coco cozido servia de armoço. Meu pai, muitias vez trabaiava o dia
para ganhar um imbornal de mandioca, rapadura, medida de feijão ou fava.
Trabaiava de 6 a 6 (horas). A morada era uma casa de barro feitia pru nós
mermo, a cama era um couro de gado onde drumia uns quato cum uma cuberta
só. Tinha até finfin.‖ (Valério Mendes. 81anos).
―Eu trabaiei muitio, acabei com meus dia de vida _ mansando boi, carriano,
mansava burro, fazia de tudo. Quando vim imbora não recebi nada, só o que eu
fazia pra mim. Depois que mudei pa Brasila trabaiei muitio pru dia pa COPASA
abrino valeta.‖ (Antônio Martins de Freitas. 84 anos)
―Lá na roça depois que casei morava num rancho ribuçado de capim, ali era
minha sala, meu quarto, minha cunzinha. Quando vim pra cá aí que a cobra
fumou _ pidi até ismola _ ganhava cabeça de gado já até fedeno ou só os miolo
dela. Fiz uma casinha no Alto Claro com parede de barro e „bosta de gado‟,
passei argila com a mão e ficou branquinha! Depois uma vaca dirrubou ela no
chifre. Na roça trabaiava oiando arroz no brejo, carregando feixe de lenha na
cabeça. Cumia moio de melancia, orai pro nobre, berdoegua temperado com
sebo, feijão carrunchado cheio de lagarta. Carne era só de alguma caça. Hoje
num qüento nada!‖ (Carmelita Rodrigues dos Reis. 80anos)
―Eu fazia de tudo na fazenda onde nasci: carriava, muntava em burro brabo. O
pagamento era roupa, comida. Sem negócio de pagamento em dinheiro, não!
Cumecei trabaiá cum oitio ano e trabaiei até os vinte e três anos quando casei.
Depois fiquei de fazenda em fazenda, mas saía sem nada pru que era como se
fosse da famía dos patrão. Era mandado deles mas num fazia escravo di mim,
não. Nessa aqui já ta cum vinte e cinco ano. Me pussearam aqui, mas num sei se
tenho algum direito aqui!‖ (Geraldo Ribeiro dos Santos. 72anos)
―Nus tempo atrás quando nós trabaiava, nós era iscravo. Levantava cedo pra ir
pas manga cortá capim cum frio, cortá semente de capim num lugá cheio de
roseta. A cumida era do arroz mais barato que tinha e quando num pudia comprá
socava miio pra fazê angu. Trabaiava pru dia, mas ricibia fava, feijão. Até 2007
a vida era essa. Meu marido teve um acidente com a prantadeira e machucou a
coluna e recebeu só umas injeçãozinha e trabaiava assim mesmo. Nós num
pensou em fazê nada, não. _ trabalha na mesma fazenda desde os 9 anos.‖
(Lúcia. 51anos). ―Morei lá (Fazenda Pindaíba) 55 anos. (Antônio Cardoso de
Almeida. 74 anos)

É ainda um universo pouco explorado o modus operanti deste êxodo rural bem
como as relações trabalhistas e seus sujeitos históricos nesta região de Minas Gerais, uma
vez os pesquisadores basicamente terem se dedicado muito mais aos estudos do meio rural
sob o viés do patrão ou coronel, deixando de lado a história vista de baixo. Para SHARPE
(1991) a história vista de baixo pode ser entendida como aquela que se refere às classes
sociais ditas inferiores, ou seja, as classes sociais historicamente „dominadas‟ e portadoras
de um saber histórico considerado inferior e justamente por isto relegado a segundo plano
ou simplesmente ignorado pela historiografia tradicional. Somente com os trabalhos de

377
Edward Thompson nos anos de 1960 acerca das classes trabalhadoras inglesas que estas
passaram de forma ainda muito tímida a ser incluídas no rol dos interesses historiográficos.
AQUINO (2006) trata do coronelismo regional na pessoa do senhor Glicério
Antunes da Silva (1911-1993), este fora por ampla maioria considerado o último
representante da prática coronelística neste município _ de Brasília de Minas / MG; tendo
ainda muitos ex-trabalhadores da Fazenda Gameleira vivos, os relatos de seu histórico de
vivência com os empregados fixos ou temporários são recheados de maus momentos, cuja
violência é relembrada e/ou ocultada através das gerações. Porém, a pesquisadora se ateve
somente à pessoa do fazendeiro em si, de seus feitos pessoais como suas conquistas e
atuação no mundo dos negócios, da política e da família. Em alguns momentos de sua
pesquisa a situação dos trabalhadores rurais é mencionada de forma ampla e genérica, sem,
no entanto, identificar em que propriedades ou situações tais fatos ocorriam.

Teve uma época, que era tão difícil aqui; a gente trabalhava pra cumê; os
fazendeiro pagava a gente com rapadura, farinha, ovo, fava, sal e quando a gente
trabalhava na fazenda eles dava pra cumê lá era sebo com picado de banana,
fava mixida e se a gente recusasse cumê, os fazendeiro brigava, batia e a gente
tinha também que votar neles pra não passar fome. (AQUINO. 2006. P44)

Através de alguns relatos presentes em seus trabalhos pode-se perceber que


AQUINO (2006) cujo foco de interesse está claramente voltado para a atuação do
latifundiário ―coronel‖ Glicério Antunes da Silva, deixou fortes indícios de que as relações
trabalhistas entre o proprietário e seus empregados eram pautadas por relações de poder
nem sempre amistosas, cordiais e até de honestidade um poucoduvidosa.

Eu trabalhei durante uns seis meses no comércio de Glicério, naquela época as


pessoas compravam pano, feijão, arroz, toicinho sal e outros mantimentos
através de serviços na fazenda Gameleira. Eu anotava os nomes das pessoas no
caderno e mostrava para Glicério, eu me lembro que era sempre as mesmas
pessoas que trabalhava pra ele e que nunca conseguiam quitar suas dívidas, pois
seus nomes estavam sempre na lista de devedores. (AQUINO. 2006. P 57)
Apesar dos camaradas ser muitio tretero, Glicério era rúim pra eles também, se
um camarada marcasse de trabalhar e não fosse, ele procurava o camarada em
cima de um cavalo e com um revorvão, dava logo uns tebeco no freguês e
botava ele adiante, se o freguês mexesse ele falava que atirava nele. A cumida
que ele mandava na roça pros camaradas era rúim, era fava com picado de
banana pur riba e dentro de gamela, mandava na roça e nem cuiér num ia, eles
tinha que panhá era umas casca de pau pra cumê a cumida‖. (AQUINO. 2006. P
67)

Parece realmente ser verdadeira a frase ―a história do norte de Minas não está
escrita‖ (MOREIRA. 2010), mas a interpretação que ousamos lhe atribuir é diversa da
conferida pelo autor _ a história do norte de Minas não está escrita não só porque se
perdeuo fio da meada que inicia o seu novelo junto ao processo de ocupação da região,

378
mas também porque até então muito do que se escreveu desta história é sob o prisma da
elite, ou seja, vive- se ainda na historiografia norte-mineira um ranço da historiografia
tradicional. E o próprio MOREIRA sentencia ―são vozes que falam de um determinado
lugar, para uma determinada direção (elitista) e, ao falarem, silenciam, para sempre, outras
tantas vozes.‖ Este trabalho pretende dar voz aos trabalhadores rurais do município de
Brasília de Minas / MG cuja atuação se deu entre as décadas de 1970 e1990.
Dentre os ex-trabalhadores rurais que serviram na Fazenda Gameleira ainda
vivos estão o senhor José Alves Ferreira nascido em 1952 que juntamente com seu pai lá
exerceram a função de trabalhadores rurais de foice, enxada e machado. As condições de
trabalho eram realmente muito difíceis _ as ferramentas de sua propriedade, os
ingredientes da alimentação basicamente arroz e macarrão quase sempre
desacompanhados do feijão. O pai de Seu José criara a família servindo-se de terras
alheias donde o entrevistado se recorda de vários abusos praticados pelos proprietários _
um dos artifícios usados para impedi-los de cultivar seu próprio quintal fora a mudança da
cerca deixando um espaço ínfimo obrigando a família "ficá pra qui, pra culá"; "terra de
um, terra de ôtro"; "saía cum a trôxa na cabeça". Seu José, ou Zé Verde como é
popularmente conhecido, relata que trabalhou na Fazenda Gameleira carpindo roças,
roçando mangas, cortando e carregando cana nos ombros _ "meus ombro era igual de
cavalo véi" _, andava umas quatro léguas de sua casa até o local.

Ele cunzinhava uma mistura de banana; a fava ou feijão catadô era mexido com
farinha de mii. De vez im quando fazia um mingau engrolado de fubá e leite
como merenda de mei-dia. Ora que o sol saía, já tava no sirviço e quando a
pessoa num chegava cedo trabaiava até de noite pa discontá. Num tinha negoço
de discanso de mei-dia. (José Alves Ferreira).

Os relatos de Zé Verde não somente confirmam as rudes condições de trabalho


que imperavam nas fazendas do município de Brasília de Minas como também fala sem o
temor característico da maioria de outros entrevistados sobre a pessoa do Senhor Glicério
Antunes da Silva. Tenta caracterizá-lo de forma mais humana ressaltando não somente
suas virtudes, mas também suas fraquezas e possíveis deslizes. Ainda sobre sua trajetória
pessoal informa que era comum o trabalho de garoto(a)s de doze anos em diante no
manuseio de diversas ferramentas em quaisquer atividades rurais _ moagem de cana,
plantio e colheita de roça. "Nas muagem, quando o sol saía já tinha quato carga de
rapadura pronta". Segundo ele, toda a família se levantava à meia-noite e ao nascer do sol
estavam prontas duzentas rapaduras _ uma carga é composta por

379
cinquentaunidades.AriquezadaentrevistadeZé Verde se dá não somente por conta dos
detalhes do dia-a-dia nas fazendas, mas também deixa claro acerca das relações de
trabalho _ a rudeza por parte dos patrões no dia-a-dia e as formas de descarte quando os
mesmos não eram mais benquistos na propriedade _. Do trabalhador era esperada a
mesma eficiência no manuseio de qualquer ferramenta, quer fosse foice, enxada,
machado, facão. À criança e ao adolescente não eram dispensados nenhum tratamento
diferenciado, eram mini-adultos que deveriam ajudar a família prover osustento.
Pedrelina Gonçalves de Jesus nascida em 1928 se lembra de que deputados e
outras autoridades almoçavam em casa de Seu Glicério e sua filha Lúcia ainda adolescente
de 14 anos era a escolhida para cozinhar nestas ocasiões. Depois de muito relutar, D.
Pedrelina acabou por confessar que era íntima da casa de seu Glicério, era lavadeira da
família. Mas se esquiva com discrição das perguntas e ressalta um pouco exageradamente
as virtudes do Senhor Glicério "ele era muitio boa pessoa". Em algum ponto da entrevista
Lúcia, a filha, junta-se à conversa e afirma "tem duas coisas sobre Ti Glicério que num
conto" e a mãe confirma tal decisão e explica a motivação "tenho medo". Os relatos de D.
Pedrelina e sua filha Lúcia são muito importantes, não pelas palavras e expressões
proferidas, mas pelo que deixam de dizer. O silêncio também comunica ou pelo menos
aguçam a imaginação e pululam as conjecturas esuposições.
Joaquim Pereira da Silva, nascido em 1942, exercia as funções de vaqueiro,
carreiro, manuseava também a foice, o machado e enxada permanecendo por vinte e cinco
anos servindo ao mesmo patrão e depois pelo mesmo tempo ao filho daquele. "Não tinha
preço, não. A gente trabaiava era dado _ recebia era dispesa." Segundo o entrevistado,
após transcorridos dez anos de trabalho chamara o patrão para acertar as contas e a
resposta foi "Ocê num tem nem um minréis ne minha mão. Cê ta cumendo aí mais a
famia... O que posso fazê é pagá mei salaro a parti de hoje." Quando criança com apenas
dez anos após ficar órfão de pai, trabalhara por cinco anos para um conhecido fazendeiro
local com a finalidade de acertar os valores referentes à medicação comprada a seu pai.
Quitada a dívida, ficara acertado que o pagamento daí em diante seria uma novilha por
ano. Seu Tim, apesar de relatar em minúcias as peripécias e apertos pelos quais seus ex-
patrões passavam por conta de perseguições e escaramuças variadas, nega na entrevista
que tenha andado armado e prestado tais serviços. Porém, nas conversas informais em
outras ocasiões, o conteúdo da prosa era outro _ chegara a afirmar em contrário acerca dos
serviços de proteção, bem como o trato dos patrões ganhava outrocolorido.

380
Além de omitir determinados assuntos e situações na entrevista, entra em
contradição quanto à alimentação servida pelos patrões de então _ ao mesmo tempo em
que afirma ser as refeições preparadas em conjunto tanto para patrões quanto empregados,
diz que "o povo queixava que ele (o patrão) guardava a carne e incarcava os osso ne nós,
né? Osso, barrigada, aquele sarapaté. Ele fazia as carne mais pra ele, né?" Por fim, admite
"a cumida dele era separada, né?" Apesar de todo o sofrimento e privações, é grato por ter
conseguido adquirir uma casa com o dinheiro oriundo da venda das novilhas amealhadas
por tantos anos. Sobre a questão agrária, afirma que um dos seus patrões "adquiriu terras
em quantia na trêta purinha. Comprava cinquenta arquero e cercavacem".
Através das falas destes e de outros entrevistados é evidente a apreensão de
retaliações ou algum agravo por parte de familiares descendentes dos ex-patrões, ou talvez
as omissões e / ou silêncios se devam à desconfiança e individualismo de nosso homem
trabalhador de origem rural visão difundida durante o período Vargas pelos articulistas da
revista Cultura Política (GOMES. 1994. P 232). Outra provável hipótese que pode explicar
estas apreensões talvez seja ainda a existência de resquícios da ideologia outorgada
promovida pelo Estado Varguista, permanecendo a idéia de que direitos adquiridos são
furto de generosas concessões. A fala do Senhor Geraldo Ribeiro dos Santos é bastante
precisa ao se esforçar em deixar claro as relações 'trabalhistas' que mantinha com seus
patrões "era mandado deles mas num fazia escravo di mim, não" e ainda justifica a forma
como terminava 'os contratos' de trabalho "saía sem nada pru que era como se fosse da
famia dos patrão". O certo é que este trabalho está apenas começando, ainda tem muito o
que fazer em busca não somente de relatos, mas também de outros documentos uma vez
que nem sempre os acordos que findavam as relações trabalhistas eramamigáveis.

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São João da Ponte (MG) no período de 1946-1996: um estudo de caso. Florianópolis.
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 Antônio Martins de Freitas. 84anos
 Carmelita Rodrigues dos Reis. 80anos
 Geraldo Ribeiro dos Santos. 72anos
 Joaquim Pereira da Silva. (nascido em1942)
 José Alves Ferreira (1952. Entrevista concedida em21/01/2015)
 José Rodrigues da Silva. 90anos
 Lúcia. 51 anos. (FazendaSucuriú)
 Pedrelina Gonçalves de Jesus.(1928)
 Valério Mendes. 81 anos (Angicos deMinas).

382
CULTURA, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE: PRÁTICAS FESTIVAS NO
MUNICÍPIO DE CORAÇÃO DE JESUS/MG

Tânia Caroline Ruas Silva

Resumo: O presente trabalho tem como principal objetivo analisar as práticas festivas
no município de Coração de Jesus, sobretudo, a Festa de Nossa Senhora da
Conceição/Bom Jesus, a Festa de São Sebastião, ambas no Distrito de Alvação, e a
Festa de São Luís Gonzaga/Nossa Senhora Aparecida, no povoado de São Luiz de
Minas; localidades do município de Coração de Jesus, Minas Gerais. Fundamentado na
pesquisa bibliográfica e no método da História Oral (utilização de entrevistas) o estudo
dessas festividades surgiu da necessidade de identificar, valorizar, preservar - o que não
significa torná-las estáticas - e divulgar essas práticas que compõem o patrimônio
cultural dessas comunidades. Observou-se que as festas são espaços mais que propícios
para se estudar as manifestações de fé, lazer, sociabilidade e até mesmo as tensões de
seus agentes sociais. Tomá-las como objeto de estudo é, pois, uma maneira de entender
seus múltiplos significados, preservar o patrimônio cultural dessas comunidades e
discutir suas identidades.

Palavras-chave: História; Patrimônio Cultural; Festas.

A religiosidade é um aspecto que marca, desde a colonização, a história e a vida


dos povos no Brasil. E as ―festas religiosas emergiram dos estudos de história cultural
como um local privilegiado para se pensar o exercício da religiosidade popular e sua
relação dinâmica, criativa e política com os diferentes segmentos da sociedade‖.
(ABREU, 1999, p. 37).
Nota-se que por um longo períodoas festividades, inclusive religiosas, foram
ignoradas por historiadores e por vezes associadas ao termo ―folclore‖. Este foi tratado
por certo tempo de forma negativa, por consequência, tudo que se ligava a ele era
considerado ―inferior‖. Contrariando essa lógica, e baseando-se na pesquisa
bibliográfica e no método da História Oral, as manifestações culturais, sobretudo as
festas religiosas ou ―festas tradicionais‖, são entendidas neste trabalho como práticas
culturais extremamente importantes para se compreender as sociedades atuais, sua
relação com o espaço e o tempo em que se inserem, a forma como elas interagem entre
si e os significados que estas manifestações adquirem.
O tema ―festas‖ pode ser visto como recente, mas sua importância é bem mais
antiga. As festas já marcavam e caracterizavam a vida de povos desde a Antiguidade,
por exemplo, quando eram realizadas em dedicação aos diversos deuses, como forma de
pedir ou agradecer algo.

383
Burke (1989) afirma que ―na cultura popular europeia tradicional, o tipo de
cenário mais importante era a festa‖, sejam elas:

Festas de família, como casamentos; festas de comunidade, como a festa do


santo padroeiro de uma cidade ou paróquia; festas anuais comuns a muitos
europeus, como a Páscoa, o Primeiro de Maio, o solstício de verão, os doze
dias de Natal, o ano novo e o dia de Reis, e por fim o Carnaval. Eram
ocasiões especiais em que as pessoas paravam de trabalhar, e comiam,
bebiam, e consumiam tudo o que tinham.
(BURKE, 1989.p. 202).

Então, se a festa é parte integrante da vida de diversos povos, em diferentes


tempos e espaços, por que não estudar as práticas festivas, as festas religiosas ou ―festas
tradicionais‖do norte de Minas?
O objetivo deste trabalho consiste justamente em analisar as práticas festivas,
principalmente as festas religiosas no município mineiro de Coração de Jesus, como a
festa de Nossa Senhora da Conceição/Bom Jesus, realizada no mês de agosto, a festa de
São Sebastião, realizada em fevereiro, ambas no Distrito de Alvação, e a Festa de São
Luís Gonzaga/Nossa Senhora Aparecida, realizada no mês de julho em São Luiz de
Minas (povoado pertencente ao Distrito de Alvação). Observando desde a criação
dessas comunidades até os dias atuais, pretende-se analisar como estas se organizaram,
manifestaram a fé e a cultura ao longo de suas trajetórias.
O desafio não é encerrar, mas levantar as discussões em torno das festas: Por
quê? Para quê? Para quem se fazem essas festas? Resistir ou aderir à Modernidade para
que essas manifestações culturais vivam? E mais, como conscientizar as comunidades
estudadas de que esses bens precisam ser vistos com mais atenção, já que dizem muito
sobre elas? Por fim, qual a importância dessas manifestações festivas para a História e a
vida pós-moderna?
Defende-se a ideia de que preservando as práticas culturais das comunidades, no
caso Alvação e São Luiz de Minas, sobretudo as festas religiosas ou ―festas
tradicionais‖, preserva-se o patrimônio cultural imaterial dessas comunidades e aquilo
que confere identidade às mesmas, dessa maneira, ajudaria os sujeitos envolvidos a se
posicionarem frente à modernidade e a globalização.Além disso, contribuiria para a
construção de uma História mais dinâmica e menos excludente, com a inserção de
sujeitos e temas anteriormente esquecidos, negligenciados.

384
Portanto arealização desse trabalho se justifica pela necessidade de valorização
da cultura no que se refere às práticas culturais ligadas à religiosidade, com destaque
para as festas, bem como um maior debate e preservação destas, o que não significa
torná-las fechadas às mudanças.
É interessante destacar que após a institucionalização do Cristianismo, apesar de
muitas festas terem elementos considerados pagãos, elas não desapareceram,
continuaram a ser transmitidas ao longo do tempo, ainda que de forma diferente.
No Brasil colonial as festas foram marcadas pelo sincretismo, pois de acordo
com Oliveira (2008. p. 21) os jesuítas a fim de catequizar os índios usavam ―símbolos,
costumes e tradições indígenas, estabelecendo pontos de ligação com o cristianismo‖. Já
durante o Império no Brasil, (1822-1889) os brasileiros tinham um rei à frente da cena
política, mas também tinham outros reis e rainhas se interagindo, aqueles presentes na
memória dos escravos trazidos da África; esse conjunto de personagens liderava as
festas populares, como conta Schwartz (1998).
Dessa maneira, fica claro que a festa foi sendo incorporada em muitos espaços -
como a missa -e com diversos rituais e reapropriações (como os negros que identificam
nos santos católicos seus deuses) para formar ou legitimar identidades ou grupos
sociais; ela chegava, ainda que com significado diferente a todas as pessoas,
independente de classe social, cor ou religião.
Mas não se iludam, as festas não representavam no passado e nem representam
hoje apenas o riso, a alegria. Segundo Abreu(1999), Mary Del Priori encara as festas
coloniaiscomo:

Expressão teatral de uma organização social, procurando focalizar a


participação dos diferentes atores, segmentos da elite, índios, populares,
negros e escravos, o que tornou seu significado bastante multifacetado e
dinâmico, podendo ser um espaço de solidariedade, alegria, prazer, inversão,
criatividade, troca cultural, e, ao mesmo tempo, um local de luta, violência,
educação, controle e manifestação dos privilégios e hierarquias. (ABREU
1999.p.34)

Sobre esse caráter multifacetado das festas, Araújo (2010, p. 2)acrescenta serem
as festas ―um momento de inversão, de interrupção da vida cotidiana‖.Para a
autora,muitas das procissões e festas da Igreja, comemoradas no universo da América
Portuguesa, ainda hoje persistem de certa forma, transmutadas ou não. Ela considera
que ―todas essas vivências festivas, seja no espaço urbano ou em locais mais afastados

385
desses centros, querem continuar a ser como tal, e isso contribui para preservar a cultura
e identidade de um grupo‖.
As pesquisas voltadas para as festas, ainda são escassas, e o patrimônio cultural
no âmbito local e regional precisa de mais estudo e investimento, inclusive em relação
às políticas públicas. O momento é propício, o campo é fértil, e o tema precisa chegar à
universidade com a mesma velocidade com que essas práticas culturais vêm se
perdendo, se (re) construindo, para que não fique apenas na memória dos seus
participantes. Em muitos locais tais manifestações parecem não resistir às
transformações, principalmente as trazidas com a modernidade, o capitalismo e as novas
tecnologias; elas acabam se perdendo, portanto, carecem de atenção.
Acredita-se que ―no bojo das transformações do mundo moderno,as tradições,
costumes, enfim, culturas seculares estão sendo esmagadas, desaparecendo como que
levadas por uma onda gigantesca, fazendo parecer um imenso vazio‖ e levando-nos a
questionar: ―onde estão as danças típicas regionais, os antigos ritos e cerimônias de
algumas comunidades, a vivência religiosa das cidades pequenas e as tradições de tantos
povos?‖ (COUCEIRO, 2002, p. 13).
Segundo Hall (2006, p.7) isso estaria relacionado ao processo denominado ―crise
de identidade‖, que consistiria no declínio das velhas identidades, que estabilizavam o
mundo social, fazendo emergir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno,
antes considerado como sujeito unificado. Contudo, para Canclini, citado por Abreu
(2009, p.94), se por um lado o avanço tecnológico e a modernidade contribuíram para o
desaparecimento ou enfraquecimento desses patrimônios, dessas tradições, por outro
―pode haver melhoramento econômico e maior coesão da comunidade‖.
Abreu (2009, p.100) acredita que ―as festas pertencem à história e às lutas dos
homens e mulheres de seu próprio tempo‖, assim, ―discutir os vários sentidos e
possibilidades das festas, no passado e no presente‖ e ―procurar identificar os sujeitos
sociais que costumam estabelecer e divulgar certos significados das festas, recuperando
muitas vezes, os conflitos que se constroem em torno dessas definições‖ é uma maneira
promissora se trabalhar com as festas. O importante, então, ―diferentemente da
perspectiva do folclorista, não seria buscar o que não muda; mas por que muda, como
muda e interage com a comunidade‖ (2009, p. 93).A função do historiador, portanto,
não é resgatar o passado, reconstruir os fatos tal qual aconteceram, ou procurar a
verdade, mas dar sentido às ações do homem.

386
Para entender as festas e essas suas dinâmicas e sentidos diversos, alguns autores
e conceitos não escapam de serem aqui tratados; estesestabelecem diálogos entre a
História Social (ou História Social da Cultura)123 e outras áreas das Ciências Humanas.
Conceitos, como cultura, cultura popular, folclore, patrimônio cultural, identidade e
tradição, são considerados indispensáveis, também complexos, e alguns até polêmicos.
Parte-se da perspectiva de que assim como as festas, estes conceitos não são
estáticos, eles variaram ao longo do tempo e de acordo com os contextos sociopolíticos
que se inseriram, tendo significados e objetivos diversos, merecendo, pois, uma
abordagem cuidadosa e crítica.
O conceito-chave é o de ―cultura‖; ele exemplifica bem o caráter dinâmico das
manifestações festivas. E embora a palavra cultura, como se entende hoje, seja produto
do século XVIII, seu significado foi se construído a mais tempo:

O vocábulo cultura vem do alemão kultur, através do francês culture, e se


vincula às práticas de cultivo da terra, ou seja, fertilização da terra pelo
trabalho humano. Este conceito simples, embora de fundo - trabalhar a terra –
permanece implícito em noções mais ampliadas (BOSI, 1992, p. 11, 308-
309).

A definição mais comum de cultura a identificava como saber privilegiado, o


refinamento de um conhecimento adquirido pela elite. Sob a perspectiva antropológica,
esse conceito ampliou-se e cultura passou a ser ―todo comportamento social que se
utiliza de símbolos para construir, criar ou transmitir‖ (MARTINS, 2006, p. 44). Para
Santos (1996, p. 23-26) muitas vezes esses conceitos dão a entender que a cultura é algo
acabado, estagnado, quando na verdade não é.
Burke (2000, p. 267) também destaca a necessidade de evitar ―duas
simplificações opostas: a visão de cultura homogênea, cega às diferenças e conflitos, e à
visão de cultura essencialmente fragmentada, o que deixa de levar em conta os meios
pelos quais criamos nossas misturas, sincretismos e sínteses individuais ou de grupo‖.
Para o autor ―a história tem de conter em si mesma, várias línguas e pontos de vista,
incluindo as dos vitoriosos e vencidos, homens e mulheres, os de dentro e os de fora, de
contemporâneos e historiadores‖.

123
Ver: BARROS, José D‘Assunção. O Campo da história: especialidades e abordagens. Rio de Janeiro:
Vozes, 2008. p.56.

387
Da mesma forma que Santos (1996), Arantes (1998) e Laraia (2006) o conceito
de cultura escolhido para se trabalhar é aquele de caráter dinâmico, ―polissêmico‖.
Portanto, a cultura é:

O elemento identificador das sociedades humanas e engloba tanto a


linguagem na qual o povo se comunica, conta suas histórias e faz seus
poemas, como a forma como prepara seus alimentos, suas crenças, sua
religião, o saber e o saber fazer as coisas, seu direito. Os instrumentos de
trabalho, as armas, e as técnicas agrícolas de um povo, tanto quanto suas
lendas, adornos e canções (OLIVEIRA, 2008, p. 176).

Sobre cultura popular, Abreu (1999, p.27-28)acredita ser um dos conceitos mais
controvertidos, ou ainda ―espinhosos‖. Segundo ela ―cultura popular não é um conceito
passível de definição simples ou a priori‖, também ―não é um conjunto fixo de práticas
ou textos, nem um conceito definível aplicável a qualquer contexto histórico‖. É na
verdade algo tecido pelo historiador nas tramas sociais e documentais da história e que
sóganha sentido por meio da sua contextualização.
O conceito de cultura popular para Abreu (2009, p.83) ―foi utilizado com
objetivos e em contextos muito variados, quase sempre envolvidos com juízos de valor,
idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas‖. No entanto, esta defende
que mesmo com todos os problemas e diferenças de sentidos que a expressão vem
recebendo, este é um conceito válido e útil para os profissionais de história.

Cabe ao historiador evidenciar o envolvimento dessas manifestações com as


lutas sociais mais amplas e com a dinâmica entre o sentido por vezes
comunitário das festas e as diferentes versões, significados apropriações dos
seus variados participantes, seus modos e tempos. Os modelos simplistas
entre cultura popular e erudita, ou entre cultura dos dominados e dominantes
devem ser revistos (ABREU, 1999, p.29).

Os estudos que tem como foco a cultura ganham uma força ainda maior porque
de alguma maneira estão ligados à noção e construção do chamado―patrimônio
cultural‖. Antes limitado a preservar os monumentos suntuosos que representavam as
―elites‖, retratando apenas ―grandes homens e grandes feitos‖, a noção de patrimônio
ampliou-se e passou também a registrar aqueles bens de natureza imaterial, a exemplo
das festas. Isto é, na medida em que foram se (des) construindo eles passavam a se
influenciar mutualmente.

388
A Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de junho de 1988,
estabeleceu:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edifícios e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
(Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais/
IEPHA/MG. 2011).

Posteriormente, com o Decreto n.º 3551, de 4 de agosto de 2000, instituiu-se o


registro de Bens de Natureza Imaterial. Como forma de proteção de tais bens culturais,
os imateriais ou intangíveis, poder-se-á utilizar:

I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos os conhecimentos e


modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e
festas(grifo nosso).
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro de Lugares onde serão inscritos mercados, feiras,
santuários, praças e demais lugares onde se concentrem e reproduzem
práticas culturais coletivas.
(Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais /
IEPHA/MG, 2011, p.14).

De acordo com Oliveira (2008, p. 133) ―ao se falar de patrimônio cultural


imaterial está se falando de bens culturais vivos, de processos cuja existência depende
de indivíduos, grupos ou comunidades - que são seus portadores‖. Por isso, ―sua
salvaguarda envolve mais do que a preservação de objetos, o registro do seu saber‖.
Assim, a valorização do patrimônio cultural imaterial, que aqui trata
especialmente das festas, é fruto da discussão e da ampliação do conceito de cultura e
também de patrimônio, elementos que definem a identidade de um povo. Identidade
esta, vista como o patrimônio de símbolos e significados que condensa a evocação à
memória e um projeto de futuro, envolvendo discursos capazes de legitimar
pertencimento (OLIVEIRA, 2008, p. 189).

389
Segundo Correia (2013, p.303), ―atravessados por clivagens modernas e
tradicionais, os grupos populares criam suas redes e nós‖, ―reinventando e ao mesmo
tempo salvaguardando uma memória que na modernidade converte em identidade e
patrimônio‖.
Sobre as práticas culturais, muitas delas consideradas ―tradições‖, E. P.
Thompson (1998, p.18) afirma: elas ―se perpetuam em grande parte mediante a
transmissão oral, com seu repertório deanedotas e narrativas exemplares‖.
Sabe-se que a História tratou por certo tempo de ignorar vários fatos,
expressõese manifestações. Tal barreira, limitação, foi sendo ultrapassada e a História,
felizmente,ampliou o campo de objetos, fontes e técnicas de pesquisa.Este trabalho se
beneficia dessa ampliação, pois utilizadesdeentrevistas, fotografias, cartazes, livros
sobre a história de Coração de Jesus a materiais produzidos pelo IPHAN(Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), IEPHA/MG(Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais) e pela prefeitura de Coração de Jesus
e Igreja Católica do mesmo município. Assim, todos os materiais que fazem referência
às comunidades citadas e que podem ajudar a compreender as questões aqui propostas,
compõem as fontes deste trabalho.
Isso só é possível, porque a partir da primeira metade do século XIX, houve um
movimento de renovação nas concepções da historiografia e um ―avanço da história
rumo ao social que se deve em grande parte a dois paradigmas de explicação dos
fenômenos sociais: o marxismo e a Escola dos Analles‖. (HORN; GERMINARI, 2006,
p. 127-128). Este trouxe novas ideias sobre a concepção de documento e seu uso como
fonte histórica; o documento passou a ser entendido como todo vestígio escrito, oral,
iconográfico, entre outros, produzido pelo homem.
Porém, há um ponto polêmico para quem trata de fontes orais, sua credibilidade.
Isso porque alguns historiadores tradicionais consideravam os depoimentos orais como
fontes subjetivas, por basearem-se na memória individual que pode ser falível e
fantasiosa.Atualmente tal pensamento parece ter sido superado,afinal, a ―subjetividade é
um dado real em todas as fontes históricas, sejam elas orais, escritas ou visuais‖
(THOMPSON, P. R. 1992, p. 18). O interesse não é saber só o que foi dito, mas
também o não dito e as razões do entrevistadoao selecionar ou omitir alguns fatos, pois
essa seletividade não é por acaso.
Nas palavras de Verena Alberti (2008, p. 155-156) a História Oral ―é uma
metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o estudo da história

390
contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do gravador de fita‖
e o trabalho com esse tipo de metodologia, ―se beneficia de ferramentas teóricas de
diferentes disciplinas das Ciências Humanas, como a Antropologia, a História, a
Literatura, a Sociologia e a Psicologia‖, sendo considerada ―uma metodologia
interdisciplinar, por excelência‖. Esta pode contribuir, e muito, para o estudo das festas,
visto que, muitas práticas culturais se dão principalmente por meio da oralidade, de
costumes passados de pai pra filho através da fala, das músicas, dos contos.

Considerações finais
Este trabalho está em andamento, como parte de uma proposta maior de
pesquisa, e não tem como finalidade encerrar a discussão sobre o tema proposto, ao
contrário, procura neste momento a provocação e a contribuição de diferentes áreas. Seu
principal objetivo é analisar as práticas festivas no município de Coração de Jesus,
Minas Gerais, destacando as festas religiosas ou ―festas tradicionais‖. Fundamentado na
pesquisa bibliográfica e no método da História Oral, o estudo dessas festividades surgiu
da necessidade de identificar, valorizar, preservar - o que não significa torná-las
estáticas - e divulgar essas práticas que compõem o patrimônio cultural das
comunidades corjesuenses. Portanto, observou-se que as festas são espaços mais que
propícios para se estudar as manifestações de fé, lazer, sociabilidade e até mesmo as
tensões dos agentes sociais envolvidos. Tomá-las como objeto de estudo é a maneira
encontrada para identificar e entender seus múltiplos significados, preservar o
patrimônio cultural das comunidades e discutir suas identidades.

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392
O GRUPO ESCOLAR JOÃO ALCÂNTARA DE PORTEIRINHA E O
MOVIMENTO DE ESCOLARIZAÇÃO PARA A NOVA CIDADE (1929-1959)

Wilney Fernando Silva

Resumo: O presente trabalho propõe um estudo das relações entre a história do


processo de urbanização e escolarização da cidade de Porteirinha, no norte de Minas
Gerais e a história da cultura escolar do Grupo Escolar João Alcântara. Para a
constituição dessa tarefa, foram analisadas fontes documentais escritas localizadas em
livros de reuniões de professores, atas de promoções de alunos e de instalações das
cadeiras de instrução. Livros de visitas de inspetores do Grupo Escolar João Alcântara,
recortes de jornais, leis e decretos do poder executivo municipal, livros de atas da
Câmara Municipal também serviram como importantes fontes. O recorte temporal do
estudo inicia-se em 1929 e alarga-se até 1959, nele foram analisadas as primeiras
escolas isoladas localizadas no povoado, passando, em seguida, já no recente criado
município, para as Escolas Reunidas de Porteirinha. Este movimento mostra os indícios
da necessidade da prática do controle, da racionalização, da vigilância e da gestão
centralizada tanto nas ações políticas de organização da cidade quanto nas ações
escolares. Como resultados finais do trabalho, apresentaremos o Grupo Escolar João
Alcântara, instituição inaugurada em 1949 e que vai demarcar inovações importantes
quanto ao tempo, quanto ao espaço escolar e quanto à estrutura de poder. Arauto das
práticas da civilidade que educou o pensamento e os modos de vivência e convivência
sociais dos sujeitos na nova ordem citadina, o Grupo Escolar serviu como um grande
projeto dos dirigentes políticos locais.

Palavras-chave: cultura escolar; escolarização; grupos escolares.

Introdução
A origem dos colégios traz algumas inovações importantes como: - inovação
quanto ao espaço, com a passagem do ensino ministrado em locais diversos e mantido
pelos professores para um prédio único com diversas salas de aula e com rebatimentos
explícitos na necessidade de controle, racionalização, planificação de estudos, estrutura
de vigilância e gestão centralizada; - inovação quanto ao tempo, com a passagem do
planejamento das atividades cotidianas para o planejamento do conjunto do ensino, com
gradação e divisão das matérias; - inovação quanto à estrutura de poder, com o fim da
autonomia dos senhores e das cidades e a passagem ao poder central do Estado.
Um dos elementos importantes no processo que produziu essas inovações foi a
relação entre os processos de urbanização e escolarização, pois, como afirma Veiga
(1997), combinar o progresso material com o progresso das mentes produziu
aproximações entre as práticas urbanas e as práticas escolares numa dupla direção: as
representações da educação presentes tanto nas práticas urbanas como também nas
escolares, com os propósitos de constituírem um novo sujeito social a ser educado para

393
as práticas da civilidade. Nesse sentido, esse trabalho baseou-se no pressuposto de que a
cultura escolar, disseminada numa cidade em processo de urbanização, discursiva e
física, tem a função de deixar registrados os vestígios do progresso e da ação humana
sobre a natureza.
Outro aspecto importante do trabalho relaciona-se com a conceituação de cultura
escolar. Considera-se que estudar a cultura escolar, como bem aponta Faria Filho
(1996), significa estudar o processo que impõe significado aos processos e produtos das
práticas escolares, isto é, práticas que permitem a transmissão de conhecimentos e a
inculcação de condutas circunscritas a um espaço/tempo identificado como escola. A
cultura escolar não se articula em torno do conhecimento, mas da possibilidade de
construção de uma instituição. Instituição cuja construção, segundo Julia (2001), esteve
frequentemente associada a um projeto político e à noção de progresso, projeto esse que
vai se conformar aos limites de cada período da história.
Segundo Pessanha e Silva (2012), os projetos de urbanização incluíam projetos
de escolarização. ―O nascimento do empreendimento de escolarização em massa entre
os séculos XVIII e XIX esteve ligado à visão de uma escola produzida como a
instituição capaz de instruir e educar a infância e a juventude, mas de produzir um país
ordeiro, progressista e civilizado‖ (FARIA FILHO, 2002, p. 24). Soma-se a isso a
permanência da ideia dessa escolarização como um processo associado ao de
monopolização dos saberes elementares pelo Estado, como continuidade do processo de
civilização, ou seja, de tornar civil o bárbaro, como afirma Veiga (1997).
Inúmeras pesquisas sobre a gênese e a história dos grupos escolares no Brasil
vêm mostrando como a reunião de escolas isoladas foi aclamada como uma fórmula
mágica para resolver os problemas do ensino primário, afirmam Pessanha e Silva
(2012). ―No início do Brasil Republicano, as escolas isoladas deveriam ceder lugar,
tanto na memória quanto na realidade espacial, para os grupos escolares, mais racionais
e abrangentes‖ (FARIA FILHO, 1997, p. 93), ocupando, assim, especial relevo na
constituição moral e na formação das novas gerações.
Nesse sentido, o presente trabalho propõe um estudo das relações entre a história
do processo de urbanização e escolarização da cidade de Porteirinha, no norte de Minas
Gerais e a história da cultura escolar do Grupo Escolar João Alcântara. Utilizarei, para a
constituição dessa tarefa, a análise de fontes documentais escritas localizadas em livros
de reuniões de professores, atas de promoções de alunos e de instalações das cadeiras de
instrução da cidade. Os livros de visitas de inspetores do Grupo Escolar João Alcântara,

394
recortes de jornais, leis e decretos do poder executivo municipal, livros de atas da
Câmara Municipal também nos serviram como poderosas peças para construir um
grande e complexo quebra-cabeças. Livros, artigos, teses e dissertações de
pesquisadores/historiadores acerca da temática compõem as referências teóricas.
O recorte temporal do estudo inicia-se em 1929 e alarga-se até 1959, período em
que o povoado de São Joaquim da Porteirinha era distrito do município de Grão Mogol,
desmembra-se deste e passa a se chamar Porteirinha, agora com autonomia política e
administrativa. Neste recorte, analisaremos as primeiras escolas isoladas localizadas no
povoado. Em seguida, já no recente criado município, adentraremos nas Escolas
Reunidas de Porteirinha, instituição que foi a base do Grupo Escolar João Alcântara,
objeto principal de análise do trabalho e um dos principais projetos dos dirigentes
políticos da cidade.

Porteirinha, cidade norte-mineira


Conforme Holanda (1963), a Coroa Portuguesa, nos dois primeiros séculos de
exploração colonial, limitou-se ao latifúndio rural litorâneo. Não existiam pretensões em
colonizar os sertões habitados por índios. O povoamento destas regiões, segundo o
autor, foi desempenhado pelas bandeiras em busca do ouro. Concomitante a este
processo de expansão, centralizado na economia aurífera, estava também o ―caminho do
gado‖, bandeiras guiadas pelas margens do rio São Francisco, desbravando e povoando
este espaço.
Para Pereira (2002), para o atendimento de uma demanda que se expandia
rapidamente, estruturavam-se na região enormes fazendas de gado, além de uma lavoura
de gêneros de subsistência. Assim se desenhou o quadro econômico dessa vasta porção
norte do Estado por volta do primeiro terço do século XVIII. Atravessando essa região,
a estrada geral interligava a Bahia à Minas Gerais. Por ela transitavam em sentido às
minas, produtos como farinha de mandioca, rapadura, cachaça, além de escravos e
produtos importados provenientes do porto de Salvador.

A ocupação da região que hoje se localiza o município de Porteirinha ocorreu


no início do século XVIII. O local possuía uma pequena clareira no coração
das matas que separava a vila de Mato Verde do município de Monte Azul,
bem como do povoado de Riacho dos Machados; e servia de pouso aos que
vinham do nordeste e do sertão baiano, procurando encurtar a trilha que
levava à terminal da estrada de ferro, em Sabará. Uma brecha entre os altos
troncos, de um lado e do outro da clareira serviam de acesso. Eram como

395
porteiras. Os que para ali se dirigiam em busca de pouso se referia ao local
como Porteirinhas (IGBE, 1959, p. 406).

Segundo a Enciclopédia dos municípios brasileiros do Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE, 1959), com a divisão administrativa do Estado, fixada
pela lei estadual n. 843, de 07.09.1923, o distrito de Porteirinha, sob a designação de
São Joaquim de Porteirinha, manteve-se como integrante do vasto município de Grão
Mogol. Em 17.12.1938, pelo Decreto-lei estadual n. 148, que estabeleceu a divisão
judiciário-administrativa do Estado, a vigorar de 1937 a 1943, foi criado o município de
Porteirinha, composto por quatro distritos: o da sede, Gorutuba, Serranópolis e Riacho
dos Machados.
Contanto, com uma população de aproximadamente 20.686 habitantes (IBGE,
1947), aquele povoado, agora, ganha autonomia administrativa e política e o status de
cidade. Esses primeiros anos de sua constituição serão fundamentais para entender a
dinâmica cultural com seus elementos de aceitação e de resistência a novos hábitos e
modos de ver o mundo.
O primeiro administrador do novo município mineiro, o bacharel em direito,
tenente da Polícia Militar e católico fervoroso, foi Altivo de Assis Fonseca, autoridade
constituída, nomeado pelo interventor/governador de Minas Gerais, Benedito Valadares
Ribeiro. Segundo a Secretaria de Cultura e de Patrimônio Histórico de Porteirinha
(2005), ele ―dirigiu os destinos do município no período de 01.01.1939 a 31.03.1945,
trabalhando pela educação moral e cívica de seus munícipes‖.
Com o objetivo de estruturar administrativamente a cidade, Altivo de Assis
Fonseca foi o porta-voz da ideia da promoção de uma nova cultura, a cultura urbana que
se contrastava com a forte cultura rural do município. A tentativa de se constituir essa
nova cultura vai se dá por inúmeros dispositivos legais carregados dos ideais de
civilidade, organização urbana e racionalização.
No livro n. 1, de leis e decretos da Prefeitura Municipal de Porteirinha, Altivo de
Assis Fonseca normatiza as primeiras condutas da municipalidade. O decreto-lei, datado
de 14 de fevereiro de 1939, criou cargos municipais como os de escriturário, fiscal,
secretário-contador, coletor-tesoureiro, agente de estatística e regulou atribuições de
controle, inspeção, administração, supervisão, coleta e escrituração.
O Código de Posturas do Município apresentou normatizações e com elas
possíveis infrações e penalidades que a população estava sujeita. Normatizou, por
exemplo, as licenças para a construção de edificações na zona urbana. Nesse sentido,

396
nenhuma construção no perímetro urbano poderia ser edificada sem a entrega dos
documentos comprobatórios e pré-requisitos necessários para a licença concedida pela
prefeitura: o cuidado com o alinhamento das residências, o material empregado nas
construções e o estilo compunham um conjunto de preocupações de seus
administradores com a organização da cidade que se expressava de forma mais racional.
O título IV Da Higiene em Geral, do Código, obrigava a população a lançar mão
de uma série de medidas com relação à remoção do lixo residencial que, a partir dali,
―deverá ser recolhido, preferencialmente, em caixas providas de tampas de zinco‖ (art.
60, p. 30); o escoamento de águas residenciais em valas públicas e sarjetas deveria
também ser um ponto importante para os moradores. Proibiu a população em abandonar
animais mortos em vias públicas e a prática de lavar roupas em fontes e chafarizes.
Cobrou higienização dos estabelecimentos comerciais e residenciais e estabeleceu uma
forte fiscalização no abatimento de animais, na qualidade das carnes e leite
comercializados. O matadouro municipal, estabelecimento que abatia e fornecia carnes
ao município e região, foi submetido a uma série de normas quanto à higiene.
O recente município atentou-se e propôs uma regulamentação no tocante à
aferição mais racional de pesos e medidas das balanças nos estabelecimentos
comerciais. Todos eram obrigados a ter pesos, medidas e balanças apropriadas para cada
artigo, pagando pela aferição uma taxa anual ao coletor do município (art. 90, p. 36).
Dessa forma, as usuais formas de medidas ―por litro‖ deveriam ser substituídas pelo
quilograma. E a antiga noção de distância, a légua, por quilômetro.
O título XIV – Da moralidade, segurança e tranquilidade públicas – com seis
artigos, era bastante impositivo no sentido de que, com a infração, ―o morador pagava
uma multa, mas a reincidência incorria em prisão correcional‖ (art. 125, p. 45).
Interessante observar que os itens são proibidos aos cidadãos, aos indivíduos, no
entanto, ao longo do tempo, e num processo conflituoso, as proibições que eram
individuais passam a fazer parte de uma proibição coletiva, de uma vigilância social e
cultural dos moradores. Confira algumas proibições do art. 125:

- Perturbar a tranquilidade pública com vozerio e reuniões tumultuadas;


- Proferir palavras obcenas, fazer gestos imorais, escrever ou desenhar figuras
nas paredes e muros e afixar em tais logares pasquins e outros escritos
indecentes;
- Apresentar-se alguém em trajes menores perante o público;
- Correr desabridamente a cavalo pelas ruas e praças e deixar os animais
subirem nos passeios;
- Conduzir veículos em disparada;

397
- Jogar malhas e outros jogos semelhantes nas ruas, praças e logradouros
públicos;
- Abandonar nas ruas ou praças públicas veículos de transportes ou deixá-los
transitar, sem condutor, entregues à mercê dos animais;
- Conduzir animais bravos sem a devida segurança;
- Promover diversões imorais em ocasiões de carnaval;
- Amarrar animais nos postes de iluminação pública, nas árvores sitas nas
ruas, em logares que vedem o trânsito público ou periguem os transeuntes;
- Dar pousada ou terreno para acampamento de ciganos, em qualquer parte
do município;
- Promover danças ou outros divertimentos congêneres dentro dos povoados,
sem licença das autoridades, não se compreendendo nesta proibição os bailes
de reuniões familiares;
- Criar bovinos, cavalares, suínos, caprinos e lanígeros no perímetro urbano
da cidade, das vilas e das povoações;
- Os indivíduos de ambos os sexos, reconhecidamente vadios, que forem
encontrados em logares públicos, serão recolhidos ao xadrez durante 3 dias
[...] (PORTEIRINHA, 1939, p. 47).

Um projeto de alinhamento de ruas e praças da cidade também foi previsto no


documento, bem como serviços de ajardinamento e arborização da cidade. Dessa forma,
nenhum morador poderia mudar os caminhos, nem danificar os bens públicos. Era
necessário o desenvolvimento físico da cidade: limpeza e calçamento das ruas,
construções de pontes e estradas. Urgia também a adequação das antigas estruturas
físicas a essa nova lógica: as construções deveriam ser alinhadas, as casas que
esteticamente não se enquadrassem nestes novos preceitos deveriam vir abaixo e as
passagens deveriam ser desobstruídas. Tenta-se criar uma cultura da higiene nas
residências, comércios e nos espaços públicos. E o homem, para que realmente pudesse
ser propulsor do progresso, não podia mais se entregar à vadiagem. Ébrios, loucos e
vadios deveriam ser removidos à cadeia, e todos deveriam adotar um comportamento
moral condizente com os novos tempos.
No entanto, nesse jogo social, as transformações ou permanências em
Porteirinha não se deram em uma única direção, mas através de um processo permeado
de embates e negociações entre o ―novo‖ e as práticas costumeiras da população. Mais
que isso, os próprios costumes da população não funcionavam como estruturas fixas e
imutáveis.
O homem devia ser preparado para viver esta nova realidade. A transformação
do comportamento humano envolve a educação da mente e do corpo, na difusão de
modos cotidianos de vida mais afeitos ao mundo que se quer erigir. Em Porteirinha, a
limpeza das ruas, a iluminação noturna, as fachadas das casas, as vestimentas, a higiene,
a fala, o corpo, o trabalho humano, a própria noção de coisa pública e dos espaços de

398
sociabilidade como praças, ruas, avenidas, comércios, bibliotecas, igrejas etc., enfim,
inúmeros elementos foram objetos de intervenção quando diziam respeito à vida social.
E dentro deste movimento, educar os homens para a vida moderna era fundamental. A
escola toma seu lugar nesse processo de urbanização, de edificação de novos valores e
de civilizar hábitos e condutas.

O movimento de escolarização na cidade: das escolas isoladas ao grupo escolar


Até o ano de 1941, a educação primária, do então povoado de Porteirinha, era
ministrada em escolas isoladas e mistas. Segundo Faria Filho (1996), formadas de uma
só classe, as escolas isoladas, em sua maioria, funcionavam em prédios ou casas cedidas
pela comunidade ou alugadas pelo governo ou mesmo nas residências dos próprios
professores. Elas eram caracterizadas como escolas para o sexo masculino, para o sexo
feminino, ou eram mistas, destinadas aos dois sexos. Em alguns casos, as escolas
poderiam ser denominadas ―reunidas‖ em função da possibilidade de as escolas isoladas
serem agrupadas em um único local sob a direção de um dos professores.
Em Porteirinha, uma das primeiras instituições escolares chamava-se ―Escola
Mista Districtal de Porteirinha, município de Grão Mogol‖, datada do ano de 1928, e era
regida pela professora Gecy Lima. O termo de promoções da 1ª Cadeira Mista Districtal
de Porteirinha, de 30 de novembro, um dos documentos educacionais mais antigos do
município, revela que o inspetor chama atenção da professora quanto à frequência dos
alunos; registra a matrícula de 45 alunos e pede à professora que solicite aos pais dos
alunos faltosos uma justificativa pela ausência destes ao educandário (ESCOLA MISTA
DISTRICTAL DE PORTEIRINHA, 1929, p. 3).
O novo município, embalado pela nova forma de organização urbana, com uma
maior autonomia administrativa devido à visão mais racional das relações e espaços e
por uma grande expectativa em ver impostos e taxas sendo aplicados na sede, além de
receber verbas pela recente emancipação, vai construir uma forma mais racional de
administração dos seus serviços educacionais. Altivo de Assis Fonseca, em 1942, ao
organizar os serviços da administração local, bem como o quadro de funcionários e suas
atribuições, cria a repartição de Serviço de Educação Pública e Saúde. O capítulo VIII –
Do Serviço de Educação e Saúde materializa as responsabilidades do responsável pela
pasta educacional (PORTEIRINHA, 1942, p. 245).
Desse modo, na medida em que a educação era vista como um caminho
indispensável para um projeto nacional, estadual e municipal de longo alcance, ela

399
traduzia, em sua particularidade, instrução, educação e saneamento. Daí, a presença do
poderoso binômio educação-saúde, por exemplo, na criação do Ministério da Educação
e Saúde (MES), em 1937, e do Serviço de Educação e Saúde Pública de Porteirinha, em
1942.
As questões urbanas e de elaboração de estratégias de intervenção que, tendo
como objetivo central a formação da consciência sanitária, colocavam a educação
sanitária em primeiro plano, dando ênfase aos modernos métodos de persuasão. Desse
modo, como aponta Rocha (2010), era imprescindível eliminar atitudes viciosas e
inculcar hábitos salutares, desde a mais tenra idade, bem como criar um sistema
fundamental de hábitos higiênicos, capaz de dominar, inconscientemente, toda a
existência da população. Estas tarefas eram reconhecidas como do âmbito específico da
instituição escolar. Modelar a natureza infantil, pela aquisição de hábitos que
resguardassem a infância da debilidade e das moléstias, era uma das funções de que se
deveria incumbir a escola primária.
Imbuído nesse novo espírito, sociedade e escola almejavam a ampliação dos
espaços de escolarização. O número de vagas para as crianças da cidade, haja vista a
crescente demanda, foi um ponto que mereceu atenção e fez criar maiores espaços
institucionalizados para ensinar.
Contanto com uma população com pouco mais de 20 mil habitantes (IBGE,
1947), o município festeja o início da década de 1940 com a inauguração das Escolas
Reunidas de Porteirinha, agrupando, numa mesma instituição, as duas escolas isoladas
existentes. Com a reunião das escolas, aumentou-se significativamente do número de
vagas na cidade. A escola foi se tornando um marco na educação da cidade. O mesmo
movimento que fazia Porteirinha crescer, impulsionava a escola. Era um movimento de
dependência de uma sobre a outra. Na ocasião da reunião de abertura do ano de 1942,
além da presença do inspetor, de professoras, da diretora, de alunos e pais de alunos, o
prefeito municipal se fez presente. Recebido com satisfação pelo corpo docente e
discente, Altivo de Assis Fonseca, em discurso, ―incentiva a unidade de instrução, o
trabalho como gerador do progresso do futuroso Município de seu governo e do
engrandecimento da Pátria‖ (ESCOLAS REUNIDAS DE PORTEIRINHA, 1942, p. 2).
Aos 2 de julho de 1946, num ambiente em que a população, imbuída da ideia, da
adesão e da valorização à escolarização formal, vê instalado o Grupo Escolar João
Alcântara, objetivo esse que vinha sendo buscado há muitos anos, representando, dessa
forma, um marco na educação do município.

400
O Grupo Escolar João Alcântara
Conforme Souza (1998), em sua obra Templos de Civilização, os Grupos
Escolares, criados a partir de 1890, no Estado de São Paulo, eram símbolos do Estado
Republicano que se organizava. Como parte de um projeto mais amplo que considerava
a universalização do ensino como uma das características da República, representavam
a ideia de ―modernidade‖ através da mudança na concepção e organização da escola
(FARIA FILHO, 1996).
Em Porteirinha, esse entusiasmo materializou-se no dia 2 de julho de 1946. Num
momento solene e oficial, foi instalado o Grupo Escolar João Alcântara. Na ocasião,
estavam presentes o prefeito, Dr. Almerindo Alves de Brito Faria; o vigário, Julião
Arroyo Gallo; o inspetor escolar, profissionais liberais como farmacêuticos, dentistas,
engenheiros, ―autoridades municipais, representantes da indústria, do comércio, da
lavoura, muitos outros senhores, senhoras e senhoritas, as principais pessôas da elite
Porteirinhense, a Diretora, as Professôras‖ (GRUPO ESCOLAR JOÃO ALCÂNTARA,
1946, p. 2). Interessante notar que os bacharéis e o padre da cidade, possuidores de rara
instrução para a época, além dos donos do comércio, das indústrias e fazendeiros,
possuidores do poder econômico, compunham a elite porteirinhense, e suas presenças
legitimavam e davam grande relevo àquele momento.
As solenidades aconteceram durante todo o dia, num vasto programa que incluía,
pela manhã, a missa solene de ação de graças, celebrada na Igreja de São Joaquim. Após
o momento religioso, já no prédio escolar, houve o pronunciamento oficial de instalação
da escola. Os presentes à mesa de honra, o corpo docente e autoridades municipais, bem
como demais convidados, cantaram o hino nacional e assistiram a uma apresentação
artístico-cultural pelo grupo de Jazz de Porteirinha. O prefeito, Almerindo Alves de
Brito Faria, em seu pronunciamento de abertura, diz:

da inadiável necessidade da instalação do Grupo Escolar, cujo funcionamento


vem preencher grande lacuna no ensino primário, no município e encontrar
no seio da administração e do pôvo a mais justa acolhida, pois vem satisfazer
plenamente velhas aspirações deste município (GRUPO ESCOLAR JOÃO
ALCÂNTARA, 1946, p. 2).

Após o prefeito por em destaque as finalidades do Grupo Escolar e os grandes


benefícios que prestará à população, teceu grandes elogios ao Sr. Secretário de
Educação, Dr. Olinto Orsini de Castro, como ―inteligente e esforçado auxiliar do

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Governo Mineiro, que tudo tem feito como homem de elevada cultura para elevar a
instrução em Minas, inaugurando e instalando dezenas de Grupos Escolares, espalhando
no território mineiro essa constelação de luzes que está brilhando e que mais tarde irá
brilhar com mais fulgor‖. Na sequência, a diretora, Maria Lisbela Pereira, toma a
palavra e diz:

O início dos trabalhos escolares é um dos mais belos dias da vida do escolar,
porque a instalação do Grupo Escolar João Alcântara é a abertura de um
templo de luz, onde os espíritos juvenis vão beber as instruções
indispensáveis ao preparo para a grande luta pela vida e receber a moral que
vão formar o caráter para a futura felicidade (GRUPO ESCOLAR JOÃO
ALCÂNTARA, 1946, p. 2).

A organização do Grupo Escolar João Alcântara de Porteirinha é percebida em


suas relações com a organização urbana. Num terreno de 2.228 metros quadrados, em
frente à Praça Tiradentes, no centro da cidade, edifica-se o prédio de tamanho
expressamente maior, mais moderno, racional e arejado, adequado aos preceitos
higiênicos, e que vai se contrapor às instalações precárias das apertadas escolas isoladas,
como uma demonstração da modernidade proposta pelos ideais republicanos e, também,
pela emancipação política municipal.
É a ―trajetória da escola nas trilhas da cidade‖, como bem caracteriza Faria Filho
(1996, p. 16) em sua original obra Dos pardieiros aos palácios, tendo como foco de
investigação a educação pública primária na cidade de Belo Horizonte, dos primeiros
anos ao final da segunda década do século XX, constitui-se em uma importante reflexão
sobre o a cultura escolar, sua constituição nos espaços de urbanização e as
transformações na educação brasileira e, mais especificamente, a mineira.

Considerações finais
Este trabalho analisou as relações entre a história do processo de urbanização e
escolarização da cidade de Porteirinha, no norte de Minas Gerais e a história da cultura
escolar do Grupo Escolar João Alcântara. Mesmo inserida em uma região distante
geograficamente dos centros urbanos de destaque da época, Porteirinha vivenciou
algumas transformações urbanas pautadas no desejo da adequação da sociedade a um
progresso idealizado em parâmetros que emanavam dos grandes centros. Neste
processo, destacou-se a notória necessidade de educar a população para os ditames da
vida moderna que emergia.

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As fontes pesquisadas possibilitaram problematizar a dinâmica das mudanças na
cidade que se operavam no campo das ideias e na realidade urbana. Mas, ao mesmo
tempo, permitiram ver como estas mudanças sociais operavam dentro da escola e como
a sociedade porteirinhense respondia a isso.
Estava em pauta a construção de uma nova sensibilidade que expressasse o
rompimento com o passado, processo que incluía a valorização da vivência no espaço
público e a busca de uma nova estética para a cidade. Como resposta a isso, as antigas
escolas isoladas do povoado de São Joaquim de Porteirinha dá lugar às Escolas
Reunidas e, em seguida, ao Grupo Escolar João Alcântara.

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termo de promoções da escola mista do distrito de Porteirinha. Distrito de Porteirinha.
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