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FILHAS DE ALÁ
Lucilea Ferreira GANDRA (FCLAr/UNESP/Mestranda/CAPES
lucygandra.make@gmail.com
Or. Profa. Dra. Maria Dolores Aybar RAMIRES (FCLAr/UNESP)
I – JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS
Se até a primeira metade do século XX, a História e Crítica Literárias se valiam apenas
de um conjunto de obras escritas por autores de uma casta privilegiada, com o
desenvolvimento da crítica feminista passamos ao questionamento não só da cultura
dominante que manteve a mulher afastada, mas também de uma prática de leitura e
análise da produção literária das mulheres.
Ainda que muito se tenha avançado desde então, na tentativa de desvendar o que seria
uma escritura de autoria feminina ou um suposto texto que carregaria as marcas dessa
feminilidade, a maioria dos estudos limita-se a abordagens referentes às autoras
ocidentais.
Diante disso, nosso projeto propõe-se ao estudo da literatura produzida por mulheres muçulmanas pois
verificamos que apesar dos processos pós-modernos de globalização e suas consequentes mudanças nas
estruturas sociais e culturais, as diferenças de tratamento e valorização permanecem.
Observamos que a nossa visão do chamado mundo islâmico tem sido, quase sempre, ou repleta de
fantasias (Sherazade) ou carregada de medo, aversão e intolerância (EI, terroristas etc.).
Além disso, o lenço/véu/hijãb tem assumido uma dimensão política e propiciado uma diversidade de
narrativas sobre o Islã, considerando esse véu-bandeira como principal símbolo de opressão sobre as
mulheres.
Assim, estamos nos propondo a ouvir as vozes das
amorosa”.
II- ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A METODOLOGIA ADOTADA
Só podemos entender a obra literária “fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente
íntegra” (CANDIDO, 2011, p. 13).
Concebidas nessa relação, literatura e sociedade não se apresentam como duas realidades paralelas e,
portanto, dissociadas, passíveis de serem postas em contato por meio de um processo artificial, externo e
posterior à escrita que detecte a influência ou a reprodução dos fatos sociais no texto literário. Mais que
isso, toda criação artística é produto de um tempo e de um lugar específicos, e corresponde a uma
determinada atuação do homem em interação com o seu universo (GOBBI, M.V.Z., 2013, p. 113).
Uma das correntes da crítica feminista, considerada por Elaine Showalter um “território
selvagem”, contrapõe-se a outros modelos de crítica, procurando enfatizas as relações da
literatura com o mundo social, mostrando de que forma as representações de gênero estão
relacionadas com valores, atitudes e crenças enraizadas em uma sociedade. Para essa autora,
as diferenças de classe, raça, nacionalidade e história, “são determinantes literários tão
significativos quanto gênero” (SHOWALTER, 2004, p. 44)
Uma teoria baseada em um modelo da cultura da mulher pode proporcionar [...] uma maneira
de falar sobre a especificidade e a diferença dos escritos femininos, mais completa e satisfatória
que as teorias baseadas na biologia, na linguística ou na psicanálise. De fato, uma teoria da
cultura incorpora ideias a respeito do corpo, da linguagem e da psique da mulher, mas
as interpreta em relação aos contextos sociais nos quais elas ocorrem (SHOWALTER,
2004, p. 44).
[...] toda “moral”, em sentido amplo, comporta os dois aspectos [...] ou seja, o dos códigos de
comportamento e o das formas de subjetivação, [...] é necessário também admitir que em
certas morais a importância é dada sobretudo ao código, [...] em tais morais a
importância deve ser procurada do lado das instâncias de autoridade que fazem valer
esse código, que o impõem à aprendizagem e à observação, que sancionam as infrações;
[...] a subjetivação se efetiva, no essencial, de uma forma quase jurídica, em que o sujeito
moral se refere a uma lei ou a um conjunto de leis às quais ele deve se submeter sob
pena de incorrer em faltas que o expõem a um castigo (FOCAULT, 1998, p. 29).
O islamismo não pode ser considerado apenas como uma doutrina religiosa, de vez que
conseguiu impor a seus adeptos, aliados aos preceitos teológicos (Corão), um código de direito
e de moral (Xaria), um sistema político-social e uma cultura – síntese de elementos semíticos,
persas, greco-romanos e outros – que se manifestou primordialmente através da língua árabe.
Num sentido lato, portanto, o Islã engloba três aspectos: religião, Estado e cultura.
As nações são também imaginadas, elas “criam narrativas exemplares e sistemas simbólicos que
garantem a lealdade e o sacrifício de diversos indivíduos” (FRANCO, apud HOLANDA, 1994, p. 99).
Seguindo os passos de Vladimir I. Propp:
[...] afirmamos que enquanto não existir uma elaboração morfológica correta não
poderá haver uma elaboração histórica correta. Se não soubermos decompor um conto
comparação exata. [...] Se não soubermos comparar os contos maravilhosos entre si,
como estudar os laços existentes entre o conto e a religião, como comparar os contos e
Fadia Faqir (Amã, Jordânia, 1956) A autora morou e estudou na Jordânia até os 28 anos e
posteriormente, na Inglaterra. Ela obteve seu BA em Literatura Inglesa pela Universidade da
Jordânia, Amã, antes de ir, em 1984, para a Inglaterra, onde completou um mestrado em
redação criativa na Universidade de Lancaster. O trabalho de Faqir é escrito inteiramente em
inglês e é objeto de muita pesquisa e discussão acadêmica, particularmente por sua 'tradução' de
aspectos da cultura árabe. Ela é reconhecida por sua invenção estilística e sua incorporação de
questões relacionadas à vida, migração e intercalação cultural das mulheres do Terceiro Mundo.
Meu nome é Salma
Quando Salma se apaixona e engravida antes do casamento, na pequena aldeia de Hima, na
região do Levante, o peso desse pecado na cultura muçulmana passa a persegui-la por toda a
vida. Para sua própria proteção, ela é atirada na prisão, onde a filha lhe é tomada.
Salma é obrigada a se exilar na Inglaterra para fugir do irmão, que pretende matá-la com um
“tiro no meio dos olhos”. Só assim a honra da família beduína poderia ser recuperada.
Na Inglaterra ela adota o nome de Sally, aprende boas maneiras, estuda e se casa com um
inglês. Mas, enquanto Sally tenta se adaptar, Salma resiste e anseia encontrar sua verdadeira
identidade.
Quando já não consegue suportar, volta ao povoado: “Eu tinha que encontrá-la. Tinha que me
encontrar” (FAQIR, 2008 p. 242).
• Não posso tirar o véu [...] Meu país, minha língua, minha filha. Não pedaço de pano. Sente nua, eu (p. 144).
• Você tem sorte por ter nascido muçulmana [...] porque sua morada final é o paraíso. Você vai ficar sentada lá
numa nuvem de perfume, bebendo leite e mel (15).
• Perdoa-me Alá, por ter pecado. O calor da paixão me levou a me curvar (p. 7).
• [...] me dei conta de que daquela vez eu estava do lado de fora do portão negro de ferro, apesar de meus atos
tenebrosos e meu passado vergonhoso. Eu estava livre, andando na calçada como uma pessoa inocente. Meu
rosto estava negro como se coberto de fuligem, minhas mãos estavam negras e eu tinha coberto de negro a
fronte da minha família (p. 8).
• Salma resistiu, mas Sally tem que se adaptar. Adaptar: ajustar, mudar. Agora Salma, o íris negro de Hima, precisa
tentar se transformar em Sally, uma rosa inglesa, branca, confiante, com um elegante sotaque inglês (p. 9).
• No dia em que levaram você, ele de repente se tornou um velho, andando com dificuldade e se apoiando no
bastão. De cavaleiro da tribo, passou a ser o alvo das piadas e chacotas de todos. Sua filha tinha manchado a
honra da tribo e escapado sem castigo (p. 243).
• — É o dever dele. Ele precisa manter a cabeça erguida: a desonra só pode ser apagada com sangue (p. 245).
Semelhanças encontradas
• Submissão a Alá;
• Vida terrena x vida eterna;
• Importância da família/honra (Clã);
• Restrições impostas pela Xaria (direito islâmico);
• Confinamento/acompanhamento;
• Acesso à literatura;
• Conflito interior e exterior do imigrante.
Referências
ALI, Ayaan Hirsi. Infiel: a história de uma mulher que desafiou o islã. São Paulo, Companhia das Letras,
2009.
BRANCO, L. C. BRANDÃO, R. S. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004.
CANDIDO, A. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2011.
FAQIR, Fadia. Meu nome é Salma. Rio de Janeiro, Agir, 2008.
MERNISSI, Fátima. Sonhos de Transgressão. Minha vida de menina num harém. São Paulo,
Companhia das Letras, 1996.
______. Shahrazad n'est pas marocaine: autrement, elle serait salariée! Ed. La Fennec, 1988.
NAFISI, Azar. Lendo Lolita em Teerã: uma memória nos livros. São Paulo, A Girafa Editora, 2004.
PROPP, W. I. Morfologia do Conto Maravilhoso. CopyMarket.com, 2001.
SHOWALTER, E. A Crítica Feminista no Território Selvagem. In: HOLLANDA, H. B. (Org.)
Tendências e Impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.