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DOI: 10.1590/1413-81232015205.

00482015 1467

O social na saúde: trajetória e contribuições

CONSTRUTORES DA SAÚDE COLETIVA COLLECTIVE HEALTH BUILDERS


de Maria Cecília Ferro Donnangelo

The social in health: trajectory and contributions


of Maria Cecilia Ferro Donnangelo

Lilia Blima Schraiber 1


André Mota 1

Abstract This text covers the professional and Resumo Aborda-se a trajetória profissional e
scientific career of Maria Cecilia Ferro Donnan- científica de Maria Cecília Ferro Donnangelo,
gelo, professor, researcher and influential intellec- professora, pesquisadora e intelectual de grande
tual in the area of Collective Health. Born in 1940, importância para a Saúde Coletiva. Nascida em
and killed in a car accident in 1983, she actively 1940 e falecida em 1983, participou ativamente
participated in the emergence of Collective Health da emergência da Saúde Coletiva no país e in-
in Brazil and greatly influenced the creation of the fluenciou decisivamente a criação da subárea das
sub-areas of Social Science and the Humanities in Ciências Sociais e Humanas em saúde. Apresen-
the health field. Her brief biography, contextual- ta-se breve biografia, contextualizando escolhas
ized professional choices and scientific produc- profissionais e produção científica. Formando-se
tion is hereby presented. Graduated in pedagogy pedagoga no período do nacional desenvolvimen-
at the time of national developmentalism with a tismo e realizando sua pós-graduação em sociolo-
post graduation in Sociology, Donnangelo fell into gia, Donnangelo localiza-se na triangulação entre
the triangulated area of Education, Sociology and a educação, a sociologia e a saúde, ocupando-se
Health, focusing medicine as a social practice and da medicina como prática social e profissão em
as a profession in society. Always with an eye to sociedade. Sempre com vistas à igualdade de di-
human rights and an ongoing dialogue with the reitos e em diálogo com a conformação brasileira
modern Brazilian state and public policy, she ex- de estado moderno e suas políticas públicas, exa-
amined questions of the social aspects in health minou questões do social na saúde e na educação,
and education, as well as questions of health edu- assim como questões da educação em saúde como
cation as a social tool. An educator of great pres- ferramenta social. Educadora de grande prestígio,
tige, her published work was limited. However, deixa pouca publicação. No entanto, por seu cará-
due to her foundational presence, her writings are ter inaugural, suas obras são referências clássicas
classic references with assured presence and con- com presença e contribuições não apenas para os
tributions for today and also vital to the future dias atuais, mas para o desenvolvimento futuro da
1
Departamento de
development of the Brazilian Collective Health. Saúde Coletiva brasileira.
Medicina Preventiva,
Faculdade de Medicina, Key words Collective health, Health & history, Palavras-chave Saúde coletiva, Saúde e história,
Universidade de São Paulo. Social sciences & health, Cecilia Donnangelo, Ciências sociais e saúde, Cecilia Donnangelo, Saú-
Av. Dr. Arnaldo 455/2170,
Health and society de e sociedade
Cerqueira César. 01246-
903 São Paulo SP Brasil.
liliabli@usp.br
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Schraiber LB, Mota A

Introdução operariado. No caso brasileiro, ao processo de


crescimento econômico, atrelava-se a crença na
Maria Cecilia Ferro Donnangelo foi pessoa me- viabilidade de um país moderno e civilizado2.
morável e figura da maior importância como Quando as lentes desse espírito de época se
ator político e científico da Saúde Coletiva. Para voltam para as realidades regionais, no entan-
os que com ela conviveram, era Cecília, de per- to, alguns temas norteiam esses contextos e, no
sonalidade marcante, estilo e raízes italianos, fala caso paulista, a essa modernização do pós-guerra
rápida e gesticulada, com jeito de interior de São aliou-se um movimento de mudanças educa-
Paulo, puxando aquele ‘r’ – o do guaRda-roupa cionais para sanar a baixa escolaridade de uma
ou do supeR-meRcado – quando falava; e fala- população interiorana, assunto que sempre foi
va... falava bastante! motivo de discussão entre as elites de São Paulo e
Para muitos, porém, foi Donnangelo, como entendido como um processo fundamental e in-
termina por ficar conhecido alguém a que se tem tegrador estadual.
acesso só por meio de suas publicações. Surge, então, a renovação do professorado
Aqui vamos tratar essas faces, pretendendo interiorano, sobretudo voltado ao ensino secun-
apresentar sua trajetória individual, captando dário, e a chance para alguns prosseguirem sua
em sua biografia vestígios de momentos históri- carreira acadêmica, especialmente na Universi-
cos específicos e nos debruçando sobre sua pro- dade de São Paulo (USP). Com a intensificação
dução, para compreendê-la como pesquisadora da interiorização industrial, esse impulso no
e a grande intelectual que foi na construção da campo educacional foi relativamente rápido em
Saúde Coletiva. Viveu muito pouco, falecendo algumas cidades, mesmo havendo embates locais
aos 43 anos, em trágico acidente de carro. Mas, acerca do fato de que seria perigoso educar uma
tem grande presença no campo: foi referência “nova” elite intelectual3. Nesse contexto, foram
original para escolas de pensamento; contribuiu criadas, em 1957, seis faculdades de filosofia,
para a reflexão em todas as três subáreas da Saú- ciências e letras no interior paulista. Araraqua-
de Coletiva (a epidemiologia, as ciências sociais ra ganha, inclusive, foros internacionais, com a
e humanas em saúde, e a política/planejamento/ visita e conferência do escritor e filósofo francês
gestão/avaliação em saúde); e fez parte daqueles Jean-Paul Sartre, em 4 de setembro de 1960, re-
atores cuja produção deu origem às ciências so- percutindo na Faculdade de Filosofia e entre os
ciais no campo. diversos grupos mais informados da cidade que
dessa Faculdade faziam seu ponto de encontro4.
Quem foi Cecília Donnangelo: No bojo desses imperativos regionais, o curso
a personagem e a história de pedagogia trazia uma rica discussão sobre os
destinos da educação brasileira como suporte de
A trajetória que a traz para a Saúde Coletiva desenvolvimento e modernização nacional, alian-
configura-se de modo bem peculiar1. Nasceu em do a pesquisa educacional e as políticas para o
Araraquara, interior do Estado de São Paulo, em ensino com o ideário desenvolvimentista que pre-
19 de agosto de 1940. Formou-se em 1962, em dominou no país naquele contexto e tomou o sis-
Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências tema educacional como recurso de superação dos
e Letras de Araraquara (FFCLA), hoje perten- entraves brasileiros5. É nessa conjuntura que ga-
cente à Universidade Estadual Paulista, UNESP. nham as Ciências Sociais um papel de destaque2.
Durante seu tempo de universitária, teve a opor- Araraquara entra nesse processo quando Luiz
tunidade de participar e ser testemunha histórica Pereira assume a cadeira de sociologia, como
da modernização dos interiores paulistas. professor no curso de pedagogia. Egresso da USP,
A segunda metade do século XX represen- para a qual depois retornaria, foi tido como um
tou uma nova fase do desenvolvimento humano, sociólogo autodidata, com contribuições teóri-
devendo a economia mundial e o progresso so- cas importantes e originais para o conhecimento
cial aliarem-se na reconstrução do tecido social científico, atualizando o diálogo de seu mestre,
nacional, o que se esperava obter por meio da Florestan Fernandes, com as principais correntes
incorporação de tecnologias e de um Estado de de pensamento nas ciências sociais6.
bem estar capaz de incluir aqueles que estivessem Entre as questões teóricas fundamentais, en-
fora de sua órbita. No plano social, os grupos contravam-se também os problemas relativos
dominantes de outros tempos eram substituídos à educação popular e às responsabilidades do
por uma mobilidade intensa, encontrada na ex- cientista social. A obra de Pereira assinalava uma
pansão dos estratos médios e de um numeroso nova época na história da sociologia brasileira,
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um novo estilo de pensamento sobre as configu- nitária, que, baseada na implantação de centros
rações e os movimentos da sociedade6 e preten- comunitários de saúde, subsidiados pelo Estado
dendo realizar um amplo panorama empírico da e administrados por organizações não lucrativas,
realidade brasileira por meio dos ‘estudos de comu- passariam a prestar cuidados básicos. A proposta
nidades’, visando uma ‘sociologia do desenvolvi- da medicina comunitária, no caso norte-ameri-
mento’, explicitando a crença nas possibilidades de cano, logrou pôr em prática alguns dos princí-
‘aplicação’ direta do conhecimento sociológico em pios preventivistas, focalizando setores sociais
políticas públicas7. minoritários, mas deixando intocada a hegemo-
E foi nesse processo de mudanças dentro do nia social da assistência médica convencional, tal
próprio campo sociológico e dentro da visão do como bem estudou Donnangelo em seu segundo
destaque à educação para o desenvolvimento livro8,10.
social que houve o encontro entre Luiz Pereira Ocorre que tal concepção passa necessaria-
e Cecília Donnangelo, não havendo dúvidas de mente pela formação dos médicos, havendo a
que os lineamentos sociológicos e educacionais necessidade de se reformular o padrão educacio-
por ele trazidos foram relevantes na formação nal vigente: uma maior coordenação horizon-
das primeiras turmas de Pedagogia e de Cecília, tal e vertical das disciplinas já existentes, como
particularmente. forma de “integração” dos campos parcelares do
conhecimento médico, e a introdução de novas
A produção de Cecília Donnangelo disciplinas consideradas básicas, que seriam a
e a questão do social na Saúde psicologia, as ciências sociais, a ecologia, a an-
tropologia, vistas, sobretudo, como ciências do
Para acompanhar de tão perto a produção comportamento. Essas seriam formas de prática
de conhecimento das pesquisas de seu professor educativas capazes de conformar uma visão glo-
e depois orientador Luiz Pereira, Cecília cen- bal do indivíduo, podendo tais campos do co-
trou seu pensamento em uma nova educação de nhecimento ser enfeixados, exemplarmente, nos
modo articulado às questões do social em busca departamentos de Medicina Preventiva11.
de respostas a alguns entraves médico-sanitários, Essas questões são relevantes para uma com-
caminho determinante para suas primeiras expe- preensão mais ampliada das motivações que
riências, acadêmicas e educacionais na Faculdade aproximaram Cecília do campo médico e sani-
de Medicina da USP1. tário, pois foi dos resultados de sua experiência
Consoante com tais influências a obra de escolar numa região conhecida como “a boca do
Donnangelo espelhará a triangulação educação, sertão paulista” – Araraquara e cidades vizinhas
sociologia e medicina, explorando-a sob o refe- – e de suas atividades no magistério secundário
rencial historicista marxista e sempre implicada que surgiram suas primeiras hipóteses vinculan-
na perspectiva das políticas públicas: seu dou- do aprendizado e questões sociais e sanitárias.
torado e primeira obra em livro foi o estudo do Como professora de sociologia e psicologia de
mercado de trabalho dos médicos em diálogo uma escola normal estadual e coordenadora dos
com o papel do Estado na assistência e as políti- programas do curso, ela projetou e supervisio-
cas de saúde, e uma das últimas obras, impressa nou uma pesquisa integrada por várias áreas da
apenas em forma mimeografada, debruçou-se escola, realizada por estudantes junto a alunos de
sobre a educação sanitária e as políticas públicas escolas primárias e referente a problemas de nu-
em saúde no país8. trição, pobreza e rendimento escolar.
Assim, sua produção tomou criticamente a Desse trabalho, decorreram contatos com
temática trazida no diálogo estabelecido pelo na- profissionais da área médica e um convite para
cional-desenvolvimentismo com as questões mé- proferir palestras na cadeira de Medicina Legal
dico-sanitárias. Nele, a produtividade e a saúde e Social da Faculdade de Medicina da USP, que
do brasileiro deveriam romper o ciclo de pobre- então manifestava interesse pela implantação
za, desnutrição, moradia precária e enfermidade de um programa de ciências sociais no curso de
por meio da adoção de medidas preventivas, pe- graduação. Aos poucos, no entanto, foi ficando
las quais se superaria também a cisão entre o lito- clara a orientação sociológica que se tentava im-
ral e o sertão, este ainda tido como abandonado plementar em termos de classificação comporta-
no campo médico-sanitário9. mental, ao estilo de Nina Rodrigues, o que levou
No plano internacional, havia uma conjun- ao paulatino afastamento de Cecília Donnangelo
tura pontuada por movimentos sociais e intelec- e a sua aproximação de outro campo de saber
tuais voltados para a chamada medicina comu- médico, então denominado Medicina Preventiva.
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Assim, se ela havia entrado como professora ção dos serviços médicos na sociedade e o traba-
em 1964, pela referida cadeira de Medicina Le- lho do médico em seu mercado, além do papel e
gal e Social8, já em 1969, começou a trabalhar no da atuação do Estado nessas questões, mostrando
recém-criado Departamento de Medicina Pre- ser a profissão também matéria de política públi-
ventiva como “instrutora de ensino”, a convite do ca. Foi, por isso, inovador o reconhecimento do
então chefe do Departamento, o professor cate- aspecto social em assuntos da corporação profis-
drático Guilherme Rodrigues da Silva: sional, nas figuras do papel regulador do Estado
[...] o professor Guilherme Rodrigues da Silva, moderno e da economia política dos serviços de
coordenador do Departamento de Medicina Pre- saúde.
ventiva desde o ingresso de Cecilia, escreveu em Em sua segunda obra10, outra contribuição
seu depoimento: ‘Mas, mesmo com toda a nossa inovadora ao destacar o aspecto social no inte-
convivência, uma coisa que nunca ficou clara para rior da própria dimensão técnica da prática mé-
mim é por que ela escolheu trabalhar com Medi- dica, evidenciando a consubstancialidade dessas
cina, especificamente’. Sem dúvida, independen- duas dimensões, a técnica e a social. Mostrou essa
temente de querer explicar uma opção individual, consubstancialidade em dois pontos do proces-
podemos dizer que o tema da medicina e da saúde so a que denominamos medicalização: cada vez
aflora com grande força na metade dos anos 1960 mais a medicina expande seus domínios norma-
em nível internacional, e a OMS/OPS irão pro- tivos na sociedade, como uma medicalização do
mover inúmeras discussões a fim de introduzir um social no mundo, ao mesmo tempo em que apela
modelo de ensino que fosse além da centralidade para recursos de manipulação instrumental do
biomédica. Assim, as ciências sociais aparecem no seu aspecto social, reduzindo a complexidade do
cenário da medicina, e os primeiros sociólogos são mundo a comportamentos medicalizáveis pela
contratados12. intervenção médica.
A formação no campo educacional levou Se em primeira aproximação poderíamos
Donnangelo a primar pela organização didática achar que ambos os estudos mostram a mes-
das disciplinas ministradas no Departamento. ma preocupação com as relações entre o social
Nesse sentido, ela deu prioridade à formação, e e a medicina, como eixo da questão do social
não ao academicismo, e, apesar das críticas sofri- na saúde, um exame mais aprofundado permi-
das, essa foi uma opção absolutamente conscien- te-nos apontar certo deslocamento de seu olhar
te13. Tais críticas podem ser reportadas à intensa analítico, o que se reforça com o exame de uma
luta pela reforma do ensino médico que se dava terceira obra, inédita e que trata da educação sa-
na Faculdade de Medicina, em que ela teve um nitária em termos de política de saúde. Ou como
papel definitivo, participando ativamente de uma afirma Schraiber15: O deslocamento pode ser visto
nova proposta curricular, o Curso Experimental como a passagem de uma a outra concepção de po-
de Medicina. Essa proposta integrava as discipli- litização da saúde, sendo esta intenção de politizar
nas a partir de uma metodologia inovadora, com a pretensa neutralidade das técnicas, um elemento
a preocupação de implementar um curso médi- constitutivo central do movimento, da proposta e
co que formasse profissionais mais capacitados, do projeto de Saúde Coletiva.
com uma clara incorporação e aprofundamento Consideramos, em primeiro lugar, que a pró-
dos aspectos sociais da medicina e da saúde. pria inscrição da necessidade de politizar a saúde
Em termos de produção científica, Donnan- dá-se pela invisibilidade do social nesse campo,
gelo adota uma perspectiva sociológica crítica marcado pela cisão entre a sua dimensão técnica
no campo da saúde, afastando-se da produção e científica, por um lado, e a outra de prática da
até então vigente de uma sociologia médica em sociedade. A cisão opõe e isola cada qual, resul-
que a profissão e a prática da medicina são vistas tando em uma tomada da saúde como campo
pela ótica das questões do médico. Em seus estu- de domínio apenas técnico-científico. Esse olhar
dos, ao revés, trata-se de profissão exercida em tem por base a forma como os médicos apre-
um mercado e de uma prática realizada de modo endem política e ideologicamente a medicina,
articulado à estrutura social e política histori- construindo, para si próprios, conceituações de
camente dada. Cada um desses temas foi traba- doença e de intervenção com base no ‘caso clí-
lhado em duas obras fundantes que deixa para o nico individual’ e tomando qualquer coletivo e o
campo da Saúde Coletiva, advindas de sua tese de próprio social como a somatória desses casos15.
doutorado e de sua tese de livre-docência. A pri- Argumentará Donnangelo que uma grande
meira, Medicina e Sociedade14, inaugurou no país dificuldade que possuem os médicos em ver nas
o conhecimento sobre a produção e a distribui- mudanças da sua prática articulações com as que
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ocorrem na sociedade reside na antiguidade des- que, enquanto ferramenta das políticas públicas,
se fazer, o que de certo modo facilitaria tomá-la acultura a todos na perspectiva de que saúde seja
como uma intervenção de finalidades perma- tão somente aquele consumo da medicina e seus
nentes ao longo da história, ou em suas palavras: subprodutos.
[...] diferentemente de outras práticas sociais, cuja A contribuição da obra de Donnangelo, por-
origem é coincidente com a própria emergência ou tanto, não apenas se mantém na triangulação
com o desenvolvimento da sociedade capitalista, a educação, sociologia e medicina, como representa
medicina tende a revestir-se mais facilmente de um caminhos teóricos e epistemológicos novos, com
caráter de neutralidade face às determinações espe- repercussões para o conhecimento acerca do so-
cíficas que adquire na sociedade de classes. [...] Tal cial, do cultural e do político relativamente às
concepção [...] encontra, ainda, na marcada conti- questões da saúde.
nuidade histórica da medicina um de seus princi-
pais suportes. A prática médica e seus agentes não Cecília pelos diversos olhares
foram instituídos no interior do modo de produção e notas biográficas
capitalista10.
Assim sendo, um primeiro movimento poli- Finalizamos este texto trazendo outros olha-
tizador na obra de Donnangelo será o de eviden- res, além de nossas considerações. Essa forma de
ciar essa presença do social, apontando suas co- concluir sua apresentação pareceu-nos impor-
nexões econômico-políticas e as determinações tante porque efetivamente nos mostra sua ampla
históricas destas sobre o exercício profissional, a presença em nosso campo.
organização do mercado de trabalho dos médi- De publicação muito recente16, em 2014, José
cos e as modalidades de produção da assistência da Rocha Carvalheiro, Luiza Sterman Heimann
médica para a população. Tudo isso no interior e Márcio Derbli, pesquisadores do Instituto de
da conexão entre a medicina e as políticas do es- Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São
tado moderno. Trata-se, pois, a nosso ver, de uma Paulo, organizam a coletânea O Social na Epi-
afirmação do social nas questões da medicina e demiologia – um legado de Cecilia Donnagelo.
da saúde, diante de sua negação em discursos Além de diversos comentadores da obra de Ce-
profissionais e em suas ideologias ocupacionais, cilia, a coletânea traz a transcrição de sua fala
elaborando o conceito de medicalização da socie- inédita proferida em um Curso de Epidemiolo-
dade referido, nesse primeiro momento e em seu gia oferecido pela Associação dos Sociólogos do
primeiro livro, à forma de produzir e consumir a Estado de São Paulo, em outubro de 1982.
assistência médica e seus subprodutos. Ali tratou das aproximações e divergências
O segundo movimento para tratar do social, entre a perspectiva de social adotada por duas
que se pode observar em seu segundo livro, pare- distintas correntes de pensamento epidemiológi-
ce-nos avançar na elaboração desse conceito. Me- co: a clássica e a social. Dirão os organizadores
dicalização passa a ser uma forma de ler e inter- desse belo trabalho de recuperação da memória:
pretar o social no interior dos marcos conceituais Esta obra revela uma contribuição pouco conheci-
da medicina. Sob essa elaboração, o social não da de Cecília Donnangelo, numa área raramen-
está ausente, mas transmutado em comporta- te objeto específico em sua notável produção nos
mentos individuais relacionados aos adoecimen- primórdios do esforço brasileiro de construção do
tos. Nesses termos, a medicalização torna-se uma campo da Saúde Coletiva16.
construção histórica sociocultural, que, assim Gastão Wagner de Souza Campos, aluno, ad-
como outras construções conceituais, funciona mirador e multiplicador das questões tratadas
como referência para o pensamento e as ações em por Cecília em contribuições bastante inovado-
sociedade; é capaz de organizar a vida, material e ras e da maior importância para a política, o pla-
simbolicamente. Mas esse referente traz a leitura nejamento e a gestão em saúde, em 2011 escreve
de um social inscrito na medicina para o que dele o prefácio da segunda edição do primeiro livro
se retira sua socialidade, sua qualidade política de Donnangelo. Traz-nos um texto emocionado
enquanto um todo em relação ao adoecimento e emocionante, com clareza expondo as contri-
individual e à intervenção reparadora ou preven- buições científicas e políticas da autora e mere-
tiva. Trata-se de um social reduzido ao caso indi- cidamente destacando-a como a grande educa-
vidual e não este como expressão da pluralidade dora que foi, uma Mestra. Textualmente: Cecilia
do social; uma forma de tomar a presença e as Donnangelo nos faz falta... Faz falta estudarmos a
influências do social, pois, nada social15. Essa me- política de saúde do terceiro milênio no Brasil com
dicalização será também uma forma de educação a liberdade de movimento, com o rigor metodológi-
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co e interpretativo, com a abertura para o concreto ficado ainda muito mais importante. Por ter sabido
para além das travas teóricas, de nossa Mestra17. unir, com a fecundidade criadora que a caracteri-
Everardo Duarte Nunes, contemporâneo zou e distinguiu, a atividade acadêmica de pes-
de Cecília Donnangelo, intelectual de destaque quisa com a docência dedicada, com a orientação
e igualmente partícipe da criação das Ciências lúcida a todos os que nela buscaram auxilio, com a
Sociais na Saúde Coletiva, tem se dedicado, en- difusão e a defesa apaixonada de seu compromisso
tre outras produções, a manter viva a memória com a História, tornou sua morte tanto mais trá-
das origens e do desenvolvimento histórico, seja gica, tornou sua vida uma tarefa que não pode ser
do campo da Saúde Coletiva seja da subárea das descontinuada18; Pela força de sua presença, agora
Ciências Sociais em saúde. Sobre Donnangelo, a mediada pelas práticas de toda uma multidão de
quem trata como pioneira na construção teóri- trabalhadores em saúde que ajudou a formar, di-
ca de um pensamento social em saúde, escreveu: reta e indiretamente, Cecilia Donnangelo é um dos
Certamente, as influências de Cecília foram distri- pilares sobre os quais se constitui a Saúde Coletiva
buídas e apreendidas pelos seus seguidores dentro brasileira como área de trabalho vividamente aten-
de uma perspectiva que garantiu a eles avanços ta às relações entre as pulsações dos compromissos
e inovações, dentro do espírito que norteou a sua sociais e as exigências da seriedade profissional. En-
presença intelectual – contribuir para a reflexão quanto assim for, ela permanece viva19.
crítica e elaboração teórica12. Todas essas informações dão conta de como
Por fim, que em realidade foi o primeiro, eis a memória será sempre um terreno vivo, movi-
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, ele também mentado pelas circunstâncias de quem a escreve.
grande intelectual, pesquisador e professor da Um sujeito biografado, então, terá por excelência
Medicina Preventiva, convivendo com Cecília na a marca dos tempos como uma obra aberta de
USP, foi o seu mais próximo colaborador e inter- dimensão histórica. No entanto, pontos conver-
locutor e sobre ela escreveu dois pequenos textos: gentes dessas narrativas delineiam certas ma-
no ano de sua morte, em 1983, publicado no Bo- trizes capazes de confirmar aquilo que alguém
letim da Abrasco nº 5, embora não assine o texto; trouxe como seu objetivo primeiro. Esse foi o
e em 1992, abrindo a revista Saúde e Sociedade, caso de Cecília Donnangelo ao tratar da relevân-
em seu primeiro número, do primeiro volume. cia do social na saúde, para ontem e conforme
Em suas palavras: Cecilia Donnangelo logrou su- tratam seus comentadores, para os dias que se
perar-se como cientista social e alcançar um signi- seguem também.

Agradecimentos

Colaboradores Ao apoio financeiro da Fapesp (Projeto História


da Saúde Coletiva no estado de São Paulo: emer-
LB Schraiber e A Mota participaram igualmente gência e desenvolvimento de campo de saber e
de todas as etapas de elaboração do artigo. práticas) e ao CNPq (Bolsa produtividade 1-A).
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