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Daniel Lins
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente (Fernando Pessoa)
Desafio. Fazer sair um verbo de um cadáver, não mais se produzindo nas coisas,
mas, ao contrário, querendo ‘que as coisas se produzam para mim’, diz Artaud em
Heliogábalo. Tentar enfim produzir uma escrita como um devir-intensidades em um
corpo que se embriaga com um copo d´água, que faz da folha em branco uma carne e da
carne uma natureza, um corpo vegetal no corpo-escrita, atrelado como um destino
carnal à cena litúrgica do bordel místico. A escrita, pois, como uma prostituta sagrada,
que se entrega ao primeiro hóspede de passagem, num gesto de louvor e oferenda que
supera o ato da orgia para se molhar no amplexo com o divino (Daniel Lins. Antonin
Artaud – O artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo: Lumme, 2011, p. 39).
1
Obrigado ao amigo Antonio Carlos Amorim pelo cuidado e amizade.
Seu entusiasmo marca nossas conversações, e delineia campos abertos às
invenções nômades.
2
Afirmar que a estética é acontecimento nos leva a pensar o inominável, aquilo
que não pode nem deve ser pensado, isto é, o pensamento como pura crueldade. A
crueldade como pensamento, o pensamento sem imagem; o pensamento por vir. O livro
de Deleuze, O bergsonismo, é uma maneira de desconstruir a imagem tradicional do
pensamento e de propor outras vias. Não por acaso Deleuze abre o capítulo “A imagem
do pensamento“ questionando o começo. Ora, a existência de um começo insere-se
numa imagem do pensamento, que impõe uma raiz, um pensamento arborescente, o que
leva Deleuze a engendrar o conceito de pensamento sem imagem, e que se torna ao
longo dos tempos verdadeiras barricadas contra a representação, contra a imagem
dogmática do pensamento. Em parte, o encontro de Deleuze com a filosofia de Bergson,
e sua leitura peculiar, muitas vezes reinventando o próprio autor, impõe a necessidade
de pensar: a efração, o arrombamento. Só se pensa por necessidade. O encontro é um
choque com uma coisa A imagem do pensamento, em contrapartida, é o pensamento
dado antecipadamente como uma série de postulados, sobre os quais o pensador acredita
que começa a pensar.
Quem é, porém, o anjo do mal, sem origem, que se revolta? Esta personagem
filosófica se chama o Intempestivo, e que não é nem temporal nem eterno. Ora, o
pensamento, uma vez libertado da imagem tradicional do pensamento e das proposições
que ele experimenta, e alforriado também da palavra de ordem implícita na imagem do
pensamento moral, caminha, então, não mais de A a A, mas, partindo de um A
intempestivo, chega a um A ou a um B, daí a ideia de Deleuze, leitor de Nietzsche, de
uma filosofia sem pressupostos:
3
“Quando Nietzsche se interroga sobre os pressupostos mais gerais da Filosofia,
diz serem eles essencialmente morais, pois só a Moral é capaz de nos persuadir de que o
pensamento tem uma boa natureza, o pensador uma boa vontade, e só o Bem pode
fundar a suposta afinidade do pensamento com o Verdadeiro. (...) Assim, aparecem
melhor as condições de uma filosofia isenta de pressupostos de qualquer espécie: em
vez de se apoiar na Imagem moral do pensamento, ela tomaria como ponto de partida
uma crítica radical da Imagem e dos ‘postulados’ que ela implica (...) É em vão que se
pretende remanejar a doutrina da verdade, se antes de tudo não forem arrolados os
postulados que projetam esta imagem deformante do pensamento”.3
Deleuze não poderia ser mais claro, decisivo em sua crítica de um modo de
pensar que se fecha ao novo, que diz a última palavra, que faz da opinião uma forma
protética de razão, uma “ciência”, que sela ou fecha hermeticamente o devenir, o novo,
o que não deve nem pode ser pensado: o pensamento sem imagem. Segundo Deleuze,
na quádrupla – recognição, repartição, reprodução, semelhança (ressemblance) - numa
referência explícita a Foucault na obra As palavras e as coisas:
4
Dito de outro modo, o pressuposto vence, leva a melhor, pois que o prefixo RE é
limitado a uma função mecânica – e não maquínica – fazendo dos termos o reflexo de
um dado exterior que se interioriza em uma perfeita coincidência. Cabe observar que a
palavra prefixo significa também, afora o uso gramatical, fixado anteriormente;
predeterminado. Do mesmo modo, pressuposto é aquilo que se supõe antecipadamente;
pressuposição, conjectura, suposição, ou ainda, motivo alegado para encobrir a causa
real de uma ação ou omissão.
5
ser sensível, em vez de coabitar, entrar em núpcias com o ser do sensível, em encontros
indeterminados que podem abrir para os afectos.
“Que é um pensamento que não faz mal a ninguém, nem àquele que pensa, nem
aos outros? O signo da recognição celebra esponsais monstruosos em que o pensamento
‘reencontra’ o Estado, reencontra a ‘Igreja’, reencontra todos os valores do tempo que
ela, sutilmente, fez com que passassem sob a forma pura de um eterno objeto qualquer,
eternamente abençoado.”8
“Os postulados não têm necessidade de ser ditos: eles agem muito melhor em
silêncio, no pressuposto da essência como na escolha dos exemplos; todos eles formam
a imagem dogmática do pensamento. Eles esmagam o pensamento sob uma imagem que
é a do Mesmo e do Semelhante na representação, mas que trai profundamente o que
significa pensar, alienando as duas potências da diferença e da repetição, do começo e
do recomeço filosóficos. O pensamento que nasce do pensamento, o ato de pensar
engendrado em sua genitalidade, nem dado no inatismo nem suposto na reminiscência,
é o pensamento sem imagem.”9
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Os conceitos, como as ideias, têm uma vida. O conceito de transversalidade,
elaborado por Guattari, ou transversalidade de lutas, noção que ele compartilha com
Foucault, confirma a vida inserida na criação, no pensamento, em todos os seus
movimentos, tramas, e alegria própria ao conhecimento. No fundo, que diz Guattari ao
propor o conceito de transversalidade? Todo conceito novo, a novidade, aquilo que não
se sabe de antemão, ao eclodir em alguns campos se repercute alhures, sob outras
formas. Cada campo tem sua especificidade – a física, a literatura, a arte, a filosofia, a
matemática, a política, a ecologia etc. –, mas todos reagem à aparição de um novo
conceito. O conceito, ao contrário da opinião, encarna uma novidade que assombra,
desmonta certezas, instiga a pensar, provoca a abertura, a quebra de verdades
verdadeiras ou, de modo mais concreto, a vontade de verdade vinculada em toda doxa,
opinião ou pensamento determinado, emergente constituído com base em um discurso
prêt-à-parler, segundo a forte expressão de Pierre Legendre. Nem verdade verdadeira,
puramente intelectual, nem verdade como um ato voluntário e metodológico, mas um
pensamento submetido ao encontro violento por efração, de um signo sensível e
intensivo que o força a inventar e a gerar o pensar no pensamento. O pensamento não é
um parteiro, mas um criador.
Uma filosofia, pois, que não procura em absoluto proteger do caos, mediante a
imagem regrada de um mundo objetivo, mas tão-somente vencer o caos, após ter nele
mergulhado, e que, antecipadamente, elimina toda relação da representação com o real
que faz fluir os possíveis do próprio real, ao acontecimento. Uma Estética como
Acontecimento é uma filosofia que compartilha com a arte outra exigência que a da
representação; é uma estética, pois, dos sentidos; arquipélagos dos sentidos. Sentidos
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que surgem da interseção entre um problema e o pensamento; o sentido não preexiste
jamais ao acontecimento que o produz, pois que “o real em si” é o caos, uma espécie de
efetividade sem efetuação:
“Não há ato de criação que não seja trans-histórico, e que não pegue ao
contrário, ou que não passe por uma linha liberada. Nietzsche opõe a história, não ao
eterno, mas ao sub-histórico, ou ao sobre-histórico: o Intempestivo, outro nome para
dizer a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a
memória, a geografia contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a
arborescência)”.14
Cabe observar que não é apenas o resultado de uma mestiçagem e sim de uma
ressonância – de um devir-ressonância, no caso de Hermeto – uma sorte de
intranquilidade oscilatória que acelera o tempo, o movimento inventivo, apesar da
diversidade ou contraste, luz e sombra, claro/obscuro, zonas opacas bem-vindas,
acolhidos como se acolhe uma diferença que difere, ainda uma repetição do diferente,
conceito deleuziano, retomado por Silvio Ferraz e que, no presente contexto, nos
convém perfeitamente:
8
as matérias formadas que retornam, mas as forças que põem em conexão simples
transitórios, que não constituem ainda matérias. No mecanismo do ritornelo, a repetição
vai sempre de uma matéria não formada às outras. Segundo esta configuração, é
praticamente impossível encontrar relações de tipo hereditário, hierárquicos, porque são
simplesmente micro pontos dispersos; em compensação, o que se encontra é uma
infestação de micro pontos. O ato da repetição é comparável à proliferação de ervas
daninhas”.15
Eis por que pensamos a Estética como Acontecimento, feita arte que exige da
existência algo muito mais forte do que ela nos proporciona. Potente, inventora, a vida,
às vezes, pede socorro! A vida parece estar com medo; preocupação atestada, há tempos
por Baudelaire: La vie a peur! Levá-la ao pico, aos altos arraiais de suas
possibilidades/impossibilidades, instigá-la à invenção de outros possíveis; exigir-lhe o
impossível, acordar a existência da tentação à letargia, ao estatuto de galinha cuja
9
tendência é permanecer de cócoras, já é um começo de revolução. Não deixar, pois, a
existência se asfixiar, sob o signo de um karma, destino, prisão social ou fatalidade –
papai, mamãe, Édipo, psicanálise, mística, confraria, partido, televisão etc. – tornando-a
uma cópia da cópia. Um borrão inspirado no sujeito ou no eu ficcional. Ora, eu é por
definição a ficção da ficção. Todo eu impõe uma raiz, um arquivo. Um tabelião. Um
cartório. Um cartel. Uma boa ou má genealogia que pode abrir para o terrorismo
identitário, isto é para os sistemas de castas. O Um contra todos; o universo aos pés do
Um: não é o sonho do piedoso, do falso perverso, do déspota?
A vida, porém, como uma obra de arte, como uma filosofia da arte cujo universo
é habitado por disparidades e devires artísticos, é uma construção que demanda a se
tornar pensamento/acontecimento; um pensamento, pois, para gerar o pensar. Neste
sentido, a Estética como Acontecimento é a intercessora primordial da vida: a vida
como máquina de guerra positiva, nômade. Em outros termos, a vida como
transvalorização que, ao buscar nas malhas identitárias os devires imperceptíveis ali
camuflados, abre-se à eclosão do inumano do humano. Ao escapar à dominante
biológica e finita, a vida demanda a ser reinventada. Agente primordial, sem o qual a
existência seria somente uma imensa repetição sem diferença, o homem é o artista de si
mesmo. Inacabado, como toda obra de arte, ele tem como tarefa primeira a
autoinvenção sem tréguas. É neste instante criativo que o homem alcança a
imortalidade. Não porque não morrerá. Ele morrerá sim, mas cantando, tão grande é sua
sede do novo, de desejo de transvalorização post-mortem. Sem choro. Sem vela. Morto,
ele continua sendo uma pedra de escândalo. Um grito no deserto dos assentados, dos
acocorados (Rimbaud), dos desmoralizados que fogem ao primeiro ferrão de uma
abelha inofensiva, renunciando ao mesmo tempo ao acontecimento, à partícula mínima
de acontecimento:
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O acontecimento, pois, como o instante; imanente como o Aion, ou ser em devir,
não apenas histórico ou cronológico; antes aquele que apreende o indeterminado, os
jogos do acaso; um ser, pois, não identitário:
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Dobra I
Puro e sua polissemia: Sem mistura; não alterado pela presença ou inclusão de
impurezas ou de elementos estranhos; límpido, claro, transparente; sem mancha ou
nódoa, imaculado, limpo; não conspurcado pelo pecado, pelo mal; virtuoso, reto; sem
malícia ou maldade; cândido, inocente; que desconhece as coisas ligadas ao sexo;
virginal, casto; que não se pode pôr em dúvida ou em questão; genuíno, incontestável,
autêntico; que expressa apenas o que pensa e sente; sincero, franco, verdadeiro; que
apresenta correção e esmero, sem elementos estranhos; correto, castiço, vernáculo; que
transmite paz, enlevo, sublimidade; tranquilo, suave, afetuoso.
11
fazer em uma experiência. O que distingue a experiência da experiência pura é
exatamente a atualização dessas relações no interior do material. (...) A experiência pura
é o conjunto de tudo o que está em relação com outra coisa, sem que necessariamente
exista uma consciência dessa relação.”22
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* CsO – Fórmula usada do Corpo sem Órgãos, criado por Antonin Artaud em seus escritos, por Deleuze
e Guattari, para dizer do estado de um corpo antes da representação orgânica, isto é, um corpo pleno de
intensidades, limiares ou níveis.
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Pré-individuação e individuação, estes dois conceitos, presentes implícita e
explicitamente na elaboração da Estética como Acontecimento, e seu corolário singular
o corpo sem órgãos, ocuparão de modo privilegiado nossa atenção:
“Uma consciência não é nada sem a síntese de unificação, mas não há síntese de
unificação de consciência sem forma do Eu ou do ponto de vista da individualidade
(Ego). O que não é nem individual nem pessoal, ao contrário, são as emissões de
singularidades enquanto se fazem sobre uma superfície inconsciente e gozam de um
princípio móvel imanente de auto-unificação por distribuição nômade, que se distingue
radicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condições das sínteses de
consciência. (...) Quando se abre o mundo pululante das singularidades anônimas e
nômades, impessoais, pré-individuais, pisamos, afinal, o campo transcendental”.28
13
Eis pois, explicitamente formulada, a crítica deleuziana ao transcendental
kantiano. Simondon prossegue no mesmo sentido para justificar sua concepção do pré-
individual e, finalmente, o problema da significação:
Ao quê acrescentamos: do mesmo modo que nunca se chega ao CsO, pois ele
também não conhece “resultado fixo e definido”, cada encontro é um desencontro,
segundo as forças ordenadas/desordenadas dos diagramas, embora portadores de linhas
de fuga e cantos poéticos: “Os diagramas agarram os gestos em pleno voo, (…) são os
sorrisos do ser”.33
14
Em síntese, pensar a individuação implica, pois, um método genético e releva
concomitantemente de uma abordagem natural que é bastante próxima da dinâmica da
vida e da problemática da sensação, singular, mas não individual, misto de percepto e de
afecto. Qual é, pois, nossa relação com o impensado da subjetividade, o que se pode
desde logo se chamar o pré-individual? O pré-individual ou a liberdade das
singularidades. Simondon considera o pré-individual como a fonte única de onde jorram
todas as possibilidades do ser. Com efeito, o pré-individual é o potencial que comporta
cada indivíduo em sua existência concreta e lhe permite evoluir de maneira inventiva,
segundo uma continuação transdutiva de individuações múltiplas, que são as fases do
ser, um ser pois em devenir, cujo dispositivo intrínseco é capaz de transformar uma
forma de energia em outra. Em síntese, referimo-nos, pois, a um ser como puro
acontecimento; visto que, na verdade, não há solo originário a procurar, mas
acontecimento a inventar, pois que, segundo Ilya Prigogine, o tempo não está por vir,
mas “por devir”.
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Dobra II
O livro O fim das certezas, de Ilya Prigogine, tomou diversas direções e criou a
dúvida, malgrado os escrúpulos ou as reações canônicas de uns e de outros. O autor, na
linhagem de Heráclito, explica que a física de certo modo se enganou, desde o começo,
pois cometeu o erro de negar o devenir, e também o tempo de assimilá-lo, pelo fato de
que as equações fundamentais da física, aquelas que prevalecem na escala de átomos e
partículas, são todas reversíveis em relação ao tempo. Em outras palavras, pode-se
mudar nestas equações o signo da variável temporal sem que isto tenha o menor efeito:
as equações permanecem invariantes sob esta transformação.
15
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Sob os rastros, a saber, o dentro/fora de Nietzsche, que fazia do lançar dos dados
o ponto de partida da existência, podemos dizer que o CsO, como pura imanência, abre
os horizontes ao acontecimento, ao virtual, ao fatual, e se erige como fundamento e
plano de consistência, agindo menos como princípio e mais como catalisador ou
dinâmica da existência e de sua individuação, de seu devir. Daí o comentário de
Deleuze e Guattari:
“O único sujeito é o próprio desejo sobre o corpo sem órgãos, enquanto máquina
objetos parciais e fluxos, destacando e cortando uns com os outros, passando de um
corpo a outro, segundo conexões e apropriações que a cada vez destroem a unidade
factícia de um eu possuidor ou proprietário (sexualidade anedipiana)”.35
O CsO, pois, como fundamento material do mundo que culmina com a bela e
incisiva definição de Deleuze e Guattari:
“Mas é sobre o corpo sem órgãos que tudo se passa e se registra, mesmo as
cópulas dos agentes, mesmo as divisões de Deus, as genealogias esquadrinhadas e as
suas permutações. Tudo está sobre esse corpo incriado, como piolhos na juba do
leão”.36
O CsO, potência cósmica, flerta com o caos, e partilha o ronronar, seu devir-
gato, e o canto às mil tonalidades, seu devir-pássaro, é um ovo que habita o cosmos e
convive com o caos e seus afluentes inventivos e mares agitados, sempre resguardado
por ondas e tubos que têm todas as cores e melodias do mundo, mas que se deixa
massagear, afagar, mimar pelos tubos gigantes, fúria e calmaria do mar, misto do
sensível, sem hierarquias nem nomes. Vibração. Expressão. Alfabeto a-gramatical,
cantante como o ritornelo.
16
compor com outros desconhecidos. O cosmos é justamente o que Deleuze chamava o
espaço intensivo, ali onde tem apenas velocidades e densidades. É assim que a arte sai
do caos, passa pela terra, se conecta aos cosmos, e retorna à terra, nas canções de ninar.
Nos cantos populares, nas melodias de criança, nos rituais indígenas, para devir
cosmos”.37
Ora, este confronto, ou luta com o caos, significa, precisamente, que o artista e o
filósofo devem também em seu trabalho encarar frente a frente o caos sem se deixarem
levar por ele. Nunca se trata de entregar-se ou sucumbir, todavia, melhor se expor, a
cada vez, em alguma coisa do caos. Em alguma coisa do CsO... Não é este o
pensamento de Deleuze e Guattari, na página 60, de O que é a filosofia?
Ora, se o CsO, o novo por excelência, marca toda a filosofia de Deleuze, e lhe
permite juntar no interior de uma mesma orientação filosófica pensamentos tão
heterogêneos - Espinosa, Leibniz, Bergson Artaud, e Foucault - é talvez porque a
questão do novo é, antes de tudo, a questão de Deleuze, e que favorece uma produção
subjetiva da novidade, isto é, uma criação.2*
Que faz então o CsO? Ele não é apenas a quarta pessoa do acontecimento, mas,
de modo jocoso, a quinta, a sexta, e assim por diante. O CsO é um bloco de
singularidades, ou quarta pessoal do singular; é que “Longe de serem indivíduos ou
pessoas, essas singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas”.38
* Cf. Arnaud Bouaniche. Gilles Deleuze, une introduction. Paris: Pocket / La découverte, 2004.
17
Em suma, a gênese é por definição transcendental, e a necessidade é tão-
somente problemática. A gênese remete a este movimento de produção que força os
fatos, violenta o dado e entra em conflito com os problemas, em um choque vertiginoso.
Não se trata apenas de uma ideia de gênese, como tema kantiano ou conceito
nodal da filosofia, segundo Deleuze, todavia, de uma prática genética. Nosso ponto de
vista é motivado pela prática filosófica de Deleuze em seus escritos de historiador do
pensamento, ou algo que se poderia chamar seu procedimento ou método.
O CsO tem uma tarefa, um papel? Qual é sua atuação? Ao falar de CsO, não
estamos antes dissertando sobre uma estética nômade, a Estética como Acontecimento?
O CsO não tem nem tarefa nem encargo... Não se trata de falar do CsO como ator – no
sentido tradicional, em que o ator é aquele que representa –; é possível, todavia,
atribuir-lhe a ideia de agente: aquele age e não se deixa agir. Agente, aquele que,
semelhante ao Super-Homem, de Nietzsche, prefere a ação à reação: agir intercala-se ao
CsO, como puro movimento, mas suas ações são de outra (des)ordem conceitual.
18
Platô II: este mesmo princípio nega a estruturação transcendental do ser; em
consequência, a transcendência perde seu significado, e guarda somente sua
significação, sua representação desprovidas de sentido. Por outro lado, o CsO, como
invenção conceitual, emerge de uma filosofia que refuta a transcendência e pleiteia a
imanência absoluta da vida: A imanência, uma vida! (Deleuze). Em resumo, tudo o que
aí intervém, aparece após a afirmação apodítica da contingência do corpo, e não antes.
Platô III: reconhecer este princípio que chamamos contingência do corpo, e que
atesta a manifestação do corpo no mundo, leva-nos a afirmar sua presença mundana, e a
realçar o problema da finitude e da morte. Em síntese, o princípio de razão contingente
descreve um universo unitário em constante transformação, submisso ao jogo
acontecimental de suas energias. Sob os passos de Nietzsche, leitor de Heráclito, como
sabemos, faz do lance de dados um dos começos da vida, o CsO abre os horizontes ao
acontecimento e ao virtual, e se erige como fundamento e plano de consistência que age
não como princípio, mormente, como catalisador da existência, em contínua
individuação.
19
com que esse corpo não fique senão no interior, na intensidade “fluida, amorfa,
indiferenciada”.42
De modo mais explícito, a percepção que tem o grego do divino não funciona
em uma relação dicotômica – é isso ou é aquilo. Ainda menos sob a ideia de Deus
separado de um universo que, a cada momento, depende inteiramente dele, já que ele o
criou, e criou a partir do nada:
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todo–poderosos; não criaram o mundo; nasceram dele e por ele; surgidos em gerações
sucessivas, na medida em que o universo, a partir de potências primordiais como Caos,
Vazio, Gaia e Terra, ia-se diferenciando e se organizando, eles residem em seu seio”.46
O CsO é as dobras da dobra. O conceito ‘dobra’ revela, uma vez mais, a intuição
profunda da filosofia deleuziana. Declinar as virtualidades, descrever os agenciamentos,
assinalar as linhas de fenda e traçar a diagonal que é potência de invenção, experiência
do futuro como tempo do pensamento, eis a força intensiva da dobra, que curte as
vizinhanças e contágios como as abelhas curtem o mel... e abrem para novas
mestiçagens e encontros... linhagens, intercâmbios...
“A experimentação, segundo Deleuze e Guattari, nada tem a ver com esses jogos
de existência em que a parte do acaso é bastante exígua. Tateante, discreta, em parte
inconsciente, duplicada pelas lutas coletivas por direitos inéditos que permitam sua
21
efetuação, ela se confunde com a própria existência, quando esta lida com um
remanejamento profundo de suas condições de percepção, e com os imperativos afetivos
que dele resultam”.49
Cada um tem seu CsO, um ou vários. Estaríamos, em tal caso, condenados a ter
um CsO? O CsO é um destino? Uma sina? Uma essência? Em todo caso, sem CsO não
existe desejo. E como fazer para si um CsO? A resposta de Deleuze e Guattari não
acalenta nem acalma... Nunca se trata de avançar uma resposta, mas de criar um
problema. Criar problemas, em vez de impor caminhos ou direção lineares.
O Corpo sem Órgãos seria um ovo fecundado, uma espécie de grito primário,
uma imagem/calmante do retorno ao útero?
Para que serve, então, o conceito? Qual é seu alvo? Sem conceito não existe
filosofia. A filosofia é a arte de inventar conceitos. A tarefa primordial do sistema
aberto de pensamento não é, em absoluto, a essência, mas o sentido. Trata-se sempre de
extrair, retirar, libertar, em certas circunstância, o sentido. À essência, interpõe-se o
sentido. Como construir uma Estética do Acontecimento, uma estética nômade com a
imobilidade, ou a imutabilidade da essência? A invenção é o movimento sem o quê não
22
existe arte, menos ainda produção, mas reprodução, cópia. O sentido é a força
primordial do pensamento livre: andante, transeunte, dançarino. Não à toa, Deleuze
considera a filosofia como uma caixa de ferramentas. Nada mais variado, polivalente,
múltiplo, heterogêneo que uma caixa de ferramentas com a qual o sentido se assemelha.
Conferir um sentido final à filosofia seria transformá-la em uma essência. Ora, a
essência, no sentido canônico, se basta a si mesma, é imposição e não engenhamento.
Ora, pensar não é “natural”, o pensamento não anda solto por aí... Todo pensamento,
como a arte, exige violência. Deleuze, leitor de Proust, é de grande valia neste quesito.
O pensamento só pensa quando é forçado a pensar. E o que nos força a pensar? A
violência. Nunca se trata da violência dos desesperados, a violência para nada, mas de
um ato dinâmico capaz de levar à transvalorização de todos os valores massas inertes
ou repetidoras de um mesmo sem diferença:
“Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada
significa. Mais importante do que o pensamento é o ‘dá que pensar’. Mas o poeta
aprende que o primordial está fora do pensamento, naquilo que o força a pensar. O
leitmotiv do Tempo redescoberto é a palavra forçar: impressões que nos forçam a olhar,
encontros que nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar”.51
23
“A criação, como gênese do ato de pensar, sempre surgirá dos signos. A obra de
arte não só nasce dos signos como os faz nascer; o criador é como o ciumento, divino
intérprete que vigia os signos pelos quais se trai”.52
“Que filósofo não desejaria construir uma imagem do pensamento que não
dependesse mais de uma boa vontade do pensador e de uma decisão premeditada?
Sempre que sonha com um pensamento concreto e perigoso, sabe-se muito bem que ele
não depende de uma decisão nem de um método explicativo, mas de uma violência
encontrada, refratada, que nos conduz, independentemente de nossa vontade, até as
Essências. Pois as essências vivem em zonas obscuras, nunca nas regiões temperadas do
claro e do distinto. Elas estão enroladas naquilo que força a pensar; não respondem ao
nosso esforço, esforço voluntário; só se deixam pensar quando somos coagidos a fazê-
lo”.53
“De todo modo você tem um (ou vários), não porque ele [O CsO] pré-exista ou
seja dado inteiramente feito – se bem que sob certos aspectos ele pré-exista – e ele
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espera você, é um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em
que você a empreende; não ainda efetuada se você não a começou. Não é tranquilizador,
porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte. Ele é
não-desejo, mas também desejo (...) Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode
chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite. Diz-se: que é isto – o CsO – mas já
se está sobre ele – arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo
como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe”.55
É, pois, sobre o CsO “que dormimos, velamos, que lutamos e somos vencidos,
que procuramos nosso lugar; que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas
quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos. No dia 28 de
novembro de 1947, Artaud declara guerra aos órgãos: Para acabar com o juízo de
Deus, ‘porque atem-me se quiserem mas nada há de mais inútil do que um órgão’(...)
Corpus e Socius, política e experimentação. Não deixarão você experimentar em seu
canto” (...) Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de
morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide”.56
Elaborar, pois, uma carta dos conceitos e noções estéticas, pensar a Estética
como Acontecimento, estética acoplada à potência do CsO, significa instaurar laços
errantes entre o conceito de linha nômade e outros conceitos e noções aproximativas,
traçar linhas que levam de um conceito a outro, em um movimento ondulante que
provoca entre os conceitos relações que constituem um agenciamento, uma invenção
25
artística, um acontecimento. Uma estética atenta aos subterrâneos não lineares da
dodecafonia, e sua divisão de oitava em doze meios-tons sem quaisquer relações tonais,
mas que formam a conclusão da sinfonia, em um caos ordenado, em uma obra-prima.
São pluralidades de forças, o avesso, pois, de um pensamento único ou dicotômico. No
fundo, a Estética como Acontecimento é a estética do desejo, ou, como o CsO, é o
campo da imanência do desejo, o plano de consistência própria ao desejo, é somente aí
que o CsO se revela pelo que ele, “conexões de desejos, conjunção de fluxos,
continuum de intensidades”, daí a prudência, uma vez mais necessária, para não se
deixar pulverizar pelo falso-perverso, pelo traíra do desejo:
26
O pensamento nos obriga a descortinar, abrir clareira para melhor enxergar afora
as concreções do cotidiano e solidificações do hábito: tudo é vibração, movimento,
fluxo. Escrever não é, pois, escolher nem tampouco privilegiar o que é bom para si. Não
queremos uma coisa porque ela é boa, é porque nós a queremos que ela é boa. Não é
outra a concepção de paixão proposta por Espinosa, no Terceiro livro da Ética, “As
afecções e os sentimentos”: Se jamais alguém sente como necessário se enforcar,
porque é útil para sua alegria, para sua felicidade, escreve o filósofo, seria insensato
que ele não realizasse seu ato. O mal ou o bem desapareceram como critérios de
escolha. Ao bem e mal interpõe-se o bom ou o mau. Cabe relembrar que a moral é
sempre a expressão de uma norma ou imposição coletiva: ela indica a todos os
indivíduos de um mesmo povo ou de uma mesma cidade o que devem fazer ou não,
segundo o bem ou o mal. Ora, nossa realização passa pela satisfação das necessidades
de todos, e cada um sabe o que é bom para si, isto é, aquilo que nos deixa tristes ou
felizes. Compreender as paixões, sob o ângulo da ética e não da moral, é atribuir a cada
um a liberdade de estabelecer as regras que são aquelas de sua felicidade, e não acatar
imperativos coletivos e impessoais, incapazes de levar em conta as necessidades de
nossa natureza.
Com efeito, o pensamento não é dado uma vez por todas, salvo na teologia,
ainda que o tempo se ocupe de transformá-la – a passos de tartarugas, é verdade – desde
que a contaminação mínima do novo em nada ameace o poder de controle e censura
inerentes ao dogma. O Brasil conheceu essa fenda mínima, com a teologia da libertação,
logo embargada e naufragada, sem retorno, pelo golpe militar, de 1964, ancorado, em
parte, por forças conservadoras do Vaticano. Nomadizar as certezas, de acordo com as
transformações do mundo e exigência de novas crenças e saberes, não parece, em todo
caso, ainda ser o projeto das religiões, em sua maioria. São duas lógicas díspares; de um
lado, a teologia, que denega a invenção e adota o conhecimento comandado pela fé,
pelo dogma; por outro, a a-lógica como invenção que nomadiza em permanência a
filosofia, o pensamento, a ciência, ao mesmo tempo em que recusa montar um arsenal
ou técnica de prova, tribunal ou juízo. A a-lógica com a qual se esboça a Estética como
Acontecimento, estética nômade por excelência, é antes uma antidemonstração. Não há
nada a provar. Nada a julgar. A invenção de um conceito é um ato filosófico cuja
travessia é formada por areia movediça; logo, prudência para não afugentar os devires.
27
A Estética como Acontecimento é interação, segundo a física, isto é, qualquer
processo em que o estado de uma partícula sofre alteração por efeito da ação de outra
partícula ou de um campo. Essa alteração pode ser observada no pensamento, na
filosofia, à emergência de um novo conceito, ou de um pensamento sem imagem
dogmática. Um pensamento em devenir, autônomo, resultado de uma engenharia do
sensível e da intuição, o contrário, pois, da dominação, da cognição, ou, ainda, da
antecipação de um pensamento daquilo que deve e pode ser pensado. É neste campo
minado de partículas mínimas de diferenças que diferem, confrontam-se às outras
diferenças hierárquicas, provocando a alteração por efeito de outra partícula mínima de
uma diferença que difere. É o devir faísca do pensamento que altera o efeito de ação de
outra partícula, ou território historicamente transformado em subterrâneo, em que
dormem minas, e em que esperam como cães de guarda a ordem de ataque. Não há
latido. A explosão é imediata.
“Cada tipo de sentido conta com seu próprio corpo de entidades discriminadas,
conhecidas enquanto termos relacionados a entidades não discriminadas por tal sentido.
Enxergamos algo que não tocamos e tocamos algo que não enxergamos, e possuímos
um sentido geral das relações espaciais entre a entidade revelada na visão e a entidade
revelada no tato”.59
28
em todo caso, alheios à significação ou à representação, artífice maior da dualidade, que
faz da diferença um destino, uma determinação, uma sina.
“A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos
sons ou nas pedras. A arte não tem opinião”.60
Que opor a (uma) tal determinação, senão uma união imediata obtida desde que
exigida, em que coincidiria com tudo, em uma espécie de felicidade extática sem
começo nem fim, só meio, intermezzo, entredois? Precisamente, este intervalo entre
duas margens, em que a água de um rio escorre não tanto para permitir a passagem de
uma a outra, mas para levar aquele que empreende descer seu curso à direção
desconhecida. Não se trata de afirmar que Apolo é Dioniso e Dioniso é Apolo. Primeiro,
não se trata do ser, mas do devenir, logo, de multiplicidades, singularidades,
acontecimento; de um destino impossível a antecipar, que atesta uma parte não realizada
e não realizável, a que chamaríamos devir: “devir imperceptível”. Como não pensar na
Filosofia Naturalista, no enigma de um em dois, e de dois em um?
29
vacinada, anômala, arredia, que causa espanto, desmaio e desassossego, que constata
nos atributos extraterrestres ou divinos a imagem em ruínas de um túmulo vazio.
Caso a dança possa ser considerada como uma maneira de desorganizar o corpo
funcional, e de reorganizá-lo de outro modo – desterritorialização/territorialização –
como órgão de seu próprio sentido e não de funções, como comer, respirar, não se pode,
neste caso, compará-lo a uma outra reorganização, a do erotismo, por exemplo, em que
as partes do corpo desempenham outros papéis e tarefas totalmente diferentes daqueles
de suas funções, como sugere Jean-Luc Nancy?
Eis, pois, a parte primordial da suspensão, em diapasão com esta tarefa coletiva,
com todos os artefatos e sensações, vibrações e vitalidade do corpo sem órgãos, numa
dinâmica marcada pelo encontro. Sempre encontros. Matéria-prima do corpo, tal
asserção nos leva a Espinosa: É só num encontro que um corpo se define.
30
A nudez, no presente contexto, situa-se, pois, muito mais na ideia de leveza, de
despojamento para o voo dançante, para a perda dos órgãos do que para a nudez-strip,
que ganha ao excitar o olho e os sentidos, à contemplação do interdito cristão: o nu é
feio! O corpo sem órgãos não conhece a nudez, pois ele é nudez, antes de Adão e Eva!
É a inocência do devir, ainda não tocado pela consciência, pela noção freudiana de
cultura... E de novo Artaud: O tempo em que o homem era uma árvore! É um corpo que
dança. É um corpo que canta. O corpo, que seria completamente imerso nele. O corpo
sem órgãos, nada tem contra corpo, mas contra o peso, o estilo pesado e atravancado
dos órgãos e seus solavancos desmotivadores e chupadores de energia e leveza dos que
aspiram a voar, a dançar.
Como voar com uma soma tão pesada de órgãos? Órgãos que são tanto reais,
materiais/imateriais, quanto virtuais/fatuais: o virtual sendo mais real do que o real, o
virtual como o possível do real. A virtualidade como a realidade poética, sempre por vir,
sempre acontecendo, em um tempo sem calendário, o tempo do virtual como
acontecimento poético, como uma das formas de atualização do virtual (o sensível), que
se eleva contra sua própria impossibilidade. Que impossibilidade? Experimentar o fora
da linguagem de onde emerge o pensável. O poeta encontra aqui as interrogações
filosóficas naquilo que ele problematiza: o devir poético da linguagem em sua relação
com o pensável: sempre por vir, sempre em devir...
Que quer o dançarino? Diante da constante ingerência dos órgãos, ele batalha
por um corpo sem órgãos, ele se diz que não está aqui para andar, pegar, respirar.
Todas estas funções são instrumentalizadas por outra coisa que não é uma função, mas
antes o corpo-em-devir, o corpo como máquina para de engendrar signos. Corpo sem
órgãos, corpo dançarino, sem tensão, é “massa, sequer nascida”, segundo a expressão de
Jean-Luc Nancy.62
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31
Dobra III
Imagem após imagem, para uma dança tão calma, ela aparenta o tempo todo em
desequilíbrio. O desequilíbrio não suscita tensão. É um desequilíbrio em si. Não se toma
mais seu equilíbrio, vive-se o desequilíbrio apoiado pela velocidade. A velocidade não
pertence ao mesmo mundo que aquele do apoio, de peso e contrapesos. Martha se
desloca no seio do fluxo de volumes, e inventa anglos de fluxo. Aqui a suspensão, a
retomada, o corte entre dois movimentos não podem ser o objeto de uma fixidez por
meio da qual uma forma completa, inteira, parada, apareceria. A aparição é um percurso
em que a velocidade e o desequilibro não oferecem mais ao movimento, ao
deslocamento rápido um obstáculo; a velocidade tira do desequilíbrio novos solos.
Aqueles que fazem a experiência da luz-substância, aparentemente anódina,
experimentam igualmente o desequilíbrio, em um trabalho que não se destina a verificar
um fenômeno físico, mas que o corpo, como um cientista avisado, observa e
comprova... Existem rochedos estranhos no filme, que ganham uma expansão discreta,
penetrados de uma nova substância – uma luz que passa. Uma luz transeunte que, ao
mesmo tempo, aumenta sua densidade e sua porosidade e conduz a uma nova maneira
de andar em um solo que se torna desconhecido, emoldurado por uma espécie de
epifania ou estética bailarina da luz.
Jean-Luc Godard diz que nossas palavras ressoam na matéria, do mesmo modo
que nossos gestos e as coisas sobre as coisas. Michelangelo, por sua vez, afirmava ser o
intercessor de sua invenção; ele lutava arduamente para libertar a pedra de seu sono:
“Eu tirava apenas as sobras, pois a estátua já estava lá”. Sua criação não se limitava a
esculpir o mármore, mas a “libertar os seres aprisionados no interior da rocha”.
Lucrécio evocava a emissão da imagem, de membranas, pelos objetos da existência;
Bergson, bem mais tarde, em Matéria e memória, acentua a projeção de cada um sobre
cada um: Cada imagem é um caminho sobre o qual passam em todos os sentidos as
modificações que se transformam na imensidade do universo.
Martha não diz. Martha dança em desequilíbrio... Com ela a dança se desloca
numa linha de terra que é um devir-animal da linha: o corpo muitas vezes voltado para o
fogo, imperceptível como o olhar, expõe seu corpo na noite da natureza. A arte de
Martha consiste em extrair da terra novos solos. Em Heretic and Lamentation, ela se
afasta rapidamente do conflito das luzes, segundo o impressionismo; às vezes,
reencontra a martelagem dos passos da terra. Martha desenvolve sua descoberta da luz
como massa, volumes que têm as próprias figuras. Para dobrar e desdobrar o corpo às
respirações desses volumes, a bailarina agrega opostos, associa suavidade das tensões
internas e gestos secos, sopros e coluna vertebral. As tensões cegas encontram a
surpresa dos ângulos, os ângulos cegos deparam com a surpresa das curvas, em um
32
malabarismo que abre para o desequilíbrio harmonioso de um corpo inserido às
nervuras efêmeras da alma dançarina.63
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Agir é uma palavra que canta, dança, cria deslocamentos inéditos, adormecidos
nos interstícios preguiçosos do organismo que reluta ao vitalismo do CsO. Pensar,
como dançar, é autorrealização, autocriação que encontra sua concretude na errância, na
autonomia inventiva de uma criatura que se passa do Criador, e que inventa o Criador
para se salvar do Criador, como diz Almafuerte, uma personagem de Borges, em
Ficções.
Por que marcar, então, a diferença ao escrever filosofia e dança? Por que não
escrever filosofia/dança? Ou ainda a filosofia, a dança? Porque ambas são
multiplicidades ambulantes, singularidades férteis que levam coreógrafos a se inspirar
na filosofia, e filósofos a buscar na dança, no teatro, na literatura, na poesia, na física,
nas matemáticas ou nas lendas, ferramentas para elaborar suas práticas e pensamentos –
Platão, Descartes, Hegel, Nietzsche, Nancy, Deleuze, Foucault etc. Neste sentido,
Descartes é exemplar:
33
“As ciências estão agora mascaradas, uma vez, porém, retiradas as máscaras,
elas aparecem em toda a sua beleza”. Ele associa, pois, o trabalho do cientista à visão de
beleza do artista, mediante sua tarefa comum de desvelar a verdade.64
Que verdade? A verdade da arte, sempre em ação; uma verdade que inventa
olhos, uma verdade dançante que pensa com os pés, como o jogador de futebol, e não
entra no império da consciência, inimiga da intuição, da criação, do corpo sem órgãos,
donde sua capacidade de olhar com olhos não domesticados a beleza simples das coisas
da vida. Trata-se do devir-bailarino da própria verdade, um devir-pintor que é capaz de
se extasiar diante do silêncio de um corpo imaterial que ocupa a cena em uma quietude
cujo signo maior é a beleza velada em um devir-imperceptível da própria beleza,
inserida em profundo silêncio e calma, que são ainda passos de dança e traços ou
pintura, em que sopros e invenções fazem enxergar a beleza onde ela parece
imprevisível, sombreada ao olhar colonizado por uma estética da dominação dos signos.
“A beleza não está afora ou acima das coisas vulgares, mas em seu próprio seio,
basta um olhar para extraí-la e a revelar a todos”.65
Por sua vez, Paul Klee tenta descrever o que sente e experimenta ao se
confrontar à natureza, aparentemente, anódina:
“Em uma floresta, senti diversas vezes que não era eu que olhava a floresta. Eu
senti em alguns dias que eram as árvores que me olhavam, que me falavam (...) Eu
estava ali, escutando (...) Acredito que o pintor deve ser trespassado pelo universo e não
querer transpassá-lo (...) Eu espero ser interiormente submergido, amortalhado. Eu pinto
talvez para emergir”.66
O olhar das coisas, que persegue Paul Klee, não é sem paralelo com James
Joyce, ilustrado pelo famoso parágrafo de Ulisses, em que o autor apresenta o que
chama a “Inelutável modalidade do visível”. Para ambos, a realidade é um sistema de
cores transformadas em signos. Signos que vivificam e abrem à dança para uma
estética-outra do belo, da beleza. Embora a beleza bailarina exceda a beleza única, ela
não é transcendência, menos ainda essência. A beleza bailarina é antes imanência,
nunca representação. Por que não transcendência? Fora da transcendência existiria o
quê?
34
“A potência do transcendental solicita ao transcendental uma potência segunda,
própria a bloquear aquilo cuja potência é bloquear. Em si mesmo, o transcendente
impede qualquer novidade, produz a infinita repetição do mesmo, debita pobrezas do
Um-Todo”.67
É importante notar que é não só na dança, ou no campo das artes em geral, que a
filosofia deleuziana toma corpo; seus conceitos mesclam-se aos movimentos, às cores,
aos sentidos e aos saberes/sabores. Não se trata, em absoluto, para artistas, cineastas,
coreógrafos, de fazer dos conceitos os derivados de sensações, nem, ao contrário, de
traduzir as obras em termo de bula, razão ou verdade verdadeira. Não. O pensamento
de Deleuze ama respirar e se deixar contaminar; detesta a prisão, até mesmo quando
dourada ou maquilada pelos efeitos de moda, ou pela tirania de um modelo ideal, linear,
de uma filosofia régia.
Por que esta desatualização do real e do atual? A vida não é totalizada nem
totalizadora, ainda menos totalizável. Alguma coisa escapa. Algo sempre foge ao real,
ao inacessível, ao indeterminado. Algo evade-se, cria a fenda; foge para o
indeterminado, para o que está por vir; virtualidades, intensidades que formam uma
“reserva” isto é, uma parte não realizada, e que demanda virtualização, sempre em
excesso com a realidade atual, sempre impossível a antecipar. É o destino do pensador,
do artista; é o sentido peculiar da Estética como Acontecimento: existe em toda
produção, em toda invenção um tanto que fica, como uma sobra, como uma abertura a
outros intercessores... Algo ficou... e pode ser retomado.
35
intolerável: “O acontecimento é o próprio ‘potencial revolucionário’, que se esgota
quando rebatido sobre as imagens já feitas”.70
O devir-criança da dança
Pensar, dançar são produções marcadas pelo risco, pelo perigo, pela audácia cujo
traço maior é a força imperceptível do equilibrista, do dançarino, do filósofo, sempre em
devenir; fluxos inventivos e imaginação-criança, o devir-criança. O devir-criança da
dança, palcos abertos às invenções sem as quais não há movimento nem vida pensante,
dançante, é força inorgânica alheia à representação simplória ou piedosa que se faz da
criança. Cabe sublinhar que o devir não é uma substância, uma essência, uma
representação/imitação física ou psicológica. Um dos aspectos peculiares do devir
consiste na primazia da indeterminação sobre um propalado começo ou determinação.
Que almeja Deleuze? Desfazer a forma acabada, concluída, estável e organizada do
homem em proveito dos devires compreendidos como potências da indeterminação.
Indeterminação não é outra palavra para dizer desejo? Sim. Eis por que não se trata de
um simples exercício de oposição ou substituição. É justamente porque criança, mulher,
animal ou homem não representam “estados feitos ou concluídos”, que a ideia de
substituição é o oposto do conceito de devir:
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Devir-criança não é, pois, se tornar criança. Devir-mulher não é imitar a mulher,
mesmo porque tanto a criança quanto a mulher são produções contínuas,
indeterminadas, abertas aos devires, ao imperceptível do devir. O devir-criança se
acopla a um conceito, é um devir, eis todo seu sentido. O devir é acontecimento, ora
como imaginar o devir-criança fora do que Deleuze chama o on – o se, terceira pessoa
do singular - das singularidades pessoais e pré-individuais, o on do acontecimento
puro: morre-se, chove? Pois
O devir não se identifica tampouco com uma imagem. Nada imita. Devir-criança
não é fazer como uma criança, o que seria grotesco e desolador. Não é calco nem
decalcomania. Deleuze, preocupado com este equívoco, escreve, nas primeiras páginas
de Diálogos, que o devir não é tampouco se conformar com um modelo com o qual nos
identificamos. Entrar em regressão ao escrever sobre o devir-criança, ignorando a força
do conceito e suas mil possibilidades, tornando-o objeto de substituição, uma espécie de
prêt-à-parler esvaziado de sentidos. Fazer do conceito devir um corpo biológico e, em
alguns casos, não raros, um objeto delirante de desejo, é um exercício que se repete em
experiências e escritos apressados. Tornar-se o proprietário, o defensor, o protetor, o
viciado ou dependente de sua ficção – biológica – sob a denominação conceitual devir-
criança, devir-mulher, devir-revolucionário reduzida a uma essência, denota a
dificuldade à compreensão do conceito, embora não justifique a leviandade e ausência
de rigor ao menear conceitos sofisticados que perpassam a história da filosofia, de
Heráclito aos nossos dias. Todo devir supõe um processo de
desterritorialização/reterritorialização ou indeterminação. É uma intensidade, algo por
vir, do campo da invenção, da reinvenção; são estados de experimentação,
transformações e nunca identificação.
* Cf. Philippe Mengue. Comprendre Deleuze. Paris: Max Milo Éditions, 2012. Trata-se de um pequeno
livro introdutório ao pensamento de Gilles Deleuze, bastante didático e instigante. Infelizmente, tivemos
acesso ao texto quando da finalização do deste estudo. Agradecemos, em todo caso, a gentileza de
Philippe, sobremodo, nosso longo diálogo.
37
“Pode-se continuar a submeter as regras e os métodos da interpretação e do
comentário universitário (embora tão particularmente rigoroso e sensível às rupturas, às
crises, às variações) a uma filosofia que não cessa de preconizar a experimentação e de
se abrir em direção de outros campos disciplinares e de outras práticas?”.72
Platô I:
Naï ou cristal qui songe – Naí ou cristal que sonha é uma inovadora coreografia
apresentada, em 1983, em Paris, no Théâtre de la Ville. O solo causou imenso sucesso e
trouxe um ar fresco à dança parisiense. A dança imóvel e a nudez apolínea atestam o
estilo inovador de Diasnas. O movimento não se define mais em função de uma origem,
de uma zona de constância, de uma identidade; todavia, funde-se no fluxo que o
perpassa. Inspirado por Deleuze, a carne do bailarino se coloca no entredois da
experiência e, nele, busca se magnificar. A rigidez emerge, então, não mais como
suspensão, quietismo niilista ou mimetismo psicótico, deveras, como movimento
nômade. É parado que o nômade corre mais, sob a força de uma velocidade dançarina,
até mesmo quando se desloca lentamente.
38
a cópia ou uso caricatural dos conceitos. Com Deleuze, o efeito de moda nada pode, o
novo supõe o pensamento contra a opinião, como força propulsora da invenção
constante do ato dançante. Não se trata, apenas, de admirar o balé, de gostar de dançar.
Dançar é sempre da ordem do sacrifício, mas nunca do martírio. O sacrifício sem
martírio não é o quinhão do gênio?
Platô II
Sua primeira peça À Bras le corps, criada em 1993, põe dois dançarinos no meio
da cena, ladeados pelo público com o qual agem. Sempre agir. Interagir. Não reagir.
Mais que uma divisa, é uma técnica baseada na ação, e não na reação; neste sentido, sua
estética se aproxima do Super-Homem de Nietzsche. Em 1994, Les disparates é um
39
solo “bicéfalo” para um dançarino e uma escultura de Toni Grand. No mesmo ano,
Charmatz assina algumas produções nas quais interroga a nudez, a liberdade, o
indivíduo, a dança, sua relação com a política e o poder. Participa, como intérprete, com
Régine Chopinot, Odile Doboc, Olivia Grandville, Xavier Marchand e Meg Stuart.
Eis-nos, pois, em companhia de Gilles Deleuze: “Um órgão pode ser associado a
diversos fluxos segundo conexões diferentes; ele pode hesitar entre múltiplos regimes,
inclusive tomar para si o regime de outro órgão”.75
40
verdadeira criação do mundo por si, autoengendramento capaz de dar o “ser mesmo do
sensível”, aquilo que Deleuze chama “contemplação”. A estética apodítica é, de fato, a
“sentença de morte” da concepção milenária da Beleza – o belo é o bem, é o bom,
segundo Platão – cujo limiar o poeta Rimbaud ousou denunciar à tenaz ilusão, em sua
obra-prima Uma temporada no inferno:
Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim onde se abriam todos os
corações, onde corriam todos os vinhos.
O fogo do amor. O corpo que dança é aqui carne desejante que queima a
memória para nela instalar um esquecimento ativo, móvel; um esquecimento amoroso,
cigano, nutrido por linhas de fuga que são como o olhar que vê além da visão. O tato
não seria o olho do dançarino e do filósofo? A dançarina não é definida por Mallarmé
como “o ponto filosófico”?
41
ou Otomo Yoshihidé. Nomeado diretor do Centro coreográfico de Rennes, Bretanha,
em 2008, ele propõe transformar esse lugar em um Museu da dança ou Dancing
Museum.77
Pensar com Deleuze é correr risco... Nós o encontramos sempre onde menos se
espera que surfe. Sempre de passagem, sempre às margens, ou no fundo de coral raso,
ou em Pipeline, pico de ondas tubulares, translúcidos, inesperados solavancos, vagas
impiedosas que curtem tanto as tempestades e intempéries quanto a doce crueldade da
calma, das mais cultuadas ondas do planeta...
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Dobra IV
Uma liberdade sem muros. O tempo em que homens e mulheres eram vegetais
sexuados, canibais amorosos, sem raízes… apenas talos, veias salientes, sem crédito
nem débito! Felizes de não obedecerem. Eram os sem-nomes, porque tinham todos os
nomes da terra, curados do arquivo, da raiz que tanto cala quanto amaldiçoa, tanto
condena quanto perdoa, em uma relação constante de poder, macros ou micros – o
poder que salva é o mesmo que mata. A inclusão que inclui, não é a mesma que exclui?
Seu corolário fundamental não é o resgate, às vezes, ao preço da vida?
O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função, mas vontade
de vontade, e árvore de vontade que anda, voltará.
Existiu, e voltará (Antonin Artaud).78
Sentir-se animal, pedra, flor, água, mineral, sol… não é o apanágio dos
primitivos, mas o destino de poetas, filósofos, cientistas ou loucos que geram sentidos e
abrem as portas da percepção, ao mesmo tempo em que provocam o rapto da
representação calcinada na nomeação como imposição. Imaginação e invenção de novos
possíveis não constituem o desejo peculiar dos dadaístas? Para alguns escritores e
pensadores não foi uma experiência perpassada pela escrita, como experimento extremo
que fez emergir o inumano do humano? Humano, ser humano, categorias recentes, mas
42
que sofrem o seu cansaço, e deliram como se comessem o ventre, e os ventos de seu
ventre por dentro, como diz Artaud.
Que espera Artaud com seu CsO e seu teatro da crueldade? Fazer dançar as
pálpebras, pôr em movimento o sensível das flores, frutos, minerais, árvores e mares
numa orgia gestual em que os sentidos, os poros e a sensualidade inseridos nas pétalas,
águas, rizomas e luminosidades geram a dança do esperma louco. O CsO, do tempo em
que o homem era puro vegetal, não condenado aos grilhões do organismo, como cordão
umbilical que enforca maluco, com seus nós de pescadores, nós do coração, e seu juízo
assassino.
Artaud, aquele que pariu o CsO como se fabricasse sua própria crucificação. Ei-
lo no estrado da Sorbonne:
Trapo. Olhos trêmulos, semi-abertos, bicho ferido que recusa a fuga; Artaud,
quando a sala se esvaziou, e só restava um pequeno grupo de amigos, pede para ir ao
bar tomar um café.
43
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Toda reinvenção é uma invenção, todo intérprete é um iniciador que abre fendas
para o devir, para os sentidos, isto é, para o acontecimento. A paciência da
representação, da repetição do mesmo, emerge como a peste; a impaciência do
acontecimento, que é também, a sua maneira, uma paciência, eclode como a
paciência/impaciência dos signos. Uma paciência, pois, mordida pelas intensidades
inseridas no acontecimento que não cria nada de imortal, de fixo; é que a eternidade do
acontecimento se materializa intensivamente no instante de imortalidade. O instante
como imortalidade faz emergir uma est-ética, ou ética da estética, sem comum medida
com a duração convencional, todavia com o ato inventivo. Só os organismos morrem,
afirma Deleuze. É a arte que eterniza o que não morre: como matar Michelangelo?
Como matar Nietzsche? Como matar Deleuze ou Foucault? Eis a vibração de uma
estética ateia: a Estética como Acontecimento, que concede ao signo a tarefa de nos
forçar a pensar:
Libertar alguma coisa, instigar a liberdade das artes, das ciências, são
intensidades incríveis em ressonância a uma nova comunidade e aos seus processos de
subjetivações. Um coletivo de afectos e perceptos – afectos que são devires não
humanos do homem enquanto os perceptos constituem “as paisagens não humanas da
natureza”, uma coragem de pensar, embora as surpresas e acasos do pensamento possam
deixar mais de um perplexo, confuso, em meio aos hábitos duradouros e à constelação
44
de fluxos que cantam o novo e instigam ao experimento. Eis a potência do signo:
introduzir uma bolha, um sopro, um piscar de olho de imprevisível nas zonas obscuras
da invenção.
O escritor sente o potencial das palavras sobre seu corpo e desejos desterrados.
Habitado por um medo desmesurado, ele espera o instante que o leve a abandonar os
órgãos e a tentar enveredar pelo devir-vegetal, pela inocência do devir, para um corpo
não mais sufocado pelo organismo. Abdelkebir Khatibi foi um dos poucos a sentir de
modo peculiar a presença da inocência do devir, como energia da escrita, em estado de
alforria dos órgãos, do peso ou da gramática, de um escritor às voltas com a escrita da
delivrança, escrita voadora, apesar do medo-pânico de alguns, quando a leveza chega
sem bater à porta: “Como incesto espelhando este medo diante da escrita que pode ser
devorado por ela”.81
Capeta ou sexo devorador, a escrita, como o corpo, é uma arma de dois gumes.
O voyeur desorientado se põe a zarolhar sob o peso das palavras que nascem e
desabrocham, apesar dele ou contra ele ou, excepcionalmente, com ele. Por outro lado,
desde que o escritor se põe a escorregar, como o surfista em sua prancha é tocado pela
potência das palavras sem órgãos em sua imaginação, e que beiram o imaterial, o
incorporal, é a festa! O delírio gozoso! Líquido úmido, sem nostalgia da placenta, pois o
que está a experimentar dispensa o simbólico ou o imaginário para se extasiar no real
que toca, sente, e respira nas malhas finas das águas e iodo e véus de noivas sem noivos,
pois em núpcias com a escuma do mar. Oceano que é, segundo a Ilíada, o primeiro
chamado de origem dos deuses, acrescentando à origem o elemento líquido, as origens
avassaladoras em sua múltipla genealogia, ora apagada, ou refeita pelas águas e
correntes impiedosas. O arquivo encontra aqui seu elemento maior: a ficção, a narrativa
poética, todos os nomes dos deuses e monstros marítimos.
Com Khatibi, é sempre o acontecimento que permeia sua escrita, seus sonhos,
afectos e sua saúde frágil da qual extrai sempre os sintomas que, em sua escrita e no
cotidiano, se metamorfoseiam em uma grande saúde. A tal ponto que, mergulhado nos
oásis, ao sul do Marrocos, ele se deixa ninar pelos ventos e assobios à imensidão do
deserto, e esquece, no ato de amor à vida, a própria enfermidade que o atormenta, e
45
escreve em seu corpo um romance invisível ao olhar colonizado ou colonizador. Como
dizer o indizível do amor acalentado pelo amor-de-amizade? O amor como
acontecimento elevado a sua potência máxima? É delicado tentar dizer o acontecimento,
sobremodo em se tratando de uma est-ética, de uma ética da amizade que foge à
materialização do gesto, espraiando-se numa saudade virtual, em um sentido imaterial,
incorporal, fiapos amorosos de enfermos de amores incorporais, desesperadamente
tangíveis:
“Ao contrário, extrair dos sintomas a parte do acontecimento puro – como diz
Blanchot, elevar o visível ao invisível –, levar ações e paixões cotidianas como comer,
cagar, amar, falar, morrer até o seu atributo noemático, acontecimento puro
correspondente, passar da superfície física onde atuam os sintomas e se decidem as
efetuações para a superfície metafísica em que se desenha, desempenha o acontecimento
puro, passar da causa do sintomas à quase-causa da obra –, é o objeto do romance como
obra de arte e o que o distingue do romance familiar”.84
Graças ao impoder da escrita do corpo, que busca uma volúpia virtual, o escritor
tem a impressão de renascer de si mesmo, de se engendrar: nascimento nômade – o
artista, o inventor, o escritor é o artífice de uma genealogia fabulosa e transcultural. A
ética da estética é assim o território, sempre movediço, do engendramento extático, de
uma deriva da escrita que se desalgema no e pelo repouso pleno da língua, e desenvolve
o encantamento verbal de um nascimento dionisíaco:
“Eu brincava de desaparecer nas palavras (…), mil vidas se cruzavam, era a
muvuca generalizada, eu saía à cabeça feliz e louca”.86
O pacto com as palavras, com a escrita, não é uma barricada que preserva a
linguagem do corpo? “O corpo reabilitava-se livremente dos músculos a rachar entre as
palavras”88 numa profundidade sem fundo, sob a tirania de uma ressonância
ensurdecedora de signos que preenchem o verbo, ao mesmo tempo em que exige uma
organização da qual decorrem a estratificação da linguagem e sua compreensão
ordenada. Mas, como evitar a debandada dos sentidos ou o choque inerente a tamanha
vibração que deixa em estado de suspensão a estratificação e a compreensão ordenada?
“Face à eclosão dos sentidos, eu evitava compreender (…) Compreender era a bela
morte. Eu me contentava com seu espelhamento o mais perturbador, o mais traidor”.89
Khatibi sempre recusou “a bela morte” concedida aos gregos, àqueles que se
imolavam pela pátria, que partiam à guerra, ao combate, à morte, tornando-se imortais
pela duração infinita da memória dos cidadãos gregos cuja saudade perdura como uma
46
homenagem e reconhecimento ad aeternum. O heroísmo grego, oriundo de uma
“cultura de honra”, Khatibi o substitui ou o elege pelas perfeições das quais são dotados
os deuses “que prolongam na mesma linha aquelas que são manifestadas pela ordem e
beleza do mundo, pela harmonia feliz de uma cidade dominada pela justiça”. (…) E,
sobretudo, pela piedade do homem grego “que não adota a via da renúncia, mas da
estetização”.90
Desde cedo, Khatibi afirma sua relação a outrem como estereoscopia de uma
produção de subjetivações coletivas, sem pátria nem sujeito, sem dívidas nem
cobranças. No universo intelectual árabe, mormente nos países que formam o Magreb, a
África do Norte, ele mantém um autodistanciamento e, explicitamente, uma cisão, uma
diferença entre si e uma não identidade de si mesmo como o outro. À maneira de
Deleuze e Guattari, não como resultado de uma leitura aprofundada das obras desses
autores, todavia, mediado por um encontro virtual de sensações ou intensidades, o estilo
é definido por Khatibi como a “língua estrangeira na língua”, tema atuante praticamente
em toda a sua obra. Em um plano político, ele se situa numa lógica de autoalteridade
cujo processo de subjetivação não reconhece nenhuma “língua mãe, mas uma tomada de
poder por uma língua dominante em uma multiplicidade política”; daí seu papel como
intercessor à construção da estética nômade.
47
É interessante, no presente caso, notar de que modo a lógica identitária é
contestada por meio de práticas sociais que Roland Barthes define como acráticas,
linguagem vaga, difusa, aparentemente natural, conquanto pouco identificável; em
oposição às práticas encráticas, simultaneamente clandestinas, camufladas e triunfantes,
enfeudadas à doxa, reduzidas à repetição mortífera, semelhantes à linguagem da
televisão, dos jornais informativos etc. :
Fazer da vida, contudo, uma obra de arte, não é evidente. Marguerite Duras, no
auge de seu sofrimento, à beira da morte, louvava a vida, e entrava em êxtase carnal,
sentindo saudade não do presente doloroso, nem do passado, com sua memória das
marcas, mas do futuro. Ela vibrava à ideia de ficar boa, curada, para poder escrever:
escrever ou morrer! Escrever para não morrer. Um modo simples de amar.
A cada nova produção, a cada novo livro, ela matava a morte que rondava seu
leito de hospital. Não foi muito diferente com Nietzsche, na fase aguda de sua
enfermidade. Que escrevia ele? Fazia a apologia da doença como uma grande saúde. A
mesma forma de vitalidade desejante se encontra em homens e mulheres de ciência, de
arte, não sendo, pois, um privilégio do filósofo. Dedicados à criação, fissurados pelo
novo, eles estão em movimento, perambulam, alguns até como anacoretas do deserto,
cavernas, estepes e sertões, em uma viagem imóvel, segundo a singularidade de cada
qual, isto é, as antigeneralidades que são impessoais e pré-individuais e que, à maneira
do filósofo pré-socrático, não sai da caverna, pois estima, ao contrário, que não estamos
bastante engajados nela, suficientemente engolidos:
Julio Verne é exemplar: dá a volta do mundo, sem deixar sua caverna: a França!
Muitos não precisam se deslocar, mas cuidar para que as viagens infatigáveis não
parem. Nem pausa, nem repouso. Não por acaso, raros são os criadores que se dedicam
ao universo gestionário. Inventam, produzem conceitos, fórmulas sofisticadas,
engenharias, mundos outros de comunicação, virtualidades ou engenhos
extraordinários; são criadores, alguns de potentes microscópicos, outros de minúsculas
sondas, invenções imperceptíveis ou gigantescas de alta tecnologia. Em todos os
campos das ciências, do pensamento filosófico e das artes, alguns reinventam o
pensamento ou conceitos que transformam e refazem o mundo, e a vida, como se fora
um sonho. O sonho dos físicos, astrônomos, matemáticos, cibernéticos, filósofos,
artistas e de tantos outros poetas viajantes, simples personagens, é uma poesia que se
materializa, é o jogo constante do material/imaterial que faz vibrar, e confere às
sensações a aura do real. O real, como a vida, é um sonho, não era outra coisa que dizia
Calderón!
48
Existe em toda invenção um toque genial de loucura: o inumano do humano;
sem freios nem grilhões, é neste campo de afectos e linhas de fugas que as grandes
inteligências encontram os espaços selvagens apropriados à folia da criação, sob o signo
de uma est-ética, que é acontecimento pleno. Um devir-são da loucura, aberto às
aventuras do desejo e da inteligência rigorosa com o tempo da criação, o tempo das
invenções. Invenção como forma em combate constante às certezas, ao reino do mesmo,
da uniformidade tirana. Na prática, porém, desde que um pensamento se burocratiza ou
se torna gestionário, perde sua potência ativa, criativa, e reproduz reflexos de proteção
infantojuvenis que deságuam em demandas de proteção, compensação e, em
consequência, regressão. É o começo do inferno astral ancorado em desafetos
melancólicos ou em lembranças desidratadas. Outro nome para dizer depressão? A
depressão é uma bruta nostalgia e impossibilidade voluntária ou involuntária de aceder
ao novo. De renascer. É uma espécie de covardia. E, portanto, o mundo é imenso... Não
é, porém, a estrada que vem a nós, nós é que vamos à estrada... A vaidade, a ânsia de
poder, o medo da vida, a fraqueza dos “fortes”, tudo vai água abaixo.
Eis por que, muitas vezes, o que era o impoder do gênio, do pensador, do criador
de conceitos, isto é, do filósofo, torna-se sede material, moral, de poder, embora
puramente simbólico. Uma vez político-profissional, ou diretor de banco, ou de
laboratório ou de centros de pesquisas, o pesquisador de ontem torna-se hoje o pensador
do Estado, o funcionário régio que defenderá até a morte seu posto, seu lugarzinho.
Embora, felizmente, não se possa generalizar, os exemplos de tal deriva não são raros
nem ficcionais. Ao contrário. É o que acontece, desde que se deixa de pesquisar ou
criar, para trabalhar duro como pensador que renuncia ao pensamento: o pesquisador
burocrata, que faz da pesquisa um trampolim para assegurar o que ele havia
antecipadamente imaginado, estruturado, e que confirma, pois, seus pontos de vista e
convicções. Os pesquisados, neste caso, desempenham o papel de “laranjas” da corte,
mediados pelo “pesquisador-laranja”...
Do mesmo modo, desde que o ócio criativo imaginal do gênio, isto é, a liberdade
solta como um poldro selvagem se curva à impostura político/ideologia, resta o exílio,
inclusive, em tempo de democracia. Adeus poldro selvagem! O exílio de dentro: a
mediocridade dos que “pesquisam” para nada; ou os novos territórios abertos aos
desterritorializados: o exílio dentro/fora. Novos países. Novas pátrias. Que pena! O
gênio é por definição um apátrida, ele é estrangeiro em sua terra natal! Um
desterritorializado. O poeta que gagueja em sua língua.
O pensamento seria, então, uma essência, uma entidade, um novo deus? Não. O
pensamento precisa de espaço, campos de liberdades, conforto físico/mental, territórios
não minados pela mediocridade do poder político ou pelo assédio moral ou discursos
autoritários que, como diz Foucault, “nos fazem rir, mas são letais” à liberdade do
inventor, à engenharia das competências, à estética da existência. A Estética como
Acontecimento, terreno propício ao exercício da transversalidade, designa uma abertura
às leituras plurais da realidade e a um pensamento não ilhado à experiência, aos
experimentos, e que supera a supremacia de uma razão única e a dualidade cartesiana:
espírito é corpo.
49
sobre as dunas, que deslocam os mangues, em um movimento mínimo de
migração/emigração, mas que têm a força cambiante do movimento alheio à dualidade:
territorialização/desterritorialização, e que é antes uma multiplicidade anti-hierárquica
que transforma radicalmente o pensamento, o pensador, no caso, o filósofo compositor
de uma filosofia como um patchwork:
“O filósofo não é mais o ser da caverna, nem a alma ou o pássaro de Platão, mas
o animal chato das superfícies, o carrapato, o piolho”.95
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50
O desejo não seria uma est-ética, uma máquina de guerra positiva, inventiva de
outros modos de viver, amar, gozar ou sofrer ou morrer? Sim. Desde que o gozo passe
pela força do desejo itinerante. Um gozo não produtivo. Não condenado à função
edipiana, mas conectado ao inútil, ao gozo para nada. Um gozo aspirando também ao
improdutivo, ao desejo pelo desejo, sem justificativa nem muletas mentais; como
também à preponderância do desejo que fomenta a viagem ao corpo e as suas ilhotas,
ainda virgens, dobras esquecidas ou ignoradas.
No fundo, como falar de um gozo para nada sem evacuar o próprio sexo da
economia dos afectos? O sexo é um signo. Signo dos signos, o sexo é o fim da memória
desordenada; de uma memória-túmulo do pensamento, que perdeu a qualidade ímpar do
esquecimento. Ora, sem esquecimento, não há sexo inútil; sexo para nada, não
culpabilizado, movido ao prazer dessexualizado, inserido nas produções e criações de
afectos, que resistem à reprodução imposta a todo gozo, sob a égide do sexo confinado
às zonas erógenas da organização política do corpo e à procriação: ao mito do amor
materno! Contra a memória das marcas e crimes impostos a cada um pela história do
cristianismo – somos todos criminosos, antes mesmo de ter cometido o crime, somos os
matadores de Jesus, enviado pelo Pai para nos salvar – o simples enunciado de um
prazer dessexualizado, libertino, e que abre para as novas formas de desejo e gozo, é
uma resistência ao “dispositivo da sexualidade”, às sexualidades em contraparte à
sexualidade. Dizer, entretanto, a sexualidade beira a ordem moral, a imagem moral do
pensamento, que elege explicações advindas de uma organização societária que adere à
estrutura social como uma espécie de palavra de ordem, que deve supostamente tudo
explicar, tudo justificar. Neste ponto, Deleuze e Guattari são claros, sem ambiguidades,
sem opiniões: eles pensam, não discutem, não opinam, nem se deixam cair no bem ou
no mal da sexualidade. O buraco é mais profundo, daí por que o amor se acopla à
sexualidade, e é estranho às faixas etárias ou ao gênero pelo gênero. Não existem
diferenças superiores nem inferiores, mas diferenças afora toda ordem hierárquica,
diferenças, pois, que nutrem encontros e afectos:
51
(...) A sexualidade coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que são
como n sexos, toda uma máquina de guerra pela qual o amor passa. O que não pode ser
remetido às deploráveis metáforas entre o amor e a guerra, a sedução e a conquista, a
luta de sexos e a briga de casal (...) é só quando o amor acabou, a sexualidade secou,
que as coisas aparecem assim. Mas o que conta é que o próprio amor é uma máquina de
guerra dotada de poderes estranhos e quase-terrificantes”.98
Mas, então, o que significa n sexos? Quer dizer que tudo está liberado? Quem
libera o quê? É em termos de devenir que as coisas acontecem em todos os domínios,
em todas as sexualidades e formas de amor:
52
artefato estético a dessexualizar o prazer e a reelaborar saberes apaixonados, conteúdos
e continentes em devenir.
É com tudo isso que se faz a Estética como Acontecimento, que se constroi e
percebe o corpo como um “estado volátil e difuso, com seus encontros de acaso e seus
prazeres sem cálculo”, donde a ideia de não barrar a emergência do caos à ação
continuada de reerotização do corpo em todas as suas dimensões. Em outras palavras,
acordar a desordem do caos a uma nova ordem corporal, que ainda é a (des)ordem do
caos. Acrescentar, pois, uma dodecafonia ao universo de dissonâncias dos sentidos,
enquanto contra-ataque produtivo às significações modais, monolíticas do gênero.
Compor novas modalidades de prazer, não ainda imaginadas nem experimentadas em
devir, que se tornam para o corpo, com o corpo e suas zonas de prazer, não exploradas,
uma estética da existência, e que significam, simultaneamente, um severo e produtivo
remanejamento do sexo-rei, sexo-rainha, sexo para a reprodução, procriação e, não raro,
instrumento de dominação.
“Quem fez da terra o que ela é? Quem deu esse corpo à terra? Máquinas, sempre
as máquinas. A terra é a grande máquina, a máquina de todas as máquinas.
Mecanosfera. A filosofia de Mil Platôs não concebe oposição entre o homem e a
natureza, entre a natureza e a indústria, mas mistura e aliança. A lógica da mecanosfera
não conhece a negação nem a privação. Há apenas devires, sempre positivos, e, dentre
estes, devires perdidos, bloqueados, mortos”.100
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Dobra IV
53
Quanta riqueza, porém, nessa solidão povoada! Quem não viveu uma paixão
amorosa? A solidão do amplexo, na fase aguda da paixão, é total. O orgasmo acontece
no mínimo entre duas pessoas, mas o gozo apaixonado é anônimo, solitário, órfão. Não
por acaso, os franceses falam do orgasmo como de “uma pequena morte.” A morte no
gozo é solitária. E, portanto, somos dois, no mínimo, dissemos. A presença da parceira
ou parceiro, no gozo orgástico, no clima desorganizador da paixão, nunca é, porém,
recusada, negada; no instante do orgasmo, não há história edipiana; não há cobrança, e a
palavra do corpo, como carne inflamada, cala a tagarelice para experimentar e exprimir
o grande júbilo do tremor de um corpo semelhante ao da epilepsia, isento, porém, do
sofrimento inserido no fenômeno. O orgasmo é uma solidão plena, justamente porque é
uma experiência radical da loucura, e que supera de longe a interpretação canônica da
“pequena morte”, cara a Georges Bataille ou à psicanálise.
A gramática é paupérrima, não serve para dizer o gozo. O gozo não se diz –
talvez? É um experimento. Os toxicômanos percebem muito bem o que aqui tentamos
articular numa língua, em palavras, o indizível de um trapo humano que se torna por
segundos, deus! Como dizer em palavras a poesia molhada do corpo? Como articular
de modo gramatical algo que foge às regras e convenções e que, nem por isso, é
marginal, bandido ou louco? Como dizer o indizível do desejo mordido de paixão? Não
há nada a ser dito. Não há nada a ser explicado. Experimente. Experimente.
Ora, se é verdade que o orgasmo, para muitos, não é neutro nem inocente, é, de
modo privilegiado, uma constelação de devires inumanos cujo poema é escrito numa
invisibilidade cruel, como todo pensamento inominável; numa solidão que é puro furor
de viver, sem comum medida com nenhuma outra invenção. Em sua radical
positividade, o orgasmo é um devir-talo, é um devir-vegetal em seu esplendor, em sua
força devastadora, destruidora; é a suprema criação. É o acontecimento. Penetro e sou
penetrado; sou a personagem única dessa imaterialidade, deste mínimo instante
privilegiado: a solidão artista povoada. O orgasmo é a pura solidão. Não há noção de
nada: nem diferença, nem nome, nem hora, nem nacionalidade, nem segmentos
54
sociais… nem memória. Nem cartão de crédito. Nem conta de luz. Nem declaração de
imposto de renda… Nem idioma. Somos todos analfabetos. Ruminamos; não é mais a
linguagem nem a palavra… sussurros, gritos, grunhidos inarticulados, gemidos de gata,
gato sem-vergonhas. Todo o reino animal junto à espera do grito, misto de felicidade
plena e… desolação. Semelhante à vaca, é a arte de ruminar, ainda que o tremor
orgástico nos aproxime de modo radical de nosso lado bicho, levando-nos, de imediato,
em questões de segundos, ao universo dos homens esfomeados de tremores gozosos. De
transe sensual.
“É preciso imaginar um outro estóico, um outro Zen, um outro Carroll: com uma
mão masturbando-se, em um gesto excessivo, com a outra escrevendo sobre a areia
palavras mágicas do acontecimento puro abertas ao unívoco, Mind (…) fazendo assim
passar a energia da sexualidade ao assexual puro, não cessando, contudo, de perguntar,
“o que é uma garotinha?”, pronto para substituir esta questão pelo problema de uma
obra de arte por fazer, que unicamente responderá a ela”.101
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Esboço cartográfico
55
intensidades andarilhas, brutas, frutos de estudos, encontros, passagens, provas,
experimentos diversos, trágicos ou não, todavia atestadores de uma efemeridade “salva”
pela arte.
56
quinhão dos deuses gregos Caos e Gaia; contudo, o fluxo que os leva a caminhar
sucessivamente para o ser, “assim que nasceram”, é o mesmo que os motiva a
“produzirem a partir deles mesmos algo diferente que, embora os prolongue, coloca-se à
sua frente – ao mesmo tempo seu reflexo e seu contrário”.104
Em síntese, fazer uma cartografia não significa repetir ou copiar, mas evidenciar
modos para gerar nossos processos, nossos próprios conceitos, em uma filosofia grávida
de múltiplos olhares e travessias-outras. No fundo, a cartografia é a arte da busca, mas
buscar, pesquisar, é um procedimento não da ordem do calco, todavia da imaginação, da
intuição, da est-ética ou polifonia da luz, da manifestação de um novo pensamento em
diapasão com a diferença, e que acolhe a diferença como um saber avesso à recognição:
como uma ética da estética.
Tubo gigante sob as dobras vagueadas... Todo o oco do ser, o devir-oco-do ser,
que aspira não à substância, contudo à errância, à transitividade, ao ser-em-devir, o
devir como o tubo que me trespassa e me empurra para as dobras variadas, à travessia
do caos a trespassar. Nessa travessia, a morte passa longe, o ser em si é o inexistente.
Não é ausência. Não é falta ou excesso de ser. As travessias da Estética como
Acontecimento não aludem ao ser. Não laboram com uma filosofia do ser. Falar, porém,
de uma estética ou de uma filosofia do não ser, não implica que a inexistência do ser no
pensamento recorra ao dualismo, ao fado, ao fatalismo : o ser ou o nada. Esta filosofia-
outra, a filosofia como acontecimento, como diferença que difere, que escapa, que se
torna outro, devir-outro, devir-minoritário, muda de tempo ou de lugar, se faz
dissemelhante, desigual, bloco de sensação, vibração nômade, imperceptível, que se
metamorfoseia, como Gregor Samsa, em A metamorfose, de Kafka, que se deforma, que
é múltiplo e ao mesmo tempo desejo e linha de fuga. Daí a pergunta de Philippe
Mengue:
“Por que desejo? Porque diferir é devir-outro, logo, se inserir no outro, ficar
numa ‘linha’ que tende para o outro. Por que linha de fuga? Porque ela foge ao idêntico,
à essência, ao estável, à forma ou à essência que repousa em si, imutável. De qualquer
maneira, a linha de fuga abandona os territórios, ela desterritorializa. A diferença pura é
ao mesmo tempo potência de desejo e potência de desterritorialização”.105
57
Como se pode observar, a Estética como Acontecimento exige um trabalho de
formiga, o que nos incentiva a esboçar, no presente contexto, uma cartografia da
cartografia. Se a filosofia é a arte de criar, inventar e engendrar conceitos, todo conceito
supõe uma cartografia do próprio conceito. A cartografia é uma concepção do
pensamento como devir, donde sua relação direta com o pensamento imanente – que
permanece no âmbito da experiência possível, agindo na captação da realidade através
dos sentidos e por eles reinventada – sempre atento à emergência de afectos
desconhecidos ou ignorados. A cartografia não é, pois, da ordem do comentário ou da
síntese. Nela não há significações, camufladas ou secretas, a serem reveladas. Não há
um ser que solicita seu desvendamento ou a compreensão de uma suposta essência a ele
atribuída. Com Deleuze e Guattari, a filosofia perde sua cadeira cativa ou o repouso do
guerreiro, e parte para a invenção, para a criação de problemas, eixo primordial da
produção filosófica, o que nos leva a falar de uma filosofia do percurso, e não do solo
nem do território.
É possível falar, então, de uma filosofia deleuziana do não ser? Haveria outra
filosofia que não fosse a do não ser?
Jean-Luc Nancy: “Filosofia que não é do ser. Que não conhece o ser e que nada
quer com ele. Dir-se-ia que Deleuze quer pegar as coisas após a dobra do ser. Ele não
quer nada anterior a essa dobra. De fato, não há nada antes. Em um certo sentido, a
dobra é o próprio ser. Ele sabe muito bem que esse “após” é apenas uma referência
distraída, e talvez irônica, à ordem metafísica das prioridades e dos princípios. Mais
uma vez, ele afasta a gênese, a origem e o fim”.107
58
seu caráter efêmero, frágil; a paixão da vida, em toda sua força e pujança. Fragilidade e
força não sendo unidades antagônicas, todavia, parceiras, intercessoras: a fragilidade,
pois, como exuberância ou força positiva, a sua maneira, e segundo sua singularidade.
Neste contexto, a Renascença Italiana é o grande exemplo de uma Estética como
Acontecimento. Por quê? É o marco, é a fissura, é a fenda; é com a Renascença que a
invenção triunfa e assinala sua mais intensa ruptura com a história da arte, ancorada, em
geral, nos valores do cristianismo. O advento da Renascença Italiana anuncia a morte da
criação e seu axioma todo-poderoso: o Criador e a criatura; em contraparte, acolhe o
desejo de transvalorização de todos os valores, a invenção e o inventor, sempre em
movimento, mergulhado numa arte acessível a todos os saberes e a novos possíveis, isto
é, aquilo que o real tem de mais criativo, de mais dinâmico.
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Dobra V
Pausa. Um ensaio de sorriso manhoso. Deleuze parece feliz. Ele sempre estava
feliz. Era raro alguém tirá-lo do sério. Prossegue o curso:
59
(...) O que é que se distingue, que só se opõe se distinguindo...?
Como se estivesse a nos tomar como cúmplices, na partilha da alegria, ele diz
rindo, baixinho, quase a sussurrar, com uma cara marota de menino traquinas, que faz
arte o tempo todo. Deleuze é um ator! Seu curso é um belo espetáculo!
“Pois então... vou dar a Félix essa triste notícia... que há também o cavalo.”
Duas figuras do tempo... Não sei qual é o signo de cada um; o signo é variável.
(...) Introduzimos uma nova dupla: vida-morte.
(...) A vida é uma cavalgada dos presentes que passam, para um cineasta como
Renoir, por exemplo...
(...) A morte é a ronda que nunca termina dos passados que se conservam e que
fazem pressão sobre nós.
A pequena canção que nos mergulha no passado, que nos leva ao passado, que
nos arranca lágrimas sobre nós mesmos...
60
De modo algum para a vida: corremos para o túmulo.
“(...) Lá, os signos se invertem, é o ritornelo que contém a vida, e o galope que
nos leva a morte.
(...) Fellini põe em cena os dois... Mas não está nem em um nem no outro... Em
Ensaio de Orquestra, tem-se o ensaio da orquestra, que tem por sentido construir os
dois elementos... Construí-los, antes de tudo, de maneira autônoma, depois misturá-los
cada vez mais, para mostrar que nunca se sabe de antemão o que será perdido ou ganho.
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61
de ouro”! As humanidades ressuscitadas, as artes libertadas, os príncipes esclarecidos,
os oceanos desbravados e os dogmas questionados. Eis a rosto da Renascença que
fascina Nietzsche, embora a destruição das civilizações, a intolerância religiosa e as
guerras sempre recomeçadas levem-no ao trágico da história. Mas, a história que deixa
Nietzsche deslumbrado é a que começa nas terras abençoadas pelos deuses – a Itália.
Toscana, Úmbria, Roma, Nápoles, onde a Renascença toma seu primeiro aspecto,
certamente, o mais fascinante, inventivo: um vasto movimento de renovação intelectual
e artística.
62
O devir-artista é indissociável da indeterminação. A indeterminação é, de fato, a
potência anterior e superior às formas concluídas, estáveis, daí o desejo-estético do
gênio de desfazer a forma estável ou concluída, para reinventar a obra, e acrescentar à
escultura fria, bela, o sopro cujo experimento exemplar foi Michelangelo, ao rachar com
o Criador, ao engendrar a fenda, ao se legitimar como inventor de sua invenção, ele
furta o fogo sagrado e o direito Divino à nomeação:
- Parla, Moise!
- Parla!
Mais do que uma exclamação, é a palavra autorizada que anuncia, desde então, a
alforria do artista, o parricídio ou os fragmentos de uma morte anunciada de Deus. O
sopro na matéria inerte de Michelangelo marca a potência da invenção como forças
desejantes de linhas de fuga, devires e desejos, o prenúncio da Estética como
Acontecimento, de uma a diferença que difere. O sopro que vitaliza o molde, a argila
inerte, caro a Nietzsche, é potência desejante, desterritorialização, em diapasão com a
ideia deleuziana de um pensamento que funciona em um sistema aberto, nutrido de uma
vitalidade que beira a loucura ou a vontade anunciadora do novo, da novidade, de novos
possíveis, que fogem do explícito, daquilo que é dado antecipadamente, que evacua a
imaginação, a engenharia das ideias novas, que supõe uma decisão premeditada,
cortada da invenção enquanto devir-revolucionário do pensar, donde a clareza de
Deleuze, em Proust e os signos:
63
eles são divinos!”, pois só os deuses podem destruir tornando a destruição uma vontade
positiva de potência.
Nietzsche visa à destruição dos valores cristãos forjados, entre outros, pela
interpretação negativa da vida, a fim de permitir a emergência de uma civilização
superior comparável àquela da Renascença, por ele nomeada “a última grande época”,
“Cultura nobre” ou ainda “A idade de ouro deste milenário”.113
64
tão-somente releituras, comentários, comentadores… ou pensadores de encomenda a
serviço do pensamento burocratizado: o pensamento do Estado ou régio!
“As pérolas irregulares existem, mas o Barroco não tem nenhuma razão de
existir sem um conceito que forma essa razão”.114
“O homem é o único ser que não recebeu nenhuma forma concluída e que,
contrariamente às outras criaturas, deve conquistar por si mesmo sua própria forma. O
perfeito artesão, isto é, Deus, ao criar o homem, colocou-o no meio do mundo, e disse-
lhe: ‘Eu não te dei nem lugar determinado, nem rosto próprio, nem dom particular, oh
Adão, a fim de que teu lugar, teu rosto e teus dons, tu os queiras, conquista-os e possui-
os com teus próprios meios’”.117
“O homem é (…) coisa informe, uma matéria, uma pedra feia que precisa do
escultor. O grande privilégio do homem em relação aos outros seres é poder dar a si
mesmo sua própria forma, pois o homem é ao mesmo tempo a ‘matéria’, argila
inicialmente indeterminada, e o escultor que informa essa matéria. (…) No homem
estão unidos criador e criaturas: no homem há matéria, fragmento, abundância, lodo,
argila, absurdo, caos, mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo,
deus-espectador (…)”.118
65
vida de outro. Afirmar que o homem, expressão generalizada, do que se convencionou
chamar “gênero humano”, desde que começa a se inventar, a se produzir, significa que
entra em processo de desconstrução: autoprodução é autoconstrução. É criar outros
modos de si, explorar as fronteiras, abrir-se, evacuar os limites de seu universo de
opiniões e reações. Reagir é uma ferida da língua, é uma tatuagem da memória corporal,
é a imagem fatídica dos adoradores do nada. Reação, reacionário. Portas abertas ao
derrotismo, a apologia da opinião, sempre em guerra contra o pensamento.
66
como profundidade da pele, dos sentidos. A superfície do surfista com e não sobre a
onda não é o que há de profundo no corpo, no devir-corpo surfista?
67
De fato, em um ambiente ocidental do tipo de cultura codificada, mais impostura
ideológica que outra coisa, à qual todos deviam baixar a cabeça e seguir a bula, sem
possibilidades ampliadas de produção do novo, a emergência de um singular
renascimento polivalente, desde os anos 1950, sobremaneira, ferrou tanto o código
quanto a ideia, então, vigente, de cultura, e começou a revisitar a atualidade no universo
da música clássica, abrindo a outras expressões, à música e às artes, em geral. Assim,
Schönberg, há pouco citado, fez implodir a linguagem, Varèse revisitou o material
sonoro, os processos de composição e de difusão foram estilhaçados por Cage,
ampliando novos horizontes e afirmando uma vontade de autonomia peculiar para a
atualidade.
Acrescente-se ainda o fato de que a história da música em torno dos anos 1950
enfatiza o debate entre as análises da música serial e a música eletrônica e aquelas da
música concreta, que substitui o objeto sonoro como ponto de partida da análise
propriamente musical. A emergência de sons oriundos de objetos e, em consequência,
de um mundo de sons que não pode entrar diretamente na lógica da determinação quase
científica das alturas e intensidades, implica uma revolução na lógica musical e,
sobretudo, a ideia de uma forma relacionada à estrutura dos parâmetros. Em síntese, o
conceito só existe como invenção pelo próprio conceito, e não o contrário. A opinião
aqui nada pode. A opinião não suporta a mobilidade do conceito, sua energia itinerante.
Criar um conceito é também produzir componentes e seu plano de composição. Mais
ainda: um conceito só existe com outros conceitos, vizinhos, intercessores, situados no
plano em que eles são formulados:
O conceito, em sua concepção ampliada, é uma estética, uma usina para criar o
novo. Como fazer, porém, para que o novo não se torne a seu turno o velho? Não trave
o ato inventivo, não se feche ao contágio e às injeções criativas dos encontros e viagens
no universo ampliado da música ou da filosofia ou das ciências, por exemplo, em vez
de ceder ao passadismo ou ao medo-pânico de confrontar e “cortar chãos”, e deparar
com o atual? O que é o atual? É o que nos instiga a perguntar: O que estamos a fazer de
nossas vidas? Oposta à metafísica, essa interrogação é em si um conceito, um alarde, a
vontade desejante de dizer sim ao novo, ao atual. Deleuze distingue o presente e o atual:
“O novo, o interessante, é o atual. O atual não é o que somos, mas antes o que
nos tornamos, o que estamos nos tornando, isto é, o Outro, nosso devir-outro. O
presente, ao contrário, é o que somos e, por isso mesmo, o que já deixamos de ser.
Devemos distinguir não somente a parte do passado e a do presente, mas, mais
profundamente, a do presente e a do atual. Não que o atual seja a prefiguração, mesmo
utópica, de um porvir de nossa história, mas ele é o agora de nosso devir”.121
68
continuum histórico, Deleuze fica atento ao histórico inerente ao pensamento
diagramático, embora afaste qualquer consideração de ordem histórica na definição do
diagrama. Mais geográfico do que historiador, em sua obra sobre Bacon, insiste na
noção conceitual do plano de imanência a-pictural que faz advir o fato pictural. Este
continuum improvável traça uma “linha de fora” bem distinta de um continuum
histórico organizado, segundo uma estratégia exterior. Essa linha do fora é o fruto de
uma tensão dinâmica e operatória entre a mão e o olho, donde a iniciativa de sugerir o
diagrama em diferentes escalas como um espaço transitório e efêmero “em que o
pensamento se orienta para todo um outro, para um fora que inclui uma relação de
forças em devir”.122
Uma estética-outra
69
onde se alcança aquilo que está implícito na questão: A+A=AA. Quanto ao nonsense,
ele é do domínio do espírito que se encontra na situação de liberdade para construir a
partir de elementos diversos uma resposta... ou um problema. O nonsense escapa às
fórmulas questão/resposta e atribui-se outro rigor para atravessar o campo não
desbravado para alcançar, ou não, um alvo não previsível.
70
responder (nunca se responde...): Ele vem do sem-fundo. Ou, ainda, o fundado em se
fundando entrega-se a um sem fundo; estaríamos mais perto de uma resposta/problema
deleuziano.
Não haveria contradição em afirmar que, por um lado, ele vem do sem-fundo,
que, por outro, ele cria o sem-fundo, o primordial estando na palpitação ou estremecer
do ser do fundado à superfície do sem-fundo. O que há de novo, de propriamente
filosófico, visto que a filosofia é a arte de inventar e engendrar conceitos? Eis o novo,
o pensamento sem imagem dogmática, em dois postulados: fundo e fundamento, e
também fundar e fundação.
71
“A estética sofre de uma dualidade dilacerante. Designa de um lado a teoria da
sensibilidade como forma da experiência possível; de outro, a teoria da arte como
reflexão da experiência real. Para que os sentidos se juntem é preciso que as próprias
condições da experiência em geral se tornem condições da experiência real; a obra de
arte, de seu lado, aparece então realmente como experimentação”.129
72
coroamento de um combate no qual a arte era concebida como essência, segundo um
processo radical de dependência e de historicidade. De fato, uma distância rigorosa
entre prática e teoria, entre obra de arte e reflexão estética leva, implícita ou
explicitamente, a uma concepção da criação artística como emanando de um vazio ou de
uma força transcendente. Como se o artista, antes da e durante a criação de sua obra,
não agisse segundo uma concepção, no mais das vezes, implícita e intuitiva do estatuto
da arte e da função da obra. Como se a obra não fosse o fruto de seu tempo e de suas
culturas, gerada por seus experimentos e errâncias mergulhados muitas vezes na mais
terrível das solidões. A solidão do artista, a solidão de quem escreve, a solidão dos
apaixonados, sempre à margem, a solidão do matemático, do filósofo: uma solidão
povoada, à qual fizemos alusão.
73
Um nome. Uma pista. A imaginação. A maravilhosa comadre, vizinha, ou a
“louca da casa”, sem origem, sem pai, sem mãe, sem, sem, sem… e que elabora suas
estripulias, sob a força de uma razão vagabunda, de lembranças vadias, sempre
deslavadas, revisitadas pela energia incandescente de novas recordações, novos traços,
nascimentos e renascimentos soltos, meninos de rua: anjos sem origem nem nome. O
genocídio sempre repetido, ao longo da história, da imaginação/criança. Meninos de
rua, como os anjos, eles não têm origem… Eis o imaginário às voltas com a fúria sem
controle, livre como um gato suicida…
74
santos ou leigos, os inventores pagam o preço de sua loucura, de seu gênio, destruidor
de verdades verdadeiras, de uma estética única.
Como, porém, destruir a verdade? Nunca é demais insistir que toda verdade é
vontade de verdade. Não há criação sem destruição, afora todo e qualquer deslize
terrorista. Destruição é um conceito positivo, artístico, elaborado por Nietzsche. A
invenção supõe o novo, a transvalorização dos valores, o contrário do terrorismo ou da
apologia da morte. A morte do outro, claro; mesmo porque a morte é sempre a morte do
outro. A que destruição estamos, então, a aludir? Como distinguir a “boa” e a “má
destruição”?
“Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem
restabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os modelos e as
cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um
fantasma – a mais inocente de todas as destruições, a do platonismo”.131
75
campos têm ao mesmo tempo relações e não relações entre si: são heterogêneos, mas
comunicam entre si. Deleuze insiste, porém, sobre o conceito de diagrama que os
unifica, ao mesmo tempo em que mantém sua heterogeneidade.
O diagrama é uma máquina muda e cega, embora seja ela quem faz ver e falar.
Se há muitas funções, e até maneiras “diagramáticas”, é porque todo diagrama é uma
multiplicidade espaciotemporal. É que o diagrama é profundamente instável ou
flutuante, não para de remexer, misturar matérias e funções de modo a constituir
mutações. O diagrama é sempre uma mistura constituída de relações aleatórias e de
dependências mútuas. O conceito de diagrama une e combina os dois níveis: a teoria e a
prática, daí sua importância peculiar à produção da estética do CsO, Estética como
Acontecimento.133
76
possibilidades para o engendramento de uma Estética como Acontecimento, no presente
contexto apenas esboçada.
77
Artaud, cada um a sua maneira, passaram pelos afectos anômalos na qualidade de
inventores peculiares de um teatro da crueldade e do furor. Neste âmbito, a est-ética,
como a filosofia, é um teatro. O teatro das crueldades. A cena ambulante do furor. O
teatro obsceno das fúrias cuja expressão imensurável, radicalmente nova e destrutiva
tem um nome, ou uma constelação de nomes, o anonimato dos nomes: Carmelo Bene.
Mergulhado em um êxtase sonhador, numa dança das palavras desencarnadas,
degoladas, mas que atravessam o tempo e as múltiplas estratificações do tempo, ele fala
de um corpo, da potência da coisa escrita, que atravessa todos os tempos, do paganismo
até hoje, não para construí-las, nem para anunciar uma melancolia desesperada ou
catastrófica, contudo, para destruir toda constituição imagética do real tal qual é dado ou
que nos é imposto a pensar:
“Se o texto é um corpo, se a obra tem um corpo, ambos devem literalmente ser
destruídos, do mesmo modo que deve ser destruída a imagem do corpo, deste corpus
que constitui a transubstanciação do ator em cena – no cinema, no teatro. A crítica de
fundo se desenvolve contra toda filosofia que cria armadilhas para o corpus, tanto o
textual como o pictural. Aqui se concentra a postura ética de Carmelo Bene em relação
a um saber organizado, capaz somente de repetir a leitura do corpus e não procurar as
novas possibilidades, em um ‘devir-texto’ ou em um ‘devir-ator’, agindo por meio da
subtração de uma textualidade que tende a martirizar e a alienar o corpo, através da
argumentação paradoxal da potência do próprio corpo”.138
De fato, para Carmelo Bene, devastar o corpo torna-se mais importante do que
destruí-lo, daí seu conceito de fúria em contrapartida ao conceito de crueldade, pois, ao
que tudo indica, a crueldade não dá conta da força exterminadora da fúria, do furor, da
interdição do livro, dos escritos confinados ao silêncio, à mudez dos arquivos, imóveis,
congelados, do poeta vestido de noite:
“Perdura no ato uma testemunha cuja força enumera os crimes perpetrados pelo
ser histórico e pelo ser, pelo fato de ficar nas histórias dos textos e pelo fato de ser corpo
nesse contexto – dos romances às correspondências, como também tudo o que foi
escrito para não ser encenado, mas para ser vivenciado em privado”.139
* Referência ao filme de Helvécio Marins JR e Clarissa Campolina Girimunho (2012). Numa época em
que o barulho ensurdece e anestesia o cinema no Brasil, salvo exceções, ou resistência à histeria da
78
Artaud ocupa um não lugar que toma proporções gigantescas, melancólicas, mártires e
sacrificiais. Para Bene, Artaud não é mais um nome, porém, todos os nomes da história.
Devastar um corpo, um corpus, impedido de pensar o impensável, exilando-o à
repetição, a dizer, como um macaco, aquilo que há séculos os carneiros repetem, Artaud
queria superar os limites da linguagem e do pensamento dos “assentados”, em vênia
constante ao deus micróbio, destino de todos os deuses. Desta prisão, emerge na mais
profunda orfandade a invenção do Corpo sem Órgãos, potente, movido por uma força
sísmica, numa escrita que o leva a atravessar os infernos, sem o confortador repouso da
trilogia de Dante – Inferno, Purgatório e Paraíso. Tudo é inferno, e Artaud a ele padeceu
com dignidade, como um acontecimento, alheio à força do destino ou à fatalidade dos
supersticiosos.
Uma Estética como Acontecimento se define também pelo espaço dinâmico que
ela engendra. É da ordem da geografia; tem como característica fundamental uma nova
concepção do espaço, uma nova distribuição no espaço, uma nova relação com o
espaço. É um outro modo de espacialização, uma nova maneira de ser, de estar, de devir
no espaço. Nesse espaço nômade, o espaço local absoluto, o estriado é trespassado pelo
espaço liso, e o estático é sempre transtornado, agitado, empurrado e posto em situação
de vibração, de sensação, no sentido deleuziano. A sensação é uma vibração, sob o
signo de uma estética cuja característica nunca é a forma, mas a primazia da força sobre
a forma. Força, isto é, invenção. Desejo de vida. Vitalismo em núpcias com os devires.
Não se trata, pois, de um espaço dimensional, todavia, a-direcional. Não há vetores,
orientações ou tendências. O espaço não é habitado pelas formas, mas pelas figuras,
79
hecceidades, ou pontos de inflexão, as dobras. O que caracteriza esse espaço é sua
distribuição nômade que o define como percepção háptica de visão aproximada e tátil,
um espaço Corpo sem Órgãos, do meio, do trajeto.141
Como afirmamos, Deleuze atribui à arte a tarefa de dar acesso a esse corpo, a
esta vida orgânica. CsO é experiência imediata, sem conceito e sem forma. O CsO
escapa à organização, em que os órgãos perdem suas funções. O fluxo de vida orgânica
passa, pois, como uma vaga e atravessa todo o corpo em advento. Uma definição
intensiva do corpo, uma imagem de corpo anterior à subjetividade, concepção modal do
indivíduo, primazia do corpo como força sobre as funcionalidades dos órgãos
agenciados como máquina. Primazia da força sobre a forma. E, sob outro ângulo, é o
advento de um pensamento físico que faz da relação um vetor possível de investigação
do real que, como o espaço, não existe em si, menos ainda enquanto percepção do
sujeito, pois é a própria relação do criador com o espaço/movimento que se torna
escrita-surfista, surfando no espaço.
Eis por que a estética nômade não recorre a noções como forma, imagem, estilo,
expressão, código, ou ao risco de sempre reduzir a obra às funções tradicionais da
80
representação e da linguagem; a estética nômade aborda, pois, a obra de arte para além
de todos esses instrumentos de representação. A Estética como Acontecimento remete a
um conceito-chave, à linha nômade. Mas o que é uma linha nômade, como intercessora
peculiar à Estética como Acontecimento? É uma linha abstrata, virtual, infinita, um
devir, um movimento e não metafísica, forma ou imagem. A linha é uma operação, o
oposto da essência; é um processo, um caminho e não um objetivo ou um fim. É uma
linha curva, arqueada, em suspensão, linha malabarista que não cessa de gerar dobras,
acontecimentos, surpresas, acasos: a linha, não o ponto: “traço barroco é uma dobra que
vai ao infinito” A linha não tem começo nem fim. A linha é um movimento, uma
duração, uma diferença; é linha do pensamento, “linha da bruxa”, é a linha do Fora
(Foucault/Blanchot); é o recurso a um conceito-chave, um conceito operatório, a uma
função operatória: é a linha nômade, que permite conceber a Estética como
Acontecimento. Por que a linha? Porque ela cria um espaço sem fundo, ou melhor, um
espaço no qual o fundo não se distingue da superfície, da linha, porque a Figura é,
simultaneamente, “forma” e “fundo”, ou, como diz Klee, a unidade de fenômeno e da
função é um material-força. A linha supera a essencialidade da imagem ou da forma
como princípio da arte (pictural). A imagem ou a forma não são mais os princípios da
arte, todavia, o efeito de uma atualização da linha como movimento para o
acontecimento, para o devir. A Estética como Acontecimento, combina, pois, a força ao
material: é o material-força:
Pensar com Deleuze é um esporte radical! Podemos dizer de Deleuze o que ele
diz de Espinosa e Nietzsche:
81
dificilmente percebidos a olhos nus, e exige um Olhar de Índio, sem a camisa de força
da significação, da recognição ou da representação. O Olhar de Índio se extasia diante
do desconhecido, almeja o desconhecido, acata a surpresa imbuída no acontecimento,
mas a reação ao novo é peculiar e, em geral, imprevisível. O conceito-personagem
Olhar de Índio não é redutor à essência, à “inocência”, ou ao bon sauvage; é antes uma
economia dos sentidos e da estética da existência em combate contínuo, desejante, à
invenção de um mundo-outro, de possíveis-outros, o que supera de longe a vontade de
verdade, a vontade de poder.
“A quem pergunta: ‘para que serve a filosofia?’, é preciso responder: que outro
interesse tem senão levantar a imagem de um homem livre, denunciar todas as forças
que têm necessidade do mito e da inquietação de alma para afirmar sua potência? (…) A
Natureza é capa de Arlequim toda feita de cheios e vazios: cheios e vazios; seres e não
ser, cada um dos dois se apresentando como ilimitado e ao mesmo tempo limitando o
outro. Adição de indivisíveis, ora semelhantes ora diferentes, a Natureza é bem mais
uma soma, mas não um todo”.145
82
que a crueldade constituiu historicamente um escândalo para a Filosofia? Por que esta
exclusão quase sacrificial da crueldade no campo filosófico? O que é sacrificado no
jogo das categorias e dos conceitos? Que sacrifício se repete – a partir do primeiro,
aquele que implica a linguagem, a palavra que mata a coisa, ou seja, o sacrifício do
real? O silêncio sacrificial da crueldade na Filosofia encontra em Aristóteles,
notadamente o livro VII, capítulo V da Ética a Nicômaco, seu representante
maior.148
83
dirá Zaratustra. Uma tal hipótese, fundada no pressuposto de que a arte contém um
componente de crueldade, deve nos levar a uma análise minuciosa, quase exegética da
relação crueldade-criação em Nietzsche e em Artaud, evitando assim a inserção da
“perversão” na afirmação, nos dois autores, da crueldade presente na paixão do artista.
Paixão que passa pela crueldade acasalada à arte, ao pensamento trágico na dureza do
herói:
“Os heróis trágicos (...) são suficientemente duros para sentir o sofrimento como
gozo”. Ou ainda: “O gozo (Lusf) sentido na tragédia distingue as épocas e os
temperamentos fortes (...)”151
“Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de
modo exclusivo (...) Pode-se muito bem imaginar uma crueldade pura, sem
dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que é a crueldade? Do ponto
de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis,
determinação irreversível, absoluta. A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma
espécie de direção rígida, submissão à necessidade”. 152
Nietzsche, para quem “quase tudo o que chamamos 'civilização superior' repousa
na espiritualização e aprofundamento da crueldade” compara “a civilização no seu
esplendor a um vencedor coberto de sangue que arrasta seus derrotados, tornados
escravos, acorrentados à carruagem de seu triunfo”.155
84
voltar enfim às origens etimológicas da língua que, através dos conceitos abstratos,
evocam sempre uma noção concreta”.156
Artaud vai, pois, ao México à procura de uma “verdadeira cultura” que “se apoia
na raça e no sangue”. A crueldade insiste através de palavras-chave de seu pensamento
como o segredo, o mais íntimo e o mais estrangeiro, ao mesmo tempo como o motivo
de uma melodia secreta, semelhante à música que Artaud percebia na pintura de Van
Gogh. Cruor, o sangue que escorre, é o signo da vida e significa “vida, força vital”;
mas é também, e por amálgama, signo de violência infligida à carne – e cruor designa
ainda a chacina. Cruor é a vida; e, segundo numerosas fórmulas de Nietzsche e Artaud,
é crueldade. Cruor é a violência, mas a violência em nós: o sangue de nosso sangue, a-
vida-morte que pulula nas entranhas, nas cavernas da pele, numa carne que nós não
somos e no entanto fora da qual não existimos.
85
Nas análises da Genealogia da moral, em Nietzsche, e nas passagens do
Teatro e seu duplo, em Artaud, consagradas ao estudo da crueldade, Nietzsche a
define como “Contra-natureza” (widernatürhch), Artaud, por sua vez, fala da
crueldade como a expressão de “apetites perversos” que se caracteriza pelo
enclausuramento do sujeito no imaginário, e por seu aspecto voluntário e espetacular.
Nietzsche observa em Aurora:
“A malvadeza da fraqueza quer fazer o mal, e ver as marcas do sofrimento”.158
Artaud, por sua vez, afirma não fazer uso da palavra ‘crueldade’ pelo gosto
sádico e perverso do espírito:
Artaud vai ainda mais longe. Para ele, a “busca gratuita e desinteressada do mal
físico” é uma perversão. No limite do real surge um objeto mediante o encontro no qual
se estagna o movimento de excesso e sobre o qual a tensão se descarrega. Este pode ser
o outro, o objeto da satisfação sádica ou então si mesmo como o outro, objeto de
satisfação próprio àqueles que Nietzsche denomina “os masoquistas morais” (die moral
– ischen – Selbstqüaler), cujo santo e asceta, ao exibirem teatralmente seus
sofrimentos, são os melhores exemplos.160
86
A trajetória do ressentimento e da culpa, da qual Nietzsche faz a genealogia, tem
como conclusão a perversão, a mais sutil forma da crueldade que foi a invenção do
pecado. Gestionário do sofrimento, terapeuta perverso de uma humanidade doente, o
padre, por meio da invenção de ideais ascéticos, permite uma verdadeira “sublimação”
da crueldade, a crueldade requintada, a crueldade como uma virtude posta ao serviço de
uma consciência “lubricamente doentia”. 165
Artaud, do Teatro e seu duplo às Novas revelações do ser, textos nos quais a
visão gnóstica se exaspera, demonstra a importância suprema de uma “malvadez inicial”
inserida como uma ferida nos interstícios da consciência. Consciência humana por ele
definida como fundamentalmente culpada e criminosa. Assim, em Heliogábalo, ele a
evoca como a figura de uma divindade “impotente e ao mesmo tempo malvada”.166
87
que sabe que Deus só podia morrer”.169 São, pois, os filhos que atribuem ao Pai sua
potência e instauram uma relação de dívida, submetendo-o à crueldade.
Nietzsche, por sua vez, recorre ao mito do “forte” que em sua negligência e
descuido reencontraria a inocência (die Unschuld) e a despreocupação do felino, e
seria animado por um “instinto de crueldade” não alterado; ou então ele procura
exemplos nas personagens que a história erigiu em figuras míticas: César, Bórgia,
Napoleão e outros.172
Da mesma maneira que parece pouco provável encontrar homens que pratiquem
a crueldade isenta de qualquer perversão ou fraqueza, parece igualmente impossível
determinar a crueldade “pura”, “inocente” sem passar por uma definição formal,
musical, estética cara a Artaud, e que se avizinha da Estética como Acontecimento.173
88
revelando pela mesma natureza metafísica de referência biológica que se mistura sem
distinção à metáfora filosófica:
Artaud fala ainda de uma “crueldade” da imagem; imagem muda, habitada pela
escrita da dor e da alegria; da dor na alegria, do fracasso da vitória, da vitória do
fracasso. A crueldade como exigência ética é um fio condutor do pensamento de
Nietzsche e de Artaud, e o axioma primordial da Estética da Crueldade, Estética como
Acontecimento.
89
É a tudo isso que fazemos alusão quando privilegiamos os conceitos de
acontecimento, devir, est-ética, razão nômade, pensamento órfão, inocência do devir,
pensamento indeterminado, rizoma e outros, e é com todos esses conceitos que estamos
tentando esboçar os primeiros jorros de uma Estética como Acontecimento. Alvo
singular do presente projeto: não responder, mas criar problemas, sob os traços da
Filosofia da Diferença. Como ultrapassar o hábito da experiência repetida no cotidiano
para uma região cruel, pensante, diferente? Como pensar uma Estética como
Acontecimento que não seja em si uma Estética da Crueldade? Ética da Crueldade que
passa pela escrita da fúria e atesta uma experiência cruel dos limites, sob a força de uma
crueldade radical que escreve com o próprio sangue o pensamento, antes de ter sido
tetanizado pela escrita, antes do estupro, do rapto da energia, do roubo da juventude do
pensamento calcinado pela transcrição. Essencialmente física, a escrita da crueldade
funciona como um cordão sanitário que “protege” o pensamento da morte anunciada, e
quase sempre perpetrada pelos efeitos devastadores da transcrição e da escrita.
A arte é uma experimentação criadora, um devir. Não é nem o modelo real nem
imaginário; nem o artista nem o espectador, é o ato de criação em si, e a experiência da
criação como acontecimento. O primordial é o caminho, a travessia, e não o objetivo
(Klee); é a obra de arte que se torna um monumento, no sentido de que ela existe em si e
não depende de outra coisa para existir.
Eis por que, na Estética como Acontecimento, não há dicotomias clássicas. Não
há mais sujeito ou objeto, menos ainda forma ou conteúdo. Não há mais imagem que se
define em relação a uma realidade. Não há mais nem exterior nem interior, todavia,
intensidades, sensações, invenções e afectos. Não há mais o artista que atribui à obra
sua significação, ainda menos, um espectador passivo, que recebe as expressões de uma
obra de arte. Há um devir, uma linha, que traça no movimento as formas, os objetos, os
encontros vibráteis e as formações.
90
1 Diferença e repetição. Rio de Janeiro. Tradução Luiz Orlando e Roberto Machado, Rio de Janeiro:
Graal, 1988, p. 253.
2 Idem., p. 254.
4 Idem., p. 229.
5 Idem., p. 228.
6 Idem., p. 228-229.
7 Idem., p. 230.
8 Idem., p. 225.
9 Idem., p. 273.
12 Cf. René Schérer “HOMO TANTUM. O impessoal: uma política”. In Éric Alliez (org) Gilles Deleuze:
uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000 p. 24.
14 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Tradução Suely
Rolnik, p. 95.
15 Silvio Ferraz, “La formule de la ritournelle”, Filigrane. Musique, esthétique, sciences, société.
Numéros de la revue, Deleuze et la musique, mis à jour le : 20/01/2012, URL :
http://revues.mshparisnord.org/filigrane/index.php?id=420
16 Pierre Boulez, “Fragment : entre l’inachevé et le fini”, in Pierre Boulez. Œuvre :fragment (Catalogue
d’exposition), Paris, Gallimard/Musée du Louvre Éditions, 2008, p. 14.
19 Id., Ibid.
20 Idem., p. 153.
21 Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Nova Fronteira Água Viva, 1980, p. 77.
22 David Lapoujade. “Do campo transcendental ao nomadismo operário – William James” in Éric Alliez
2000, p. 268-269-270.
91
23 Abdelkebir Khatibi. La mémoire tatouée. Paris: Union Générale d’éditions. Col. 14,/18, 1978. p. 206.
32 Id., Ibid.
34 Ilya Prigogine. O fim das certezas - Tempo, Caos e Leis da Natureza. São Paulo: Editora UNESP,
1996.
35 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Tradução Luis Orlandi. O Anti-Édipo, 2000 p. 100-101.
36 Idem., p. 30.
42 Idem., p. 21.
45 Jean-Pierre Vernant. Mito & Política, São Paulo: Edusp. Tradução Cristina Murachco, 2009, p. 179.
46 Idem., p. 173.
48 Cf. Pol Droit : Leibniz selon Deleuze. Paris: Le Monde, 9 de setembro de 1988.
51 Gilles Deleuze. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, Tradução Antonio Carlos
Piquet e Roberto Machado e 2º ed. 2003, p. 89.
52 Idem., p. 91.
53 Idem., p. 93-94.
54 Idem., p. 95.
55 Deleuze e Guattari. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, vol. 3, 1996, p. 9.
56 Idem., p. 9-10-11; cf. Daniel Lins. Antonin Artaud, O artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo:
Editora Lumme, 2011.
57 Id., p. 15 e 24.
59 Alfred North Whitehead. O Conceito de Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 63.
60 Gilles Deleuze, e Félix Guattari. O que é a filosofia? Trad. de Bento Prado Jr., Alberto Alonso Muñoz.
Rio de Janeiro: Editora. 34, 2000, p. 228.
61 Cf. Mathilde Monnier e Jean-Luc Nancy: “Le corps en échange.” Desse encontro nasce, em forma de
conversação, o livro Dehors la danse. Les éditions du mouvement, 2001.
62 Id. Ibid.
63 Cf. o extraordinário trabalho coletivo de Jean Rouch, Michèle Finck, Bernard Rémy, Christian
Delacampagne e Isabelle Ginot: Danse. Corps Provisoire. Cinéma Peinture Poésie. Paris: Armand Colin,
1992.
64 René Descartes. Œuvres philosophiques, vol. I, 1618-1637: Paris: Editora F. Alquier, Classiques
Garnier: 1963, p. 61.
65 Tzvetan Todorov. Eloge du quotidien. Essai sur la peinture hollandaise du XVIIème siècle. Paris: ed.
de Poche, 2010, p. 145.
66 Paul Klee, apud Merleau Ponty. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard : 1964, p. 31 e 173.
75 Gilles Deleuze e Félix. Guattari. L’Anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1973, p.
46.
76 Rainer Maria Rilke Les Élégies de Duino, seguido de Sonnets à Orphée. Paris: Seuil. Coleção Points,
Poésie bilingue, 2006.
77 Cf. Boris Charmatz. Je suis une école. Paris: éditions Les prairies ordinaires, 2009, Boris Charmatz et
Isabelle Launay Entretien. - À propos d'une danse contemporaine, Dijon, CND/Les Presses du réel,
2003, Huesca, Roland. “Ce que fait Deleuze à la danse” In Gilles Deleuze et Félix Guattari. – Territoires
et Devenirs. Le Portique 20, Revue de philosophie et de sciences humaines. Paris: 2007, p. 149.
78 “O Homem-Árvore. Carta a Pierre Loeb” In Eu, Antonin Artaud. Tradução Aníbal Fernandes. Lisboa:
Hiena Editora, 1998, p. 105, cf. Daniel Lins, 2011.
79 Idem. p. 19.
80 Gilles Deleuze. Tradução Antonio Carlos Picquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
2ª ed. p. 91.
85 Idem., p. 249.
86 Khatibi. 1978, p. 90; cf. Daniel Lins. “Khatibi: O livro de sangue” In: Revista Polichinello, número 11,
Belém, 2011.
87 Idem., 93.
88 Idem, p. 92.
89 Idem., p. 91.
94 David Lapoujade. “Do campo transcendental ao nomadismo operário – William James”. In Éric Alliez
(org.) 2000, p. 274 e 276.
96 Idem., p. 286.
97 Id., Ibid.
98 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs. São Paulo: vol. 4, 1997, p. 72.
99 Idem., p. 70-71.
100 François Ewal. Resenha publicada nas capas internas do volume 1ª da edição brasileira de Mil Platôs,
de Deleuze e Guattari. São Paulo: Editora 34, 1995.
102 Carmelo Bene. Notre-Dame-des-Turcs. Tradução e prefácio Jean-Paul Manganaro. Paris: P.O.L.
2003, p. 23.
110 Nietzsche, F. O anticristo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
112 Gilles Deleuze. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962, §6, p. 98.
113 Nietzsche. Crepúsculo dos Ídolos – ou como filosofar com o martelo. Tradução Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, § 37.
117 Pico De La Mirandola, Giovanni. De l’imagination/De imaginatione, edição bilíngue. Chambéry: Ed.
Comp’act, 2005, p 106.
118 Nietzsche. Ecce Homo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
119 Hegel, Friedrich. Cours d’esthétique. Paris: Aubier, 1995. Cf. Capítulo III da 3ª seção, da III parte:
“Epopeia, poesia lírica e drama”.
122 Cf. « Saisir la pensée diagrammatique, lectures plurielles”. Bénédicte Letellier. Penser par le
diagramme de Gilles Deleuze à Gilles Châtelet, Revue TLE, n°22, Presses Universitaires de Vincennes,
2004.
127 Gilles Deleuze. Le bergsonisme. Tradução Luiz Orlandi, São Paulo : Editora 34, 1996, p. 9.
129 Deleuze, 2003, 4ª p 265-266; cf. Daniel Smith, «Deleuze’s Theory of Sensation: Overcoming the
Kantian Duality», in P. Patton (org.), Deleuze: A Critical Reader, Oxford and Cambridge, Blackwell,
1996, pp. 29-56.
133 Michel Foucault. Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969, p. 253; Deleuze. Foucault. Minuit:
Paris, 1986, p. 90-95.
134 Deleuze, Gilles. Qu’est-ce que l’acte de création, Conferência apresentada na Fundação Femis, em
Paris 17/05/1987, gravação pessoal; “A ideia de gênese na estética de Kant” (1963) In A Ilha deserta.
São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 79 a 97; Jacques Rancière, “Existe uma estética deleuzeana”. In Gilles
Deleuze: uma vida filosófica. Éric Alliez (org.). São Paulo: Editora 34, 2000, p. 505 a 516.
141 Daniel Lins. Antonin Artaud – O artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo: Editora Lumme, 2011.
142 Gilles Deleuze Le Pli – Leibniz et le Baroque. Collection “Critique”: Paris: 1988, p. 50.
143 Gilles Deleuze. L’Ile déserte et autres textes. Paris: Minuit, 2002, p. 244.
146 Daniel Lins. “A escrita das origens: Artaud e Nietzsche". In Assim falou Nietzsche (orgs. Olímpio
José Pimenta Neto, Miguel Angel de Barrenechea). Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999 p. 121-130.
147 Artaud. O Teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2a. ed., tradução de Teixeira Coelho,
1999, p. 139.
151 Nietzsche, F. Oeuvres complètes. Colli, G.; Montinari, M. (Orgs.). Berlim/Nova Iorque/Munique.
Tradução Henri-Alexis Baatsch, Jean Bréjoux e Maurice de Gandillac. Paris: Gallimard, XIII, p. 190.
153 Id.,Ibid.
168 Daniel Lins. Antonin Artaud. O Artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo : Lumme, p. 2011, 40-44.
169 Nietzsche. vol. VI, p. 287; cf. Camille Dumoulié. Nietzsche et Artaud – Pour une éthique de la
cruauté. Paris: PUF, p. 77.
174 Nietzsche. IV, p. 578 e 617. Sobre Vontade de potência como vida, cf. Vol. I, p. 242, XIX, 84.
176 Nietzsche. vol. VII, p. 276, e 41; Artaud XV, p. 239, in Cahier de Roder; cf. Daniel Lins. Antonin
Artaud – O Artesão do corpo sem órgãos. São Paulo: Lume, 2011 p. 39ss; cf. “Nietzsche o elogio da
beleza plástica”, In Nietzsche e as ciências (orgs) Miguel de Barrenechea, Charles Feitosa, Paulo Pinheiro
e Rosana Suarez. Rio de Janeiro: 2011 p. 97 a 113; “Nietzsche e Artaud: por uma exigência ética da
crueldade”. In Assim Falou Nietzsche III – Para uma filosofia do futuro (orgs.) Charles Feitosa, Marco A.
Casanova, Miguel de Barrenechea e Rosa Dias. Rio de Janeiro: 200, p. 47 a 57.