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RELIGIÕES EM GUERRA - Roger Garaudy

(edição original ISBN 2-220-03607-3)

O Descleé de Brouwer Direitos reservados para Portugal

EDITORIAL NOTíCIAS

Rua Padre Luís Aparício 10, 1.' 1150-248 Lisboa

Título oriSinal: Vers une guerre de religion Tradução: Gonçalo Praça

Capa: Fernando Felgueiras

Edição nº. 01 401 018

edição: Abril de 1996

3ª edição: Novembro de 2001 Depósito legal 173 014101

Impressão e acabamento:

Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda.

COLECÇÃO SINAL DOS TEMPOS

RELIGIõES EM GUERRA?

O DEBATE DO SÉCULO

Nesta colecção:

PORTUGAL, A EUROPA E O FUTURO Manuel José Homem de Mello

NÃO HÁ ALMOÇOS GRÁTIS (2 volumes) COLECTÂNEA DE ARTIGOS DE OPINIÃO

João César das Neves e Quantum Satis

NO REGRESSO VINHAM TODOS - RELATO DA COMPANHIA Nº 2549 Vasco Lourenço

A úLTIMA CONVERSA - AGOSTINHO DA SILVA - 8. edição Entrevista de Luís Machado

OPUS DEI - UMA INVESTIGAÇÃO JORNAlíSTICA - 3.1 Vittorio Messori

RELIGIõES EM GUERRA? - O DEBATE Do SÉCULO - 3.* edição Roger Garaudy

SUA SANTIDADE O DALAI-LAMA Conversa com Gilles van Grasdorff

OS FILHOS DE HITLER - FILHOS DE DIRIGENTES DO TERCEIRO REICH FALAM DOS SEUS PAIS E
DE Si PRóPRIOS
Gerald L. Posner

EUROPA - O ESTADO DA UNIÃO Maurice Duverger

PASSAPORTE PARA A VIDA Yúkiko Sugihara

MANDELA MEU PRIsioNEiRo, MEU AMIGO james Gregory

A TRANSIÇÃO POLíTICA EM ESPANHA Raúl Morodo

PADRES EXORCISTAS Luís Rebelo

O PRAZER DA POUTICA Daniel Coim-Bendit

A COMPUCAÇÃO - REPENSAR A HISTóRIA DO COMUNISMO Claude Lefort

A MUNDIALIZAÇÃO DA CULTURA Jean-Pierre Wamier

EUSKADI - A GUERRA DESCONHECIDA DOS BASCOS - 2,1 edição Rui Pereira

O SUICíDIO DE CRISTO PIerre-Emmanuel Dauzat

1 O NEOLIBERALISMO E A ORDEM GLOBAL k#^ Noam. Chomsky

HISTóRIA DO PRESENTE - 2,1 ~

Tirnothy Garton Ash -72 JESUS CONTRA JESUS

Gérard Mordillat e Jérôme Pricur

ROGER GARAUDY

RELIGIOES EM GUERRA?

DEBATE DO SÉCULO

3ª edição

D. noticias

editorial

wAi v

PREFÁCIO

ACTUALIDADE DA PROFECIA

Roger Garaudy está para as sociedades ocidentais como o arcebispo brasileiro D.


Hélder Câmara para as igrejas. São amigos desde há anos. Fizeram um pacto a que se
têm mantido fiéis: para um, trata-se de reintroduzir no socialismo a dimensão
religiosa; para o outro, de redescobrir a perspectiva de libertação aberta pelo
cristianismo.

Garaudy e Hélder Câmara cumpriram nas suas próprias vidas este pacto assinado em 29
de Maio de 1967: Garaudy dá cada vez mais importância à dimensão mística da vida e
Hélder Câmara à dimensão libertadora do cristianismo. Une-os o espírito de
profecia.

O profeta é sempre o homem de um momento da história. Capta os gritos vindos do


mundo dos "condenados da terra". Denuncia as injustiças com uma indignação sagrada.
Mas também anuncia os sonhos criadores de sentido, e abre a história a um futuro
carregado de esperança.

Este livro de Roger Garaudy prolonga o anterior' com a mesma preocupação com o
destino da Humanidade, numa altura em que o mundo está dominado pelo mercado e pela
ditadura do modelo de crescimento ocidental.

Este modelo de mundialização é profundamente mortífero. Custa ao mundo uma


Hiroshima de dois em dois dias. 20% da Humanidade detêm 83% da riqueza mundial. Há
fome no Primeiro Mundo e maci-

Será que Precisamos de Deus?, Círculo de Leitores e Temas e Debates, Lisboa,


1996.

no mundo, onde dois terços dos habitantes são pobres. Nos Estados Unidos, uma
criança em cada oito sofre de fome. No Brasil, em cada noventa segundos morre uma
criança vítima da fome. Por ano quinze milhões e meio de crianças no mundo morrem
de fome ou de doenças causadas pela fome. Que Humanidade é esta, cruel e sem
piedade, "composta por bárbaros motorizados a viver na selva de uma pré-história,
onde nenhuma consciência pensa em Deus, na unidade do Universo e no seu sentido?,
pergunta Garaudy.

Existe actualmente uma grande divisão no mundo entre os que comem e os que não
comem, entre os que, com egoísmo, açambarcam para si até à saciedade os meios de
vida e os que são deixados à sua sorte, morrendo prematuramente.

Não podemos aceitar esta situação. Recusam-na todas as grandes tradições


espirituais e as grandes religiões. Porque ficam elas silenciosas e ineficazes
perante este flagelo mundial? Porque têm pactuado, ao longo da história, com os
poderes dominantes e se tornaram religiões de dominação. Trazem nelas o princípio
da libertação e da superação destas divisões desumanas. Testemunham que todos somos
feitos à imagem de Deus, que em nós insuflou o espírito e nos faz um dever de ser
um com o todo. As grandes religiões, mais que qualquer outra força histórica, podem
ajudar à criação de uma unidade dinâmica, complexa, fraterna e sinfónica do mundo.
Mas, para isso, devem libertar-se da arrogância, do íntegrismo, da ideologia tribal
e mortal do "povo escolhido" que caracteriza os dominantes.

É necessário abrirmo-nos à experiência originária de Deus, que é esperança do


sentido e se revela no acto criador do Homem, nas artes, em todas as formas de
expressão pelas quaís dá um sentido à sua própria vida e à da sociedade, e onde
percebe o sentído de todos os sentidos escondido no seio de todo o verdadeiro
encontro. É aqui que emerge o sagrado, não necessariamente ligado ao "relígíoso" ou
ao "cultural", mas a tudo o que engrandece as dimensões da vída e abre o coração a
horizontes cada vez mais vastos.

Garaudy encontra em São Paulo o gérmen de um cristianismo de dominação. É por isso


que o paulinísmo político se articula rapídamente com os poderes deste mundo e se
estrutura como religião de dominação imperial do mundo. Com erudição e com sentido
da actualidade, encontra a experiência originária de Jesus e o seu significado
libertador para toda a Humanidade. Só este cristianismo é digno de se espalhar pelo
mundo. O outro é o do Ocidente e como tal um acidente.
O cristianismo libertador encontra-se nos sábios de todas as culturas; assemelha-se
a todas as grandes tradições espirituais, que sempre abriram uma perspectiva de
presença solidária com os oprimidos e de unidade da criação na sua totalidade.

A experiência originária de Jesus actualiza-se hoje em dia com o cristianismo de


libertação na América Latina, África e Ásia, e tem a sua mais forte expressão nas
comunidades cristãs de base e na Teologia

1 . da Libertação. Segundo o autor, depende deste cristianismo a propria


sobrevivência da Humanidade.

Estamos na presença de uma obra de grande densidade, vibrante de amor e de espírito


profético.

Contém esplêndidas páginas que convidam cada uma descobrir em si o Deus que nele
habita, o poder da captar as energias cósmicas que nele vivem e da Energia
animadora de tudo. É um livro necessário para ajudar os espíritos generosos a
orientarem-se no "debate do século".

Rio de Janeiro, 15 de Agosto de 1994.

LEoNARDo BOFF

INTRODUÇÃO

RÉQUIEM POR UMA DECADÊNCIA

O mundo tem uma alma, ou seja, uma unidade e um sentido? Vivemos num "mundo"
dividido: entre o Norte e o Sul, e, tanto no

Norte como no Sul, entre aqueles que têm e aqueles que não têm. 80% dos recursos
naturais do planeta são controlados e consumidos por 20% da sua população. Os 20%
mais ricos do planeta dispõem de 83% das receitas mundiais, os 20% mais pobres, de
1,4%1.

Resultado desta divisão: morrem todos os dias 40 000 seres humanos de subnutrição
ou de fome. 0 modelo de crescimento do Ocidente custa aos países do Sul o
equivalente a uma Hiroshima de dois em dois dias.

0 fosso alarga-se: ao longo dos últimos 30 anos a distância entre os países pobres
e os países ricos passou de 1 para 30 a 1 para 1502. Esta divisão está na origem
dos nossos problemas vitais. Três gran-

des dramas afligem actualmente o mundo: a fome, o desemprego e a imigração. Trata-


se de um único problema, proveniente da exploração que deixou na falência quatro
quintos do mundo. Ora, ao mesmo tempo, além das centenas de milhões de
desempregados do "Terceiro Mundo", dos ignorados ("los olvidados"), de quem os G7
3nunca falam, contam-se nos países industrializados 25 milhões de desempregados.
"Excesso de produção", diz-se. Mas excesso de produção em relação a quê?

1 Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em 1992.


2 Ibid.

3 Grupo dos sete países mais industrializados do mundo: Alemanha, Canadá, EUA,
França, Grã-Bretanha, Itália e Japão. (X do T.)

Ao único mercado solvente. Enquanto 3 milhões de homens e de mulheres, em 5


milhares de milhões, ficaram em estado de insolvência, primeiro com as colonizações
e depois com a política neo-colonial dos dirigentes dos países mais
industrializados, os G7, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial
especulam com a dívida. Uma dívida que apareceu porque as economias dos países
dependentes foram desestruturados pelo colonialismo. Em detrimento das culturas
alimentares, foram impostas a estas economias a monocultura e a monoprodução que as
tomaram apêndices das economias da metrópole e depois, com o FMI, dos angariadores
de divisas para pagar as suas dívidas.

A imigração é o movimento irreprimível que conduz da zona da fome à zona do


desemprego os que já não podem viver na terra dos seus antepassados.

Os Estados e os partidos políticos dos países ocidentais não tratam nunca assim o
problema porque estão obcecados, há cinco séculos, pelo fantasma do crescimento,
que consiste em produzir cada vez mais e cada vez mais depressa seja o que for:
útil, inútil, prejudicial ou até mortal (como a droga e os armamentos).

Nesta perspectiva, o homem só pode conhecer uma felicidade de supermercado, ou


seja, pode ser apenas produtor (quando não está desempregado) para ser mais
consumidor.

Este "crescimento" é apresentado pelos políticos e pelos media como uma panaceia
para sair da crise e do desemprego; mas o crescimento obtido desde 1975, com o
aumento de produtividade graças ao desenvolvimento das ciências e das técnicas,
deixou de criar empregos, antes os destruindo na medida em que substitui o trabalho
do homem pelo da máquina. Em 1980, a Bélgica produzia 10 milhões de tonela~ das de
aço com 40 000 operários; em 1990, produz 12 milhões e meio, com 22 000 operários.

0 "crescímento" é impulsionado pelos ganhos de produtividade obtidos graças à


ciência e às técnicas que permitem substituir grande parte do trabalho humano por
máquinas, e, hoje em dia ainda mais, pelo desenvolvimento da ínformáfica, da
robótica, dos computadores.

10

Seria absurdo culpar as ciências e as técnicas. 0 mal vem do uso que delas se faz.

Por exemplo, desde 1970, a produtividade, graças a estas descobertas, aumentou 89%.
É uma boa hipótese para a humanidade, para lhe poupar os trabalhos mais
repetitivos. Mas é também uma desgraça ao verificar-se que, neste mesmo período, o
tempo de trabalho não diminuiu e o desemprego mais do que decuplicou. Significa
isto que o aumento da produtividade devido ao desenvolvimento das ciências e das
técnicas não serviu toda a humanidade mas apenas os proprietários dos meios de
produção.

Isso seria um beneficio para todos, se a duração da semana de trabalho fosse


indexada de acordo com a produtividade.

Seria um beneficio se este aumento do tempo de lazer não fosse recuperado por um
"mercado de lazeres" que transforma o "tempo livre" num tempo vazio, esvaziado de
humanidade pelo gênero de "divertimentos" que lhe propõe e que não favorece o
desenvolvimento fisico e cultural. Este modo de vida, em vez de ajudar o homem a
ser homem, ou seja, um criador, tende, em virtude do sistema de mercado, a fazer
dele um desempregado e, na melhor das hipóteses, um consumidor.

0 problema do desemprego não pode ser resolvido no quadro do "Ocidente". Só o será


quando se puserem em primeiro plano as necessidades fundamentais do "Terceíro
Mundo", isto é, dos dois terços do Mundo cuja satisfação, só ela, pode criar as
saídas capazes de reabsorver o desemprego de uns e a fome de outros. Mesmo dentro
dos límites ideológicos do "mercado", a única solução possível é a de tomar
solventes aqueles que o não estão, deixando de os sangrar até à última gota através
da dívida e das trocas desiguais.

Não se pode pôr assim a questão quando se está limitado pela perspectiva de uma
"economía de mercado". A crítica da "economía de mercado" não signífica que se deva
substituir o mercado por uma planificação estatal omnipotente.

Aquilo a que actualmente chamamos "economía de mercado" não é uma economia em que
as necessidades se sobrepõem ao mercado e
11

em que a iniciativa individual visa satisfazer essas necessidades, o que


reconduziria o mercado às suas funções necessárias e salutares.

A "economia de mercado", na sua forma actual, é uma economia em que o mercado é o


único regulador das relações sociais, em que tudo se compra e se vende, incluindo o
homem e o seu trabalho. Produz-se então aquilo a que Galbraith chamava a "inversão
da fileira": já não se produz para responder a necessidades, mas criam-se
necessidades (artificiais ou mesmo perversas) que possibilitam uma produção em
expansão constante.

Uma tal economia assenta numa concepção do homem reduzido às simples funções de
produtor e consumidor, movido apenas pelo seu interesse. Cada um é, assim,
concorrente de todos os outros. Na fase ascendente do capitalismo, o filósofo
inglês Hobbes dava esta definição lapidar: "0 homem é um lobo do homem."

A única questão decisiva, a da unidade do mundo e das finalidades últimas do homem,


não pode ser colocada pelos economistas e políticos que aceitam o postulado de
Hobbes, fonte de todas as violências, tanto a nível dos indivíduos como das nações.

Estes problemas económicos e políticos assentam, definitivamente, num problema de


finalidade, ou seja, num problema religioso.

Porque é que as religiões institucionais não têm, então, uma resposta? Nem a Igreja
dominante dos dominantes - a Igreja Católica

nem a religião dominante dos dominados - o Islão.

Porque tanto uma como outra se aliaram ao poder e à riqueza e não poem em causa os
respectivos postulados.

Ambas têm produzido, desde há séculos, uma "teologia da dominação", apresentando


Deus como uma potência exterior e superior, que criou de uma vez por todas o homem,
o mundo e os reis que os devem governar. "Toda a autoridade foi instituída por
Deus. Portanto, revoltar-se contra ela é revoltar-se contra Deus!", escrevia São
Paulo4 , ape-

4 p

,M 13, 1.

Todas as passagens do Antigo e Novo Testamento citadas nesta obra são retiradas da
mais recente tradução interconfessional para português corrente, Bíblia Sagrada
- A Boa Nova, Difusora Bíblica, 1993. (N. do T.)

12

1 0 Papa João Paulo II enviou-lhe, em 30 de Março de 1994, uma "bênção apostélica


especial".

13

nas alguns anos depois da morte de Jesus, cuja vida, no entanto, punha toda ela em
causa a ordem estabelecida.

De igual forma, alguns anos após a morte do profeta Maomé, quando os príncipes
omíadas usaram e abusaram do poder e da riqueza, e quando devotos muçulmanos, que
tinham vivido a comunidade de Medina, do Profeta ou dos "califas bem orientados",
protestavam contra esta corrupção da mensagem, respondia-lhes a autoridade: "Se
tendes este príncipe é porque assim o quis Deus. Deveis por isso obedecer-lhe".

Apesar desta hegemonia milenar de uma "teologia da dominação", milhões de cristãos


viveram, à maneira de São Francisco de Assis ou das actuais "teologias da
libertação", a mensagem libertadora de Jesus anunciada prioritariamente aos pobres.
No tempo do grande papa João XX111 e do Concílio do Vaticano 11, levantou-se a
aurora dourada de uma grande esperança - a de uma Igreja aberta ao mundo e às suas
angústias, de um diálogo com a fé de todos os homens.

.1 Mas o peso da tradição imperial romana fechou este parêntesis e

restaurou o integrismo tradicional da teologia da dominação contra as

r teologias da libertação. Condenando nas palavras as "idolatrias" do

poder e do dinheiro, mas pactuando na prática com os poderes, mesmo com poderes
criminosos como o de PinochetI ou da sanguinolenta ditadura militar do Haiti (que
só foi reconhecida oficialmente pelo Vaticano) contra o padre Aristide, acusado de
simpatias pela teologia

da libertação.

A mesma conivência com os poderes manifestou-se durante séculos, e até à


actualidade, no Islão. Desde a corrupta ditadura dos Omíadas até à ditadura, ainda
mais corrupta, do actual feudalismo saudita, pretendendo-se "protectora dos lugares
santos", esta conivência apela, pagando-a, à ocupação pela coligação colonialista
dirigida pelos Estados Unidos. É a política característica de um Estado que se diz
muçulmano e que deposita milhares de milhões nos bancos america-

nos, praticando assim algo que o Alcorão denuncia - a riba, isto é, o lucro sem
trabalho.

É impressionante o paralelismo entre as duas "teologias da dominação": a traição


fundamental tenta mascarar-se de rigorosismo ritualista. Os piores vigaristas do
sistema real, os supremos ladrões, invocam o Alcorão para cortar as mãos ao pequeno
ladrão!

Não estarão a unidade do mundo e a recusa da acumulação de riqueza, num pólo da


sociedade, e a miséria, noutro pólo, no centro da revelação que receberam, para que
o mundo seja uno como o Deus que o criou?

Tudo isto esconde a realidade central e o drama do nosso tempo: vivemos a mais
cruel das guerras religiosas.

Não é uma guerra entre católicos e protestantes, muçulmanos e cristãos, mas entre
uma religião que não ousa dizer o seu nome e que, de facto, rege actualmente todas
as relações sociais e todas as relações internacionais: o monoteísmo de mercado,
que afecta todas as idolatrias.

A nossa época não é ateia - é politeísta. 0 monoteísmo de mercado gera o culto de


vários ídolos: dinheiro, poder, nacionalismos, integrismos, Contra este monoteísmo,
hoje em dia todo-poderoso, a missão

mais urgente é a de reunir todos aqueles para quem a vida tem um sentido, e que têm
consciência da sua responsabilidade pessoal para o descobrir e cumprir.

Um sentido outro que não o de produzir e consumir cada vez mais, numa vida sem
sentido cujo símbolo parece ser uma pista de automóveis, em que andamos cada vez
mais depressa sem chegar a lado nenhum e em que nos espera a morte atrás de cada
curva.

A vida só pode ter sentido se o mundo for um; não o pode ter se for de tal forma
que alguns só podem ficar cada vez mais ricos se outros ficarem cada vez mais
pobres, como no sistemdactual. A divisão entre Norte e Sul é actualmente a mais
dramática, e não pára de se agravar. Só pode levar a explosões, acabando num
suicídio planetário, mas não é a única: o presidente Clinton, logo que subiu ao
poder, reconheceu que 1% dos americanos detém 70% da riqueza nacional. Pertencem a
este 1% os heróis de "Dallas" e outras ficções, de quem se apregoam
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diariamente pelo mundo as sórdidas e fulgurantes aventuras, como se representassem


a América inteira, enquanto 35 milhões de americanos vivem aquém do "limiar" de
pobreza.

A Organização das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) diz-nos que em 1994, nos
Estados Unidos, uma em cada oito crianças não mata a fome, e que, no mesmo ano, em
todo o mundo, quinze milhões e meio de crianças morrem de fome ou subnutrição.

É este o "fim da história", a sua conclusão gloriosa? Não nos revelará esta
crescente divisão do mundo que ainda somos uns bárbaros motorizados a viver na
seiva de uma pré-história onde nenhuma consciência pensa em Deus, na unidade do
Universo e no seu sentido?

Nenhuma sabedoria ou religião pode aceitar esta divisão do mundo e excluir três
quintos da sua população do direito a viver humanamente. É este o "homem feito à
imagem de Deus", como diz a Bíblia?

"0 homem a quem Deus insuflou o seu espírito", como diz o Alcorão? É este o homem
de todas as sabedorias, que não usa o nome de Deus mas do Uno e do Todo para
designar as mesmas exigências?

"Ser Uno com o Todo", ensina o taoísmo chinês com Lao Tse. "Tu és Isto", dizem os
Upanixadas da índia, ensinando ao homem, há três mil anos, que o que nele há de
mais íntimo e mais pessoal é o movimento único da vida e a força que anima todos os
seres. A esta força, co-extensiva à vida, chamaram Deus as religiões
tradicionalmente animistas de África ou dos ameríndios, o mesmo Deus que Santo
Agostinho descobria como "mais interior a si que ele próprio".

Na charneira do Oriente e do Ocidente, Heraclito, seis séculos antes da nossa era,


formulava esta lei universal e eterna: "Tudo é um. A lei da vida é realizar a
harmonia do Uno." À escala dos milénios, como escrevia há 20 anos sobre as
pretensões do Ocidente ser o povo escolhido, encarregado de "civilizar" o mund06,
"o Ocidente é um acidente."

6R,' GáMÚdy 'Pobú ühDiakgue dês CA4fisatioüs; Denõel, 1977.


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As actuais divisões e desintegração do tecido social são tanto mais revoltantes


quanto as ciências e as técnicas conseguiram realizar hoje, no mundo inteiro, uma
unidade de facto: militarmente é possível, com os mísseis e as armas nucleares,
atingir qualquer alvo a partir de qualquer base; economicamente, um crash monetário
em qualquer bolsa de valores provoca crise e desemprego em todo o lado; do ponto de
vista cultural, a televisão e as técnicas de imagem levam cada canto do planeta a
todos os outros, com o mais rico e o mais forte ostentando a maior selvajaria.

Como passar destapassiva unidade do caos e da barbárie a uma unidade realmente


desejada que sirva ao desenvolvimento do homem e de todos os homens? Ou, por outras
palavras, como passar dafalta de sentido ao sentido? Da decadência ao renascer? É
este o debate do século.

Vivemos aquilo a que os teólogos chamam um kairós, ou seja, um momento histórico de


crise, de questionamento e de decisão inelutável. A condição primordial de qualquer
solução para este problema único e vital é a de viver este mundo na sua unidade.

Não se trata de uma unidade hegemónica, imperial, de uma unidade de dominação, mas
sim de uma unidade sinfónica a que cada povo trará a contribuição do seu trabalho,
cultura e fé, para que todas as crianças do mundo tenham todas as possibilidades
económicas, políticas e espirituais para desenvolver em pleno todo o potencial que
trazem em si.

São estes os fins "penúltimos" que todos os homens de fé (qualquer que seja a sua
fé), para quem a vida só é vida se tiver um sentido, podem e devem procurar e
atingir juntos.

0 principal obstáculo para este objectivo é, actualmente, a impostura do


"liberalismo económico", que se pretende identificar com a liberdade humana e com a
democracia, quando é o oposto: a "liberdade" dos mais ricos e mais fortes para
devorarem os mais pobres e os mais fracos.

Em nome deste "liberalismo" confundido com a liberdade cometem-se diariamente as


piores extorsões.

Na época de progresso do capitalismo industrial, já o padre Lacordaire referia:


"Entre o forte e o fraco, é a liberdade que oprime."

16

É este gênero de "liberdade" que os dirigentes dos Estados Unidos querem espalhar
pelo mundo inteiro. Dizia o presidente George Bush: "Temos de instituir um mercado
único do Alasca à Terra do Fogo." Acrescentava o seu secretário de Estado: "Temos
de criar um mercado
6nico de Vancouver a Vladivostok.>>

0 problema assim colocado é um problema económico, político e religioso,


indivisivelmente: deixaremos cruxificar a humanidade nesta cruz de ouro?

É este o debate do século.

17

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antes dele tiveram a revelação. "Consulta os nossos profetas que antes de ti


enviámos" (XLIII, 45). Isto repete-se mais três vezes (x, 94; xvi, 43; XX1, 7), com
a mesma fórmula: "Os profetas que antes de ti enviámos."

Deus ordena, no Alcorão, que se honrem os profetas dos judeus e o Messias dos
cristãos. "Dizei: cremos em Deus, no Deus que nos foi revelado, no que foi revelado
a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Moisés, a Jesus e no que foi concedido aos profetas
da parte do seu Senhor. Não os distinguimos em nada" (11, 136; 111, 84).

E mais: "São ímpios os que quiserem estabelecer uma distinção entre Deus e os seus
profetas, afirmando: Cremos em alguns deles, não cremos noutros" (iv, 150).

Portanto, acalma-te Pierre: os integristas que me quiserem cortar o pescoço por


causa desta tradução deveriam antes mutilar o Alcorão!

Outros perguntaram-me: como pode um muçulmano falar assim de Jesus?

Dou novamente a palavra ao Alcorão, onde se fala melhor de Jesus do que do próprio
Maorné. Primeiro, reconhecendo-lhe um nascimento sobrenatural: "Maria conservou a
sua virgindade. Insuflámos nela o nosso Espírito e fizemos d'Ela e de seu Filho um
sinal para o universo" (xxi, 9 1).

Assim: "Cristo, Jesus, filho de Maria, é mensageiro de Deus. É o seu Verbo


depositado em Maria por Deus, e é Espírito que d'Ele emana". (iv, 172)

Quando Jesus morre, diz-lhe Deus: "Chamo-te a Mim e ergo-te até Mim" (111, 55).
Isto volta a repetir-se duas vezes. (iv, 158 e v, 11). No Alcorão, atribuem-se,
assim, a Jesus e a mais ninguém, nem

mesmo a Maomé, três títulos específicos: é designado "Messias", "Verbo de Deus" e


"Espírito" de Deus.

Desde já podemos ver como são vãs as querelas teológicas que alimentaram durante
séculos polémicas entre "mouriscos e cristãos", como diz Cardaillac1.

' Louis Cardaillac, Morisques et Chrétiens, Klincksieck, 1977.

20

Não é honesto acusar a fé cristã de "triteísmo", de ser a fé em "três deuses",


ainda que, graças à sua ininteligibilidade, as fórmulas helenizantes sobre a
Trindade, no concílio de Niceia, se prestem a variadas confusões e gerem diversas
"heresias".

0 Alcorão proclama com força o monoteísmo: "Deus é Uno!... Não cria nada; não é
criado. Nada é como Ele" (cxii, 1-4).

0 cristianismo não diz o contrário. 0 concílio de Latrão (1215), o mesmo que


condenou a concepção de Joachim de Flore sobre a Trindade, afirma textualmente que
"a soberana realidade (summa res) é simultaneamente Pai, Filho e Espírito Santo;
esta realidade não cria, não é criada, só de si própria provém".

0 texto latino é exactamente igual ao do Alcorão: "]Von est generans, neque genita,
nequeprocedens." Não se põe de maneira nenhuma em causa a unidade divina, mas
simplesmente a sua complexidade, que não se pode reduzir em conceitos à maneira dos
gregos.

Outro falsa discussão, também criada pela argúcia dos teólogos e não pelos
Evangelhos ou pelo Alcorão, é a da divindade de Jesus. Diz o Alcorão: "Perante
Deus, Jesus é como Adão; Deus criou-O

do pó. E disse depois: Sê, e Ele foi" (111, 59). Como Adão, Jesus é assim
directamente uma criatura de Deus (o próprio Paulo lhe chama "Novo Adão") (Rm. 5,
15; 1 Cor. 15, 45; 2 Cor. 11, 3). A palavra árabe para "disse" é a que designa "o
Verbo de Deus". Este texto, datado do ano x da Hégira, faz parte de um debate entre
Maomé e os cristãos de Najran sobre a divindade de Jesus, que os últimos
consideravam o "Filho de Deus". 0 Alcorão, vimos, diz o mesmo, fazendo de Jesus o
"Verbo" de Deus, o seu "Espírito" e o seu "Messias".

E os Evangelhos dizem outra coisa? Jesus nunca diz: "Sou Deus". É o Filho,
completamente submetido a Deus (submetido a Deus é a única tradução da palavra
"Islão"). Jesus diz: "Sou Filho de Deus" (Mt. 27, 43). É enviado por Deus
(parábolas de Marcos 12, 6 e de Lc. 13). Mas em nenhum instante Jesus se identifica
com Deus. Foram os judeus, conta-nos João no seu Evangelho, que criaram esta
confusão para o condenar por blasfémia - tendo Jesus dito, depois de violar a lei
do sabbat: "0 meu Pai está sempre a trabalhar e eu faço o mesmo"

21
(Jo. 5, 17), os judeus parecem acreditar que se identificava com Deus (e para eles
o Messias não é Deus mas sim um enviado d'Ele). "Por causa destas palavras, as
autoridades judaicas procuravam cada vez mais dar-lhe a morte. É que ele não só
transgredia a lei do sabbat, mas até se fazia igual a Deus, ao afirmar que Deus era
o seu Pai" (Jo. 5, 18). Mas Jesus rapidamente os corrige, demonstrando que não é
igual a Deus, antes pelo contrário, Lhe obedece. "Então Jesus respondeu-lhes:
Fiquem sabendo que o Filho nada pode fazer só por sL Faz apenas aquilo que vêfazer
a seu Pai. Faz o mesmo que o Pai. 0 Pai ama o Filho e, por isso, mostra-lhe tudo
quanto faz. Vai confiar-lhe obras ainda maiores do que estas, de tal modo que vocês
vão ficar admirados" (Jo. 5, 19-20).

Jesus, ao dizer no Evangelho de São João "Eu e o Pai somos um só" (Jo. 10, 30),
esclarece imediatamente que toma visível, pelos seus gestos e palavras, o Deus
escondido. Vê-lo é ver o Deus que o enviou: "E quem me vê a mim, ve aquele que me
enviou" (Jo. 12, 45). Acrescenta: "É que não falo por minha autoridade. 0 Pai que
me enviou deu-me ordens sobre o que devia dizer e ensinar" (Jo. 12, 49).

Jesus cumpre a vontade do Pai, distinguindo-a sempre da sua própria, até à morte:
"Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mt. 27, 46 e Mc. 15, 34). "Pai, se
for do teu agrado, livra-me deste cálice de amargura. No entanto, não se faça a
minha vontade mas sim a tua" (U. 22,42). "Eu nada posso fazer só por mim. Julgo
apenas segundo aquilo que o Pai me diz e o meu julgamento é justo, porque não
procuro fazer a minha vontade, mas a do Pai que me enviou" (Jo. 5, 30).

Onde pretende então Jesus ser Deus, ser seu igual? Mesmo Paulo, que frequentemente
reconhece em Jesus os atributos dos antigos deuses de poder, como a criação ou o
comando, proclama, com o seu sentido da "hierarquia", da "obediência" e do "chefe":
"é Cristo quem tem autoridade sobre todos os homens, tal como o homem tem
autoridade sobre a mulher, e Deus sobre Cristo" (1 Cor. 11, 3).

E mais ainda, com que argúcias nos vamos debater para interpretar as palavras de
Paulo em CI. 2, 9: "Porque Deus está totalmente presente em Cristo"? Significará
isto, como diz Santo Irineu, que "o Filho toma visível tudo o que podemos ver do
Deus invisível" (Adversus Haereses 4, 6, 6)?
22

Ou então, reconstrui-Lo-emos a partir d'Ele, (Ac. 28, 23) esquecendo o que é


"visível", ou seja, os gestos e as acções de Jesus (que Paulo não evoca nunca). "0
que vos digo não é mais do que aquilo que os profetas de Moisés disseram" (Ac. 26,
22). "Sirvo o Deus dos meus antepassados" (Ac. 24, 14). "Falou [com os judeus]
sobre a Sagrada Escrítura. Ia-lhes explicando que o Messias tinha de sofrer e que,
depois de morrer, tinha de ressuscitar. E dizia-lhes: "Este Jesus que vos estou a
anunciar é o Messias" (Ac. 17, 2-3). Tais fórmulas eliminam aquilo que é único e
radicalmente novo nesta mensagem: Jesus revela-nos um Deus completamente diferente
dos dos judeus, dos gregos ou dos romanos.

Acrescente-se, por fim, que a expressão "Filho de Deus" não se aplica, nos
Evangelhos, apenas a Jesus.

Os padres da Igreja, antes da teologia escolástica que complicou as coisas mais


simples, resumiram o ensinamento evangélico: "Cristo quis ser aquilo que é o Homem,
para que o Homem pudesse ser aquilo que Cristo é" (Os ídolos não são deuses, 11, 5,
São Cipriano).

É o que dizem os Evangelhos que, felizmente, não foram escritos nem por filósofos
gregos, nem por teólogos, nem por linguistas, mas por pessoas simples, como o foram
os profetas de Deus - do pastor Amos ao operário Jesus ou a Maorné, caravaneiro
iletrado. Para todos eles era claro que qualquer filho do homem é filho de Deus.
Neste aspecto os Evangelhos não deixam dúvidas: "Porque Deus chamará seus filhos"
(Mt. 5, 9; ML 5, 45 e Lc. 6, 3 5) aos que ouvirem o seu chamamento: "Felizes os que
procuram a paz entre os homens" (Mt. 5, 9).

Escreve Paulo: "Pois vocês são todos filhos de Deus" (GI. 3, 26).

A evocação corânica de Jesus está na origem de um profundo reencontro espiritual do


islamismo e do cristianismo, nomeadamente com os grandes místicos muçulmanos (os
sufis) que exprimem, frequentemente em grandes poemas, as dimensões de
interioridade e de amor do Islão.

No livro L'amour de Dieu chez Ghazali, une philosophie de Paniour à Bagdad au début
du XII siécle', Siative lembra o princípio

Vrin, 1936.

23

fundamental da concepção de amor para Ghazali: "É Deus que amamos através de cada
objecto amadol."

Esta concepção de amor provém daquela que é a ideia-chave da visão islâmica: o


tawhid, a tomada de consciência pelo homem de "que só existe através de Deus e que
só age através de DeuS4", o que acarreta, como no cristianismo, a
renúncia ao "pequeno eu" para ceder todo o espaço, em nós, para Deus, para o Uno e
para o Todo.

É este o fundamento da unidade profunda entre a mística cristã e o "sufismo"


muçulmano, que verá o seu apogeu com a fratemidade espiritual, separada por três
séculos, entre lbn Arabi e São João da Cruz'.

Um hadithl do Profeta, atestado por Boukhari, Muslim e Abu Dawud, relata as


seguintes palavras de Maorné: "Os profetas são irmãos com a mesma origem. Têm mães
diferentes. Mas a sua religião (din) é uma só. Aquele de quem estou mais próximo é
de Jesus, filho de Maria, pois não existiu nenhum outro profeta entre nós dois."

Para os sufis, Jesus é o próprio símbolo da identidade do homem e de Deus. 0


revelador do Uno e do Todo. E do amor que é a expressão dual da sua unidade. "A
dualidade essencial contida na unidade", diz lbn Arabi... Attar atribui a Hallaj
crucificado este poema:

Como Jesus, para revelar o espírito do Todo...

eu disse: Eu sou a verdade (ana'l Haqq), a essência do Todo... Como Jesus, portador
do Evangelho do amor,

realizei, no postibulo, o amor mais elevado.

IP. 151.
4P.262.
1 Ver o grande livro do padre Miguel Asin. Palacios sobre lbn Arabi, LIslam

Christianisé, Tredaniel, 1982.

Quanto ao sufi El Hallaj, ver os quatro volumes de Louis Massigno, La Passion de


Hallaj, Gallimard, 1975, e a obra de Henri Corbin, nomeadamente os seus quatro
volumes LIslam Iranien, Gallimard, 1972.

6Hadith são dos textos islâmicos mais importantes, relatando tradições relativas a
Maomé (análogos, por exemplo, ao Novo Testamento). Cada hadith é transmitido e
atestado por uma cadeia de relatores, e, para ser considerado autêntico, o hadith
deve identificar todos estes relatores, desde o Profeta aos testemunhos em primeira
mão e aos que o escreveram. (N. do T.)

24

Para os sufis a mensagem central de Jesus, e que fazem sua, é o amor na sua forma
mais elevada: o amor que provém de Deus e que a Ele regressa, como toda a
realidade.

Shabestari (t 1320), no seu Roseiral dos Mistérios, relacionando, na imagem de


Cristo, afana (extinção do "eu", para os sufis) com a iluminação, escreve: "0 fim
do cristianismo é o de nos libertar do nosso eu' e de nos libertar de uma prática
mecânica da lei.

Jesus demontrou esta verdade com a sua vida...

Se vos purificardes do vosso 'eu' inferior, podeis descobrir a presença do Senhor,


divino e puro...

Aquele que se libertar do seu 'eu' fica como um anjo e, como Jesus, Espírito de
Deus, eleva-se ao quarto céu."

Ghazali, evocando a cura do leproso por Jesus, acentua aquilo que Jesus mais ama -
a fé, que encontra, até nos piores momentos, a alegria de conhecer Deus (Ihya, IV,
36, 16).

Mesmo após a experiência das Cruzadas, onde testemunhou a profunda perversão do


cristianismo oficial (1207-1273), escreve Rourni: "Juntavam-se pessoas de todos os
lados - cegos, coxos, paralíticos, esfarrapados à porta de Jesus, pela manhã, para
que o seu sopro os curasse dos seus males... também tu... ganhaste a saúde graças a
estes reis da religião7."

"0 sopro de Jesus faz-te renascer, dá-te beleza e abençoa-tel." "Jesus baniu a
mortel."

"Jesus... subiu ao céu, pois era da mesma natureza que os anjos10." "Jesus, filho
de Maria, atinge o cume do quarto céu11."

"A Alma universal uniu-se à alma parcial. A alma individual ficou grávida, como
Maria, de um Messias que eleva os corações a Deus. 12" lbn Arabi chama a Jesus "o
selo da santidade":

"Sim, o selo dos santos é um apóstolo que não terá igual no mundo.

7Maffinavi, 111, 300-309.


8 1, 1910-1911.

9 111, 4258.
10 iv, 2672.
920.
1183-1186.

25

É Espírito e é Filho do Espírito e de Maria, está num nível que ninguém poderá
atingir."

Referindo-se a outro místico, Abu Yãzid, diz-nos: "A sua contemplação é crísticalI,
porque recebeu o sopro que cria a vida."

A "parusia" de Jesus é familiar aos sufis:

"Quando Jesus regressar, no fim dos tempos, confirmará a lei de Maoiné e restaurá-
la-á... pois é a lei última e o seu profeta é o selo dos Profetas. Jesus será um
árbitro justo, pois nessa altura já não existirão sultões muçulmanos, nem ímãs, nem
qadi, nem muphti... Os crentes juntar-se-ão à sua volta e proclarná-lo-ão seujuiz,
pois nenhum de entre eles será mais digno."

"Deus ergueu-o até Si, para o fazer descer no fim dos tempos como selo dos santos,
aplicando a justiça segundo a lei de Maorné11."

As polémicas habituais há vários séculos entre "mouriscos e cristãosll" têm


essencialmente a ver com a Encamação e a Trindade.

Já tratámos das questões da Encamação e divindade de Jesus. Quanto à Trindade,


aquilo que os sufis rejeitam é a sua formulação grega, dada em Niceia, a de
houmoousios, que não existe no Evangelho e só faz sentido em função das categorias
gregas de "substância" (ousia).

A experiência crística do amor, já o referimos, não pode ser expressa na língua e


cultura helénicas, que lhe são totalmente estranhas. Rouzbelian de Chiraz (1121-
1209), suti persa, exprime a "Trindade" na sua forma universal: "Já antes de
existir o mundo e o movimento incessante do mundo, o Ser divino é ele próprio o
amor, o amante e o amado 16. ')'

A gnose (marifa) é o conhecimento da libertação (Mukashafa). Quando se atinge esse


conhecimento, advém necessariamente o amor (Mahabba) (Ghazali, IV, 34, 6, p. 107).

Shabestari evoca o diálogo de dois amantes, um deles muçulmano e o outro cristão:

"Sendo Deus único, como lhe podemos chamar ao mesmo tempo Pai, Filho e Espírito
Santo?

" Sagesse, Le Verbe de Jésus, p. 130.

14 lbn Arabi, Futuhat IV, 215 e também 1, 569 li, 139.


11 Mouriques et Chrétiens, Mincksieck, 1977.

16 Jasmin des FiMes dAmour vil, 197.

26

- A Beleza eterna reflectiu em três espelhos o Seu rosto deslumbrante ... 11"

Apesar de todos os iconoclasmos, qualquer coisa pode revelar esta beleza.

Aos maravilhosos tratados de São João de Damasco sobre o valor revelador do ícone,
responde a interrogação de Shabestari nas últimas páginas do seu Roseiral dos
Mistérios: "Que luz ilumina os ícones dos cristãos para que tal brilho emane dos
seus rostos?"

Ibn Arabi leva até ao limite esta consciência da continuidade da mensagem de


Abraão: "0 cristão e aquele que professa uma religião revelada não mudam de
religião se se voltarem para o Islão11."

Escreve também num poerna19:


0 meu coração pode acolher a fé de todos os homens, Ermitério cristão ou templo dos
ícones,

Tábua da Tora ou versículo do Alcorão.

Seguirei qualquer pista por onde o amor leve a sua caravana: o amor é o único
caminho da fé.

0 islaMiSM020, doença do Islão

0 islamismo é uma doença do Islão, tal como o integrismo é uma doença de todas as
religiões.

0 integrismo é a pretensão de se possuir a verdade absoluta e, por conseguinte, de


possuir não só o direito mas também o dever de a impor a todos, sem olhar a meios.
0 primeiro integrismo é o colonialismo ocidental. Para justificar as suas invasões
e conquistas, começou por

` Roseiral dos Mistérios.


11 Futuhat iv, 166.

19 "Le dit de l'amour passionné".

21 Em português corrente, o conceito islamismo refere-se à religião muçulmana;


aqui, islamismo refere-se mais estritamente à ideologia fundamentalista ou
integrista do Islão. (N. do T.)

27

invocar aquilo que pensava ser privilégio de povo eleito: a expansão universal da
sua religião, considerando-a superior a todas. Depois, com o retrocesso da Igreja,
continuou a considerar-se como centro do mundo e como único criador de valores e,
desde o fim do século xix, quis impor ao mundo a sua cultura técnica e mercantil, a
que chamou "modernidade".

Todos os outros fundamentalismos, da "revolução cultural chinesa" ao "islamismo",


são reacções a este integrismo colonialista - como defesa contra a dependência,
para manter uma identidade, ainda que arcaica e mitológica, em oposição à cultura
importada, para "voltar às fontes", a uma longínqua idade de ouro, algures no
passado.

À pretensão ocidental de ser a cultura e não uma cultura, entre outras, opõe-se
então o mito de uma "islamização" que se quer exclusiva, esquecendo o carácter
universal da "entrega a Deus" (islam), em vez de procurar uma verdadeira
universalização da cultura que chegue a uma unidade não hegemónica, colonial ou
imperial, mas antes sinfónica, graças ao contributo de cada cultura para a cultura
universal.

Seria errado ver o islamismo simplesmente como uma forma recente, invariavelmente
nefasta, nascida apenas do falhanço dos projectos nacionalistas ou socialistas no
mundo muçulmano.

Tal como seria falso reduzi-lo às influências externas (que terão a sua importância
para mudar o curso do movimento, mas não estão na sua origem) como se exemplifica
com a revolução iraniana ou o financiamento saudita (suspenso durante a Guerra do
Golfo).

E, depois da explosão social de Outubro de 1988, é igualmente falso ver no


islamismo apenas uma reacção aos rigores políticos e económicos do FMI, como
aconteceu noutros continentes, de Caracas às Filipinas.

As raizes profundas dos fenômenos actuais remontam à segunda metade do século xix,
quando nasceu o movimento AI Nahda (o despertar do Islão), com pensadores como AI
Afghani (t 1897) que, significativamente, manteve em 1883 uma apaixonada
controvérsia com Ernest Renan, da Sorbonne ao Journal des débats; ou Mohammed Abdou
(t 1905), depois Rachid Rida (t 1935), na índia, Hassan AI
28

Banna (t 1949), Moahammed Iqbal (t 1938), na índia e na Argélia, Malek Bennabi (t


1973) e Cheikh Ibn Badis (t 1940).

As principais teses desta corrente de pensadores são claras. A partir da obra do


pioneiro, AI Afghani, o problema inicial é suscitado simultaneamente pela
decadência política do Império Otomano e sua decadência espiritual, que se traduz
numa interpretação arcaica da legislação muçulmana e pela expansão do colonialismo
ocidental, que acelera a desintegração política e a degradação intelectual.

AI Afghani abriu caminho para uma investigação que irá durar um século e que se
desenvolverá em tomo de dois eixos principais:

1.o Qualquer renascimento simultaneamente político e espiritual do Islão exige uma


nova leitura do Alcorão liberta dos comentários áridos e enfadonhos dos ulemas
oficiais.

2.' A questão da "modemidade" não deve ser tratada a partir da perspectiva de uma
ideologia ocidental dita "moderna", que exclua o problema do fins últimos do homem
e reduza a razão à busca dos meios técnicos de poder e riqueza, princípio do seu
colonialismo, do militar ao económico e ao cultural.

É esta a principal inspiração que bastantes vicissitudes e perversões irá conhecer


passado um século.

Tudo isto parte do tawhid, principio fundamental do Islão, isto é, do


reconhecimento da unidade não só de Deus, mas de toda a realidade, incluindo a
comunidade internacional dos homens. Aquilo que é característico do Islão, escreve
AI Afghani, é dar umfim a toda a acção num mundo que o racionalismo mutilado
ocidental condena à falta de sentido pela sua religião dos meios.

0 tawhid (doutrina da unidade) é a base de todo o Pensamento crítico do Islão vivo,


incluindo tudo o que põe em causa a sua própria tradição, que se vai fossilizando.
Em resposta a Emest Renan (Journal des débats, 18 de Maio de 1883), AI Afghani
mostra como, entre meados do século viii e meados do século xiii, o Islão deu um
incentivo tão grande às ciências que se toma professor do mundo, dos Himaiaias

aos Pirenéus. Entrou em decadência quando, apagando-se o espírito crítico


(ijtihad), passou a reinar o dogrnatismo dos intérpretes oficiais da lei, de que
todos os despotismos gostam.

Com o mesmo espírito, no livro Reconstruire la pensée religieuse de VIslam, escreve


Mohammed lqbal que "o ijtihad é o principio do movimento no Islão"". 0 Alcorão,
diz, "não é um código jurídico [ ... ], o seu objectivo é o de fazer despertar
no homem uma consciência mais elevada das suas relações com Deus e com o
Universo22". "Penso que se justifica plenamente a pretensão de reinterpretar
os princípios jurídicos fundamentais à luz das diferentes condições da vida
moderna.
0 Alcorão ensina que a vida é criação perpétua, o que exige que cada geração,
orientada, mas não estorvada, pela obra dos antepassados, tenha o direito de
resolver os seus próprios problernaS23."
0 principal erro do Islão, fatal para o seu futuro, é justamente o de recusar este
princípio de movimento e, por isto mesmo, de se tornar incapaz para resolver os
problemas do seu tempo.

Aquilo a que se convencionou chamar "islamismo" é uma doença do Islão confundindo a


sharia, via moral, eterna e universal, aberta, em nome de Deus, por todos os
profetas, com a legislação (fíqh) que pode inspirar em cada época para resolver os
problemas dessa época.

Esta doença consiste, por exemplo, em querer aplicar um código penal do século vii
(como as mãos cortadas por roubo ou a fiagelação por adultério - os "juristas"
acrescentam, contra o Alcorão e em nome de uma "tradição", o apedrejamento até à
morte!). Consiste em querer aplicar a casamentos, divórcios e heranças o direito
civil e o estatuto pessoal correspondentes às condições históricas do século vii.

A pretensão de "aplicar a sharia" confundindo a sharia divina, tal como é definida


no Alcorão, com ofiqh, isto é, com as aplicações humanas que foram experimentadas
ao longo da História, perverte, ainda hoje, o "islamismo". Com toda a razão na
recusa da decadência do Ocidente e das hipocrisias do seu "direito", na recusa de
todas as

21 p. 16 1.
22 p. 179.
23 p. 182.

30

sequelas do colonialismo e da "colaboração" com o "monoteísmo do mercado", que os


Estados Unidos e seus vassalos ocidentais pretendem impor através dos diktats do
FM1, o "islamismo" vê-se imobilizado quando se trata de construir o futuro. A
sharia corânica, no entanto, fornece os princípios orientadores para procurar os
meios de uma outra "modernidade" que não a ocidental.

Mas esta procura, de que deram exemplo os grandes juristas do passado, fazendo o
esforço necessário (ijtíhad) para resolver os problemas da altura, é da
responsabilidade pessoal de cada um de nós, para contribuir para a solução dos
problemas do nosso tempo.

0 próprio Alcorão ensina a distinguir a "via" divina eterna (shari'a) que ocupa
5800 versículos em 6000, dos 200 versículos consagrados a prescrições legislativas
históricas, que exprimiam as condições da época.

Não as podemos pôr no mesmo nível, a pretexto de estarem ambas representadas no


Alcorão. A historicidade desta ou daquela prescrição tão-pouco exclui a
transcendência do princípio.

Pode acontecer que, respondendo a situações novas, um versículo seja anulado e


substituído por outro: "Sempre que anularmos um versículo ou sempre que o fizermos
esquecer, substituímo-lo por outro melhor ou semelhante" (li, 40 e xvi, 101).

Pode acontecer uma substituição deste gênero até a nível da oração. 0 exemplo mais
típico é o da mudança da Qibla, da direcção do corpo para orar. Na primeira
mesquita construída pelo profeta Maorné, em Medina, em 622, a Qibla estava virada
para Jerusalém; depois, uma passagem do Alcorão ordena a mudança e explica-a (li,
142 a 150).

Neste caso, para além da modificação histórica, devida a uma alteração das relações
com a comunidade judaica, o sentido e o objectivo são os mesmos: trata-se de
marcar, através da orientação da oração, simultaneamente a unidade da fé abraâníca
e a unidade da Umma, da comunidade muçulmana. Nas duas situações, os muçulmanos
viram-se para o mesmo ponto no espaço, e, nas duas situações, trata-se de um lugar
importante da "gesta" de Abraão: Jerusalém ou Meca, com a sua Ka'ba.

0 próprio Alcorão sublinha a relatividade do facto em relação ao sentido: "0


Oriente e o Ocidente pertencem a Deus. Seja qual for o lado para que vos volteis,
estará lá a face de Deus" (li, 115) ou : "Em caso de perigo, orai, seja a pé ou a
cavaio" (li, 239).

Contra beatices e formalismos, diz-nos Deus: "A piedade não consiste em voltar a
face para Oriente ou Ocidente" (li, 177). Apela não só à interioridade da fé contra
o ritualismo, mas também à fé expressa pelas acções para com os outros: "Não
conseguireis a verdadeira piedade enquanto não deres aquilo de que gostais" (111,
92).

Esta "historicidade" do Alcorão mostra-se mais claramente nos textos sobre as


mulheres.

0 Alcorão dirige-se aos homens na sua língua, escrito ao nível da sua compreensão,
para que a mensagem seja inteligível. Dirige-se a árabes do século vil, ou seja, a
uma comunidade pertencente à tradição "patriarcal" do Médio Oriente, É a mesma
tradição da linhagem hebraica, que consagra a inferioridade essencial da mulher, do
cristianismo de São Paulo, profundamente misógino, e da Península Arábica, com a
tradição tribal de dominação masculina.

Para divulgar a mensagem na linguagem deste povo e desta tradição patriarcal com
4000 anos é necessário aceitar o postulado milenário: "Os homens têm uma
preeminência sobre as mulheres" (li, 228). Ou, sem sequer justificar, este
postulado: "Os homens têm autoridade sobre as mulheres, porque tiveram a
preferência de Deus" (iv, 34)24. A mulher pode e'.

mesmo ser espancada por suspeita de infidelidade (iv, 34). Na linguagem do povo,
nesta altura, de acordo com a tradição e no seu nível de compreensão possível,
admite-se, por exemplo, que é necessário o testemunho de duas mulheres para
confrontar o de um só homem (li, 282) ou que o vencedor de uma guerra tem direitos
sobre as prisioneiras (iv, 254) ou, ainda, que o homem pode dispor da sua mulher
como disporia de um campo.

Baseado na linguagem e hábitos específicos dos povos de uma época e sociedade


determinadas, o Alcorão começa por limitar o des-

24 "À tua mulher não concedas autoridade sobre ti" diz o Ben. Sira (Sir. 33, 20) na
tradição judaica.

32

gaste da tradição- proíbe matar crianças ou seguir a tradição árabe pré-islâmica de


matar as raparigas. (Alcorão, XVI, 59; LXXX1, 8-9).

É permitida a poligamia, mas regulamentada (iv, 3) de tal forma que, de facto, se


toma pouco praticável.

Para situar melhor a restrição corânica da poligamia no seu contexto histórico e


teológico é conveniente lembrar que a poligamia, sem restrições, era permitida no
Antigo Testamento, que evoca o harém de David e as 700 mulheres de Salomão, além de
300 concubinas (1 Reis,
11, 1-3). Na época de Carlos Magno (quase dois séculos depois da revelação
corânica) havia padres polígamos e o voto de castidade só foi imposto ao clero sob
o papado de Gregório VII (1020-1085).

Lembremos que já desde os tempos do Profeta era reconhecido à mulher o direito de


divórcio - Umaima (lbnat al Jaun), mulher de Maomé, pediu-lhe o divórcio, o Profeta
concedeu-lho e ainda a presenteou (Boukhari, 68, 3), enquanto no Ocidente o direito
das mulheres ao divórcio só foi concedidio no século xx, tal como a faculdade de
dispor dos seus bens.

Tendo em conta que na sociedade árabe compete ao marido a manutenção de pais e


família, e tudo o que designaríamos actualmente por "segurança social", a parte do
rapaz na herança é o dobro da da rapariga (iv, 11).

Todos estes aspectos têm a ver com determinadas condições históricas, em que
"assini. é a lei de Deus" (iv, 13). Esta lei representa um considerável progresso
em relação à sociedade pré-islâmica, judaica, cristã, grega ou romana, onde a
mulher (filha ou cônjuge) não tinha quaisquer direitos sobre a herança.

Nada existe nesta lei que possa justificar a discriminação, o verdadeiro apartheid
da mulher que impera hoje nos países muçulmanos. Esta discriminação vem de uma
certa tradição do Próximo Oriente, e não do Islão. No Islão do tempo do Profeta e
dos califas "bem orientados", ainda que se seguisse uma divisão do trabalho e dos
deveres, as mulheres não estavam excluídas de qualquer actividade social; mesmo em
combate, serviam não só como enfermeiras (Boukhari, LVI, 67-68) mas como soldados
(Boukhari, LVI, 62-63, 65).

Dirigiam negócios (Boukhari, xi, 40). 0 califa Ornar nomeou superintendente do


mercado de Medina uma mulher. Aicha, mulher do Profeta, ensinava Teologia. 0 califa
Ornar não se atrapalhava ao ser interrompido por uma mulher durante o seu sermão e
chegava a agradecer a justeza da crítica,

Todas as discriminações pertencem à história de um país ou de uma época, em relação


às quais o Alcorão constituía uma ruptura, relembrando por sete vezes (iv, 124;
xiii, 23; xvii, 40; XL, 40; XL111, 17; xLviii, 6; Lvii, 18) que Deus apenas
distingue, trate-se de homens ou mulheres, entre os que praticam o bem e os que
praticam o mal.

Para além de todas as vicissitudes da História, afirma-se assim o princípio eterno


que extingue todas as hierarquias entre homens e mulheres, instaurando não
simplesmente a sua "igualdade" ou "complementaridade" mas a sua "unidade
ontológica": "0 Vosso Senhor criou-vos de um só ser", diz-se no primeiro versículo
da Sura "As mulheres" (iv, 1). Um só ser dividido em dois, iguais na dignidade e
diferentes apenas nas funções.

0 caminho verdadeiramente fiel ao espírito consiste em proceder à semelhança dos


grandes jurisconsultos do Islão, quando este se tomou um império, ao procurarem
interpretar (ijtihad) as palavras divinas para enfrentar novas situações. Importa,
repita-mo-lo, separar da sua realização histórica imediata os princípios eternos
que permitirão solucionar os problemas dos nossos dias.

A historicidade do Alcorão decorre do facto de a revelação da mensagem eterna ser


dirigida a um povo específico num determinado momento da sua história, numa
linguagem que lhe permita a sua compreensão. "Só enviámos um Profeta a um povo que
trasmitisse a mensagem na linguagem da comunidade" (Xiv, 4). "Foi enviado um livro
para cada época bem determinada" (xiii, 38).

Os primeiros autores de recolhas de ahadith foram sempre bastante cautelosos em


mencionar o contexto histórico preciso, por vezes ligado a incidentes menores na
vida do Profeta, em que cada versículo tinha "descido". Trata-se sempre de uma
resposta concreta de Deus a uma questão colocada pelo Profeta para a sua
comunidade. Esta "historici-
34

dade" não retira nada ao valor universal e eterno da mensagem: cada intervenção
divina, tanto na comunidade religiosa de Meca como na comunidade religiosa e
politicamente unida de Medina, contém um princípio de acção válido para todos os
povos e tempos, mas tem uma forma específica, ligada às circunstâncias concretas
dessa época e dessa região.

Falando do comportamento em relação aos escravos, o Alcorão afirma, por exemplo:


"Mais vale um escravo crente do que um homem livre politeísta" (11, 22 1). Perderá
este versículo, "descido" numa sociedade em que havia escravatura, o seu valor numa
sociedade em que esta não existe? Não. Perde necessariamente a sua forma histórica,
mas

i conserva toda a força de interpelação eterna: o "valor" de um homem

não depende da sua posição social nem da sua riqueza, mas antes da sua piedade e
das suas virtudes. Quer isto dizer que a leitura do Alcorão não pode ser
constantemente literal. Sempre que o princípio de acção se exprimir na linguagem
específica e nas condições particulares da época da sua revelação, deve-se retirar
da letra morta o espírito vivo. Por outras palavras, para aplicar a lei islâmica
(sharia) não se pode raciocinar por dedução mas antes por analogia.

Numa sociedade fundamentalmente diferente daquela que o Profeta governou, a


aplicação exemplar destes princípios expostos por Maoiné constitui um modelo (a
Sunna) que, para ser fermento numa sociedade diferente, exige não uma imitação
cega, alheia às novas condições de aplicação do princípio eterno, mas um raciocínio
por analogia, aplicando o princípio aos "novos" casos.

Ninguém nos pode livrar da responsabilidade e do esforço de inventar uma solução


conforme à lei corânica, na nossa época, perante problemas inéditos.

A lei islâmica (shari'a) é precisamente o contrário do Direito Romano: este


pretende dar a impressão de legislar em abstracto (se bem que tenha origem nas
relações de força e de facto da sociedade romana), prevendo enquadramentos eternos
para acções futuras. Os textos corânicos, de onde se extraem os princípios da lei
islâmica, pelo contrário, tratam de acontecimentos reais, históricos. A resposta a
uma situação histórica é de inspiração divina, mas é necessário estabelecer,

35 1 1:'

em cada situação, o seu objectivo e razão de ser, para a aplicar a um

novo caso.

0 Profeta, falando em nome de Deus, tinha totalmente em conta a situação histórica


e geográfica do povo a quem aplicava de forma específica os princípios eternos.
Quando manda jejuar da aurora ao crepúsculo (o fio negro e o fio branco"), é
evidente que se dirige a um povo para quem dia e noite têm duração semelhante. Para
um esquimó, há seis meses entre os dois momentos! É preciso "reflectir" - como
antes, quanto à escravatura - para não aplicar literalmente o versículo, para saber
qual o objectivo visado e para o aplicar em condições distintas.

0 mesmo se aplica a grande número de versículos do Alcorão. Deus e o seu Profeta


têm em consideração as circunstâncias e o nível de consciência dos povos a que se
dirigem, para passar a mensagem sem pretender abolir de uma só vez a ordem
existente, aceitando os costumes, mesmo que não correspondam totalmente às
exigências absolutas da sharia.
Temos, pois, o dever de, em relação a cada prescrição jurídica, questionar qual o
seu objectivo na altura em que foi formulada e quais as circunstâncias históricas
que a impunham, num mundo em que "cada dia há algo de novo" (55, 28).

No Alcorão, a palavra sharia só é utilizada uma vez (45, 18) e noutros três
versículos aparecem palavras com a mesma raiz: o verbo shara'a (42, 13) e o
substantivo shira (5, 48).

Isto permite chegar a uma definição precisa. "Pusemos-te num caminho (shariatin)
vindo da ordem."

Em que consiste este "caminho" (sharia)? É o que nos explica o versículo 42, 13: "A
respeito de religião, abriu-vos um caminho [aqui trata-se do verbo shara'al que
recomendara a Noé, o mesmo que te revelámos, aquele que recomendámos a Abraão, a
Moisés e a Jesus: segui-o, e não façais dele objecto de divisão."

21 Referência ao mandamento sobre o Ramadão, que manda jejuar enquanto se conseguir


distinguir um fio negro de um fio branco, ou seja, enquanto houver luz solar. (N.
do T.)

36

É assim perfeitamente claro:

- que este caminho é o de Deus;

- que este caminho é comum a todos os povos, a quem Deus enviou os seus profetas (a
todos os povos e na língua de cada um).

Ora, os códigos jurídicos sobre o roubo e sua punição, o estatuto

da mulher, o casamento ou a sucessão, por exemplo, são diferentes na Tora judaica,


nos Evangelhos cristãos ou no Alcorão.

A shari'a (a lei divina para chegar a Deus) não pode pois incluir estas legislações
(fíqh) que, ao contrário da sharia comum a todas as religiões, diferem entre si
conforme a época e a sociedade à qual Deus enviou um profeta.

Diz Deus no Alcorão (13, 38): "A cada época um livro", e ainda: "Não existe
comunidade onde não tenha passado um profeta para o futuro" (35, 24 e 16, 36).

Dá-se uma imagem caricatural do Alcorão se não distinguirmos entre:

- os princípios eternos sobre as relações com Deus,

- e as leis específicas através das quais os homens, a partir destes princípios,


organizam em cada época as suas relações soci .ai.S.

A distinção entre a orientação religiosa e moral para com Deus

(shari'a) e os "programas" ou os "métodos" cuja aplicação Deus deixou ao Homem, nas


condições concretas da sua sociedade e do seu tempo, é acentuada pelo significado
de sharia, o caminho da fonte, excelente forma de dizer: o caminho para Deus.

Depois de recordar (5, 44 e 5, 46) que as mensagens de Moisés e da Tora, de Jesus e


dos Evangelhos "contêm luz e orientação", o Alcorão acrescenta (4, 48): "Demos a
cada um um caminho (sharia) e um programa (minhaj)".
À luz dos dois versículos anteriores, é evidente que o caminho, a shari'a, tem um
valor universal porque é comum particularmente
37

* todos os povos do Livro; indica-nos os fins transcendentes, enquanto


* "programa" ou o "método" são meios que permitern fazer penetrar os valores
transcendentes em cada momento da História.

A sharia, de facto. está presente de forma idêntica nos três Livros revelados:

0 Alcorão proclama diversas vezes que só Deus possui. "Tudo o que está nos céus e
na terra pertence a Deus" (2, 116 e 284: 3, 109, etc.). Tal como diz o
Deuteronómio: "Os céus e tudo o que eles encer-

ram pertence ao Senhor, teu Deus, bem corno a terra e tudo o que nela existe" (Dt.
10, 14).

E tal como diz Paulo, no Novo Testamento: "Pois a terra inteira e tudo o que nela
existe pertencem ao Senhor." (Cor. 10, 26).

Acontece o mesmo, nos três Livros, com as expressões "Só Deus manda" e "Só Deus
sabe".

A nossa responsabilidade está em encontrar em cada momento os meios históricos de


cumprir estes fins transcendentes, como exemplifica o Alcorão com a comunidade de
Medina.

Esta nítida distinção corânica exclui qualquer interpretação literal e apela a que
reflictamos sobre os exemplos, em vez de aplicar cegamente em qualquer momento
receitas históricas que também constam do Alcorão.

Querer aplicar literalmente uma disposição legislativa a pretexto de estar escrita


no Alcorão é confundir a lei eterna de Deus, a shari'a ("invariante" absoluto,
comum a todas as religiões e a todas as sabedorias), com a legislação do Médio
Oriente no século vii (uma aplicação histórica da lei eterna, própria para esta
época e para esta região). As duas, evidentemente, estão escritas no Alcorão, mas a
sua confusão e aplicação cega - recusando a "reflexão" que o Alcorão constantemente
lembra - deixam-nos incapazes de testemunhar a mensagem viva, o Alcorão vivo e
eternamente actual, enfim, do Deus vivo.

A sharia une todos os homens de fé; pelo contrário, querer impor aos homens do
século xx uma legislação do século vii, e da Arábia, é uma obra de divisão que dá
uma falsa imagem do Alcorão. É um crime contra o Islão.

38

Esta imagem caricatural e perversa da sharia que a Arábia Saudita financia e


divulga pelo mundo é a "maré negra" do Islão.

Para estes príncipes, para a manutenção da dinastia, é necessário inverter e


perverter a shari'a. Na verdade, tal como é definida no Alcorão, a shatl'a condena
todas as corrupções do poder, do ter e do saber.

Se, como diz a shari'a corânica, "só Deus possui", qualquer riqueza é relativizada:
estes príncipes são simples gerentes responsáveis e deixam de poder investir nos
Estados Unidos, na Suíça ou em paraísos fiscais, nem podem delapidá-la pelos
casinos de todo o mundo, nem construir para uso pessoal os palácios ostentatórios e
orgíacos de Marbella, em Espanha, ou da Côte d'Azur francesa. Pelo contrário, todas
as prescrições económicas do Alcorão, trate-se do riba (dinheiro obtido sem
trabalho) ou do zakat (exigência de uma taxa religiosa sobre a fortuna pessoal),
tendem a impedir a acumulação de riqueza, num dos pólos da sociedade, e de miséria,
no outro.

Se, como diz a sharia corânica, "só Deus manda", a monarquia absoluta e as suas
feudalidades vassalas estão condenadas. Porque misturam lucros pessoais e dívidas
do Estado na partilha dos rendimentos petrolíferos, porque criam para si
"clientelas", financiando os "integrismos" mais retrógados em todos os continentes,
para fazer do Islão um "ópio" dos povos que aceitarem resignados a sua dominação.

Se, como diz a sharia corânica, "só Deus sabe", dobrou a finados por todos os
dogmatismos e pretensões de posse da verdade absoluta que "fecham a porta da
ijtihad" (da interpretação dos textos sagrados). A interrupção hambalita 26 da
reflexão religiosa é o oposto do que o Alcorão exige, ao fazer de cada muçulmano
responsável e ao apelar constantemente à "reflexão" sobre os "exemplos" de acção
divina revelados pelo Profeta. A apropriação da doutrina wahabita pelos Saoud, como
fundamento de uma "teologia de dominação" e do obscurantismo mais arcaico para
conseguir a resignação das massas, tudo isto voará em estilhaços à luz da sharia
corânica.

11 Hambalita é a designação de uma escola jurídica muçulmana ortodoxa. (IV. do T.)

39

Aquilo que a propaganda saudita, graças às suas mesquitas e seus imãs pára-
quedistas, difunde por todo o mundo sob a desipação usurpada de sharia, são, pelo
contrário, proibições e repressões. A mão do ladrão cortada para proteger a riqueza
é o símbolo desta forma de aplicar a sharia que mais convém aos ricos e poderosos.

Separar o versículo v, 38 ("Cortai as mãos da ladra e do ladrão") de todo o


contexto do Alcorão, em que uma pena irreversível como a da mão cortada é
incompatível com a concepção de Deus "clemente e misericordioso", é esquecer o
versículo seguinte (v, 39) que diz: "Deus voltar-se-á certamente para aquele que,
depois de prevaricar e de se emendar, se voltar para Si. Deus é aquele que perdoa.
É misericordioso." Ou seja, é opor-se à própria prática do Profeta.

An-Nasa'i e Abu Dawud relatam o seguinte hadith:

Disse Abbad Ben Sharahbil: "Vim a Medina com os meus pais. Entrei num campo (de
trigo). Arranquei algumas espigas e tirei o grão. Chegou o dono (do campo). Tirou-
me a roupa e bateu-me. Fui procurar o Profeta para me queixar. 0 Profeta mandou
chamá-lo. 0 Profeta perguntou-lhe: "Que te levou a agir assim?" 0 dono respondeu:
"ó Mensageiro de Deus, este homem entrou no meu campo, levou-me umas espigas e
tirou-lhes o grão". 0 Profeta disse: "Era ignorante e não o ensinaste. Tinha fome e
não o alimentaste. Devolve-lhe a roupa." E o Mensageiro de Deus ordenou-me que
desse uma medida de trigo." Segundo Yahya Ben Abderrahman Ben Hateb:

"Certos escravos de Hateb roubaram um camelo a um homem da tribo de Mazina e


abateram-no (para o comer). Confessaram. Ornar ibn Khattab mandou chamar o dono dos
escravos, contou-lhe os factos e depois mandou cortar as mãos aos escravos. Mas
reconsiderou e chamou novamente o dono para lhe dizer: "Teria mandado cortar-lhes
as mãos. Mas penso que deixaste os escravos tão esfomeados que acabaram por ser
levados a este acto interdito por Deus. Como os deixaste com fome, juro por Deus
que serás tu que hei-de punir severamente: pagarás caro." Ornar perguntou pelo
preço do camelo ao homem da tribo de Mazina. Resposta: "Se oferecessem 400 dirhams,
recusava." Ornar disse (ao dono dos escravos): "Dá-lhe 800 dirhams."

40
Este facto é relatado no AI Muwatta, do ímã MaIek. Estes exemplos devem ajudar-nos
a tomar consciência de que querer aplicar a shari'a cortando as mãos ao ladrão é
começar pelo fim: a primeira função de uma sociedade que se esforça por obedecer à
lei divina consiste em eliminar as condições sociais que levam ao roubo, ou seja,
todas as formas de injustiça social e de miséria.

Se se começa pela repressão, os mais pobres serão os mais atingidos. Se lhes forem
cortadadas as mãos, toma-se impossível a sua normal reintegração na sociedade
através do trabalho. A humilhação e a exclusão irreversíveis atingem os mais
desprovidos (e deixam os "entesouradores" - Sura cm - prosseguir a sua obra de
divisão social pela desigualdade). É um sacrilégio que desafia tanto a justiça de
Deus como a Sua infinita misericórdia.

Nada é mais contrário ao espírito do Alcorão, portanto, do que aplicar um sistema


de sanções antes de fazer reinar a justiça social.

Ora o Alcorão é muito claro neste aspecto. Condena com firmeza aquele "que junta
riquezas e as conta" (civ, 2 e Lx, 34); quem o fizer, chama a si os castigos do
Inferno.

Num país onde as prescrições fossem aplicadas com rigor, reinaria, então, no plano
económico e social, a lei de Deus, a verdadeira shari'a, e não haveria mais
"necessidade" que pudesse levar ao roubo.

Outro espantoso e sinistro exemplo da impostura e mentira do integrismo saudita: o


rei Falid autoproclamou-se o "protector dos lugares santos", que continuamente
profana.

Na estrada para Mediria pode ver-se um letreiro a proibir a entrada na cidade a


quem não for "muçulmano". (0 que contradiz o exemplo do Profeta, quando convidou os
cristãos de Najran a orar na sua própria mesquita.) Mas se um devoto cristão não
pode rezar na Meca dos Saoud, já em 1979, quando alguns rebeldes contra o regime se
refugiaram na grande Mesquita, o rei não hesitou em pedir aos gendarmes
especializados franceses do capitão Barril que os apanhassem. Em Agosto de 1987,
quando a polícia e o exército sauditas, incapazes de encaminhar uma manifestação de
peregrinos iranianos, organizaram o

41

seu massacre, foi imediatamente designado o general alemão UIrich Wegener como
instrutor da Guarda Nacional. Em 1990, quando os dirigentes americanos no Golfo
recomeçam a antiga guerra colonialista conduzida pela Inglaterra para tirar o
Kuwait ao Iraque, a monarquia saudita chamou à "terra sagrada" a gigantesca armada
americana (pagando-lhe), para organizar o massacre de um povo árabe. E é nestes
lugares que se proíbe a construção de uma igreja ou de um templo.

Com os seus milhares de milhões de dólares nos Estados Unidos e os seus mercenários
infiltrados em todas as comunidades muçulmanas do mundo, a Arábia Saudita
transformou-se no mais hipócrita dos aliados daquilo que se opõe ao Islão e que é o
seu pior inimigo: o monoteísmo do mercado.

"Dessauditizar" o Islão é hoje em dia uma das principais tarefas dos muçulmanos de
todos os países para devolver à sharia a sua verdadeira face: aplicar a sharia é
viver vinte e quatro horas por dia na transparência do Deus unico que possui, que
manda e que sabe.

Assim, contra o "monoteísmo do mercado", só os muçulmanos poderão contribuir para


devolver um sentido à vida e para construir um século xx com rosto humano e divino.
Porque em todas as religiões e sabedorias do mundo nasce a mesma esperança.

Com o Concílio do Vaticano 11 e com a Conferência Episcopal de Medellín, em 1970,


os cristãos viram abrir-se um novo horizonte na sua fé, com a criação de
"comunidades de base" inspiradas no exemplo de Jesus e na sua opção prioritária a
favor dos oprimidos, e com o aparecimento de "teologias da libertação", deixando a
Teologia de ser uma carreira liberal, uma linguagem sobre Deus que não afectava o
concerto universal de poderes e dominações.

0 Islão necessita, igualmente, de uma teologia da libertação para romper com


séculos de taklid, de imitação do passado, tal como os cristãos precisam dela para
"desromanizar" a sua Igreja e impedir a restauração monárquica e imperial, e ambos
precisam da teologia da libertação para acabar de vez com o mito tribal dos povos
eleitos, pretexto de todas as dominações.

42

Para os dirigentes americanos e seus vassalos ocidentais existem bons e maus


muçulmanos: os bons são os que servem as suas políticas, como os líderes sauditas,
e os que aceitam os diktats do FMI, como Mubarak. Maus muçulmanos são os que
recusam estes diktats.

É a melhor maneira de alimentar todos os integrismos. Pois se a prostituição


política é critério de bom comportamento, a honra e a simples vontade de preservar
a dignidade humana exigem que se constitua uma frente de luta contra a pior negação
do homem que é o que o monoteísmo do mercado acarreta. Esta frente de luta conduz,
por vezes, a voltar às manifestações de fé mais arcaicas.

Quando Pasqua, ministro francês do Interior", na inauguração da Mesquita de Lyon


(financiada pela Árabia Saudita), declarou que "em França não se aplicará a
sharia", não só revela aceitar a sharia na sua versão saudita e sectária, como
ainda apaga o seu sentido corânico, princípio da fé abraânica Oudaica, cristã e
muçulmana) e de todas as sabedorias do mundo (mesmo das que não se referem a Deus);
porque a sharia é a base de qualquer comunidade humana, ou seja, de qualquer
comunidade onde não se considere que só os interesses individuais ou os de uma
parte da comunidade sejam o centro e medida de todas as coisas.

A luta contra o integrísmo não é por uma "integração" que obrige os outros a deixar
de ser o que são, mas sim uma luta para que o sejam mais profundamente e para que,
com o seu contributo e experiência específica, enriqueçam as noções de cidadania e
de vida que lhes dão um sentido humano - ou divino, conforme a linguagem de cada
um. É este sentido que Jesus, interiorizando ainda mais a mensagem dos Profetas
anteriores, chamava o "Reino" e que o Alcorão designa como "caminho" (sharia),
sublinhando que tanto é de Abraão como de Jesus ou de Maorné.

É absurdo, por exemplo, dizer que o Islão, é, por questão de princípio, inimigo da
ciência ou da tolerância religiosa.

11 Ministro do governo Balladur, até 1995. (X do T.)

43

Só políticos que desconheçam tudo do passado da sua própria cultura podem proclamar
que a França não será multicultural, como se a cultura arabo-islâmica não fizesse
parte da nossa cultura ocidental.

Ouve-se frequentemente dizer que esta cultura tem duas origens: greco-romana e
judeo-cristã. É ignorar a herança arabo-islâmica. Francis Bacon, o monge inglês
justamente considerado como intro-
dutor da ciência experimental na Europa, reconhecia, com modéstia, no Opus majus,
ter aprendido tudo com a Escola Muçulmana de Córdoba e cita frequentemente o
Tratado de óptica, do egípcio lbn Haytham, que primeiro exemplificou este método:
formular uma hipótese matemática, e, a seguir, elaborar um dispositivo experimental
para a verificar ou infirmar.

Noutros domínios, basta ler o tratado Do Amor, de Stendhal, que lembra que "é sob a
negra tenda do beduíno que se revela o verdadeiro amor". É na obra de lbn Hazin
sobre o amor cortês, tal como em Ibn Arabi, que se encontra a expressão da
continuidade entre o amor humano e o amor divino, que inspirará, segundo a bela
expressão do padre Asin Palacios, "a escatologia muçulmana" na Divina Comédia, de
Dante.

0 mesmo se passa quanto à tolerância: a intolerância não tem que ver com o Islão
mas antes com as suas perversões.

Em Espanha havia judeus ministros de emires. Só depois de 1492, com a queda de


Granada e a vitória dos "reis muito católicos" começa a "purificação étnica" (então
chamada lei "sobre a pureza do sangue"), com a expulsão de Espanha dos judeus e,
depois, dos mouros.

É a ignorância de todos estes factos que leva, por exemplo, à política puramente
repressiva que, em França, toma o ambiente cada vez mais irrespirável ao confundir
simples tradicionalistas e seguidores dos costumes da sua terra com terroristas
potenciais.

No conjunto das relações internacionais, tal como nas relações políticas internas,
só se pode escolher entre o diálogo e a guerra, Maldito seja aquele que escolher a
guerra.

44

GUERRA ENTRE A FÉ E 0 ATEíSMO?

A fé é ópio ou fermento?

Uma etapa importante da minha vida ficou assinalada por um encontro com D. Hélder
Câmara, precisamente a 29 de Maio de 1967, era eu na altura membro do Comité
Político do Partido Comunista Francês e D. Hélder arcebispo do Recife, no Brasil.
Participámos, em Genebra, numa comemoração da Encíclica Pacem in terris. Desde este
primeiro encontro não se esgotou a fraterna comunhão que nos une.

D. Hélder conta nas Conversions dun évêque' como as nossa relações começaram por um
"pacto": "Roger, e se fizéssemos um pacto? Encarrego-o a si de obter duas coisas.
[... ] Há marxistas que pensam que ser marxista é seguir à letra o que Marx disse.
[ ... 1 Não se apercebem que, se fosse hoje, Marx, sempre fiel à realidade, teria
visto as coisas de maneira diferente. Por exemplo, nem sempre é correcto afirmar
que há uma ligação necessária entre religião e alienação. Sou o primeiro a
reconhecer que existiram no passado e ainda existem nos nossos dias, infelizmente,
grupos que apresentam a religião de forma demasiado passiva, que fazem dela um
verdadeiro "ópio para o povo", e que conseguem assim uma verdadeira alienação. Mas
garanto-lhe que em todas as religiões, e não só no cristianismo, pessoas e grupos
trabalham para que a religião, em vez de ser alienada e alienante, seja uma força
de libertação.

Éditions du Seuil, 1977, p. 171.

45
[... ] Encarregue-se de fazer com que os marxistas deixem de relacionar
necessariamente religião com alienação. É este o primeiro ponto.

Por outro lado, acredita que há uma ligação necessária entre socialismo e
materialismo, ou pelo contrário, que é possível, como penso, ser um verdadeiro
socialista sem aderir ao materialismo dialéctico? IN

Pela minha parte, comprometo-me a fazer tudo o que puder e a conseguir a


intervenção de pessoas mais influentes, para conseguir que a Igreja aceite o
socialismo."

Pergunta do entrevistador: "Cumpriram o pacto?"

D. Hélder responde: "Sim. Ambos fizemos tudo o que podíamos. No entanto, ainda não
realizámos os nossos objectivos."

Tinha aceite sem reservas, efectivamente, as duas exigências de D. Hélder. Pedi-lhe


simplesmente que deixasse de ser utilizada a fórmula do papa Pio XII: "0 comunismo
é intrinsecamente perverso."

Intrinsecamente perverso é o capitalismo, mais a sua concorrência de todos contra


todos. 0 comunismo ou o socialismo só são perversos quando traídos pelos seus
próprios apoiantes.

Selou-se então o pacto e imediatamente se passou à sua aplicação: em 1970, D.


Hélder Câmara, depois da Conferência Episcopal de Medellín, em 1968, escreve o
primeiro livro decisivo, Spirale de la violence2. consagrado "à memória de Ghandi e
de Martin Luther King", e que em 26 de Maio de 1970 D. Hélder me dedicou assim: "A
Roger Garaudy, irmão na fome e sede de justiça."

Este livro iniciou, ao lado de Evangelho e Revolução Social (1969), de monsenhor


Fragoso, bispo de Crateus (Brasil), a primeira experiência fundamental das
"comunidades de base" e o "erguer" da teologia da libertação. Seguiram-se Théologie
de la libération do padre Guttierez, no Peru (197 1); Théologie de la revolution,
do padre Comblin (1970); Christianisme, opium ou libération?, de Ruben Alvarez
(1972); Cristo Libertador, de Leonardo Boff, no Brasil (1974); Histoire de la
théologie de la libération, de Henri

2 Desclée de Brouwer, 197 1.

46

Dussel, na Argentina (1972); Libération de Ia théologie, do padre Segundo, no


Uruguai (1975).

Em Spirale de violence, D. Hélder distingue três formas de violência: primeiro, a


violência institucional, a da injustiça da ordem estabelecida. Esta violência gera
todas as outras: a violência revolucionária, dirigida contra ela, e a violência
repressiva, exercida contra a dos oprimidos em revolta. Denuncia a impostura que
consiste em só chamar "violência" à segunda. Efectivamente, chama-se "terrorismo" à
violência dos resistentes e "defesa da lei e da ordem" à violência do Estado,
infinitamente mais mortífera.

Sei bem quantas lágrimas e quanto sangue custaram estas obras a estes
precurssoresl: a repressão dos generais e seus "esquadrões da inorte", o ódio da
CIA norte-americana que declarou: "A política externa dos Estados Unidos deve
defrontar a teologia da libertação" (documento de Santa Fé, Lima, Fevereiro de
1985). Esta tomada de posição da Administração americana seguiu de perto o ataque
vindo do Vaticano (a 23 de Novembro de 1984) com as "Instruções" do cardeal
Ratzinger contra a "teologia da libertação"4.

No ano em que saiu Spirale de la violence (1970), fui expulso do Partido Comunista
Francês, de que era um dos dirigentes e teóricos, por ter dito que a União
Soviética não era um país socialista. Foi há 24 anos.

Tanto eu como D. Hélder mantínhamos o nosso pacto, contra ventos e marés. Não
deixámos de o fazer.

Pela minha parte, demonstrei, nos diálogos cristãos-marxistas que organizei desde
1960 e em todos os meus livros e artigos sobre o marxismo, que o ateísmo não era um
componente necessário do socialismo. Marx nunca fez uma crítica filosófica da
religião, mas sim uma crítica política: na sua luta pela libertação das classes
exploradas e oprimidas, debatia-se, nuina Europa dominada pelo espírito da "Santa
Aliança" (entre o alto clero e os príncipes contra qualquer movimento democrá-

3Como o assassinato do nosso amigo padre Ellacuria e de mais seis jesuítas, na


Universidade Católica de San Salvador.

" Ver o meu livro Será que Precisamos de Deus?

47

tico ou socialista), com uma religião que de facto tinha o papel de "ópio do povo".
Mas, frisando que a fé não era sempre nem em qualquer lado um "ópio do povo", na
mesma página onde utiliza esta expressão declarava que o cristianismo era
simultaneamente "um. reflexo" e um protesto contra a miséria do Homem'. Graças a
este aspecto contestatário, a religião pode então ser, noutras circunstâncias
históricas, não um ópio mas um fermento para a libertação do Homem.

Seria errado pensar que ao falar de socialismo "científico" se está a excluir a fé.
Ciência e fé não são de maneira nenhuma rivais, excepto na concepção arcaica de
ciência - o Positivismo -, ou seja, na concepção de um "cientismo" totalitário que
pretende que todos os problemas da vida podem ser resolvidos pelas ciências
"positívas", até mesmo as questões dos fins últimos e do sentido da vida, do amor
ou da beleza. A ciência e a técnica, sejam quais forem os seus sucessos mais
maravilhosos (por exemplo, os computadores), podem dar-nos meios para atingir
qualquer fim, mas nunca os fins últimos, que só o Homem pode, de forma livre e
responsável, atribuir à sua vida.

Não há, portanto, concorrência, rivalidade, e ainda menos exclusão recíproca, entre
a Ciência que nos dá meios tão poderosos e uma fé e sabedoria com as quais
decidimos osfins a seguir.

Ao contrário da caricatura que alguns desenham, Marx nunca sustentou que o


socialismo fosse a conclusão de um teorerna. Marx. enunciou todos os principais
ternas do socialismo ainda antes de tratar da análise da economia. Depois de 1843,
mais de 20 anos antes de
0 Capital, Marx é socialista por opção moral, por um acto defé, a que chama, na
linguagem dos filósofos da altura, "imperativo categórico de subverter todas as
relações em que o Homem seja um ser degradado, subjugado, abandonado, desprezado6".

Na mesma data, define a missão histórica do proletariado: a "xeconquista, total do


Homern". Assim, os dois principais temas do movimento

1 Marx, Oeuvres Philosophiques, Gallimard, La Pléiade, t. 111, p. 383.

6Karl Marx, Critique de la Philosophie du Droit de Hegel, in Karl Marx, Oeuvres, t.


III, p. 390.

48

socialista, de que Marx é a expressão crítica - a luta para libertar o trabalhador,


e, com ele, todos os homens, das alienações da economia de mercado e a missão
histórica do proletariado para cumprir essa missão de valor universal -, são
anteriores às demonstrações económicas do Capital.

Marx não opõe "socialismo científico" a utopia. Mostra como a utopia do "Hornem
total" encontra, em meados do século xix, a força histórica (a classe operária)
capaz de passar da utopia ao "movimento real" que, perante uma economia em que o
mercado é o único regulador das relações sociais e em que a concorrência isola os
homens, permitirá criar, "de acordo com um plano consciente", uma sociedade onde o
"livre desenvolvimeto de cada um será condição para o livre desenvolvimento de
todos" (Manifesto Comunista).

Nada é mais absurdo do que definir o marxismo como determinismo económico ou


determinismo histórico. Perante tais interpretações, dizia Marx: "Se é isso o
marxismo, não sou marxistal."

Fins últimos e fins penúltimos: Prometeu ou Jesus?

Se, efectivamente, o determinismo é soberano, se o presente e o futuro são


determinados pelo passado, se, como escreve Althusser, os homens são "marionetas
dirigidas pelas estruturas", para que serviria pregar uma revolução? Só há
revolução possível na medida em que o Homem conseguir romper com os seus
determinismos.

Não se trata de determinismos parciais, a nível das ciências, mas de um


determinismo global, aplicável ao Homem e a toda a sua História, e que é uma
extrapolação metafisica feita simplesmente a partir de determinismos científicos.

Este determinismo, por definição, só pode fundamentar uma política conservadora.


Bem o percebeu Charles Maurras, último grande teórico da "direita", ao reclamar-se
seguidor de Auguste Cornte.

Marx, Critique du Marxisme, Maximillien Rubel, Payot, 1974.

49

Para quem, pelo contrário, gosta do futuro naquilo que tem de criador e de
imprevisível, isto é, dependente dos homens que, como escrevia Marx, "fazem a
própria histórial", mesmo que não a façam arbitrariamente mas em condições herdadas
do passado, é evidente que a

N transcendência - e não o determinismo - é o postulado necessário de


qualquer pensamento e acção revolucionários.

Devo a tomada de consciência desta verdade essencial ao diálogo com os cristãos que
organizei à escala mundial, de 1962 a 1974, e aos teólogos da libertação, ao padre
Karl Ralmer (S. J. - Companhia de Jesus) e a D. Hélder Câmara.

Escrevia Karl Ralmer, no seu prefácio ao meu livro De l'anathéme au dialogue. Un


marxiste sadresse au Concile9: "Mesmo que se consiga instaurar a justiça, isso não
fará o Reino de Deus. 0 cristianismo é a religião do futuro absoluto e relativiza
as vitórias provisórias do Hornem."

Mesmo que um socialismo não pervertido cumprisse os objectivos estabelecidos por


Marx - criar as condições económicas, políticas e culturais para que cada criança
com o gênio de um Mozart ou de um Rafael se possa tomar um Mozart ou um Rafael10 -,
teríamos apenas atingido os fins "penúltimos" (e devemos atingi-los em conjunto,
quaisquer que sejam as nossas opiniões políticas e religiosas). Compete à fé
avisar-nos: deve ir-se mais além.

Este diálogo e os teólogos da libertação mostraram-me o que podia ser a abertura do


marxismo a todas as dimensões do Homem.

0 marxismo é antes de mais umafilosofia do trabalho e um combate contra as suas


alienações. Mas o trabalho, mesmo organizado na mais perfeita justiça, não
constitui um fim em si. Pode criar as condições para libertar o Homem das
exigências materiais. Já é muito; mas nada é dito sobre o que, liberto o Homem,
fará ele com o seu tempo livre - será, sem dúvida, algo mais do que actividades
artísticas. Reduzidas a mera brincadeira, inúteis para a invenção do

Karl Marx, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Plon, 1965.

10 Id6ologie Allemande, Oeuvres, op. cit., p. 1288.

50

futuro e para procurar o seu sentido, as próprias artes perderiam a sua dimensão
essencial. 0 socialismo não é o fim da História mas sim o começo de uma história
para além da selva de concorrências, dominações e guerras.

0 marxismo é umafilosofia da revolução. Mas a revolução não é a "salvação" que a fé


exige. Pode, depois de muitos ensaios e falhas, instaurar um reino do Homem, de um
Homem de rosto humano. Mas não o reino de Deus, o reino da permanente criação de
tudo o que ultrapassa o Homem. Fazer de cada homem, de todos os homens, um Homem, é
ofim "penúltimo"; mas para além disto, que fará este Homem?

0 Evangelho é a "boa nova" sobre as possibilidades infinitas do Homem. Jesus é o


símbolo desta Humanidade emancipada e criadora. Nele se cumpre o Homem à "imagem de
Deus". É como se diz de Prometeu e d'Ele: trouxeram o fogo à terra.

A relação entre o Homem e Deus é radicalmente diferente no Evangelho e na tragédia


grega: Zeus pretende manter os homens no seu lugar da hierarquia dos seres, nem que
os tenha agrilhoados. Jesus, pelo contrário, traz-nos a boa nova: tudo é possível
ao Homem, habitado por Deus, e não seu rival. Prometeu desagrilhoado, Antígona
libertada e os dois tiranos - os dos trovões e os dos exércitos - estão mortos.
Para o discípulo de Jesus, "pecado" não é o ubris dos gregos, ou seja, o orgulho de
superar os limites humanos e se apoderar dos poderes divinos. Com Jesus, Deus
tomou-se homem e o Homem um Deus em flor.
0 maior pecado é a preguiça e a resignação. Que tem a temer aquele que se sabe,
através de Jesus, habitado por Deus?

"Sei quem sou!", dizia D. Quixote do fundo da sua desgraça. Quem sou eu? Um homem
habitado por Deus. 0 próprio Prometeu não passa de um pioneiro, não é a esperança
última nem a "salvação" da Humanidade.

Há cada vez mais cristãos incapazes de se identificarem com as estruturas "teístas"


da igreja "hierárquica" (no sentido etimológico do termo: aquela que sacraliza o
poder).

Há cada vez mais revolucionários consciencializados de que nenhum partido está na


vanguarda de um futuro absoluto.

51
Ambos vêem em Prometeu o pioneiro de uma emancipação profana, e alguns vêem em
Jesus o anúncio de uma "graça" que é a própria criação, indo além de uma liberdade
que seria apenas um ruptura com as servidões.

Ambos têm o mesmo inimigo - o falso Deus, o falso Prometeu ou o falso Jesus da
religião dominante. É o monoteísmo do mercado, a idolatria do dinheiro que tira à
vida o seu sentido, pois só lhe oferece uma perspectiva: o crescimento quantitativo
da produção e do consumo.

É este o único inimigo do Homem e do Deus que nele habita. Compete a todos os
homens de fé unir esforços para destruir este obstáculo ao nosso futuro.

Sim, meu caro D. Hélder, o nosso pacto há-de ser mantido, por outros além de nós e
depois de nós: a recíproca fecundação do marxismo vivo, ou seja, sem dogrnatismos,
e de uma fé viva, ou seja, sem credulidades, constitui, graças às teologias da
libertação, a grande esperança da Humanidade.

Marx morreu?

Através de uma espantosa mobilização mediática, os actuais senhores do caos


quereriam impor às massas, como certeza evidente, que a implosão da União Soviética
correspondia à derrocada do "marxismo", para as convencer que só havia uma saída
para o gulag - o regresso à selva.

0 que está bem patente, pelo contrário, é que a restauração do capitalismo na


Rússia em três anos fez da antiga União Soviética um país do Terceiro Mundo, isto
é, um país submetido aos imperativos do FMI.

A intervenção estrangeira em todos os domínios, da economia à cultura, levou, no


interior, ao nascimento de uma mafia de especuladores cujas fortunas crescem de um
dia para o outro, como cogumelos venenosos. No povo, a miséria chega à mendicidade
e à fome que já se tinham manifestado na União Soviética, com a fome de 1920,
provocada pelas intervenções militares e pela política ocidental do
52

"arame farpado". A nível cultural, ou melhor, anticultural, o País transforma-se, a


exemplo dos Estados Unidos, num império da droga e de corrupção".

Na política externa, leltsin, à procura de divisas seja por que meios for, até o
armamento vende em saldo, o que leva a uma proliferação das mais sofisticadas
técnicas militares, incluindo técnicas nucleares.

Estes são apenas alguns dos sintomas, dos mais patentes, da decomposição material e
moral de uma sociedade com mais de 200 milhões de habitantes.

Este gigantesco saldo daquilo que foi a segunda potência mundial, e a prostituição
política do antigo apparatchik transformado em executante das vontades dos Estados
Unidos e do FM1, resultam da restauração do capitalismo. Fala-se da "restauração"
do capitalismo, como se fala da "restauração da monarquia", a propósito do
movimento de 1815.

A Revolução Francesa cometeu alguns crimes: o terror jacobino, as corrupções dos


defensores de Termidor, a ditadura de Napoleão, mas a monarquia restaurada não se
contentou em deitar abaixo as estátuas de Napoleão e Robespierre: demoliu também as
de Rousseau, Voltaire e Diderot; prentendia limpar da memória francesa o Século da
Luzes e todos os aspectos positivos da Revolução. Tal como hoje muitos se não
contentam em derrubar as estátuas da decadência estalinista, querendo também as de
Marx e dos fundadores do socialismo. Finge-se esquecer as antigas orgias
capitalistas, a tirania dos czares da Rússia, a que então se chamava "a prisão dos
povos" por causa das perseguiçoes movidas contras as minorias étnicas e contra
qualquer movimento de libertação.

Apagar ao povo a memória é a condição necessária para qualquer retrocesso


histórico.

11 No Uzbequistão, a polícia revelou que as superficies cultivadas com papoila de


ópio cresceram seis vezes em dois anos: de 150 ha em 1991 para 1000 ha em 1993.

0 dirigente do comité de luta contra o "narco-business", Valentin Dimitrievich


Rachtine, escreve: "A droga está em explosão em toda a CEI. [. .. ] 14% da
população é afectada pela droga." 0 que representa quase 20 milhões de drogados,
como nos Estados Unidos.

53

y_

Para rever manuais escolares e enciclopédias e criar uma geração de jovens iniciada
com o tráfico de droga em negociatas mafiosas ou com fanatismos nacionalistas e
religiosos, em aventuras místico-chauvinistas, haveria que apagar da Rússia os
traços de São Sérgio e de Rublov, de Dostoíevskí e de ToIstoi, em beneficio de
Rastignacs e Rasputines.

Teria de se arrancar o ideal dos jovens comunistas, que sonhavam com a construção
do socialismo, e o canto que resumia as suas esperanças, de I)nieprostroi a
Estalinegrado, e que ainda em 1968 ouvi cantar nos estaleiros do lago Baikal.

Venceremos tudo: o deserto, o degelo,


0 duro Pólo e os grandes horizontes. Quando o país nos pede um milagre, Fazêmo-lo
sem hesistações e semfanfarronices.

Ter-se-ia de esquecer as próprias origens do socialismo.

Não foi Marx o primeiro a denunciar o capital. Gracchus Babeuf, em Junho de 179 1,
denunciava a lei Le Chapelier que proibiria durante três quartos de século a
formação de sindicatos operários como "lei bárbara ditada pelo capital".

Não foi Marx quem inventou a "luta de classes". Em 1833 (tinha Marx quinze anos),
Pierre Leroux, antigo seguidor de Saint-Simon, escrevia: "A actual luta dos
proletários contra a burguesia é a luta dos que não possuem os intrumentos de
produção contra aqueles que os possuem."

Não foi Marx o primeiro a desmistificar as mentiras da liberdade. Em 1838, o padre


Lacordaire escrevia: "Entre o forte e o fraco é a liberdade que oprime e a lei que
liberta."

Historicamente, o socialismo nasceu no século xix em sociedades onde as hierarquias


feudais tinham sido substituídas pelas hierarquias do dinheiro. Nasce daqui a ideia
de um outro regulador económico e social, o plano destinado, segundo Marx, "a dar a
cada pessoa todos os meios económicos, políticos e culturais de desenvolver
plenamente todas as suas potencialidades humanas". Definia-se assim o socialismo
quanto aos seus fins, sendo a socialização dos meios de produção apenas um meio.

54

0 pensamento de Marx não se assemelha em quase nada àquilo a que se chama


geralmente "marxismo".
Marx não procura, de modo nenhum, construir um sistema socíalista à maneira dos
utopistas. "Não fabrico receitas para as baiucas do futuro", dizia. Apenas analisa
a estrutura e as leis do crescimento da sociedade capitalista mais desenvolvida do
seu tempo: a Inglaterra.

Nela encontra duas características fundamentais. Numa economia de mercado, ou seja,


numa sociedade em que tudo, incluindo o trabalho humano, é mercadoria, instaura-se
uma selva sem finalidade especificamente humana: a economia de mercado do
capitalismo "não faz parte das formas animais de economia", escreve Marx a
Engels11, depois de ter lido Darwin.

Resume todo este quadro, numa carta a J. Bloch: "[Na economia de mercado] há
inúmeras forças mutuamente opostas, um conjunto infinito de paralelogramas de
forças com um resultado - o acontecimento histórico -, podendo ver-se nele próprio
o produto de uma força que age, cega e inconscientemente, como um todo. Pois os
desejos de um indivíduo são contrariados pelos outros, e o resultado acaba por ser
algo que ninguém quis11."

Destas competições darwinistas resulta urna crescente polarização entre a riqueza e


o poder, por um lado, e a miséria e a dependência, por outro. Marx define apenas os
fins da outra forma de regulação das rela-

ções sociais - da regulação consciente e especificamente humana. "0 comunismo,


abolição da propriedade privada dos meios de produção que representa a alienação do
Homem, é, por isto mesmo, uma verdadeira apropriação da essência humana, pelo Homem
e para o Homem. É uma reconquista do Homem, completa, consciente e que a nada
renuncia do património adquirido pelo anterior desenvolvimento do homem social, ou
seja, do homem humano. 0 Homem apropria-se do seu ser universal, de forma universal
e portanto enquanto Homem total", escreve Marx nos Manuscritos de 1844 ("0 trabalho
alienado").

12 Carta de 18 de Junho de 1862.

Engels, "Lettre à Joseph Bloch", in Etudes Philosophiques, Éditions Sociales, p.


129
55

Baseando-se no estudo das leis de desenvolvimento da economia inglesa do século


xix, Marx concebia o socialismo como superação das contradições de um capitalismo
chegado à plena maturidade. Segundo Marx, a Revolução Francesa forneceu o modelo
deste fenómeno: uma classe social, a burguesia, tomou-se economicamente dominante,
mas as relações sociais e políticas não acompanharam esse desenvolvimento, que se
viu limitado por estruturas ainda feudais. A revolução consistiria em destruir
estas estruturas caducas e harmonizar o regime político e social com a realidade
económica. Para Marx, a classe operária, em plena expansão da industrialização na
Europa ocidental (principalmente em Inglaterra e na França), é a nova "classe
ascendente", que tem como missão harmonizar as estruturas políticas e económicas
com a realidade económica desta hegemonia do proletariado sobre uma burguesia
incapaz de dominar os sistemas que ela própria criou.

Ora, historicamente, a primeira revolução a reclamar-se de marxista não se deu nem


se desenvolveu nas condições correspondentes à hipótese de Marx. Ao contrário da
Inglaterra, a Rússia de 1917 estava tão pouco industrializada que a classe operária
representava apenas 4% da população activa. Não podia, portanto, substituir a
burguesia, igual-

1 .
mente enfraquecida e incapaz de fazer a sua propria revolução contra os vestígios
feudais do regime czarista.

Em tais condições, uma revolução não pode ser gerada pelo simples amadurecimento
das contradições do capitalismo. É necessariamente conjuntural, nascendo, por
exemplo, do confronto, na Rússia de
1917, entre este campesinato e as novas formas de exploração capitalista dos campos
que Lenine analisou em 0 Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia; nascendo, enfim,
da guerra, da derrota e da impotência do sistema para resolver este conjunto de
problemas.

Revolução conjuntural mas, ao mesmo tempo, e pelas mesmas razões, revolução


pontual, isto é, surgida não num longo processo de amadurecimento - como Marx e
EngeIs previam - mas num acto fulgurante, uma vez que se tratava de aproveitar o
instante em que se conjugam certo número de contradições heterogéneas.

56

0 esquema revolucionário concebido Por Marx - baseado no exemplo da Revolução


Francesa - é assim invertido por Lenine: não será uma classe economicamente
dominante a harmonizar as instituições políticas e sociais com a sua efectiva
hegemonia económica; tratar-se-á, pelo contrário, de tomar o poder político,
aproveitando condições históricas favoráveis, para criar, graças a esse poder, as
condições económicas do socialismo.

0 paradoxo histórico foi querer fazer uma revolução "proletária" sem proletariado
ou, no máximo, com um proletariado embrionário.
0 desvio será terrível. Como dizia Trotski, o partido fala em nome

da classe, o aparelho em nome do partido, os dirigentes em nome do aparelho e,


finalmente, um só falará e pensará em nome de todos. Lenine muito cedo se apercebeu
de que a sua obra estava votada

ao fracasso. Já em 1920, escreve: "Nas condições em que os nossos sovietes


actualmente funcionam, ou seja, já sem participação real nas tomadas de decisão das
grandes massas, mas apenas sob o comando de alguns dos nossos militantes mais
instruídos, podem ainda, em rigor, construir o socialismo para o povo, mas já não o
construirão pelo povo."

Lenine, em 1920, antecipava já o terrível momento. Depois de ter dito que o "nosso
inimigo principal é o burocrata, o militante comunista que ocupa uma função
administrativa no Estado ou no Partido", acrescenta, numa resposta a Trotski que
falava do Estado proletário: "Que diz? É um mito! 0 nosso Estado é, em princípio,
um Estado proletário, mas é-o com uma dominante camponesa, em primeiro lugar, e com
urna deformação burocrata, em segundo."

Depois de Lenine, a necessidade de resistir às pressões externas e de criar uma


potência igual à dos rivais fez com que se desse priorídade absoluta à
industrialização, desconhecida neste país. A socialização dos meios de produção
acabou por não ser concebida como rede de cooperativas autogeridas, antes se
transformando no oposto - na estatização. Nesta concepção de Estado, os sovietes
que, inicialmente, eram conselhos operários e camponeses, tomaram-se meras
"correntes de transmissão" da máquina burocrática.

57

A oposição marxista de uma filosofia do acto a uma filosofia do ser transformou-se


na antítese maniqueísta, estéril e anti-histórica de um materialismo tido como
revolucionário contra um idealismo tido como fundamento do conservadorismo e da
reacção.

A dialéctica deixava de ser o método crítico e vivo de interrogação experimental do


real e voltava a ser um sistema e um catálogo de leis imutáveis. 0 materialismo
histórico de Marx, hipótese que constituíra um progresso decisivo na investigação
para rebater a ilusão de que as ideias são o motor da História e que apelava à
análise da sociedade como totalidade orgânica, foi mumificado numa filosofia da
História semelhante aos antigos providencialismos: as sociedades passam
necessariamente de um estado a outro para chegarem inevitavelmente ao comunismo.

Todas as expressões humanas da vida social foram destruídas ou desfiguradas. A fé


foi considerada uma "ideologia" de resignação e o ateísmo religião de Estado,
enquanto Marx, na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Regel,
considerando como "ópio do povo" o espírito da "Santa Aliança" voltado contra os
povos, via na religião, na mesma página e no mesmo raciocínio, "uma expressão da
miséria humana e também um protesto contra esta miséria"".

Exigiu-se que as artes se tomassem numa "corrente de transmissão" da propaganda


oficial, e o "realismo socialista" proibiu que se representasse a realidade para
não ver as suas contradições e tragédias`.

14 Um dirigente de um partido comunista denunciou esta perversão, pela primeira vez


depois do nascimento da URSS, quando, na "Semana do Pensamento Marxísta", em Lyon,
1964, respondendo a uma questão do padre Jolif, refutei eu próprio (na altura
membro do Comité Político do Partido Comunista Francês) a posição soviética (ver em
anexo o texto desta declaração tal como foi reproduzida em Informations Catholiques
Internationales e no jornal Le Monde).

11 A impostura de um pretenso "realismo socialista" foi combatida em França, em


1948, pelo artigo "Artistes sans uniformes", publicado na revista comunista Art de
France, que mereceu uma dura resposta de Aragon, reflectindo a posição ortodoxa do
partido nas Lettresfrançaises, e que me obrigou a uma "autocrítica".

Situação oposta dá-se em 1968: com o meu livro Um Realismo sem Fronteiras (sobre
Kafka, Picasso e Saint-John Perse) consegui a ruptura total do Partido Comunista
Francês com a ortodoxia estética da URSS, desta vez com o apoio de Aragon que, num
prefácio ao meu livro, escreveu, plenamente de acordo com Maurice Thorez, que este
livro constituía "um acontecimento".

58

0 pensamento foi concebido, à maneira positivista, como "reflexo" de uma realidade


exterior plena.

A exportação desta teologia sem Deus, considerando o modelo soviético como modelo
único e imutável do socialismo, conduziu os partidos comunistas da Europa e do
Terceiro Mundo a uma falência generalizada. Os do Terceiro Mundo porque o modelo
foi elaborado a partir de experiências limitadas ao Ocidente - por exemplo, a
economia política inglesa, a filosofia alemã ou o socialismo francês - e porque o
socialismo era aqui concebido como transição contra o capitalismo e o comunismo.
Mas, sem uma modificação radical, como se poderia aplicar este esquema de análise a
povos que não tinham as estruturas capitalistas, nem sequer feudais, que apenas o
Ocidente conheceu? Quanto aos partidos comunistas europeus: se Marx tinha dado um
exemplo de análise da História baseando-se no desenvolvimento de um capitalismo que
tinha chegado, na Europa, à maturidade, a Revolução Soviética, surgida em condições
excepcionais, só poderia servir como modelo universal para uma extrapolação
alucinada, desligada da realidade histórica do Ocidente.

Na Europa, o socialismo não representaria a superação de um capitalismo


subdesenvolvido como o da Rússia de 1917. Poderia nascer do desenvolvimento
orgânico das contradições de um capitalismo mas não de uma explosão conjuntural. E
menos ainda da destruição completa e brutal de uma economia de mercado, para impor,
de cima e pela força, uma planificação voluntarista desconhecedora da realidade das
estruturas económicas e sociais que são fruto da história própria de cada região,
do seu desenvolvimento técnico e político e da sua cultura.

A aplicação de um "modelo" importado, elaborado em condições radicalmente


diferentes, só podia levar a regimes de opressão, de tal modo que podemos mesmo
admirar-nos e regozijar-nos de que a sua derrocada na Polónia, Hungria, Bulgária,
Checoslováquia e Alemanha se tenha dado sem violência.

Foi um caso excepcional, mesmo único, na história das revoluções e contra-


revoluções.

59

0 pior no desenvolvimento deste "socialismo" são certos aspectos pedidos de


empréstimo aos postulados de base do capitalismo, à crença ocidental num modelo de
desenvolvimento único que se confunde com o crescimento quantitativo, garantido
pelas ciências e técnicas ocidentais. Na Rússia, o novo regime rapidamente mostrará
três perversões essenciais.

Marx formulou as três leis de crescimento optimus do capitalismo inglês, o mais


avançado do seu tempo, estabelecendo uma relação algébrica entre os investimentos
destinados à criação dos instrumentos de produção e os destinados à produção de
bens de consumo. Trata-se da única teoria do crescimento económico que sobreviveu
mais de um século.

Alguns discípulos dogmáticos fizeram desta lei descritiva do desenvolvimento do


capitalismo inglês do século xix, uma lei normativa do desenvolvimento do
socialismo russo do século xx. Erro fatal, que impediu de pensar o socialismo a
partir dos seusfins e que estabeleceu o dogma da total prioridade à indústria
pesada, imitando assim a desumanidade da industrialização selvagem do início do
século xix em Inglaterra ou na França.

Com as condições de atraso económico da Rússia em 1917 e, depois, com a


reconstrução das ruínas da Segunda Guerra Mundial, o primado do imperativo de
crescimento industrial pôde surgir como uma necessidade histórica, para não ser
esmagado pelo cerco das potências capitalistas.

As perdas humanas só se mostraram evidentes depois do arranque industrial (1937 e


os grandes processos), mas foram ocultadas pela necessidade de resistir, durante a
guerra, e só suscitaram as primeiras revoltas, nomeadamente, na Alemanha, na
Hungria e depois na Checoslováquia, após a reconstrução.

A segunda perversão consistiu em confundir socialização e estatização. 0 próprio


Marx troçava daqueles que definiam o socialismo pelas nacionalizações. "Bismarck,
dizia, seria o maior socialista da Europa por ter nacionalizado os correios 161"

16 Lenine, Oeuvres Complètes, i. xxxiii, Éditions Sociales, p. 488.

60

Em 1923, Lenine, num último artigo no Pravda sobre "o movi- i


mento cooperativo", definia a socialização como criação de uma rede

de cooperativas autogeridas. "No campo, dizia, a mudança durará 10 ou 20 anos, e


deverá realizar-se a partir de experiências bem sucedidas, sem antecipação da
tomada de consciência pelos camponeses do valor do sistema." Quando Estaline quis
colectivizar a agricultura em poucos meses e por meios autoritários, deu-lhe um
golpe de que ainda hoje se não recompôs.

A "socialização dos meios de produção", num país com um capi- i


talismo retardatário, fez com que a industrialização se implantasse não

a partir de cooperativas autogeridas, mas "a partir de cima", ou seja, através da


estatização e da centralização. 0 "plano", em vez de ser instrumento de humanização
da economia, de orientação da produção em função das necessidades humanas e não do
lucro, toma-se numa instituição hierarquizada de forma quase militar, sem
"participação" da base, onde tecnocratas, burocratas e membros do aparelho do
Partido detêm todos os poderes e decidem em nome dos trabalhadores, consultados só
formalmente e sem influência sobre as direcções centrais.

Esta concepção do papel do Estado está em contradição radical com a de Marx. Este
dava como exemplo de "forina de Estado socialista finalmente conseguida" a Comuna
de Paris, exacto oposto do Estado Soviético. A Comuna era, quanto aos seus
objectivos e numa forma embrionária, autogerida, federativa e não centralizada, sem
partido único: os proudhonistas tinham a maioria absoluta, havia blanquistas, mas
marxistas contava-se só um.

A terceira principal perversão consistiu em confundir planificação, que tem um


simples papel de orientação, com um método de gestão a partir de cima, determinando
investimentos, preços, normas de produção, distribuição comercial e devoluções de
poder a partir de uma burocracia central e dos aparelhos por ela designados.

Esta tripla perversão levou a economia ao caos e a liberdade à prisão. Um dos


maiores erros dos partidos comunistas foi o de terem seguido como modelo de
organização, sob a designação de "centralismo democrático", o panfleto de Lenine, 0
Que Fazer?, que preconizava para o par-

61

tido uma organização de tipo militar Mas os seus discípulos esqueceram-se de que
Lenine a tinha concebido exclusivamente para a clandestinidade, contra a violenta
repressão warista. Manter este "comunismo de guerra" no partido em tempo de paz só
poderia levar à derrocada.

Com a União Soviética morreu, portanto, não o marxismo mas a sua trágica
caricatura.

Penso que nunca como hoje se verificou tão claramente a previsão de Marx.

0 futuro do sistema capitalista foi prognosticado por dois grandes teóricos seus:
Adam Smith e Karl Marx.

Adam Smith, a quem chamaram "pai da economia política", desenvolveu na sua obra
fundamental, A Riqueza das Nações, a dita teoria "clássica" do crescimento
económico, que constitui a principal linha directriz daquilo a que se convencionou
chamar, ainda nos nossos dias, "liberalismo".

A sua tese principal é que se a acção individual for guiada por interesse de lucro
pessoal, satisfazer-se-á um interesse geral. A harmonia será garantida por uma "mão
invisível".

Marx, pelo contrário, partindo de uma profunda análise da obra de Adam Smith,
reconhece que o capitalismo assim concebido criará grandes riquezas e estimulará o
desenvolvimento das técnicas (e no Capital não esconde a sua admiração por este
dinamismo prometeico do sistema) mas que simultaneamente criará misérias e
desigualdades terríveis.

Ora, actualmente (como lembrámos na Introdução), a crescente concentração da


riqueza numa minoria e da miséria nas massas é evidente, tanto à escala mundial
como nacional.

Adam Smith, no fim do século xviii, e Karl Marx, em meados do século xix,
analisaram o capitalismo num período de expansão e fizeram previsões diferentes.
Hoje, reinando o "liberalismo" sozinho à escala planetária, podemos perguntar qual
deles terá previsto mais acertadamente o futuro do capitalismo: Adam Smith, ao
afirmar que se cada um seguir o seu interesse pessoal é o interesse geral que será
satisfeito, ou Marx, ao analisar os mecanismos de acumulação da riqueza num pólo e
da miséria noutro?

62

Marx mostrou como superar esta contradição: através de um plano que oriente o
mercado para a protecção dos mais fracos, para pôr as riquezas produzidas ao
serviço do desenvolvimento de todo e qualquer homem e não da sua exclusão e da sua
morte.

Hoje mais que nunca apresenta-se-nos a escolha entre "o socialismo e a barbárie".
Entre a barbárie que gera divisões e exclusões fatais, seja à escala do mundo ou de
cada sociedade, e o socialismo que não é mais do que a procura dos meios para
evitar esta polarização, dando prioridade à unidade da Humanidade e ao desabrochar,
em cada homem, da plenitude da sua Humanidade.

Mas a chegada do socialismo não é fatal. Só para o "hornem alienado" do capitalismo


existe determinismo: os seus desvios conduzem-nos actualmente à barbárie das
crescentes polarizações da riqueza e da miséria e a um suicídio planetário.

Pelo contrário, afirmava Marx, o crescimento da alienação nunca é tão pronunciado


que impeça a luta contra essa mesma alienação. 0 que revelava, nas suas análises, o
triunfo da transcendência do Homem sobre os determinismos parciais da natureza.

Ofuturo não é aquilo que tiver de ser, mas aquilo que nósfizermos.

63

6i

UMA GUERRA ENTRE 0 MONOTEíSMO DE MERCADO E 0 SENTIDO?

Jesus não definiu qualquer programa político ou doutrina social que se impusesse a
todos os tempos e povos.

Não se trata, portanto, de, em nome da fé, querer sacralizar a obrigação de ser de
esquerda ou de direita. Mas podemos e devemos proclamar bem alto que, em nome da
nossa fé, não podemos continuar a tolerar a divisão do mundo entre Norte e Sul e a
acumulação da riqueza num pólo da sociedade, e da miséria, noutro. Nem a nossa vida
pessoal nem a nossa história comum terão sentido se o mundo não for um só.

A nossa missão é reunir todos os homens de fé - seja qual for - contra o actual
mundo do não-senfido, criar núcleos de resistência, denunciando e combatendo tudo o
que se opuser à unidade sinfónica do mundo, em que cada criança, cada mulher e cada
homem possam desenvolver plenamente todo o valor humano que em si carregam, para
que cada povo, cada cultura e cada fé dêem o seu contributo para a fecunda unidade
do mundo.
Isto implica que combatamos tudo o que se opõe a esta unidade, pretendendo impor
urna dominação imperial e, pura e simplesmente, uma falsa unidade.

0 que é o monoteísmo do mercado?

0 combate pressupõe que comecemos por destruir as instituições em que assenta o


monoteísmo do mercado e que são actualmente o
65

"braço secular" dos senhores do mundo, dos Estados Unidos e dos seus cúmplices e
vassalos dos G7: o GATTI, o FM1, o Banco Mundial, todos os instrumentos que, em
nome de uma pretensa liberdade, impõem a idolatria do dinheiro.

Para justificar a integração no sistema de mercado mundial sob domínio americano, a


ideologia dos media cultiva a ideia de "necessidade", como se a economia fosse
somente uma ciência das coisas e não uma organização voluntária de homens. Quer-se
fazer crer, por exemplo, que a única alternativa ao GATT é um encerramento
nacionalista e proteccionista que levará ao isolamento e à asfixia. No entanto, já
demonstrámos que uma mudança radical nas relações com o Terceiro Mundo abriria as
portas de um "mercado" (de um novo tipo) infinitamente mais vasto que o da
"trilateral" (Estados Unidos, Europa, Japão), com as suas lutas selvagens pela
competitividade entre potências económicas rivais e nunca complementares. Os
Estados Unidos, que exigem a total desregulamentação das economias dos outros
países, para não encontrarem obstáculos à sua expansão, continuam, por seu lado, a
praticar um proteccionismo selvagem: o artigo 301 da lei americana autoriza a
aplicação de sanções unilaterais a quem tentar limitar as "livres" importações da
produção americana. A nossa agricultura, a que se impõe a exigência do pousio, o
nosso cinema, os nossos vinhos, a nossa siderurgia, a nossa informática, os nossos
aviões, vêem-se assim colonizados pelos americanos.

0 Terceiro Mundo poderá representar um espaço económico muito mais vasto, com duas
condições:

A primeira é não o considerar como escoadouro ou vazadouro dos excessos das nossas
economias disformes, que produzem mais para o armamento e para o gadget do que para
as necessidades reais dos povos (nossos e deles).

A segunda é tomar "solventes" os três biliões de actuais insolventes, praticando em


relação a eles uma política diametralmente oposta à do FMI que desde há um quarto
de século devasta o Terceiro

' Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio. (X do T.)

66

Mundo, impondo-lhe o "modelo de desenvolvimento" ocidental. Trata-se, ao contrário


do que faz o FM1, de permitir que estes povos inventem modos de desenvolvimento
"endógenos", ou seja, formas que garantam a auto-suficiência alimentar e o
desenvolvimento das necessidades específicas surgidas ao longo da sua história, na
sua cultura e ambiente natural.

Os media e o não-sentido

Todas as grandes mutações da Humanidade começam na consciência dos homens: provam-


no os grandes levantamentos espirituais do budismo, do cristianismo, do islão, da
Reforma; provam-no as grandes revoluções, por exemplo, a Revolução Francesa,
preparada pelo Século das Luzes e da Enciclopédia, ou, mais próxima de nós, a
libertação da índia, remontando, com Gliandi, às fontes do Vedanta, ou, ainda, o
papel da religião na revolução iraniana contra as "modernidades" importadas.

Para preparar novos "levantamentos" desta importância, é contra a manipulação e


nivelamento dos espíritos pelos media - nomeadamente pela televisão - que se
iniciará o combate.

. 1 .

As funções da televisão distribuem-se, em principio, por três sectores: a


informação, o entretenimento e a formação. Face à lei do mercado que ordena os
programas em função da audiência (que por sua vez determina a publicidade),
ouvintes e telespectadores são vistos como uma simples clientela.

No que respeita à informação, as imagens, e os "factos", vendem-se como mercadorias


e são mesmo escolhidas por algumas firmas, à escala mundial. Mas os Murdock,
MaxwelI, Hersant ou Berlusconi não são meros vendedores do sensacional, do sádico,
do macabro. São também políticos, manipulando as "opiniões públicas" para fazer
aceitar os massacres, como o canal americano CNN, por exemplo, que durante a Guerra
do Golfo detinha total monopólio da informação.

A informação, o facto, a imagem, não são só mercadorias - são também armas.

67

Eis alguns exemplos, apresentados pelo general Gallois, no prefácio a um livro de


Jacques Merlinol:

"Enquanto o presidente Bush pedia o apoio dos seus concidadãos para a operação de
destruição do Iraque por si projectada, e os kuwaitianos se angustiavam por causa
do pouco interesse dos americanos pela sua causa, uma agência de relações públicas
americana (Hill and KnowIton) era financiada pelos países petrolíferos da Península
Arábica, para interceder a favor da libertação do Kuwait. A agência serviu-se do
estratagema mais eficaz, de um golpe infalível que mobilizaria toda a América:
divulgou o relato de uma jovem refugiada, que por milagre escapou aos soldados
iraquianos, sobre a morte deliberada de recém-nascidos. Escondendo o nome por temer
represálias contra a sua família, ainda nas mãos dos invasores, e de lágrimas nos
olhos, a jovem contou minuciosamente como os iraquianos tinham retirado vinte e
dois bebés das incubadoras, atirando-os ao chão, onde os deixaram agonizar.
Escassos minutos televisivos tão perturbantes que os americanos exigiram vingança.
Saffiam Hussein era diabolizado, o seu povo proscrito, e justificavam-se de antemão
os massacres posteriores e o embargo que causou a morte a cerca de 200 000
iraquianos, especialmente crianças. Terminada a guerra, soube-se' que graças a este
programa, a agência Hill and KnowItort conseguiu 'manipular', por 10 milhões de
dólares, 250 milhões de americanos: na verdade, a 'refugiada' era a filha do
embaixador do Kuwait junto das Nações Unidas e a história dos bebés arrancados das
suas incubadoras era uma invenção que enganou o próprio presidente Bush, que se lhe
referiu diversas vezes, no Senado, na televisão e nos jornais."

Um outro exemplo, o da Sornália: "A Somália está muito bem situada


estrategicamente, à saída do Mar Vermelho, relativamente perto da Península Arábica
e da rota mais frequentada pelos petroleiros que passam ao seu largo. Os Estados
Unidos instalaram no território dois grandes

2Les Vérités Yougoslaves ne Sontpas Toutes Bonnes à Dire, Albin Michel, 1993, pp.
15-19.

1 Através do programa "Sixty Minutes", do canal televisivo norte-americano CBS.

68
aeródromos e uma estação de rastreio da 'circulação' dos seus satélites. Foi por
isto, sem dúvida, que a fome que afecta a população deste país mereceu tantas
reportagens televisivas: desta forma se preparou a opinião pública para uma
gigantesca intervenção militar e humanitária. Realizou-se com sucesso desigual mas,
graças às imagens, foi quase aprovada."

Graças a estas opções, os Estados Unidos e seus aliados na Somália foram vistos
como benfeitores da Humanidade. Na verdade, as provisões que distribuíram, fazendo-
o frente a dezenas de câmaras, não representavam mais de 10% das que organizações
humanitárias mais discretas distribuíam todos os dias.

No que toca à segunda função da televisão, o entretenimento, as realizações


obedecem-às mesmas leis do mercado, e, neste domínio, a regra é a exploração dos
instintos mais baixos, dos "instintos básicos" do sangue e do sexo.

Já Sócrates sabia que entre medicamentos e doçaria nenhuma criança hesita. Mas os
senhores do espectáculo não se contentam em tratar os espectadores como crianças.

Dizia Adolf Hitler, também ele mestre da manipulação dos espíritos: "Perante um
auditório, para ter a sua adesão, aponto ao mais animalesco e mais baixo: às
glândulas... lacrimais ou sexuais... E ganho sempre. Tratarei da minoria crítica
com outros métodos."

Um dos produtores de variedades da TF 14 declarou à revista Télérama:


"Quanto mais rasteiro, mais audiência temos; é assim mesmo! Devemos apresentar
coisas inteligentes? Mas se os espectadores não estão para grandes reflexões!
Deixemo-nos de brincar aos professores." 0 paralelismo é cruel, mas dá que pensar.

Mas as audiências, e o "audimat"', no entanto, não nascem por geração espontânea.

Abundam assim, nos pequenos écrans do mundo inteiro, as vedetas do tele-lixo saídas
das piores produções americanas, da Madonna

Primeiro canal privado francês. (N. do T)

Dispositivo automático de contagem de audiências televisivas. (X do T.)

69

aos heróis exterminadores, para quem todas as relações humanas passam pela mediação
do revólver, ou aos heróis de "Dallas", para quem todas as relações humanas passam
pela mediação do dólar.

Restam os concursos, cujo vício mais inofensivo é dar um ideia perversa da cultura:
confundir cultura com memória, memória de tudo e mais alguma coisa, desde a data da
primeira Volta à França em bicicleta ao comprimento do rio Orinoco. Este é o vício
mais inofensivo, pois há ainda o dos jogos de azar, das corridas de cavalos às
lotarias, para os quais se inventou o inesquecível slogan "É fácil e dá milhões!" A
isto se resume a moral do sistema, a esperança ilusória que pode ter quem não tem
mais nada.

Dada a forma como a televisão se encarrega das suas três funções, o resultado
habitual é a destruição de todo o espírito crítico, de qualquer tentativa de
procura de sentido. Qualquer projecto é afastado da paisagem audiovisual e
mediática pela censura, explícita ou implícita, das leis do mercado e do poder seu
protector, ambos submetidos ao monoteísmo do mercado.

Contra a "ocupação" cultural (ou melhor, anticultural), a "resistência" deve


começar por um esclarecimento, para desmascarar os pretextos ideológicos que
escondem o poder imperial dos Estados Unidos, vanguarda da decadência do Ocidente.
Depois deste trabalho de desmistificação ideológica, conseguir-se-á o boicote
económico das exportações mais simbólicas da incultura americana. Esta resistência
começa com o desenvolvimento de associações de telespectadores, para impor o
respeito pelos direitos das minorias provisorias, obtendo espaços para repelir
progressivamente os filmes e séries americanas, os concursos copiados dos canais
comerciais americanos, as desinformações pescadas nas agências de textos ou
imagens. Contra a sistemática desinformação é importante que conheçamos, por
exemplo, os preços comparados da luta contra a desertificação do Sara utilizando
captores solares e bombas hidráulicas e os de um porta-aviões ou de uma expedição
na Lua. Só desta forma será possível orientar a discussão para a reflexão colectiva
sobre os projectos de futuro e os fins últimos da Humanidade.

70

A prática do boicote altera radicalmente o estilo da acção política. Principalmente


porque não implica alistamentos nem delegações de poder, antes requer, pelo
contrário, responsabilidade e compromisso pessoais, acarretando por vezes alguns
sacrificios - o sacrificio das nossas preferências televisivas habituais - que
rnodíficarão o nosso "modo de vída", já bastante americanizado.

É uma acção não violenta, mas que pode envolver riscos pessoais, na medida em que,
adquirindo o movimento alguma importância, podem-se encarar medidas mais
ambiciosas, como seja a recusa de taxas contra a invasão americana das televisões,
ou mesmo uma greve selectiva ao pagamento de impostos.

A outra metade do mundo

Para trabalhar para a unidade do mundo, uma das primeiras medidas será a abolição
da dívida do Terceiro Mundo. Esta suposta dívida não tem fundamento histórico nem
justificação.

Perguntemos, para começar, quem é o devedor? 0 Ocidente, na verdade, tem uma enorme
dívida para com o Terceiro Mundo: quem reembolsou o Peru pelas toneladas de prata e
ouro pilhadas pelos conquistadores deste país? Quem reembolsou a índia por todo o
algodão que enriqueceu Manchester? Quem reembolsou o Iraque, o Irão, todos os
países petrolíferos, pelo petróleo levado a preço de chuva por colonizadores e
multinacionais?

Em segundo lugar, reflictamos sobre a causa do endividamento actual. Antes da


pretensa "descolonização política", os antigos países colonizadores desorganizaram
as economias autóctones, nomeadamente sacrificando as culturas alimentares a favor
da monocultura e da monoprodução, tomando-as apêndices das economias
metropolitanas, para lucro exclusivo destas. Por causa disto, as economias
autóctones não conseguiam garantir nem independência nem auto-suficiência
alimentar. A mão-de-obra industrial não correspondia às necessidades destes países.
A dependência continuou, portanto, e os empréstimos foram inevitáveis.

71

Em qualquer dos casos, as dívidasjá estão saldadas há muito, através dos juros
usurários pagos aos credores estrangeiros. A Argélia, por exemplo, com uma dívida
de 26 milhões de dólares, paga por ano, em juros, 6 milhões. Em tais condições, não
há recuperação económica possível, e este facto é a principal origem dos
integrismos.

A segunda medida seria a imediata cessação da pretensa "ajuda" a estes Estados.


Esta "ajuda" é canalizada pelos governos, cujos chefes e pandilhas urbanas ou
feudais e tribais suas apoiantes se servem deste dinheiro em proveito próprio ou
para a compra de armamento destinado à repressão contra os próprios povos.

Enfim, tanto no Noite como no Sul, grande parte da "ajuda" alimenta um vasto
sistema de corrupção.

Os empréstimos e investimentos devem ser canalizados directamente para as


populações, sem quaisquer paternalismos: mesmo os empréstimos a longo prazo devem
ser pagos integralmente, pois o que se pretende principalmente é responsabilizar os
beneficiários destes empréstimos ou investimentos.

0 método utilizado seria o inverso do do FML

1.' Os empréstimos não serão canalizados pelos governos: emprestadores ou


investidores entram em contacto directo com as associações de produtores,
cooperativas, sindicatos ou comunidades de base.

Principalmente em África, foi já suscitado o implemento de associações de


produtores deste gênero e os resultados foram quase sempre positivos, na medida em
que os grupos empregam as técnicas mais apropriadas ao seu solo, cultura e
tradiçoes.

A inesperada riqueza destas iniciativas e o desenvolvimento de técnicas


"apropriadas" permitem antever o aparecimento de formas de desenvolvimento
"endógenas" e não impostas segundo o modelo ocidental.

1
2.' Os empréstimos e investimentos só serão atribuídos a projectos especificamente
de obras de utilidade pública: por exemplo, desenvolvimento de culturas ou
trabalhos de irrigação, de transportes, de infra-estruturas.

72

Os reembolsos far-se-ão na moeda do país, para fomentar reinvestimentos locais (em


vez do simples repatriamento dos lucros pelo credor estrangeiro).

Multiplicar-se-iam assim as trocas Sul-Sul (80% dos recursos mundiais) em vez de


termos os pobres do Sul a pagar o luxo das classes abastadas do Norte, como
acontece hoje.

3.' Estas trocas deveriam ser, quanto aos bens essenciais, trocas directas, para
não se gastarem divisas estrangeiras (nomeadamente dólares) e evitar as
especulações que as regem.

4.' Impõe-se a revalorização dos preços das exportações dos países de Sul para pôr
termo a trocas cada vez mais desiguais: em 1954 bastavam a um brasileiro 14 sacos
de café para comprar um jipe aos Estados Unidos. Em 1962, já eram precisos
39 sacos. Em 1964, um jamaicano comprava um tractor americano com 680 t de açúcar e
em 1968 com 3500 t. Persiste a desigualdade colonial. Os países pobres continuam a
subsidiar os países ricos. 0 PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento) refere: "De 1983 a 1991, o índice ponderado de um grupo de 33
produtos básicos (excluindo a energia) diminuiu praticamente metade, passando do
índice 105 ao
57. [... ] Entre meados de 1989 e meados de 1991, os preços de exportação dos
produtos básicos dos países em vias de desenvolvimento baixaram 20%. Em 1991 [
... ] os preços em valor real do café e do chá desceram ao seu mais baixo nível
desde 1950."

Todas as medidas sugeridas para uma mudança radical nas nossas relações com o
Terceiro Mundo vão no sentido de o libertar da servidão do mercado global integrado
(tal como o entendem os dirigentes ocidentais) de que são as principais vítimas.

Para os dirigentes ocidentais, dois terços da Humanidade são insolventes, é de


mais.

Mostrámos já a que espécie de negação da unidade humana leva esta idolatria do


mercado.

73

Continuam a morrer no mundo (isto é, na maior parte dos casos, no Terceiro Mundo),
por dia, 35 000 crianças, de uma combinação de doenças facilmente evitáveis ou
curáveis e de subnutrição. Cerca de
60% destas mortes são, de facto, imputáveis a três doenças: pneumonia, diarreia e
rubéola.

Para 10 milhões de crianças em todo o mundo, a falta de vitamina A constitui um


risco de morte, de doenças graves e de cegueira (chegam a cegar cerca de 250 000
por ano). A falta de iodo ameaça um milhar de milhão de pessoas e representa uma
das principais causas de deficiências mentais no mundo, e isto quando se sabe que a
quantidade de iodo necessária para toda a vida cabe numa colher de café. A
erradicação desta carência custaria 100 milhões de dólares, ou seja, o equivalente
a dois aviões de combate.

Para dar a cada família acesso a água potável e a meios de saneamento básico, que
reduziria num terço a mortalidade das crianças com menos de 5 anos e em metade a
taxa de mortalidade materna, os países do Norte deveriam disponibilizar mais 25
biliões de dólares do que o que gastam actualmente com o desenvolvimento. Esta soma
é inferior às somas gastas por ano em vinho, pelos europeus, ou em cerveja, pelos
americanos.

Um exemplo ainda mais impressionante: o Sara foi, há alguns milhares de anos, uma
floresta. É possível torná-lo fértil novamente, de Dakar a Mogadiscio, acabando
assim com a fome em África.

A sua irrigação requer três tipos de empreendimentos:

1.' A construção de pequenas "barragens de colina", sobretudo na periferia do


deserto, para retenção das águas durante a estação pluvial.

2.' A utilização de lençóis freáticos. Encontram-se a pouca profundidade, por isso


a sua exploração é pouco dispendiosa.

3.' 0 acesso às "bolsas fôsseis", com conteúdo vastíssimo. São profundas, mas
bastante menos que as jazidas petrolíferas de Hassi Messaoud, onde os poços chegam
aos 2000 m.

74

0 custo destes empreendimentos foi avaliado, por especialistas, num bilião e meio
de dólares. É o preço de um porta-aviões mais os seus 86 aviões Rafale. É cerca de
100 vezes menos do que a totalidade de crédito em equipamento militar previsto para
os orçamentos franceses de 1995 a 2000. (De 613 a 620 milhares de milhões de
francos fora a inflação, o equivalente a 150 milhares de milhões de dólares). Mais
uma comparação: o custo da fertilização do Sara representa um décimo do montante
fornecido em armas pelos Estados Unidos aos países em vias de desenvolvimento, em
1992 (15 milhares de milhões de dólares).
Uma mutação do Ocidente

0 "crescimento", na acepção ocidental do termo, e a criação de novas necessidades,


mesmo artificiais ou degradantes. A corrida às geringonças electrónicas é um
exemplo actual, típico desta economia do desperdício. Será realmente um progresso
do homem ter acesso a quatrocentos canais internacionais de TV? Ou oferecer aos
nossos filhos jogos electrónicos "interactivos", mais sofisticados ainda que o
Nintendo, em que poderão participar numa guerra ou numa violação colectiva?

Pôr o mundo nos eixos significa, primeiro, devolver ao mercado a sua verdadeira
função, que é ser o local de manifestação e satisfação das necessidades materiais e
espirituais autenticamente humanas.

Isto requer, como primeira medida correctiva, como medida para o verdadeiro
renascimento do homem, uma reconversão de todo o nosso aparelho produtivo. 0
exemplo mais impressionante é o da indústria de armamento que actualmente
representa 7% do produto nacional bruto francês, e que faz da França o terceiro
mercado de armamento mundial, a seguir à Rússia e aos Estados Unidos.

0 trabalho de investigação científica militar é tão intenso e tão fortemente


financiado que pode ter como subsidiários exclusivos muitos centros civis de todos
os domínios, da Física à Biologia, da Astronomia

75

à Resistência de Materiais ou à Química. Como se a investigação para a vida fosse


apenas um subproduto das indústrias da morte.

0 número dos que, directa ou indirectamente, trabalham para a morte é tal que se
chega a invocar o argumento do desemprego para manter activos os arsenais e seus
anexos. E, no entanto, quantos meios de desenvolvimento humano podiam ser criados
com a reconversão desta indústria estéril, quanta maquinaria agrícola para o
Terceiro Mundo, quantos meios de transporte inovadores, quanta tecnologia de
extracção de metal subaquática, quantas próteses inteligentes, e tantas outras
coisas!

Actualmente, desaparecido o alvo soviético, os nossos exércitos, com os outros


suseranos da NATO, limitam-se a perguntar: que traz o futuro? Quem nos ameaça?
Contra quem temos de nos defender? Se não houver intervenções pós-coloniais por
empreitada ou eventuais repressões internas.

Mas o armamento não é a única indústria a reconverter. Há outras actividades


igualmente nocivas, porque fazem guerra ao espírito. Especialmente apublicidade,
que desempenha um papel maléfico, mas decisivo, no estímulo das necessidades. Tudo
se passa, nesta sociedade em que a publicidade é motor, como se vivêssemos de
acordo com a desumanizante máxima dos sofistas atenienses, que já Platão criticava:
"0 Bem é ter os desejos mais intensos possíveis e encontrar os meios (quaisquer que
sejam) para os satisfazer."

A publicidade não se contenta em devastar florestas inteiras para os seus folhetos


e catálogos da mentira. Tem um papel determinante no financiamento, logo na
orientação, da imprensa e televisão, e mesmo na promoção política de indivíduos
cujo look é mais importante do que o projecto ou os argumentos.

Abriu-se assim um novo mercado para o fabrico da imagem de dirigente pelos


"conselheiros de comunicação". Estima-se que o custo médio deste fabrico, nos
Estados Unidos, ronde os dois milhões de dólares. A "econornia de mercado" criou um
novo poder "mediacrático", constituído pela negra trindade do gestor de empresa de
comunicação, do programador televisivo e do dirigente partidário. A "mediacracia"
toma-se assim o pseudónimo político do monoteísmo do mercado.

76

Aqui tratámos apenas de dois dos principais exemplos da indústria do inútil (o


armamento e a publicidade). Ficaram milhares por tratar.

Estes poderiam ser os primeiros passos para um autêntico avanço do Homem:

- a orientação decisiva em direcção à unidade sinfónica do mundo, modificando ponto


por ponto as nossas relações com o Terceiro Mundo;

- simetricamente, a recusa de uma unidade imperial para benefilcio de uma


superpotência que perpetua e agrava a dualidade mortal do mundo;

- uma mutação das nossas atitudes, pela qual a conversão ao Uno e o desenvolvimento
do espírito criador surgiriam inicialmente de uma reconversão da nossa produção e
da indexação sobre a produtividade da duração do horário de trabalho.

Poderíamos desta forma começar a cumprir o voto milenário de todas as sabedorias


que os Padres da Igreja resumiam nesta fórmula sublime: Deus fez-se homem para que
o Homem se possa fazer Deus.

77

V-
1

I I

'z'
7 ,-ANN

DE QUE DEUS PRECISAMOS?

Crença e fé

A interrogação do pastor Bonhoeffer, antes de ser executado por Hitler há meio


século, é mais actual que nunca: como falar de fé a homens sem religião? Pode
existir um cristianismo sem religião?

Todas as religiões, até Jesus, faziam do poder, ou mesmo de todo-o-poder, o


principal atributo de Deus, fosse ele Zeus ou Jeová. Era um poder exterior ao
Homem, que regia o seu destino e exigia a sua obediência.

E eis que nos nossos dias o Homem é capaz de fazer quase tudo o que dantes se
tomava por blasfémia humana ou por milagre de Deus.
0 Homem consegue construir uma Torre de Babel e, como um deus, pulverizá-la por
implosão em segundos.

Pode voar como os anjos.

Deixou de erguer o olhar e implorar a um deus que se pavoneava para além da abóbada
de buracos dourados das estrelas.

Ofiat lux! é corriqueiro: expulsar a noite e fazer a luz é agora brincadeira de


crianças.
Com um stock de milhares de bombas atómicas, o Homem pode destruir o mundo.

E a Criação?, perguntarão. E é esta a questão fundamental: posso conceber a


Criação, dê-se ela em seis dias ou num simples "bang", sem
79

procurar algo anterior a esse anterior primordial? Não será a "Criação" o nome que
dou à minha propna ignorancia pnmordial, acrescida da certeza de não me ter criado
a mim próprio, e que oculto sob imagens demasiado humanas, como as do oleiro ou do
soberano?

Não será a fé tomar consciência desta insuficiência essencial e desta ausência? Não
será a recusa de um ersatz' de resposta àquilo que não tem resposta uma mitologia
ingénua da criação a partir do nada, como se a própria palavra "nada" não tivesse
conteúdo e sentido?

E, no entanto, não posso iludir esta questão sem resposta. Pois a suficiência é o
oposto da transcendência, e reconduz-me aos deuses da potência: projecto a minha
impotência e com isto crio o meu Deus Zeus, Jeová ou o homem pretensioso que
acredita que, proclamando a morte de Deus, se toma seu herdeiro.

Pobre herdeiro mortal! Porque há a morte, essa que não posso negar para me igualar
a estas potências que são a projecção celeste da minha impotência.

0 cristianismo, diz o pastor Bonhoeffer, é a única religião cujo Deus é impotente.


Foi a primeira vez que os homens, vendo morrer um dos mais desprotegidos de entre
eles, puderam pensar: é Deus. E o primeiro verdadeiro Deus, porque não tem poder.
Ao contrário de todos os antigos deuses, lançadores de raios e coriscos ou "deus
dos exércitos", que a sua imaginação projectava no céu para compensar a sua
fraqueza e limitações.

Mas esta fé perturbante, reduzindo todos os antigos falsos deuses com poder à
ilusão da magia, não se podia estabelecer em grande escala junto dos povos, gregos
ou judeus, desde sempre submetidos aos deuses dos raios e dos exércitos.

São Paulo, contemporâneo de Jesus, transforma então o sentido da Sua verdadeira


morte ao fazer da Sua ressurreição um milagre do poder do antigo Deus, e não o que
efectivamente foi e continua a ser - uma mutação radical da vida dos que nela
acreditam.

0 judaísmo reformulado de Paulo restaura o poder do "Deus dos exércitos". Faz Jesus
dizer, depois de morto, o contrário de tudo o que

1 Alemão no original. Sucedâneo, substituto. (N. do T)

80

ao longo da vida dissera: faz dele um novo Deus todo-poderoso, que regressará "com
os anjos do seu podem (2 Te. 1, 7). Atribui ao carpinteiro dos humildes a coroa
real de David, desse condottiere de quem Samuel conta inúmeras traições e
crueldades (1 S. 16 a 2, 23). Faz de Jesus o mensageiro do "Deus dos exércitos", do
Deus que garantiu a vitória de Josué para exterminar os povos de Canaan. (Ac. 13,
19).

Só séculos e séculos de luta contra os poderes das igrejas herdeiras do Império


Romano e seus aliados limparão da mensagem de Jesus a imagem de um Cristo vencedor
e vingador, tapa-buracos da nossa ignorância e da nossa impotência, e permitirão
que renasça o homem sem magia, devolvendo-nos a nossa responsabilidade sem limite e
sem consolação.

Foi assim com Joaquim de Flora, monge calabrês do século xii, que mostrou à
Humanidade a visão do que e o homem habitado por Deus, que proclamou o fim do Reino
do Pai e da Lei, do Filho confiscado pela Igreja, para assim chegar à plenitude do
Espírito anunciador de Jesus - Jesus sem propriedade, sem poder, sem Igreja. Depois
de Jesus, alguns homens ousaram viver a sua vida divina, mas sem acreditar no
recurso a promessas ou milagres. Habitados por Deus, ou seja, pelo sentimento de
tudo o que lhes falta, e, para colmatar esta falta, infinitamente responsáveis.

Esta fé é a mesma que fez o padre Chenu. afirmar: "0 meu Deus é um homem", e ao
pastor Bonhoeffer: "Ele não proclamou uma nova religião [ ... 1 Ele deu-nos o
exemplo de um homem totalmente livre, mesmo quando o vemos despojado de todo o
poder." Ele nunca limitou a nossa plena responsabilidade.

Como escreve Bonhoeffer, "Jesus propõe-nos uma nova maneira de viver sem esperar
por auxílio exterior, e de morrer sem troca ou promessa de outra vida." Escreve
ainda: "Ser cristão não significa ser religioso... significa ser homem." "Jesus não
apela a uma nova religião mas sim à vida." A uma vida totalmente responsável.

À pergunta "Pode existir um cristianismo sem religião? Se sim, que acontecerá à


ideia que temos de Deus?", Bonhoeffer responde: "0 Deus dos cristãos não tem poder.
É isto que Lhe dá força e origi-

81

nalidade." É justamente esta a sua contribuição insubstituível para a fé de todos


os homens de fé que querem purificar a sua adoração de quaisquer crenças mágicas.

A crença é uma ideologia, é a adesão a certas concepções sobre a origem do mundo,


sobre forças superiores que o conduzem, sobre a vida depois da morte, sobre os
castigos infernais ou as recompensas paradisíacas que se podem esperar..

A fé, por seu lado, é um acto. É, principalmente, um postulado, uma escolha, um


partido que orienta toda a nossa vida: o mundo tem uma unidade, um sentido, como se
fosse uma obra de arte sempre em construção, com um futuro de que somos
responsáveis? A consciência daquilo que em nós há de mais íntimo coincide com o
centro do todo da vida. A fé é a decisão, constantemente renovada, de ser uno com o
todo.

0 Deus de que falamos não é o da crença, mas sim o da fé. Muitas vezes é dificil
separá-los. Cada religião, ou seja, cada cultura, está mais ou menos ligada a uma
visão do mundo.

A representação do mundo ligada a uma cultura evoluí com o conhecimento, com a


ciência e com a arte. A fé alimenta-se de imagens, de símbolos, tomando-se então,
através de uma interpretação dada pelas crenças, uma religião. Não há grande perigo
enquanto se distinguir a realidade das palavras ou das metáforas, o símbolo da
alegoria, a história da mitologia, o ícone (signo do que a ultrapassa) do ídolo,
que reduz o infinito ao finito.

A fé, sem dúvida, por mais pura que se pretenda, não pode subsistir na atmosfera
rarefeita de um mundo sem imagens. Basta que tenha sempre presente que a crença, o
dogma ou o rito, as instituições e as hierarquias são provisórias e relativas; sem
o que, segundo a expressão de Paul Ricoeur, "a religião é uma alienação da fé."

A fé é una, inseparável da própria vida no seu desenvolvimento. Crenças e religiões


são múltiplas como as culturas que as veem nascer. São históricas, no sentido de
particulares. Só estarão vivas se estiverem conscientes da sua relatividade e da
necessidade de se enriquecer
82

promisso de uma forma de vida, um postulado. Isto não significa, de maneira


nenhuma, que se trata de um acto arbitrário. Tal como para construir um móvel ou um
muro estáveis devo proceder "corno se" o "postulado" de Euclides tivesse um valor
absoluto, também se quiser dar sentido e coerência à minha vida devo "proceder como
se" o mundo fosse uno e tivesse a vocação de uma unidade harmoniosa. Esta afirmação
de que o mundo tem um sentido é o "postulado" comum a todas as religiões e a todas
as sabedorias. Dizer "Deus" é proclamar este postulado, esta fé. Mas nada permite
"demonstrar" nem a sua necessidade nem a sua realidade 3.

0 sentido da palavra "Deus" não pode ser dado na conclusão de um silogismo que
demonstre a sua "existência", nem numa experiência particular, subjectiva. Ou é a
realidade total ou não é nada.

0 dificil não é apreender esta realidade total com o sentimento da nossa finitude,
mas sim entrever pelo menos a possibilidade, que só nos pode permitir transcender a
mesma finitude.

A história do Homem e a do cosmos são uma única e mesma aventura, que deve ser,
necessariamente, superada e libertada para ser vivida
- por paradoxal que pareça a expressão - como a história de Deus. Só então, através
deste compromisso total, na aventara total da explosão da vida, a "teologia"
deixará de ser uma carreira liberal.

Deus não se fez cristão, judeu ou ocidental: fez-se Homem.

E não são demais as experiências partilhadas de todos, a sua fecundação mútua, para
aproximar deste mistério a abrir sobre o infinito a sua finitude.

Não existe nenhum Deus "em si" sobre o qual possamos especular ou raciocinar, como
os que com conceitos fabricam novas ídolos: a Ideia do Bem, para além das outras
ideias, ou o Ser de todos os seres, ou o "imóvel motor"...

Podemos apenas tentar dizer o que é para nós Deus, a nossa relação com Deus. E, sem
poder falar d'Ele como falamos das coisas, podemos

1 Ver anexo 1, página 147.

84

ver n'Ele só o que um homem nos revela. Um homem de tal forma destituído de
qualquer desejo particular e de qualquer apego ao que lhe é próprio, propriedade,
que deixa transparecer, nos seus gestos e nas suas palavras, só as exigências do
todo da Humanidade, ao contrário dos individualismos, dos tribalismos e de todas as
suas variantes.

É o que se quer dizer ao afirmar que Deus se fez homem em Jesus, assim nos
mostrando todas as dimensões do Homem: a sua dimensão divina, ou seja, a sua
relação com Deus; a sua dimensão cósmica, sempre que, fora da armadura de pele que
o parece aprisionar, toda a natureza se toma corpo; a sua dimensão comunitária,
sempre que cada um se sente pessoalmente responsável pelo destino de todos os
outros.

A isto se chama amor. Ou Deus.

A Física, depois da relatividade e dos quanta, constituiu uma espécie de metáfora,


ou de parábola, desta visão amorosa do mundo. Para Demócrito ou Lucrécio, o átomo
(tradução grega de indivíduo) era indivisível, era o tijolo do universo; no seu
interior nada se passava e estava separado de todos os outros pelo vazio.
Inversamente, aquilo a que um físico hoje chama "partícula" é um nó de relações,
uma realidade singular, como uma onda habitada por todas as forças do Oceano e, de
mais longe, pela atracção da Lua nas suas marés. As suas raízes estendem-se aos
confins do Universo. Onda sem fronteira num oceano de energia sem litorais. Assim é
o Homem. Habitado por todos os outros. E todos os outros.

Esta parábola, sem dúvida, dá-nos noção da interacção universal de todas as coisas,
da sua relatividade, da sua unidade não individual mas total, e do dinamismo sem
fim que a move.

No entanto, é ainda preciso que o Homem não se submeta a esta relação, mas antes a
deseje. A partícula humana não estende simplesmente as suas raízes pelo infinito
dos mundos - ela tem consciência deste facto. A sua relação com o Todo não faz dela
uma realidade individual mas sim uma pessoa, através da relação de diálogo amoroso
com tudo o que não for ela, mas que ela contenha e que a contenha a si.

Esta metáfora tem pelo menos o mérito de mostrar que o indivíduo (átomo) é apenas
uma abstracção. A pessoa é o contrário: uma partí-
85

cula, decerto, mas que nela traz tudo, que nela traz uma totalidade sem fronteira,
sem limite e sem a inércia do vazio.

A meditação sobre esta pessoa de Jesus, do homem na sua plenitude divina, é a única
teologia possível. Exclui todas as formas de "deísrno". Para além da teologia
escolástica, baseada na metafisica grega, da

teologia (ou anti-teologia) positivista, reduzida à história dos factos e suas


relações, da teologia existencialista, que não se consegue escapar da
subjectividade, da teologia liberal, paráfrase sem fim da crítica de Karit, ou da
teologia política, que tenta acrescentar ao marxismo uma prótese de transcendência,
"a questão do Homem é o único objecto da teologia fundamental", dizia Karl Raliner.
0 padre Chenu. proclamava: "0 meu Deus é um homem." Karl Barth, cuja doutrina
tiveram alguns a presunção de chamar "ateísino cristológico" porque afirmava que
nada podíamos conhecer fora de Jesus, recusava qualquer representação mitológica ou
metafisica de Deus e qualquer especulação helenizante.

A tradição cristã, contra toda a tradição grega ejudaica, diz que "Deus fez-se
homem". Para os hebreus, era impensável que Deus, de quem nem o nome ousavam
pronunciar, pudesse vestir roupagens humanas. Para os gregos, que partilhavam a
ideia de exterioridade e anterioridade de Deus, não se excluía no entanto a
hipótese de o seu Deus se mascarar de homem, mesmo que fosse só para se envolver em
aventuras terrenas.

A encamação cristã é outra coisa. Não é a máscara grega; também não é compatível
com a transcendência judaica do "totalmente outro": o Deus bíblico morreu em Jesus
com todos os antigos deuses. Como nas palavras vigorosas do padre Cardonnel: "Deus
morreu em Jesus Cristo." Deus fez-se Homem.

Deus feito Homem?

"Deus fez-se Homem para que o Homem se possa fazer Deus", como escreve Santo Irineu
e com ele toda a Patrística que assinala a rotura da continuidade que o termo do
judeo-cristianismo esconde.
86

Jesus nasceu judeu mas poderia ter nascido indiano ou negro, pois não se pode ser
Homem abstractamente, como numa espécie de extraterritorialidade espiritual em que
estaríamos no mundo sem nele assentar os pés.

0 erro fatal, que erradicaria toda a universalidade e "catolicidade" da mensagem,


consistiria em reduzir esta descida de Deus ao Homem simplesmente ao seu local de
aterragem, e em só querer compreendê-Lo do ponto de vista da cultura em que se
manifestou a Sua mensagem destinada a todos os homens do planeta, na língua e
cultura de cada um'. "Nada havia neste homem, diz o padre Cardonnel, que não se
destinasse a todos."

São Gregório de Nazianzo (t 394) levará a mensagem da Patrística ao rubro, quando


escreve: "Deus revelou-se e misturou-se à nossa natureza mortal para deificar a
Humanidade, dando-lhe a partilhar a divindade. 5"

Para que a mensagem conserve toda a sua universalidade será necessário separá-la da
expressão cultural que dava à fé fundamental a tradição judaica.

Jesus rompe todos os tabus.

Desafia todas as leis e a própria Lei "em si" com todos os seus interditos.

Anuncia alegria e "beatitudes" opostas a uma lei repressora; lança um apelo ao


amor, ao amor a partir do qual qualquer acção criará a sua norma interna.

A rejeição da lei externa é deliberadamente proclamada, seja quando Jesus permite


aos discípulos ceifar trigo para sua alimentação, durante o cumprimento do sabbat,
que habitualmente proibia qualquei trabalho, ou quando volta a violar esta lei,
curando um doente apesar da proibição: "É o cumprimento do sabbat que é feito para
o homem e não o homem para o cumprimento do sabbat."

A moral tradicional será igualmente posta em causa pela inversão de valores: "os
cobradores de impostos e as prostitutas hão-de entrar primeiro que vocês no Reino
de Deus" (Mt. 21, 3 1).

Será que Precisamos de Deus?

Catéchèse de Ia Foi. cap. vi, pp. 95-99, passim.

87

A localização de Deus num espaço sagrado, o da Arca ou do Templo, é banida para


sempre: "Posso destruir este Templo e voltar a construí-lo ... "

Nem a pedra nem a madeira nem o barro podem conter esta presença que, no entanto,
se manifesta no coração do homem habitado pela fé. Seria fácil multiplicar estes
exemplos de transgressão voluntária,

sistemática, sobre as relações com mulheres, sobre os samaritanos, sobre todos os


tabus da lei judaica'.

Mas seria tão falso fazer desta transgressão, da mera negação da religião judaica,
o objectivo de Jesus, e atribuir aos judeus a sua morte, como ver nele um judeu
exemplar, ou, sequer, um judeu.

Porque Jesus combateu com igual força todas as fossilizações religiosas e


proibições rituais de todas as outras religiões, da segregação dos párias na índia,
passando por certas magias africanas ou pelas guerras "sagradas" dos ameríndios, ou
das pretensas "aplicações da shari'a" pelos literalistas, incapazes de distinguir
tradições arcaicas de um povo da mensagem universal do Alcorão, que define a sharia
como a lei divina comum a todas as religiões e sabedorias.

Jesus, pelo contrário, reconstitui e transforma todos os valores das religiões


anteriores com a afirmação da vida total.

Em todas as religiões, para dar conta do sentido da vida e das regras que permitern
a coesão da comunidade, o Homem definiu para si um horizonte projectando acima de
si próprio a imagem dos seus deuses. Estes representavam quer a ascenção ao nível
das virtudes humanas mais nobres quer uma força temível e invisível. Esta força,
mesmo condensada sob a forma de ídolo, era simultaneamente um estímulo e uma norma
de acção.

É a parte verdadeira e irrecusável da tese de Feuerbach: o Homem fez os deuses à


sua imagem.

Detenhamo-nos num só exemplo e fiquemos pelo esquema mais simples deste imenso
poema do divino, nos primeiros livros sagrados hindus: os Vedas. Aqui Vichriou cria
o mundo e garante a sua conservação. Em cada época de desintegração, enviará à
terra um dos seus "avatares", encamação humana de um herói ou Deus que garante aos

' Ida Magli, Gesu di Nazaret, Rizzoli, Milão, 1982.

homens o renascimento ou a ressurreição, devolvendo à sua vida a plenitude do


sentido. Krisliria suscita amor. Graças à adoração apaixonada que suscita até aos
mais humildes vaqueiros, constitui um símbolo carnal da união mística do homem com
o seu Deus.

Rama, outra das incarnações de Vichriou, é o modelo de uma "cavalaria etema", da


honra absoluta, e da inabalável fidelidade ao amor e à luta por um mundo digno de
Deus.

Seguidor constante da teologia do padre Raimon Pannikar, nomeadamente do seu


tratado La Trinidad y la experiencia religiosa', pensa que esta projecção, pelo
Homem, de um deus à sua imagem e semelhança é a principal característica de todas
as religiões, incluindo as dos liebreus cuja idolatria, no entanto, foi denunciada
pelos Profetas como pecado supremo.

Há, certamente, uma diferença inegável entre os ídolos dos povos vizinhos
fabricados pela mão humana e o irrepresentável Deus de Israel. Mas, como demonstra
o padre Pannikar, este Deus, verdade invisí-

vel e viva para os judeus, mantém com o seu povo as mesmas relações que os deuses
dos cananeus: esta analogia faz de Jeová um deus "ciumento" (Dt. 5, 9-6, 15) rival
dos outros deuses. Ainda que seja falso afirmar que o monoteísmo nasceu no povo
judeu. Este povo foi politeísta durante muito tempo: o próprio nome de Deus é um
plural (Elohim) durante séculos, já depois de o faraó egipto Akhériaton ter mandado
apagar o plural da palavra Deus do frontão de todos os templos, reconhecendo assim
um só Deus, senhor da vida, do sol, que todas as manhãs faz erguer homens e trigo.
0 salmo 104, por exemplo, é uma paráfrase, por vezes literal, do "Hino ao Sol", de
Akhénaton.

É o facto de receber, no seu Arco, onde é adorado sem imagem, os mesmos louvores e
implorações que Baal dos cananeus que deixa Jeová "ciumento". Não os nega, pede
apenas que não sejam honrados e que os hebreus, "povo eleito" por si, só a si
obedeça.

A característica mais fundamental da idolatria não é a forma de representação de um


Deus, mas a atitude do homem que atribui a um Deus os poderes e os traços de um ser
humano, de um rei acima dos
7Obelisco, 1989.

89

reis ou das autoridades terrenas. Os hebreus oram aos seus deuses tal

como os cananeus oram aos seus.

Com Paulo, contemporâneo de Jesus e redactor das Cartas quinze anos antes do
primeiro Sinóptico, o cristianismo passa a reclamar-se herdeiro do judaísmo e da
sua concepção da exterioridade do Deus dirigindo do céu as coisas humanas.

Paulo evoca, para ilustrar a sua criação, a imagem do oleiro (Rin. 9,


20-22), retomando as imagens do Génesis (2, 7), e, para ilustrar o governo do
mundo, a do faraó (Rin. 9,17) de quem se diz no Êxodo (9, 16) que Deus o manteve no
poder para lhe mostrar, desafiando-o, que o Seu poder era superion

Apesar da depuração destas representações antropomórficas efectuada pelos profetas,


Isaías retoma incessantemente a imagem do oleiro para evocar a criação divina e a
submissão do homem (Is. 29, 16; 45, 90; 64, 7), tal como o faz Jeremias (18, 6):
"Vocês estão nas minhas mãos como o barro nas mãos do oleiro" ou Job: "Lembra-te
que me formaste de barro! " (10, 9).

0 cristianismo, com Paulo e seus discípulos, prolonga a visão do mundo do Antigo


Testamento. Mantém a concepção de um Deus exterior que castiga ou perdoa, que
prescreve ordens, confiando-as mesmo a depositários exclusivos, como antes fazia
aos grandes sacerdotes do Templo.

É certo que é dificil erradicar totalmente a exterioridade e omnipotência divinas,


mesmo excluindo o uso despótico que lhe foi dado historicamente.

Pois o que seria ela para nós se, com uma concepção radical da transcendência de um
"totalmente outro" de algo que nos fosse totalmente estranho e sem semelhança
connosco, deixássemos de conseguir manter qualquer relação com aquilo que nos
supera, no sentido em que o sentido supera ofacto?

0 mito e a História: do ícone ao ídolo

Este Deus, este apelo, só através da parábola nos pode ser apresentado, e só
metaforicamente o poderíamos evocar. Mas pelo menos
90

desta forma podemos passar do ídolo ao ícone. 0 ídolo é um objecto em que se


pretende situar o sagrado como se uma coisa finita pudesse conter o infinito. 0
ícone, pelo contrário, é só um "signo" que remete para um apelo que o supera e que
ele apenas simboliza.

Certas obras de arte, graças ao seu poder de evocação do sentido, servem-nos como
rampas de lançamento para a nossa própria superação. 0 "ícone da Trindade", de
Roublev, ajuda-me, se não a conceber (pois trata-se de uma realidade irredutível ao
conceito e que a supera), pelo menos a viver e a pressentir que aquilo a que chamo
Deus (na linguagem tradicional) não é um "ser", nem mesmo uma "pessoa", mas sim uma
comunidade representada pelo três anjos debruçados no cálice da vida. Uma história
de amor entra neste jardim, e o pintor celebrante comunica-me a sua alegria.

Esta esperança não é apenas a de uma religião específica ou de um povo


privilegiado. Um documento chinês da era Song, "A primavera na montanha", de Kuo
Hsi, toma-me consciente, directamente, fisicamente, desta dimensão humana: a
natureza não me pertence, pertenço à natureza, não só à majestade das montanhas, à
tensão dos rochedos, que são como tigres acocorados, à cabeleira das montanhas ou à
levitação das brumas, mas à sua alma invísivel, ao tao que faz de mim irmão de toda
a realidade e coextensivo à Vida do Todo.

Tal como o Moisés, de Miguel Ângelo, ou como um elmo baluba, com a sua cabeça
esférica, planetária, e os seus cornos, eternos evocadores da potência, uma máscara
africana guro, com os seus chifres de gazela enrolados à volta de um rosto humano,
não é urna "obra de arte", não é um espectáculo de museu, mas sim um condensador de
energia que a dança (executada com a máscara posta) irradia por toda a comunidade,
sou atravessado, como a máscara guro, pela presença de um campo de forças que me
faz Um com o Todo.

Toda a verdadeira criação é uma "teofania". Tal como um rosto humano. Do Tarjuman
al Ashouak (0 "Dito" da paixão), de lbn Arabi, à Divina Comédia, de Dante, o amor
de uma mulher é também o ícone que nos indica o caminho desse amor de manifestação
total a que chamamos, à falta de melhor termo, divino.

91

Regressamos ao ídolo quando deixamos de distinguir o sentido induzido dofacto,


símbolo daquilo que nos ajuda a superar; quando confundimos a mitologia exaltante
em que se assinalam os limites ultrapassados pelo Homem a caminho da plena
humanização, com uma História que nos impõe, como uma promessa, a sua trajectória
rígida e exclusiva.

Fazer do sacrificio de Abraão um facto histórico seria reduzi-lo ao circunstancial,


como se os aspectos essenciais só se tivessem dado por volta do século vi (altura
em que a narrativa foi elaborada e projectada um milénio antes), tendo os homens
descoberto a possibilidade dum sacrificio que, para lá das nossas pequenas morais e
das nossas pequenas lógicas, seja vivido como uma resposta a urna exigência
incondicional.

Pouco importa a ausência de vestígios históricos do Êxodo e da sua travessia


marítima, mesmo nos arquivos egípcios onde se refere, no entanto, a transumância de
um rebanho ou passagem de qualquer viajante pelas fronteiras. Omitiriam a fuga de
centenas de milhares de emigrantes, o levantamento de um exército egípcio, a morte
de um faraó e a submersão dos seus carros!

Este mito "divino" não é o maior na sua escala, não enquanto narrativa histórica,
mas como símbolo eterno e apelo ao questionar dos mais altos poderes, ao cortar as
amarras dos preconceitos e dos poderes, e à libertação do Homem de todas as
servidões.

É mesquinho querer ver um episódio espectacular de urna história singular,


legitimando um único "povo eleito" por um deus tribal e parcial, naquele que é um
mito fundador da libertação do homem e paradigma dos levantamentos humanos de todos
os séculos.

Esta manipulação que tende a reduzir a mitologia criadora à história positiva é uma
caso particular de reversão do ícone ao ídolo.

A manifestação progressiva de Deus e da sua "aliança" com o humano exprime-se nos


mitos que assinalam as etapas da humanização e divinização do Homem. Certas
comunidades sem idade e sem nome criaram epopeias reveladoras de novas dimensões do
Homem. Projectaram para lá de si próprias, como horizonte da caravana,
levantamentos de heróis contra domínios, poderes e destinos, destruidores de
92
ídolos como Prometeu ou Rama, como Buda ou Quetzalcoatl. É esta a "história santa"
da Humanidade, feita de mitos fundadores em rotura com o passado. Ao contrário da
História, linear ou cíclica, dos regressos à animalidade, cheia de batalhas e
impérios, cheia de conquistadores criadores de servidão, cheia de nacionalismos
tribais e de integrismos.

Esta falsa história é retomada actualmente por uma televisão manipuladora de toda
uma clientela servil, constituída por crianças envelhecidas e velhos pueris.
Oferece a caixa de ressonância das suas ondas a uma juventude limitada a vociferar
"nãos" de recusa impotente, a políticos arcaicos, a vedetas de feira, a velhos
resmungando "sinis" de consentimento.

Sinistro apagamento do Homem com a anestesia da consciência crítica dos


levantamentos criadores! Estes levantamentos criadores do divino, no entanto,
conseguiram abalar a carga mortífera das épocas das grandes fracturas da falsa
história.

Quando o dinheiro começou a reinar nos centros urbanos comerciais, com o seu
cortejo de miséria, São Francisco de Assis escolheu a pobreza para passar da
religião fossilizada da Igreja feudal ao despertar da fé numa cidade de
comerciantes e indigentes.

Outro homem se ergueu perante o anúncio, com os "conquistadores", do grande crime


do Ocidente - o colonialismo, que acabará por negar e destruir as culturas de todos
os mundos: genocídio dos índios da América, tráfico negreiro em África, guerra do
ópio na China, Hiroshima... A Hiroshima do Japão inaugura a era em que, passado
meio século, com um milhão de armas atómicas, o pitecantropo moderno conquistará o
seu privilégio supremo: o poder de a criatura destruir a criação. Quando se
anunciou, no século XVI, esta vitória planetária da morte, ergue-se então um homem,
o bispo Bartolomeu de Ias Casas, falando em nome de Deus, no México, de Chiapas
(terra cujo martírio ainda não acabou), proclamando, em 1515, em Valladolid,
perante Carlos V: "A barbárie veio da Europa."

Contra as falsas necessidades e os falsos destinos desta falsa história levantaram-


se alguns homens, homens verdadeiros, também eles animados pelo mesmo Deus cujo
nome nem sempre pronunciavam ou cuja

93

existência desconheciam. Místicos, por vezes poetas (ou, frequentemente, os dois


num só) contra os homens e os deuses dominadores.

0 vosso Deus não é Deus. Não é nada do que dele dizeis, afirmarão os pioneiros da
"teologia negativa" (apofática, dizem os teólogos). Nada disso!... Nada disso!...
(Neti.--- Neti..., na língua dos Upanixadas e de Çankara). "Nada disso!", grita São
João da Cruz, como noutros tempos gritou Lao Tse. Exprime este grito na humildade
do poema que não pretende conhecer ou definir Deus conceptualmente mas sim indicar
o caminho, "noite obscura" ou "subida ao Calvário", pelo qual o Homem se eleva à
divindade.

Estes arautos do Reino a criar são os pais dos Ghandi, dos Luther King, dos D.
Hélder, tal como dos Dostoievski e dos Pablo Neruda, de todos os militantes da
aventura indivisivelmente humana e divina, a das "teologias da libertação" da
América Latina, de Áffica e da Ásia.

Da vitória da sua abençoada loucura, e do nosso empenho a seu lado, depende a


sobrevivência da Humanidade num futuro de rosto humano, divino: trinitárío.

Conjugação do verbo Deus


Através de todos estes "ícones" vivos do Pai invisível, uma fé adulta conserva,
transcendendo-as, as imagens tradicionais do Deus. Desse Deus a que a concepção
cristã da Trindade chama o Pai, o Pai inefável e invisível de quem só podemos dizer
aquilo que os gestos e palavras do Filho nos revelaram.

Jesus, ícone supremo, marco de sinalizaçao no caminho da divinização do Homem,


permite-nos ultrapassar a visão dominadora do Deus de Israel. Referimos, em Será
que Precisamos de Deus?, como esta emer-

gência do transcendente através de um homem, do mais fraco e desprotegido dos


homens, assinalava uma rotura radical com todos os monarcas celestes.

0 Filho dá um rosto pessoal, humano, ao Deus sem imagem. Torna-se nosso irmão e com
ele ficamos "Filhos do Homem" e "Filhos de
94

Falava-se assim da morte e da vida na linguagem daquele tempo. Mas repetir estas
fórmulas nos nossos dias é dar uma falsa imagem da morte, da vida e da
ressurreição.

A ressurreição de que Jesus deu o exemplo e revelou o segredo é a tomada de


consciência da presença em si da energia do todo e da nossa pertença a esse todo, o
erguer em si da força que anima Jesus e que nos faz viver a presença real de Jesus,
viver da vida do todo e do uno, num acto de amor que expulsa os nossos egoísmos e
tribalismos. É este o verdadeiro milagre.

Não um "milagre de poder", nem mesmo do poder de um Deus monarca todo-poderoso


exterior a nós.

Não existem milagres de poder.

Só existem milagres de fé. Incluindo o milagre da ressurreição de Jesus: só se


revelou àqueles que n'Ele acreditaram, e Ele transformou as suas Vidas. Este
milagre pode dar-se todos os dias.

Por mais grandioso que seja, como foi na visão de Ezequiel (37,
1- 14), o milagre da ressurreição não é um espectáculo; não foi um acontecimento
único que poderia garantir uma esperança quanto ao nosso próprio destino no "fira
dos tempos".

Não é uma "imortalidade da alma", tal como a concebem os gregos por causa do seu
dualismo entre a alma e o corpo.

Demasiadas vezes confundida com a ressurreição pelos cristãos, esta "imortalidade


da alma" carrega urna contradição ingénua: uma alma teria um começo com o
nascimento de cada corpo humano, mas não teria um fim com a sua morte. Alma
"eterna" votada à semi-eternidade, ao quase-infinito!

0 filósofo e místico muçulmano Ghazali dizia com vigor (e contra a filosofia


grega): "Os homens de fé não morrem, porque nem chegam a nascer." Não chegam a
nascer como indivíduos.

É o que se diz, igualmente, numa linguagem antiga, mas que exprime uma verdade
eterna: trata-se do anúncio, ainda mais grandioso no Alcorão (111, 42-28) do que no
Evangelho (Lc. 1, 26-38), do nascimento virginal de Jesus. Exprime esta mensagem de
vida: Jesus só pode
96
ter o Todo como pai, tal como cada um de nós, na verdade, fora da nossa criação
provisória enquanto indivíduos que nos restringe a uma linhagem, a uma tradição,
numa palavra, a uma particularidade, ainda que colectiva.

Dizer que Jesus nasceu de uma Virgem e que Deus insuflou nele o seu espírito, é
reconhecer-lhe uma presença mais forte que a de cada um de nós, precisamente porque
extravasa a nossa vida individual. (Dizer isto é, também, destruir a inverosímil
ascendência davidiana.)

Com um Pai particular, Jesus poderia ter sido um herói, um mártir, um santo, mas
não poderia ter sido esta força, esta presença do Todo revelada por um homem
"vazio" de si próprio, sem quaisquer posses ou particularidades individuais ou
tribais. Esta força (os teólogos dirão esta "graça") é um dom gratuito mas apenas
para aqueles que, a exemplo de Jesus, tenham operado esta kénose, o esvaziar de si
próprio de tudo o que nos pertence para poder dar lugar ao Todo, para o acolher e
ter consciência de apenas ser, enquanto indivíduo, uma eférnera centelha do
braseiro eterno a que regressaremos depois de viver um instante na ilusão de dele
estarmos afastados.

É também por este meio que superamos as imagens ingenuas da criação sugeridas pela
arte do oleiro ou o poder do faraó.

0 muçulmano Ibri Khaldoun, como introdução à sua filosofia da história, mais


precisamente, à filosofia da criação contínua do Homem no tempo, escreve com
audácia: "Toda a confissão da unidade divina é a negação da ideia de criação"
(Prolegómenos, iv, 16).

Como seria, efectivamente, um Deus exterior e anterior à criação? Aborrecer-se-ia


na sua solidão, até ao momento em que desejou afirmar-se e fazer-se adorar pelas
suas criaturas? A criação, linguagem do Homem na sua dependência terrena. 0 Homem
procura o sentido da aventura humana, para reconhecer que não deve a si próprio a
sua existência, nem ao seu pai, nem aos seus antepassados mais longínquos. Não me
criei.

Não és a tua própria luz.

Não nos bastamos na nossa suficiência. Conjugação do verbo Deus.

97

E a mísera resposta a este "porquê" do sentido e da dependência: a criação.

A criação, palavra ingénua, irapia, linguagem do Homem que mede tudo à sua medida e
concede ao seu Deus o irrisório decreto dos príncipes: sê! A transcendência vivida
é justamente o contrário desta suficiência

e da mísera paIvra "criação" com a qual acreditamos suprir as nossas ignorâncias.

Ignorâncias fecundas, no entanto, quando são também consciência dos nossos limites.
Quando surgem, depois de todos os esforços técnicos e científicos, chamando a
atenção para questões a que não podem responder as nossas técnicas, as nossas
ciências ou as nossas metafisícas.

"Douta ignorância", dizia o cardeal De Cues, que projecta no infinito os nossos


projectos e hipóteses, estimula o seu nascimento e lhe mede o alcance.

É esta a revelação do Filho e o apelo a descobrir em nós mesmos a fermentação sem


entraves do chamamento.
"Espírito sempre activo, como te sinto!", escreve Goethe no Fausto, o mais
exaltante e destruidor mito do homem ocidental, porque este espírito criador e
conquistador tanto pode servir à destruição do homem e da natureza como ao seu
desenvolvimento.

Na filosofia ocidental, o Espírito foi demasiadas vezes reduzido à Razão e seus


conceitos, ao logos dos gregos, e a teologia cristã demasíadas vezes assimilou esse
logos ao "Verbo" de Deus. Isto levou, por influência de Platão e Aristóteles, a que
se concebesse a transcendência em termos de exterioridade.

Deste modo, a presença, a imanência divina no homem interior toma-se uma


transcendência inversa, como se Deus, na expressão do padre Pannikar, fosse "um
locatário da alma" (un inquilino del alma% implicando isto uma nova heterogeneidade
entre Deus e o Homem. Ora, pelo contrário, as ideias de transcendência e imanência
não devem nunca fazer-nos esquecer que Deus e o Homem não são nem um nem dois. A
lógica binária do sim e do não não cobre a plenitude da realidade.

Qp. cit., p. 60.

98

0 dinamismo divino não é mais separável do Homem do que o são os dois pólos de um
íman. Se assim não for, regressaremos aos dualismos da alma e do corpo, de Deus e
do Homem.

0 padre Pannikar, que explora a via interna da Trindade cristã através da


experiência da advaita (a não-dualidade) dos Upanixadas da índia, recorda as três
vias para Deus que esta experiência indica: a do karma, correspondendo à procura
"icónica" do Pai; a do bakhti, do amor, correspondendo à relação pessoal com o
Filho; e a do conhecimento (inana), correspondendo à presença do Espírito. Este
caminho implica que nos libertemos de tudo o que esconde a Unidade do todo,
incluindo a do nosso "ego", de modo que deixemos de falar de "relação" com Deus
passando a dizer imersão Nele.

O Baghavad-Gita exprime, na sua poesia, esta experiência finidamental:

Todos os seres estão em mim

E eu não estou contido neles,

E no entanto os seres não se mantêm em mim. Compreende esta forma soberana de


união: Carregador dos seres, eles não me encerram Sou o acto que os faz ser (ix, 4-
5).

advaita dos vedas (esta forma da relação do homem com Deus) evita assim quaisquer
antropomorfismos e panteísmos. A realidade mais profunda do meu ser (atman) é o
brahma, a realidade profunda, absoluta, de todas as coisas: "Tu és isto."

A história santa da Humanidade

A Trindade cristã, plenamente vivida, implica três formas da relação com Deus:

, A do Pai, que é o silêncio de Deus, pois não posso falar de um Deus "em si" mas
só daquilo que nos revela o Filho, Jesus, que nós podemos conhecer, ou seja, amar.

99

A do Filho, que é o Verbo de Deus, o dom ao homem do Pai invisível que se


"esvaziou" (kénose) do seu ser tomando-se visível, falando, agindo e amando seu
Filho. "0 Filho, diz santo Irineu, faz ver o invisível. "

A do Espírito, que é presença de Deus todo em todos, presença do dinamismo divino


transn-útido pela mediação do Filho. Cada ser, no mundo e entre os homens, toma-se
então uma "teofania", um ícone da presença divina.

Estas três dimensões de toda a espiritualidade estão presentes, em diferentes


graus, em todas as expressões religiosas, em todas as formas de relacionamento com
Deus nas religiões reveladas, da relação do Uno com o Todo nas diversas sabedorias.
É o "apofatismo", ou impossibilidade de falar de Deus, de 0 nomear, entre os
hebreus, por exemplo, ou mesmo impossibilidade de distinguir o Uno do Todo nas
sabedorias da índia e da China, para não cair nas idolatrias do antropomorfismo.

É o Personalismo, a que a fé em Jesus dá mais atenção para dar ao amor toda a


plenitude.

A universalidade desta dimensão do amor, de um Deus "pessoal", é disfarçada, nas


formulações de Niccia, pela linguagem grega da "substância" (ousia), que faz com
que se traduza apessoa por uma palavra grega, "hipóstase", que nos leva à ffigidez
da "substância". "Hipóstase" significa, simplesmente, aquilo que se mantém ao de
cimo (em latim: subs-tancia). Este jargão causa ainda mais danos quando se traduz
literalmente "pessoa" pelo latim persona ou pelo grego prosopon, que significam
ambos máscara, ou seja, precisamente o contràrio do que queremos dizer ao falar da
"pessoa" humana e que rejeita completamente o estar "mascarado".

Esta formulação ininteligível pretende definir, na linguagem e filosofia gregas,


uma experiência religiosa que é totalmente estranha a esta filosofia. Noutra
linguagem que não a dos gregos, a Trindade mostra-se próxima e fraterna para todos
os homens. Um místico muçulmano, Ruzbehan de Shiraz (1128-1209) e, na mesma altura,
noutro pólo do mundo islâmico, em Córdova, Ibri Arabi, definiram de forma simples a
Trindade, em Deus e entre os homens: "A unidade do Amor, do Amante e do Amado."

Tal expressão da Trindade, vivida (e não simplesmente "pensada"), revela a dimensão


divina do homem e a sua vocação: é assim que vive um homem divino.

100

Jesus revela a possibilidade de ligar o finito e o infinito, o Uno e o Todo. Contra


qualquer tentação de degradar a transcendência exprimindo-a em termos de
exterioridade, aprendemos, com o advaita veda, que Deus e o Homem não são um nem
dois: não existe de um lado um homem que trabalha e, fora e acima dele, um Deus que
o telecomanda e julga.

Aquilo que incorrectamente designamos por "animismo" das religíões tradicionais de


África ensina-nos a viver Deus, em nós e na comunidade, como umaforça, contra
qualquer redução de Deus a um conceito, a uma ideia ou a um "ser" à maneira grega.

Esta unidade profunda, unidade entre a energia divina e a dos homens, pressentiram-
na os Padres do Oriente de forma maravilhosa: "Se nos conhecermos a nós próprios
conhecemos Deus e, conhecendo Deus, tornamo-nos Deus9", escreveu, com ousadia, São
Gregório de Alexandria (t 215) (Pedagogo, 11, 15). E São Gregório de Nazianzo (329-
390): "Veio fazer-nos perfeitamente unos em Cristo, no Cristo que veio a nós
perfeitamente, para pôr em nós tudo aquilo que é" (Discurso, Vii). São João
Crisóstomo (344-407), com o mesmo espírito com que o Alcorão falará do homem: "A
quantos anjos, a quantos arcanjos, não é o homem igual?" (VII Romilia Sobre São
Paulo).

É sobre esta "graça" que Martin Buber escreve: "É o nome religioso da liberdade."
Ou seja, retomando a "parábola dos fisicos":
- a tomada de consciência de que as nossas origens estão nos confins de um mundo
sem fim;

- que o centro de mim mesmo coincide com o centro de todas as coisas, centro que
está por todo o lado.

A consciência vivida da transcendência acautela-nos contra quem nos tente persuadir


que o universo é finito, que a realidade se reduz ao que existe agora, que o futuro
é só povoado pelas possibilidades do presente.

9"Tu és Isto!", dizem os Upanixadas hindus.

101

0 DEUS QUE NÃO DEIXA DE CRIAR

Toda a arte é sagrada?

Actualmente, para melhor compreender este aspecto da decadência que inexoravelmente


se inscreve nas artes, na política e na religião, precisamos de Deus, de um
sentido. Esta necessidade, mais do que em qualquer outro domínio, é sensível de
forma directa nas artes, seja para a criação artística ou para aprender a "len> as
obras, isto é, para participar na sua criação não como simples espectador ou
"conswnidor" mas como celebrante.

A arte não é apenas a linguagem do sagrado que se tomou necessária perante a nossa
impossibilidade de encerrar Deus em conceitos, ou seja, de "deduzir" o sentido a
partir dofacto.

Ajuda-me a tomar consciência de que o que há de mais pessoal em mim não é o


conjunto de funções sociais, de títulos e pertences que me constituem como
indivíduo, mas antes aquilo que faz de mim uma centelha no fogo da vida eternamente
aceso, um participante na manifestação criadora, origem invisível de todas as
coisas. É o que me faz uno com o Todo, não para diluir a minha particularidade
nesse Todo (como se passa nas concepções totalitárias da sociedade), mas, pelo
contrário, para fazer de mim um dos celebrantes insubstituíveis da grande festa
cósmica. "Ser uno com o Todo" é, por exemplo, a expressão suprema do Tão, que me
faz viver um desenho chinês da era Song, como a "Primavera na montanha", do pintor
Kuo-11si. Igualmente, a poesia dos Upanixadas da índia ensina: "Tu és isto",
significando "isto" a

103

totalidade da vida em incessante floração, na qual cada nascimento


- incluindo o nosso - comunica com a sua origem.

A mensagem principal de Jesus é a do Reino. Todas as parábolas que nos apresenta


este Reino falam de sementeiras, de sementes, de grãos que irão despontar e
crescer. Um Reino "já aqui", não como instituição imóvel, como dado adquirido, mas
como realidade em permanente nascimento, "em nós e fora de nós", e que em nós
fermenta sempre que participamos nesta criação continuada, a exemplo do próprio
Jesus. Quando nos diz: "0 meu Pai está sempre a trabalhar, e eu faço o mesmo" (Jo.
5, 17), pois a criação não terminou. Não se cumpriu o Reino. 0 mundo não está
concluído. Está aberto a novas possibilidades. E cada um de nós é responsável por
elas.
Acreditar na ressurreição de Jesus não é fazer uma leitura crédula dos Evangelhos:
é viver com Jesus o trabalho da criação. "Trabalhem, não pela comida que se acaba
mas por aquela que dá a vida eterna", ordena Jesus (Jo. 6, 27) a populares que o
receberam, que lhe perguntam depois: "Que devemos fazer para cumprir a vontade de
Deus?", (Jo. 6, 28). Jesus exige-lhes então a decisão da fé: não uma crença mas um
compromisso. Os populares compreendem bem que se trata de algo mais que a adesão u

de um esforço quotidiano - e imediatamente se lamentam: "Aquilo que ele diz é


difícil de aceitar! Quem é que pode ouvir semelhante coisa?, (Jo. 6, 60). Esta voz
exigente de Jesus ecoa ainda em nós como ecoou na Sinagoga de Cafamaum. Crescem em
nós os mesmos murmúrios e as mesmas hesitações quanto à dureza da via que o levou
inflexivelmente para a morte, para aí terminar o seu "trabalho" - o do Pai.

Este "trabalho" é aquele que os Padres da Igreja definem: Deus fez-se homem em
Jesus, para que o homem se possa tomar Deus. Mas "fazer-se Deus", à maneira de
Jesus, não é dominar, é servir. Deus só está connosco, e em nós, como fez com
Jesus, quando nós somos como Jesus: para os outros. É esta a mensagem de todas as
sabedorias e de todas as místicas do mundo. Na parábola do grande místico persa
Attar, "A linguagem dos pássaros", quando os pássaros decidem dar-se um Deus,
partem à sua procura, sofrem os piores tormentos e travam os piores combates: "Se
te contentas com o reino deste mundo, perderás
104

o da etemídade", diz Attar. Quando, pela dádiva de si proprios, "perderam até o


rasto da sua própria existência... todos compreenderam que este arco dificil de
distender não servia a um pulso impotente".

Só trinta pássaros (em persa "trinta" diz-se "si morg" e este é também o nome de
Deus: Symorg) chegaram ao último vale. Olhando para o espelho de um lago, só se
viram a si, trinta pássaros. E assim conheceram o seu rei invisível: o rei do seu
amor e do seu sacríficio que era a própria vida desse deus oculto. "Só agistes pela
minha acção, dizlhes Symorg, e deste modo compreendestes o meu ser e as suas
perfeições." Os pássaros acabaram por se diluir para sempre no Symorg; a sombra
perdeu-se no Sol.

Esta parábola muçulmana do "Deus está em tudo e tudo está n'Ele" é a mesma de todos
os amantes de Deus. Do Deus único que, nas sabedorias e religiões em qualquer
linguagem, é força de manifestação da vida total na sua unidade. É assim, como
"força" e não como "ser" que Deus é vivido nas religiões tradicionais de Áffica ou
no Popol Vuh, o livro sagrado dos índios americanos, onde se desfazem homens feitos
de argila, onde apodrecem homens feitos de madeira, até aparecer o "homem de
milho", herdeiro da vida e da terra e dos seus eternos deuses da vida.

Todos os grandes místicos, todos os inspirados do divino testemunharam que a Arte é


a linguagem do sagrado porque nenhuma "teologia", ou seja, nenhuma tentativa de
falar de Deus pode deixar de ser poética, trate-se do "Ramayana" do índio Tulsidas,
dos poemas de Rumi, na Pérsia, de lbn Arabi ou de São João da Cruz, em Espanha.

A procura do sentido da vossa vida - chame-se~lhe Deus ou outro nome qualquer - é a


alma de toda a verdadeira Arte e de qualquer comu~ nidade. Hanilet, rei sem coroa
num século tempestuoso, D. Quixote, cavaleiro profeta habitado por Deus,
Dostoievski, quando os seus "possessos" na sua revolta sem disfarce se interrogam
sobre o sentido do seu crime e sobre o sentido de um Deus, todos eles deixaram a
mesma pergunta angustiada, mas de uma maneira própria à Europa, à semelhança do
ícone de Rubliov, ou do retábulo do Cristo de Grünewald.

Foi esta a contribuição específica da Arte na obra divina do homem: mostrar como o
homem se pode tomar humano.
105

0 nosso ensino consome-se nas querelas arcaicas entre sector público e sector
privado, enquanto ambos se submetem cada vez mais às exigências de uma formação
flincional voltada para as actividades de uma sociedade de produção e consumo, e
fecham-se no etnocentrismo ocidental, rejeitando as sabedorias e religiões de
outros mundos, o primeiro em nome do laicismo, o segundo em nome do estatuto
excepcional do cristianismo.

0 nosso ensino deixa esquecer, com o pretexto da "modemidade", os gigantes que no


passado puseram o problema do homem e do seu sentido, não dando à nossa juventude
qualquer arma cultural para resistir às anticulturas do tele-lixo, de que 83% das
imagens, na Europa, espalham os piores dejectos de Hollywood e dos seus heróis do
falso poder.

Aplica-se o mesmo às sociedades e aos indivíduos: podem ser mercantis ou


sacerdotais. Há uma Europa de Shakespeare, de Cervantes, de Dostoievski, cada vez
mais ignorada pela nossa juventude perdida na Europa definida como mercado, a
Europa de Bruxelas e dos Berlusconi, e na América dos traficantes de rock e de
Coca-Cola. Com um Deus da religião dos meios, para as "élites", um Deus chamado
Macintosh. Deus poderia ser, no entanto, um maravilhoso servidor de homens
propriamente ditos, de homens que se interrogam sobre os fins últimos, sobre o
sentido, sobre Deus, mesmo que seja, como os poetas, na linguagem do mito.

A expressão "mito" ou "mitologia" não tem qualquer significado pejorativo. 0 mito,


segundo a definição do dicionário Robert, é "uma, imagem representando, sob forma
simbólica, seres ou acontecimentos que encarnam aspectos do gênio ou da condição
humana... Influencia o comportamento dos povos".

0 essencial é não confundir esta imagem com a História, mas, também, não a opor a
ela, com o pretexto de que esta imagem ou esta narrativa mitológica não podem ser
"verificadas" através de comparações com a história de outros povos ou com
vestígios arqueológicos.

Existem ruínas da cidade de Tróia, mas a narrativa do cerco e das suas batalhas,
assim como a figura heróica e profundamente humana de Heitor, são obra do
imaginário criador dos povos, e de
106

um ou de vários fabulosos poetas que dele fizeram a Mada, tal como Ésquilo criou o
grandioso mito de Antígona, do auto-sacrifício exemplar, contra todas as tiranias,
em nome das "leis não escritas" da consciência.

Estas imagens "míticas" têm inspirado os actos mais elevados e belos da Humanidade.
0 amor que Khrisna inspira ou o modelo da cavalaria espiritual que Rama apresenta,
dois avatars do deus indiano Vichriu, não precisam de sair da lenda ou do poema
para se inscreverem na verdadeira história dos homens, inspirando, durante
milénios, a acção dos melhores de entre eles, como Gliandi.

Em nome de que etnocentrismo deveríamos querer reconhecer mais existência histórica


aos grandes mitos? 0 exemplo do sacrificio de Abraão ou da libertação do Êxodo, tal
como os casos de Heitor, de Antigona, de Krislina ou de Rama sem nenhuma comparação
ou vestígio que ateste a sua "realidade histórica positiva", representaram, na
epopeia humana da superação do homem, um papel mais criador do que os feitos
verificáveis de César, Cortez ou Napoleão com as suas conquistas devastadoras.

A pretensão de conceder arbitrariamente a Abraão ou ao Êxodo outro estatuto que não


o de mitos grandiosos assinalando as etapas da humanização e da elevação moral só
se justificará pelo secreto desígnio de esconder por detrás dos grandes
levantamentos do espírito as guerras e massacres, igualmente lendários, que nesses
mitos são relatadas. As narrativas míticas das batalhas da Ríada serviram para
alimentar a fanfarronice guerreira dos gregos, ou as lutas militares de arianos e
dravidianos, na índia, facto "histórico" que se metamorfoseou no confronto lendário
entre o bem e o mal dos pandavas contra os kauravas, serviram para justificar, ao
longo de séculos, dominações e conquistas sanguinárias, à semelhança das falsas
explorações de Josué em Canaã ou, mais tarde, de David, cuja perversidade nos é
contada com pormenor nos dois livros de Samuel.

A mitologia, tal como a História, testemunha tanto os movimentos de elevação do


homem como a sua barbárie. A História tem-se mostrado, até aos nossos dias, mais
voltada para o registo de guerras e

107

dominações do que para a recordação dos levantamentos místicos e artísticos


intrinsecamente humanos.

Toda a Arte é sagrada, porque em qualquer religião dizer "Deus" é dizer "A vida tem
um sentido."

Não é um sentido escrito antes de nós e sem nós. Mas sim a exigência de procurar,
contra todos os riscos, esse sentido. Toda a verdadeira Arte nos impele a
questionar o sentido da vida e nos projecta novas possibilidades.

0 sagrado, como experiência pessoal, é a consciência da irrupção, da emergência em


nós daquilo que não é nós. Daquilo que não prolonga os elementos do meu passado,
nem os constitui, mas os supera radicalmente graças a uma presença irredutível ao
que existia no passado. Isto está em mim sem estar em mim.

A Arte não é uma forma de escrever, de pintar ou de dançar; é, acima de tudo, uma
forma de existir.

a Na concepção ocidental clássica, sobretudo depois do século XVIII,


o mundo é um dado, apresenta-se completo, com as suas leis e normas, da natureza e
da moral.

0 homem honesto é aquele que se lhe conforma.

Este mundo é imutável. Os "antigos", gregos ou romanos, expuseram a sua ordem


eterna: Euclides definiu de uma vez por todas os limites do espaço, Policleto, o
"canon" da beleza.

É esta a forma clássica da existência, dentro dos limites intocáveis do ser e do


dever ser.

Os homens "devem" ser pintados "tal como devem sem, ou "tal como são", implacáveis
vias da crítica "clássica" que se tomou "acadêmica".
0 século XIX é revolucionário no sentido profundo em que com ele se afirmam novas
formas de existir.

Desde Kierkegaard, que contrastava o sacrificio de Abraão com as nossas


insignificantes lógicas e com as nossas insignificantes morais e vivia outra fé que
não a das religiões, das Igrejas e seus dogmas, até Freud, que evocava uma outra
psicologia que não a da consciência racionalizada.

108

No coração do século, Marx estabelecia a possibilidade de uma outra sociedade, já


não baseada nas hierarquias esclavagistas, feudais ou burguesas, na propriedade dos
homens, da terra ou do dinheiro e Nietzsche, pouco tempo depois, punha em causa
todos os valores do bem e do mal reconhecidos desde Zaratustra.

Contra a corrente destas revoluções, tentando mesmo recalcá-las, Auguste Conite


substitui o direito divino por um cientismo totalitário a que chamou Positivismo.

Esta contra-revolução restaura a ideia de uma ordem eterna, já não das religiões e
metafisicas tradicionais mas de uma ciência que impoe factos duros e as leis que os
ordenam. "0 mundo existe sem ti. É assim, Tu não podes nada." Este postulado
positivista do statu quo é tão opressor como as antigas interdições de atingir a
ordem desejada por Deus ou os decretos da Providência.

Mudou-se apenas de ópio: agora o fatalismo, aquilo a que se costuma chamar


"objectividade científica", entrou por outra porta. Até mesmo o socialismo se
afirma "científico". Com receio de ser profético ("utópico", dizem os socialistas)
procura constituir-se em continuidade com o statu quo e não em rotura transcendente
com ele.

É assim que muitos revolucionários querem mudar tudo, excepto a si próprios.

Mudar o mundo, não a sua própria vida. Mas uma coisa implica a outra.

0 mundo não pode mudar - a não ser quantitativamente enquanto aceitarmos o


postulado positivista do "é o que é".

Nada mudará efectivamente enquanto vivermos na ilusão de que o mundo e a ordem em


que vivemos são os unicos possiveis.

Desde o seu aparecimento, o espírito positivista provoca revoltas que exprimem a


recusa de integração na máquina do mundo.

A vontade de demolir o sistema manifesta-se na política, com o movimento


revolucionário, e nas Igrejas, com a procura da renovação da fé na transcendencia,
que e o contrário da suficiência domática.

Nas artes, as roturas formais precedem o nascimento de um projecto profético.

Na pintura, é desfeita a ordem tradicional das coisas:


1

renuncia-se à cor, e é o impressionismo, renuncia-se à forma, e é o cubismo,

- renuncia-se ao objecto, e é a abstracção,

- renuncia-se ao sentido utilitário, e é o surrealismo.

Tantas recusas libertadoras em relação ao passado, mas ainda nenhum prenúncio de um


futuro novo.

Ser poeta, na vida tal como na escrita, é participar na criação contínua do mundo
pela nossa vida transformada em poema.

É conjugar o Verbo Deus.

É fazer existir o invisível, e não simplesmente acreditar nele. Tomá-lo visível.

A poesia é a linguagem anterior ao divórcio entre o pensamento e o ser. A poesia é


contagiosa.
Abramo-nos ao contágio da epopeia! A de Neruda, de Kazantzakis, de García Llorca,
de Airné Césaire, de Iqbal, de Saint-John Perse, "capitão e regente aos comandos
das marchas".

A criação é a mais clara das experiências da transcendência. A criação contínua do


homem pelo homem, por todos os homens e todos os dias, a que se chama História. Não
é só a história das técnicas e instrumentos, que efectivamente contribuíram para a
sua construção, não é de forma alguma a história das guerras e dominações que
constantemente destruíram, mas é a história de todos os projectos, falhados ou
vitoriosos, virados para a emergência do homem total.

Cada obra de arte lê-se como um rosto que toma fisicamente visível o invisível do
sentido. Da dança à pintura, da música ao cinema, do teatro ao romance, a Arte é
expressão da vida dos outros, não o seu reflexo mas o sentido que deram a essa
vida, os projectos possíveis em todas as eras da Humanidade.

110

As artes transmitem-nos, por uma espécie de contágio total, simultaneamente fisico


e espiritual, toda esta profusão de formas de existência, enquanto a História
regista só as formas vencedoras, pois é sempre escrita pelos vencedores.

Só as artes, mesmo que seja através dos seus vestígios mutilados, nos permitirão
reviver as formas de existência cujo projecto encarriavam, só as artes nos
permitirão viver, através da sua presença em nós, se as soubermos ler, a verdadeira
História da Humanidade: a história das possibilidades humanas.

Quais são então estas "possibilidades" e que significa saber lê-Ias? Até mesmo
genéros artísticos mortos nos ajudam a reviver: o homem da epopeia é aquele a que
os biólogos chamariam um "mutante" - é habitado por um futuro ainda não definido.
Anuncia uma forma de vida de que só mais tarde filósofos e moralistas descobrirão
as leis. Mais tarde, ou seja, quando a sua forma de vida tiver "deixado de ser a
tentativa de um só homem para se encamar nas massas humanas", escreve Aragon na
Semaine Saínte.

No Mahabarata, o caminho de Arjuna não está traçado: o herói carrega um futuro


potencial. A lei que dá à sua vida unidade está em redacção permanente. 0 sentido
só é evidente aos olhos do Deus Krisluia.

0 momento em que o homem procura um sentido no caos do mundo, e que, por exemplo na
Renascença, com o derrube de todos os antigos valores, deu à luz Shakespeare e
Cervantes, continuam a emocionar as massas que têm encontrado ali as mesmas
angústias do seu tempo. Estas obras, no entanto, estão firmemente implantadas na
sua época: Cervantes escreve um século depois da abertura de um Novo Mundo. É
soldado na cruzada de Lepanto contra os turcos. Intendente da preparação da Armada
Invencível, viu naufragar o destino da Espanha.

Shakespeare nasceu 50 anos depois da Utopia, de Thomas More, e do Principe, de


Maquiavel, 18 anos depois da morte de Lutero. Tinha
22 anos quando a Invencível Armada foi derrotada, 23 quando Isabel mandou decapitar
Maria Stuart. Dez anos depois, inaugurou o seu "teatro do Globo", teatro das
tempestades da Renascença. Quantos mundo e projectos viu Shakespeare nascer e
morrer. Tal como Cervantes.

111

0 seu enraizamento neste século de feras e tempestades permitiu-lhes contribuir com


obras que nos fazem viver a angústia e o desespero do sentido último da vida.
1605: 0 Rei Lear revela a decomposição do mundo "onde os loucos conduzem os cegos"
(IV Acto, cena 1). 0 rei não passa de um "fragmento em ruína". Lança a questão
crucial: "Quern poderá dizer-me quem sou?"

1605: "Sei quem sou", responde D. Quixote (1, 5), igualmente vencido, também ele no
máximo da sua tristeza. Mas habitado pelo projecto louco de dar a si um sentido.

Estes dramas são-nos ainda familiares e presentes.

Martha Graham dizia que a dança deve transmitir na sua linguagem aquilo que Miguel
Ângelo ou Shakespeare transmitiram na deles. A dança é a síntese de todas as artes,
porque todas as artes requerem a participação do homem total.

Não se "Iê" uma pintura, uma escultura, uma música ou um monumento como se lê um
tratado de matemática ou de gestão, só com a inteligência. Porque "compreender" uma
obra de Arte não é uma simples questão de pensamento. Este acto implica a
participação da totalidade do homem e principalmente do seu corpo.

Um escravo agrilhoado de Miguel Ângelo irradia a sua força e o seu esforço pelo
espaço à volta. Não leio esta obra como um manual de anatomia. 0 meu corpo é
captado por este campo de energia, e eu experimento, sem mediação intelectual, no
meu torso, nos meus braços, nas minhas coxas, as suas tensões e vibrações. As
linhas de força apoderam-se das fibras da minha carne como se fosse minha obrigação
libertá-lo.

0 buda de Mathura, pelo contrário, engole o espaço e parece destruí-lo. A repetição


rítmica das curvas estilizadas desenhando os seus lábios e sobrancelhas como folhas
de Iótus cujos contornos levam os meus olhos para o caule que se lhes parece, guiam
o meu olhar para o fundo das águas. Todo o meu corpo é arrastado numa calma
espiral. 0 mesmo movimento rítmico das pálpebras que se fecham parece aspirar o meu
corpo juntamente com o espaço, não
112

para o eliminar mas para o ordenar numa unidade mais harmoniosa e serena. Como um
yoga em meditação, só regressaria do nada para rever o rosto anterior ao meu
nascimento. Recomeçar um vida depois de um nascimento purificado.

0 percurso de uma obra "sagrada" leva-me para lá de mim, para me tomar consciente
de uma realidade que me supera e à qual pertenço, num movimento que é, igualmente,
"em mim" sem ser "meu". Tomo-me uno com o Todo, o Todo vive em mim.

A visita à catedral de Chartres ou à Notre-Dame de Paris, mesmo para quem não a


faça com intenção religiosa, é uma dilatação do ser. Não posso, fisicamente,
atravessá-las a direito, do pórtico ao altar. Apoderam-se de mim linhas de força
invisíveis, que me fazem seguir o deambulatório das naves laterais, passar de
coluna em coluna, de arco em arco, como se nunca acabasse de entrar, de transpor as
portas, numa espécie de rito iniciático, de peregrinação em que, mesmo sozinho, me
sinto rodeado por uma multidão familiar, por ela acompanhado e habitado, até que no
esconderijo do relicário, depois da marcha silenciosa, depois de tantos limiares,
me sinto transportado para uma nova terra, iluminada por outros sóis. As rosáceas
de vitrais azulados são como se o sol iluminasse a noite sem a destruir, a "noite
luminosa" que cantava São João da Cruz.

No silêncio, mesmo paradoxo, murmura esse diálogo com as abóbadas de que nasceu o
canto gregoriano.

Não é por se destinar a um culto que a Arte é sagrada, tal como o não são inúmeras
pinturas só por que tratam de temas "religiosos". A Arte é sagrada quando não me
deixa intacto, quando mefazpar-

ticipar numa vida maior A igreja de Ativers ainda existe, e passamos-lhe em frente
como passamos por qualquer edificio banal. Mas, transfigurada por Van Gogli, a
igreja faz-nos reviver uma agonia e uma ressurreição. As paredes de pedra cinzenta
e os tectos de tijolo são agora carne e sangue, sob um arrebatador céu azul,
tórrido e ensombrado por serpentes de cor. Os meus músculos enrijam para resistir a
tamanho esmagamento, são percorridos por todas as curvas destas paredes gementes,
destas telhas em sangue, e o arco escorado ao solo resis-

113

tindo à tortura dos caminhos reptilíneos que já o esmagam e ao peso do céu. Todo eu
participo neste esforço para uma vitória impossível.

Uma coreografia e uma dança são o prolongamento, a expressão, em glória, destes


movimentos que em mim se esboçaram ao viver estas obras tão intensamente.

Nelas, o espírito ganha corpo. No corpo do bailarino ergue-se um outro eu, maior,
já não limitado pelas fronteiras da sua propria pele ou da minha, mas que invade o
espaço dando-lhe um sentido, aludindo à sua imensidão ou à sua asfixia: Martha
Graham, em Frontiers, faz-nos experimentar fisicamente o infinito das grandes
planícies americanas e a aventura humana que evocam.

Marie Wigman, pelo contrário, em todas as suas coreografias, dominada pelo


esmagamento hitleriano, faz-nos experimentar o espaço como um gaiola contra a qual
o corpo se apola e se quebra para resistir. Não se trata de um espectáculo, mas sim
de uma celebração.

A Arte é o caminho mais curto entre dois homens. Através da dança, o movimento
significante de um corpo induz directamente ao esboço desse movimento noutro corpo
e, com este movimento, do sentido que o anima. A dança cria assim uma comunidade,
não de "espectadores", mas de celebrantes. Porque a participação de uma comunidade
numa significação comum, numa interrogação comum, cria uma comunicação que é algo
mais do que o conjunto de indivíduos que a compõem. Esta superação está na base do
sagrado.

É esta comunhão com o outro e com o apelo ao todo outro, ao para além de si mesmo,
que ela suscita que, em todas as grandes civilizações e no seu apogeu, fez da dança
uma linguagem do sagrado. 0 que há de sagrado na dança não é a pretensão de
ilustrar a liturgia desta ou daquela crença, é sim a exigência de totalidade do
homem, corpo e espírito. É também o poder de se subtrair aos gestos quotidianos
utilitários ou protocolares, pré-fabricados pelos constrangimentos das máquinas ou
da tradição.

É, também, a vontade de superar o caos. A dança tem uma dimensão prospectiva,


profética, já que não se contenta em reflectir o caos da nossa decadência ou em
projectar esse reflexo no futuro, mas, antes pelo contrário, costuma propor a
superação deste caos.

114

Vemos na dança, em estado nascente, o esforço especificamente humano e divino de


defrontar o caos, de o superar, de o transcender.

É esta, nas artes, a experiência de base da transcendência, que permite, mesmo aos
que a não partilham, compreender o nascimento das projecções divinas no coração dos
homens.
As artes são sagradas porque são o contrário da história já feita, da história do
passado. São a história enquanto se faz, a história do futuro, e não a história de
dominações, impérios, generais, déspotas, negócios e guerras, de tudo o que
preencheu o tempo ilusório das derrotas humanas, de tudo o que tentou destruir a
eternidade viva.

Júlio César não representa nada na minha vida. Só existe nos manuais escolares. Tal
como Ranisés 11 só existe nas verdadeiras "bandas desenhadas" em baixo-relevo, em
Kamak, relatando os massacres que cometeu. São o negativo da história, da falsa
história, cada vez mais destruidora em função do "progresso" graças à eficácia das
armas, militares, económicas ou mediáticas.

A verdadeira "história" é a da Criação, da Criação contínua do homem pelo homem, a


"história santa" da Humanidade, feita de artes reveladoras do sentido divino da
vida e anunciadoras do futuro.

Oposta à história linear triunfalista, sempre escrita pelos vencedores, a história


santa da Humanidade não corre por tais caminhos. Nela o tempo é reversível: os
construtores da catedral de Chartres, da mesquita de Córdova ou do templo de
Borobudur são meus contemporâneos. Fazem parte da minha vida, enriquecendo-a com
novas dimensões, dilatando os meus pulmões em todos os espaços sagrados, todos
diferentes mas todos reveladores de transcendência: o espaço da catedral, da
mesquita ou do templo hindu.

0 Baghavad-Gita ou os Upanixadas estão-me imediatamente presentes para me


reconduzir ao centro de mim mesmo.

Os músicos dez vezes milenários que em tempos prenderam o sopro do vento em canas
quebradas para fazer uma flauta, ou o lamento do trigo curvando-se num qualquer
Agosto para fazer uma harpa, não são nem novos nem velhos demais para despertar os
nossos amores, a nossa fé, as nossas angústias ou os nossos entusiasmos.

115

Saint-John Perse é contemporâneo de Píndaro ou do Ramayana, Martha Graham é


contemporânea de Shiva, o senhor da dança, pelo menos para aqueles que ouvem os
seus chamamentos. Momentos intemporais da criação do homem, eternidade vivida em
cada momento, a sua presença em nós chama-se cultura.

A Arte está no centro desta vida "poética", criadora e amorosa fora do tempo
linear, ilusório e agressivo.

A Arte ajuda-nos a reencontrar as dimensões perdidas do homem ao longo de tantas


ocasiões perdidas da História, sempre que não se deixa cair na imitação do passado,
nem na reflexão do presente, nem na confusão do futuro com a novidade a qualquer
preço, por mais absurdo que seja. É verdade que é grande a tentação de confundir
originalidade com singularidade.

0 comércio e o dinheiro incitam a isto. Nesta nova religião que não ousa dizer o
seu nome, o monoteísmo do mercado, tudo incentiva o artista, pintor, músico ou
bailarino, a apresentar sempre mercadorias inéditas porque se vendem melhor nas
galerias de pintura, na televisão ou aos empresários de espectáculos, da canção ou
dança, numa palavra, no "mercado da arte".

Uma civilização agonizante exalta as artes inofensivas: aquelas que, em vez de se


ocuparem com a sua destruição, reflectem a sua putrei

facção, ou evitam-na ou rogam-lhe pragas impotentes. "Você é uma abstracção de


revoltado", disse Sartre a um destes artistas, tão representativo da época que
mereceu a consagração do Prêmio Nobel por ter proclamado o absurdo do mundo.

Em todas as artes proliferam assim os cantos alternados de carpideiras da história


e de praguejadores.

Rimbaud abrira aos artistas as portas da fortaleza positivista; dela saíram mais
evadidos do que homens livres.

Mesmo entre os grandes deixa de aparecer um rosto humano.

É o homem, como escreve Michaux, "reduzido a uma humildade de catástrofe, a um


nivelamento perfeito, como a seguir a um medo imenso. Diminuído em grandeza,
diminuído na estima."

0 homem insecto das esculturas de Giacometti, ou construido com as grades negras de


Buffet.

116

0 homem desintegrado dos romances de Joyce, de Faulkner (0 som e a Fúria é um mundo


com significado visto por um deficiente mental); Robbe-Griller, herdeiro destes,
obstinadamente volatiliza o sentido, o homem portador de sentido e criador da
história.

Um romance que não nos ajude a tomar consciência da realidade profunda é um romance
trivial.

Diz-se, talvez com alguma ligeireza, que o romance é a epopeia e a tragédia de um


mundo sem Deus. Acrescentando mesmo: pelo menos sem um Deus exterior ao homem que
lhe dite as leis.

Porque o romance é uma arte do tempo, tal como a música. E só há tempo verdadeiro,
História especificamente humana, quando emerge nas nossas vidas algo de
radicalmente novo, em rotura com o passado.
0 tempo do romance não é o do calendário, dos relógios, dos astrónomos, em que o
futuro nada mais é que o prolongamento do passado e do presente. 0 tempo do romance
é o da criação. Não da criação do escritor, mas da criação continuada de um homem
por um homem.

A causa profunda do retrocesso é o facto de, durante este século o mesmo das duas
guerras convulsivas do Ocidente -, a visão positivista ter manifestado as suas
consequências fatais.

0 mundo actual é racional ao absurdo.

Um "demónio" de Dostoievski dizia: "Não tenho o poder de me criar. Tenho o de me


destruir."

As ciências e técnicas dos nossos dias deram-nos este poder: um niffismo à escala
da espécie. Um suicídio planetário já programado em computador.

Uma razão que não se interroga sobre os seus fins aproxima-se do irracional.

A Física divide o coração do átomo e armazena um milhão de Hiroshimas: a


possibilidade técnica de reduzir a nada 70 biliões de seres humanos.

A Biologia divide o coração do gene e dá-nos a capacidade de telecomandar robots


vivos ou de fabricar monstros e epidemias.
A Economia divide o coração do mundo: os seus modelos de desenvolvimento disformes,
sem finalidade humana, "desenvolvem"
117

sociedades da pilhagem e do desperdício e, no outro pólo, da fome e do


endividamento.

A vida não é esta vida falsa e mesquinha, acumulação de coisas e de movimentos que
são a malha do tempo e nos afastam da vida total.
0 tempo urdido por tudo o que se pode programar: o relógio de ponto, na empresa; a
calculadora, para o supermercado; a programação do video; a data adequada para
trocar de carro; em poucas palavras, a lista daquilo que compõe a trama do tempo. 0
que constitui a sua grelha: todas as imagens da vida que a televisão me impede de
ver; todos os perfumes de húmus ou de mar que o petróleo ou o tabaco me impedem de
cheirar; todo o murmurar dos ventos e das pessoas que me rodeiam, e talvez a sua
alegria ao falar, de que me separa o walkman das multidões solitárias, fechando-me
na sua gaiola sonora com a dança de São Guido do ritmo binário que se impõe aos
meus pés e ao estalar dos meus dedos.

Eis-nos então "ligados"', ligados à mais falsa das vidas, robots telecomandados
ligados à gaiola do tempo.

Viver a vida das artes, do seu desapego ao caos, cria um novo olhar: o olhar que
não se prende com o parcial mas que nele descobre o todo e o futuro que indica.
Qualquer ser finito (e só há seres finitos através do corte mecânico do real com a
serra de conceitos e palavras) é testemunho e sinal daquilo que o supera, é um
indicador de transcendência.

Descubra-se na lagarta a borboleta, na prostituta a santa, no ovo a águia, nos meus


próximos como nos meus longínquos a freira, no sorriso efémero do jasmim a eterna
ressurreição da Primavera. É este o olhar da arte sobre o mundo. Mas, tal como o
Evangelho diz de Jesus, "Tocámos música alegre e vocês não dançaram! " (Mt. 11, 16-
17; U. 7, 32).

Juan Gris, o mais inovador dos nossos pintores, inventor do cubismo, com Braque e
Picasso, dizia: "A força de um verdadeiro cria-

' Branché, no original, significa usualmente "ligado" (ou "rainificado"); a palavra


adquiriu recentemente outra conotação, com que o autor joga aqui: ser ou estar
branché equivale, em português coloquial, a estar "na moda", estar "a, dar", estar
"in". (N. do T.)

118

dor exige-lhe que meça a grandeza do passado que em si carrega antes de o superar."
Não apelava a um regresso ao passado; apelava, pelo contrário, à sua superação, na
condição de não o ignorar.

É esta a missão da dança, síntese das artes: a máscara africana, sob a qual se
executa a dança, é um acumulador de energia, reunindo as forças dispersas da
natureza, dos antepassados, dos deuses, dos vivos e dos mortos, para as irradiar
pela comunidade e criar núcleos de realidade e de energia mais densos.

É esta a missão universal de todas as artes: despertar no homem o Deus que carrega.

Num mundo físico que tende, imparável, à desintegração, e numa epopeia humana que,
na actual decadência em que o Ocidente parece deixar-se ir pela corrente da
entropia, as artes, e a dança sua síntese, são um esforço de reelevação do
Universo, um núcleo de resistência ao não-sentido para anunciar uma ordem da vida
mais rica. Para exaltar as suas forças ascendentes: o trabalho, o amor, a revolta
contra o não-sentido, a beleza e a fé.

119

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sowsi;)I!Iod so sopol op a opleo -.iaw op, owslalouotu op o ? ;)nb luolpui owsloju
op, 'slUloos Sao- 5ula-i su supol wa 'qjunlij olod upusnuo opunw op o0vi2olulsop
junjou V

ovsfl,IDNOD

ros para a escravidão"; "Deus dos exércitos", o Deus de Josué e de David, que apela
ao herem, aos extermínios sagrados.

0 Ocidente, lançado na corrida alucinante ao querer e ao poder, com as promessas


míticas das suas providências ou do seu progresso de povo predestinado.

No outro lado do mundo, o Oriente, cujo extremo se proclama "o país do Sol
nascente".

0 milenário Oriente, das sabedorias "gnósticas" demasiado prematuras, onde o homem


pensou poder juntar o Uno e o Todo, existentes e definitivos, e neles se
imobilizar.

A imortalidade não é a negação da morte, mas sim a afirmação da vida eterna e


criadora.

Neste "crescente fértil" das terras e das almas onde se conjugam a confluência e o
confronto entre Oriente e Ocidente acendeu-se a centelha. A centelha divina da
unidade viva dos mundos, Oriente, Ocidente,

nasce o Sol, põe-se o Sol, e amanhã se há-de erguer no horizonte se o homem o


quiser ajudar, para ser, como escrevia Zaratustra, o primeiro profeta da unidade
dual, "daqueles que, logo com a manhã, trabalham para o erguer do dia".

Nasce então o Deus sem nome de Heraclito de Éfeso, anunciador, igualmente, da


unidade dual, para quem o "mundo é um fogo eternamente vivo que se acende e apaga
segundo leis determinadas".

Nesta terra das mensagens divinas, da fecundação mútua de espiritualidades


afastadas, Oriente e Ocidente uniram-se, encamaram num homem que irradiava o
divino: Jesus. Jesus ensinou que até os deuses morrem e que a sua morte não é
separada da vida nas suas repetidas ressurreições.

Na chameira dos dois mundos, no Próximo Oriente, os Padres da Igreja revelam-nos o


verdadeiro sentido e a "boa nova" desta encarnação: Deus fez-se homem para que o
homem se possa tomar Deus.

Podia começar a epopeia humana. Mas, também ela, só se elevou de "queda em queda".

Os deuses ciumentos das antigas lendas, com Paulo, depressa substituíram Jesus no
direito comum dos antigos deuses de potência, com
122

as suas "guerras santas", cruzadas e inquisições, com as suas "santas alianças" com
todos os Mammons.

Houve ainda certas loucuras magníficas: a de Maoiné e dos sufis do Islão,


relembrando a unidade da fé - de Abraão e de Jesus tal como dos Upanixadas e do
Zend Avesta.

A de São Francisco de Assis, destruidor dos ídolos do poder e da riqueza em nome da


chama de Jesus. A de Raimundo Lull e de lbn Tofay1, garantes da fé primordial e
fraterna no tempo das Cruzadas. A do cardeal de Cues, que sonhou, em a Paz da fé,
com um concílio universal das religiões, na mesma altura (1453) em que os turcos
reentraram em Constantinopla, a do Vaticano 11 do Papa João XX111, e de tantas
outras teologias da libertação, da índia muçulmana de Kabir a Iqbal; do Ocidente
cristão dos padres Montchanin e Pannikar, ao padres Gutierrez e a Ellacuria, contra
os "esquadrões da morte", e a Leonardo Boff, contra os inquisidores.

Mas as religiões tradicionais fecharam-se em interditos e nos seus exclusivos, de


Constantino a todos os assassinos imperiais da fé, desde os anátemas romanos, dos
reis prostituídos do Islão petrolífero, aos "fuqahas" ignorantes e servis que
frequentemente lhes servem de garantia em nome das tradições falsificadas.

A fé não deixou de precisar do "rio de fogo" (Feuerbach) que nos protege contra a
tentação de projectar num Deus, ou em deuses, as vontades de poder dos homens; o
"rio de fogo" que Marx e Nietzsche nos incitaram a ultrapassar para levar a fé para
além das alienações "religiosas".

"Morre e transforma-te." Porque o Uno e o Todo, que temos de reencontrar para que o
homem se torne o Deus anunciado pelos Padres de Capadócia, identificam-se com a
unidade e totalidade da vida na incessante criação do novo. 0 Oriente apela a
descobrir no Uno e no Todo que são a nossa verdadeira realidade o acto que
constitui o nosso ser.

Lembre-se o Ocidente de que não há nenhum "fim da história", que o homem é um Deus
em flon

123

-- - r" -4 -, -, i . e- i , K

ANEXOS

IF ,4 F

HA "PROVAS" DA EXISTENCIA DE DEUS?

É Platão, no Livro X das suas Leis, o primeiro a crer na possibilidade de uma


demonstração'.

A argumentação é simples: aquilo a que, em virtude do seu dualismo fundamental da


alma e do corpo, chama "matéria" pode apenas transmitir movimento. Falta um
primeiro motor. Então (?) apenas a alma pode ser a fonte do movimento inicial. Aqui
ainda nos encontramos ao nível das palavras e da sua definição: alma = fonte de
movimento. 0 movimento no mundo não pode "então" deixar de ser atribuído a uma
alma, a alma do mundo. Este artifício verbal chamar-se-á, na teologia cristã, "o
argumento cosrnológico". É o modo simples de dizer "não sei" e de atribuir um nome
à ignorância da causa primeira.

Para Aristóteles, o movimento não é mudança de lugar mas sim passagem do possível
ao real, operada pelo crescimento das coisas ou dos seres vivos que lhes permite
atingir o seu pleno desenvolvimento. Também aqui, não se podendo explicar esssa
"evolução", dá-se-lhe um nome: um "motor imóvel" chamando cada coisa à sua
perfeição. Tal como antes, à falta de explicação para a causa primeira, se lhe dava
um nome, aqui, não podendo dar conta do fim último, dá-se-lhe um nome: esse desejo
que move os "seres" para a sua perfeição chamar-se-á "motor imóvel", "pensamento do
pensamento" e, na teologia cristã,

' Na Répública e no Teteto, definiu Deus identificando-o ao Bem, uma pura questão
de escolha de palavras e de substituição de um pelo outro: Deus Bem.

127

que adoptou este racionalismo puramento verbal, Deus. Este será o argumento de
finalidade, baptizado de "argumento teleológico".

Enfim, sempre em virtude do princípio grego, no qual o conceito, ou seja, a


palavra, é tomado por uma realidade correspondente ao ser, surgiu a ideia de
deduzir Deus da ideia que dele se faz.

Tudo começa, como para os gregos, por uma definição: Deus, diz Santo Anselmo, é "o
ser do qual é impossível pensar que exista algo de maior" (id quo majus cogitari
non potest). É, segundo Santo Anselmo, um conceito irrecusável: "Mesmo o pobre de
espírito que, no seu coração, diz 'Deus não existe' tem, para 0 negar, uma ideia de
Deus."

Ora "um ser existente é superior em relação a um ser inexistente". A existência de


Deus é "então" uma verdade assegurada já que a sua não existência não responderia a
esta definição do ser maior, do qual mesmo o pobre de espírito possui o conceito.

0 monge Gaunilon mostrou a vaidade desta pretensão de retirar a realidade do


conceito, isto é, de saltar por cima da sua sombra. Trata-se simplesmente de
reconhecer, contra as pretensas "provas",
que a fé não tem que ver com uma resposta mas sim com uma questão. Séculos mais
tarde, Descartes, que Gilson demonstrou ser o último dos escolásticos, repetirá o
mesmo sofisma na quarta parte do seu Discurso do Método, na quinta parte das
Meditações e na primeira dos seus Princípios da Filosofia (§§ 14 a 18).

Esta ginástica verbal esconde, para lá das palavras e do papel, uma experiência
real: a das nossas ignorancias e dependências. Não podemos responder às questões da
nossas origens primeiras, nem às dos nossos fins últimos. Temos consciência de não
sermos os nossos próprios criadores, de pertencer a um Todo maior que nós próprios.

A angústia das três questões vitais, "De onde vimos?", "Para onde vamos?", "Quem
somos?", não será apaziaguada com os disfarces e o palavreado de pretensos
"argumentos" ou "provas" de algo que, na realidade, requer um acto defé. Um acto de
fé no verdadeiro sentido do termo. Um acto, dado que se trata do compromisso de uma
vida inteira. E um acto de fé, já que se trata de uma decisão responsável, que não
se baseia em nenhuma sequência de factos nem em nenhum
128

silogismo. É necessário escolher. Correr riscos. 0 pára-quedas não se abrirá a


menos que tenhamos saltado! A escolha oposta assentará igualmente no postulado que
Dostoievski apresentou de forma fulgurante: sem Deus, sem afirmação do sentido da
vida, tudo é permitido. Não se trata de um Deus que iluminamos com velas, ou que
veneramos como um tirano ou um juiz, mas da escolha de uma vida na qual, à partida,
nada nos é prometido e ninguém nos espera.

129

4 i

I I

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_dim

A TEOLOGIA DO SÉCULO XX E 0 DIÁLOGO DAS CIVILIZAÇõES

Na teologia da segunda metade do século xx, ou seja, depois da


2.'Guerra Mundial, o problema do Homem está em primeiro plano.

A teologia enfrenta os "humanismos" contemporâneos e esforça-se por os integrar na


antropologia cristã.

Num primeira época, até 1965, criar um "existencialísmo cristão" foi a tendência
dominante.

Depois de 1965, o problema passou a ser confrontar o marxismo, ou mesmo integrá-lo


e superá-lo.

Durante o primeiro período, os teólogos mais profundos têm como referências


essenciais Kierkegaard (ele próprio percursor, um século antes, de um
"existencialismo cristão") e, mais recentes, Heidegger, Jaspers, Gabriel Marcel e
Sartre. E a teologia de Karl Barth.

0 "face-a-face" entre a subjectivídade e a transcendência é o problema central.


Desde a famosa conferência de Sartre, em 1948, "0 existencialísmo é um humanismo",
o debate sobre o Homem, para muitos teólogos, tem sido essencialmente um confronto
com o existencialismo.

Dois grandes teólogos protestantes desta geração, Rudolf BuItmann e Paul Tillich,
incorporam o existencialismo nas suas teologias.

Para Bultmann, a "desmitologização" do Evangelho identifica-se com a sua


interpretação existencial (V. Le Kérygme et le mythe).

Hubert Reich, 1960.

131

Tillich procura dar uma resposta evangélica às questões existenciais que se


apresentam ao Homem'.

Na perspectiva judaica, Martin Buber considera Deus como o "tu" absoluto,


interpretando desta forma "a aliança com Deus" como uma relação intersubjectiva.
Tal como Karl Barth: "0 verdadeiro 'eu sou' [ ... ] significa: eu sou no encontro"
(La théologie protestante au XIXe siècle').

0 pastor Bonhoeffer, executado pelos nazis em 1945, cujo "cristianismo não


religioso" exerceu uma grande influência sobre a teolo-

. 1

gia, escreve: "Ser para os outros é a única expenencia transcendente", ou "A


transcendência consiste no 'tu' mais próximo" (Résistance et soumission).

Estes são apenas alguns exemplos, dos mais eminentes, da tendência para falar do
Homem na sua subjectividade, independentemente das condições históricas, sociais e
políticas que o rodeiam.

Nesta abertura ao Homem e ao Mundo (para lá de uma teologia dominada pelo


pensamento grego e centrada, ainda no principio do século xx, numa filosofia neo-
escolástica e numa concepção eclesiocêntrica), os teólogos mais representativos
tiveram como figura de proa o padre Karl Raliner, na Alemanha, e o padre Chenu, em
França.

É significativo que ambos tenham sido, como "especialistas", os principais


inspiradores e redactores da Constituição mais inovadora do Concílio do Vaticano
11, Gaudium et spes.

Não menos significativo é o facto de eles e os seus discípulos se terem tomado nos
principais companheiros católicos dos "diálogos cristãos-marxistas" organizados na
Europa conjuntamente pelo Centro de Estudos e Investigações Marxistas (CERM), que
eu tinha fundado em
1962, e pela PaulusgeseUschafi, dirigida na Áustria pelo padre KelIner.

0 cardeal Koenig, nomeado pelo Concílio para presidente da Comissão para os Não-
Crentes, considera estes encontros desejáveis e encoraja-os.

Théologie Systematique, 1956. Labot et Fides, 1969.

132

Estes encontros, sob a forma de grandes colóquios internacionais entre cristãos e


marxistas, têm lugar em Salzburgo, em Herren Chienisee, na Alemanha e em Mariankzé
Lazné (Marieband), na Checoslováquia. Multiplicam-se por toda a Europa e América e
em França sob a forma de Semanas do Pensamento Marxista.

A grande viragem teológica dá-se em 1965 e 1966; entretanto, o Vaticano 11, que
constitui o marco fundamental desta viragem, acabava.
1966 é o ano da Conferência Mundial do Conselho Ecuinénico das Igrejas, realizado
em Genebra, em Julho, sob o tema "Igreja e sociedade". No texto final, as Igrejas
protestante e ortodoxa abrem um grande espaço à reflexão teológica sobre as suas
relações com a sociedade.

Esta esperança de mudança reafirma-se na Conferência de Medellín (1968) do


Episcopado da América Latina.

Uma teologia nova nasce e desenvolve-se: ao contrário das anteriores correntes


existencialistas, não aborda apenas os problemas do homem individual, mas também os
problemas da prática moral e política, da transformação da sociedade.

0 terreno tinha sido preparado por uma série de controvérsias, no Quartier Latin,
entre existencialistas e marxistas, controvérsias que tiveram o seu apogeu nos
confrontos da Mutualité: todas as salas e a rua tinham altifalantes para acolher
6000 estudantes, no dia 7 de Dezembro de 196 1. Sartre estava com Jean Hyppolite,
director da École Normale Supérieure e eu, com o fisico Jean-René Vigier, do
Instituto Henri Poincaré. 0 debate foi publicado logo na altura pelas Edições Plon
e representou, para a juventude, o começo da substituição do existencialismo pelo
marxismo.

0 terreno tinha sido preparado pelas discussões entre marxistas e cristãos sobre a
obra do padre Teilhard de Chardin. Em 1959, o meu livro Perspectives de Vhomme,
(sobre existencialismo, pensamento católico, marxismo), reconhece no padre Teilhard
de Chardin um mestre da esperança.

No seu esforço, enquanto sábio e padre, para "captar as forças vivas da nossa
época", fossem elas as ciências ou a construção do futuro, e para integrar numa
visão dinâmica e optimista do mundo o sentido do evolutivo, desde a formação da
terra e da evolução biológica aos esfor-

133

ços dos homens para construir o futuro, a visão do mundo do padre Teilhard de
Chardín permite abrir o debate fundamental com os marxistas: o debate sobre a
transcendência do futuro. Eu subscreveria a homenagem a Teilhard de Chardin. feita
pelo padre Lubac: "Tocou aos vivos; mais: suscitou a própria vida".

É importante notar que, no momento em que um decreto do Santo Oficio, de 6 de


Dezembro de 1957, decidia que "Os livros do padre Teilhard de Chardin devem ser
retirados das bibliotecas, dos seminários e instituições religiosas e não se devem
fazer traduções desses livros para outras línguas", consegui que fosse publicada
uma tradução russa do Fenômeno Humano, de Teilhard, em que escrevi um prefácio
entusiasta.

Percursor do espírito do Vaticano 11, o padre Teilhard pretendia passar do


"cristianismo do desprezo pelo mundo ou da evasão" a um "cristianisino da
evolução".

"Estabelece o terreno para um diálogo fecundo... porque esse diálogo não está
viciado à partida por preocupações próprias do conservadorismo social ou por
desconfianças em relação à ciência e à alegria de viver" (Perspectives de Vhomme,
1959)
0 primeiro grande debate aconteceu em Paris, perante 3000 pessoas, entre seis
filósofos, três dos quais católicos e três marxistas, a partir da obra de Teilhard,
e foi publicado sob o título Morale crélienne e morale marxÍstCI.

Sob o ponto de vista da teologia, é em 1965 que se manifestam os primeiros sinais


da grande mudança: o problema central, para os cristãos, deixou de ser o de
integrar as variações existencialistas sobre a subjectividade e passou a ser um
marxismo fiel ao programa de Marx: "Os filósofos até aqui não fizeram mais do que
interpretar o mundo; trata-se agora de o mudar". (XI Tese sobre Féuerbach)

Já em 1964 tinha sido publicada a Théologie de Pespérance, do protestante Jürgen


Moltinann. Sob a enorme influência do Princípio Esperança, do marxista Emst Bloch,
restaurador, no interior do marxismo, do messianismo e da utopia que, segundo
Bloch, desempenham na acção política um papel análogo ao da hipótese na
investigação científica,

4Plon, La Palatine, 1960.

134

enquanto antecipação criativa do futuro. Em 1965, o padre Chenu, em "0 Evangelho


durante os tempos", desenvolve a sua Théologíe de la matières, prolongamento da sua
Théologie du travail, de 1955.

Em 1965 aparece na América um best seller teológico, La Cité seculaire de Harvey


Cox que, sem o sopro profético de Moltmann, consídera que as transformações
políticas são o ponto de partida da reflexão teológica e da eciesiologia.

Em 1966 é publicado La Nouvelle Réforme, do bispo anglicano John Robinson.

No mesmo ano, Johann Baptiste Metz elabora na Alemanha a sua Théologie politique.

1965 é também o ano de publicação do meu livro De l'anathème au dialogue. Un


marxiste sadresse au Concile, traduzido em catorze línguas (incluindo o japonês!),
que se situa no centro dos diálogos entre teólogos cristãos e teóricos marxistas: o
padre Karl Ralmer fez o Prefácio da tradução alemã. Nele expõe a sua tese mais
importante: "0 cristianismo é a religião do futuro absoluto", no qual o marxismo
não era mais que uma etapa. Jean-Baptiste Metz escreveu o posfácio. Harvey Cox
convidou-me para participar num debate em Harvard. Na Alemanha, Moltinann. compara
a importância das minhas propostas com as de Emst Bloch, para uma teologia da
esperança.

No Canadá, a partir do nosso debate no Saint-Michael's College de Toronto, Leslie


Dewart produz o seu livro LAvenir de lafoil.

Em 1967, o padre Cottier escreve Chrétiens et marxistes. Un dialogue avec R.


Garaudy7. No mesmo ano, um professor da Universidade Pontificia Salesiana de Roma,
o padre Girardi, publica Marxisme et Christianisme, com um prefácio do cardeal
Koenig e um posfácio de R. Garaudy.

Em 1968, surge em Nova lorque Dialogue chrétien-marxistel, diálogo entre o jesuíta


americano Quentin Lauer e R. Garaudy.

Éditions du Cerf.

Herder and Herder, 1966.


7Mame.
Doubleday e Arthaud.

135

Em 1969, o teólogo espanhol Gonzalez Ruiz, um dos participantes no debate de


Salzburgo, escreve Croire après Marx, onde coloca o problema central: Deus não é um
rival do esforço humano. Prometeu pode constar do calendário cristão. A gratuidade
da graça divina em nada impede a plena liberdade do Homem.

Em 1970, tem lugar, em Assis, na Itália, um encontro entre o padre Balducci, prior
da abadia de Fiesole, o teólogo espanhol Gonzalez Ruiz, o teólogo francês Bernard
Besret e Roger Garaudy, que será posteriormente publicado em França e Itália sob o
título: Un Pisque appelépPIére.

0 padre Alfredo Fierro, director do Instituto Universitário de Teologia de Madrid,


no seu livro LÉvangile militant'O, escreve: "Em
1964-1965 cristãos e marxistas encontraram-se. 0 diálogo implícito ou explícito de
teólogos com teóricos marxistas teve uma influência decisiva na mudança da
teologia, ao ponto de as actuais teologias da revolução e da libertação poderem ser
consideradas a reacção específica dos cristãos ao novo impacto do marxismo na
segunda metade do século xx, Se quisermos determinar com precisão o momento do
salto teológico do existencíalismo para a política, é necessário sublinhar
sobretudo as conversações entre cristãos e marxistas franceses em 1966, em Lyon e
Paris, o debate de Salzburgo em 1965, em que participaram teólogos e os mais
eminentes teóricos do marxismo."

0 principal resultado destes debates está numa nova orientação, tanto dos
interlocutores marxistas como dos interlocutores cristãos. Os marxistas, nestes
debates com os teólogos cristãos, foram levados a investigações sobre "as dimensões
perdidas" do Homem.

A crítica das ideologias de Marx conduziu os teólogos, católicos ou protestantes a


abordar mais concretamente os Problemas práticos.
0 padre Schillebeeckx escreveu: "A hermenêutica do Reino de Deus

consiste, acima de tudo, em melhorar o mundo"; e o padre Gonzalez Ruiz escreveu o


livro: Creer es comprometersell, (Crer é comprometer-se).

1 Desclée de Brouwer. '0 Verbo Divino, 1975.

11 Barcelona, 1970.

136

0 ramo mais significativo e mais fértil foram as teologias da libertação. Estes


confrontos tiveram uma outra consequência, não menos

importante: a procura em comum do essencial permitiu. superar, em diversos


aspectos, as antigas clivagens entre teólogos protestantes e católicos. Talvez pela
primeira vez desde a Reforma, a tónica esteve nas questões comuns.

Entre os teólogos da libertação, a obra do teólogo Ruben Alvez converge com a dos
seus homólogos católicos. Na Europa, o pastor Jürgen Moltmann, o grande teólogo da
esperança, efectua investigações críticas no mesmo espírito do católico J.-B. Metz,
na sua teologia política.

Todos têm experimentado as novas exigencias de toda a teologia: prática, pública,


crítica.
137

I .

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I I t

0 "CRISTO" DE SÃO PAULO É JESUS?

Senti, em todas as discussões sobre o meu livro, o incómodo provocado pela tese de
Será que precisamos de Deus?: "0 Cristo de Paulo não é Jesus. 0 Deus de Paulo não é
o Deus de Jesus: ao contrário da mensagem libertadora de Jesus, Paulo forneceu os
fundamentos teóricos de toda a teologia da dominação. Não é desta teologia nem
deste Deus que precisamos."

Esta irritação de muitos dos meus leitores, cuja boa fé (e, a alguns, a competência
como exegetas) reconhecia, irritação nem sempre revelada publicamente, conduziu-me
a reflectir mais profundamente sobre a questão apresentada nesse livro.

As minhas primeiras reflexões sobre Paulo basearam-se nos grandes comentários da


Epístola aos Romanos, de Lutero a Karl Barth. Os inúmeros trabalhos sobre São
Paulo, de teólogos católicos, tinham-me causado a impressão de que Paulo fosse o
intérprete por excelência dos Evangelhos Sinópticos.

Nenhum deles parecia atribuir grande importância ao facto de as Cartas de Paulo (a


que ele próprio chama "0 meu Evangelho"'), segundo as conclusões de quase todos os
exegetas contemporâneos, católicos ou protestantes, datarem de vários anos antes
dos Sinópticos, antecedendo em pelo menos quinze anos a redacção do sinóptico mais
antigo - o de Marco.

Esta anterioridade de Paulo tornava evidente que ele não era o comentador dos
testemunhos da vida de Jesus, mas sim, graças ao seu

1 Rm. 2,7 e 16,25; 2 Cor. 4,3 e 11,7; GI. 1, 11 e 2; 2 Ts. 2,18.

139

gênio místico, ao rigor sistemático da sua teologia, ao seu talento como


organizador de comunidades, o inspirador das interpretações das palavras, das
acções e da vida de Jesus naqueles que a tinham partilhado.

Para ler Mateus, Marcos e Lucas, baseei-me na erudita Sinopse, dos padres Benoit e
Boismard, da Escola Bíblica de Jerusalém. Depois disto, li e reli as Cartas de
Paulo de forma "ingénua", ou seja, abstraindo-me das milhentas exegeses destes
textos, abstendo-me mesmo de consultar os especialistas (pelo menos numa primeira
fase - a da leitura).

Este esforço para estudar os textos com "novos olhos", ou, pelo menos, sem prestar
atenção, nas entrelinhas, a vinte séculos de glosas, alterou todas as minhas
anteriores convicções.

Esta leitura fez com que me colocasse algumas questões fundamentais:

1.' Porque é que Paulo nunca cita as palavras ou as acções de Jesus? Teriam estas
pouca importância para os cristãos?'

Se, efectivamente, nas Cartas não se encontra nada sobre as palavras, os actos e a
própria vida de Jesus, como se ele não existisse antes da sua morte e ressurreição,
encontramos, pelo contrário, mais de 200 citações do Novo Testamento que permitem
reconstituir a imagem de um Messias (Cristo).

2A única excepção aparente será a evocação da última Ceia, na primeira Carta aos
Coríntios (11, 23-29). É estranho que Paulo - que não esteve lá pessoalmente - não
indica quem foram as testemunhas. Pelo contrário, pretende que "recebeu do Senhor"
esta narrativa (11,23). Ora, em nenhuma das aparições a que diz ter assistido
acontece algo que aluda a semelhante comunicação. 0 que Paulo conta nesta passagem
não é a narrativa da celebração da Páscoa, tal como a viveram os participantes, mas
a sua própria concepção da Eucaristia como instituição da "nova aliança", decalcada
dos modelos do Antigo Testamento. A sua narrativa é, de facto, um puzzle de
citações. "Este cálice é a nova aliança" (11,25), à maneira de Moisés, evocando o
"sangue da Aliança" (Ex. 24,28) de Jeremias (31,31). Invoca uma "nova aliança" de
Isaías quando profetizou o "festim para todos os tempos" (Is. 25,6). Apenas Lucas,
o discípulo mais próximo de Paulo e seu colaborador, relaciona esta cerimônia com a
tradição da refeição pascal de Israel ffit. 16,1-8), quando fala de "aliança nova"
(U. 22,19), enquanto nem Mateus (26,26-29) nem Marcos (14,22-5) evocam qualquer
aliança nova. Lucas dá-nos, aliás, a chave da interpretação desta passagem, ao
lembrar que tudo aconteceu segundo "o caminho que lhe foi traçado por Deus" (U.
22,22), sublinhando, de novo, como nota a TOB, a "ideia, judaica das Escrituras que
estão por cumprir" (p. 270, n. 1).

Assim, neste caso como noutros, Paulo não nos transmite a correcta palavra de
Jesus.

140

Jesus não trará nada de novo em relação ao Antigo Testamento? Será apenas um actor
obediente, que representa um papel escrito antes dele? Não se esconde desta forma a
fractura radical introduzida por Jesus na história dos homens e dos deuses?

2.' Se Paulo, depois da perturbante aparição que sofreu, queria realmente divulgar
a mensagem de Jesus, porque esperou três anos para se informar sobre a vida dos que
a testemunharam?

Em vez disso, vangloria-se da aparição, desprezando estas testemunhas: foi "chamado


para ser apóstolo não pelos homens nem por qualquer intermediário humano" (GI. 1,
1); age sem "pedir conselhos a ninguem e sem voltar a Jerusalém para se encontrar
com os que eram apóstolos antes dele" (GI. 1, 16-17).

"Passados três anos, fui a Jerusalém para me encontrar com Pedro... E não vi nenhum
outro apóstolo a não ser Tiago, o iri-não do Senhor" (GI. 1,18-19). Justifica este
episódio pelo privilégio especial que teria recebido, dispensando-o assim de evocar
um Jesus vivo, que falasse e agisse: "A Boa Nova que eu vos anunciei não é de
origem humana. Não a recebi nem a aprendi de qualquer pessoa, mas foi Jesus Cristo
que ma deu a conhecer." (GI. 1, 11- 12).

Os discípulos directos eram homens; Paulo não procura informar-se junto deles. E
Jesus não era também um homem? É verdade que no Evangelho de Paulo ("o meu
Evangelho", Rin. 2,16) Cristo não aparece como homem, mas como um Deus, com os
atributos do poder.

É estranho que Paulo nunca fale da obra apostólica das testemunhas, a não ser para
evocar os diferendos com elas. Está de tal maneira certo de ser o verdadeiro
depositário da mensagem que só volta a Jerusalém depois de catorze anos de missão.
"Catorze anos mais tarde voltei a Jerusalém" (GI. 2, 1). E é para lhes dar um
lição: "Expliquei-lhe a Boa Nova que anuncio aos não-judeus" (GI. 2,2) e "vi que
não estavam a comportar-se como deviam em relação à verdade da Boa Nova" (GI.
2,14).

Critica fortemente São Pedro: "Resisti-lhe frente a frente, porque merecia ser
repreendido" (GI .2,11). A reprimenda que
141

fez a Pedro é oportunista: vivendo em Jerusalém num meio judeu, Pedro toma as
refeições com os judeus. Segundo Paulo tudo acaba com um compromisso; "Deus tinha-
me encarregado de anunciar a Boa Nova aos não-judeus tal como tinha encarregado
Pedro de anunciar a Boa Nova aos judeus." (GI. 2, 7-9).

Tratou-se simplesmente de uma partilha terrítorial ou de uma dívergência doutrinal?

Duas concepções de Deus e do discurso sobre Deus confrontam-se assim


irredutivelmente:

- ou só conhecemos de Deus aquilo que nos revelam a vida e morte de Jesus,

- ou só conhecemos de Jesus aquilo que o Antigo Testamento já tinha anunciado.

Neste último caso não teria havido, de facto, qualquer fractura na História: o Deus
tradicional das dominações teria enviado à Terra um substituto seu para restaurar a
antiga ordem das hierarquias e das obediências, depois de todas as peripécias
impostas pela desordem.

Teologia da dominação ou teologia da libertação? É este o dilema. É verdade que


Paulo não pretende divulgar o Evangelho de Jesus, mas sim o "Evangelho de Deus" e
do seu Messias Davídico, que chega a traduzir em grego: Christos1. Vota ao anátema
quem quer que anuncie outro Evangelho além do seu: "Que seja maldito quem vos
anunciar uma Boa Nova diferente daquela que eu próprio vos anunciei", escreve nos
Gálatas (1, 8). Estabelece ainda para si próprio a regra (estranha para um
missionário) de não pregar junto com os outros apóstolos: "Entretanto tive a
preocupação de só anunciar a Boa Nova onde Cristo não era ainda conhecido, para não
estar a construir sobre fundamentos alheios" (Rm. 15, 20).

1 Lembremos que Crísto não é um nome próprio, mas o de uma fimção. É a tradução
grega do termo tradicional "messias", do messias de Israel, o único que interessa a
Paulo, urna vez que este messias é a conclusão da história judaica.

142

Esta transmutação da pobre e humilde vida de Jesus na gloriosa função de Cristo, no


Messias, constituindo a conclusão triunfal da história judaica, baseia-se na
"visão" que Paulo teve a caminho de Damasco. Paulo não foi um simples companheiro
desta vida tão pouco gloriosa: recebeu urna mensagem e uma missão através da
comunicação directa de uma revelação pessoal. Desde então passou a considerar o seu
apostolado como superior ao dos que foram testemunhas oculares.

Mesmo que se reconheça como último daqueles a quem Jesus se manifestou, como o
"mais pequeno" e como um "aborto" (1 Co. 15,
8 e 9) entre os apóstolos, não deixa de acrescentar: "Trabalhei mais do que todos
os apóstolos, ainda que não fosse eu propriamente a fazê-lo, mas sim toda a força
que Deus me concedia" (1 Co. 15, 10). Porque conheceu o Cristo não na sua vida
histórica mas depois da glória da sua ressurreição para receber a investídura.
Conheceu-o então melhor do que ninguém: "pelo espírito", e não "pela came", e por
comunicação directa-

Evoca o dia em que "quando assim o quis, Deus deu-me a conhecer o Seu filho" (GI.
1, 15-17). É a aparição do Ressuscitado e não o facto de o ter conhecido
historicamente que fundamenta o seu apostolado: "Assim, de agora em diante, já não
quero julgar ninguém por critérios humanos. Ainda que noutro tempo tenha pensado
assim sobre Cristo, agora já não o faço" (2 Co. 5, 16).

3.' Porque é que nunca fala da Virgem Maria e se contenta em dizer que o Cristo
nasceu de uma "mulher" (GI. 4, 4), como se a virgindade de Maria (e, portanto, o
carácter sobrenatural deste nascimento) perturbasse a inserção histórica de Jesus
na linhagem de David? Esta "mulher" teria assim tão pouca importância para os
católicos para que se perdoe a Paulo ter só visto nela a portadora do herdeiro de
David e não a portadora do Espírito de Deus?

4.' Este facto não alterará perigosamente a concepção nova do Reino anunciada por
Jesus, aquele que está dentro de nós e que já o está porque as palavras, as acções,
a vida de Jesus inauguraram a sua presença na vida dos homens?

143

Tratar-se-ia, desde então, de "restaurar o Reino de David" durante uma "segunda,


vinda"? Terá a primeira "falhado" de tal forma que seja melhor esquecer as suas
peripécias e o seu fim trágico, e que seja necessário prometer uma segunda vinda
que, desta vez, chegue a bom termo e que corresponda às esperanças messiânicas, que
seja apoiada pelos "anjos do poder" para "castigar aqueles que não aceitam a Deus"
(2 Ts. 1, 8)?

Será este o Reino anunciado por Jesus, em que se entra pela renúncia e não pela
conquista?

No confronto com os outros apóstolos, em Jerusalém, que terininou com um


compromisso, Paulo evoca apenas uma recomendação que lhe foi dirigida: "Só nos
recomendaram que nos lembrássemos dos pobres, coisa que eu sempre tenho procurado
fazer" (GI. 2, 10).

Com a leitura das Cartas, este compromisso parece ter deixado de ser cumprido.

0 Jesus das testemunhas anuncia o Evangelho aos pobres (Mt. 11, 5; Lc. 4, 18).
Paulo, cuja teologia sistemática (a Carta aos Romanos) não contém sequer a palavra
"pobre", pede apenas aos ricos donativos de auxílio (2 Con 9, 1), acrescentando:
"não vos digo que vão fazer bem a outros, ficando vocês sem o necessário" (8, 13)
mas apenas que dêem "aquilo que neste momento vos sobra" (8, 14) para assim
garantirem "um grande tesouro que lhes servirá no futuro" (1 Tin. 6, 18).

Esta alteração em relação às exigências de Jesus sobre os ricos não resultará de


uma verdadeira inversão, efectuada por Paulo, da concepção do "Reino" anunciada por
Jesus e que assinalava uma rotura radical com todas as antigas concepções de um
reino?

Segundo Paulo, Jesus é o Messias de Israel; tal como David, cumpriu as "promessas
feitas aos antepassados" (Rm. 15, 8). Como sublinha uma nota da TOBI, "Trata-se de
demonstrar que a fé cristã está realmente incluída na fé de Israel."
4P.4333.

144

Chegamos assim ao cerne da questão: o Evangelho que Paulo anuncia é o do Deus de


Israel, acrescentando-lhe, no entanto, uma nova conclusão: o Messias já não é uma
promessa. Filho de David, veio e regressará com todos os atributos de poder do Deus
dos exércitos (e de todos os antigos deuses), "pondo todos os reinos a seus pés", e
isto não metaforicamente mas por aplicação, como no Antigo Testamento, da lei de
Talião: "Do mesmo modo, aqueles que vos causam esses sofrimentos receberão de Deus
o justo castigo" (2 Ts. 1, 6).

A cólera contra o Messias dos judeus ortodoxos que por vezes o desprezam e
perseguem é perfeitamente justificável e compreensível: utilizando o conceito,
inventado pelo profeta Isaías, de um "resto", isto é, de uma parte dos judeus que
continuaram fiéis a Jeová apesar da traição dos demais, Paulo reserva para os seus
discípulos a marca da "eleição": aqueles que seguem o "seu Evangelho", mesmo se não
forem de origem judaica, se forem gregos, por exemplo, que aceitem a versão da
história do "povo eleito" e que vejam em Cristo o "Messias", o cumprimento da Lei e
das promessas feitas ao "povo eleito". Este "resto", segundo Paulo digno da
eleição, são os seus discípulos.

Assim, durante séculos, Paulo construiu um cristianismo judaizado. Ao contrário da


mensagem universalista de Jesus, reintroduz, desta vez em beneficio do
cristianismo, a noção de "povo eleito", própria de todas as religiões tribais.

Paulo procede à "rejudaização" de Israel, numa nova variante. Cria um judaísmo


reformado no qual o Messias é identificado com Jesus, mas com um Jesus
"desistorizado", transformado num Cristo, num Messias triunfante.

Toda a sua doutrina está enraizada na tradição judaica:

1.' Há um "povo eleito", mas quando este povo desobedece ao Deus que o escolheu, é
um "resto" que Lhe continuou fiel que fica com o privilégio desta eleição. Da noção
de "eleição" arbitrária de um povo por Deus vem a ideia paulina da "predestinação"
dos eleitos e dos excluídos.

145

2.' 0 <"~", que ficou com o privilégio da eleição, é constituído por aqueles que
aceitaram que Jesus é o Messias, sejam ou não judeus. Não é, pois, a obediência à
lei judaica que "salva", mas sim a "fé" no carúcter messiânico de Jesus, a partir
daqui chamado "Jesus Cristow

Isto permite incluir não-judeus no "resto" fiel a Deus. Vem daqui a doutrina da
"justificação pela fé". Para a fundamentar, Paulo invoca o exemplo de Abrãao:
anterior a Moisés, este aramaico não é judeu e não pode por isto referir-se à Lei.
É apenas a sua fé em Deus que lhe concede a salvação.

Esta concepção não era totalmente estranha à comunidade judaica. No último Salmo do
Manual de Disciplina de Qumran (IQS 11, 13) já surgia o tema da justificação feita
exclusivamente pela fé, que, se não manifestava a concepção paulina, constituía
pelo menos uma sua prefiguração, como nota Jeremias1.

Pode-se perguntar o que é que esta "graça" deixa ao homem no que toca à iniciativa
e à responsabilidade, na medida em que se lhe atribui a mesma exterioridade que à
Lei judaica. Paulo aponta, efectivamente (Ef. 2, 8-10): "Foi por amor que vocês
foram salvos, mediante a fé. Não foram vocês que conquistaram a salvação. Ela é um
dom de Deus." É a isto que responde a Carta de Tiago: sem obras a fé está morta
(Tg. 2, 14-26).

Paulo considera que só a sua versão está correcta, e que só ele fala em nome de
Deus: "É isto que se há-de ver, de acordo com a Boa Nova que eu anuncio, no dia em
que Deus julgar... os segredos de cada um" (Rm. 2, 16).

Transtomou-me profundamente tudo o que assim me pareceu como uma inversão feita por
Paulo do essencial da mensagem de Jesus: do anúncio do Reino, em rotura radical com
as suas ligações tradicionais com o poder e com a riqueza,

Devo prestar o meu reconhecimento ao padre Tassin, que me alertou para a minha
tendência para atribuir a Paulo teses que vigoravam no seu tempo, em muitas
comunidades judaico-cristãs e mesmo helenísticas.

Muito devo também, e sobre este mesmo assunto, à sabedora exegese de Joseph Rius
Camps, professor na Faculdade de Teologia de Barcelona.

I Le Message Central du Nouveau Testament, tditions du Cerf, p. 72.

146

Os dois volumes de comentários linguísticos e exegéticos que consagrou aos Actos do


Apóstolos' ajudaram-me a compreender como não só Paulo mas também as testemunhas
directas dos ensinamentos de Jesus, todos de formação judaica, "resistiram a
aceitar a derrota do MessiaS7" que aguardavam para restaurar o Reino de Israel, e o
quanto se prolongou a sua conversão (até mesmo a de Pedro) à verdadeira mensagem de
Jesus, sobre o "Reino universal de DeusI", sem privilégios para qualquer povo. "A
Igreja de Jerusalém não estava pronta para uma abertura tão ampla"", não
conseguindo "assegurar os privilégios de Israel10", nem sequer os dos "justos"
sobre os dos "pecadores" (U. 5, 32).

Segundo Rius Camps, foi só com a conversão do centurião Comélio que Pedro começou a
tomar consciência desta unidade humana: ainda assim, afirmou que Deus fez de Jesus
"o juiz dos vivos e dos mortos" (Ac. 10, 42), fôrmula restritiva retomada por Paulo
(2 Tm. 4, 1). Esta fórmula não aparece em nenhuma afirmação do próprio Jesus, que
não impõe limites à sua pregação, cuja expressão em círculos concêntricos chega a
traçar, a todos aqueles que até então ignoravam este universalismo, começando pelos
próprios judeus.

Jesus, pelo contrário, diz que é necessário pregar por todas as nações o perdão e
arrependimento dos pecados, a começar por Jerusalém (Lc. 24, 47). (Como bom
discípulo de Paulo, Lucas naturalmente relaciona esta obrigação com as antigas
Escrituras.)

Ao abolir todas as distinções, não só entre circuncidados e não-circuncidados, mas


também entre tudo o que, dos homens aos alimentos, separa o puro do impuro, o
sagrado" (sabbat, templo, clérigo, etc.)

61. De Jerusalem a Antioquia. Genesis de la Iglesia Cristiana, Almendro, Córdoba,


1989, e 11. El Camino de Pablo a la Mission a los Paganos, Ediciones Madrid, 1984.

7P.234. ' P. 237.


9R 237.

P. 249.

Jesus rejeita a distinção entre o puro e o impuro imposta pelo Levítico. No


Levítico, o leproso incurável é considerado "impuro": Lv. 14, 14, 15 e 45. Jesus
acolhe-o e cura-o para que se livre da maldição do padre judeu. 0 Levítico separa
constantemente o "puro" do "impuro" (Lv. 10; li, 47).

147

e o profano, Deus, conta Pedro (Ac. 10, 28) "mostrou-me que não devo considerar
ninguém impuro ou indigno".

Não se trata, portanto, de deixar simplesmente de considerar Israel como povo


"eleito" (enquanto Paulo, até à sua morte, se lhe dirige prioritariamente), e de só
se voltar para os gregos e outros povos depois de se ver rejeitado por aqueles que
acreditava ser o alvoprincipal da mensagem.

Tendo em conta estas valiosas correcções das exegeses e da história, parece-me que
saem assim reforçadas as minhas observações sobre o papel eminente de Paulo na
"rejudaização".

Quis então verificar se as questões que me tinham surgido durante a leitura


"ingénua" já teriam sido colocadas pelos exegetas e se tinham tido alguma resposta.

Primeiro, sobre a radical novidade da mensagem de Jesus, sobre o corte excepcional


que representa na história dos homens e dos deuses. Tal como nota o teólogo inglês
DoM': "As logia de Jesus não têm paralelo nos ensinamentos judaicos nem nas orações
contemporâneas. " "0 ministério de Jesus não deve ser visto como uma tentativa de
reformar o judaísmo, traz algo de inteiramente novo inconciliável com o
3

sistema tradicional' ."

0 pastor Stauffer, exegeta da Faculdade de Teologia de Zurique, é ainda mais


radical: "Jesus anuncia uma nova mensagem de Deus, uma nova religião, uma nova
moral que já não tem qualquer relação com a Tora 14. "

Segundo Stauffer, a rotura começa quando Jesus curou um homem e lhe ordenou que
pegasse na sua enxerga, no dia do cumprimento do sabbat. Nesta primeira rotura com
a Lei começa o processo de excomunhão pelos grandes padres. A esta rotura
sucederam-se muitas outras".

A vida de Jesus é uma trangressão permanente das leisjudaicas da Tora: Enquanto no


Antigo Testamento Deus vota ao extermínio (Dt. 2,
22; Is. 13, 9) ou aos tormentos do sheol (Jb. 24, 19; Sb. 14, 3 1) aqueles

12 Les Paraboles du Royaume de Dieu, p. 42.


13 Ibid. p. 99.

14 Stauffer, Jesus Gestalt und Geschichte. Tradução inglesa, Jesus and His History,
(Londres, 1960).

11 Ida Magli, Gesu di Nazaret, Rizzoli, Milão, 1987.

148

que não aceitam a sua Lei, Jesus, pelo contrário, diz: "Não vim chamar os justos,
mas os pecadores" (Mc 2, 27).

Não se encontram, nos Evangelhos, referências aos massacres das populações pagãs ou
idólatras exigidos por um Deus cruel (Dt. 20, 16), excepto com Paulo que evoca o
extermínio dos cananeus, como precedente anunciador de outras vitórias (Ac. 13, 16-
19). Também Paulo persegue os pecadores: "Os que se entregam à devassidão e à
imoralidade ou se deixam dominar pela ganância, que é uma espécie de idolatria, não
têm parte na herança do Reino de Cristo e de Deus" (Ef. 5, 5). Ou seja, em profunda
contradição com Jesus: "Cobradores de impostos e prostitutas hão-de entrar primeiro
no Reino de Deus" (Mt. 21, 3 1). Mesmo quando já estava na Cruz, responde Jesus ao
malfeitor também crucificado que lhe implorara que se lembrasse de si: "Podes ter a
certeza que hoje mesmo estarás comigo no Paraíso" (U. 23, 42).

Jesus diz: "Eu não julgo ninguém" (Jo. 8, 15). "Não faço nada por minha vontade"
(8, 28).

Paulo, em contraste, no espírito do Antigo Testamento, diz: "Cristo Jesus, que há-
de vir julgar os vivos e os mortos" (2 Tm. 4, 1).

Jesus enfrenta a proibição de se encontrar com os samaritanos, que os judeus


consideram heréticos e piores que os pagãos (Mt. 10, 5), o que lhe custa a mais
grave das injúrias vindas de judeus ortodoxos: "Tu és um samaritano e estás louco!"
(Jo. 8, 48).

Os fariseus acusam-no do crime mais grave: violar o sabbat (Mt.


12, 2; Jo. 5, 16). Invocando o Deuterónimo (13, 1-6), os fariseus concluem: "Quem
fez isto não é um homem de Deus, pois não respeita a lei do sabbat" (Jo. 9, 16).

Perseguem-no: "Tu nasceste cheio de pecados e queres ensinar-nos? E puseram-no


fora." (Jo. 9, 34).

Por último, a mais alta autoridade religiosa, o tribunal judaico e o seu chefe dos
sacerdotes decidem que "Jesus devia ser condenado à morte" (Mc. 14, 64). Acusam-no
de blasfémia, fingindo acreditar que Jesus era um impostor que se dizia o Messias,
no sentido que eles próprios davam ao termo: o rei que restauraria o poder de
Israel.

149

Denunciaram-no assim a Pilatos, e, para influenciar a decisão do governador, fazem-


lhe chantagem: "Se dás a liberdade a esse homem, não és amigo do Imperador. Todo
aquele que se faz rei é inimigo do Imperador" (Jo. 19, 12. Pilatos hesita: "Então
hei-de crucificar o vosso rei?" Os grandes sacerdotes, colaboradores dos ocupantes
e fingindo esquecer a exclusiva soberania do seu Deus, respondem-lhe: "Nós não
temos outro rei a não ser o Imperador!" (Jo. 19, 15).

Jesus sublinhou sempre que se deve mais obediência a Deus do que à Tora. Quando o
acusam de não respeitar a Lei, por exemplo de não fazer as abluções rituais,
responde: "Vocês desprezam os mandamentos de Deus para obedecerem aos mandamentos
dos homens" (Mc. 7, 8).

Não distinguiríamos melhor a religiosidade própria de uma cultura e de uma


história, da fé, lei eterna da vida.

Jesus anuncia a chegada do Reino de Deus: não se trata da esperança messiânica de


uma restauração de Israel; come com os impuros, para grande escândalo dos
integrístas (Mc. 2, 16); não jejua como os fariseus (Mc. 2, 18). Em Nazaré, é
expulso da sinagoga e perseguido durante a sua retirada (U. 4, 28). Atiram-lhe
pedras, por ter blasfemado, quando se afirmou maior que Abrãao (Jo. 8, 59).

Por fim, o tribunal judaico e Caifás, chefe dos sacerdotes, condenam-no à morte
porque põe em perigo a vida de todo o povo judeu (Jo. 11, 50; Mt. 26, 4).

Toda a vida de Jesus, as suas palavras e as suas acções, de facto, põem em causa a
fé e a cultura judaica: "Eu vim a este mundo para julgar" (Jo. 9, 38).
Julgar a Lei escrita, da Tora e dos seus tabus, que constitui a jurisdição de uma
época e de um povo, em nome da vontade eterna do Deus revelada em todos as suas
palavras e todas as suas acções: a contestação do ritual, mesmo do mais decisivo,
do sabbat e da hierarquia sacerdotal. 0 seu comportamento em relação às mulheres:
fala com uma mulher de moral duvidosa, e, cúmulo dos cúmulos, a uma samaritana (Jo.
4, 9). Tem mulheres nos seus aposentos e, entre elas, a "pecadora" Maria Madalena
(U. 7, 37). Manda em paz, sem a apedrejar (contra a lei judaica) uma mulher
adúltera (Jo. 8, 1 -11). Questiona o tempo
150

sagrado, o espaço sagrado: o Templo (Mc. 22, 5) e, acima de tudo, quesfiona o dogma
central: a restauração de Israel como "povo eleito", por um Messias encarregado de
o salvar, à semelhança de David. Os seus discípulos, mesmo os mais próximos,
acreditaram nisto até à sua morte.

Chama "pecadores" aos fariseus doutores da Lei, até então "cegos" (Jo. 10, 40), e a
partir daí ainda mais culpados porque disseram "Nós vemos" (Jo. 9, 41).

Jesus prova a má fé dos que o acusaram de se ter tomado por Deus quando disse: "Eu.
e o Pai somos um só" (Jo. 10, 30) e que por isto o apedrejaram. Recorre às próprias
Escrituras para esclarecer o sentido da sua proposta: "Não diz Deus na vossa Lei:
Eu declaro que vocês são deuses? Deus chama deuses àqueles que receberam um mandato
divino" (Jo. 10, 34-35).

É de notar a expressão a vossa Lei. Tal como noutras situações, Jesus não diz a
"nossa" lei: "Os vossos antepassados comeram o pão do deserto, e morrera~ (Jo. 6,
49); "Na vossa Lei está escrito" (Jo. 8, 17); "0 que está escrito na sua lei" (Jo.
15, 25), no que difere de Paulo, que diz: "a lei", como se não houvesse outra (por
exemplo, Rm. 3, 2 1), ou os "Meus antepassados" (2 Tm. 1, 3), revelando assim a
vontade de se incluir nesta linhagem.

Em relação ao Antigo Testamento, Jesus alterou profundamente a visão de Deus, do


Homem e do mundo.

- 0 Deus da Tora e dos livros "históricos", do Antigo Testamento, não é o de Jesus;


o Deus deste não é o Deus exterior, cruel para os que não acreditam n'Ele,
nacionalista e tribal em relação aos seus "eleitos". É o Pai que comunica ao homem
a sua própria vida.

- 0 homem deixa de ser um escravo, é "Filho" e "amigo". Em relação a Deus, só Paulo


utiliza o termo servus de Deus ou do Cristo, palavra latina que significa escravo,
servo, ou, eufemízada, "servidor" (Rm. 1, l; GI. 1, 10; Tt. 1, 1).

É uma linguagem estranha a Jesus: "Mas vocês não queiram ser tratados por Mestre,
porque só um é Mestre e vocês são todos innãos" (Mt. 23, 8); "Agora já não vos
chamo servos... Chamo-vos amigos ... " (Jn. 15, 15); "Digo-vos, meus amigos ... "
(U. 12, 4); "Vão ter com os meus irmãos ... " (Mt. 28, 10).

151

É evidente a rotura com as Beatitudes, que, ao contrário do Decálogo, não impõem


nenhuma "Lei". "Alguém vos disse... e eu digo-vos." Quem há-de ser este "alguem",
senao o próprio Moisés? Jesus não dita mandamentos, apela antes ao amor. 0 amor
pelo outro aparece no Levítico quando se trata de relações internas à comunidade
judaica (Lv. 19, 18), porque é acompanhado pela prescrição de "Talião", feita por
Moisés (Lv. 9, 19).

Mas não aparece no Decálogo e o facto é tão inovador que Jesus, numa derradeira
conversa, diz aos seus discípulos: "Deixo-vos agora um mandamento novo: amem-se uns
aos outros" (Jo. 13, 34).

Para Jesus, portanto, não se trata de restaurar o Reino de Israel, de ser um


Messias davidiano, mas de dar rosto à esperança de todos os homens. Só neste
sentido, recusando qualquer exclusivismo de um povo "eleito", se pode falar do seu
papel de "Messias" universal e da sua mensagem central: a instauração do Reino de
Deus no mundo inteiro. É este o sentido do Pentecostes, em que a mensagem é dita em
todas as línguas: "Os crentes judeus ficaram muito admirados por verem que Deus
tinha dado o Espírito Santo também aos que não eram judeus" (Ac. 10, 45).

Isto permite ultrapassar todos os equívocos de Paulo quanto ao papel da Lei que,
até Jesus, teria tido um papel pedagógico, dando depois lugar à justificação pela
fé.

Esta confusão surgiu da continuidade que Paulo procurou estabelecer entre o Antigo
e o Novo Testamento. A expressão que utiliza "Cri sto pôs termo à Lei" (Rm. 10, 4)
é ambígua, porque a palavra grega telos (fim, termo) pode significar que a Lei foi
abolida ou que foi cumprida. Ora, como observou Pannenberg 16 , deve-se ser
claro a este respeito: "Jesus foi rejeitado em nome da Lei como blasfemo por ter
cometido injúrias. Terá sido Jesus um "blasfemo"? ou, pelo contrário, foi a Lei (o
judaísmo enquanto religião) que foi revogada?"

Para Jesus não é do Reino de Israel que se trata, mas do Reino de Deus (U. 9, 11).
Insiste nisto, monstrando ter cumprido as obras do seu Pai, tomando assim visível o
Deus invisível.

" Pannenberg, Essais de Christologie, Éditions du Clef, 1972, pp. 322 e segs.

152

Recusa-se a ser visto como o "rei dos judeus".

Quando Pilatos lhe pergunta: "Tu és o rei dos judeus?", Jesus responde: "És tu que
o dizes." Pilatos diz aos chefes dos sacerdotes e ao povo: "Não acho razão para
condenar este homem" (U. 23, 3-4).

É então evidente que a resposta de Jesus não significa que tenha aceitado o título,
pois caso contrário I:ilatos não o teria absolvido: proclamar-se "rei dos judeus"
seria um acto de rebelião contra o Imperador romano, acto passível de pena de
morte.

Isto é confirmado pela versão de João (18, 33-38). Quando Pilatos pergunta: "Tu és
o rei dos judeus?", responde Jesus: "Perguntas-me isso, porque tu mesmo pensaste,
ou foram os outros que to disseram de mim?" E acrescenta:"O meu Reino não é deste
mundo." Pilatos volta à carga: "Mas então semprè és rei?" E Jesus responde: "És tu
que o dizes: eu sou rei. Nasci e vim ao mundo para dizer o que é a verdade."
Pílatos saiu do Palácio para^falar com os judeus, e disse-lhes: "Não encontro
nenhum motivo para condenar este homem."

A mensagem de Jesus é muito clara: ele é aquele que, pelas suas palavras, pelas
suas acções, pela sua vida e pela sua morte, toma visível a vontade do seu Pai.
Superando todas as leis Particulares e históricas, que são obras dos homens, Jesus
revela a vida divina, eterna, universal, que nada tem a ver com a restauração do
reino de um povo em particular que se aproveite de um dado aspecto parcial de Deus.

Com Jesus morre definitivamente o mito ruortal do "povo eleito", justificação


ideológica de todas as dominaçoes políticas ou religiosas. Tudo isto mostra como a
morte de lesus resulta da sua vida, dos
seus propósitos e das suas acções: para os sacerdotes judeus, a transgressão
permanente da Tora merece muito mais que a morte. Como escreve o teólogo espanhol
Gonzalez Faus, "0 Deus que Jesus revela não é o do Antigo Testamento11."

Os romanos consideram Jesus um elemento perturbador da comunidade judaica, e, por


outro lado, a colaboração dos chefes dos sacerdotes era-lhes útil para evitar
incidentes. Jesus acaba por desafiar aber-

Gonzales Faus, Accesso a Jesus, Sigueme, 1991, p. 161.

153

tamente a ideologia fundamental do Império: o Imperador é Deus e nada foi mais


subversivo que a afirmação: "Dêem ao Imperador o que é do Imperador e a Deus o que
é de Deus" (Mt. 22, 2 1, etc.). Porque o Imperador é Deus e opor-lhe Deus é pôr em
causa o fundamento teológico do seu poder.

0 comportamento divino de Jesus leva-o a uma morte certa, porque luta contra o
poder religioso e político dos judeus e dos romanos, contra a "Lei", para uns,
contra a "pax romana", para outros. Os discípulos mais chegados não se enganam: não
esperam pela ressurreição para ver nele o Alho do homem" e o "filho de Deus", o
supremo libertador através do amor, o "caminho, a verdade e a vida" (Jo. 14, 6),
"fonte que dá a vida eterna" (Jo. 4, 14): "Só as tuas palavras dão vida eterna"
(Jo. 6, 68).

154

HAVERÁ ALGUMA CONTINUIDADE ENTRE 0 ANTIGO E 0 NOVO TESTAMENTO?

SERÁ JESUS HERDEIRO DE DAVID?

A questão da continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento é fundamental. Apesar


de Paulo, contra a ortodoxia judaica, ter tido o cuidado de fazer de Jesus o
capítulo final do Antigo Testamento e o cumprimento das promessas dirigidas a
Israel, é fácil demonstrar que os evangelistas fizeram uma leitura selectiva do
Antigo Testamento.

Dele retiveram certos temas principais, mas transformaram-nos profundamente. A


Criação é o exemplo mais típico. Os evangelistas nunca empregam o termo "Deus" no
sentido de "Criador". Jesus chama-Lhe sempre "Pai", aquele que lhe dá a vida, e
nunca o "criador" tal como é apresentado no Antigo Testamento, como nas cosmogonias
de todas as religiões primitivas: um Deus todo-poderoso exterior ao homem e seu
construtor. A imagem preferida do Antigo Testamento para 0 evocar é a do oleiro e
do barro que este molda. Por exemplo, no Ben Sira (33, 13): "Como o barro está nas
mãos do oleiro, que o molda a seu bel-prazer, assim o homem está nas mãos do
Criador." Passa-se o mesmo em Jeremias (18, 6) e com o profeta Isaías (29, 16; 64,
8 e 65,
9) que sublinha a exterioridade deste tolo feito de barro: "Dirá o barro àquele que
o moldou: que fazes?'"

Nos Evangelhos nunca aparecem comparações como esta, excepto em Paulo (Rm. 9, 20),
que retoma as palavras de Isaías.

' Quando Marcos fala da Criação sublinha que esta não terminou. Deus, "até
agora ... " (Me. 13, 19)

155

Nos Evangelhos, o Pai, aquele que dá a vida, é o Pai de todos, sem distinguir entre
eleitos e excluídos ou puros e impuros.

Segundo o exemplo de Jesus, Pedro, ao entrar em casa do centurião Comélio, declara:


"Um judeu está proibido pela sua religião de se juntar a um estrangeiro ou de
entrar em sua casa. Mas Deus mostrou-me que não devo considerar ninguém impuro ou
indigno" (Ac. 10, 28) E acrescenta: "Deus quer bem a todos os que o respeitam e
cumprem a sua vontade, seja de que raça forem" (Ac. 10, 34-35).

Extinguem-se assim os privilégios do "povo eleito", ao qual Deus daria a vitória


contra qualquer outro que não fosse Seu seguidor, dando-lhe ordem para o
exterminar.

Acabam assim todas as proibições impertinentes da Lei que Jesus constantemente


transgrediu: a proibição do sabbat (cuja violação, só por si, é passível de pena de
morte), o respeito pelo Templo que Jesus afirma poder destruir e reconstruir em
três dias (Mc. 14, 58; Mt. 26,
61; Jo. 20, 19). Porque o único santuário de Deus é o coração dos homens e não esta
ou aquela montanha tida como santa, seja em Jerusalém ou em Garizim. Quando a
samaritana diz a Jesus "Os nossos antepassados samaritanos adoraram a Deus neste
monte. Vocês, os judeus, dizem que só em Jerusalém é que se deve adorar a Deus",
Jesus responde: "Acredita no que te digo, mulher! Chegou o tempo em que todos podem
adorar o Pai sem ser neste monte ou em Jerusalém" (Jo. 4, 20-21).

Todos os antigos cultos eram idólatras. Jesus representa o verdadeiro "crepúsculo


dos Deuses". Não é com os filósofos gregos nem com o Antigo Testamento que se pode
descobrir o verdadeiro Pai: "Aquele que me viu, viu também o Pai" (Jo. 14, 9), "Eu
e o Pai somos um só" (Jo. 10, 30), "Ninguém pode chegar ao Pai sem ser por mim"
(Jo. 14, 6), "Os judeus hão-de expulsar-vos das suas casas de oração... Farão tudo
isso porque não conhecem nem o Pai nem a mim" (Jo. 16, 2-3). Aplica-se o mesmo aos
judeus, aos gregos

e aos romanos.

A morte de Jesus é uma consequência da sua própria vida (para os sacerdotes judeus
porque violou a Lei, para os romanos porque ela cau-
156

sou um tumulto e atentou contra a pax romana), e não do decreto anterior e


exterior, programado à partida por Deus. Para que terá então servido esta vida e os
exemplos que Jesus nos deixou?

Paulo revela-nos uma estranha encenação de onde se exclui a vida de Jesus: a sua
morte teria um sentido como resgate do pecado original e dos nossos pecados e como
redenção.

É um retomo ao Deus omnipotente que cumpre o seu desígnio enviando a Israel um


Messias poderoso.

Jesus nunca quis este poder. Tal como não se tomou por filho de David. Jesus
rejeitou de início tal interpretação: "Como é que os doutores da Lei ensinam que o
Messias é descendente de David?" (Mc. 12,
35-37; Mt. 22, 42-45; Luc. 20, 41-44).

Em Será Que Precisamos de DeUS2 , recordando a biografia de David fixada em


Samuel 1 e 11, mostrámos o paradoxo de querer ver em Jesus os "traços fundamentais"
desse condottiere sanguinário.

Para tentar justificar a tese de Paulo, interessado em integrar Jesus na história


judaica dizendo que o seu Cristo "pelo nascimento, era descendente de David" (Rm.
1, 2), Mateus (1, 1-16) e Lucas (3, 23-38) são obrigados a estranhas manipulações:
Lucas enumera 42 gerações de David a Jesus e Mateus 26, com nomes tão arbitrários
que só dois deles (Salatiel e Eliacim) figuram nas duas listas, tudo isto para
chegar a José, pai adoptivo de Jesus, e não "segundo a carne", segundo a "raça",
como dirá Paulo reivindicando a sua filiação judaica (Rm. 9, 3).

Jesus, inversamente, nunca se reclama deste estranho armorial que o inscreveria na


linhagem real de David.

Enquanto Paulo atribui a si mesmo a missão essencial de fazer de Jesus o "Messias


de Israel" (o CriSto3) Jesus rejeita sempre este título ligado a expectativas
políticas dos judeus. Paulo partilha dos sentimentos dos discípulos, que se mostram
constantemente decepciona-

. 41-43 (da edição francesa).

E espantoso, no entanto, que o Catecismo de 1992, neste e em todos os outros


aspectos, siga Paulo em vez de Jesus: aqui Jesus é chamado "Filho de David",
"Messias, de Israel" cumprindo "no seu poder", "a esperança messiânica de Israel"
(pp. 97-98).

157

dos: "Senhor, será agora que vais restaurar o Reino para o povo de Israel?" (Ac.
1,6; Mc. 9,12; Lc. 19,12).

Será Jesus o "novo Moisés" e o "novo David"? ou, pelo contrário, terá a Lei perdido
todo o seu valor? Terá Jesus abolido a Lei ou tê-la-à cumprido?

Noutros termos, será o amor o contrário de Talião ou o seu "cumprimento"?

As esquivas de Paulo a esta questão crucial são angustiantes: "Quer isto dizer que,
por causa da fé, nós negamos todo o valor à lei? Pelo contrário, reconhecemos à lei
o seu verdadeiro valor" (Rm. 3, 3 1).

Da resposta a esta questão depende o sentido da vida e morte de Jesus. Terá sido
ela programada por Deus, com todo o vocabulário e espírito do Antigo Testamento -
servo sofredor, resgate, redenção, expiação, de um Messias, (Cristo) que foi
"entregue à morte por causa dos nossos pecados e ressuscitou para nos pôr de bem
com Deus" (Rm. 4, 25), do Cristo que resgata o pecado de Adão - ou, pelo contrário,
ter-se-á revelado, pelas acções, pelas palavras e pela vida de Jesus, uma imagem
radicalmente nova do homem e da comunidade? "A tradução da teologia judaica para
grego" feita por Paulo não resolve a questão. Diz Schweitzer, e todos os textos o
confirmam, que "para, Paulo, o cristianismo não é uma nova religião, mas
simplesmente a verdadeira religião judaica, simultaneamente em harmonia com a sua
época e com as Escrituras`".

As narrativas da ressurreição de Jesus e dos mortos ilustram estas relações entre o


Antigo e o Novo Testamento.

Os evangelistas sobrepõem as tradições do Antigo Testamento, chegando a descobrir


imagens da ressurreição na linguagem cultural judaica, que até então era a sua, e a
esperança radicalmente nova do retomo a um vida autêntica, eterna, revelada por
Jesus.

Evocam a ressurreição de Jesus à luz do modelo hebraico: o mesmo da famosa visão de


Ezequiel (37, 12): "Vou abrir as suas sepulturas ... "; " ... os ossos cobriam-se
de pele" (37, 8); o mesmo do Apocalipse judaico de Oséas (6, 2) que estabeleceu o
Período de três dias; o mesmo
' Albert Schweitzer, Paulinisme et Refigion Comparée, p. 227.

158

de Isaías (26, 19), onde os cadáveres ganham vida. 0 mesmo de Daniel, no judaísmo
tardio. "Muitos dos que já morreram, viverão novamente. Alguns disflutarão de vida
eterna, enquanto outros receberão a vergonha, a eterna desgraça" (Dn. 12, 2).
Surgem daqui as imagens ingénuas do túmulo vazio e das ligaduras, ou de Jesus
ressuscitado retomando o seu antigo corpo, com as suas feridas e as suas
necessidades alimentares (peixe grelhado).

E, ao mesmo tempo, a visão sublime da ressurreição - a da nova vida agora eterna. A


vida que não precisa de passar pelo túmulo. Porque é a própria Vida de Jesus que é
a ressurreição. "Eu sou aquele que dá a ressurreição e a vida. 0 que acredita em
mim, mesmo que morra, há-de viver" (Jo. 11,25).

Viverá uma vida plena: aquela que a vida de Jesus faz nascer todos os dias e em
todos os tempos e que a morte não atinge.

Dir-se-á que o mérito de Paulo foi ter-nos libertado da Lei, em especial da Lei na
forma em que a tinham fixado os saduceus, fariseus e os escribas da altura. Mas
não. Porque a sua concepção da "graça", que se substitui à Lei, implica a mesma
exterioridade de Deus: "Deus está sempre a ajudar, fazendo com que desejem e
realizem o que é da Sua vontade" (Fl. 2, 13).

"Foi por amor que vocês foram salvos Não foram voces que conquistaram a
salvação. Ela é um dom de Deus" (Ef 2, 8).

Em Será Que Precisamos de Deus? mostrámos como esta "gratuitidade" de Deus não
excluía, de maneira nenhuma, o esforço humano, sem cair, no entanto, nos excessos
de Pélage sobre a "suficiência" do homem que exclui toda a transcendência divina'.

Contra o judaísmo reformado que caracteriza a obra de Paulo, assiste-se, com Jesus,
a uma mutação radical da concepção de Deus, do homem e da sua comunidade, do mundo:
"Ninguém cose um remendo de um tecido novo em roupa velha... Nem tão-pouco se põe o
vinho em vasilhas velhas" (Mc. 2,21-22). É preciso escolher entre o Antigo e o Novo
Testamento. De que Deus é filho Jesus?

op. cit.

159

Não será, certamente, de Jeová, do deus dos exércitos e dos massacres, da divisão
do mundo entre puro e impuro, entre "eleitos" e "excluídos", do Deus ciumento e
vingativo de -Paulo: "Aqueles que vos causam esses soffimentos receberão de Deus o
justo castigo" (2 Te. 1, 6).

Paulo rejudaizou a comunidade original de Jesus, que dizia "É preciso que a Boa
Nova seja pregada a todas as nações" (Mc. 13,10). Estamos longe da afirmação de
Paulo: "primeiro os judeus, só depois

os gregos".

0 aspecto mais perigoso no restablecimento da continuidade entre Antigo e Novo


Testamento - depois da mudança radical anunciada por Jesus - é ter servido de
fundamento a todas as teologias da dominação.

A Política Retirada da Sagrada Escritura, de Bousset, baseia-se no mito do "povo


eleito": "0 verdadeiro Deus, escreve, é o Deus de Israel... aquele que reina nos
céus e de que dependem todos os impenos."

É este, de facto, o tema constante do Antigo Testamento: a Tora (os cinco primeiros
livros da Bíblia, a. que os cristãos chamam Pentateuco) e os livros de Josué, dos
Juizes, de Samuel e dos Reis contam-nos a história dos genocídios cometidos pelas
tribos de Israel.

No Deuterónimo, atribuído a Moisés, é descrita a invasão de Canaã: "Mas o Senhor


destruiu os zarnezuneus e os descendentes de Amon desalojaram-nos e tomaram posse
do território em lugar deles. Foi o mesmo que aconteceu coiri os descendentes de
Esaú... 0 senhor destruiu os horritas e os descendentes de Esaú vieram desalejá-los
e instalaram-se no seu lugar e é lá que agora vivem. 0 mesmo aconteceu aos heveus
que viviam nas aldeias próximas de Gaza6" (Dt. 2, 21-23).

Ao acto de cometer um genocídio chama-se, na Tora, "condenar à destruição": "E o


Senhor nosso Deus, entregou também Og, com todo

6Paulo recorda com orgulho esta política do genocídio: em Antioquia de Pisídia,


evocando a gloriosa história do seu povo, lembra, na linguagem de Moisés: "Homens
de Israel e de outras nações que acreditam em Deus! Escutem o que tenho para vos
dizer: o Deus de Israel escolheu os nossos antepassados... Destruiu sete nações no
país de Canaã e deu essas terras como herança ao seu povo" (Ac. 13,16-19). (A
recordação destes massacres é caso único no Novo Testamento.)

160

o seu exército [... ] Condenámos tudo à destruição [ ... ] homens, mulheres e


crianças" ffit. 3, 3-6)

Moisés, portanto, dá graças a este Deus mais forte que todos os outros: "Senhor meu
Deus, começaste a mostrar ao teu servo a tua grandeza e o teu poder. Não existe
outro Deus, no céu ou na terra, que realize os prodígios e maravilhas que tu fazes"
(Dt. 3, 24).

E acrescenta:"ó povo de Israel, presta atenção às leis e preceitos que eu te


ensino... Com os vosso próprios olhos viram aquilo que o Senhor, vosso Deus, fez em
Baal-Péor. 0 Senhor vosso Deus fez desaparecer todos os que seguiram o deus de
Baal-Péor" (Dt. 4,1 e 3).

Depois de proclamar, no Decálogo, "Não mates ninguém" (Dt. 5,


14), Moisés define assim o "papel de Israel perante as nações": "Escuta, Israel!
Vais agora atravessar o Jordão, para ires tomar posse do território de povos
maiores e mais fortes do que tu [ ... ] É o Senhor que vai à tua frente, como um
fogo devorador que os destrói e os deita por terra diante de ti. Irás tomar posse
do seu território e depressa os farás desaparecer" (Dt. 9,1-4).

Josué, o sucessor de Moisés, prossegue com o mesmo zelo religioso esta política de
genocídio. 0 livro de Josué é, por excelência, o livro dos massacres que começam em
Jericó, na travessia do Jordão: "Destruíram tudo o que havia, matando à espada
homens e mulheres, novos e velhos ... " (Js. 6,2 1), poupando apenas a prostituta
Raab, que tinha guiado os espiões (Js. 6,22). Depois foi a vez de Hai. 0 Senhor diz
a Josué: "Farás a Hai e ao seu rei o mesmo que fizeste a Jericó e ao seu rei" (Js.
8,1-2). Josué cumpre à letra: "Ninguém escapou nem houve sobreviventes" (Js. 8,22).
"Josué incendiou Hai, deixando-a num montão de ruínas, e assim ficou até hoje" (Js.
8,28). Seria fastidioso enumerar todos os massacres, basta ver a sequência no
livro: o "extermínio" do povo de Maceda (Js. 10,20), a cidade de Laquis onde Josué
matou "todos os seus habitantes" (Js. 10,
32), a cidade de Hebron, "conderiando-a à total destruição, como tinham feito a
Eglon" (Js. 10, 37). "Fizeram a Debir o mesmo que tinham feito a Hebron" (Js. 10,
39), depois foi o resto da região, a montanha, o Negueve, "sem deixar
sobreviventes, condenando à destruição todos os seres vivos" (Js. 10, 39 e 40).
"Sem deixar sobreviventes" (Js. 11,8) entre

161

os amoreus, cananeus, perizeus, jebuseus... E continua a litania do genocídio


perpetrado pelas tribos sob comando de Josué: em Asor (11, 12) e em toda a
montanha, tal como tinha o Senhor ordenado a Moisés "que por sua vez as transmitiu
a Josué" (Js. 11, 15).

Faltava exterminar os povos do sul, os filisteus, até Gaza e até ao Líbano. A cada
tribo de Israel coube a sua parte de território, de massacre e de saque, excepto à
tribo de Levi, dedicada ao culto (13, 14). Josué pode então fazer o seu testamento,
recordando os massacres, "Entreguei-os nas vossas mãos" (24, 8), e as leis de
segregação racista sobre a interdição dos matrimónios (23,12), para que o "Senhor
já não expulse esses povos da vossa presença" (23,13).

"0 Senhor, teu Deus, vai-te conduzir à terra para onde te diriges, a fim de tomares
posse dela. Ele vai expulsar muitos povos: os hititas, os guirgaseus, os amoreus,
os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus. São sete povos maiores e mais
fortes do que tu. 0 Senhor, teu Deus, vai colocá-los nas tuas mãos. Vais derrotá-
los e destruí-los completamente. Não faças aliança com eles nem tenhas pena deles.
Não faças casamentos corri eles, nem tu nem os teus filhos nem as tuas filhas"
ffit. 7, 2-4).

Baseando-se nesta legislação racista sobre o matrimónio, retomada pelas leis de


Nuremberga, de Hitler, Julius Streicher, autor destas leis nazis, invocando o
precedente de Moisés, que Esdras (9 e 10) e Neemias (10, 3 1) confirmam, declarou
no processo de Nuremberga para os criminosos de guerra, em 26 de Abril de 1946:
"Escrevi que no futuro seria preciso impedir qualquer mistura de sangue alemão com
sangue judeu. Escrevi artigos neste sentido e afirmei sempre que devíamos ter como
modelo a raça judaica, ou o povo judeu. Afirmei sempre, nos meus artigos, que os
judeus deviam ser considerados como modelo pelas outras raças porque eles
instauraram uma lei racial, a lei de Moisés, que diz: "Se fores a uma terra
estrangeira, não deves arranjar mulheres estrangeiras." E isto, meus senhores, tem
urna importância fundamental para julgar as leis de Nuremberga. Tomaram-se como
modelo estas leis judaicas. Séculos depois, quando o legislador judeu Esra notou
que, apesar das leis, muitos judeus se tinham casado com mulheres não judaicas,
dissolveram-se estas uniões. Foi esta a origem
162

da judiaria, que graças às suas leis raciais, se manteve durante séculos, enquanto
todas as restantes raças e civilizações desapareceram. 7"

Notável no livro de Josué é o facto de contradizer as descobertas da Arqueologia.


Vejamos dois exemplos que ilustram o carácter mitológico desta pretensa história.
Em 1913, quando o biblista alemão Sellin publicou o processo verbal das suas
escavações em Jericó, refere ter encontrado, efectivamente, ruínas de muralhas, que
imediatamente identifica com as muralhas demolidas ao som das trombetas de Josué
(Js. 2,12).

Na verdade, datações posteriores reconheceram, como afirma o padre de Vaux, que "os
israelitas, chegando ao fim do século X111 a. C., não poderiam conquistar Jericó
porque esta já estava abandonada". Passou-se o mesmo quanto à "conquista de Hai"
por Josué (Js. 8,1-29). 0 padre de Vatix nota: "De todas as narrativas sobre as
conquistas, esta é a mais pormenorizada: não contém nenhum elemento n-iilagroso e
parece ser a mais verosímil. Infelizmente é desmentida pelos arqueólogos... Quando
os israelitas lá chegaram, já não existia a cidade de Hai. Só ruínas com 1200
anos.1"

Os planos dos mestres do genocídio não ficam por aqui. Nem com os Juizes nem com os
Reis. É assim que no primeiro livro de Sainuel: "Ouve o que o Deus dos exércitos de
Israel te manda dizer: "[ ... ] Vai combater os amalecitas e destrói completamente
tudo quanto possuem. Mata homens, mulheres, crianças e meninos de peito ... " (I S.
15,2-3). Por não cumprir as suas ordens, o "Senhor" castiga Saul: "0 Senhor disse a
Samuel: Lamento ter consagrado Saul como rei, porque [ ... ] desobedeceu às minhas
ordens" (I S. 15, 10). 0 Senhor procura então um executante mais dócil e mais
implacável. Manda Samuel procurar o rei que indicava (I S. 16,1). Será David, sobre
quem o Catecismo, de 1992, diz que "foi por excelência o rei de acordo com o
coração de DeusI" e que "se podem encontrar em Jesus Cristo", Messias de Israel",
os seus "traços essenciais11".

7 Processo dos grandes criminosos de guerra perante o Tribunal Militar


internacional, audiência de 26 de Abril de 1946.

' R. de Vaux, Histoire Ancienne dIsrael, Gabalda, 1971, p. 562. P. 524.

P. 126.
11p.98.
163

Esta identificação é ainda mais lamentável tendo em conta que a biografia de David,
segundo a Bíblia (não existem outros testemunhos históricos sobre David além da
Bíblia), de 1 S. 16 a 2 S. 24, faz dele um personagem inquietante.

David, antigo escudeiro do rei Saul (I S. 16, 21), que este afastou, com inveja das
suas vitórias contra os filisteus (18, 18), refugia-se nas montanhas onde organiza
um bando armado com "todos os que tinham dívidas e com todos os descontentes" (22,
2). Depois, à maneira dos condottieti, passando para o lado dos filisteus, inimigos
de Saul e de Israel, põe-se ao serviço do seu rei Aquis (29) e comanda raids de
pilhagem nas zonas vizinhas: "Devastavam o território, matando homens e mulheres e
levando consigo ovelhas, burros, camelos e roupas" (27, 9). Aquis alista-o no seu
exército para combater Israel (28, 1), o que David aceita (29, 8). Mas os príncipes
filisteus exigem ao seu rei que se afaste de David.

Depois do suicídio de Saul, David faz-se eleger como rei. 0 único filho de Saul
vivo também se proclama rei. Depois da batalha do Campo das Rochas onde "as tropas
de Israel foram derrotadas pelos soldados de David" (2 S. 2, 17), "A guerra entre
os adeptos da família de Saul e os da família de David durou muito tempo" (3, 1).
Dois chefes de bando assassinam o filho de Saul e mandam a sua cabeça a David (4,
8). David manda cortar as mãos e os pés dos mensageiros e enforca-os (4, 12). Com a
morte do filho de Saul, David pode tomar-se ao mesmo tempo rei da Judeia e de
Israel (5, 4). Instala-se então em Jerusalém, no centro dos dois reinos. Jerusalém
toma-se a "cidade de David" (5, 8-9).

David, senhor da guerra, vencerá inúmeras batalhas: "E o poder de David aumentava
sempre cada vez mais, porque o Senhor, o Deus todo-poderoso, estava com ele" (5,
10).

Restava-lhe assegurar a herança do seu trono. Toma providências neste sentido


assenhoreando-se de Betsabé, mulher de Urias, um dos mais devotos e fiéis dos seus
generais. "Betsabé ficou grávida" (11, 5) e David livra-se do marido, enviando-o
para a morte na frente de combate, ordenando a Joab, um dos seus homens: "Coloca
Urias na frente,
164
onde o combate for mais renhido; depois deixem-no só, para que seja ferido e morra"
(11, 15). Assim nasceu Salomão.

É este o antepassado real que Paulo, antes de todos, atribuiu a Jesus. Este
sincretismo fatal pesou até aos nossos dias na história do cristianismo.

0 padre Segundo lembra que David é, para a exegese clássica, "uma das prefigurações
mais clássicas de Jesus no Antigo Testamentow Esta "exegese clássica" é, antes de
mais, a do primeiro Evangelho,

constituída pelos ensinamentos de Paulo. Para este, a "Boa Nova" é a da realização


das promessas de Deus feitas a Israel: "E nós estamos aqui para vos anunciar o
cumprimento da promessa que Deus fez aos nossos antepassados. Deus cumpriu-a agora
connosco, que somos descendentes dele, ao rescuscitar Jesus, como está escrito no
Salmo 2" (Ac. 13,32-33).

Acrescenta Paulo: "0 Deus de Israel escolheu os nossos antepassados... Deu o reino
a David. Foi a respeito de David que Deus disse: "Encontrei David. Ele é pessoa do
meu agrado, que irá fazer sempre a minha vontade" (Ac. 13, 17-22).

Os dois livros de Samuel e o primeiro livro dos Reis mostram-nos quais foram estas
"vontades" e como foram "realizadas".

A ascendência davidiana pesará em toda a história da Igreja desde Paulo, que já


invocava (Ac. 13,34), a favor de Jesus, uma profecia de Isaías (55,3): "Farei
convosco a aliança para sempre garantindo os favores que prometi firmemente a
David". Depois dele, Lucas precisará: "0 Senhor Deus lhe dará o trono do seu
antepassado David" (1,32).

Esta longa tradição baseia-se numa escolha decisiva: a de uma teologia da


dominação. Caracteriza não só a vida de David, tal como nos contam a Bíblia e
certos Salmos que lhe são atribuídos. É característico o facto de que a exaltação
do poder do Messias se refira aos Salmos atribuídos ao rei messiânico David,
especialmente ao Salmo 110, hino ao "poder" e à "dominação" (110, 2), num sentido
muito claro: "[ ... ] farei dos teus inimigos um estrado para os teus pés 1
encherá de cadáveres o campo de batalha [ ... ] esmagará reis [... Os feitos
de David contados por Samuel mostram que isto não são metáforas.

165

Os textos que acabámos de citar são só uma amostra dos muitos casos que abundam no
Antigo Testamento e que não é possível reduzir a uma metáfora. Servem, ainda nos
nossos dias, para justificar políticas`. Como podem tais textos figurar entre os
"textos sagrados" dos cristãos, ao lado dos profetas e dos Evangelhos?

. 1 .

Como se pode comparar este Deus saguinano e tribal ao Pai que Jesus invoca? Como se
podem considerar percursores de Jesus os seus mais ferozes executantes, como David,
por exemplo?

Esta continuidade intolerável, no entanto, foi formulada com o patrocínio de Paulo,


autor do primeiro Evangelho.

A principal preocupação de Paulo foi a de integrar Jesus na história judaica, à


qual Jesus não traria nada de novo (Ac. 26,24) sendo antes a sua conclusão
anunciada: o "Cristo" é precisamente o Messias real "na continuidade de David".

Esta assimilação de Jesus com o "Messias" de Israel tem suscitado necessariamente


(desde Paulo aos nossos dias) uma dupla linguagem. Quando Paulo proclama: "Não há
diferença entre judeus e não-

-judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homens e mulheres" (GI. 3, 28; Rm.
10, 12), esta fórmula sublime é contradita pelos seus ensinamentos práticos.

Trata-se de afirmar: já não há gregos nem judeus, é esta a sua mais radical
afirmação da prioridade do judeu. "Eu até desejaria ser amaldiçoado por Deus e
separado de Cristo, se isso servisse para bem deles. Eles são os descendentes de
Israel. Deus tomou-os como seus filhos e favoreceu-os com a sua presença gloriosa.
Fez alianças com eles e deu-lhes a lei, o culto sagrado e as promessas. Eles são os
descendentes dos patriarcas. E Cristo, como homem, pertence a essa mesma raça. Ele,
que está acima de todas as coisas, Deus bendito para sempre." (Rin. 9, 3-5).

Regressamos, com o judaísmo reformado de Paulo, em continuidade com o Antigo


Testamento, ao Deus do poder. Este Deus acolhe

11 Estas invasões, estes massacres, esta expoliação das terras dos autóctones
constituíram o protótipo de todas as exacções coloniais efectuadas em nome de Deus.

Os puritanos da América, por exemplo, quando perseguiam os índios, invocavam Josué


e as "exterminações sagradas" dos amalecitas.

166

"primeiro os judeus" (Rm. 1, 16), e só depois os "que o não são", se aceitarem a


concepção judaica de Deus e se aceitarem a reforma de Paulo, que, fazendo de Jesus
a conclusão da história judaica, procura constituir o verdadeiro Israel, o seu
verdadeiro "resto" (Rm. 11, 5).

Trata-se da emancipação dos escravos? "Continue cada um na condição em que se


encontrava quando foi chamado à fé. Eras escravo de alguém?... Não te preocupes
muito com isso [ ... ] Procurem viver como Deus quer, dentro da condição em que
se encontravam ao serem chamados à fé" (I Cor. 7, 20-28). "Escravos, obedeçam
cuidadosamente aos senhores que tiverem neste mundo. Façam-no com lealdade como se
estivessem a servir a Cristo" (Ef. 6, 5). "Diz aos escravos que obedeçam aos seus
senhores e que façam tudo para lhes agradar [ ... 1 Para que todos vejam nas suas
vidas que é boa a mensagem de Deus, nosso Salvadom (Tt. 2, 9)

Quanto às mulheres, exige-se a mesma submissão e de forma ainda mais repetitiva.


"Pois não foi o homem que foi tirado da mulher. A mulher é que foi tirada do homem.
Nem o homem foi feito por causa da mulher, mas sim a mulher por causa do homem" (I
Cor. 11, 8-9).

Desta desigualdade teológica decorre uma prática:"As mulheres obedeçam aos maridos"
(Ef 5, 22; CI. 3, 18). "Não lhes permito que ensinem nem dêem ordens aos homens,
mas devem ficar em silêncio" (I Trn. 2, 12), "ouvir com humildade" (2, 11). "As
mulheres não devem tomar a palavra nas reuniões da comunidade" (I Cor. 14, 34; 1
Tm. 2, 12). "Se a mulher não quer estar de cabeça coberta, é melhor que corte o
cabelo" (I Cor. li, 6).

Paulo escreve magnificamente: "Ele, que por natureza era Deus... humilhou-se a si
mesmo" (Fl. 2, 6-8), mas anuncia a sua segunda vinda como a de um segundo Davíd
triunfante, porque, diz, "é preciso que Cristo tome conta do Reino até Deus
sujeitar todos os seus inimigos ao seu domínio" (I Cor. 15, 25), onde se refere ao
Salmo 110 de David, um exaltação da potência guerreira mais implacável: "0
Senhor... encherá de cadáveres os campos de batalha e esmagará os reis por todo o
país" (110, 5-6).
Como se pode conciliar toda esta brutalidade com o magnífico hino ao amor da
Primeira Epístola aos Coríntios (13, 1-13)?

167

Paulo justifica mesmo de antemão os massacres e o talião da vingança. Como no


Antigo Testamento, este Deus "castiga" (2 Ts 1, 8). E acrescenta Paulo: "Aqueles
que vos causam esses sofrimentos receberão de Deus ojusto castigo" (2 Ts. 1, 6), É
dificil reconhecer aqui o Deus das Beatitudes, a não ser que se veja no "amor" o
"cumprimento" do "talião" e em Jesus o herdeiro de David, Senhor da Guerra.

Não se trata de História ou de passado: o texto de Paulo que define todas as


"teologias da dominação" é retomado na íntegra pelo Catecismo, de 199211, que diz
mesmo: "Os que estão submetidos à autoridade vêem os seus superiores como
representantes de Deus11."

Para mencionar só o período mais recente, esta doutrina omnipresente foi aplicada à
letra pelos episcopados. Em 24 de Dezembro de
1936, os bispos alemães, numa carta pastoral comum, apelavam aos católicos que
seguissem o seu führer. Escrevia: "0 chefe e chanceler do Reich apercebeu-se a
tempo da avalanche do bolchevismo... Os bispos alemães consideram ser seu dever
apoiar o chefe do Reich nesta luta, com todos os meios à sua diposição no domínio
religioso."

É verdade que o papa Pio XII, na encíclica Mit Brennender Sorge, condenou a
doutrina da raça e do sangue, e reconheceu que Hitler violava os pactos que tinha
assinado, mas não denuncia a concordata com o Reich, assinada pelo seu antecessor
Pio XI, em 1933, de tal maneira que em Outubro de 1940, uma nova conferência do
episcopado alemão, em Fulda, evoca o sacrificio feito pelo exército alemão para a
"grande causa da liberdade de todos os povos"",

Em Espanha, sob o regime de Franco, o cardeal primaz de Espanha via na sua guerra
contra a República "uma verdadeira cruzada pela religião católica" (Apelo de 23 de
Novembro de 1936).

Uma carta colectiva de todos os bispos espanhóis dá a Franco a investidura, aos


olhos de todo o mundo. 0 primado de Espanha comenta, no El Heraldo de Aragon, de 22
de Agosto de 1937: "A carta colectiva, [... ] representando oficialmente a Igreja
de Espanha, falou pela Igreja universal."

11P.397. MP.459.
11 Le Temps, 24 de Outubro de 1940.

168

Deu-se o mesmo em França, com Pétain. Em 15 de Novembro de


1940, o primado gaulês proclamou, na pura tradição do paulinismo político: "Foi
Deus quem deu este chefe à nossa pátria", e, em 26 de Dezembro: "Pétain é a França
e a França é Pétain." Em 15 de Janeiro de 1941, na zona ocupada, e em 5 de
Fevereiro, na zona livre, o episcopado francês - com excepção do arcebispo de
Toulouse, monsenhor Saliège - apela ao povo de França à colaboração: "Professamos
uma total lealdade com o poder estabelecido do governo da França e pedimos aos
nossos fiéis que mantenham este mesmo espírito" "de colaborar sem
receio", acrescentam, em 24 de Julho de 1941.

A mesma teologia pauliniana da dominação inspira, nos nossos dias, a restauração


monárquica da política romana contra as aberturas do Vaticano 11. 0 Catecismo, de
1992 serve de fundamento teórico para esta prática conservadora. Constitui uma
reedição do Catecismo do Santo Pio V (venerado por monsenhor Lefebvre), redigido na
sequência do Concílio de Trento (1545-1563), com a Contra-Reforma. "0 Concílio de
Trento, diz o Catecismo, de 1992, constitui um exemplo, [ ... 1 uma obra de
primeira ordem enquanto resumo da doutrina criStã16."

Com o mesmo espírito de respeito pela ordem estabelecida, a condenação romana das
teologias da libertação pelo cardeal Ratzinger, em
23 de Novembro de 1984, precede em dois meses a Declaração de Santa Fé (7 de
Fevereiro de 1985), em que os ideólogos de Reagan e da CIA declaram (Proposta 3):
"A política externa dos Estados Unidos deve começar a combater a teologia da
libertação."

A "Santa Aliança" firmada entre Reagan e o Vaticano, em Junho de


1982, revelada, nos Estados Unidos pela Time e confirmada pelo próprio Ronald
Reagan numa entrevista à revista católica italiana Panorama, em
12 de Março de 1992, estende-se da América Latina à Polónia. Reagan declara: "0
papa foi uma grande ajuda, determinante, para apoiar o movimento Solidarnosc 17 .
Encontrámos o denominador comum entre os Estados Unidos e o Vaticano por causa da
unidade dos nossos ideais."

16P. 12.

110 movimento sindical-~Iico Solidariedade, de Lech Walesa, na Polónia. (N. do T.)

169

É certo que esta política imperial romana teve repercussões contraditórias nos
campos de batalha a que João Paulo 11 era mais sensível: na Polónia e em Itália. Na
Polónia nem os dólares nem as bençãos evitaram que Lech Walesa visse desaparecer o
poder político de uma Igreja que, no entanto, durante séculos se identificava com a
nação. Em Itália, em 1987, as instruções formais do papa ordenando aos bispos que
fizessem os católicos votar na Democracia Cristã não foram suficientes para impedir
o colapso total, nas eleições seguintes, do partido confessional no governo há já
quase meio século.

Estas derrotas da intromissão da Igreja na política não impediram que o Vaticano


seguisse inflexivelmente a mesma via; foi o primeiro e único Estado a reconhecer a
ditadura sanguinária dos militares do Haiti, contra o padre Aristide, culpado de
simpatia para com as teologias da libertação e para com a causa da miséria no país.

E, neste mesmo sentido, o papa revelou a sua nostalgia das ditaduras militares
quando beatificou Escriva de Balaguer, chefe da Opus Dei e o maior apoiante
religioso de Franco, ou quando enviou ao general Pinochet, carrasco do Chile, a sua
"benção apostólica especial", publicada no jornal chileno El Mercurio, em 30 de
Março de 1993.

Estes comportamentos não são "equívocos", mas sim consequências doutrinais


rigorosas da teologia da dominação inicialmente formulada por São Paulo, contra a
mensagem libertadora de Jesus.

0 regresso brutal à teologia da dominação, cujo fim o Concílio do Vaticano 11


parecia anunciar, é marcada pelos autos da nova Inquisição.
0 grande teólogo da libertação, Leonardo Boff, vê-se obrigado ao

silêncio pela cúria romana, e, para poder continuar a sua obra no espírito do
Vaticano 11 e de Medellín - a opção preferencial pelos pobres

é levado à demissão.

Em 26 de Outubro de 1993, monsenhor Ruiz, bispo de São Cristobal de Las Casas, na


província de Chiapas, no México, é convocado pelo núncio apostólico, monsenhor
Prigione, que o intima a assinar uma carta de demissão. 0 principal pecado de
monsenhor Ruiz foi o de ter defendido, em nome da teologia da libertação de que foi
rela-
170

tor junto da Conferência Episcopal de Medellín, os índios e camponeses pobres,


enquanto o Vaticano assinava contra eles e com o governo mexicano um acordo de
repressão, enquanto os grandes proprietários da região ameaçavam de morte o bispo e
pediam a sua retirada, tal como tinham feito ao seu ilustre antecessor, Bartolomeu
de Las Casas, protector dos índios, quatro séculos antes.

Em Janeiro de 1995, é destituído monsenhor Gaillot das suas funções de bispo de


Évreux, apesar dos protestos de inúmeros bispos e teólogos de todo o mundo e de
centenas de milhares de católicos franceses e de homens de todas as fés, que nas
aberturas ao mundo do Vaticano 11 tinham descoberto a esperança.

Não perdoaram a monsenhor Gaillot o ter desobedecido às instruções romanas, quando


recusou associar-se, em 1983, à aceitação da bomba nuclear, e, principalmente, por
ter combatido sem tréguas todas as exclusões. Na sequência de uma intimação
apresentada pelo porta-voz do episcopado, aprovada pelo cardeal Lustiger,
representante em França do integrismo vaticano (tal com o é o cardeal Trujillo
junto do episcopado da América Latina), o executante da sentença, cardeal Gantin,
impôs a monsenhor a demissão.

Confirma-se assim a opção preferencial do papa e da cúria imperial romana pelos


ricos e poderosos, em reacção às esperanças anunciadas pelo Vaticano 11.

171

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íNDICE

PREFÁCIO: Actualidade da profecia, por Leonardo


Boff ........................ 5

INTRODUÇÃO: Réquiem por uma


decadência ....................................
9

1. GUERRA ENTRE 0 ISLÃO E 0


OCIDENTE? .................................
19

O ensinamento do Alcorão: Jesus é um profeta do


Islão ........................ 19 O islamismo, doença
do Islão ......................................................
27

2. GUERRA ENTRE A FÉ E 0
ATEíSMO? .......................................
45

A fé é ópio ou
fermento? ............................................................
45 Fins últimos e fins penúltimos: Prometeu ou
Jesus? .............................. 49 Marx morreu?
...........................................................................
52

3. UMA GUERRA ENTRE 0 MONOTEíSMO DE MERCADO E 0 SENTIDO?


65
0 que é o monoteísmo do
mercado? ..... ...........................................
65 Os media e o não-
sentido ... . ........................................................
67 A outra metade do
mundo ............................................................
71 Uma mutação do
Ocidente .................... ........ .. . .........................
.... 75

4. DE QUE DEUS
PRECISAMOS? ...............................................
.... 79 Crença e
fé ............... . .........................................................
..... 79 Deus feito
Homem? .................. ...... .. . ................................
....... 86
0 mito e a História: do ícone ao
ídolo ............................................. 90
Conjugação do verbo
Deus ......................... . ..................................
94 A história santa da
Humanidade ...................................................
99

5. 0 DEUS QUE NÃO DEIXA DE


CRIAR ..........................................
103 Toda a arte é
sagrada? ...............................................................
103

CONCLUSÃO: 0 homem é um Deus em


flor ....................................... 121

173

ANEXOS

1. HÁ "PROVAS" DA EXISTÊNCIA DE
DEUS? ................................. 127

2. A TEOLOGIA DO SÉCULO XX E 0 DIÁLOGO DAS CIVILIZAÇõES


... 131
3. 0 "CRISTO" DE SÃO PAULO É
JESUS? ....................................... 139

4. HAVERÁ ALGUMA CONTINUIDADE ENTRE 0 ANTIGO E 0 NOVO

TESTAMENTO? SERÁ JESUS HERDEIRO DE


DAVID? .................. 155

BIBLIOGRAFIA ............................................................
............... 173

174

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